Dicionário de Personagens Da Obra de José Saramago

DICIONRIO
DE PERSONAGENS DA
OBRA DE
JOS SARAMAGO
dicionario Personagens Jose Sar1 1 09.01.12 12:13:28
UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU
REITOR
Joo Natel Pollonio Machado
VICE-REITOR
Griseldes Fredel Boos
EDITORA DA FURB
CONSELHO EDITORIAL
Edson Luiz Borges
Elsa Bevian
Joo Noll
Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira
Roberto Heinzle
Marco Antnio Wanrowsky
Maristela Pereira Fritzen
EDITOR EXECUTIVO
Maicon Tenfen
CAPA
Criao da Coordenadoria de Comunicao
e Marketing da FURB - Criativo: Bruno Jahn Bertoli.

DISTRIBUIO
Edifurb
Blumenau, 2012.
SALMA FERRAZ
DICIONRIO
DE PERSONAGENS DA
OBRA DE
JOS SARAMAGO
Esta obra foi fnalizada e publicada
com recursos do Governo Federal e Ministrio da Cultura
atravs da Lei de Incentivo Cultura.
Patrocinadores
Passeres plumarum similium
iunctim uolare solent.
Ao Departamento de Lngua e Literaturas Vernculas da

Universidade Federal de Santa Catarina, pelas horas de pesquisa
concedidas durante os ltimos anos e pela minha liberao para o
Ps-Doutorado, o que possibilitou terminar este projeto.
Ao Cnpq, pela Bolsa de Produtividade em
Pesquisa nunca concedida.
A todos os alunos da Graduao e Ps-Graduao,
colaboradores e pesquisadores que me ajudaram ao longo
destes 12 anos de pesquisa.
Aos Amigos
Roseli Broering, Tony Roberson de Mello Rodrigues,
Maura Paula Miranda, Tuca, Raphael, Jaime, Vera Sabino,
Arcari, Ellen, Elba, Rosilda, Valdete, Virginia Zimmermann,
Jos Ernesto, Zilma Gesser, Izabel Seara,
Mauri Furlan, Celdon Fritzen.
Matriarca Raquel Ferraz

Ao Querido Tio
Rubens Ferraz
Ao
Irmo Samuel
Aos Filhos
Kirlan Ferraz Vidal de Oliveira
Josemar Vidal Junior
princesa
Heloise Ferraz
Pssaros da mesma plumagem costumam voar juntos.

Salma Ferraz, 202.
Editora da FURB
Rua Antnio da Veiga, 40
8902-900 Blumenau SC BRASIL
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Fone: (047) 332-0330
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Depsito legal na Biblioteca Nacional, conforme decreto n 1825,
de 20 de dezembro de 907.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Elaborada pela Biblioteca Central da FURB
Ferraz, Salma
F381d Dicionrio de personagens da obra de Jos Saramago /
Salma Ferraz. Blumenau : Edifurb, 202.
360 p.
ISBN 978-85-7114-312-8
Bibliografa: p. 329-341.

. Saramago, Jos, 922-200. Personagens - Dicionrios.
2. Personagens literrios. 3. Literatura portuguesa Dicionrios.
I. Ttulo.

CDD 869.03
SUMRIO
Autoria, Reviso, Colaborao e Pesquisa .............................. 9
De como a Personagem foi Mestre e o Autor seu Aprendiz ... 7
Apresentao .......................................................................... 29
Relao de Personagens
por livro ............................................................................... 33
por ordem alfabtica ........................................................... 43
Verbetes
A .......................................................................................... 55
B .......................................................................................... 77
C .......................................................................................... 87
D ........................................................................................ 115
E ........................................................................................ 33
F ........................................................................................ 4
G ........................................................................................ 153
H ........................................................................................ 159
I .......................................................................................... 69
J ......................................................................................... 175
L ......................................................................................... 99
M ........................................................................................ 207
N ........................................................................................ 245
O ....................................................................................... 249
P ....................................................................................... 255
Q ....................................................................................... 269
R ....................................................................................... 273
S ......................................................................................... 287
T ......................................................................................... 299
V ....................................................................................... 305
Z ....................................................................................... 3
Bibliografa do Autor
por ordem alfabtica ........................................................ 315
por ordem cronolgica ...................................................... 39
por gnero ......................................................................... 323
tradues .......................................................................... 325
Bibliografa Consultada
livros ................................................................................. 329
artigos ............................................................................... 339
Autobiografa ........................................................................ 343
Biografa ............................................................................... 349
Distines e Honrarias
Doutoramentos Honoris Causa ........................................ 351
Prmios ............................................................................. 352
Condecoraes ................................................................. 353
Adaptaes ............................................................................. 357
Sobre a Autora ....................................................................... 359
AUTORIA, PESQUISA E ORGANIZAO
Salma Ferraz
REVISO FINAL
Salma Ferraz
Raphael Novaresi Leopoldo
REVISO TEXTUAL
Edair Maria Gorski
COLABORADORES
Agnes Teresa
Andr Luiz do Amaral
Antonieta Mercs da Silva
Daniel de Oliveira Gomes
Delzi Alves Laranjeira
Fernando Petry
Jaqueline Silva da Cunha
Jonas Tenfen
Josiele Kaminski Corso Ozelame
Maria de Ftima Bueno
Raphael Novaresi Leopoldo
Rodrigo Oliveira
Rodrigo Uliano
Tony Roberson de Mello Rodrigues
Viegas Fernandes da Costa
PESQUISADORES
Adriana Cristina da Silva
Alexandra de Oliveira
Alexandra Miranda dos Santos
Aline Silva Zilli
Ana Carolina Dalacosta
Ana Luiza Costa do Amaral
10 SALMA FERRAZ
Andra Cristina Natal Simes
Andria da Rosa Gonalves
Andrezza Peres
Antnio Augusto Nery
Carina de Melo
Carina Pamplona
Ciliane Bedin
Clarete Aparecida Maus
Claudia Cristina Marinho Miechotek
Claudia Helena Carvalho
Claudia Regina Pinheiro Pires
Cristiano de Sales
Dbora Regina Ouriques
Denise A Capistrano
Egdio M. do Nascimento
Elaine Cristina Garca
Eliane Cristina Testa
Elisa Rocha
Francisco Massanori Nakagawara Jr.
Gisela Martinez Carvalho
Gislayne da Penha Romeiro Pinheiro
Glucia Marques Bitencourt
Gloria Amaral
Izabel Teixeira
Jaqueline Silva da Cunha
Jeferson Candido
Josemar Vidal de Oliveira Junior
Julia Garcia da Silva
Juliane Abel Barchinski
Laertes Rebelo
Leandro Brandtner
Leandro Michel Corra
Lenice Terezinha Grave Junkes
Ldia Hubert
Luceni Prado
Luciane Maria da Silva
Luiza Helena Schneider
Manoela Hoffmann
Mrcia Fernandes
Marco Aurlio Castro Rodrigues
11
DICIONRIO DE PERSONAGENS DA OBRA DE JOS SARAMAGO
Maria Aparecida Borges Viera
Maria Goretti Kobus
Maria Jos Raccioppi
Mnica Quartiero de Faveri
Nilza Pieritz
Patrcia Brasil
Patrcia Leonor
Priscila Neves
Rejane Barroso de Sousa
Renato Joaquim de Souza
Rita Salma Feltz
Rochele da Silva
Roseli Broering dos Santos
Sabrina Casagrande
Sabrina L. C. Nascimento
Saskia K. M. Godoy Ferreira
Silvio Somer
Simone Guesser
Solange Aparecida Boreggio
Sunamita Pereira
Valquria Lovatto Bazzan
Wellington Gonalves
Jos Saramago
T
rata-se, talvez, da conscincia muito clara, enfm, muito viva,
que no fundo no fundo, ns somos feitos de papel. Quer dizer,
cada um de ns muito mais feito de papel do que de carne e osso. E
digo que somos feitos de papel porque somos feitos das leituras que
fzemos. Ento, parece-me um erro, de certa maneira, parece-me um
erro dividir, digamos, a vida entre o que realidade, o que chamamos
de realidade as pessoas que esto por a, ns prprios aqui todos
juntos e esse outro universo feito de palavras, de personagens, de
livros, de pginas. Tudo isso, no fundo, tem, s vezes tem, creio que
tem, eu diria que tem sempre, ou pelo menos tem mais fortemente em
muitos casos, tem mais infuncia em ns do que a prpria realidade,
isso que chamamos de realidade. Portanto, se nos meus livros de fato
h o apelo constante a esses seres de papel, para encontrar outros
seres de papel, outros, em primeiro lugar o autor, e depois outros
seres de papel, que so os leitores, por uma razo muito simples:
que eu no separo isso a que chamamos de realidade dessa outra
realidade fctcia, que da imaginao, que da inveno, e a ambas
eu vejo embrechadas uma na outra. [...] Ento, toda esta, digamos,
todo este imbricamento entre o que fctcio e o que real, julgo eu,
o que passa pelos meus livros.
Jos Saramago
2
2
SARAMAGO, Jos. Memria Roda Viva: Jos Saramago. Entrevistador:
Rodolfo Konder. So Paulo, Rede Cultura, 7 set. 992. Entrevista concedida
ao Programa Roda Viva. Disponvel em: <http://www.rodaviva.fapesp.br/
materia_busca/0/leitura/entrevistados/josesaramago_992.htm>. Acesso
em: 2 dez. 200.

DE COMO A PERSONAGEM FOI MESTRE
E O AUTOR SEU APRENDIZ
Jos Saramago
Discurso em Estocolmo, por ocasio da

premiao como Nobel de Literatura

O
homem mais sbio que conheci em toda a minha vida no sabia
ler nem escrever. s quatro da madrugada, quando a promessa
de um novo dia ainda vinha em terras de Frana, levantava-se da
enxerga e saa para o campo, levando ao pasto a meia dzia de porcas
de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta
escassez os meus avs maternos, da pequena criao de porcos
que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia.
Azinhaga de seu nome, na provncia do Ribatejo. Chamavam-se
Jernimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avs, e eram analfabetos
um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de
a gua dos cntaros gelar dentro da casa, iam buscar s pocilgas os
bcoros mais dbeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das
mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do
enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem
gente de bom carcter, no era por primores de alma compassiva
que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem
sentimentalismos nem retricas, era proteger o seu ganha-po,
com a naturalidade de quem, para manter a vida, no aprendeu a
pensar mais do que o indispensvel. Ajudei muitas vezes este meu
av Jernimo nas suas andanas de pastor, cavei muitas vezes a
terra do quintal anexo casa e cortei lenha para o lume, muitas
vezes, dando voltas e voltas grande roda de ferro que accionava
a bomba, fz subir a gua do poo comunitrio e a transportei ao
ombro, muitas vezes, s escondidas dos guardas das searas, fui com
a minha av, tambm pela madrugada, munidos de ancinho, panal
3
SARAMAGO, Jos. De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz.
In: NOBEL FOUNDATION. The Nobel Prize in Literature 1998: Jos
Saramago, Nobel Lecture. Disponvel em: <http://nobelprize.org/nobel_
prizes/literature/laureates/1998/lecture-p.html>. Acesso em: 21 dez.
200.
18 SALMA FERRAZ
e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria
de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes
de Vero, depois da ceia, meu av me disse: Jos, hoje vamos
dormir os dois debaixo da fgueira. Havia outras duas fgueiras,
mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por
ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a fgueira. Mais
ou menos por antonomsia, palavra erudita que s muitos anos
depois viria a conhecer e a saber o que signifcava... No meio da paz
nocturna, entre os ramos altos da rvore, uma estrela aparecia-me,
e depois, lentamente, escondia-se por trs de uma folha, e, olhando
eu noutra direco, tal como um rio correndo em silncio pelo cu
cncavo, surgia a claridade opalescente da Via Lctea, o Caminho
de Santiago, como ainda lhe chamvamos na aldeia. Enquanto o
sono no chegava, a noite povoava-se com as histrias e os casos
que o meu av ia contando: lendas, aparies, assombros, episdios
singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de
antepassados, um incansvel rumor de memrias que me mantinha
desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca
pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha
adormecido, ou se continuava a falar para no deixar em meio a
resposta pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais
demoradas que ele calculadamente metia no relato: E depois?.
Talvez repetisse as histrias para si prprio, quer fosse para no
as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripcias novas.
Naquela idade minha e naquele tempo de ns todos, nem ser
preciso dizer que eu imaginava que o meu av Jernimo era senhor
de toda a cincia do mundo. Quando, primeira luz da manh,
o canto dos pssaros me despertava, ele j no estava ali, tinha
sado para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir.
Ento levantava-me, dobrava a manta e, descalo (na aldeia andei
sempre descalo at aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao
cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se
encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha av, j a p antes
do meu av, punha-me na frente uma grande tigela de caf com
pedaos de po e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe
contava algum mau sonho nascido das histrias do av, ela sempre
me tranquilizava: No faas caso, em sonhos no h frmeza.
Pensava ento que a minha av, embora fosse tambm uma mulher
muito sbia, no alcanava as alturas do meu av, esse que, deitado
debaixo da fgueira, tendo ao lado o neto Jos, era capaz de pr o
universo em movimento apenas com duas palavras. Foi s muitos
anos depois, quando o meu av j se tinha ido deste mundo e eu era
19
um homem feito, que vim a compreender que a av, afnal, tambm
acreditava em sonhos. Outra coisa no poderia signifcar que,
estando ela sentada, uma noite, porta da sua pobre casa, onde
ento vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima
da sua cabea, tivesse dito estas palavras: O mundo to bonito,
e eu tenho tanta pena de morrer. No disse medo de morrer, disse
pena de morrer, como se a vida de pesado e contnuo trabalho que
tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase fnal, a receber
a graa de uma suprema e derradeira despedida, a consolao da
beleza revelada. Estava sentada porta de uma casa como no
creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu
gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus prprias
flhos, gente que tinha pena de ir-se da vida s porque o mundo
era bonito, gente, e este foi o meu av Jernimo, pastor e contador
de histrias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi
despedir-se das rvores do seu quintal, uma por uma, abraando-
se a elas e chorando porque sabia que no as tornaria a ver.
Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu
av Jernimo e esta minha av Josefa (faltou-me dizer que ela tinha
sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma
formosura invulgar), tive conscincia de que estava a transformar
as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literrias
e que essa era, provavelmente, a maneira de no os esquecer,
desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lpis sempre
cambiante da recordao, colorindo e iluminando a monotonia de
um quotidiano bao e sem horizontes, como quem vai recriando,
por cima do instvel mapa da memria, a irrealidade sobrenatural
do pas em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de esprito
que, depois de haver evocado a fascinante e enigmtica fgura de
um certo bisav berbere, me levaria a descrever mais ou menos
nestes termos um velho retrato (hoje j com quase oitenta anos)
onde os meus pais aparecem: Esto os dois de p, belos e jovens,
de frente para o fotgrafo, mostrando no rosto uma expresso de
solene gravidade que talvez temor diante da cmara, no instante
em que a objectiva vai fxar, de um e de outro, a imagem que nunca
mais tornaro a ter, porque o dia seguinte ser implacavelmente
outro dia... Minha me apoia o cotovelo direito numa alta coluna e
segura na mo esquerda, cada ao longo do corpo, uma for. Meu pai
passa o brao por trs das costas de minha me e a sua mo calosa
aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados
um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postio ao retrato
mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclssicas.
20 SALMA FERRAZ
E terminava: Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas.
Nada disto tem importncia, a no ser para mim. Um av berbere,
vindo do Norte de frica, um outro av pastor de porcos, uma av
maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma for num
retrato que outra genealogia pode importar-me? a que melhor
rvore me encontraria?
Escrevi estas palavras h quase trinta anos, sem outra inteno
que no fosse reconstituir e registrar instantes da vida das pessoas
que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que
nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde
venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta
em que pouco a pouco me vim tornando. Afnal, estava enganado, a
biologia no determina tudo, e, quanto gentica, muito misteriosos
devero ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta to
larga... minha rvore genealgica (perde-se-me a presuno de
a designar assim, sendo to minguada a substncia da sua seiva)
no faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os
sucessivos encontros da vida vo fazendo romper do tronco central,
tambm lhe faltava quem ajudasse as suas razes a penetrar at s
camadas subterrneas mais fundas, quem apurasse a consistncia
e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua
copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos.
Ao pintar os meus pais e os meus avs com tintas de literatura,
transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam
sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da
minha vida, estava, sem o perceber, a traar o caminho por onde
as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente
literrias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que,
fnalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insufciente,
no ganho e no perdido, naquilo que defeito mas tambm naquilo
que excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje
me reconheo: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo,
criatura delas. Em certo sentido poder-se- mesmo dizer que, letra
a letra, palavra a palavra, pgina a pgina, livro a livro, tenho vindo,
sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que
criei. Creio que, sem elas, no seria a pessoa que hoje sou, sem elas
talvez a minha vida no tivesse logrado ser mais do que um esboo
impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa no
conseguiram passar, a existncia de algum que talvez pudesse ter
sido e afnal no tinha chegado a ser.
Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres
de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofcio de
21
viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que
neste momento vejo desflar diante dos meus olhos, esses homens e
essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava
ir guiando de acordo com as minhas convenincias de narrador
e obedecendo minha vontade de autor, como tteres articulados
cujas aces no pudessem ter mais efeito em mim que o peso
suportado e a tenso dos fos com que os movia. Desses mestres,
o primeiro foi, sem dvida, um medocre pintor de retratos que
designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma histria a
que creio razovel chamar de dupla iniciao (a dele, mas tambm,
de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e
Caligrafa, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer
e acatar, sem ressentimento nem frustrao, os meus prprios
limites: no podendo nem ambicionando aventurar-me para alm
do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de
escavar para o fundo, para baixo, na direco das razes. As minhas,
mas tambm as do mundo, se podia permitir-me uma ambio to
desmedida. No me compete a mim, claro est, avaliar o mrito do
resultado dos esforos feitos, mas creio ser hoje patente que todo o
meu trabalho, de a para diante, obedeceu a esse propsito e a esse
princpio.
Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela
mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu
av Jernimo e a minha av Josefa, camponeses rudes obrigados
a alugar a fora dos braos a troco de um salrio e de condies de
trabalho que s mereceriam o nome de infames, cobrando por menos
que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos
de ser apreciamos chamar, segundo as ocasies, preciosa, sagrada
ou sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja
to cmplice como benefciria do poder do Estado e dos terra-
tenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia,
gente, quantas e quantas vezes, vtima inocente das arbitrariedades
de uma justia falsa. Trs geraes de uma famlia de camponeses,
os Mau-Tempo, desde o comeo do sculo at a Revoluo de Abril
de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei
o ttulo de Levantado do Cho, e foi com tais homens e mulheres do
cho levantados, pessoas reais primeiro, fguras de fco depois,
que aprendi a ser paciente, a confar e a entregar-me ao tempo, a
esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo
para de novo nos construir e outra vez nos destruir. S no tenho
a certeza de haver assimilado de maneira satisfatria aquilo que a
dureza das experincias tornou virtude nessas mulheres e nesses
22 SALMA FERRAZ
homens: uma atitude naturalmente estica perante a vida. Tendo
em conta, porm, que a lio recebida, passados mais de vinte anos,
ainda permanece intacta na minha memria, que todos os dias a
sinto presente no meu esprito como uma insistente convocatria,
no perdi, at agora, a esperana de me vir a tornar um pouco mais
merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram
propostos na imensido das plancies do Alentejo. O tempo o dir.
Que outras lies poderia eu receber de um portugus
que viveu no sculo XVI, que comps as Rimas e as glrias, os
naufrgios e os desencantos ptrios de Os Lusadas, que foi um
gnio potico absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que
isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o
Super-Cames dela? Nenhuma lio que estivesse minha medida,
nenhuma lio que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples
que me poderia ser oferecida pelo homem Lus Vaz de Cames na
sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de
um autor que vai chamando a todas as portas procura de quem
esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por
isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferena
desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escrnio
com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas,
dos visionrios e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os
autores tiveram ou tero de ser Lus de Cames, mesmo se no
escreverem as redondilhas de Sbolos rios... Entre fdalgos da
corte e censores do Santo Ofcio, entre os amores de antanho e
as desiluses da velhice prematura, entre a dor de escrever e a
alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre
da ndia, aonde muitos s iam para enriquecer, foi a este soldado
cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna
que no voltar nunca mais a perturbar os sentidos das damas
do pao, que eu pus a viver no palco da pea teatro chamada Que
farei com este livro?, em cujo fnal ecoa uma outra pergunta, aquela
que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se
alguma vez chegar a ter resposta sufciente: Que fareis com este
livro?. Humildade orgulhosa foi essa de levar debaixo do brao
uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo.
Humildade orgulhosa tambm, e obstinada, esta de querer saber
para que iro servir amanh os livros que andamos a escrever hoje,
e logo duvidar que consigam perdurar longamente (at quando?) as
razes tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que
estejamos a dar a ns prprios. Ningum melhor se engana que
quando consente que o enganem os outros...
23
Aproximam-se agora um homem que deixou a mo esquerda
na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder
de ver o que h por trs da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar
Mateus e tem a alcunha de Sete-Sis, a ela conhecem-na pelo
nome de Blimunda, e tambm pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi
acrescentado depois, porque est escrito que onde haja um sol ter
de haver uma lua, e que s a presena conjunta e harmoniosa de
um e do outro tornar habitvel, pelo amor, a terra. Aproxima-se
tambm um padre jesuta chamado Bartolomeu que inventou uma
mquina capaz de subir ao cu e voar sem outro combustvel que
no seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo
pode, mas que no pde, ou no soube, ou no quis, at hoje, ser o
sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito.
So trs loucos portugueses do sculo XVIII, num tempo e num pas
onde foresceram as supersties e as fogueiras da Inquisio, onde
a vaidade e a megalomania de um rei fzeram erguer um convento,
um palcio e uma baslica que haveriam de assombrar o mundo
exterior, no caso pouco provvel de esse mundo ter olhos bastantes
para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para
ver o que escondido estava... E tambm se aproxima uma multido
de milhares e milhares de homens com as mos sujas e calosas,
com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fo, pedra
a pedra, os muros implacveis do convento, as salas enormes
do palcio, as colunas e as pilastras, as areas torres sineiras, a
cpula da baslica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos
a ouvir so do cravo de Domenico Scarlatti, que no sabe se deve
rir ou chorar... Esta a histria de Memorial do Convento, um
livro em que o aprendiz de autor, graas ao que lhe vinha sendo
ensinado desde o antigo tempo dos seus avs Jernimo e Josefa, j
conseguiu escrever palavras como estas, donde no est ausente
alguma poesia: Alm da conversa das mulheres, so os sonhos
que seguram o mundo na sua rbita. Mas so tambm os sonhos
que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o cu o resplendor que
h dentro da cabea dos homens, se no a cabea dos homens o
prprio e nico cu. Que assim seja.
De lies de poesia sabia j alguma coisa o adolescente,
aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de
ensino profssional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofcio
que exerceu no comeo da sua vida de trabalho: o de serralheiro
mecnico. Teve tambm bons mestres de arte potica nas longas
horas nocturnas que passou em bibliotecas pblicas, lendo ao
acaso de encontros e de catlogos, sem orientao, sem algum
24 SALMA FERRAZ
que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante
que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca
da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis comeou a
ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro
(teria ento 7 anos) uma revista Atena era o ttulo em que havia
poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo to mau
conhecedor da cartografa literria do seu pas pensou que existia
em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. No
tardou muito tempo, porm, a saber que o poeta propriamente dito
tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas
com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabea e a que
chamava heternimos, palavra que no constava dos dicionrios da
poca, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o
que ela signifcava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis
(Para ser grande s inteiro/Pe quanto s no mnimo que fazes),
mas no podia resignar-se, apesar de to novo e ignorante, que um
esprito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso
cruel: Sbio o que se contenta com o espectculo do mundo.
Muito, muito tempo depois, o aprendiz, j de cabelos brancos e
um pouco mais sbio das suas prprias sabedorias, atreveu-se a
escrever um romance para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa
do que era o espectculo do mundo nesse ano de 1936 em que o
tinha posto a viver os seus ltimos dias: a ocupao da Rennia pelo
exrcito nazista, a guerra de Franco contra a Repblica espanhola,
a criao por Salazar das milcias fascistas portuguesas. Foi como
se estivesse a dizer-lhe: Eis o espectculo do mundo, meu poeta
das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza,
contempla, j que estar sentado a tua sabedoria...
O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras
melanclicas: Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.
Portanto, no haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas
como destino uma espera infnita de futuros nem aos menos
inimaginveis: s o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco
mais... Foi ento que o aprendiz imaginou que talvez houvesse
ainda uma maneira de tornar a lanar os barcos gua, por
exemplo, mover a prpria terra e p-la a navegar pelo mar fora.
Fruto imediato do ressentimento colectivo portugus pelos desdns
histricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu
ressentimento pessoal...), o romance que ento escrevi A Jangada
de Pedra separou do continente europeu toda a Pennsula Ibrica
para a transformar numa grande ilha futuante, movendo-se sem
remos, nem velas, nem hlices em direco ao Sul do mundo,
25
massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques,
fbricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os
seus animais, a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural
dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlntico,
desafando assim, a tanto a minha estratgia se atreveu, o domnio
sufocante que os Estados Unidos da Amrica do Norte vm exercendo
naquelas paragens... Uma viso duas vezes utpica entenderia esta
fco poltica como uma metfora muito mais generosa e humana:
que a Europa, toda ela, dever deslocar-se para o Sul, a fm de, em
desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar
a equilibrar o mundo. Isto , Europa fnalmente como tica. As
personagens da Jangada de Pedra duas mulheres, trs homens e
um co viajam incansavelmente atravs da pennsula enquanto
ela vai sulcando o oceano. O mundo est a mudar e eles sabem
que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que iro
tornar-se (sem esquecer o co, que no um co como os outros...).
Isso lhes basta.
Lembrou-se ento o aprendiz de que em tempos da sua vida
havia feito algumas revises de provas de livros e que se na Jangada
de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, no estaria mal
que revisasse agora o passado, inventando um romance que se
chamaria Histria do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo
um livro do mesmo ttulo, mas de Histria, e cansado de ver como a
dita Histria cada vez menos capaz de surpreender, decide pr no
lugar de um sim um no, subvertendo a autoridade das verdades
histricas. Raimundo Silva, assim se chama o revisor, um homem
simples, vulgar, que s se distingue da maioria por acreditar que
todas as coisas tm o seu lado visvel e o seu lado invisvel e que
no saberemos nada delas enquanto no lhes tivermos dado a volta
completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem
com o historiador. Assim: Recordo-lhe que os revisores j viram
muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, de histria,
No sendo propsito meu apontar outras contradies, senhor
doutor, em minha opinio tudo quanto no for vida literatura,
A histria tambm. A histria sobretudo, sem querer ofender, E a
pintura, e a msica, A msica anda a resistir desde que nasceu,
ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja,
mas regressa sempre obedincia, E a pintura, Ora, a pintura no
mais do que literatura feita com pincis, Espero que no esteja
esquecido de que a humanidade comeou a pintar muito antes de
saber escrever, Conhece o rifo, se no tens co caa com o gato, ou,
por outras palavras, quem no pode escrever, pinta, ou desenha,
26 SALMA FERRAZ
o que fazem as crianas, O que voc quer dizer, por outras palavras,
que a literatura j existia antes de ter nascido, Sim senhor, como
o homem, por outras palavras, antes de o ser j o era, Quer-me
parecer que voc errou a vocao, devia era ser historiador, Falta-
me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer
sem o preparo, muita sorte j foi ter vindo ao mundo com a gentica
arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois no
mais polimento que primeiras letras que fcaram nicas, Podia
apresentar-se como autodidacta, produto do seu prprio e digno
esforo, no vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha
orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento
e acabou, os autodidactas so vistos com maus olhos, s os que
escrevem versos e histrias para distrair que esto autorizados a
ser autodidactas, mas eu para a criao literria nunca tive jeito,
Ento, meta-se a flsofo, O senhor doutor um humorista, cultiva
a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou histria, sendo
ela to grave e profunda cincia, Sou irnico apenas na vida real,
Bem me queria a mim parecer que a histria no a vida real,
literatura, sim, e nada mais, Mas a histria foi vida real no tempo
em que ainda no se lhe poderia chamar histria, Ento o senhor
doutor acha que a histria a vida real, Acho, sim, Que a histria
foi vida real, quero dizer, No tenho a menor dvida, Que seria de
ns se o deleatur que tudo apaga no existisse, suspirou o revisor.
Escusado ser acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo
Silva a lio da dvida. J no era sem tempo.
Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dvida que o
levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo
Jesus Cristo. certo, e ele tem-no dito, que as palavras do ttulo
lhe surgiram por efeito de uma iluso de ptica, mas legtimo
interrogar-nos se no teria sido o sereno exemplo do revisor o que,
nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria
de brotar o novo romance. Desta vez no se tratava de olhar por trs
das pginas do Novo Testamento procura de contrrios, mas sim
de iluminar com uma luz rasante a superfcie delas, como se faz a
uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de
passagem, a obscuridade das depresses. Foi assim que o aprendiz,
agora rodeado de personagens evanglicas, leu, como se fosse a
primeira vez, a descrio da matana dos Inocentes, e, tendo lido,
no compreendeu. No compreendeu que j pudesse haver mrtires
numa religio que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu
fundador pronunciasse a primeira palavra dela, no compreendeu
que no tivesse salvado a vida das crianas de Belm precisamente
27
a nica pessoa que o poderia ter feito, no compreendeu a ausncia,
em Jos, de um sentimento mnimo de responsabilidade, de
remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do
Egipto com a famlia. Nem se poder argumentar, em defesa da
causa, que foi necessrio que as crianas de Belm morressem para
que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum,
que a todas as coisas, tanto s humanas como s divinas, deveria
presidir, a est para nos recordar que Deus no enviaria o seu
Filho terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados
da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade
degolado por um soldado de Herodes... Nesse Evangelho, escrito
pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, Jos
ser consciente da sua culpa, aceitar o remorso em castigo da falta
que cometeu e deixar-se- levar morte quase sem resistncia,
como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o
mundo. O Evangelho do aprendiz no , portanto, mais uma lenda
edifcante de bem-aventurados e de deuses, mas a histria de uns
quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam,
mas que no podem vencer. Jesus, que herdar as sandlias com
que o pai tinha pisado o p dos caminhos da terra, tambm herdar
dele o sentimento trgico da responsabilidade e da culpa que nunca
mais o abandonar, nem mesmo quando levantar a voz do alto da
cruz: Homens, perdoai-lhe porque ele no sabe o que fez, por
certo referindo-se ao Deus que o levara at ali, mas quem sabe se
recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autntico,
aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como
se v, o aprendiz j tinha feito uma larga viagem quando no seu
hertico Evangelho escreveu as ltimas palavras do dilogo no
templo entre Jesus e o escriba: A culpa um lobo que come o flho
depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas
j comeu o meu pai, disse Jesus, Ento s falta que te devore a ti,
E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, No apenas comido e
devorado, mas vomitado, respondeu o escriba.
Se o imperador Carlos Magno no tivesse estabelecido no
Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro no tivesse
dado origem cidade de Mnster, se Mnster no tivesse querido
assinalar os mil e duzentos anos da sua fundao com uma pera
sobre a pavorosa guerra que enfrentou no sculo XVI protestantes
anabaptistas e catlicos, o aprendiz no teria escrito a pea de teatro
a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxlio que
a pequena luz da sua razo, o aprendiz teve de penetrar no obscuro
labirinto das crenas religiosas, essas que com tanta facilidade
28 SALMA FERRAZ
levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi
novamente a mscara horrenda da intolerncia, uma intolerncia
que em Mnster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerncia
que insultava a prpria causa que ambas as partes proclamavam
defender. Porque no se tratava de uma guerra em nome de dois
deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus.
Cegos pelas suas prprias crenas, os anabaptistas e os catlicos
de Mnster no foram capazes de compreender a mais clara de
todas as evidncias: no dia do Juzo Final, quando uns e outros
se apresentarem a receber o prmio ou o castigo que mereceram
as suas aces na terra, Deus, se em suas decises se rege por
algo parecido lgica humana, ter de receber no paraso tanto a
uns como aos outros, pela simples razo de que uns e outros nele
crem. A terrvel carnifcina de Mnster ensinou ao aprendiz que,
ao contrrio do que prometeram, as religies nunca serviram para
aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras
uma guerra religiosa, tendo em considerao que Deus no pode,
ainda que o quisesse, declarar guerra a si prprio...
Cegos. O aprendiz pensou: Estamos cegos, e sentou-se a
escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a
ler que usamos perversamente a razo quando humilhamos a vida,
que a dignidade do ser humano todos os dias insultada pelos
poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar
das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo
quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o
aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela
cegueira da razo, ps-se a escrever a mais simples de todas as
histrias: uma pessoa que vai procura de outra pessoa apenas
porque compreendeu que a vida no tem nada mais importante
que pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. No
escritos, todos os nossos nomes esto l. Os nomes dos vivos e os
nomes dos mortos.
Termino. A voz que leu estas pginas quis ser o eco das vozes
conjuntas das minhas personagens. No tenho, a bem dizer, mais
voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco
isto que para mim tudo.
APRESENTAO
A
ps publicar meu livro intitulado O Quinto Evangelista pela
Editora da UNB em 998 resultado de minha dissertao
de mestrado e quando terminava a escritura de As faces de Deus
na obra de um ateu: Jos Saramago resultado de meu doutorado
publicado pela Editora da UFJF e EDIFURB em 2003, tive a idia
de escrever um Dicionrio de Personagens da obra do Prmio Nobel
de Literatura, Jos Saramago (1922-2010), para complementar os
estudos que vinha desenvolvendo sobre esse autor.
Foram concedidos ao autor 37 doutoramentos Honoris Causa,
a partir de 1991, sendo 33 deles aps ter sido laureado com o
Prmio Nobel, em 1998. Foram-lhe outorgados outros 22 prmios
literrios, em cinco pases diferentes, e 45 condecoraes das mais
diversas naturezas. Acrescentem-se a esses nmeros, que mudam
dia a dia, as centenas de livros, artigos, resenhas, dissertaes e
teses sobre sua vida e obra publicados em todo o mundo.
Segundo Andr Luiz do Amaral, Saramago alcanou, em
vida, um status idoltrico, transformando-se num autor-dolo que
soube direcionar a mquina miditica a seu favor. Assim, ele obteve
quase que uma espcie de canonizao ainda em vida, tornando-se
coparticipante de sua fortuna crtica. O literato fazia ou ainda faz
valer sua prpria voz, negando-se a sair de cena, contrariando a
teoria da morte do autor decretada por Barthes. Saramago centra
sua obra quase que tiranicamente em sua pessoa, mantendo
o imprio do autor, ou seja, a obra sob controle absoluto. Ele
Blimunda, Madalena, Deus, o Diabo, etc.; ele as 354 personagens
elencadas neste dicionrio. Saramago recusa-se a morrer em vida
e, paradoxalmente, nega-se a morrer mesmo aps seu falecimento.
Afnal, 2010 no foi o ano da morte de Jos Saramago, pois em 18
de Junho daquele ano ningum morreu...
Esta pesquisa tem cerca de quinze anos, e eu achava que nunca
chegaria ao fm e, principalmente, que nunca me contentaria com
seu resultado. O fm chegou, depois de dezenas de reescrituras dos
verbetes, e com ele o remorso e o receio de que algum verbete mais
interessante tenha sido substitudo por outro no to altura. No
obstante, resolvi colocar um ponto fnal nesta empreitada, admitindo
que, para o momento, este livro foi o melhor que conseguimos fazer.
30 SALMA FERRAZ
Adianto, porm, que no estou contente, persigo a perfeio e j
visualizo vrias revises em futuras edies. Esta uma obra aberta,
sem pretenso de ser defnitiva. O objetivo desta primeira verso
, alm de homenagear Jos Saramago e de catalogar a imensa
galeria de personagens criada pele autor, abrir o debate e a troca
de idias. Portanto, todos os que quiserem colaborar com novos
verbetes, novas nuances, desde j esto convidados a enviar sua
preciosa observao.
Cabem a seguir alguns esclarecimentos. Em alguns verbetes,
o leitor encontrar o sinal * e mais abaixo o sinal **. Nesses casos
foram feitas duas descries, consideradas ambas pertinentes.
Na dvida entre qual tirar e qual manter, optamos por deixar as
duas verses numa mesma entrada do dicionrio. O tamanho
dos verbetes dependeu em muito da paixo de quem escrevia pelo
personagem biografado. H casos em que pequeno, como o da
escrava Zelomi, com apenas trs linhas, mas sua importncia na
trama dO Evangelho segundo Jesus Cristo fundamental.
Por uma questo metodolgica, resolvemos deixar de fora as
crnicas e contos da chamada primeira fase de Jos Saramago e
nos concentrarmos nos romances e peas teatrais. Uma exceo foi
feita para o romance Terra do Pecado, pertencente a essa primeira
fase, includo por constatarmos nessa obra procedimentos e
temticas que apareceram na chamada fase madura do escritor.
Um nico conto A Ilha Desconhecida foi contemplado, por fazer
parte da fase de maturidade literria do autor. Para esta edio
optamos por no incluir o romance Claraboia, escrito em 1953
e publicado pela Companhia das Letras em 2011, por ser uma
publicao post mortem.
Mesmo se tratando de um dicionrio de personagens, certos
lugares presentes em alguns romances tambm mereceram seu
verbete, porque esses lugares transcendem seu papel de mero
local em que os fatos acontecem e chegam a comportar-se como
personagens importantes para o desenvolvimento do enredo. o
caso do Centro (Shopping) de A Caverna, Conservatria Geral
e Cemitrio Geral de Todos os Nomes, Quarto da Morte de As
Intermitncias da Morte, Deserto do Evangelho segundo Jesus
Cristo. Tambm certas personifcaes tiveram seu verbete como
Morte e Gadanha de As Intermitncias da Morte e instituies
como Mphia e Governo do mesmo romance.
Outros verbetes so destinados aos ces, que na obra de
Saramago so, em alguns casos, mais importantes que certas
personagens humanas. Eles so sensveis e humanizados, tais
31
como o Achado, Ardent, Tomarctus, Co das Lgrimas, etc.
Outro animal a merecer seu verbete o Elefante, que protagoniza
o antepenltimo romance do autor: A viagem do Elefante.
Quanto organizao do Dicionrio, seguem-se a esta
apresentao duas relaes de personagens em ordem alfabtica: a
primeira especifcada por livro do escritor portugus; e a segunda
geral, sendo cada personagem acompanhado das iniciais da obra
a que pertence. A distribuio dos 354 verbetes que compem o
dicionrio confgura-se de acordo com essa segunda relao e,
em boa parte deles, h uma frase fnal em destaque que marca
uma importante fala da personagem. A referncia pgina dessa
citao foi omitida, uma vez que os verbetes passaram por diversas
reescrituras e cada pesquisador lanou mo de uma edio diferente
da obra, alm da internet.
Outro esclarecimento diz respeito aos destaques nos nomes
no alto de cada folha. Tais destaques nem sempre coincidem com
o primeiro nome do incio de cada folha. s vezes, o destaque foi
dado para o personagem que autora achou mais relevante em
determinada pgina.
Vale salientar ainda que os nomes prprios e defnidos que
aparecerem na descrio de um determinado verbete por exemplo,
em Achado de A Caverna so devidamente identifcados ou
caracterizados em seus respectivos verbetes especfcos. Assim,
caso o leitor no identifque de imediato certos referentes, poder
consultar os verbetes das personagens em questo no prprio
Dicionrio. No caso especfco do livro Caim, os nomes prprios
foram grafados em letra minscula na descrio dos personagens,
mantendo-se a forma de escrita do autor.
Um ltimo esclarecimento diz respeito questo do estilo.
Como cada pesquisador ou colaborador imprimiu sua escrita
peculiar em cada um dos verbetes, diferenas estilsticas acabaram
se entrecruzando ao longo do trabalho, a despeito de revises
realizadas em busca de uma certa homogeneizao.
No posso deixar de mencionar o excelente trabalho desenvolvido
pelo Professor Miguel Kollef, titular da ctedra de Literaturas
Lusfonas da Faculdad de Lenguas da Universidad de Crdoba
(Argentina), que tambm pesquisou e organizou um dicionrio de
personagens, alm de uma teoria geral da novela de Jos Saramago.
Nossas pesquisas foram coincidentes na temtica, chegamos a entrar
em contato, mas a distncia e o problema da lngua foram impeditivos
de um trabalho conjunto. Seu dicionrio foi publicado pela Editorial
de la Universidad Catlica de Crdoba em 2008.
32 SALMA FERRAZ
Fica aqui a minha gratido s dezenas de alunos da cadeira de
Literatura Portuguesa da UFSC Universidade Federal de Santa
Catarina que, com pacincia e esforo, colaboraram na pesquisa
e escritura desses verbetes. No poderia deixar de agradecer ao
Departamento de Lngua e Literaturas Vernculas da UFSC que
concedeu, durante os ltimos anos, tempo para que eu desenvolvesse
o projeto de pesquisa cujo resultado aqui apresentado. Tambm
agradeo ao Funpesquisa/UFSC pela verba destinada compra de
livros para este projeto.
O agradecimento maior fca para o Governo Federal, para
o Ministrio da Cultura, a Irmos Fischer S.A. Indstria e
Comrcio, de Brusque SC, para a Fapesc - Fundao de Apoio
Pesquisa Cientfca e Tecnolgica do Estado de Santa Catarina
e BRDE, Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo
Sul que tornaram possvel, por meio da Lei de Incentivo Cultura,
a pesquisa, a fnalizao, a publicao e a distribuio da presente
obra.
Na expectativa de que este seja um dicionrio bsico que
venha, entre outros que surgiro, colaborar um pouquinho para
o enriquecimento da crtica sobre a obra do autor, dedicamos este
Dicionrio de Personagens aos amantes da boa literatura de Jos
Saramago.
Salma Ferraz
Profa. Associada de Literatura Portuguesa da
Universidade Federal de Santa Catarina
RELAO DE PERSONAGENS
- por livro -
A Caverna (AC)
Achado
Centro
Chefe de Departamento de Compras
Cipriano Algor
Isaura Madruga
Justa Isasca
Maral
Marta
A Ilha Desconhecida (AID)
Capito do Porto
Homem
Mulher da Limpeza
Rei
A Jangada de Pedra (AJP)
Ardent
Ces de Cerbre
Joana Carda
Joaquim Sassa
Jos Anaio
Maria Dolores
Maria Guavaira
Navegador Solitrio
Pedro Orce
Pigaro Pig e Al
Platero
Roque Lozano
A Noite (AN)
Ablio Valadares
Afonso
Baltazar
Cardoso
Cludia
Damio
Esmeralda
Faustino
34 SALMA FERRAZ
A Segunda Vida de Francisco de Assis (ASVFA)
Bernardo
Clara
Elias
Francisco
Gil
Ins
Jacoba
Junpero
Leo
Masseo
Pedro I
Pedro II
Pica
Rufno
A Viagem do Elefante (AVE)
Alcaide
Arcebispo de Valladolid
Arquiduque Maximiliano de ustria
Arquiduquesa
Boieiro
Bruxa da Aldeia
Comandante Austraco
Comandante Portugus
Conde
Cornaca
Couraceiros
Cura
Dom Joo III
Dona Catarina de ustria
Elefante
Esculcas
Estribeiro-Mor
Feitor
Fritz
Lacaio-Mor
Marinheiro
Menina
Nufrago
O Lngua
Padre de Pdua
35
Pajens
Pro de Alcova Carneiro
Porta-Voz da Aldeia
Rapaz Galego
Salomo
Sargento dos Couraceiros
Sargento Portugus
Secretrio
Solimo
Subhro
Velho Labrego
As Intermitncias da Morte (AIM)
Cardeal
Gadanha
Governo
Jornalista
Mphia
Morte
Primeiro-Ministro
Quarto da Morte
Violoncelista
Caim (C)
Abel
Abrao
Ado
Anjos
Azael
Caim
Deus
Escravo
Eva
Homem
Isaac
Lilith
Noah
No
Olheiro
Sara
Velho
36 SALMA FERRAZ
Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido (DG)
Comendador
Don Giovanni
Don Octavio
Dona Ana
Dona Elvira
Leporello
Masetto
Zerlina
Ensaio sobre a Cegueira (ESC)
Ajudante de Farmcia
Co das Lgrimas
Cego da Contabilidade
Chefe dos Malvados
Criada de Hotel
Empregada do Consultrio
Ladro do Carro
Mdico
Mulher do Mdico
Mulher do Primeiro Cego
Primeiro Cego
Rapariga dos culos Escuros
Rapazinho Estrbico
Velho da Venda Preta
Ensaio sobre a Lucidez (ESL)
Agente de Segunda Classe
Chefe da Redaco
Chefe do Estado
Comissrio
Delegado do P.D.D.
Delegado do P.D.E.
Delegado do P.D.M.
Director da Redaco
Ex-Mulher do Homem da Carta
Homem da Carta
Homem da Gravata azul com pintas brancas
Inspector
Mdico
Ministro da Cultura
Ministro da Defesa
Ministro da Justia
37
Ministro do Interior
Ministro dos Negcios Estrangeiros
Mulher do Mdico
Mulher do Presidente
Povo
Presidente da Cmara
Presidente da Mesa da Assemblia Eleitoral
Presidente da Repblica
Primeiro-Ministro
Rapariga dos culos Escuros
Rapaz Estrbico
Secretrio
Velho da Venda Preta
Vogal
Histria do Cerco de Lisboa (HCL)
Almuadem
Aroldo de Aarschot
Autor
Cavaleiro Henrique
Costa
Maria
Maria Sara
Mogueime
Ouroana
Raimundo Benvindo Silva
Sara
In Nomine Dei (IND)
Berndt Knipperdollinck
Berndt Rothmann
Else Wandscherer
Franz Von Waldeck
Gertrud Von Utrech Divara
Heinrich Krechting
Hille Feiken
Hubert Ruescher
Jan Dusentschuer
Jan Matthys
Jan Van Leiden
Povo de Mnster
Sndico de Mnster
Von Der Wieck
38 SALMA FERRAZ
Levantado do Cho (LC)
Adalberto
Agamedes
Alberto
Amlia
Angilberto
Ansberto
Anselmo
Antnio
Dagoberto
Domingos
Domingos Mau-Tempo
Felisberto Lampas
Floriberto
Gilberto
Gracinda
Joo Mau-Tempo
Lamberto Horques
Manuel Espada
Maria Adelaide Espada
Maria Conceio
Norberto
Sara Conceio
Sigisberto
Sigismundo Canastro
Manual de Pintura e Caligrafa (MPC)
Adelaide
Adelina
Ana
Antnio
Carmo
Chico
Concha
Francisco
H.
M.
Olga
Ricardo
S.
Sandra
39
Memorial do Convento (MC)
lvaro Diogo
Baltasar Mateus ou Sete-Sis
Bartolomeu Loureno Gusmo
Blimunda de Jesus ou Sete Luas
D. Joo V
Damio
Domenico Scarlatti
Francisco Marques
Ins Antnia
Joo Elvas
Joo Francisco Mateus
Jos Pequeno
Manuel Milho
Maria Ana Josefa
Marta Maria
O Ano da Morte de Ricardo Reis (OAMRR)
Felipe
Fernando Pessoa
Ldia
Marcenda
Pimenta
Ramn
Ricardo Reis
Salvador
Sampaio
Vitor
O Evangelho Segundo Jesus Cristo (OESJC)
Abiatar
Ana
Ananias
Andr
Anjo
Arquelau
Bartolomeu
Bom Ladro
Csar Augusto
Chua
Deserto
40 SALMA FERRAZ
Deus
Diabo/Pastor
Dotaim
Endemoninhado de Gadara
Filipe
Herodes
Herodes ntipas
Herodes Filipe
Jesus
Joo (flho de Zebedeu, irmo de Tiago)
Joo, o Batista
Joaquim
Jos (esposo de Maria)
Jos (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus)
Jos de Arimatia
Judas (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus)
Judas (galileu, guerrilheiro)
Judas de Iscariote
Judas Tadeu
Justo
Lzaro
Ldia
Lsia
Maria de Magdala/Maria Madalena
Maria de Nazar
Marta
Mateus
Mau Ladro
Miquias
Pilatos
Pblio Sulpcio Quirino
Samuel
Simo (discpulo de Jesus)
Simo (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus)
Simo de Cirene
Simo, o Pedro (discpulo de Jesus, irmo de Andr)
Simeo
Tiago (flho de Alfeu, discpulo de Jesus)
Tiago (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus)
Tiago (flho de Zebedeu, discpulo de Jesus)
Tom
Zaquias
Zelomi
41
O Homem Duplicado (OHD)
Antnio Claro
Carolina
Helena
Maria da Paz
Professor de Matemtica
Senso Comum
Tertuliano Mximo Afonso
Tomarctus
Que Farei com este Livro? (QFCEL)
Ana de S
Antnio Gonalves
Cardeal D. Henrique
Catarina de ustria
Damio de Gis
Diogo de Couto
Francisca de Arago
Frei Bartolomeu Ferreira
Frei Manoel da Encarnao
Lus de Cames
Lus Gonalves da Cmara
Maria de Athade
Martins Gonalves da Cmara
Miguel Dias
Sebastio
Servente
Vasco da Gama
Terra do Pecado (TP)
Antnio
Benedita
Bento Simes
Carlos
Carlos Pinto
Catarino
Dionsio
Jernimo
Joana
Joo I
Joo II
42 SALMA FERRAZ
Joaquim Tendeiro
Joaquina
Jlia
Manuel Ribeiro
Maria Leonor
Padre Cristiano
Teresa
Viegas
Todos os Nomes (TN)
Cemitrio Geral
Conservador
Conservatria Geral
Enfermeiro
Jos
Mulher Desconhecida
Pastor de Ovelhas
Senhora do Rs-Do-Cho Direito
- por ordem alfabtica -
Abel (C)
Abiatar (OESJC)
Ablio Valadares (AN)
Abrao (C)
Achado (AC)
Adalberto(LC)
Ado (C)
Adelaide (MPC)
Adelina (MPC)
Afonso (AN)
Agamedes (LC)
Agente de Segunda Classe (ESL)
Ajudante de Farmcia (ESC)
Alberto(LC)
Alcaide (AVE)
Almuadem (HCL)
lvaro Diogo (MC)
Amlia (LC)
Ana (MPC)
Ana (OESJC)
Ana de S (QFCEL)
Ananias (OESJC)
Andr (OESJC)
Angilberto (LC)
Anjo (OESJC)
Anjos (C)
Ansberto (LC)
Anselmo (LC)
Antnio (LC)
Antnio (MPC)
Antnio (TP)
Antnio Claro (OHD)
Antnio Gonalves (QFCEL)
Arcebispo de Valladolid (AVE)
Ardent (AJP)
Aroldo de Aarschot (HCL)
Arquelau (OESJC)
Arquiduque Maximiliano de ustria (AVE)
Arquiduquesa (AVE)
Autor (HCL)
44 SALMA FERRAZ
Azael (C)
Baltasar Mateus ou Sete-Sis (MC)
Baltazar (AN)
Bartolomeu (OESJC)
Bartolomeu Loureno Gusmo (MC)
Benedita (TP)
Bento Simes (TP)
Bernardo (ASVFA)
Berndt Knipperdollinck (IND)
Berndt Rothmann (IND)
Blimunda de Jesus ou Sete Luas (MC)
Boieiro (AVE)
Bom Ladro (OESJC)
Bruxa da Aldeia (AVE)
Ces de Cerbre (AJP)
Caim (C)
Co das Lgrimas (ESC)
Capito do Porto (AID)
Cardeal (AIM)
Cardeal D. Henrique (QFCEL)
Cardoso (AN)
Carlos (TP)
Carlos Pinto (TP)
Carmo (MPC)
Carolina (OHD)
Catarina de ustria (QFCEL)
Catarino (TP)
Cavaleiro Henrique (HCL)
Cego da Contabilidade (ESC)
Cemitrio Geral (TN)
Centro (AC)
Csar Augusto (OESJC)
Chefe da Redaco (ESL)
Chefe de Departamento de Compras (AC)
Chefe do Estado (ESL)
Chefe dos Malvados (ESC)
Chico (MPC)
Chua (OESJC)
Cipriano Algor (AC)
Clara (ASVFA)
Cludia (AN)
Comandante Austraco (AVE)
45
Comandante Portugus (AVE)
Comendador (DG)
Comissrio (ESL)
Concha (MPC)
Conde (AVE)
Conservador (TN)
Conservatria Geral (TN)
Cornaca (AVE)
Costa (HCL)
Couraceiros (AVE)
Criada de Hotel (ESC)
Cura (AVE)
D. Joo V (MC)
Dagoberto (LC)
Damio (AN)
Damio (MC)
Damio de Gis (QFCEL)
Delegado do P.D.D. (ESL)
Delegado do P.D.E. (ESL)
Delegado do P.D.M. (ESL)
Deserto (OESJC)
Deus (C)
Deus (OESJC)
Diabo/Pastor (OESJC)
Diogo de Couto (QFCEL)
Dionsio (TP)
Director da Redaco (ESL)
Dom Joo III (AVE)
Domenico Scarlatti (MC)
Domingos (LC)
Domingos Mau-Tempo (LC)
Don Giovanni (DG)
Don Octavio (DG)
Dona Ana (DG)
Dona Catarina de ustria (AVE)
Dona Elvira (DG)
Dotaim (OESJC)
Elefante (AVE)
Elias (ASVFA)
Else Wandscherer (IND)
Empregada do Consultrio (ESC)
Endemoninhado de Gadara (OESJC)
46 SALMA FERRAZ
Enfermeiro (TN)
Escravo (C)
Esculcas (AVE)
Esmeralda (AN)
Estribeiro-Mor (AVE)
Eva (C)
Ex-Mulher do Homem da Carta (ESL)
Faustino (AN)
Feitor (AVE)
Felipe (OAMRR)
Felisberto Lampas (LC)
Fernando Pessoa (OAMRR)
Filipe (OESJC)
Floriberto (LC)
Francisca de Arago (QFCEL)
Francisco (ASVFA)
Francisco (MPC)
Francisco Marques (MC)
Franz Von Waldeck (IND)
Frei Bartolomeu Ferreira (QFCEL)
Frei Manoel da Encarnao (QFCEL)
Fritz (AVE)
Gadanha (AIM)
Gertrud Von Utrech Divara (IND)
Gil (ASVFA)
Gilberto (LC)
Governo (AIM)
Gracinda (LC)
H. (MPC)
Heinrich Krechting (IND)
Helena (OHD)
Herodes (OESJC)
Herodes ntipas (OESJC)
Herodes Filipe (OESJC)
Hille Feiken (IND)
Homem (AID)
Homem (C)
Homem da Carta (ESL)
Homem da Gravata azul com pintas brancas (ESL)
Hubert Ruescher (IND)
Ins (ASVFA)
Ins Antnia (MC)
47
Inspector (ESL)
Isaac (C)
Isaura Madruga (AC)
Jacoba (ASVFA)
Jan Dusentschuer (IND)
Jan Matthys (IND)
Jan Van Leiden (IND)
Jernimo (TP)
Jesus (OESJC)
Joana (TP)
Joana Carda (AJP)
Joo (flho de Zebedeu, irmo de Tiago) (OESJC)
Joo Elvas (MC)
Joo Francisco Mateus (MC)
Joo I (TP)
Joo II (TP)
Joo Mau-Tempo (LC)
Joo, O Batista (OESJC)
Joaquim (OESJC)
Joaquim Sassa (AJP)
Joaquim Tendeiro (TP)
Joaquina (TP)
Jornalista (AIM)
Jos (esposo de Maria) (OESJC)
Jos (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus) (OESJC)
Jos (TN)
Jos Anaio (AJP)
Jos de Arimatia (OESJC)
Jos Pequeno (MC)
Judas (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus) (OESJC)
Judas (galileu, guerrilheiro) (OESJC)
Judas de Iscariote (OESJC)
Judas Tadeu (OESJC)
Jlia (TP)
Junpero (ASVFA)
Justa Isasca (AC)
Justo (OESJC)
Lacaio-Mor (AVE)
Ladro do Carro (ESC)
Lamberto Horques (LC)
Lzaro (OESJC)
Leo (ASVFA)
48 SALMA FERRAZ
Leporello (DG)
Ldia (OAMRR)
Ldia (OESJC)
Lilith (C)
Lsia (OESJC)
Lus de Cames (QFCEL)
Lus Gonalves da Cmara (QFCEL)
M. (MPC)
Manuel Espada (LC)
Manuel Milho (MC)
Manuel Ribeiro (TP)
Mphia (AIM)
Maral (AC)
Marcenda (OAMRR)
Maria (HCL)
Maria Adelaide Espada (LC)
Maria Ana Josefa (MC)
Maria Conceio (LC)
Maria da Paz (OHD)
Maria de Athade (QFCEL)
Maria de Magdala/Maria Madalena (OESJC)
Maria de Nazar (OESJC)
Maria Dolores (AJP)
Maria Guavaira (AJP)
Maria Leonor (TP)
Maria Sara (HCL)
Marinheiro (AVE)
Marta (AC)
Marta (OESJC)
Marta Maria (MC)
Martins Gonalves da Cmara (QFCEL)
Masetto (DG)
Masseo (ASVFA)
Mateus (OESJC)
Mau Ladro (OESJC)
Mdico (ESC)
Mdico (ESL)
Menina (AVE)
Miguel Dias (QFCEL)
Ministro da Cultura (ESL)
Ministro da Defesa (ESL)
Ministro da Justia (ESL)
49
Ministro do Interior (ESL)
Ministro dos Negcios Estrangeiros (ESL)
Miquias (OESJC)
Mogueime (HCL)
Morte (AIM)
Mulher da Limpeza (AID)
Mulher Desconhecida (TN)
Mulher do Mdico (ESC)
Mulher do Mdico (ESL)
Mulher do Presidente (ESL)
Mulher do Primeiro Cego (ESC)
Nufrago (AVE)
Navegador Solitrio (AJP)
Noah (C)
No (C)
Norberto (LC)
O Lngua (AVE)
Olga (MPC)
Olheiro (C)
Ouroana (HCL)
Padre Cristiano (TP)
Padre de Pdua (AVE)
Pajens (AVE)
Pastor de Ovelhas (TN)
Pedro I (ASVFA)
Pedro II (ASVFA)
Pedro Orce (AJP)
Pro de Alcova Carneiro (AVE)
Pica (ASVFA)
Pigaro Pig e Al (AJP)
Pilatos (OESJC)
Pimenta (OAMRR)
Platero (AJP)
Porta-Voz da Aldeia (AVE)
Povo (ESL)
Povo de Mnster (IND)
Presidente da Cmara (ESL)
Presidente da Mesa da Assemblia Eleitoral (ESL)
Presidente da Repblica (ESL)
Primeiro Cego (ESC)
Primeiro-Ministro (AIM)
Primeiro-Ministro (ESL)
50 SALMA FERRAZ
Professor de Matemtica (OHD)
Pblio Sulpcio Quirino (OESJC)
Quarto da Morte (AIM)
Raimundo Benvindo Silva (HCL)
Ramn (OAMRR)
Rapariga dos culos Escuros (ESC)
Rapariga dos culos Escuros (ESL)
Rapaz Estrbico (ESL)
Rapaz Galego (AVE)
Rapazinho Estrbico (ESC)
Rei (AID)
Ricardo (MPC)
Ricardo Reis (OAMRR)
Roque Lozano (AJP)
Rufno (ASVFA)
S. (MPC)
Salomo (AVE)
Salvador (OAMRR)
Sampaio (OAMRR)
Samuel (OESJC)
Sandra (MPC)
Sara (C)
Sara (HCL)
Sara Conceio (LC)
Sargento dos Couraceiros (AVE)
Sargento Portugus (AVE)
Sebastio (QFCEL)
Secretrio (AVE)
Secretrio (ESL)
Senhora do Rs-Do-Cho Direito (TN)
Senso Comum (OHD)
Servente (QFCEL)
Sigisberto (LC)
Sigismundo Canastro (LC)
Simo (discpulo de Jesus) (OESJC)
Simo (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus) (OESJC)
Simo de Cirene (OESJC)
Simo, o Pedro (discpulo de Jesus, irmo de Andr) (OESJC)
Simeo (OESJC)
Sndico de Mnster (IND)
Solimo (AVE)
Subhro (AVE)
51
Teresa (TP)
Tertuliano Mximo Afonso (OHD)
Tiago (flho de Alfeu, discpulo de Jesus) (OESJC)
Tiago (flho de Jos e Maria, irmo de Jesus) (OESJC)
Tiago (flho de Zebedeu, discpulo de Jesus) (OESJC)
Tomarctus (OHD)
Tom (OESJC)
Vasco da Gama (QFCEL)
Velho (C)
Velho da Venda Preta (ESC)
Velho da Venda Preta (ESL)
Velho Labrego (AVE)
Viegas (TP)
Violoncelista (AIM)
Vitor (OAMRR)
Vogal (ESL)
Von Der Wieck (IND)
Zaquias (OESJC)
Zelomi (OESJC)
Zerlina (DG)
53

Eu sou a Blimunda...
