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José
José
José
E-book99 páginas1 hora

José

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Sobre este e-book

José, personagem que dá título ao mais recente livro de Rubem Fonseca, aprendeu a ler sozinho aos quatro anos e logo se tornou um verdadeiro devorador de livros. Primeiro foram os folhetins de capa e espada e os pockets de sebo — histórias policiais, em sua grande maioria — que a tia lhe mandava pelo correio. Depois, com a mudança para o Rio de Janeiro, seu repertório aumentou consideravelmente, pois se tornou assíduo frequentador da Biblioteca Nacional, da qual, para sua sorte, era vizinho. E havia ainda as livrarias ali do centro mesmo, onde José lia em pé as novidades recém-lançadas.José precisou começar a trabalhar cedo porque sua família ficou pobre de um dia para o outro. Nem por isso sua vida deixou de ser uma aventura repleta de descobertas. O pequeno entregador da fábrica de artefatos de couro descobriu a cidade grande; o auxiliar de escrita que cursava o ginasial noturno descobriu as mulheres; o estudante de direito e futuro advogado criminalista redescobriu as tramas e os personagens do universo policial. Tudo isso na companhia da velha Underwood, a máquina de escrever com teclado americano em que ensaiava suas primeiras histórias sem nenhum acento gráfico.Esses e outros tantos elementos vão tecendo os fios das deliciosas memórias de José. Mas é bom que se saiba, como diz Joseph Brodsky, que "a memória trai a todos". José sabe disso, aprendeu com Proust que "a lembrança das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das coisas como elas foram".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de out. de 2014
ISBN9788520940167
José

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    José - Rubem Fonseca

    1

    "As memórias preservadas desde a infância e que carregamos durante nossa vida são talvez a nossa melhor educação, diz Alyosha Karamázov. E se apenas uma dessas boas memórias permanece em nosso coração, ela talvez venha a ser, um dia, o instrumento da nossa salvação.

    Mas há quem pense o contrário do personagem de Dostoiévski, os que acreditam, como Joseph Brodsky, que a memória trai a todos, é uma aliada do esquecimento, é uma aliada da morte.

    Ao falar de sua infância José tem que recorrer à sua memória e sabe que ela o trai, pois muita coisa está sendo relembrada de maneira inexata, ou foi esquecida. Mas ele gostaria de concluir, ao fim dessas lembranças tumultuadas, que a memória pode ser uma aliada da vida. Sabe que todo relato autobiográfico é um amontoado de mentiras — o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo. Mas aqui, se alguma coisa foi esquecida, ele se esforçou para que nada fosse inventado. José cita Proust: a lembrança das coisas passadas não é necessariamente a lembrança das coisas como elas foram.

    Ele tenta dar uma ordem cronológica às suas lembranças, mas não consegue, nem acha necessário. Lembra que até os oito anos de idade seu pai, sua mãe e dois irmãos moravam em uma confortável casa localizada numa cidade do estado de Minas Gerais, mas ele não vivia ali. Durante aqueles oito anos de sua vida viveu em Paris. Não a Paris dos bulevares de Haussmann, de Longchamp, de Napoleão III, nem a Paris festeira de Hemingway, nem a do Beaubourg e do Quai d’Orsay, mas a Paris das vielas estreitas, do Pátio dos Milagres, de Richelieu, contada por Michel Zévaco e Ponson du Terrail. Essa parte da sua vida lhe é real, certamente ele passava mais tempo na companhia da pérfida princesa Fausta (ela era paciente; isto é que a fazia tão forte e temível), do intrépido cavaleiro de Pardaillan e do prodigioso Rocambole do que com a sua família. (Os Três Mosqueteiros eram uma equipe, o que os tornava menos interessantes.) As narrativas desses autores fizeram-no íntimo de reis, papas, duques, cardeais, grandes inquisidores, espadachins formidáveis, princesas e estalajadeiras lindas, áulicos sicofantas e astuciosos bobos da corte. Essas pessoas o envolviam em golpes de estado, regicídios, fratricídios, homicídios, parricídios, genocídios, conluios criminosos, intrigas palacianas, envenenamentos, defenestrações, lutas de capa e espada e cenas de amor e altruísmo. José atravessava, embuçado numa capa negra, as ruas de Paris, frequentava as estalagens, as mansardas, os salões e os boudoirs de princesas, os gabinetes de cardeais e bispos poderosos e devassos; participava de intrigas políticas, traições, paixões, duelos, assassinatos; assistia à matança de hereges queimados em fogueiras por monges sinistros em meio ao entusiasmo enfurecido do populacho; enredava-se em aventuras amorosas; participava da ascensão e queda dos poderosos; testemunhava as humilhações e os sofrimentos dos fracos e dos miseráveis; convivia, nos castelos, com reis e rainhas de França, e nos porões da Bastilha com o Conde de Monte Cristo e o Homem da Máscara de Ferro. Comia o mesmo que aqueles aventureiros, uma omelete, uma empada, um pastelão, acompanhados de um Vouvray espumoso e crepitante. Ele vivia aquela vida, a sua verdadeira vida.

