Greta
De Mônica de Castro e Leonel
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Greta - Mônica de Castro
CAPÍTULO 1
A madrugada corria alta quando Felícia despertou, sentindo as gotas do suor frio que desciam pelo seu rosto. Olhou ao redor apreensiva, como que temendo alguma visão aterradora, e virou o rosto para o outro lado. O marido continuava adormecido, dando mostras de nada haver percebido sobre a agitação da esposa.
Com profundo suspiro, Felícia se levantou. Tivera um pesadelo medonho, algo sobre uma criança despencando num poço. Uma estranha sensação a sufocava, como se algo ou alguém a estivesse alertando de que o filho corria perigo. Assustada, correu ao seu quarto e abriu a porta. O menino dormia um sono profundo e tranquilo, e ela se aproximou. Sentou-se a seu lado na cama de meia grade e permaneceu estudando o seu rosto. Tiago era um menino muito bonito, com seus cabelos castanhos claros e seus olhinhos negros. Pousou-lhe um beijo suave na testa e se levantou para sair. Da porta, ainda deu uma última olhada para sua caminha, certificando-se de que ele estava bem.
Apesar do estranho pressentimento de há pouco, Felícia encostou a porta do quarto do filho e voltou para a cama, tentando se convencer de que tudo não passara de um sonho idiota. Olhou para o relógio na mesinha: faltavam quinze minutos para as quatro. Em breve, teria que se levantar e começar a trabalhar. Era o dia do quinto aniversário de Tiago, e ela iria lhe preparar uma bonita festa. Pensando na alegria do filho ao ver a festa, acabou adormecendo novamente, já esquecida do misterioso sonho.
Na manhã de sábado, Artur acordou assim que Felícia colocou os pés para fora da cama e cumprimentou-a com jovialidade:
— Bom dia, querida. Dormiu bem?
— Muito bem — respondeu ela, beijando-o de leve nos lábios. — E você?
— Hum, hum...
— Preciso me apressar. Ainda há muito o que fazer. Tenho que telefonar para a moça do bolo, ver se os salgadinhos e o cachorro-quente já estão prontos... Ah! E também preciso enrolar os docinhos, encher as bolas...
Artur deu um sorriso maroto e puxou-a com ternura, dando-lhe um beijo suave na bochecha.
— Você é terrível, Felícia. Não deixa escapar nenhum detalhe.
— É claro que não.
Ouviram passos apressados no corredor, e a porta se abriu rapidamente. Tiago entrou, lindo em sua jardineirinha azul, seguido da babá, que vinha se desculpando:
— Desculpe-me, dona Felícia, mas Tiago é impossível. Antes que pudesse segurá-lo, saiu correndo e abriu a porta.
— Não se preocupe, Lurdinha — tranquilizou Felícia, segurando o menino no colo. — E você, hein, meu rapazinho? Parabéns!
Felícia abraçou o menino e beijou-o várias vezes, e Tiago deixou-se ficar, embevecido com os carinhos maternos.
— Muitas felicidades, meu filho — acrescentou Artur, beijando-o também.
O menino atirou-se em seu colo, e Artur sentou-se com ele na cama.
— Pode deixá-lo conosco — falou Felícia para Lurdinha. — Depois o levaremos.
Com um aceno de cabeça, a babá pediu licença e saiu. Lurdinha trabalhava para os Fontes desde que Tiago nascera e se sentia feliz e segura com o emprego. Eles eram patrões maravilhosos, e ela se afeiçoara muito ao menino. Além disso, havia o Hélio. Hélio era motorista da família, e ela estava apaixonada. Andando pelo corredor, resolveu ir ao seu encontro. Rapidamente, bateria à porta de seu quarto e dar-lhe-ia um beijo apressado, para então retornar e aguardar que Felícia lhe levasse Tiago. Era aniversário do menino, e havia muito o que fazer.
Hélio, porém, não se encontrava, e Lurdinha não pôde esconder a decepção. Aonde é que teria ido? Voltou para casa rapidamente e foi sentar-se na cozinha.
— O que há com você, menina? — indagou Hermínia, empregada de muitos anos.
— Nada que lhe interesse — respondeu Lurdinha de má vontade.
— Credo, que falta de educação é essa? Que bicho foi que mordeu você, hein?
Já arrependida, Lurdinha levantou-se da cadeira e foi abraçar a outra.
— Perdoe-me, Hermínia. É que estou um pouco nervosa.
— É por causa do Hélio, não é?
— Do Hélio? — disfarçou. — Não, não... Ora, Hermínia, mas que bobagem...
