Coitado do Tio Juquinha
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Sobre este e-book
Luiz Gastão Paes de Barros Leães
A narrativa tem como ponto inicial um crime de morte ocorrido em 1899 no seio de uma tradicional família paulista. Trata-se do assassinato do pintor José Ferraz de Almeida Júnior e o julgamento do autor do crime, primo de pintor, que teve como defensores o professor Francisco A. de Almeida Morato e o ex-presidente da República Prudente de Morais. Passa a seguir a abordar, no capítulo subsequente, um pequeno episódio amoroso decorrente da maciça imigração italiana para o Brasil, que ocorreu durante o período de 1887-1972, envolvendo o autor do assassinato, primo do pintor. Essa imigração, inicialmente proveniente do norte da Itália, do Vêneto, visava a preencher a falta de braços para a lavoura do café, principal produto da economia do País, em decorrência da liberação da escravatura. O capítulo subsequente aborda o fim da República Velha em consequência do golpe 1930 e a ida desses paulistas para o Norte do Paraná para desbravar a mata ali existente e implantar novos cafezais. Nessa nova ordem social, a narrativa se estende sobre os passos dos personagens descritos nos capítulos anteriores nessa nova região. Em toda a narrativa o foco central é o tio Juquinha, tio-bisavô do autor do relato.
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Coitado do Tio Juquinha - Luiz Gastão Paes de Barros Leães
Catalográfica
Capítulo I
O CRIME
Comment agir, ô coeur volé ?
A.R.
- 1 -
Ainda estava escuro quando, na manhã de 11 de novembro de 1899, Juquinha deixou o sítio onde morava para pegar na estação de Rio das Pedras, no interior de São Paulo, o trem com destino à Capital. Pretendia, uma vez mais, entender-se com os seus credores hipotecários, comissários de café em Santos, a fim de ver se deles obtinha prorrogação de prazo para o pagamento da dívida. Passara uma noite de cão, pois mal conciliara o sono, sobressaltado por pesadelos a respeito dos seus negócios. Na realidade, não encontrava a menor receptividade dos seus financiadores. Há meses, sentia que a catástrofe se aproximava: a formação da lavoura de café, que tantos anos de trabalho lhe custara, estava condenada ao fracasso. Suas noites eram só insônia e desespero. Custava a encontrar para o corpo a posição adequada. Virava ora para a esquerda, ora para a direita, ora ficava de bruços, experimentava outras posições que sempre lhe soavam incômodas. Quando o corpo começava a ceder e a mente a mergulhar suavemente numa camada de letargia, era despertado por uma pinçada que o trazia de volta à realidade do calvário financeiro pelo qual estava atravessando. Passava a noite a virar-se e a revirar-se na cama, até que só restava levantar-se. É o que fez nesse dia mal ouviu o alvoroço dos passarinhos junto à janela do quarto. Num salto, levantou-se e se aprontou para a viagem. No quarto de arreios, apanhou a cabeçada e a coalheira, arreou o burro, atrelou-o à charrete e partiu para a estação.
José de Almeida Sampaio - Juquinha para os íntimos - era conterrâneo, primo e amicíssimo de José Ferraz de Almeida Júnior, e muito o ajudara quando o pintor retornou do seu estágio no exterior e se instalara em Itu, antes de se transferir para São Paulo. Quando ia à Capital, freqüentava a casa do primo, a quem pedira que acolhesse o seu filho Renato. Desta vez, porém, não imaginava encontrá-lo em seu estúdio, na rua da Glória. 74, onde costumeiramente se alojava. Fora informado pelo seu cunhado, Ladislau do Amaral Campos, que o pintor estaria ausente de casa, hospedado na residência de Amador de Campos Pacheco, para onde fora, trazendo consigo o filho de Juca. Entregara o menino a Ladislau, pedindo que comunicasse ao pai que abandonara a Capital em razão da peste bubônica que se alastrara na cidade, e que se dirigiria à estação de João Alfredo, onde pretendia demorar-se um dia em visita à família de Juca, que lá se achava, na fazenda Boa Esperança, para depois partir para São Pedro, onde almejava permanecer algum tempo. Juca gostava da companhia do primo famoso, onze anos mais velho. Oriundos do mesmo rincão interiorano, encontrava no companheiro mais idoso (Juca tinha 38 anos de idade e Almeida Junior 49) a projeção de uma figura paterna atenuada pela camaradagem e, ainda mais, aureolada pela notoriedade. Na realidade, tinham afinidades; davam-se bem e eram íntimos. Familiarizados com a crônica da cidade, que se mesclava à história de ascendentes comuns, dispunham de assuntos para conversas infindáveis. A esses temas somavam-se as confidências do pintor, que estudara cinco anos no Rio de Janeiro, na Academia Imperial de Belas Artes, e seis anos, na cidade-luz, sob orientação de Alexandre Cabanel, como pensionista do imperador Pedro II. Admirava o talento do primo e amigo, que encantara o imperador, a ponto de Sua Majestade lhe subvencionar a viagem à Europa, em 1876, quando mal completava 26 anos, ao deparar-se com um quadro de sua autoria na inauguração da estação da Mogiana. Freqüentaria a Escola de Belas-Artes de Paris, para só regressar ao Brasil em 1882. Numa notícia dois anos depois do seu retorno, o jornal Imprensa Ytuana, de 27 de abril de 1884, assim descreve a figura do pintor: Modesto no porte, simpático no trato, olhar firme e seguro, lábio trêmulo e sensual, apenas sombreado por ligeiro buço, imberbe, cabelo redemoinhado sobre a direita e contornando uma fronte espaçosa que se enruga rapidamente quando o artista está animado, a sua fala descansada de paulista discorre sobre sua arte, louva os quadros dos amigos e admira os primeiros mestres