M
uito pelo contrrio: o autor est ali no livro, o autor o livro,
mesmo quando o livro no consegue ser todo o autor. No foi
simplesmente para chocar a sociedade do seu tempo que Gustave
Flaubert declarou que Madame Bovary era ele prprio. Parece-
me, at, que ele no fez mais do que arrombar uma porta desde
sempre aberta. Sem faltar ao respeito que devido ao autor
de Bouvard et Pcuchet, poder-se-ia mesmo dizer que uma tal
afrmao no peca por excesso, mas por defeito: faltou a Flaubert
acrescentar que ele era tambm o marido e os amantes de Emma,
que era a casa e a rua, que era a cidade e todos quantos, de todas
as condies e idades, nela viviam, porque a imagem e o esprito,
o sangue e a carne de tudo isto tiveram de passar, inteiros, por
um s homem: Gustave Flaubert, isto , o autor. Emma Bovary
Gustave Flaubert porque sem ele seria coisa nenhuma. E se me
permitida agora a presuno de pronunciar outro nome depois de
ter mencionado o do autor de Lducation sentimentale, diria que
tambm eu, ainda que to pouca coisa, sou a Blimunda e o Baltasar
de Memorial do Convento, e que em O Evangelho segundo Jesus
Cristo no sou apenas Jesus e Maria Madalena, ou Jos e Maria,
porque sou tambm o Deus e o Diabo que l esto.

Jos Saramago
4

4
SARAMAGO, Jos. Entre o narrador omnisciente e o monlogo interior:
deveremos voltar ao autor? In: FUNDAO JOS SARAMAGO. O Caderno
de Saramago. Disponvel em: <http://www.josesaramago.org/saramago/
detalle.php?id=10>. Acesso em: 18 mar. 2011.
55
A
57
ABEL (Caim): Segundo, dos trs flhos de ado e eva. Apesar da
pele morena dos pais, nasce com uma rosada brancura,
algo de angelical. Nos afazeres cotidianos, envereda
pelos ofcios do pastoreio, ao contrrio de caim, que se
dedica agricultura. Deus aceita com maior prazer a sua
oferenda e, por isso, apesar da amizade muito estreita
com o irmo, abel escarnece de caim. assassinado a
golpes de queixada de jumenta pelo humilhado caim.
Durante toda a narrativa, abel no possui nenhuma
fala, mas ser uma lembrana constante pois, em vrios
momentos, caim toma o nome do irmo para si.
Abel o meu nome, disse caim.
ABIATAR (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos trs ancies
da Sinagoga que, a pedido de Jos, visitam e interrogam
Maria sobre a misteriosa visita (pedinte/mendigo/anjo)
que ela tinha recebido. Tem barbas e veste tnicas.
ABLIO VALADARES (A Noite): Chefe de redao de um jornal
de Lisboa. Na posio de antagonista, pensa e diz ser o
pra-choque intermediando entre a redao e a direo do
jornal. Encontra-se, porm, numa posio desconfortvel
na medida em que no tem o respeito nem do diretor, nem
dos redatores, principalmente do protagonista Torres,
seu maior e mais freqente debatedor. Fraco de carter,
fexvel em termos de princpios, acaba recebendo ordens
dos tipgrafos, desacatado pela estagiria, ridicularizado
por Torres, desacreditado pelos subalternos e humilhado
pela cpula do jornal. Seu maior receio perder a
autoridade que ele pensa que tem.
Para cumprir a sua obrigao profissional, s tem que
falar comigo ou com os redactores que eu designar para o
efeito. Percebeu?
ABRAO (Caim): Vive em uma tenda, junto das azinheiras de
mambr, e costuma hospedar viajantes. Tem um flho
com a escrava agar, que se chama ismael. Um dia, deus
e caim se hospedam na tenda de abrao (apesar de caim
reconhecer deus, deus no reconhece caim, pois este
traz a sua marca escondida). Deus anuncia que abrao
ABEL
58 SALMA FERRAZ
ter um flho com sua esposa, sara, apesar da idade
avanada de ambos. Anuncia tambm que ir destruir
sodoma e gomorra. Mesmo temendo ofender, abrao
tenta pela retrica e pela piedade convencer o senhor
a no cometer tais atos, porm ambas as cidades so
destrudas. Depois que seu flho com sara, chamado
isaac, nasce, abrao recebe ordens de deus para que
leve o flho regio do monte mria e o oferea em
sacrifcio. Enquanto caminham lado a lado, isaac insiste
em perguntar onde est a vtima do sacrifcio. Ao chegar
ao local indicado, abrao amarra isaac, coloca-o no altar
sobre a lenha e empunha a faca em direo garganta
do prprio flho, mas o gesto derradeiro impedido por
caim. Alguns instantes depois chega o anjo incumbido
de evitar o assassinato de isaac. Abrao abenoado
pelo senhor por sua prova de lealdade e, por meio das
palavras do anjo, fca sabendo do glorioso destino que
lhe est reservado.
No possvel que vs fazer uma coisa dessas, senhor,
condenar morte o inocente juntamente com o culpado,
desse modo, aos olhos de toda a gente, ser inocente ou
culpado seria a mesma coisa, ora, tu, que s o juiz do
mundo inteiro, deves ser justo nas tuas sentenas.
ACHADO (A Caverna): Trata-se de um co bonito de tamanho
normal, um animal novo, esbelto, de plo crespo entre o
cinzento e o preto, com uma estreita mancha branca que
lhe divide o peito at o ventre e que parece uma gravata.
Segundo Isaura Estudiosa, este co veio de outro mundo.
Com um fnssimo senso de humor, Cipriano Algor
conclui que no h nome melhor para um co perdido do
que achado, o que explica a origem do nome. A primeira
reao que Achado tem ao conhecer o uniformizado
Maral Aquino atac-lo. Os motivos que levam o co
a tal atitude fcam implcitos na narrativa; podem ser
tanto um prenncio de tudo o que vai acontecer pois
como co de guarda sua funo defender a olaria e
nada a ameaa mais do que o Centro , como trauma por
ter, talvez, apanhado de algum com uniforme. Achado,
em verdade, o nico que pode escolher, tanto que
ACHADO
59
escolhe a famlia com quem quer fcar. O co tambm
ajuda na deciso de Cipriano de fcar na casa com a
olaria, parecendo querer compensar Cipriano e dar-lhe
fora pela perda do seu ofcio na olaria. Achado serve de
ponte para o encontro e unio de Cipriano e Isaura. o
protetor da casa e percebe o que se passa ao seu redor.
O narrador prope um jogo de atribuies de valores ao
co como consciente, sensvel e quase humano. Isso fca
bastante claro em passagens onde h uma sensao
de lamentao pelos limites impostos pela diferena de
universos. E como no h sada real para isso, a soluo
fazer o co ser compreendido nossa maneira. Essa
idia de falsa autonomia agrada o leitor, na medida em
que Achado, mesmo nas situaes cuja impresso que
fca de transcendncia da vida animal, nunca deixa de
ser, na prpria viso do narrador, um co. O processo
de humanizao pelo qual Achado parece passar , na
verdade, fruto da atribuio de valores humanos a um
ser que pauta suas aes em instintos que, por sua vez,
justamente por escaparem compreenso humana,
devem ser acomodados de uma forma que viabilize o
entendimento acerca da relao que se estabeleceu
entre os personagens humanos e o co. Ele representa
a esperana de dias melhores e com sua chegada,
ningum sabe de onde, parece ter tomado, a seu modo
e no seu mundo, a atitude radical de tambm mudar de
vida, buscando novas paragens. Mostra-se um dcil e
fel personagem no decorrer do romance, mesmo quando
temporariamente abandonado no perodo em que Cipriano
e a famlia foram morar no Centro. Quando a mudana
para o Centro se concretiza, no h lugar para o co
na nova morada. Muito mais do que um elo de ligao,
ele deixado aos cuidados de Isaura Madruga pelo fato
de que os Algor no tm mais ningum, de confana,
com quem deix-lo. Achado retorna olaria e Isaura
o acompanha. Os dois fazem companhia um ao outro
enquanto esperam pelo regresso dos seus. Em meio ao
turbilho das emoes vividas, ele sempre representa a
certeza do gesto de aceitao incondicional e de carinho
para com seus donos. Fidelidade retribuda, no fnal,
porque foi levado junto rumando para uma nova vida, j
que era estimado como uma pessoa da famlia.
ACHADO
60 SALMA FERRAZ
ADALBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos,
donos dos latifndios, e faziam parte da chamada
trindade (LEI = latifndio, Estado, igreja). Mantinham a
estrutura medieval em Portugal. Representam a hipocrisia
e a injustia, j que oprimiam e escravizavam todos os
trabalhadores. Adalberto, um dos bertos, explora os
trabalhadores, ditando as regras da jornada, resistindo
proposta pelas oito horas dirias e pagando o que bem
quer aos contratados. Alis, sempre foi assim que os
bertos agiram. E, terminada a colheita, Adalberto manda
que o feitor deixe na terra s os homens dos porcos e
das ovelhas e o guarda. No quer a sua terra pisada
por grevistas. Adalberto, por ocasio da resistncia dos
trabalhadores no tempo de colheita, manda passar as
mquinas por cima da seara. A inteno era essa mesma
que os trabalhadores se dobrassem pela fome.
O peixe morre pela boca [...].
ADO (Caim): Vive at os 930 anos, chegando a conhecer lamec,
pai de no. Quando teve a lngua e a fala introduzida
goela abaixo, suas primeiras palavras a deus foram de
reconhecimento por ser o primognito do senhor. Depois
convidou eva para irem para a cama. Quando questionado
por deus sobre o fruto proibido, diz inicialmente que
no o comeu por inteiro; como isso no gerou resultado
algum, ps a culpa em eva. Os dois expulsos do paraso
passam fome, sede, frio e outras privaes at ento
desconhecidas. Ado escarnece da idia de eva ir pedir
ajuda a um anjo, mas se d por vencido ao ver o resultado
obtido pela diligncia da esposa. Na segunda visita ao
anjo vai junto e, apesar do cime, ouve atentamente
os conselhos do querubim. Entra em uma caravana e
aprende, assim, a trabalhar a terra. Algum tempo depois
consegue comprar uma gleba de terra, onde cria caim,
abel e set.
[...] melhor estaramos com o p que ramos antes, sem
vontade nem desejo.
ADELAIDE (Manual de Pintura e Caligrafa): Empregada domstica
que cuida do apartamento de H., protagonista narrador.
ADO
61
Durante todo o romance no h registros de sua fala,
apenas de um balbucio, contudo sua presena passa a ser
notada pelo bater surdo de suas chinelas e pelo prprio
silncio. esse mesmo silncio de Adelaide que levar o
escrepintor H. a pensar o mundo exterior e sua prpria
personalidade. Quando foi dispensada de seus servios,
Adelaide se manteve impassvel, exceo do movimento
do p direito, que assinalou sua angstia naquele
momento. Personagem que marca fgurativamente uma
classe de trabalhadores que no consegue se representar,
seja pela fala ou pela caligrafa.
[...] at quando quiser.
ADELINA (Manual de Pintura e Caligrafa): Adelina apresentada,
a partir da perspectiva de H., como a sua namorada,
ofcialmente reconhecida pelo grupo social ao qual
ambos pertencem: dezoito anos mais nova que seu par,
com um bom corpo, ventre belssimo, excelente mquina
de fornicar e inteligente. dona de boutique e parece
estar satisfeita com a vida que leva com o pintor, estando
sempre disponvel para acompanh-lo ou satisfaz-lo.
Apresentados por amigos comuns, intensifcam suas
relaes com o nico objetivo de mtua satisfao sexual.
De origem simples, Adelina tem a me viva e mora com ela.
Aos 32 anos, Adelina representa a mulher que encontra
no sexo no s a sua liberao como tambm uma forma
de, veladamente, exercitar o seu poder sobre H., o homem
que a deseja. Tacitamente, a relao se mostra aberta
e construda em torno do sexo como forma de disputa
de poder entre ambos. A despeito da aparente igualdade
alcanada, sem o saber, Adelina compe um tringulo
amoroso com a secretria Olga e H.. Apesar das trridas
fantasias que Adelina suscita em H., o colquio amoroso
se mantm pela inrcia e entra em colapso durante a
narrativa. Esse fato explica a distncia conferida por
H. ao tratamento da personagem, a forma como a julga
preconceituosamente e, a despeito do fantasma da solido
que o assombra, a forma como ele anseia pelo fnal do
compromisso imposto pelo grupo social a que pertencem.
A relao se sustenta na presena dos amigos, mas no
resiste solido a dois. No desenrolar da narrativa, o
ADELINA
62 SALMA FERRAZ
pressentido afastamento de Adelina provoca em H. o
movimento de confrmao da escrita como forma de
sobrevivncia e de auto-conhecimento. Diante desse
desconhecido que ora se apresenta aos seus olhos H.
escritor , Adelina se transforma. Adelina, ao descer
as escadas do apartamento do amante, seguramente
bate os saltos, secos e breves nos degraus, numa
ntida demonstrao de quem acredita ocupar situao
vantajosa no interldio, assume uma atitude de defesa/
ataque possvel de ser lida no desdm crtico com o qual
recebe o primeiro relato de viagem que lhe apresentado
por H.. No cenrio metafccional que subjaz histria do
percurso de H., nesse momento, Adelina assume papel
do leitor crtico questionando os limites entre os gneros
literrios. O ataque da fera ferida que pressente a morte
do romance continua na forma como desdenhosamente
expe aos amigos a nova atividade de H.. Declarada a
guerra entre os sexos, H. assume velada defesa. A trgua
acontece com a ausncia de Adelina, que viaja em visita
famlia fora de Lisboa, enquanto H. se dedica escrita
dos seus exerccios autobiogrfcos. A estocada fnal
chega, num ltimo movimento de exacerbao de poder,
atravs da carta de Adelina, perfeitamente elaborada
satisfazendo os mais rgidos requisitos da escrita epistolar,
selando o fnal do compromisso. Depois de algum tempo,
Adelina retorna ao apartamento de H.. Ser atravs do
olhar machista de H. que se despedir da narrativa. No
entanto, as armas da subjetividade so depostas quando
o narrador-personagem, num movimento em direo
objetividade, modaliza a sua fala e revela uma personagem
claramente segura de seus atos. Aps ter cumprido o
seu papel, Adelina sai da narrativa como nela entrou.
Diferentemente de H., S. ou M., que constroem um nome
durante o relato, Adelina foi conferido o destino de
apenas retratar uma parcela signifcativa de mulheres
que acolheram as posturas feministas alardeadas nas
dcadas dos 60 e 70.
AFONSO (A Noite): linotipista e, juntamente com Damio
e Jernimo, o chefe da tipografa, compe o grupo
responsvel pela ofcina onde o jornal rodado. Seu amor
pelo jornalismo desmonta a tentativa feita pelo diretor
AFONSO
63
de no publicar a notcia sobre o golpe de 25 de abril
de 1974, que pe fm ao governo de Marcelo Caetano,
na presidncia desde 1968, quando substituiu o ditador
Salazar.
Temos feito jornais passivamente, s vezes a chorar
de raiva, temos transformado a vergonha em linhas de
chumbo, e temos derretido as linhas de chumbo espera
de que chegasse o dia em que fundiramos linhas novas.
Linhas novas, entende? Chegou esse dia. hoje.
AGAMEDES (Levantado do Cho): Padre da parquia de Landeira
e padrinho de Joo Mau-Tempo. Mau carter, vivia
de intrigas, bebia muito vinho, defendia as terras da
igreja e dos latifundirios. Brigou com Domingos Mau-
Tempo. Oprimia o povo e tinha sempre um discurso de
conformismo, fazendo os homens aceitarem as situaes.
Fazia parte da trindade: LEI = latifndio, Estado, igreja.
Era um pouco desvairado e falava por parbolas.
o vosso reino no deste mundo, padecei para ganhardes
o cu [...].
AGENTE DE SEGUNDA CLASSE (Ensaio sobre a Lucidez):
Terceiro nvel de graduao de ofciais, ltimo subalterno,
o segundo agente/auxiliar apresenta idias incoerentes e
sem a mnima chance de dar certo.
AJUDANTE DE FARMCIA (Ensaio sobre a Cegueira):
Trabalhava numa farmcia como ajudante e foi quem
vendeu o colrio rapariga dos culos escuros. Parece
um galanteador.
O meu caso [...] foi mais simples, ouvi dizer que havia
pessoas a cegarem, ento pensei como seria se eu cegasse
tambm, fechei os olhos a experimentar e quando os abri
estava cego.
ALBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos, donos
dos latifndios, e faziam parte da chamada trindade
(LEI = latifndio, Estado, igreja). Mantinham a estrutura
medieval em Portugal. Representam a hipocrisia e a
AGAMEDES
64 SALMA FERRAZ
injustia, j que oprimiam e escravizavam todos os
trabalhadores. Alberto, um dos bertos, possua mo
forte. Para ele, o povo do latifndio foi feito para viver
sujo e esfomeado um bicho da terra a viver como bicho
mesmo. Combate a reivindicao dos trabalhadores pelas
oito horas de trabalho, dizendo que so invenes da
cidade e um convite malandrice, pois, tirando oito horas
para o trabalho, oito para dormirem, o que vo fazer nas
oito horas que sobram? Ele no entende o povo: quando
no h trabalho reclamam e se h tambm reclamam.
Afnal, trata-se de um povo que nasceu para trabalhar,
ento, seria uma contradio abusarem do descanso.
Deitar cedo e cedo erguer, d sade e faz crescer.
ALCAIDE (A Viagem do Elefante): Ttulo dado ao administrador de
uma fortaleza, praa ou provncia. Na obra, o responsvel
pela fortifcao de Figueira de Castelo Rodrigo, vila
portuguesa que faz fronteira com a Espanha. ele quem
recebe a caravana portuguesa responsvel por levar o
elefante a Valladolid e entreg-lo ao arquiduque austraco
Maximiliano. Aps uma disputa verbal entre os lderes
das tropas portuguesas e austracas, o alcaide age como
mediador e intercede pela paz entre os povos.
ALMUADEM (Histria do Cerco de Lisboa): Velho mouro
determinado que se dirige mesquita maior ao pr do
sol, durante a tomada de Lisboa pelos portugueses,
chamando seu povo para a orao pela ltima vez, antes
de ser degolado por um soldado cristo. cego mas,
como a maioria das pessoas com a mesma defcincia,
desenvolveu bem os outros sentidos. No momento de sua
morte, ele avista uma luz, o que sugere a presena de
Deus, que na morte aparece para todos, cegos ou no,
mouros ou cristos.
Allahu akbar.
LVARO DIOGO (Memorial do Convento): Cunhado de Baltasar,
tem trinta e nove anos e alguns cabelos brancos. Foi
ele quem levou Baltasar para trabalhar na construo
do convento. Cuidava da famlia e estava contente com
ALCAIDE
65
seu trabalho na construo do convento, pois dizia que
no faltaria trabalho aos pedreiros quando as obras
comeassem. Sujeito conformado e efciente naquilo que
fazia, era otimista e acreditava que a construo estava
indo bem, ao contrrio de Baltasar. Em conversa com
Baltasar, demonstra conformismo e otimismo.
AMLIA (Levantado do Cho): Personagem pertencente terceira
gerao: tempo de luta. Segunda flha de Joo Mau-Tempo
e Faustina, irm de Antnio e Gracinda. Era mansa e
discreta como a me. No estudou. Quatro anos mais
moa que o irmo e dois anos a menos que a irm, com
quem no era muito parecida, Amlia, sempre submissa,
passa a servir, desde pequena, em Montemor. Joo Mau-
Tempo, quando estava para morrer, recorda que Amlia
fora perdendo os dentes e que conseguira, com seu suor,
juntar dinheiro para pr uma dentadura isso ele teve
oportunidade de ver na ocasio em que Amlia fora visit-
lo no hospital. Ela conseguiu comprar uma dentadura,
mas, devido a muito sofrimento na vida, no conseguiu
salvar o seu sorriso.
ANA (Manual de Pintura e Caligrafa): Casada com o publicitrio
Francisco, integra o grupo social a que pertencem H. e
Adelina. Junto com seu marido, sero sempre retratados
pelo escrepintor H. como componentes de um par afnado,
pois pertencem mesma faixa etria e atuam na mesma
profsso. O modelo de felicidade conjugal coloca ambos
numa posio de contraponto com os demais membros do
grupo, que se mostram tateantes no caminho de busca da
realizao afetiva. Durante a narrativa, as manifestaes
de excitao mtua entre Ana e o marido cedem lugar ao
cansao fagrante da relao. Personagem secundria,
a atuao de Ana evidencia o impacto da volubilidade
afetiva experimentada pela gerao amadurecida de
setenta. O casal fornece os ndices do novo arcabouo
moral que passa a reger as relaes amorosas desde
ento: que o amor seja eterno enquanto dure.
ANA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Mulher que em idade
avanada concebeu Maria, me de Jesus e esposa de
Jos.
AMLIA
66 SALMA FERRAZ
ANA DE S (Que Farei com este Livro?): Me atenta e dedicada de
Lus de Cames. Ela incansvel, dcil e serena, sempre
espera de um amor e de uma afeio incondicional por
parte do flho, j que fcara dezessete anos esperando por
ele. Embora representando a personifcao da resignao
e da esperana, exasperava-se com o tratamento dado
pela corte ao seu flho. Mesmo no sabendo ler, ela
reconhecia o talento do flho. No tem participao
decisiva nas cenas em que aparece.
Me dos homens, se meu filho morre, se a mim me
conservaste a vida para o ver morrer a ele, esquece-te de
Ana de S, porque aos teus ps nunca mais ajoelharei.
ANANIAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Homem valente,
zeloso, atencioso, companheiro, desafador, combatente,
confdente, audacioso, curioso, fel e determinado e que
aprecia bolachas feitas de gafanhotos secos e modos.
A fgura de Ananias de fundamental importncia nos
conselhos que d para o casal Jos e Maria. O vizinho
Ananias muito curioso e prestativo, protegendo o
casal em vrias ocasies: avisa que o Imprio Romano
havia decretado que todas as famlias de Israel deveriam
recensear-se no seu local de origem; e toma conta da
casa de Jos e Maria enquanto estes viajam para Belm
para participar do censo. Dessa forma, Ananias o
homem de confana dos pais de Jesus. Essa relao fca
mais evidente quando Ananias confessa para Jos que
quer separar-se de sua mulher e ir lutar com o exrcito
de Judas Galileu contra os romanos. Nota-se um lao
de amizade muito forte entre essas duas personagens,
haja vista o zelo e as confsses que marcam essa relao
de confabilidade e fdelidade. No se contentando com
a condio de submisso perante as ordens do Imprio
Romano, Ananias resolve, audaciosamente, combat-
lo. Alista-se no exrcito do guerrilheiro Judas Galileu e
parte em busca do seu objetivo: derrotar os romanos,
provando ser um homem determinado em suas atitudes
e nas decises com a certeza de que luta pelo seu ideal.
Ananias ferido em combate e, por esse motivo, Jos
deixa seu lar para resgatar o amigo, comprovando assim
a amizade sincera que nutria por ele. Jos o encontra
ANANIAS
67
moribundo em Sefris, mas no consegue lev-lo de
volta a Belm, porque Ananias, devido a seus ferimentos,
morre segurando as mos de Jos. A coragem sua
marca defnitiva e, tentando transpor todos os limites,
paga com a sua prpria vida por ter lutado pelos seus
ideais.
Eram outros os tempos, o Senhor manifestava-se em
presena todos os dias, no apenas nas suas obras.
ANDR (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Pescador, irmo de
Simo, tem aproximadamente trinta anos. Conhece Jesus
no mar de Genesar e se tornam amigos. Junto com seu
irmo, riem de Jesus pela sua inexperincia com o mar
e com os peixes. Andr assiste perplexo Jesus lanar a
rede trs vezes e ao mar e nas trs vezes a rede voltar
completamente cheia. Impressiona-se com os prodgios,
quando Jesus faz com que a pesca seja abundante e
quando acalma a tempestade, e espalha a notcia de que
Jesus atrai os peixes e doma as tempestades. Afrma que
estar com Jesus mesmo que ele no o queira mais. Fica
sabendo do episdio envolvendo a expulso dos demnios
do gadareno, e que os demnios informaram a Jesus que
ele era Filho de Deus; quando Jesus afrma que o Diabo
o Pai da Mentira, ele responde e revela uma estranha
sabedoria:
[...] o Diabo no deixa de ser Diabo por alguma vez ter
falado a verdade.
ANGILBERTO (Levantado do Cho): Tem a mesma aparncia fsica
e profsso de todos os bertos da famlia. Em tempos de
ameaa dos trabalhadores, ele lanava searas ao gado.
Em outros, tinha como entretenimento andar gastando
balas, tendo como alvo um bido, que se despencava pelo
silvado a cada tiro; e como lacaio um carreiro, tratado
aos gritos se demorasse a trazer de volta o bido. Coitado
daquele que se intrometesse em suas terras: se levasse
um tiro, precisava fazer de conta que tinha sido atingido
por uma bala perdida.
ANJO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Aparece pela primeira
vez a Maria como um pobre pedinte desconhecido e ela
ANDR
68 SALMA FERRAZ
lhe oferece uma tigela com alimento. Quando o pedinte
volta para entregar a tigela, ele parecia muito maior, mais
alto do que antes. Seu rosto resplandecia e seus olhos
faiscavam. As roupas velhas e esfarrapadas se agitavam
ao vento e davam a impresso de serem compostas por
fnas telas e vestidas no por um mendigo, mas por um
tit. Ele, antes de devolver a tigela, a enche com um
punhado de terra luminosa que no cessar de brilhar, o
que deixa Jos muito intrigado. Jos desconfa dessa visita
e deste ser que visitou Maria antes dela lhe anunciar que
estava grvida. Nessa visita, o anjo se manifesta como
um flsofo ao comunicar que Maria est grvida: Ainda
a barriga no cresceu e j os flhos brilham nos olhos das
mes. Jos v o mendigo/anjo caminhando ao lado de
Maria quando esto indo para o recenseamento em Belm
e isso o angustia mais ainda. Quando Maria recebe a
visita dos trs pastores, pela fala do terceiro pastor, ela o
identifca com o anjo/mendigo/anunciador. No episdio
da matana das crianas em Belm, o anjo aparece a
Maria na gruta, no mais em forma de mendigo, mas em
forma de pastor. Apresenta-se ento como um anjo, no
de perdes, mas de palavras cruis: acusa Jos de ter
cometido um crime e afrma que os crimes cometidos por
homens bons no podem ser perdoados; tambm acusa
Jos de ser o responsvel pela morte dos vinte e cinco
inocentes de Belm, j que se preocupara apenas em
salvar seu flho sem avisar os pais das outras crianas;
afrma que Herodes seria perdoado mais facilmente que
Jos. desse anjo o diagnstico da culpa que passa de
pais para flhos. Trata-se, enfm, de uma mistura de anjo,
demnio, pastor, conselheiro e profeta.
No sou anjo de perdes.
ANJOS (Caim): Para auxiliar nos seus desgnios, deus conta com
a ajuda de anjos. Durante toda a narrativa, porm, em
nenhum momento os anjos cumprem com maestria e
destreza as incumbncias que lhe so confadas. O nico
desses seres a ser nomeado azael, que fora encarregado
de manter ado e eva afastados do den. Mas, azael no
resiste e d frutos nua eva. Mais vezes os anjos se
mostram inefcazes: aquele que deveria evitar o sacrifcio
ANJO
69
de isaac se atrasa, e os dois que deveriam levar notcias
das vicissitudes a j, e contar apenas a j, acabam por
narrar tudo a caim. Durante a construo da arca, no,
percebendo que no ter tempo hbil, pede ajuda a deus,
que manda uma legio de anjos para ajudar a terminar o
servio de carpintaria e carregar a arca ao mar. Contudo,
durante o que seria o primeiro vo panormico, os anjos
no atendem aos pedidos desesperados de no para
baixarem a arca de modo que ele possa recolher um
espcime de unicrnio, culminando assim com a extino
do, agora, mitolgico animal.
[...] se c cheguei foi por um milagre do senhor.
ANSBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos, donos
trabalhadores. Ansberto mais um berto, quase sinnimo
de latifndio. Seu nome se confunde com todos os outros
latifundirios: Dagoberto, Alberto, Floriberto, Norberto,
Berto, Sigisberto, Adalberto, Angilberto, Gilberto,
Ansberto, Contraberto.
ANSELMO (Levantado do Cho): Pertencente segunda gerao:
tempo de perguntas. Segundo flho de Domingos Mau-
Tempo e Sara Conceio, irmo de Joo Mau-Tempo,
Maria da Conceio e Domingos. Nasceu em meio a
muita dor e sofrimento, sendo calado e sofrido como a
me. Certo dia resolveu ir para o Norte e nunca mais deu
notcias. Joo Mau-Tempo, quando est para morrer,
sem saber notcias de Anselmo (se ele morreu ou no),
sente remorsos por no ter dado mais ateno vida do
irmo.
Certas vidas so mais apagadas do que outras, mas s
porque temos tanta coisa em que pensar, acabamos por no
reparar nelas e l vem o dia em que nos arrependemos.
ANTNIO (Levantado do Cho): Personagem pertencente
terceira gerao: tempo de luta. Primeiro flho de Joo
ANSBERTO
70 SALMA FERRAZ
Mau-Tempo e Faustina, irmo de Amlia e Gracinda.
Tinha o corpo do pai, porm sem ter seus olhos azuis.
Era trabalhador, guardador de porcos, dotado de senso
de humor, alegre e de riso solto. Foi para o exrcito, mas
acabou voltando por motivos de sade e foi ser corticeiro.
Gostava de contar histrias e mudar de casa, assim como
fazia o seu av Domingos Mau-Tempo. No estudou e
passou muita necessidade. A fome era tanta que o fez
sair, certa ocasio, com o pai, a catar bolotas do cho
nas terras do patro. No considerava isso roubo. Mas,
e se fosse? Afnal quem rouba por preciso tem cem anos
de perdo. A necessidade era muita. Nas tempestades,
de gua ou de gelo, ajeitava-se com uma saca de guano,
como vestimenta, crendo que Deus d o frio conforme a
roupa. No exrcito, contava aos companheiros que em
sua terra a fome era to grande que chegavam a comer
ervas, porm era melhor do que a comida do quartel, que
servia somente para ser comida por porcos. Mas valia
comer cardos, sem contar que na parada do quartel,
eram tratados por burros.
[...] burro com fome cardos come [...].
ANTNIO (Manual de Pintura e Caligrafa): Embora resida em
Lisboa, Antnio pertence a uma famlia de Santarm.
irmo mais velho de M. por quem H. se apaixona. A
despeito de despretensiosa atuao como participante
do grupo social ao qual pertence o narrador, o arquiteto
Antnio ganha o estatuto de heri na grande aventura
que H. narra no fnal do romance. Filtrado pela
perspectiva de H., o calado e secreto Antnio marca
presena no episdio do retrato de S.. Durante uma
das incuas reunies sociais promovidas pelo pintor H.
em seu apartamento, em Lisboa, o arquiteto rompe as
regras da boa convivncia do grupo quando, numa clara
atitude de invaso privacidade do anftrio, expe a
todos o segundo retrato de S. que o pintor cobrira com
um grande borro de tinta preta. A atitude agressiva do
arquiteto, que naquele momento criticava ironicamente
a atividade artstica burguesa de H., s ser entendida
pelo leitor captulos frente com a revelao da priso
de Antnio em funo do seu engajamento poltico. Mais
ANTNIO
71
adiante, H. refetir que a agresso represada teria sido
dirigida ao grupo que se reunira para comemorar o fm
e o resultado material do retrato ofcial de S., o qual o
pintor acabara de entregar ao cliente. Apesar da cena
infeliz (a tela pintada em preto), H. considera Antnio
como amigo confvel cuja opinio o instiga a explorar
novas posturas artsticas. Nas anotaes do manuscrito
de H., consta a inquietao pela perda de contato com
o companheiro por ocasio de sua priso. A despeito de
pertencer a um grupo de intelectuais que se mantinham
ao largo da efervescncia dos acontecimentos polticos
da poca, os quais, quando muito, trocavam informaes
sobre livros e leituras que criticavam o sistema, Antnio
sempre se manteve reservado para com o grupo, a ponto
de H. se esforar para trazer memria indcios de sua
militncia. H. recorda que foi precisamente Antnio
que o recomendou que lesse Contribuio para a Crtica
da Economia Poltica. Alguns posicionamentos exaltados
assumidos pelo arquiteto em conversas corriqueiras
sobre poltica funcionam como prenncio e preparam
a atuao herica de Antnio no fnal do romance.
Encaminhando o desfecho narrativo, a aventura do
arquiteto passa a iluminar, em primeiro plano, o momento
histrico que antecedeu a Revoluo dos Cravos. Embora
no seja esmiuada pela narrativa, a secreta atividade
revolucionria assumida pela personagem Antnio
possibilita escrita romanesca desenvolver-se em duas
frentes: a da crtica, ao absorver a realidade poltica vivida
em Portugal da dcada de setenta; e a do sentimento
amoroso desencadeado entre H. e M., irm de Antnio.
A histria do pas se funde, pois, s trajetrias pessoais
do pintor H., do arquiteto Antnio e de M. Com isso, o
romance experimenta, em seu fnal, a consistncia que
ser insistentemente alcanada nos demais romances do
autor.
Queres ir? No fundo, v se percebes, a questo esta:
quando ns quisermos ir, ns, percebes, isto acaba, no
agenta, no dura um fsforo. Mas preciso ir, no ficar
aqui, no conchego [...].
ANTNIO (Terra do Pecado): Irmo de Manuel Ribeiro, cunhado de
Maria Leonor, tem 35 anos, residia na cidade do Porto onde
ANTNIO
72 SALMA FERRAZ
exercia a medicina, mas no era feliz na profsso. Fizera
medicina por imposio do pai. Sentindo necessidade de
tirar umas frias, j que se sentia deprimido, escreve a
Maria Leonor avisando de sua chegada na quinta. Possui
boa aparncia demonstrando ser um homem asseado, e
cavalga muito bem. Aps sua chegada na quinta, surgem
vrias cenas que revelam a importncia do desejo sexual
no romance, especifcamente o desejo desenfreado de
Antnio por sua cunhada Leonor. O narrador o compara a
Jpiter, que seduziu Dnae. A seduo se realiza: Leonor
e Antnio conversam intimamente a ss no escritrio
que fora do falecido marido e, numa atmosfera escura e
silenciosa, acabam por ter uma relao sexual brutal, sem
nenhuma preparao prvia, envolta em muita volpia.
Antnio revela-se um covarde, pois cede s ameaas da
criada Benedita e deixa a quinta, abandonando Leonor
nas mos da criada.
E louvo os deuses por no se ter lembrado de me fazer
padre!...
ANTNIO CLARO (O Homem Duplicado): Ator de cinema secun-
drio, quase um fgurante que utiliza o nome artstico
de Daniel Santa-Clara. Ao fazer um papel secundrio de
recepcionista de hotel num flme de terceira categoria,
reconhecido por Tertuliano Mximo Afonso como seu
ssia. Tertuliano tenta encontr-lo por seu pseudnimo,
mas seu nome verdadeiro descoberto atravs de uma
carta da produtora. Antnio Claro casado com Helena,
e sua aparncia idntica em tudo do seu ssia. A
diferena entre eles, alm dos trinta e um minutos
no horrio do nascimento, est na postura diante da
vida, na personalidade. Antnio Claro mostra-se mais
determinado profssionalmente e as atitudes tomadas por
ele so mais diretas em comparao com as de Tertuliano.
Mesmo sabendo que o original, Antnio Claro arma
uma vingana contra seu ssia, usando Maria da Paz,
amiga/namorada/amante de Tertuliano, descoberta por
ele atravs da investigao que fez a respeito da carta
que Tertuliano enviara produtora. Demonstra ser um
mau carter, frio e calculista, j que, alm da vingana de
dormir com Maria da Paz, tambm trai sua esposa Helena.
ANTNIO CLARO
73
Na troca das identidades, quando coloca seu plano em
ao, revela-se um homem ardiloso, trocando as roupas,
documentos e o carro, ameaando o duplicado de contar
toda a verdade a Maria da Paz. Essa inverso de papis
descoberta por Maria da Paz pela marca da aliana
no dedo anelar da mo esquerda de Antnio Claro, na
manh seguinte noite de amor que os dois tiveram. Na
volta para a cidade, o original, que vinha brigando com
Maria da Paz, morre em um acidente de carro. Assim,
acaba perdendo, alm da vida, tambm sua identidade
original, camufada pelo nome de Tertuliano.
[...] como no sou capaz de o matar a si, mato-o doutra
maneira, fodo-lhe a mulher.
ANTNIO GONALVES (Que Farei com este Livro?): Trabalha
como impressor. Mostra-se justo no seu preo e ainda
facilita a forma de pagamento para a impresso de Os
Lusadas. , portanto, um oportunista no bom sentido,
pois no usurpou nada, apenas aproveitou a oportunidade
de publicar o livro. Ele, antes de tomar a deciso de
imprimir o livro, chamou conscincia Cames fazendo-
lhe vrias perguntas.
de costume. No podemos mudar o mundo. Eu no
posso. Vossa Merc traz-me o livro para imprimir, paga-
me a minha despesa e o meu ganho, e eu imprimo.
ARCEBISPO DE VALLADOLID (A Viagem do Elefante):
Aparece brevemente na histria para reforar o
esteretipo mesquinho do clero, destilando inveja diante
dos ornamentos utilizados pelo elefante Salomo aps
este ter sido entregue ao arquiduque Maximiliano.
ARDENT (A Jangada de Pedra): Ardent um co de Cerbre que
foi expulso do ambiente domstico depois do episdio
em que os ces desse local, aps um histrico de nunca
terem latido, passaram a ladrar. Graas a ouvidos
apuradssimos, ouve o estalar da grande laje nos Montes
Alberes e, tendo encontrado a primeira grande rachadura,
some temporariamente da narrativa. Reaparece entre
rvores, na cena em que Joana Carda busca mostrar a
ARDENT
74 SALMA FERRAZ
Pedro Orce, Joaquim Sassa e Jos Anaio o risco feito
no cho com a vara de negrilho. Ele impede Joana de se
separar dos outros e, assim, os quatro viajantes se pem
na estrada com o co, que os guia at a casa de Maria
Guavaira. Durante toda a viagem, ele se mostra um co
manso e quieto, s vezes at protetor, e muito prximo
de Pedro Orce. Em determinado momento, aps uma
conversa sobre as origens do nome de Maria Guavaira,
as personagens principais decidem que nome dar ao co.
Essa discusso no tinha sentido, segundo Joaquim
Sassa, porque sendo o nico co a acompanh-los, ele
atenderia por qualquer nome. Pedro Orce sugere Fiel ou
Piloto, Joana Carda prope Fronteiro ou Combatente,
Maria Guavaira sugere Anjo-da-Guarda e Jos Anaio,
buscando conciliar todos esses nomes, sugere Constante.
Quando Pedro Orce morre, o co Ardent/Constante se
aproxima e uiva. Tenta raspar posteriormente a sepultura
com as unhas. Na cena em que os personagens vo
partir, chamam o co, que fca ao lado da sepultura e
depois desaparece e ningum nunca mais o v. Cipriano
Algor, personagem de A Caverna, em dilogo com Isaura
Madruga, afrma que j teve um co tambm chamado
Constante. O co das lgrimas de Ensaio sobre a Cegueira
s nomeado em Ensaio sobre a Lucidez, no qual a
mulher do mdico afrma ao comissrio que aquele se
chama Constante. No fnal de Ensaio sobre a Lucidez, o
co assassinado juntamente com a mulher do mdico.
Parece que o autor faz uma brincadeira com o nome dos
ces e todos acabam sendo um s.
AROLDO DE AARSCHOT (Histria do Cerco de Lisboa):
Personagem secundria que comandava os guerreiros
vindos de diversas partes do imprio germnico.
ARQUELAU (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Herodes,
governou a Judia, Samaria e Idumia.
ARQUIDUQUE MAXIMILIANO DE USTRIA (A Viagem do
Elefante): Arquiduque de ustria, Maximiliano primo
da esposa de Dom Joo III, Dona Catarina de ustria, e
regente da Espanha. Inicialmente encontra-se morando
em Valladolid, no territrio espanhol, em companhia da
ARQUIDUQUE MAXIMILIANO DE USTRIA
75
esposa, a arquiduquesa Maria. ele o destinatrio do
elefante, que lhe oferecido como presente de casamento.
Ao conhecer o cornaca, o arquiduque muda-lhe o nome
de Subhro para Fritz, alegando ser mais fcil de lembrar.
O nome do elefante j havia sido mudado pelo secretrio
do rei D. Joo III - Pro de Alcova Carneiro, antes
mesmo de ter sido recebido pelo arquiduque, passando
de Salomo para Solimo. O arquiduque de ustria
fgura oposta ao rei de Portugal: mais pragmtico,
contestador do cristianismo, generoso, e at mesmo mais
belo que o rei.
ARQUIDUQUESA (A Viagem do Elefante): Maria de Espanha, flha
do imperador Carlos V (Carlos de Habsburgo, Imperador
do Sacro Imprio Romano) e esposa do arquiduque
Maximiliano, com quem teve dezesseis flhos, dez homens
e seis mulheres.
AUTOR (Histria do Cerco de Lisboa): Aparece no primeiro captulo
do romance em interessante dilogo com o revisor
Raimundo Silva, que se mostra mais perspicaz que o
prprio autor. Para o autor, os revisores funcionam como
anjo da guarda dos escritores e todo autor deve exibir
ares de modesto. Segundo Raimundo Silva, o autor que
historiador um homem prtico, moderno, dotado
de um fno senso de humor. J na opinio do autor,
Raimundo Silva nasceu para ser flsofo ou historiador,
pois apresenta uma amargura ctica. O autor escreve
um livro sobre a Histria do Cerco de Lisboa, revisado
por Raimundo Silva que vai colocar um no no texto
do historiador; e a partir desse fato que o romance
se desenvolver. Discute com o revisor sobre o que
literatura, histria, pintura, msica.
Os autores emendam sempre, somos os eternos
insatisfeitos.
AZAEL (Caim): Querubim encarregado de vigiar as portas do den,
com claro intuito de impedir o retorno de ado e eva que
foram expulsos de l. Sua arma uma espada de fogo
que, aos olhos de eva, possui um brilho maligno. Depois
de um debate, concorda em dar algumas frutas faminta
ARQUIDUQUESA
76 SALMA FERRAZ
eva, mas esta, em troca, deveria guardar segredo do fato.
Ao ver o seio descoberto de eva, toca-o, e a espada irradia
um lampejo de luz. Na segunda visita de eva, agora
acompanhada de ado, azael informa aos dois que foram
uma experincia de deus e os incentiva a ingressarem
em alguma caravana para assim poderem ganhar a vida.
alvo dos cimes de ado, e lembrana constante na
conversa dos dois.
J deveis saber que os desgnios do senhor so
inescrutveis [...].
ARQUIDUQUESA
77
B
79
BALTASAR MATEUS OU SETE-SIS (Memorial do Convento):
Nasceu em Mafra. Homem de grande vigor fsico, com
desparelhadas vestes, descalo, mas ainda assim com
o mesmo ar de quando era soldado. Teve sua carreira
no exrcito terminada quando lhe arrancaram a mo
esquerda na guerra. Usa duas prteses na mo amputada:
o gancho e o espigo, e no tem vergonha de sua defcincia,
uma vez que tanto ele como a sociedade assimilam esse
aleijamento. um ser anormal, esteticamente defeituoso
e mutilado, fazendo parte das personagens criadas
pelo autor que se enquadram na categoria do squito
dos disformes; mas no integra o cortejo de lzaros e
quasmodos que trabalham em Mafra. Pertence, pois,
galeria de personagens diferentes, especiais, um aleijado
que um dos protagonistas do romance. Depois que
teve a mo amputada, passou a ser pedinte em Lisboa.
Baltasar aprendeu que no lhe davam esmola quando
estava com o gancho e, principalmente, com o espigo,
por isso os leva no alforge para assim garantir sua renda.
As duas palavras-chave de sua vida so trabalho e guerra.
O povo passa fome e Baltasar pede esmola contando a
sua trgica histria para sobreviver. Sonha com a vitria
dos portugueses e que ele um dos heris de guerra
que vem na frente segurando a mo cortada com a outra
mo. Sente-se aliviado, apesar da amputao, por estar
vivo e livre da guerra. Baltasar promete um corao de
cera para So Bento e pede que lhe traga uma inglesa
loura, de olhos verdes, alta e delgada. Encontra-se com
Blimunda e com o padre Bartolomeu Loureno durante
um auto de f da Inquisio, formando uma espcie de
trindade terrena. Ele pensa na mo tanto como uma
ferramenta que no pode mais ser usada, quanto como
um rgo estimado, parte da qual sente falta para aparar
a prpria cabea enquanto dorme ou para poder tocar
sua esposa. De vez em quando sente sua mo como se
ela ali estivesse. um homem ignorante nas cincias
e no estudo e, sem mo, sente uma insatisfao fsica
que no pode ser compensada pelos seus dotes mentais,
mas que apaziguada quando convidado pelo padre
Bartolomeu para participar como arteso da construo
da Passarola. Empenha-se muito na construo da
mquina e, depois de voarem e carem, continua a
BALTASAR MATEUS OU SETE-SIS
80 SALMA FERRAZ
vistori-la, fazendo reparos, na esperana de que um dia
ela voltasse aos cus. Parece que o vo d a Baltasar a
possibilidade de ser inteiro novamente. No entanto, possui
um pensamento muito prtico. Duvida da existncia de
tudo aquilo que est fora do mundo fsico. A princpio
no cr no fato de Blimunda e sua me terem se falado
em pensamento e na possibilidade do homem voar, mas
diz que Blimunda deitou um encanto nele e que o olhou
por dentro o que no verdade. Representa a fora
fsica, o trabalho braal necessrio para a construo da
Passarola. Aps descobrir acidentalmente as esferas da
mquina de voar a Passarola ele ala vo e nunca
mais visto. Blimunda procura Baltasar por nove anos e
o encontra ardendo na fogueira da Inquisio. Blimunda
encontra a vontade, a nuvem fechada no centro do corpo
de Baltasar. Blimunda chama a vontade dele e ela se
desprende de Baltasar e no sobe aos cus, mas vai
para Blimunda, pois a ela pertencia. Baltasar Sete-Sis
pode ser considerado psicologicamente alienado para os
padres da poca.
[...] um homem precisa fazer a sua proviso de sonhos.
BALTAZAR (A Noite): fotgrafo e atua mais ligado a Pinto,
redator desportivo. Apenas com duas falas insignifcantes
na pea, no apresenta nenhuma atuao marcante na
trama.
BARTOLOMEU (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos doze
discpulos de Jesus, que se converte logo aps o milagre
da transformao dos pssaros de barro em pssaros
verdadeiros. Segundo o sangrento dicionrio de mortes
elaborado por Deus, ser esfolado vivo.
BARTOLOMEU LOURENO GUSMO (Memorial do
Convento): Um pouco mais baixo que Baltasar, parece
mais novo, mas tem a mesma idade que ele. Nasceu no
Brasil e ainda novo foi para Portugal. Estudou muito,
sabendo de cor Virglio, Horcio, Ovdio, Quinto Crcio,
Suetnio, Mecenas e Sneca. Conhecedor de Filosofa,
defende os pontos mais intricados e complicados da
mesma. versado nas Sagradas Escrituras, tanto no
BARTOLOMEU LOURENO GUSMO
81
Velho Testamento como do Novo Testamento. Bartolomeu,
assim descrito, um prodgio, um sbio nas artes
poticas e flosfcas. Alm disso, tambm um cientista
conhecedor de geometria e de alquimia. um padre que
possui pensamentos herticos e afrma que Deus maneta
da mo esquerda. Vive atormentado por dvidas, no
cr em verdades absolutas e revela-se um ctico. Ele o
intelectual, o idealizador da Passarola, que seu sonho e
seu desejo, e por esse sonho pretende lutar por toda vida,
mesmo que seja ridicularizado pela sociedade. Apesar
das piadas, ele no deixa de acreditar na capacidade do
homem em voar. Por querer voar, conheceu a me de
Blimunda, dotada de poderes sobrenaturais. D. Joo V
o distingue com estima e proteo ofertando a quinta do
duque de Aveiro para realizar seus experimentos. Vive o
dilema de querer voar e o impasse de no conseguir fazer
tudo sozinho. Utiliza-se da fora de Baltasar, da magia de
Blimunda e da arte de Domnico Scarlatti para realizar
esse sonho. dbio com relao religiosidade. Cr em
alguns preceitos religiosos e ignora outros.
[...] s eu digo que Deus no tem a mo esquerda, porque
sua direita, sua mo direita, que se sentam os
eleitos, no se fala nunca da mo esquerda de Deus [...]
esquerda de Deus no se senta ningum, o vazio, o
nada, a ausncia, portanto Deus maneta.
BENEDITA (Terra do Pecado): Criada de Maria Leonor, a
acompanha desde a infncia, seguindo com a ama
depois do casamento desta. No incio do romance ela
tem 42 anos, mas suas mos so como as de uma velha.
Ela tem profundas rugas que descem da asa do nariz
ao canto da boca, cada e murcha, e veste-se de preto.
Em sua face, uma fsionomia severa denuncia o amargor
e a rabugice da criada. Possui um ar conventual, fala
sempre com voz baixa, astuciosa, religiosa, adora
fazer insinuaes, anda com cautela e recatada nas
palavras, exceto com Leonor a quem manipula como
um boneco. Possui um olfato refnado para o cheiro de
sexo, consegue senti-lo no ar e tem um olhar descrito
como inquieto e perfurante. Solteira, ela sentia vontade
de ter tido um marido, invejava a sorte da ama e at
BENEDITA
82 SALMA FERRAZ
do marido de Leonor, por quem sentia uma adorao e
um desejo sexual reprimido. Empregada zelosa, ela toma
conta de todos na casa: reza pelo patro, vela o sono das
crianas, toma conta da ama como uma me zelosa e
muitas vezes cruel. Porm todo esse zelo torna-se quase
doentio quando a pureza de Leonor est ameaada.
Manter a honra da patroa, a quem considerava perversa
e cheia de ignomnia, vira uma verdadeira obsesso
para Benedita. O sentimento de adorao transforma-
se em dio medida que a sexualidade de Leonor se
evidencia e a torna descontrolada a ponto de bater nos
flhos. Dona de uma crena religiosa inabalvel, a criada
v na religio a explicao e as leis para tudo. E ela
capaz de qualquer coisa para garantir o cumprimento
dessas leis, por isso ir se intrometer na vida de Leonor
sempre que perceber que a ama est se afastando dos
caminhos traados pela religio. Quando Leonor comea
a dedicar-se intensamente aos trabalhos na quinta e
deixa de freqentar a missa, Benedita interfere pedindo
ao padre Cristiano que v at l cobrar a presena da
viva na igreja. Mais tarde, ao perceber o erotismo de
Leonor, passa a vigi-la e control-la desafadoramente
para evitar o pecado, em nome da moral. Benedita uma
mulher alienada e subjugada pela religio, completamente
inconsciente disso. Sua funo no romance de
guardi da moral e dos bons costumes na quinta,
farejando o pecado nas roupas da ama, vasculhando
sua conscincia, impiedosamente, travando com Leonor
uma luta quase silenciosa. Quando pressente, mesmo
que inconscientemente, o pecado ao qual se entregar
Leonor, a puritana Benedita comea a odiar a at ento
adorada ama, alm de tratar com rispidez Antnio e o Dr.
Viegas, com os quais nunca chegou a simpatizar. Essa
indisposio mais subjetiva torna-se real medida que
o ato sexual se concretiza, confrmando suas suspeitas.
Benedita fagra Leonor primeiro com o cunhado, e depois
com o mdico. Aps efetivado o ato, nas duas vezes em que
isso ocorre, arranca a confsso dos olhos da patroa, do
cenrio e dos odores que inundam o ambiente. Revela-se
implacvel, engenhosa e at mesmo cruel quando se trata
de defender os preceitos morais do catolicismo, mesmo
que para isso tenha que mentir, ameaar, torturar e, at
BENEDITA
83
mesmo, quem sabe matar. Seus esforos para preservar a
pureza de Maria Leonor no tero limites. Quando a viva
entrega-se ao cunhado, Benedita o expulsa da quinta,
espalhando a mentira de que ele viera exigir metade da
propriedade que fora de seu irmo, deixando a todos
perplexos com tal acontecimento. J ao que parece, o
que a obcecada reserva ao Dr. Viegas ainda pior. No fm
do romance, depois de o mdico e Leonor manterem uma
relao sexual, ele morre em um estranho acidente de
carroa no caminho de casa.
E Deus no a matou, no lhe caiu um raio em cima, que os
despedaasse, quando se espojavam a como dois ces.
BENTO SIMES (Terra do Pecado): Aluno que presta exames
escolares junto com o flho de Leonor e Dionsio. Moreno
de grandes cabelos negros pendendo na testa.
BERNARDO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do
conselho geral da companhia na qual a ordem franciscana
primitiva se transformou. Sempre se mantm fel
empresa e permanece aliado s idias de Elias, sendo,
portanto, contrrio a Francisco. Nas duas votaes s
quais Francisco submetido para continuar ou no na
companhia, Bernardo posiciona-se contra o fundador de
sua ordem.
BERNDT KNIPPERDOLLINCK (In Nomine Dei): Chefe da
oposio anticlerical em Mnster. um anabaptista que
atua durante toda a trama. Juntamente com Rothmann,
lidera as primeiras aes visando a Reforma. Demonstra
ser um fantico por seus ideais. Apesar de iniciar o livro
liderando o movimento, posteriormente perde espao
para Jan Matthys e Jan Van Leiden, lderes vindo de
fora. No fnal do livro, no abjura de sua causa e termina
preso.
No desperdicemos em bailes a fora de que precisamos
para a guerra.
BERNDT ROTHMANN (In Nomine Dei): um anabaptista
que inicia o livro pregando seus ideais junto com
BENTO SIMES
84 SALMA FERRAZ
Knipperdollinck. De todos, parece ser o mais ideolgico e
justo se que se pode dizer isso de um fantico como
ele. Apesar de ser um pregador veemente, no demonstra
estar imbudo de tanta ambio. Permanece ligado ao
movimento durante todo o livro e morre no fnal, quando
a cidade invadida.
Digo que Deus restaurou a faculdade de querer o bem e
o mal.
BLIMUNDA DE JESUS OU SETE LUAS (Memorial do Con-
vento): Mulher simples e do povo, portadora de uma
sensibilidade aguada, madura, paciente, vidente,
sensual, sbia, feiticeira, livre, age com naturalidade.
apresentada inicialmente como sendo uma bela moa
alta de corpo delgado. dotada de uma fora de esprito
descomunal, possui um estranho conhecimento,
inteligente, tem poderes sobrenaturais e uma sabedoria
ancestral. Possui uma naturalidade que se contrape
a seu lado mstico. uma mulher iniciada, pertence
raa das mulheres gerndicas, espcie de sacerdotisa/
pitonisa, um ser diferente, cuja anormalidade se
manifesta no pela falta, mas pelo excesso de viso,
dotada de um dom to especial que a limita e a desorienta,
e a torna carente pelo excesso de luz. Ela sabe que, por
ser diferente, pode ser extirpada da sociedade. uma
personagem fantstica e estranha que pertence galeria
das personagens especiais criadas pelo autor uma vez
que possui poderes misteriosos. Seus misteriosos olhos
so indefnveis, ora claros de cinzento, ou verde ou azul
e, s vezes, tornam-se negros noturnos ou ainda brancos
brilhantes. Esse olhar enigmtico, mgico e misterioso
reporta-nos Capitu de Dom Casmurro de Machado
de Assis. Esse olhar tambm remete ao olhar sagrado
e mtico, uma metfora do olhar feminino, do olhar de
Eva, do olhar de todas as mulheres. Caso no coma nada
nos dias em que a lua nova, pode enxergar o que est
no interior das pessoas, vivenciando o mundo de uma
maneira ambivalente e possuindo aquilo que poderamos
denominar de iluminao profana. Esse seu estranho
mundo lhe possibilita a obteno da energia/fora
combustvel para fazer voar a Passarola e libertar-se das
BLIMUNDA DE JESUS OU SETE LUAS
85
pequenezas terrenas, mas tambm pode abrir o caminho
para a morte, se o Santo Ofcio descobrir que possui esses
poderes. mulher de Baltasar, mesmo aparentando ser
submissa, conduz seu destino e o destino de todos que a
cercam. Omisso e submisso, dependncia e escravido
no fazem parte do carter desta mulher-enigma. Ela
questiona o papel do ser humano perante o amor, a
morte, o pecado e perante Deus. No aceita os dogmas e
os questiona, no aceita nenhuma represso, tampouco
aceita os sacramentos da Igreja, foge de qualquer
conveno e paradigma, anuncia novas dimenses e faz
inovadoras proposies, sempre subvertendo a ordem
estabelecida. Representa na estranha trindade, composta
pelo padre Bartolomeu, Baltasar e ela, o Esprito Santo,
pela capacidade de ver o que os outros no vem e pela
capacidade de recolher as vontades dos seres humanos
na hora da morte. Sua grande importncia expressa
quando recebe a misso, por parte do padre Bartolomeu,
de reunir as vontades humanas para que estas auxiliem
no vo da Passarola. , pois, um pilar bsico e essencial
para o projeto da Passarola. Seus olhos so os olhos
do Esprito porque conseguem ver o que vai dentro das
pessoas. Evoca uma espcie de sacerdotisa celta e vive,
do ponto de vista religioso, sob o signo da transgresso.
Para ela a Igreja Catlica signo de castrao, uma vez
que o poder da Igreja levou sua me ao degredo. Quando
desaparece Baltasar, ela passa a viver um verdadeiro
purgatrio atrs do seu homem. Como uma andarilha,
peregrina pelo pas, passando fome, frio e toda sorte de
difculdades. Quando menciona que procura um homem
e uma mquina voadora tida como louca e visionria.
Esse o seu vo maior. Sai de Mafra e com olhos de
guia procura Baltasar, seu referencial, seu centro. So
dois os seus vos: o primeiro vo, em busca da liberdade
e da libertao, a ousadia do sonho. O segundo vo,
atrs de Baltasar, um mergulho silencioso para dentro
de si mesma, palmilhando o territrio de Portugal, mas
tambm, palmilhando o seu esprito, o seu corpo, a sua
verdade. No tempo em que percorre terras portuguesas,
sete voltas ela d, sete como os degraus do purgatrio
de Dante. Nove anos dura a sua peregrinao, como
nove so os crculos do inferno dantesco. Esse o seu
BLIMUNDA DE JESUS OU SETE LUAS
86 SALMA FERRAZ
caminho, o caminho do conhecimento e da redeno.
Vive primeiramente a trajetria de caro em sua nsia
de voar e depois a de Cassandra, j que ningum mais
acredita em suas palavras. Chega a ser maltratada e
apedrejada por acharem que era louca. Depois indica
um veio de gua purssima para a populao local e
aclamada como santa. Com seus olhos excessivos
considerada os olhos do autor no texto. ela a ltima
personagem a ter ao no romance, pois quem vai
assistir ao suplcio fnal de Baltasar. Forma ao lado de
Madalena, Maria Sara, Mulher do Mdico, Joana Carda
e Maria Guavaira a magnfca galeria representativa de
personagens femininas do autor. Numa analogia com o
casal admico, ela representaria Eva, a parte alqumica
e labirntica do saber sobrenatural. A Passarola tem
uma ascenso e depois uma queda, tal como no Gnese.
E a Passarrola carrega em seu mago um casal com
tonalidades bblicas.
No tenho pecados a confessar [...].
BOIEIRO (A Viagem do Elefante): Vivia em uma aldeia chamada
Mem Martins. o responsvel por conduzir duas juntas
de bois, as quais puxam o carro que traz uma dorna de
gua e os fardos de forragem para o elefante.