— Será mesmo bobagem, menina? É só o Hélio sair que você fica aí, chorosa pelos cantos.
— Não é nada disso.
— Quantas vezes vou ter que lhe dizer que o Hélio não serve para você?
— Pare com isso, Hermínia. Não é o que está pensando.
— Não. É muito mais. Então você não percebe que ele está usando você? O Hélio é um sem-vergonha, isso sim.
— Hermínia! Não fale assim dele.
— Falo sim. Conheço o Hélio melhor do que você. Não pode ver um rabo de saia que fica logo caído.
— Não é verdade!
— Só não vê quem não quer.
— O Hélio gosta de mim.
— Gosta. Mas gosta da filha do açougueiro também, e da irmã do padeiro, e da empregada do vizinho...
— Pare, Hermínia! Você está enganada. O Hélio gosta é de mim. Ele disse...
— Disse? Bem, acredita quem quer, não é mesmo?
A conversa foi interrompida pela chegada de Felícia, que mandou servir o café da manhã, e Tiago nem esperou para se alimentar, ansioso que estava para abrir os presentes. Hermínia estava terminando de colocar a mesa quando Artur perguntou:
— Você viu o Jonas?
— Está lá na piscina.
Jonas era o jardineiro e era quem cuidava da piscina e de toda a parte externa da casa. A família Fontes era extremamente rica. Artur era sócio majoritário de uma construtora e possuía vários imóveis espalhados pela cidade inteira. Felícia também provinha de uma família de posses, e o casal levava uma vida tranquila e sem preocupações financeiras.
Ao perceber que Artur queria falar com Jonas e que Jonas estava lá fora, Lurdinha viu uma ótima oportunidade para sair novamente e tentar encontrar Hélio.
— Quer que vá chamá-lo, doutor Artur? — ofereceu-se.
— Diga-lhe apenas que não se esqueça de trancar o portão da piscina. Haverá muitas crianças na festa hoje, e não queremos acidentes.
— Sim, senhor.
Lurdinha foi correndo dar o recado. Jonas estava limpando a piscina quando ela se aproximou, mas não havia nem sinal de Hélio. Onde é que ele havia se metido?
— Bom dia, Lurdinha — cumprimentou ele.
— Bom dia, Jonas. O doutor Artur disse para você não se esquecer de trancar o portão quando terminar. Por causa das crianças.
— Diga a ele que vou ter que trocar esse cadeado. Está enferrujado e não presta mais.
Ela balançou a cabeça e esticou o pescoço, na tentativa de ver se Hélio estava por ali. Como não o viu, soltou um muxoxo e voltou para casa contrariada, a fim de dar o recado ao patrão.
— Artur — falou Felícia preocupada —, dê logo dinheiro ao Jonas para comprar o cadeado. Sabe que não gosto daquela piscina aberta.
— Não se preocupe. Farei isso logo após o café.
— Enquanto isso, Lurdinha, não desgrude os olhos de Tiago.
— Pode deixar, dona Felícia. Não o deixarei sozinho um minuto sequer.
Terminado o desjejum, Artur foi buscar o dinheiro e saiu para falar pessoalmente com Jonas. Havia ainda mais algumas coisas que queria que ele comprasse. Enquanto isso, Felícia e Hermínia punham mãos à obra para enrolar os docinhos, e Lurdinha saiu com Tiago para o quintal. Ele ganhara dos pais um enorme aeromodelo e queria experimentá-lo no jardim. Com propulsão elástica, o avião se lançava no ar e planava durante vários minutos, o que deixou Tiago encantado. Lurdinha ajudava-o a colocar o avião em movimento, e o menino corria para buscá-lo onde caísse.
Assim ia transcorrendo a manhã. Tiago não se cansava de brincar com o aeromodelo, e Lurdinha o acompanhava, enquanto Felícia e Hermínia continuavam com os preparativos para a festa. Jonas havia saído às pressas para fazer compras antes que as lojas fechassem, e ela e o menino permaneciam sozinhos no jardim. O avião, por vezes, planava até perto da piscina, e era Lurdinha quem ia buscá-lo, alertando Tiago de que não deveria se aproximar.
Foi num desses momentos que viu Hélio. Ele vinha trôpego e com ar cansado, e deu um sorriso irônico quando a avistou.
— Olá, Lurdinha. Brincando de aviãozinho?
— Onde esteve? — tornou ela, com ar furioso.
— Doutor Artur me deu a noite de folga. Fui visitar uns amigos.
— Dormiu lá?
— Dormi. Por quê?
— Você é um cínico, Hélio. Aposto como esteve com alguma vagabunda.
