José
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José - Rubem Fonseca
1
"As memórias preservadas desde a infância e que carregamos durante nossa vida são talvez a nossa melhor educação, diz Alyosha Karamázov. E se apenas uma dessas boas memórias permanece em nosso coração, ela talvez venha a ser, um dia, o instrumento da nossa salvação.
Mas há quem pense o contrário do personagem de Dostoiévski, os que acreditam, como Joseph Brodsky, que a memória trai a todos, é uma aliada do esquecimento, é uma aliada da morte
.
Ao falar de sua infância José tem que recorrer à sua memória e sabe que ela o trai, pois muita coisa está sendo relembrada de maneira inexata, ou foi esquecida. Mas ele gostaria de concluir, ao fim dessas lembranças tumultuadas, que a memória pode ser uma aliada da vida. Sabe que todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras — o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo. Mas aqui, se alguma coisa foi esquecida, ele se esforçou para que nada fosse inventado. José cita Proust: a lembrança das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das coisas como elas foram.
Ele tenta dar uma ordem cronológica às suas lembranças, mas não consegue, nem acha necessário. Lembra que até os oito anos de idade seu pai, sua mãe e dois irmãos moravam em uma confortável casa localizada numa cidade do estado de Minas Gerais, mas ele não vivia ali. Durante aqueles oito anos de sua vida viveu em Paris. Não a Paris dos bulevares de Haussmann, de Longchamp, de Napoleão III, nem a Paris festeira de Hemingway, nem a do Beaubourg e do Quai d’Orsay, mas a Paris das vielas estreitas, do Pátio dos Milagres, de Richelieu, contada por Michel Zévaco e Ponson du Terrail. Essa parte da sua vida lhe é real, certamente ele passava mais tempo na companhia da pérfida princesa Fausta (ela era paciente; isto é que a fazia tão forte e temível
), do intrépido cavaleiro de Pardaillan e do prodigioso Rocambole do que com a sua família. (Os Três Mosqueteiros eram uma equipe, o que os tornava menos interessantes.) As narrativas desses autores fizeram-no íntimo de reis, papas, duques, cardeais, grandes inquisidores, espadachins formidáveis, princesas e estalajadeiras lindas, áulicos sicofantas e astuciosos bobos da corte. Essas pessoas o envolviam em golpes de estado, regicídios, fratricídios, homicídios, parricídios, genocídios, conluios criminosos, intrigas palacianas, envenenamentos, defenestrações, lutas de capa e espada e cenas de amor e altruísmo. José atravessava, embuçado numa capa negra, as ruas de Paris, frequentava as estalagens, as mansardas, os salões e os boudoirs de princesas, os gabinetes de cardeais e bispos poderosos e devassos; participava de intrigas políticas, traições, paixões, duelos, assassinatos; assistia à matança de hereges queimados em fogueiras por monges sinistros em meio ao entusiasmo enfurecido do populacho; enredava-se em aventuras amorosas; participava da ascensão e queda dos poderosos; testemunhava as humilhações e os sofrimentos dos fracos e dos miseráveis; convivia, nos castelos, com reis e rainhas de França, e nos porões da Bastilha com o Conde de Monte Cristo e o Homem da Máscara de Ferro. Comia o mesmo que aqueles aventureiros, uma omelete, uma empada, um pastelão, acompanhados de um Vouvray espumoso e crepitante
. Ele vivia aquela vida, a sua verdadeira vida.
Agora ele se lembra: os livros e os fascículos de Zévaco, de Du Terrail, de Alexandre Dumas lhe eram enviados periodicamente do Rio pela sua tia Natália, que era atriz de teatro, na capital do país.
2
José vagueia em suas lembranças. Ainda que sua mãe fizesse deliciosos pratos da terra dela — seu pai e sua mãe eram portugueses —, ele se imaginava degustando a comida dos espadachins, não obstante se deliciasse com as tripas à moda do Porto, o bacalhau com batatas, o cabrito assado no forno e as alheiras e os chouriços de carne de porco temperados com alho e vinho, curados num fumeiro aceso num galpão de chão de pedras, especialmente construído para essa finalidade num terreno atrás da sua casa. O vinho tinto maduro português, que seu pai lhe dava diluído com água e açúcar, ainda que fosse quase um suco de frutas, parecia-lhe bastante pertinente ao mundo da sua imaginação. (José supunha que o Vouvray fosse um tinto maduro e surpreendeu-se ao saber que era um branco do Loire.)
Ele também gostava do que o seu pai chamava de sopa de cavalo cansado, vinho com açúcar e pão. Sua mãe não bebia vinho, quando muito um cálice pequeno de licor ou de Porto, ou então uma taça de champanhe. Não era da boa tradição as mulheres tomarem vinho, ainda mais da maneira copiosa dos homens. (Jean-François Revel conta que na Antiguidade beber vinho era proibido às mulheres e que há relatos históricos de maridos que mataram as esposas por terem ido beber vinho às escondidas na adega.)
Apesar de viver
em Paris, José consegue relembrar episódios da sua existência familiar na cidade de Minas. Sua mãe dizia que ele aprendeu a ler sozinho aos quatro anos (provavelmente ao ver os seus irmãos mais velhos estudando), ainda que pronunciasse mal muitas palavras, pois aprendera a ler sem soletrar e as palavras para ele não tinham som, apenas significado, ou seja, como disse Saussure, não possuíam significante. A mãe acreditava que isso talvez explicasse a obsessão de José pela leitura, as noites que ele passava acordado lendo, e os dias também. A mãe não tinha conhecimento, é claro, da emocionante vida do filho em Paris, aquela que Zévaco e os outros inventavam para ele. Ela costumava arrumá-lo, vestia-o com um pimpão de veludo (era assim que chamava uma roupa inteiriça, que incluía a blusa e a calça em uma só peça) e colocava um laço de fita nos seus longos cabelos. José se olhava no espelho e saía do quarto, ia para os fundos da casa, subia no alto morro, que aliás se estendia por um longo terreno, e, chegando em uma de suas beiras, a menos alta, rolava por ela, de maneira que apenas o pimpão sofria os piores danos, na verdade ficava praticamente destruído. O laço de fita sumia. Depois de José fazer isso algumas vezes, a mãe desistiu de vesti-lo de pimpão de veludo e de colocar laço de fita na sua cabeça. Ele não se lembra de algum comentário de sua mãe, acredita que ela, sendo muito inteligente, entendeu que aquela era uma maneira de José declarar que não queria de forma alguma usar aquele vestuário.
José tem até hoje uma foto, em que a mãe e o pai estão de pé, tendo ao lado os dois filhos mais velhos, e ele está sentado num banquinho, de pimpão e laço de fita na cabeça; a mãe tem a mão colocada sobre o ombro de José, como quem diz fica quieto, não vá fugir para rolar o morro. Seu pai está meio de lado, de braços cruzados, vestido com