A história da Bíblia
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A história da Bíblia - Hendrik Willem van Loon
Esta é uma publicação Principis, selo exclusivo da Ciranda Cultural
© 2020 Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.
Traduzido do original em inglês
The story of the Bible
Texto
Hendrik Willem van Loon
Tradução
Monteiro Lobato
Preparação
Cleusa S. Quadros
Revisão
Fernanda R. Braga Simon
Produção editorial e projeto gráfico
Ciranda Cultural
Imagens
Helen Stebakov/Shutterstock.com
Diagramação
Fernando Laino Editora
Ebook
Jarbas C. Cerino
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
V217h van Loon, Hendrik Willem
A história da Bíblia [recurso eletrônico] / Hendrik Willem van Loon ; traduzido por Monteiro Lobato. - Jandira, SP : Principis, 2021.
272 p. ; ePUB ; 2 MB. - (Clássicos da literatura cristã)
Tradução de: The story of the Bible
Inclui índice. ISBN: 978-65-5552-268-6 (Ebook)
1. Literatura cristã. 2. Bíblia. I. Lobato, Monteiro. II. Título. III. Série.
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura cristã 242
2. Literatura cristã 244
1a edição em 2020
www.cirandacultural.com.br
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada em sistema de busca ou transmitida por qualquer meio, seja ele eletrônico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização do detentor dos direitos, e não pode circular encadernada ou encapada de maneira distinta daquela em que foi publicada, ou sem que as mesmas condições sejam impostas aos compradores subsequentes.
Uma herança literária
Como o Velho e Novo Testamento vieram a ser escritos, e o que com eles aconteceu no decurso de muitos séculos.
As pirâmides já eram velhas de milhares de anos. Babilônia e Nínive haviam-se tornado centro de vastos impérios. Dois, o Eufrates e Tigre, fervilhavam de gente operosa. Por esse tempo uma pequena tribo do deserto, movida de razões lá suas, decidiu abandonar a velha querência, nas areias desérticas da Arábia, e rumar a norte, em procura de solo mais fértil. Iriam ser esses homens o que o Futuro chamaria os judeus
, e dariam à humanidade o mais importante dos livros humanos, a Bíblia. E de uma de suas mulheres viria mais tarde ao mundo o maior e mais bondoso dos mestres.
Não obstante – é curioso! – tudo ignoramos das origens desse grupo humano, que se originou não sabemos onde, que desempenhou o maior papel jamais representado por uma raça, e depois se exilou entre todas as nações do mundo.
O que temos a dizer neste capítulo é de caráter vago e pouco veraz nos detalhes. Os arqueólogos, entretanto, cavam com ânsia o solo da Palestina e cada dia aprendem uma coisa nova. Procurarei dar ao leitor a fiel exposição dos poucos fatos incontestes que a história reuniu.
A Leste da Ásia correm dois caudalosos rios, com o nascedouro nas altas montanhas do norte e a foz no golfo Pérsico. Ao longo das margens destes rios barrentos a vida era agradável e fácil. Daí o empenho dos habitantes das frias montanhas do norte e dos comburentes desertos do sul, em tomar pé nos vales do Eufrates e do Tigre. Sempre que tinham ensejo, deixavam os pagos tradicionais para tentativas de penetração na planura fértil.
Lutavam entre si e conquistavam-se uns aos outros, e fundavam civilizações novas sobre as ruínas das destruídas. Construíram grandes cidades, como Babilônia e Nínive; e, há mais de quarenta séculos de hoje, tornaram essa região um verdadeiro paraíso, de vida invejada por todos os povos da época.
Mas se olhais para o mapa vereis também milhões de afanosos servos cultivando os campos de outro poderoso país, o Egito. Esses campos separavam-se da Babilônia e da Assíria por uma estreita faixa de terra. Muita coisa de que eles necessitavam só podia vir dos países distantes, situados nas planuras férteis. E muita coisa necessitada pelos babilônios e assírios só podia vir do Egito. Consequentemente, os dois povos mantinham intercâmbio comercial, através de estradas abertas na faixa que os separava.
