Esaú e Jacó
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Joaquim Maria Machado de Assis
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Esaú e Jacó - Joaquim Maria Machado de Assis
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Lucio Feitosa - CRB-8/8803
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura brasileira 869.8992
2. Literatura brasileira 821.134.3(81)-34
Versão digital publicada em 2023
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Esta obra reproduz costumes e comportamentos da época em que foi escrita.
Sumário
Advertência
Coisas futuras!
Melhor de descer que de subir
A esmola da felicidade
A missa do coupé
Há contradições explicáveis
Maternidade
Gestação
Nem casal, nem general
Vista de Palácio
O juramento
Um caso único!
Esse Aires
A epígrafe
A lição do discípulo
Teste David cum Sibylla
Paternalismo
Tudo o que restrinjo
De como vieram crescendo
Apenas duas. – Quarenta anos. Terceira causa
A joia
Um ponto escuro
Agora um salto
Quando tiverem barbas
Robespierre e Luís XVI
Dom Miguel
A luta dos retratos
De uma reflexão intempestiva
O resto é certo
A pessoa mais moça
A gente Batista
Flora
O aposentado
A solidão também cansa
Inexplicável
Em volta da moça
A discórdia não é tão feia como se pinta
Desacordo no acordo
Chegada a propósito
Um gatuno
Recuerdos
Caso do burro
Uma hipótese
O discurso
O salmão
Musa, canta…
Entre um ato e outro
São Mateus, IV, 1-10
Terpsícore
Tabuleta velha
O tinteiro de Evaristo
Aqui presente
Um segredo
De confidências
Enfim, só!
A mulher é a desolação do homem
O golpe
Das encomendas
Matar saudades
Noite de 14
Manhã de 15
Lendo Xenofonte
Pare no D.
Tabuleta nova
Paz!
Entre os filhos
O basto e a espadilha
A noite inteira
De manhã!
Ao piano
De uma conclusão errada
A comissão
O regresso
Um eldorado
A alusão do texto
Provérbio errado
Talvez fosse a mesma!
Hospedagem
Visita ao marechal
Fusão, difusão, confusão…
Transfusão, enfim
Ai, duas almas…
Em São Clemente
A grande noite
O velho segredo
Três Constituições
Antes que me esqueça
Entre Aires e Flora
Não, não, não
O dragão
O ajuste
Nem só a verdade se deve às mães
Segredo acordado
Não ata nem desata
Gestos opostos
O terceiro
Retraimento
Um Cristo particular
O médico Aires
A título de ares novos
Duas cabeças
O caso embrulhado
Visão pede meia sombra
O quarto
A resposta
A realidade
Ambos quais?
Estado de sítio
Velhas cerimônias
Ao pé da cova
Que voa
Um resumo de esperanças
O primeiro mês
Uma Beatriz para dois
Consultório e banca
Troca de opiniões
De regresso
Posse das cadeiras
Coisas passadas, coisas futuras
Que anuncia os seguintes
Penúltimo
Último
Advertência
Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.
A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois. Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a matéria dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava neles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o próprio Aires, com o seu nome e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último por quê?
A hipótese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar à leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra história, escrita com um pensamento interior e único, através das páginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazê-la? Ele não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomática, e aposentou-se. Nos lazeres do ofício, escreveu o Memorial, que, aparado das páginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Petrópolis.
Tal foi a razão de se publicar somente a narrativa. Quanto ao título, foram lembrados vários, em que o assunto se pudesse resumir. Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a ideia de lhe dar estes dois nomes que o próprio Aires citou uma vez:
Esaú e Jacó
Dico, che quando l’anima mal nata…
Dante
Coisas futuras!
Era a primeira vez que as duas iam ao Morro do Castelo. Começaram de subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu clube, e era o que lhe bastava da metrópole e do mundo.
Natividade e Perpétua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o Morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitência, devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para elas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas há um donaire que se não perde, e não era vulgar naquelas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada à rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que ali iam. Uma crioula perguntou a um sargento: Você quer ver que elas vão à cabocla?
E ambos pararam a distância, tomados daquele invencível desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.
Com efeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o número da casa da cabocla, até que deram com ele. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada à aventura. Quiseram entrar depressa, mas esbarraram com dois sujeitos que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um deles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a adivinha.
