Exercícios de memória
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esses capítulos são datados de 1996, 2000 e 2006, o que lhes empresta inevitável descompasso.
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Exercícios de memória - Luiz Gastão Paes de Barros Leães
18)
c a p í t u l o 1
A idade dos nomes
Quando ci si trova sul declino della vita è imperativo cercar di raccogliere il piu possibile delle sensazioni che hanno attraversato questo nostro organismo. A pochi riuscirà di fare cosí un capolavoro (Rousseau, Stendhal, Proust), ma a tutti dovrebbe esser possibile di preservare in tal modo qualcosa che senza questo lieve sforzo andrebbe perduto per sempre. Quello di tenere un diario o di scrivere a una certa età le proprie memorie dovrebbe essere un dovere imposto dallo stato
: il materiale che si sarebbe accumulato dopo tre o quattro generazioni avrebbe un valore inestimabile: molti problemi psicologici e storici che assillano l'umanità sarebbero risolti. Non esistono memorie, per quanto scritte da personaggi insignificanti, che non racchiudano valori sociali e pittoreschi di prim'ordine.
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, I racconti.
Robert Graves, na edição de Goodbye to all that, publicada em 1957, conta que estava falando de sua infância a seus filhos quando surpreendeu em seus rostos um ar de troça. Afinal de contas, bem examinadas as coisas, estava a lhes dizer que nascera durante o reinado da tataravó do príncipe Charles, muito antes que os aviões cruzassem os céus, quando não ficava bem às mulheres usarem batom, e quando um homem, carregando uma bandeira vermelha, devia caminhar à frente dos automóveis, para proteção dos pedestres. A reação, devemos convir, não poderia ficar por menos. Os acontecimentos haviam se distanciado com tal velocidade, que tomaram uma feição bizarra. E Graves não era propriamente um ancião: tinha na ocasião, sessenta e dois anos (nascera em Wimbledon, em 1895) e não consta que um sexagenário seja propriamente um ancião. Pelo menos, como auto-sugestão, procuro pensar assim. Mas recordo esse episódio porque passei recentemente por experiência semelhante. Quando me pus a contar a meus filhos a rotina diária de meu avô materno, fazendeiro de café no interior paulista, na década de 1940, vi em suas fisionomias o mesmo sorriso travesso. Também aqui as transformações econômicas e sociais ocorridas nas quatro ou cinco últimas décadas varreram todo um universo de costumes, e de maneira tão acelerada, que custa dar conta da mudança ocorrida. Mudou o Natal, ou mudei eu? Pessoalmente não sinto que mudei muito. Suficientemente pesadas, as minhas reações continuam exatamente iguais às de minha primeira infância. Já não leio livros e jornais sem lentes para hipermetropia; não subo mais as escadas de dois em dois degraus; mas sinceramente não me vejo o Outro. Fora o desmonte físico, sou exatamente o que era meio século atrás, embora a vida tenha imprimido, aqui e ali, algumas lesões indeléveis. Retirado o pentimento, aparecem sempre as mesmas pobres cores originais.
Na realidade, o que causou surpresa a meus filhos não foi propriamente o fato de eu ter sido testemunha dessas transformações; foi o quadro que eu descrevia. O mundo de meu avô – o mundo de um fazendeiro de café – está literalmente morto. No fundo, eu estava realizando, a seus olhos, uma exumação, até certo ponto indecorosa, e não me apercebia. Fabrício del Dongo, em plena batalha de Waterloo, ainda sonha em assistir a uma batalha. A consciência do combate virá depois. Compreendi que havia vivido os momentos finalíssimos de uma das mais dignas páginas da história deste País, e que se afasta de nós, como um bólido, para o fundo da desmemoriada memória nacional. Denegrida pela incompetência e pelo ressentimento, a cultura do café chegara ao fim. Após o craque de 1929, o café continuou a influir na pauta de exportação até a década de 1960, mas como metástase. E, no entanto, há uma razão, diria até de natureza sociológica, para tentar o registro da minha gente. Lamentavelmente, ela ainda não contou com a palheta de um cronista de talento. É de certo modo melancólico observar que não tenha ainda surgido um romancista de gênio para resgatar os valores da gente paulista envolvida no café. João Pacheco – um Almeida Prado do Jaú – também nos desiludiu no seu romance Recuo do meridiano, ao afirmar desde logo: Este não é o romance do café, com que sonhas, leitor
. Pois os olhos da ficção enxergam a coisa multifária, permitindo, como nenhum outro, que os fatos não percam o seu ímpeto vital e sua musicalidade subliminar. Não dispondo, porém, desses recursos, quero esboçar aqui algumas fragmentadas recordações de meus maiores. Amiúde os historiadores preferem a imparcialidade – pré-requisito para descobrir misteriosas verdades de causa e efeito no curso dos acontecimentos sociais. O relato deve ser mais científico que poético, mais impessoal que apaixonado. Mas estas notas não reivindicam o magnético atrativo da análise científica.