BOM LADRO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Est
presente na crucifxo. Tem o cabelo todo encaracolado,
a face rubicunda, est nu e atado a um tronco de rvore,
envolto em um pano que lhe cobre as partes ntimas.
identifcado pelo narrador como uma m pessoa, um
aproveitador, j que acreditou que um minuto de bondade
compensasse uma vida inteira de pecado; ao contrrio do
Mau Ladro, que foi um homem mau at o minuto fnal.
BRUXA DA ALDEIA (A Viagem do Elefante): Mulher da aldeia
que faz as vezes de curandeira. Ajuda o cura quando este
fca em estado de choque aps quase ter sido atacado
pelo elefante enquanto tentava exorciz-lo.
BOM LADRO
87
C
89
CES DE CERBRE (A Jangada de Pedra): O narrador identifca
Mdor e Ardent como Ces de Cerbre. O co Mdor, no
princpio do romance, dissecado por veterinrios para
verifcar o porqu de os ces ladraram depois de terem
permanecido mudos por tanto tempo.
CAIM (Caim): Primeiro dos trs flhos de ado e eva, concebido e
criado fora do paraso. Para alegria dos pais, torna-se
agricultor enquanto o irmo se dedica ao pastoreio: assim
se cobria por inteiro os dois mais importantes setores
da economia da poca. muito amigo do seu irmo,
at o momento em que deus aceita com maior alegria o
sacrifcio de abel e este passa a escarnecer do irmo mais
velho. Revoltado e rancoroso, caim premedita e mata abel.
Depois do fratricdio, h uma difcil conversa entre deus e
caim; conversa esta que se encerra com deus fazendo um
sinal na testa de caim para proteg-lo. Nesse instante,
sem se despedir dos pais, ele comea a sua peregrinao.
Antes de adentrar as terras de nod, encontra um velho
com duas cabras e ele caim diz, pela primeira vez, o
nome abel como se fosse seu. Em nod, de amassador
de barro acaba se tornando porteiro da antecmara do
quarto de lilith, um eufemismo para amante. Antes de
ser apresentado rainha, lavado e masturbado pelas
criadas, conhecendo, dessa forma, o prazer sexual.
Torna-se o melhor amante que lilith j teve, a ponto de
despertar os cimes de noah. Depois do fracasso de um
atentado contra sua vida, caim decide retornar vida de
errante. Acaba se tornando testemunha-participante de
vrios episdios do antigo testamento, pois, sem entender
o porqu, faz viagens no tempo e em grandes dimenses
de espao. Impede que abrao degole isaac, conversa
com um pedreiro em babel, hospeda-se na tenda de
abrao quando anunciada a vinda de isaac, v sodoma
e gomorra serem destrudas e lot e suas flhas fugirem da
cidade (no testemunha dos acontecimentos entre lot
e suas flhas no deserto, nem mesmo da conversa entre
josu e deus, mas tecer comentrios a respeito de ambos
os casos), v a distribuio dos despojos dos medianitas,
a destruio de jeric, o destino de acan, a destruio
da cidade de ai. Aps ver a conquista e destruio de
vrias outras cidades, visita novamente lilith e, ento,
CAIM
90 SALMA FERRAZ
conhece seu flho com ela: enoch. Retoma suas viagens,
torna-se servo de job e trabalha na construo da arca de
no. Durante o dilvio, mata todos dentro da arca como
uma ltima afronta a deus, selando assim seu prprio
destino: vagar s pelo mundo at se tornar um cadver
insepulto.
simples, matei abel porque no podia matar-te a ti, pela
inteno ests morto.
CO DAS LGRIMAS (Ensaio sobre a Cegueira): Um co,
talvez um vira-lata. Este co parece ter como funo
enxugar lgrimas de sofredores, num processo de
antropomorfzao. Ele se habituou, desde pequeno, a
enxugar lgrimas, mas nem por isso espera ser servido
como forma de agradecimento. No um animal para
fcar espera de que o alimentem. Assemelha-se a um ser
humano frio e calculista nas coisas prticas do dia-a-dia,
porm se torna meigo e sempre sabe quando necessitam
dele. Foi ele a quem a mulher do mdico recorreu duas
vezes, abraando-o quando se sentiu perdida, solitria
e desesperada. Depois que enxugou as lgrimas dessa
mulher pela primeira vez, se sentiu no dever de segui-
la porque nunca se sabe se ter que enxugar outras
lgrimas. Este co reaparece em Ensaio sobre a Lucidez,
no qual a mulher do mdico afrma ao comissrio que ele
se chama Constante. No fnal de Ensaio sobre a Lucidez
assassinado juntamente com a mulher do mdico.
CAPITO DO PORTO (A Ilha Desconhecida): Homem do mar,
objetivo, decidido, prtico, inquisidor, desconfado,
racionalista, experiente, por vezes irnico, mas prudente.
No conto, serve como conselheiro, lembrando o homem
do barco sobre os perigos de se navegar sem experincia.
Era entendido no seu ofcio, no seu trabalho de capito
do mar, profundo conhecedor dos barcos e das suas
funes. Est convencido de que sabia tudo sobre ilhas
e sobre navegao. Por ser um conhecedor do mar, tenta
abalar a deciso do homem do barco de sair em busca
da ilha desconhecida. Ciente de sua importncia como
navegador do reino, afrma ao homem do barco que o rei
aprendeu tudo que sabe com ele. Diante do embate com o
CO DAS LGRIMAS
91
homem do barco sobre a existncia da ilha desconhecida,
v quebrar as linhas de fora da arquitetura social entre
ambos e recua em suas questes, cedendo s convices
do primeiro.
[...] j no h ilhas desconhecidas.
CARDEAL (As Intermitncias da Morte): Demonstrando grande
infuncia dentro do governo, o cardeal aparece no livro
logo aps o pronunciamento ofcial sobre a especial
situao da morte no pas. Criticando o primeiro-
ministro pela declarao, o cardeal representa, por si
s, a igreja, e d lies ao primeiro-ministro sobre como
agir em situaes-problema. Mostra-se hbil, feroz e
extremamente sagaz dentro do jogo poltico que envolve
a relao entre governo, membros da monarquia e igreja,
criticando, tambm, a reao do rei referida declarao.
Aparece, ainda, preocupado com o futuro da igreja
enquanto instituio religiosa, pois:
Eminncia, perdoe-me, temo no compreender aonde quer
chegar, Sem morte, oua-me bem, senhor primeiro-ministro,
sem morte no h ressurreio, e sem ressurreio no h
igreja, diabo, No percebi o que acaba de dizer, repita,
por favor.
CARDEAL D. HENRIQUE (Que Farei com este Livro?): Cardeal-
infante e inquisitor-mor, tio de D. Sebastio. Educou
el-rei. O cardeal, j no segundo quadro do primeiro
ato, tipifca as posies da Igreja e do Reino, j que o
representante da Igreja junto corte. Preocupa-se com
as infuncias das pessoas prximas a el-rei. Queixa-se
por no ser ouvido e preocupa-se com os destinos de
Portugal e sua aproximao com Castela. Faz o tpico
interesseiro, preocupado s com o seu ganha po, e dirige
el-rei como bem lhe apraz.
Eduquei-o para que escutasse o conselho dos de maior
experincia e idade, no para se rodear de insensatos
que o distraem da governana e o incitam a aventuras de
conquista que nenhum bem traro a Portugal.
CARDEAL
92 SALMA FERRAZ
CARDOSO (A Noite): o redator da cidade. Personagem secundria,
no opina politicamente, porm gosta de uma piada. Nas
raras vezes em que se manifesta, para rir ou fazer rir,
quando, por exemplo, o chefe da redao estranha que o
contnuo ainda no tenha voltado do exame prvio leia-
se, censura.
CARLOS (Terra do Pecado): S se mostra atravs de uma carta
ao irmo, Dr. Viegas, na qual se declara ateu. Revela-se
bem disposto a hospedar o menino Dionsio em sua casa,
em Lisboa, para que este estude no liceu. Como pai,
bastante acessvel e liberal, deixando que o flho Joo
tome a deciso de terem ou no um pensionista, j que
principalmente ao flho que tal deciso afetar.
CARLOS PINTO (Terra do Pecado): Aluno que presta exames
escolares no mesmo dia que Dionsio, flho de Leonor.
Era um dos rapazes da famlia dos barqueiros.
CARMO (Manual de Pintura e Caligrafa): Editor vivo que detm
a primazia de ser o mais velho do grupo social ao qual
pertence H. e Adelina. Apesar das atitudes moralistas
que assume no aprova as exibies amorosas de Ana
e Francisco , suspira ardentemente pela decoradora
Sandra. A submisso ao objeto de conquista subverte
o machismo que lhe peculiar e fortalece a posio
feminina que passa de sexo frgil ao comando da relao.
A relao Carmo/Sandra espelha o contexto social do
perodo (dcada de setenta), marcado pela ascenso
do feminismo que promove o jogo de poder no cenrio
das conquistas amorosas. Atravs dessas personagens,
Saramago mostra como a gerao amadurecida e
intelectualizada da dcada de setenta trabalha o
impacto das propostas do amor livre preconizadas pelos
hippies de sessenta. Pertencente a um grupo no qual as
aparncias prevalecem sobre as essncias, exposto
volubilidade de Sandra que divide as atenes com os
outros homens do grupo, e deixando-se conduzir pelas
regras de conquista que privilegiam a performance
masculina, Carmo se apresenta como uma personagem
em confito ao sucumbir s vontades da moa. Prope-se
a editar os escritos de H., pois isso o promove perante
CARMO
93
a decoradora. A atuao da personagem Carmo ganha
funcionalidade no romance, uma vez que a possibilidade
de edio do livro do pintor provoca transformao na
forma de expresso escrita. Enquanto se dedica escrita
dos exerccios de autobiografa, H. se isola do grupo sem,
contudo, deixar de acompanhar a trajetria de Carmo,
que viaja com Sandra para o Algarve ou Espanha. Carmo
retorna ao cenrio narrativo quando H. est totalmente
envolvido pelo ato da escrita da prpria pr-histria. O
editor adentra ao cenrio narrativo, para nele completar
a sua trajetria de amante abandonado e inconformado.
Embora H. se mostre penalizado, a visita do editor provoca
uma reao de enfado no pintor. O encontro dramtico
entre Carmo e H. passa pelo registro do fnal do romance
e do lacrimejante destino, e pelo pedido de ajuda, tendo
um fundo musical que amaldioa todas as flhas de Eva.
A postura realista de H. provoca alterao na atitude
rastejante do editor, que recupera a serenidade para
anunciar formalmente, com clara inteno de revanche,
a inconvenincia da edio do livro do pintor. Mais uma
vez funcional, a ao da personagem Carmo contribui
para uma mudana de direo dos caminhos artsticos
traados por H., que agora se confrmam no como
simples itinerrios tursticos, mas como os de busca da
compreenso do mundo.
A ocasio no boa para livros desse gnero.
CAROLINA (O Homem Duplicado): Me de Tertuliano, o qual a
v, embora nunca confesse, como uma pesada carga.
Ela funciona como um porto seguro para seu flho. Vive
numa outra cidade, sempre espera de uma visita ou
de um telefonema do flho. uma assdua e fervorosa
leitora de romances, uma senhora discreta que respeita
a vida do flho. Mesmo distante de Tertuliano, mostra-
se uma me dedicada e preocupada com a felicidade
dele; e a partir de algumas observaes que ela faz a
respeito de Maria da Paz que seu flho comea a enxergar
a amante de outra maneira. Tertuliano hesita em contar
para a me sobre a existncia do seu ssia, Antnio
Claro. Somente depois de algum tempo vivendo nessa
angstia que ele revela parcialmente para Carolina o
CAROLINA
94 SALMA FERRAZ
que est acontecendo. Quase que num tom de profecia
e sem imaginar a complexidade da estria do ssia,
ela faz seu flho prometer que no se encontraria mais
com Antnio Claro. O flho responde que ela fala como
Cassandra, que tentara alertar em vo os troianos de
que Tria seria destruda. Aps o acidente com o falso
Tertuliano Antnio Claro, usurpara a identidade do
flho de Carolina e morreu juntamente com Maria da
Paz, a noiva/amante/amiga de Tertuliano o verdadeiro
Tertuliano telefona para sua me e avisa que est vivo.
Carolina, ento, apia o flho Tertuliano na deciso de
viver como Antnio Claro, confrmando assim o que
dissera a ele:
Nem que me trouxessem aqui dez iguais a ti, vestidos
da mesma maneira, e tu metido no meio deles, para o
meu filho que apontaria logo, o instinto materno no se
engana.
CATARINA DE USTRIA (Que Farei com este Livro?): Teve nove
flhos, todos portugueses. Av de D. Sebastio, viva de
D. Joo III, vive preocupada com os destinos de Portugal.
Castelhana de origem, ela arquiteta aproximar Portugal
de Castela. Estava interessada em casar o neto. Nas
conversas que tem, procura manter a hierarquia, e deixa
muitas possibilidades de interpretao nas entrelinhas
do que fala. Ela muito matreira: no revela tudo e, no
caso de se sentir trada, apela para a sua ingenuidade.
Demonstra querer o melhor para Portugal.
No depende de mim nem de vs o destino do reino. H
em Portugal um rei.
CATARINO (Terra do Pecado): Aluno que presta exames escolares
no mesmo dia que Dionsio, flho de Leonor. Era um
enjeitado, rfo que trabalhava na casa de Faustino por
caridade deste.
CAVALEIRO HENRIQUE (Histria do Cerco de Lisboa):
Personagem do autor Raimundo Silva, era um cruzado
alemo admirado pelo rei e pelos soldados que estavam
subordinados ao seu comando. Era um bom homem e
CATARINA DE USTRIA
95
vivia com Ouroana, personagem fctcia da outra histria,
sua concubina. Apesar de t-la trazido fora, tratava-
a bem. Teve a brilhante idia de construir uma torre
para avanar sobre as muralhas do castelo e invadir o
cerco mouro a Lisboa facilitando, assim, o ataque dos
portugueses. Um problema na base da torre, devido
ao acidentado terreno sob a mesma, fez com que esta
quase russe. O cavaleiro Henrique no mediu esforos
para remediar o problema, mas foi ferido mortalmente
por uma chuva de fechas incendiadas atiradas pelos
mouros. Morto em combate, teve um funeral com honras
conforme as condies precrias da guerra permitiam
como cabia a seu posto. Nessa parte da fco criada por
Raimundo Silva, o fantstico acrescentado narrativa,
ou seja, o esprito do cavaleiro Henrique aparece para
Frei Rogeiro, solicitando que o corpo de seu fel escudeiro
fosse sepultado junto do seu, mas o Frei, achando tratar-
se de sonho, voltou a dormir. Porm, a alma do cavaleiro
no sossegou enquanto o padre no executou a tarefa por
ele encomendada. O Frei passou um bom trabalho para
dar conta da empresa. Quando se lembra que o esprito
ou alma penada do cavaleiro no voltou para agradec-
lo, milagrosamente aparece uma palma na cabeceira de
Frei Rogeiro, semelhante palma que os romeiros de
Jerusalm carregariam nas mos, trs sculos depois.
Acontece que as folhas da palma curaram muitos
doentes e aliviaram muitas dores, espalhando-se os
milagres pelo acampamento. O cavaleiro Henrique ainda
apareceu em sonho para dois surdos-mudos na fgura de
um romeiro, trazendo nas mos ramos de palma. Os dois
surdos-mudos acreditaram no poder de seus milagres
e pernoitaram sobre sua sepultura. Quando os dois
acordaram j podiam falar, mas estavam gagos e mal se
entendia o que diziam. Persistiram ento na penitncia,
mas foi em vo, porque permaneceram gagos.
Levanta-te e vai quele lugar onde os portugueses
enterraram o meu escudeiro, afastado de mim, e toma o
corpo dele e traze-o e enterra-o aqui junto comigo, a par
desta minha sepultura.
CEGO DA CONTABILIDADE (Ensaio sobre a Cegueira): O nico
cego que j era cego de verdade. Lia braile e por isso
CEGO DA CONTABILIDADE
96 SALMA FERRAZ
tornou-se contabilista do grupo dos malvados, unindo-
se a eles para no passar fome. Depois que o chefe dos
malvados foi assassinado, tomou a postura de lder.
Mas eu no sou cego como ele, como vocs, quando vocs
cegaram j eu conhecia tudo do mundo.
CEMITRIO GERAL (Todos os Nomes): A estrutura que organiza
o trabalho do Cemitrio Geral to estratifcada quanto
a da Conservatria Geral. No alto da pirmide est o
curador e na base esto os guias ou, pelo nome que
no consta nos seus registros de trabalho, coveiros.
um labirinto, e difere do labirinto que a Conservatria
Geral pela falta de paredes. Um antigo curador mandara
derrubar os muros e no reerguer outros, o que retirou a
delimitao fsica entre o mundo dos vivos e dos mortos
(antecipando o que tambm ocorreria na Conservatria).
Devido aos percursos da natureza humana, est sempre
em expanso, disputando espao com os vivos. H txis
e outros veculos que transitam no seu interior para
vencer as distncias. O escritrio apresenta tecnologias
que a Conservatria no tem, como a mquina, com
milhes de cores, que fornece mapas da localizao de
tumbas. No que concerne s informaes, o Cemitrio
Geral mais sucinto que a Conservatria Geral, pois
apenas carrega o nome dos fnados em suas lpides. No
h informaes precisas sobre a diviso dos terrenos em
lotes que separam ricos e pobres, homens e mulheres.
H a meno sobre a ala dos suicidas, onde repousam os
restos mortais da mulher desconhecida, em alguma das
vrias covas que ali se encontram.
Est morta, j no posso fazer mais nada, contra a morte
no se pode fazer nada.
CENTRO (A Caverna): A caverna ps-modernidade, onde todos
querem morar. O Centro, como um deus tirnico e
onisciente, age como um tribunal que decide tudo sobre
a vida das pessoas: de quem as mercadorias devem ser
compradas, o que as pessoas devem comprar e do que
devem gostar. Tudo nele artifcial: neve, chuva, luz,
dia e noite, at mesmo as pessoas a verdadeira ilha da
CEMITRIO GERAL
97
fantasia. As pessoas no precisam sair dali para nada, a
tal ponto que passam a viver no Centro porque ele oferece
tudo que um ser humano precisa, sem correr risco algum.
uma ilha da tecnologia moderna, um paraso ciberntico
com cmaras de vdeo como se fosse um monstruoso Big
Brother, transformando-se numa gruta artifcial povoada
por seres que no pertencem mais a este mundo, nada
mais que simulacros e sombras. Possui diversos cartazes
e letreiros espalhados. Ele funciona como uma espcie de
tero s avessas, para onde todos querem voltar, a uma
posio fetal de aconchego e proteo. Na flosofa grega,
a noo de caverna aparece como metfora do mundo
material; a imagem platnica concebe a humanidade
acorrentada numa caverna a ver iluses. Poderamos
ainda pensar no Centro como uma espcie de Labirinto
do Minotauro. Mas ao contrrio daquele, deste labirinto
formado pelas dezenas de andares, ningum quer sair,
querem permanecer presos numa realidade virtual,
enganosa, porm, sem perigo. Tendo em vista que o
dilogo proposto no romance com a Alegoria da Caverna,
dA Repblica de Plato, vale a pena pensarmos neste
Centro como uma personagem que, em muito, lembra
os shopping centers da era atual: no h janelas, no h
sujeio aos efeitos da natureza, mas ao mesmo tempo
pode forjar todas essas particularidades do mundo real.
Neles se tem a impresso de estarmos sempre seguros
e de tudo podermos. o prprio simulacro, sugerido
por Baudrillard, o prprio Matrix. Na primeira vez que
Cipriano Algor visita o interior deste imenso Shopping
Center, andando de elevador, fca extasiado com a sua
dimenso, movimentao e diversidade. O Centro possui
48 andares e resume em si a histria da humanidade e
simulacros de todos os grandes feitos e obras dos homens.
As atraes e variedades do Centro so tantas que uma
pessoa com oitenta anos de vida ociosa no conseguiria
desfrutar com proveito tudo o que oferecido. O catlogo
ofcial do Centro possui cinqenta e cinco volumes com
mil e quinhentas pginas cada um. Tal qual o inferno
de Dante, o Centro est em constante expanso. Suas
janelas no abrem para o exterior, mas no se sabe se
para evitar concorrncia com a paisagem ou para evitar
suicdios. De qualquer forma, possvel criar qualquer
CENTRO
98 SALMA FERRAZ
clima que se deseje. A preocupao com os cemitrios,
com o que fazer com os mortos, sempre teve destaque na
obra do Saramago; as cidades passam a perder espao
para as necrpoles, habitadas pelos mortos. Contudo, o
Centro, apesar de ter um carter de museu vivo, no pode
ter espao desperdiado com algo to insignifcante como
lpides; a no ser que sejam tmulos com um potencial
comercial de algum famoso ou, como ocorreu, de uma
rplica da alegoria da caverna, de Plato. Os mortos do
Centro so cremados, sua existncia se transforma em
fumaa, expelida por uma chamin dentre tantas outras.
A descoberta da gruta localizada nas profundezas do
Centro est envolta no mais absoluto sigilo. Os dirigentes
do Centro temiam o que aquela viso poderia provocar
nos seus moradores.
BREVEMENTE, ABERTURA AO PBLICO DA CAVERNA
DE PLATO, ATRACO EXCLUSIVA, NICA DO MUNDO,
COMPRE J A SUA ENTRADA.
CSAR AUGUSTO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Impe-
rador Romano na poca do nascimento de Jesus que
decretou o recenseamento, o que forou a famlia de
Jesus a deslocar-se de Nazar at Belm.
CHEFE DA REDACO (Ensaio Sobre a Lucidez): Recebe a visita
do comissrio, que lhe entrega uma carta denunciando
toda a farsa para incriminar a mulher do mdico. Fica
transtornado ao ler a carta, mas no tem coragem de
public-la sem a autorizao do director do jornal.
CHEFE DE DEPARTAMENTO DE COMPRAS (A Caverna):
Chefe dos responsveis por efetuar as compras para
o Centro. diretamente com ele que Cipriano Algor
negocia a encomenda de estatuetas na tentativa de salvar
a sua olaria. Durante essa negociao, inicia-se um
jogo verbal de gato e rato, de perguntas e respostas, no
qual as hierarquias so sempre lembradas e reiteradas.
Sua maior caracterstica, para no dizer necessidade,
o esprito prtico, a capacidade de tomar as melhores
decises o mais rpido possvel, afnal, tambm um
funcionrio. Em sua relao com Cipriano, revela-se
CHEFE DE DEPARTAMENTO DE COMPRAS
99
honesto e tico. Ele joga corretamente as regras do jogo,
representando o capitalismo, no qual quem vence so os
melhores enquanto os outros fcam mngua. Possui uma
viso objetiva e clara acerca da engrenagem da mquina
industrial se as pessoas no acompanham o ritmo
dessa engrenagem, simplesmente so substitudas por
outras e marginalizadas , nos lembrando o flme Tempos
Modernos de Chaplin. Exatamente por representar os
interesses do Centro no romance que este personagem
se caracteriza como o grande representante da frieza e
hipocrisia cabveis ao capitalismo latente e denunciado no
livro. Para o chefe de departamento de compras, o Centro
um imenso tribunal. A partir dessa afrmao, podemos
deduzir que o juiz seria o consumo juiz imparcial, mas
nem sempre justo e os jurados os consumidores. De
fato, muitas das regras do jogo econmico se assemelham
s da foresta, aos preceitos de Darwin.
Sou um chefe, de facto, mas s para aqueles que esto
abaixo de mim, acima h outros juzes.
CHEFE DO ESTADO (Ensaio sobre a Lucidez): o homem mais
experiente e responsvel por tomar medidas apaziguadoras
na cidade. Porm se deixa levar pelos planos dos
superiores, no fazendo valer a sua experincia.
CHEFE DOS MALVADOS (Ensaio sobre a Cegueira): Um grande
vilo j que exerce poder sobre um determinado grupo,
e com a ajuda deles manipula os cegos. Faz com que
os cegos entreguem tudo o que tm em troca da comida
que servida pelo governo, porm controlada pelo chefe
dos malvados e seu bando. No bastando isso, fora as
mulheres cegas a fazerem sexo com ele e seus homens
em troca de comida. morto pela mulher do mdico que,
vingativamente, o ataca quando est prestes a ter um
orgasmo.
Quietos todos a, e calados, se algum se atreve a levantar
a voz, fao fogo a direito, sofra quem sofrer, depois no se
queixem.
CHICO (Manual de Pintura e Caligrafa): O narrador protagonista
H. justifca o emprego do diminutivo para nomear esta
CHEFE DOS MALVADOS
100 SALMA FERRAZ
personagem, por ser um modo prtico de se estabelecer
uma distino com o outro Francisco. A personagem
nos apresentada a partir do ponto de vista de H. como
sendo um conquistador. Num grupo social que privilegia
a exteriorizao dos sentimentos, o publicitrio encontra
terreno favorvel para exercitar o que dele esperam as
mulheres: enquanto Sandra reata seu firt com o mdico,
nada mais natural do que a mulher do mdico aceitar
a corte do publicitrio. Estabelecendo um contraponto
com o inbil Carmo, as peripcias afetivas de Chico no
se restringem ao mbito do grupo e contemplam outros
ambientes mais exticos que pedem atitudes ousadas;
por vezes se enamora, como na ocasio em que andara
com uma bailarina inglesa, conforme nos conta H..
Mostrando-se bem informado a respeito das tendncias
sexuais e afetivas dos membros do grupo, Chico assume
postura trocista quando sugere que Sandra poderia ser
lsbica, ou quando, de forma magnnima, permite que
Sandra leve Carmo no carro. A despeito das atitudes
atrevidas em relao aos amigos, Chico solidrio e
ser atravs dele que H. conseguir emprego na agncia
de publicidade, encontrando o seu porto de salvamento
aps o episdio de recusa do quadro que pintara. Sua
atuao tambm ser decisiva no episdio da priso de
Antnio. Sempre bem informado, ser Chico o porta-voz
da notcia da priso de Antnio. Sair do comodismo e ir
ao encontro do outro confere a esta personagem uma
distino perante os elementos do grupo que pautam
suas existncias unicamente em torno dos prprios
interesses. Chico o nico que se inquieta com a ausncia
do amigo Antnio e parte em busca de respostas para a
falta de notcias. Funcional ao desfecho do romance, a
solidariedade de Chico promove o movimento de H. em
direo ao reconhecimento de que nada do que acontecia
no pas lhes era alheio.
O Antnio foi preso.
CHUA (O Evangelho segundo Jesus Cristo): Mulher de Ananias,
vizinha e amiga de Maria. abandonada pelo marido, que
se alista no exrcito de Judas, o guerrilheiro galileu.
CHUA
101
CIPRIANO ALGOR (A Caverna): Vivo de Justa Isasca, neto e
flho de oleiros, tem 64 anos, porm aparenta ter mais,
traja roupas simples. S se veste de maneira mais
apresentvel (diga-se: com casaco civil, cala social e
camisa sobriamente fechada no colarinho, sem gravata)
quando dirige sua furgoneta ao Centro para vender as
peas fabricadas na sua olaria. As mos de campons
so grandes e fortes, e, devido ao contato com a argila,
so macias e sensveis. Desconhece a origem e signifcado
da palavra algor que traz junto ao nome que signifca
frio intenso, anunciador de febre. Mora, inicialmente,
com a flha e com o genro num local afastado da cidade.
Apesar de sua flha Marta defnir os Algores como um
pouco brutos, Cipriano revela uma sensibilidade artstica
espantosa, j que de oleiro passa a escultor. uma pessoa
incomum, sbia, bondosa, paternal, curiosa, astuta,
possui uma personalidade pacata, revela-se um mestre
na arte da discusso e do dilogo. Demonstra, durante
toda a estria, a sua tristeza pelo rumo que as coisas
estavam tomando, ou seja, profsses e manuais sendo
substitudos por mquinas, tudo em prol da ascenso
do capitalismo. Ele um artista, apegado s tradies
e ao passado; como todos os artistas um sonhador.
Tem o dom da palavra, pois se atm a explicar todos
os processos, tanto da fabricao de seus artefatos na
sua olaria, como do preparo para a mudana de vida,
do antigo modo quase rural para o novo. O oleiro entra
em crise depois que o Centro um gigantesco Shopping
Center para o qual ele fornecia seus produtos resolve
usar plsticos em vez de loua, deixando o comerciante
sem rumo. Possui um contrato de exclusividade com
o Centro, no porque suas peas sejam mpares, mas
porque todos aqueles que vendem para o Centro no
podem ter outros clientes. Revogado o contrato, v a
iminente falncia de sua olaria. O motivo da quebra de
contrato a substituio das louas de barro por louas
de plstico aparentemente simples, j que marca a
transio da continuidade para a descartabilidade; afnal,
o descartvel fundamental para os ideais comerciais
que norteiam o Centro.
Sua ltima tentativa comear a produzir bonecos de
barro de fguras estilizadas em sua olaria. As metforas e
CIPRIANO ALGOR
102 SALMA FERRAZ
comparaes com Deus (e outras narrativas do surgimento
dos homens do barro), enquanto molda os bonecos,
surgem, mesmo que involuntariamente. Da mesma
maneira que Deus fez de Ado sua imagem e semelhana,
da mesma maneira que Plato teoriza que h um molde
perfeito em um mundo inacessvel, Cipriano precisou
fazer primeiramente os prottipos, para depois fazer os
bonecos. So imensas as difculdades da passagem de
um oleiro para um arteso: os novos materiais, as novas
tcnicas, os novos cuidados. A gravidez da flha, Marta
Algor, faz com que todo o trabalho pesado recaia sobre
seus braos. Gradativamente, o trabalho vai se mostrando
impossvel de ser concludo e os bonecos que ele consegue
fazer so apenas o sufciente para passarem por um teste
de aceitao do pblico (que resulta negativa). Antes da
sua partida para o Centro, retira da olaria falida todos
os bonecos incompletos e os deixa semi-enterrados na
lama. Assim, lenta e gradativamente, com as chuvas e
os ventos, com o sol, eles voltariam sua origem. Do
p ao p. Ele v, aos poucos, os produtos de cermica
de produo artesanal serem substitudos pela produo
industrial. Mas havia algo ainda mais precioso a perder,
que seria a sua prpria liberdade, quando levado pelas
circunstncias passa a residir na caverna em que para
ele se constitua o grande centro comercial. Uma vez no
Centro como morador, deixa aforar uma caracterstica
sua at ento pouco vista: a curiosidade. Cipriano um
heri, pela sua frme deciso de no fazer parte deste
mundo, em que as pessoas fcam presas dentro de
caixotes de cimento, nos shoppings/centros, ilhadas e
alienadas do mundo real que existe l fora. Dessa forma,
ele convence Maral e Marta de que h outra possibilidade
de vida, a de no se dobrar ao poder do capitalismo. Seus
divertimentos variam entre anotar as frases das lojas e
participar de uma atrao chamada sensaes naturais,
na qual o visitante passa por tempestades e visita
praias sem sair do Centro. essa mesma curiosidade
que o leva a investigar o mistrio do qual os vigias esto
participando. Nas escavaes para ampliao do Centro,
foi encontrada uma rplica da Alegoria da Caverna, de
Plato. Sem dizer de onde, Cipriano Algor revela que
conhece essa alegoria. Diante de tal viso, decide sair
CIPRIANO ALGOR
103
do Centro. Termina o romance dirigindo sua furgoneta
para o desconhecido, acompanhado de Marta Algor,
Maral Aquino, Isaura Madruga e do co Achado. Ao se
deparar com personagens da caverna real encontrada no
subsolo do centro comercial, viu como quem olha num
espelho, a imagem do seu futuro. Decidiu que era tempo
de tomar as rdeas do seu prprio destino. Partiu ento
sem rumo, vida afora, levando com ele tudo o que de
mais caro tinha: sua amada, sua flha e genro, seu co
e sua furgoneta. Cipriano Algor a personagem central
da narrativa, representando no apenas uma vtima do
sistema capitalista crescente, mas o prprio produto que
est sendo rejeitado pelo Centro em favor do uso de novos
produtos com novas tcnicas. Ele ainda feito de barro,
como se fosse descendente direto de Ado, ao passo
que os interesses do Centro j esto direcionados aos
produtos feitos de plstico, ou seja, descartveis. Pode
ser considerado uma espcie de deus que ainda acredita
em um Ado moldado pelas mos divinas do oleiro, porm
com um diferencial: este oleiro no abandona nem vira as
costas para suas criaturas. O trabalho de oleiro tem para
ele uma dimenso transcendental. Portanto, o grau de
introspeco deste personagem intenso, j que o mesmo
percorre quase todo o romance lutando para dissimular
suas crises existenciais. A insegurana que o toma a
partir do momento em que se percebe inativo perante
o sistema (Centro), impede-o at mesmo de assumir
seu amor por Isaura Madruga; esse sentimento s ser
revelado flha e ao genro, aps sua descida ao subsolo
do Centro. Mas no so apenas esses fatos que fazem de
Cipriano Algor personagem central deste romance. nele
que todas as tenses se criam, seja de ordem sentimental
(o romance com Isaura), ou de ordem ideolgica (viver
ou no numa caverna). Segundo sua flha Marta, ele
um grande apreciador de enigmas. Seu dilema maior
que sabe que o tempo passado, representado por ele e
pela olaria, havia chegado ao fm, mas ele no pertencia
ao futuro representado pelo Centro. Seu enigma o
enigma das pessoas que se sentem estranhas, com o
sentimento de no estarem de todo no mundo em que
vivem: sem futuro e sem presente. Quando vai embora
com sua famlia na furgoneta e decide deixar os trezentos
CIPRIANO ALGOR
104 SALMA FERRAZ
bonecos na chuva, em frente ao museu em que agora se
transformara sua casa e a olaria, provoca a destruio
de suas criaturas. Esses bonecos no so os soldados do
Imperador da China, no contaro a histria de nenhum
passado, no sobrevivero ao seu tempo. O p deve voltar
ao p. No haver den, nem lembrana dele. Cipriano,
protagonista deste romance, age de uma maneira
opostamente paralela ao homem da caverna de Plato:
onde um sobe, o outro desce, onde um sai, o outro entra.
A maior oposio presente nesse paralelismo o fato de
Cipriano no comear a pregar as novidades que viu, as
descobertas que fez e, por isso, no ser assassinado pelos
seus ouvintes.
Essas pessoas somos ns.
CLARA (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Ocupa o cargo de
secretria da companhia. Ela vive um relacionamento de
amor impossvel com Francisco, o que denota um toque de
romantismo em meio s tenses da disputa pela empresa.
A personagem sofre muito com o desaparecimento do
seu grande amor, chegando a afrmar que seu corao
de carne e sangra todo dia. Clara representa o papel da
mulher na sociedade contempornea, principalmente na
rea profssional, pois no foi atrs de seu amor porque
tinha tarefas do trabalho a realizar. Esse relacionamento
amoroso confgura-se como pardia s biografas
franciscanas tradicionais, nas quais Clara estabelece
com Francisco uma convivncia que, embora ntima,
encarada puramente como espiritual. Sempre mostrada
como fel amiga e confdente do Poverelo, ela tida pela
tradio como Santa Clara a fundadora das Filhas da
Pobreza, ordem feminina dos franciscanos. No texto de
Saramago, porm, ela no aparece como fundadora dessa
ordem. Com relativa expresso na trama, justamente pela
estria de amor impossvel, seu romance com Francisco
apresentado de forma direta. Logo no primeiro encontro
dos dois, Clara faz questo de revelar seus sentimentos.
Nas cenas em que h o encontro dos dois amantes,
criada uma expectativa para o leitor imaginar o que
pode estar permeando o pensamento de ambos ou o
que possivelmente estaria acontecendo. Isso pode ser
CLARA
105
verifcado principalmente no trmino da primeira cena em
que o casal se reencontra: as luzes abaixam, enquanto,
na escurido, um se aproxima do outro. Em todas as
cenas nas quais fgura, Clara, talvez impulsionada pelo
sentimento, uma das nicas personagens que apiam
Francisco no decorrer da trama. No desfecho a primeira
a decidir segui-lo na nova deciso. Julga ser a nica coisa
que Francisco conseguira ganhar na sua segunda vida:
Ficarei ao teu lado, ao teu lado, foi sempre a que estive,
mesmo quando no sabia de ti.
CLUDIA (A Noite): estagiria, iniciante na profsso e no
emprego, e personifca os ideais do jornalismo. Encanta-
se com o esprito liberal de seu colega Torres e, movida
pela admirao ou, talvez, pelo amor que por ele nutre,
enfrenta os colegas, o chefe e at o diretor. Juntamente
com Torres, seu parceiro e cmplice na peripcia, e com
a equipe da ofcina, compe o grupo de esquerda que
almeja a mudana na poltica ditatorial at ento vigente.
A princpio tmida, ela vai crescendo e adquire grande
projeo no segundo ato.
A nossa primeira e nica obrigao ir averiguar o que
se passa e dizer. No temos outro dever.
COMANDANTE AUSTRACO (A Viagem do Elefante): De larga
experincia em campos de batalha da Europa Central.
Homem austero e imponente, que ameaa avanar
contra a caravana portuguesa para tomar o elefante, mas
desiste da ao militar e busca uma sada conciliatria.
ele o responsvel pela conduo da comitiva que leva o
elefante a Viena.
COMANDANTE PORTUGUS (A Viagem do Elefante): Militar
responsvel pela escolta portuguesa do elefante at
entreg-lo ao arquiduque de ustria. Caracterizado por
uma considervel sabedoria pragmtica e pelo respeito
dedicado tanto aos ofciais sob suas ordens (repetidas
vezes mostrou-se afvel no trato com os subalternos)
quanto aos colaterais. Ao longo da narrativa, se desenvolve
CLUDIA
106 SALMA FERRAZ
uma relao de amizade entre ele e o cornaca, com quem,
trava interessante debate religioso.
Sim, mas fizeste consideraes pouco amveis sobre jesus
cristo e a virgem que no caram nada bem no esprito das
pessoas aqui presentes...
COMENDADOR (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Pai de
Dona Ana, foi morto em um duelo com Don Giovanni
quando este se fez passar por Don Octavio (noivo de Dona
Ana) para entrar no quarto dela. O comendador, agindo
por meio de sua esttua, ressurge da morte para fazer
com que Don Giovanni pague por suas faltas, atravs de
uma maldio que supostamente o faria ir ao inferno.
Porm, em vez de representante da moral e da justia
divina, o comendador passa a ser uma incmoda esttua
que atrapalha o servio de Leporello. O insucesso de sua
maldio e o modo como Don Giovanni o ridiculariza
colocam em xeque a existncia de uma justia divina e a
moral que alguns dos personagens usam para condenar
Don Giovanni. Dirigindo-se Dona Ana exclama:
Vim para amaldioar e condenar s penas do inferno o
infame que te ofendeu. Mas as maldies parecem que
j no caem sobre as cabeas dos culpados e o inferno
talvez no exista ou talvez tenha fechado para sempre as
suas portas. As chamas apagaram-se, o mal livre.
COMISSRIO (Ensaio sobre a Lucidez): Tem cinqenta e sete
anos, mostra-se um homem tranqilo no que diz respeito
deteno de poder, pois comedido em suas atitudes.
um homem desconfado, crtico, inteligente, observador
e tem pleno domnio das palavras, adora a preciso
das mesmas e lida muito bem com conceitos. Inquieto,
empenhado e muito preocupado em compreender a
relao entre a mulher que no cegou, fato ocorrido
quatro anos atrs e com a epidemia do voto em branco de
agora. questionador, pois discute, a todo momento, as
ordens do ministro do interior, com quem se comunica
com o cognome de papagaio-do-mar. Mesmo assim, segue
as ordens risca, embora pense que elas no sejam
funcionais, para o caso dos brancosos. Porm, aps
COMENDADOR
107
suas observaes e o seu faro de detetive, percebe que a
mulher do mdico a quem querem acusar de ter liderado
os brancosos inocente, e uma pessoa fora do comum.
Defende a mulher do mdico em conversa com o ministro
do interior, afrmando que quem ela matara durante a
primeira epidemia era um abominvel violador. Informa
mulher do mdico que querem us-la como bode
expiatrio. fel a seus princpios, enfrenta o ministro
do interior que queria plantar provas que incriminassem
a mulher do mdico, dizendo a ele que ela era inocente.
Depois de defend-la, sabe o que o espera, mas olha-se no
espelho e surpreende-se: as rugas haviam desaparecido,
seu rosto estava sereno, seus olhos luminosos. Via
diante do espelho a imagem de um homem honesto que
havia passado por uma prova de fogo. Avisa a mulher
do mdico que iro publicar sua foto e do seu grupo no
jornal para tentar incrimin-la. Aconselha-a que fuja e
se esconda. Denuncia a farsa do ministro do interior ao
chefe da redao do jornal. Posteriormente faz a mesma
denncia ao diretor do jornal. Sua idia d certo, porque
mesmo o jornal sendo apreendido aps a publicao
de sua denncia, a matria fartamente fotocopiada e
distribuda nas ruas. Ao fnal, ele morto com um tiro
na cabea por aqueles que o usaram para investigar o
caso.
A pessoa a quem querem transformar em bode expiatrio,
com perdo da bvia impropriedade da expresso, a
senhora, e tambm, por tabela, possivelmente, o seu
marido...
CONCHA (Manual de Pintura e Caligrafa): Reiteradamente, o
narrador refere-se personagem Concha como a mulher
do mdico. A despeito de lhe ser conferido esse aposto,
nem sempre Concha se apresenta ao lado de seu marido
Ricardo nas reunies sociais que o narrador/pintor/H.
promove. Freqentemente fagrada pelo narrador H.
em firt ou animada conversa com Chico, enquanto seu
marido dispensa grandes atenes a Sandra. Entretanto,
o casal, que aparentemente vive uma relao aberta,
demonstra cumplicidade em ocasies em que um deles
se encontra em situao de confronto. Citamos o episdio
CONCHA
108 SALMA FERRAZ
que narra a discusso entre Ricardo e Antnio a propsito
de uma elocubrante idia de raptar Salazar e resistir ao
poder. No momento em que Antnio incita o mdico a
uma mobilizao a dois, Ricardo se zanga e Concha pe-
se ao lado dele, boa mulherzinha, e descompe Antnio. A
cumplicidade acolhedora de Concha segundo H., concha,
conchego nos faz pensar que essa boa mulherzinha, to
secundariamente posicionada no romance de estria de
976, contm em si o germe da outra annima mulher
do mdico, grande personagem feminina edifcada pelo
Ensaio sobre a Cegueira, romance que o autor produz
em 1995, sendo posteriormente reconduzida no Ensaio
sobre a Lucidez, romance de 2005.
CONDE (A Viagem do Elefante): Maior lavrador e latifundirio
da aldeia em que o comandante portugus e o boieiro
foram pedir uma junta de bois. Eles so levados por um
velho labrego ao palcio do conde; no o encontrando, o
comandante negocia os bois com o feitor do conde.
CONSERVADOR (Todos os Nomes): *Frio, calculista, irnico e
implacvel, sua fgura remete fgura de um ditador que
impe ordem e controla tudo devido sua grandeza e
imponncia. Como um devorador de mundos, ele tem
o governo absoluto de cada milmetro da Conservatria
sobrepujando a todos num ar de soberania e despeito.
Respeitado em demasia por todos, ele mesmo faz questo
de ostentar sua natural superioridade, como se observa
em uma de suas conversas com o Sr. Jos. A analogia
entre o conservador e Deus coerente j que os dois
so perfeitos, onipotentes, onipresentes e oniscientes.
Tanto o conservador como Deus conhecem o reino do
visvel e do invisvel. Tanto um como o outro so, do
ponto de vista do narrador, infalveis. Essa oniscincia e
onipresena divinas so reveladas muito claramente pelo
Sr. Jos em uma conversa com a senhora do rs-do-cho
direito, quando ele compara seu chefe (o conservador)
a um verdadeiro Deus todo poderoso que est em toda
a parte, sabe de cor e salteado os nomes de todos que
nasceram, bem como dos que morreram e, mais ainda,
daqueles que esto por nascer. Por outro lado, no fnal
da trama, a atitude do conservador de perdoar o Sr. Jos
CONSERVADOR
109
pelas irregularidades cometidas, surpreende, j que
era um sujeito implacvel que no admitia erros nem
desobedincias, e acaba passando com certa tranqilidade
por cima das faltas do subalterno. O fato revela que ele
no era to onisciente quanto deixava transparecer, pois
diante da possibilidade de ser desmascarado e com medo
de perder o controle absoluto de tudo, decide tornar-se
cmplice do Sr. Jos. Constatando que o caos j estava
efetivamente instaurado, o mais conveniente para ele
era ter o Sr. Jos do seu lado, submisso, agradecido, e
acatando as suas ordens como de costume. Essa atitude
do conservador no foi de generosidade, nem a de um pai
que perdoa o flho prdigo, mas a de um sujeito astuto,
que sabe tirar vantagem das situaes e cujo nico
objetivo continuar tendo o total domnio sobre todas
as coisas. **Dentro dos limites da Conservatria Geral,
o conservador aproxima-se de Deus pela onipotncia
(est no topo da pirmide que representa a diviso de
tarefas), a onipresena (tem acesso a todos os lugares)
e a oniscincia (sabe de tudo sobre o trabalho e quer
saber sobre os funcionrios). Descobre as atividades
paralelas do Sr. Jos, mas no o impede, deixa que ele
prossiga. Depois de ter visto Jos entrar na calada da
noite no labirinto de arquivos, toma uma deciso que vai
de encontro a toda a tradio logstica da Conservatria:
no separar mais os vivos dos mortos. Isso poder
demorar anos, mas comear a ser feito enquanto ele
for o conservador. Depois de ter lido o dirio de Jos,
pede que este esclarea pontos obscuros da narrativa.
No o pune, na verdade, premia Jos com a possibilidade
de deixar a Mulher Desconhecida viva nos registros
burocrticos. ambgua a sua atitude, pois transita
entre algum que se solidariza com um subalterno que
faz aquilo que ele tambm faz, e algum que quer silenciar
um funcionrio que cometeu muitas infraes que, se
descobertas, poderiam manchar o nome e a reputao
da Conservatria Geral. O prprio autor analisa essa
situao em As Intermitncias da Morte e enuncia que o
conservador resolveu reunir num s arquivo os registros
e os nomes de vivos e mortos, alegando que s juntos
podiam representar a humanidade, e que a humanidade
deveria ser entendida como um todo, independente de
CONSERVADOR
110 SALMA FERRAZ
lugares, registros de vivos e mortos. O autor caracteriza
este personagem como sensato e ousado conservador
de papis da vida e da morte, para quem os vivos e os
mortos no deveriam ser jamais separados.
Impossvel, a nica pessoa, aqui, que no comete faltas,
sou eu [...].
CONSERVATRIA GERAL (Todos os Nomes): O primeiro
pargrafo do livro Todos os Nomes descreve seu aspecto
fsico. rgo altamente burocrtico de um pas no
especifcado, a Conservatria tem em si todos os
documentos de todas as pessoas, com todos os nomes
daqueles que so registrados. Uma parte dos servios
dos funcionrios separar os arquivos das pessoas que
continuam vivas daquelas que j morreram. Os arquivos
desse segundo grupo so guardados em depsitos dentro
da prpria Conservatria, entregues aos ratos, s traas
e ao tempo. A perda sistemtica de tais arquivos de
carter fundamental para a manuteno da prpria
instituio, pois no haveria espao para todos os
nomes para todo o sempre. O trabalho altamente
estratifcado: a base da pirmide constituda pelos
auxiliares de escrita cargo ocupado pelo protagonista
Sr. Jos; passando por subchefes, chefes de subchefes e
chefes destes, a pirmide culmina no Conservador Geral,
que possui todas as qualidades de Deus (oniscincia,
onipresena, onipotncia) e que, por vezes, age de
acordo com tais qualidades, mas, por outras vezes,
deixa aforar uma das mais humanas caractersticas (a
curiosidade), demonstrando que seus plenos poderes
no so to plenos. Enquanto a Conservatria tem a
funo burocrtica de arquivar informaes virtuais no
papel, sua contrapartida o Cemitrio Geral (que possui
semelhanas arquitetnicas com a Conservatria), onde
so arquivados os corpos, os quais se necessitavam da
burocracia enquanto vivos, continuam necessitando
depois de mortos. A Conservatria Geral acaba sendo
uma metfora contempornea s trs parcas, ninfas
gregas responsveis pelo nascimento, amadurecimento
(complicaes durante a vida) e morte dos humanos,
dos no-deuses uma tecia, uma fava e a outra cortava
CONSERVATRIA GERAL
111
a linha da vida. Afnal, o registro de nascimento chega
novo, com o passar do tempo vo se acumulando na
mesma pasta certides, diplomas, requerimentos, at o
dia em que chega o registro de bito e todo o arquivo
destinado ao depsito, ao arquivo-morto (por assim
dizer), e o ser humano retorna de onde veio: o p. Esta
Conservatria lembra em muito a Biblioteca de O Nome
da Rosa de Umberto Eco, bem como a Biblioteca de Babel
de Borges.
CORNACA (A Viagem do Elefante): Vindo de Goa, na ndia, tratador
do elefante Salomo na corte de Dom Joo III, em Belm,
Portugal. Originalmente chama-se Subhro, que em bengali
signifca branco, mas a mando do arquiduque Maximiliano
passa a se chamar Fritz. Conforme as palavras do
narrador, j ao incio da narrativa, o cornaca uma espcie
de alterego do elefante. Desempenha certo protagonismo,
ocupando papis importantes e participando de dilogos
interessantssimos nos acontecimentos marcantes da
aventura: ele quem guia o elefante durante toda a
viagem e orienta a caravana para o bom andamento do
trajeto. Alm disso, se envolve em incidentes religiosos.
Em uma parada para descanso, Subhro expe parte da
cultura religiosa hindu aos soldados e compara aspectos
da histria da gerao de Ganeixa com a da gerao
do flho da virgem Maria, personagem do cristianismo.
o cornaca, tambm, quem trava com o comandante
portugus um dilogo sobre a virgem, defendendo ser ela
a quarta personagem da trindade crist. Com o episdio
do milagre de Salomo em Pdua, quando o elefante se
ajoelha perante a baslica, o cornaca decide vender plos
do elefante, prometendo que tal soluo propicia a cura
da queda de cabelos. Sua contraveno descoberta pelo
arquiduque, que o censura severamente. Sua redeno
surge com o salvamento de uma menina de cinco anos,
quando esta estava prestes a ser pisada pelo elefante em
Viena.
COSTA (Histria do Cerco de Lisboa): Funcionrio da editora em que
o revisor Raimundo Silva trabalhava. tambm a pessoa
que supervisionava o trabalho de Raimundo, pois era ele
quem recebia as revises quando prontas. A efccia
CORNACA
112 SALMA FERRAZ
sua principal caracterstica. Passa a no mais ser chefe
de Raimundo a partir do momento em que Maria Sara
designada para esse cargo, justamente por causa do no
escrito pelo revisor. Costa um personagem impertinente,
sempre preocupado com a produo (que, por sinal, a
sua funo), a qual supervaloriza como carro-chefe da
redao. Ele compara a importncia do goleiro de um
time de futebol produo da editora: se o guarda-redes
for ruim, o campeonato estar perdido, e se a produo
atrasar a sada do livro, o prejuzo ser certo. Ele vai
pessoalmente casa de Raimundo Silva para buscar as
provas da Histria do Cerco de Lisboa, e retorna muito
feliz por sentir que sua misso fora cumprida e o livro
seria impresso no prazo. Contudo, aps duas semanas,
os dois se encontram na editora: Costa sente-se trado
e questiona o revisor, referindo-se palavra no que
Raimundo havia inserido propositalmente no texto,
alterando a narrativa histrica e causando editora um
grande problema. Como Costa era o responsvel pela
produo, confara no revisor a ponto de no verifcar as
provas fnais antes de meter o livro na mquina, e sentiu-
se muito ofendido por ter sido enganado daquele jeito.
Mas, apesar de tudo, fcou satisfeito pelo fato de a editora
no despedir o revisor, sinal de que reconhecia o valor dos
trabalhos prestados anteriormente por aquele homem.
Esse ato tambm demonstra que, de certa forma, Costa
j havia perdoado o senhor Silva. Entretanto, em outra
oportunidade, Costa aproveita para alfnetar o revisor ao
perguntar se ele tambm teria colocado no em outro
livro revisado.
Por que que me fez uma coisa destas, senhor Silva...
COURACEIROS (A Viagem do Elefante): Guarda pessoal do
arquiduque de ustria. Responsveis pela segurana da
comitiva real, da qual passam a fazer parte o cornaca
Subhro e o elefante Salomo, que tero os nomes mudados
para Fritz e Solimo, respectivamente. Ao encontrarem
com os solados portugueses em Castelo Rodrigo para
receber o elefante, o qual devero levar em segurana at
Valladolid, criam um impasse diplomtico, resolvido pelo
alcaide. O incidente quase coloca Portugal e ustria em
guerra.
COURACEIROS
113
CRIADA DE HOTEL (Ensaio sobre a Cegueira): A primeira
pessoa a entrar no quarto quando a rapariga dos culos
escuros comeou a gritar no momento em que percebeu
que havia fcado cega. Parece detalhista em suas funes
e tambm quando descreve algo.
CURA (A Viagem do Elefante): Personagem caracterizada
comicamente como sendo de avanada idade e fcida
corpulncia, e conhecida pelo mau humor com que
acorda quando pessoas vm lhe despertar do sono.
o padre, o reverendo da primeira aldeia visitada no
trajeto da caravana do elefante. Quando o procuram na
igreja alegando tratar-se de assuntos srios, com o
desabamento do teto da igreja que ele logo se preocupa.
Notifcado sobre o boato de que o elefante Salomo seria
um deus, toma a resoluo de realizar, acompanhado de
aldees, um ritual de exorcismo do elefante, em defesa
da religio catlica apostlica romana. Mas alega ao
comandante portugus que se trata de benzimento para
boa viagem.
No me venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos
e d mais ateno ao que eu digo na igreja, apontar o
caminho recto misso minha e de mais ningum,
lembra-te de que quem se mete por atalhos, nunca sai de
sobressaltos.
CURA
115
D
117
D. JOO V (Memorial do Convento): Rei de Portugal, apresentado
inicialmente com menos de 22 anos, moreno, fgura
masculina repressora e machista. O monarca esnoba
a fgura da rainha enquanto tira proveito sexual de
outras mulheres, inclusive freiras, atravs de relaes
extraconjugais. Personagem factual/histrico que, no
romance, ter uma caracterizao pouco grandiosa. Sua
ndole de um homem deslumbrado que sonha com a
grandeza de monumentos como o convento de Mafra,
sem se preocupar com o aspecto moral. Faz um voto que
se a rainha gerasse um flho, ele construiria o convento
de Mafra, o que realiza com o sofrimento de mais de
seiscentos homens que trabalham como escravos na
obra. O recrutamento desses homens feito de maneira
desumana, violenta e arbitrria. Milhares de famlias so
desintegradas e centenas de vidas ceifadas para satisfazer
a ambio de um nico homem: o Rei de Portugal.
A sagrao da baslica de Mafra ser feita no dia vinte e
dois de Outubro de mil setecentos e trinta, tanto faz que o
tempo sobre como falte, venha sol ou venha chuva, caia a
neve ou sopre o vento, nem que se alague o mundo ou lhe
d o tranglomango.
DAGOBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos,
e a injustia, j que oprimiam e escravizavam todos
os trabalhadores. Dagoberto tratava como malandros
os homens que lutavam pelas oito horas dirias de
trabalho. Praguejava dizendo que a malandragem havia
de arrepender-se da greve e que isso lhes custaria muito
caro. Nas terras dele ou trabalhavam de sol a sol, ou
morreriam de fome.
[...] nas minhas terras mando eu, que sou o dono delas [...].
DAMIO (A Noite): Compositor manual, s aparece no segundo ato.
do grupo de Jernimo, o chefe da tipografa. Destemido,
no se intimida com o autoritarismo do diretor, nem
permite que ele ponha panos quentes situao, mesmo
quando usa um tom paternal.
D. JOO V
118 SALMA FERRAZ
Estamos a falar-lhe a srio, senhor director. Ainda no
percebeu que estamos a falar a srio?
DAMIO (Memorial do Convento): ele quem mais refete sobre
a morte do colega de trabalho, Francisco Marques,
demonstrando, apesar da simplicidade, ter um pouco
de flosofa. Para Damio, se Deus fosse mais justo teria
feito os caminhos mais rasos e as pedras no demorariam
tanto para chegar ao lugar desejado. Representa aqueles
que mesmo estando no meio de pessoas humildes, devido
situao meramente social, por pertencer classe dos
pobres miserveis trabalhadores de Mafra, no deixam
de ter viso sobre os acontecimentos.
DAMIO DE GIS (Que Farei com este Livro?): Cronista, esteve
preso e guarda-mor da Torre do Tombo. Personifca a
sabedoria dos que viajam pelo mundo e tambm para
alm das fronteiras do seu tempo. Retornou ao entardecer
da sua existncia. Foi um dos poucos que se mostrou
disposto a auxiliar na publicao do livro. Alertou sobre
os contedos, as tendncias e sobre as leituras polticas
que da obra seriam feitas. No podendo mais viver
curvando-se ao poder, s poderia ter o fm que teve.
No vos disse eu logo que o vosso livro barca onde cada
qual quer viajar sem companhia?
DELEGADO DO P.D.D. (Ensaio sobre a Lucidez): Homem
poltico muito pedante e astuto. Por possuir um carter
esquemtico e organizado, toma muito cuidado com
suas palavras. Todos os movimentos da reunio ele quer
que fquem registrados em ata. Pode-se dizer que oscila
entre certo cepticismo e a ironia. Vivia se digladiando,
constantemente, com o delegado do partido do meio.
Requeiro que fique exarado na acta o meu mais vivo
protesto, como representante do partido da direita, contra
os termos desrespeitosos e contra o inaceitvel tom de
chacota com que o senhor secretrio acaba de se referir
aos eleitores, esses que so os supremos valedores da
democracia, esses sem os quais a tirania, qualquer das
que existem no mundo, e so tantas, j se teria apoderado
da ptria que nos deu o ser.
DAMIO
119
DELEGADO DO P.D.E. (Ensaio sobre a Lucidez): Ao contrrio
do delegado do partido do meio (p.d.m), demonstra um
carter otimista, apesar de reservado. Praticamente no
tem voz ativa quando se encontra com seus rivais. Suas
idias fcam mais ao nvel ideolgico do que factvel.
Nesse sentido, h a representao de um cenrio poltico
onde quem de fato manda a situao e quem est a
favor dela. A esquerda, portanto, uma voz solitria e
com pouca representatividade, uma vez que se abstm
de provocaes.
DELEGADO DO P.D.M. (Ensaio sobre a Lucidez): um homem
pessimista, ctico, irnico, porm extremamente realista.
Est de olho no governo, mesmo sendo a favor da situao.
um homem precavido e cauteloso com seus gestos.
Razo tinha eu, observou o delegado do p.d.m., a
absteno ser terrvel, macia, depois disto ningum
se vai entender, a nica soluo est na repetio das
eleies, [...].
DESERTO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Lugar central
na trama, pois ali ocorrem os momentos cruciais da
narrativa. Deserto no so apenas grandes extenses de
areia, mar, dunas: h desertos verdes como na Galilia,
os grandes campos sem cultivo, os lugares onde no
habitam homens. Jos e Maria caminham solitariamente
para Belm. Jesus, Deus e o Diabo encontrar-se-o
no deserto do mar. No deserto, Deus exige que Jesus
sacrifque sua ovelha. No deserto, Jesus fca nu porque
ali s possvel ir dessa forma. Durante os quarenta
dias que durou a tentao de Jesus no meio do mar
deserto, no houve pescaria, o nevoeiro cobria tudo e os
pescadores no pescaram um peixe sequer.
DEUS (Caim): Perfeccionista, mas no perfeito. E como ser
mostrado em vrios momentos da narrativa, no
onisciente, nem onipotente, nem onipresente. s
vezes aparece em trajes luxuosssimos e repletos de
smbolos (quando expulsa ado e eva do paraso), em
outras apresenta-se como nuvem (quando presencia
a mortandade do sinai), e ainda como reles viajante
DEUS
120 SALMA FERRAZ
(quando se hospeda na tenda de abrao) e at mesmo em
trajes leves para trabalhar (em visita a no). Insiste em
aprimorar a sua criao, dando assim lngua e umbigo
a ado e eva. Depois do assassinato de abel, aparece a
caim para tomar satisfaes e entra em longo debate
com o homicida. Condena caim a vagar pelo mundo,
mas antes faz uma marca na testa dele, como forma de
proteo. Durante as viagens, caim se encontra com deus
e o v vrias vezes, apesar deste no reconhecer caim. No
penltimo encontro, deus reconhece caim e ordena a no
que o aceite na arca. Passado o dilvio, deus descobre
que caim foi responsvel pela morte de todos dentro da
arca e percebe que, com essa ltima afronta de caim, ele
se transforma, por extenso, no exterminador de toda
a humanidade que poderia existir no futuro. Em vrios
de seus desgnios, deus auxiliado por um squito de
anjos que se mostram muito incompetentes. Temos, por
exemplo, o querubim azael, que no afasta ado e eva,
o anjo que se atrasa para impedir que abrao degole
isaac e os anjos portadores de notcias a job que acabam
contando as mesmas para caim.
