Terra madura: Uma teologia da vida
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Sobre este e-book
A Terra é um dom que Deus nos deu, e de onde somos hospedeiros. Nossa função é fazer com que ela acolha a todos e que forneça as condições necessárias para a vida, o que inclui as plantas, os animais e todos os seus habitantes.
Por isso, neste livro, o teólogo, filósofo e membro da iniciativa internacional Carta da Terra Internacional Leonardo Boff nos ensina a pensar uma nova teologia da vida, em que os seres humanos abdicam da arrogância de "querer ser Deus" para confraternizar com as demais criaturas, respeitando e cuidando de Abya Yala, a "terra madura", "terra de sangue vital", "terra que floresce", na língua do povo Kuna do Panamá e do norte da Colômbia.
Boff nos convida, também, a inaugurar um novo tempo, evitando mais do sofrimento que causamos ao planeta e a nós mesmos, para que sejamos capazes de viver como irmãos e irmãs, unidos por um mesmo coração pulsante na mesma e generosa Mãe Terra.
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Terra madura - Leonardo Boff
Prefácio
O presente texto, Terra madura, nasceu a partir do sofrimento pelo qual a Terra e a humanidade estão passando. O que realmente nos faz refletir, mais que o encantamento, como afirmavam os filósofos gregos, é o sofrimento em todos os seus modos: corporal, psíquico, espiritual. O sofrimento sempre nos lança as perguntas: Por quê? Qual o sentido? Por que eu? Por que a pessoa amada, a família, a nação, o planeta inteiro? Onde erramos? O que temos de mudar?
O sofrimento é um companheiro sombrio da condição humana e sobre isso também refletiremos. Por ora, no entanto, basta dizer que desde o início de 2020 sofremos por uma razão muito clara: um contra-ataque da Mãe Terra contra a humanidade. Cansada de ser devastada pela voracidade dos que buscam riqueza e crescimento ilimitado depredando bens e serviços naturais e à custa do empobrecimento da maioria da humanidade, ela se defendeu com uma arma invisível: o coronavírus.
A covid-19 colocou de joelhos as potências militaristas com seus arsenais de armas de destruição em massa, que se mostraram ineficazes e inúteis. Pela primeira vez, um vírus atingiu todo o planeta, sem poupar ninguém. Ele ameaça a todos indistintamente com a morte. É uma advertência: não podemos continuar a tratar a Mãe Terra como a vínhamos tratando. Temos que mudar.
A intrusão do coronavírus obrigou-nos ao isolamento social para refletirmos, cobrou-nos evitar conglomerações para não nos contaminarmos, impôs o uso de incômodas máscaras para proteger a nós e aos outros. Suscitou uma busca desesperada por vacinas para conter a difusão do vírus, eliminá-lo e impedi-lo de causar mais mortes ou efeitos maléficos.
Milhões foram vitimados. Um manto de tristeza, desesperança e medo se abateu sobre toda a humanidade.
Somos tão umbilicalmente ligados, Terra e humanidade, que, quando a Terra adoece, adoecemos também; quando adoecemos, adoecemos igualmente a Terra. Juntos sofremos e juntos podemos nos curar.
O grito de dor das pessoas e a paixão pela Terra ocasionaram as reflexões deste livro, embora não se restrinjam ao evento trágico da covid-19. Há sofrimento, mas também esperança.
Nos escritos que se seguem, abordo três campos do agir e do pensar humanos: a ética política, a ecologia integral e a vida do espírito. Não apresento um tratado, mas peças que, como tijolinhos, permitem entrever um edifício ordenado.
O intuito destes textos é provocar reflexões, discussões e motivar decisões pessoais e coletivas que poderão levar a catástrofes de dimensões apocalípticas ou a um salto no estado da consciência coletiva rumo a uma Terra mais amada, cuidada e, finalmente, curada de suas chagas: a Grande Mãe dos antigos, a Pachamama dos andinos, a Gaia dos modernos, a Casa Comum da Carta da Terra e do Papa Francisco.
Juntos, Terra e humanidade, devemos ser atraídos pelo Grande Atrator, aquele Ser que faz ser todos os seres
e que costumamos chamar de Criador do universo e de tudo o que ele contém. Lado a lado com a nossa ciência, a técnica e os cuidados humanos, dele poderão vir luzes e caminhos capazes de nos tirar deste vale tenebroso da sombra da morte e nos levar a pastagens verdejantes.
PRIMEIRA PARTE
ÉTICA POLÍTICA
1
O complexo deus
da modernidade
A crise atual, agravada pela intrusão do coronavírus em 2019, não é apenas pela escassez crescente de recursos e de serviços naturais. É fundamentalmente a crise de um tipo de civilização que, seguindo o pensamento de Descartes, colocou o ser humano como senhor e dono
da natureza sem sentir-se parte dela. Esta, para ele, é sem espírito e sem propósito e por isso está à nossa disposição.
