Cabocla
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Cabocla - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Jussara (Espírito)
Cabocla / romance do espírito Jussara ;[psicografado por] Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho. -- 8. ed. -- Catanduva, SP : Petit Editora, 2023.
ISBN 978-65-5806-047-5
1. Romance espírita I. Carvalho, Vera Lúcia Marinzeck de. II. Título.
23-158163
CDD-133.9
Índices para catálogo sistemático:
1. Romance espírita 133.9
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
8-07-23-3.000-56.620
Prezado(a) leitor(a),
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ImagemDedico
Este trabalho, com todo o meu amor, ao Gustavo, meu filho querido.
Vera
Narro a história de minha vida com os conhecimentos espirituais que hoje possuo. Uso termos que Allan Kardec utilizou ao codificar a Doutrina Espírita, na qual encontramos explicações para fenômenos até então considerados sobrenaturais e que nos envolveram — na condição de escravos — e a outros encarnados desde longínqua data. Se usasse o palavreado da época, característico dos escravos, iria dificultar a leitura. Continuo simples, a simplicidade requer aprendizado, e eu tento aprender no decorrer do tempo.
Dedico esta obra às pessoas singelas que dão valor à oportunidade da reencarnação.
Jussara
Sumário
A fuga
A cobra
Recordações
Fatos e fatos
Minha passagem
Visitas
Na enfermaria
Fui escravocrata
Acontecimentos no quilombo
Na fazenda
Meu passado com José
Trabalho de reconciliação
A fuga
— Preciso conseguir! Ir em frente! Meu Deus, me dê forças!
Às vezes resmungava, tentando me encorajar a continuar. Estava cansada, com dores, fome e sede. Minhas pernas continuavam a trocar passos impulsionadas por minha vontade forte, vontade dirigida pelo amor, pela necessidade de salvar aqueles que mais amava: meu filho, minha filha e meu genro.
Estava com vários ferimentos, os galhos me dilaceravam a carne. Alguns arranhões eram profundos e sangravam. Doíam, mas não importava, não deveriam incomodar. Tinha um objetivo, que era me afastar o mais possível. Às vezes olhava meus ferimentos e segurava o choro, estava muito machucada, mas não queria me apiedar de mim. Um arranhão acima do olho direito sangrava muito, obrigando-me a fechá-lo. Tentava secá-lo com uma blusa de minha filha. Levou minutos para parar de sangrar. Quando parou, suspirei aliviada, porém continuava a doer, a arder.
Os galhos fechavam a passagem, não havia nada para abrir caminho e não podia me dar ao luxo de escolher o melhor lugar para passar. Meu tempo era precioso, tinha de continuar a andar e assim fiz.
Tentava abafar meus gemidos, mas de vez em quando saíam dos meus lábios alguns ais. Cada passo era um sacrifício, sentia dores latejantes nas costas e os arranhões continuavam, ardiam, doíam.
Usava as mãos para tentar afastar os galhos, mas eram estas e os braços os mais machucados.
Ao entrar na floresta eu marcava um rumo e o seguia, não queria desviar e continuava a andar... Não é fácil marcar rumo em mata fechada, mas marquei, tinha o instinto forte do povo indígena.
Por vezes sentia que ia morrer, meu corpo queria parar, não aguentava mais, respirava fundo e pedia a proteção de Deus.
— Preciso ir! Preciso ir o mais longe possível! Deus Pai, me ajude!
E continuava, parecia que, ao respirar fundo, uma energia diferente me impulsionava, sentia como se estivesse sendo protegida, como se alguém com muito carinho estivesse me ajudando.
Deus não desampara ninguém, Ele me ajudará! Mas e se os que me perseguem pedirem a ajuda de Deus para me capturar? A quem Ele ajudará?
, pensava aflita. Deus é meu Pai, mas é Pai deles também. Talvez faça como uma mãe que com justiça sabe entender uma disputa entre seus filhos e atende aquele que lhe parece mais justo.
E seguia, andava...
— Ai!
Um espinho grande entrou no meu braço esquerdo. Tive de puxá-lo com força, o sangue esguichou. Amarrei as roupas que trazia nos braços, elas estavam em tiras e já não me protegiam.
— Au, au, au...
— Os cães...
Escutava o latido dos cães e nesses momentos tentava andar mais rápido. Ao escutá-los pela primeira vez, senti medo, mas também alívio, meu plano dera certo, eles estavam atrás de mim.
— Se me pegarem, será pior, bem pior!
Comecei a pensar em minha vida. As lembranças vieram, e isso até que me fez bem, parecia que os ferimentos doíam menos e a dor nas costas e nas pernas ficou mais amena com meu cérebro cheio de recordações.
Ali estava eu, fugindo. Fugindo? Não era bem isso o que estava fazendo. Que me importava agora fugir do cativeiro? Não temia a escravidão, era livre em espírito, depois de ter vivido trinta e oito anos como escrava não importava ser liberta, tinha poucas ilusões, havia sofrido muito e o entusiasmo juvenil da liberdade havia passado. Sabia, tinha a certeza de que ao ter o corpo morto meu espírito seria libertado, livre igual a um passarinho a voar pelas campinas por cima das copas das árvores das matas.
Mas necessitava fugir, tinha de andar ligeiro e tomar distância da fazenda para que meus entes queridos estivessem a salvo.
