Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

A partir de $11.99/mês após o período de teste gratuito. Cancele quando quiser.

Agosto
Agosto
Agosto
E-book421 páginas5 horas

Agosto

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

1º de agosto de 1954, Rio de Janeiro, capital da República. Enquanto no edifício Deauville um empresário é assassinado, outro crime é planejado no Palácio do Catete, sede do governo federal. Gregório Fortunato, o Anjo Negro, prepara um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, opositor ao governo de Getúlio Vargas. Essa tentativa frustrada de assassinato causará uma das maiores reviravoltas da história do Brasil, culminando com o suicídio do presidente. Enquanto o país se divide entre fanáticos contra e a favor do governo de Getúlio, o comissário de polícia Alberto Mattos tenta desvendar o crime do edifício Deauville. Mattos começa a suspeitar de ligações entre o caso que investiga e o atentado a Carlos Lacerda, como se, por um momento, a vida de um homem comum e a da nação se confundissem.Um dos maiores sucessos de crítica de Rubem Fonseca, Agosto nos propõe uma pergunta: em que medida a história de uma pessoa e a história de um país se determinam, se diferenciam e se assemelham? Ao misturar, com maestria, história e ficção, Rubem Fonseca demonstra que a resposta a essa pergunta, que não permite saídas fáceis, se encontra apenas na boa literatura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mai. de 2011
ISBN9788522011513
Agosto

Leia mais títulos de Rubem Fonseca

Autores relacionados

Relacionado a Agosto

Ebooks relacionados

Thriller criminal para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Agosto

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Agosto - Rubem Fonseca

    Copyright © 1990 by Rubem Fonseca

    Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

    EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.

    Rua Candelária, 60 — 7o andar — Centro — 20091-020

    Rio de Janeiro — RJ — Brasil

    Tel.: (21) 3882-8200

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

    F747a

    12. ed.

    Fonseca, Rubem, 1925-2020

       Agosto / Rubem Fonseca ; prefácio Patrícia Melo. - 12. ed. - Rio de Janeiro :

    Nova Fronteira, 2020.

       ISBN 9788522011513

       1. Ficção brasileira. I. Melo, Patrícia. II. Título.

    20-63569                        

    CDD: 869.3

                                             CDU: 82-3(81)

    Leandra Felix da Cruz Candido - Bibliotecária - CRB-7/6135

    UMA TRAGÉDIA CHAMADA BRASIL

    PATRÍCIA MELO

    Seria redutor, a meu ver, pensar no romance Agosto, de Rubem Fonseca, obra fundamental da nossa literatura, exclusivamente a partir do seu valor histórico. Afinal, a rigorosa pesquisa de documentos e exame de jornais da época sobre os eventos que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas encontrada na sua narrativa é apenas instrumental para que Alberto Mattos, o delegado protagonista da trama, emergindo da realidade que o deputado Carlos Lacerda chamou de mar de lama, retrate o verdadeiro éthos de uma cultura política predatória e inoperante que há séculos é dominante no nosso país.

    E seria correto rotular Agosto como um romance policial?

    Vejamos mais de perto. Estamos em 1954. Precisamente no mês de agosto. O cenário é complexo. Mais alguns dias, a turba histérica que pede o afastamento de Getúlio Vargas estará chorando sua morte.

    No andar mais baixo da nossa pirâmide social, um segurança do Senado está almoçando um lombinho de porco, com farofa, com um investigador policial num restaurante pé-sujo do Rio de Janeiro. Não muito longe dali, no topo da esfera social, um político corrupto conversa com amigos empresários, que há décadas se beneficiam de esquemas escusos. O assunto de ambos os grupos é o mesmo: o comissário Alberto Mattos que, na esteira da investigação do recente atentado da rua Tonelero ­— que matou o major da aeronáutica Rubens Vaz e que por um triz não vitimou o deputado Carlos Lacerda —, tem tirado o sono de muita gente do alto escalão do governo.

    Diz o investigador: O comissário Mattos é maluco. Maluco mesmo, desse tipo que fala sozinho e rasga dinheiro.

