Lilith: um romance
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Sobre este e-book
George MacDonald é considerado por muitos como o avô da fantasia moderna. Os instigantes contos de aventura e fantasia que escreveu influenciaram gerações de talentosos escritores: seus livros estavam entre os favoritos de um jovem J. R. R. Tolkien, enquanto C. S. Lewis chegou a afirmar que MacDonald havia "batizado sua imaginação". A esses nomes somam-se muitos outros, como Madeline L'Engle, G. K. Chesterston e Lewis Carroll.
Em "Lilith", MacDonald se inspira na mitologia judaica para narrar a história do sr. Catavento, um homem que não dedicava um pensamento sequer às leis da natureza ou ao seu lugar no universo —de fato, ele não se preocupava muito com nada além de si mesmo. Um dia, no entanto, uma passagem secreta em sua biblioteca o leva a um outro mundo, estranhamente parecido com o seu. Confrontado por uma sequência de mistérios, o sr. Catavento explora a origem da queda da humanidade — e o caminho pelo qual ela pode ser redimida. Mas, antes, ele precisa encontrar Lilith, o que o lança no meio do turbulento relacionamento entre ela, Adão, Eva e o próprio Deus.
Considerado o mais sombrio dos escritos de George MacDonald, este é um romance sobre a rebelião, o egoísmo, o amor sacrificial e a vida que só pode ser encontrada através da morte — temas que são cuidadosamente intrincados pela poderosa pena do autor. De acordo com W. H. Auden, "'Lilith' é igual – senão superior – ao melhor de Edgar Allan Poe".
George MacDonald
George MacDonald (1824-1905) was a popular Scottish lecturer and writer of novels, poetry, and fairy tales. Born in Aberdeenshire, he was briefly a clergyman, then a professor of English literature at Bedford and King's College in London. W. H. Auden called him "one of the most remarkable writers of the nineteenth century."
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Lilith - George MacDonald
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Tradutor
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Conversão para ePub
SCALT Soluções Editoriais
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)
M112L MacDonald, George, 1824-1905
1.ed. Lilith : um romance / George MacDonald ;
tradução José Fernando Cristófalo. – 1.ed. –
Rio de Janeiro : Thomas Nelson Brasil, 2021.
Título original : Lilith : a romance.
ISBN : 978-65-56894-36-2
1. Ficção cristã – Literatura inglesa.
2. Mitologia judaica. I. Cristófalo, José Fernando.
II. Título.
09-2021/52
CDD 828
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção cristã : Literatura inglesa 828
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária - CRB - 1/3129
Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada
à Vida Melhor Editora LTDA.
Todos os direitos reservados à Vida Melhor Editora LTDA.
Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro
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sumxrio
I
A biblioteca
II
O espelho
III
O corvo
IV
Algum lugar ou
lugar nenhum?
V
A velha igreja
VI
A cabana do
sacristão
VII
O cemitério
VIII
O manuscrito
de meu pai
IX
Arrependimento
X
A Toca Perversa
XI
A Floresta Maligna
XII
Amigos e
adversários
XIII
Os Pequeninos
XIV
Uma crise
XV
Uma estranha
anfitriã
XVI
Uma dança horrível
XVII
Uma tragédia
grotesca
XVIII
Morta ou viva?
XIX
A sanguessuga
branca
XX
Sumiu! Mas como?
