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O Centro Popular de Cultura Da UNE

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MANOEL TOSTA BERLINCK

O CENTRO POPULAR DE CULTURA DA UNE

AGRADECIMENTOS

Este trabalho resulta de pesquisa patrocinada pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) e pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Desejo agradecer aqui a colaborao

entusiasmada e desinteressada de Fernando Peixoto, Ferdinando de Oliveira Figueiredo, Carlos Estevam Martins, Luiz Werneck Viana, Maria Lucia Teixeira Viana,

Gianfrancesco Guarnieri, Vanya M. Sant'Anna, Alba Zaluar, Mrcia Mendes de Almeida e de todos os que me proporcionaram informaes e apoio ao meu trabalho. Como diz Jorge Luiz Borges, escrever um ato selvagem que implica em destruio. Ler por sua vez um ato civilizado que envolve criao.

NDICE

Introduo .................................................................................................. 5 Os antecedentes do CPC ............................................................................ 6 O que foi o CPC ......................................................................................... 16 1. Teatro ........................................................................................20 2. Cinema ......................................................................................22 3. Msica .......................................................................................26 4. Literatura .................................................................................. 27 5. Atividades diversas ...................................................................29 A questo da cultura popular posta em questo ......................................... 33 A cultura alienada ........................................................................ 37 A cultura desalienada: a vanguarda ............................................. 41 A cultura desalienada: a cultura popular ..................................... 52 A cultura popular na prtica: Brasil, verso brasileira ........................... 75 Concluses ................................................................................................. .89 Posfsio ...................................................................................................... .95 Bibliografia ................................................................................................. 100

INTRODUO

Durante a primeira metade da dcada de 1960 (mais precisamente, entre dezembro de 1961 e maro de 1964) desenvolveu-se no Rio de Janeiro e em outros Estados brasileiros um movimento cultural que se tornou conhecido como CPC ou Centro Popular de Cultura. Tal movimento reuniu um conjunto de jovens artistas (dramaturgos, atores, compositores, cineastas, artistas plsticos, poetas), lderes estudantis e pessoas interessadas que possuam um projeto intelectual comum: a elaborao imperiosa de uma cultura popular em confronto com as expresses artsticas at ento vigentes. O movimento foi bruscamente interrompido em 1964 e muito das questes que suscitou permaneceram sem respostas. Este trabalho pretende analisar o CPC da UNE 1 e 1) conhecer as condies econmicas, sociais, polticas e culturais que possibilitaram a realizao desse projeto; 2) discutir de forma analtica o significado e as implicaes do que se convencionou denominar cultura popular e 3) analisar as possveis

consequncias intelectuais do referido movimento como catalisador de tendncias da produo cultural brasileira. Para tanto, este texto ser dividido em quatro a partes: 1) os antecedentes do CPC; 2) o que foi o CPC; 3) a questo da cultura popular posta em questo; 4) as limitaes e as conseqncias do CPC.

O CPC da UNE o movimento do Rio de Janeiro que foi responsvel pelos CPCs de outros Estados. Estudei apenas o CPC da UNE e reconheo que os outros requerem investigaes distintas porque possuem as suas prprias peculiaridades.

OS ANTECEDENTES DO CPC

A criao formal do CPC ocorreu em dezembro de 1961 (Estevam, 1963). Os principais personagens envolvidos na sua criao foram Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirzman e Carlos Estevam Martins. Oduvaldo Vianna Filho estreou em teatro em 1955, como ator, em A Rua da Igreja de Lennox Robinson. Dois anos depois, recebeu o Prmio Saci de O Estado de So Paulo como melhor ator coadjuvante, por sua interpretao em Juno e o Pavo, de O'Casey. Entre 1955 e 1965, Vianinha participou, juntamente com Gianfrancesco Guamieri, do Teatro Paulista dos Estudantes (TPE), uma organizao ligada Unio dos Estudantes Secundrios Paulista (UESP) e Unio Paulista dos Estudantes Secundrios (UPES). Nessa poca, o movimento teatral de So Paulo era dominado pelo Teatro Brasileiro de Comdia (TBC), criado em 1948 e mantido por um grupo de empresrios liderados por Franco Zampari. At o fim da Segunda Guerra Mundial, o teatro brasileiro era quase que exclusivamente de Revistas e Comdias (Nunes, 1959). Nos meados da dcada de 1950, a maioria das Companhias de Teatro foi se desagregando, no s pelo xodo dos grandes artistas como, por outro lado, pela modificao do tipo de repertrio teatral, isto , os gneros at ento apresentados (Revistas e Comdias) eram j considerados como ultrapassados, criando-se uma necessidade de inovao tanto na dramaturgia como na prpria organizao da atividade * . Foi o italiano Franco
Desconheo estudos sobre o significado social e poltico do Teatro de Revistas e Comdias. A impresso que tenho que o gnero teve grande importncia para o desenvolvimento da msica popular urbana e para o debate de certos temas polticos durante e aps o Estado Novo. Alm disso, acredito que tenha sofrido profundas transformaes com o surgimento e o desenvolvimento do rdio e da televiso e com o fechamento dos cassinos no Brasil. No acredito, porm, que esses fatos tenham sido os responsveis pelo desaparecimento do gnero. De qualquer forma, em meados da dcada de 1950 s Walter Pinto e Carlos Machado ainda se arriscavam a produzir espetculos de Revista e Comdia.
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Zampari que ao criar o TBC, convenceu a burguesia industrial paulista a realizar seu primeiro investimento no negcio teatral, inaugurando uma nova fase no teatro brasileiro. Antes dele, o teatro estava totalmente entregue aos artesos, pois Procpio, Dulcina, etc., eram tambm donos de suas empresas. (Maciel, 1966) Como linha de espetculo, o TBC adotou uma preocupao estetizante, procurando a reproduo de smiles do que havia de melhor no teatro europeu, em montagens caras, bem cuidadas e sofisticadas, dirigidas fundamentalmente aos membros da classe que o mantinha 2 . Seu repertrio foi a medida de seu ecletismo, que era o fundamento da sua poltica cultural. Dentre os autores que tiveram seus textos montados pelo TBC, podem ser citados: Saroyan, Kesseering, Goldoni, Sartre, Sauvajon, Oscar Wilde, Anouilh, Gorki, Dumas Filho, Noel Coward, Sfocles, A. Miller, Tenessee Williams, Strindberg, entre outros. Gonalves Dias e Ablio Pereira de Almeida foram os nicos autores nacionais a terem seus textos encenados 3 . O TBC criou e firmou o chamado teatro profissional de qualidade, capacitou o teatro com a melhor tcnica estrangeira, conquistou o pblico de vida cultural ativa e fez com que fosse reconhecido no teatro uma arte culta. O investimento teatral, entretanto, cedo revelou ser um investimento com grande margem de risco, de rendimentos modestos e futuro duvidoso. O TBC foi falncia (Maciel, 1966) e os atores que revelou iriam fundar diversas companhias prprias, como a Ndia Lcia-Srgio Cardoso, Tnia-Celi-Autran, Cacilda Becker, Maria Della Costa e o Teatro dos Sete que, a custos menores, procuraram dar sequncia experincia das unidades de origem, com variaes pouco relevantes. O TBC foi a companhia que se aproveitou com eficcia das oportunidades favorveis, emprestando ao teatro funo de divertimento elegante e recuperando a imagem do teatro como instrumento de indagao cultural, ao tempo em que afirmou a viabilidade de um teatro brasileiro de nvel internacional. No entanto,

Enquanto o ingresso a qualquer teatro de So Paulo custava em 58/59 Cr$ 80,00, o TBC cobrava Cr$120,00. Alm disso, o seu tamanho, a venda prvia de ingressos sob a forma de assinaturas e, pelo menos durante certo tempo, a venda antecipada aos scios, eram mecanismos que dificultavam o seu acesso pela classe mdia. 3 Esta observao importante especialmente tendo em vista o clima nacionalista que comeava a ser vivido e que, junto com o desenvolvimento, foi a tnica ideolgica do perodo.

padeceu de contradies insolveis, impostas pelo acanhamento de seu mercado e pela sofisticao de seu repertrio. Foi um teatro para uma classe, a burguesia alis, criado por ela mesma. Da queda do TBC ficou o teatro, ou, mais precisamente, a possibilidade de um teatro brasileiro. Ficaram os diretores, os atores profissionais de capacitao cultural e um certo pblico. O TBC reavaliou o teatro, conferindo-lhe seriedade e competncia, porm no criou um pblico que pudesse tornar a empresa factvel, nem ensaiou uma dramaturgia. Essa tarefa coube ao Teatro de Arena de So Paulo. O grupo que veio a ser o Arena foi criado em 1955 por formandos da primeira turma da Escola de Arte Dramtica. Liderados por Jos Renato e Chand Batista, o grupo arrendou e adaptou o prdio da rua Theodoro Bayma. O Teatro de Arena apareceu com outro jeito desde o incio (quando comparado com o TBC). Comeou como simptico: o simptico teatrinho da Rua Theodoro Bayma. Essa simpatia era expresso de seu esforo, de sua caracterstica inslita dentro do panorama empresarial de teatro. Mesmo sem uma linha cultural definida, o Arena surgia mais adequado s condies econmicas e sociais. Sem poder se apoiar em figuras de cartaz, em cenrios bem feitos, em peas estrangeiras de sucesso comercial (o avaloir era alto), o Teatro de Arena, mais cedo ou mais tarde, teria que apoiar sua sobrevivncia na parcela politizada do pblico paulista, identificada com aquelas condies econmicas. Um pblico que via muito mais Brasil nos esforos culturais de conscientizao do que nas realizaes externas e desvinculadas. O simptico teatrinho, a princpio, era um grupo semi-amador, sem estrelas, faz-tudo. No demorou muito para que ele perdesse esse seu aspecto franciscano e assumisse uma vigorosa posio participante que terminaria por inclu-lo na histria do nosso teatro. (Vianna Filho, 1962) Alm do grupo fundador, os principais responsveis por essa transformao do Arena foram Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Augusto Boal. Guarnieri, em 1953, era Presidente da Associao dos Estudantes Secundrios (AMES) e, em 1954, quando veio para So Paulo, era Vice-Presidente da Unio dos Estudantes Secundrios Paulistanos (UESP), Secretrio da Unio Paulista dos Estudantes Secundrios (UPES) e Vice-Presidente da Unio Nacional

dos Estudantes Secundrios (UNES). Em 1955, os membros dessas organizaes, preocupados em atrair os estudantes secundrios para uma participao mais ativa, resolveram criar um grupo de teatro amador que visitasse escolas e sindicatos. Os encarregados dessa tarefa foram Guarnieri e Vianinha, que se encontram pela primeira vez nessa ocasio. Os dois procuraram e expuseram a idia ao teatrlogo Ruggero Jacobbi, que a recebeu com entusiasmo e a 5 de abril de 1955 foi criado o Teatro Paulista do Estudante (TPE). reunio de fundao, presidida por Jacobbi, estiveram presentes Gianfrancesco Guarnieri, Pedro Paulo de Uzeda Moreira, Vera Gertel, Oduvaldo Vianna Filho, Raimundo Duprat e outros 4 . No ms seguinte o TPE fazia seu lanamento com A Rua da Igreja, de Lennox Robinson, e seu elenco era composto por Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Pedro Paulo Uzeda Moreira, Henrique Lebermann, Regina Paiva Ramos, Aracy Amaral, Renata Roman e Antonio Henrique A. Amaral. Na sua crtica a propsito da estria do TPE, escrevia Ruggero Jacobbi: ... h muitos anos estamos lutando pela constituio do TPE, isto , um grupo de amadores capazes de realizar um programa no apenas teatral (no sentido da descoberta de vocaes ou talentos), mas sim cultural e popular, apresentando obras literrias dignas de estudo ou de divulgao, e realizando um esforo positivo no sentido de conquistar paulatinamente platias mais ou menos afastadas do teatro oficial, comeando pelo prprio pblico estudantil. Ainda em 55, o TPE montou, em outubro, Est l fora um Inspetor, de J.B. Pristley, que ganhou o II Festival de Teatro Amador de So Paulo (com o seguinte elenco: Pedro Paulo Uzeda Moreira, Diorandi Viana, Vera Gertel, Mariusa Viana, Horieta Branco Batista, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e direo de Raymundo Duprat), e, em novembro, O Impetuoso Capito Tic de Labiche (com Raul Cortez, Thales Maia, Mariusa Viana, Mea Marques, Flavio Migliaccio, Gianfrancesco Guarnieri, Jos de Lima, Margot Veras, Fabio Goldman e direo de talo Rossi) 5 . Como o TPE no possua um local fixo para montar suas peas, seus
Estas informaes foram retiradas de cpia autenticada da Ata de fundao do Teatro Paulista do Estudante, constante em livro do 4 Registro de ttulos e Documentos (Cartrio Sebastio Medeiros). 5 As informaes sobre o TPE foram retiradas de recortes de jornais da poca, pertencentes ao arquivo pessoal de Gianfrancesco Guarnieri.
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diretores foram procurar o pessoal do Arena, que estava comeando e desse contato surgiu um acordo entre o Teatro de Arena e o Teatro Paulista do Estudante, que tinha como objetivos: a) formao de um numeroso elenco que atuar sob a denominao de Elenco Permanente do Teatro de Arena, simultaneamente no palco do Teatro de Arena e em espetculos externos, divulgando a arte cnica em fbricas, escolas e cidade do interior do Estado; b) formao de um movimento teatral de apoio s obras e autores nacionais, bem como de divulgao terica e prtica dos problemas do teatro; c) ajuda ao j consagrado Teatro de Arena por parte do TPE que o considera uma instituio de grande utilidade para nossa cultura e, ao mesmo tempo, ajuda do T.A. ao TPE atravs de aulas, formao de novos elementos e contato permanente com o palco 6 . Dias Felizes de Claude Andr Puget foi a primeira pea levada aps o acordo Arena/TPE (com o seguinte elenco: Ma Marques, Vera Gertel, Gianfrancesco Guarnieri, Alzira Mattar, Oduvaldo Vianna Filho, Raul Cortez e direo de Jos Renato). Em dezembro de 1955, Guarnieri e Vianinha saram do TPE onde foram substitudos por Beatriz Segal e Silney Siqueira e estrearam como profissionais em Escola de Maridos. No incio de 1956, Augusto Boal voltou dos EUA onde tinha feito cursos de dramaturgia e foi para o Arena, onde transmitiu a sua experincia atravs de seminrios, exerccios e direo. Nesse ano e em 57, Guarnieri e Vianinha trabalharam sob a direo de Boal em Ratos e Homens de Steinbeck, Juno e o Pavo, e Marido Magro e Mulher Chata, de Boal. A essa altura (1957), o Arena enfrentou uma srie crise financeira. Boal (para grande escndalo de Guarnieri e de Vianinha) foi dirigir Dercy Gonalves; Vianinha voltou para a casa dos pais no Rio e Jos Renato decidiu acabar com o Arena, montando Eles no usam Black-Tie. A pea estria em fevereiro de 58 com o seguinte elenco: Miriam Mehler, Lelia Abramo, Eugenio Kusnet, Gianfrancesco Guarnieri, Flavio Migliaccio, Celeste Lima, Milton Gonalves, Geraldo Ferraz, Francisco de Assis, Riva Nimitz e direo de Jos Renato. O sucesso da pea trouxe de volta Vianinha e Boal e j em
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Termos do Acordo entre o Teatro de Arena e o Teatro Paulista do Estudante, assinado por Jos Renato, Gianfrancesco Guarnieri, Rogrio Duprat e Oduvaldo Vianna Filho.

59 (porque Black-Tie permaneceu em cartaz durante todo o ano de 58) o Arena montou Chapetuba Futebol Clube lanando Vianinha como autor teatral. Com Augusto Boal, o grupo de jovens atores e autores adquiriu atualidade e dimenses tericas, arsenal tcnico, e se fez integrar no espao teatral com uma perspectiva prpria, de crtica radical s experincias anteriores, principalmente ao TBC. A partir dessa fase, definiu-se o grupo por um trabalho a longo prazo, onde a renovao esttica foi buscada deliberadamente. Realizou, diariamente, durante trs anos, trabalhos de laboratrio de atores e seminrios de dramaturgia. O Arena para conseguir esse resultado teve que tomar uma atitude decisiva que apareceu com a chegada de Augusto Boal: a mobilizao de todo o Teatro de Arena para criar o espetculo. Deixou de haver funes estanques de ator, diretor, iluminador, etc. O Arena tornou-se uma equipe, no no sentido amistoso do termo (no sentido amistoso do termo, realmente, quero crer que todas as companhias so equipes) mas no sentido criador. Todos os atores do Arena tiveram acesso orientao do teatro: orientao comercial, intelectual, publicitria. Boal mobilizou toda a imensa capacidade ociosa existente; Flvio Migliaccio que s fazia pontas e carregava material de contra-regragem, praticamente inventou um novo ator no Brasil; Guarnieri, Boal, Chico de Assis, Flvio, Milton Gonalves, Nelson Xavier, escreveram peas. Todos participamos de um laboratrio de atores. E todos estudamos e debatemos em conjunto (Vianna Filho, 1962). A transformao na dramaturgia brasileira provocada concretamente pelas peas de Guarnieri e de Vianinha foi, portanto, o produto de conscincias individuais bastante desenvolvidas e introduziu elementos radicalmente distintos dos at ento vigentes na arte cnica brasileira 7 . Num primeiro momento, o significado da transformao foi percebido na relao com o pblico. Comevamos a firmar a opinio de que o dilogo com o pblico brasileiro se fortalecia na medida em que colocvamos em cena a nossa lngua viva, nossos costumes, nossos problemas, nosso jeito, enfim, em detrimento da invaso constante de uma problemtica importada que predominava nos nossos palcos
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Por isso considero equivocada a tese de Sonia Goldfeder, segundo a qual o Arena foi um Teatro reformista enquanto o Oficina foi revolucionrio. Veja Goldfeder, 1977.

(Jos Renato, 1973). J em 1959, entretanto, Guarnieri expunha de forma acabada os principais objetivos dessa nova dramaturgia que iria marcar, definir mesmo, a ao e os debates artsticos at 1964. No vejo outro caminho para uma dramaturgia voltada para os problemas de nossa gente, refletindo uma realidade objetiva, do que uma definio clara ao lado do proletariado, das massas exploradas. Para analisarmos com acerto a realidade, para movimentarmos nossos personagens em um ambiente concreto e no de sonho, o nico caminho ser o aberto pela anlise dialtica-marxista dos fenmenos, partindo do materialismo filosfico (...) No h possibilidade de uma definio do artista em sua arte sem que antes se defina como homem, como elemento da sociedade, como participante ativo em suas lutas (...) Nenhuma literatura de gabinete surpreender o nervo de nossas atribulaes. A cultura popular, emprica, a arte popular, fruto direto dos mais autnticos sentimentos populares, so fontes inesgotveis de ensinamentos e inspirao; so elementos indispensveis para uma apreciao acertada de tudo o que diz sobre a vida, o homem, a sociedade. A pretensiosa e vaga aspirao verdade absoluta somente poder ser perniciosa para todo artista jovem. Errar com o povo ser sempre menos danoso do que errar contra ele (...). Sonhamos com um teatro que atinja realmente as grandes massas. Com espetculos realizados para todas as classes e no apenas para uma minoria (...). Sem uma determinao do Estado ser impossvel levarmos o teatro s massa populares. As Cias. no podem fazer frente aos problemas econmicos (...). O ideal de um teatro popular precisa ainda ser conquistado. Essa conquista dever ser feita no terreno poltico (...). Ns, autores jovens, determinados a criar uma dramaturgia popular, no podemos ficar a tecer consideraes sobre os males de um teatro de pblico to restrito. Devemos continuar em nossa obra a fazer um teatro de bases populares, contando as possibilidades, conquistas e lutas de nosso povo, impondo uma cultura popular, demonstrando minoria que vai ao teatro o que ela ignora, no perdendo oportunidades de uma vez ou outra, realizarmos espetculos para as grandes massas e, na prtica, atravs de uma luta poltica, batalharmos pelas reivindicaes atuais sentidas de nosso povo, colocando entre elas, o teatro (Guarnieri, 1959). J em 1959, portanto, o grupo do Arena liderado por Boal, Guarnieri e

Vianinha no s tinha realizado uma profunda alterao na dramaturgia nacional, como tinha formulado claramente as bases da produo artstica a serem seguidas nos anos subsequentes: fazer um teatro de temas populares, contando as possibilidades do povo, demonstrando minoria que vai ao teatro o que ela ignora, realizando, vez por outra, espetculos para as grandes massas e, na prtica, atravs da luta poltica, batalharmos pelas reivindicaes mais sentidas de nosso povo, colocando entre elas, o teatro (Guarnieri, 1959). O TBC dera status ao teatro, o Arena enfrentava a realidade de aculturlo. Com o Arena o teatro se quer poltico como fundamento crucial da sua dramaturgia. O ideal de um teatro popular precisa ainda ser conquistado, era a observao de Guarnieri. A soluo do Arena era a de que essa conquista seria efetivada no plano poltico. Mas o Arena era um teatro de minoria, e os seus membros tinham desse fato uma conscincia dolorosa, na medida em que era frustrante do seu objetivo de criar uma dramaturgia brasileira. Em 1960/61, o Arena foi fazer uma temporada no Rio para apresentar Eles no usam Black-tie e Chapeluba F.C.. Finda a temporada, Vianinha, cujos pais tinham se muddo de So Paulo para o Rio, resolveu permanecer na Guanabara e decidiu escrever e montar uma pea chamada A mais-valia vai acabar, seu Edgar. Para tanto desejava entender melhor a noo de mais-valia e foi ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em busca de auxlio. No ISEB encontrouse com Carlos Estevam Martins, que iniciava sua carreira de socilogo aps ter se formado em Filosofia pela ento Universidade do Brasil. A pea, que contava com a colaborao de Leon Hirzman, comeou a ser montada e ensaiada no ptio interno da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil e foi dessa associao e das preocupaes comuns desses jovens intelectuais que surgiu a idia do CPC da UNE 8 . Vianinha, a essa altura, reconhecia as limitaes impostas pelo Arena para a realizao do projeto de um teatro poltico e fazia a sua crtica. O Teatro de Arena trazia dentro de sua estrutura um estrangulamento que aparecia na medida mesmo em que se cumprisse a sua tarefa. O Arena era porta-voz das massas populares num
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Entrevista com Carlos Estevam Martins, setembro de 1977.

teatro de cento e cinquenta lugares. ... O Arena no atingia o publico popular e, o que talvez mais importante, no podia mobilizar um grande numero de ativistas para o seu trabalho. A urgncia de conscientizao, a possibilidade de arregimentao da intelectualidade, dos estudantes, do prprio povo, a quantidade de pblico existente, estavam em forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa. No que o Arena tenha fechado seu movimento em si mesmo: houve um raio de ao comprido e fecundo que foi atingido com excurses, com conferncias, etc. Mas a mobilizao nunca foi muito alta porque no podia ser muito alta. E um movimento de massas s pode ser feito com eficcia se tem como perspectiva inicial a sua massificao, sua industrializao. preciso produzir conscientizao em massa, em escala industrial. S assim possvel fazer frente ao poder econmico que produz alienao em massa. O Teatro de Arena, esbarrando a, no teve capacidade, naquele momento, de superar esse antagonismo. O Arena contentou-se com a produo de cultura popular, no colocou diante de si a responsabilidade de divulgao e massificao. Isto sem dvida repercutiria em seu repertrio, fazendo surgir um teatro que denuncia os vcios do capitalismo, mas que no denuncia o capitalismo ele mesmo. O Arena, sem contato com as camadas revolucionrias de nossa sociedade, no chegou a armar um teatro de ao, armou um teatro inconformado. Guamieri, Boal, podem ou no escrever peas de ao, mas um movimento de cultura popular no pode depender de talentos pessoais preciso que a empresa tenha uma existncia objetiva de tal tipo que a obrigue a mobilizar todos os seus elementos na criao de um tipo de teatro. Uma empresa que seja sustentada pelo povo para objetivamente, ser obrigada a falar e ser entendida por esse povo. Um movimento de cultura popular usa o artista corrente, usa uma ideologia de espetculo que precisa pertencer empresa e no aos seus representantes individuais. Nenhum movimento de cultura pode ser feito com um autor, um ator, etc. preciso massa, multido. Ele no pode depender e viver atrs de obras excepcionais o movimento que excepcional na medida em que supera as condies objetivas que monopolizam a formao cultural das massas. A maior quantidade dos pronunciamentos artsticos deve ser imediata, efmera. Sem

dvida no podem ser dispensados os pronunciamento genricos, menos imediatos, mais totais. O importante que um movimento de cultura popular se enriquece com a obra dos grandes artistas, mas no vive deles (Vianna Filho, 1962). Ao realizar, portanto, a crtica de sua prpria experincia, Vianinha explicitou o caminho a ser seguido. Para o Arena (tal como o concebia Vianinha, em 1962), viver verdadeiramente o teatro era o constituir de dentro dele, ensaiando uma dramaturgia brasileira, procurando incorporar o patrimnio artstico e cultural brasileiro; uma dramaturgia que tinha sua espinha dorsal na poltica, para tornar revelado o teatro ao povo, que dele se aproximaria para refletir com ele sobre a realidade candentemente contempornea; para Vianinha, esse era um esforo incuo. As limitaes do mercado, o tipo de pblico que consumia teatro, as possibilidades de criao que um meio social acanhado proporcionava, o desamparo oficial do teatro, fizeram do Arena um teatro meramente

inconformado. Nas condies do caso brasileiro, a conquista de um teatro nacional estaria imbricada no poltico, na medida em que s a luta poltica poderia implantar os fatores favorveis ao seu surto. O teatro tinha de servir luta do povo, como instrumento de sua conscientizao e meio de sua organizao. Carlos Estevam tambm era da mesma opinio e sabia que uma experincia desse tipo poderia frutificar porque, no ISEB, ouvira Paulo Freire falar sobre as experincias do Movimento de Cultura Popular (MCP) do Recife 9 . Nessa altura dos acontecimentos, uma nova diretoria havia sido eleita para a Unio Nacional dos Estudantes. Carlos, Vianinha e Leon procuraram membros da nova diretoria e propuseram, inicialmente, a realizao de um curso de histria da filosofia a ser realizado no auditrio da UNE, ministrado pelo filosfo Jos Amrico Peanha como continuao da experincia iniciada com A mais-valia vai acabar. A diretoria da entidade aprovou a idia e, na medida que o curso se desenvolvia juntando cerca de 800 alunos, os trs prosseguiram os contatos para a implantao do CPC. Para tanto, a UNE cedeu uma sala e permitiu o uso de seu auditrio para o funcionamento da nova entidade 10 .
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Entrevista com Carlos Estevam Martins. Entrevista com Carlos Estevam Martins.