Damos hoje a denominação de Síria a essa parte do mundo. No passado teve muitos nomes. É composta de montanhas baixas e vales amplos. Pouco arvoredo. Chão cozido pelo sol esturricante. Mas um certo número de pequenos lagos e numerosos ribeiros dá um toque de graça à monotonia das montanhas pedreguentas.
Desde os tempos mais remotos tal zona de trânsito vinha sendo habitada por diferentes tribos dos desertos da Arábia, todas da raça semita. Falavam a mesma língua e adoravam os mesmos deuses. Frequentemente lutavam entre si, firmavam tratados de paz e lutavam de novo, com recíprocas conquistas de cidades, rapto de mulheres, pilhagem de rebanhos – o comportamento usual, em suma, das tribos errantes que seguem os caprichos dos seus impulsos ou de momentânea superioridade de força.
Dum modo vago, reconheciam a autoridade dos reis do Egito, da Síria e da Babilônia. Quando os coletores de impostos desses reinos apareciam na zona com soldadesca atrás, os brigões mostravam-se muito humildes. Cheios de reverências, reconheciam a soberania do faraó de Mênfis ou do rei de Akkad. Mas, quando Sua Excelência o Governador mais o séquito de soldados partiam, a velha vida tribal retomava o seu curso, tão livremente como antes.
Não tomemos muito a sério essas lutas de tribos. Não passavam do esporte mais sedutor a que podiam se dedicar, e eram geralmente leves os danos causados. Vantagem: conservar os moços na desejada rigeza.
Os judeus, destinados a desempenhar tão importante papel no mundo, começaram a sua carreira como uma dessas tribos errantes, briguentas, pilharengas, hostis aos grupos menores que tentavam manter-se na zona das Estradas Reais. Infelizmente nada sabemos de positivo dos começos históricos desse povo.
Só dispomos de engenhosas hipóteses – e a hipótese histórica não substitui o fato. Quando lemos que os judeus vieram originalmente das terras do Ur, no golfo Pérsico, podemos estar diante de uma verdade – ou de uma falsidade. E, portanto, em vez de pôr neste livro coisas que tanto poderão ter sido como não ter sido, apenas mencionaremos os fatos sobre os quais todos os historiadores andam acordes.
Os mais remotos ancestrais dos judeus viveram provavelmente nos desertos da Arábia. Não sabemos em que século deixaram os pagos nativos para a penetração nas planícies férteis. Só sabemos que por muitos séculos erraram em procura duma terra que pudessem ter como sua. Também sabemos que por algumas vezes cruzaram o deserto do Monte Sinai, e que durante vários anos viveram no Egito.
De certo ponto em diante, porém, os velhos textos egípcios e assírios começam a lançar alguma luz sobre os acontecimentos consignados no Velho Testamento. E o resto da história nos é familiar – como os judeus deixaram o Egito, e como, depois da penosa peregrinação pelo deserto que lhes criou a solidariedade tribal, conquistaram a pequena parte das terras das Estradas Reais chamada Palestina e aí fundaram uma nação; como essa nação lutou pela independência e sobreviveu por vários séculos, até ser absorvida pelo império de Alexandre e mais tarde vir a constituir uma das menores províncias do império romano.
Mas ao mencionar essas ocorrências históricas cumpre ao leitor ter em mente que não estou a escrever um livro de história. Não pretendo dizer o que realmente aconteceu – apenas direi o que certo povo, de nome os judeus
, admitia ter acontecido.
Como todos sabemos, há uma grande diferença entre os fatos
e o que supomos ter sido fato
. Cada história dum certo país narra a vida do povo dum certo jeito; mas se cruzarmos a fronteira veremos que a propósito desse povo o vizinho já pensa de maneira diversa. Em criança os homens se abeberam nos livros da história pátria e admitem-nos como a verdade até o fim dos seus dias.
Aqui e ali, entretanto, um historiador ou um filosofo, ou uma pessoa dada a ler os livros básicos de todos os países, talvez possa, a respeito dum povo qualquer, ter ideias que realmente se aproximem da verdade. Mas, se é homem amigo da paz, conservará consigo, escondida no poço, a verdade que adquiriu.