Dobrou-se minha autoridade, reconheceu que o meu
poder absoluto, ilimitado, que no tenho que dar contas
seno a mim mesmo nem deter-me por consideraes de
ordem pessoal e que, isto digo-to agora, sou dotado de
uma conscincia to flexvel que sempre a encontro de
acordo com o que quer que faa.
DEUS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): *Deus, personagem
pelo qual o autor tem verdadeira obsesso em toda sua
obra, aparece fsicamente de duas formas no livro. A
primeira, quando Jesus o encontra no deserto Deus
est sob a forma de uma nuvem alta da altura de dois
homens; assemelha-se a uma coluna de fumo que gira
lentamente sobre si mesma, o que recorda as aparies
dele no Antigo Testamento. A segunda, quando Jesus
o reencontra, dessa vez, na barca nesta cena, temos
uma descrio fsica e humanizada de Deus, de carne e
osso, como sendo um velho grande de barbas longas e
espalhadas sobre o peito, com os cabelos longos, a cara
larga e forte e a boca espessa; veste-se como um judeu rico,
DEUS
121
de tnica comprida, cor de magenta, um manto azul com
mangas, ladeado de tecido de ouro. O narrador descreve
seu olhar como o imenso-olho negro de Deus. Faz parte do
chamado squito dos disformes, j que, segundo o Padre
Bartolomeu Loureno Gusmo de Memorial do Convento,
Deus maneta, porque as Escrituras s falam daqueles
que se sentam direita de Deus, portanto, segundo o
padre, Deus no teria a mo esquerda. um exigente
diretor da trama que no permite que nada se altere
e que exige o mximo do protagonista Jesus. Quanto
aos aspectos psicolgicos de Deus na obra, fca muito
marcante sua imagem de um frio estrategista, infexvel,
ganancioso, cruel, intolerante, impiedoso, sdico, tirano,
sanguinrio, manipulador, perverso, irnico, obcecado
pelo poder e desptico, ou seja, este Deus um Deus falho
e possui uma personalidade distorcida e sinistra; , em
verdade, o grande vilo do romance. Ele perde a essncia
divina que o constitui e torna-se um mero rei a governar
um imprio sob um regime ditatorial. Essas pssimas
caractersticas so mostradas de vrias maneiras. No
primeiro encontro com seu flho no deserto, por exemplo,
quando Jesus tenta salvar a ovelha dizendo no querer
mat-la, Deus praticamente o obriga a sacrifcar a ovelha,
no aceita ser contrariando, j que quer aquela ovelha
que Jesus tanta ama. Ao presenciar a morte da ovelha,
Deus suspira de satisfao. Aqui o sistema fgurativo
perfeito: o sacrifcio da ovelha uma prolepse do
sacrifcio de Jesus. O momento era delicado, mas no h
piedade, ao contrrio, as palavras de Deus so frias, em
tom imperativo, e depois se satisfar de prazer quando
Jesus matar a ovelha. Manipula os homens a seu bel-
prazer, como se esses fossem marionetes. Isso pode ser
constatado na fgura de Jesus, flho de dele e de Jos. A
marca mais evidente do lado sanguinrio de Deus dentro
do romance aparece quando descreve o rol de mortes
advindas do nascimento e evoluo do Cristianismo, num
verdadeiro dicionrio de sangue; mas, para Deus, parece
ser apenas uma brincadeira extremamente enfadonha.
A descrio do Templo de Jerusalm lembra um flme
de terror, com sacrifcios, sangue e mais sangue, uma
vez que nenhum sacrifcio o bastante para Deus. A
imagem de Deus aparece distorcida, talvez como crtica,
DEUS
122 SALMA FERRAZ
no a Deus, mas religio Crist, que se construiu a
partir de mortes e mais mortes In Nomine Dei. O autor
usa de ironia e brinca com a idia de Deus ser muito
mais refexo do homem do que o seu oposto, tamanha
so as falhas que apresenta neste Deus, que no quer
fundar o Cristianismo simplesmente para salvar o
homem, mas sim para ampliar seu domnio, deixar de
ser Jeov dos Judeus para ser Deus do mundo todo.
Deus no tem remorso. onisciente e parece ser o nico
a ter realmente livre arbtrio, j que Jesus e o Diabo/
Pastor esto predestinados pelos sculos dos sculos
a cumprirem rigorosamente o papel deles na trama
arquitetada por Deus. O Anjo afrma em conversa com
Maria que a palavra que mais sai da boca de Deus no
o sim, mas o no. Divide a paternidade de Jesus com
Jos, o carpinteiro. Seu livre arbtrio s pode ser abalado
se o Diabo deixar de ser o Diabo, j que, sem ele, Deus
deixaria de ser Deus. O fm de um seria o fm de outro,
por isso o autor coloca uma misteriosa voz (o narrador
que se personifca) alertando sobre os heternimos, o
que nos remete a Fernando Pessoa e sua vasta criao
heteronmica.
**Deus se caracteriza como uma personagem complexa,
com toque da construo helnica das divindades. o
lado humano, to presente nas divindades gregas, que
tambm sustenta o Deus de Saramago. Esse Deus deixa
de lado os vendavais e pirotecnias to presentes na bblia
para mostrar-se ao menos para Jesus e o Diabo com
a face dos homens, de um rico judeu. Os deuses usam os
homens como ferramentas, animais de carga, soldados
descartveis. Deus mente e manipula os homens, como
o faz com sua prpria lei, colocando em xeque a sua
prpria honra se que honra algo que cabe aos
deuses. Na ladainha das mortes, Deus cita nomes como
se fossem nmeros de bingo, completamente enfadado.
Para o Deus maquiavlico de Saramago, que, como d a
entender o Pastor, inventou o pecado, o castigo e o medo,
todos so iguais e indiferentes. Esse Deus, que no tem
remorsos, no parece se tocar pela tristeza dos homens
e s se mostra triste quando constata os limites de seus
poderes. um Deus que no permite que dele se duvide,
que exige como o Deus bblico sangue para alcan-
DEUS
123
lo. Tirando a capa cerimonial das personagens, elas se
mostram vestidas de traos humanos, como os deuses,
heris e semi-deuses gregos. A cena da barca alcana o
poltico na medida em que expe os estratagemas de um
governo autoritrio e total. No seria exagero dizer que
a releitura saramaguiana invade tambm O Prncipe de
Maquiavel. maquiavlico esse Deus insatisfeito com a
condio de rei de um povo to diminuto como o o povo
hebreu e que deseja ampliar seus domnios. Para tanto
martiriza seu prprio flho, como assim o faria Abrao
(ou como fez na deciso de faz-lo, ainda que o cutelo
no tenha cortado a carne do flho), e aceita inclusive
que se subvertam as leis que ele mesmo criou. Para que
se atinjam os fns, qualquer meio lcito, ainda que esses
meios signifquem fazer uso das artimanhas do Diabo
e manipular as pessoas. Essa mesma psicologia de
massas usada por Deus quando este apresenta ao seu
flho o papel que lhe destinou: O de mrtir, meu flho, o
de vtima, que o que de melhor h para fazer espalhar
uma crena e afervorar uma f. esse papel de mrtir,
tambm, o cerne de toda a moral judaico-cristo, conforme
argumentou Nietzsche em seu livro A Genealogia da
Moral; ou seja, a compreenso de Deus sobre o papel do
mrtir na construo de uma identidade o discurso que
estabelece as relaes identitrias do povo judeu e, por
extenso, do cristianismo que se estabelecer a partir de
Roma. O Deus amoroso dos Evangelhos d lugar ao Deus
cruel e sanguinrio. Sero quase seis pginas de um
inventrio de mrtires e martrios que Deus apresenta
a Jesus, necessrios para a edifcao do seu reino. H
um momento crtico em que Deus, cansado da longa
exposio, pergunta ao seu flho se este j no est farto de
saber de tantos mortos. o atesmo de Saramago levado
ao extremo da ironia, afnal, qual a necessidade de tantas
mortes, tanta dor? Que glria esta, seno a glria de um
Deus psicopata? O princpio do livre arbtrio destrudo,
na medida em que o autor apresenta um Deus senhor
dos tempos, conhecedor de toda a histria e inaltervel
em suas decises, como quando Jesus afrma, depois de
conhecer o futuro, que no deseja mais a glria, que no
quer mais participar dos planos divinos. Revolta esta a
que Deus responde que quer mais poder. No fnal, Deus
DEUS
124 SALMA FERRAZ
frustra os planos de Jesus, que queria morrer apenas
como Rei dos Judeus, ao aparecer no momento fnal da
crucifxo e identifcar Jesus como seu flho amado. Na
cena da barca, o Diabo/Pastor faz um pedido de perdo
quase que teolgico, ao qual Deus responde:
No te aceito, no te perdoo, quero-te como s, e, se
possvel, ainda pior do que s agora, Porqu, Porque este
Bem que eu sou no existiria sem esse Mal que tu s [...]
enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem,
necessrio que tu continues a ser o Mal, se o Diabo no
vive como Diabo, Deus no vive como Deus, a morte de um
seria a morte do outro.
DIABO/PASTOR (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): o
mesmo personagem do verbete Anjo um homem alto e
forte, Anjo, anunciador, pedinte, Diabo/Pastor, Lcifer.
O narrador cria e alimenta uma certa dvida proposital
no leitor, que fca confundido com as aparies do Pastor
e do Anjo e no sabe ao certo onde termina um e comea
o outro, quando na realidade so dois lados da mesma
personalidade. No um enganador do homem, nem um
fantico inimigo de Deus, mas, s vezes, um parceiro dele,
embora extremamente moderado e menos sentimental.
Diabo e Deus so as duas faces de uma mesma moeda;
Deus alia-se ao Diabo para conseguir o que quer, j que
quanto maior o domnio de um o ser tambm o do outro.
O Diabo/Pastor no um mau sujeito, pois se revolta
contra as injustias de Deus em vista dos sacrifcios de
animais e muitas mortes sem sentido. Sabe e conhece
tudo. Como um mestre sbio, apresenta a Jesus muitos
questionamentos ticos e teolgicos e prepara seu discpulo
Jesus para o desencontro com Deus no mar. Quando se
encontra pela primeira vez com Jesus, em dilogo com
este responde que o conhece desde a eternidade. o
iniciador e grande mestre de Jesus que o acompanha
desde a hora da concepo. Tenta, inutilmente, ensinar
ao flho de Jos a no sacrifcar ovelhas, mas Jesus falha,
assinando assim seu destino, j que a morte da ovelha
uma prolepse de sua prpria morte. Ao presenciar Jesus
sacrifcando a ovelha que tanta amava, Pastor lhe diz que
ele no aprendeu nada e manda seu discpulo embora.
DIABO/PASTOR
125
No ele quem tenta Jesus, pelo contrrio, Jesus
tentado por Deus primeiro no deserto e depois na barca,
at o limite de suas foras. Como o leviat, Pastor/Diabo
surge das guas para participar do encontro entre Deus
e Jesus. Na barca, Pastor ocupa o lado direito de Jesus,
enquanto Deus est esquerda, o que aponta para uma
nova trindade. Segundo Jesus, o Diabo parece saber mais
do que Deus. Quando [...] se diria que ia chegar do outro
lado [...], inesperadamente, o Diabo chega por estibordo
o lado direito da embarcao. Ora, estando Deus no
banco de popa, de frente para Jesus, voltado para a
frente do barco, o Diabo chega pela direita de Deus, e ali
se senta. o Diabo que est direita de Deus-Pai Todo-
Poderoso, no Jesus. E o Diabo se instala na borda da
barca. to pouco homem (que fca fora da barca, na
margem) to pouco Deus (que fca dentro da barca), est
na borda, no limite entre ambos. No bastasse, senta-
se exatamente entre Jesus e Deus, entre homem (Jesus
ainda no aceitou sua divindade) e Deus, o centro da
balana, a parte neutra e no m, visto que Bem e
Mal fcam a cargo de Deus. E em sua neutralidade, nem
a barca pende nem para um lado, nem para outro.
Quanto ao Diabo, se destaca por sua marginalidade, pelo
seu trnsito entre os mundos. Ele vive margem e vem
da margem participando de maneira complementar aos
desgnios de Deus. at certo ponto adversrio, mas
nem de longe a encarnao ou fonte do Mal. Analisemos
sua estria na cena. Ele surge do silncio, incgnito, de
dentro do nevoeiro. Vem a nado, de dentro da gua a
gua aonde Jesus foi encontrar Deus, o elemento da
divindade , mas ainda no mesmo pargrafo o narrador
informa que ele veio de longe, da margem. Margem onde
se encontram os homens, onde a terra frme, segura, o
elemento da humanidade. Aqui fca outro detalhe para o
complemento oportuno do autor. Quando cita que o Diabo
veio de longe, esclarece que ele veio da margem, supondo
que o leitor poderia imaginar que esse longe fosse outro
lugar (ou plano). Tambm fca claro, pela sua chegada
resfolegante, que o visitante no era assim to ntimo
do meio aqutico (divino). J falamos de sua chegada
direita de Deus e de como se senta entre este e Jesus,
mas, quando observamos o Diabo surgir do nevoeiro, ao
DIABO/PASTOR
126 SALMA FERRAZ
longe, o encontramos em uma forma bestial o porco:
animal impuro para o judasmo. na barca sem dvida,
a cena mais importante do livro e talvez de toda a obra
do autor que o Diabo/Pastor, verdadeiro protagonista
desde desevangelho, pede humildemente perdo a Deus,
para impedir que o flho de Deus e do Homem termine
tragicamente morto na cruz e que tanta gente, no futuro,
venha a morrer por sua culpa e causa. Assim que se
instala, Pastor parece no se interessar com a conversa,
negando a afrmao de Deus e retomando, ao menos
na aparncia, o papel de antagonista, daquele que nega
a Deus. Mas o Diabo, ao contrrio de Deus, quem se
compadece de Jesus e dos homens, se mostra piedoso,
chega a oferecer-se para salvar toda a humanidade do
mal, do sofrimento, do pecado. ele, e no Jesus, o
Salvador dos homens. Aqui diz fnalmente: Que no se
diga que o Diabo no tentou um dia a Deus, revelando sua
face de Tentador, mas no dos homens e sim de Deus.
possvel conjeturarmos ainda a relativizao do bem e do
mal nessa cena da barca que aqui estamos analisando,
quando o Diabo/Pastor prope e tenta Deus aceitando
que este governe o mundo desde que seja perdoado e
recebido junto aos seus anjos mais fis. Em nome da
salvao da humanidade, Pastor abre mo de ser Diabo,
abre mo inclusive de ser Lcifer, o Archote, j que admite
estar na ltima e humilde fla dos anjos a servirem Deus,
alm de se reconhecer arrependido. O Diabo quer evitar
todo o sofrimento futuro da humanidade. Se na Bblia a
serpente tenta Ado no den, Satans (ou Deus?) tenta
J e o Diabo tenta Jesus no deserto, nesta obra o Diabo
tenta diretamente Deus. Sabem ambos, porm, que tal
proposta inaceitvel j que pe por terra a razo mesma
da existncia de Deus: No me aceitas, no me perdoas
indaga o Diabo. No te aceito, no te perdoo, quero-te
como s, e, se possvel, ainda pior do que s agora, Porqu,
Porque este Bem que eu sou no existiria sem esse Mal que
tu s [...] se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem,
necessrio que tu continues a ser o Mal [...]. No existe,
assim, um bem em si mesmo, da mesma forma como no
existe um mal em si mesmo. Ambos s so possveis na
alteridade, na relao com um outro. O Diabo redimido
defnitivamente pelo autor, que o transforma no salvador
DIABO/PASTOR
127
do Salvador, no salvador de toda a raa humana havida e
por haver, numa espcie de terceira pessoa da Trindade,
ou seria uma nova trindade agora s dupla Deus e o
Diabo, heteronimicamente atados. Mas Deus ri do pedido
do Diabo, no aceita seu pedido de perdo e o condena
a viver eternamente como um heternimo seu, j que,
segundo Deus, o bem que Ele representa nada seria sem
o mal que o Diabo . Se um deixar de existir, o outro
tambm desapareceria. Durante o romance recebe vrios
apelidos: Anjo, Anunciador, Pastor, Diabo, Inimigo,
Leviat.
preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue.
DIOGO DE COUTO (Que Farei com este Livro?): Soldado da
ndia, futuro cronista e autor de O Soldado Prtico.
Personifca os amigos fis, a quem Lus Vaz de Cames
podia confdenciar suas angstias. Exalta Cames para
as outras pessoas e as questiona por no conhecerem
Cames e sua obra.
Os melhores sonhos so os que se fazem com os olhos
abertos, no os da cegueira.
DIONSIO (Terra do Pecado): Filho mais velho de Maria Leonor e
Manuel Ribeiro. O garoto muito inteligente, estudioso
e orgulhoso por s-lo. brilhante principalmente em
Histria. uma espcie de dolo para a irm e sente-se
muito feliz ao poder esclarecer pequena curiosa alguns
dos porqus que ela interrogava. Porm fcava irritado
quando as questes fugiam de seu conhecimento de
menino. O garoto protegia a irm; mesmo quando sentia
medo dos papes, durante a noite, ele se encorajava para
poder alentar a pequena Jlia. Dionsio irritava-se com
as ordens da criada Benedita e aspirava crescer logo para
no ter mais que obedec-la.
DIRECTOR DA REDACO (Ensaio sobre a Lucidez): Fica
estupefato, pasmado ao saber que o homem que est
querendo denunciar toda a farsa orquestrada pelo
ministro do interior, para culpar a mulher do mdico, era
nada menos que um comissrio de polcia. Arruma um
estratagema para publicar em seu jornal a carta denncia
DIOGO DE COUTO
128 SALMA FERRAZ
do comissrio inocentando a mulher do mdico, para
enganar a censura. A publicao retirada de circulao
por ordens do governo. Mas, a despeito da proibio da
circulao dos jornais, o artigo publicado fotocopiado e
distribudo por jovens pelas ruas.
DOM JOO III (A Viagem do Elefante): Dom Joo III, o piedoso,
rei de Portugal e dos Algarves, esposo de Catarina de
ustria. quem decide dar o elefante como presente de
casamento ao arquiduque Maximiliano dustria. Para
tanto, envia uma comitiva a fm de entregar o animal.
Quase sempre aparece acompanhado pelo secretrio,
Pro de Alcova Carneiro, seu tutor intelectual. Ao fm
da narrativa, comunica a morte do elefante rainha, que
se retira para chorar.
DOMENICO SCARLATTI (Memorial do Convento): Msico
italiano, muito viajado por ter sido embaixador de Roma.
Tocava na casa do rei de Portugal onde conheceu e se
tornou amigo de Bartolomeu. um personagem tranqilo
e um pouco flosfco. Era o nico que entendia quando
o padre falava mais subjetivamente e refetia sobre as
possveis verdades defendidas pela Igreja.
[...] para que os homens possam cingir-se verdade,
tero primeiramente de conhecer os erros.
DOMINGOS (Levantado do Cho): Personagem pertencente
segunda gerao: tempo de perguntas. Quarto flho de
Domingos Mau-Tempo e Sara Conceio, irmo de
Joo Mau-Tempo, Anselmo e Maria da Conceio. Como
Anselmo, Domingos foi viver longe de Monte Lavre e
nunca mais deu notcias. Dele recorda pesaroso Joo
Mau-tempo, quando est para morrer.
DOMINGOS MAU-TEMPO (Levantado do Cho): Personagem
pertencente primeira gerao: tempo do silncio, ou seja,
ao tempo em que tudo se aceitava e nada se dizia. Casado
com Sara Conceio, pai de Joo Mau-Tempo, Anselmo,
Maria da Conceio e Domingos. sapateiro arvorado em
sacristo e canhoto. Deixava de trabalhar para ir beber
na taberna. um flho do vento, um malts. Inquieto,
DOMENICO SCARLATTI
129
muitas vezes aparenta ser uma criana, tamanho so os
caprichos que possui. Cobiou a sobrinha do padre e,
no auge de suas persistentes inquietaes, brigou com
o mesmo. Desprezava a famlia e batia na esposa; por
onde passava, bebia em todos os bares at cair e fugia
por no ter como pagar. Quando Sara da Conceio o
deixou, foi pedir perdo ao sogro; caiu ajoelhado e fcou
triste, mas por fm voltou a beber. No encontrava uma
razo particular para sua dor de ter nascido. Depois de
muito perambular pelas terras, passou a mo em uma
corda, embrenhou-se pelo olival e foi dar cabo de sua
vida enforcando-se em uma rvore em Monte Lavre.
[...] nenhuma terra escapar sentena, todas malditas,
condenadas e condenadoras [...].
DON GIOVANNI (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Don
Giovanni um conquistador que desdenha da moral e
que muito se orgulha de ter os nomes das duas mil e
sessenta e cinco mulheres que possuiu, anotados em um
catlogo. Quando esse catlogo roubado e queimado
por Dona Ana e Dona Elvira, Don Giovanni cai num
inferno terreno. O castigo que recebe no vem dos cus
e nem por seus pecados, mas sim por seu orgulho:
desmistifcado porque j no lhe resta mais nada. Ento
surge Zerlina, humilde camponesa que o conquista e
mostra-lhe como ser um homem comum, um simples
Giovanni, que sempre foi muito mais seduzido do que
sedutor. Don Giovanni provoca a esttua Comendador,
com seu discurso shakesperiano:
Se queres saber a minha opinio, o ser humano livre
para pecar, e a pena, quando houver, aqui, ouves-me?,
aqui na terra, no no inferno, s vir dar razo sua
liberdade. Nunca se pronunciaram palavras mais vs do
que quando se disse Deus te dar o castigo. Seria para
chorar se no fosse para rir.
DON OCTAVIO (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Noivo
de Dona Ana, entrava em seu quarto, noite, escondido.
Don Giovanni se faz passar por ele para tambm entrar
no quarto de Dona Ana, porm ela percebe a troca.
DON GIOVANNI
130 SALMA FERRAZ
Don Octavio mais um dos personagens que condena
moralmente Don Giovanni. Porm, talvez, amedrontado
pelo mito de Don Giovanni, nada faz para castig-lo. Em
todos os momentos, Don Octavio permanece junto com
Dona Ana e Dona Elvira e protegido por elas, at ser
desafado a duelar com Don Giovanni. Tenta escapar,
mas no consegue e morto. Sua fala para Don Giovanni
revela um pouco de sua personalidade:
Por falso e caluniador o que merecias era que eu te
atravessasse com minha espada, mas o desprezo das
pessoas honestas te matar, cada dia que vivas ser
como uma morte para ti.
DONA ANA (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Filha do
comendador e noiva de Don Octavio, permitia que
este entrasse em seu quaro noite, at que, certo
dia, Don Giovanni se fez passar por Don Octavio para
conseguir o mesmo. Dona Ana, junto com Dona Elvira,
so as personagens mais fortes da obra; no esperam
pela justia divina para se vingarem de Don Giovanni
e resolvem faz-lo da forma mais humana possvel:
desmoralizando-o e desmistifcando-o. Dona Ana mais
uma das personagens que hipocritamente usam a moral
para condenar Don Giovanni e tentar transformar a vida
dele num inferno. Mas, diferentemente de Dona Elvira,
Dona Ana no quer restituir sua honra, j que admite
levar seu noivo para o quarto, e muito menos vingar-se
de uma rejeio. O que a motiva a idia de vingar a
morte do pai.
Para matar um velho, Don Giovanni ainda serviu, mas
no para levar uma mulher ao paraso.
DONA CATARINA DE USTRIA (A Viagem do Elefante):
Rainha, esposa do rei Dom Joo III de Portugal. ela quem
sugere enviar o elefante como presente de casamento ao
arquiduque Maximiliano. Chora ao saber da morte do
elefante.
DONA ELVIRA (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Uma das
vtimas de Don Giovanni, o qual chega a casar-se com
DONA ANA
131
ela para t-la. Dona Elvira revela que possui bastante
engenho. Motivada pela rejeio que sofreu por parte de
Don Giovanni, ela se une Dona Ana para vingar-se,
sem esperar que os cus se motivem a faz-lo. Trocando
o catlogo de conquistas de Don Giovanni por outro em
branco, ela lhe tira o que mais precioso para ele e que
mais o identifca: sua fama de conquistador.
A tua apregoada vida de sedutor que uma falsidade
do princpio ao fim, um invento delirante, nunca seduziste
ningum, farejas como um co fraldiqueiro as saias das
mulheres, mas nasceste morto entre as pernas.
DOTAIM (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos trs ancies
que ela tinha recebido. Possui barbas e veste tnicas.
Desconfa que Maria esteja falando apenas uma parte da
verdade.
A verdade, sim, mas quem sabe se toda a verdade.
DOTAIM
133
E
135
ELEFANTE (A Viagem do Elefante): O animal tem a pela grossa,
cinza caf, salpicada de pintas e muitos pelos. Dom Joo
III, o piedoso, rei de Portugal e dos Algarves, esposo de
Catarina de ustria, decide dar o elefante como presente
de casamento ao arquiduque Maximiliano dustria. Para
tanto, envia uma comitiva a fm de entregar o animal.
Com essa personagem, Saramago revisita a questo da
animalidade, muito importante em obras anteriores, como
A bagagem do viajante e Objecto quase; e tambm o texto
experimental O Ano de 1993, em que o elefante aparece
como a mais terrvel arma de guerra. Em A Viagem do
Elefante essa imagem invertida, pois o animal descrito
como um ser pacfco, no obstante estar a servio dos
interesses nacionais portugueses e austracos.
ELIAS (A Segunda Vida de Francisco de Assis): o grande
antagonista da trama. Travar com Francisco o embate de
poder que vigorar durante toda a pea, principalmente
no segundo ato. Francisco, aps sua misteriosa volta
(segunda vida), deseja o retorno da Ordem fundada por
ele aos princpios de pobreza, e Elias quer que permanea
tudo como est, lutando ardorosamente para continuar
como Presidente da companhia. Apresenta-se como
um tpico dirigente exclusivamente a servio de sua
empresa; seus interesses resumem-se em mant-la rica
e produtiva, unicamente em busca de lucros. Ele passa a
ser a alma da empresa como se ela, atravs dele, ganhasse
forma humana. Extremamente inteligente e ardiloso na
conduo do processo de readmisso de Francisco, busca
no destruir, mas neutralizar a infuncia do fundador da
companhia. Francisco recebe um hbito e Elias manda
que ele o coloque em um cabide. Duas interpretaes
podem ser atribudas a esse ato: a primeira que a funo
de Francisco seria nula, ele no possuiria voz ativa, pois
o hbito uma das formas de representao da ordem
franciscana; a segunda interpretao uma metfora
de que esse gesto representa uma cruz quebrada, no
sentido de que a ordem perdera seu objetivo primeiro
que era de ajudar os necessitados. Elias sempre reitera
que Francisco no possui mais nenhum poder sobre
ele ou a companhia. Os discursos entre ambos deixam
transparecer as diferenas evidentes entre a Ordem
ELIAS
136 SALMA FERRAZ
primitiva e a atual companhia, entre o tempo antigo e
o tempo atual, entre o ideal primeiro da ordem e o novo
esprito capitalista reformador. Enquanto Francisco
freqentemente relembra os princpios evanglicos que
nortearam a fundao principalmente o do se queres ser
perfeito, vai e vende tudo o que tens, d aos pobres e ters
um tesouro nos cus, Elias representa o contrrio, pois
juntamente com Pedro, pai de Francisco e diretor geral,
deposita sua confana nos bens materiais e nos valores
terrenos e mundanos. Parece-nos que a fgura de Elias,
no foi escolhida por acaso pelo autor para desempenhar
o papel mais importante de antagonista. Segundo as
biografas tradicionais, Elias Bombarone fora institudo
dirigente da Ordem franciscana por ocasio da morte
de Pedro Cattani, primeiro responsvel empossado por
Francisco, uma vez que o santo decidira renunciar ao
cargo. Durante os treze anos, que dirigiu a Ordem ainda
em vida de Francisco, Frei Elias desempenhou o papel
principal, respeitando a vontade e o ideal franciscano.
Sua personalidade parece tomar novo rumo aps a morte
do Poverelo. Na poca em que governou ps-morte do
fundador, a Ordem chegou a ter setenta e duas provncias
espalhadas pelo mundo inteiro, nmero surpreendente
para uma ordem recm nascida em pleno sculo XIII.
Esse crescimento vertiginoso delegado efccia e
senso de grandeza de Elias que, para dar prosseguimento
ao ideal franciscano, desenvolveu inimizade com o
papa, foi excomungado, mas, como no poderia deixar
de ser, fez penitncia e morreu reconciliado com a
Igreja. A tradio biogrfca no trata criticamente do
assunto, os exegetas franciscanos simplesmente citam
a mudana de personalidade de Frei Elias e fcam no
questionamento de que a regra franciscana primeira no
foi seguida risca. Essa parcialidade no foi mantida
por Saramago. O pardico Frei Elias do autor abomina a
pobreza, pois seu objetivo maior dentro da companhia
a prosperidade fnanceira. Saramago escolhe para dirigir
a empresa aquele que um dia fora realmente um superior
franciscano, mas cuja histria foi nada admirvel:
algum ambicioso e dissimulado, um excomungado que
propalou uma regra toda ao contrrio do primitivo ideal.
A fgura de Elias corrobora a deciso de Francisco no
ELIAS
137
fnal do livro o fato de o santo decidir lutar contra a
pobreza justamente pelo motivo de tomar conhecimento
dos procedimentos da nova Ordem que vivia a sua regra
totalmente s avessas.
So palavras vs. Falta-te a autoridade para us-las. A
regra outra, da obedincia decido eu. Donde vieste? No
me parece que seja este o teu lugar. [...] O que fundaste
no tem qualquer semelhana com o que existe hoje. O
mundo mudou enquanto estiveste ausente.
ELSE WANDSCHERER (In Nomini Dei): uma das mulheres de
Leiden, e s aparece posteriormente na trama, quando ele
resolve instalar a poligamia. uma personagem curiosa
que representa a indignao contra as decises absurdas
do marido. uma voz solitria que ousa discordar dele
e, por isso, acaba sendo executada. Esse episdio retrata
perfeitamente a tirania do novo sistema que estava sendo
pregado.
Pois eu respondo-te que Deus no se ofende seno quando
a inocncia ofendida. Porque Ele prprio estava inocente
e foi sacrificado.
EMPREGADA DO CONSULTRIO (Ensaio sobre a Cegueira):
Trabalhava no consultrio do mdico oftalmologista.
ENDEMONINHADO DE GADARA (O Evangelho Segundo
Jesus Cristo): Homem, espcie de avantesma, coberto de
imundcias, cheirando a putrefao dos tmulos onde
se escondia sempre que fugia dos grilhes e correntes
aos quais vivia atado por estar possesso. Possua uma
barba e um cabelo medonhos e nele vivia um esprito
imundo. Ostentando suas unhas e trazendo nos dentes
escancarados restos de carnes putrefatas, a besta-fera
salta na frente de Jesus, Tiago e Joo, quando estes
chegam regio habitada pelos gadarenos. Ao aproximar-
se de Jesus, o endemoninhado se ajoelha e afrma que
ele o Filho de Deus, fato esse que, at aquele momento,
Jesus ignorava, j que nem Maria, nem Pastor, nem
Deus haviam afrmado algo to categrico nesse sentido.
O que ele tinha at ali eram mais dvidas do que certeza
ENDEMONINHADO DE GADARA
138 SALMA FERRAZ
e foi justamente pela boca de um endemoninhado que
ele soube ser o Filho de Deus. Jesus sente-se repleto de
poderes diante daquele homem possesso, poderes que ele
sabia tambm o levariam, cedo ou tarde, para o tmulo.
Permite-se dialogar com o possesso, e este lhe responde
que so muitos Legio, porque somos muitos. Quando
Jesus ordena que os espritos deixem aquele homem,
ouve uma sinfonia macabra de vozes de todo o tipo e de
toda espcie de tom, vozes diablicas, fnas e agudam que
lhe imploram que gostariam de fcar por aqueles stios.
Jesus pergunta aos demnios para onde eles gostariam
de ir. Nesse instante se aproxima uma grande vara de
porcos e os demnios pedem que Jesus os expulse para
o corpo dos porcos. Jesus no pensou por que os porcos
estariam ali, j que judeus no comem esse tipo de carne,
tambm no pensou que os judeus comendo a carne dos
porcos endemoninhados poderiam, igualmente, fcar
possessos, e nem calculou o resultado de sua atitude.
Ele aceita o pedido e manda que os demnios saiam
do corpo do homem e entrem nos porcos. Os demnios
rejubilam de alegria e entram nos porcos que, por no
estarem acostumados a serem habitados por demnios,
se precipitam todos num abismo indo cair no mar,
onde morrem ao todo dois mil porcos. Esse milagre
apresentado como uma vitria dos demnios e uma
derrota ingnua de Jesus: como os porcos no sabiam
nadar, pelas suas orelhas entra muita gua, matando-os
em poucos minutos; os demnios, porm, por no terem
corpos, se livram tranqilamente. Os donos dos porcos
fcam furiosos com Jesus e comeam a lhe atirar pedras.
Jesus queria fcar para dar explicaes, mas Tiago e Joo
o convencem a fugir.
Que queres de mim, Jesus, filho do Deus Altssimo, por
Deus te peo que no me atormentes.
ENFERMEIRO (Todos os Nomes): Pessoa educada e observadora,
trata de Jos quando este fcou fortemente gripado, com os
joelhos feridos e completamente exausto (Jos invadira a
escola em busca de dados sobre a mulher desconhecida).
Jos recebeu trs dias de licena do mdico que o visitou
por ordem do conservador e o enfermeiro aplicou-lhe
ENFERMEIRO
139
os medicamentos. O enfermeiro traz algo mais que
seringas para injeo e comprimidos: traz-lhe o jantar.
Realiza novos curativos nos joelhos de Jos, e os dois
entram em um debate sobre a origem de tais ferimentos.
O enfermeiro, antes de sair, diz que precisa fazer um
relatrio de atividades, comentando sobre o que vai e o
que no vai constar nesse relatrio, pois o conservador
tem interesse na vida dos seus funcionrios.
Voc no capaz de imaginar a quantidade de coisas
que se descobrem olhando para umas feridas.
ESCRAVO (Caim): Escravo de lilith, mas que trabalha para noah
sondando o que acontece e o que faz lilith. encarregado
por lilith de levar caim para tomar sol, e incumbido
por noah de se livrar do amante da esposa (caim). Ele
e mais trs homens emboscam caim durante o passeio.
O escravo ri da fala de caim sobre a marca na testa e
tambm se espanta com a defesa milagrosa de caim: a
espada que seria desferida contra caim transforma-se
numa cobra. preso e enforcado em praa pblica, e
condenado tambm a ter o corpo devorado pelas aves de
rapina.
ESCULCAS (A Viagem do Elefante): Sentinelas, guardas avanados
cuja misso alertar sobre a aproximao do inimigo.
Diante da iminente aproximao dos espanhis, o alcaide
informa o comandante portugus sobre a existncia
de esculcas, os quais enviam mensagens atravs de
pombos-correio. assim que um dos esculcas comunica
a chegada dos austracos em Castelo Rodrigo.
ESMERALDA (A Noite): secretria da redao e faz parte do
cl conservador. Obedece a ordens, d recados, executa
pequenas tarefas. Faz-se de recatada, porm se insinua
ao chefe da redao. Sua participao nfma, ocorrendo
apenas no primeiro ato.
ESTRIBEIRO-MOR (A Viagem do Elefante): Fidalgo da maior
confana do rei, incumbido de organizar a expedio
que levaria o elefante cidade espanhola de Valladolid.
Recebe autorizao real para dispor de dois homens para
ESCRAVO
140 SALMA FERRAZ
ajudarem o cornaca, outros para se encarregaram do
abastecimento de gua e de forragens, e um carro de bois
para o que mais se fzesse necessrio.
As ordens de vossa alteza sero cumpridas ponto por
ponto, empenho nisso a minha palavra e a minha vida.
EVA (Caim): Primeira e nica esposa de ado. Quando acusada de
infuenciar ado a comer o fruto proibido, pe a culpa
na serpente que lhe apareceu em sonho. Antes de ser
expulsa do paraso, recebe trs maldies de deus. Do
lado de fora do paraso, juntamente com ado, passa
fome, sede, frio e outras privaes. escarnecida por
ado quando expe sua idia de ir pedir ajuda ao anjo,
mas se mostra vencedora mediante os resultados de sua
diligncia. Convence ado a acompanh-la na segunda
visita ao anjo e, mesmo sem querer, provoca cimes ao
marido pelos olhares e pela maneira como se comporta
diante do querubim. Juntamente com ado, aprende a
trabalhar. me de caim, abel e set.
Melhor louca que medrosa.
EX-MULHER DO HOMEM DA CARTA (Ensaio sobre a
Lucidez): Passou a ser chamada de peixe-agulha pelo
comissrio. Na realidade no era ex-mulher do homem da
carta, mas ex-esposa do homem da carta, porque mulher
continuaria a ser sempre. Quando interrogada pelo
inspector, afrma que a mulher do mdico foi protetora e
extraordinria.
EVA
141
F
143
FAUSTINO (A Noite): contnuo da redao e subserviente ao
extremo. S faz o que lhe mandam e quase no fala
nada.
FEITOR (A Viagem do Elefante): Segundo o velho aldeo, o feitor
quem governa o barco para o conde. a ele que o
comandante portugus visita e solicita a junta de bois
para ajudar no transporte do elefante. O feitor a princpio
se mostra difcil, mas o comandante o convence do
emprstimo a partir de um discurso sobre a ptria. Ainda
assim, o feitor solicita ao comandante a assinatura de
papis como comprometimento com a devoluo dos
bois.
Nunca vi um elefante na minha vida.
FELIPE (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Garom do Hotel
Bragana, veio da Galiza para Lisboa. Nasceu em Villa-
Garcia de Arosa e servidor habitual do Dr. Sampaio e
Marcenda.
FELISBERTO LAMPAS (Levantado do Cho): Tem o nome de
Felisberto por mero acaso. Foi moo bonito. mais um
injustiado trabalhador agrrio. Vive mal-humorado e
resmungando. Vai para Montemor, em busca de trabalho.
Viaja sentado numa carroa com as pernas para fora, de
costas para o destino.
o que preciso a gente agentar-se no dar parte de
fraco.
FERNANDO FESSOA (O Ano da Morte de Ricardo Reis):
Fernando Antnio Nogueira de Seabra Pessoa nasceu
em Lisboa em 888, no dia 3 de junho. Formado em
Letras pela Universidade de Inglaterra, poeta e escritor,
criador de dezenas de fantsticos heternimos, veio a
faleceu em 30 de novembro de 1935, deixando na famosa
Carta Sobre a Gnese dos Heternimos a data da morte
de Ricardo Reis em aberto, motivo literrio reaproveitado
por Saramago, que comea seu romance levando Ricardo
Reis de volta cidade de Lisboa no mesmo ano da morte
de Fernando Pessoa. O autor transforma Fernando
FERNANDO FESSOA
144 SALMA FERRAZ
Pessoa numa personagem fantasma que perambula por
Lisboa, sem conseguir morrer de vez, durante oito meses.
Paralelamente, faz reviver, em carne e osso, o poeta
Ricardo Reis, um dos heternimos fctcios em que Pessoa
se desdobrou. O autor transforma o criador em criatura,
j que agora tanto Ricardo Reis como Fernando Pessoa
so meros seres de papel. Pessoa possui um pescoo alto
e delgado, o cabelo um pouco ralo no cimo da cabea e
aparece com corpo bem feito, no usa mais chapu e nem
culos, acessrios que, segundo ele, somente servem para
os vivos. Veste cala, jaqueto, colete preto, uma camisa
branca, sapato e meias pretas. Ele desempenha um papel
fundamental na obra mesmo atuando esporadicamente.
Pessoa se encontra onze vezes com Ricardo Reis em toda
narrativa. Durante suas visitas, questiona Reis sobre
a sua postura passiva diante dos acontecimentos de
1936, j que naquele momento Pessoa passa a ocupar
uma posio de espectador, observando e analisando
seu heternimo, agora com vida prpria, s voltas com
os acontecimentos de um mundo conturbado. sua
funo na narrativa alertar Reis sobre as artimanhas do
ser humano, coisa que parece no ter feito durante o
tempo em que os papis estavam invertidos: Pessoa vivo,
utilizando a mscara de Ricardo Reis. Ao fnal de oito
meses parte para o descanso eterno.
O seu caso, Reis amigo, no tem remdio, voc
simplesmente finge-se, fingimento de si mesmo, isso j
nada tem que ver com homem e com poeta.
FILIPE (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos doze
elaborado por Deus, acabar a vida amarrado cruz e
apedrejado at a morte.
FLORIBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos,
e a injustia, j que oprimiam e escravizavam todos os
FILIPE
145
trabalhadores. Floriberto segue a doutrina dos bertos.
Tudo combinado entre Ansberto e Angilberto, entre
Floriberto e Norberto. O acerto com os trabalhadores do
campo vo trabalhar e depois se v:
[...] se os outros pagarem, eu pago.
FRANCISCA DE ARAGO (Que Farei com este Livro?): Dama
do Pao. Antigo e inesquecvel amor de Lus Vaz de
Cames. Personifca os amores que se perdem no tempo
e que depois so resgatados na fase da maturidade. Est
o tempo todo ao lado de Cames, acompanhando toda
burocracia para poder publicar o livro. Oferece dinheiro
para que Lus pudesse imprimir o livro, mas ele no
aceita. Na sua primeira apario, ela simplesmente olha
para trs, pois estava numa posio de submisso, ou
seja, ela estava na Corte e, diferentemente de Cames
que enfrentou o rei, fcou calada.
Quando vos vi, foi com se a roda do tempo tivesse
desandado vinte anos para trs.
FRANCISCO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Fundador
da companhia, em torno da qual todos os interesses da
trama iro girar. A Ordem que fundou, agora transformada
em empresa, no possui mais nenhum dos objetivos
iniciais idealizados por ele: a construo espiritual de
seus flhos, o caminho das virtudes, a pobreza, a
obedincia, a castidade e, sobretudo, a renncia desta
vida. essa contradio que ir faz-lo entrar em confito
com a maioria dos membros da atual companhia. O
Santo surge em cena inesperadamente, no h muitas
explicaes sobre o como e o porqu de sua segunda
vida. Comea a fgurar na primeira cena, aps uma
reunio do conselho da empresa que discutia os resultados
de uma pesquisa sobre as formas de alcanar novos
mercados. Toma conhecimento da atual situao da
Ordem que fundara, atravs das informaes que sua
me dona Pica lhe passou. Ela afrma que, bem
diferente do passado, existem agora agentes que andam
pelo mundo vendendo o que anteriormente davam de
graa: esperana, f, caridade. Os companheiros mais
FRANCISCO
146 SALMA FERRAZ
prximos a Francisco no mais doam tudo que tm aos
pobres, mas governam, fabricam, administram, gerem,
contam, pesam e, como diz Elias, s vezes dividem.
interessante o relacionamento familiar de Francisco
mostrado pela fco. Tal qual nas biografas tradicionais,
ele possui uma convivncia nada amistosa com o pai,
pois, segundo os escritos sobre Francisco de Assis, seu
pai era homem muito rico, possua loja que vendia
diversos produtos, era um verdadeiro capitalista. Devido
incompreenso do progenitor quanto ao despojamento
dos bens materiais por parte do flho, o relacionamento
entre os dois no era fcil. Na estria de Saramago, essa
crise familiar aprofundada. As discusses entre pai e
flho serviram tambm para a construo do novo
Francisco: um santo dessacralizado e extremamente
humano. Diferente da histrica emprica, no s o pai
mostrado como o malvado, Francisco tambm demonstra
um sentimento nada santo em relao ao pai, como se
pode depreender da fala de sua me Pica, em uma das
cenas de discusso entre os dois, quando esta denomina
pai e flho como loucos, cegos e orgulhosos. Bem ao
contrrio da tradio que aponta o pai de Francisco como
o algoz do flho, perseguindo e amaldioando a sua opo
por Cristo e pelos pobres, na biografa saramaguiana
Francisco quem fnalmente amaldioa o pai, desejando-
lhe a morte. Ele v a morte do pai como nica sada para
a destruio da companhia e o restabelecimento de sua
Ordem: Algum dever morrer, preciso um sinal. (Pausa)
Que morra ento meu pai, que morra j. Essa maldio
se concretiza logo em seguida, quando sua me Pica
entra inesperadamente em cena e anuncia: Pedro
morreu... (para Francisco). Teu pai est morto. Assassinado
(pausa) de morte natural. O termo utilizado por Pica para
caracterizar a morte do marido assassinado revelador,
de certa forma incrimina seu flho que h pouco na cena
havia pronunciado a maldio. Seguindo a mesma tese
de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, parece haver a
condenao do prprio Deus, como um assassino, aqui
no caso de morte natural. O autor estabelece assim uma
espcie de pacto homicida entre Deus e Francisco de
Assis. Outra desconstruo da sacralidade de Francisco
emprico notada no relacionamento entre ele e Clara.
FRANCISCO
147
Ambos vivem um amor impossvel e a pea uma pardia
s biografas conhecidas e prpria tradio franciscana
que tem o Santo de Assis como modelo de castidade e
Santa Clara como apenas fel amiga e confdente do
Poverelo. A principal atuao de Francisco , sem dvida,
a contestao do que estava vigorando na Ordem que
fundara. Durante toda a pea ele ir insistir no retorno
pobreza, segundo os conceitos evanglicos institudos
por ele e no seguidos pela atual Ordem. Para tentar
assumir o poder de sua obra e remodel-la voltando s
origens, deseja assumir o cargo de Presidente da
companhia, cargo agora ocupado por aquele que ser
seu principal antagonista: Elias. Para tanto, pede
inicialmente uma votao secreta para sua causa. Ele
perde a disputa, mas por sugesto do prprio Elias feita
uma segunda votao para que o santo ocupe um lugar
no conselho. Como ocorre um empate, a deciso dada
a Elias que, pelo voto de Minerva, admite Francisco. No
conselho, Francisco passa a ocupar a funo de receber
e preparar os novos agentes. Contudo, ele, por meio
dessa funo, planeja destruir o modelo de companhia
vigente. A ttica para isso est em doutrinar os agentes
segundo os princpios da antiga regra composta por ele,
que tida como princpio bsico da companhia na teoria,
mas no na prtica. Elias sorrateiramente descobre o
plano de Francisco e convoca um conselho para decidir o
futuro do traidor: estes resolvem destitu-lo do cargo. A
ltima possibilidade que Francisco v para voltar s
origens recorrer queles por quem ele doou a vida os
pobres e, atravs deles, mostrar a Elias e ao restante do
conselho que a pobreza poderia vencer a riqueza.
Francisco traz ento presena do conselho um certo
Pedro, que seria o representante dos pobres e quem o
ajudaria; porm, quando Pedro tem a palavra, bem ao
contrrio do que esperava Francisco, volta-se contra ele
e em suas declaraes constatamos o que poderamos
considerar como a tese do drama. Francisco, aps a fala
de Pedro, parece em seu ntimo sensibilizar-se com as
palavras proferidas e toma conscincia de seu equvoco
em relao pobreza. responsabilizado pelos pobres
aos quais havia dedicado toda sua vida. A deciso que o
Francisco de Saramago toma aps esse fato surpreende
FRANCISCO
148 SALMA FERRAZ
a todos que conhecem um pouco da biografa do santo. Ele
afrma que vai embora e que a pobreza no santa. Dizer
que a pobreza no santa pode ser tida quase como uma
profanao pelos franciscanos. Essa frase pronunciada
pelo prprio fundador praticamente uma heresia. A
pausa metodicamente colocada para, provavelmente,
propiciar refexes. A concluso a que Francisco chega
instigante na medida em que os franciscanos at hoje
mantm esse ideal. como se Francisco fzesse um auto-
exame de conscincia e tivesse pena de si mesmo por ter
espalhado tal ideologia que se provou equivocada ao longo
dos sculos. Os nicos que resolvem acompanhar Francisco
em sua nova deciso so Clara, Junpero, Leo e sua me,
Pica. Com essa pea, o autor prope uma outra releitura
para a vida e a histria de Francisco de Assis, levando o
Santo e o leitor a perceberem que o mundo capitalista est
inserido em nossas vidas a todo momento e que aceitar a
pobreza no vai ajudar em nada a modifcar esse sistema.
A deciso de Francisco de lutar contra a pobreza traz
tona, dessa forma, alguns questionamentos, entre eles o
de que a salvao individual por meio da pobreza e do
abandono das riquezas, que era seu objetivo, imprpria
para os nossos dias. A salvao deve ser encarada agora
como salvao coletiva, no buscada no cu, mas na terra,
com aes polticas, econmicas e sociais que garantam,
aos humildes e excludos, condies de vida digna sem
exploraes e excluses, o que, alis, uma das bandeiras
da chamada Teologia da Libertao. Francisco decide agir
a partir da compreenso da relao entre pobres e ricos da
atualidade. Essa deciso, se bem analisada, est em
consonncia com as atitudes do Francisco emprico, uma
atitude revolucionria que causa espanto, e que, sem
discursos, palavras vs, violncia ou teorias, envolve sim
aes prticas simples e um trabalho de base. Trata-se de
um apelo, uma teoria humanista do homem para o homem,
a transformao de um mundo que se volta cada vez mais
para o capital, para o individualismo, enquanto os
desprovidos de tudo fcam s margens esperando uma
soluo para a incluso social. O autor reapresenta a
fgura de Francisco de Assis sem as marcas que o discurso
religioso tradicional deixou em sua biografa, propondo o
santo como um smbolo de resistncia frente aos grandes
FRANCISCO
149
desafos capitalistas e ao proletariado do mundo moderno
e contemporneo, um porta-voz da luta real contra a
misria atual e para uma justa distribuio de riquezas
aqui na terra, em detrimento do depois no cu. Afnal,
quem garante que os pobres realmente herdaro o reino
dos cus?
Vou-me embora [...]. Agora vou lutar contra a pobreza.
a pobreza que deve ser eliminada do mundo. A pobreza
no santa.
FRANCISCO (Manual de Pintura e Caligrafa): casado com Ana
e integra o grupo social a que pertencem H. e Adelina.
Junto com sua mulher, sero sempre retratados pelo
escrepintor como componentes de um par afnado, pois
pertencem mesma faixa etria e atuam na mesma
profsso. O modelo de felicidade conjugal coloca ambos
numa posio de contraponto com os demais membros do
grupo, que se mostram tateantes no caminho de busca da
realizao afetiva. Durante a narrativa, as manifestaes
de excitao mtua cedem lugar ao cansao fagrante da
relao. Personagem secundria, a atuao de Francisco
evidencia o impacto da volubilidade afetiva experimentada
pela gerao amadurecida de setenta; fornece os ndices
do novo arcabouo moral que passa a reger as relaes
amorosas desde ento: que o amor seja eterno enquanto
dure.
FRANCISCO MARQUES (Memorial do Convento): Era casado
e possua trs flhos. Por viver de maneira miservel,
resolveu trabalhar na construo do Convento de Mafra.
Ao carregar uma pedra, juntamente com mais seiscentos
homens, essa rola e o esmaga. Era um pouco revoltado
com a vida miservel que tinha, j que o que ganhava mal
dava para comer e tomar um pouco de vinho. Para ele
quem vivia bem eram os donos das vendas de comida.
[...] eu por necessidade vivo e necessitado continuo.
FRANZ VON WALDECK (In Nomini Dei): o bispo catlico da
cidade e representa a Igreja Catlica, com seu lado tambm
fantico e intransigente. Efetivamente, pode-se dizer que
FRANCISCO
150 SALMA FERRAZ
aparece na trama no incio e no fnal, quando vem para
punir e aniquilar os inimigos. Exerce papel fundamental,
uma vez que seus inimigos, os reformistas, no param
de falar nele. uma espcie de outra margem do rio, na
qual possvel estabelecer relaes entre o catolicismo
e o anabaptismo. Est claro que no representa nem o
bem nem o mal, mas uma fora to contraditria quanto
o prprio movimento que se insurgiu contra ele. Apesar
disso, vence no fnal do livro. Do mesmo modo como o
catolicismo se imps em todos os momentos decisivos da
histria da humanidade com mo de ferro e em nome
de Deus.
No invoqueis, malditos, a misericrdia do Senhor, porque
Ele quem vos quer exterminados.
FREI BARTOLOMEU FERREIRA (Que Farei com este Livro?):
Frei Dominicano revisor-censor de Os Lusadas, em nome
do Santo Ofcio. Questiona alguns pontos da obra, j que
era a sua funo questionar. Aceita algumas ponderaes
por parte do autor, porm exige mudanas no livro.
Personifca a completa submisso ao Santo Ofcio, sem
questionar, nem ousar e nem revelar o que ele como
pessoa considerava a respeito da obra. Ele est muito
confortvel na posio que conquistou e, portanto, no faz
questo de mencionar sua opinio, pois, provavelmente,
sabe qual seria seu fm caso aprovasse toda a obra de
Cames sem fazer qualquer ressalva.
De cada vez censurarei o vosso livro de acordo com o
pensar da Santa e Geral Inquisio. [...] E que importncia
tem o que eu pense do vosso livro...?
FREI MANOEL DA ENCARNAO (Que Farei com este
Livro?): Confessor do Conde de Vidigueira. Mesmo com
uma pequenssima fala, representa um papel de algum
completamente submisso ao Conde. Provavelmente, nos
momentos de confsso ele dizia o que o Conde queria
ouvir.
Perdoemos ao louco o seu pouco juzo.
FREI BARTOLOMEU FERREIRA
151
FRITZ (A Viagem do Elefante): Nome pelo qual Subhro (o tratador
do elefante Salomo) passa a se chamar a mando do
arquiduque Maximiliano de ustria. No desenrolar da
narrativa, esse seu novo nome demarca, ao lado do
novo nome do elefante (Solimo), um jogo de espelhos
ou duplos. O eixo identitrio (SubhroFritz/Salomo
Solimo) se confgura paralelamente ao eixo nacional
(Portugalustria).
FRITZ
153
G
155
GADANHA (As Intermitncias da Morte): Com a lmina um pouco
desgastada e enferrujada, passa seus dias encostada s
paredes. companheira de muitas aventuras e muitos
massacres causados pela morte, chegando at a assumir
as funes desempenhadas por ela, durante uma
semana: despachar as cartas com o aviso da data da
morte do destinatrio. Fica impressionada com o fato do
violoncelista no ter morrido, mas principalmente com
a transformao da morte em uma mulher. Quando v
a morte vestida de mulher, discutem sobre o traje que a
ela usa. Nessa discusso sobre trajes, a gadanha afrma
que conhece Proust, um dos maiores escritores que j
existiram. A morte duvida disso. Ambas discutem sobre
quem entende mais de moda e a gadanha critica os trajes
da morte. Depois acaba cedendo e afrma que a morte
est bonita, vestida para seduzir um homem, ou melhor,
vestida para matar. No possui o poder de assumir o
posto da morte, mas apenas de cumprir ordens.
Pareceu-me haver um bom motivo, no todos os dias
que se v a morte transformada num exemplar da espcie
de quem inimiga...
GERTRUD VON UTRECH DIVARA (In Nomine Dei): a
primeira mulher de Jan Van Leiden. Ela no to fantica
e, muitas vezes, questiona as decises do marido. Est
claro que no concorda com a questo da poligamia,
entretanto submete-se a ela. Pode-se perceber em seus
gestos a atitude solitria de uma mulher que tem seus
prprios valores morais, apesar de saber que sua situao
de submisso e impotncia. Apesar disso, no abjura
no fnal do livro, permanecendo coerente com aquilo que
achava certo.
GIL (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do conselho.
Personagem com pouca expresso, sempre se mostra
conivente com as decises apontadas por Elias e,
portanto, contrrio a Francisco. Suas falas reafrmam as
decises da companhia e o confguram como um profcuo
administrador, muito conhecedor dos dados da empresa.
No incio da narrativa mostrado como vido defensor da
renovao dos agentes da companhia.
GADANHA
156 SALMA FERRAZ
Algumas vezes aconteceu destruir o criador a sua obra.
No seria de mais, neste caso, destruir a obra o seu
criador.
GILBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos, donos
trabalhadores. Gilberto, como os outros bertos, se
apossou das muitas terras de pequenos agricultores em
difculdades, por falta do pagamento dos emprstimos.
[...] quem o seu no v, o diabo o leva [...].
GOVERNO (As Intermitncias da Morte): Demora um tanto para se
pronunciar sobre a greve da morte. Nesse pronunciamento,
apenas ratifca o fato de que ningum morreu depois
da virada do ano, pede calma populao e diz-se
pronto para enfrentar qualquer situao humanamente
imaginvel. Suas aes encerram-se principalmente na
fgura do primeiro-ministro.
o governo quer aproveitar esta oportunidade para informar
a populao de que prosseguem em ritmo acelerado
os trabalhos de investigao que, assim o espera e
confia, ho-de levar a um conhecimento satisfatrio das
causas, at este momento ainda misteriosas, do sbito
desaparecimento da morte.
GRACINDA (Levantado do Cho): Casada com Manuel Espada,
com quem tem uma bela menina muito especial Maria
Adelaide , parida com dores, que veio ao mundo com
os olhos azuis do av. Filha de Faustina e Joo Mau-
Tempo, Gracinda pertence terceira gerao tempo
de luta junto com os irmos Antnio e Amlia Mau-
Tempo. Gracinda uma mulher decidida. Ela deixa os
campos de Monte Lavre e a flha pequena com a me e
resolve partir com o marido e mais um grupo de homens
para procurar trabalho em Montemor, onde mora sua
irm Amlia. Gracinda no sabe bem onde fca; mas vai
mesmo assim. Eles partiram, porm no deram sorte.
GRACINDA
157
Ao pedirem trabalho em frente ao castelo de Montemor,
foram mal interpretados e expulsos a bala.
As pessoas falam falam, mas no sabem o que a
preciso.
GRACINDA
159
H
161
H. (Manual de Pintura e Caligrafa): Narrador e protagonista do
romance. Sob sua perspectiva, so tratadas as categorias
espao-temporais e personagens so construdas. Pintor
retratista, H. consciente da anacronia da sua forma de
expresso, bem como de suas limitaes estticas. Como
forma de compreender a sua arte e a si mesmo, recorre
ao inusitado ato de repetir s escondidas o retrato do
cliente S., enquanto se dedica escrita de suas memrias
recentes num dirio. As refexes de H. acontecem durante
os estertores da ditadura salazarista e o seu desfecho
coincide com a Revoluo dos Cravos, mais precisamente
com as manifestaes do povo que sai s ruas de Lisboa
no dia 25 de abril de 1974 para comemorar a queda do
regime. Ao atribuir personagem a mesma idade do
regime poltico H. est prestes a completar cinqenta
anos , Saramago articula o percurso individual do pintor
realidade poltico-social que retratada como pano de
fundo no romance. O elemento social adentra o primeiro
plano narrativo quando o narrador tece autocrtica sobre
o grupo no qual se inclui como membro. De acordo
com a viso de H., esse grupo no tem razo para se
sustentar e, se continuam amigos, por medo da solido
que no desejam suportar. Interrogando-se a respeito da
prpria arte, a respeito da prpria vida e de suas relaes
amorosas e com os amigos, H. decide se dedicar escrita
das memrias de uma viagem feita anteriormente Itlia.
O circuito artstico de busca de parmetros estticos
registrado em forma de exerccios autobiogrfcos.
Durante esse perodo, o escrepintor elabora mais dois
quadros: um retrato contratado pelos Senhores da Lapa e
outro da imagem do Santo Antnio, desprovido de aura, do
livro e do Menino Jesus, que possui em seu apartamento.
Marcada por aventuras amorosas, a trajetria pessoal de
H. contempla relacionamentos simultneos com Adelina,
ofcialmente reconhecida como namorada pelo grupo de
amigos que freqenta, e o escuso affair com Olga, fogosa
secretria de S.. A transformao de H. a sada de si em
direo realidade exterior ocorre a partir do episdio
da priso do amigo Antnio e do encontro com M., jovem
revolucionria militante pela qual se enamora, tendo
como pano de fundo os momentos que conduziram o
pas a novas esperanas. Emoldurado por esse espao de
H.