Hélio soltou uma gargalhada debochada e olhou para ela com ar de cobiça. Havia mesmo passado a noite em casa de um amigo, após uma longa rodada de pôquer, e estava frustrado porque não conseguira conquistar a irmã do rapaz.
— Venha cá — disse ele, tentando segurá-la pela mão.
— Não...
— Lurdinha! — era a voz de Tiago. — Não vai mais brincar?
Desvencilhando-se do rapaz, Lurdinha voltou para onde Tiago estava, parado com o aeromodelo nas mãos, sentindo às suas costas o olhar febril de Hélio. Ajoelhou-se ao lado do menino e pôs-se a prender o elástico nas engrenagens do avião, preparando-o para novo voo. Ajeitou o brinquedo na mão de Tiago e ajudou-o a soltá-lo, e o avião disparou no ar, voando em direção ao portão da frente. A um olhar da criança, Lurdinha aquiesceu, e ele saiu correndo para buscar o avião no local onde havia pousado. Com os olhos pregados no menino, mas a atenção presa em Hélio, Lurdinha ficou vendo-o se afastar.
O motorista também observava. Assim que Tiago chegou mais perto do portão da frente, acercou-se de Lurdinha e segurou-a pela cintura, aproximando bem a boca da sua.
— Sabia que você fica linda zangada? — gracejou.
Ela se soltou com brusquidão e encarou-o com olhar frio, disparando em tom irônico:
— Por que não vai elogiar seus amigos de pôquer?
— Porque eles não têm o seu corpo...
Rapidamente, Hélio envolveu-a num abraço sedutor e deu-lhe um beijo apaixonado, que ela correspondeu contrariada. Depois que ele a soltou, fitando-a com ar sensual, ela ajeitou o uniforme e correu ao encontro de Tiago, que vinha vindo com o aeromodelo na mão.
— Vamos jogar de novo? — indagou eufórico, sem prestar muita atenção ao motorista.
— É claro, querido.
Enquanto Lurdinha ajeitava novamente o elástico, notou os olhares lúbricos que Hélio lhe lançava. Aos pouquinhos, foi sentindo que um rubor ia subindo pelas suas faces, e seu corpo todo se arrepiou ao pensar no beijo que ele lhe dera. Terminou de ajeitar o elástico e levantou o avião, pronta para soltá-lo novamente. Antes de soltar, alisou os cabelos de Tiago com uma das mãos e falou com voz doce:
— Olhe, querido, a Lurdinha vai ter que ir ali um instantinho, mas volta logo. Por que não joga sozinho uma vez?
— Aonde você vai? — tornou com voz amuada, sem perceber a presença de Hélio, agora semioculto dentro da garagem.
— Vou ao banheiro da garagem — Tiago não respondeu. — Mas cuidado, não vá chegar perto da piscina.
— Está bem — respondeu contrariado.
— Promete que não vai chegar perto da piscina? Sua mãe vai ficar zangada.
— Prometo — finalizou de má vontade.
Ela ajudou o menino a disparar o aeromodelo e correu para dentro da garagem, atirando-se nos braços de Hélio sem pensar em mais nada. Não tencionava se demorar. Seriam apenas um beijo e algumas carícias, e ela logo voltaria para junto da criança. Mas não foi isso o que aconteceu. Hélio a foi dominando de uma tal maneira, que ela não conseguiu lhe opor nenhuma resistência. Sentiu que ele a acariciava e a deitava no chão, entre os dois automóveis dos patrões, e ela acabou se esquecendo de todo o resto. Com o corpo e os pensamentos voltados para ele, entregou-se ao amor, deixando de lado a preocupação com Tiago.
Sequer havia esperado para ver onde o aeromodelo iria cair. O aviãozinho planou lindamente por alguns minutos, até que pousou de leve sobre a água azul e cristalina da piscina. Tiago teve um sobressalto. Lurdinha lhe dissera para não se aproximar da piscina, sua mãe podia não gostar, e ele não estava disposto a levar uma bronca. Ficou parado onde estava, torcendo para que Lurdinha chegasse logo, louco de vontade de retomar a brincadeira. Só que Lurdinha estava demorando. Sabia que tinha que esperar, mas, pensando bem, que mal faria em dar apenas uma olhadinha? Assim, quando Lurdinha voltasse do banheiro, ele poderia lhe dizer com certeza onde é que o avião havia caído.
E depois, não entendia por que não podia se aproximar sozinho da piscina. Pois quando o pai estava, os dois não caíam juntos na água, e ele se divertia a valer em seu colo? Aquilo era coisa da mãe. Sua mãe não gostava da piscina, tinha pavor de água. Por isso, vivia implicando, ralhando com o pai todas as vezes em que o levava para a água. Na certa, não havia nenhum mal em chegar mais perto sozinho. Tinha certeza de que nada aconteceria.