XXI
A mãe fugitiva
XXII
Bulika
XXIII
Uma mulher de Bulika
XXIV
A leoparda branca
XXV
A princesa
XXVI
Uma batalha real
XXVII
A fonte silenciosa
XXVIII
Sou silenciado
XXIX
A gata persa
XXX
A explicação
de Adão
XXXI
O velho cavalo
do sacristão
XXXII
Os amados e
os odiados
XXXIII
A narrativa de Lona
XXXIV
Preparação
XXXV
Os Pequeninos
em Bulika
XXXVI
Mãe e filha
XXXVII
O Sombra
XXXVIII
Para a Casa da
Amargura
XXXIX
Aquela noite
XL
A Casa da Morte
XLI
Eu sou enviado
XLII
Dormi o sono
XLIII
Os sonhos que
sonhei
XLIV
O despertar
XLV
A jornada
para casa
XLVI
A cidade
XLVII
O fim perpétuo
Alguns dias atrás, à tarde, fiz uma caminhada pela fazenda de Spaulding. Vi quando o Sol poente iluminou o lado oposto de um enorme pinheiro. Os raios dourados penetravam, dispersos, as aleias da floresta, como se adentrassem um salão nobre. Fiquei tão impressionado. Era como se tivesse descoberto alguma família antiga e de todo admirável e luminosa que se estabelecera ali naquele pedaço de chão chamado Concord, para mim desconhecido; uma família que fazia do Sol um criado, que não havia ingressado na sociedade de nossa vila, que jamais fora visitada. Vi ao longe, pela mata, o gramado, o pátio das crianças, na várzea de Spaulding. Os pinheiros forneciam-lhes madeira para construção quando chegavam a certo porte. A casa não aparecia nitidamente, pois as árvores cresciam por entre ela. Não sei se ouvi ou não os sons de uma alegria abafada. A família parecia se recostar nos raios de Sol. Há meninos e meninas na família. Todos estão muito bem. O caminho da carroça do fazendeiro leva diretamente ao corredor, mas isso não incomoda os residentes; é como o fundo lamacento de um lago que às vezes se vê pelo céu refletido na superfície. Eles nunca ouviram falar de Spaulding e ignoram que ele é seu vizinho — embora eu o tenha ouvido assoviando enquanto guiava seus animais pela casa. Não há nada que se compare com a serenidade da vida dessa família. Seu brasão é simplesmente um líquen. Eu o vi pintado nos pinheiros e carvalhos. Seus sótãos ficavam nos topos das árvores. Eles não se interessam em absoluto por política. Não havia barulho algum denunciando trabalho. Não vi ninguém tecendo ou fiando. No entanto, quando o vento se acalmou e seu ruído cessou, percebi o som mais suave que se possa imaginar, doce e musical, como saído de uma colmeia distante no mês de maio, o que talvez fosse o som de suas reflexões. Não havia neles pensamentos ociosos, mas ninguém poderia vê-los trabalhando, pois sua atividade não se baseava em protuberâncias ou excrescências.
Mas é difícil recordá-los. Eles vão se apagando na minha mente até mesmo agora, no momento que falo deles e procuro relembrá-los e ordenar minhas impressões. Só depois de um esforço sério e prolongado para avivar meus melhores pensamentos é que novamente me dou conta de sua presença. Não fosse por famílias como essa, creio que acabaria me mudando de Concord.
— Walking [Caminhando], de Henry David Thoreau
avia acabado de terminar meus estudos em Oxford e desfrutava um breve período de férias do trabalho antes de assumir em definitivo a administração da propriedade da família. Meu pai morreu quando eu ainda era criança, e minha mãe o seguiu um ano depois. Assim, eu estava tão sozinho no mundo quanto era possível.
Admito que não conhecia muito bem a história de meus ancestrais. Praticamente, a única coisa que sabia era que a maioria deles sempre demonstrara grande inclinação para os estudos. Eu mesmo havia herdado tal tendência, de modo que dediquei grande parte de meu tempo — confesso que de um modo um tanto quanto volúvel — às ciências físicas. O que me atraiu para aquela área foi sobretudo a admiração que despertava em mim. Era comum que eu visse ou tivesse esperança de ver estranhas analogias, não apenas entre os fatos de diferentes ciências de mesma ordem ou entre fatos físicos e metafísicos, mas entre hipóteses e sugestões que bruxuleavam a partir dos sonhos metafísicos pelos quais eu tinha o hábito de vaguear. Ao mesmo tempo, tinha propensão para uma prematura entrega ao impulso de transformar a hipótese em teoria. De minhas peculiaridades mentais não há motivos para outras revelações.
A casa, bem como a família, era um pouco antiquada, mas nenhuma descrição dela se faz necessária para que se entenda minha narrativa. A propriedade tinha uma esplêndida biblioteca, que começou a se formar antes da invenção da imprensa e prosseguiu até minha época, sob forte influência, claro, das mudanças de gosto e de interesse. Certamente, nada pode incutir mais em um homem a noção da transitória natureza das posses que se tornar dono de uma propriedade antiga! Como um panorama em movimento, a minha passou diante de muitos olhos e agora está vagarosamente flutuando diante dos meus.