    É fato que Alberto Mattos, personagem fictício que muita gente acredita ser o alter ego de Rubem Fonseca, se mostra tão estranho à cultura da corporação policial da década de 1950 quanto o seria na de hoje. Afinal, trata-se de um policial que rechaça a prática da tortura, chuta a bunda de contraventores, indigna-se com homem que bate em mulher, respeita os direitos humanos, é intolerante com a extorsão e o abuso de poder, ao mesmo tempo que é tolerante com nossa diversidade religiosa.

    Pode-se até mesmo afirmar que ele rasgaria dinheiro. Caso o tivesse.

    Mas não se pode dizer que ele seja maluco. Na realidade, a sanidade e a lucidez deste personagem são tão estruturais na tentativa do autor de compreender o Brasil daquela época, quanto instrumentais para nós, sortudos leitores, para entender o Brasil atual.

    Alberto Mattos é o tipo de herói que tem mais a ver com Stephen Dedalus, do romance Ulisses, de James Joyce, do com aqueles detetives da escola clássica do romance noir, como Poirot, Maigret ou Sherlock Holmes, da qual parte da crítica sempre insistiu Rubem Fonseca ser um legítimo representante.

    Longe disso, o anti-herói de Rubem é o brasileiro comum, um herói do dia a dia, que consegue sobreviver, apesar do Brasil, apesar da corrupção, apesar dos desmandos, do desrespeito.

    Não é sensual, nem mulherengo. Vive mal, não fuma, não bebe, não tem vícios e trata sua úlcera crônica, como diria Nelson Rodrigues, a pires de leite e pastilhas de Pepsamar. A ópera, esse gênero que quase sempre tem a tragédia em seu bojo, compõe a trilha sonora perfeita para o seu desencanto.

    Antes de se tornar delegado, passou três anos advogando para pobres e foi apenas a necessidade de pagar as próprias contas que o levaram ao cargo. Mais? Mattos é incorruptível e tem um único objetivo na vida: fazer o seu trabalho bem feito. Não por moralismo ou idealismo, mas para conseguir dar algum sentido à sua vida sem sentido. Não há nenhuma paixão ou glamorização do seu ofício de homem da lei, e é aqui que mais uma vez Rubem se distancia estruturalmente das escolas do romance policial.

    Seu detetive não será bem-sucedido na empreitada de realizar justiça. Cometerá erros graves. Descobrir a verdade não lhe trará nenhum alívio. Não viverá outras aventuras. Nada mais diametralmente oposto às sinas de Sam Spade, Marlowe, e tantos outros heróis do roman noir.

    Portanto, da mesma forma que o autor joga fora as fórmulas prontas de romance histórico, inserindo nele uma dose extraordinária de fabulação e recriando o que Jorge Luis Borges chamaria de memória inventiva, Rubem Fonseca também abre mão dos clichês e regras do romance policial, inventando uma dicção e estilo próprios, totalmente urbanos, vigorosos, impactantes, nos quais está presente a variedade imensa de patologias e contradições que refletem o Brasil contemporâneo.

    Precisamente por este aspecto Rubem Fonseca é uma referência obrigatória para minha geração.

    Até sua chegada, nossa tradição literária era basicamente regional. A literatura urbana era uma literatura de exceção. A cidade que eventualmente aparecia nas nossas histórias era provinciana, sem a violência desvairada que hoje a caracteriza.

    Rubem nos trouxe a cidade tal como a vemos hoje, com seus miseráveis, sua pobreza, sua solidão e desespero. E na galeria de pobres-coitados que habita sua obra, Mattos talvez seja um dos personagens mais pungentes, exatamente porque nele retrata a nossa impotência diante de uma tragédia chamada Brasil.

    Finora abbiamo parlato di un paradigma indiziario (e suoi sinonimi) in senso lato. É venuto il momento di disarticolarlo. Un conto è analizzare orme, astri, feci (ferine o umane), catarri, cornee, pulsazioni, campi di neve o ceneri di sigaretta; um altro è analizzare scritture o dipinti o discorsi. La distinzione tra natura (inanimata o vivente) e cultura è fondamentale — certo piú di quella, infinitamente piú superficiale e mutevole, tra le singole discipline.