A passos vagarosos, seguiu para a piscina, olhando de um lado a outro, para ver se alguém estava olhando. Não havia ninguém por perto. A mãe estava ocupada na cozinha, e o pai deveria estar lendo seu jornal. Devagar, foi se aproximando, até que alcançou a cerca que isolava a piscina do resto do jardim. Encostou o rosto na grade e espiou, os olhinhos brilhando de ansiedade. Flutuando na água translúcida, o aviãozinho se virava para um lado e para o outro, empurrado pela brisa suave da manhã.
A todo instante, Tiago voltava o rosto para a porta da garagem, na esperança de que Lurdinha viesse voltando do banheiro, mas nada. Por que é que estava demorando tanto? Será que tivera uma dor de barriga? Enquanto isso, o avião ia rodopiando em todas as direções, e Tiago, do lado de fora, ia seguindo o seu deslizar pela água. Foi caminhando pela grama, acompanhando a grade que ladeava a piscina, olhos grudados no brinquedo. Até que suas mãos alcançaram o portão, que cedeu alguns centímetros, com um rangido de ferrugem. Tiago parou assustado. O portão estava aberto! Será que faria mal entrar e esperar Lurdinha do lado de dentro? Não, não faria. Ela já devia estar mesmo chegando, e ele só queria ficar mais perto de seu avião.
Sentou-se na borda da piscina e ficou acompanhando o bailado do aviãozinho na água, sempre empurrado pelo vento. Ele ia de um lado a outro e, cada vez que se aproximava, Tiago sentia o coração disparar. Será que dava para pegá-lo? Mas o avião, como que escutando os seus pensamentos, mudava de direção e seguia para o lado oposto, deixando o menino em crescente expectativa.
Por que é que Lurdinha demorava tanto? Daquele jeito, o aviãozinho ia acabar se estragando. E se afundasse? Aí é que estaria tudo perdido. A toda hora, olhava para a porta, ansioso por ver Lurdinha chegando, mas Lurdinha, longe de perceber o que estava acontecendo, esquecera-se de tudo nos braços de Hélio.
Até que o aviãozinho se aproximou novamente. E chegou tão perto que Tiago sentiu que poderia tocá-lo com os dedos. Num impulso, pôs-se de joelhos e esticou um dos bracinhos, tentando puxá-lo com as pontas dos dedinhos, que roçaram uma das asas. O avião tombou para o lado, e a asa afundou na água, fazendo com que o menino, instintivamente, afundasse a mão em busca do brinquedo. Tudo foi muito rápido. Em fração de segundos, o corpo todo de Tiago acompanhou sua mãozinha, e ele afundou na água com rapidez vertiginosa.
Dali a quinze minutos, Lurdinha e Hélio haviam acabado de se amar. Ela alisou o uniforme e ajeitou o cabelo, pondo-se de pé rapidamente. Deu uma olhada para fora, procurando por Tiago, mas o menino não estava em nenhum lugar visível. Na certa, cansara-se de esperar e fora para dentro. Dona Felícia ficaria furiosa, mas ela daria a desculpa de que passara mal e tivera que usar o banheiro da garagem.
Despediu-se de Hélio com um beijo e voltou para casa satisfeita. Entrou na cozinha, onde Felícia e Hermínia enrolavam brigadeiros e cajuzinhos, e Felícia foi logo perguntando:
— Cadê o Tiago?
— Não está aqui? — revidou com espanto. — Não entrou?
Na mesma hora, o coração de mãe de Felícia se apertou e, em seu íntimo, sabia que o inevitável havia acontecido. Largou a massa dos docinhos, esfregou as mãos no avental e correu para fora, gritando desvairada:
— Tiago! Tiago! É a mamãe! Responda, meu filho, onde está?
Coração aos pulos, correu para a piscina, com Lurdinha e Hermínia mais atrás. Mesmo de longe, podia avistar uma mancha azul flutuando na água translúcida, e foi com assombro que percebeu tratar-se da jardineira que Tiago estava usando. Não tinha mais dúvidas. Era mesmo o seu filho que estava ali, boiando de bruços na água, o aviãozinho, parcialmente submerso, batendo de leve em seu corpo. Felícia não conseguiu gritar. Na mesma hora, sentiu uma vertigem e tudo ficou nublado à sua frente. Sentiu o corpo tombar inerte e perdeu a noção da realidade. Desmaiou.
iconeQuando voltou a si, Felícia estava deitada em sua cama e notou que o marido se encontrava parado perto da janela, tendo ao lado um homem que, a princípio, não reconheceu. Aos poucos, porém, foi conseguindo fixar a vista e percebeu que era um médico. Seu pai. Ergueu-se na cama e encarou os dois, balbuciando confusa:
— Pai...? Artur...?
