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A Patroa
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E-book194 páginas2 horas

A Patroa

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Sobre este e-book

Patience Portefeux é uma especialista em língua árabe que presta serviço para a justiça francesa. Traduzindo conversas de traficantes grampeados em escutas telefônicas, ela trabalha o quanto pode para garantir sozinha o sustento das filhas e os custos da mãe numa clínica de idosos. Quando um incidente a torna a única pessoa a saber o paradeiro de uma grande carga de drogas, Patience percebe que sua posição a deixa sempre um passo à frente da polícia e dos criminosos. Com a perspectiva de resolver seus problemas imediatos e quem sabe resgatar uma vida de luxo perdida, ela entra para o mundo do crime e se torna, então, a Patroa.
IdiomaPortuguês
EditoraDublinense
Data de lançamento30 de abr. de 2024
ISBN9786555531398
A Patroa

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    A Patroa - Hannelore Cayre

    c1

    Os vigaristas dos meus pais tinham um amor visceral por dinheiro. Não como uma coisa inerte que você esconde num baú ou deposita numa conta. Não. Como um ser vivo e inteligente capaz de criar e matar, dotado da faculdade de se reproduzir. Como algo extraordinário que forja destinos. Que distingue o bonito do feio, o perdedor do que se deu bem. Dinheiro é tudo; a síntese de tudo aquilo que se pode comprar num mundo onde tudo está à venda. Ele é a resposta para todas as perguntas. A língua anterior a Babel, que reúne todos os homens.

    É preciso dizer que eles tinham perdido tudo, inclusive seu lugar de origem. Não restava mais nada da Tunísia francesa do meu pai, nada da Viena judaica da minha mãe. Ninguém com quem falar em pataouète ou em iídiche. Nem mesmo mortos num cemitério. Nada. Apagados do mapa, como Atlântida. Então eles tinham juntado as suas solidões e ido fincar raízes num espaço intersticial entre uma autoestrada e uma floresta, para ali construir a casa em que cresci, pomposamente batizada de A Propriedade — um nome que conferia àquele pedaço sinistro de terra o caráter inviolável e sagrado da Lei; uma espécie de garantia constitucional de que nunca mais iriam ser postos para fora. A Israel deles.

    Meus pais eram metecos, rastaqueras, estrangeiros. Raus. Com uma mão na frente e outra atrás. Como todos os da sua espécie, eles não tiveram muita escolha. Correr atrás de qualquer dinheiro, aceitar qualquer condição de trabalho ou então se meter desenfreadamente em esquemas, contando com uma comunidade de pessoas como eles. Não pensaram muito.

    Meu pai era presidente-diretor geral de uma empresa de transporte rodoviário, a Mondiale, cujo slogan era Por tudo, para tudo. Presidente-diretor geral, uma expressão que não se usa mais hoje em dia para designar uma atividade profissional, como em E o que o seu pai faz? Ele é presidente-diretor geral…, mas nos anos 70 se usava. Combinava com pato ao molho de laranja, gola alta de náilon amarelo com pantalonas e capas de tecido bordado para telefones fixos.

    Ele tinha feito fortuna enviando seus caminhões para os países ditos de merda, cujos nomes terminam em -ão, como Paquistão, Uzbequistão, Azerbaijão, etc. Para se candidatar a uma vaga na Mondiale, era preciso já ter estado na cadeia, pois, segundo meu pai, só um sujeito que tivesse ficado preso por pelo menos quinze anos aceitaria ficar trancafiado na cabine de um caminhão por milhares de quilômetros e defender sua carga como se fosse a própria vida.

    Ainda me vejo, como se fosse ontem, com um vestidinho azul-marinho de veludo e sapatos de verniz Froment-Leroyer numa festa de Natal, rodeada por uns sujeitos cheios de cicatrizes segurando pacotes coloridos e fofinhos com aquelas mãos enormes de estranguladores. A equipe administrativa da Mondiale não ficava para trás: era composta exclusivamente de compatriotas pieds-noirs do meu pai, homens tão desonestos quanto feios. Só Jacqueline, a secretária pessoal dele, dava um toque de estilo ao conjunto. Com um enorme coque bufante, no qual ela elegantemente prendia um diadema, essa filha de um condenado à morte durante as Purgas Legais tinha um ar classudo que se devia à sua juventude em Vichy.

    Esse grupo alegre e pouco recomendável, sobre o qual meu pai exercia um paternalismo romanesco, lhe permitia transportar nos seus comboios, com total opacidade, as cargas ditas adicionais. Foi assim que o transporte de base de morfina com seus amigos pieds-noirs da Córsega, e depois de armas e munições, tinha feito a fortuna da Mondiale e dos seus funcionários, regiamente pagos até o início dos anos 80. Paquistão, Irã, Afeganistão; não tenho nenhuma vergonha de dizer: meu pai foi o Marco Polo dos Trinta Anos Gloriosos, o homem que reabriu as rotas comerciais entre a Europa e o Oriente Médio.