O QUE FOI O CPC?

Em 8 de maro de 1962, o Regimento Interno do CPC foi submetido a uma Assemblia Geral. De acordo com esse instrumento legal, o CPC era o rgo cultural da Unio Nacional dos Estudantes, regendo-se com autonomia administrativa e financeira. A sua direo era eleita (e poderia ser dissolvida) pela Assemblia Geral de seus membros e a filiao ao CPC era feita em bases individuais 11 . Nesse sentido, pode-se dizer que o CPC da UNE nunca pertenceu Unio Nacional dos Estudantes: era uma organizao administrativa e financeiramente autnoma. Porm, ao mesmo tempo, era o rgo cultural da UNE. A UNE, por sua vez, era um rgo classista que, a partir daquela data, possua um rgo cultural sobre o qual no tinha qualquer controle. Essa ambiguidade no constituiu problema enquanto o movimento estudantil era relativamente coeso. Porm, entre 61 e 64, ele foi rapidamente se segmentando na medida em que seus membros eram arregimentados e at mesmo criavam organizaes polticopartidrias divergentes. A segmentao poltica do movimento estudantil, por sua vez, se expressava na UNE e, na medida que isso ocorria, aumentavam as tenses entre as duas organizaes. Assim, j em 63, havia um desejo unnime por parte da direo da UNE em subordinar o CPC. Este, por sua vez, resistia, dado que havia nascido independente e politicamente coeso. Essas crescentes tenses, que estavam ligadas questo mais ampla da hegemonia poltica no movimento estudantil, nunca se manifestaram sob a forma de censura, mas ocorriam no prprio fazer da UNE e do CPC. Assim, quando a direo da UNE resolveu organizar a segunda UNE-Volante, o CPC no se interessou pelo evento e foi necessrio contratar artistas profissionais no pertencentes ao CPC para viajarem com a direo da

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Regimento Interno do Centro Popular de Cultura da Unio Nacional dos Estudantes.

UNE 12 . Dadas as divergncias polticas entre o grupo que controlava a direo da UNE especialmente a partir de 63 e o grupo dirigente do CPC, porque a UNE no dissolveu o Centro Popular de Cultura? Essa medida no se realizou porque, em primeiro lugar, o sucesso do CPC em escala nacional promovia a UNE e, em segundo lugar, porque o grupo poltico da UNE no possua recursos especialmente artistas sua disposio para substiturem os j existentes no CPC. Em outras palavras, as atividades do CPC requeriam um saber tcnico-artstico que era uma espcie de monoplio do grupo que no pertencia linha poltica dos dirigentes da UNE. E tal fato impediu a prpria dissoluo do CPC pela Unio Nacional dos Estudantes que, ainda que pertencendo a um grupo poltico divergente, se beneficiava das atividades do CPC. Essa dinmica parcialmente contraditria entre UNE e CPC exigia, por sua vez, que o CPC tivesse uma organizao formal claramente definida 13 . Alm do mais, por no estar subordinado nem UNE ainda que dela fizesse parte nem a qualquer organizao partidria e nem como ocorreu com o Movimento Popular de Cultura (MCP) do Recife se articulando diretamente com o Estado, o CPC s tinha uma sada organizacional: operar como se fosse uma empresa prestadora de servios. E foi assim que ocorreu 14 . claro que tal formato organizacional tinha tanto vantagens como desvantagens. Se, por um lado, garantia a autonomia relativa ao Centro, por outro criava dificuldades para a obteno de recursos. Os recursos do CPC da UNE eram muito escassos. Inicialmente sobreviveu graas a contribuies individuais at conseguir sua primeira verba, um auxlio de
Entrevista com Vincius Caldeira Brant. No h, pois, como supor um carter informal e voluntarista organizao do CPC, como quer Vanilda Pereira Paiva. Segundo essa autora, ... mesmo no CPC da UNE onde chegou a haver um organograma com a discriminao de vrios setores (teatro, cinema, artes plsticas, filosofia e, posteriormente alfabetizao) e a distribuio de chefias muito pouca ateno foi dada ao aspecto formal da organizao. O entusiasmo e a improvisao pareciam suficiente para que o movimento funcionasse a contento de seus promotores. Em geral, cada CPC contava com um diretor e um encarregado para cada setor de atividades sem maiores sofisticaes organizacionais. Entretanto, no ltimo ano de funcionamento, o CPC da UNE se organizou em torno de Grupos de Trabalho encarregados respectivamente do Repertrio, da Construo do Teatro, de Cinema, de Espetculos Populares, da Produo de Arte e Cultura e de Reestruturao. Cada Grupo de Trabalho elegia dois membros para o Conselho Diretor que, juntamente com um Coordenador, se encarregava da direo do Centro (Paiva, 1973, p. 334). 14 Entrevista com Carlos Estevam Martins.
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Cr$3.000,00, em dezembro de 1961, com o qual foram financiadas partes do filme Cinco Vezes Favela e a gravao do long-playing O povo canta. A venda de O povo canta (11.000 exemplares) que permitiu a continuao das atividades no ano seguinte, pois a ajuda recebida em 62 (Cr$ 5.800,00, doados pelo SNT) destinavase construo do teatro na sede da UNE. As dificuldades financeiras levaram mesmo suspenso das tiragens de O povo canta e da gravao do Auto dos 99% e impossibilidade de utilizar a carreta constru da para apresentao de espetculos teatrais ao ar livre nos bairros por falta de jipe para desloc-la, e de servio sonoro completo. Todo o equipamento do CPC da UNE constava dessa carreta, de uma oficina para confeco de cartazes e faixas, dois gravadores, duas mquinas de escrever, material cnico, vesturio, cenrios e o teatro em construo. Entretanto, novos recursos foram conseguidos atravs do convnio com o Ministrio da Educao e Cultura (MEC), assinado em agosto de 1963 (para a realizao de uma campanha de alfabetizao de adultos) (Paiva ,1973, p. 335). A carreta foi doada por empresrio e poltico brasileiro e a sede do CPC era cedida gratuitamente pela UNE. Alm disso, recebeu recursos de Companhia Area para realizar as duas UNE-Volantes, pagamentos da prpria UNE contra a prestao de servios e recursos resultantes de contratos com polticos para shows em comcios 15 . Na verdade, todos os servios do CPC eram prestados contra pagamento: shows em Faculdades e sindicatos eram realizados com entrada paga e s mesmo o teatro de rua, os poucos espetculos realizados com a carreta e o teatro para camponeses que eram gratuitos 16 . Outros importantes recursos disposio do CPC eram a Grfica da UNE, a revista Movimento e o jornal O Metropolitano que abriam suas pginas para colaboraes dos dirigentes do CPC vinculando, assim, suas idias e dando publicidade aos seus eventos 17 . claro, entretanto, que nem a organizao formal nem os recursos seriam suficientes para se fazer o que foi feito.

Entrevista com Vincius Caldeira Brant. Entrevista com Carlos Estevam Martins. 17 Entrevista com Cesar Guimares. Deve-se observar que membros do CPC, como Arnaldo Jabor e Carlos Diegues eram redatores de Movimento e de O Metropolitano.
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As realizaes do CPC dependeram fundamentalmente do trabalho voluntrio entusiasmado de jovens estudantes, artista e intelectuais que se dedicavam ao movimento porque acreditavam nas suas metas e viam nessas tarefas uma possibilidade de realizao pessoal e em intelectuais de renome que viam com simpatia o que os jovens do CPC estavam realizando. Em outras palavras, o CPC nunca antagonizou e at mesmo procurou a colaborao de figuras estabelecidas como intelectuais e que, devido a tal atitude, passaram a ver com simpatia as propostas e as atividades promovidas pelo Centro 18 . Alm da Assemblia Geral, rgo deliberativo mais alto do Centro que discutia sua poltica geral e que tinha poderes para eleger os seus membros executivos (que eram seu diretor e os coordenadores dos Departamentos), havia um Conselho Diretor composto pelos Coordenadores dos Departamentos e presidido pelo Diretor Executivo. O Conselho Diretor era o rgo executivo ao qual se subordinavam os Departamentos. O Diretor Executivo figura administrativa central do Centro alm de coordenar o Conselho Diretor e de presidir a Assemblia Geral, assistia s reunies dos Departamentos, era o responsvel pela gesto financeira e tinha poderes para nomear e demitir diretores ad referendum da Assemblia Geral 19 . O primeiro Diretor do CPC da UNE foi Carlos Estevam Martins. Seu mandato durou um ano de dezembro de 61 a dezembro de 62. Em seguida Carlos Diegues foi Diretor por trs meses e, finalmente, Ferreira Gullar dirigiu o CPC at seu encerramento. Os primeiros departamentos a serem criados foram o de Teatro e o de Cinema. O Departamento de Teatro reuniu, entre outros, Oduvaldo Vianna Filho, Francisco de Assis, Flvio Migliaccio, Armando Costa, Helena Sanchez, Joo das Neves, Carlos Miranda, Arnaldo Jabor (que depois passou a colaborar no Departamento de Cinema), Joel Barcelos, Cludio Cavalcanti e Cecil Thir. Com o tempo, o Departamento de Teatro se subdividiu em dois setores: o de teatro convencional e o de teatro de rua. O Departamento de Cinema reuniu, entre outros,
Entrevista com Carlos Estevam Martins. Figuras como Paulo Francis, Nelson Werneck Sodr, Antonio Houaiss viam com simpatia e colaboravam eventualmente com o CPC. 19 Regimento Interno do CPC da UNE e entrevista com Carlos Estevam Martins.
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Leon Hirzman, Carlos Diegues, Marcos Farias, Miguel Borges, Teresa Arago. Em seguida, ainda em 62, foram criados o Departamento de Msica que reuniu, entre outros, Carlos Castilho, Carlos Lira, Sergio Ricardo, Nelson Lins e Barros, Geraldo Vandr; o Departamento de Arquitetura, e de Artes Plsticas e o de Administrao. Os ltimos Departamentos a serem criados foram o de Alfabetizao de Adultos e o de Literatura. O Departamento de Alfabetizao chegou a oferecer alguns cursos, mas o seu pessoal foi recrutado pelo MEC e suas atividades se encerraram. Com as publicaes, disco e filmes, o CPC viu-se na contingncia de criar um esquema de distribuio. Para isso foi criada a PRODAC, uma empresa distribuidora de livros e discos. A PRODAC criou uma rede de correspondentes em numerosas cidades brasileiras. Em geral, esses correspondentes eram estudantes universitrios que, se utilizando de recursos locais, vendiam as publicaes do CPC e, depois, das demais editoras (Civilizao Brasileira, Universitria e Fulgor) com quem o CPC mantinha contratos de distribuio. Aps a primeira UNE-Volante, o CPC criou um Departamento de Relaes que ficou encarregado de manter contatos sistemticos e permanentes com os outros CPCs. Por algum tempo, Luiz Werneck Viana coordenou esse Departamento. Apesar do CPC ter sido um conjunto de funcionrios que eram pagos, contou, como j disse, como uma quantidade muito grande de trabalhadores voluntrios. Carlos Estevam estima que em cada 10 membros do CPC, 7 eram voluntrios, em geral estudantes universitrios que queriam participar da luta nacionalista e em prol da cultura popular. Durante a sua existncia, o CPC da UNE desenvolveu as seguintes atividades 20 : 1. Teatro 1.1. Montagem das peas Eles no usam black-tie de Gianfrancesco Guamieri e A vez da recusa, de Carlos Estevam, apresentadas para operrios e estudantes em sindicatos, colgios e faculdades da Guanabara e, tambm, em cidades do Estado do

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A maioria das informaes que se seguem foram retiradas do livro de Carlos Estevam (1963).

Rio 21 . 1.2. Montagem da pea Auto do tut t no fim, apresentada em comcios em praa pblica. A represso policial despertada por esses espetculos, na Guanabara, inspirou a montagem de outra pea, Auto dos Cassetetes, tambm levada em praa pblica, ainda sob a violncia da polcia da Guanabara. Essas peas iniciam uma nova experincia dramatrgica sob a orientao de Joo das Neves: o comcio dramtico, ou pea de agitao ou ainda o teatro de agitao22 . O teatro de agitao baseava-se num fato poltico qualquer como, por exemplo, uma conferncia da Organizao dos Estados Americanos ou o aumento de preos de algum gnero alimentcio que causasse problemas maiores. Sobre o fato uma pea era imediatamente feita e levada para rua, em qualquer lugar: em praa pblica, em cima de caminho, em cima de caixas d'gua de favelas. Era um tipo de teatro imediatista, de resposta direta aos acontecimentos (Neves, 1978). 1.3. Construo de um teatro e ampliao da sede do CPC no prdio da UNE. Os recursos para essas obras foram concedidos pelo Servio Nacional de Teatro23 . 1.4. Construo e instalao eltrica e sonora de uma carreta rebocada por um jipe e transformvel em palco para espetculos de teatro de rua. Os recursos para a construo e instalao da carreta, como j disse, foram doados por conhecido empresrio e poltico brasileiro 24 . Segundo Vanilda Pereira Paiva, dificuldades financeiras levaram impossibilidade de utilizar a carreta construda para apresentao de espetculos teatrais ao ar livre nos bairros, por falta de jipe para desloc-la e de servio sonoro completo (Paiva, 1973, p. 335). 1.5. Produo e montagem das seguintes peas: Os Azeredo mais os Benevides de Oduvaldo Vianna Filho (Prmio Servio Nacional de Teatro 1966); Brasil verso brasileira de Oduvaldo Vianna Filho (escrita em fevereiro de 1962); O auto

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A vez da recusa possui duas verses: a primeira, sob direo de Francisco de Assis, foi levada apenas em Niteri; a segunda, sob direo de Armando Costa, a conhecida. Segundo Carlos Estevam, a primeira verso foi censurada por membros da UNE.

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Entrevista com Armando Costa. Entrevista com Vincius Caldeira Brant. 24 Entrevista com Vincius Caldeira Brant.

dos 99%, de Carlos Estevam; Petrleo e Guerra na Arglia, mural de Carlos Estevam; A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho; O filho da besta torta do Paju, de Oduvaldo Vianna Filho; O petrleo ficou nosso, mural de Armando Costa; Clara do Paraguai, de Armando Costa; A estria de um sulto muito do safado e suas implicaes imperialistas, mural de Milton Feferran; Mistrio do Saci, pea infantil de Helena Sanches; No tem imperialismo no Brasil, mural de Augusto Boal; Triste histria do candidato cordato, de Olga Regina (escrita em maro de 62); Misria ao alcance de todos, de Arnaldo Jabor; Petrleo, conferncia ilustrada de Elsio Medeiros Pires Filho; Ptria livre (de autor desconhecido); O autor do tut t no fim e Auto dos cassetetes (tambm de autor ou autores desconhecidos). Esses trabalhos de autores desconhecidos eram produes coletivas.

2. Cinema

2.1. Realizao do filme em longa-metragem Cinco vezes favela, distribudo em todo o Brasil. O filme composto de cinco episdios: a) Um favelado, direo de Marcos Farias com Flavio Migliaccio, Carlos Estevam, Tereza Arago e outros membros do CPC. Trata-se da histria de um favelado que no tem dinheiro para pagar o aluguel de seu barraco. Sai procura de emprego e de dinheiro emprestado, mas no consegue nem um nem outro. Procura um conterrneo que ladro e que lhe prope um assalto. Roubam um lotao e o favelado preso; b) Z da Cachorra, direo de Miguel Borges. Um favelado ocupa um barraco pertencente a um grileiro rico que tenta expuls-lo. Z, um lder da favela, defende-o e tenta organizar os favelados contra o grileiro, c) Couro de gato, direo de Joaquim Pedro de Andrade, msica de Carlos Lyra e Geraldo Vandr, com Milton Gonalves e meninos. Os meninos da favela saem atrs de gatos para serem mortos e transformados em tamborins; d) Escola de Samba, alegria de viver, direo de Carlos Diegues, argumento de Carlos Estevam, montagem de Ruy Guerra, com Oduvaldo Vianna Filho. Trata de organizao da Escola de Samba e a contrape ao mundo do trabalho; e) Pedreira de S. Diogo, direo de Leon Hirzman, montagem de Nelson Pereira dos Santos, com Sadi Cabral e Glauce Rocha. Uma pedreira vai acabar

derrubando uma favela. Um dos trabalhadores da pedreira, morador da favela, avisa uma favelada para convocar os moradores para impedirem a exploso da pedreira. Sobre o filme, escreveu na poca, Carlos Diegues: preciso dizer, de sada, que no destacamos o filme do CPC por outro motivo que no seja o de ser um filme do CPC, um filme realizado por uma associao de classe, o nosso filme. Assim, fica excluda... qualquer hiptese de insinuao de genialidade, alta qualidade, excepcionalidade esttica, etc. Pelo contrrio, o filme deficiente, no foi um grande sucesso de bilheteria, e, at mesmo do ponto de vista polticoideolgico discutvel em alguns de seus momentos (...). Cinco vezes favela um filme realizado pelo CPC e, como tal, representa dentro do movimento do Cinema Novo uma rea particular de pensamento, uma rea politicamente consequente e disposta a instaurar na cultura brasileira uma nova experincia. Por isso mesmo, um filme representativo de um grupo e de um movimento coletivo estabelecido no em termos estticos, mas em termos polticos. No resultado de uma escola ou de uma academia de estilo, mas de um movimento cultural que, antes de o ser, poltico. Assim sendo, Cinco vezes favela se torna um filme que esteticamente nunca poder ser julgado em conjunto, como obra acabada. Mas que pode ser, evidentemente, apreciado globalmente como obra poltica. neste ltimo sentido que a fita do CPC pretende ser uma experincia de cinema popular, de cinema para massas. E salutar, em nossa opinio, que esta experincia tenha sido feita atravs de cinco caminhos absolutamente estranhos entre si e cada um deles vlido como concepo. Resta, ento, julgar o resultado junto ao pblico a que ele pretende se dirigir. A encontraremos o fenmeno de que (numa anlise um pouco gratuita de nossa parte) dois de seus episdios so unanimemente consagrados por quem quer que os veja, um terceiro assistido com razovel interesse e os dois derradeiros so desprezados pelo pblico, ora como incompreensveis, ora como primrios, etc. Tire-se da a mdia de resultados e saberemos que, na pior das hipteses, realizouse trs obras onde o interesse do pblico, onde a empatia se realizava com a maior segurana. Donde, evidentemente, o resultado, poltico, satisfatrio.

A par disso, Cinco vezes favela representa um gesto de rebeldia diante dos esquemas tradicionais de produo. Com oramento baixssimo, num nvel que se tornou comum a um pondervel nmero de realizaes nacionais (...), a fita se toma impar por ser a primeira a ser realizada por uma associao de classe (Diegues, 1963). Numa avaliao crtica mais recente (1977) de Cinco vezes favela, afirma Jean-Claude Bernadet: Filme ruim, uma das experincias, de todos os pontos de vista, mais reveladoras do cinema brasileiro, pela atitude excessiva que presidiu a sua realizao. Alis, diga-se de passagem, que o excesso, o radicalismo, teve sua funo didtica na evoluo do cinema brasileiro, pois agitava e provocava debates entre pessoas que posies mais equilibradas teriam deixado indiferentes... Tal radicalismo, caracterstico da poca, ajudou imensamente a evoluo das idias cinematogrficas no Brasil. Esse tambm foi o principal papel de Cinco Vezes Favela. A importncia do filme comea pela produo. No se trata apenas de uma produo feita fora do sistema corrente, por intermdio de instituio cultural extracinematogrfica. Como poderia o cinema refletir uma realidade e assumir posies que no fossem do interesse das instituies produtoras? Os filmes teriam de submeter-se s limitaes naturais impostas por instituies que representam a cultura oficial e dificilmente poderiam adotar a perspectiva social dos trabalhadores, a quem escapa o controle da cultura brasileira. Um cinema socialmente vlido s poderia ser produzido por entidades de classe ou outras que se encaixassem na mesma perspectiva, como seria o caso, pensava-se, das entidades estudantis. Assim. Cinco Vezes Favela poderia ter sido o incio de uma produo que escapasse aos canais da cultura oficial... O CPC pretendia, por meio de peas de teatro, filmes ou outras atividades, levar a um pblico popular informaes sobre sua condio social, salientando que as ms condies de vida decorrem de uma estrutura social dominada pela burguesia. Tarefa de conscientizao: deve-se ir alm da descrio e da anlise da realidade, a fim de levar o pblico a atuar: a situao no mudar se ele no agir para transform-la e s ele pode ser o motor dessa transformao. Trata-se de

politizar o pblico. Essa militncia a finalidade de Cinco Vezes Favela: o ladro da favela no ladro porque no queira trabalhar, mas porque no encontra servio e precisa comer; a sociedade que faz o ladro (Um Favelado). Se o favelado no tem onde dormir porque at os barracos da favela pertencem a um rico proprietrio que dispe de seus bens a seu bel prazer (Z da Cachorra). Se o favelado preocupase mais em organizar as festas da escola de samba do que em participar da vida sindical para alterar a sociedade, tudo ficar na mesma (Escola de Samba Alegria de Viver). Portanto, conscientemente, jovens diretores (salvo Joaquim Pedro, que fizera Couro de Gato anteriormente) resolvem fazer fitas que politizem o pblico. Todos iniciam seu filme com uma determinada viso da sociedade j esquematizada em problemas que provm mais de leitura de livros de sociologia que de um contacto direto com a realidade que iriam filmar: a favela. As estrias foram elaboradas para ilustrar idias preconcebidas sobre a realidade, que ficou assim escravizada, esmagada por esquemas abstratos. No se deixa realidade a menor possibilidade de ser mais rica, mais complexa do que o esquema exposto; a realidade no d margem a qualquer interpretao alm do problema colocado, e chega a dar a impresso de ter sido inventada especialmente para o bom funcionamento da demonstrao. uma espcie de realidade assptica que permite uma compreenso e uma interpretao nica: a do problema enunciado. Alm disso, o problema tende a ser apresentado junto com sua soluo: o favelado de Escola de Samba Alegria de Viver toma conscincia de sua alienao e troca o samba pelo sindicato. O resultado dessa estrutura dramtica simplista no era um convite politizao, mas sim passividade. Pois o espectador no tem de fazer o esforo de extrair um problema da realidade apresentada no filme: o problema est enunciado de modo to categrico que no admite discusso; e, se quisesse discuti-lo, a realidade do filme no forneceria elementos para tanto. O espectador tampouco tem de fazer esforo para imaginar uma soluo: ela dada. O espectador absolutamente no solicitado a participar da obra; a nica coisa que se exige dele que sente em sua poltrona e olhe para a tela, nada mais. E s lhe resta uma alternativa: negar o filme ou entusiasmar-se com ele. O espectador encontra-se diante de um circuito fechado: a

realidade s se abre para um nico problema, que est apresentado esquematicamente; o problema tem uma nica soluo positiva, que tambm est apresentada esquematicamente e a situao piora ainda quando a soluo to discutvel como no caso de Escola de Samba Alegria de Viver. O filme fecha-se sobre si prprio, e o espectador, limitando sua participao a aceitar ou recusar, fica de fora (...). bom que Cinco Vezes Favela tenha sido feito, e que tenha sido feito assim, porque possibilitou experimentar uma srie de tendncias. Em torno do filme discutiase se o cinema devia ou no apresentar solues, se era vivel colocar um problema a um pblico e no apontar-lhe a soluo. Discutia-se se deviam formular mensagens explcitas ou, ao contrrio, se ater mais anlise, deixando ao pblico a liberdade de formular por si prprio os problemas. Preocupaes infantis que, no entanto, se justificam pela necessidade de uma comunicao imediata com o pblico, de uma ao urgente, e que tambm refletem atitudes que ultrapassam o mbito do cinema. Discutia-se se o autor devia abdicar totalmente de suas inquietaes pessoais, renunciar a fazer uma obra que o expressasse como artista, para dedicar-se a filmes sobre a realidade exterior sacrificar o artista ao lder social (Bernadet, 1977, pp. 2932). 2.2. Realizao do documentrio Isto Brasil rodado durante a UNE-Volante.