A biblioteca, embora devidamente considerada nas muitas alterações e acréscimos à casa, ainda assim havia absorvido, como um estado usurpador, um aposento após o outro até ocupar a maior parte do piso térreo. A sala principal era enorme, e as paredes estavam cobertas de livros até quase o teto; os aposentos sobre os quais avançara eram de tamanhos e formas variados, tão diversos quanto os meios pelos quais se intercomunicavam — portas, arcos abertos, passagens estreitas, degraus que subiam e desciam.
Eu passava a maior parte do tempo na sala maior, lendo livros sobre ciência, tanto velhos quanto novos, pois a história da mente humana em relação ao suposto conhecimento era o que me atraía acima de tudo. Ptolomeu, Dante, os dois Bacons e Boyle significavam mais para mim que Darwin ou Maxwell, pois constituíam uma vanguarda muito mais próxima de romper a escuridão da ignorância.
No entardecer de um dia sombrio de agosto, estava lendo em meu lugar usual, de costas para uma das janelas. Havia chovido grande parte da manhã e da tarde, mas, assim que o Sol começou a se pôr, as nuvens se abriram diante dele, e os raios luminosos invadiram a sala. Levantei-me e olhei em direção à janela. No centro do grande gramado, o topo da coluna da fonte estava inundado com a avermelhada glória solar. Ao virar-me para voltar à cadeira, meu olhar foi capturado pela mesma glória no único quadro naquele aposento — um retrato, em um tipo de nicho ou pequeno relicário embutido para esse fim na extensão das prateleiras repletas de livros. Eu o conhecia como um dos retratos de meus ancestrais, porém jamais havia ponderado por que estava lá sozinho e não na galeria ou em uma das grandes salas, entre os outros retratos da família. A incidência direta da luz do Sol realçou a pintura de maneira magnífica; pareceu-me estar vendo aquele quadro pela primeira vez, e pela primeira vez pareceu corresponder a meu olhar. Com os olhos cheios da luz por ele refletida, algo que não consigo definir fez-me virar e lançar um olhar para a outra extremidade da sala. Foi quando vi — ou imaginei ter visto — uma figura alta apanhando um livro da prateleira. No instante seguinte, já com a visão aparentemente reajustada pelo crepúsculo, nada mais vi e concluí que meus nervos óticos haviam sido traídos por um momento.
Retornei à minha leitura e, sem dúvida, teria me esquecido daquela impressão vaga e quase imperceptível, não fosse o fato de, logo após, ao procurar certo volume, ter descoberto um espaço vazio na prateleira exatamente onde ele deveria estar. De imediato, lembrei-me de que fora ali mesmo que tinha visto — ou imaginara ter visto — o velho homem em busca de um livro. Olhei por toda a prateleira, porém em vão. Na manhã seguinte, entretanto, o livro estava lá, bem onde o havia procurado no dia anterior! Eu sabia que ninguém mais naquela casa teria interesse naquele livro.
Três dias mais tarde, outra e ainda mais estranha situação ocorreu.
Em uma das paredes, ficava a estreita e baixa porta de um pequeno gabinete onde estavam os livros mais antigos e raros. Era uma porta espessa, com um batente que se destacava, e, pela ideia de algum ancestral, equipada com prateleiras rasas, repletas apenas de capas de livros. O artifício inofensivo era passível de perdão pelo fato de os títulos nas capas serem comicamente originais ou de livros cuja recuperação já não era mais possível. Senti um grande apreço por aquela porta disfarçada.
Para completar a ilusão da porta, algum empregado criativo aparentemente inserira, no topo de uma das fileiras, uma parte de um volume fino o suficiente para caber no espaço entre o livro inferior e a prateleira superior: ele cortara diagonalmente uma parte considerável do livro e fixara o restante com um dos cantos abertos, para se projetar para além das capas. A encadernação do volume mutilado estava bem flexível e, assim, permitia que o canto se abrisse o suficiente para mostrar que havia sido escrito à mão sobre pergaminho.
Enquanto estava sentado, lendo, ocorreu-me de levantar os olhos da página e olhar de relance aquela porta. Imediatamente, percebi que o livro descrito, se assim pode ser chamado, havia sumido. Mais furioso do que seria justificável, toquei a sineta, e o mordomo apareceu. Ao questionar se sabia o que havia acontecido, ele ficou pálido e me garantiu que não. Era mais fácil duvidar de meus olhos que de sua palavra, pois aquele homem, um servo de fidelidade ilibada, tinha estado na família durante toda a sua vida. No entanto, ele me deixou a impressão de que poderia ter falado algo mais.