O que vale para o resto do mundo vale também para os judeus. Os judeus de trinta séculos atrás, bem como os de hoje, não passavam, e não passam, de criaturas comuns, como eu ou o leitor. Não eram, nem são, melhores (como eles se dizem), nem piores que os outros (como dizem seus inimigos). Possuem, é certo, virtudes bem pouco vulgares, e também defeitos bastante comuns. Mas tanto se há escrito sobre os judeus – a favor, contra ou neutralmente – que se torna difícil dar-lhes o lugar certo na história.
A mesma dificuldade experimentamos na tentativa de apreender o valor histórico das crônicas que os judeus fixaram e nas quais nos dizem de suas aventuras entre os egípcios, os povos da Canaã e da Babilônia.
Raramente são bem vistos os ádvenas – e nos países em que os judeus estacionaram durante os longos anos de peregrinação eram eles ádvenas. Os velhos habitantes dos vales do Nilo e dos pedrouços da Palestina, ou das margens do Eufrates, não os acolhiam de braços abertos. Bem ao contrário disso, murmuravam nós apenas temos espaço para nossos próprios filhos e filhas; os de fora que se vão para fora
, e eram inevitáveis os choques.
Quando os historiógrafos judeus olham para os velhos dias da raça, procuram colocar os antepassados à melhor luz possível. Nós na América fazemos a mesma coisa. Louvamos as virtudes dos puritanos estabelecidos em Massachusetts e descrevemos os horrores dos tempos em que os brancos viviam expostos ao cruel flechaço dos índios. Mas raro nos detém a atenção o fado dos aborígenes, igualmente expostos à crueldade dos tiros dos brancos invasores.
Uma história honesta, escrita do ponto de vista dos índios, constituiria leitura de bastante edificação. Mas os índios já lá se foram; nunca saberemos que impressão os estrangeiros do ano 1620 lhes causaram – e é pena.
Por muito tempo o Velho Testamento foi a única história da Ásia que nossos avós podiam ler e entender. Mas no século passado começamos a decifrar os hieróglifos do Egito, e há cinquenta anos descobrimos a chave da misteriosa escrita ungular dos babilônios. Isso nos dá hoje pontos de vista diferentes para a análise da história dos judeus.
Vemos que cometeram os mesmos erros de todos os historiadores patriotas, e verificamos como pervertiam a verdade para bem da glória e do esplendor da raça.
Mas nada disso, repito, tem algo que ver com este livro. Não me proponho a escrever nenhuma história do povo judeu. Não vou defendê-los, nem atacá-los, mas simplesmente repetir o que eles tinham como a verdade sobre si mesmos e os vizinhos. Não compulsarei textos críticos de sábios investigadores. Tomarei uma pequena Bíblia de dez centavos e nela encontrarei todo o material necessário ao meu estudo.
Se falássemos em Bíblia
para um judeu do século primeiro da nossa era, ve-lo-íamos abrir a boca. Essa palavra é relativamente nova. Foi inventada no século quarto por João Crisóstomo, o patriarca de Constantinopla, quando se referiu à coleção dos livros sagrados dos judeus como a Bíblia
– ou Os Livros
.
A coleção foi crescendo durante mil anos. Com poucas exceções, quase todos os capítulos foram traçados em hebreu. Mas o hebreu já não era língua viva quando Cristo veio ao mundo. Por esse tempo a língua aramaica (muito mais simples e mais largamente disseminada entre o povo) já estava dominando, e vários dos livros proféticos do Velho Testamento nela foram escritos. Portanto, nada de perguntarem-me quando a Bíblia foi escrita, porque não poderei responder.
Cada vilarejo de judeus ou cada templo possuía crônicas locais copiadas por homens piedosos em pergaminho ou papiro. Às vezes faziam-se coleções de diferentes leis e profecias para uso fácil dos frequentadores do templo. Durante o século oitavo, quando os judeus já estavam estabelecidos na Palestina, essas coleções foram aumentando. E, a intervalos, entre o século terceiro e o primeiro da nossa era, foram traduzidas em grego e levadas à Europa. Por fim passaram para todas as línguas do mundo.