Sou descendente de proprietários rurais pelos dois lados. Pelo lado de meu pai, minhas raízes são gaúchas. Meu pai nasceu em 1909 em Alegrete, nas fronteiras do Rio Grande com a Argentina e o Uruguai, onde até hoje ainda vivem pessoas da família. Alegrete, que aderiu à República Riograndense em 1837, foi a sua capital de 1842 a 1843. Dadas essas proximidades com a Argentina e a Banda Oriental, sempre suspeitei no patronímico paterno uma cadência castelhana. Quando regularizava um terreno de marinha no Serviço do Patrimônio da União, vim a saber, porém, pelo seu então diretor, o jurista Sá Filho, que o sobrenome era de cepa lusitana. Aparecia em algumas escrituras dos antigos proprietários de imóveis junto ao Largo dos Leões, no Botafogo, no Rio de Janeiro, como me mostrou. Posteriormente, encontrei o nome arrolado entre os casais de número
, açorianos que vieram para o Sul no século XVIII. Pouco sei, porém, de minha família paterna. Conheci alguns poucos parentes, de passagem, em demanda da Corte. Visitei Alegrete pela primeira vez somente alguns anos atrás. Fiquei comovido com o calor com que fui recebido pelos parentes, que me ofereceram uma encantadora recepção. Fui presenteado com um livro que traça a linhagem descendente de um certo Antônio Soares Leães, nascido em Aveiros, Portugal. Parece que esse meu ascendente se estabeleceu em Alegrete em 1831, quando uma pequena igreja e algumas casas foram convertidas em vila (Luiz Araújo Filho, Município de Alegrete, 1907). Documentos relativos à fundação de Taquara revelam que a cidade se estabeleceu numa sesmaria concedida pelo governo da Província em 1814 a certo Antônio Borges de Almeida Leães. Também alguns membros da família são registrados entre os primeiros habitantes de Bossoroca, cidadezinha da mesma região (Ilvo Jorge Butin Fialho, Pioneiros de Bossoroca, 1992). Completando a viagem nostálgica, visitei uma velha casa no centro da cidade, que pertencera a meu avô, adquirida do Marechal Bento Manuel Ribeiro de Almeida, herói-vilão da guerra dos Farrapos, que a construiu em 1852 (hoje pertence a minha prima Julieta Leães). Vindo estudar na Faculdade de Direito de São Paulo, meu pai aqui se casou e aqui se radicou definitivamente. Os contactos com o Sul foram rareando e ele se incorporou à família de minha mãe.
Pelo lado materno, descendo de um casal de progênie quatrocentona. Meus avós maternos eram Paes de Barros e Almeida Prado. De ambos disponho de estudos genealógicos feitos por Frederico de Barros Brotero: os Descendentes do Ouvidor Tenente Fernando Paes de Barros (1.a edição, 1936; 2.a edição, 1956, onde estou registrado) e os Descendentes do Ouvidor Lourenço de Almeida Prado (1a. edição, 1938). Quando não é posta a serviço de uma vaidade nobiliárquica – absolutamente ridícula num País onde, salvo a imperial, nenhuma família descende comprovadamente de fidalgos europeus -, a pesquisa genealógica abre espaço generoso à imaginação. Com freqüência me surpreendo a reconstituir cenários e a cogitar da vida desses meus ancestrais. De muitos deles não tenho senão o nome. Dos mais próximos, além dos nomes, algumas fotografias e alguns fatos transmitidos pela tradição familiar. Esforço-me para dar um sopro de vida a essas pessoas que não mais existem, poeiras humanas que dormem, repousam profundamente
. Analiso os ascendentes com quem tive contacto pessoal e passo a farejar, entre mim e eles, certos traços comuns, que, ao fim e ao cabo, pertencem a qualquer pessoa. Na verdade, difícil distinguir, nesse amálgama de que somos feitos, o que vem de nossos ancestrais e o que vem da educação, ou até do espírito do tempo. Eu poderia dizer, talvez, que desses dois costados quatrocentões me vieram dois traços que sempre notei em minha família: uma certa obstinação e uma timidez compulsiva. Mas seriam essas particularidades traços familiares? Saint-Hilaire diz que essas eram as características dos brutos paulistas que encontrou.