Os dois se voltaram ao mesmo tempo e tinham lágrimas nos olhos. Felícia ficou vendo-os se aproximar, tentando concatenar as ideias e se lembrar do que havia acontecido.
— Ah! Felícia! — chorou Artur desolado. — Que desgraça!
— Desgraça?! — repetiu ela atônita. — Mas o quê...?
Foi então que se lembrou. Vendo o retrato do filho na mesinha de cabeceira, todo o horror da cena de há pouco voltou à sua mente, e ela pôs-se a gritar, tentando levantar-se da cama e sair.
— Meu filho! Quero meu filho! Onde está Tiago! Tragam-no! Quero meu filho!
Felícia parecia ter redobrado as forças e quase jogou Artur ao chão. O pai, imediatamente, aplicou-lhe um sedativo no braço, e ela foi amolecendo aos pouquinhos, até que tornou a adormecer.
— É melhor que durma — aconselhou Antônio. — O choque foi demais para ela.
Sem dizer nada, Artur tomou o braço do sogro e foi com ele para fora. Precisava tomar as providências para o funeral. A festa de aniversário havia sido cancelada, e muitos convidados desavisados voltavam para casa petrificados pelo choque.
— Como está ela? — indagou Ondina, mãe de Felícia.
— Nada bem — respondeu Antônio. — Acho melhor você ir ficar com ela.
Depois que Ondina foi para o quarto de Felícia, Antônio puxou Artur para o quarto de Tiago, onde o corpo do menino fora colocado sobre a cama, coberto por um lençol.
— Sei que é difícil — falou Antônio com compreensão. — Se quiser, posso fazer tudo sozinho. Apesar de estar sofrendo muito com a perda do meu neto, já estou acostumado com a morte.
— Não, Antônio — objetou Artur decidido. — Tiago é meu filho...
Desatou a chorar desconsolado, e Antônio abraçou-o cheio de compreensão.
— Não tenha vergonha de chorar, Artur.
— Sou homem, deveria ser o primeiro a me manter forte para dar apoio a minha mulher.
— Todo homem é um ser humano e, no seu caso em especial, é também pai. Não sinta vergonha de sentir dor. Apenas sinta.
— Ah! Antônio... — foi só o que conseguiu dizer.
Antônio levou Artur de volta para a sala e deixou-o aos cuidados de Hermínia, voltando sozinho para o quarto do menino. Examinou o seu corpo e trocou sua roupa, ajeitando-o novamente na cama, no exato instante em que a polícia chegava para as investigações de praxe.
A pedido de Artur, o promotor encarregado do caso mandou arquivar o inquérito, e a morte de Tiago foi tida como acidental. Embora o corpo tivesse que ser levado à perícia, logo foi liberado, e o funeral transcorreu cingido por uma aura de tristeza e lamentação. Havia muitas pessoas presentes, parentes e amigos, chocados com o ocorrido, além de vários repórteres. Apenas Felícia não comparecera. Por ordens médicas, fora obrigada a guardar o leito, proibida de sair enquanto não se recuperasse do choque.
Depois do funeral, Artur mandou chamar Lurdinha ao seu gabinete. Ela entrou com os olhos inchados de tanto chorar e se aproximou timidamente.
— Mandou me chamar, doutor Artur? — indagou com voz sumida.
— Mandei sim. Sente-se, Lurdinha, e vamos conversar — Ela se sentou numa cadeira de frente para ele e ficou esperando, de olhos baixos, sem coragem para encará-lo. — Muito bem, Lurdinha. Agora é entre nós. Quero saber o que foi que aconteceu realmente.
— Eu fui ao banheiro...
— É mentira! Sei o que você e o Hélio estavam fazendo.
— O senhor sabe?
— Ele me contou. Estava apavorado e contou tudo. Você estava tendo relações com ele enquanto meu filho se afogava!
— Oh! Doutor Artur.
Lurdinha ocultou o rosto entre as mãos e desatou a chorar convulsivamente, enquanto Artur prosseguia:
— Você poderia ser presa, Lurdinha. Sabe disso, não sabe?
— Por favor, doutor Artur, foi um acidente. Também estou sofrendo.
— Não tanto quanto eu. Não tanto quanto Felícia ou qualquer outro da família.