162 SALMA FERRAZ
crena, a aventura de Antnio ganha lugar de destaque
na narrativa, funcionando como ensaio de um romance
que tem por desfecho o anncio da quinta pintura de H.: o
seu auto-retrato. Ao atribuir ao protagonista do romance
que marca a sua re-estria no gnero um nome vazio que
se reduz a uma inicial, Saramago confere personagem
a possibilidade de ser nomeada por todos os nomes que
se iniciam com a letra H., inclusive Homem. A tendncia
ao universal pode ser lida no questionamento que move
a trajetria esttica do pintor. Diante do modelo que se
apresenta ao trao e tinta, o artista indaga: quem
este homem? Em busca de respostas que satisfaam a
sua nsia de verdade, enquanto esboa retratos, o pintor
inicia um processo de auto-conhecimento. Profundamente
esmiuada atravs do confronto entre as duas linguagens
a plstica e a verbal , a relao pintura/caligrafa
encaminha refexes sobre a prpria escrita romanesca
do autor que busca delinear seus prprios contornos nos
exerccios autobiogrfcos que comporo o novo manual.
O carter autobiogrfco do romance freqentemente
suscitado por estudiosos da obra do romancista e pelo
prprio escritor. No discurso De como a personagem foi
mestre e o autor seu aprendiz, proferido por ocasio do
recebimento do Prmio Nobel de Literatura, em 998,
Saramago trouxe, para o cenrio da festa em Oslo,
personagens dos seus romances e reconheceu como seu
mestre o pintor de retratos designado somente pela letra
H.. Ali, segundo o autor, houve uma dupla iniciao, a do
personagem e a do autor do livro.
S h uma maneira de fazer Quixotes: tornar os ideais
maiores.
HEINRICH KRECHTING (In Nomini Dei): Fora antigamente
um sacerdote catlico. Posteriormente, quando Leiden
proclama-se rei, elege-o seu conselheiro, de modo a ter ao
seu lado um ex-catlico para estudar-lhe os pensamentos.
Entretanto sua participao e auxlio foram bastante
tmidos, tendo fugido antes que a cidade fosse invadida.
Cala-te, talvez que tudo isto no passe de uma
comdia.
HEINRICH KRECHTING
163
HELENA (O Homem Duplicado): Esposa atenta e dedicada de
Antnio Claro, casada com ele h dez anos, trabalha
numa empresa de turismo no outro lado da cidade.
Fica completamente confusa e perturbada ao saber da
existncia de um duplicado de seu marido; atormenta-se
imaginando que para saber como Tertuliano fsicamente
no necessitaria despi-lo, pois ao seu lado h um igual.
Precisa fazer uso de tranqilizantes para dormir. Antnio
Claro esconde dela os encontros que tem com o duplicado
e a vingana que planeja. Ela tambm enganada por
Tertuliano, que passa a noite com ela fngindo ser seu
marido. Ao saber de toda a verdade e que seu marido est
morto, prope a Tertuliano que ele viva como Antnio
Claro e que talvez um dia eles possam se amar.
A minha cama o meu castelo, [...] por trs das suas
muralhas estou a salvo.
HERODES (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Poderoso rei e
monarca da Judia, Samaria, Peria, Idumia, Galilia,
Gaulanitide, Traconitide, Auranitide, Batania. Mandou
afogar o irmo de sua prpria mulher, Mariame, e depois
mandou estrangul-la, acusando-a de adultrio. Matou
tambm sua sogra. Surge no romance doente, furioso,
carcomido por vermes que infestam seus rgos sexuais,
crivado de dores, beira da loucura, com o corpo em
estado de putrefao. Ameaa crucifcar os mdicos
se no descobrirem a causa de sua loucura. Em sua
loucura v-se cercado por traidores por todos os lados.
perturbado pelo fantasma do profeta Miquias, que
em sonhos o avisa que de Belm sair aquele que
governar Israel. Pede a um eunuco que traga o livro
de Miquias juntamente com um sacerdote do templo,
forando, com pressa, o sacerdote a ler todo o livro at
chegar no versculo que trata sobre a mesma profecia
lanada pelo profeta em seus sonhos. Compreende que
a apario sobrenatural de Miquias signifca que o
nascimento j ocorrera. Ento chama o comandante da
guarda e manda executar todos os meninos que tinham
menos de trs anos (ao todo vinte e cinco meninos). Mas
Jesus se salva uma vez que est numa gruta, fora de
Belm. Miquias no revela imediatamente a ltima
HERODES
164 SALMA FERRAZ
parte da profecia, ele sempre vai embora, alimentando
na cabea de Herodes ainda mais a desconfana que
este j tem de tudo e de todos. Eis aqui uma contradio
interessante: a personalidade psictica de Herodes
que infuencia tanto sua psique, a ponto de seus sonhos
mostrarem um Miquias que deixa algo intrigante no ar,
ou o fato do profeta realmente deixar algo intrigante no
ar que alimenta ainda mais a personalidade psictica de
Herodes? Se Miquias realmente aparece em sonhos para
Herodes, no teria sido sua prpria profecia que teria
alimentado em Herodes a ordem de matar as crianas
inocentes? Nesse caso Herodes seria inocente? Por que
ento Miquias teria feito a profecia? Seria a vontade de
Deus a matana das crianas? Ou talvez o autor tenha
explorado aqui o recurso que muitos reis e sacerdotes
usavam na antiguidade o de atribuir a natureza de atos
e aes condenveis a Deus ou s profecias recebidas em
sonhos. Herodes morre em Jeric. Seu reino foi dividido
por seus trs flhos: Herodes Filipe, Herodes ntipas e
Arquelau.
HERODES NTIPAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho
de Herodes, governou a Galilia e a Peria.
HERODES FILIPE (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de
Herodes, governou os territrios a leste da Galilia.
HILLE FEIKEN (In Nomini Dei): Aparece no livro em um nico
momento para designar a ingenuidade que o fanatismo
religioso pode disseminar entre as pessoas. Foi dissuadida
a acreditar que poderia repetir a faanha de Judite contra
os assrios, a qual derrotou Holofernes. Acreditou que
poderia imit-la e, assim, acabar com o bispo Waldeck,
para alvio de toda a cidade. O plano, no deu certo. Ela
morreu antes mesmo de se aproximar do alvo.
A minha alma est confusa.
HOMEM (A Ilha Desconhecida): Figura central da narrativa,
representa os prias, os excludos e os desejos daqueles
que se encontram longe das esferas de poder: os homens
comuns. sujeito da sua prpria histria que est em
busca de transformao, em busca da sua identidade,
HOMEM
165
em busca de uma utopia. um transgressor da ordem
estabelecida em busca da verdadeira condio de ser
um humano, em busca da esperana. Personagem sem
nome, designado apenas como um homem, um sdito do
reino, um suplicante igual ao povo, que queria apenas
um barco para lanar-se em busca da ilha desconhecida.
A ausncia de qualquer ttulo o torna livre para enfrentar
as estruturas de poder; ele no tem nada a perder,
no h obrigaes com a sociedade e isso facilita suas
atitudes. Um homem que, em busca de seu desejo, teve
coragem de romper com as tradies e costumes do povo,
estabelecendo outras maneiras para obter o que mais
queria: o barco. determinado, teimoso, persistente,
decidido, frme, sbio, sonhador, visionrio desafador e
flsofo. Gosta de criar conceitos e metforas. Ele no
tinha tripulao necessria para ir procura da ilha
desconhecida, mas mostra-se habilidoso no emprego das
palavras dirigidas, tanto ao rei quanto ao capito, a busca
de sua conquista maior: ter o barco. No fnal do conto,
ganha um atributo (na forma de uma locuo adjetiva),
passando a ser denominado como homem do leme, o
que lhe confere uma outra personalidade ou postura.
A partir desse adjetivo, ele dirige o seu prprio destino,
j que o leme (a pea ou dispositivo instalado na popa
da embarcao) serve, no barco, para lhe dar direo,
para govern-lo, dirigi-lo. Durante o conto recebe outras
caractersticas que so acrescentadas ao seu nome, de
acordo com seus desejos e suas conquistas: o homem
que queria um barco, o homem que ia receber um barco,
o homem que tinha um barco. O nmero trs tambm
aparece como um nmero signifcativo para o homem,
pois foram trs as perguntas que o rei lhe fez, foram trs
dias de espera para receber o barco, a mulher resolveu
segui-lo aps trs dias pensando no assunto, so trs
velas triangulares que aparecem no seu barco, sendo
que a soma das velas triangulares d um total de nove e
nove mltiplo de trs. O trs um nmero perfeito, a
expresso da totalidade, da concluso, exprime o mistrio
da ultrapassagem, da sntese, da unio. Para os cristos,
representa a unidade perfeita da Trindade: Pai, Filho e
Esprito Santo.
Se no sais de ti, no chegas a saber quem s.
HOMEM
166 SALMA FERRAZ
HOMEM (Caim): Salteador, alia-se ao escravo de lilith para
assassinar caim. Ri quando este mostra a marca na
testa e quando afrma que ningum pode mat-lo.
Porm, quando a arma que portava para ameaar caim
se transforma em cobra, fca horrorizado. Pede perdo a
caim que, alm de no perdo-lo, condena a sua famlia.
preso e enforcado em praa pblica e condenado
tambm a ter o corpo devorado pelas aves de rapina.
Ah, sim, j vejo, o que no vejo como pode este sinal
evitar que eu te mate.
HOMEM DA CARTA (Ensaio sobre a Lucidez): Aparece tanto
em Ensaio sobre a Cegueira como em Ensaio sobre a
Lucidez. um homem fraco e assustado e, no livro Ensaio
sobre a Cegueira, foi o primeiro a cegar, passando a ser
denominado de primeiro cego. Espalhou a epidemia para
todas as pessoas da cidade. Esta personagem retorna
no livro Ensaio sobre a Lucidez e manda uma carta para
o presidente da repblica, recordando o ocorrido h
quatro anos quando todos cegaram, menos uma mulher:
a do mdico oftalmologista. E dessa forma delata essa
mulher, cujo crime, em Ensaio sobe a Cegueira, foi o
assassinato do homem que se aproveitou da situao (a
cegueira generalizada) para molestar/estuprar mulheres,
inclusive ela. Tenta relacionar o fato da mulher do
mdico ter sido a nica a no ter fcado cega h quatro
anos com a avalanche da votao em branco. Em sua
carta, relaciona a epidemia da primeira cegueira (dos
olhos), com a segunda cegueira (dos votos em branco).
O presidente da repblica pede que ele d a sua palavra
de honra de que esquecer o contedo da carta. Ele
empenha sua palavra. Tanto o primeiro-ministro como o
presidente da repblica hesitam em classifcar seu gesto
como patritico, uma vez que ele delata, como assassina,
justamente quem o salvara na primeira cegueira a
mulher do mdico. Olhando por esse ngulo, um delator
e canalha. O primeiro-ministro sugere que a carta seja
arquivada na seco dos escritos alucinados.
HOMEM DA GRAVATA AZUL COM PINTAS BRANCAS
(Ensaio sobre a Lucidez): Atirador profssional a servio
HOMEM DA CARTA
167
do governo. Mata o comissrio com um tiro na cabea e
mata a mulher do mdico com dois tiros, alm de matar
o co de lgrimas.
HUBERT RUESCHER (In Nomini Dei): Um ferreiro que no
desempenha papel fundamental no enredo. Ilustra,
assim como Else Wandscherer, as pessoas que ousaram
se contrapor ao movimento religioso e, principalmente,
a Leiden. Foi executado por Matthys, e desse modo
torna-se exemplo para toda a cidade, para que ningum
ousasse fazer o mesmo. Essa cena demonstra a tirania e
a injustia que a nova proposta religiosa trazia.
Deus, de certeza, preferiria ser mudo toda a eternidade
se pela tua boca que tivesse de falar.
HUBERT RUESCHER
169
I
171
INS (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Secretria quase
sem expresso e peso para a trama, servindo mais de
contraponto ao prprio enredo, fgurando com falas
somente a partir do segundo ato. Suas poucas falas
insinuam o amor de Clara por Francisco e colocam em
xeque as reais intenes do fundador da companhia. No
desfecho, mesmo no concordando com a deciso do
conselho, obedece a Elias e no deseja seguir Francisco.
Ins est presente nas biografas franciscanas tradicionais:
irm de Clara, ela teria se juntado posteriormente sua
irm e vivido tambm como flha da pobreza.
INS ANTNIA (Memorial do Convento): Irm de Baltasar e
esposa dedicada ao marido lvaro Diogo e aos flhos. Seu
flho mais novo no vingar. Coincidentemente, o infante
D. Pedro tambm morre. A partir disso se estabelece
uma comparao entre o destino das crianas, cada qual
pertencente a uma classe social.
INSPECTOR (Ensaio sobre a Lucidez): Primeiro agente/auxiliar,
inteligente, bom estrategista, crtico e opinativo. Quando
entrevista a ex-mulher do homem da carta, a partir da
opinio desta fca com a impresso de que a mulher do
mdico foi uma herona no episdio da primeira cegueira.
Mas covarde e arrogante, est preocupado com seu
emprego e com sua famlia e por isso aceita as ordens do
ministro do interior para achar provas que incriminem a
mulher do mdico da responsabilidade pela votao em
branco.
Sim, se a diligncia foi desenhada para fazer de um
inocente culpado.
ISAAC (Caim): Filho temporo de sara e abrao. Mesmo o patriarca
tendo um flho com a escrava agar, ser isaac o seu
herdeiro. Como tal, ajuda seu pai em todos os afazeres, em
todas as tarefas. Em uma dessas tarefas, est auxiliando
abrao a preparar um sacrifcio e, com sua voz juvenil,
interroga o pai insistentemente sobre onde est a vtima.
salvo pela intromisso de caim, que segura a mo de
abrao antes que este desfra um golpe na garganta do
flho. Instantes depois, chega atrasado o anjo incumbido
de evitar o sacrifcio de isaac.
ISAAC
172 SALMA FERRAZ
Levamos aqui o fogo e a lenha, mas onde est a vtima
para o sacrifcio.
ISAURA MADRUGA (A Caverna): Viva, tmida, sofrida, carente,
recatada, com idade aproximada de quarenta e cinco
anos. Antes de casar ela se chamava Isaura Madruga,
depois passa a se chamar Isaura Estudiosa, sobrenome
herdado do marido (Joaquim Estudioso). Cipriano Algor e
a flha foram ao enterro do marido de Isaura, muito mais
por educao do que por amizade. Tempos depois, um
reencontro faz com que as solides mtuas se tornem
menores, dando espao paixo. A viva uma presena
discreta desde o incio do romance, quando ganha de
Cipriano Algor um cntaro de barro ela e Cipriano tm
um interesse comum por cntaros. Aps esse episdio,
ela passa a ser identifcada pelo seu sobrenome de
solteira (Madruga) e volta e meia povoa o pensamento de
Cipriano, deixando entrever que adiante ela teria uma
participao mais efetiva no enredo. Isaura Madruga
consegue viver sem a infuncia do Centro, deseja estar
ligada natureza, ver as coisas sem as maquiagens da
modernidade e da revoluo industrial. O amor de ambos
acaba se revelando quase no fnal, exatamente quanto
Cipriano est de mudana para o Centro. Ela fca, no
somente com o amor recm declarado e j, aparentemente
perdido, mas tambm com o co Achado que fcou sob sua
guarda. Tambm cuida da casa de Cipriano Algor. No
foi uma paixo desenfreada, com serenatas e passeios
ao luar seus limites se deram na timidez de Isaura e
na humildade de Cipriano. Sua atrao por Cipriano
no ganha aquela roupagem estereotipada comum aos
romances entre duas pessoas com idade j avanada,
pois o que h entre os dois , alm de amor, desejo.
Desejo este que ao mesmo tempo fsico, espiritual e
ideolgico. A perseverana e a determinao aparentam
ser as caractersticas mais evidentes nesta personagem.
uma personagem importante na deciso que todos da
famlia de Cipriano tero de tomar e o motivo pelo qual
Cipriano assume que precisa viver outra vida, que no
pode viver um mundo virtual, de sombras, que o mundo
oferecido na Caverna/Centro. No aceita viver ali, isolado,
numa caixa artifcial, como uma sombra esperando a
ISAURA MADRUGA
173
morte chegar. Isaura Madruga um elo entre o mundo
das sombras e a possibilidade de vida nova. Em sua
total discrio, ela a maior fora propulsora a arrancar
Cipriano Algor da Caverna/Centro. Isaura ajudou Marta
a escolher e selecionar os objetos para uma viagem
sem destino da famlia Algor. No fnal, parte abraada a
Marta que chorava com olhos secos, em busca de dias
melhores.
Na vida nem sempre podemos fazer aquilo de que
gostamos [...].
ISAURA MADRUGA
175
J
177
JACOBA (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Uma das
secretrias que pouco fguram na pea. Assim como
Ins, ela parece servir de contraponto ao prprio enredo.
Suas falas aparecem a partir do segundo ato. Nas
biografas ofciais de Francisco, ela aparece como fel
monja confdente e amiga de Clara e Francisco. Na fco,
resigna-se com a situao de serva da companhia e no
critica a administrao de Elias. Tambm desconfa das
intenes de Francisco, o que a faz, no desfecho, no
seguir o fundador da companhia.
Os subalternos tambm so precisos. Algum tem de ser
subalterno.
JAN DUSENTSCHUER (In Nomine Dei): Profeta coxo que apa-
rece pouco depois do incio do livro para ser batizado
como anabaptista. Foi coroado rei por Leiden, entretanto
no era o que se pode chamar efetivamente de uma
liderana, j que era um fantico que se movia mais pela
convenincia do momento do que pelo fervor da crena.
Cristo, s, nossa salvao, porque se colocou entre a
Morte e o Diabo, e assim os separou. Onde Cristo no
estiver, a Morte dar a mo ao Diabo.
JAN MATTHYS (In Nomini Dei): Apstolo anabaptista que chega
a Mnster junto com Leiden. Dirige-se a essa cidade
porque fugia da perseguio dos catlicos e soube que
ali a reforma prosperava. curioso porque, ao mesmo
tempo em que se mostra fantico, tambm tem desejos
de ambio. Parece que, a princpio, desejava apenas um
refgio onde pudesse exercer sua autoridade; entretanto,
medida que os fatos vo se desenrolando, deixa-se
enredar por Leiden e participa de uma emboscada de
morte. Enfatiza-se que participa espontaneamente,
acreditando que o plano do colega era seguro. H nessa
atitude um qu de ingenuidade, j que ele assassinado
nessa emboscada.
O senhor exalta a quem quer, para os fins que quer e
durante o tempo que quer. [...] Eis que hoje sou o Seu
profeta, quem sabe se amanh no serei o Seu capacho.
JACOBA
178 SALMA FERRAZ
JAN VAN LEIDEN (In Nomine Dei): Primeiramente apstolo
anabaptista, proclama-se rei de Mnster aps a
morte de Matthys. o principal lder da rebelio e faz
questo de manter em segundo plano a autoridade de
Knipperdollinck e Rothmann. Est claro que participou
da morte de Matthys, uma vez que a estimulou. Pode-
se dizer que a personagem mais ambiciosa do livro,
movida mais por sua vaidade e orgulho do que por seus
ideais. , sem dvida, uma fgura to perversa quanto
aqueles a quem quer derrubar. Incentiva o fanatismo
religioso na cidade, levando os fis a um extremo grotesco
e autodestrutivo, assegurando assim sua autoridade e
domnio sobre os demais. Quando a cidade invadida
e Waldeck o pressiona, ele, descaradamente, abjura de
tudo, revelando seu verdadeiro interesse: desejo de poder.
, sem dvida, um homem inescrupuloso.
Porque Deus, em Mnster, s a mim fala, e a ningum
mais.
JERNIMO (Terra do Pecado): Velho abego da quinta, esposo de
Clementina, tem as mos calejadas pelo trabalho rural.
Ele uma espcie de mestre nos trabalhos, dedicado no
seu servio e atencioso com os demais trabalhadores.
submisso a Leonor. Demonstra admirao e respeito
pelo patro e sofre profundamente com sua morte. Nesse
momento de dor, o campons revolta-se contra Deus e
questiona sua justia. Tem na sua experincia de vida
de campons, nos seus 50 anos de trabalho sob o sol,
a sua escola. essa vivncia que lhe supre a falta de
conhecimento cientfco.
JESUS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Seus cabelos so
pretos, os olhos castanho-escuros, a pele morena,
sobrancelhas negras e a barba igualmente negra. o
protagonista da trama escrita e dirigida por Deus e,
mesmo o narrador afrmando ser ele o evidente heri do
romance, isso no procede, porque o heri na realidade
o Pastor. divino, pois flho de Deus, e humano, j
que tambm flho de Jos. Na concepo de Jesus, o
divino fecunda a carne humana, como na antiga Grcia,
onde os deuses desciam do Olimpo para se relacionar
JESUS
179
com os humanos, fazendo nascer os heris, estes semi-
deuses que nada mais eram que humanos virtuosos sob
determinados aspectos. O Jesus que encontramos nos
Evangelhos obedece a essa herana grega, tal qual o
Jesus de Saramago, nascido do encontro do mortal e do
imortal. na releitura dos Evangelhos que Saramago
nos devolve ao clssico debate flosfco sobre nossa
essncia e condio humanas. No fcil sabermos quem
exatamente este flho de Deus, se homem, se divindade.
Jesus representa, na obra de Saramago, a humanidade e
sua angstia primitiva, e como todo ser humano, desafa
Deus. Neste evangelho profano, espcie de desevangelho,
Jesus mostra ser um homem comum como qualquer
outro homem, come, dorme, ri, chora, entrega-se aos
prazeres da carne, porm ele sabe que j no seu
nascimento tivera que carregar uma culpa herdada de
seu pai. Essa culpa herdada deve-se ao fato de que, para
que ele vivesse, seu pai deixara que outras vinte e cinco
crianas inocentes fossem assassinadas quando do seu
nascimento. Salvou-se dessa primeira morte, mas no se
salvar da segunda e defnitiva morte. Ao herdar as
sandlias de seu pai Jos e cal-las no dia da sua morte,
herda os sonhos, a culpa e o destino do mesmo, j que,
assim como seu pai, num sistema fgurativo perfeito, ele,
inocente tambm, ser crucifcado aos trinta e trs anos.
Ao constatar que Jos fora o responsvel pelas mortes
dos inocentes de Belm, compreende, aos treze anos, que
seu futuro ser um futuro de mortes principiadas. Tem
nos olhos uma marca de tristeza, um brilho mido como
se tivesse acabado de chorar; e mostra tendncia para o
devaneio e o sonho. Sente um cansao pelo futuro que
ter e experimenta uma revolta latente. Homem simples,
inteligente, desde pequeno sabia o que lhe estava
destinado. Filho de Maria e do carpinteiro Jos, uma
cobaia de Deus, acuado constantemente, sem livre
arbtrio, ou seja, no tem sada, est predestinado. Desde
cedo, ele no se conforma pela culpa que carrega, primeiro
pela matana dos inocentes de Belm, depois pelo fato de
ter sido eleito o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado
do mundo. Ele recrimina a atitude de Jos perante a
matana das crianas de Belm. Diante de Madalena
afrma que tem morrido mil mortes. Desafa Deus ao dizer
JESUS
180 SALMA FERRAZ
que o cordeiro no morrer. Mais tarde, ele passa quatro
anos no deserto com o Pastor de ovelhas, na realidade o
Diabo/Lcifer, que tenta ajud-lo a escapar do cruel
destino proposto por Deus. Em sua convivncia com o
Pastor, debatem constantemente e passam por diversos
enfrentamentos ticos e teolgicos, nos quais o Pastor
sempre sai vitorioso. Jesus bem que tenta: primeiro pela
fgura do cordeiro que ele poupa do sacrifcio; depois, j
em seus ltimos dias, quando tenta convencer seus
discpulos de que ele deveria morrer como Rei dos Judeus
e no como flho de Deus, deixando de se cumprir, dessa
forma, a vontade do implacvel e impiedoso Senhor.
Infelizmente a vontade divina prevalece e Jesus morre
dependurado na cruz. Seu destino destino de uma
cobaia de Deus, uma espcie de (des)heri. Como um
homem, possua desejo sexual, desejo este que surge
antes dele conhecer Maria Madalena. iniciado
sexualmente por Maria de Magdala de quem se torna
amante e amado. Ela assume em sua vida o papel de
amiga, amante, irm, conselheira, me e discpula
amada. Ele prefere ser chamado de Jesus de Magdala em
vez Jesus de Belm, tornando-se, de certa forma, discpulo
de Madalena, j que por meio dela ele nasce de novo. No
convvio com Madalena, Jesus ria como uma criana.
Maria de Magdala, como mulher e me, substitui Maria
de Nazar, sua progenitora, com quem Jesus tinha um
relacionamento difcil. Maria de Magdala quem coloca
nas bordas de sua tnica vinte moedas. Ele, sem saber,
acaba encontrando as moedas quando retorna para a
miservel casa de sua me. Esse episdio torna evidente
o grave problema familiar que existe, j que ele tido
como mentiroso, e mais tarde como louco por afrmar
que viu Deus. Seu relacionamento com a me tenso e
permeado por discusses violentas. Repete por trs vezes
que viu a Deus, mesmo assim sua famlia no acredita
nele. Quando Tiago e Jos levam o infeliz e dbio recado
de Maria (de que se o Senhor quisesse eles viriam a crer
em Jesus), o confito se torna defnitivo e Jesus responde:
Quem minha me, quem so os meus irmos, meus
irmos e minha me so aqueles que creram na minha
palavra na mesma hora em que eu a proferi [...]. O
romancista criou um Jesus que refete as suas prprias
JESUS
181
dvidas. Este Jesus, Filho do Homem, um humanista
radical. Segundo o narrador, Jesus no consegue
entender que no existe diferena entre o Bem e o Mal, j
que o Bem e o Mal no existem em si mesmo, cada um
deles somente a ausncia do outro. Sua trajetria pode
ser resumida da seguinte forma: teve dois pais, nasceu
inocente, carregou a culpa de seu pai Jos pelas mortes
das crianas, andou pela montanha com o rebanho do
Diabo, dormiu com Maria de Magdala, soube de seu cruel
destino pela boca de Deus, tentou morrer como
revolucionrio, mas terminou mesmo como vtima
involuntria e necessria para a fundao do cristianismo.
Faz muitos milagres: realiza a multiplicao dos peixes,
acalma a tempestade no mar, transforma gua em vinho,
evita a lapidao de uma adltera, realiza a cura de um
leproso, de um paraltico e de um mudo. Como todos os
discpulos, usa um grande cajado, barba solta e veste
um pesado e escuro manto sobre uma tnica muito
velha. Lidera os discpulos na expulso dos cambistas do
templo. Dois de seus maiores milagres, contudo, no
deram certo. Primeiro no ressuscita Lzaro, porque
Madalena impede e com frase maravilhosa deixa Jesus
paralisado: Ningum na vida teve tantos pecados que
merea morrer duas vezes. Dessa forma, o milagre no
se realiza. Esse foi o milagre que mais o perturbou,
justamente um que no aconteceu. O segundo milagre
a expulso dos demnios do homem de Gadara revela-
se um verdadeiro fasco. Jesus aceita a sugesto dos
demnios e os encaminha para uma vara de porcos.
Esquecera-se, porm, que os porcos no sabem nadar e
que, como os demnios no tm corpos, eles no
morreriam. Os dois mil porcos precipitam-se no mar e
morrem afogados. Jesus reconhece que fora enganado
pelos demnios, e chega concluso de que o humilhado
fora ele e no os demnios. Logo em seguida h uma
reunio entre os discpulos; quando Simo pergunta se
seria ele o Messias que viria a resgatar o povo de Deus da
servido, Jesus se surpreende. A partir do milagre da
multiplicao dos pes e dos peixes, chamado de
Messias por alguns e de mago por outros seguidores. J
os pescadores o chamam de rei dos peixes, pois aonde
ele chega a pesca abundante e maravilhosa. O mais
JESUS
182 SALMA FERRAZ
importante do episdio da expulso do endemoninhado
de Gadara que os demnios afrmam que Jesus o
flho de Deus, fato este que nem Maria, nem Pastor, nem
Deus tinham afrmado explicitamente. Jesus no se
conforma de que at o Diabo sabia que ele era Filho de
Deus, menos ele, que at ento s tinha suspeitas,
nenhuma certeza. Foi justamente pela boca de um
endemoninhado que ele soube ser o Filho de Deus.
Prefere, no entanto, ser conhecido como o Filho do
Homem. Numa das cenas mais tensas e lindas deste
quinto evangelho, Jesus sai da vila de pescadores e vai
para o mar encontrar-se com Deus. Essa transio da
vila para o mar nos remete a duas leituras: a) Jesus
deixando os homens; e b) a troca dos elementos, da terra
para a gua, do visvel ao invisvel. Comecemos pela
primeira. Jesus deixa os homens de forma semelhante
que abandonar a sua humanidade, abraando sua
divindade. uma barca, qual a de Caronte, cujos homens
vivos no podem pegar. Ele cruza a fronteira as guas,
tais quais as do Aqueronte que separa os homens de
Deus, que separa a vida da morte. E quanto a nossa
segunda leitura, observamos Jesus deixando a terra,
slida, frme, estvel e partindo para a instabilidade, a
insegurana, os caprichos do mar. Deixa a humanidade
com a qual se identifca e que entende, e passa a encarar
a divindade, voluntariosa, instvel, desconhecida e
profunda como o mar. O mar, tambm, como o constata
Deus, como o deserto. E Jesus passa quarenta dias no
mar, como foram os quarenta dias no deserto do relato
bblico. Em ambos os casos, evanglico e fccional,
quarenta dias de tentaes. Outro detalhe relevante
determinante at o cuidado com que o autor constri
o ambiente da prpria barca. Fazendo uma anlise da
cena, temos Jesus se lanando ao mar, na barca, no
incio da narrativa. Ele senta-se no banco de proa (na
parte da frente do barco) deixando o banco de popa vazio.
Tomando os remos, ele leva a barca em direo a seu
destino remando, portanto, de costas para seu destino.
Ele, apesar de se direcionar a Deus, mantm-se sempre
voltado para a margem, para a terra, para os homens,
dando as costas para Deus, para o mar, para sua
divindade. J no centro do mar, ele fca frente a frente
JESUS
183
com Deus uma posio de interlocuo e debate, bem
diferente daquela com que est com Simo, seu amigo,
lado a lado, ombro a ombro, na barca. Ele est frente a
frente, encarando Deus e sua prpria divindade. o
confronto decisivo e fnal. Quando Jesus retorna do mar,
quando j aceitou sua divindade e seu papel nos planos
de Deus, temos o inverso do incio da cena: Jesus agora
est voltado para o mar, para sua origem divina, para
Deus e d as costas s margens, terra, a sua humanidade,
qual retorna agora como Filho de Deus. J na barca,
Jesus mostra-se sempre consciente do poder de Deus,
mas no deixa de desaf-lo, provoc-lo, numa
insubmisso em busca de respostas, como a de J e, no
fnal, Jesus admite sua parte no contrato. A palavra
contrato, e termos legais como clusula, lei, documento,
pacto, acordo, aliana, tratado, surgem com freqncia,
colocando Jesus na posio de negociador com Deus (a
parte com a clara vantagem contratual) aos olhos do
Diabo, que se interpe quase como um mediador. At o
momento em que se encontra na negociao, Jesus
muito mais humano que divino, afrmando inclusive,
com as suas prprias palavras. A sua origem divina
posta em dvida inclusive por Deus que afrma que como
no tinha um flho no cu, teve que arranj-lo na terra
mesmo. Por outro lado, na seqncia Deus diz que Jesus
encarnou, como se fosse um ser celeste em corpo de
homem. Essa dicotomia entre homem e deus est
presente em toda a cena, mas se destaca no meio do mar,
como um perodo transitrio entre o Jesus Homem do
incio da manh e o Filho de Deus depois dos quarenta
dias. Jesus se mostra, alm de insubmisso, um astuto
negociador, obrigando Deus a confrontar-se com o mal
que causar aos homens, por pginas e pginas de
martirizados e sofredores. Jesus d ele prprio o resumo
de sua trajetria: Sou Jesus de Nazar, flho de um
carpinteiro que morreu crucifcado pelos romanos, durante
um tempo pastor do maior rebanho de ovelhas e cabras
que j se viu, agora convosco, e porventura at hora de
minha morte, pescador. Planeja morrer simplesmente
com um homem para frustrar os planos Deus. Para isso
intenta se auto-proclamar Rei dos Judeus e incitar o
povo a derrubar Herodes. Pede que os discpulos
JESUS
184 SALMA FERRAZ
divulguem isso e s Judas aceita faz-lo. Perante o Sumo
Sacerdote, Jesus reafrma com veemncia que o rei dos
Judeus. Confrma sua posio perante o interrogatrio
conduzido por Pilatos. Reafrma, perante o sacerdote, ser
o Rei dos Judeus e Filho do Homem. Perante Pilatos,
enfatiza que contra ele, contra Csar. Jesus quem
pede a Pilatos a morte na cruz e ainda Jesus quem faz
a Pilatos um estranho ltimo pedido: Peo-te que mandes
pr por cima da minha cabea um letreiro em que fque
dito, para que me conheam, quem sou e o que sou.
Pilatos solicita um material necessrio para escrita e com
suas prprias mos escreve: Jesus de Nazar, Rei dos
Judeus. Mas na ltima hora Deus frustra seus planos,
ao aparecer no cu nos momentos fnais do sofrimento
na cruz, e proclamar Tu s meu Filho muito amado, em ti
pus toda a minha complacncia. Depois de ver que todo
seu plano fracassara e que ele estava morrendo como
Filho de Deus, Jesus clama para os cus antes de morrer,
pedindo que os homens perdoem a Deus. Jesus lembra
J questionando a justia de Deus. Ambos infelizes,
ambos homens, demasiadamente humanos, trucidados
por um poder superior e extremamente arrogante que
no aceita questionamentos.
Homens, perdoai-lhe, porque ele no sabe o que fez.
JOANA (Terra do Pecado): Cozinheira da quinta, gorda e rubicunda,
com a voz afautada. Praticamente nascera ali e a nica
coisa que sabia fazer na vida era cozinhar.
JOANA CARDA (A Jangada de Pedra): Mulher nova, simptica,
bonita, tem olhos com cor de cu novo, cabelos pretos,
pele muito branca, separada e morava em Coimbra. Ela
faz um risco com uma vara de negrilho no cho, que no
se apaga, e nesse momento os ces de Cerbre comeam
a ladrar. Isso est relacionado pedra lanada ao mar
por Joaquim Sassa e ao fato de Pedro Orce ter sentido a
terra tremer sob seus ps. Aps a ocorrncia desses trs
fatos, a Cordilheira dos Pireneus comea a rachar e a
separar-se da Frana. A Pennsula Ibrica desprende-se
do continente europeu e transforma-se em uma jangada
de pedra em busca de suas origens. Joana Carda muito
JOANA CARDA
185
decidida e quem vai procurar Jos Anaio, Joaquim
Sassa e Pedro Orce. ela que d o primeiro beijo em
Jos Anaio e tambm ela que diz pela primeira vez que
eles iriam dormir juntos. S confa em quem acredita em
suas palavras.
Ama Jos Anaio, mas quando percebe que, por piedade,
Maria Guavaira havia dormido com Pedro Orce, Joana
Carda faz o mesmo, para dividir o favor, a caridade da
amiga para com o triste Orce. Joana Carda dorme com
Orce com o conhecimento de Jos Anaio e depois afrma
que as culpadas disso so ela e Maria Guavaira. No
aceita que sua atitude seja questionada nem que Pedro
Orce seja mandado embora. Engravida, sem saber quem
o pai.
Nem todas as coisas nascem umas para as outras.
JOO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Pescador de Genesar,
amigo de Simo e Andr, flho menor de Zebedeu e
irmo de Tiago. Um pouco mais que adolescente, possui
cabelos cacheados e modo amaneirado, com atitude
afetada e teatral, tem os lbios trmulos. o mais novo
dos discpulos, mais novo que Jesus, a quem se afeioa,
pedindo-lhe que permanea mais tempo em Genesar.
Impressiona-se com os prodgios de Jesus, principalmente
quando ele faz com que a pesca seja abundante e quando
acalma a tempestade. Est presente no episdio da
expulso dos demnios do gadareno e aconselha Jesus
para que fujam das pedradas. Na reunio em que todos
os discpulos comentam o fato de os demnios terem
informado que Jesus era flho de Deus e fcam surpresos
com o fato de o Diabo ter falado a verdade, Joo questiona
sobre os mistrios que h entre o Diabo e Deus. Ele est
presente na crucifxo de Jesus.
Que coisas que ns no sabemos haver entre o Diabo e
Deus.
JOO ELVAS (Memorial do Convento): Antigo soldado e um
dos primeiros amigos que Baltasar faz assim que
chega a Lisboa. Sujeito malandro que vive de esmolas.
Desaparece da estria assim que Baltasar conhece
JOO
186 SALMA FERRAZ
Blimunda e Bartolomeu, reaparecendo somente no
episdio do casamento das casas reais de Portugal e
Espanha, j ento com 60 anos. Talvez pela idade e pela
vida errante, sente saudades de sua terra natal, Elvas,
para onde resolve voltar aproveitando-se da viagem real
que passar pela cidade, a qual vai acompanhando.
quieto e gosta de andar solitrio.
Mas, em verdade, um homem nunca sabe para o que est
guardado, que parte de bem e mal o espera.
JOO FRANCISCO MATEUS (Memorial do Convento): Pai de
Baltasar, alto, mas j curvado pela idade. Nasceu e
viveu a vida inteira em Mafra. Sente muito amor pelo
flho, o que fca claro quando Baltasar e Blimunda, a
quem ele trata por flha, deixam Mafra para retornarem a
Lisboa, uma vez que ele envelhece o dobro com a partida
dos dois. Com a morte da esposa, torna-se mais fechado
e silencioso.
quando somos velhos que as coisas que esto para vir
comeam a acontecer [...].
JOO I (Terra do Pecado): Menino, se apresenta para Dionsio
com quem iria estudar em Lisboa. Vai at a Quinta Seca,
passar umas frias.
JOO II (Terra do Pecado): Empregado de Leonor e namorado de
Tereza.
JOO MAU-TEMPO (Levantado do Cho): Personagem perten-
cente segunda gerao: tempo de perguntas. Primeiro
flho de Domingos Mau-Tempo e Sara Conceio. Joo
foi a causa principal do casamento dos pais, porque
foi concebido na ocasio em que sua me, por prazer,
deitou-se no meio de uma seara de trigo com seu pai,
Domingos Mau-Tempo. A gravidez fora do casamento foi
o argumento encontrado para que Laureano Carranca,
pai de Sara, cedesse e a unio acontecesse. Antes porm,
abriu os olhos da apaixonada flha sobre o carter de
Domingos Mau-Tempo um relaxado com fama de
bbado. Para ela, isso no importava, j que se no
JOO MAU-TEMPO
187
casasse com ele no casaria com ningum. Dessa unio,
nasceu Joo Mau-tempo. Era irmo de Anselmo, Maria da
Conceio e Domingos. Tinha olhos azuis, descendncia
germnica herdada do pai, o corpo pequeno e robusto.
Amava e respeitava muito sua me. Com a idade de dez
anos, comeou a trabalhar no campo. Era namorador,
disputado pelas raparigas, estudioso, trabalhador e
sonhador. Casou-se com Faustina e a amou at o fm
de seus dias; com ela teve trs flhos: Antnio, Amlia
e Gracinda. Joo Mau-Tempo faz jus ao tempo que o
autor considera tempo das perguntas, uma vez que lutou
contra a explorao dos trabalhadores no latifndio.
Grevista, possua um discurso comunista e por causa
disso foi preso trs vezes. Por fm, envolveu-se em um
movimento revolucionrio, foi preso, fcou trinta dias
sozinho apanhando e sofrendo muito. Era av de Maria
Adelaide Espada. Os olhos azuis da menina eram iguais
aos dele, herdados do seu quadricentenrio av vindo
da Germnia; durante quatro sculos os olhos azuis
apareceram e desapareceram naquela famlia, tal como
os cometas. Na hora de sua morte, olha a neta e sente
que apenas havia acorrido uma troca de olhos. Esse
acontecimento o faz pensar que seus olhos, bem como
suas esperanas, sua famlia, seu desejo por justia e
sonhos so imortais.
[...] quem procura sempre alcana [...].
JOO, O BATISTA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Trata-
se de Joo Batista, que morava no deserto e profetizava
maneira dos antigos profetas do Antigo Testamento.
Sua voz podia fazer rolar pedras e seus braos podiam
mover montanhas, na descrio do narrador. Um homem
alto e forte, com uma grande barba que parece de
espinhos, traja vestes simples feitas de pele de camelo
e alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre, o que leva
Jesus a dizer que Joo se parece mais com o Messias do
que ele. Judas de Iscariote e Tom informaram a Jesus
que Joo pregava no deserto quando recebeu a palavra
de Deus e depois disso foi para as margens do Jordo
a pregar o batismo de penitncia e arrependimento dos
pecados: Raa de vboras, quem vos ensinou a fugir da
JOO, O BATISTA
188 SALMA FERRAZ
clera que est para chegar, deveis produzir frutos de
arrependimento sincero e no vos iludirdes a vs mesmos
dizendo que tendes por pai a Abrao, pois eu vos digo
que Deus pode, destas brutas pedras, suscitar novas
vergnteas a Abrao, deixando-vos a vs desprezados
[...]. Joo denuncia o incesto e adultrio de Herodes e de
sua sobrinha e cunhada Herodades. Por isso preso e
degolado. Tom e Judas de Iscariote perguntam a Joo
se ele era o Messias ao que ele responde:
Eu baptizo-vos em gua para vos mover ao arrependimento,
mas vai chegar quem mais poderoso do que eu, algum
cujas sandlias no sou digno de desatar, que vos
baptizar no Esprito Santo e no fogo [...].
JOAQUIM (O Evangelho segundo Jesus Cristo): Homem que, em
avanada idade, gerou Maria, me de Jesus e esposa de
Jos.
JOAQUIM SASSA (A Jangada de Pedra): Homem ainda novo,
solteiro, com trinta e poucos anos (mais perto dos
quarenta), sobrancelhas pretas, olhos castanho-escuros,
cabelos lisos, feies comuns, as faces magras, os lbios
parecem cheios apenas quando fala. portugus, mora
no Porto e trabalha em um escritrio. pessimista, acha
que as coisas vo dar sempre erradas. Atira uma pedra
no mar e ela vai muito mais muito longe do que sua fora
seria capaz. Tem a coragem de viajar atrs de pessoas
com as quais ocorreram fatos estranhos. Apaixona-se
por Maria Guavaira.
A minha sabedoria est-me aqui a segredar que tudo s
parece, nada , e temos de contentar-nos com isso.
JOAQUIM TENDEIRO (Terra do Pecado): Trabalhava numa
tenda/taberna vendendo diversos artigos. Homem gentil
que trata muito bem seus fregueses, porm gosta muito
de fofoca. Usa um guarda-p para atender os clientes com
muita mesura, e fornece seus produtos para a quinta.
Nunca se conformou com sua posio social e por no ter
se casado com Benedita.
JOAQUIM SASSA
189
JOAQUINA (Terra do Pecado): a criada mais nova da casa de
Maria Leonor. Tem o rosto arredondado e alvo. Ela a
primeira a perceber, ou pelo menos a dizer com todas as
letras, qual o mal que afigia a patroa: o motivo do mau
humor e rano de Maria Leonor era a falta de homem.
Com essas palavras, desperta a ira de Benedita, sendo
ameaada e perseguida pela criada, que se mostra
bastante agressiva e irritada.
A senhora tem falta de homem!
JORNALISTA (As Intermitncias da Morte): Juntamente com
os demais representantes da mdia dAs Intermitncias
da Morte, demonstra uma preocupao extrema com a
gramtica e com a repercusso possvel para cada uma
de suas palavras. Ao conversar com o ministro da sade,
o jornalista discute por algum tempo se a palavra alarme
seria a ideal para representar a mensagem do governo.
Primando ao mximo pelo rigor gramatical, o jornalista
mostra-se mais preocupado com os efeitos das notcias a
serem publicadas do que com a verdade em si, chegando
a optar por no publicar certas frases, certas notcias,
por medo da reao popular.
Mas, agora que no se encontra quem esteja disposto
a morrer, quando o senhor ministro nos vem pedir que
no nos alarmemos, convir comigo, que, pelo menos,
bastante paradoxal.
JOS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Pai de Jesus e marido
de Maria, obcecado pelo temor a Deus, diariamente
repete bnos e louvores ao Senhor por no ter nascido
mulher, demonstrando o orgulho de ser varo e macho.
O narrador o descreve impiedosa e pejorativamente como
um homem inseguro, machista, desconfado, misgino,
indeciso, simples, estpido, ridculo, ignorante,
insensato, incompetente, desconfado, medroso, que
teve uma trajetria marcada pela culpa e pelo remorso.
J no incio da trama o narrador afrma que Jos no
tinha imaginao criadora e que nunca na vida seria
capaz de produzir uma parbola digna de ser recordada.
No entanto o narrador engana o leitor, porque Jos em
JOS
190 SALMA FERRAZ
muitos dilogos mostrar um domnio absoluto como,
por exemplo, no fnal de um debate, quando aniquila seu
vizinho Ananias com esta frase: certo que Deus nem
sempre quer poder o que pode Csar, mas Csar nada
pode onde s Deus pode. Ao contrrio do que afrma
o narrador, Jos capaz de produzir frases dignas de
um flsofo como a resposta acima dada a Ananias. Em
outra oportunidade Simeo, um ancio, prope a Jos
uma questo intrigante: como deveria recensear-se
Maria, que tinha um flho dentro de si. Nessa discusso,
o patriarca Simeo vencido vrias vezes por Jos
que, a despeito da antipatia do narrador, capaz de
levar o seu interlocutor ao desespero, com sua perfeita
argumentao: Deus quis o que fez e fez o que quis, nas
suas mos que est o meu flho, eu nada posso. Mesmo
tendo vencido o ancio na disputa verbal, humilde e
vai pedir-lhe desculpas. ainda retratado pelo narrador
como um carpinteiro inbil, profssional incompetente
sem muito talento e capricho, um ser pattico capaz de
agradecer a Deus, aps urinar, por ter todos os orifcios
necessrios vida. Reforando o que j foi dito acima,
para o narrador ele intelectualmente nulo, incapaz
de produzir uma nica frase que entre para a memria
dos seus contemporneos, mas isso no corresponde
aos fatos e s falas de Jos, que se mostra um astuto
argumentador em vrias ocasies. Jos desperta muito
interesse no leitor devido ao fato de ter sido construdo
genialmente pelo autor, j que nos Evangelhos pouco,
ou quase nada, relatado sobre sua vida. Este Jos, ao
contrrio do Jos evanglico, possui sexualmente Maria
e assim geram Jesus, que na realidade flho dele e de
Deus que, por ser divino, est em toda parte e estava
ali, em esprito, no momento da concepo. Jos, com
seu suposto carter fraco e perfl inseguro, desconfa de
sua paternidade em relao a Jesus e da sinceridade de
Maria. O que mais marca essa personagem a sua crise de
conscincia gerada pelo fato ocorrido em Belm, no tempo
em que seu flho Jesus era recm-nascido e os soldados
de Herodes assassinaram todos os meninos com menos
de trs anos de idade menos Jesus , pois Jos ouvira a
conversa dos soldados e correu para salvar o flho. Essa
atitude, do ponto de vista do Pastor e de Jesus, foi egosta
JOS
191
e covarde, porque ele no pensou nos outros inocentes.
Mas podemos compreender essa atitude como um ato
que s um pai amoroso seria capaz de fazer. Devido a
esse ato herico que, no entanto, interpretado pelo
Pastor e por Jesus como um ato covarde, Jos apresenta
uma expresso de amargura, envelhece precocemente,
apresenta rugas em todo o rosto, quase no dorme em
virtude dos pesadelos e do remorso que martirizam sua
conscincia. Segundo o narrador, Jos est vivo, mas
seus olhos j esto mortos. Esse personagem dramtico,
por sua trajetria, pode ser considerado o bode expiatrio
deste evangelho profano, assim como o bode expiatrio
do Antigo Testamento, o qual carregava em si todos os
pecados e todas as culpas. Nesse caso, Jos carrega a
culpa pelas mortes das crianas de Belm, uma culpa
eterna que passa de pai para flho, culpa que Jesus
herdar. atormentado constantemente por pesadelos
que lhe recordam a sua covardia. A partir desse episdio
seus olhos no tm expresso alguma. E, como bode
expiatrio, sacrifcado, ou seja, crucifcado, sem se
defender, aos trinta e trs anos em Sforis, junto com os
seguidores de Judas, o Galileu, quando tenta resgatar
seu vizinho Ananias e confundido com um desses
seguidores. Morre de forma inocente, mas, segundo
Jesus, ele no viveu inocentemente. Em tenso dilogo
com Maria, Jesus diz: Teu marido morreu inocente, mas
no viveu inocente. Jos no proclama sua inocncia
perante os soldados romanos porque inocente da
revolta e traio que lhe acusam, mas no inocente
das mortes dos vinte e cinco meninos de Belm. Foi
crucifcado entre os quarenta fariseus revoltosos e teve
que assistir a todos os martrios, sendo ele o ltimo a ser
levado ao patbulo. Quando Maria e Jesus o retiraram
da cruz, parecia um fantoche. Sua trajetria desde o
incio est fadada ao fracasso, j que vive no em busca
de uma estria, de um amor, mas de si mesmo e do
sentido da prpria vida. Jos, ao salvar seu flho Jesus
em detrimento dos inocentes de Belm, predestina a si,
predestina Jesus, predestina todos os seres humanos
culpa infndvel. Aceita e prega a onipotncia divina e
jamais a questiona, declarando a impotncia do homem
frente inexorvel fora da moira, do destino. No
JOS
192 SALMA FERRAZ
nem protagonista nem antagonista. Transforma-se num
reprodutor, gerando flhos em Maria, para compensar o
nmero dos inocentes mortos em Belm. Para o narrador,
o remorso de Deus e o remorso de Jos eram um s.
Passa sua vida sendo atormentado por um pesadelo
horrvel: sonha que era um soldado que vai armado para
a aldeia matar seu prprio flho. Ele havia salvado Jesus,
mas nos sonhos ele se parecia com um verdugo. Como
um fantoche, nasce predestinado culpa, ao remorso,
rejeio de seu flho, morte infame na cruz, uma espcie
de suicdio, j que podia ter se defendido, mas no se
defendeu. Sua morte funciona como uma prolepse, um
sistema fgurativo perfeito da futura morte de Jesus. Ao
herdar-lhe as sandlias, seu flho herda a culpa e, ao
mesmo tempo, o destino do pai: a cruz. O grande pecado
de Jos a omisso. Por isso entra em crise moral, crise
de conscincia, sentimento de culpa que o leva a aceitar
a morte na cruz, sem se defender.
Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso
dar-te todas as respostas.
JOS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Maria e Jos,
irmo de Jesus. Tem quatorze anos e carpinteiro.
enviado por Maria, juntamente com seu irmo Tiago,
para levar um recado infeliz para Jesus: [...] nele cremos
e, querendo-o o Senhor, viremos a crer no que nos disse.
Depois do recado dbio crem, mas no muito , a
situao se torna mais tensa entre Jesus e sua famlia.
Jos no se intromete no dilogo entre Tiago e Jesus. Ao
ver que o recado dado por Tiago piora defnitivamente
o confito familiar, ele chora de desgosto. Jos fca
assombrado com as notcias que recebera sobre Jesus
antes de encontr-lo. No encontro com Jesus, demonstra
alegria.
Minha me, estamos pagando o que fizemos, e o meu
temor, eu que vi a Jesus e o ouvi, que seja para sempre,
que de l onde est no volte nunca.
JOS (Todos os Nomes): * auxiliar de escrita na Conservatria
Geral do Registro Civil h vinte e seis anos. Tem cinqenta
JOS
193
e dois anos, um homem solteiro, solitrio, metdico,
cordato, reservado, humilde, sem bens materiais, reside
em um pequeno anexo da Conservatria Geral. Alm de
fazer omeletes, seus dotes culinrios no passam de abrir
latas. Possui uma garrafa de aguardente que guarda para
as ocasies boas e ruins, mas sua vida no tem nem
ocasies boas nem ruins. De todos os nomes, o nico
que possui nome prprio e no um epteto que designa
uma qualidade, uma caracterstica, um parentesco ou
um cargo. Comea a colecionar os dados disponveis na
Conservatria Geral de cem pessoas famosas. Um dia,
pega por acidente o arquivo de uma mulher desconhecida
e descobrir dados sobre ela vira seu objetivo de vida.
Tal objetivo o torna vivo novamente. Jos comea a se
preocupar com algo alm de fazer bem o seu trabalho.
Essa preocupao o faz mentir, invadir uma propriedade
privada, sair da Conservatria, conhecer lugares
diferentes e, para tanto, vai vencendo as tonturas, os
medos, os anseios, as fobias. Foi o fo de Ariadne que o
trouxe de volta vida. Escreve uma espcie de dirio das
suas aventuras e conversa muito consigo mesmo e com
personifcaes, como o teto do seu quarto. Mesmo com
todo o seu desejo de encontrar a mulher desconhecida,
conhece a mulher do rs-do-cho direito, por quem nutre
uma amizade muito especial. H muito, o conservador
sabia de suas atividades e no o demite, propondo que
Jos continue suas investigaes, sempre mantendo a
discrio. Termina a narrativa entrando no tenebroso
labirinto de arquivos, mas vai preso ao fo de Ariadne.
**Funcionrio irrepreensvel, reside no local de trabalho
em uma vivenda rstica acoplada parede lateral do
cartrio, com uma porta interna que permite o acesso
Conservatria. O Sr. Jos tem um hobby, que apesar
de inocente mantm em segredo: colecionar informaes
sobre pessoas famosas. Um dia, sem que entenda o porqu,
num insight, ele se d conta de que, se transpusesse
a porta que separa sua casa da Conservatria, teria
acesso a dados essenciais para completar sua coleo
de celebridades. Trmulo, angustiado, ao atravessar
aquela porta ele comete a sua primeira transgresso, a
que se seguiro muitas outras. Numa das empreitadas
noturnas que realiza no arquivo, o acaso coloca em suas
JOS
194 SALMA FERRAZ
mos o verbete da mulher desconhecida, cuja presena
impalpvel vai despertar nele todas as inquietaes at
ento inexistentes. Essa desconhecida vai ofuscar as suas
celebridades, e lan-lo num estado de transe, numa
busca frentica e inconsciente de si mesmo e do outro, e
de um sentido para o mundo, alm de um desejo, nunca
explicitado, de vivenciar um amor. Rompendo seus limites
fsicos e morais, ele se afasta da vidinha opaca e inspida,
invade espaos proibidos, forja documentos, mente,
vivendo aventuras e angstias jamais imaginadas.
absurdo, mas j era tempo de fazer algo absurdo na
vida.
JOS ANAIO (A Jangada de Pedra): Tem dentes muito brancos,
harmonia na face magra, nenhuma feio lhe sobressai.
Vive sozinho, separado e no tem flhos, por isso no tem
medo de viajar com estranhos. professor das primeiras
letras, tem sempre respostas prontas e demonstra ser
conhecedor de todas as cincias. Desde que a Pennsula
se solta do continente europeu, um bando de estorninhos
o segue aonde ele vai. Apaixona-se por Joana Carda no
momento em que a v. um portugus educado e muito
curioso.
Se um dia tiveres um filho, ele morrer porque tu nasceste,
desse crime ningum te absolver, as mos que fazem e
tecem so as mesmas que desfazem e destecem, o certo
gera o errado [...].
JOS DE ARIMATIA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo):
Tem a barba comprida, adorna-se com ricas vestes,
possui uma postura solene e triste semblante. Homem
bondoso e abastado que ofereceu os prstimos de um
tmulo para que o corpo de Jesus fosse ali depositado.
Esse ato, no entanto, no lhe ajudar a transformar-se
em beato ou santo, j que no quadro de Drer que abre
o captulo primeiro, ele aparece sem a aura peculiar que
envolve os santos. No momento fnal da crucifxo, olha
diretamente para Jesus.
JOS PEQUENO (Memorial do Convento): Trabalhava na
construo do convento de Mafra. Foi para l com o
JOS ANAIO
195
intuito de cuidar dos bois, mas, por ser corcunda,
comeou a trabalhar puxando carrinho de mo. um
homem bem humilde e conformado com a sua situao
a de trabalhador explorado. Achava que as mulheres
no lhe queriam porque era muito corcunda. Mesmo no
tendo famlia nem dinheiro, ele no reclamava da vida.
Como que um boieiro se faz homem [?]
JUDAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Maria e Jos,
irmo de Jesus.
De tanto tempo, que dinheiro trazes...
JUDAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Guerrilheiro rebelde
ao poder de Roma, nascido na Galilia, conhecido como
Judas Galileu. Lutou contra os romanos na cidade de
Sforis. Muitos dos seus seguidores so crucifcados. O
vizinho de Jos, Ananias, j em idade adiantada deixa
sua casa e esposa para segui-lo, morrendo coberto de
feridas em Sforis.
JUDAS DE ISCARIOTE (O Evangelho Segundo Jesus Cristo):
citado pela primeira vez por Deus na tensa cena da
barca, em que Jesus fora Deus a relatar o que ocorreria
depois de sua morte. Deus inicia uma longa enumerao
das centenas de mortes daqueles que morreriam por
Jesus e em Jesus. Logo aps relatar como morreriam os
primeiros discpulos, Deus informa [...] tambm Judas
de Iscariote, mas desse virs tu a saber melhor do que
eu, salvo a morte, por suas prprias mos enforcado
numa fgueira. Isso leva a pensar que Judas estava
predestinado a trair Jesus, que Deus sabe o futuro de
Judas por antecipao. E se ele estava predestinado,
portando deveria ser inocentado. Judas de Iscariote
se converte logo aps o milagre da transformao dos
pssaros de barro em pssaros verdadeiros. Viaja em
companhia de Tom e vai ter com Joo, o profeta, sendo
por ele batizado. No retorno relata que Joo pregava o
batismo de penitncia para remir os pecados, chamando
aos brados os pecadores de raa de vboras, profetizando
que em breve chegaria algum mais poderoso que ele
JUDAS DE ISCARIOTE
196 SALMA FERRAZ
e que batizaria a todos com o poder do Esprito Santo
e do qual ele no era digno de desatar as correias das
sandlias. Vai, juntamente com Tom, acompanhando
Jesus na vista deste a Joo Batista. Antes disso descreve
Joo em detalhes para Jesus. Joo Batista degolado
e Judas no aceita os motivos fteis que levaram Joo
Batista morte: ter denunciado o adultrio de Herodes
que havia se casado com Herodades, sua sobrinha e
cunhada. Para Judas o profeta deveria ter morrido por
anunciar o Messias e no por se meter nos problemas
familiares de Herodes: concubinato, adultrio, cama e
trama. Ao protestar diante de Jesus em tom de revolta
sobre a natureza indigna da morte do profeta que os
havia batizado (a ele e a Jesus), Judas provoca uma
discusso para que Jesus revele sua misso na terra,
o que realmente acaba acontecendo. Jesus revela a
carnifcina futura, como todos morreriam, inclusive que
Judas deveria evitar passar prximo s fgueiras, porque
morreria enforcado pelas suas prprias mos em uma
delas. Diante de tantas mortes que haveria no futuro (um
flho crucifcado, um Messias que fundaria uma religio
pela qual muitos morreriam e matariam), Jesus revela
seus planos aos discpulos para frustrar os planos de
Deus. O plano de Jesus era morrer como um revoltoso
poltico e no como o Messias prometido e flho de Deus.
Quando Jesus informa aos discpulos que quer morrer
como um simples homem que tentou destronar Herodes
e o Imprio Romano, declarando-se Rei dos Judeus, para
dessa forma evitar as mortes futuras na nova religio que
surgir, pede que um deles v e proclame isso no templo
e para as autoridades. Diante de um plano to louco,
todos os discpulos se revoltam, mas Judas afrma que
vai se esta a vontade de Jesus. Os outros discpulos
retiram suas facas para atacar Judas, mas Jesus pede
que ningum lhe faa mal, aproxima-se dele, beija-o nas
duas faces e diz-lhe: Vai, a minha hora a tua hora.