– Perdem o seu tempo – concluiu furioso –, e hão de ouvir muito disparate…
– É mentira dele – emendou o outro rindo –; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.
Hesitaram um pouco; mas logo depois advertiram que as palavras do primeiro eram sinal certo da vidência e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia ser miserável, e então… Enquanto cogitavam passou fora um carteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham também vexame da opinião, como um devoto que se benzesse às escondidas.
Velho caboclo, pai da adivinha, conduziu as senhoras à sala. Esta era simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mistério ou incutisse pavor, nenhum petrecho simbólico, nenhum bicho empalhado, esqueleto ou desenho de aleijões. Quando muito um registro da Conceição colado à parede podia lembrar um mistério, apesar de encardido e roído, mas não metia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.
– Minha filha já vem – disse o velho. – As senhoras como se chamam?
Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão – porque a consulta era só de uma – com o número 1.012. Não há que pasmar do algarismo; a freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do costume, que é velho e velhíssimo. Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: "Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte"… A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram à janela.
A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpétua menos que Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possível. Não ponho aqui os seus gestos; imaginai que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cabocla não se demorou muito; ao cabo de três ou quatro minutos, o pai a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo.
– Entra, Bárbara.
Bárbara entrou, enquanto o pai pegou da viola e passou ao patamar de pedra, à porta da esquerda. Era uma criaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os cabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja borla era suprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco de sacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agudos, e neste último estado eram igualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação. Bárbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabelos cortados, por lhe haverem dito que bastava.
– Basta – confirmou Bárbara. – Os meninos são seus filhos?
– São.
– Cara de um é cara de outro.
– São gêmeos; nasceram há pouco mais de um ano.
– As senhoras podem sentar-se.
Natividade disse baixinho à outra que a cabocla era simpática
, não tão baixo que esta não pudesse ouvir também; e daí pode ser que ela, receosa da predição, quisesse aquilo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla foi sentar-se à mesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. Pôs os cabelos e os retratos defronte de si. Olhou alternadamente para eles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabelos, boca aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que acendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fumo concorda com o ofício. Fora, o pai roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do Norte:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho…
Enquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. Bárbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabelos em cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem a afetação que porventura aches nesta linha. Tais gestos não se poderiam contar naturalmente. Natividade não tirava os olhos dela, como se quisesse lê-la por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.
– Brigado?
– Brigado, sim, senhora.
– Antes de nascer?
– Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra?
Natividade, que não tivera a gestação sossegada, respondeu que efetivamente sentira movimentos extraordinários, repetidos, e dores, e insônias… Mas então que era? Brigariam por quê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou à volta da mesa, lenta, como sonâmbula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividi-los novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ela, cara e braços, ombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Enfim, parou, sentou-se exausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vivos e cálidos, que a mãe ficou pendente deles, e não se pôde ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse, ansiosa:
– Então? Diga, posso ouvir tudo.
Bárbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou à boca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos lábios dela e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta…
– Coisas futuras! – murmurou finalmente a cabocla.
– Mas, coisas feias?
– Oh! não! não! Coisas bonitas, coisas futuras!
– Mas isso não basta; diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ela sai; eu fico, diga-me a mim só… Serão felizes?
– Sim.
– Serão grandes?
– Serão grandes, oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir… Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, coisas futuras!
Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão:
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho,
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
Quebra coco, sinhá,
Lá no cocá,
Se te dá na cabeça,
Há de rachá;
Muito hei de me ri,
Muito hei de gostá,
Lelê, coco, naiá.
Melhor de descer que de subir
Todos os oráculos têm o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mais nada; bastou saber que as coisas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cinquenta mil-réis. Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dádivas de Creso à Pítia. Arrecadou os retratos e os cabelos, e as duas saíram, enquanto a cabocla ia para os fundos, à espera de outros. Já havia alguns fregueses à porta, com os números de ordem, e elas desceram rapidamente, escondendo a cara.