Entre soluços, Lurdinha tentou protestar:
— O senhor está sendo injusto. Eu gostava muito de Tiago.
— Gostava tanto que o deixou sozinho na beira da piscina para se deitar com seu amante!
— Por que está sendo tão cruel? Não tive culpa...
— Culpa, você teve sim. O próprio promotor público me disse que iria indiciá-la por crime culposo. Sabe o que é isso? — Ela meneou a cabeça. — Você poderia ser condenada à prisão por ter sido negligente em seus deveres e, com isso, haver causado a morte de meu filho.
— Prisão? — Os olhos de Lurdinha se ofuscaram, e ela quase desfaleceu. — Não faça uma coisa dessas comigo, doutor Artur. Por favor, eu lhe imploro. Sei que fui irresponsável, mas eu jamais desejei isso.
— Sei que não. Mas isso não altera o fato de que realmente aconteceu.
— Por favor, faço qualquer coisa. O que o senhor quiser. Mas não deixe que me prendam.
— Na verdade, Lurdinha, não pretendo fazer isso. A sua prisão não nos traria mesmo Tiago de volta, e os inconvenientes de um processo criminal seriam por demais dolorosos para minha mulher — Ele fungou e prosseguiu: — No entanto, não posso mais mantê-los ao meu serviço. Nem a você, nem ao Hélio. Já o despedi e, quanto a você, estou despedindo-a também. E sem qualquer gratificação ou referência. Será mesmo melhor que nunca mais volte a trabalhar como babá.
CAPÍTULO 2
Vencida e humilhada, Lurdinha foi aprontar suas coisas para partir. Hermínia estava compadecida, mas não podia fazer nada. No fundo, sabia que Artur tinha razão. Lurdinha fora negligente e irresponsável, e era querer muito que ela continuasse prestando serviços naquela casa.
— Sei que isso não adianta agora — comentou Hermínia, vendo-a fazer a mala —, mas eu cansei de avisá-la sobre o Hélio, não foi?
Lurdinha lançou-lhe um olhar angustiado e não disse nada. Aprontou sua trouxa, guardou o dinheiro dos dias trabalhados que Artur lhe dera e foi embora sem nenhuma gratificação ou referência. O que tinha na bolsa era uma quantia irrisória e não daria para nada. O que poderia fazer? Pensou em voltar para Bom Jesus, no Piauí, sua cidade natal, mas não tinha dinheiro nem para a passagem. Arranjar outro emprego, seria praticamente impossível. Que outra família lhe confiaria a guarda do filho depois de uma infelicidade daquelas? Que referências anteriores tinha para apresentar? Aquele fora seu primeiro emprego no Rio de Janeiro e, provavelmente, o último.
Sem ter para onde ir, Lurdinha foi caminhando pelo Aterro do Flamengo, em direção ao centro da cidade. Lá, pensaria no que fazer. Mas a distância era longa, e ela não conseguiu seguir até o fim. Exausta, sentou-se na grama e pôs-se a chorar. O que poderia fazer? Nem Hélio a queria mais. Ele fora despedido e sumira no mundo, nem queria saber o que iria acontecer a ela.
Desesperada, ficou imaginando o futuro que a aguardava. Estava com vinte e um anos, não tinha marido, nem filhos, nem lar. Sua família, distante no Piauí, dera graças a Deus quando ela, aos dezesseis anos, resolvera partir para o Rio de Janeiro, o que significava uma boca a menos para alimentar. Lurdinha chorava desolada, apenas acompanhada pelo marulho das ondas que batiam fraquinhas na amurada do Aterro. E se ela se matasse? Pensando bem, até que seria uma boa ideia. Não tinha mais ninguém mesmo, ninguém que pudesse sentir a sua falta.
Levantou-se hesitante e aproximou-se da amurada, fitando o mar com ansiedade. Achou-o muito sereno para arrastar alguém para o fundo e pensou que não seria uma boa ideia. Talvez fosse melhor pular de uma ponte ou viaduto. Seria morte certa e ela não correria o risco de se salvar. Mas onde é que acharia uma ponte? No centro da cidade talvez tivesse algumas, mas ela estava tão cansada...
Desanimada, voltou para o lugar onde havia deixado sua pouca bagagem e deitou-se na grama, recostando a cabeça na mala. Em segundos, adormeceu. Quando acordou, o sol já estava se pondo, e ela ouviu vozes vindas de algum lugar mais além. Olhou espantada. Dois homens vinham caminhando em sua direção, conversando animadamente. Ao vê-la ali sentada, agarrada à mala, com medo de que a roubassem, os dois puseram-se a rir.