À tarde, estava novamente lendo na biblioteca e, ao chegar a um trecho que exigia reflexão, abaixei o livro e deixei os olhos perambularem pelo ambiente. Naquele exato instante, vi as costas de um homem velho, alto e magro, vestido com um casaco longo, escuro e brilhoso de tão desgastado pelo uso, atravessando a porta disfarçada e desaparecendo no gabinete. Cruzei a sala em disparada, abri a porta, que estava fechada, e olhei no interior do cubículo, que para nada mais servia a não ser para armazenar livros, mas não vi ninguém. Concluí, não sem certo desconforto, que sofrera uma recorrência de minha ilusão anterior e sentei-me para retomar a leitura.
Naturalmente, não pude evitar certo nervosismo e, olhando ao redor para assegurar-me de que estava de fato sozinho, levantei-me de súbito e corri para aquela porta, pois o volume mutilado estava no lugar! Segurei o livro, puxei-o, mas ele estava fixado com firmeza, como de costume!
Espantado, toquei a sineta, o mordomo atendeu e contei-lhe o que tinha visto. O empregado então revelou-me tudo o que sabia. Afirmou que esperava que o velho homem fosse esquecido; ninguém, exceto eu, o vira em muitos anos. Quando começou a servir na casa, ouviu falar muito daquele homem, porém, pouco a pouco, o vulto deixou de ser mencionado e o mordomo passou a ser muito cuidadoso em não fazer nenhuma referência a ele.
— O lugar era assombrado por um homem velho, é isso? — questionei.
Ele respondeu que, em certa época, todos acreditavam na história, mas o fato de eu jamais ter ouvido falar nela parecia implicar que toda a coisa, em dado momento, tivesse sido esquecida.
Perguntei ao mordomo se ele mesmo tinha visto o homem.
Ele respondeu que jamais o vira, embora estivesse servindo na casa desde que meu pai tinha oito anos de idade. Meu avô não permitia uma palavra sequer sobre o assunto e declarou que todo aquele que aludisse ao homem seria despedido sem advertência prévia: aquilo, dizia ele, nada mais era que um pretexto das criadas para correrem para os braços dos homens! O velho sr. Ralph, porém, não acreditava em nada que não pudesse ver ou tocar. Nenhuma das mulheres jamais afirmou ter presenciado a aparição, mas um lacaio abandonou a casa por esse motivo.
Uma velha senhora do vilarejo contara ao mordomo uma lenda sobre um antigo bibliotecário, o sr. Corvo,¹²que servia o sr. Ascendente, cujo retrato está lá entre os livros
. O sr. Ascendente era um grande leitor, disse ela, não apenas daqueles livros adequados para todos os homens lerem, mas também de livros malignos, estranhos e proibidos. O sr. Corvo, que seria o próprio diabo, encorajava-o nessa prática. Repentinamente, os dois sumiram. O sr. Ascendente nunca mais foi visto nem dele se ouviu coisa alguma, mas o sr. Corvo continuou a fazer aparições na biblioteca a intervalos incertos. Alguns acreditavam que ele não estava morto, mas o mordomo e a velha senhora achavam mais fácil crer em um homem morto revisitando o mundo que havia deixado do que acreditar em um homem real continuando vivo por centenas de anos.
O mordomo nunca ouvira falar que o sr. Corvo houvesse interferido em alguma coisa na casa, mas talvez se considerasse um privilegiado em relação aos livros. Como a velha senhora sabia tanto sobre ele, o mordomo não sabia explicar, porém a descrição feita por ela correspondia exatamente à figura que eu acabara de avistar.
— Espero que não tenha passado de uma visita amigável por parte do velho cavalheiro! — concluiu o mordomo, com um sorriso perturbado.
De minha parte, assegurei-lhe não fazer nenhuma objeção às visitas do sr. Corvo, mas disse que seria melhor manter a resolução de nada comentar sobre o homem com os demais empregados. Então lhe perguntei se alguma vez vira o volume mutilado fora de lugar. Ele respondeu negativamente e afirmou sempre ter pensado que estivesse fixo. Após dizer isso, o mordomo foi até o volume e deu-lhe um puxão: o livro permaneceu imóvel.