    Qualquer crítica à localização da Propriedade era tomada pelos meus pais como uma agressão simbólica, de modo que nunca falávamos sobre qualquer aspecto negativo do lugar, por menor que fosse: o barulho ensurdecedor da estrada, que nos obrigava a gritar para nos ouvirmos, a poeira preta e pegajosa que se espalhava por todo lado, as vibrações que sacudiam as paredes ou o perigo extremo daquelas seis pistas, em que uma ação simples, como voltar para casa sem levar uma batida na traseira, podia ser considerada um verdadeiro prodígio.

    Minha mãe diminuía a velocidade uns trezentos metros antes do portão para poder entrar em primeira, com o pisca-alerta ligado, sob uma trovoada de buzinas. Meu pai, nas raras vezes que estava por lá, praticava com seu Porsche uma espécie de terrorismo do freio motor, fazendo seu V8 uivar ao reduzir de duzentos para dez por hora em alguns poucos metros e obrigando quem tivesse a infelicidade de estar atrás dele a dar guinadas assustadoras. Quanto a mim, é óbvio que nunca recebi nem uma única visita. Quando alguma amiga me perguntava onde eu morava, eu mentia o endereço. De todo modo, ninguém teria acreditado em mim.

    Minha imaginação infantil tinha nos transformado em seres à parte: o povo da estrada.

    Cinco notícias policiais espalhadas ao longo de trinta anos ajudaram a confirmar essa singularidade: em 1978, no número 27, um moleque de treze anos massacrou, com uma ferramenta de jardinagem, os pais e os quatro irmãos e irmãs enquanto eles dormiam. Perguntado sobre o motivo, ele respondeu que estava precisando de uma mudança. No 47, nos anos 80, ocorreu um caso particularmente sórdido de um idoso que foi mantido em cárcere privado e torturado pela própria família. Dez anos depois, no 12, abriram uma agência matrimonial que na verdade era uma rede de prostituição de meninas do Leste Europeu. No 18, encontraram um casal mumificado. E no 5, mais recentemente, um depósito de armas jihadista. Está tudo nos jornais, não fui eu que inventei.

    Por que todas essas pessoas decidiram morar naquele lugar?

    Para uma parte delas, incluindo meus pais, a resposta é simples: porque o dinheiro gosta de sombra, e há sombra para dar e vender na beira de uma autoestrada. Já os outros, foi a estrada que os deixou malucos.

    Um povo à parte, portanto, porque à mesa, quando ouvíamos pneus cantando, com os talheres suspensos no ar, ficávamos em silêncio. Seguia-se um barulho extraordinário de sucata sendo esmagada, depois uma calmaria marcante, uma espécie de disciplina do dobre fúnebre que os motoristas se impunham ao passarem ao lado da maçaroca de carne e ferragem em que tinham se transformado aquelas pessoas que, como eles, estavam indo para algum lugar.

    Quando isso acontecia na frente da nossa casa, nas proximidades do número 54, minha mãe ligava para o socorro e nós deixávamos a comida de lado para, como ela dizia, ir até o acidente. Pegávamos nossas cadeiras dobráveis e encontrávamos nossos vizinhos por lá. Isso costumava acontecer nos fins de semana, na altura do número 60, onde tinha sido aberta a casa noturna mais badalada da região, com sete ambientes. E quem diz casa noturna diz acidentes prodigiosos. É uma loucura a quantidade de gente caindo de bêbada capaz de se amontoar num carro para morrer dentro dele, arrastando consigo famílias felizes em férias que pegaram a estrada em plena madrugada só para poder amanhecer perto do mar.

    Assim, o povo da estrada presenciou bem de pertinho uma quantidade considerável de tragédias envolvendo jovens, velhos, cachorros, pedaços de cérebros e tripasE o que sempre me surpreendeu é nunca ter ouvido um grito sequer de todas essas vítimas. Quando muito um ai, ai, ai sussurrado baixinho por aquelas que conseguiam chegar cambaleando até nós.

    Durante o ano, meus pais se escondiam como ratos atrás de suas quatro paredes, entregando-se a cálculos tão arrevesados quanto vanguardistas de otimização fiscal, rastreando no seu modo de vida qualquer mínimo sinal exterior de riqueza, enganando, desse modo, o Leão, atraído por presas mais gordas.

    Mas nas férias, estando fora do território francês, nós vivíamos como bilionários em hotéis suíços ou italianos em Bürgenstock, Zermatt ou Ascona, junto de estrelas do cinema americano. Passávamos os natais no Winter Palace, em Luxor, ou no Danieli, em Veneza, e minha mãe voltava à vida.

    Assim que chegava, ela corria imediatamente para as butiques de luxo para comprar roupas, joias e perfumes, enquanto meu pai fazia sua coleta de envelopes craft abarrotados de dinheiro vivo. À noite, ele levava para a entrada do hotel o Thunderbird conversível branco que acompanhava sabe-se lá de que jeito as nossas andanças offshore. A mesma coisa com o Riva, que aparecia como que por um passe de mágica sobre as águas do Lago Lucerna ou do Grande Canal de Veneza.

    Ainda tenho muitas fotos dessas férias fitzgeraldianas, mas acho que duas delas sintetizam todas as outras.