Fazia mais de um dia que estava andando. Saí da fazenda no dia anterior, de madrugada. Nas primeiras horas caminhei com mais facilidade, depois com muito esforço, e somente estava conseguindo ainda porque queria muito, tinha de continuar andando. Trouxera comigo uma cabaça de água. Os alimentos que conseguimos guardar meus filhos levaram. Comi algumas frutas que encontrei no caminho, não queria parar ou desviar, não podia, estavam atrás de mim, iriam me pegar com certeza, mas precisava prolongar minha captura. Quanto mais demorassem para me alcançar, maior a chance de meus filhos serem salvos.
— E eles pensam que estão perseguindo os quatro. — Sorri com lágrimas nos olhos. — Os quatro!
Recordei os planos de fuga.
— Cabocla — perguntou Dito —, você não quer vir conosco? Tem certeza de que não quer mesmo?
— Não, Dito — respondi —, estou velha ou me sinto velha, e com o meu problema só iria criar dificuldades e atrasá-los. Vão vocês, estarei orando para que tudo dê certo.
— Sinto deixá-la, mamãe — falou Tomasa, minha filha, que todos chamavam carinhosamente pelo apelido de Tobi. — Tenho receio de que o senhor Lisberto a castigue quando derem por nossa falta.
— Ele não fará isso — respondi. — Já me bateu uma vez e quase me aleijou.
— Odeio ele por isso, pelo que fez à senhora e ao nosso irmão Manu — afirmou Antônio, meu filho Tonho.
— Precisamos ter cautela — alertou Dito —, não é bom que nos vejam conversando, podem desconfiar.
Nesse instante, outra escrava da senzala, Filó, aproximou-se.
— O que vocês tanto conversam? Posso saber?
— Falávamos que, se não chover, as plantações morrerão — respondeu Tobi.
— Ah, que temos com isso? O que nos importa que eles tenham prejuízo? — riu Filó com desprezo.
— Filó — disse Tonho —, fomos nós que plantamos e seremos nós que iremos replantar. Depois, se faltarem alimentos, seremos os primeiros a passar fome.
— É verdade! — Filó aceitou os argumentos, nos observando. — Pensei que estivessem falando do interesse do senhor Lisberto por Tobi.
Tobi nem respondeu. Filó era uma pessoa boa, trabalhadeira, mas falava demais, tínhamos desconfiança de que ela contava tudo o que ocorria entre nós para o capataz. Demos por encerrada a conversa e cada um foi para o seu canto.
A fazenda em que vivíamos era bonita, grande, havia criações e muitas plantações a perder de vista. Mas a seca estava castigando aquele ano.
Os senhores, donos da fazenda, estavam em viagem pela Europa. Nosso sinhô, Narciso, deixou um primo para cuidar de tudo. Mas quem cuidava mesmo eram os empregados, principalmente dois: o senhor João da Tripa, que administrava a fazenda, e o senhor Lisberto, que coordenava o trabalho dos escravos.
Senhor Lisberto, que passou a ser o nosso terror, era casado, tinha filhos, mas estava sempre cobiçando as jovens negras. Era mau, exigente e rancoroso.
Continuei a lembrar. Embora tudo houvesse ocorrido anos atrás, ainda doía, e lágrimas escorreram fartas pelo meu rosto. A imagem de meu filho Manu veio forte, lembrava de cada detalhe do seu rosto, do seu modo meigo e bondoso, do seu jeito amigo.
Manu enamorou-se de uma moça, escrava da fazenda vizinha. Querendo vê-la, pediu várias vezes que o deixassem ir até lá e lhe foi negado. Numa tarde, num impulso apaixonado, saiu sem permissão e foi encontrar-se com ela. Não contou a ninguém. Senhor Lisberto julgou que havia fugido e procurou-o pela fazenda. Encontrou-o quando voltava, trouxe-o amarrado e não quis escutar explicações. Colocou-o no tronco e começou a chicoteá-lo.
Estava lavando roupas quando me contaram. Fui correndo para o pátio onde ficava o tronco. Gritei desesperada pedindo clemência. Como não fui atendida e recebi apenas risadas em resposta, avancei sobre o senhor Lisberto na tentativa de que ele parasse e me escutasse. Ele então deu uma pancada com o cabo do chicote, que era de madeira, nas minhas costas, e caí com forte dor, sem conseguir me mexer.
— Fique quieta, negra! Senão morre junto com seu filho!
Ali fiquei, no chão, a dor me tirava o fôlego. Apavorada, fiquei olhando o terrível e injusto castigo. As chicotadas, o barulho do chicote nas costas dele, os gemidos abafados eram como um delírio, um pesadelo horrível que nunca mais esqueci.
Naquele momento, ali, sozinha na mata, me esforçando para caminhar, as lembranças eram tão fortes, tão ricas em detalhes que me faziam tremer de indignação. Estava soluçando, respirei fundo e parecia ver meu Manu no tronco.
Foram minutos que me pareceram horas. Eu ali, inerte no chão, e meu filho amarrado, sendo castigado. Senhor Lisberto o chicoteou até cansar ou talvez até a raiva passar.
Manu estava desmaiado. Então, os outros escravos, que ali vieram correndo e ficaram vendo horrorizados o castigo, desamarraram-no e o levaram para a senzala; e como eu não conseguia me mexer também fui conduzida para perto dele.
As costas de Manu pareciam uma pasta sangrenta, havia perdido muito sangue. Pedi aos que me carregavam:
— Por Deus, me coloquem perto de meu filho!
Maria e Jacinta, chorando, fizeram o que pedi: fui colocada na esteira, de costas, ao lado dele. Enfaixaram-me e me deram chá de ervas para tirar a dor. Fiquei ao lado de Manu, consegui pegar