1 No original, Mr. Raven
. [N. E.]
or alguns dias, mais nada de anormal ocorreu. Creio, porém, que foi cerca de uma semana depois que aconteceu o que vou relatar agora.
Fiquei pensando a respeito do manuscrito fragmentado e tentei várias vezes encontrar um meio de soltá-lo, porém em vão. Não pude descobrir o que o mantinha preso.
No entanto, havia algum tempo eu planejava uma vistoria completa dos livros do quartinho, pois a atmosfera me causava preocupação quanto às condições deles. Certo dia, a intenção repentinamente se transformou em resolução, e, quando estava para me levantar da cadeira e iniciar a empreitada, vi o velho bibliotecário movendo-se da porta do cubículo em direção à outra extremidade da sala. Na verdade, devo dizer que vislumbrei algo fantasmagórico, que me pareceu um homem curvado e débil trajando uma casaca surrada que quase lhe alcançava os calcanhares, cuja cauda, ao se abrir levemente à medida que ele andava, revelava pernas finas com meias pretas e grandes pés envoltos em calçados semelhantes a chinelos.
De um salto o segui: eu poderia estar indo atrás de uma sombra, porém jamais duvidei de que estava seguindo algo. Ele deixou a biblioteca, atravessou o saguão em direção à grande escadaria e subiu ao primeiro andar, onde estavam localizados os aposentos principais. Comigo em seu encalço, ele deixou para trás os aposentos e seguiu adiante por um amplo corredor até chegar a uma escada mais estreita, que levava ao segundo andar, que ele subiu também. Quando alcancei o topo da escada, por mais estranho que pareça, vi-me em uma área da casa praticamente desconhecida para mim. Não tive irmãos ou irmãs a me incitarem aos rompantes de exploração que tornam as crianças familiarizadas com passagens estreitas e cantos secretos. Eu ainda era uma criança quando meu guardião me levou embora e só retornei cerca de um mês atrás, para tomar posse da casa.
Prosseguimos passagem após passagem até chegarmos a uma porta que dava acesso a uma escada de madeira em caracol, pela qual subimos. Cada degrau estalava sob meus pés, porém não ouvia nenhum som dos passos de meu guia à frente. Em algum ponto, no meio da escada, perdi-o de vista, e de onde me encontrava aquela forma sombria já não era mais visível. Não podia nem mesmo imaginar que o vira. Apesar de o lugar estar repleto de sombras, em nenhuma delas reconheci o velho homem.
Então percebi que estava no sótão principal, com enormes vigas e madeiramento acima de minha cabeça. Ao meu redor havia grandes vãos livres, além de algumas portas aqui e ali. Meu campo de visão permitia ainda uma ampla vista, cuja obscuridade era atenuada por um discreto sistema de janelas e pequenas claraboias. Observei aquilo tudo com um misto de assombro e prazer: aquele sótão imenso me pertencia, porém permanecera inexplorado!
No meio do sótão, havia um compartimento formado por tábuas grosseiras e cruas, cuja porta estava entreaberta. Imaginando que o sr. Corvo pudesse estar ali, empurrei-a e entrei.
A pequena câmara estava cheia de luz, mas como aquela que preenche lugares ermos: tinha uma aparência triste e desconsolada, como se tivesse consciência da própria inutilidade, arrependida de ter vindo. Uns poucos e débeis raios de Sol, deixando um rastro em meio à nuvem de pó que acabara de ser levantada, incidiram sobre a superfície empoeirada de um espelho alto, antiquado e estreito, com aparência de vidro comum. A peça tinha uma moldura de ébano, e no topo havia uma imponente águia negra com as asas estendidas, de cujo bico pendia uma corrente dourada com uma bola preta na extremidade.
Eu estava examinando o espelho havia um tempo, quando de repente me dei conta de que ele não refletia a câmara e tampouco a mim. Tive a impressão de ter visto a parede derreter, mas o que ocorreu em seguida foi suficiente para responder a qualquer incerteza — teria confundido um espelho com um vidro que protegia uma pintura maravilhosa?