    A primeira mostra minha mãe num vestido cor-de-rosa florido, posando perto de uma palmeira que se destaca como um jato de spray verde no céu de verão. Ela está com a mão erguida perto da testa para proteger da luz do sol seus olhos já debilitados.

    A outra é uma foto minha ao lado de Audrey Hepburn. Foi tirada num 1º de agosto, feriado nacional da Suíça, no Belvédère. Eu estou comendo uma enorme melba de morangos com chantili e calda e, enquanto meus pais estão na pista, dançando uma música de Shirley Bassey, explodem maravilhosos fogos de artifício, que se refletem no Lago Lucerna. Eu estou bronzeada e uso um vestido Liberty azul, estampado com casinhas de abelha, que realça o azul-Patience dos meus olhos, que é como meu pai tinha apelidado a cor deles.

    É um instante perfeito. Eu estou irradiando bem-estar, como uma pilha atômica.

    A atriz deve ter sentido essa felicidade imensa, porque sentou espontaneamente do meu lado para me perguntar o que eu queria ser quando crescesse.

    — Colecionadora de fogos de artifício.

    — Colecionadora de fogos de artifício! Mas como é que você quer colecionar uma coisa dessas?

    — Na minha cabeça. Eu vou viajar pelo mundo inteiro pra ver todos.

    — Você é a primeira colecionadora de fogos de artifício que eu conheço! Muito prazer.

    Aí ela chamou um dos amigos dela que era fotógrafo, porque queria eternizar aquele momento único. Mandou bater duas fotos. Uma para mim e outra para ela. Eu perdi e me esqueci completamente da minha, mas revi a dela por acaso num catálogo de leilão com a seguinte legenda: A pequena colecionadora de fogos de artifício, 1972.

    Essa foto tinha conseguido capturar aquilo que minha vida passada prometia ser: uma vida com um futuro muito mais deslumbrante que o que se desenrolou a partir daquele 1º de agosto.

    Depois de atravessar a Suíça inteira durante as férias para comprar um tailleur ou uma bolsa, na véspera da partida minha mãe cortava todas as etiquetas das roupas novas e despejava o conteúdo dos vidros de perfume em frascos de xampu, caso a inspeção alfandegária perguntasse com que dinheiro tínhamos comprado todas aquelas coisas.

    E por que decidiram me chamar de Patience?

    É que você nasceu de dez meses. Seu pai sempre disse que foi a neve que impediu ele de pegar o carro pra vir te ver depois do parto, mas a verdade é que, depois de uma espera tão longa, ele estava simplesmente súper frustrado por ter tido uma filha. E você era enorme… Cinco quilos… Um monstro… E feia de doer, com metade da cabeça achatada pelo fórceps… Quando finalmente conseguiram arrancar você de dentro do meu corpo, tinha muito sangue em volta de mim, como se eu tivesse pulado em cima de uma mina. Uma verdadeira carnificina! E tudo isso pra quê? Pra ter uma menina! É injusto demais!

    Tenho cinquenta e três anos. Meu cabelo é comprido e totalmente branco. Os fios ficaram brancos quando eu ainda era bem nova, como aconteceu com os do meu pai. Pintei por bastante tempo, porque tinha vergonha, aí um dia enchi o saco de ter que ficar cuidando das raízes e raspei a cabeça para deixar crescer com a cor natural. Parece que agora isso virou tendência. De todo modo, combina muito bem com meus olhos azul-Patience e contrasta cada vez menos com minhas rugas.

    Eu falo com a boca ligeiramente torta, o que faz com que o lado direito do meu rosto seja um pouco menos enrugado do que o esquerdo. A culpada disso é uma discreta hemiplegia decorrente daquele achatamento inicial. Isso me dá um ar meio suburbano que, somado ao meu penteado esquisito, não deixa de ser interessante. Tenho um físico robusto, com cinco quilos a mais por ter engordado trinta em cada uma das minhas duas gestações, quando deixei correr solta minha paixão por grandes bolos coloridos, frutas cristalizadas e sorvete. No trabalho, uso trajes monocromáticos, pretos, cinza ou grafite, com uma elegância sem afetação.

    Tomo o cuidado de estar sempre bem-arrumada para que meus cabelos brancos não me deixem parecendo uma velha beatnik. Isso não significa que eu queira ficar atraente; na minha idade, acho esse tipo de vaidade meio assustadoraNão, eu só quero que, quando me olharem, as pessoas exclamem: Meu Deus do céu, como essa mulher está bem… Cabeleireiro, manicure, esteticista, injeção de ácido hialurônico, luz pulsada, roupas bem cortadas, maquiagem de qualidade, creme diurno e noturno, sestaÉ que eu sempre tive uma concepção marxista da beleza. Por bastante tempo não tive condições financeiras para estar bonita e viçosa; agora que tenho, estou tirando o atraso. Vocês precisavam me ver neste exato momento, aqui na sacada deste belo hotel: praticamente a Heidi na sua montanha.

    Costumam dizer que eu tenho um gênio ruim, mas considero essa análise precipitada. É verdade que as pessoas me irritam rápido, porque eu acho elas lentas e, com frequência, desinteressantes. Quando, por exemplo, tentam me

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