— O que há, garota? — perguntou um deles. — Está com medo de nós?
— Não somos ladrões não, moça — falou o outro.
— E você? — continuou o primeiro. — O que está fazendo aí?
Ela não respondia. Estava tão apavorada que perdera a fala. Um dos rapazes se adiantou e estendeu a mão para ela, apresentando-se com um sorriso galante:
— Eu sou o Diniz. João Diniz. E este aqui é o meu amigo Valente. E você, como se chama?
— Lurdinha... — respondeu com uma vozinha fraca.
— O que faz aí, Lurdinha? — tornou Valente, olhando para a mala que ela abraçava. — Está perdida?
— Não...
— Chegou de viagem agora? De onde é que veio?
— De Bom Jesus... Piauí...
— Ah! Veio de longe, hein? — falou Diniz. — Veio tentar a sorte?
Ela apenas assentiu, e Valente considerou:
— Talvez esteja procurando emprego.
A palavra emprego tirou Lurdinha de seu torpor, e ela indagou esperançosa:
— Vocês sabem de alguma coisa?
— Pode ser... — respondeu Diniz reticente.
— Por favor, faço qualquer coisa.
— Qualquer coisa? — retorquiu Diniz novamente.
— Qualquer coisa. Posso cuidar de crianças, sei lavar, cozinhar...
— Não, esses serviços não nos interessam — gracejou Valente. — Já somos homens crescidos. E não precisamos de empregada.
— Mas você talvez tenha algo que nos interesse — continuou Diniz.
— É? — atalhou desconfiada, com medo de que quisessem roubá-la ou violentá-la.
— Não se preocupe — prosseguiu Diniz, percebendo o seu temor. — Já disse que não somos ladrões e, muito menos, estupradores.
— O que querem de mim então?
Diniz e Valente se entreolharam, e o primeiro esclareceu:
— Bom, Lurdinha, vou ser muito franco com você. Eu e o Valente aqui somos homens de negócios.
— Que tipo de negócio?
— Nós temos... hum... bem... um estabelecimento comercial, sabe? Coisa fina, de primeira.
— O que é que vocês vendem?
Valente soltou uma risada e respondeu com ironia:
— Prazer. É isso. Nós vendemos prazer.
— Temos um... bem... o que se costuma chamar por aí de... inferninho — revelou Diniz com um risinho abafado. — Somos sócios numa casa de tolerância.
— Oh! — Lurdinha levou a mão à boa e pensou em fugir, mas Valente a segurou pelo braço.
— Não precisa ter medo de nós — disse em tom sério. — Somos homens de bem. Podemos ser cafetões — riu —, mas não maltratamos nem prejudicamos ninguém.
— É verdade, Lurdinha — concordou Diniz. — Esse é apenas um negócio como outro qualquer. Mas nossas garotas são muito felizes. Até hoje, nenhuma delas reclamou de nada.
— Pode perguntar a elas — acrescentou Valente. — Não batemos nem exploramos, ao contrário de muitos outros por aí. Nós sabemos que há cafetões que espancam as meninas e não deixam nem um tostão para elas. Mas nós não fazemos isso, não é Diniz?
— É claro que não. Somos justos. Dividimos os lucros honestamente: setenta por cento para nós, trinta para as moças. Afinal, somos nós que temos as maiores despesas. A casa funciona com um bar e uma pista de dança, e nós fornecemos ainda os quartos. Tudo isso demanda dinheiro, não é mesmo?
Lurdinha estava assombrada. Nunca antes conhecera gente daquela espécie. Já ia protestar, dizendo que ela não era desse tipo, mas a voz de Valente a interrompeu:
— E nossos clientes são todos gente fina. Não admitimos homens violentos ou mal-educados.
— Ouçam — cortou ela, com profunda indignação. — Não sei o que estão pretendendo comigo, mas posso lhes adiantar que não sou desse tipo.
— Ah! Não? — objetou Diniz. — É o que todas dizem, sabia? E até acreditam que não sejam. Chegam aqui cheias de esperanças, crentes que vão arranjar um bom emprego ou um casamento rico e subir na vida. Mas a realidade é bem outra, e elas ficam largadas por aí, sem ter para onde ir. Assim como você. E sabe o que acontece? Mais cedo ou mais tarde, a fome as empurra para nós. E elas não se arrependem. São bem tratadas, recebem comida e um lugar para dormir, além de uma profissão razoavelmente lucrativa.
— Já disse que não sou assim — insistiu Lurdinha zangada.
— Deixe-a — replicou Valente. — Ela ainda vai acabar nos dando razão.