Vi diante de mim um lugar selvagem, destruído e árido. Colinas de pequena estatura, porém, de algum modo, de estranha aparência, ocupavam o cenário a meia distância; ao longo do horizonte estendiam-se os picos de uma cadeia montanhosa longínqua; mais próximo de mim, assentava-se uma região pantanosa, plana e melancólica.
Por ser míope, aproximei-me para examinar a textura de uma pedra logo à frente e, nesse movimento, avistei, vindo em minha direção com ar solene, um enorme e antigo corvo, cuja plumagem negra era atenuada aqui e acolá por tons acinzentados. Ele parecia estar à procura de bichinhos para comer. Nada surpreso pela aparição de uma criatura viva em um quadro, dei mais um passo, para vê-la melhor, porém tropecei em algo — sem dúvida a moldura do espelho — e acabei com o nariz colado ao bico da ave: eu estava em pleno ar, acima de um pântano!
irei-me e olhei para trás: tudo era vago e incerto, como quando não se consegue distinguir entre neblina e campo, nuvem e montanha. Apenas uma coisa era clara: nada do que via me era conhecido. Imaginando que estava envolvido em uma ilusão visual e que, se tocasse em algo, sairia dela, estendi as mãos e, tateando, caminhei em direções diferentes, esperando por acaso entrar em contato com algo, apesar de nada ver. Mas minha busca foi em vão. Instintivamente, então, por ser a única coisa viva mais próxima de mim, voltei-me para o corvo, que permanecia a pequena distância observando-me com uma expressão ao mesmo tempo respeitosa e zombeteira. Então, percebendo o absurdo de buscar conselho com uma ave, virei-me novamente, perplexo e confuso, mas não com medo. Teria chegado a uma região onde as relações materiais e físicas de nosso mundo não tinham validade? Poderia um homem, a qualquer instante, pisar além do reino da ordem e tornar-se um brinquedo da falta de leis? Não obstante, eu ainda via o pássaro, sentia o chão sob os pés e ouvia um som similar ao vento soprando na pobre vegetação ao meu redor!
— Como vim parar aqui? — indaguei, aparentemente em voz alta, pois a pergunta foi respondida de imediato.
— Você veio pela porta — replicou uma voz áspera e estranha.
Olhei para trás e ao redor, mas não vi nenhuma forma humana. O terror de que estivesse ficando louco apoderou-se de mim: não devo, daqui em diante, confiar em meus sentidos ou em minha consciência? Naquele mesmo instante, compreendi que fora o corvo que havia falado comigo, pois ele permanecia parado olhando para mim com ar de interrogação. O Sol não estava brilhando, mas, ainda assim, a ave parecia projetar uma sombra, que parecia parte dele mesmo.
Imploro ao leitor que me ajude na empreitada de me fazer inteligível, se é que de fato a compreensão é possível entre nós. Encontrava-me em um mundo — ou chame-o estado de coisas, economia de condições, ideia de existência — tão pouco relacionado com as maneiras e modos deste mundo, sempre considerado por nós o único, que a melhor escolha de palavra ou frase que pudesse fazer nada mais seria que um rascunho do que gostaria de expressar. Começo, de fato, a temer que esteja tentando uma impossibilidade, ou seja, contar o que não posso contar, porque nenhuma verbalização ao meu alcance será capaz de expressar as formas em minha mente. Já fiz afirmações que de bom grado modificaria, caso soubesse como substituí-las por outras mais verdadeiras, porém, sempre que tento enquadrar a realidade com as palavras mais próximas, vejo-me no perigo de perder as coisas em si e me sinto como alguém em processo de despertar de um sonho, quando o que parece familiar se transforma gradual, porém rapidamente, em uma sucessão de formas, até sua natureza não ser mais reconhecível.
Cheguei à conclusão de que uma ave capaz de falar a um homem deve ter o mesmo direito concedido aos homens de uma resposta civilizada; talvez, como pássaro, um direito ainda maior.
A tendência de grasnar causava certa aspereza à sua fala, mas sua voz não era desagradável, e o que ele disse, embora pouco esclarecedor, não soou rude.
— Não cheguei aqui por nenhuma porta — respondi.
— Mas eu o vi surgir por ela! Vi com estes meus envelhecidos olhos! — asseverou o corvo, de modo firme, porém respeitoso.