3. Msica

3.1. Gravao e distribuio de um long-playing intitulado O povo canta. A face A do disco contm O subdesenvolvimento (Carlos Lyra-Francisco de Assis) e Joo da Silva (Billy Blanco). A face B contm Cano do trilhozinho (Carlos LyraFrancisco de Assis), Grileiro vem... (Rafael de Carvalho) e Z da Silva (Geny Marcondes, Augusto Boal, Conjunto CPC). A contracapa do disco contm o seguinte texto: O povo canta o primeiro long-play que o Centro Popular de Cultura, cumprindo o seu objetivo de fazer arte com e para o povo, entrega ao pblico. As composies reunidas neste disco representam uma experincia nova na msica popular. Nelas, os elementos autnticos da expresso coletiva so utilizados para, atravs deles, chegar a uma forma de comunicao eficaz com o povo,

esclarecendo-o, ao mesmo tempo a respeito de problemas atuais que o atingem diretamente. O povo canta desloca o sentido comum da msica popular, dos problemas puramente individuais para um mbito geral: o compositor se faz o intrprete esclarecido dos sentimentos populares, induzindo-o a perceber as causas de muitas das dificuldades com que se debate. Deste modo, foge-se ao sentimental e ao moderninho em que, de maneira geral, cai a temtica da msica que se entrega ao consumo das massas populares e que funciona como fator de entretenimento (e amortecimento). Partindo de uma inteno deliberada, as composies de O povo canta abordam fatos reais, problemas ligados vida cotidiana, luta de todos os dias. E nisso cumpre-se tambm uma funo permanente de toda arte, que a de dar expresso aos aspectos aparentemente desprezveis do cotidiano. Os personagens como Joo da Silva ou Jos da Silva se identificam, e no apenas pelo nome, com o comum, o brasileiro annimo do povo, que raramente canta e, quando o faz, canta uma vida irreal, fantasiada pelas frustraes, ou meramente deformada por um humorismo que, ainda que espirituoso, o outro lado de sua impotncia como ente social. O povo canta pretende dar canes ao povo, canes em que ele de fato se reflita na dimenso real de sua vida real. E aprenda, cantando, a conhec-la melhor. 3.2. Gravao do disco Cantigas de eleio, que denuncia a corrupo do poder econmico no processo eleitoral. 3.3. Apresentao, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, da I Noite de Msica Popular Brasileira, com a participao dos compositores e cantores que contriburam para a formao da autntica msica popular brasileira. O espetculo contou com a apresentao de Sargentelli e reuniu diversos intrpretes e compositores populares. 3.4. Diversos shows musicais em praas e teatros de bairros do Rio de Janeiro e participao nas duas UNE-Volantes. 4. Literatura 4.1. Publicao dos Cadernos do Povo Brasileiro. Sob a direo de lvaro

Vieira Pinto e nio Silveira, foram publicados os seguintes volumes: Que so as Ligas Camponesas?, Francisco Julio. Quem o povo no Brasil?, Nelson Werneck Sodr. Quem faz as Leis no Brasil?, Osny Duarte Pereira. Porque os ricos no fazem greve?, lvaro Vieira Pinto. Quem dar o golpe no Brasil?, Wanderley Guilherme. Quais sos os inimigos do povo?, Theotnio Junior. Quem pode fazer a revoluo no Brasil?, Bolivar Costa. Como seria o Brasil socialista?, Nestor de Holanda. O que a revoluo brasileira?, Franklin de Oliveira. O que a reforma agrria?, Paulo R. Schilling. Vamos nacionalizar a indstria farmacutica?, Maria Augusta Tibiria Miranda. Como atua o imperialismo ianqui?, Sylvio Monteiro. Como so feitas as greves no Brasil?, Jorge Miglioli. Como planejar nosso desenvolvimento?, Helena Hoffman. A Igreja est com o povo?, Padre Alossio Guerra. De que morre nosso povo?, Aguinaldo N. Marques. Que o imperialismo?, Edward Bailby. Porque existem analfabetos no Brasil?, Srgio Guerra Duarte. Salrio causa de inflao?, Joo Pinheiro Neto. Como agem os grupos de presso?, Plnio de Abreu Ramos. Qual a poltica externa conveniente ao Brasil?, Vamireh Chacon. Que foi o tenentismo?, Virgnio Santa Rosa. Que a constituio?, Osny Duarte Pereira. Desde quando somos nacionalistas?, Barbosa Lima Sobrinho. Violo de rua (Poesia de diversos autores), vols. I, II e III. Revoluo e contra-revoluo no Brasil, Franklin de Oliveira. Impressa na contracapa dos Cadernos havia a seguinte proposta: Os grandes problemas de nosso pas so estudados nesta srie com clareza e sem qualquer sectarismo; seu objetivo principal o de informar. Somente bem informado que o

povo consegue emancipar-se 25 . Alm dos Cadernos, o CPC fez publicar: Joo Boa-Morte, cabra marcado para morrer, cordeal de Ferreira Gullar (publicado tambm em Violo de Rua I). Z Fominha, Cordel; A mulher do coronel, cordel; Quem matou Aparecida?, cordel; O homem que engoliu um navio, cordel; Como o Brasil ajuda os EUA? A Terceira Guerra Em agosto Getlio ficou s, de Almir Matos. Inflao, arma dos ricos 26 .

5. Atividades diversas

5.1. Cursos de teatro, cinema, artes visuais e filosofia para formao profissional, tcnica e artstica. 5.2. Excurso, durante trs meses, por todas as capitais do pas. Esta excurso, que foi chamada Primeira UNE-Volante teve por objetivo realizar, pela primeira vez, o contato direto da liderana estudantil com as bases universitrias, operrias e camponesas de todo o Brasil, o que significou uma revoluo nos mtodos, de atuao poltica tradicionais no meio estudantil. Durante a Primeira UNE-Volante o CPC apresentou: a) Misria ao alcance de todos, pea de Arnaldo Jabor; b) Brasil, verso brasileira, pea de Oduvaldo Vianna Filho e dirigida por Armando Costa; c) Auto dos 99% , pea de Carlos Estevam sobre o problema do ensino no Brasil, levada em todas as assemblias estudantis sobre reforma universitria.
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Tenho notcias de vinte e quatro nmeros dos Cadernos do Povo Brasileiro. possvel, entretanto, que haja mais alguns que desconheo. No consegui descobrir os autores de certas publicaes.

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d) Exibio de cinco filmes documentrios abordando problemas econmicos e sociais da realidade brasileira. e) Exposies grficas e fotogrficas sobre reforma agrria, remessa de lucros, poltica externa independente, voto do analfabeto e Petrobrs. Estas exposies foram apresentadas ao pblico do interior do pas, nas praas pblicas e pontos de concentrao popular. f) Apresentao de shows musicais durante comcios em praa pblica. g) Realizao do documentrio Isto Brasil rodado durante a excurso nacional do CPC 27 . 5.3. Criao de CPCs nas principais cidades do pas, (Fortaleza, Natal, Recife, Joo Pessoa, Salvador, Belo Horizonte, So Paulo, Santo Andr, Curitiba, Porto Alegre, Niteri e Rio de Janeiro). Os CPCs estaduais nem sempre foram to bem sucedidos como o da UNE e nem sempre seguiram a mesma linha. Porm, todos foram suficientemente ativos para provocar, pelo menos, discusses nos meios artsticos e nos de comunicao de massa. 5.4. Fundao de uma rede nacional de distribuio de livros, discos e
Nem sempre a UNE-Volante obedecia a esse roteiro de atividades. Assim, a 28 de maro de 1962, a Folha da Tarde de Porto Alegre (RGS) publicava a seguinte notcia: O setor volante do Centro Popular de Cultura, da Unio Nacional dos Estudantes est em Porto Alegre desde ontem. Chegaram s 18:30 horas no Aeroporto Salgado Filho, com a presena obrigatria dos bichos das Universidades deste ano. s 21 horas houve a instalao solene na Reitoria, seguida de uma pea sobre a Reforma Universitria. E foram exibidos os filmes Muerte ai Invasor (de Cuba), Aruanda, Arraial do Cabo e O Santurio. O programa o seguinte: Hoje, 21:00 - Reitoria - Teatro: Misria ao alcance de todos, 1 parte: Cano do subdesenvolvimento, de Francisco de Assis e Carlos Lyra Paga no paga, de A. Boal Maria do Maranho, de Carlos Lyra e Nelson Lins de Barros O general de Bertold Brecht, Prlogo de A vez da recusa, de Carlos Estevam. 2 parte: Histria da Formiguinha ou Deus ajuda os bo ou Como entrar bem pelos canais competentes de Arnaldo Jabor. Amanh, hora 21:00 - Reitoria - Teatro: Brasil, verso brasileira de Oduvaldo Vianna Filho, direo de Armando Costa Sbado, 17:00 - Teatro de Equipe -pequeno Congresso de Cultura Popular; 20:00 - Reitoria - Teatro: Misria ao alcance de todos; 22:00 - Reitoria - Teatro: Brasil, verso brasileira, 21:00 - Salo Nobre da PUC Assemblia Universitria. A 29 de maro de 62, o mesmo jornal publicava a seguinte notcia: Dando prosseguimento sua temporada em Porto Alegre, o Centro Popular de Cultura da Unio Nacional dos Estudantes apresentar hoje, s 21:00 horas, na Reitoria da URGS (salo de atos), a pea poltica de Oduvaldo Vianna Filho, Brasil, verso brasileira. O autor conhecido do povo gacho: foi o principal intrprete em Eles no usam blackti, encenado pelo Teatro de Arena de So Paulo, e estava no elenco de uma pea de sua autoria, Chapetuba Futebol Clube, encenada tambm pelo Arena. Brasil, verso brasileira conta tambm com Oduvaldo Vianna Filho no elenco. O espetculo dirigido por Armando Costa (...). Ingressos para os espetculos esto sendo vendidos nos locais. Os associados do Teatro de Equipe, mediante apresentao de recibo, tero direito a desconto de 75% (ou seja, pagaro apenas 50 cruzeiros). Recomendamos os espetculos do CPC".
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revistas. A distribuidora do CPC, Prodac, dispondo de representantes e agentes em mais de 50 cidades da Federao, distribuiu para todo o Brasil no s as produes do CPC como tambm as obras das Editoras Civilizao Brasileira, Universitria e Fulgor. 5.5. Fundao, durante o ano de 62, dos seguintes CPCs na Guanabara: da Faculdade de Arquitetura, do Sindicato dos Metalrgicos, do Sindicato dos Bancrios, da Faculdade Nacional de Filosofia, da Faculdade Nacional de Direito, da Unio Fluminense dos Estudantes, da Faculdade de Filosofia da UEG. 5.6. Realizao do I Festival de Cultura Popular que apresentou ao pblico as obras de escritores e poetas progressistas brasileiros com o lanamento dos Cadernos do Povo Brasileiro e das publicaes do CPC e da Editora Universitria. A respeito do Festival, escreveu Paulo Dantas na Revista Brasiliense: ... Foi o primeiro Festival do Centro Popular de Cultura da Guanabara, entidade dinmica que se arrojou a defender em tempo as nossas tradies de arte popular, realizando palestras, conferncias, declamaes de poemas, projees de filmes, encenao de atos teatrais, tudo dentro do mais sadio esprito nacional e popular... Isto o que se chama, em linguagem popular, reunir o til ao agradvel, da a alegria, da o sucesso, da o alvoroo e a animao que reinaram nos sales da UNE, na Praia do Flamengo, quela noite defendido e guardado pelos soldados do Exrcito Nacional contra as provveis e despeitadas provocaes da venal polcia de Carlos Lacerda. Os intelectuais presentes, irmanados na luta com o povo, no tinham tempo de fazer poses, nem precisavam delas, j que a mocidade que boiava em torno, queria era ouvir palavras e verdades positivas. Eram estudantes calejados na luta revolucionria, universitrios de todos os nveis, no acovardados por

perseguies, nem amedrontados pelos bichos-papes do imperialismo. Eram criaturas inteligentes e saudveis, todas integradas dentro de um esquema de formulaes prprias ou adquiridas no estudo nacionalista da nossa libertao moral e econmica. Eram todos elementos de confiana de uma luta comum que j vinha se fazendo h anos, da a confluncia de figuras como Astrogildo Pereira, Dalcdio

Jurandir, Noel Nutels, Rui Fac, Eneidacom Geir Campos, Ferreira Gullar, Moacir Felix e tantos outros de afirmao nacional. Viam-se ainda, em meio daquela animada estudantada, artistas de rdio e televiso, gente de teatro, lderes sindicais, diretores de cinema, polticos independentes. ...Ali presentes, em barraquinhas especiais, autografando seus livros recentes, entre outros, notava-se a presena de lvaro Lins, Milton Pedrosa, Francisco Julio, o ex-Ministro Roberto Lira, o magistrado Osny Duarte Pereira, Vincius de Moraes, Dias Gomes, lvaro Vieira Pinto, Eneida, Moacir Felix... ...Compreendendo a gravidade do momento da vida nacional e procurando fazer do mister editorial um programa de orientao popular, j que o bom livro um instrumento de politizao, e de sadio nacionalismo, o editor nio Silveira idealizou, projetou e lanou esta utilssima e vitoriosa srie de Cadernos do Povo Brasileiro, cujos volumes iniciais, em nmero de seis, foram lanados e esto percorrendo o Brasil, obtendo franca acolhida do pblico ledor (...). Temos assim, em volumes pequenos, formato de bolso, uma srie de livros onde so estudados e analisados, base de argumentos cerrados e interpretaes lcidas, sem qualquer ortodoxia poltico-partidria, grandes e vitais assuntos problemas de atual hora brasileira. Sempre agindo como quem interroga e ao mesmo tempo formula, os autores levantam e equacionam realidades de nossa vida poltica em face do seu anseio mais imediato de ordem libertria, quer seja no terreno econmico, como no doutrinrio, ideolgico e cultural. Sendo uma coleo de carter populista e divulgador, no estamos diante de tratados definitivos nem profundos sobre a matria. O objetivo da coleo , sobretudo, informar, j que seu lema assim se expressa: Somente quando bem informado que um povo consegue emancipar-se (Dantas, 1962). 5.7. Participao em campanhas eleitorais, mantendo peas e shows musicais levados nas ruas e praas pblicas. Essa participao era feita ou sob contrato ou sob a forma de apoio espontneo a candidatos escolhidos pelos estudantes 28 . 5.8. Produo de peas, msicas e cartazes para os CPCs estaduais.
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Entrevista com Carlos Estevam Martins.

5.9. A realizao da segunda UNE-Volante que contou com: O filho da besta torta do Paju, pea de Oduvaldo Vianna Filho.

A QUESTO DA CULTURA POPULAR POSTA EM QUESTO

As atividades do CPC da UNE no eram realizadas sem orientao tericometodolgica Fundamentavam-se em referencial terico explicitado no trabalho de Carlos Estevam, A questo da cultura popular, e no de Ferreira Gullar, A cultura popular posta em questo 29 . Para a clara compreenso das concepes formais e conteudsticas que orientavam a produo artstica do CPC, Carlos Estevam afirma que antes de mais nada necessrio distinguir com clareza as caractersticas que diferenciam a arte do povo da arte popular e, ambas, da arte praticada pelo CPC a que ele chama de arte popular revolucionria. A arte do povo , para esse autor, predominantemente um produto das comunidades economicamente atrasadas e floresce de preferncia no meio rural ou em reas urbanas que ainda no atingiram as formas de vida que acompanham a industrializao. O trao que melhor a define que nela o artista no se distingue da massa consumidora. Artistas e pblico vivem integrados no mesmo anonimato e o nvel de elaborao artstica to primrio que o ato de criar no vai alm de um simples ordenar os dados mais patentes da conscincia popular atrasada. A arte popular, por sua vez, se distingue desta no s pelo seu pblico que constitudo pela populao dos centros urbanos desenvolvidos como tambm devido ao aparecimento de uma diviso de trabalho que faz da massa a receptora improdutiva de obras que foram criadas por um grupo profissionalizado de especialistas. Os artistas se constituem assim num estrato social diferenciado de seu pblico, o qual
Se bem que o livro de Gullar seja to importante quanto o de Eatevam, concentrei minha anlise no ltimo devido sua originalidade e o seu carter polmico. Estevam , a meu ver, o grande terico da questo.
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se apresenta no mercado como mero consumidor de bens cuja elaborao e divulgao escapam ao seu controle. A arte do povo e a arte popular, quando considerados de um ponto de vista cultural rigoroso, dificilmente poderiam merecer a denominao de arte, por outro lado, quando considerados do ponto de vista do CPC, de modo algum podem merecer a denominao de popular ou do povo. Com efeito, para Estevam, a arte do povo to desprovida de qualidade artstica e de pretenses culturais que nunca vai alm de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir fatos triviais dados sensibilidade mais embotada. ingnua e retardatria e na realidade no tem outra funo que a de satisfazer necessidades ldicas e de ornamento. A arte popular, por sua vez, mais apurada e apresentando um grau de elaborao tcnica superior, no consegue, entretanto, atingir o nvel de dignidade artstica que a credenciasse como experincia legtima no campo da arte, pois a finalidade que a orienta a de oferecer ao pblico um passatempo, uma ocupao inconsequente para o lazer, no se colocando para ela jamais o projeto de enfrentar os problemas fundamentais da existncia. Resultando do fenmeno geral de democratizao da sociedade contempornea, a arte popular a produo em massa de obras convencionais cujo objetivo supremo consiste em distrair o espectador em vez de form-lo, entret-lo e aturdi-lo em vez de despertlo para a reflexo e a conscincia de si mesmo. A arte popular no pretende operar transformaes substanciais em seu pblico; tudo se passa como se a finalidade mxima desta arte fosse a de conservar o povo imobilizado no estado em que o encontra. Em suas mltiplas manifestaes sempre visvel a presena da atitude escapista que diante dos conflitos do mundo s consegue resolv-los fingindo que o mundo no existe com os seus conflitos. Ela abre ao homem a porta para a salvao ao refugi-lo numa existncia utpica e num eu alheio ao seu eu concreto. A arte popular escapista porque no constri seus valores por um processo de aprofundamento e intensificao das experincias vividas pelo homem do povo. Consegue ser lrica lidando com a misria, consegue ser saudosista quando se trata do futuro, capaz de ironia ou abnegao diante da dor mais pungente e de todos os modos representa sempre um salto mgico para um plano mgico de existncia

ao qual ningum sabe como chegar e de onde ningum sabe como voltar para as provas do cotidiano. Estas concepes, por sua vez, se fundamentam na forma como Estevam pensa a cultura. Para ele, ainda que cultura seja um conceito de extenso miseravelmente vasta que, a rigor, quer dizer tudo que no exclusivamente natureza e passa a significar praticamente tudo num mundo como o de hoje penetrado por todas as partes pela ao criadora do trabalho humano, numa sociedade de classes a cultura produzida e reproduzi da pelas classes numa dinmica cuja lgica dada pelas relaes sociais de produo. Assim, diz ele; o mundo da cultura, entendido como superestrutura espiritual da sociedade, se apresenta como um produto derivado, como um reflexo do modo pelo qual se encontra organizada a vida econmica da sociedade em cada momento histrico. Entretanto, no obstante o inevitvel condicionamento que o liga em ltima instncia sua base econmica, o mundo da cultura, ao se desenvolver desdobrando suas diversificaes internas, vai ganhando uma considervel autonomia aos seus suportes materiais (Estevam, 1963, p. 9). Determinao e autonomia relativa so as duas foras que orientam a dinmica do mundo da cultura e que vo, na sociedade de classes, provocar um duplo movimento: o da cultura alienada e o da desalienada. Antes, porm, necessrio entender qual o sentido que Estevam atribui autonomia relativa do mundo cultural. Para ele, formas da vida social como a cincia, a arte, a filosofia, a educao, adquirem um status prprio e a suficiente independncia para que possam se reger, em grande parte, por leis prprias dotadas de coerncia interna e desenvolvimento autnomo. Isso acontece na medida em que essas formas encontram um correlato tambm autnomo nas novas necessidades que o trabalho social incorporou existncia humana. A necessidade de emoo artstica, por exemplo, tornou-se para a espcie humana uma necessidade to imperativa quanto o so as determinadas pelo funcionamento do organismo e a manuteno da vida. O mesmo se pode dizer de outras necessidades como o saber, a convivncia moral, a educao, o divertimento, etc. Tais valores, certo, nunca perdem sua fundamental vinculao

fonte material de sua existncia que, em ltima anlise, os determina no s em sua forma e contedo atuais, como tambm nas transformaes por que passam ao longo da histria. Nem por isso, entretanto, pode-se negar que representem o papel de novas e numerosas estruturas nas quais dado ao homem expandir e aprofundar as qualidades potenciais de sua natureza. A justificativa da autonomia das formas superiores da cultura encontra-se, pois, no fato de que elas se dirigem satisfao de necessidades espirituais tambm autnomas do homem. A verdade da mxima estica a virtude constitui sua prpria recompensa no pode ser negada por mais que se considere como estreita a dependncia mantida pelos diferentes domnios da vida com o que se passa na rea da organizao econmica da sociedade, sem conseguir eliminar o condicionamento incessante ditado pela base material e, ao mesmo tempo, no se deixando subordinar completamente, os bens espirituais conquistam a condio de fins em si mesmos, no precisando, em certo sentido, de outra justificativa alm de sua prpria existncia. Essa capacidade de autodeterminao das formas superiores da cultura encontra sua contra partida na autonomia do homem enquanto ser pensante e sensvel, pois aquelas formas so bens adequados a essas dimenses superiores de nossa existncia. medida que se desenvolvem nossas faculdades de apreenso racional e sensvel do real, essas faculdades passam a existir como rgos autnomos dotados de aspiraes prprias, o mundo da cultura tambm passa a ter, de direito, as suas prprias leis, suas necessidades e seus objetivos prprios. Isto significa que as estruturas culturais no podem ser tratadas como meros instrumentos. No podem ser utilizadas para obteno de fim extraculturais, o que implicaria em desfigurar a prpria essncia do fenmeno cultural. Assim, quando se pensa que a cincia merece ser cultivada para aumentar o nvel de bemestar material, comete-se a incorreo de supor que a cincia tem necessidade de ser justificada como um meio e precisa, para existir, de apoiar-se em uma finalidade estranha a ela mesma, uma outra finalidade que no seja a prpria aspirao de saber experimentada pelo homem. (Estevam, 1963, p. 10-11).

A cultura alienada

, entretanto, exatamente isso que ocorre numa sociedade de classes. Assim, observa Estevam: dada uma sociedade dividida em classes e dada a dominao de uma das classes sobre as demais, esto dadas as condies objetivas suficientes para o florecimento da cultura alienada. A classe no poder, claro est, pretende perpetuar indefinidamente sua invejvel posio e para isso necessita estender sua dominao a todos os rinces da sociedade. Tencionando que toda a sociedade esteja organizada em funo dos seus interesses, como poderia a classe dominante dispensar uma viso de mundo e um aparato cultural capazes de dar a ela e s demais classes a certeza lquida de que nada mais legtimo do que o status quo e nada mais inelutvel do que a sua prpria vocao para o poder? D-se, entretanto, que semelhante tarefa no pode ser levada acabo sem que se rasgue a carta de princpios onde esto fixadas as leis inflexveis que regem o mundo da cultura. Qualquer viso de mundo adequada aos interesses de uma classe dominante deve necessariamente comear pelo ato inconstitucional que revoga os valores mximos do esprito, pois no h conciliao possvel entre tais interesses e a verdade, o bem, a beleza, o humanismo e todo o complexo conjunto de valores e procedimentos que formam a totalidade concreta e prtica da cultura. A dominao exercida pela minoria em seu prprio benefcio no pode constituir uma viso de mundo apoiada na objetividade. Para isso precisaria abrir mo de sua prpria perspectiva, assumindo ento o modo de ver da coletividade. A minoria opressora, entretanto, sabe que a preservao de seus privilgios no compatvel com as posies que, falando em nome de toda a sociedade, no se apresentam como representativas de interesses particulares. A minoria no pode tolerar a devassa democrtica da sociedade, pois isso revelaria o infundado de seus privilgios, a comear pela apropriao privada dos bens de produo. A preservao de seu poder depende de que as outras classes permaneam

iludidas. Depende ainda de que a prpria classe dominante permanea mistificada. Ela necessita conhecer cada problema particular o suficiente para defender, em cada caso, o seu interesse, mas no pode enfrentar a sociedade como uma totalidade. No pode por em questo a essncia da sociedade de classes, nem trazer luz as contradies inerentes a uma organizao-para-todos montada em funo da minoria. O conhecimento de si mesma, a conscincia de sua situao de classe, um dado fatal para a sua sobrevivncia. Por isso no lhe resta outra sada alm do esforo contnuo de mistificao, desde a pura e simples falsificao dos fatos, at a elaborao de teorias gratuitas forjadas para o ocultamento da verdadeira essncia de uma ordem social que s pode ser aceita tendo-se em vista interesses materiais privados e no os imperativos superiores da cultura. O drama da classe dominante est em que, assenhoreando-se de tudo o que h de melhor na sociedade, ela, que tudo pode possuir, tem que acatar, como propriedade intransfervel das outras classes, os bens da verdadeira cultura. A classe dominante s capaz da falsa cultura na razo direta em que a forma prpria de sua conscincia a falsa conscincia. A representao que ela se faz de sua prpria situao vital embora possa ser explicitada e justificada a partir de condies sociais e histricas, no nunca constituda pelas idias e sentimentos que a classe deveria ter caso fosse capaz de apreender o significado real de sua situao no mundo. A dominao conduz inevitavelmente a uma forma de conscincia que gira em falso porque, do ponto de vista subjetivo, no realiza os fins que a si mesma se prope, ao mesmo tempo que, objetivamente, levada a cumprir propsitos sociais que ela no s escolhe como, inclusive, desconhece. A essa conscincia dominante, falsa, opressora, alienada, mistificada, corresponde uma cultura dominante de igual teor. O fato mais caracterstico dessa cultura sua assombrosa incapacidade de transcender o imediatamente dado percepo humana. A codificao exaustiva da imediatez a obra mxima que ela aspira realizar. Por mais que se esforce, h uma fatalidade de que no consegue se libertar: ela apreende o real sempre onde ele no est, pois sempre se contenta em captar, analisar e sistematizaras formas exteriorizadas por meio das quais a matria, os fatos e as leis que os regem aparecem conscincia.