    Carlo Ginzburg,

    Miti emblemi spie: morfologia e storia

    History, Stephen said, is a nightmare

    from which I am trying to awake.

    James Joyce,

    Ulysses

    1

    O porteiro da noite do edifício Deauville ouviu o ruído dos passos furtivos descendo as escadas. Era uma hora da madrugada e o prédio estava em silêncio.

    Então, Raimundo?

    Vamos esperar um pouco, respondeu o porteiro.

    Não vai chegar mais ninguém. Já está todo mundo dormindo.

    Mais uma hora.

    Amanhã tenho que acordar cedo.

    O porteiro foi até a porta de vidro e olhou a rua vazia e silenciosa.

    Está bem. Mas não posso demorar muito.

    No oitavo andar.

    A morte se consumou numa descarga de gozo e de alívio, expelindo resíduos excrementícios e glandulares — esperma, saliva, urina, fezes. Afastou-se, com asco, do corpo sem vida sobre a cama ao sentir seu próprio corpo poluído pelas imundícies expulsas da carne agônica do outro.

    Foi ao banheiro e lavou-se com cuidado sob o chuveiro do box. Uma dentada no seu peito sangrava um pouco. No armário da parede havia iodo e algodão, que serviram para um curativo rápido.

    Apanhou sua roupa sobre a cadeira e vestiu-se, sem olhar para o morto, ainda que tivesse a aguda consciência da presença do mesmo sobre a cama.

    Não havia ninguém na portaria quando saiu.

    O homem conhecido pelos seus inimigos como Anjo Negro entrou no pequeno elevador, que ocupou por inteiro com seu corpo volumoso, e saltou no terceiro pavimento do Palácio do Catete. Andou cerca de dez passos no corredor em penumbra e parou em frente a uma porta. Dentro, no modesto quarto, vestido com um pijama de listas, sentado na cama com os ombros curvados, os pés a alguns centímetros do assoalho, estava o homem que ele protegia, um velho insone, pensativo, alquebrado, de nome Getúlio Vargas.

    O Anjo Negro, depois de tentar ouvir se algum ruído vinha de dentro do quarto, recuou, apoiando as costas numa das colunas coríntias simetricamente dispostas na balaustrada tetragonal de ferro que cercava o vão central do hall do palácio, àquela hora silencioso e escuro. Deve estar dormindo, pensou.

    Depois de certificar-se que não havia anormalidades no andar residencial do palácio, Gregório Fortunato, o Anjo Negro, chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas, desceu as escadas em direção ao gabinete da assessoria militar, no térreo, verificando, no caminho, se os guardas mantinham-se nos seus postos, se o Palácio das Águias estava em paz.

    O major Dornelles conversava com outro assessor, o major Fitipaldi, quando Gregório entrou no gabinete.

    O chefe da guarda pessoal, depois de examinar com os dois assessores militares o plano que a segurança adotaria na ida do presidente ao Jockey Club no domingo, dia do Grande Prêmio Brasil, foi para seu quarto.

    Tirou o revólver e o punhal que sempre carregava, colocou-os sobre a mesinha e sentou-se na cama, onde havia vários jornais espalhados.