No relativo ao Velho Testamento a sua história é muito simples. Durante os primeiros dois ou três séculos após a morte de Cristo, os seguidores do carpinteiro de Nazaré andaram sempre mal vistos das autoridades romanas. As teorias do amor e da caridade eram tidas como perigosas para a segurança dum estado cuja base era a força bruta das armas. Os primitivos cristãos, portanto, não podiam chegar a um vendedor de livros e dizer: Quero uma ‘Vida de Cristo’ e uma narrativa dos atos dos Apóstolos
. Obtinham essas informações secretamente, por meio de pequeninos panfletos que circulavam de mão em mão. Milhares desses panfletos eram copiados e recopiados, até que o povo perdeu qualquer traço da verdade que podiam conter.
Entrementes, a igreja cristã triunfara. Os perseguidos cristãos tornaram--se os dirigentes do império romano, e antes de mais nada trataram de dar alguma ordem ao caos literário consequente a três séculos de perseguições. Decidiram conservar uma parte dos evangelhos e uma parte das cartas escritas pelos Apóstolos aos membros das congregações remotas. Todo mais foi rejeitado.
Seguiram-se, depois disso, vários séculos de discussões. Muitos sínodos se realizaram em Roma e Cartago (a nova cidade construída sobre as ruínas da antiga) e em Trulo; e setecentos anos depois da morte de Cristo o Novo Testamento (como o conhecemos) foi definitivamente adotado pelas igrejas do Ocidente e do Oriente. Desde então têm aparecido incontáveis traduções feitas do grego, sem que nenhuma alteração importante haja ocorrido no texto.
Criação
Ideia dos judeus sobre a criação do mundo.
A mais velha de todas as questões é o De onde viemos?
Muita gente leva a propô-la até o fim de seus dias. Não esperam obter resposta, mas, como os soldados valentes diante das empresas irrealizáveis, recusam-se a render-se e entram na eternidade com a orgulhosa pergunta nos lábios. De onde? Para onde?
O mundo, porém, está cheio de toda sorte de criaturas. A maioria insiste em explicações engenhosas das coisas que não compreendem. Quando nenhuma explicação aceitável aparece, inventam-nas.
Há cinco mil anos passados a história da criação do mundo em sete dias generalizara-se entre os povos da Ásia ocidental – e assim também pensavam os judeus. Vagamente esses povos atribuíam a criação da terra, do mar, das árvores, das flores, dos pássaros, do homem e da mulher aos seus diferentes deuses.
Aconteceu, porém, que os judeus foram os primeiros a conceber a existência dum deus único. Quando adiante falarmos de Moisés, mostraremos a razão disto.
Nos começos a tribo semita inicial, cepa de que saiu o povo judeu, adorava diversas divindades, exatamente como em torno dela, e através das idades, faziam e sempre fizeram os seus vizinhos.
As histórias da criação que vemos no Velho Testamento, entretanto, foram escritas mais de dez séculos antes da morte de Moisés, tempo em que a ideia dum deus único já estava aceita pelos judeus como fato absolutamente verdadeiro – com pena de morte ou exílio para quem o pusesse em dúvida.
Vamos ver agora de que modo o poeta que deu aos hebreus a versão do começo das coisas concebeu o gigantesco trabalho da criação como súbita expressão duma vontade única e todo-poderosa – a vontade do próprio deus tribal, que eles denominavam Jeová, o Governador dos Céus.
Eis como a história era contada aos fiéis no templo.
No começo, a terra boiava no espaço, silenciosa e escura. Não havia solo, só as águas sem fim do oceano a recobrirem tudo. O espírito de Jeová aparece sobre as águas, em contemplação. E Jeová diz: Faça-se a luz
, e os primeiros raios da aurora rompem as trevas. A isto chamarei o Dia
, declara Jeová.
Mas logo se foi a luz apagando e se apagou de todo, e Jeová diz: A isto chamarei a Noite
. E ele então descansa daquele trabalho do Primeiro Dia do mundo.
Depois Jeová diz: Que surja um Céu, desdobrado como dossel amplo sobre as águas, com espaço para as nuvens e os ventos que sopram sobre o mar
. E aparece o Céu. E vem a Manhã e vem a Noite, e assim termina o Segundo Dia.