Separando os fenmenos do fundamento econmico de sua existncia, isolando-os da nica base que permite explic-las, a cultura que serve aos interesses dominantes passa a lidar com formas derivadas, esvaziadas de todo contedo concreto. Para ela, entretanto, essas formas de apario da vida social, destacadas do terreno material que lhes deu origem, encerram o ncleo inteligvel do processo vital da sociedade. Entendendo que, para alm dessas formas nada h que merea indagao, os militantes da cultura alienada do por cumprida sua misso quando conseguem hipostasiar em entidades rgidas e eternas as estruturas formais que cabe ao saber, descobrir, descrever e hierarquizar. Segundo seu modo de ver, elucidar o real significa indicar quais sos os tipos intemporais que sintetizam as possibilidades de relaes que o real capaz de exibir. Se a cultura o modo eficaz por meio do qual os homens equacionam e resolvem os problemas surgidos de sua relao com a natureza, com a sociedade e consigo mesmos, se verdade que a cultura eleva o homem ao domnio do mundo exterior e de sua vida interior, ento a cultura alienada no merece o nome de cultura. Seus praticantes no conseguem ver formas assumidas pela vida humana o resultado de um processo de evoluo. Situam-se no plano mais primitivo do conhecimento que atribui s foras da natureza o carter de potncias extra-terrenas comandadas por desgnios insondveis. Assim, no advertem o carter histrico das estruturas que moldam a vida social e, no as vendo como histrias em sua gnese, formao e amadurecimento, so levados a tom-las como entidades imutveis que se comportam como formas naturais e eternas: a histria seria algo que acontece ao lado dessas configuraes sociais como marcos rgidos. Para a cultura alienada a histria deve ser concebida apenas como substituio inexpressiva de homens e fatos dentro dos limites determinados por princpios que sempre existiram e nunca desaparecero. Supe, ao mesmo tempo, que a finalidade da histria ser uma busca perfeccionista que culminar com a realizao cabal dessas formas ideais para as quais a humanidade tende em gradativas aproximaes. Numa sociedade dividida em classes, no pode ser outra a viso de mundo encomendada para atender aos propsitos da classe dominante. Como poderia a

cultura alienada fazer a apologia da ordem social vigente sem, ao mesmo tempo, sustentar que a histria no a histria das formas pelas quais os homens se renem em sociedade? Como poderia exaltar o status quo e, ao mesmo tempo, compreender que o movimento da sociedade, como observou Marx, no pode ser pensado como se fosse movimento de coisas que nos controlam em vez de serem controladas por ns? Quanto mais cresce e se desenvolve, mais a cultura alienada se perde na alucinao e se recusa a enfrentar e explicar o mundo concreto. Quando mais profunda mais especializada, mais cultural ela aparenta ser, a mesmo que mais se revela o seu verdadeiro ser anticultural e a sua impotncia para realizar aquilo que o homem espera da cultura. medida que vai evoluindo, cada ramo da cultura alienada vai cada vez mais perdendo, custa de uma progressiva especializao, o sentido do real como totalidade. O processo unitrio do real cede lugar a um mundo estilhaado em fragmentos isolados. O trgico para a cultura alienada que, do seu ponto de vista subjetivo, essas parcelas do mundo aparecem incomunicveis entre si e no envolvidas pela totalidade que a todas compreende e determina, ao passo que, objetivamente, essas partes nada tm de isoladas, pois se articulam num tecido de conexes mtuas e interaes incessantes que no s constituem um processo global nico, como so por ele constitudas. Avanando ainda mais em seu pseudo progresso cultural, os ramos em que se fragmenta a cultura alienada acabam por se desinteressar at mesmo dos aspectos ontolgicos caractersticos de seu prprio campo de ao. Marx mostrou, por exemplo, como na economia poltica o valor de uso est, enquanto valor de uso, fora da esfera de consideraes da economia poltica. O mesmo fato se repete em todos os setores da cultura alienada. Cada um, alm de virar as costas ao resto do mundo que fica fora de seu campo especfico de ao, acaba passando a uma alienao em segunda potncia e deixa at de tratar a matria que est em sua prpria base como ramo especializado da cultura. Transformando-se em sistemas fechados de leis particulares, os setores fragmentados da cultura alienada no conseguem mais enfrentar nem sequer o seu prprio substrato concreto de realidade. O terreno material especfico que lhes

cabe explorar e elucidar passa a ser tido como impossvel de ser apreendido pela conscincia e cai, portanto, fora do mbito de interesse da cultura. Se os setores da cultura alienada nem sequer se julgam na obrigao de esclarecer os prprios objetos particulares que lhes cabe tratar, com muito mais forte razo no conseguem dar conta do carter social do nascimento e do desaparecimento das formas e contedos que definem cada domnio particular da cultura. A assombrosa falncia da cultura alienada se resume toda na incapacidade de compreender que o movimento que cria novas formas e contedos no interior do mundo da cultura tm seu fundamento real nas modificaes verificadas nas relaes de fora entre as classes. No admitindo o fato fundamental da sociedade de classe a luta de classes a cultura alienada no percebe que, em ltima anlise, ela representa o papel passivo e reflexo do fiel da balana em cujos pratos atuam as foras sociais em luta. , portanto, incapaz de assumir uma atitude de sujeito face ao mundo. Do mesmo modo que a cultura alienada, dificilmente tambm os homens que a praticam poderiam se apresentar como cultores das qualidades humanas. O homem culto da cultura alienada assume a figura de um fantasma erudito em meio a um mundo concreto, rico em criaes, movimento e vida. As propriedades e faculdades de seu esprito aparecem separadas da unidade orgnica de sua pessoa, e se convertem em coisas exteriores que no so o prprio homem, mas apenas bens possudos, suas qualidades espirituais so postas venda no mercado e, estando venda, so compradas e utilizadas para servir, no aos fins superiores do homem e da cultura, mas aos interesses anti-humanos do capital comprador.

A cultura desalienada: a vanguarda

Para Estevam h duas formas de resposta ao descalabro cultural representado pela existncia da cultura alienada: uma a cultura desalienada, outra a cultura popular. Na verdade, como se pode ver em seguida, o que Estevam chama de cultura desalienada pode ser chamada tambm de vanguarda cultural.

As distines entre essas trs alternativas podem ser expressas atravs de uma imagem espacial indicando que o vetor da cultura desalienada aponta para cima, no sentido da elevao do homem ao nvel da plena compreenso da totalidade de sua situao vital; o vetor da cultura popular aponta para baixo, no duplo sentido de cultura das grandes massas e cultura voltada para o movimento infra-estrutural da sociedade. J foi visto como atua para fora o vetor da cultura alienada. Resta agora examinar o que significa o para cima e o para baixo. Para Estevam, o combate que os militantes da cultura desalienada travam contra seus adversrios caracteriza-se, acima de tudo, pelo fato de ser travado em estrita obedincia s regras do jogo cultural. Evidentemente, no desconhecem que o conflito entre as duas posies s ser definitivamente resolvido quando forem eliminadas as razes objetivas, materiais, que fazem da cultura alienada um poder dominante na sociedade. Entretanto, embora admitindo esse princpio como ponto de partida, sustentam simultaneamente que sua atividade revolucionria deve ser exercida exclusivamente no plano prprio da cultura. Sentem-se chamados a trabalhar na tarefa histrica de transformao substancial da sociedade e reivindicam um posto especializado nessa luta. Esto dispostos a contribuir para acelerar o processo de transformao e efetivamente contribuem para isso empreendendo uma ao que se desenvolve exclusivamente dentro dos marcos delimitadores do mundo cultural. Esta reivindicao apoia-se em slidas razes. Em primeiro lugar porque, queira-se ou no, o front cultural existe como um fato. Seria contrrio causa revolucionria fundamental querer neg-lo ou simplesmente subestimar a sua importncia. Uma vez que a se trava uma luta ao longo da qual a cultura alienada tenta impor e firmar o seu ponto de vista e estender a sua penetrao social, seria prejudicial ao avano geral das foras revolucionrias qualquer declnio da combatividade das vanguardas nesse front especfico. Em segundo lugar, o trabalho revolucionrio exclusivamente cultural se justifica pelo fato de ser decisivo, para a atuao poltica concreta, o adequado esclarecimento das questes tericas, a clareza sobre as posies de princpio. Evidentemente, quanto mais intensa e variada for a atividade exclusivamente

cultural, tanto mais acertadamente poder ser orientada a marcha das foras revolucionrias em direo aos seus objetivos particulares e gerais. A terceira razo o conhecido poder que a superestrutura espiritual tem de reagir sobre a base material da sociedade. As transformaes operadas no nvel da superestrutura graas aos avanos culturais obtidos pela luta exclusivamente cultural no deixam de propiciar transformaes no nvel da infraestrutura, possibilitando assim o avano do processo material bsico. Entretanto, no obstante encarne uma funo social legtima, a cultura desalienada e desalienante no esgota todas as possibilidades de atuao cultural revolucionria. Ela apresenta limitaes intransponveis e o mais frequente erro cometido pelos seus representantes tem sido o de desconhecer a existncia e o alcance dessas limitaes. Acreditam que ela representa a nica resposta realmente vlida para a questo cultural e no podem, por conseguinte, encarar a cultura popular como um preenchimento de funes deixadas a descoberto pela cultura desalienada. No conseguem ver que a cultura popular surge em atendimento a necessidades insatisfeitas pela cultura desalienada e opera numa dimenso de realidade que inacessvel para esta ltima. Ao examin-la v-se imediatamente que sua limitao mais caracterstica est no respeito e na confiana que lhe inspiram as leis intrnsecas ao mundo da cultura. Em nenhum momento da sua luta contra a cultura alienada ela deixa de ser fiel s regras do jogo cultural, entre as quais esta o princpio fundamental que considera os valores culturais como bens vlidos e desejveis por si mesmos. Estabelece assim expressa proibio quanto ao uso instrumental da cultura para a obteno de fins extra-culturais. Nada mais justo do que a cultura desalienante impor a si mesma essa limitao de princpio. A coisa muda de figura, entretanto, quando seus representantes passam a generalizar o valor desse princpio e pretendem aplic-lo no julgamento das obras da cultura popular. Ao no perceberem que esto lidando com um princpio de validade restrita ao domnio da cultura desalienada, cometem o grave erro de denunciar os crimes contra a cultura praticados pelos militantes da cultura popular. Como j vimos em parte e explicaremos adiante,

este equvoco decorre de uma incompreenso relativa prpria razo de ser da cultura popular. Outra limitao caracterstica da viso dominante entre os artistas e intelectuais de vanguarda reside no princpio que impe cultura desalienada o objetivo de se desenvolver segundo suas prprias exigncias na medida em que enfrenta os problemas que lhe aparecem em consequncia das solues dadas a problemas anteriores. Esse dinamismo imanente lhe inevitvel, pois ditado pela necessidade de servir s finalidades supremas da cultura, que busca elevar o homem a um nvel sempre superior de compreenso do mundo e de si mesmo. Esses artistas e intelectuais so precisamente chamados a realizar uma tarefa praticamente oposta que compete cultura popular. inevitvel que, para eles, os limites que a cada momento configuram o estado atual da cultura se apresentem como barreiras que esto permanentemente desafiando e estimulando sua necessidade de super-las. Seu dever prioritrio o de invadir as terras do desconhecido realizando um esforo, que nunca pode ser interrompido, para alargar cada vez mais o campo do j conhecido. D-se, entretanto, que a necessidade de saber do homem culto no tem o mesmo contedo que a necessidade de saber das grandes massas. Para o primeiro, o j conhecido funciona como o ponto de apoio graas ao qual pode debruar-se sobre o ainda a conhecer: o que lhe faz falta a descoberta do socialmente novo. Para as grandes massas, ao contrrio, situados como esto margem da cultura, o ainda a conhecer o j conhecido no seio da elite de vanguarda, o novo a ser conquistado o que, uma vez conquistado, j possudo pela vanguarda. Esse descompasso mais uma das limitaes que impedem a cultura desalienada de realizar a tarefa atribuda cultura popular. Aqui preciso assinalar que no estamos afirmando que as massas, ao contrrio das elites, so incapazes de pensar por si mesmas. O que est dito que uma sociedade dividida em classes no pode de modo algum produzir uma cultura nacional unitria e uniformemente distribuda: no que se refere ao contedo, povo culto significa uma coisa, elite culta significa outra; no que se refere distribuio, a defasagem entre vanguarda e povo mostra bem como h dois mundos dentro da mesma sociedade. Das limitaes acima mencionadas decorrem vrias outras que, igualmente,

justificam a existncia da cultura popular a partir das prprias insuficincias intrnsecas cultura desalienada. A vanguarda cultural est a ter uma viso espontanesta acerca do modo pelo qual os valores culturais podem levar as massas ao poltica eficaz. Os artistas e intelectuais que militam nessa posio partem do pressuposto de que seu trabalho no deve nem pode obedecer a uma inteno poltica explcita. A seguir, consideram que a presena de qualquer inteno extracultural de todo dispensvel, pois a obra cultural verdadeira, por sua capacidade de aproximarse do real e retrat-lo, consegue refletir a vida e situar suas contradies at mesmo quando o produtor da obra lana-se ao trabalho partindo de um ponto de vista politicamente falso. A atuao das leis internas no mundo da cultura faz com que a obra autntica reflita as contradies do real mesmo a contragosto de seu produtor. A cultura desalienada admite, assim, que desempenha um papel

revolucionrio na sociedade pelo simples fato de existir como cultura no falsificada. Afirma que seu sentido revolucionrio no est na apresentao explcita de solues para os problemas sociais, nem na formulao de palavras de ordem que signifiquem uma instigao direta para a prtica poltica concreta e imediata. Acredita, ao contrrio, que seu papel revolucionrio satisfatoriamente desempenhado na medida em que ela reflete, de maneira no tendenciosa as relaes do homem com o mundo e consigo mesmo e consegue reproduzir num quadro fiel os fatos e as estruturas possveis de serem captadas pela razo e pela sensibilidade. Assim fazendo, ela julga que a um s tempo cumpre seus propsitos culturais e colabora, em seu campo, com as foras revolucionrias que lutam em outros setores da sociedade. Sua tarefa no pode ser seno a de clarificar as perspectivas que se abrem aos homens em cada poca histrica. Este modo de ver , sem dvida, perfeitamente justo. Mas isso no quer dizer que no possa levar a posies inteiramente descabidas. Uma delas consiste em pensar que as normas acima so vlidas tambm para a cultura popular. preciso ver, ao contrrio, que a cultura popular traz consigo o seu prprio sentido e no pode ser reduzida a um tipo de produo cultural que, embora tenha sentido revolucionrio e obedea a critrios marxistas de constituio e funcionamento, no

satisfaz aos objetivos especficos da cultura popular. Outro perigo contido na conceituao que estamos examinando o fato de que ela pode levar, e frequentemente leva, a atitudes leibnitzianas da compreenso do processo histrico. muito comum encontrar nos pronunciamentos desses artistas e intelectuais a idia subjacente de que as relaes entre a super e infraestrutura se processam segundo uma harmonia pr-estabelecida. Supem, quase sempre implicitamente, que o rigoroso cumprimento dos objetivos culturais a que se propem garante, s por si, a melhor repercusso possvel sobre a infraestrutura. Quanto mais o produtor de cultura se mantiver adistrito s leis culturais mais eficazmente estar agindo sobre o que extra cultural. Isso quer dizer que no acreditam na possibilidade (que a prpria razo de ser da cultura popular) de acelerar mais eficazmente o processo histrico mediante a utilizao de recursos culturais que passam a ser aplicados de um modo culturalmente ilegtimo. Embora seja correto lutar contra as deformaes que podem surgir no seu prprio campo de trabalho, os representantes da cultura desalienada erram ao generalizar o que s se aplica a eles mesmos e passam a adotar, em relao cultura popular, um ponto de vista que tem muito em comum com aquela famosa tese reacionria de que o estudante deve estudar. certo que o estudante que s estuda est contribuindo para o avano do processo social, mas tambm inegvel que a atuao poltica direta do estudante que nem s estuda desencadeia efeitos muito mais profundos na base material do nosso avano social. A atitude que Estevam condena e que um vcio de uma posio em princpio correta, frequentemente leva idia de que a cultura s pode exercer a funo de testemunho dos males sociais, a ela competindo, portanto, o papel passivo de contemplar o que se passa na sociedade e de registrar suas impresses num livro de ocorrncias disposio dos interessados. Esse equvoco ainda levado ao extremo quando o artista e o intelectual resolvem superestimar a lei segundo a qual a infra-estrutura da sociedade no pode ser reproduzida em termos culturais sem sofrer um processo de traduo que transplante para uma outra linguagem, o modo como os fenmenos materiais se apresentam em sua realidade crua. Nesta recriao cultural de processos materiais o artista e o intelectual, que

exageram sua fidelidade aos princpios que regem seu mtier, procuram ocultar o mais que podem sua prpria posio diante do contexto que esto traduzindo. Acreditam que prefervel manter-se maior distncia possvel e se esforam por atingir uma imparcialidade to absoluta que apague da obra qualquer vestgio capaz de denunciar a existncia de seu autor. Tal comportamento escuda-se na pressuposio de que nada mais convincente do que a prpria eloquncia das coisas, sendo assim prefervel deix-las entregues objetividade de seu jogo da verdade e afastar as interferncias que s viriam obscurecer a limpidez com que os fatos denunciam o absurdo da sociedade de classe. D-se, entretanto, que, por si mesmas, as coisas nada dizem, pois sempre necessitam, para falar de uma conscincia que as interprete. frequente encontrarse em discusses sobre cultura popular, a citao de que ningum retratou melhor do que Balzac os problemas de sua poca, pois a lgica dos fatos fez com que sua obra contrariasse as posies pessoais do autor e superasse, deste modo, a insuficincia de seus pontos de vista. Ora, dentre os milhes que leram Balzac, so rarssimos os que se deram conta das contradies da poca refletidas na obra, sendo que, entre esses poucos, a maioria tomou conhecimento do fato alerta da por argutos intrpretes. Do mesmo modo, antes e depois de Marx existiam e existem os fenmenos por ele analisados e explicitados. Entretanto, milhes continuam a presenciar esses mesmos fenmenos sem perceberem o significado que tm. Assim e ser porque as coisas no falam sozinhas por mais que pensem o contrrio os privilegiados a quem foi dado o direito de poder interpretar, por si mesmos, o significado das coisas. As grandes massas no dispem dessa facilidade. Estevam, no est querendo insinuar que os praticantes da cultura desalienada devem se entregar ao mesmo grau de militncia poltica a que se obrigam os que se dedicam cultura popular. Isso seria pedir alm dos limites permitidos e inclusive invalidaria a prpria existncia da cultura popular, uma vez que a outra cultura estaria fazendo o que s a ela compete. O que Estevam quer dizer que, mesmo sem trair as suas finalidades descambando para uma atuao de sentido poltico direto, a cultura desalienada j podia imprimir sua produo um propsito mais audacioso de explicitar

problemas e solues em seus aspectos mais palpveis e imediatos. Isso s seria possvel caso fosse eliminada a concepo corrente nos meios culturais de vanguarda que o povo chegar ao poder ao longo de uma evoluo orgnica durante a qual as idias revolucionrias iro paulatinamente passando a camadas cada vez mais amplas da populao. Basta que cada qual da vanguarda se limite o fazer o seu prprio trabalho dando o melhor de si mesmo, sua honestidade, sua inteligncia, sua sensibilidade, e a causa revolucionria crescer e se alastrar de maneira mais ou menos espontnea. Dessa maneira os fins e os meios das lutas revolucionrias sero, naturalmente, descobertos a cada momento, sem que os produtores da cultura tenham necessidade de fazer mais do que aquilo que lhes exigido pelas prprias leis de desenvolvimento do setor particular em que atuam. Este modo de ver se harmoniza com uma limitao no menos insupervel do que as outras que at aqui examinamos: os produtores da cultura desalienada no podem ter o povo como pblico. Esto condenados a sempre se dirigirem ao pblico em geral. Isso significa que a cultura desalienada , em princpio e tomada idealmente, uma cultura para todos, universal. No h como fugir dessa pressuposio que indispensvel prpria constituio dessa cultura. Se as suas formulaes no forem universalmente vlidas, ela ter abandonado o ponto de vista da verdade e d-se que a verdade a tem um sentido distinto daquele que a caracteriza na cultura popular. Esta ltima lida apenas como verdades particulares, verdades relativas a objetivos polticos definidos. Os mtodos de aquisio e demonstrao da verdade so uns em cultura popular e outros em cultura desalienada: puramente contingente a coincidncia eventual entre uns e outros. A cultura desalienada s sobrevive enquanto no trai a sua finalidade de atingir a verdade em sua globalidade, a verdade que abarca em seu conjunto e em seu detalhe todos os processos objetivos. Todas as questes ao alcance da abordagem e da compreenso humana esto inclu-las no mtodo e no objeto dessa cultura. Sua tarefa s pode ser levada a cabo sob a condio de serem utilizados os instrumentos, altamente elaborados, de apreenso, de conceituao e de expresso criados pelo progresso cultural da humanidade. Sem a utilizao desses recursos a cultura, pura e simplesmente, no pode realizar-se como tal.