Neste evangelho Judas no trai Jesus, mas cumpre uma
ordem do mestre. Jesus ordena e autoriza que Judas o
entregue s autoridades do Templo, e, de certa forma,
ainda o abenoa beijando-o nas faces como se isso fosse
um pacto. Aqui no Judas quem beija Jesus, Jesus
quem beija Judas. O beijo bblico dado por Judas em
JUDAS DE ISCARIOTE
197
Jesus , aqui, invertido e no signifca traio, e sim um
pacto. Quando Jesus preso, passa pelo lugar onde Judas
ainda est pendurado na fgueira e, demoradamente,
contempla seu rosto retorcido pela agonia fnal. Jesus,
se aceitasse que era o Messias, poderia ter ressuscitado
Judas, mas no o faz, porque est sendo preso como
Rei dos Judeus, assim como queria. Judas no aceita
o pagamento em troca de ter denunciado Jesus como
Rei dos Judeus, pois cumpria uma ordem e no fzera
isso para ganhar dinheiro. O autor o redime de culpa,
transformando-o num instrumento para que a vontade
de Deus seja feita.
Eu vou, se assim o queres.
JUDAS TADEU (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos doze
elaborado por Deus, acabar a vida sendo morto a golpe
de maa.
JLIA (Terra do Pecado): Filha mais nova de Maria Leonor. Tem
cabelos loiros e cacheados at a altura dos ombros,
vaidosa e educada. Admirava o irmo Dionsio. Muitas
vezes o tinha como exemplo, imitando seus atos e
o seguindo em suas aventuras pela quinta e em suas
pescas no rio. Havia entre os dois, por vezes, um arzinho
de competio que era perceptvel em seus olhares, como
na noite de Natal em que Jlia mostrava saber portar-
se muito bem mesa, enquanto Dionsio se atrapalhava
com os talheres, o que o deixava zangado frente
superioridade da irm.
JUNPERO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do
conselho da companhia, uma das poucas personagens
a posicionar-se ao lado de Francisco quando este defende
a volta pobreza. Nas duas votaes s quais Francisco
submetido para o seu retorno Ordem, Junpero e
Leo votam a favor do santo. Em diversos trechos da
pea traado um paralelo entre a personagem e o Frei
Junpero emprico que habita as biografas franciscanas,
JUDAS TADEU
198 SALMA FERRAZ
o qual teria sido o franciscano mais inocente da primitiva
Ordem, provocando confuses e situaes hilrias em
sua simplicidade que beirava fanfarronice. No fnal
da trama, ele desobedece deciso do conselho de no
aceitar as ordens de Francisco e acaba por seguir o
fundador rumo ao novo propsito:
[...] me fizeste ver nos tempos passados, que um homem
pode ser irmo doutro homem, ser realmente irmo, sem
que uma nica gota de sangue lhes seja comum. E que s a
riqueza separa os homens. Agora estou pronto, se quiseres,
a voltar a ser pobre contigo, eu, tu, sem pensarmos mais
na companhia.
JUSTA ISASCA (A Caverna): Falecida mulher de Cipriano Algor,
tem na trama menor importncia que o co Achado.
JUSTO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Maria e Jos,
irmo de Jesus.
JUSTA ISASCA
199
L
201
LACAIO-MOR (A Viagem do Elefante): Conforme a descrio
do narrador, demonstra presuno e falsa humildade.
mais uma personagem que ironiza a monarquia e as
instituies hierrquicas, a exemplo de Pro de Alcova
Carneiro que, sendo mero secretrio-geral, na traduo ou
redao de cartas revela-se verdadeiro tutor intelectual de
Dom Joo III; ou a exemplo de Subhro, simples cornaca,
que planeja e dirige boa parte dos rumos e atividades da
aventura de levar o elefante a Viena, principalmente no
incio da viagem.
LADRO DO CARRO (Ensaio sobre a Cegueira): Parece ser um
rapaz jovem e casado. Foi quem ajudou o primeiro cego
a chegar em casa, e aproveitou para roubar-lhe o carro.
S roubava automveis, porm, ao se oferecer para ajudar
o primeiro cego, fzera isso por generosidade e altrusmo,
no tinha inteno de roub-lo. Poucos metros depois,
cegou tambm. Um policial o encontrou a chorar como
uma criana perdida e levou-o para casa. abusado,
descarado, desaforado e prepotente, mas se mostrava
corts para se aproveitar da situao dos cegos. levado
para a quarentena no manicmio (nico lugar que o
ministro achou para despejar os que cegaram, quase trs
centenas de pessoas) e l, pela sua voz, reconhecido
pelo primeiro cego. O ladro culpa o primeiro cego pela
sua prpria cegueira afrmando que, se lhe roubara o
carro, este lhe roubou a viso. Os dois brigam e so
apartados pelo mdico e pela mulher do mdico. Ele era
esperto, pois sabia que ela no era cega. Na quarentena
tem pensamentos libidinosos com a mulher do mdico e
alegra-se por ter ereo, apesar de cego. Sente o perfume
da rapariga dos culos escuros, agarra-a e passa-lhe a
mo na nuca e no sexo. Esta, num refexo, d um coice
para trs com o salto fno do sapato, atingindo em cheio a
coxa nua do ladro que berrou de surpresa e de dor. Ficou
com uma ferida na coxa que sangrava muito. A mulher
do mdico faz umas ataduras em forma de torniquete em
sua coxa e, a partir desse ato, ele se torna uma pessoa
mais humilde e melhor, perdoando a rapariga dos culos
escuros por t-lo machucado. Foi morto pelos soldados
na tentativa de pedir-lhes ajuda para que medicassem
LADRO DO CARRO
202 SALMA FERRAZ
sua perna. Foi enterrado no quintal do manicmio pelo
mdico, pela mulher do mdico e pela rapariga dos culos
escuros.
Se julgas que no te vai suceder nada, ests muito
enganado, roubei-te o carro, sim, fui eu que o roubei, mas
tu a mim roubaste-me a vista dos olhos, a saber qual de
ns dois foi mais ladro.
LAMBERTO HORQUES (Levantado do Cho): Alemo, dono
de grande latifndio doado, no sculo XV, pelo rei que
disse que ele deveria cuidar da terra, povo-la, zelar
pelos interesses do rei, sem esquecer os seus prprios
interesses. Do alto de seu castelo, no lhe chegavam os
olhos para ver o tamanho de suas terras. Depois da terra,
a primeira coisa que Lamberto tratou de providenciar foi
um feitor.
O feitor o chicote que mete na ordem a canzoada.
LZARO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Irmo mais novo
de Marta e Maria de Magdala. Quando Jesus retorna a
Betnia com Maria de Magdala sua companheira ,
Lzaro entra em cena. Suave nos gestos e no trato, ndole
exemplar, do tipo quase proftico, beirando a santidade.
Jesus afeioa-se a ele de imediato e, juntos, constroem
uma amizade forte, de verdadeiros irmos. Em vrios
momentos os dois conversam enquanto Marta e Maria
cozinham ou cuidam do servio da casa. De natureza
culta e de poucas falas, , talvez, a personagem mais
erudita de toda a trama. Sofria de sufocaes que quase
levavam seu corao a parar, e isso o tornava plido; no
tendo sade para o trabalho na terra, copiava livros na
sinagoga. A profsso de copista de livros sugere a idia
da cpia e da repetio, mas no da ressurreio. Esse
fato de suma importncia para o romance, porque
justamente o milagre da ressurreio que no acontecer,
subvertendo o famoso episdio descrito no Evangelho de
Joo. Com a frase Ningum na vida teve tantos pecados
que merea morrer duas vezes, Maria de Magdala demove
Jesus da inteno de ressuscitar Lzaro. Entretanto,
nesta narrativa, Lzaro ser curado por Jesus. Cura
LZARO
203
que no durar mais do que trs meses, culminando na
sua morte defnitiva e em grande sofrimento e angstia
para Jesus. A no ressurreio de Lzaro alude no
ressurreio do prprio Jesus, uma vez que o romance
termina no momento da morte deste na cruz, sem
possibilidade do milagre do reviver. A trajetria de vida
de Lzaro pequena. Ocupa o penltimo captulo da
narrativa, e ainda ser citado algumas vezes no fnal do
enredo.
Quem este, perguntava, que com ter-me tocado a sua
mo e dizer-me Ests curado me curou.
LEO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do conselho
da companhia, uma das poucas personagens a apoiar
o protagonista em seu intento. No incio da pea, Leo
mostrado como o inocente sonhador, pois pensa em
distribuir parte dos bens da empresa para os pobres,
enquanto a maioria dos membros reunidos desejava
justamente o contrrio. Ele conserva, dessa forma, o
princpio fundamental da regra primitiva que Francisco
buscar retomar. Nas biografas tradicionais, Frei Leo
apontado como confessor e amigo de Francisco de Assis.
Na fco ele no aparece muito diferente e, na reunio fnal
do julgamento de Francisco, inquire os outros membros, e
especialmente Elias, por no haver unanimidade quanto
expulso do fundador da companhia.
Contudo, mais fcil entrar uma corda no buraco duma
agulha do que um rico no reino dos cus.
LEPORELLO (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Empregado
de Don Giovanni, segue-o em todos os momentos, apesar
de no concordar com seus atos. Leporello representa
a grande hipocrisia dos homens e principalmente das
personagens desta obra: por causa do emprego e do
salrio que recebe, deixa de lado sua moral e acaba
colaborando nas conquistas de Don Giovanni, esperando
que um dia a justia divina caia sobre o conquistador.
Sou um co de guarda fiel, senhora. Descarado, medroso,
cobarde, mas fiel.
LEO
204 SALMA FERRAZ
LDIA (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Portuguesa morena, baixa,
trinta anos, bem feita, criada do hotel Bragana onde o
mdico Ricardo Reis fca hospedado por algum tempo.
Leva o almoo para os hspedes, arruma as camas, limpa
e arruma os quartos. Semi-analfabeta, uma mulher do
povo, de vida simples, sem registro paterno, tinha um
irmo chamado Daniel e visitava sua me semanalmente.
Musa inspiradora nas odes do heternimo Ricardo Reis,
no romance nada mais que uma simples servial. Dedica
uma ateno especial ao hspede Ricardo Reis suprindo
todas as suas necessidades carnais. O sentimento que
ele nutre por ela carnal e banalizado, quase sem
beijos e sem sonhos. Termina o romance, esperando um
flho de Ricardo Reis, que sugere nas entrelinhas um
aborto. Nessa relao no h amor e no h sonhos.
instigante como o autor recria Ldia e atravs dela que
percebemos nitidamente que o Reis de Saramago no
mais o mesmo Reis de Pessoa. O autor usa de ironia,
j que Ldia, a musa do poeta romano Horcio, bem
diferente da Ldia, criada de hotel que se apaixona por
Reis. Esta Ldia pobre e sua situao social a impede
de ter uma relao mais sria com o mdico. Ela contesta
as notcias que so lidas pelo seu amante, reproduzindo
o que o irmo dela explicava que acontecia na Europa.
de grande importncia na trama do romance e entre
as suas qualidades destaca-se a completa generosidade
do amor que dedica ao seu eleito. Seus sentimentos so
aceitos por ele, mas no so retribudos.
LDIA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filha de Maria e Jos,
irm de Jesus.
LILITH (Caim): Senhora de nod, esposa de noah. Belssima e
dominada pela luxria. Costuma retirar operrios da
construo de seu palcio e promov-los a porteiros da
antecmara de seu quarto (um eufemismo para amante).
Diz-se que ela pode levar um homem loucura. Em um
de seus passeios, a ateno de lilith despertada pela
marca que caim tem na testa. Pouco tempo depois, ele
passa de amassador de barro a porteiro de antecmara.
O prazer que caim desperta em lilith tambm desperta
os cimes de noah, que planeja matar o amante (porm
LDIA
205
a tentativa fracassa). Quando ela descobre o ocorrido,
defende com veemncia caim, exigindo de noah a
execuo dos envolvidos no atentado contra caim. Chega
a cogitar matar noah, mas caim a faz desistir de tal idia.
me de enoc, herdeiro de noah e flho de caim. Sempre
esperar pelas visitas do errante caim.
No sou mulher para remorsos, isso coisa para fracos,
para dbeis, eu sou Lilith.
LSIA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filha de Maria, irm
de Jesus. Em idade casadoira, pois j tem quinze anos,
no acredita em seu irmo Jesus. Recebe, como dote,
parte das moedas que Madalena escondera na barra da
tnica de Jesus. Maria, sua me, recebe outra visita
do anjo, que lhe faz assustadoras revelaes durante
uma discusso sobre a paternidade e o futuro de Jesus.
Quando o anjo vai embora, Maria percebe que Lsia est
descomposta, quase nua, a tnica arregaada acima
dos seios, dormindo e sorrindo sensualmente, como se
tivesse sido possuda por um ncubo e como se seus
lbios tivessem acabado de ser beijados. Ldia tem uma
expresso de prazer no rosto que assusta Maria. Maria
acorda a flha que lhe confessa que havia sonhado com
um anjo de olhar meigo. Casa-se e vai viver em Can.
Ai, minha me, que mal fizemos ento, no acreditmos
na palavra de Jesus, e ele to bom, que, de zangado, at
podia ter levado o dinheiro do meu dote, e no o fez.
LUS DE CAMES (Que Farei com este Livro?): V a obra da
sua vida relegada por todos quantos tinham poder de
lhe conferir o verdadeiro valor. Submete-se ao censor,
modifca partes da obra para obter autorizao para
publicao e, diante das difculdades fnanceiras, vende
os direitos autorais para poder v-la publicada; e,
dessa forma, sustentar a me e cuidar dela. Metfora
perfeita dos artistas cujas obras s so valorizadas a
partir de sua morte, depois de uma vida de privao
e difculdades. Humilha-se diante de D. Sebastio, da
Rainha, de D. Henrique, de Padre Lus, de Martins da
Cmara e diante de outras personagens da corte e do
LUS DE CAMES
206 SALMA FERRAZ
conselho, para que eles possam ler algumas oitavas de
seu livro. Ele representa o artista desesperado por ver sua
obra publicada e para que isso acontea est disposto a
qualquer sacrifcio com exceo de tomar o dinheiro
da mulher que ama. Essa atitude mostra o protagonista
como um homem digno, na medida em que ele se humilha
diante de vrias pessoas tentando falar com o rei, mas
no aceita o dinheiro da mulher que amava.
LUS GONALVES DA CMARA (Que Farei com este Livro?):
Jesuta, confessor do rei D. Sebastio e Secretrio de
Estado. No primeiro quadro do primeiro ato, tipifca o
ambiente vivido na corte, cheio de intrigas, de disputas
por cargos e posies, por veladas e temerosas censuras
da Igreja por conta da Santa Inquisio. Lana dvidas
sobre a masculinidade de el-rei. Preocupa-se com sua
permanncia no posto que ocupa e com um pasquim
que o difama. Tece conjecturas sobre a disputa entre
jesutas, dominicanos e agostinianos, pelo cargo de
confessor e conselheiro de el-rei. Queria deixar o irmo
Martins frme no governo. No era estimado pela rainha,
por, segundo ela, governar a vida do rei. Semelhante ao
irmo, buscava somente seus prprios interesses.
LUS GONALVES DA CMARA
207
M
209
M. (Manual de Pintura e Caligrafa): Irm de Antnio, M. adentra o
cenrio narrativo apenas no fnal do romance, logo aps
ter sido anunciada a priso do irmo em Caxias. Sua ao
decisiva para o desfecho da trajetria pessoal e esttica
do pintor H. que evolui em direo a uma convergncia
entre o individual e o social. Referindo-se esfuziante
relao amorosa que se estabelece entre ambos, o pintor
diz: [...] pela primeira vez me pareceu (do meu lado, tenho a
certeza) que nos achmos homem e mulher [...]. Abre-se ao
leitor a possibilidade de preenchimento de nomes a partir
das consoantes vazias que os iniciam, encaminhando
refexo sobre H. de homem e M. de mulher como forma
de satisfazer a nsia de construo de personagens que
tendem ao universal. Entretanto, no mundo restrito do
romance Manual de Pintura e Caligrafa, M. apenas
uma mulher que vivencia intensamente o momento
poltico signifcativo para a histria de Portugal, e a no
menos intensa paixo que passa a nutrir por H.. Em
conjuno, H. e M. um homem e uma mulher evocam a
intertextualidade com o flme francs, de Claude Lelouch,
Un homme et une femme, que conquistou o mundo na
dcada de sessenta com a corriqueira e fascinante histria
de amor amadurecido entre um piloto de automveis
e uma roteirista de cinema. Ao contrrio das outras
personagens femininas que irrompem visualmente o
palco narrativo nele marcando signifcativa presena, M.
aparece cautelosa, apenas uma voz ao telefone. Como
todas as demais personagens, a construo de M. passa
pela perspectiva do pintor H.. A forma efusiva como
enumera detalhes da silhueta da moa reveladora da
forte impresso visual que esta lhe causara. Marcado
pela simplicidade e confana, o relacionamento entre H.
e M. encaminha o conhecimento mtuo e a aproximao
familiar que prepara o amor. Assim que, no primeiro
encontro, H. vem a saber que M. [...] se casou cedo e se
separou menos de quatro anos depois. No tem flhos. Vive
em Santarm com os pais, desde os doze anos, quando,
por obrigaes de ordem profssional do pai, a famlia teve
de deixar Lisboa. Dois anos mais nova que Antnio,
M. no se formou, mas trabalha com um advogado e
militante poltica. Atravs dos pais da moa, H. fca
sabendo que ela j estivera presa em Caxias. Nem cedo,
M.
210 SALMA FERRAZ
nem tarde, o amor explode entre M. e H. e transforma o
pintor, que confessa: A primeira lio deu-ma a escrita.
Depois, M. veio confrmar tudo e ensinar de novo. A partir
de M., apontam-se para H., num novo tempo, as feies
de um novo homem que no se oculta, mas se desvela no
auto-retrato da tela e do papel.
Continuamos. Isto como um rio: leva mais gua ou leva
menos gua, mas corre sempre. No secamos.
MANUEL ESPADA (Levantado do Cho): Pertence terceira
gerao: tempo de luta. Amigo de Joo Mau-Tempo, casa-
se com Gracinda e torna-se pai de Maria Adelaide Espada.
trabalhador, lutador, grevista, revolucionrio, homem
forte, bom e orgulhoso. Foi o primeiro grevista de Monte
Lavre, pois no aceitava a opresso dos latifundirios.
Lutava a favor dos trabalhadores, queria mudanas para
a vida do trabalhador. Tinha um discurso comunista e,
por isto, foi preso, uma vez, junto com seu sogro. Ansiava
pela liberdade, mas no acreditava nela.
[...] um homem deve ter cuidado quando fala, no s
atirar palavras pela boca fora [...].
MANUEL MILHO (Memorial do Convento): Um dos trabalhadores
que erguem o convento de Mafra, embora fosse j
pouco novo para tal servio. Ganha, porm, bastante
relevo no enredo ao se tornar um contador de estria.
uma espcie de flsofo rstico, mas que prope
questionamentos dignos de um flsofo da escola cnica.
Tinha muitas idias, as quais no sabia de onde vinham.
do tipo de narrador que anda pelo mundo, a construir
conventos, e depois retorna a sua terra trazendo consigo
suas experincias. Nas muitas noites em que ele e seus
companheiros iam dormir cansados de fcar o dia todo
carregando a grande pedra para a construo do convento,
narrava a estria de uma rainha que queria saber o que
era ser mulher quando no se era rainha e, na tentativa
de obter resposta, resolvera perguntar a um ermito. Ele
leva vrias noites para contar essa estria, ao estilo dos
grandes narradores ancestrais. Contava um pouco a cada
vez, deixando os colegas cheios de curiosidade, o que faz
MANUEL ESPADA
211
dele uma espcie de Sherazade das Mil e uma Noites. Era
atravs de sua encantadora estria que todos conseguiam
ter um pouco de distrao, j que trabalhavam durante
todo o dia. Numa destas sesses de contao de estrias,
ele demonstra sua flosofa rstica:
Talvez esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus
esteja sentado direita doutro deus, talvez Deus seja
s um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses
sentados, donde que estas coisas me vm cabea,
que eu no sei.
MANUEL RIBEIRO (Terra do Pecado): Marido de Maria Leonor,
e dono da Quinta Seca. Rosto emagrecido, lbios fnos e
secos, barba densa, raiada de branco no queixo. Educado,
batalhador, de pulso frme, ele administra brilhantemente
seu patrimnio. descrito pelo ponto de vista da criada
Benedita como um homem forte e trabalhador. Aparece
na trama convalescente e, j no primeiro captulo, deixa
viva e desesperada sua mulher Leonor. um homem
admirado e querido por todos os empregados da Quinta,
que fcam muito abalados com sua morte.
MPHIA (As Intermitncias da Morte): Trata-se de uma organizao
secreta, que surge no momento em que as pessoas param
de morrer. As funerrias passam a enterrar animais, os
hospitais mandam seus doentes de volta para as famlias,
as seguradoras instituem a morte burocrtica aos 80
anos. Num clima preocupante e catico, j que ningum
mais morre, surge a mphia, essa de grafa ph para
no ser confundida com a outra. Como a morte cessara
apenas em um pas, muitos procuravam atravessar a
fronteira para aliviar seus moribundos familiares. Com
medo de intenso fuxo migratrio, as fronteiras foram
fechadas. Isso propicia um ambiente para o surgimento
da mphia, como alvio, ainda que clandestino, para
todos os problemas da ausncia da morte. A mphia trata
de levar os moribundos para o outro lado da fronteira
para que l morram e descansem em paz. Os membros
da mphia, devido a suas atividades, tambm fcam
conhecidos como enterradores. Quando a morte encerra
sua primeira intermitncia, a mphia rapidamente muda
MPHIA
212 SALMA FERRAZ
de ramo, e passa a extorquir as funerrias em troca de
proteo contra atentados, o que acaba por aproxim-la
da outra mfa, essa com efe mesmo.
MARAL (A Caverna): Genro de Cipriano Algor, tem quase trinta
anos, embora no aparente essa idade, pertence
raa dos desassossegados de nascena. Gacho, do seu
sobrenome, a parte do corpo do boi aonde vai a canga,
mas ele desconhece essa informao. Veste uma espcie
de uniforme, tem boa aparncia, trabalha no Centro como
guarda, mas no anda armado, cumpre rigorosamente
seus deveres e casado com Marta. a imagem da
disciplina rigorosa da poca, a servio do poder militar;
quando veste a farda, est em defesa do Centro, das idias
capitalistas que este representa. Sente-se privilegiado por
poder trabalhar onde trabalha e seu sonho ser efetivado
no cargo ser guarda residente era o que mais desejava
na sua vida. ele que apresenta a soluo para quando
a olaria do sogro chegar falncia total: se mudarem
para o Centro, usufruindo os confortos e facilidades que
o Centro oferece queles que pagam. Numa anlise mais
apurada, Maral simplesmente uma pea nas mos do
poder industrial, que acredita ingenuamente nesse poder.
Para ele, todos os problemas se resolvero se ele, sua
mulher e o sogro se mudarem para o Centro. Ele defende
as idias e a vida do Centro e no consegue conceber
a vida sem a infuncia deste. O Centro representa um
lugar de futuro; afnal, quem morava l prosperava e ele
tinha o desejo de prosperar. Porm, medida que vai se
aproximando de Cipriano, muda o seu modo de pensar e
ver as coisas em relao ao poder capitalista e, por fcar
com medo de pertencer a essa mquina e no poder sair
jamais, decide desistir de ser guarda residente, alegando
no se ajustar mais a outro mundo. Sua participao
decisiva no enredo, visto que guarda do Centro, lugar de
suma importncia na trama. Se formos pensar no poder
de interveno das personagens, veremos que Maral,
em sua repugnante dependncia, muda o ambiente do
romance e cria uma sensao de claustrofobia no
momento em que a narrativa passa para o lado de dentro
do Centro. Revela-se o tempo todo bastante atencioso
para com a esposa e o sogro, com quem tinha uma
MARAL
213
relao de respeito e tranqilidade. Essa relao entre
sogro e genro a decorrncia natural do amor que ambos
sentem por Marta; eles querem o melhor para a moa e
sabem que a felicidade dela passa pela paz entre os dois.
Com os prprios pais, no entanto, vivia uma relao um
tanto quanto distante e confitante. Seus pais sentiam-
se rejeitados pelo flho e o cobravam demasiadamente. O
servio de guarda e a passividade com que o desenvolvia
lhe valeram uma imagem de algum submisso e tambm
resignado com o prprio destino, tanto que surpreende
o leitor quando toma a deciso de partir. Aparentemente
acredita nas verdades vendidas pelo Centro, embora
no tenha uma opinio formada e slida sobre os fatos.
Exemplo disso o rumo tomado quando da revelao das
escavaes. No momento mais tenso da trama, quando
Cipriano desce ao fundo da gruta e v as sombras do que
sobrou dos humanos, Maral se dirige a ele chamando-o
de Pai. O contato maior com o sogro durante o processo
de transio da olaria para o Centro, e da descoberta da
realidade camufada na gruta, o faz mudar de posio em
relao ao que acreditava. Parte com os demais membros
da famlia rumo ao desconhecido sem se despedir ou dar
explicaes aos pais.
[...] eu tambm chorei.
MARCENDA (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Filha do doutor
Sampaio, solteira, tem vinte e trs anos de idade, um
perfl angelical, pescoo alto e frgil, queixo fno, magra
e plida, possui o brao esquerdo paralisado. Menina
fnssima, de esmerada educao, uma rapariga virgem
e de muito respeito. Moa ideal para o casamento,
segundo os padres da poca. Visita Lisboa todos os
meses, l permanecendo por trs dias porque precisa de
acompanhamento mdico, mas seu problema de sade
no apresenta progresso algum. Ficou assim, com a mo
paralisada, desde a morte da me, sendo por isso includa
na categoria de personagens que formam o chamado
squito dos disformes. Alguns mdicos consideram seu
problema ligado a um problema cardaco. Seu aleijamento
faz com que Ricardo Reis tenha mais cuidados com ela.
O mdico apaixona-se por ela e pensa em concretizar
MARCENDA
214 SALMA FERRAZ
essa unio matrimonial, um desejo que no se realiza.
Reis demonstra por Marcenda a mesma indiferena que
demonstra pelo que acontece ao seu redor: simplesmente
deixa que as coisas tomem um rumo prprio, sem
empenho algum. A mo de Marcenda uma metfora de
sua vida: ambas paralisadas e sem muita utilidade. Ela
tratada como um bichinho de estimao que no serve
para muita coisa. No mais uma personagem literria de
Reis, no um nome feminino, pois no est registrado
nos vocabulrios onomsticos. A palavra aparece na Ode
Saudoso j deste vero que vejo, designando uma rosa
emurchecida. Recebe de Ricardo Reis um amor piedoso.
MARIA (Histria do Cerco de Lisboa): Secretria de Maria Sara.
uma mulher baixa, magra, morena bem escura e tem os
cabelos naturalmente crespos, sendo estes o motivo de
sua vaidade.
MARIA ADELAIDE ESPADA (Levantado do Cho): Pertence
terceira gerao: tempo de luta. nica flha de Manuel
Espada e Gracinda. Quando do seu nascimento, o av,
o tio e o pai partem para ador-la, a exemplo dos trs
reis magos por ocasio do nascimento de Jesus. Ao
invs da estrela-guia, so as luzes dos pirilampos que
guiam o pai Manuel Espada at a casa em que a flha
acabara de nascer. O av, Joo Mau-Tempo, ao conferir
os olhos azuis da neta iguais aos seus, comprova que
ela realmente sua neta, primeiro porque nasceu de
sua flha Gracinda, segundo por dar continuidade cor
azul dos olhos dos antepassados, lembrando o seguinte
ditado: os flhos da minha flha meus netos so, os do
meu flho sero ou no [...]. Maria Adelaide comeou cedo
na lida com a enxada, pois as mulheres, no latifndio,
no so criadas para serem princesas. Quando o pai
saa para tratar de assuntos l fora, ela silenciava. Era
trabalhadora e sonhadora. Um dia, quando voltava do
trabalho, percebeu que algo tinha mudado, pressentiu
que a ditadura chegara ao fm pela revoluo do povo,
percebeu tambm que era dona de sua liberdade, ento
gritou: Viva Portugal! Ela a possvel resposta para o
tempo das perguntas, porque assiste ao fm da ditadura.
Verifca que, de sua gerao em diante, tudo pode ser
construdo de maneira diferente, s dependeria dela.
MARIA ADELAIDE ESPADA
215
[...] quando os mistrios so da porta de casa para fora
melhor que l fiquem.
MARIA ANA JOSEFA (Memorial do Convento): Personagem
factual que se encontra na histria de Portugal e de seus
reinados. Rainha de Portugal, triste, reprimida, era fria
sexualmente com o rei, paciente, humilde, religiosa e
boa esposa. descrita fsicamente como rolia, sendo
esta uma das caractersticas fundamentais para a
maternidade. Vinda da ustria para se casar com D.
Joo V mediante acordo, desempenha no enredo o papel
de mero objeto de reproduo, responsvel por dar flhos
Coroa. Sua nica fnalidade era conceber o herdeiro do
reino, fato que no se realiza seno em funo de uma
promessa, que a construo de um convento tema
ttulo do romance. Embora a personagem de D. Maria
Ana venha dar a entender que seja o motivo da narrao,
no ela que ganha destaque, j que sua fgurao no
enredo de menor recorrncia do que a da personagem
de Blimunda, por exemplo. Apresentada como piedosa
senhora, devota do cristianismo, aceita de forma natural
a infdelidade do marido. Entretanto, sonha de vez em
quando com o cunhado o infante D. Francisco; seus
desejos s se realizam em sonhos, mesmo assim sente-se
culpada. Ao ser indagada pelo cunhado quanto aos seus
sonhos, responde:
verdade que sonho, so fraquezas de mulher guardadas
no meu corao e que nem ao confessor confesso, mas,
pelos vistos, vm ao rosto os sonhos, se assim mos
advinham.
MARIA CONCEIO (Levantado do Cho): Personagem
pertencente segunda gerao: tempo de perguntas.
Terceira flha de Domingos Mau-Tempo e Sara Conceio,
irm de Joo Mau-Tempo, Anselmo e Domingos.
Sofredora, como todas as mulheres de sua gerao,
trabalhava em Lisboa; servia aos ricos. Nada falava, s
chorava e visitava a me quando esta estava internada
em um hospcio. Servindo sempre aos mesmos patres
de Lisboa, para onde fora ainda criana, Maria Conceio
pessoa de extrema fdelidade.
MARIA ANA JOSEFA
216 SALMA FERRAZ
MARIA DA PAZ (O Homem Duplicado): Mulher jovem, bonita,
elegante, bem torneada fsicamente. funcionria de um
banco, mora com a me, uma senhora idosa e doente,
e namorada/amante/amiga de Tertuliano. Tem uma
personalidade forte, em algumas ocasies conversa com
Tertuliano sobre os planos dele para o futuro, afnal
quer ver-se includa neles; no entanto, paciente e no
tem vergonha em demonstrar seu sofrimento e decepo
quando deixada de lado, algumas vezes por ele. Mesmo
vivendo esse relacionamento sem muitas emoes e
seguindo apenas a seqncia harmnica de sua vida,
Maria da Paz no pressiona seu namorado para que tome
uma deciso defnitiva, pois tem medo de perd-lo. No
fnal, torna-se a nica vtima inocente, ao morrer em um
acidente de carro por causa da covardia de Tertuliano e
do mau-caratismo de Antnio Claro, ssia do primeiro.
O caos uma ordem por decifrar.
MARIA DE ATHADE (Que Farei com este Livro?): Condessa
de Vidigueira. Coloca-se em um pedestal ao afrmar que
ningum seria sufcientemente capaz de escrever algo
sobre a sua famlia. Despreza os escritos de Cames e
rasga o que foi esquecido no Palcio.
Altivo me saiu quem de tanta proteco diz precisar.
MARIA DE MAGDALA/MARIA MADALENA (O Evangelho
Segundo Jesus Cristo): *Nasceu em Magdala, irm de
Marta e Lzaro de Betnia. uma mulher forte, decidida,
carinhosa e compreensiva. Nas primeiras pginas do
livro, o narrador faz uma falsa prolepse ao descrev-la
como loira para, mais tarde, revelar que ela tinha os
cabelos pretssimos. Nesse primeiro captulo, o narrador
engana diversas vezes o leitor quanto identifcao de
Madalena. Notamos que tanto o narrador como o autor
implcito se afeioam a ela, o que pode ser percebido
pela belssima descrio que se encerra com esta frase:
Apenas uma mulher que tivesse amado tanto como
imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar
desta maneira [...]. Tinha os olhos negros e brilhantes
como carves de pedra. Usava uma tnica de prostituta,
MARIA DE MAGDALA/MARIA MADALENA
217
o corpo era esguio, semelhante ao de bailarina, e o riso
parecia ser de mulher leviana. Neste Evangelho, Saramago
a redime defnitivamente, j que ela foi estigmatizada
durante sculos, pela fantasia popular, como smbolo
de decadncia, baixeza e pecado; uma prfda e leviana
prostituta que atrapalhara com tentaes vis o caminho
sagrado de Jesus. A magnfca personagem Madalena
vai resgatar o prazer sensual negado a Jesus pelos
Evangelhos e pelos pais da Igreja. Reaproveitando-se
novamente do silncio das Escrituras sobre o que teria
feito Jesus desde sua adolescncia at sua fase adulta, o
autor cria um enredo particular para Jesus durante essa
poca de sua vida, envolvendo-o amorosa e sexualmente
com Maria de Magdala. Embora em toda a narrativa Eros
esteja ausente e predomine Tnatos, no relacionamento
de Jesus e Madalena Eros aparece em toda sua fora.
Nos Evangelhos, temos trs Marias: Maria me de
Jesus; a pecadora/Maria uma pecadora sem nome que
unge os ps de Jesus e que, por vezes, identifcada
com Maria, irm de Lzaro, que tambm ungiu os ps
de Jesus; e Maria Madalena mulher da qual Jesus
expulsou sete demnios (depois disso ela passou a segui-
lo com seus bens) e para a qual Jesus primeiramente
apareceu logo aps sua ressurreio. Esses demnios que
a atormentavam, segundo a tradio, estariam ligados
luxria, seduo e prazer, mas tambm poderiam estar
relacionados a doenas de ordem psquica. Para compor
a magistral Madalena, o autor juntou detalhes da vida
de Maria/pecadora, irm de Lzaro, com informaes
sobre Maria Madalena retiradas do Evangelho Apcrifo
Segundo Felipe, que informa que Jesus amava mais a
Madalena dos que a todos os outros discpulos. Tambm
utilizou informaes do Evangelho de Maria Madalena,
que apresenta Maria Madalena pregando e revela que ela
era mais amada por Jesus do que todos os discpulos e
todas as mulheres. Alm das informaes dos apcrifos,
o autor acrescentou a amizade da Madalena bblica
por Jesus, pois foi a ela que ele apareceu aps a sua
ressurreio. Ou seja, Madalena foi a primeira pessoa
a ver Jesus e a anunciadora desse fato, portanto foi
Apstola dos Apstolos. Acrescente-se a isso a prodigiosa
imaginao do autor que confere um perfl feminino
218 SALMA FERRAZ
magnfco e uma estranha sabedoria amante de
Jesus. O autor seguiu a tradio retratando Madalena
como meretriz, para redimi-la e transform-la na maior
personagem feminina de sua obra. Ela conhece Jesus
quando este, com os ps feridos, bate a sua porta na
cidade de Magdala e, a partir da, ela passa a segui-
lo. Na narrao das intimidades sexuais entre os dois,
o narrador procura mescl-las intertextualmente com
citaes literais dos Cnticos dos Cnticos o Livro de
Cantares de Salomo, para purifcar e quase santifcar o
relacionamento de uma prostituta com o Filho de Deus. A
partir do momento em que conhece Jesus, ela deixa um
pano dependurado na porta para informar que estava
sempre ocupada. Esse pano permanecer para sempre
na sua porta, ela jamais conhecer outro homem depois
que conhece Jesus. Sua santifcao ocorre justamente
por meio do relacionamento sexual entre ela e Jesus.
Esse relacionamento descrito pelo narrador com algo
extremamente normal, com muito respeito e uma aura de
sacralidade. Ela a responsvel pela iniciao sexual do
Filho do Homem. Jesus afrma para ela: Quem contigo se
deita no o flho de Deus, mas o flho de Jos. Quando
necessrio dizer quem Jesus, Madalena informa:
Jesus de Nazar, flho de Deus. Ao contrrio de
Maria, me de Jesus, ela cr nele e revela uma estranha
sabedoria para uma prostituta, aproximando-se, por
meio de suas sentenas, sabedoria de uma profetisa
hebria. Reconhece a insignifcncia das mulheres
para Deus, denuncia um Deus misgino que renegou o
prazer sexual e muitas outras coisas para as mulheres, e
afrma que Deus medonho. Assume, na vida de Jesus,
o papel que era originalmente destinado Maria, sua
me, e num dos momentos mais cruciais da trama,
chama Jesus de seu flho. Num encontro com Maria,
esta passa a Madalena a misso materna, na qual ela
falhara. Ama Jesus como amante, mulher, irm, amiga e
me. Madalena, neste livro, em verdade a genetrix Dei.
Sua importncia na trama suplanta a de Maria, me de
Jesus. Madalena retratada como a mulher em direo
santidade que apia e compreende Jesus; e Maria, como
a pecadora que no o entende e o renega. A importncia
de Madalena na vida de Jesus to grande que ele acha
219
melhor no se chamar Jesus de Belm, mas sim Jesus
de Magdala. Ela uma grande profetisa, dotada de uma
sabedoria peculiar, sacerdotisa e orculo inspirado que o
orienta nos momentos mais difceis de sua misso, tendo
recebido essa incumbncia da prpria me de Jesus,
que nela falhara. Os dilogos entre ela e Jesus esto
permeados de um lirismo pungente, uma aura sagrada
e uma linguagem teolgica: Olharei a tua sombra se
no quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu,
Quero estar aonde a minha sombra estiver, se l que
estiverem os teus olhos. Os poucos minutos de felicidade
que Jesus tem nesta vida, ele os passa com Madalena:
juntos, os dois riem e cantam. Jesus quer evitar a cruz
e as conseqncias dela para todos os seres humanos;
no a aceita. No entanto, Maria Madalena o conforta
com um discurso repleto de sabedoria, mostrando-lhe
a impossibilidade de tal querer, o inexorvel do seu
destino trgico. Seu discurso o discurso da sabedoria,
do questionamento e da busca da verdade, do apoio,
da compreenso, da amizade, o que a transforma na
discpula amada, no dcimo terceiro discpulo. Magdalena
redimida, suplantando todas as mulheres do Velho e do
Novo Testamento e, por que no dizer, os demais perfs de
mulheres, criadas ao longo dos romances anteriores do
autor, que se superou em termos de psicologia feminina
ao recriar esta personagem. a grande mulher deste
Evangelho e de toda a obra de Saramago. a portadora da
resposta defnitiva do autor misoginia crist. Madalena
inicia e termina sua participao no livro emoldurada com
uma irradiante aurola, prpria das santas retratadas
nas pinturas renascentistas, aurola que a destaca,
privilegiadamente, no meio das outras mulheres ao p
da cruz, inclusive a prpria me de Jesus. Essa aurola
a sacraliza, em defnitivo, transcendendo e ofuscando
todas as demais personagens presentes na cena da
crucifxo. Maria de Magdala profere uma das frases
mais profanas, ateolgicas e sbias deste Evangelho,
pois, devido a essa frase, simplesmente no acontece o
to conhecido milagre da ressurreio de Lzaro, visto
que Jesus, profundamente abalado, no o ressuscita.
Ela rouba o espetculo e comanda-o, deixando a Jesus
um papel meramente secundrio.
220 SALMA FERRAZ
**A primeira referncia Madalena no romance se d no
incio, na cena da crucifxo de Jesus, baseada em uma
gravura de Drer da srie A Grande Paixo. Na descrio,
a identifcao de Madalena ocorre num jogo de
comparaes entre as mulheres presentes na crucifxo.
O narrador insinua que talvez Madalena seja a mulher
que se apresenta com um decote aberto e corpete deixando
entrever os seios. Esta mulher voluptuosa ampara a
afigida Maria, me de Jesus, de rosto lacrimoso e mos
desfalecidas. Maria, me de Jesus, apia o antebrao na
coxa de outra mulher, que apresenta longos cabelos
soltos, aparentemente louros. A constatao de ser
Madalena essa ltima, e no a mulher decotada,
evidencia-se pelo seu olhar levantado, contemplando a
triste cena de Jesus crucifcado entre os dois ladres.
Essas primeiras referncias Madalena j indicam uma
maneira diferente de avaliar sua condio de mulher e
prostituta: ela se veste decentemente; a mulher com o
decote, estereotipada como uma pessoa de dissoluto
passado que arrasta os homens perdio pelo infame
corpo, no Madalena. Madalena encerra um olhar de
quem muito amou e como o romance evidenciar,
amou a Jesus. O narrador desfaz qualquer ambiguidade,
ao afrmar que a decotada no era Madalena. Comea j
nessa identifcao o desvio de Madalena em relao
personagem bblica. Quando Jesus, no romance, deixa o
Pastor com quem estivera nos ltimos quatro anos,
resolve voltar para Nazar. Seus ps esto feridos, a
caminhada pela margem do Jordo dolorosa. Ao passar
pela cidade de Magdala, uma das feridas se agrava, e
Jesus no v outra soluo a no ser pedir ajuda na casa
mais prxima. Jesus reconhece que Madalena uma
meretriz j que h nela vrios elementos identifcadores
que lhe permitem reconhec-la como tal: o perfume
inebriante, sedutor, os cabelos negros soltos (o narrador
brinca com a cor dos cabelos de Madalena: afrma que
tendo sido Madalena retratada como pecadora, s poderia
ter os cabelos loiros, mas no primeiro encontro com
Jesus, Madalena descrita como cabelos negros). O
comportamento de Jesus em face desse reconhecimento
no indica preconceito ou desprezo explcito, como seria
esperado de um homem da sua poca. Na verdade, Jesus
221
no sabe o que fazer diante dessa mulher que o fascina,
e que cuida de sua ferida como uma me dedicada. A
primeira inverso em relao ao texto bblico d-se nessa
passagem, quando Jesus curado por Madalena, e no
o contrrio. A passagem bblica que fala dos sete demnios
de Madalena simplesmente ignorada no romance:
Jesus que est enfermo, e ser ela que o aliviar de seus
males. Por gratido, a Madalena bblica seguir Jesus no
seu ministrio. Por gratido, o Jesus do romance permitir
que Madalena o ensine a aprender o seu corpo. Madalena
sente-se infnitamente atrada por aquele rapaz e est
consciente do efeito que exerce sobre ele. A maneira como
o prepara para a relao sexual, despindo-o, lavando seu
corpo, deitando-o na cama, apesar de evidenciar sua
experincia como prostituta, no demonstra que ela
esteja agindo como uma: ela paciente e carinhosa, e o
faz por sua vontade, uma vez que sabe que no receber
dinheiro. O que est em jogo so sentimentos e no um
contrato entre cliente e profssional. Assim como na cura
da ferida Madalena se coloca numa posio de uma certa
forma superior de Jesus ele depende de seus cuidados ,
tambm no aspecto sexual ela ser a condutora. Jesus
virgem, no conhece mulher: ela o ensinar tudo. Tanto
que, durante a relao sexual, ela lhe mostra o que fazer,
e como fazer. Jesus permanece por oito dias na casa de
Madalena e, nesse intervalo, o fato dela ser prostituta
abordado vrias vezes. Numa delas, Jesus diz a Madalena
que no podem viver juntos, e ela o corrige: Queres dizer
que no podes viver com uma prostituta, ao que Jesus
responde simplesmente que sim. Ela ento replica,
dizendo que no mais ser prostituta, que a partir do
momento em que o conhecera no se sentiu mais como
uma, e que est nas mos dele que no continue a ser. O
Pedes-me demasiado que Jesus responde revestido de
uma certa ambigidade: pode indicar que colocar sobre
ele a responsabilidade de pr um fm carreira de
prostituta de Madalena um fardo grande, mas tambm
pode indicar a estigmatizao da prostituta pedir
muito para um homem que conviva com uma mulher
que leva essa marca. Se este o caso, Jesus consegue
vencer o preconceito, pois eles de fato fcam juntos at a
crucifxo. Madalena pondera que o relacionamento de
222 SALMA FERRAZ
ambos est alicerado nessa troca mtua: ela o curou da
chaga do p e ele a curou da prostituio; ela o ensinou a
conhecer a mulher e ele a ensinar como amar somente
a ele. De fato, Madalena ser a primeira a conhecer e
acreditar na relao de Deus com Jesus, j que sua
prpria famlia o desacreditara. A volta de Jesus para
Madalena consolida defnitivamente a relao entre
ambos e mostra-a como uma mulher segura e convicta
de suas opinies: quando Jesus, ao contrrio do Jesus
bblico, sorri, e reconhece que para ela no adianta fngir
ou usar palavras evasivas. A Madalena do romance
uma mulher consciente do que pensa, fala e,
principalmente, de suas escolhas. Ela quer Jesus e, por
ele, far o que for preciso: Pois eu digo-te que Maria de
Magdala estar ao p de ti, prostituta ou no, quando
precisares dela. Jesus, ao repartir o po da verdade
entre ele e Madalena, sela um pacto no qual ecoa a Santa
Ceia. Madalena torna-se, assim, a precursora dos
apstolos, no que diz respeito a uma aliana frmada com
Jesus. Na verdade no h, no romance, a Santa Ceia
com os apstolos descrita nos Evangelhos. Madalena a
nica a partilhar com Jesus o po da verdade, da vida e
da salvao, o que, mais uma vez, demonstra sua posio
privilegiada, como indicada em vrios evangelhos
gnsticos apcrifos. Ao tomar conhecimento da histria
de Jesus, Madalena pressente que o destino dele terrvel,
e nesse pressentimento est embutida a sua prpria
relao com o Deus judaico, um ser intangvel, misgino
e patriarcal. Quando Jesus pergunta a ela como pode
saber das coisas terrveis que o esperam, ela responde:
No sei nada de Deus, a no ser que to assustadoras
devem ser suas preferncias como seus desprezos [...]
Terias de ser mulher para saberes o que signifca viver
com o desprezo de Deus [...]. A fala de Madalena uma
refexo sobre a condio da mulher dentro do judasmo,
sempre cerceada por um Deus que parece odiar as
mulheres. Pelo que o romance permite inferir, Madalena
preferiu viver margem desta sociedade, desprezada e
estigmatizada como prostituta, mas a salvo da opresso
que aniquilava a mulher judia a considerada correta
como indivduo. Madalena escolheu prostituir-se,
resistindo violncia simblica, rebelou-se contra esse
223
Deus medonho que despreza as mulheres. Como
prostituta, teria pelo menos independncia econmica, e
no teria que se subjugar a um marido: sua relao com
os homens seria mediada por um contrato, e no pela
submisso. Essa escolha de Madalena foi modifcada
pelo encontro com Jesus: ao se apaixonar por ele, ela
abre mo da independncia, ainda que marginalizada,
que possua como prostituta. Ela agora o seguir, sob
qualquer condio. Jesus prope que ambos vivam juntos
como marido e mulher, ao que Madalena responde:
Prometes demasiado, j o bastante que me deixes estar
ao p de ti. Jesus e Madalena no se casaro: vivero em
concubinato. Essa posio parece satisfazer a ambos, e
com ela convivero at o fnal. Essa convivncia ser
harmoniosa, no apenas Madalena dar-se- por inteiro,
mas Jesus tambm consciente de que no h barreiras
entre eles. Os dois partilham de igualdade nessa relao.
Madalena no tem o status de esposa, mas, sem dvida,
a qualidade de seu relacionamento com Jesus parece ser
bem melhor do que a de qualquer mulher judia de seu
tempo. A Madalena do romance encontra-se fora da
dimenso comumente atribuda s mulheres da poca.
Outro episdio que contribui para afrmar que a Madalena
do romance no marcada pela negatividade nem pela
inferioridade o seu encontro com Maria, me de Jesus,
na passagem bblica conhecida como Bodas de Can. O
primeiro encontro entre Madalena e Maria se d nessa
hora, atravs do olhar, e, apesar do narrador polariz-
las, colocando-as como a honesta e a impura como defne
o esteretipo, no h entre elas hostilidade ou desprezo,
antes uma comunho mtua e cumplicidade. A
polarizao, pois, no as separa no se instaura o
abismo que a tradio crist instituiu entre a santa e a
pecadora , mas as funde; sentem-se unidas na sua
condio de mulher e no seu amor por Jesus. Madalena
quer sentir o amor de mulher e tambm o amor de me:
Senhor, d-me, juntas, as duas dores, se tiver que ser.
Quando, mais tarde, se falam, Maria pede a Madalena
para cuidar de Jesus, porque tambm est ciente de que
coisas terrveis o esperam. E quando Madalena conta-lhe
que foi prostituta, Maria, aps refetir um pouco,
responde-lhe: Eu te abenoo, Maria de Magdala, pelo
224 SALMA FERRAZ
bem que a meu flho Jesus fzeste, hoje e para sempre te
abenoo. No deixam de ser irnicas as palavras de
Maria, visto que a propalada prostituio de Madalena
acarretou exatamente o contrrio: tornou-a uma mulher
maldita, mas, dentro do contexto do romance, Madalena
, mais uma vez, valorizada, avaliada sob uma tica
positiva em relao ao que a tradio construiu em torno
dela. Sentindo-se capaz de tudo fazer por ser o flho de
Deus, de ressuscitar Lzaro porque Deus o quer, Jesus
estende os braos para dar a ordem suprema, mas
Madalena, com uma de suas frases flosfcas, impede a
ressurreio. Madalena torna-se, assim, responsvel
pelo grande milagre que no houve. Jesus escutou a ela,
e no a Deus, seu pai, que o autorizava a realizar o grande
feito. De uma certa forma, Jesus rebelou-se tambm
contra o Deus medonho que a ele usava para reafrmar
seu poder universal. Entre o pai todo poderoso e a mulher
que amava, Jesus optou pela sensatez das palavras de
Madalena. No que se refere ao episdio de Lzaro,
Madalena, e no Deus, quem triunfa. Um triunfo sbio
e ao mesmo tempo penoso, pois, a partir da, viver na
dvida se o melhor no teria sido permitir a Lzaro
uma segunda vida, mesmo sabendo que ele teria uma
segunda morte. A prostituta Maria de Magdala de
Saramago no a Madalena forjada pelo imaginrio
cristo. A Madalena do autor constitui-se como mais
uma dessas representaes, que emerge sob uma
perspectiva no negativa, mas humanizada do mito da
pecadora. Essa dimenso humana apresenta e representa
Madalena em toda sua ambigidade, como visto em
vrias passagens do texto. Ela prostituta e sedutora,
seu corpo usado e sujado, mas nele que Jesus encontra
a liberdade, ela s quer estar aos ps de Jesus, numa
clara atitude de submisso, porm ele quer estar onde
estiverem os olhos dela.
[...] neste instante, em verdade ltimo e derradeiro, que
Maria de Magdala pe uma mo no ombro de Jesus e diz,
Ningum na vida teve tantos pecados que merea morrer
duas vezes, ento Jesus deixou cair os braos e saiu para
chorar.
225
MARIA DE NAZAR (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Esposa
de Jos, uma jovem com idade inferior a dezesseis
anos, magra, com cabelos e olhos escuros. descrita
ironicamente pelo narrador como uma rapariguinha
frgil, fraca fgura que recolhe bostas de gado como um
burro de carga, dez-ris de gente, impiedosa e injusta,
que come os restos de comida, pois primeiro tem que
servir a seu marido Jos. Do ponto de vista de Jos,
parece ser uma mulher bonita. Ao contrrio da Maria
bblica, pura e virgem, esta mantm relaes sexuais
com Jos, seu marido, e gera Jesus. Alm de Jesus, gera
mais sete flhos e duas flhas. No foi a escolhida, eleita
por Deus especialmente para ser me de seu flho; pelo
contrrio, apenas por ser saudvel foi transformada em
me portadora, espcie de barriga de aluguel. Aps os
trinta anos, apresenta-se envelhecida de cara e corpo,
por ter tido vrias gestaes, e passa a vida cardando,
tecendo, fando e cozendo. Psicologicamente descrita
com crueldade pelo narrador como sendo insensvel,
arrogante, prepotente, ignorante, cptica, desconfada,
cmplice do marido, medrosa, impaciente, mentirosa,
descrente, soberba, orgulhosa impiedosa e injusta, nem
pura, nem santa. Foi submissa ao marido, depois a Jesus
e logo aps a seu outro flho Tiago. Guarda para si todas
as suas angstias e sofrimentos. vtima da antipatia do
narrador, da antipatia do Diabo, da antipatia de Jesus e
da antipatia do anjo, com exceo de Maria Madalena.
insegura e raras vezes inicia uma polmica; quando
fala, geralmente encurralada por algum e perde a
disputa oral. Nos dilogos em que forada, pelo Diabo
ou por seu flho, a expressar suas opinies, sente o gosto
amargo da verdade. Seu drama comea quando esconde
de seu flho a covardia de Jos, que salvou Jesus em
detrimento dos inocentes de Belm. Torna-se, dessa
maneira, cmplice da covardia do marido e do crime
cometido por ele. uma espcie de segunda Eva, fadada
ao equvoco e ao engano. Por ter escondido de Jesus
esse fato, ter um relacionamento difcil com seu flho.
Quando Jesus retorna a sua casa e afrma por trs vezes
que viu Deus, Maria diz que no acredita nele e afrma:
O Diabo est contigo desde que nasceste. O anjo a visita
logo aps ela ter afrmado ao seu flho Jesus que no
MARIA DE NAZAR
226 SALMA FERRAZ
cria nele. O anjo a chama de mal-educada, arrogante,
cptica, desconfada, ignorante e me portadora. Nesse
dilogo, Maria se revela prepotente ao afrmar que
chegou a pensar que o Senhor a havia escolhido para
ser sua esposa na madrugada em que Jesus foi gerado.
Mesmo depois de o anjo ter lhe avisado que Jesus falara
a verdade quando por trs vezes afrmara que tinha
visto Deus, ela manda Tiago e Joo atrs de Jesus com
um recado catastrfco: [...] nele cremos e, querendo-o o
Senhor, viremos a crer no que nos disseste. Quando se
encontra com Maria de Magdala, passa a ela a misso
de me, na qual falhara completamente. Nesse encontro,
num dos nicos momentos de sabedoria, abenoa Maria
de Magdala, transferindo a ela a responsabilidade de
acompanhar o destino de seu flho: Eu te abenoo, Maria
de Magdala, pelo bem que a meu flho Jesus fzeste, hoje e
para sempre te abenoo. Maria de Magdala aproximou-se
para beijar-lhe o ombro em sinal de respeito, mas a outra
Maria lanou-lhe os braos, apertou-a contra si e as duas
fcaram abraadas, em silncio, at que se separaram
[...]. Nessa passagem, nota-se o desprezo do narrador
que se refere Maria, me de Jesus, simplesmente como
a outra Maria. A me de Jesus tambm no corresponde
ao arqutipo da Mater inviolata, a me assexuada que
vincula virgindade e maternidade, como atestam a
concepo e o nascimento de Jesus relatados no romance.
Jesus foi o primeiro de seus nove flhos, e, mesmo ela
sendo ainda jovem, os partos sucessivos foram levando
aos poucos a beleza e a frescura. Apesar da resignao
de Maria ao seu destino de nutriz, por vezes demonstra
impacincia e indignao por causa de sua vida. A
imagem da mulher fecunda e feliz, ao que tudo indica,
no se ajusta me de Jesus o que, de certa forma, a
distancia do arqutipo da Virgem Maria toda pura. Ela
humanizada, recuperada das alturas da pureza celeste e
mostrada em toda sua dimenso humana a concepo
de Jesus atravs da relao sexual com Jos, a ausncia
de um anjo a dizer-lhe que foi a escolhida de Deus, o
relacionamento truncado que tem com Jesus.
No te cremos, disse a me, e agora menos que antes,
porque escolheste o sinal do Diabo.
MARIA DE NAZAR
227
MARIA DOLORES (A Jangada de Pedra): Antroploga, mas
trabalha em uma agncia de turismo por no ter outro
emprego. Conhecida por uma das personagens, citada
e relembrada vrias vezes dentro do romance.
[...] sou antroploga por formao e feminista por
irritao.
MARIA GUAVAIRA (A Jangada de Pedra): Tem olhos escuros,
no bonita nem feia, tem as mos gastas e fatigadas,
cabelos castanhos, queixo redondo, lbios cheios, dentes
brancos. viva, s vestia preto at conhecer Joaquim
Sassa, por quem se apaixona. Desmancha um p de
meia de l azul e dele sai uma nuvem de l. sincera,
decidida, impe respeito, mas tem medo do que os outros
vo pensar dela. Por causa do amor tem coragem de
mudar completamente sua vida. Mesmo amando Joaquim
Sassa, por piedade e comoo dorme com Pedro Orce e
acaba engravidando, sem saber quem o pai. No faz
isso s escondidas, mas sai para encontrar-se com Orce
na frente de Joaquim Sassa. Diante de certa irritao
deste, ela afrma que as culpadas so ela e Joana Carda
que tambm dormiu com Pedro Orce j que foram
elas que o procuraram e no ele a elas.
As pessoas nascem todos os dias, s delas que depende
continuarem a viver o dia de ontem ou comearem de raiz
e de bero o dia novo, hoje.
MARIA LEONOR (Terra do Pecado): loira, magra, jovem, gentil
e hospitaleira. Tem dois flhos: Dionsio e Jlia. No incio
do romance, a criada Benedita a aponta como corajosa
e frme; porm, no decorrer da trama, Maria Leonor se
mostra frgil, contraditria, insegura e misteriosa. Por
isso mesmo, complexa em sua psicologia, debate-se
perante a inquietante seduo do irracional, a tentao
de mergulhar no nada, vivendo na tnue fronteira entre
a razo e a loucura. Imediatamente aps a morte de seu
marido Manuel, ela se v sem horizontes e tomada por
uma depresso profunda, fcando por trs anos acamada e
enfraquecida, sem querer tomar conscincia da realidade
MARIA GUAVAIRA
228 SALMA FERRAZ
em que se encontra. Ela s consegue reagir mediante
uma espcie de tratamento de choque que o Dr. Viegas
recomenda e que Benedita aplica, dizendo que a quinta
est a se perder sem os olhos da dona, e que flhos e
empregados em breve fcaro na rua se ela no tomar as
rdeas da situao. Depois de se recuperar da depresso,
at o fm do romance, a viva atormentada pelo confito
entre o corpo e o esprito. Leonor dilacerada entre os
desejos da carne e a fora castradora da moral crist, que
desde sua origem condena o sexo e nega o prazer mulher,
ou seja, se debate entre o naturalismo evolucionista e as
idias crists. Passa a sonhar com cruzes que enchem
seu quarto e que caem sobre ela. Seus empregados
comentam que ela est embruxada. Vivia numa angstia
ntima, como se tivesse que salvar a si mesma a cada
momento, numa luta constante. Sente vergonha e nojo de
si prpria, considera-se uma pessoa imoral que movida
por instintos animalescos. Torna-se um farrapo, sempre
amedrontada pela perseguio da criada Benedita. Com
o passar do tempo, sua sexualidade vai se exacerbando
e tomando conta dela, e ela passa a delirar de desejo,
quase no consegue dormir, se debatendo na cama,
gemendo de um prazer incontido. Por conta desse desejo
incontrolvel, passa a ter um comportamento histrico,
torna-se impaciente, grita com as criadas e vive inquieta.
O desejo existe e impossvel lutar contra ele. Leonor
se entrega ao cunhado Antnio, cedendo aos apelos da
volpia, sem nenhum outro sentimento alm do desejo
sexual a impulsionando numa sarabanda orgaca.
Segundos aps o ato sexual realizado, Benedita adentra
o escritrio onde estavam e, pressentindo o ocorrido, d
incio a uma perseguio implacvel contra ela. A criada
est disposta a qualquer sacrifcio para manter a honra
da patroa. Com essa perseguio, o sofrimento de Leonor
torna-se insuportvel. Leonor uma mulher esclarecida,
demonstra conhecimento de flosofa e cincias e, atravs
dos seus dilogos, principalmente com o Dr. Viegas, ela
apresenta uma viso racionalista e liberal. Por outro lado,
h momentos em que os preceitos morais da religio a
cegam e sufocam, e ela age de forma contrria ao que se
espera de uma pessoa com o nvel de conhecimento que
ela tem. O embate entre esses dois conceitos antagnicos
MARIA LEONOR
229
de existncia flosofa e moral crist torturam a viva,
o corpo arde de desejo, enquanto as convenes sociais,
a moral religiosa e o olhar inquisitorial de Benedita
fazem acender a culpa pelos seus atos e pensamentos,
que ela considera pecaminosos e que a martirizam.