Então Jeová diz: Que apareçam terras no meio das águas
e imediatamente emergem do mar montanhas gotejantes, que se levantam para os céus, com planuras e vales aos pés. Então Jeová diz: Que a terra se encha de plantas que deem sementes, e de árvores que deem flores e frutas
. E a terra se recobre de verdura – macios tapetes de relva, árvores e arbustos a gozarem as carícias da luz. E uma vez mais a Noite chegou depois do Dia e o trabalho divino do Terceiro Dia foi findo. Então Jeová diz: Que os Céus se encham de estrelas, que surjam as estações e os dias e os anos. E que o dia seja regulado pelo sol e a noite seja o tempo do repouso, e só a silenciosa lua mostre ao caminhante do deserto a estrada que leva ao abrigo
. E assim foi feito e assim termina o Quarto Dia.
E então Jeová diz: Não basta. Que o mundo também se encha de criaturas que andem de rojo ou marchem com pernas
. E aparecem as vacas e os tigres, e todos os animais que conhecemos, e muitos outros já desaparecidos. E realizado que foi este feito, Jeová toma do chão o barro e molda-o à sua imagem, e dá-lhe vida, e chama a essa imagem Homem, e põe-no à testa de toda a criação. Assim termina o trabalho do Sexto Dia, e Jeová, contente com o que havia feito, descansa no Sétimo.
E então chega o oitavo dia, e o Homem se vê em seu novo reino. Adão, chamava-se ele, e vivia num jardim todo lindas flores, com mansíssimos animais que vinham com os filhotes distraí-lo da solidão. Mas o Homem não se sente feliz. Todas as outras criaturas andavam aos pares, menos ele. Jeová, então, toma do primeiro homem uma costela e forma Eva. E o primeiro casal põe-se a explorar o seu reino, ao qual chama o Paraiso.
Diante duma grande árvore Jeová fala-lhes assim: Ouvi, que é importante. De todas as frutas destas árvores podeis comer a contento, exceto desta aqui, a geradora do conhecimento do Bem e do Mal. Se o Homem comer desta fruta começará a compreender o direito ou o errado dos seus próprios feitos. E não terá paz de espírito. Portanto, ou deixareis intactas as frutas desta árvore ou suportareis as consequências do Conhecimento, as quais são terríveis
.
Adão e Eva prometem obediência. Logo depois, entretanto, Adão adormece, e Eva se põe a errar por ali, até que ouve rumor na relva. Olha. Uma velha e astuta serpente.
Naqueles tempos os animais falavam língua inteligível ao novo casal, de modo que a serpente não teve dificuldade em contar a Eva que ouvira as palavras de Jeová, mas que seria tolice tomá-las a sério. Eva concorda, e quando a serpente lhe dá uma das frutas da árvore proibida, come-a, e quando Adão despertou, fá-lo comer também.
E então Jeová enfurece-se. Imediatamente expulsa a ambos do Paraíso, condenando-os a viverem no mundo com o esforço próprio.
Em tempo vêm-lhes dois filhos, ambos machos. O mais velho, Caim, o mais novo, Abel. Tornam-se úteis à casa. Caim moureja nos campos, Abel guarda ovelhas. E, como irmãos que eram, brigavam.
Num dia de oferendas a Jeová, Abel sacrificou um cordeiro, e Caim depositou um punhado de grãos sobre a rude pedra do altar construído para os atos de adoração.
As crianças são suscetíveis ao ciúme, e gostam de basofiar sobre os méritos próprios. O fogo acendido por Abel brilhava sadio, mas o de Caim se atrasava. Caim imaginou que Abel se ria dele. Abel defende-se, dizendo que não, que estava apenas olhando o serviço. Caim manda que se afaste dali. Abel recusa-se. Por quê?
Caim, então, dá-lhe um golpe. Golpe forte. Abel cai morto. Terrivelmente apavorado, Caim foge, esconde-se.
Mas Jeová, que tudo via, encontra-o oculto nas sarças. Pergunta-lhe do irmão. Caim não se recusa a responder. Não sabia. Não era ama seca do irmão.