Eis porque ela est ao alcance do pblico em geral e no do povo propriamente dito. Para participar da cultura preciso j estar na cultura. O povo, entretanto, est margem e, mantidas as condies vigentes na sociedade de classes, no h como integr-lo nesse processo exclusivamente vivido pela elite. Fora da ao poltica das massas, no h soluo para o caso. A se v perfeitamente de que modo a cultura popular representa a nica sada possvel para a contradio povo-cultura. Ela constitui para o povo a cultura que ele pode e precisa ter, aqui e agora, dentro do estreito quadro da ordem social vigente. H outra limitao da cultura desalienada que merece ser apontada ainda que rapidamente. Refere-se impossibilidade que a impede de participar dos problemas materiais relativos transmisso da cultura do povo. A classe dominante domina, como no podia deixar de ser, os veculos de comunicao com o pblico. Encontrando sua frente um sistema de distribuio de valores culturais cuidadosamente bem montado, um sistema que coloca a domiclio todos os bens exigidos pelo consumo alienado, a cultura desalienante choca-se com uma barreira que no est em suas mos destruir. Embora no veja como seu objetivo precpuo a atuao sobre as massas, ela no pode concordar com o fato de no serem dadas, a todos idnticas oportunidades de livrarem-se do cerco asfixiante da cultura alienada. Mas o que fazer? O monoplio da distribuio um fato real e ela prpria no pode se lanar obra de desbaratar este controle frreo que a classe dominante estabelece como intermediria comercial entre as fontes da cultura e os seus consumidores. Tal tarefa extracultural e, por isso mesmo, lhe est vedada por princpio. Conservando-se dentro dos marcos traados por suas limitaes essenciais, compete cultura desalienada a realizao de um trabalho de sentido revolucionrio inequvoco. D-se, entretanto, que ela est sempre ameaada pela tentao de no se conter dentro daqueles limites. Cabem-lhe fundamentalmente duas tarefas: o esforo crtico por meio do qual ela bombardeia e desmascara as posies defendidas pela cultura alienada e o esforo de substituio mediante o qual ela tenta, aos poucos e na medida do possvel, ir ocupando o lugar de sua opositora. Mas esse esforo de substituio, se bem que vlido em si mesmo, pode ser origem de uma iluso profundamente idealista, mas que nem por isso deixa de ser

compartilhada pela grande maioria dos artistas e intelectuais de vanguarda. Em maior ou menor grau, quase todos agem como se pensassem (embora jamais formulem esse pensamento) que a cultura desalienada pudesse ser implantada, j em substituio alienada. Dificilmente poderamos demonstrar, por meio de provas, a verdade desta acusao, pois, como foi dito, a concepo que est sendo denunciada no se mostra nunca explicitamente: ela uma concepo subjacente s produes e aos rumos que para si mesma determina a cultura desalienada e desalienante. O fato que, reconhecendo os determinismos da base material da sociedade, reconhecendo a possibilidade da relativa reao da superestrutura sobre a base, reconhecendo o dever de respeitar os valores intrnsecos ao mundo da cultura, reconhecendo ser extracultural o fato de na sociedade de classes existir apenas uma minoria capaz de culturalizar-se a si mesma como os representantes e defensores da verdadeira cultura, os artistas e intelectuais de vanguarda relutam em conceder a outros o direito de adotar um comportamento distinto do seu. Sentem-se concescionrios da palavra definitiva sobre o assunto cultura e manifestam o propsito de fazer com que os seus padres sejam adotados por todos que, seja l como for, produzem cultura. Tal atitude, lastimvel e evitvel, compreensvel quando se recorda a existncia daquela concepo subjacente tipicamente idealista. Com efeito, s quem pensa que j possvel na sociedade de classes substituir a cultura nacional pela cultura desalienada pode considerar como desviadas, errneas, deturpantes, simplificadoras, primrias, etc., as tentativas e experincias culturais cujo propsito no o de realizar os padres da cultura desalienada, mas o de participar diretamente das lutas revolucionrias por meio da utilizao de recursos culturais. Uma importante variante dessa mesma questo aparece na j clebre tese da central eltrica. De uns tempos para c, e mais especialmente depois que Maiacovski entrou em moda, a vanguarda cultural vem difundindo, com grande insistncia, o modo de pensar que a classifica como uma usina central que produz energia e em seguida a distribui para sub-estaes encarregadas de abastecer o pblico. A central teria o compromisso de produzir apenas para o pequeno e seleto grupo de consumidores que compem a rede imediatamente ligada a ela. As sub-

estaes por sua vez, transformariam em produto de segunda mo aquela energia em estado puro originalmente gerada pela central. Essa transformao se verificaria em funo de dois fatores: a qualidade inferior da aparelhagem da sub-estao e qualidade inferior do poder receptivo do grande pblico. Assim pretende a vanguarda firmar sua pretenso irrestrita autonomia e dar por pr-justificados todos e qualquer um dos seus atos passados ou futuros. Evidentemente no se pode aceitar semelhante colocao, a no ser como imagem que facilita a discusso do problema. Na verdade, a tese da usina central, para Estevam, prova exatamente o oposto do que pretende demonstrar: ela faz ver que o momento fundamental justamente o da sub-estao, pois esta quem comando todo o processo. A tese da usina central jamais poderia servir defesa da liberdade sem limites reivindicada pela vanguarda, em primeiro lugar porque ela estabelece, de sada, um contrato bi-lateral que amarra os dois plos no elo de uma dependncia mtua. Vendo a subestao como intermediria entre ela e o pblico consumidor, a central se entrega de corpo inteiro ao controle da sub-estao. O centro s sobrevive enquanto consegue colocao para seus produtos no pequeno mercado que tem sua disposio. Para que isso acontea precisa evidentemente subordinar-se condio sine qua non de elaborar seus produtos segundo as prescries impostas pela rede intermediria diretamente ligada ao pblico. Enquanto se verifica essa subordinao fica de p a relao de dependncia recproca segundo a qual pode-se dizer que, do ponto de vista da central, a sub-estao to importante quanto o a central do ponto de vista da subestao. Entretanto, se o centro entra em rebeldia e pretende violentar a relao impondo ao mercado o arbtrio de seus prprios critrios, a ento v-se que a subestao que o plo mais poderoso. Dando-se o caso em questo, ela, pura e simplesmente, desemprega a central. E isso ela pode fazer por uma razo muito simples: como a retransmisso no um ato apenas mecnico, a sub-estao dispe para poder funcionar de uma complexa aparelhagem que continuamente recria as formas e contedos recebidos, os quais s passa adiante depois de serem submetidos a esse processo de transformao que os adapta s exigncias da demanda pblica.

Assim, todas as vezes que a central se amotina e passa a produzir com desprezo pelas sub-estaes, estas simplesmente se voltam para outras fontes produtoras e passam a importar ou de centros internacionais ou das prprias usinas da cultura alienada nacional, que s vezes so mais dceis e, portanto, mais realistas do que a prpria vanguarda esclarecida da cultura desalienada. Essa operao sempre possvel porque, como assinalamos, a sub-estao tem em suas mos a chave do negcio: a aparelhagem que transforma e transmite ao grande pblico os valores culturais.

A cultura desalienada: a cultura popular

A cultura popular, para Carlos Estevam, deve ser entendida como uma segunda restrio ao conceito genrico de cultura: Por que no ela cultura em sentido lato? Porque no se confunde com a totalidade do mundo humano superposto natureza graas ao trabalho criador dos homens. Ela ocupa apenas uma pequena rea desse mundo: a rea da conscincia. E por que no ela cultura em sentido restrito, no sentido de super-estrutura espiritual da sociedade? Pela mesma razo, visto que tambm a seu campo de validade no abrange a imensa rea definida dentro dos limites das manifestaes superiores do esprito. A cultura popular, essencialmente, diz respeito a uma forma particularssima de conscincia: a conscincia poltica, a conscincia que imediatamente desgua na ao poltica. Ainda assim, no a ao poltica em geral, mas a ao poltica do povo. Ela o conjunto terico-prtico que co-determina, juntamente com a totalidade das condies materiais objetivas, o movimento ascencional das massas em direo conquista do poder na sociedade de classes. A estrutura e a composio da cultura popular so determinadas pela finalidade que constitui a sua prpria razo de existir: ela s existe se comporta como uma fora, de carter cultural, que age com o objetivo de tornar consciente para as massas o sentido de sua situao histrica. O principio fundamental da cultura popular o de admitir como vlido tudo o que leva a realizao desse objetivo. Assim como Lenin disse a respeito da moral, para ns a moral est

subordinada aos interesses de classe da luta do proletariado, outro tanto poderia ser dito da cultura em geral. Caem, para Estevam, no quadro da cultura popular todas s atividades relativas formao da conscincia ativa das massas. Todos os objetos, idias, obras, organizaes, smbolos, comportamentos, valores, atitudes e tudo mais que visa, precpua e diretamente, a elevar o nvel de compreenso e atuao poltica da massa, tudo que a leva percepo do movimento real da histria como algo que se confunde com o seu destino. Dadas as condies objetivas atuais, o que falta subjetivamente massa para aumentar em quantidade e qualidade aquilo que nessas condies h de positivo e favorvel a seus interesses? Falta-lhe tornar-se consciente das aes que precisa executar para conquistar para si as posies dominantes. Seu destino depende subjetivamente de sua maior ou menor capacidade de responder aos problemas que encontra com um modo de ver consciente e no inconsciente, segundo uma conscincia justa e no luz de uma conscincia falsa. Falta-lhe a capacidade de ver, em cada deciso prtica, o que, o quando, o como, o onde significariam o encaminhamento acertado para as questes colocadas pela evoluo histrica da sociedade. A cultura popular no se confunde com nenhuma das manifestaes da chamada cultura-para-trabalhadores. Ela no se confunde com arengas e pregaes que visam mostrar aos trabalhadores tudo o que esto cansados de saber. Isso no lhe acontece porque ela se funda no interesse real do trabalhador em adquirir a cultura capaz de elevar o seu nvel de compreenso dos fatos sociais e que lhe permita ver para alm das aparncias, o que realmente se passa com as estruturas da sociedade. A cultura popular pode se concretizar de mil formas diferentes. Todas, entretanto, servem sempre ao mesmo propsito ltimo que a educao revolucionria das massas. A cultura-para-trabalhadores tambm se atribui esta mesma finalidade. Mas falha. Falha porque abstrata, porque nasce da simples vontade, da vontade, em geral, de ensinar massa o que ela tem de fazer. Trata-se de uma imposio feita s massas por um reduto esclarecido da

intelectualidade. vazia e incua porque acredita mais no poder da verdade em geral do que na fora das condies concretas da vida, de onde nasce a prtica, esta sim, capaz de realmente esclarecer a conscincia da massa. Para no se transformar em simples cultura-para-trabalhadores, a cultura popular precisa ser uma totalidade que rena, dialeticamente, dois plos distintos e as vezes antagnicos: ela tem que unificar os interesses imediatos do trabalhador individual com o interesse profundo e objetivo da classe operria e, dentro dessa mesma dialtica, unificar os interesses particulares da classe operria com os interesses gerais de todo o povo. A cultura popular s o quando se transforma num processo que permite a livre expanso dessa complexa rede em que se articulam, em interaes ricas e variadas, mveis subjetivos e possibilidades objetivas, propsito de grupos e paixes individuais, meios disponveis e finalidades ambiciosas, acaso fortuito e leis necessrias, interesses particulares momentneos e interesses gerais permanentes, sede de diverso e fome de instruo, aperfeioamento profissional e trabalho poltico, exigncias materiais e necessidades culturais, o viver a hora presente e o fazer a sociedade futura. Em uma palavra, a cultura popular deve ser a expresso cultural da luta poltica das massas, entendendo-se por essa luta algo que feito por homens concretos ao longo de suas vidas concretas. Sejam quais forem, entretanto, as mil modalidades que a cultura popular pode assumir, todas as suas formas de apario so sempre dirigidas ao cumprimento de uma mesma finalidade: s h cultura popular onde se produz o processo que transforma a conscincia alienada em conscincia revolucionria, ativamente engajada na luta poltica. Para ilustrar este argumento, Estevam toma trs exemplos, retirados de setores distintos de atividade: uma escola de samba, um curso de eletricista e um debate sobre psicologia. Cada uma dessas trs dimenses culturais pode, segundo ele, se realizar ou no como cultura popular. Uma escola de samba, por exemplo, pode funcionar (e na esmagadora maioria dos casos funciona assim) como simples e inofensiva manifestao das necessidades de expresso, de divertimento e de coeso experimentadas por um

grupo social determinado. Alm de expressar as formas reificadas da vida do grupo; alm de diverti-lo e satisfaz-lo esteticamente oferecendo ao grupo a possibilidade de contemplar sua imagem reproduzida artisticamente e a possibilidade de concretizar aptides estticas e habilidades fsicas; alm de provocar o fortalecimento dos vnculos de solidariedade e a obedincia s condies do trabalho coletivo, alm de ir perpetuando indefinidamente a alienao, uma escola de samba nada mais faz, a no ser em casos inteiramente excepcionais, que permita defini-la como exemplo de cultura popular. Ela um caso tpico de cultura produzida pelo prprio povo. Poderia se converter em caso tpico de cultura popular bastando para isso que, sem perder suas caractersticas vitais anteriores, ela passe a funcionar como meio de produo de conscincia poltica. De fato, a cultura popular se realiza por intermdio dessa apropriao, para fins polticos, dos meios de produo cultural. Evidentemente, dependendo do caso, uma operao desse tipo envolvem dificuldades as mais complexas. A constatao dessas dificuldades, entretanto, no invalida a regra acima enunciada. Por maiores que elas sejam, sempre possvel introduzir contedo poltico em produtos culturais revolucionariamente neutros. E para que haja cultura popular preciso que isso seja feito na escala permitida pelas limitaes objetivas existentes em cada caso. Seria um erro primrio subestimar a outra condio sine qua non da cultura popular: o respeito s fontes vitais das manifestaes culturais, o respeito s leis intrnsecas que regem cada domnio da cultura. Sem a observncia dessa condio no pode haver cultura popular, pois ela estaria matando aquilo a que pretende infundir um novo sentido de vida. Trata-se, como acima j assinalado, de nunca entender por cultura popular algo que no seja uma totalidade concreta que contm e unifica elementos dspares e antagnicos. Uma totalidade em cujo seio as contradies no so resolvidas pela pura e simples eliminao de um de seus termos. Vale a pena abrir aqui um parntesis para o exame de trs atitudes possveis diante das iniciativas culturais tomadas pelo prprio povo, como o caso da escola de samba. A atitude da classe dominante a de ajudar e estimular o

desenvolvimento dessas manifestaes culturais. A atitude do prprio povo a de se entregar a essas atividades com a irracionalidade de quem se sente movido por uma cega necessidade. A terceira atitude a revolucionria e consiste em empreender a transformaes dessas manifestaes culturais, consiste em incorporar-lhes um sentido revolucionrio inequvoco fazendo com que elas se transfigurem em armas de libertao popular. De onde vem o interesse da classe dominante em ajudar as iniciativas culturais tomadas pelo prprio povo? A classe dominante procura estimular sempre que pode os grupos que se desenvolvem em direes culturais no essenciais, direes das quais o grupo no retira nenhum proveito de carter revolucionrio. Um clube suburbano de futebol, por exemplo, por mais que desenvolva sua prtica no sentido especfico do futebol jamais estar contribuindo para o avano do processo revolucionrio. (A coisa s muda de figura quando uma organizao desse tipo passa a ser usada para outros fins, em termos de cultura popular). Enquanto permanece na direo cultural inicialmente escolhida, o grupo sobrecarregado por um elevado nus e do maior interesse da classe dominante que ele continua a pag-lo indefinidamente. Nos quadros em que funciona, o grupo vai consumindo toda sua energia em atividades revolucionariamente improdutivas como as relacionadas com as necessidades de produo, transmisso, manuteno, cooperao, regulamentao, renovao e organizao, atividades que so essenciais sua sobrevivncia enquanto entidade coletiva. Este desperdcio de fora de trabalho revolucionrio interessa sobremaneira classe dominante. No h nada melhor para frear as lutas populares do que fazer com que os grupos populares aceitem como suas as necessidades que a rigor so estranhas aos seus interesses reais e profundos. Diante dessas formaes culturais espontneas no seio da massa, as foras revolucionrias no podem adotar uma atitude estreita de pura e simples negao, no podem pretender a extino dessas modalidades de vida social que gozam da simpatia popular. Elas fazem parte da vida do povo, o que frustra qualquer tentativa de combat-las. A atitude revolucionria no estando nem no combate, nem na indiferena, s pode ser a de transform-las. Mas em que sentido? Na direo indicada pela cultura desalienada e desalienante? Claro que

no, pois significaria para a massa alienada uma violncia to brutal quanto a de convoc-la imediatamente para uma tarefa revolucionria armada. A nica soluo cultural para o problema levantado Pela existncia de formaes culturais espontneas a de transform-las, tanto quanto for possvel, em organizaes produtoras de cultura popular. O mesmo processo deve caracterizar os dois outros exemplos. Um curso de eletricista, do ponto de vista da sociedade vigente, encarna um valor cultural na medida em que eleva o nvel profissional do educando, multiplica suas chances de sucesso na vida e incrementa a prosperidade social. Um debate sobre psicologia, por sua vez, constitui atividade autntica da cultura, pois representa um exerccio terico proveitoso, capaz inclusive de, eventualmente, produzir resultados apreciveis do ponto de vista da conquista de novos conhecimentos. Nenhum dos dois casos, entretanto, produz rendimento poltico concreto. Enquanto so o que so, essas duas atividades interessam, acima de tudo, classe dominante. Mais tcnicos, mais conhecimentos cientficos, mais valores teis ao aumento da produtividade so bens que asseguram prosperidade sem pr em perigo a ordem vigente. Isso significa que semelhantes atividades devam ser excludas do quadro da cultura popular? Claro que no, pois podem ser transformadas em meios culturais aptos a desenvolver a conscincia poltica das massas. Para tanto, basta fazer com que essas prticas no se limitem exclusivamente s finalidades a que se propem. Nada impede que um sujeito, ao mesmo tempo em que aprende a trabalhar como eletricista, aprenda tambm como deve se comportar diante das contradies da sociedade onde vive. Embora nele predomine o interesse particular pela melhoria de seu nvel profissional, inegvel que tambm se interessa pelos assuntos relativos ao segundo ponto, desde que se satisfaa a necessidade pessoal por ele experimentada mais vivamente. Essas observaes so vlidas para todo e qualquer setor da cultura, em qualquer nvel: desde o teatro ao jogo de futebol, desde o livro at colnia de frias. Em outras palavras, segundo Estevam, os artistas e intelectuais que compunham o Centro Popular de Cultura, tinham tambm suas concepes estticas pensadas porque consideravam que a arte, bem como as demais

manifestaes superiores da cultura, no pode ser entendida como uma ilha incomunicvel e independente dos processos materiais que configuram a existncia da sociedade. Nem to pouco acreditam que ao homem, por sua condio de artista, fosse dado o privilgio de viverem um universo parte, liberto dos laos que o prendem comunidade e o acorrentam s contradies, s lutas e s superaes por meio das quais a histria nacional segue o seu curso. Antes de ser um artista, o artista um homem existindo em meio aos seus semelhantes e participando, como um a mais, das limitaes e dos ideais comuns, das responsabilidades e dos esforos comuns, das derrotas e das conquistas comuns. Ningum pergunta ao artista se prefere viver dentro ou fora da sociedade: o que se lhe pergunta como pretende orientar sua vida e produzir sua obra dentro da sociedade a que pertence inelutavelmente. Ignorar esta questo ou desqualificar sua validez no uma forma nem de resolv-la, nem de elimin-la do conjunto das indagaes que esto na origem de toda atividade artstica autntica. O artista que no se manifesta conscientemente sobre a posio que assume diante da vida social s consegue esquivar-se a este dever de um modo indireto e ilusrio, pois que em seu prprio trabalho, em sua prpria atividade produtora est contida sua definio como membro integrante do todo social. O que no declarado explicitamente pelo artista alienado dito implicitamente pela obra alienada. Querendo ou no, sabendo ou no, o artista se encontra sempre diante de uma opo radical: ou atuar decidida e conscientemente interferindo na conformao e no destino do processo social ou transformar-se na matria passiva e amorfa sobre a qual se apia este mesmo processo para avanar, ou declarar-se um sujeito, um centro ativo de deliberao e execuo, ou no passar de um objeto, de um ponto morto que padece sem conhecer, decide sem escolher e determinado sem determinar. O artista que pratica sua arte situando seu pensamento e sua atividade criadora exclusivamente em funo da prpria arte apenas a pobre vtima de um logro tanto histrico quanto existencial. O aparecimento em cada poca de uma pluralidade de escolas artsticas, de correntes, de direes estilsticas que mantm entre si lutas e tenses continuadas leva o artista ideologicamente despreparado iluso de que os fenmenos artsticos formam um todo nico e autnomo e parece-

lhe assim que o surgimento e o desaparecimento de concepes e correntes so fatos decididos na prpria esfera da arte, so ocorrncias que se produzem pela ao de fatores artsticos imanentes, sem qualquer referncia s condies sociais e histricas. Para o artista despolitizado a histria da arte no constitui mais do que a histria das formas e dos problemas artsticos e a sucesso dos estilos entendida como no sendo mais do que um simples jogo de perguntas e respostas, de formulao e execuo. Segundo este modo de ver, cada artista, corrente ou gerao s representa um esforo positivo na medida em que tenha realizado cometimentos tcnicos, inovado formas ou resolvido problemas artsticos que at ento desafiavam seus predecessores. O artista deixa de ser visto como sendo essencialmente e acima de tudo um homem posto diante do mundo e tendo que dar respostas no aos problemas intrnsecos arte, mas s questes bsicas pertinentes ao saber, ao agir, ao crer e todas as demais questes relativas viso de mundo que lhe so formuladas diretamente pela prpria existncia, da decorrendo que a histria da arte deixa de ser vista como fato integrante da histria do homem em seu esforo por apropriar-se ao mundo e faz-lo seu. Este romntico alheiamento do artista em relao vida concreta dos homens explica-se, entre outras razes, pela concepo idealista por meio da qual o artista pensa e valoriza a posio e o papel da arte dentro da sociedade. Perdido em seu transviamento ideolgico, no se d conta que a arte quando vista no conjunto global dos fatos humanos, no mais do que um dos elementos constitutivos da superestrutura social, juntamente com as concepes e instituies polticas, jurdicas, cientficas, religiosas e filosficas existente na sociedade. No v a seguir que esta superestrutura longe de ter uma vida autnoma e uma direo prpria independente de qualquer influxo exterior est, ao contrrio, em estreita conexo com o conjunto das relaes de produo, que formam a estrutura econmica da sociedade. pelo conhecimento das relaes reais que articulam os fenmenos uns aos outros que se afasta o perigo da falsa conscincia da liberdade artstica porque somente tal conhecimento capaz de possibilitar a ao conforme as leis cientficas, ou seja, a ao que essencialmente livre porque eficaz no mundo

da objetividade e nunca esmagada e anulalada pelas leis, visto que nunca se insurge contra elas. O criador consciente dos suportes materiais que condicionam a esfera da realidade em que atua est igualmente em condies de compreender a exata medida em que cada setor da superestrutura pode reagir dialeticamente sobre a base econmica e manter em relao a esta base uma certa independncia de movimentos. A importncia desta relativa autonomia da arte est em que por a capaz de se converter numa fora ativa e eficiente, apta a produzir efeitos substanciais sobre a estrutura material da sociedade. Tal fato constituiu precisamente, a prpria condio de possibilidade de toda e qualquer arte revolucionria e dele que o CPC extrair a razo de ser e o fundamento primeiro de sua existncia como entidade artstica e cultural de carter popular e revolucionrio. Se no fosse possvel conscincia o adiantar-se em relao ao ser social e converter-se, dentro de certa medida, em uma fora modificadora do ser social, tambm no seriam exequveis nem a arte revolucionria nem o CPC. Em toda sociedade dividida em classes sociais que se opem como plos distintos e irreconciliveis de contradies sociais cada vez mais agudas, no permitido mais a ningum pr em dvida a afirmao de que as obras do esprito se apresentam necessariamente marcadas por um carter de classe, por um compromisso e por uma posio tomada em relao s classes em luta pelo poder poltico. Nem to pouco escapa a ningum a percepo da validade com que podemos vincular as idias dominantes em determinado perodo com a classe dominante no mesmo perodo, pois no pensar assim seria manifestar uma inocncia to grande quanto a de supor que a classe dominante, detentora do poder material, pudesse ainda sentir-se segura em seus privilgios ao entregar nas mos das classes subalternas direito de produzir e orientar a cultura dominante. Embora a classe dominante seja uma realidade histrica s definvel em funo da contradio fundamental a cada sociedade e possa, por conseguinte, variar de contedo conforme varie a contradio fundamental, de todos os modos certo

que a relao de dominao no poderia sobrexistir a partir do momento em que as idias dominantes deixassem de ser a pura e simples expresso espiritual das relaes materiais dominantes. Como a classe que explora e a classe que explorada no podem estar em paz seno provisria e precariamente, como o homem que explora no uma coisa e sim o outro homem, a dominao no seria completa nem duradoura se no fosse tambm a dominao das idias e dos sentimentos dos valores e das aspiraes, da sensibilidade e da verdade. Para os trabalhos desta empresa de anestesia e domesticao das conscincias so utilizados os talentos dos artistas, intelectuais e idelogos a quem os detentores da produo material entregam em confiana a produo dos bens espirituais. Os artistas e intelectuais incumbidos de fornecer s massas populares as idias e as crenas que as acorrentam servido no pertencem assim necessariamente aos prprios quadros da classe exploradora. Podem ser recrutados entre os mais diversos setores da sociedade, pois para fazer o que se lhes pede no necessitam apresentar nenhum outro ttulo alm do certificado de sua prpria alienao. No se lhes pode exigir nem sequer a conscincia da funo a que se dedicam porque, ao contrrio, a ela atribuem um significado excelso e dignificante. Sentem-se, na verdade, pairando acima das classes e superiores s mesquinhas vicissitudes em que se envolvem as classes em sua luta e assim pensam porque no julgam pontificar para uma minoria; suas formulaes, longe de se destinarem apenas elite, so lanadas com a pretenso universalidade e dispem-se a oferecer no aos poderosos, mas a todo o povo, os valores inestimveis do saber e da arte. No se admitem comprometidos ou de algum modo vinculados classe dominante porque acima de tudo anima-os a convico de se sentirem, alm de desligados dela, superiores a ela. Semelhante fantasia tem sua origem no fato de que, por sua profisso de idelogos da espoliao, lhes compete dizer ao prprio dominador qual o ser do dominador, lhes compete definir a essncia da dominao e justificar a sua existncia. Como depositrios da cultura atendem assim as encomendas de pequenas iluses e grandes mistificaes com as quais a classe dominante se reabastece para o exerccio cotidiano da explorao do homem pelo homem. O caso do artista a