Perpétua compartia as alegrias da irmã, as pedras também, o muro do lado do mar, as camisas penduradas às janelas, as cascas de banana no chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da rua da Misericórdia para a de São José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cansaço. Natividade estava tão fora de si que, ao ouvir-lhe pedir: Para a missa das almas!
tirou da bolsa uma nota de dois mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia. A irmã chamou-lhe a atenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatório.
E seguiram lépidas para o coupé, que as esperava no espaço que fica entre a Igreja de São José e a Câmara dos Deputados. Não tinham querido que o carro as levasse até ao princípio da ladeira, para que o cocheiro e o lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava então da cabocla do Castelo, era o assunto da cidade; atribuíam-lhe um poder infinito, uma série de milagres, sortes, achados, casamentos. Se as descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa lá fosse. Ao vê-las dando a esmola ao irmão das almas, o lacaio trepou à almofada e o cocheiro tocou os cavalos, a carruagem veio buscá-las, e guiou para Botafogo.
A esmola da felicidade
– Deus lhe acrescente, minha senhora devota! – exclamou o irmão das almas ao ver a nota cair em cima de dois níqueis de tostão e alguns vinténs antigos. – Deus lhe dê todas as felicidades do Céu e da Terra, e as almas do purgatório peçam a Maria Santíssima que recomende a senhora dona a seu bendito filho!
Quando a sorte ri, toda a natureza ri também, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos especulativas, deu o irmão das almas aos dois mil-réis. A suspeita de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cérebro deste: foi alucinação rápida. Compreendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, enquanto elas entravam no carro:
– Aquelas duas viram passarinho verde, com certeza.
Sem rodeios, supôs que as duas senhoras vinham de alguma aventura amorosa, e deduziu isto de três fatos, que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de caluniador gratuito. O primeiro foi a alegria delas, o segundo o valor da esmola, o terceiro o carro que as esperava a um canto, como se elas quisessem realmente esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que ele tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir moças antes de servir às almas. Também não creias que fosse outrora rico e adúltero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus às suas amigas. Ni cet excès d’honneur, ni cette indignité. Era um pobre-diabo sem mais ofício que a devoção. Demais, não teria tido tempo; contava apenas vinte e sete anos.
Cumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que as almas nunca viram sair das mãos dele. Foi subindo a rua São José. Já não tinha ânimo de pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao cérebro, e agora mais frequente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa… Para a missa das almas!
gemeu à porta de uma quitanda e deram-lhe um vintém, – um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe dois vinténs, – o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.
E a nota sempre limpa, uns dois mil-réis que pareciam vinte. Não, não era falsa. No corredor pegou dela, mirou-a bem; era verdadeira. De repente, ouviu abrir a cancela em cima, e uns passos rápidos. Ele, mais rápido, amarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças; ficaram só os vinténs azinhavrados e tristes, o óbolo da viúva. Saiu, foi à primeira oficina, à primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:
– Para a missa das almas!
Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil-réis… Os dois mil-réis, dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.
Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada, a fim de ser entendido das pessoas que me leem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atrás de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: não tirou a nota a ninguém… a dona é que a pôs na bacia por sua mão… também ele era alma
… À porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul-escuro debruado de amarelo, não ouviu mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapéu roto e sebento; meteu vagarosamente a mão no bolso do colete, também roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapéu do mendigo, rápido, às escondidas, como quer o Evangelho. Eram dois vinténs; ficavam-lhe mil novecentos e noventa e oito réis. E o mendigo, como ele saísse depressa, mandou-lhe atrás estas palavras de agradecimento, parecidas com as suas:
– Deus lhe acrescente, meu senhor, e lhe dê…
A missa do coupé
Natividade ia pensando na cabocla do Castelo, na predição da grandeza e na notícia da briga. Tornava a lembrar-se que, de fato, a gestação não fora sossegada; mas só lhe ficava a sorte da glória e da grandeza. A briga lá ia, se a houve; o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a irmã sobre o que pensava da adivinha. Perpétua respondeu que bem, que acreditava, e ambas concordaram que ela parecia falar dos próprios filhos, tal era o entusiasmo. Perpétua ainda a repreendeu pelos cinquenta mil-réis dados em paga; bastavam vinte.
– Não faz mal. Coisas futuras!
– Que coisas serão?
– Não sei; futuras.
Mergulharam outra vez no silêncio. Ao