De nada lhe aproveitou a mentira, e do mesmo modo como por ato de desobediência Jeová lançou o primeiro casal fora do Paraíso, assim também forçou Caim a abandonar a casa paterna – e embora vivesse vida longa nunca mais seus pais souberam dele.
Adão e Eva não levaram vida feliz. O filho mais novo morrera no acidente e o mais velho desaparecera. Tiveram, porém, mais prole, e acabaram em extrema velhice, dobrados pela trabalheira sem fim e pelos infortúnios.
Gradualmente, os filhos e netos de Adão e Eva começaram a povoar a terra. Foram para o oriente e para o ocidente, e para as montanhas do norte, e também se espalharam pelos desertos do sul. Mas o crime de Caim havia marcado a raça. Dali por diante a mão do homem se ergueria sempre contra o seu vizinho. Entrematavam-se e entrerroubavam as ovelhas. Não havia segurança para uma menina que saísse de casa; podia ser raptada pelos rapazes das vizinhanças.
O mundo se tornou uma coisa triste. Viera errado, do começo. Tinha de ser recomposto. Talvez uma nova geração se mostrasse mais obediente à vontade de Jeová.
Vivia naqueles tempos um homem de nome Noé, neto de Metuselah (o qual vivera novecentos e sessenta e nove anos) e descendente de Seth, um dos irmãos de Caim e Abel, nascido depois da tragédia.
Era Noé um bom homem, dos que procuram viver em paz com a própria consciência e o próximo. Se a raça humana tinha de começar de novo, Noé daria um bom recomeço.
E Jeová decidiu matar todos os homens, menos Noé e os seus. Chamou--o e mandou que construísse um navio, ou arca. Devia ter 450 pés de comprimento por 75 de largura e 43 de altura. Tamanho dum transatlântico moderno – e é difícil imaginar como Noé deu conta da incumbência.
Noé e os filhos puseram-se ao trabalho, sob a chacota dos vizinhos. Que estranha ideia construir um navio num lugar onde não havia água – rio nenhum, e o mar a mil milhas distante!
Mas Noé e seus fiéis auxiliares não abandonaram o serviço. Cortaram grandes ciprestes, travaram a quilha, ergueram os costados e calafetaram-no com betume. Quando o terceiro convés ficou pronto, construíram um teto de madeira pesada, próprio para resistir à violência das chuvas que iam desabar sobre a terra maldita.
Por fim Noé e sua gente, três filhos, a esposa e a esposa dos filhos, acharam-se prontos para o embarque. Foram então para os campos e montanhas a recolher quantos animais pudessem, de modo a ter carne para a boca, e para os sacrifícios, quando de novo pisassem terra firme.
Uma semana levaram caçando. A arca se encheu do rumor de inúmeros animais desafeitos a gaiolas, que raivosamente mordiam as barras aprisionadoras. Só não recolheram peixes. Os peixes cuidariam de si mesmos
.
Na noite do sétimo dia Noé embarcou com sua gente. Recolheram-se as escadas e fechou-se o navio.
Tarde da noite rompeu a chuva. E choveu por quarenta dias e quarenta noites. A terra inteira ficou recoberta pelas águas, com perecimento de todos os seres, salvo os recolhidos na arca de Noé. Foi o Dilúvio Universal.
***
Por fim Jeová se compadeceu e com uma rajada de vento limpou de nuvens o céu. De novo os raios do sol brilharam sobre as ondas agitadas, como o tinham feito no primeiro dia da criação.
Cuidadosamente Noé abriu uma janela e espiou. A arca boiava calmamente no oceano sem fim. Nenhuma terra à vista. Noé soltou um corvo, e nunca mais o viu. Soltou depois um pombo. Os pombos podem voar por mais tempo que qualquer outra ave, mas por muito que aquele voasse não encontrou pouso e regressou. Noé tornou a colocá-lo na gaiola.
Transcorrida mais uma semana, Noé de novo soltou o pombo. Por fora ficou a ave o dia inteiro, revoando, mas à noitinha reapareceu com um ramo de oliveira no bico. Era sinal de que as águas iam descendo.
Outra semana se passou e Noé pela terceira vez soltou o pombo. Não voltou mais