servio dos interesses anti-populares pode ser alm do mais agravado na medida em que no nem sequer necessrio que o artista concorde subjetivamente com as idias que em sua obra prope e consagra. As consequncias prticas da criao artstica se realizam independentemente da vontade e das convices pessoais do criador e produzem seus efeitos letais sem precisar para isso do consentimento do artista que, em sua incompetncia ideolgica, no foi capaz de compreender sua obra. O processo pelo qual os artistas e intelectuais se convertem na fora espiritual que efetiva e consolida a opresso das massas no constitui, entretanto, um bloco macio e fechado onde no haja lugar para as imperfeies, as lacunas e as excees. A existncia do artista de vanguarda dentro da sociedade de classes possvel pela simples razo de que nenhuma formao scio-econmica pode ser inteiria e isenta das contradies pelas quais coexistem sempre duas sociedades dentro da mesma sociedade: a velha em fase de declnio e extino da nova em fase de surgimento e expanso. Por isso, os artistas e intelectuais distribuem-se em geral por trs alternativas distintas: ou o conformismo, ou inconformismo, ou a atitude revolucionria conseqente e muito comum acontecer que os artistas e intelectuais a quem j foi dado descobrir a objeo contida na atitude de aceitao de defesa da ordem vigente se sintam plenamente satisfeitos consigo mesmos quando se instalam na posio inconformista caracterizada por um vago sentimento de repulso pelos padres dominantes com os contedos mais expressivos da ideologia opressora. No advertem, contudo, que para estar ao lado do povo e de sua luta no basta adotar a atitude simplesmente negativa de no adeso de no cumplicidade com os propsitos ostensivos dos inimigos do povo. A neutralidade dos inconformistas no passa, o mais das vezes, de uma inocente iluso de independncia e as escaramuas com que, em momentos de maior hostilidade, assaltam as cidadelas do poder no so capazes de causar maiores danos porque, na medida em que no obedecem a um plano de conjunto inspirado numa viso global de realidade, estes atos de rebeldia se perdem no oceano das manifestaes

epidrmicas que de modo algum pem em perigo os detentores efetivos do poder. A classe dominante, enfeixando em suas mos o poder material e poltico, no tem porque temer os arroubos espordicos, a revolta dispersiva, a insatisfao inconsequente que caracteriza o comportamento dos incorformistas. Ela est unida e coesa em torno de seus privilgios e como um todo organizado e consciente de seus fins sabe que sua destruio e derrocada final s podero advir de outra fora igualmente organizada e firmemente determinada a elimin-la da existncia histrica. No artista e no intelectual inconformista ela encontra apenas um oponente isolado que inclusive exerce a funo social de ser a exceo que confirma as regras do bom senso, do bom comportamento, da boa disciplina. De nimo varivel, o inconformista est a cada momento exposto ao risco de ser conquistado pela causa adversria, pois os motivos que inspiram sua conduta ele os extrai de convices idealistas e da atitude puramente negativa de repugnncia pelo status quo. Suas posies so assumidas em funo de circunstncias ocasionais de disposies subjetivas momentneas e so expresses de um ponto de vista pessoal sobre a realidade em lugar de emanar em de um ponto de vista de classe, da viso de mundo da classe explorada em luta por sua emancipao. A terceira alternativa aquela escolhida pelos artistas e intelectuais que identificam seu pensamento e sua ao com os imperativos prprios conscincia da classe oprimida. Aqueles que optam por essa alternativa enfrentam, ainda segundo Estevam, uma srie de problemas concretos que no podem ser ignorados. O primeiro problema, relativo liberdade de criao, s pode ser analisado em seus devidos termos quando visto nos quadros da relao artista-pblico. H duas hipteses a considerar: uma, a de que o pblico com quem o artista pretende entrar em comunicao seja constitudo pela classe social de que o artista enquanto indivduo faz parte integrante no apenas pela posio que ocupa no processo de produo, mas tambm pelo fato de que em sua conscincia desta classe. Sempre que se trata de casos como este no tem qualquer sentido a colocao do problema de liberdade artstica. Quando o artista est identificado a tal ponto com seu pblico o engajamento no pode significar para ele submeter-se

a um compromisso com uma entidade estranha e hostil a ele. Nada o impede de ser ao mesmo tempo livre e engajado, de dizer o que quiser e, ao mesmo tempo, servir aos interesses de seu pblico em tudo que disser. O compromisso s aparece como uma restrio, como uma fonte de impedimentos liberdade criadora quando se verifica algum divrcio entre o artista e o pblico a quem fala. Assim, via de regra ocorre que o artista embora pertencendo ao povo no pertence classe revolucionria seno pelo esprito, pela adoo consciente da ideologia revolucionria. Os conflitos que da resultam no se atenuam quando se considera que o artista no tem como seu pblico exclusivamente a classe revolucionria. De fato, sua obrigao muito mais ampla, pois ele deve dirigirse a todo o povo. O importante, no entanto, que ao ir aos mais diversos setores do povo, ao formular artisticamente os problemas especficos que a encontra, o artista deve ir munido do ponto de vista da classe revolucionria e sua luz examinar aqueles problemas dando a eles as solues consuetneas com os interesses da classe revolucionria os quais em ltima anlise, correspondem aos interesses gerais de toda a sociedade. Entretanto, por sua origem social como pequeno-burgus, o artista est permanentemente exposto presso dos condicionamentos materiais de hbitos arraigados, de concepes e sentimentos que o incompatibilizam com as necessidades da classe que decidiu representar. Havendo conflito entre o que dele exigido pela luta objetiva e o que dele brota espontaneamente como expresso de sua individualidade comprometida com outra ideologia, que ento surge o dever de se impor limites a atividade criadora, cerceando-a em seu livre desenvolvimento. preciso, no entanto, indagar de quem parte a imposio de limites. O criador engajado quem se probe a si mesmo de trair a classe revolucionria, ele que por coerncia com seus prprios princpios v em suas imperfeies e desfalecimentos um mal que no pode ser tolerado e assim sempre ele quem se probe a si mesmo, Quem se investiga e se policia. Desta forma procede no s por ter elegido para si um modo particular de ser artista ao decidir-se pela arte engajada, mas porque acima de tudo sabe que nada tem a perder, que no troca o melhor pelo pior. Outra questo que d margem, segundo Estevam, a inumerveis

interpretaes capciosas refere-se s concepes formais e conteudsticas que orientam a produo artstica do intelectual engajado. Para Estevam, os artistas e intelectuais engajados escolheram para si o caminho da arte popular revolucionria. Para eles tudo comea pela essncia do povo e entendem que esta essncia s pode ser vivenciada pelo artista quando ele se defronta a fundo com o fato nu da posse do poder pela classe dirigente e a consequente privao de poder em que se encontra o povo enquanto massa dos governados pelos outros e para os outros. Se no se parte da no se nem revolucionrio, nem popular, porque revolucionar a sociedade passar o poder ao povo. Radical como , essa arte revolucionria pretende ser popular quando se identifica com a aspirao fundamental do povo, quando se une ao esforo coletivo que visa dar cumprimento ao projeto de existncia do povo o qual no pode ser outro seno o de deixar de ser povo tal come ele se apresenta na sociedade de classes, ou seja, um povo que no dirige a sociedade da qual ele o povo. Se o que salta aos olhos e o que clama razo quando se considera o povo este seu defeito, esta sua privao de poder, bvio que nesta etapa histrica os traos positivos do povo s podero se realizar pela prtica dos atos negativos e destruidores que suprimem o povo enquanto ser escravizado. Na ao revolucionria o povo nega sua negao, se restitui a posse de si mesmo e adquire a condio de sujeito de seu prprio drama. Por este movimento gera-se toda a matria-prima de que necessita a arte popular revolucionria para elaborar seus produtos, pois o contedo desta arte no pode ser outro seno a riqueza, em suas linhas gerais e em seus meandros, do processo pelo qual a povo supera a si mesmo e forja seu destino coletivo. Eis porque Estevam afirma que, em nosso pas em nossa poca, fora da arte poltica no h arte popular. Com efeito, se o povo um universal ele s pode estar presente como povo e, portanto, como universal, nas obras que versam sobre as questes humanas analisadas luz de uma perspectiva poltica. Expressando-se aes e situaes de outra ordem, que no revertem em ltimo termo ao denominador poltico, no se trata mais do povo como protagonista de seu prprio drama e promotor do seu prprio destino. Se a poltica no for a fonte de onde brota a inspirao, se no for poltica a substncia das situaes de conflito que o

artista engajado formaliza, ento em suas obras no estar mais falando direta e revolucionariamente ao povo enquanto tal, ao povo como entidade coletiva que precisa escapar como um todo ao cerco de misria de que vtima e que encontra na atuao poltica organizada, unificada, seu nico caminho de redeno. uma verdade que paira acima de qualquer contestao a tese de que no pode haver dois mtodos distintos, um para o povo tomar o poder, outro para se fazer arte popular. Por isso para Estevam, o artista engajado repudia a concepo romntica prpria a tantos grupos de outros artistas que se dedicam com singela abnegao a aproximar o povo da arte e para os quais a arte popular deve ser entendida como formalizao das manifestaes espontneas do povo. Para tais grupos o povo se assemelha a algo assim como um pssaro ou uma flor, se reduz a um objeto esttico cujo potencial de beleza, de fora primitiva e de virtudes bblicas ainda no foi devidamente explorado pela arte erudita; os artistas engajados, ao contrrio, vm nos homens do povo acima de tudo a sua qualidade herica de futuros combatentes do exrcito de libertao nacional e popular. Como nos momentos em que o povo luta o artista no se comporta como artista e, sim, como membro ativo das foras populares, pode bem avaliar enquanto atua como artista a importncia que tm as armas culturais nas vitrias do povo e o valor que adquirem as idias quando penetram na conscincia das massas e se transformam em potncia material. Pela investigao, pela anlise e o devassamento do mundo objetivo, a arte engajada est em condies de transformar a conscincia do pblico e de fazer nascer no esprito do povo uma evidncia radicalmente nova: a compreenso concreta do processo pelo qual a exterioridade se descoisifica, a naturalidade das coisas se dissolve e se transmuta. Pode-se com essa arte ir to longe quanto comunicar ao povo, por mil maneiras, as idias de que as foras que o esmagam gozam apenas da aparncia do em si, nada tm de uma fatalidade cega e invencvel, pois so, na verdade, produtos do trabalho humano. A arte popular revolucionria a encontra o seu eixo mestre: a transmisso do conceito de inverso da praxis, o conceito do movimento dialtico segundo o qual o homem aparece como o prprio autor das condies histricas de sua existncia. O mundo, o termo

antittico do homem virado ao avesso e descobre-se em sua verdadeira natureza como momento dialtico, como feito humano e no fato absoluto; e a dependncia com respeito a situao em que est inserido se revela ao homem como sendo em ltima anlise dependncia dele em relao a si mesmo. Nenhuma arte poderia se propor a finalidade mais alta que esta de se alinhar lado a lado com as foras que atuam no sentido da passagem da necessidade para o reino da liberdade. Outra dificuldade enfrentada pelo artista engajado refere-se afirmao de que a arte popular revolucionria tem necessariamente que fazer concesses ao atraso cultural do povo e no pode por este motivo oferecer aos artistas a oportunidade de realizar um trabalho criador em profundidade. O artista engajado estaria condenado assim a produzir abaixo de sua capacidade real, ao nvel do vulgo, no encontrando jamais os estmulos que fazem do artista das elites um pesquisador imbudo do ideal da mxima perfeio e da exigncia de sempre aprofundar suas experincias e superar os estgios j alcanados. Segundo este modo de ver, o artista engajado abre mo de uma prerrogativa essencial ao seu ofcio. Dirigido as condies primrias da sensibilidade popular o ato criador sofre um bloqueio imprprio de fora para dentro, perde toda a sua vitalidade de ato original que se produz mediante a livre expanso das foras e dos recursos que o artista pode mobilizar quando d tudo de si. Tal crtica entretanto, segundo Estevam, no procede. De modo algum os artistas engajados impedidos de dizer o que querem pelo fato de s dizer o que pode ser ouvido. Com efeito, em torno das discusses sobre arte poltica h um ponto que embora jamais seja abordado pelos artistas e crticos decisivo para o esclarecimento destes mesmos artistas e crticos. Todos que recusam validade arte poltica centralizam seu ataque sobre os limites que ela impe atividade criadora e jamais percebem por lamentvel insuficincia de auto-reflexo, que qualquer outra espcie de arte, seja ela qual for, carrega igualmente consigo limitaes intrnsecas invencveis. At aqui, tem-se discutido a questo como se tratasse para o artista de escolher entre o perfeito e o imperfeito entre a plena realizao e a necessria frustrao, quando na realidade o que ele tem a fazer decidir que tipo de contedo deseja formalizar com sua arte, sabendo de antemo

que em tal opo nunca possvel se libertar das limitaes enquanto tais, mas sim escolher entre espcies particulares de limitao, pois recusando umas estar aceitando consequentemente outras. uma fatuidade, muitas vezes repetida, querer opor arte poltica uma outra arte paradisaca que oferece ao artista os meios de realizar todos os seus sonhos de plenitude. A prova de que tal arte uma iluso idealista e no um fato real dado pela pura e simples existncia da prpria arte poltica: a prtica do artista engajado mostra que as oportunidades que lhe so oferecidas alm da arte poltica encerram para ele limitaes abominveis s quais ele no pode se render sem com isso renegar sua viso do mundo e sua concepo da arte. O balano das relaes entre a arte popular revolucionria e a arte ilustrada das elites dirigentes s pode ser levado a efeito metodicamente se forem distinguidas, num primeiro momento, as questes relativas forma daquelas que dizem respeito ao contedo. Os artistas e intelectuais engajados no sentem qualquer dificuldade em reconhecer o fato de que, do ponto de vista formal, a arte ilustrada descortina para aqueles que a praticam as oportunidades mais ricas e valiosas, mas consideram que a situao no a mesma quando se pensa em termos de contedo. Com efeito, seria uma atitude a crtica e cientificamente irrespondvel negar a superioridade da arte de minorias sobre a arte de massas no que se refere s possibilidades formais que ele encerra. O artista de minorias no encontra nenhum obstculo sua legtima aspirao de aperfeioar os seus recursos expressivos e de desenvolv-los ilimitadamente. O mundo da linguagem lhe proposto como um campo aberto para o irrestrito exerccio de sua liberdade criadora. Tudo o incita a superar-se e nada impede que se expanda seu mpeto de renovar e de romper com os padres convencionais desgastados e empobrecidos, sua necessidade de introduzir articulaes cada vez mais puras e globalizantes, seu empenho em buscar ritmos mais intensos e snteses mais elevadas, seu permanente anseio por cometimentos tcnicos arrojados e o sentimento de que se encontra, a cada momento, realizando um hercleo esforo na fronteira entre o oculto e o desocultado, entre o apenas suspeitado e o j expresso. No terreno formal, a

diferena que separa o artista de minorias do artista de massas e que marca a superioridade do primeiro sobre o segundo que preferencialmente aquele cria o novo enquanto este serve-se do usado. Mas uma vez, entretanto, a relao artista-pblico que explica a riqueza e a qualidade superior das experincias formais possveis na arte ilustrada. A liberdade do artista de minorias decorre de que sua produo destina-se a um pblico que, por definio, goza de condies culturais idnticas sua. Sua obra vai s mos de uma elite que tem por obrigao ir sensibilidade do artista. Os termos em que a questo se apresenta so extremamente simples: se a elite-pblico no est altura. No faz parte dos deveres do artista levar em considerao o nvel cultural da elite. fcil ver que aqui se tocam em um ponto cuja importncia no pode ser subestimada. A chave que elucida todos os problemas relativos, s possibilidades formais da arte ilustrada e da arte revolucionria descoberta quando se compreende que o ato de criar est determinado em sua raiz pela opo original a que nenhum artista pode se esquivar e que consiste no grande dilema entre a expresso e a comunicao. Quando se pergunta para que criar? a conscincia artstica tem sempre diante de si a possibilidade de se inclinar por uma dessas duas respostas: para dizer, ou para dizer a outro. O artista de minorias no chega a enfrentar conscientemente tal alternativa. Ele se decide pela expresso, em detrimento da comunicao, porque julga que aquilo que o define como artista a capacidade de pr em forma os contedos amorfos que vagueiam na conscincia, a capacidade de objetivar os estados subjetivos que so vivenciados pelas sensibilidades privilegiadas em seu contato com o mundo exterior. Ao exprimir o que antes no fora expresso, o artista da minoria sente ter realizado sua misso sobre a terra. Isso no quer dizer, entretanto que no tenha assumido nenhuma posio frente ao problema da comunicao. De fato, ele encontra a sua disposio um raciocnio sofismtico graas ao qual consegue resolver o problema sem enfrent-lo. Ao lhe ser perguntado: para quem foi produzida sua obra, ele responde muito simplesmente que ela foi produzida para todos. Da por diante passa a preocuparse apenas com as questes relativas expresso e se julga desobrigado de examinar os resultados da obra no seio do pblico. O processo mental pelo qual o

artista de minorias se convence de que produz para todos se reduz a uma falsa operao generalizadora. Uma vez realizada a obra, o artista, situa-se diante dela como espectador e porque consegue captar o seu sentido em todo seu alcance conclui que a obra humanamente apreensvel, conclui que ela pode se comunicar como todos. Se no ocorre assim, se na realidade ela somente se comunica com uma minoria est provado que isso no se deve a deficincias comunicativas intrnsecas obra: o que precisa ser corrigido no a obra, mas o pblico, vale dizer, o problema do governo e no do artista. Para sentir-se criando para todos, o artista de minorias no necessita mais que se sentir criando para si mesmo. Cr que, saindo-se bem no terreno da expresso, est resolvendo implicitamente os problemas da comunicao, sem jamais suspeitar que no ato de dizer no est contida necessariamente a referncia conscincia distinta da conscincia que diz. No entende que o dizer como tal implica apenas em dizer a algum e no um dizer a outro, visto que o outro pode perfeitamente ser substitudo, quer pelo sujeito que diz e a seguir se ouve, quer por sujeitos que sociologicamente esto com ele, no mesmo estrato cultural. Nos momentos ocasionais em que toma conscincia de sua lamentvel condio, o artista que prefere expressar-se a comunicar-se, que prefere todos os sacrifcios a ter que se limitar ao idioma impessoal e uniformizado das grandes massas humanas, consegue mais uma vez resolver ilusoriamente o problema que no enfrenta, alegando que cria para o futuro e no para o presente, que a humanidade tendo evoludo, chegar o dia em que todos o compreendero. Em outras palavras, sente-se bem margem da histria do seu tempo. A situao inteiramente outra quando o artista decidiu participar da histria e no apenas como homem seno tambm como artista. Seu primeiro passo ser o de compreender o carter objetivo das limitaes a que ter de submeter-se e compreender em seguida a outra face de tais limitaes, pois elas s lhe barram um caminho porque lhe abrem outro muito maior. Tendo optado pelo pblico na forma de povo, a arte popular revolucionria nada tem a ver, quanto ao seu contedo, com a arte do povo e a arte popular, mas dela necessita se aproximar em seus elementos formais, pois nela que se encontra desenvolvida a linguagem que se comunica

com o povo. Na medida em que a arte engajada pretende ser porta-voz dos interesses reais de uma comunidade, necessariamente temos que nos servir dos processos pelos quais o artista popular se faz ouvir e se torna representativo das qualidades e dos defeitos prprios ao falar do povo. Cumpre notar que na colocao do problema formal h um dado de fundamental importncia que deve presidir a toda e qualquer preocupao estilstica do artista revolucionrio. O seu primeiro cuidado deve ser o de nunca perder de vista o fato de que o seu pblico em sua apreciao da arte no procede segundo critrios formais de julgamento. Suas relaes com a arte so predominantemente extraformais: tratase de um pblico que reage diretamente ao que se lhes diz, um pblico em que nula a capacidade de se desfazer das preocupaes prticas com sua existncia, de abstrair os motivos, as esperanas e os acontecimentos que configuram os quadros de sua vida material. Em uma palavra, lidam com um pblico artisticamente inculto inserido a tal ponto em seu contexto imediato que lhe est vedado participar da problemtica especfica da arte. As preocupaes formais e a capacidade de perceber e usufruir na obra tudo que nela significa progresso, riqueza ou destreza formal so itens que compem a esfera vital daqueles que, na diviso social do trabalho, situam-se do lado do trabalho intelectual e no do trabalho manual. Nada tendo a ver com o grupo seleto de especialistas e entendidos em arte, o artista popular desde logo est a salvo do perigo que representa a observao da forma pela forma e que o vcio intrnseco a toda arte para minorias. O compromisso assumido pelo artista engajado de se fazer entender quando fala ao seu pblico elimina assim o mal artstico maior que sempre ameaa invalidar, do ponto de vista cultural, a produo do artista no politizado. Pelos pressupostos ideolgicos que presidem essa arte o artista engajado est impedido de se extraviar e de permitir que em suas obras os elementos formais entrem em aberto conflito com os elementos de contedo. Perder o controle sobre os meios expressivos e aceitar a desfigurao das funes especficas que lhes cabe exercer, deixar que as estruturas se tornem separadas e independentes da matria convertendo-se em configuraes abstratas e vazias, permitir que se desenvolva a

orgia autodestruidora das formas, so descaminhos a que no pode sucumbir o artista popular revolucionrio. Sua obra, regida pelo princpio da

comunicabilidade, se caracteriza pelo entendimento perfeito entre contedo e forma, pelo fluir espontneo e perceptvel do temtico ao formal, pela unio sbria e saudvel que estabelece entre um e outro. O verdadeiro problema que desafia o artista revolucionrio e em cuja meditao deve por todo o seu empenho reside na contradio, sempre existente, entre qualidade e popularidade. As manifestaes artsticas, quaisquer que elas sejam, constituem configuraes de sentido que s podem ser verdadeiramente apreendidas pelos membros da mesma comunidade cultural a que pertence o artista. Isto acontece porque a arte, como produto elaborado da cultura, no se dirige nem ao homem natural, nem ao homem anterior etapa do processo cultural em que vem luz a arte em questo. A apreenso adequada da obra de arte deve atender a satisfao prvia de requisitos que vo desde a iniciativa artstica at as formas prticas da existncia, desde o desenvolvimento sensorial e intelectual at a formao humanstica, requisitos que constituem justamente os pressupostos culturais para a compreenso da obra. A contradio entre qualidade e popularidade surge para o artista revolucionrio na razo direta do seu pertencimento a um estrato cultural distinto e superior ao do seu pblico. Este um fenmeno que ao artista engajado se apresenta como inevitvel a partir de sua deciso original de ampliar at os seus ltimos limites a rea de seu pblico. A histria da arte oferece repetidos exemplos de interrupes e retrocessos no processo de desenvolvimento dos meios expressivos todas as vezes em que classes sociais em ascenso passam a integrar o mercado consumidor dos produtos artsticos. O artista revolucionrio no tem evidentemente nenhum preconceito necessidade de elaborar e apurar cada vez mais os meios expressivos de que dispe. Na verdade, o que o caracteriza no a negligncia formal mas o compromisso de clareza assumido com o seu pblico. Dedica-se, como no podia deixar de ser, pesquisa formal e preocupao de desenvolver ao mximo seus recursos de linguagem; mas o faz sem se deixar seduzir pela dinmica imanente a

este processo. Com efeito, no h arte quando no se reduz a multiplicidade do real e a um nvel superior de expresso sinttica, quando no se criam formas em que os objetos da experincia, desintegrados pela intuio artstica, vm se reagrupar em articulaes mais puras, quando no se reelabora o mundo para represent-lo. No entanto, embora reconhecido que neste carter indireto da expresso que reside a fora criadora da arte e seu poder sobre o esprito dos homens, o artista revolucionrio deve ao mesmo tempo reconhecer que a maneira elptica de dizer as coisas tpicas da arte encerra o risco da incompreensibilidade. Desejando acima de tudo que sua arte seja eficaz, o artista popular no pode jamais ir alm do limite que lhe imposto pela prpria experincia, aquilo que lhe pretende transmitir o falar simblico do artista. O peculiar da pesquisa formal a que se dedica o artista revolucionrio est em que ela se desdobra em dois planos distintos. Por um lado, ela tem antes o carter sociolgico de levantamento das regras e dos modelos, dos smbolos e dos critrios de apreciao esttica que se encontram em vigncia na conscincia popular. Ali encontrar o artista, ao lado de elaborao exclusiva das massas, todas as formas que, produzidas pela arte superior, desceram ao nvel do povo e se transformaram em elementos de seu patrimnio cultural. Nessa espcie de trabalho de campo em que recolhe o material que a seguir utilizar, no poucas vezes o artista surpreendido por achados formais que representariam revolucionrias inovaes caso fossem empregados no nvel da arte de minorias. Isto se d porque os produtos artsticos que gozam de livre circulao no meio do povo no necessitam, para serem aceitos e apreciados, de prestar qualquer obedincia aos princpios da unidade estilstica. Graas inconsequncia estilstica da arte do povo e da arte popular, so encontrados em coexistncia pacfica elementos formais heterogneos provenientes das mais diversas origens geogrficas e histricas. O acentuado esprito conservador com que o povo se imobiliza no uso das formas que obtiveram xito quando pela primeira vez adotadas permite que o artista revolucionrio retome tais formas e as recupere para a veiculao de contedos inteiramente distinto daqueles que lhes deram origem. A outra direo em que se desdobra a pesquisa formal do artista

revolucionrio consiste no trabalho constante de aderir os seus instrumentos a fim de com eles poder penetrar cada vez mais fundo na receptividade das massas. Certamente so mais rigorosas e implacveis as regras que dirigem o processo de comunicao com as massas do que aquelas que facilitam o entendimento com as elites, mas a relativa falta de liberdade na interpretao dos princpios formais prpria prpria arte revolucionria no deve de modo algum ser confundida com uma atitude de passiva subservincia do artista frente s convenes que gozam do beneplcito popular. Partindo de modelos estabelecidos e de diretivas j comprovadas, resta ao artista popular um longo e trabalhoso caminho a percorrer no sentido de dinamizar os esteretipos que utiliza e obrig-los a render a mxima eloquncia. Por fim, como o artista revolucionrio forado a se servir de uma linguagem que espontaneamente no seria a sua, cabe-lhe ainda realizar o laborioso esforo de adestrar seus poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os contedos originais de sua intuio, sem que percam todo o seu sentido ao serem convencionalizados e transplantados para o mundo das relaes inter-humanas em que a massa vive sua existncia cotidiana.