E, afinal de contas, quem foram em verdade esses meus maiores? A respeito de alguns, componho um dossiê, que, com o passar do tempo, engorda. Fatos, datas, fichas, bilhetes, livros de contas, testamentos, toda espécie de particularidades vai-se acumulando. Sobre uma folha de papel, coloco, em ordenada, o tempo, e, em abcissa, uma coluna: residência, relações, vida particular, trabalho. Preencho os dados, à medida que as parcas informações me vão chegando. Mas as colunas permanecem magérrimas. O sistema para essa reconstrução é curioso. Via de regra, começa pelo falecimento, registrado no traçado genealógico com mais freqüência do que o nascimento, pois o pesquisador encontra com mais facilidade o testamento do que o registro paroquial do batismo (o registro público das pessoas naturais só foi introduzido em 1861). Feitas as contas, parece o relato de Alejo Carpentier, Viaje a la semilla, que começa com a morte de um ancião e continua até finalizar com a gestação do personagem, numa contagem regressiva. Através desses insights sincopados, vamos alimentando a ilusão de que, no final, faremos que as peças do quebra-cabeça se reúnam para formar uma imagem que tenha verossimilhança. Essa é a técnica usada pelos ficcionistas, mas é também a utilizada por todos nós no convívio social. Balzac, com a sua autoridade de criador de milhares de personagens, rival do Registro Civil, dizia que era igualmente assim no mundo real. Encontramos no meio de um salão um homem que tínhamos perdido de vista há dez anos; é primeiro ministro ou capitalista; tendo-o conhecido sem redingote, sem espírito público ou privado, admiramo-nos de sua glória, espantamo-nos de sua fortuna ou de seus talentos. Depois, a um canto do salão, algum delicioso narrador mundano, traça-nos em meia hora a história pitoresca dos dez anos que ignorávamos. Muitas vezes, essa história, escandalosa ou honrosa, bela ou feia, só nos será contada no dia seguinte ou um mês mais tarde, às vezes fragmentariamente. Não há no mundo nada que saia de um bloco único; tudo nele é mosaico.
Ora, o que falar das reconstituições familiares onde temos mais vazios que espaços preenchidos? Como imaginar figurantes quando ignoramos sua compleição física? a cor dos olhos? o temperamento? Há sempre tergiversações e exageros. Mas a imaginação procura, tenazmente, se apoiar nos exíguos materiais coletados para se orientar nesse labirinto, como uma prova de que não se divorciou da realidade.
Mas nem sempre esses documentos são convincentes. Pedro Taques, na sua Nobiliarchia paulistana histórica e genealógica (ed. 1957, tomo III, p. 199 ss.), registra, como mais remoto representante da família Paes de Barros, Pedro Vaz de Barros. Baseado em documentos da época, nos dá notícia da vinda ao Brasil de Pedro e seu irmão Antônio Pedroso de Barros, providos, este, em capitão-mor governador da capitania de São Vicente e São Paulo, e aquele, em ouvidor da mesma capitania, como se vê da carta-patente passada em Lisboa aos 21 de novembro de 1605, registrada no arquivo da câmara de São Paulo, no caderno título 1606, fls. 22 v. e 24. Observa, porém, que Pedro Vaz de Barros, natural do reino do Algarve, já tinha vindo a São Paulo muito antes, pois consta que era capitão-mor governador da dita capitania pelos anos de 1602, como informa o cartório da provedoria da fazenda real, no livro de registro das sesmarias n. 2, título 1602 até 1617, p. 184v. Pedro Vaz de Barros aqui se casou com Luzia Leme, falecendo com testamento em 1644, deixando oito filhos naturais de São Paulo, de onde se originaria a família. Esses filhos se dispersaram na diáspora bandeirante. Valentim, em posto de Alferes da infantaria, teria saído de São Paulo para socorrer Pernambuco, indo depois residir na Bahia, só retornando a São Paulo após a morte do pai, onde foi contador da fazenda real da Capitania de São Vicente e São Paulo, conforme registro no cartório da provedoria da fazenda real de Santos, no livro 4.° de registros, a fl. 42. Antônio Pedroso de Barros teve, por sua vez, um filho também chamado Pedro