Para o fundador do paradigma moderno da tecnociência, Francis Bacon, cabe ao ser humano torturar a natureza, como o fazem os esbirros da Inquisição, até que ela entregue todos os seus segredos
. Desse pensamento, derivou-se uma relação de agressão e de verdadeira guerra contra a natureza selvagem
que devia ser dominada e civilizada
. Surgiu também a projeção arrogante do ser humano como o deus menor
que tudo domina e organiza através da ciência, da tecnologia, que hoje inclui a nanotecnologia e a inteligência artificial.
Devemos reconhecer aqui que não foram só filósofos entusiastas do engenho humano que disseminaram essa visão de mundo, mas que o próprio cristianismo ajudou a legitimá-la e reforçá-la. O Gênesis diz claramente: enchei a Terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra
(Gn 1,28). Antes disso, afirma que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26).
A interpretação que se deu a esse texto é: o ser humano é lugar-tenente de Deus. Como este é o Senhor do universo, o ser humano é o senhor da Terra. Ele goza de uma dignidade que é só dele: a de estar acima dos demais seres. Daí se gerou o antropocentrismo, que é uma das causas da crise ecológica que vivemos.
Por fim, no sentido dominante, o estrito monoteísmo ainda retirou o caráter sagrado de todas as coisas e o concentrou só em Deus. Passou a se interpretar que o mundo, não possuindo nada de sagrado, não precisa ser respeitado. Está ao nosso dispor moldá-lo ao nosso bel-prazer.
Assim, a moderna civilização da tecnociência, que surgiu no século XIX, encheu todos os espaços com seus aparatos e penetrou no coração da matéria, da vida e do universo. Tudo passou a ser envolto pela aura do progresso
, visto como uma espécie de resgate do paraíso das delícias, outrora perdido, mas reconstruído pelo homem e oferecido a todos aos que a ele tivessem acesso possível, ou seja, os ricos e poderosos.
Essa visão gloriosa e idílica do progresso
começou a ruir no século XX com as duas guerras mundiais e as coloniais que vitimaram 200 milhões de pessoas. Quando se perpetrou o maior ato terrorista da história – as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki pelo Exército norte-americano –, que matou milhares de pessoas e devastou a natureza, a humanidade levou um susto do qual não se refez até hoje. À época, o filósofo francês Jean-Paul Sartre, desolado, constatou: o ser humano se assenhoreou da própria morte.
Com as armas atômicas, biológicas e químicas construídas posteriormente, ficou claro que não precisamos de Deus para concretizar o Apocalipse. Construímos o princípio da autodestruição, que hoje se esconde atrás do pensamento TINA (there is no alternative) neoliberal: Não há alternativa; este mundo é definitivo
. Ridículo. Hoje, demo-nos conta de que o saber como poder
, de Bacon, quando feito sem consciência e sem limites éticos, pode nos levar ao fim. A covid-19 só veio confirmar isso, tornando ineficaz o arsenal de armas de destruição em massa. Elas não atingem o vírus que, intrépido, ataca a inteira humanidade.
Não somos Deus, e querer ser Deus nos leva à loucura. A ideia do homem como deus
, vendida pelo progresso
, transformou-se num pesadelo aterrador.
Que poder temos sobre a natureza? Quem domina um tsunâmi? Quem controla o vulcão chileno Puyehue? Quem freia a fúria das enchentes nas cidades serranas do Rio de Janeiro? Quem impede o efeito letal das partículas atômicas do urânio, do césio e de outras liberadas pelas catástrofes de Chernobyl e de Fukushima? Como disse Heidegger em sua última entrevista ao jornal alemão Der Spiegel: só um deus pode salvar-nos
.¹
Temos que nos aceitar como simples criaturas junto com todas as demais da comunidade da vida. Temos a mesma origem comum: o pó da Terra. Não somos a coroa da criação, mas um elo da corrente da vida. Por isso, a interpretação mais correta do Gênesis, segundo a melhor exegese, vai no sentido geral do relato da escritura: o ser humano como cuidador e guardador do Jardim do Éden, e não como seu dominador (Gn 2,15). Nossa missão deve ser a de manter as condições de sustentabilidade de todos os ecossistemas.
Se partimos da Bíblia para legitimar a dominação da Terra, temos que voltar a ela para aprender a respeitá-la e a cuidá-la. A Terra gerou a todos. Deus ordenou: Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie
(Gn 1,24). Ela, portanto, não é inerte; é geradora e é mãe.
A aliança de Deus não é apenas com os seres humanos. Depois do grande dilúvio, Deus refez a aliança com a nossa descendência e com todos os seres vivos que nos cercam (Gn 9,12). Sem eles, somos uma família desfalcada.
A história mostra que a arrogância de querer ser Deus
, sem nunca o poder de fato, só nos trouxe desgraças. Basta-nos ser simples criaturas, confraternizadas com as outras, mas com a missão de respeitar e cuidar da Mãe Terra. Esse é o nosso lugar no conjunto dos seres, e essa é a nossa nobre missão, exigida pelo universo e querida pelo Criador de todas as coisas.
2
Pode a espécie humana desaparecer da face da Terra?
A irrupção da covid-19, afetando todo o planeta e causando verdadeira dizimação humana, vitimando milhões de pessoas no mundo inteiro mesmo depois de terem sido criadas e aplicadas várias vacinas seguras e eficazes,