Elabora a curiosa teoria da fatalidade, ou seja, cr na
predestinao. Maria Leonor, depressiva, no consegue se
desvencilhar da opresso da moral crist, representada
pela sua criada Benedita, embora tenha argumentos
racionais bastante convincentes e esclarecedores que
mostram a naturalidade de seu comportamento sexual.
Ela parece no estar certa de suas prprias convices,
deixando-se vencer pela criada e pela represso moral e
sexual pregada pelos preceitos religiosos, dos quais nem
ela prpria muito convicta. Vive num ambiente escuro
e abafadio, rodeado por imagens de santos e cruzes.
Enxerga a morte e o pecado sempre diante de si, o que
lhe causa muitas alucinaes. Maria Leonor a primeira
personagem feminina de Saramago e revela sinais da
viso que o autor adotar em relao ao feminino ao longo
de sua obra. Mesmo em suas contradies ideolgicas,
Leonor quem questiona a ordem vigente e transgride
seus limites, desafando a moralidade crist. Essa
personagem maculada, do ponto de vista da criada
Benedita, pelo smen de dois homens seu cunhado
Antnio e o doutor Viegas , por puro prazer. Apesar de
seu nvel cultural, no consegue se perdoar, deixando-se
dominar pelos dogmas cristos a eterna culpa atribuda
mulher pelo pecado original.
Cremos justamente porque no sabemos e esta
constante ignorncia que mantm a f, qualquer que
ela seja. A Verdade pode ser to horrvel que, se fosse
conhecida, talvez destrusse todas as crenas e fizesse do
Mundo um grande manicmio.
MARIA SARA (Histria do Cerco de Lisboa): uma mulher com
menos de quarenta anos, estatura alta, possui a pele cor
de mate, os cabelos castanhos, salvo alguns fos brancos
e fumante. Tem a boca carnuda e cheia mas, segundo
o protagonista e revisor Raimundo Silva, os lbios no
so grossos. O revisor observa que em seus dedos no h
MARIA SARA
230 SALMA FERRAZ
nenhum anel ou aliana; ela mora com o irmo e com a
cunhada. uma mulher moderna, independente, segura
de si, metdica, cujos atos so medidos. divorciada h
trs anos, no tem flhos, mas deseja t-los. Maria Sara a
incentivadora de Raimundo Silva tanto na vida profssional
como na vida pessoal. Ela se torna chefe de Raimundo
na editora depois do erro proposital que o protagonista
comete na reviso da Histria do Cerco de Lisboa. uma
mulher equilibrada, esperta, e extremamente sutil em
sua maneira de lidar com Raimundo. Ela o incentiva a
reescrever a Histria do Cerco de Lisboa, a partir do no
que ele acrescenta na reviso, entregando-lhe a nica
cpia que no levava a errata. Dessa forma, o revisor
incentivado para novos desafos e, principalmente, para
realmente viver. Ele descobre o amor atravs do cerco
ao qual conduzido sutilmente por Maria Sara e passa
a sentir-se contemplado diante da vida e do trabalho.
Representa o tipo de mulher preferida por Saramago:
extremamente feminina, audaz, que toma as iniciativas e
que conduz o universo masculino atravs da sabedoria e
de uma postura frme, porm discreta. Inconscientemente,
ela liberta Raimundo Silva do cerco pessoal no qual ele
vive, atravs de seu poder de persuaso. A princpio, o
relacionamento dos dois confituoso e esto sempre
batendo de frente um com o outro. O interesse pelo
revisor desperta quando ele toca numa rosa que est no
gabinete dela, fazendo-a corar como uma adolescente
ao perceber que o gesto daquele homem parecia querer
alcan-la. Na verdade, ela gosta da ousadia de Raimundo
Silva, que colocou o no que alterou a Histria do Cerco
de Lisboa, e o desafa a reescrev-la a partir da negativa.
Bastante perspicaz, ela diz que aquele no o ato mais
importante da vida dele; na hora, Raimundo fca irritado
com o que ele cr seja uma intromisso em sua vida.
Porm, o revisor comea a sentir-se atrado por aquela
mulher forte que enxergou alm do seu ato rebelde. Ele
a procura na editora, mas fca sabendo que ela est
doente e de repouso, ento pede telefonista o nmero
da supervisora e fca lutando consigo mesmo entre ligar
ou no ligar. Ela fca satisfeita pelo interesse dele quando
recebe o telefonema, depois retorna a ligao e, assim,
os dois passam muito tempo conversando por telefone.
MARIA SARA
231
Quando melhora, visita Raimundo Silva e, sutilmente,
conduz os atos dele, escolhendo os momentos certos para
que as coisas aconteam, at entregar-se defnitivamente
ao amor que explode entre os dois. Sua importncia
fundamental para a narrativa, j que a personagem
encoraja o protagonista a dizer um no histria ofcial,
levando-o, conseqentemente, a mudar tambm a forma
da narrativa pica, mesclando-a com a forma romanesca
ao inserir o casal Mogueime e Ouroana personagens
que refetem o que se passa no corao e na mente de
Raimundo, bem como o sentimento que surge entre
ele e Maria Sara. Na realidade, Mogueime e Ouroana
funcionam como uma espcie de duplos de Raimundo
Silva e Maria Sara.
[...] o No que naquele dia escreveu ter sido o acto mais
importante de sua vida.
MARINHEIRO (A Viagem do Elefante): Integrante da tripulao
do navio que leva o elefante Salomo a Gnova, na Itlia.
Informa ao cornaca que, alm da viagem martima, eles
ainda teriam que enfrentar o perigoso caminho dos Alpes
para chegar a Viena, o destino fnal do elefante.
MARTA (A Caverna): Filha de Cipriano Algor, casada com um
guarda do Centro, Maral Gacho, e ajuda o pai na olaria.
Usa vestes longas, com avental e leno cabea. meiga e
carinhosa, dedicada, dona de uma personalidade serena,
extremamente consciente das suas obrigaes como flha,
esposa e ajudante da olaria. Herdara no somente o lugar
da me mesa, mas tambm as tarefas domsticas e o
poder de agregar a famlia ao redor de si. Parece realmente
ter assumido o papel da me falecida, principalmente nos
cuidados com o pai do qual confdente e com quem tem
uma cumplicidade muito grande. Seu mundo se resume
casa e olaria, aos trabalhos que por ali desenvolvia
e aos difceis dilogos com seu pai. Vive em funo
das preocupaes e ocupaes do pai e do marido e de
entender aquilo que no dito, no expresso. cercada
de expectativas da promoo do marido condio de
guarda residente no Centro, paralelamente ao drama de
ter que deixar o pai morando sozinho. Representa o lao
MARTA
232 SALMA FERRAZ
de unio de dois mundos, o antigo (artesanato) e o novo
(Centro Comercial), e consegue a misso quase impossvel
se conciliar os contrrios. Atravs dela Cipriano prolonga
o tempo de vida da olaria fornecendo bonecos criados por
ela. Por causa dela, Cipriano chega a ter uma experincia
de morar no Centro e ver de perto o destino de todos,
que acabaro atados a um banco de pedras olhando
para as paredes. Ela entende o drama do pai vencido
pela modernidade e agora aprisionado naquele Centro,
dividindo ao mesmo tempo, com ele e com seu marido,
todas as expectativas da chegada de um herdeiro. Ela
sabia, a seu modo, ser feliz, serenamente feliz, mesmo em
meio a todas as angstias vividas. chamada pelo pai de
flsofa, j que consegue ver o profundo e o essencial das
pessoas, e entender at o no dito, nisso nos recordando
em muito Blimunda. Nos dilogos com seu pai, leva o
seu interlocutor ao desespero ou ao silncio, manejando
uma discusso com maestria. A refexo que se pode fazer
sobre esta personagem transcende as caractersticas que
lhes so peculiares: ela atinge o nvel da construo da
personagem principal, exercendo a importante funo
de antagonista. por meio das cenas protagonizadas
pelos dois (Marta e Cipriano) que o narrador constri
as principais caractersticas do velho oleiro. por meio
dessas tenses que tomamos conhecimento do Cipriano
teimoso, do Cipriano sensvel, do Cipriano medroso
e do Cipriano apaixonado. Se formos pensar no poder
de interveno das personagens, veremos que Maral
e Achado intervm muito na elaborao do enredo, ao
passo que a interveno de Marta no da ordem do
enredo, mas sim da elaborao da personagem central.
Ela defne os Algores como brutos, mas de brutos eles
no tm absolutamente nada, so sensveis em palavras,
atos, sentimentos que se revelam em abraos e lgrimas.
Em suas falas, confrma o veredicto de seu pai: uma
flsofa por excelncia. Vive no Centro tambm, sempre
em funo das tarefas domsticas, do pai e do marido,
aos quais apoiou na iniciativa fnal de abandonar tudo e
sair sem destino certo.
[...] mas at a prpria ignorncia capaz de ter intuies
profticas.
MARTA
233
MARTA (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Irm de Maria de
Magdala e de Lzaro. Fato curioso que aparece como
irm gmea de Madalena. Percebe-se todo um confito
entre ela e Madalena, entre a virtuosa e a meretriz.
Quando Madalena, a irm prdiga, retorna a Betnia
com Jesus, ocorre o seguinte dilogo entre elas: Perteno
a esta casa como tu pertences, perteno a este homem
que no te pertence a ti, estou em regra contigo e com ele
[...] Recebo-te como minha irm pelo sangue, e espero que
possa chegar o dia em que te receba pelo amor, mas hoje
no [...]. Marta no entende as palavras enigmticas de
Jesus e demonstra ter cimes e inveja de Madalena por
esta ter um homem e ela, a virtuosa, viver na solido.
No perdoa o fato de Madalena ser prostituta, de nunca
ter mandado notcias ou tentado saber como estava o
irmo Lzaro, que vivia muito mal de sade. Lava os
ps de Jesus, quando isso naturalmente deveria ter sido
feito por Madalena e no por ela. Madalena diz a Jesus
que tanto ela quanto Marta esto enamoradas dele. Em
relao Marta, Madalena afrma para Jesus: A tristeza
dela no essa, est triste porque pensa que no h justia
no cu se a impura que recebe o prmio, e a virtuosa
tem o corpo vazio. Marta termina seus dias amargurada,
com cimes e inveja de Madalena, e com raiva e revolta
porque Madalena impediu que Jesus ressuscitasse seu
irmo Lzaro. Por meio de um discurso indireto livre, o
narrador informa o que pensa Marta:
[...] a histria de Deus no toda divina.
MARTA MARIA (Memorial do Convento): Me de Baltasar, um
pouco mais baixa que o flho, revela-se uma mulher
dedicada famlia, pois cuida do marido e dos flhos;
recebe calorosamente o flho Baltasar que retorna da
guerra. Ela no gosta de judeus e cristos-novos, pois
tem medo da Inquisio. Mulher humilde e hospitaleira,
acolhe Blimunda como sua flha e quando o padre
Bartolomeu Loureno chega, ao saber que era amigo de
seu flho, no lhe fez perguntas e ofereceu o que pde
para o jantar.
No h mulher nenhuma que no tenha vises e
revelaes, e que no oua vozes, ouvimo-las o dia todo,
para isso no preciso ser feiticeira.
MARTA
234 SALMA FERRAZ
MARTINS GONALVES DA CMARA (Que Farei com este
Livro?): Jesuta, confessor do rei D. Sebastio, Secretrio
de Estado e irmo de Lus Gonalves. Tipifca o ambiente
vivido na corte, um ambiente de intrigas, de disputa por
cargos e posies, por veladas e temerosas censuras
da Igreja por conta da Santa Inquisio. Lana dvidas
sobre a masculinidade de el-rei. Preocupa-se com sua
permanncia no posto que ocupa e com um pasquim que
o difama. Tece conjecturas sobre a disputa entre jesutas,
dominicanos e agostinianos, pelo cargo de confessor e
conselheiro de el-rei. Tinha grande venerao pelo irmo
e ambos foram acusados pela av de el-rei de o terem
desviado do casamento.
MASETTO (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Companheiro
de Zerlina, sabe que Don Giovanni tentou conquist-la
e teme que ela se entregue por vontade prpria, por isso
vai trs vezes casa de Don Giovanni procur-la. Masetto
representa os maridos, pais e irmos das mulheres
conquistadas por Don Giovanni. Ao mesmo tempo em
que sente raiva, tambm se sente intimidado pelo mito
Don Giovanni.
Porque enquanto existir Don Giovanni, tudo possvel
neste mundo.
MASSEO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do
conselho, demonstra sempre simpatia pela atual situao
da companhia, embora deseje que ela melhore sua
atuao no mercado. Possui pouca expresso na pea.
Est sempre contra Francisco e a favor de Elias. ele
que primeiramente pronuncia a sentena de Francisco
no desfecho da pea:
Melhor faramos se o expulsssemos.
MATEUS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos doze
elaborado por Deus, acabar a vida sendo morto entre
os brbaros.
MARTINS GONALVES DA CMARA
235
MAU LADRO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Aparece nu,
atado e pregado, e vai ser crucifcado junto com o Bom
Ladro e Jesus. Tem os cabelos lisos, cara magra e plida,
cada para a terra. Inspira pena. O narrador afrma que,
na realidade, o mau ladro uma pessoa boa, porque
manteve seu carter no momento mais difcil de sua vida
j que ele era
[...] rectssimo homem afinal, a quem sobrou conscincia
para no fingir acreditar, a coberto de leis divinas e
humanas, que um minuto de arrependimento basta para
resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples
hora de fraqueza.
MDICO (Ensaio sobre a Cegueira): Mdico oftalmologista, tem a
fronte murcha e a boca apagada. Seus olhos so mortos
como se fossem de vidro e so assustadores. Profssional
responsvel e dedicado ao trabalho, no entanto, humilde.
Ele atende em seu consultrio a primeira pessoa que
fcou cega na epidemia: o primeiro cego. Admirador da
esposa, efcaz, precavido, responsvel, paciente e tem
gostos literrios. Ao se ver cego, no quis se entregar ao
desespero, por ser mdico.
Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos
das pessoas, o nico lugar do corpo onde talvez ainda
exista uma alma [...]
MDICO (Ensaio sobre a Lucidez): o oftalmologista que migra,
junto com outras personagens, do livro Ensaio sobre a
Cegueira para o Ensaio sobre a Lucidez. Irrita-se com a
visita do comissrio e com o interrogatrio que este faz a
sua mulher, tentando saber se ela a responsvel pela
morte do cego na primeira epidemia e pela calamidade
dos votos em branco desta segunda epidemia. Nesse
interrogatrio ele a defende, dizendo que o assassinato
cometido por ela durante a epidemia de cegueira tinha
sido necessrio, uma vez que o cego assassinado violava
as mulheres em troca de comida. O mdico mostra-
se inteligente e perspicaz durante o interrogatrio,
reafrmando o papel de guia e provedora da mulher
durante a primeira cegueira. Afrma ainda que o primeiro
MAU LADRO
236 SALMA FERRAZ
cego no era uma pessoa simptica. Ao fnal do romance
preso pelo governo, acusado de ser cmplice da mulher.
E desde quando se interessam os comissrios da polcia
por pessoas inocentes.
MENINA (A Viagem do Elefante): Criana de cinco anos que
acompanha, junto aos pais, o cortejo que leva o elefante
para Viena. O elefante Solimo a salva, milagrosamente,
de ser esmagada por suas patas. O povo reage com emoo
e a histria se torna legendria na cidade. O evento
utilizado politicamente pelo arquiduque Maximiliano.
MIGUEL DIAS (Que Farei com este Livro?): Soldado e fdalgo do
Pao. Foi quem apresentou Lus de Cames a Martins da
Cmara e tambm ao Conde de Vidigueira.
MINISTRO DA CULTURA (Ensaio sobre a Lucidez): Fala
pouco e pouco aparece. impertinente, pois, assim que
comea o problema dos votos em branco, ele recorda da
cegueira de quatro anos atrs e afrma que agora, com a
nova epidemia, continuam, de certa forma, cegos. Pede
demisso do cargo.
O estudo do mau gosto, senhor primeiro-ministro, deveria
ser um captulo da histria das culturas, e dos mais
extensos e suculentos.
MINISTRO DA DEFESA (Ensaio sobre a Lucidez): um homem
sarcstico e muito preocupado, assim como os demais,
com a situao do pas, mais precisamente com a sua
prpria situao. Critica violentamente o ministro da
justia por este ter defendido que o voto em branco era
uma manifestao de lucidez. Num discurso infamado e
cheio de emoes, pede que se declare o estado de stio.
Os direitos no so abstraces, respondeu o ministro
da defesa secamente, os direitos merecem-se ou no se
merecem, e eles no os mereceram, o resto conversa
fiada, [...]
MINISTRO DA JUSTIA (Ensaio sobre a Lucidez): um homem
refexivo. irnico ao afrmar para o primeiro-ministro
MINISTRO DA DEFESA
237
que esta cegueira de agora, o voto em branco, pode ser
considerada como uma manifestao de lucidez. Reage
bem s crticas do ministro da defesa. Diz que perigoso
relacionar a votao em branco com o terrorismo.
Afrma que no votou em branco, mas que pensar bem
na prxima ocasio. Aps essa declarao pede a sua
demisso, assumindo seu cargo o primeiro-ministro.
Disse que o voto em branco poderia ser apreciado como
uma manifestao de lucidez por parte de quem o usou.
MINISTRO DO INTERIOR (Ensaio sobre a Lucidez): um
homem com grande envergadura poltica, muito ambicioso,
assim como seus companheiros. Tem quarenta e cinco
anos e lder do partido da direita. Pode ser defnido
como poltico repressor, maquiavlico, tirano e ditador.
Aparenta ser um senhor bastante viril, obstinado e muito
desconfado. Sua persistncia, muitas vezes, torna-o
orgulhoso demais. Apesar disso, uma raposa astuta
muito prevenida. Fora o comissrio a encontrar provas
irrefutveis que incriminem a mulher do mdico como
chefe de uma clula organizadora criminosa, responsvel
pelo movimento subversivo dos votos em branco que
colocou o sistema democrtico em risco. Diz ao comissrio
que ela j estava incriminada antes de qualquer crime.
Semelhante ao delegado do p.d.d., toma muito cuidado
para no errar em suas atitudes, ou seja, para no
deixar o rabo preso. Por outro lado, personagem com
bastante destaque no enredo, sendo, aquele que toma a
maioria das decises. comparsa do primeiro-ministro
nas suas jogadas sujas. um timo estrategista e atende
pela alcunha de albatroz. Foi quem mandou colocar a
bomba no metr da cidade. Ele autoriza o assassinato
do comissrio, aps saber que ele denunciara, no jornal,
sua tentativa de incriminar a mulher do mdico como
responsvel pela votao em branco. Dissimulado, presta
todas as homenagens ao comissrio, com discurso e
condecorao pstuma; ainda insinua que a mulher
do mdico e seu grupo tinham sido os responsveis
pela morte do comissrio. dispensado pelo primeiro-
ministro que o acusa de muitos erros, inclusive da morte
do comissrio e de ter colocado a populao nas ruas
contra o governo.
MINISTRO DO INTERIOR
238 SALMA FERRAZ
Deix-los estar, nunca se sabe at onde poder chegar a
malcia humana.
MINISTRO DOS NEGCIOS ESTRANGEIROS (Ensaio
sobre a Lucidez): Informa ao governo que os demais
pases temem que a epidemia do voto em branco se
espalhe como uma espcie de peste negra.
MIQUIAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Profeta que viveu
no tempo de Acaz e Ezequias. Aparece nos sonhos de
Herodes, com a tnica manchada de sangue e coberto
do p das batalhas; perturba-o com seus gritos e com
suas profecias e depois desaparece. Em sua principal
profecia, informa a Herodes que de Belm sair aquele
que governar Israel.
Mas tu, Belm, to pequena entre as famlias de Jud, foi
j de ti que me saiu aquele que governar Israel.
MOGUEIME (Histria do Cerco de Lisboa): Personagem fctcia
criada pelo personagem/escritor Raimundo Silva
para fazer par romntico com Ouroana. um soldado
portugus que luta pela retomada de Lisboa que
estava sob domnio dos mouros. Havia conquistado
Santarm, mas como um bom cavaleiro veio em busca
de glrias maiores. Mogueime um homem alto, forte
e valente, conhecido por ter servido de escada humana
a Mem Ramires na tomada de Santarm. Bravo, leal e
corajoso, participa do motim dos soldados que estavam
descontentes com o soldo atrasado e miservel. Como
porta-voz dos soldados, de maneira respeitosa mas
desafadora, encara el-rei e deixa bem claro as condies
dos seus companheiros para continuarem na luta contra
os mouros. Quando o rei disse que no sabia se cortava
os ps ou a cabea dos rebeldes pelo atrevimento deles,
ele responde que se isso acontecer, todo o exrcito do
rei fcar sem ps nem cabea. Mogueime apaixona-se
perdidamente pela concubina do cavaleiro Henrique
Ouroana e procura maneiras de estar sempre a observ-
la de longe. Mesmo sabendo tratar-se de um amor quase
impossvel, alimenta a esperana de que um dia ela possa
vir a ser sua. No teme a morte, acredita que ela esteja
MOGUEIME
239
espreita nesses tempos de guerra; porm teme perder
aquilo que est por vir ou o que poderia viver, se a moa
da Galiza viesse a aceit-lo como companheiro. Sua
persistncia recompensada aps a morte do capito,
quando ento convida a moa para viver com ele e ela
aceita. A personagem Mogueime, da histria reinventada,
parece ser um duplo de Raimundo Silva, pela ousadia
de dizer um no ao rei D. Afonso Henriques, ciente das
conseqncias que poderia sofrer. Alm disso, busca
conquistar a mulher amada e no desiste at alcanar o
seu objetivo, tal como Raimundo Silva.
Que eu no morra, Senhor, sem provar o gosto da vida.
MORTE (As Intermitncias da Morte): Com eme minsculo mesmo,
afnal no Morte, entidade que nosso engenho no
alcana, s a morte. A morte responsvel apenas
pelos falecimentos humanos de um pas; animais e
plantas fcam sob responsabilidade de outra entidade,
o que mostra certa hierarquia. A morte possui trs
intermitncias, sendo que a primeira dura sete meses
e feita com o objetivo de relembrar a humanidade da
importncia do processo natural de vida e morte. Com
essa interrupo, as doutrinas entram em colapso,
principalmente a catlica; e muitas instituies tendem
a falir, como as funerrias e hospitais. Passados sete
meses sem mortes, ela, a morte, resolve tentar uma
abordagem diferente, comeando a mandar cartas de cor
violeta avisando o retorno aos trabalhos. Envia, inclusive,
uma carta ao responsvel pela televiso, criticando as
correes gramaticais que fzeram em uma de suas
cartas. De um dia para outro, 62.580 pessoas morrem,
e essa hecatombe cria mais um problema social. A partir
disso, a morte decide enviar cartas com uma semana de
antecedncia, avisando a data certa de falecimento de
cada indivduo, o que causa as reaes mais diversas
naqueles que possuem sua morte anunciada. As cartas
so escritas mo, e o sistema de envio simples: a
morte pensa, e todas as cartas chegam ao seu destino.
Porm, uma, destinada a outro personagem de destaque
no livro, o violoncelista, retorna trs vezes a sua mesa.
Passado o prazo para ceifar a vida do violoncelista, algo
MORTE
240 SALMA FERRAZ
anteriormente nunca visto ocorre, j que ele continua
vivo. A morte se desespera e procura investigar quem
o ser que j deveria estar morto e que disse no
morte e sim vida. Depois de acompanhar de perto a
vida do violoncelista, a morte acaba por apaixonar-se,
decidindo-se, portanto, a entregar pessoalmente a carta
de cor violeta. Para encontrar sua paixo, a morte se
produz: sua aparncia no descrita, mas subentende-
se que possua um corpo bem feito, sorriso agradvel, e
portava culos escuros. No instante em que se produz, a
morte inicia sua primeira conversa com a gadanha que
a faz entender os objetivos da morte ao se produzir. Ao
sair para entregar a carta, deixando gadanha a tarefa
de continuar enviando os demais avisos, a morte decide
passar uma semana seduzindo o violoncelista, e acaba
por ser seduzida por ele. No ltimo dia do prazo de uma
semana, a morte, humanizada, depois de uma noite de
amor, acaba adormecendo nos braos de seu amante,
dando-se assim incio terceira intermitncia. A morte se
apaixona pelo violoncelista, tinha coisa mais importante
a fazer. No dia seguinte, ningum morreu.
No sou gorda nem estou vestida de preto, e tu no tens
nenhuma ideia de quem foi marcel proust...
MULHER DA LIMPEZA (A Ilha Desconhecida): Personagem
que acompanha o protagonista (o homem) do comeo
ao fnal da histria. Apesar de ocupar a ltima posio
na hierarquia do palcio, interessante observar que o
veredicto do rei aos pedidos lhe chega, e ela despacha
sim ou no porta das peties do palcio de acordo com
seu humor. Dentre suas principais funes no palcio
esto realizar a limpeza e outros trabalhos menores. O
empreendimento do homem, a pedir um barco ao rei para
sair em busca da ilha desconhecida, a motiva a sair pela
porta das decises, e, ao mesmo tempo em que decide
mudar de ofcio, mantm a natureza de suas funes no
palcio, pois compreende que [...] lavar e limpar barcos
que era a sua vocao verdadeira [...]. Compartilha com
o homem a busca da Ilha Desconhecida e, quando este
se mostra hesitante em suas convices, ela lhe instiga a
no desistir. Aps uma noite de sonhos, acorda abraada
a ele e partem em busca da Ilha.
MULHER DA LIMPEZA
241
Nunca me riria de quem me fez sair pela porta das
decises.
MULHER DESCONHECIDA (Todos os Nomes): *Personagem
sem presena fsica durante todo o romance. Tudo o
que sabemos dela foi descoberto atravs das pesquisas
e entrevistas do Sr. Jos, atividade esta que se iniciou
quando ele acidentalmente pega o verbete, os arquivos,
que correspondem a sua pessoa. De todos os nomes
que colecionava, para ser mais exato, dos cem nomes
de pessoas famosas nascidas no pas onde se passa a
narrativa, o Sr. Jos fca obcecado por este. Essa obsesso
transforma a vida do apagado funcionrio pblico que
retorna vida durante a busca de dados sobre a mulher
desconhecida: volta a conversar, a sair da Conservatria,
invade uma escola, visita o Cemitrio Geral, comea a fazer
coisas inimaginveis para um cidado to pacato quanto
ele. De todos os dados que rene, temos que a mulher
desconhecida foi professora de matemtica no colgio em
que estudara antes de entrar para a Universidade, foi
casada, no teve flhos e, depois do divrcio, foi morar
sozinha. Suicidou-se aos trinta e seis anos sem deixar
explicaes ou bilhete, ingerindo em excesso comprimidos
para dormir. Ao descobrir que a mulher desconhecida
est morta, Jos fca profundamente abalado, pois
o suicdio da mulher ocorreu dois dias depois que ele
invadiu a escola em que ela estudara. Mesmo sem poder
encontr-la, prossegue em sua jornada. Jos no sabe
sequer onde a mulher desconhecida est enterrada, pois
o pastor de ovelhas trocou a identifcao do tmulo. Ao
visitar o apartamento dela, v suas roupas, ouve sua voz
uma nica vez na secretria eletrnica e, juntamente com
as fotos que j possua, consegue construir uma imagem
de quem era ela. Depois que o conservador descobre isso
e conversa com Jos, sugere que a pasta com os dados
da mulher desconhecida continue no lugar dos vivos,
sem a certido de bito, como se ela ainda estivesse viva;
burocraticamente viva, ao menos.
**Personagem ausente em todo o romance e ao mesmo
tempo de uma presena fundamental para o seu
desenvolvimento. A mulher desconhecida foi achada
ocasionalmente em um verbete pelo Sr. Jos, enquanto
MULHER DESCONHECIDA
242 SALMA FERRAZ
este tentava aumentar sua coleo de pessoas famosas
usando o material da Conservatria. Nascida na mesma
cidade, ela tinha trinta e seis anos, era divorciada e
buscada pelo Sr. Jos, aps a descoberta acidental de
seu verbete. Quando a ousada busca do Sr. Jos se
inicia, a mulher desconhecida ainda estava viva, visto
que a data do bito de dois dias aps a invaso que ele
faz ao colgio onde ela estudara. tambm o acaso que o
leva a essa descoberta que o entristece tanto. Na visita ao
cemitrio, o Sr. Jos fca sabendo que a causa da morte
da mulher desconhecida fora o suicdio. Ao encontrar o
tmulo, ele constata que realmente ela estava morta, e
que o objeto que o levou a tamanha transformao j no
existe mais. Atravs dos pais da mulher desconhecida,
ele descobre que ela era professora de matemtica no
colgio em que estudara, e que havia sido muito infeliz
no seu casamento. Essa infelicidade de certa forma j
descrita pelo Sr. Jos, quando este percebe tristeza na
mulher desconhecida, ao descrever seu olhar em dois
momentos na trama. O primeiro, quando a senhora-do-
rs-do-cho-direito mostra-lhe uma fotografa da menina
com oito anos de idade. Jos, diante da foto, emociona-
se e a descreve como sendo um rostinho que devia ser
plido, uns olhos srios debaixo de uma franja que roava
as sobrancelhas. O segundo, quando encontra no colgio
um verbete com a foto de quando a mulher desconhecida
tinha quinze anos; ressalta que a mesma deixara de
usar franja, mas os olhos conservavam o mesmo ar de
gravidade dorida... Essa busca desenfreada do Sr. Jos
para levantar o passado desta mulher desconhecida, que
no compreendida nem por ele mesmo, pode signifcar
um resgate de seu prprio passado. De certa forma,
ele se sente prximo desta mulher que to annima
quanto ele, como tantos outros indivduos registrados na
Conservatria e que, com certeza, passaro pela vida em
brancas nuvens sem deixar sua marca na histria.
MULHER DO MDICO (Ensaio sobre a Cegueira): A protagonista
esposa do mdico oftalmologista e personagem mais
importante da histria, os olhos que guiam o leitor
no texto. Mulher de quase cinqenta anos, atraente e
charmosa. Carinhosa e companheira, piedosa, muito
MULHER DESCONHECIDA
243
prestativa e de um corao enorme. Finge-se de cega para
acompanhar o marido no internato e tem que proceder
como tal para que no a denunciassem e a removessem
de perto do marido. Astuta, sensvel, decidida e
extremamente organizada. Precavida, inteligente, forte e
controlada. No concordava com o ditado que diz que na
terra dos cegos quem tem um olho rei. Tinha os dois
olhos e estava longe de se sentir uma rainha, pelo contrrio
sentia-se indigna, quase que obscena, por ver quem nem
suspeitava de sua presena. Alguns cegos acreditavam
que ela devia ter um de um sexto sentido, uma espcie de
viso sem olhos. Graas aos seus olhos, como reconhece
a rapariga dos culos escuros, que todos estavam
vivos. quem guia o grupo dos cegos em tudo: leva-os
ao banheiro, salva-os do fogo, os conduz a suas casas,
etc. De simples esposa ela se transforma na personagem
mais atuante, mais solidria e mais consciente da fco,
talvez a nica que tivesse verdadeira conscincia pessoal,
no cegando exatamente por isso. a nica personagem
que amadurece e se torna complexa, j que de calma e
pacifcadora transforma-se numa assassina.
[...] que vocs no sabem, no o podem saber, o que
ter olhos num mundo de cegos, no sou rainha, no,
sou simplesmente a que nasceu para ver o horror, vocs
sentem-no, eu sinto-o e vejo-o [...].
MULHER DO MDICO (Ensaio sobre a Lucidez): Foi a nica a
no cegar quando todos estavam cegos. uma mulher
corajosa que defendeu os que dela necessitaram, dando
aos cegos comida, gua e proteo. sedutora, esperta,
astuta, inteligente, persuasiva, irnica. Na ocasio do
interrogatrio do comissrio, se sai muito bem no debate
de idias e nas respostas dada a ele. Passou a ser chamada
de guia-pesqueira pelo ministro do interior, pois na
comunicao entre este e o comissrio, corriam riscos de
grampo. Na viso do comissrio ela parece uma mulher
decente, normal, inteligente, uma pessoa inigualvel.
J na viso do ministro do interior ela era abominvel
e muito perigosa. O comissrio passa a admir-la e a
defend-la com risco da sua prpria vida. Ele a avisa de
que deve fugir, que sua vida est em perigo. Sua foto
MULHER DO MDICO
244 SALMA FERRAZ
publicada no jornal como a responsvel pelo enigma dos
votos em branco, pela conspirao contra a democracia,
denominada de a cabea da tnia, que implantou o
germe da perverso e corrupo. Logo em seguida a
essa publicao surgem outras notcias incriminando-
a como assassina. O comissrio consegue burlar a
vigilncia da censura e publica uma notcia no jornal,
inocentando-a. Ela, por telefone, afrma ao comissrio
que foi transformada em inimigo publico nmero um do
estado. Ao fnal do romance ela e seu fel co morrem
assassinados pelo homem da gravata azul com pintas
brancas.
E como foi que consegui levar a maioria da populao
da capital a votar em branco, metendo panfletos debaixo
das portas, por meio de rezas e esconjures meia-noite,
lanando um produto qumico no abastecimento de gua,
prometendo o primeiro prmio da lotaria a cada pessoa,
ou gastando a comprar votos o que o meu marido ganha
no consultrio...
MULHER DO PRESIDENTE (Ensaio sobre a Lucidez): Figura
curiosa, bastante indecisa. No vive bem com o marido,
entretanto esfora-se em manter as aparncias. Aparece
para votar no ltimo minuto com a desculpa de que
havia ido ao cinema. Sua fgura exprime algo de tdio e
melancolia.
MULHER DO PRIMEIRO CEGO (Ensaio sobre a Cegueira):
Mulher zelosa, carinhosa, dcil, prtica e respeitadora do
marido. Empregada de escritrio. ela que percebe que
o carro do marido havia sido roubado e tambm marca
a consulta do marido com o mdico quando aquele
disse estar cego. Porm, decide atender ao chamado
dos malvados que ordenam que as mulheres fossem ao
encontro deles para satisfazer suas necessidades sexuais,
enfrentando a proibio do marido, no se deixando
intimidar por ele.
Est na tua mo no seres indecente, a partir de agora
no comas.
MULHER DO PRIMEIRO CEGO
245
N
247
NUFRAGO (A Viagem do Elefante): Uma das personagens mais
fantsticas da histria. Com ela Saramago cria um smile
do deus Ganeixa. Tanto o nascimento quanto a morte
do nufrago so como uma nova mitologia: enquanto
Ganeixa criado a partir de uma pasta de sabo, o
nufrago tem seu fm com uma bolha de sabo que
estoura. Seu nascimento de uma espcie de sopa remete
teoria evolucionista que trata da sopa primordial.
NAVEGADOR SOLITRIO (A Jangada de Pedra): Personagem
que o narrador introduz dentro do romance numa
narrativa parte, numa microestria dentro da estria
maior.
NOAH (Caim): Marido de lilith, senhor das terras de nod. Consente
que a esposa se satisfaa sexualmente com os operrios,
pois tem esperana que um desses amantes a engravide,
assim poder ter o flho que no foi capaz de conceber.
Encima-se do ardor e do desejo de lilith por abel-
caim e planeja sem sucesso mat-lo. Ao saber dessa
tentativa frustrada, lilith mostra todo o seu poder e
fora humilhando o marido de tal forma que este aceita
executar o escravo que levantou a mo contra caim.
Amar o flho de caim, enoch, como se fosse seu. Morre
de morte natural.
NO (Caim): Homem forte e alto. Juntamente com sua famlia
(esposa, trs flhos e trs cunhadas), cumpre os desgnios
de deus em construir uma arca para salvar os animais;
recebe a incumbncia de repovoar o mundo depois do
dilvio. Age com desconfana vinda de caim, mas o
aceita na arca por ordem de deus. Concorda humildemente
com as palavras de caim que no haver tempo hbil
para a construo da arca e que ela precisa ser posta
na gua, ou ser inundada. Deus, ento, manda um
squito de anjos, tanto para completar a arca como para
lev-la ao mar, no que se confguraria como o primeiro
vo panormico da histria. No grita em desespero aos
anjos para que eles abaixem a arca a fm de que possa
recolher o esquecido unicrnio, mas seus gritos foram
em vo. Dentro da arca, durante o dilvio, os tripulantes
que no morreram em acidentes so assassinados por
NO
248 SALMA FERRAZ
caim, exceo de no que, ao compreender a situao,
atira-se ao mar.
[...] e que se cumpra a vontade do senhor, Amm.
NORBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos, donos
dos latifndios, e faziam parte da chamada trindade (LEI
= latifndio, Estado, igreja). Mantinham a estrutura
trabalhadores. Norberto um homem rancoroso e
desprezvel. Para ele, o trabalhador do latifndio um
pobre diabo que nem sabe o que quer. Quando soube
do alvoroo dos homens a clamar por salrio maior, diz:
No quero ces a ladrar atrs de mim. Decide no ceifar
o trigo naquele ano. Sem trabalho, com o passar do tempo
o trabalhador vem comer-lhe na mo.
Deus no dorme e o castigo sem falta vir [...].
NORBERTO
249
O
251
O LNGUA (A Viagem do Elefante): Aparentemente caracterizado
como personagem secundria na trama, ocupando pouco
mais que trs breves linhas do romance inteiro. o
lngua que traduz aos ouvidos do comandante austraco
as boas-vindas proferidas pelo alcaide de Castelo
Rodrigo. Mostra-se com essa personagem, mais uma vez,
a dependncia intelectual das autoridades em relao s
personagens servis.
OLGA (Manual de Pintura e Caligrafa): Secretria, Olga pertence
ao espao da SPQR, empresa que S. administra.
Ela adentra o romance nos seus momentos iniciais
com a funo secundria de recepcionar o pintor H.,
contratado por S. para retrat-lo, e de estabelecer o
contato comercial entre ambos. Embora permanea em
cena apenas durante a primeira parte da narrativa que
relata a execuo dos dois retratos de S., Olga chega
a ocupar lugar de destaque como amante do pintor,
posio que a contrape s namoradas Adelina (que
reina na segunda parte do romance) e M. (que chega no
fnal da narrativa). Participando de forma signifcativa do
universo feminino que o romance pretende retratar, Olga
fala pelas mulheres presumivelmente independentes que,
a despeito de exercitarem o direito de fazer escolhas dos
parceiros amorosos, sucumbem ao poder do dinheiro,
satisfazendo todas as vontades dos patres. Quando
indagada por H., assume ter sido amante do patro S.. A
seduo arma decisiva no jogo feminino assumido por
essa personagem que se apresenta com imagem poderosa
a H.. Apostando na percepo visual do pintor e como
se fosse um diretor de cena, Olga prepara o ambiente
que a acolher aos olhos do artista, que a v alta e to
angulosa quanto as mulheres fellinianas ou aquelas
retratadas por Magritte: olha-o de frente, acendendo
luzes generosas que a iluminam ao lado da mesa enorme,
brilhante, escura, como se fosse mais um objeto da sala
do conselho da empresa. O impacto da imagem da
mulher que ganha grandes propores perante o homem
apequenado diante do poder feminino, registrado pelo
escrepintor que se inclui no onrico quadro de Olga por ele
descrito. A partir do primeiro contato efetuado em nvel
comercial, a relao entre H. e Olga se sustenta graas
OLGA
252 SALMA FERRAZ
atrao sexual e ao jogo da seduo/submisso que
ambos experimentam ainda durante o confronto inicial,
quando o pintor aceita o desafo, acreditando-se capaz
de seduzi-la. Entretanto, nos colquios subseqentes,
que tm lugar no apartamento de H., a moa evidencia
ter pleno domnio na conduo da situao amorosa,
demonstrando que a pretendera previamente: age no por
obedincia ao macho, nem por hbito de submisso, muito
menos por efeito de fascnios e muito mais pelo exerccio
da prpria liberdade. Porta-voz do feminismo que ganha
espao nas dcadas de setenta e oitenta, Olga integra,
ao lado de Adelina e Sandra, a galeria das personagens
femininas que, aos olhos assustados do pintor H., tm
uma independncia ilimitada. Ocorre uma disputa
acirrada entre a liberada secretria e o pintor, cada um
desejando a aprovao do outro. H. submete o retrato de
S. ao julgamento ingnuo de Olga (achou parecidssimo),
enquanto a fogosa secretria submete-se ao olhar do pintor
que a retrata em estratgico div. No nos esqueamos de
que a construo das personagens deste romance passa
pelo crivo do narrador protagonista, que se apresenta em
situao desconfortvel perante a secretria de S., a qual
o faz sentir-se em contnua vertigem diante da liberdade
fundamental da mulher, o que justifca a tonalidade de
desprezo irnico com que a trata. Interessante observar
como a secretria Olga reiteradamente retratada nua
em ambientes fechados, associada a alguns objetos que,
junto dela, ganham propores onricas, fazendo dessa
personagem fonte de devaneios para o pintor. Ao lado de
Olga, o tempo do relgio no conta. Quer seja na cama
ou na cozinha durante o jantar, onde no faltam uns
pssegos de conserva (natureza morta e em conserva),
H. reencontra a vida extremamente simples do Djeuner
sur lherbe, de Manet. Atravs da associao a objetos
dspares tais como a grande mesa (de dissecao), o div
e a mquina de costura (cujo funcionamento sugerido
pelo som dos saltos dos sapatos da secretria nos
degraus da escada), o pintor transporta Olga e a si mesmo
para as ambincias surreais retratadas pelas palavras
do poeta Lautramont e pelas tintas de Magritte, este
ltimo considerado por H. o mais literrio dos pintores.
A despeito de atropelar H. com seu erotismo, Olga sai da
OLGA
253
vida do pintor simplesmente, como se nela tivesse atuado
como personagem de um sonho. Com igual simplicidade,
a secretria de S. encerra o relacionamento comercial
que motivara o colquio com o pintor H..
Vou-me embora. J pode acertar o seu relgio.
OLHEIRO (Caim): Espcie de capataz na construo do palcio
da senhora de nod, chamada lilith. Alm de dar emprego
ao errante caim, d-lhe roupa, comida e abrigo at que
possa se sustentar por conta prpria. Apresenta a caim
a cidade, explica como o trabalho de pisar o barro e
quem lilith.
D a impresso que algum te marcou.
OUROANA (Histria do Cerco de Lisboa): Personagem inventada
pelo personagem/escritor Raimundo Silva para recontar
a nova Histria do Cerco de Lisboa. Conforme a descrio
de Frei Rogeiro, que pelo jeito tambm sentia desejo
por ela, Ouroana era [...] formosa como o amanhecer
e misteriosa como o nascer da lua. Ela, a mulher de
cabelos louros, foi roubada dos campos da Galiza pelo
criado do cavaleiro Henrique quando uns cruzados l
desembarcaram, e trazida fora para Portugal. Era
flha de lavradores e trabalhava com seus pais no rigoroso
amanho da terra. Talvez, por isso, ostentasse algum
orgulho por ser concubina de um ofcial do exrcito,
apesar de permanecer a maior parte do tempo fechada
numa tenda, espera de que seu senhor fosse desfrutar
de sua beleza, saindo apenas para alguns passeios
acompanhada do criado fel do cavaleiro. Ficou conhecida
por matar todos dois homens que dela se aproximavam
com segundas intenes. Estes homens apareceram
mortos depois com as barrigas cortadas. Mas fca bem
claro que nenhuma prova h de que tenha sido ela a
autora dos crimes, apesar dela ameaar um militar que
tentou agarr-la aps o funeral do cavaleiro Henrique.
Quando o cavaleiro e o criado foram mortos em combate,
fcou sozinha no mundo, e tratou de providenciar sua
subsistncia lavando roupa para fdalgos. Tal como
Maria Sara, era uma mulher decidida e forte, mas ao
OUROANA
254 SALMA FERRAZ
mesmo tempo feminina e sutil. Conhece Mogueime
(um soldado portugus) em uma praia, conversam e se
apaixonam. Era uma mulher esperta e percebeu a paixo
que despertara em Mogueime, sentindo-se atrada por
ele tambm. Tal qual Maria Sara, entregou-se ao amor
do homem que persistiu at conquist-la, e sentiu-se feliz
por viver momentos maravilhosos em tempos de guerra.
O casal vive uma estria de amor, oitocentos anos antes
de Raimundo Silva e Maria Sara. No fnal, Ouroana volta
para a Galiza e o autor Raimundo Silva no fnaliza sua
estria de amor com Mogueime. Porm, quando Maria
Sara pergunta a Raimundo qual seria o fnal da estria,
ele diz que Ouroana iria embora e achava que Mogueime
a seguiria. Fica ento subentendido que os dois fcaram
juntos, assim como Raimundo e Maria Sara. Ourana e
Mogueime representam o amor duplicado de Raimundo
Silva e Maria Sara.
Se me pes a mo em cima, ou te mato, ou me mato...
OUROANA
255
P
257
PADRE CRISTIANO (Terra do Pecado): Representa o lado puro
do cristianismo, como o nome bem traduz Cristiano.
ele quem defender os inexorveis caminhos da vontade
divina, nem sempre compreendidos pelos pobres seres
humanos, aos quais cabe o papel de expectadores
conformados. Cristiano referido pelo narrador como
padre, prior, mas nos poucos instantes em que as dvidas
do homem predominam sobre as certezas do sacerdote
fazendo com que ele questione os caminhos da vontade
divina, o narrador o chama de pastor. devoto e muito
fervoroso, fala com mansido, no tem muito apreo para
com o mdico ateu Viegas. H uma simpatia do narrador
pelo padre. frme em torno de uma nica idia e no
a modifca do incio ao fm: defender o cristianismo. No
decorrer da trama ocorrem vrios confitos entre o Padre
Cristiano e o Dr. Viegas. Numa resposta provocao do
mdico na ceia de Natal preparada por Leonor, responde,
diante da afrmativa do Dr. Viegas de que ele era um
semeador de iluses:
Vamos l, senhor ceifeiro das iluses que eu semeio!...
PADRE DE PDUA (A Viagem do Elefante): Personagem que
pede um favor ao cornaca, quando a caravana do elefante
Salomo est em Pdua: fazer com que Salomo se
ajoelhe s portas da baslica de Santo Antnio. Durante
o desenrolar da conversa entre os dois, fcam claras as
intenes do padre: se o elefante se ajoelhasse diante da
casa de Deus, isso passaria a ser visto como um milagre.
Aps algum treinamento, o elefante enfm se ajoelha em
frente baslica. A fgura do padre e sua distorcida viso
sobre seu papel como representante de Deus est em
concordncia com a dos outros clrigos representados
no livro: inseguros quando questionados e utilizando a
religio como instrumento de manipulao.
A deus nunca o importunamos para que faa um milagre,
preciso respeitar a hierarquia, quando muito recorremos
virgem, que tambm dotada de talentos taumatrgicos.
PAJENS (A Viagem do Elefante): Integrantes da comitiva do rei, so
seus ajudantes imediatos. Foram escolhidos e designados
para o servio pelo estribeiro-mor, atendendo ao pedido
PADRE CRISTIANO
258 SALMA FERRAZ
do Rei para que fossem escolhidos pajens que no rissem
por qualquer motivo. Os pajens anunciam a presena do
rei ao cornaca, quando este estava maltrapilho e sujo.
PASTOR DE OVELHAS (Todos os Nomes): De cajado na mo,
senhor de idade j avanada que aparece uma nica vez
no romance, ao Sr. Jos, quando este vai ao cemitrio em
busca do tmulo da mulher desconhecida. Quando Sr.
Jos encontra o tmulo, noite e ele acaba adormecendo
no Cemitrio Geral debaixo de uma oliveira. Ao despertar
v uma ovelha branca pastando e um co vulgar, nem
grande, nem pequeno, esperando ordens de seu dono:
o pastor. Este costumava levar suas ovelhas para o
cemitrio nas primeiras horas da manh, enquanto
os servios do Cemitrio Geral no comeavam, pois
achava desrespeito com as pessoas enterrarem seus
mortos entre balidos e caganitas. na ala dos suicidas
que os dois personagens se encontram. Para que os
funcionrios do Cemitrio os guias, no o proibissem
de levar suas ovelhas pelo campo santo, costumava
presente-los com queijos. Inquisitivo, questionador, o
pastor se contrape ao mundo burocrtico e autoritrio
representado pelo conservador, que pretende fxar e
reduzir a vida dos homens a meros papis. Diverte-se
trocando os nmeros enterrados nos montes de terra
dos sepultados no talho dos suicidas. Assim, as placas
de mrmore com os nomes dos mortos fcariam sempre
em tmulos trocados, impossibilitando suas verdadeiras
identifcaes. A razo de agir assim sua convico de
que os suicidas no querem ser encontrados. A presena
do pastor de ovelhas um grande paradoxo, pois a fgura
do pastor sempre foi associada ao buclico, ao interior,
simplicidade; e ele encontra um burocrata em um
cemitrio que pode ser, pela extenso, uma necrpole
dentro de uma megalpole. Assim como o Diabo/Pastor
do Evangelho segundo Jesus Cristo, este pastor tambm
muito mais humano e piedoso para com os homens e
seus destinos do que, Deus e o conservador, implacveis,
insaciveis na sua sede de poder e na representao do
que do bem e do que correto.
No creio que haja maior respeito do que chorar por
algum que no se conheceu.
PASTOR DE OVELHAS
259
PEDRO I (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Pai de Francisco
e diretor geral da companhia. Personagem com relativa
expresso. Tal qual o progenitor do Francisco de Assis das
biografas tradicionais, esta personagem vive o confito de
ver o flho negar a riqueza que ele administra com muito
esmero como diretor geral da companhia. O desapego
de Francisco a maior razo do confito entre ambos.
Nos sucessivos embates entre pai e flho, fcam patentes
as similitudes entre o Pedro Bernardone emprico rico
comerciante de Assis e o Pedro fccional, diretor da
companhia: a ganncia e o desprezo pelo ideal do flho so
caractersticas freqentemente ressaltadas. Nas cenas
em que o drama familiar retomado, grande referncia
feita ao fato explcito do rompimento entre Francisco e
Pedro nas biografas tradicionais: Pedro exige a restituio
de todos os bens que Francisco doava aos pobres. No
famigerado acontecimento, Francisco, inusitadamente,
teria tirado toda a sua roupa na frente do pai e do bispo
de Assis e, nu, proclamado o seu despojamento absoluto
e seu desapego pelos bens terrenos, renunciando ao
pai biolgico, optando unicamente pelo pai celeste:
Deus. Percebe-se na fco um aprofundamento na
incompreenso manifestada pelo Pedro da histria
emprica, fato que resulta em um perceptvel sentimento
de averso, mgoa e dio nas cenas em que pai e flho
esto juntos. Fica claro que sua fgurao tambm
ajudar na construo do novo Francisco desprovido
de qualquer caracterstica santa como quer a tradio.
O cisma chega a um ponto irremedivel que culminar
no desejo de morte acalentado de um para com outro.
A vontade de Francisco ironicamente parece prevalecer,
pois logo aps pronunciar o desejo de morte do pai,
sua me entra aturdida anunciando a morte natural de
Pedro.
Talvez seja por no poder amar-te que te odeio.
PEDRO II (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Representante
dos pobres, no possuiu nenhuma referncia histrica
nas biografas franciscanas, fato que o faz diferente
das outras personagens da pea e o deixa entregue
totalmente criao do autor. Estranho tambm ele
PEDRO I
260 SALMA FERRAZ
apresentar o mesmo nome do pai de Francisco, o qual,
em cenas anteriores, havia sido proclamado morto. A
semelhana fsica entre um Pedro e outro atestada
pelos presentes na ocasio de sua chegada reunio
do conselho. Tal similitude deixa margem para muitas
interpretaes; entre elas a de que Pedro, o pobre, seria
Pedro Bernardone retornando tambm em uma segunda
vida, agora na condio de pobre, para iluminar as idias
do flho quanto ao seu pensamento equivocado em
relao pobreza. Levado ao conselho por Francisco para
defender o ideal de pobreza na reunio decisiva para a
permanncia ou no dele na companhia, Pedro contraria
Francisco e, atravs de um longo discurso, tenta dissuadi-
lo da idia de regresso s origens, argumentando que
a pobreza almejada por Francisco era egosta, j que
o nico objetivo era ele alcanar a santidade pouco se
importando com os fundamentos da condio marginal
em que os excludos viviam. Pedro frisa que a pobreza,
para quem nasceu nela e nela vive, uma condio indigna
e subumana, portanto, se quisesse de fato fazer o bem
para os mais necessitados, ao invs de desejar a pobreza,
Francisco deveria ter lutado contra ela. Pedro pode ser
considerado uma das mais importantes personagens da
pea. ele quem parece transmitir os ideais socialistas
e revolucionrios de Saramago em relao ao tema da
desigualdade social e especialmente da pobreza, ideais
que perpassam todo o drama e tm sua plenitude nessas
cenas fnais, com a inusitada deciso de Francisco de
lutar contra a pobreza, deciso esta tomada a partir das
falas de Pedro que, de fato, sugerem um questionamento
acerca do ideal de pobreza vivido pelos franciscanos.
No somos pobres iguais. Tu tornaste-te pobre para
poderes ganhar o cu, e ns, que pobres fomos e pobres
continuaremos a ser, nem terra conseguimos conquistar. [...]
ao louvares a pobreza, afirmaste a bondade do sofrimento
dos pobres. Este o pecado de que nenhuma absolvio
te lavar. [...] No tenho mais nada a fazer aqui. No me
leves a mal, Francisco, se te faltei.
PEDRO ORCE (A Jangada de Pedra): Homem passado dos
sessenta anos, bastante triste, magro de rosto e de
corpo, cabelo quase todo branco. Mora numa aldeia
PEDRO ORCE
261
chamada Orce, na provncia de Granada, na Espanha.
No tem famlia, farmacutico e nunca foi casado.
Sente a terra tremer sob seus ps e isso est relacionado
ao desprendimento da Pensnsula Ibrica do continente
europeu. solitrio e por isso acompanha Jos Anaio
e Joaquim Sassa em uma viajem. Tem uma relao
especial com Maria Guavaira e Joana Cara, que dormem
com ele por sentirem que ele um homem solitrio e
triste. As duas engravidam e os flhos podem vir a ser
dele. Ele e seus companheiros de viagem chegam borda
do abismo dos Pirenus, no local em que a pennsula
havia rachado e se separado da Europa. A jangada de
pedra, agora ilha, pra, mas ele continua a sentir a terra
tremer sob seus ps. Depois disso pennsula volta a
se mover, a girar sobre si mesma como um carrossel.
Quando Pedro Orce conhece o co Ardent, nasce entre
eles uma relao muito forte. Morre olhando para o
co que fca hipnotizado pelo seu olhar. Jos Anaio,
Joaquim Sassa, Maria Guavaira, Joana Carda e Roque
Lozano transportam seu corpo para ser enterrado em
Venta Micena. Ardent acompanha todo o imenso trajeto
da viajem fnebre. Roque Lozano abre a cova em que
ele enterrado numa cidade vazia, j que todos haviam
abandonado suas casas. Joana Carda espeta a vara de
negrilho na altura da cabea do enterrado, para que ela,
talvez, foresa e, nesse momento, a pennsula pra. S
ento o co vai embora.
H coisas que acontecem na vida, e s vezes so tais que
no podem repetir-se...
PRO DE ALCOVA CARNEIRO (A Viagem do Elefante):
Secretrio de confana de Dom Joo III, rei de Portugal
e dos Algarves. flho de um tambm secretrio da
corte portuguesa, Antnio Carneiro, de quem herdou
o cargo. Na hora de escrever uma carta ao arquiduque
Maximiliano, oferecendo o elefante Salomo como
presente de casamento, o rei dita ao secretrio trs vezes
o contedo, mas a carta no fca a contento. Ento recorre
habilidade retrica de seu funcionrio. Quando chega
a carta com a resposta (em latim) do arquiduque, Pro
realiza uma leitura rpida dos pontos principais da carta
ao rei e sua esposa. Possui agilidade de esprito e um
PRO DE ALCOVA CARNEIRO
262 SALMA FERRAZ
bom conhecimento do rei a que serve. Nos comentrios
tecidos pelo narrador a respeito do secretrio, este
visto como bajulador do rei, mas tambm como seu tutor
intelectual. designado pelo rei para acompanhar o
andamento das notcias sobre a viagem de Salomo de
Belm, em Portugal, para Viena, na ustria.
PICA (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Me de Francisco,
desempenha o papel de chefe das secretrias da
companhia. Tenta administrar seus afazeres funcionais
e o confito entre marido e flho. atravs da fala dela
que Francisco toma conscincia da real situao de sua
Ordem nesta sua segunda vida. Ela ir elucidar para o
flho que a companhia, no mais Ordem, possui negcios
prprios, carteira de ttulos, agentes nas ruas vendendo
tudo, at aquilo que poderia ser oferecido gratuitamente:
esperana, f e caridade. Embora desempenhando uma
funo moderna dirigir todas as secretrias da empresa
, ela deixa transparecer o esteretipo da mulher medieval
dividida entre o amor ao flho e a submisso ao marido,
caracterstica provvel da Pica emprica que viveu
no sculo XII. Quando contracena com os familiares,
permanece neutra e com poucas falas, embora em uma
das cenas deixe irromper os sentimentos mesquinhos
tanto do marido quanto do flho. No desfecho da pea,
quando Francisco praticamente expulso da companhia,
ela cogitada para assumir a diretoria geral da empresa,
que estava vaga devido morte de seu marido Pedro
poucas cenas antes. Entretanto, Pica, aps presenciar
a inesperada deciso de Francisco de lutar contra a
pobreza, decide abandonar o trabalho e seguir o flho.
importante notar que, na ltima frase que pronuncia,
justamente a da deciso fnal, ao invs de chamar o
flho pelo verdadeiro nome, denomina-o Joo, numa
referncia ao fato de que algumas biografas do conta: O
flho era para ter sido chamado de Joo, Francisco s lhe
foi atribudo porque seu pai, voltando de uma viagem a
Frana, resolvera homenagear o pas. A ltima frase dela
que encerra o drama tambm interessante, como se
desejasse que Francisco, agora com outro nome, tivesse
outra chance para reescrever novamente sua histria:
Vou ajudar Joo a escrever sua primeira pgina.
PICA
263
PIGARO PIG E AL (A Jangada de Pedra): Os dois nomes juntos
Pig e Al referem-se aos cavalos Pigaro e Alazo que
conduzem as personagens da trama na galera de Maria
Guavaira. O carro dirigido inicialmente por Joaquim Sassa
era chamado de Dois-Cavalos. O narrador brinca depois
com esse nome porque, como havia mais pessoas para
viajar junto e o carro no comportava, decidiram montar
uma galera a ser puxada por dois cavalos (Pig e Al). Essa
brincadeira no toa e o narrador depois a explicita.
A ordem Pig e Al proposital dentro do romance, pois
atravs dela o narrador, e tambm um dos personagens,
faz uma referncia batalha da Praa Pigalle, ocorrida
em 8 de janeiro de 87 em Paris. A cidade foi libertada
pelos proletrios insurrectos nos Paos do Conselho e a
bandeira vermelha da revoluo futuou vitoriosamente,
tendo as foras do governo recuado desordenadamente
para Versalhes.
PILATOS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Procurador
romano que interroga Jesus no fnal da trama. Pilatos se
impressiona com o olhar e a soberba de Jesus. No debate
que travam entre si, Jesus irnico, e isso deixa Pilatos
numa situao quase inferior. Pilatos fca impressionado
com a obsesso de Jesus ao se declarar Rei dos Judeus
e ao afrmar que lutar contra ele e contra Csar; isso o
obriga a decretar a condenao de Jesus. No Pilatos
quem condena Jesus, pelo contrrio, Jesus quem fora
Pilatos a conden-lo. No Pilatos quem decreta o tipo
de morte que Jesus ter, mas Jesus quem pede a morte
na cruz. No Pilatos quem manda fazer a coroa com os
dizeres famosos, pelo contrrio, Jesus quem faz a ele
um ltimo e estranho pedido: Peo-te que mande pr por
cima de minha cabea um letreiro em que fque dito, para
que me conheam, quem sou e o que sou. Pilatos manda
trazer o material e escreve com suas prprias mos: [...]
Jesus de Nazar Rei dos Judeus. Em seguida lava as
mos, apenas porque tal ato era costume depois dos
julgamentos.
PIMENTA (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Galego servial,
carregador do Hotel Bragana, est sempre bem disposto
para o trabalho. Toma conta da recepo do hotel quando
o gerente, Salvador, no se faz presente. to curioso
quanto o gerente.