    Leu as manchetes, apreensivo. Aquele ano começara mal. Logo em fevereiro, oitenta e dois coronéis, apoiados pelo então ministro da Guerra, general Ciro do Espírito Santo Cardoso, haviam divulgado um manifesto golpista e reacionário criticando as greves dos trabalhadores e falando ardilosamente no custo de vida. O presidente demitira o ministro traidor, sem ter outro general de confiança para colocar no seu lugar. Gregório sabia que o presidente não acreditava na lealdade de mais ninguém das Forças Armadas desde que o general Cordeiro de Farias, que sempre comera pela mão dele como um cachorrinho, o apunhalara pelas costas em 1945. Mas acabara tendo de colocar no Ministério da Guerra um homem em quem também não confiava, o general Zenóbio da Costa, aceito sem restrições pelos militares por ter sido um dos comandantes da Força Expedicionária Brasileira que lutara ao lado dos americanos na guerra. Para apaziguar os milicos fora obrigado a exonerar do Ministério do Trabalho seu amigo Jango Goulart. Isso tudo acontecera antes que fevereiro acabasse. Sim, fora um mau começo de ano, pensou Gregório. Em maio os golpistas haviam tentado o impeachment do presidente e o traidor João Neves ajudara a difundir falsidades sobre um acordo secreto entre Perón e Getúlio. Gregório não se esquecia do que João Neves lhe dissera, ainda ministro das Relações Exteriores: Não meta o nariz aonde não é chamado, seu negro sujo, tudo porque ele, Gregório, tentara estabelecer um contato direto entre o presidente e o emissário do presidente Perón da Argentina. Ainda em maio, o enterro de um jornalista, morto a socos por um policial conhecido como Coice de Mula, fora usado como pretexto para uma passeata contra o governo pelos seguidores fanáticos do Corvo, os lanterneiros, um bando de golpistas que se reuniam no chamado Clube da Lanterna, apoiados pelas mal-amadas, uma associação de donas de casa histéricas. Em julho, a canalha udenista, sempre com propósitos golpistas, inventara uma conspiração comunista. Por trás de tudo avultava a figura sinistra do Corvo.

    Sobre a cama estava um exemplar de Última Hora, o único jornal importante que defendia o presidente. Na primeira página, uma caricatura de Carlos Lacerda. O artista, acentuando os óculos de aros escuros e o nariz aquilino do jornalista, desenhara um corvo sinistro trepado num poleiro. O Anjo Negro levantou o braço e cravou com força o punhal no desenho. A lâmina varou o jornal e os lençóis, perfurou o colchão, emitindo um som arrepiante ao raspar em uma das molas de aço.

    Gregório colocou o revólver de volta no coldre da cintura e o punhal na bainha de couro. Vestiu o paletó e saiu do seu quarto.

    Ao amanhecer daquele dia l.o de agosto de 1954, o comissário de polícia Alberto Mattos, cansado e com dor de estômago, colocou dois comprimidos de antiácido na boca. Enquanto mastigava os comprimidos, folheou o livro de direito civil que estava sobre a mesa. Sempre fora péssimo aluno de direito civil na faculdade. Tinha que estudar muito aquela matéria se quisesse passar no concurso para juiz em novembro. Ligou o radinho que sempre tinha ao seu lado. Girou o seletor e parou ao ouvir uma voz dizendo: A televisão foi-me negada pelo senhor Assis Chateaubriand, a quem hoje o governo se alia com a mesma desenvoltura e cinismo com que ontem mandava insultá-lo como traidor da pátria.

    Bateram na porta.

    Entra, disse o comissário.

    O investigador Rosalvo, que trabalhava nos plantões com Mattos, entrou no gabinete. O comissário acreditava que Rosalvo não recebia suborno dos bicheiros nem dos espanhóis que exploravam o lenocínio. Na verdade, porém, Rosalvo era um come-quieto, na gíria policial um tira que se corrompia de maneira dissimulada, sem os colegas saberem.

    Ouvindo o Lacerda, doutor? O mar de lama cada vez aumenta mais. Viu a palavra que o homem inventou? Kakistocracia — governo pelos piores elementos da sociedade. Os kakistocratas vão perder as eleições. Sarazate vai se eleger no Ceará, Meneghetti no Rio Grande do Sul, Pereira Pinto no Rio, Cordeiro de Farias em Pernambuco. O povo não confia mais em Getúlio. O senhor viu o esquema que o Etelvino armou para as eleições presidenciais? Uma chapa Juarez-Juscelino, uma barbada.

    O que você quer?

    Chegou o café dos presos, disse Rosalvo, o senhor pediu para avisar.

    No xadrez, em duas celas com capacidade prevista para oito presos, havia trinta homens. As celas de todas as delegacias da cidade estavam com excesso de presos aguardando vagas nos presídios, uns à disposição da Justiça esperando julgamento, outros já condenados.