A CULTURA POPULAR NA PRATICA: BRASIL, VERSAO BRASILEIRA

Um exame da produo do CPC da UNE sugere que dois eram os pblicos que o Centro procurava atingir: um pblico de classe mdia pra cima, eminentemente estudantil e um pblico popular constitudo por operrios, transeuntes, moradores de favelas e da Zona Norte Carioca e, mais tarde, trabalhadores rurais do estado do Rio de Janeiro. A produo para o pblico de classe mdia era apresentada no teatro da UNE, em auditrios de Faculdades e durante as duas UNE-volantes. Alm disso, a PRODAC fazia chegar ao pblico estudantil de outros estados o material escrito e gravado do CPC. Finalmente, os CPCs de outros estados na maioria das vezes reproduziam materiais gerados pelo CPC da UNE e mesmo onde no havia CPCs, as organizaes estudantis locais se incumbiam dessa tarefa. Assim, por exemplo, a UEE do Paran criou UEE-Volante e levou O Auto dos 99% em Londrina, Maring, Ponta Grossa, Jacarezinho e em outras cidades do estado 30 . Dessa forma, a penetrao e a popularidade do CPC da UNE no meio estudantil brasileiro foi inquestionvel e as teses que defendia (o nacionalismo, a reforma universitria, a reforma agrria, etc.) influenciaram profundamente toda uma gerao que na poca constitua o pblico de estudantes secundrios e universitrios do pas 31 . J a penetrao e o consequente sucesso do CPC junto ao pblico popular foi, na prtica, muito mais discutvel. Quais foram os principais problemas enfrentados pelo CPC para atingir esse pblico? Em primeiro lugar, o CPC enfrentou o problema do espao adequado onde o pblico popular estivesse reunido. A primeira tentativa de apresentao de seus shows e peas de teatro foi realizada em sede de sindicatos. Logo os membros do CPC verificaram, entretanto, que os sindicatos da poca normalmente no
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Informao fornecida por Rubem Murilo Leo Rego. claro que no estou afirmando que todos os membros dessa gerao foram influenciados. Mas inquestionvel o sucesso do CPC nessa rea.

recebiam a massa operria, os seus associados em suas sedes. Quem frequentava as sedes dos sindicatos era a liderana e essa, ainda que aplaudisse a produo, do CPC, no era propriamente quem o Centro pretendia atingir 32 . Outro local, provavelmente adequado, eram os teatros de periferia do Rio de Janeiro. Entretanto, a grande maioria desses teatros pertencia ao estado do Rio e seu governador na poca, o Sr. Carlos Lacerda, no era propriamente um simpatizante do CPC. Assim, o depoimento de Joo das Neves a respeito ilustrativo: Eu entrei no CPC em fins de 1962, comeo de 63. Quando eu entrei, trabalhava em Campo Grande, um subrbio do Rio de Janeiro, num teatro de l, o Arthur de Azevedo, um teatro de periferia como vocs chamam agora aqui em So Paulo. A gente levava peas de autores brasileiros, sendo algumas feitas, pelo prprio grupo de l. Eu tinha formado um grupo com o pessoal de Campo Grande e, pela primeira vez num subrbio carioca, as peas estavam trazendo muita gente do prprio subrbio. E eram sempre peas com problemas sociais. Ns estvamos encenando uma pea de Isaac Filho, A grande seara e esta encenao causou muita celeuma, se bem que celeuma reduzida ao campo do prprio subrbio. Na poca, o governador da Guanabara era o Carlos Lacerda e o Lacerda era aquela pessoa que vocs conhecem, com as posies polticas que vocs sabem que ele tinha e, num momento em que estas posies estavam muito mais exarcebadas, muito mais reacionrias, no empenho da derrubada de Goulart. Ele dividia o Estado em vrias regies administrativas e colocava, em cada uma delas, administradores que eram como fiscais, os prefeitinhos, como Lacerda os chamava. E ns estvamos ento levando, num teatro do governo, uma pea que estava dando muito pblico, muita celeuma. A aconteceu que, de uma noite para outra, quando chegamos ao teatro, no dia seguinte, o cenrio estava todo destrudo. Ficamos proibidos de entrar no teatro e fomos acusados publicamente de comunistas. A gente foi para os Jornais, protestou, mas no deu em nada. Como ns j tnhamos muita aproximao com o trabalho do CPC, no meio dessa onda de protestos, dessa confuso, fomos chamados para dirigir o setor de teatro de l.
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Entrevista com Carlos Estevam Martins.

(Neves, 1978). Em vista dessas dificuldades, os membros do CPC iniciaram um projeto de construo de um circo, mas logo constataram que os terrenos dos subrbios onde poderiam instalar o circo ou deveriam ser alugados de particulares a preos proibitivos ou eram terrenos pertencentes ao governo do estado 33 . Surgiu, ento, a idia da carreta que logo foi implantada. A experincia com a carreta, entretanto, cedo se revelou inadequada porque precisava ser estacionada em vias pblicas e, para isso, era necessria autorizao da polcia. O CPC evoluiu, ento para o teatro de rua, para o uso de caminhes e para atividades ao ar livre com menor nmero de atores e recursos tcnicos mais limitados. Um outro problema enfrentado pelo CPC era o da forma/contedo de sua produo. Essa questo foi logo percebida. A estria da carreta se deu durante um dia da semana, s 18:00 horas, no Largo do Machado. Nessa hora, grande nmero de trabalhadores circulava pelo Largo e um show com Carlos Lira, Carlos Castilho e outros msicos foi montado em cima da carreta. Ocorreu que dois imigrantes nordestinos, com uma viola e um berimbau, tocavam seus instrumentos no Largo, no lado oposto carreta, na mesma hora do show do CPC e o pblico se interessou muito mais pela msica dos nordestinos do que pela mensagem poltica do CPC transmitida atravs do balano bossanovista de seus msicos. Este incidente constituiu importante lio para os membros do CPC que perceberam o carter pouco popular da formal contedo de suas mensagens 34 . Por muito tempo, entretanto, os membros do CPC acreditaram que o incidente do Largo do Machado foi provocado pela forma e no pelo contedo de suas mensagens. Esta perigosa e equivocada distino entre forma e contedo foi, inclusive, incorporada na teoria da cultura popular por Carlos Estevam, como j foi visto. A partir dessa distino os membros do CPC foram buscar formas populares para vestirem os contedos de suas mensagens. O primeiro passo nessa direo foi realizado atravs do aliciamento de artistas populares para as

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Entrevista com Carlos Estevam Martins. Entrevista com Carlos Estevam Martins.

apresentaes do CPC: Z Keti, Cartola, Nelson Cavaquinho e outros foram utilizados para atrarem o pblico popular que recebia, em seguida, as mensagens do CPC. Os intelectuais do Centro tinham idias claras e precisas (ainda que nem sempre historicamente corretas) a respeito do que deveria ser a verdadeira conscincia popular revolucionria. A meu ver, a pea Brasil, verso brasileira de Oduvaldo Vianna Filho, rene exemplarmente os elementos que deveriam constituir tal conscincia, ainda que no os esgote 35 . Em Brasil, verso brasileira, o pas era concebido como uma sociedade subdesenvolvida, isto , sem recursos de capital, com a riqueza concentrada nas mos de uma pequena parcela da populao. O subdesenvolvimento, entretanto, no era visto como um estado natural da sociedade: ele era produzido pelo imperialismo, pelo capital estrangeiro, que retirava do pas as suas riquezas quer seja sob a forma de produtos naturais (petrleo, no caso da pea), quer seja sob a forma de capital. Num primeiro momento, ento, tratava-se da tomada de conscincia desse subdesenvolvimento, ou seja, era necessrio ensinar o povo que o Brasil era um pas de muitos recursos naturais e que a sua pobreza se devia ao imperialismo. Num segundo momento, a questo que se colocava era a de desvendar, de denunciar as formas de ao do imperialismo, ou seja, como o imperialismo se organizava no interior da sociedade brasileira. Para tanto, era necessrio demonstrar que o imperialismo contava com fortes aliados internos. Quem eram esses aliados? Em primeiro lugar, o prprio estado, que retratado como sendo constitudo por um executivo pusilnime e uma burocracia corrupta. Assim, na pea, o Presidente da Repblica uma figura tbia, medrosa, covarde, que tem a conscincia de que foi eleito pelo povo a quem prometeu a redeno econmica e a independncia poltica do pas, mas que uma vez no poder, no consegue se opor s foras imperialistas. O Presidente d Repblica , na pea, uma espcie de
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Brasil, verso brasileira no trata nem da questo agrria, nem da questo estudantil nem da reforma poltica temas que eram frequentemente abordados pelo CPC, em seus trabalhos.

Hamlet, o Prncipe da Dinamarca, sempre formal, preocupado com as aparncias (a primeira fala do Presidente reveladora: Meus senhores. Meus senhores. (Silncio). Por favor, senhores. Estamos no palcio do governo. (Pausa longa), preocupado com as repercusses polticas dos atos (Como pensaro os capitalistas americanos? Continuaro a trazer dinheiro para um pas que suspende contratos?), conciliador (Estamos discutindo um assunto vital. Estamos procurando conciliar pontos de vista), cuidadoso ( preciso andar com cuidado. Muito cuidado...), medroso (Eles so fortes. Terrivelmente fortes. As Foras Armadas, Hiplito. Eles ensinam esses generais a serem a favor dos americanos. Passam a vida fazendo isso! So fortes!), desesperado e ameaador (Conto com voc. Conto com a Confederao das Indstrias. No esquea que a Petrobrs compra na sua fbrica por interferncia minha e...). O Presidente da Repblica, em resumo, a figura exemplar do poltico brasileiro que Vianinha retrata na pea por um coro de mulheres com crianas no colo, velhos, operrios, que cantam e do tapas na cabea do Presidente que os recebe com a maior dignidade, sem olhar, sem reclamar. Aceitando. Os polticos assim caracterizados eram aliados de uma parcela da burguesia brasileira que ocupava postos-chaves na burocracia estatal e que representava os interesses do capital estrangeiro. Na pea, essa parcela da burguesia representada por Prudente de Sotto Maior, presidente do Banco do Brasil e um dos maiores acionistas da Refinaria Capuava. Prudente o defensor dos interesses americanos no Brasil (Vossa Excelncia sabe perfeitamente que sem o capital americano este pas pra), da iniciativa privada e do trabalho livre (A Refinaria Capuava est refinando alm da cota porque trabalhou. a livre iniciativa. A superioridade da iniciativa privada sobre as empresas do Estado. Trabalho livre. Viva o trabalho livre!), opositor da estatizao que, na sua poca, era vista como um movimento que se opunha ao desenvolvimento da livre iniciativa e, portanto, ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Alm disso, Prudente articula o setor financeiro nacional com os interesses imperialistas e antiestatais (O Banco do Brasil s empresta dinheiro a americano. O Banco do Brasil segura as verbas da Petrobrs!). Finalmente, o capital estrangeiro, o imperialismo representado na pea

pelo Sr. Lincoln Sanders, representante da Esso do Brasil e diretor do City Bank. O Sr. Sanders possui um discurso lmpido, com uma lgica implacvel: a lgica do poder. No haver conciliao possvel se pensarmos s nos nossos pobres interesses. preciso buscar alguma coisa comum e bela que seja minha, de Vossa Excelncia, de todos ns. Usamos gravata, temos unhas limpas... Que mais? Existe outra coisa que nos ligue e nos faa iguais? Existe. Felizmente existe, senhor Presidente: o poder. Somos ns que temos o poder poltico em mais da metade do mundo. Temos a responsabilidade do seu destino. Para isso somos obrigados a ser inteligentes, amar o prximo, conhecer leis enfadonhas. muito difcil ser responsvel, no ter medo do mundo. Iluso pensar que o povo pode se dirigir. Iluso pensar que sem autoridade ele continuar a trabalhar e a respeitar seu semelhante. difcil, to difcil descobrir que somos semelhantes. esse o mundo que temos para defender. Tudo o que fazemos s pode ser certo se o mundo continuar a ser nosso. A Petrobrs nos ajuda a isso? No, Excelncia. No pelos lucros que corta o meu pas. Isso o de menos: somos ricos. o mau exemplo que a Petrobrs d ao mundo. Se todos os pases fizerem como o Brasil, em pouco tempo o preo do petrleo cair. Cair irremediavelmente. Ser a catstrofe, Excelncias! No teremos mais dlares para emprestar ao Brasil. No podem existir Petrobrs, Excelncias. Sob pena de perdermos mais pedaos do mundo. O senhor Vidigal tem razo: o atraso na construo da Duque de Caxias foi deliberado... Houve contrabando no Par. A sinceridade necessria, senhor Prudente. Estamos juntos. Como irmos siameses, juntos. A pergunta essa: a Petrobrs interessa a quem? A ns ou ao povo? Ento, precisa desaparecer. Aos poucos, com cuidado, mas precisa desaparecer. Mesmo que tenhamos de agir em silncio. Mesmo que s vezes nos repugnem nossas aes. Ns dizemos ao povo que ele quem decide, mas no precisamos acreditar nisso, senhor Vidigal. (Silncio). Mas os interesses das classes dominantes no eram monolticos. Havia, em seu interior, uma parcela da burguesia a burguesia nacional que se opunha aos interesses do imperialismo. Na pea, a burguesia nacional representada por Vidigal. (Meu nome Vidigal. Hiplito Vidigal. Brasileiro. Industrial. Em minha

fbrica no h centavo estrangeiro. Nem um centavo. Oitenta por cento do que produzo comprado pela Petrobrs. Sou o representante da Confederao das Indstrias no Conselho Nacional de Petrleo. Amanh o Conselho vai se pronunciar sobre as irregularidades que se tm verificado na construo da Refinaria Duque de Caxias. Fui chamado, no meio da madrugada, para uma reunio a portas fechadas com o presidente da Repblica, (O Presidente se levanta), com Mr. Lincoln Sanders (Lincoln se levanta), representante da Esso no Brasil e com Prudente de Sotto Maior (Prudente se levanta), presidente do Banco do Brasil e um dos maiores acionistas da Refinaria Capuava. Eles sabem que vou votar pela suspenso do contrato com a Kellog, firma americana que constri a Refinaria Duque de Caxias. Querem que eu mude meu voto... (vai para eles). J disse que no. No mudo meu voto. Sou pela suspenso do contrato com a Kellog. Suspenso de contrato imediata. Mas Hiplito Vidigal vale dizer, a burguesia nacional era, segundo Oduvaldo Vianna Filho, uma fraca oposio imperialismo porque, por um lado, ainda que fosse oposio era burguesia (e Mr. Lincoln Sanders sabe perfeitamente disso). Assim, aps o discurso de Sanders, Vidigal se recusa a acreditar no que ouviu e h um dilogo entre eles:

Lincoln: que Vossa Excelncia defende a Petrobrs e esquece que defende sua prpria morte, Excelncia. Vidigal: Morte? Porque morte, senhor Lincoln, Que morte? Que morte?" Lincoln: Eu explico, Excelncia. Sempre explico: se os Estados Unidos no fizerem mais emprstimos para o Brasil, o Brasil cair nas mos do povo faminto e desesperado. E onde o povo conseguir dinheiro para viver, Excelncia? Ah, senhor Vidigal, conseguir dinheiro cortando suas contas bancrias, seu conforto, sua roupa elegante, seu automvel de luxo, sua casa na praia... Vidigal: No me importa! No me importa. Ser uma vida mais humana. Estou cansado de viver dando dentadas, distribuir coices. Farto, Farto! Lincoln: Isso fcil de ser dito, Excelncia. Mas muito difcil ver o povo nos

nossos escritrios, muito difcil passar a andar a p. Muito difcil receber ordens de operrios magros e suados. Muito difcil. Neste dilogo Vianinha desvendava a fraqueza estrutural da burguesia nacional na fala implacvel do imperialismo. E, de fato, Lincoln Sanders sabe que a verdadeira contradio no a que vive com Vidigal. , isso sim, a que Vidigal experimenta com os operrios de sua fbrica que esto em greve e que desejam aumento salarial. Aqui Vidigal a personificao do capital em contradio com o trabalho e percebe que o aumento reivindicado o seu fim, a no ser que obtenha um polpudo emprstimo do City Bank. Depois de resistir um pouco, Vidigal apela:

Vidigal: Senhor Lincoln? Aqui fala Vidigal. Hiplito Vidigal. Quero saber se o City Bank pode me fazer um emprstimo. Lincoln: Com muito prazer, Senhor Vidigal. Vidigal: So quinhentos operrios com um aumento mdio de dois mil cruzeiros. Dois milhes, senhor Lincoln. Lincoln: Com muito prazer, senhor Vidigal. O City Bank est aqui para ajudar a indstria brasileira. Vidigal: Muito obrigado, senhor Lincoln. Lincoln: Ns faramos somente uma pequena exigncia, Senhor Vidigal. Ficaramos muito gratos se Vossa Excelncia no votasse pela suspenso do contrato com a firma americana que constri a Duque de Caxias. Vote conosco, senhor Vidigal. Vidigal: No posso fazer isso, Lincoln. (Pausa). Preciso desse dinheiro. (Pausa). Eu votarei com vocs. Eu votarei com vocs.

J em fevereiro de 1962, portanto, o mito da burguesia nacional como parcela da classe dominante unida ao povo na luta pela independncia econmica e poltica do Brasil e que havia sido to acalentada por Helio Jaguaribe enquanto membro do ISEB, durante a segunda metade da dcada de 50, era dramaticamente desmistificada pelo CPC da UNE. Em Brasil, verso brasileira, a burguesia nacional retratada como parcela da classe dominante que resiste conjunturalmente

penetrao das foras imperialistas e que rapidamente sucumbe lgica da expanso do capitalismo na nova etapa do processo de acumulao. O quadro que Vianinha constri se completa com a sua caracterizao das classes dominadas: o proletariado industrial. Para Vianinha, o proletariado no era uma classe compacta e homognea. Ainda que fosse composto pelos trabalhadores produtivos (representados na pea pelos operrios da Fundio Vidigal) e suas famlias, ele estava segmentado por diferentes vises que possua de sua prpria condio e que eram dadas por aparelhos ideolgicos existentes na sociedade civil. Digenes, na pea, o velho comunista sectrio e autoritrio que deseja impor a sua vontade aos companheiros de partido, aos operrios em greve, ao patro e sociedade simplesmente porque milita no partido h vinte anos. Digenes estpido, grosseiro e ignoranto. No percebe nem a dinmica operria nem as normas sociais predominantes e a sua teimosia e autoritarismo dividem a classe operria e ameaam a luta proletria. Digenes , assim, a encarnao dos velhos quadros partidrios que j vinham sendo criticados por uma parcela da intelectualidade brasileira desde 1957, em consequncia das crticas ao stalinismo realizadas durante o XX Congresso do PCURS. Esta viso crtica a respeito dos quadros dirigentes partidrios que Vianinha realizava como membro da CPC da UNE levanta a questo das relaes entre o CPC e o Partido Comunista Brasileiro. A meu ver, se vinculaes havia entre o CPC e o PCB, elas eram no mnimo tensas e contraditrias porque sabido que em 62 a maioria dos dirigentes partidrios era composta justamente por personagens semelhantes a Digenes. Ora, a crtica pblica e direta realizada em Brasil verso brasileira sugere que os membros do CPC no se subordinavam a esses quadros dirigentes. Na verdade, se opunham ao carter sectrio e autoritrio da direo partidria sugerindo mesmo que ela era a responsvel pelos repetidos fracassos do movimento operrio. Mas Vianinha (e, por extenso, o CPC) reconhecia uma diviso at mesmo entre os comunistas. Assim, Esprtaco , na pea a encarnao do novo comunista. A figura que Vianna constri em Esprtaco humana, simptica, flexvel e forte, corajosa Meu nome Esprtaco. Nome grande demais que nem parece que cabe cm mim. Tenho mais cara de Quintino, nio, Andr, Altair... mas me chamo Esprtaco.

nome de um homem que foi escravo e brigou. Desses que carregam um pedao de povo atrs dele. Desses homens que brilham feito sol. Quem me botou esse nome foi meu pai Digenes. Aquele ali. Meu pai comunista, Tambm sou. No toa que Vianinha filia Esprtaco a Digenes. Esprtaco reconhece a filiao, a sua origem; no um revisionista. , simplesmente, o filho do velho lder que, aceitando a filiao, possui uma viso distinta do processo revolucionrio: comunista e diferente do pai 36 . E essa diferena logo revelada na pea atravs de um dilogo entre Digenes e Esprtaco:

Digenes: Os companheiros podem ver que eu tinha razo. Podem ver que aquilo que falei foi dito e feito. O presidente do nosso sindicato, o Claudionor, um vendido. Foi fazer conchavo com o patro. Vem propor vinte por cento hoje de noite. Um capacho de burguesia. Um vendido, No foi toa que ele me afastou do cargo de conselheiro do Sindicato. Esprtaco: O companheiro no pode se esquecer... Digenes: Estou falando, companheiro. Estou falando. Esprtaco: Eu s queria... Digenes: Estou falando, companheiro. Acho que a gente deve desmascarar esse traidor da classe operria l na assemblia... Jos: Me d um aparte, companheiro. Digenes: No dou aparte. Esprtaco: Precisa dar um aparte, companheiro. Digenes: Eu ainda no terminei. Os companheiros esto me perturbando. Um pouco de disciplina, camaradas. (Silncio). Agora esqueci o que estava dizendo. Esprtaco: Desmascarar o Claudionor na assemblia e... Digenes: Ah, no adianta mais, no. Perdi a meada. Era s isso que eu tinha a dizer. (Pausa).
Uma outra leitura que o texto permite mais psicolgica: a relao pai/filho com toda a sua ambiguidade neurtica tambm se coloca de forma sutil. O pai que no ouve o filho e o filho que, ao mesmo tempo, idolatra e se rebela contra o pai. Esta relao est sutilmente colocada no texto. Creio, mesmo, que as duas leituras se completam.
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Esprtaco: O patro ofereceu s vinte por cento de aumento. Eu acho que se a gente ainda for brigar com o Claudionor na assemblia, a que a massa se divide de uma vez e no consegue nem os trinta que pediu. Digenes: Cinquenta por cento e abono. isso que os comunistas querem. Foi a nossa deciso. Esprtaco: Ainda no terminei, companheiro. Digenes: Mas tenho que interromper. O companheiro est querendo conciliar com o traidor. Esprtaco: No estou querendo. Digenes: O companheiro est querendo passar por cima da deciso da base. Esprtaco: Precisa me deixar falar, companheiro. Digenes: No posso deixar falar quem fala besteira. Esprtaco: No estou falando besteira, no , pai? Estou discordando de voc. Comp.1: Calma, Esprtaco. Esprtaco: No sou eu quem est tumultuando a reunio companheiro. Digenes: E sou eu? E sou eu? O Companheiro no entende nada de poltica. O pouco que sabe aprendeu de mim e agora vem ditar padre nosso a vigrio! Tenho vinte anos de partido. . A que ! Esprtaco: (Silncio) Vai ser difcil fazer revoluo assim companheiro. S o companheiro entende de poltica no Brasil. (Digenes se levanta de estalo. Vem para frente).

Se na trama dramtica, a inflexibilidade, o autoritarismo, o formalismo, o sectarismo de Digenes se ope ao carter flexvel, democrtico, informal e aberto de Esprtaco, ela tambm sugere que Esprtaco no um submisso. A partir dessa oposio, Vianinha constri outra, mais ampla, que se articula com a primeira. Esta segunda oposio entre Digenes e Esprtaco colocada na continuao do dilogo:

Digenes: Est mais calmo, companheiro. Esprtaco: No acho que o Claudionor seja um vendido. um homem honesto.