— Quando isso acontecer — prosseguiu Diniz, estendendo-lhe um cartãozinho. — Não se acanhe em nos procurar. Você é bem bonitinha e será bem-vinda em nossa casa.
Lurdinha não respondeu. Ainda assim, apanhou o cartão que Diniz lhe oferecia e guardou-o na bolsa. Ergueu a maleta do chão e encarou os dois, que a fitavam como se a estivessem estudando.
— Vocês estão enganados — falou hesitante. — Arranjarei um emprego decente, vocês vão ver.
— Estaremos torcendo por você, Lurdinha — asseverou Valente. — Mas, se isso não acontecer, venha nos procurar. Garanto que não irá se arrepender.
Ela sorriu meio sem jeito e foi passando por entre os dois, novamente caminhando em direção ao centro da cidade.
— Para onde é que vai? — quis saber Diniz.
Ela deu de ombros e respondeu vacilante:
— Por aí...
Voltou-lhe as costas e retomou a caminhada. Nem sabia o que iria fazer no centro da cidade. Procurar uma ponte ou viaduto e se jogar. Ainda era melhor do que virar prostituta. Mas será que era mesmo?
iconeA figura assustada e ingênua de Lurdinha não saía da cabeça de Diniz. Ela era uma moça muito bonita, mas havia algo nela que o impressionara. Não saberia dizer se fora seu corpo ou seus olhos, mas o fato é que ela não saía de seus pensamentos.
— O que é que você tem? — perguntou Valente, vendo o amigo alheio e pensativo.
— Eu? — retrucou Diniz, tentando disfarçar. — Nada. Estava distraído.
— O que é isso, Diniz? Vai querer me enganar? Eu conheço você há muitos anos e sei quando algo o está preocupando. O que foi que houve?
— Nada, já disse. Eu estou bem.
— Você está diferente. É por causa daquela moça?
— Que moça?
— Não se faça de tonto. Sabe muito bem de quem estou falando.
— Ah! Da Lurdinha, você quer dizer? — Valente assentiu. — Eu, hein? Por que é que estaria preocupado com ela?
— Não sei. Mas depois que a encontramos, você ficou esquisito. Voltou para casa silencioso, subiu sem dizer nada. E agora está aí, com essa cara de apaixonado.
— Apaixonado, eu!? Você ficou maluco?
— Quem ficou maluco foi você. Está apaixonado por uma garota que nem conhece.
— Mas de onde foi que você tirou essa ideia? Só vimos a tal de Lurdinha uma vez. Provavelmente, nunca mais a veremos. Por que é que eu iria me apaixonar por alguém assim?
— Não sei. Diga você.
— Ouça, Valente, agradeço a preocupação, mas já disse que não tenho nada. Eu mal conheço Lurdinha, não posso estar apaixonado. Em breve, ela vai arranjar um emprego e nunca mais ouviremos falar dela.
— Eu não teria tanta certeza.
— Por quê? Como é que pode saber?
— Por causa disto.
Valente abriu um jornal diante de Diniz, onde se via na primeira página a fotografia do pequeno Tiago juntamente com seus pais. Ao lado, um resumo de toda a tragédia.
— O que isso tem a ver com Lurdinha?
Valente desdobrou o jornal e estendeu-o bem diante dos olhos do outro, apontando para uma grande coluna.
— Leia.
Embora sem nada entender, Diniz começou a ler. A matéria se referia a Tiago Fontes, filho de um construtor milionário, que havia se afogado no dia de seu quinto aniversário. A babá encarregada de sua vigilância se divertia com o motorista na garagem e, quando voltou, encontrou o menino morto na piscina. Ao lado, o nome da babá, Maria de Lurdes Pacheco, e uma foto de Lurdinha com o menino no colo.
Diniz abaixou o jornal e encarou Valente com uma indagação no olhar.
— Ainda não entendeu? — Ele meneou a cabeça. — Nossa Lurdinha é a mesma Maria de Lurdes Pacheco. Não reconhece a foto?
Diniz estudou bem a foto no jornal e concordou:
— Tem razão. É ela mesma. Ela estava um pouco abatida quando a encontramos, mas é a mesma moça.
— Pois é. Imagino que ela deva ter sido despedida. Que pai não despediria a mulher responsável pela morte de seu único filho?
— E daí?
— Será que você não pensa, Diniz? E daí, que ela não vai mais arranjar emprego em lugar nenhum. Ninguém vai querer contratar uma babá assassina.
— Nossa, Valente, que coisa dramática!
— É como os jornais a estão chamando. Com essa tragédia nas