    Mattos considerava aquela situação ilegal e imoral e tentara fazer um movimento grevista no Departamento Federal de Segurança Pública: os policiais parariam de trabalhar até que todos esses presos fossem transferidos para penitenciárias. O comissário não conseguira apoio dos colegas. As penitenciárias também estavam lotadas, e a greve proposta por Mattos não teria nenhuma consequência prática, causaria apenas uma repercussão negativa. Mattos afirmava que era esse o objetivo preliminar da greve, chamar a atenção da opinião pública e forçar as autoridades a procurar uma solução para o problema. Uma utopia desvairada, dissera o comissário Pádua, você errou de profissão.

    Os assessores jurídicos do

    DFSP

    haviam recebido ordens para encontrar uma maneira legal de exonerar Mattos, mas o máximo que conseguiram foi suspendê-lo por trinta dias. O delegado Ramos, titular do distrito onde Mattos trabalhava, evitara, através de suas amizades na Chefatura, que ele fosse transferido para o distrito de Brás de Pina, como os corruptos do gabinete queriam, com o objetivo de puni-lo. Esse distrito, além de distante, tinha instalações precárias e apresentava o maior índice de ocorrências policiais, logo abaixo do 2.o Distrito, de Copacabana.

    Mas Ramos não queria proteger o comissário; o delegado usava o nome de Mattos para ameaçar os banqueiros. Certa ocasião Rosalvo, o investigador, surpreendera Ramos dizendo intimidativamente a um banqueiro do bicho: Eu mando o comissário Alberto Mattos fechar todos os seus pontos, ouviu?! Rosalvo, quando o banqueiro se retirou, dissera para o delegado: O doutor Alberto Mattos mata o senhor se descobrir que está usando o nome dele. Ramos ficou pálido. Como é que ele pode saber? Os bicheiros não são malucos de contar. Só se for você. Rosalvo respondera: Eu? Doutor, macaco inteligente não mete a mão em cumbuca.

    Toda delegacia tinha um tira que recebia dinheiro dos bicheiros da jurisdição para distribuir com os colegas. Esse policial era conhecido como apanhador. O dinheiro dos bicheiros — o levado — variava de acordo com o movimento dos pontos e a ganância do delegado. Rosalvo, como um bom come-quieto, não entrava no rateio do levado pois recebia por fora diretamente dos bicheiros; estes queriam ter as boas graças do assistente do comissário Mattos; a honestidade do comissário era considerada pelos contraventores como uma ameaçadora manifestação de orgulho e demência.

    Policiais lotados no gabinete do chefe de polícia também participavam desse conchavo venal. Periodicamente, algum centro de apuração do jogo, conhecido como fortaleza, era invadido pela polícia, provocando sempre a mesma manchete:

    POLÍCIA ESTOURA FORTALEZA DO BICHO

    . Era uma forma de satisfazer os escrúpulos de alguns raros segmentos da opinião pública; a maioria da população praticava ostensivamente essa modalidade de contravenção. Jornalistas, juízes, funcionários graduados do Ministério da Justiça, de cuja estrutura o Departamento Federal de Segurança Pública fazia parte, também eram subornados pelos banqueiros. A Delegacia Especializada de Costumes, que tinha como uma de suas principais finalidades a repressão ao jogo proibido, era a que mais suborno recebia.

    Na madrugada desse l.o de agosto, Zaratini, o mordomo do palácio, que costumava acordar cedo, ao abrir uma das janelas que dava para o jardim, viu Gregório sentado num banco, perto do pequeno chafariz de mármore. O chefe da guarda, ao ouvir o barulho da janela sendo aberta, olhou para cima e viu o mordomo. Sem responder ao cumprimento que Zaratini lhe fez com a cabeça, Gregório levantou-se e caminhou em direção ao prédio do alojamento da guarda pessoal, anexo ao palácio. Eram cinco da manhã.

    Gregório bateu na porta do quarto onde dormia o cozinheiro Manuel. Com cara de sono, Manuel abriu a porta.

    Me prepara um chimarrão bem quente.