Precisa escutar, companheiro. Digenes: Estou escutando. Esprtaco: Sei que ele afastou o companheiro do cargo de conselheiro no Sindicato. Mas eu disse que ele honesto, no disse que ele faz as coisas certo. Se o Claudionor faz luta anti-comunista, os comunistas tambm tm culpa nisso. Ns vivemos fazendo agitao e mais nada. Longe da massa. Nem aumento de salrio a gente pede porque aumento de salrio luta reformista! Acabamos pedindo cinquenta por cento de aumento, sem nenhuma base legal, sabendo que a massa no ia aceitar. Ficamos isolados! Digenes: Os comunistas so isolados. diferente. Somos isolados! Esprtaco: Quando o companheiro estava no Sindicato, queria que o Sindicato no reconhecesse mais as decises da justia do trabalho! a que a gente se isola. A massa no entende isso. Se divide. Foge do sindicato. No podemos levar mais diviso ainda l na assemblia. Digenes: O Sindicato dirigido por um catlico que s sabe arranjar festinha para operrio. Que s sabe comprar mesa de ping-pong. culpa dos comunistas se o Claudionor acha que operrio deve passar a vida com fome e jogando ping-pong? Os comunistas so culpados de haver patro, de haver explorao? Ento melhor mesmo acabar com o comunismo, companheiro! Esprtaco: Quando comunista pede coisa que a massa no entende, deixa de ser comunista, companheiro! Digenes: Defensiva. Isto linha perna aberta! O companheiro no est atuando de acordo com a linha do partido. Isso reunio de comunista, companheiro. No reunio de guarda salva vida! (Silncio). Esprtaco: No tenho mais nada a dizer. No sei. No sei.

Nesta

segunda

oposio

Vianinha

articula

as

personalidades

dos

personagens como a situao poltica. A distncia, o formalismo, o autoritarismo, a

insensibilidade de Digenes correspondem, na fala de Esprtaco, situao alienada do Partido que, por formalismo, autoritarismo e insensibilidade est longe da massa. Digenes, por sua vez, projeta a sua situao de isolamento que acredita ser a mesma que ocorre com o Partido: para eles, os comunistas no se isolam, eles so isolados. Para Esprtaco, o isolamento dos comunistas se deve prpria ao inadequada dos membros do Partido. E dessa forma, Vianinha consegue, de uma maneira sutil, introduzir a sua crtica cpula dirigente do Partido: os comunistas fracassam porque a cpula dirigente composta por personalidades autoritrias, formais, insensveis, distantes, etc. Mas, no fim, quem vence Digenes o autoritrio que desqualifica a fala autocrtica de Esprtaco e que, na fala seguinte, conta com a base, os afiliados submissos, enquadrados do Partido. Digenes toma votos da base e a posio de Esprtaco derrotada. Os comunistas vo para a Assemblia dos operrios para desqualificar as gestes de Claudionor 37 . Claudionor e Tiago compem a diretoria do Sindicato. So operrios tambm, mas no so comunistas e, por isso, so vistos por Digenes como inimigos dos operrios. Digenes os chama de pelegos e papa-hstias. Essa faco no comunista da classe operria possui, segundo a pea, uma viso menos autoritria, menos machista e mais flexvel do processo poltico. A sua posio, na verdade, se aproxima da de Esprtaco. Assim, Vianinha coloca na boca de Tiago uma fala muito semelhante a de Esprtaco:

Tiago: assim. assim que so os comunistas, companheiros. Quem no concorda com eles pelego. Quem no pensa com raiva corno manso, quem no quer brigar covarde, vendido, patronal. Que respeito eles tem pela gente? Isso que eu pergunto. Eu no trabalho tanto quanto comunista? Como que pode me jogar na cara que sou a favor de patro? No foram os comunistas que ficaram na presidncia do Sindicato faz dois

Eu me pergunto porque Vianinha deu esta soluo trama? E no consigo encontrar uma resposta convincente. Ser que esta soluo representa o limite da conscincia do autor? Ou ser que a soluo autoritria era a nica vislumbrada na prpria trama o que outra forma de colocar a mesma dvida mas que resulta em desdobramentos distintos?

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anos? O que que eles fizeram? Passeata que no ia ningum e mais que? No reconheciam a justia do trabalho. Os operrios perderam todas as questes. Que mais? Que mais? Queriam tirar greve at para mudar relgio de ponto de fbrica!

Esta aproximao de pontos-de-vista sugere, por um lado, fissuras profundas no interior das classes subalternas e, por outro lado, a possibilidade de alianas entre setores da mesma classe aparentemente vivendo antagonismos ideolgicos. De qualquer forma, a viso apresentada em Brasil, verso brasileira est longe de ser esquemtica, estereotipada e sectria. O Brasil visto como uma sociedade complexa, dinmica e subjugada ao imperialismo contra o qual as classes subalternas esto em luta.

CONCLUSES

Na medida que ia realizando a pesquisa sobre o CPC da UNE, duas perguntas corriam e recorriam em minha mente: 1) o CPC da UNE foi um movimento bem sucedido? 2) Quais as lies que o estudo do CPC da UNE pode me fornecer? Uma resposta bvia e evidentemente equivocada primeira questo seria obtida atravs da determinao das funes do movimento e, em seguida, da verificao do alcance das metas pretendidas. O CPC pretendia alterar a conscincia popular no Brasil atravs de atividades culturais, no h nenhum sinal evidente de que a conscincia popular tenha sido alterada pelo CPC, ergo, o CPC no foi bem sucedido. Quanto mais refletia sobre o meu trabalho, isto , sobre a reconstituio histrica do movimento cultural chamado CPC, mais me parecia evidente que estava tratando de um exemplo de constituio de um saber. Isto , os membros do CPC procuravam desenvolver, ao mesmo tempo, uma metodologia e um referencial terico que servissem para alterar a conscincia popular brasileira. Ora, neste, como em outros casos semelhantes, s a prtica social pode ser o critrio da verdade do conhecimento que o homem possui a respeito do mundo exterior. Se o homem aspira conseguir xito em seu trabalho, isto , se pretende chegar a resultados esperados, tem que fazer com que suas idias estejam de acordo com as leis do mundo exterior objetivo; caso contrrio sofre derrota na prtica. Entretanto, necessrio reconhecer tambm que quando o homem sofre uma derrota, pode extrair experincias da prpria derrota, mudando suas idias, fazendo-as concordar com as leis do mundo exterior. Pode, assim, transformar sua derrota em vitria. Esta , no entanto, a maneira como se constitui o conhecimento humano. Esta a histria do CPC da UNE. O CPC comeou com uma proposta formalizada de alterao da conscincia

popular brasileira e seus membros, por no pertencerem s classes populares e por viverem numa sociedade autoritria, onde a distncia entre as classes muito grande, tinham uma viso exterior e isolada tanto da conscincia popular como das possveis maneiras de alter-la. Inicialmente os fundadores do CPC tinham, na verdade, impresses e sensaes que lhes permitiam supor a possibilidade de alterao da conscincia popular. Assim, quando Vianinha permanece no Rio e realiza a crtica da experincia que tinha adquirido enquanto membro do Teatro de Arena de So Paulo formula impresses e sensaes a respeito de sua experincia enquanto dramaturgo que deseja utilizar sua arte para alterar a conscincia popular. Nesse sentido, a constituio do TPE, a associao de Vianinha e Guarnieri com o Arena, o encontro e o trabalho com Boal, a crise do Arena em 57, o sucesso de Black-tie e de Chapetuba, tudo isso constituiu a repetio mltipla de fenmenos que sucitaram em Vianinha sensaes e impresses que se cristalizaram na sua crtica essa experincia e no desejo de ampliar e modificar sua ao de forma a torn-la mais efetiva. A continuao de uma prtica social produziu, ento, uma mutao (um salto) no processo do conhecimento: o aparecimento dos conceitos. Vianinha sente a necessidade de buscar ajuda no ISEB para compreender melhor a noo de maisvalia; no ISEB, encontra-se com Carlos Estevam que possua outras experincias, outra prtica social que, no entanto, vai ao encontro das sensaes e impresses de Viana. Desta associao surge a pea A mais-valia vai acabar, seu Edgar, o curso de Histria da Filosofia na sede da UNE, a idia do CPC e, finalmente, o livro de Carlos Estevam A questo da cultura popular que conceitualiza as sensaes e impresses do grupo envolvido no movimento. O livro de Carlos Estevam, por ser conceitual, j no reflete os aspectos isolados e as relaes exteriores da conscincia popular e de sua alterao; seno que capta a essncia do fenmeno, as coisas em seu conjunto, a relao interna dos fenmenos. Entre as sensaes e impresses de Vianinha e o livro de Carlos Estevam, a diferena no s quantitativa. O desenvolvimento ulterior nessa direo conduziu os membros do CPC a concluses lgicas e ao emprego de mtodos de juzos e de deduo. Assim,

foi possvel perceber uma srie de equvocos prticos (como, por exemplo, o do papel do artista burgus engajado no movimento de cultura popular) que at ento no haviam sido percebidos. Dessa forma, toda a discusso terica em torno do CPC que foi, de alguma forma, concretizada tanto no livro de Estevam, como no de Ferreira Gullar, como em diversos artigos publicados em jornais e revistas da poca no pode, de maneira nenhuma, ser menosprezada: trata-se do conhecimento racional do movimento. bom lembrar aqui que a verdadeira tarefa de um saber consiste em passar da sensao ao pensamento, em chegar at a compreenso progressiva das contradies internas das coisas e dos fenmenos que existem objetivamente, at a explicao de suas leis, da relao interna dos diferentes processos, isto , consiste em chegar ao conhecimento lgico. A diferena entre as impresses e sensaes expressas por Vianinha na sua crtica experincia do Arena e o livro de Carlos Estevam a mesma que existe entre o conhecimento lgico e o conhecimento sensvel na medida em que este abarca aspectos isolados das coisas e fenmenos, seu aspecto exterior, a relao externa dos fenmenos, enquanto que o conhecimento lgico, dando um enorme passo adiante, abarca as coisas por inteiro, sua essncia e a relao interna das coisas, se eleva at colocar em evidncia as contradies internas do mundo que nos rodeia e assim pode chegar a dominar o desenvolvimento desse mundo em sua integridade, com suas relaes internas. Com estas observaes, bom que fique claro, no pretendo diminuir o trabalho de Vianinha e dos artistas do CPC. Estou simplesmente observando que os traos distintos do processo de conhecimento consistem em que na etapa mais primitiva o saber aparece como um conhecimento sensvel e na etapa elaborada como um conhecimento lgico; mas ambas so as etapas de um conhecimento nico, de um s processo. O conhecimento sensvel e o conhecimento racional diferem por seu carter; entretanto no esto separados um do outro, seno unidos pela prtica. Nossa prtica revela que as coisas percebidas pelos sentidos no podem ser imediatamente compreendidas por ns, e que s as coisas compreendidas so percebidas ainda mais profundamente. A sensao s pode resolver o problema dos fenmenos; o problema da essncia no pode ser resolvido a no ser pelo pensamento terico. A soluo desses problemas depende

vitalmente da prtica. O homem no pode conhecer nada sem entrar em contato com a experincia, isto , sem viver (praticar) nas circunstncias do que pretende conhecer. Os membros do CPC no podiam conhecer a priori a conscincia popular e as maneiras de alter-la pois, sendo de outra classe e estando distantes do povo, ainda lhes faltava a prtica correspondente. O CPC (o saber que o CPC representa) s podia ser produto de sua prtica. Vianinha, Carlos Estevam, Leon Hirzman, Ferreira Gullar, etc., puderam criar um saber no s pelo seu gnio, seno sobretudo porque participaram pessoalmente da prtica da cultura popular e das discusses tericas envolvidas nessa prtica; sem esta ltima condio nenhum deles poderia ter produzido o saber que foi realizado. Nesse sentido tenho a sensao que a defesa da prtica terica to em moda em certos meios intelectuais de hoje tem o mesmo sabor da vetusta expresso O bacharel pode saber tudo o que vai pelo mundo sem sair de sua casa. Ainda que, atualmente, com uma tcnica altamente desenvolvida isto seja, em princpio, realizvel, estou convencido que s as pessoas que praticam no mundo podem possuir autnticos conhecimentos; essas pessoas em sua prtica adquirem conhecimentos que graas escrita e tcnica, podem ser transmitidos aos bacharis e lhes do a possibilidade de conhecer, indiretamente, tudo o que sucede no mundo. Mas esse processo indireto no gera conhecimento: ele simplesmente elabora e reproduz ampliadamente o saber que s a prtica produz. Para conhecer uma coisa ou coisas, indispensvel participar pessoalmente na luta prtica que tem por finalidade alterar a realidade, mudar essa coisa ou coisas, porque s com a participao pessoal nessa luta prtica que se pode entrar em contato com o aspecto exterior das coisas, descobrir a sua essncia e compreend-las. E aqui reside o limite da prtica terica entendida como um exerccio puramente abstrato e intelectualizado de se adquirir conhecimento. A razo intelectual sem a razo prtica se transforma numa arma conservadora, pois incapaz de gerar novos sabores e atrofia a prpria capacidade humana de apreenso sensvel do mundo. A razo terica fundada no raciocnio lgico e abstrato quando exercitada separada da prtica no s incapaz de gerar novos conhecimentos. Enlouquece o homem que abandona o seu afeto, o seu sensvel, atrofiando-os em favor do

exerccio intelectual. Se quiser adquirir conhecimento h que se participar na prtica que deforma, modifica a realidade. Se quiser saber de uma pra h que transform-la, mastig-la. Se quiser conhecer a estrutura e as propriedades do tomo h que se dedicar a fazer experimentos fsicos e qumicos, modificar o estado do tomo. Se quiser alterar a conscincia popular, h que se tomar parte em alguma atividade que vise alterar tal conscincia. Todos os conhecimentos autnticos so obtidos atravs da experincia imediata. Entretanto, o homem no pode ter uma experincia direta com todas as coisas, e a maior parte de nossos conhecimentos , de fato, produto de uma experincia indireta, so conhecimentos que nos chegam de todos os sculos passados e conhecimentos adquiridos por pessoas de outros pases. Esses conhecimentos so o produto da experincia direta de pessoas dos tempos antigos ou de outros pases. Por isso, o conhecimento do homem se compe s de duas partes: a experincia direta e a experincia indireta. Ao mesmo tempo, o que para mim so experincias indiretas, para outros podem ser experincias diretas. Portanto, quando se toma o conjunto de conhecimentos, pode-se dizer que nenhum conhecimento pode estar separado da experincia direta. A fonte de todos os conhecimentos reside nas sensaes, recebidas pelos rgos humanos dos sentidos; o que nega a sensao, o que nega a experincia direta, o que nega a participao pessoal na prtica que modifica a realidade, no est interessado em conhecer. A prtica do CPC nos remete, portanto, ao problema da produo de um saber adequado alterao da conscincia popular. Sugere, tambm, que o caminho adotado pelos seus membros era o nico possvel: o caminho da experincia direta. Mas esta, por sua vez, limitada. No caso do CPC, os limites da experincia eram claramente fornecidos pelas origens de classe de seus membros e pelos limites normativos impostos pelas classes dominantes da sociedade em que a experincia se deu. Assim, porque os membros do CPC eram jovens de classe mdia e da burguesia brasileira, encontravam enormes dificuldades em se aproximar efetivamente do povo. Numa sociedade em que a distncia entre as classes

estimulada, num perodo onde as relaes polticas eram de natureza populista, qualquer prtica que tentasse romper com esse estado de coisas encontraria enormes dificuldades e oposies. Assim, as dificuldades enfrentadas nas descobertas de um espao apropriado e numa linguagem adequada para se chegar ao povo no foram fceis de serem ultrapassadas: elas enfrentavam, por um lado, tanto oposies internas que se traduziam, por exemplo, na discusso sobre o papel do artista como em crescentes oposies externas tanto de outros intelectuais como de polticos como a do ento governador da Guanabara. Afirmar, entretanto, como querem alguns, que o CPC foi um movimento autoritrio, inserido na Repblica Populista e parte integrante dela, ser, no mnimo, insensvel. Esses no percebem que no sentado que se caminha e que se faz o caminho ao andar.

POSFCIO

1984. Afinal de contas, o vaticnio no se realizou. A realidade, mais uma vez, se manifestou sob a forma de frustrao. E parece assim ser porque sempre h espao entre o fato e a previso que nada mais do que uma fantasia iluminista. E o que isso tem que ver com o CPC da UNE, vinte anos depois? O que se poderia dizer a esse respeito? Poder-se-ia pensar na sociedade brasileira. Ela ficou a meio caminho, entre os sonhos da liderana estudantil do incio dos anos 60 e o desiderato dos militares que tomaram o poder em 64. O projeto cultural da vanguarda estudantil baseava-se na suposio de que a conscincia operria podia ser alterada por um projeto pedaggico. Assim como eles se supunham iluminados por seus mestres, pretendiam ser mestres da classe operria que, uma vez iluminada, marcharia em direo uma sociedade socialista. O sonho, entretanto, foi praticado e por isso se transformou. Pouco a pouco a vanguarda estudantil foi percebendo os limites de seu projeto pedaggico e, ao mesmo tempo, foi buscando novos caminhos, novas prticas que foram abruptamente interrompidas em 1964. Os militares que, atravs do golpe de 1964, interromperam as pretenses daquele grupo de intelectuais, pretendiam construir uma sociedade livre da ameaa comunista e, para isso, sonhavam com um Brasil potncia, relativamente rico, tecnologicamente aparelhado e, acima de tudo, sob estrita tutela das Foras Armadas guardis da Segurana Nacional. A prtica desse governo que ainda empolga o Estado possui claros contornos iluministas na sua vertente totalitria, tal como j foi magistralmente descrita por Horkheimer e Adorno em 1944, no livro intitulado A dialtica iluminista. Segundo esses autores, o iluminismo que formulado por Bacon contm as sementes de sua prpria destruio que est contida na pretenso de que sciencia robur mxima. Fora que se cristaliza no positivismo em que o planejamento e o controle da realidade se do atravs de uma teoria probabilstica

da causalidade e da manipulao de ndices e mensuraes que praticamente ocupam o lugar do ser e do existir. Vinte anos depois, a conscincia da classe operria brasileira est longe do que era sonhado por Carlos Estevam e seus companheiros. Mas a sociedade brasileira longe est da sanha de paz social e segurana dos que hoje ainda so os detentores do poder estatal. Em outras palavras, se a crise econmica iniciada por volta de meados da dcada de 70 escapou ao controle dos que detinham o poder e frustrou seus desgnios de construo de um Brasil potncia, a sociedade brasileira de hoje est longe dos sonhos socialistas dos que se dedicaram ao CPC da UNE. Na verdade, como nenhum desses sonhos tomou-se realidade, a sociedade brasileira de hoje contm espaos para os dois sonhos. Assim, poder-se-ia dizer que a sociedade brasileira conseguiu, nesses vinte anos de ditadura militar gestar, entre outras caractersticas, uma liderana operria que se articula e se manifesta com uma identidade prpria, ou seja, sem se submeter a grupos estranhos prpria categoria social. No incio dos anos 60, as lideranas operrias eram um apndice do Estado ou se apoiavam mais no Partido Comunista do que na prpria classe operria ainda que essa assegurasse tais lideranas a legitimidade necessria para a sua existncia. A partir de 1964, parte dessas lideranas foi decretada ilegtima e teve que percorrer um longo e difcil caminho de transformao. A outra parte, funcionria do Estado ditatorial, durou enquanto o governo no permitiu que se questionasse a sua legitimidade. Bastaram os tmidos, mas genunos avanos democrticos ocorridos no governo do Presidente Joo Batista Figueiredo para que essa liderana comeasse a se desfazer enquanto representante legtima da classe operria. Alm dessa vanguarda, que se manifesta especialmente, mas no exclusivamente no mbito da indstria automobilstica e que ora tem acesso sindicatos, ora expulsa dos sindicatos por funcionrios do governo-gendarme, que supe ser o detentor do que deva ser a democracia e de como ela deve se manifestar, h diversas outras instituies que pretendem, atravs de prticas pedaggicas ou polticas, ser responsveis pela gestao de uma conscincia

popular. Talvez a mais eficiente e a menos analisada dessas instituies sejam as prprias Foras Armadas e, especialmente, o Exrcito do Brasil que recruta anualmente milhares de jovens brasileiros das classes subalternas e os treina de forma intensiva e sistemtica em princpios de civismo e de tica social incluindo a defesa da nao. Desconheo anlise a respeito dos contedos e dos mtodos pedaggicos dessa instituio. Mas a simples observao suficiente para sugerir que o exrcito, de certa forma, faz a cabea dos que por ele passam, especialmente os jovens oriundos das camadas mais pobres da populao. Uma outra instituio que j se fazia presente no incio dos anos 60 e que atualmente se dedica de forma intensa e sistemtica conscientizao das classes subalternas a Igreja Catlica. At meados da dcada de 50, a vanguarda intelectual da Igreja Catlica no Brasil estava convencida de que o mundo era o mbito do pecado e que a santificao se construa atravs do retiro do mundo. As ordens religiosas se dedicavam educao dos jovens de famlias catlicas de classe mdia e alta e s tarefas missionrias de converso do gentio. A partir dos meados da dcada de 50, por influncias vrias entre as quais pode-se destacar a experincia dos padres operrios franceses, os escritos de Jacques e Raissa Maritain e do grupo vinculado E. Mounier e revista Esprit; a vanguarda catlica comea a pensar que a santidade se constri no mundo e a prtica da caridade se orienta para os miserveis e os injustiados. As transformaes que vinham ocorrendo na poltica brasileira, com a campanha nacionalista do petrleo, o suicdio de Vargas e a subsequente eleio de Juscelino Kubitschek presidncia da Repblica serviram de pano de fundo para o ingresso dos catlicos na poltica. No incio dos anos 60, essa tendncia que se esboava sofreu forte acentuao com os escritos do Padre Henrique Vaz, S.J. e com a criao da Ao Popular, que se organizou como um movimento de esquerda e, como tal, acabou fazendo uma aliana instvel e contraditria com o Partido Comunista, no mbito do movimento estudantil. O Partido Comunista, por sua vez, tinha numerosos militantes e simpatizantes no meio artstico e intelectual alm de ter uma longa tradio de luta

junto s classes subalternas, especialmente nos principais centros urbanos do pas. O CPC da UNE sempre funcionou sob o controle desse ltimo grupo, ainda que a UNE estivesse sob o controle de membros da AP. E foi essa aliana que se desfez com o golpe de 64 e diversos de seus membros foram enquadrados no IPM (Inqurito Policial Militar) 709 sobre O comunismo no Brasil Vinte anos depois, a AP no existe mais e o Partido Comunista sofreu diversas cises e se encontra na ilegalidade. Hoje, a Igreja Catlica no Brasil, segundo as diretrizes formuladas no Conclio Vaticano II e sob a influncia da Teologia da Libertao se dedica, sob diversas maneiras, conscientizao e politizao das classes subalternas. Nos vinte anos desde a liquidao do CPC da UNE, outras instituies as Igrejas Evanglicas surgiram e se expandiram de forma impressionante atuando sempre junto s camadas populares. Aqui, tambm, pouco se sabe sobre os mtodos e os contedos empregados por essas Igrejas que, desde logo, so numerosas e possuem diversas ideologias. Finalmente, alm do Estado, nos anos mais recentes tambm os partidos polticos na legalidade especialmente o PT, mas tambm o PMDB voltam-se timidamente, verdade suas vistas em direo s classes subalternas. Todos esses grupos atuam concomitantemente no mbito e no espao das classes subalternas disputando suas preferncias sem aparentes coordenaes, alianas ou articulaes. Alm disso, realizam, por um lado, um trabalho pedaggico e, por outro, procuram se aliar com os membros das camadas populares atravs de prticas diversas. claro que, no mbito deste escrito, no se pretende realizar uma anlise de movimentos populares. claro, tambm, que as atividades de cada uma das instituies apontadas requerem estudos sistemticos sobre suas prticas e ideologias que no sero efetuados no mbito deste trabalho. Entretanto, talvez fosse possvel se pensar todas essas instituies como sendo, de alguma forma, milenaristas, ou seja, portadoras de uma ideologia de salvao humana no milnio quer seja pela redeno, quer seja pela santificao, quer seja, ainda, pela construo de uma sociedade justa. Pensadas assim, poder-seia dizer que essas instituies no esto interessadas na questo da cidadania

entendida como a questo que se refere constituio de sujeitos, ou seja, seres que esto referidos a uma identidade individual prpria cujo ncleo so desejos. A questo da cidadania assim referida encontra sua formulao em textos de Hannah Arendt e de Claude Lefort, autores que pensam o cidado como algum relativamente autnomo e inserido numa teia de relaes onde o outro, o diferente, se faz presente. Nesse sentido, a questo da cidadania no est to referida aos direitos humanos, mas aos desejos humanos e na dinmica de sua realizao e de seus limites. Ou seja, pode-se imaginar que o mbito do sujeito est nuclearmente referido aos seus desejos e os limites tanto da formulao como da realizao desses desejos o mbito do outro aquele que no se confunde ou se mistura com o sujeito, mas com ele se relaciona no mbito do social. Pois bem, o mbito da poltica democrtica o que se tece pelas relaes entre sujeitos e outros enquanto que o mbito da poltica totalitria o que se constri pela eliminao do outro, pela transformao do outro num igual. A hiptese que aqui se formula a de que essas instituies que esto empenhadas, de alguma forma, em salvar as classes subalternas esto, na verdade, empenhadas na prtica, em construrem uma sociedade totalitria em que no h lugar para o outro, para o diferente. E como alternativa a esse espao que se pode pensar um lugar para um movimento social semelhante ao CPC da UNE.

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