    Agora ele se lembra: os livros e os fascículos de Zévaco, de Du Terrail, de Alexandre Dumas lhe eram enviados periodicamente do Rio pela sua tia Natália, que era atriz de teatro, na capital do país.

    2

    José vagueia em suas lembranças. Ainda que sua mãe fizesse deliciosos pratos da terra dela — seu pai e sua mãe eram portugueses —, ele se imaginava degustando a comida dos espadachins, não obstante se deliciasse com as tripas à moda do Porto, o bacalhau com batatas, o cabrito assado no forno e as alheiras e os chouriços de carne de porco temperados com alho e vinho, curados num fumeiro aceso num galpão de chão de pedras, especialmente construído para essa finalidade num terreno atrás da sua casa. O vinho tinto maduro português, que seu pai lhe dava diluído com água e açúcar, ainda que fosse quase um suco de frutas, parecia-lhe bastante pertinente ao mundo da sua imaginação. (José supunha que o Vouvray fosse um tinto maduro e surpreendeu-se ao saber que era um branco do Loire.)

    Ele também gostava do que o seu pai chamava de sopa de cavalo cansado, vinho com açúcar e pão. Sua mãe não bebia vinho, quando muito um cálice pequeno de licor ou de Porto, ou então uma taça de champanhe. Não era da boa tradição as mulheres tomarem vinho, ainda mais da maneira copiosa dos homens. (Jean-François Revel conta que na Antiguidade beber vinho era proibido às mulheres e que há relatos históricos de maridos que mataram as esposas por terem ido beber vinho às escondidas na adega.)

    Apesar de viver em Paris, José consegue relembrar episódios da sua existência familiar na cidade de Minas. Sua mãe dizia que ele aprendeu a ler sozinho aos quatro anos (provavelmente ao ver os seus irmãos mais velhos estudando), ainda que pronunciasse mal muitas palavras, pois aprendera a ler sem soletrar e as palavras para ele não tinham som, apenas significado, ou seja, como disse Saussure, não possuíam significante. A mãe acreditava que isso talvez explicasse a obsessão de José pela leitura, as noites que ele passava acordado lendo, e os dias também. A mãe não tinha conhecimento, é claro, da emocionante vida do filho em Paris, aquela que Zévaco e os outros inventavam para ele. Ela costumava arrumá-lo, vestia-o com um pimpão de veludo (era assim que chamava uma roupa inteiriça, que incluía a blusa e a calça em uma só peça) e colocava um laço de fita nos seus longos cabelos. José se olhava no espelho e saía do quarto, ia para os fundos da casa, subia no alto morro, que aliás se estendia por um longo terreno, e, chegando em uma de suas beiras, a menos alta, rolava por ela, de maneira que apenas o pimpão sofria os piores danos, na verdade ficava praticamente destruído. O laço de fita sumia. Depois de José fazer isso algumas vezes, a mãe desistiu de vesti-lo de pimpão de veludo e de colocar laço de fita na sua cabeça. Ele não se lembra de algum comentário de sua mãe, acredita que ela, sendo muito inteligente, entendeu que aquela era uma maneira de José declarar que não queria de forma alguma usar aquele vestuário.

    José tem até hoje uma foto, em que a mãe e o pai estão de pé, tendo ao lado os dois filhos mais velhos, e ele está sentado num banquinho, de pimpão e laço de fita na cabeça; a mãe tem a mão colocada sobre o ombro de José, como quem diz fica quieto, não vá fugir para rolar o morro. Seu pai está meio de lado, de braços cruzados, vestido com

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