    Gregório sentou-se a uma mesa no refeitório vazio. Manuel trouxe o chimarrão. Nesse instante chegou Climério Euribes de Almeida, integrante da guarda pessoal do presidente e compadre de Gregório. Saíra de sua casa, num subúrbio distante, ainda de madrugada para poder chegar na hora.

    Alguma ordem, chefe?

    Venha para minha sala, disse Gregório, ao perceber a proximidade de Manuel, que arrumava uma mesa ao lado. Não queria conversar aquele assunto na presença de outros, o lacerdismo era como uma doença contagiosa, pior do que sífilis ou gonorreia, ele não se surpreenderia se houvesse alguém infectado na guarda.

    A sós na sala de Gregório, com a porta trancada:

    Que diabo? Onde está o tal homem de confiança? Devíamos fazer o serviço em julho e já estamos em agosto.

    Gregório estava cansado de esperar que alguma vítima das calúnias do Corvo fizesse alguma coisa. Diziam-se todos amigos do presidente, mas além de xingar o Corvo num falatório estéril, o máximo que faziam era uma bobagem como a do filho do Oswaldo Aranha, que com uma arma na mão dera apenas um soco na cara do difamador; podendo matar o Corvo contentara-se em quebrar-lhe os óculos. Nenhum deles queria sacrificar a vidinha confortável que levavam à custa do presidente, bebendo uísque nas boates e andando com as putas. Daqueles chaleiras covardes não se podia mesmo esperar grande coisa. Todos haviam enriquecido no governo, mas poucos eram gratos ao presidente.

    Climério, nervoso: Deixa comigo, chefe.

    Na verdade, Climério não tinha homem nenhum de confiança para fazer o trabalho. O chefe não queria que fosse alguém ligado ao palácio e muito menos da guarda pessoal, e a única pessoa que encontrara, um sujeito chamado Alcino, um carpinteiro desempregado, amigo do alcaguete Soares, não era, certamente, uma pessoa qualificada. Alguns dias atrás, Climério fora com Soares e Alcino a um comício do Corvo em Barra Mansa. O carro de Soares onde viajavam quebrara e eles chegaram atrasados ao comício. O homem é esse aí, dissera Climério, mostrando Lacerda que discursava. Alcino hesitara ao ver que Lacerda não era um pilantra igual a Naval, um sujeito que Soares lhe pedira para matar por desconfiar que era amante de sua mulher Nelly. Naval estava parado na estação da Pavuna; Alcino atirou e matou um desconhecido que estava próximo de Naval, que não foi atingido. Climério estava convicto de que Alcino não servia para aquela empreitada, mas, para não perder a confiança do chefe, ao voltar para o Rio não lhe relatou o fiasco de Barra Mansa. Conquistara a confiança de Gregório quando lhe dissera os nomes dos capangas de Lacerda, todos, ou quase todos, majores da Aeronáutica: Fontenelle, Borges, Del Tedesco, Vaz. Havia também um tal de Carrera, que Climério acreditava ser do Exército, e um Balthazar, da Marinha. Eram lacerdistas doentes e portavam armas de grosso calibre. Então o Anjo Negro dissera que se os capangas do Corvo usavam 45, o homem escolhido por ele, Climério, teria que fazer o mesmo. Chefe, não se preocupe. Deixa comigo, respondera Climério.

    Agora, passando os dedos nas marcas de varíola do rosto, o que sempre fazia quando estava nervoso, repetiu a mesma coisa: Chefe, deixa comigo.

    Mas anda depressa, disse Gregório.

    Vou ver o homem imediatamente. Talvez Alcino bem-instruído fizesse o serviço direito.