. Em todos os depoimentos, Almeida Júnior é descrito como um homem do interior, sendo sempre ressaltado o seu recato e a sua timidez. O articulista e poeta Ezequiel Freire, que o conheceu, assim o descreve num depoimento de 1910: retraído, cismador, contemplativo, de feições acentuadas a que a extrema mobilidade dos músculos dá uma original expressão inteligente. Pele morena, luzente, barba escassa, como os caipiras que retratou, estatura meã, atitudes curvilíneas, marcha ondulada e ritmada
. Juquinha, o primo mais moço, não poderia destoar muito. Um pouco mais expansivo, talvez. Baixo também, mas atarracado e bem mais forte, tinha a polidez e a reserva de sua gente, sem deixar de ser o que de fato era: um agricultor, rude e determinado, pioneiro no avanço dos cafezais pela Boca do Sertão
, como era conhecida a zona de Itu em direção a Piracicaba. É assim, aliás, que vem retratado pelo pintor numa tela de um piquenique no Rio das Pedras, de viés, de terno branco, linho 120, com uma garrafa na mão.
Mas tinha, de fato, ido a São Paulo para tratar de seus interesses? Nessa viagem estaria realmente ensaiando um último e difícil lance, nela empenhando as suas fichas derradeiras? Acalentaria a ilusão de que uma última cartada ainda seria viável? Ou dentro de si já admitia que perdera o jogo e se sentia inapelavelmente derrotado? O fracasso, como um veneno letal inoculado em doses imperceptíveis, a princípio não chama a atenção, mas logo aflora, com virulência quase física, quando Juca refletia sobre os seus últimos movimentos. Como a medida de profundidade de um descalabro é ditada, não pela intensidade do processo, mas por seu grau de invisibilidade, é de repente que a consciência da derrota vem à tona, e Juca via, com duplo estremecimento (pois tudo lhe parecia vertiginoso e lento ao mesmo tempo) que estava completamente perdido.
Em 21 de setembro de 1899 escrevera a seu credor, Lara Campos, Toledo & Cia., comissários, de Santos, uma carta em que se declarava insolvente e propunha a liquidação da hipoteca, com a entrega da fazenda, pedindo uma reunião para o dia 31 do mesmo mês: Na impossibilidade de poder continuar com o sítio, resolvi liquidar a hipoteca. Como V. Sª é o maior credor e hipotecário, nada posso resolver sem a sua presença. Peço, portanto, o seu comparecimento no Rio das Pedras no dia 31 deste. Espero que o amigo não irá faltar a essa reunião, pois creio que poderemos chegar a um fim; pois com as dificuldades do presente me é impossível continuar
. Os termos da carta não podiam ser mais objetivos, mas escondiam uma jogada pueril. Juca suspeitava que o credor, na realidade, queria receber a dívida e não o imóvel, de sorte que, na reunião aprazada com demais credores, haveria a esperança de que lograria persuadi-lo a alongar o vencimento. Comerciantes experientes, os credores não se deixaram cair na inocente artimanha do rude agricultor. Não responderam à carta, nem se fizeram representar na reunião do dia 31. Diante do silêncio e da ausência de seus credores no dia aprazado, Juca se descontrola e, no dia 3 de outubro 1899, abre o jogo numa correspondência dolorosa: Tratando de arranjar com meus credores prazo suficiente para poder continuar com minha lavoura aqui no Rio das Pedras, tenho obtido de alguns e da maior parte prazo de 5 anos sem juros, volto à sua presença para lhe pedir igual prazo. Sendo V. Sª credor hipotecário, eu só peço prazo a fim de atender esta quadra difícil que estou atravessando. Se obtiver prazo vejo-me coberto das misérias em que ficaria, cheio de filhos e não perco meu trabalho nem meu sacrifício de 15 anos. Se V.Sª me conceder esse prazo peço-lhe reformar a hipoteca em condição de no quinto ano ficar liquidado, obrigando-me a fazer uma entrada anual a fim de amortizar a dívida. Sr. Lara, tenho a lavoura em muito boas condições; daqui há pouco estarei colhendo bastante café. Creio que V.Sª não há de arrepender-se de me fazer este benefício. Aguardando sua ordem para meu governo
(a) José de Almeida Sampaio. Continuando sem resposta, em 3 de novembro Juca novamente remete uma carta para os comissários, reiterando o pedido e transferindo a reunião para o último dia do mês. Não recebe, porém, qualquer retorno. Desesperado, Juca resolve, no dia 11 de novembro,