— Continuo afirmando que não vi nenhuma porta! — insisti.
— Claro que não! — retrucou. — Todas as portas que você já viu, e não foram muitas, eram portas para dentro; para chegar aqui, você usou uma porta para fora! O estranho para você — prosseguiu o corvo zelosamente — será que, quanto mais portas para fora abrir, mais para dentro estará!
— Ajude-me dizendo onde estou.
— Isso é impossível. Você nada sabe sobre localização. O único jeito de saber onde está é começando a se sentir em casa.
— Como posso me sentir em casa em um lugar onde tudo é tão estranho?
— Fazendo alguma coisa.
— O quê?
— Qualquer coisa. E, quanto mais cedo começar, melhor! Enquanto não se sentir em casa, terá tanta dificuldade de sair tanto quanto sente de entrar.
— Infelizmente, descobri ser muito fácil entrar; uma vez fora, não tentarei novamente!
— Você tropeçou para dentro e talvez possa tropeçar para fora. Se você entrou, infelizmente ainda está para ser confirmado.
— Você nunca vai para fora, senhor?
— Quando sinto vontade, vou, mas não com muita frequência nem por muito tempo. Seu mundo é um tipo de lugar imaturo, ao mesmo tempo tão infantil e tão presunçoso (na verdade, ainda não suficientemente desenvolvido para um velho corvo) ao seu dispor!
— Estou errado então em presumir que o homem é superior a um pássaro?
— Isso pode ser um fato, porém não desperdiçamos nosso intelecto em generalizações: aceitamos o homem ou o pássaro como eles são. Creio que agora é a minha vez de fazer uma pergunta!
— Tem todo o direito — respondi —, pelo fato de você poder perguntar!
— Excelente resposta! — rejubilou-se. — Diga-me então quem você é, caso saiba dizer.
— Como posso não saber? Sou eu mesmo, e devo me conhecer!
— Se você sabe que é você mesmo, então sabe que não é ninguém mais. No entanto, tem certeza de quem você é? Está seguro de que não é seu pai? Ou, perdoe-me, de que não é tolo de si mesmo? Quem é você?
De repente, dei-me conta de que não poderia lhe dar nenhuma noção de quem eu era. Na verdade, quem era eu? Não tinha resposta pronta para aquela indagação. Compreendi então que não conhecia a mim mesmo, tampouco sabia quem eu era; não tinha base na qual pudesse determinar ser um e não outro. Quanto ao nome com o qual era conhecido em meu mundo, eu o havia esquecido e não fazia questão de lembrá-lo, pois nada significava e, fosse qual fosse, era óbvio que não tinha importância alguma naquele lugar. Na verdade, havia praticamente me esquecido do costume de as pessoas terem um nome! Assim, mantive-me em silêncio, pois o que poderia dizer a uma criatura como aquele corvo, cuja existência descobrira por acidente?
— Olhe para mim — disse ele — e diga-me quem eu sou.
Ao falar, o corvo deu-me as costas, e imediatamente o reconheci. Não era mais uma ave, e sim um homem de estatura elevada e levemente encurvado, muito magro e vestindo uma longa casaca preta. O homem virou-se outra vez, e de novo o vi como um corvo.
— Já o vi antes, senhor — disse eu, sentindo-me um tanto tolo, porém não surpreso.
— Como pode afirmar isso ao ver-me por trás? — retorquiu. — Você já viu a si mesmo pelas costas? Na verdade, jamais viu a si mesmo de nenhum jeito! Diga-me agora, então, quem sou eu.
— Humildemente peço perdão — respondi. — Creio que você tenha sido outrora o bibliotecário da nossa casa, sr. Corvo, porém nada mais sei a seu respeito.
— Por que me pediu perdão?
— Porque o tomei por um corvo — respondi, vendo-o diante de mim como um corvo, tão claramente quanto seria possível a um pássaro ou a um homem.
— Você não me causou mal algum — ele respondeu. — Chamando-me de corvo ou me imaginando como tal, você me concedeu existência, e isso é tudo o que alguém pode exigir de seu próximo. Portanto, como recompensa, eu lhe ensinarei uma lição: ninguém pode afirmar ser ele mesmo sem antes saber que ele é, e então o que ele mesmo é. Na verdade, ninguém é ele