    No xadrez, o comissário Mattos viu os presos tomarem café e ouviu suas queixas. Naquele dia comemorava-se o Dia do Encarcerado. Por iniciativa da Associação Brasileira de Prisões fora instituído um santo padroeiro para os presos. A escolha do padroeiro, por sugestão do cardeal dom Jaime de Barros Câmara, recaíra sobre a figura do apóstolo são Pedro que, conforme as palavras do prelado, sofrera em vida os horrores do cárcere. O comissário pensou em brincar com os presos, vocês vivem se queixando de barriga cheia, até um santo padroeiro vocês já ganharam e ainda estão querendo mais, mas o desgosto que sentira ao entrar nas celas mudara a sua disposição. Se não fosse um comodista, um conformista covarde, ele aproveitaria o Dia do Encarcerado para soltar todos aqueles fodidos presos. Mas apenas anotou as queixas e voltou à sua sala.

    Às onze horas olhou para o relógio, ansioso para que passassem logo os sessenta minutos que faltavam para encerrar-se o plantão. Mas nesse instante chegou uma

    RP

    . A Central recebera a comunicação de um homicídio. Alberto Mattos chamou Rosalvo para acompanhá-lo ao local.

    Já passa das onze, por que o senhor não deixa o 121 para o doutor Maia?

    Ainda não é meio-dia.

    Pegaram a velha caminhonete do distrito, suja do café dos presos, que transportara de manhã cedo. Ao passarem por um botequim, Alberto Mattos mandou parar, saltou e tomou um copo de leite. A acidez não parava de roer seu estômago.

    A

    RP

    esperava por eles na porta do edifício Deauville.

    Os dois policiais foram ao oitavo andar. Um guarda estava no hall, com o investigador que chefiava a

    RP

    . A porta do apartamento estava aberta. Mattos e Rosalvo entraram em uma saleta onde havia dois homens elegantemente vestidos com roupas caras. Num espelho na parede, o comissário viu seu rosto com a barba de um dia inteiro por fazer, a camisa amassada, a gravata torta, o terno ordinário que usava. Ainda pelo espelho reconheceu um dos homens, o mais baixo e troncudo: Galvão, o famoso criminalista. Ao se formar em direito, quando ainda não entrara para a polícia, Mattos fora trabalhar como assistente do defensor público e representara um pobre-diabo envolvido com uma quadrilha de falsários. Galvão era o advogado do chefe da quadrilha. O único absolvido fora o cliente de Mattos.

    Galvão e o outro se dirigiram para Rosalvo, que estava mais bem-vestido do que o comissário.

    Sou o investigador Rosalvo, disse o investigador ao perceber o equívoco. Este é o comissário, o doutor Alberto Mattos.

    Galvão, disse o advogado estendendo a mão. Não demonstrava ter reconhecido Mattos. Uma voz grossa, gentil, mas cheia de autoridade. Estou aqui como amigo da família. Este é o doutor Claudio Aguiar, primo da vítima.

    Quem avisou vocês?

    A rudeza de Mattos não pareceu incomodar Galvão. Sem perder sua compostura de grande causídico respondeu que fora a empregada. Ela ligara para a polícia e em seguida para Claudio Aguiar.

    Pensei que a polícia chegaria antes de nós.

    Como é o nome do morto?

    Paulo Machado Gomes Aguiar.

    Profissão?

    Industrial…

    Solteiro? Casado?

    Casado.

    Onde está a mulher dele?

    Na casa de campo, em Petrópolis. Ela ainda não foi avisada…

    Não foi avisada?

    Quisemos poupá-la do horror de ver o marido assassinado, da brutalidade da investigação criminal… Ela é uma pessoa muito delicada… Eles eram muito unidos…, respondeu Galvão.

    Onde está o corpo? Espero que não tenham mexido em nada.

    Nem sequer entramos no quarto.

    Creio que o senhor não tem mais nada a fazer aqui, doutor Galvão. Nem o senhor…

    Aguiar, disse o primo do morto que ficara calado até então.

    O advogado e o primo, todavia, continuaram parados no meio do hall. Mattos afrouxou o colarinho ainda mais. Engoliu saliva. Bufou.

    Galvão enfiou a mão no bolso do paletó. De uma carteira de couro sacou um cartão de visitas.

    Se o senhor precisar de alguma coisa…

    O comissário guardou o cartão no bolso. Diga à mulher da vítima que quero vê-la na segunda-feira. No distrito.

    Não seria melhor —, começou Galvão.

    Segunda-feira, repetiu Mattos.

    Segunda-feira é amanhã.

    Isso mesmo.

    Galvão tocou de leve no cotovelo de Aguiar, que afastou o braço. Vamos, disse o advogado com sua voz de fundo de barril.

    Outra coisa, disse Mattos, antes de sair avise a empregada que encontrou o morto para vir falar comigo.

    Uma mulher de quarenta anos, de uniforme preto com avental branco e uma espécie de touca na cabeça, apareceu no hall.

    Como é o seu nome?

    Nilda.

    Onde é que o corpo está?

    Mattos e Rosalvo seguiram a empregada.

    Você espera aqui fora, Nilda.

    O morto, um homem de cerca de trinta anos, grande, musculoso, magro, estava estendido na cama inteiramente nu. No rosto, vários hematomas. Marcas no pescoço. Os lençóis estavam manchados de sangue, matéria fecal e urina. Os dois policiais movimentaram-se cuidadosamente pelo quarto, para não destruírem os possíveis indícios. Mattos empurrou com o cotovelo a porta entreaberta do banheiro, não queria misturar suas impressões digitais a outras que pudessem existir. Um espelho grande ocupava toda a parede, acima de uma bancada de mármore sobre a qual estavam arrumados vidros de perfume, escovas, sabonetes e outros objetos. O comissário com o cotovelo abriu a cortina do box do chuveiro. Quando examinava, sem tocar nele, um sabonete com alguns fios curtos de cabelo, um brilho chamou sua atenção. Ajoelhou-se. Era um anel largo de ouro. Colocou-o no bolso do paletó, sem que Rosalvo visse. O anel fez um leve tinido ao bater no dente de ouro que Mattos sempre carregava consigo. Ao perceber que o anel tinha tocado no dente uma sensação de nojo apossou-se dele; impulsivamente o comissário trocou o dente de ouro de um bolso para outro, quase deixando-o cair no chão.

    Telefona para o Gabinete de Exames Periciais, pede a perícia, disse Mattos, tentando esconder sua momentânea confusão.

    "IML

    também?", perguntou Rosalvo.

    Também, também.

    Rosalvo aproximou-se da mesinha de cabeceira, onde havia um telefone.

    Esse não. Pode ter impressões digitais.

    Nilda esperava na porta do quarto.

    Há outros empregados na casa?

    A cozinheira e o copeiro. Estão na copa.

    O comissário, acompanhado de Nilda, foi até a copa. Uma mulher gorda com um avental e um homem vestido de calça listada e colete preto, sentados à mesa, levantaram-se assustados.

    Esperem lá fora. Vou conversar com a Nilda. Depois chamo vocês, disse o comissário fechando a porta entre a copa e a cozinha.

    Foi você que chamou a polícia?

    Sim. A voz trêmula. Essa era outra coisa desagradável de ser polícia: as pessoas quando não sentiam ódio sentiam medo dele.

    Como foi que você descobriu o corpo do seu patrão? Não se apresse.

    Eu fui levar o café deles e bati no quarto e ninguém atendia…

    Deles quem?

    O doutor Paulo e dona Luciana.

    A mulher dele não estava viajando?

    Eu não sabia. Ela tinha viajado de tarde e eu não sabia.

    Quem lhe disse isso?

    O primo do patrão, o doutor Claudio.

    E depois?

    O doutor Paulo acorda cedo e eu pensei que ele já havia saído e que dona Luciana estava no banho. Então eu abri a porta e… vi aquilo… saí correndo…

    E depois?

    Liguei para a polícia… e depois para o doutor Claudio…

    Que horas eram?

    Silêncio. Rosalvo entrou na copa.

    Eram onze horas?

    Onze horas? Não… Não me lembro…

    Você está mentindo, Nilda…

    A empregada começou a chorar.

    "Não há razão para você chorar. Calma. Não vou fazer nada com você. É só parar de mentir. Se você parar de mentir eu não vou brigar com você. Você disse que seu patrão acorda cedo. Digamos que você chegou com o café às oito horas. Viu o seu

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1