PILATOS
264 SALMA FERRAZ
PLATERO (A Jangada de Pedra): Burro que pertence a Roque
Lozano. O nome do burro proposital, j que uma
homenagem ao escritor espanhol Juan Ramn Jimnez
(1881-1958), agraciado com o Prmio Nobel de Literatura
em 1956. Na obra Platero e Eu, o autor espanhol conversa
com seu burrinho e vai contando a ele suas histrias e
lembranas.
PORTA-VOZ DA ALDEIA (A Viagem do Elefante): Durante um
descanso da caravana em uma aldeia, logo ao incio
da jornada, Subhro (o tratador do elefante Salomo)
conversa com os soldados portugueses sobre a histria
de um deus com cabea de elefante. Alguns homens da
aldeia escutam parte da conversa e decidem questionar o
padre local sobre a possibilidade de deus ser um elefante.
Renem-se cinco homens, de madrugada, para falar
com o padre. Um deles, no nomeado, porm tomado em
determinado trecho como porta-voz do grupo, questiona
o padre sobre um conhecido episdio bblico, em que
Jesus teria expulsado demnios de um geraseno. Diz o
porta-voz no entender o porqu dos demnios expulsos
possurem os porcos. Esse dilogo reala a conhecida
estratgia de Saramago de pr em xeque a religio crist.
O questionamento do porta-voz tem correspondente
nO Evangelho Segundo Jesus Cristo, em que Jesus
fca consternado com o afogamento vo e injusto dos
porcos.
POVO (Ensaio sobre a Lucidez): Chamado durante todo o romance
de brancoso, porque votaram em branco. Segundo o ponto
de vista dos polticos, o flho prdigo, o injusto, o mal
agradecido, o decepcionante, os cegos, antidemocrticos,
idiotas, errados, anarquistas, subversivos. Porm para
o narrador, o povo agiu conforme a sua conscincia,
pois estava exercendo a cidadania e o direito ao voto em
branco ou de votar em quem quisesse.
POVO DE MNSTER (In Nomini Dei): Composto por catlicos,
luteranos, anabaptistas e eclesisticos. A voz desse povo
expressa pelo coro, que ora representa uma opinio,
ora representa outra, no constituindo, portanto, uma
personagem homognea. Em muitas situaes, o coro
PORTA-VOZ DA ALDEIA
265
serve como uma espcie de inconsciente, o qual lana
dvidas e questionamentos acerca do desenrolar dos
fatos.
PRESIDENTE DA CMARA (Ensaio sobre a Lucidez): A
princpio est do lado do governo, mas como percebe que
os governantes esto manipulando, de forma desonesta
o povo, passa a se preocupar com o rumo da situao.
Ele se revelar um homem refexivo e decidido, porm cai
no esquecimento.
PRESIDENTE DA MESA DA ASSEMBLIA ELEITORAL
(Ensaio sobre a Lucidez): Esperto e dissimulado, como
todo homem poltico. A trama deixa transparecer que ele
no vive muito bem com a esposa, e sua relao com
outras pessoas permeada pela desconfana. Por ser
inseguro, parece no gostar de tomar iniciativas e vive de
aparncias.
Espero no ter sido o ltimo.
PRESIDENTE DA REPBLICA (Ensaio sobre a Lucidez):
Figura que ouve a todos, tambm um estrategista.
arrogante, pretensioso, teimoso, mando e prepotente.
Abusa do poder que tem nas mos. Vive disputando o
poder com o primeiro-ministro.
Com toda a minha alma, quero acreditar que a vossa
loucura ser transitria, que no perdurar, quero pensar
que amanh, um amanh que rezo aos cus no se
faa esperar demasiado, o arrependimento penetrar
docemente nos vossos coraes e voltareis a congraar-
vos com a comunidade nacional, raiz de razes, e com
a legalidade, regressando, como o filho prdigo, casa
paterna.
PRIMEIRO CEGO (Ensaio sobre a Cegueira): Primeira pessoa a
cegar e tambm a primeira a enxergar de novo. Estava ao
volante parado num semforo quando percebeu que no
conseguia ver, que estava cego. Casado, trinta e oito anos,
saudvel, e nunca usara culos. Apesar de ser bom para
sua esposa, autoritrio e tenta control-la. Protetor,
PRESIDENTE DA CMARA
266 SALMA FERRAZ
orgulhoso, mas se mostra bondoso com os ocupantes de
sua casa, permitindo que eles fquem l at que tenham
suas casas de volta. Retorna como personagem em Ensaio
sobre a Lucidez. Separado de sua mulher, ele quem
escreve ao presidente contando o episdio da primeira
cegueira ocorrida h quatro anos e tentando incriminar
a mulher do mdico como a responsvel pela votao em
branco.
PRIMEIRO-MINISTRO (As Intermitncias da Morte): No recebe
descries fsicas, porm, por indicaes narrativas,
presume-se que possua certa idade, certa maturidade, tal
qual requerido pelo cargo ocupado. Sua caracterstica
mais marcante a prudncia e a cautela na tomada de
decises. Lidando tanto com as instituies legais como
as funerrias, os hospitais, as companhias seguradoras
, quanto com as ilegais como a prpria mphia ,
o primeiro-ministro governa sem consultar o rei, o
que indica que o pas no qual a morte apresenta suas
intermitncias possui, ao menos aparentemente, um
sistema parlamentarista de governo.
Aceitaremos o repto da imortalidade do corpo [...] se
essa for a vontade de deus, a quem para todo o sempre
agradeceremos, com as nossas oraes, haver escolhido o
bom povo deste pas para seu instrumento.
PRIMEIRO-MINISTRO (Ensaio sobre a Lucidez): Chefe maior, o
porta-voz do governo, quem d as ordens a todos para
serem cumpridas. um senhor com grandes olheiras
e aparncia cansada, um homem maquiavlico e muito
inteligente para formular planos de ataque; tambm
um estrategista. Ambicioso, ele faz de tudo para se
manter no poder, at atentar contra o povo juntamente
com o ministro do interior (mandaram pr uma bomba
no metr da cidade para acusar o povo de terrorismo).
Busca sempre a centralizao do poder em suas mos, e
precisa ser admirado pelos outros. Deixa de lado sua vida
pessoal e o seu casamento e, dessa forma, desperta em
sua esposa muitas frustraes. No fnal, preocupado com
as aes do ministro do interior, que ordena a execuo
do comissrio, ele o demite, assumindo o seu posto.
PRIMEIRO-MINISTRO
267
Os seus servios durante a crise foram uma fiada
contnua de erros que me dispenso de enumerar, sou
capaz de compreender que a necessidade faz lei, que os
fins justificam os meios, mas sempre com a condio de
que os fins sejam alcanados e a lei da necessidade se
cumpra, e o senhor no cumpriu nem alcanou nenhum,
agora mesmo esta morte do comissrio...
PROFESSOR DE MATEMTICA (O Homem Duplicado):
Colega de Tertuliano no estabelecimento de ensino
secundrio, gostaria que o conhecessem como um gnio
da matemtica, em vez do mediano e resignado professor
que aparenta ser. dele a sugesto para que Tertuliano
assista ao flme Quem Porfa Mata Caa, apenas com a
inteno de anim-lo um pouco j que se trata de uma
comdia. No entanto, o flme recomendado pelo professor
de Matemtica o instrumento que desencadeia toda a
trama em que Tertuliano se envolve.
No se deixe enganar, o senso comum demasiado
comum para ser realmente senso, no fundo no passa
de um captulo da estatstica, e o mais vulgarizado de
todos.
PBLIO SULPCIO QUIRINO (O Evangelho Segundo Jesus
Cristo): Cnsul que governava algumas provncias do
Imprio Romano.
PROFESSOR DE MATEMTICA
Q
271
QUARTO DA MORTE (As Intermitncias da Morte): Subterrneo,
de paredes cegas e brancas, uma s porta, parcamente
mobiliado: apenas uma escrivaninha, uma cadeira
e um fchrio. O quarto da morte possuiu uma forte
intertextualidade com outro romance do autor, Todos
os Nomes. O banco de dados do fchrio com a lista de
todos os seres humanos preenchido automaticamente
acompanhando a vida de cada ser. As fchas das pessoas
j atingidas pela morte descem para um andar inferior e,
com o passar do tempo, para outro ainda mais inferior, e
outro, e outro, de tal maneira que o arquivo acaba sendo
incinerado no centro da Terra.
QUARTO DA MORTE
R
275
RAIMUNDO BENVINDO SILVA (Histria do Cerco de Lisboa):
Protagonista da estria e revisor de textos de uma editora.
Omite o nome Benvindo, pois no gosta desse nome; e
tambm detesta que o chamem de Silva, porque lhe faz
falta o Raimundo. Tmido por natureza e avesso a
multides, um homem sbrio e organizado, com uma
honrada vida profssional; vive uma vida sedentria.
um homem ordenado, de normas e princpios, e no
supersticioso. No tem pais nem irmos, como tambm
no tem amigos, o que sobrou da famlia est disperso e
com esses ele no mantm contato; um solitrio. Possui
baixa estima, pois se considera um velho acabado para a
vida, para o amor. O protagonista tambm pinta os
cabelos para disfarar a camada de fos brancos,
demonstrando certa vaidade, mas ser justamente uma
mulher com fos brancos nas madeixas castanhas que o
far mudar de atitude, fazendo emergir em sua
personalidade um novo Raimundo, disposto a novos
desafos. Ele solteiro, possui mais de cinqenta anos,
h muito deixou de fumar e no pensa em se casar, mora
sozinho numa casa simples e tem uma diarista que
trabalha duas vezes por semana. Quando precisa aplacar
seu instinto sexual, paga mulheres de programa, alivia-
se e tudo fca resolvido. Ele tambm j sofreu por amor,
mas reservado e no comenta sua vida pessoal. Depois
de cada reviso terminada, tem o costume de dar-se a si
mesmo um dia de folga, pois isso o alivia das tenses.
Possui o talento de desdobrar-se quando est revisando,
e confessa nunca ter tido vocao para a criao literria.
Vive numa casa antiga, sem conforto, na rua do Milagre
de Santo Antnio; l no h nenhuma mulher, salvo a
empregada. Como profssional, Raimundo Silva tem um
lema: [...] aos autores deve-se evitar sempre o peso das
vexaes, que para ele corresponde ao primeiro
mandamento do declogo do revisor, referindo-se a sua
tarefa de emendar erros e nada mais que isso. No entanto,
possui um escrpulo profssional, o de fazer uma ltima
leitura, sem necessidade de correo, mais pelo prazer
do texto, porque seu papel de revisor lhe exige diversas
leituras. Raimundo Silva gosta da Histria do Cerco de
Lisboa, mas no acredita plenamente nela, e isso o leva
a fazer vrios questionamentos acerca do que possa ser
verdade no relato. No caso de HCL, o fato que os
RAIMUNDO BENVINDO SILVA
276 SALMA FERRAZ
cruzados ajudaram os portugueses na expulso dos
mouros de Lisboa, no ano de 47; e a correo feita a
partir da rasura deliberada do revisor, com a qual ele diz
um no Histria, quebrando as fronteiras entre o
histrico e o literrio e questionando outras antteses
modernas, como verdade e fco, real e imaginrio,
histria ofcial e testemunho de vida. Esse ato rebelde
contrrio a sua personalidade pacata, o de acrescentar o
no que adultera uma obra sria pretensamente a
verso confvel e histrica sobre a tomada de Lisboa aos
mouros , culmina num rebulio na editora e desencadeia
uma nova refexo sobre os fatos. A tenso criada pela
ousadia do at ento pacato e fel revisor, que corre o
risco de, na meia-idade, perder o emprego, a estabilidade
econmica e a boa reputao, corresponde tenso e aos
perigos enfrentados por quem se ope aos estatutos
ofciais. Na modernidade, quem no se encaixa na
engrenagem do sistema marginalizado. Contudo,
Raimundo Silva dotado de uma personalidade
conscienciosa, e sabe as conseqncias decorrentes do
seu ato, s no consegue entend-lo; no percebe que ele
tambm est mudando, saindo do padro, arriscando-se
mais e que seu carter aparentemente pacato comea a
se alterar. Alm disso, essa sensao de risco causa-lhe
estranho prazer, fazendo com que conhea um lado seu
totalmente desconhecido. a essa dupla batalha que
ocorre com Raimundo Silva que o narrador se refere ao
dizer que no interior desse homem trava-se uma batalha
entre o campeo anglico e o campeo demonaco. O livro
impresso com o erro e quando a fraude descoberta, a
editora obrigada a anexar uma errata ridcula. Raimundo
chamado ordem por sua nova supervisora, Maria
Sara, e enfrenta o desapontamento dos colegas pelo mal-
estar criado com os patres e o autor da obra. Entretanto,
recebe uma nova chance da diretoria com a condio de
no repetir o erro. Raimundo cercado pelo amor de
Maria Sara e, a partir disso, passa a sentir-se incentivado
a trabalhar e viver. Ter colocado este no no texto que
revisava foi o feito mais importante de sua vida, pois a
partir desse momento delineiam-se dois fatos importantes
que mudaro complemente sua vida: passa a reescrever,
agora como autor, a nova Histria do Cerco de Lisboa, e
passa a viver um cerco amoroso, envolvendo-se com
277
Maria Sara. Assim comea o relacionamento entre
Raimundo Silva e Maria Sara, com alta carga de confito,
mas ela acredita na competncia profssional desse
homem e o desafa a reescrever a Histria do Cerco de
Lisboa a partir do no, intencionalmente inserido por ele,
entregando-lhe o nico exemplar do livro sem a errata,
como presente. A partir desse momento, o revisor
descobre seu talento para a fco e cria personagens,
como o valente soldado portugus Mogueime, corajoso
no atrevimento e na ousadia tal qual Raimundo em seu
ato rebelde e decide reescrever, sua maneira, as
dissonncias da Histria; no por querer escrever certo
por linhas tortas, mas simplesmente para reunir os fatos
do passado e recri-lo partindo da premissa de que os
cruzados teriam se negado a ajudar o rei portugus a
expulsar os mouros de Lisboa. Isso, sem dvida, levou-o
rdua tarefa de recontar a Histria, instigando-o a
pesquisar e a voltar aos lugares onde os fatos ocorreram,
em busca da verossimilhana. Com isso, Raimundo
pretende lanar uma nova luz sobre a Histria que
sempre lhe ensinaram. Far isso com sua capacidade
crtica e irnica de entender a Histria, e de explic-la.
Dessa forma, o dilogo desenvolvido entre as narrativas
(ofcial, narrada, escrita, oral) pe em questo o conceito
de originalidade, de autoria e de criao, instaurando um
novo momento de recontar e reescrever histrias, dentro
da perspectiva fundadora do ps-modernismo; travando
um dilogo com a tradio, ao mesmo tempo impondo-
lhe no uma, mas vrias correes voluntrias, que
implicam a criao de uma nova histria, de um novo
real e de uma outra verdade, reinventada pelo
protagonista. Isso contribui para a desconstruo de
alguns mitos que foram construdos ao longo dos tempos.
No caso de Histria do Cerco de Lisboa, o mito do esprito
e da formao da nacionalidade portuguesa, no herosmo
das conquistas (viso romntica que pode ser depreendida
nas obras de Alexandre Herculano e Almeida Garret) ou
na fxao dessa faixa geogrfca, cujos limites quase no
se alterariam. H momentos na narrativa nos quais o
leitor sente que Raimundo Silva est s um pouco a favor
dos portugueses e muito a favor dos mouros,
principalmente quando ele tem o poder de reescrever os
discursos do Rei Dom Afonso Henrique e do governante
278 SALMA FERRAZ
mouro superior. Mas trata-se de estratgia narrativa para
mostrar o povo do oriente sob uma nova luz, diferente da
imagem que o mundo ocidental criou, de povo atrasado
ou inferior. Raimundo Silva depara-se com o problema
da verossimilhana: embora o novo texto seja de fco,
nem por isso o escritor pode inventar livremente. O relato
precisa ser crvel, por isso o escritor, assim como o
historiador, bebe nas fontes, tornando-se tambm
pesquisador. Contudo, Raimundo Silva como um
autntico historiador sufcientemente perspicaz para
desconfar das fontes. Diante da insufcincia da pesquisa
para estabelecer a verdade, o dilema solucionado pela
fco. Acontece que, concomitante reescrita de sua
verso dos fatos, Raimundo se apaixona por Maria Sara
(a mesma pessoa de quem antes tivera medo), no por
ser a mulher que faltava na sua casa modesta, mas por
ser ela que, dando-se conta do erro cometido no claro
entendimento da Histria do Cerco, lhe oferecera o nico
exemplar em que a errata no podia surtir qualquer
efeito; era, portanto, o nico exemplar da obra que s ele
poderia reescrever. H dois planos narrativos no romance:
o relato sobre o cerco de Lisboa e algumas vivncias de
Raimundo Silva na Lisboa do sculo XX. Na nova verso
do cerco de Lisboa, o desenrolar dos fatos blicos faz
contraponto com a relao amorosa entre Mogueime e
Ouroana, que, por sua vez, estabelece um paralelo com a
relao de Raimundo Silva com Maria Sara, no outro
plano narrativo. A transio de um plano narrativo para
o outro conduzida pela oniscincia do narrador que,
penetrando na mente de Raimundo Silva, pode fagrar
no somente a composio, mas a prpria concepo da
nova narrativa. Essa transio pode ser completamente
brusca, em uma narrativa que mescla ambos os enredos.
O romance mistura um grande acontecimento blico do
passado com acontecimentos ntimos do passado e do
presente, ou seja, histrias de amor entre pessoas
comuns. Por fm, Raimundo, com muita felicidade, recebe
em sua vida a mulher amada. Ele termina o seu romance
dando a vitria aos portugueses mesmo sem a ajuda
dos cruzados , unindo o casal Mogueime e Ouroana.
Raimundo, o demiurgo, representa todo aquele que
rasura uma identidade e reescreve outra em cima, e que
279
est ao mesmo tempo dentro e fora dos limites da
linguagem e da histria, demonstrando que vista sem a
imaginao, sem a remisso ao presente, ela se torna
letra morta. Essa a luz terica que guia o revisor, ou
seja, um compromisso ideolgico-cultural que busca,
atravs do romance corretivo e inovador, quebrar a
estabilidade da histria.
Os revisores, se pudessem, se no estivessem atados de
ps e mos por um conjunto de proibies mais impositivo
que o cdigo penal, saberiam mudar a face do mundo,
implantar o reino da felicidade universal, dando de beber
a quem tem sede, de comer a quem tem fome, paz aos
que vivem agitados, alegria aos tristes, companhia aos
solitrios, esperana a quem a tinha perdida, para no falar
da fcil liquidao das misrias e dos crimes, porque tudo
eles fariam pela simples mudana das palavras [...].
RAMN (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Garom do Hotel
Bragana, veio da Galiza para Lisboa. Nasceu em Villa-
Garcia de Arosa, est sempre preocupado com a situao
de sua terra natal.
RAPARIGA DOS CULOS ESCUROS (Ensaio sobre a
Cegueira): Uma jovem que tem uma conjuntivite que se
cura com o tempo e que por causa disso usa, por indicao
mdica, culos, s os tirando para dormir. Apesar de ser
prostituta, s vai para cama com quem e quando quiser.
a mais bonita de todas as mulheres da histria, a de
corpo mais bem feito, a mais atraente, a que todos os
homens passaram a desejar. Tinha os dentes bonitos e
sabia como mostr-los. No queria ser confundida com
uma caadora de homens vulgar. Mesmo sendo rapariga
de costumes livres, morava com o pai e a me e os queria
muito bem. Muito afetuosa com o rapazinho estrbico,
tira a comida da prpria boca para aliment-lo; solidria
com quem merece e est sempre disposta a ajudar a
todos em quem confa. Achava que havia cegado para ser
castigada por seu mau comportamento, sua imoralidade.
Relaciona-se muito bem com a mulher do mdico, sendo
bastante protegida por ela como se fosse sua irm mais
nova. Entre todos os homens da trama, escolhe o velho
RAMN
280 SALMA FERRAZ
da venda preta como companheiro. Talvez essa escolha
deva-se ao fato daquele homem a respeitar enquanto
mulher. Gosta muito de msica e sabe perdoar.
As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas
ressuscitam nas putas, as putas ressuscitam nas
honradas.
RAPARIGA DOS CULOS ESCUROS (Ensaio sobre a
Lucidez): Casada com o velho da venda preta, no tinha
jeito, nem modos, nem palavras de uma prostituta,
embora o homem da carta afrmasse que ela era uma
meretriz. Quando interrogada pelo inspector, descreve o
assassinato em detalhes. Assume que havia matado o
chefe da camarata dos cegos deliqentes (o violador de
mulheres) crime esse cometido pela mulher do mdico. O
comissrio probe o inspector de cham-la de prostituta.
Passou a ser chamada de peixe-gato pelo ministro do
interior, pois este se comunicava com o comissrio por
telefone e corriam risco de serem grampeados.
RAPAZ ESTRBICO (Ensaio sobre a Lucidez): Perdeu-se de sua
me na poca da epidemia da cegueira. Pouco se fala
dele, pois no se sabe do seu paradeiro.
RAPAZ GALEGO (A Viagem do Elefante): Rapaz de Castelo
Rodrigo. Quando a caravana chega a Castelo Rodrigo,
o comandante pede ao sargento que interrogue um dos
rapazes do povoado sobre a presena de espanhis no
lugar. Ele responde pergunta com outra pergunta, o que
leva o narrador a intuir a origem galega da personagem.
RAPAZINHO ESTRBICO (Ensaio sobre a Cegueira): Menino
que sofre de estrabismo divergente do olho esquerdo, mas
que no gostava que mencionassem o seu defeito fsico.
Foi separado de sua me quando cegou e demorou para
se acostumar com sua ausncia, por isso chorava muito.
Quase no fala, sempre diz ter fome e foi adotado pela
rapariga dos culos escuros. Tmido, gostava de sapatos
esportivos.
Quero a minha me.
RAPARIGA DOS CULOS ESCUROS
281
REI (A Ilha Desconhecida): Personagem sem nome, apresentado
como o rei que usava coroa na cabea, portanto, super
poderoso, o primeiro na escala, na hierarquia do poder.
egocntrico, dissimulado, materialista, autoritrio,
arrogante, mal-educado, apegado s regras e s
formalidades, regiocntrico. No atendia aos pedidos
fazendo-se de desentendido. Em seu palcio, dirigia-
se a seus sditos por portas determinadas: a das
peties, a dos obsquios e a das decises. A de sua
preferncia era a porta dos obsquios. Quando algum
batia porta das peties, fngia-se desentendido, indo
atender somente em ltima necessidade. O rei atendia
aos pedidos conforme a sua vontade e no pensado no
bem estar do povo. No saa do seu espao, do seu reino
e da porta dos obsquios; mas diante da audcia do
homem que pedia um barco para sair em busca da ilha
desconhecida, desestrutura-se e sai rua para ver, para
conhecer quem era o impertinente que se negava a agir
pelas vias burocrticas estabelecidas. Alm disso, queria
demonstrar que no tinha medo do sdito e que tinha
mais poder do que ele. Incrdulo, no acreditava haver
mais ilhas desconhecidas e se ainda houvesse alguma,
ganancioso, a confscaria para ele. O rei contava com a
guarda, fora bruta, para manter a ordem e a disciplina.
Ele acabou atendendo ao pedido do homem que queria
um barco, para no perder o seu prestgio junto ao povo,
pois o povo reivindicava a favor do homem. Numa possvel
analogia com a Trindade, representaria o papel de Deus.
Porm, apesar de demonstrar autoridade em funo de
sua majestade, forado a submeter-se aos argumentos
do homem do barco.
Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me
todos.
RICARDO (Manual de Pintura e Caligrafa): Ricardo mdico e
apresenta-se aos olhos de H. como profssional srio
e compenetrado. marido de Concha que atende pelo
apelido de mulher do mdico. Mesmo sendo casado com
Concha, confere grandes atenes a Sandra. Entretanto,
o casal, que aparentemente vive uma relao aberta,
demonstra cumplicidade em ocasies em que um deles
REI
282 SALMA FERRAZ
se encontra em situao de confronto. Citamos o episdio
que narra a discusso entre Ricardo e Antnio a propsito
de uma elocubrante resistncia ao governo. No momento
em que Antnio incita o mdico a uma mobilizao a
dois, Ricardo fca zangado e Concha pe-se ao lado dele,
boa mulherzinha, e descompe Antnio.
RICARDO REIS (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Protagonista
do romance, um dos heternimos de Fernando Pessoa,
mas no romance no o mesmo na ntegra porque o
autor, ao se apropriar da magnfca e imensa galeria
heteronmica do vate portugus, atribui a Ricardo Reis
o status de personagem romanesca. Reis tem quarenta e
oito anos de idade, natural da cidade do Porto, solteiro,
magro, usa chapu, grisalho, moreno, cara rapada,
graduado em medicina, vive auto-exilado no Brasil, na
cidade do Rio de Janeiro. Ele recebe uma segunda vida
fctcia, uma vida em trnsito, uma vida em suspenso. A
personagem tem iniciativa prpria, autonomia sufciente
para fazer suas escolhas, sentir o que deseja, lidar com
as situaes dirias de modo a sofrer, se emocionar e
traduzir um forte senso de humanidade. Apaixona-se
por Marcenda, espera por ela todos os meses, anseia por
suas cartas, toma a deciso de pedi-la em casamento,
mas algo que no se concretiza. J com Ldia, criada
do hotel Bragana, envolve-se sexualmente, preocupa-
se com ela, mas no deseja o casamento, pois apenas
sente a vontade de suprir as necessidades da carne. O
romancista constri Reis a partir das suas odes, fazendo
uma mescla com os outros heternimos tambm. Sendo
assim, se aproveita da morte de Fernando Pessoa j
que na carta da gnese da criao dos Heternimos, a
data da morte deste heternimo est em aberto para
recriar um Ricardo Reis que na realidade no existiu,
realizando assim uma espcie de delito verbal e
autoral. Ao mesmo tempo em que Reis ele mesmo o
heternimo pessoano , o autor lhe atribui caractersticas
contrrias, diferentes, transformando-o em outro, o
outro do outro: de certa forma Ricardo Reis deixa de ser
o heternimo pessoano e passa agora a ser o heternimo
saramaguiano. O romance um balaio de gatos, j que
h um extraordinrio desdobramento e prosseguimento
RICARDO REIS
283
da fco heteronmica de Pessoa. Reis mergulhado
dentro de um contexto histrico problemtico, revelando-
se um homem dilacerado por suas contradies e
ambigidades. A personagem a mscara da mscara, a
miragem da miragem, uma verdade fccional em segundo
grau, revelado no mais pelas odes construdas por
Fernando Pessoa, mas pela narrativa de Saramago que
celebra em sua fco o grande poeta criador de uma rica
famlia heteronmica. a criao da criao, a criao
literria levada ao extremo, ou seja, a personagem
fccional comea a migrar de um texto para outro,
ganhando quase existncia prpria, independente do
seu autor. O romancista brinca com essa personagem,
pois atravs dela transgride os limites entre realidade
e fco. Reis necessita afastar-se do mundo, vivendo
uma espcie de transitoriedade, sem laos profundos
e defnitivos. Sua opo sempre estar procurando o
lugar vazio, uma busca espectral, sem materializao.
um perfl substitutivo, sem sentidos, perambulando
pelos espaos vazios. Possui um carter duvidoso, isto
, oscila entre atitudes nobres e duvidosas. s vezes
dono de uma delicadeza e generosidade e, em outros
momentos, o narrador o descreve como algum muito
frio, capaz de pensamentos nada nobres. um homem
metdico, perfeccionista, discreto, quase obsessivo.
Quando Reis entra em seu quarto e v como tudo est
perfeitamente arrumado, a colcha da cama esticada, o
lavatrio rebrilhante, o espelho sem uma sombra, salvo o
picado da antiguidade, suspira de satisfao. Sua noo
de disciplina manda que a razo comande os instintos.
Seu pensamento esttico revela que as idias devem ser
mediadas pela emoo quando, ento, se transformam
em poesia. O sentimento em relao mulher, s vezes,
mitifcado, em outras, um objeto de desejo, apenas de
usura. O caminho errtico de Ricardo Reis o caminho
errtico do prprio ser humano. Ele um desorientado
no amor j que se recusa a comprometer-se tanto com
Ldia como com Marcenda e demonstra estar dividido,
cindido entre duas presenas atrativas. Tambm na vida
um desorientado, inexato, no sabe na realidade quem
realmente ele , e o que realmente signifca contentar-se
com o espetculo do mundo, ser indiferente ao mundo
RICARDO REIS
284 SALMA FERRAZ
concreto que o rodeia, mero expectador, passar pelo
mundo em brancas nuvens. Eis aqui o principal motivo de
suas contradies, ou das contradies que percebemos
entre o poeta das odes pessoanas e o protagonista de
Saramago: indiferena, alheamento. O heternimo de
Pessoa vivia uma realidade fccional do espao idlico
clssico da cultura grego-latina, e a personagem de
Saramago est contextualizada em plena ditadura militar
em Portugal no ano 1936, com a Europa em convulso
poltica e social II Guerra Mundial, nazi-facismo, guerra
civil espanhola, etc o que o deixa completamente confuso.
O problema maior a identidade de Reis: at que ponto
ele realmente age como criatura independente do seu
criador. O autor constri uma personagem em confito
que procura responder a duas principais perguntas da
humanidade: Quem sou eu afnal? Qual o meu papel
neste mundo? Eis a o desassossego da personagem e
o desassossego de todos os seres humanos. Reis tenta
viver sob o pio da inconscincia e da no ao, j que ser
consciente ser infeliz. Porm, ser impassvel perante a
vida quase impossvel. Ao acompanhar seu criador, no
fnal do romance, passa de expectador desorientado para
a categoria de fantasma, de um no-ser diludo. O autor
obriga tanto Reis como Pessoa a reagir diante de uma
vida prtica, no mais como poetas, mas como pessoas,
desmistifcando-os. Saramago faz com que Ricardo Reis
perca caractersticas heteronmicas bsicas, sendo esse
o motivo pelo qual Pessoa aparece na obra para cobr-lo.
Isso o perturba, pois seu heternimo no se envolvia com
nada, vivia uma ataraxia. Reis se mantm contemplativo
at a ltima pgina do livro e como um morto-vivo, ou
vivo-morto, no consegue se libertar do seu criador. J que
impossvel manter-se indiferente e desinteressado do
mundo que o cerca, melhor ir embora deste mundo.
Diga-me s uma coisa, como poeta que eu finjo, ou como
homem.
ROQUE LOZANO (A Jangada de Pedra): Homem simples, ele s
acredita naquilo que v. Natural de Zufre, no acredita
nas notcias da televiso sobre a rachadura da Pennsula
Ibrica que havia se desprendido do continente europeu
RICARDO REIS
285
e se transformado numa enorme jangada de pedra
vagando pelo mar em busca de suas origens. Deixa a
famlia para ir constatar com seus prprios olhos esse
acontecimento extraordinrio. Viaja com seu burro
Platero e se encontra com os viajantes Joaquim Sassa
e Jos Anaio que procuram por Pedro Orce. Afrma aos
dois que se no vir a Europa porque ela nunca existiu.
Depois, j no fnal da trama, encontra-se com Pedro Orce
e seus companheiros de viagem e os acompanha. Ajuda
a transportar o corpo de Pedro Orce para Venta Micena
quando ele morre, e abre a cova onde, juntamente com
Joaquim Sassa, Jose Anaio, Joana Carda e Maria
Guavaira, enterram o corpo.

No me fio na televiso, enquanto no vir com meus
prprios olhos, este a terra h-de comer, no me fio.
RUFINO (A Segunda Vida de Francisco de Assis): Membro do
conselho, quase no tem expresso e se mostra dividido
em suas convices. Em uma primeira votao, na qual
seria decidido se Francisco permaneceria na Ordem,
Rufno a favor do santo, contudo, na votao decisiva,
ele oscila em apoiar Francisco ou no, tencionando
abster-se de voto. Ao fnal de tudo acaba optando pela
deciso de Elias de exterminar a pobreza, num ltimo
esforo para mostrar-se til para alguma coisa.
Abster-se no tomar partido. No h nada mais claro.
ROQUE LOZANO
S
289
S. (Manual de Pintura e Caligrafa): Engenheiro que contrata o pintor
H. para retrat-lo num quadro a ser integrado galeria da
sala do conselho da empresa SPQR por ele administrada.
A antipatia fui no primeiro colquio entre o artista e
o seu cliente; e ser sob a perspectiva antagnica por
parte de H., narrador e protagonista do romance, que
o leitor entrar em contato com essa personagem. Ao
justifcar a nomeao da personagem com uma inicial
vazia, H. reivindica para si o direito do narrador em
primeira pessoa que se posiciona entre a verdade e a
fco. Em busca da melhor forma de expresso da
verdade de S., H. dispe-se a retrat-lo ofcialmente e
de forma escusa. Insatisfeito com as possibilidades que
a pintura lhe oferece, resolve apelar para a escrita. Eis o
mote desencadeador do processo de aprendizagem que
o Manual de Pintura e Caligrafa passa a registrar. S.
integra o cenrio da primeira parte do romance, durante
o espao de tempo que corresponde execuo dos seus
dois retratos e instaurao da escrita, momento em que
o pintor perscruta as possibilidades das duas linguagens:
a plstica e a verbal. Do confronto entre as duas formas
de expresso, surge uma das mais belas descries que a
obra de Saramago produziu, uma verdadeira apologia s
possibilidades da escrita como reveladora de paisagens
secretas que o pincel no consegue alcanar. Entrelaam-
se ao registro da imagem, capturada em sua verdade
natural, comentrios subjetivos que trazem para o texto
a carga irnica pretendida pelo narrador. Em funo do
antagonismo que nutre por S., o narrador H. no lhe dar
voz durante a sua atuao no romance e as suas poucas
falas sero mediadas.
[...] S. fez de conta que no ouvira e perguntou-me se
podia ver os esboos.
SALOMO (A Viagem do Elefante): Nome original do elefante.
Dom Joo III, o piedoso, rei de Portugal e dos Algarves,
esposo de Catarina de ustria, decide dar o elefante
como presente de casamento ao arquiduque Maximiliano
dustria. Para tanto, envia uma comitiva a fm de
entregar o animal. J no incio da narrativa o secretrio
do rei Dom Joo III, Pro de Alcova Carneiro, resolve
mudar o nome do elefante Salomo para Solimo.
S.
290 SALMA FERRAZ
SALVADOR (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Gerente do hotel
Bragana, usa bigode e vive com um sorriso estampado
no rosto. Sempre vigilante e curioso sobre tudo o que
acontece no hotel, sabe tudo a respeito de todos os
hspedes.
SAMPAIO (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Senhor vivo de
meia-idade, muito formal, alto, rosto comprido e vincado.
Pai de Marcenda. Vive em Coimbra, mas vai a Lisboa
mensalmente levar a flha para consultar um mdico,
devido ao problema de paralisia do brao esquerdo
que a menina apresenta. Na realidade, ele sabe que
difcilmente ela ter cura, mas continua a lev-la. No
decorrer da narrativa, Marcenda deixa escapar, em uma
conversa com o mdico Ricardo Reis, que o pai usa a
sua doena como libi, j que na realidade o motivo que
o leva a Lisboa uma amante. Inicialmente, Sampaio
trata Ricardo Reis com respeito e admirao, mas depois
que Reis preso, com medo de que o relacionamento dos
dois possa colocar a sua pessoa tambm sob suspeita,
se afasta do amigo. Deixa de levar a flha para Lisboa
quando acaba seu caso com a amante.
[...] uma nao inteira entregue ao trabalho sob a chefia
de um grande estadista, verdadeiramente uma mo de
ferro calada com uma luva de veludo, que era do que
andvamos a precisar.
SAMUEL (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Maria e
Jos, irmo de Jesus.
SANDRA (Manual de Pintura e Caligrafa): Ao nos apresentar Sandra
como decoradora que no tem esse nome, o narrador
H. trabalha abertamente a relao fco/realidade
e pe a descoberto a lgica que rege a construo das
personagens do romance, situando-as num aqui e agora
que oscila entre o autobiogrfco e o fctcio. A atuao
da personagem Sandra se mostra funcional ao percurso
romanesco de H., uma vez que, atravs do jogo de seduo
conduzido por ela em relao ao editor Carmo, o pintor
continua exercendo a atividade da escrita, estimulado
pelo editor que lhe promete editar as suas memrias de
SANDRA
291
viagem. Segundo o narrador do romance, Sandra serve
como mais do que involuntrio, um inconsciente meio de
presso na produo dos exerccios de autobiografa.
Atravs do olhar do pintor, enxergamos Sandra como a
personagem que expe feies exacerbadas, construindo
uma imagem de moa fatal e volvel perante o grupo
social que freqenta: enquanto reata o firt com o mdico,
controla os cimes e a libido do editor e desperta, no
publicitrio Chico, suspeitas sobre as suas tendncias
homossexuais. As simples despedidas de Sandra, aps as
reunies promovidas por H., ganham ares de espetculo
quando a moa [...] beijou muito a Adelina, levando como
pajens o mais que havia de homens [...] que passam a
disputar espao no [...] carro que cheira cigarro e chanel
[...], que ser por ela dirigido. Pautada pela mtua atrao
sexual, a frgil relao entre Carmo e Sandra no se
sustenta seno pela satisfao da nsia de diverso que
a move. Essa situao justifcada por Adelina com uma
simplicidade que instiga H., em funo da cumplicidade
identifcada entre as duas amigas. Ao lado de Adelina e
Olga, Sandra integra o universo feminino reivindicante
dos anos setenta que o romancista pretende retratar no
seu Manual de Pintura e Caligrafa.
Estes homens complicam tudo. Aconteceu, aconteceu,
muito bem, fomos para a cama. Mas agora acabou. Que
chatice.
SARA (Caim): Esposa de abrao. De idade bastante avanada, no
podia dar um herdeiro ao seu esposo. Boa anftri, serve
boa comida aos hspedes de abrao. Quando um desses
hspedes anuncia que no prximo ano ela e o marido
tero um flho isaac , no consegue compreender o
que dito, mas, ao pensar em tal possibilidade, sorri.
SARA (Histria do Cerco de Lisboa): Telefonista da editora, foi casada
e enviuvou. Tem o cabelo louro. Fornece a Raimundo
Silva o nmero do telefone de Maria Sara. Seu nome
apenas Sara, mas ela se sente feliz por ter parte do nome
de sua chefe, Maria Sara.
SARA CONCEIO (Levantado do Cho): Pertencente primeira
gerao: ao tempo de silncio. Entregou-se solteira, em
SARA
292 SALMA FERRAZ
meio aos trigais, a Domingos Mau-Tempo, que veio a ser
seu esposo. Me de Joo Mau-Tempo, Anselmo, Maria da
Conceio e Domingos. Era teimosa, sofredora, inocente,
calada. Enquanto seu esposo bebia, ela era obrigada a
fcar no lado de fora da taberna. Apanhava do esposo e
era oprimida pelo mundo masculino. Perdoou seu esposo
muitas vezes, mas por fm foi embora para casa de seus
pais. Depois da morte do marido por enforcamento, ela
foi morar com o irmo, Joaquim Carranca, vivo e com
trs flhos para criar. Assim, os flhos de Sara passariam
a ter um pai e os de Joaquim, uma me para cri-los.
Com o passar do tempo, Sara passou a sonhar com o
marido que morrera enforcado. Via claramente o vinco
da corda no pescoo do marido e, desde ento, ela fcou
atormentada com a idia de que esfregando um pano com
vinho tiraria a marca da corda. Obcecada pela idia fcou
louca. E, assim, morreu no hospital, rodeada pelo riso das
enfermeiras que no entendiam o pedido de uma garrafa
de vinho para ela fazer um servio. Mesmo atravessando
uma vida de privaes, era pessoa conformada.
Sou a escrava do senhor, faa-se em mim a sua vontade,
e feita est, homem, eis-me grvida, pejada, prenhe, vou
ter um filho, vais ser pai, no tive sinais.
SARGENTO DOS COURACEIROS (A Viagem do Elefante):
Como o sargento portugus, o interlocutor entre o
comandante e a tropa. Descrito pelo narrador como
prestativo. a ele que Fritz (o tratador do elefante)
recorre quando quer saber novidades sobre os percursos
da viagem at Viena.
SARGENTO PORTUGUS (A Viagem do Elefante): Brao direito
do comandante portugus, de quem recebe vrias tarefas
ao longo da narrativa. o porta-voz do comandante.
Por vezes age como interlocutor em situaes crticas,
principalmente na querela com os austracos em Castelo
Rodrigo.
Sim, meu comandante.
SEBASTIO (Que Farei com este Livro?): El-Rei de Portugal, jovem
monarca de apenas dezesseis anos. Gosta de caar e
SARA CONCEIO
293
montar, robusto de corpo e louro, corajoso, s tem
medo do casamento, reza mais do que convm a um
jovem. Sua presena na pea se restringe a uma passagem
no quinto quadro do primeiro ato, sem direito sequer a
uma fala, o que de certa forma condiz com a condio
de um monarca manipulado sem vontade prpria por
causa da pouca idade. Arrenegava a governana, arredio
a namoros, prefere as caadas e as lides de guerra.
SECRETRIO (A Viagem do Elefante): Tratado como secretrio,
secretrio geral ou ainda secretrio de estado.
SECRETRIO (Ensaio sobre a Lucidez): Rapaz vivo e obediente
que gosta de se mostrar prestativo. Est sempre
disposio dos demais para registrar os fatos ocorridos.
Suas principais caractersticas so a rapidez de raciocnio,
o desembarao, a praticidade.
SENHORA DO RS-DO-CHO DIREITO (Todos os Nomes):
Com mais de setenta anos, ainda mantm os olhos
vivos, a boca delgada, toda a sabedoria que a experincia
lhe trouxe e a solido que a velhice carrega. Quando
o Sr. Jos visitou a casa onde a mulher desconhecida
nascera, encontrou l uma jovem com um flho recm-
nascido e um marido ciumento e autoritrio. Essa jovem
informou a Jos que a senhora do rs-do-cho direito
poderia lhe ajudar. Apesar de Jos lhe mostrar uma falsa
credencial, a mulher do rs-do-cho direito reluta em dar
as informaes, o que faz com que se inicie um debate
de argumentaes e contra-argumentaes. madrinha
de batismo da mulher desconhecida e teve um romance
com o seu compadre, isto , com o pai da mulher
desconhecida, o que fez com que as suas relaes com
a famlia fossem cortadas. Ao fm da primeira conversa
com Jos, d a ele uma idia que o desconcerta: procurar
na lista telefnica. Deixa o convite para Jos retornar
mais vezes, pois uma chvena de caf sempre o estaria
esperando. Ela soube da morte da aflhada atravs de
Jos na sua segunda visita (no espao entre as duas
visitas ela entra em contato com a mulher desconhecida
atravs do telefone, mas no fca sabendo da sua morte);
nessa mesma visita, Jos conta o que tem feito e ela o
SENHORA DO RS-DO-CHO DIREITO
294 SALMA FERRAZ
aconselha a continuar mesmo depois da morte da mulher
desconhecida. Na terceira visita, Jos no encontra a
mulher do rs-do-cho direito e soube pela mulher do
rs-do-cho esquerdo que ela fora levada de ambulncia
para o hospital. Ele sente vontade de ir visit-la, mas
se Jos quiser saber se ela est viva ou morta, basta
verifcar os arquivos da Conservatria.
S a partir dos setenta que se tornar sbio, mas ento
de nada lhe vai servir, nem a si nem a ningum.
SENSO COMUM (O Homem Duplicado): o ativo bom senso de
Tertuliano, a sensatez que aparece na tentativa de impedi-
lo de cometer atos que teriam conseqncias mais graves.
O senso comum faz sete aparies para Tertuliano nas
quais travam dilogos interessantes, porm todos eles
silenciosos, j que o senso comum faz parte da conscincia
de Tertuliano, uma espcie de seu outro duplo, um duplo
em terceiro grau, ou seja, existe entre ambos uma relao
binmia de: racional versus irracional, dvida versus
certeza. E o senso comum quem faz com que Tertuliano
retorne ao mundo real quando est a delirar a respeito
da existncia do outro. Ele age como um adversrio da
sua prpria conscincia, uma vez que Tertuliano j
um duplicado de Antnio Claro (seu ssia). Em certos
momentos, encarna a funo de adivinho quase como
Cassandra dando algumas dicas ao duplicado do que
est por vir, embora ele nem tome conhecimento dessa
sutil vidncia do senso comum, que sempre demonstra
cautela frente s atitudes de Tertuliano:
[...] o papel do senso comum na histria da vossa espcie
nunca foi alm de aconselhar cautela e caldos de galinha,
principalmente nos casos em que a estupidez j tomou a
palavra e ameaa tomar as rdeas da aco.
SERVENTE (Que Farei com este Livro?): Trabalhava para Antnio
Gonalves em sua tipografa.
SIGISBERTO (Levantado do Cho): Os bertos eram brancos,
trindade (LEI = latifndio, Estado, igreja). Mantinham
a estrutura medieval em Portugal. Representam a
SENSO COMUM
295
hipocrisia e a injustia, j que oprimiam e escravizavam
todos os trabalhadores. Sigisberto tinha como princpio
oprimir o povo trabalhador. A grande e decisiva arma era
a ignorncia desse povo: eles no saibam ler, escrever,
contar e nem pensar ento, que aceitassem que o
mundo no poderia ser mudado e que s depois de morrer
encontrariam o paraso. Ele pregava que s o trabalho
pode dar dignidade e dinheiro. Porm, ele ganhava
mais porque era dono das terras e, na hora de pagar
os impostos no ia pedir dinheiro aos trabalhadores. O
dinheiro dos impostos saa do seu prprio bolso.
[...] eu que sou a terra, eles que o trabalho so, o que for
bom para mim, bem para eles , foi Deus que quis assim
as coisas [...].
SIGISMUNDO CANASTRO (Levantado do Cho): Trabalhador,
grevista, amigo de Manuel Espada e Joo Mau-Tempo, era
casado com Joana Canastro. Malicioso, alegre e cumpridor
de suas obrigaes como trabalhador do latifndio. Ele
e os amigos Manuel Espada e Joo Mau-Tempo so os
principais cabeas da greve contra a opresso dos donos
do latifndio, sendo ele o mais calmo dos trs. dele a
deciso de ir a Montemor, com os companheiros, para
engrossarem o nmero de trabalhadores grevistas que
reclamam pelo po dos seus flhos e dos pais que os
devem criar.
[...] o diabo no existe, no faz contratos, isso de jurar e
prometer falar vo, o que o trabalho no consegue, nada
consegue [...].
SIMO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos doze
elaborado por Deus, acabar a vida sendo cerrado ao
meio. Como todos os outros discpulos, anda descalo,
usa cajado e um pesado e escuro manto sobre a tnica
antiga.
SIMO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Maria e Jos,
irmo de Jesus.
SIGISMUNDO CANASTRO
296 SALMA FERRAZ
SIMO DE CIRENE (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Ajudou,
foradamente, Jesus a transportar o patbulo at o local
da crucifxo e seguiu dali muito mais preocupado com
o atraso para realizar um negcio do que com a vida
daquele que ia ser crucifcado.
SIMO, O PEDRO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo):
Pescador, irmo de Andr, tem aproximadamente trinta
anos. Conhece Jesus no mar de Genesar e se tornam
amigos. Junto com seu irmo, riem de Jesus pela
sua inexperincia com o mar e com os peixes. Assiste
perplexo Jesus lanar a rede trs vezes ao mar e nas
trs vezes a rede voltar completamente cheia. Simo, o
Pedro fca sabendo que os demnios tinham proclamado
que Jesus era Filho de Deus. Quando Jesus retorna do
mar, ele o primeiro a anunciar que Jesus Filho de
Deus. Jesus testifca e afrma que Simo e os demais
discpulos o conheceram e creram nele antes de todos.
No entende muito bem as palavras enigmticas de
Jesus. Quando Judas de Iscariote e Tom relatam a
Jesus o impressionante encontro que tiveram com Joo
Batista e as terrveis palavras de Joo, o profeta, Simo
pergunta: s tu o Messias que Joo veio anunciar.
Quando Jesus preso, Pedro o nega trs vezes. Porm,
quando Jesus, acuado pelas perguntas estratgicas de
Judas de Iscariote, assume que o Messias e comea
a revelar o futuro de todos, inclusive o de Pedro, este
pergunta e aconselha ao mesmo tempo:
[...] por que temos ns de saber o que te foi transmitido
por Deus, melhor seria que te calasses.
SIMEO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Ancio que
acompanhava Jos na viagem para o recenseamento. Cr
ser um homem sbio devido a sua autoridade e idade.
Prope a Jos uma questo intrigante: como deveria
recensear-se Maria, que tinha um flho dentro de si.
Nessa discusso, Simeo vencido vrias vezes por Jos
que, a despeito do preconceito do narrador, capaz de
levar o seu interlocutor ao desespero, com sua perfeita
argumentao. um patriarca arrogante e orgulhoso
que perde a disputa verbal para Jos.
SIMO, O PEDRO
297
Porventura ter Deus quebrado o selo do teu nascimento
antes do tempo e ainda no devesses estar no mundo
SNDICO DE MNSTER (In Nomine Dei): Espcie de lder poltico
catlico que chefa um grupo de conselheiros eleitos pelo
povo. um homem sensato que aparece apenas durante
o conturbado perodo em que transitam de um governo
para outro. Posteriormente, assume este cargo outro
personagem: Von Der Wieck.
SOLIMO (A Viagem do Elefante): Nome pelo qual o secretrio
do rei Dom Joo III, Pro de Alcova Carneiro, resolve
chamar o elefante Salomo j no incio da narrativa.
Aps ser recebido pelo arquiduque Maximiliano mantm
o nome de Solimo. Conforme o secretrio de Dom Joo
III, este o nome de um grande sulto otomano.
SUBHRO (A Viagem do Elefante): Nome original do cornaca que
era o tratador do elefante Salomo. Em bengali, uma das
lnguas da ndia, signifca branco.
No o escolhi, foi o nome que me deram, meu senhor.
SNDICO DE MNSTER
T
301
TERESA (Terra do Pecado): Teresa criada da quinta, brao direito
de Benedita nos afazeres da casa. Sente-se lisonjeada
quando lhe permitido servir a ama, Maria Leonor, no
quarto pela primeira vez. At ento, cuidar da patroa na
sua intimidade era tarefa que cabia apenas a Benedita.
Teresa, de olhos negros, namora um trabalhador da
fazenda, com quem se encontra noite no palheiro,
territrio onde, veladamente, o sexo permitido. Esses
encontros noturnos provocam em Leonor a tomada de
conscincia de sua sexualidade.
TERTULIANO MXIMO AFONSO (O Homem Duplicado):
Professor de Histria de um estabelecimento de ensino
secundrio. O conjunto de suas feies harmonioso,
se tivesse talento para a representao poderia ser um
gal. Vive sozinho h seis anos desde que se divorciou
da mulher. Seu nome o espelho de sua vida. Ter esse
nome j uma desgraa, portanto ele vtima de seu
nome e da vida. Revela-se uma pessoa descontente
consigo mesma e com o mundo a seu redor, depressivo
e sente-se aborrecido no seu dia-a-dia. Mantm, quase
por obrigao, um relacionamento com Maria da Paz.
Mas sua vida montona rapidamente alterada quando
ele descobre que existe um outro ser igual a ele, com
as mesmas caractersticas fsicas, o mesmo rosto, as
mesmas cicatrizes enfm, sua imagem duplicada. A
partir desse fato, inexplicvel cientifcamente, ele inicia
uma busca pelo seu outro eu, seu duplicado, e passa a
fazer pequenas transgresses como, por exemplo, usar
o nome e endereo de Maria da Paz para escrever uma
carta para a produtora cinematogrfca (o outro um ator
de cinema secundrio) com o consentimento dela, porm
sem lhe contar o verdadeiro motivo desse mascaramento.
Depois de longa peregrinao, Tertuliano descobre
inicialmente que seu ssia se chama Daniel de Santa-
Clara, nome que mais tarde ser reconhecido como sendo
apenas um pseudnimo de ator, cujo nome verdadeiro
Antnio Claro. No primeiro encontro dos dois, revelado
que Tertuliano o duplicado por ter nascido trinta e um
minutos depois de Antnio Claro, e isso o deixa muito
contrariado. Como uma espcie de provocao de que
no se esconderia de ningum, Tertuliano envia para
TERTULIANO MXIMO AFONSO
302 SALMA FERRAZ
o outro a barba postia que havia comprado para seu
disfarce. A partir desse momento, Antnio Claro cria um
sentimento de vingana pelo duplicado, pois acredita que
Tertuliano enviou o disfarce para afront-lo. O professor,
ao ser ameaado por Antnio Claro, por covardia aceita
que o ator se passe por ele e leve Maria da Paz para uma
noite no stio. Por vingana, apesar de sentir-se indeciso
e inseguro, Tertuliano toma o lugar de Antnio Claro e
passa por Antnio, marido de Helena, fazendo amor com
ela. Como Antnio Claro havia usurpado a identidade de
Tertuliano, mais tarde, o verdadeiro Tertuliano telefona
para Carolina, sua me, e a avisa de que est vivo. Ele
tambm conta para Helena toda a verdade e aceita o pedido
dela para viverem juntos. Dessa maneira, ele assume a
identidade de Antnio Claro. Tertuliano no d ouvidos
ao senso comum, que o abandona assim que ele entra
na casa de Helena fazendo-se passar pelo marido dela.
Tertuliano Mximo Afonso perde sua identidade, s lhe
restando comear uma vida nova a partir da continuao
da vida de Antnio Claro.
Ao contrrio do que julga o senso comum, as coisas da
vontade nunca so simples, o que simples a indeciso,
a incerteza, a irresoluo.
TIAGO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Alfeu. Um
dos doze discpulos de Jesus, que se converte logo aps
o milagre da transformao dos pssaros de barro em
pssaros verdadeiros. Segundo o sangrento dicionrio
de mortes elaborado por Deus, acabar a vida sendo
dilapidado.
Perderam-se uns porcos, salvou-se uma alma, o ganho
de Deus...
TIAGO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Filho de Jos e Maria,
irmo de Jesus. Nas respostas aos dilogos com Jesus,
Tiago confrma o pssimo relacionamento de Jesus e
sua famlia: Quem te fez pastor, perdeu-te [...] e O sol
do deserto fez-te mal cabea [...] e fnalmente: Ests
louco, irmo. enviado por Maria, juntamente com seu
irmo Jos, para levar um recado inapropriado para
TIAGO
303
Jesus. Depois do recado a situao fca mais tensa entre
ele e Jesus. Tiago fca assombrado com as notcias que
recebera sobre Jesus antes de encontr-lo, mas isso no
o convence a mudar o recado enviado por Maria. Quando
encontra Jesus com Madalena, no esconde seu rancor,
sua inveja por seu irmo Jesus j conhecer mulher, e
demonstra cobia por Maria de Magdala.
Ofendes o Senhor, o Senhor fez uma aliana com seu
povo, no a ia fazer agora com um simples homem como
tu, filho de carpinteiro, pastor e sabe-se l que mais.
TIAGO (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Pescador de Genesar,
amigo de Simo e Andr. flho de Zebedeu e irmo de
Joo. Impressiona-se com os prodgios de Jesus, quando
Jesus faz com que a pesca seja abundante e quando
acalma a tempestade. Disse que estar com Jesus at
onde puder, ao contrrio dos outros discpulos que
afrmam que iro com Jesus at o fm. Est presente
no episdio da expulso dos demnios do gadareno e
aconselha a Jesus para que fujam das pedradas.
TOMARCTUS (O Homem Duplicado): Cachorro da casa da me
de Tertuliano, de tamanho mdio, sendo todo ele um
borro negro. Foi o duplicado (Tertuliano) que lhe deu
esse nome estranho nome de um candeo que se diz ter
vivido h quinze milhes de anos e, segundo pesquisas
dos paleontlogos, o fssil Ado desses animais de
quatro patas. Durante a visita que Tertuliano faz a sua
me, Tormarctus vagueia noite entre o quarto desse
dono e a casa para verifcar se tudo est em ordem. No
entanto, mesmo aparecendo como uma fgura da qual
at se esquece depois de algum tempo, de Tomarctus a
soluo remediadora que Tertuliano utiliza para provar a
sua me que est vivo. Quando Tertuliano telefona para
ela para dizer que no morreu (e sim seu ssia, Antnio
Claro, que tomara sua identidade), deixa o endereo do
hotel, o nome pelo qual ela deve cham-lo e diz que o
nome do cachorro Tomarctus. Assim Carolina saberia
que diante dela estaria seu flho, sem necessitar do
auxlio do instinto materno nem de provas cientfcas
como o DNA: o simples nome do co serviria como uma
espcie de password.
TOMARCTUS
304 SALMA FERRAZ
TOM (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Retratado pelo narrador
como cptico e renitente. Logo aps Jesus retornar da
tentao da barca, e aps Simo anunciar que Jesus
o Filho de Deus, surge na multido uma voz duvidosa.
Tom, que provoca Jesus para que lhe d uma prova,
a quem Jesus responde que seu pedido ser atendido.
Jesus chama Tom para a borda da gua e, com lama e
barro, faz uns pssaros com as mos. Diante de Tom, ele
pacientemente molda todas as partes de doze pssaros
e comea a nome-los por Simo, Tiago, Andr, Joo
e, por ltimo, Tom. Depois lanou uma rede para que
os pssaros de barro no fugissem. Tom, o incrdulo,
duvida que se a rede fosse levantada, os pssaros de
barro fugiriam. Jesus ento compara os pssaros com
Ado, que tambm foi feito de barro; mas de nada adianta.
Tom, incrdulo, est convencido de que os pssaros no
voaro, por isso levanta a rede, e eles, chilreando, do
voltas sobre a multido. Nesse momento Jesus afrma
que o pssaro Tom foi embora, ao que Tome responde:
No, Senhor, est aqui ajoelhado aos teus ps, sou eu.
batizado s margens do Jordo pelo profeta Joo.
D-nos uma prova de que s Filho de Deus e eu seguir-
te-ei.
TOM
305
V
307
VASCO DA GAMA (Que Farei com este Livro?): o terceiro Conde
de Vidigueira, tem o mesmo nome do av e soberbo.
Mais uma personagem que sumariamente vira as costas
para Cames.
Ficai com a glria do vosso bem falar e bem escrever,
que a casa de Vidigueira no precisa de quem lhe cante
as glrias, ou pagar a encomenda que fizer para lhas
cantarem.
VELHO (Caim): Velho que traz sempre duas cabras presas por
um barao. Encontra-se, pela primeira vez, com caim
quando este entra nas terras de nod. o primeiro a
perguntar sobre a mancha na testa de caim. Trava
difceis conversaes, nunca deixando claro quem , de
onde veio ou o que faz, alm de impedir que as cabras
comam a corda que as prende.
Ver-me-s at ao fim dos teus dias.
VELHO DA VENDA PRETA (Ensaio sobre a Cegueira): Homem
de idade, meio calvo, de cabelos brancos, que traz uma
venda preta num dos olhos tapando uma ausncia e uma
catarata no nico olho que lhe restava. Tem os ps mais
para o grande do que para o pequeno e no tem famlia.
uma pessoa muito sbia e prevenida e levou para o
manicmio um radinho de pilha para fcar a par do que
estaria acontecendo l fora. Sensato e frme em suas
opinies. Sempre se considerou velho e achava que a
rapariga dos culos escuros no poderia am-lo por isso.
respeitado, de bom gnio e tem a voz da experincia,
no precisando ver para saber muitas coisas. Sente que
foi a mulher do mdico que matou o chefe dos malvados e
no a deixa se entregar como culpada. Protege a mulher
do mdico pelo seu ato de coragem, que nem ele nem
nenhum outro homem foi capaz de praticar.
[...] a voz a vista de quem no v.
VELHO DA VENDA PRETA (Ensaio sobre a Lucidez): Usava uma
venda preta no olho, enxergava com um olho s, porm,
era muito observador, desconfado e corajoso. Sabia dos
VELHO DA VENDA PRETA
308 SALMA FERRAZ
seus direitos e, caso a polcia voltasse a incomodar ele e
sua mulher, a rapariga dos culos escuros, com o assunto
do assassinato do cego violador durante a primeira
epidemia de cegueira, recorreria ao advogado. Passou a
ser chamado de peixe-lobo pelo ministro do interior.
VELHO LABREGO (A Viagem do Elefante): Morador que o
comandante portugus encontra na primeira aldeia a que
chega na viagem de Lisboa a Valladolid. Parece conhecer
algo do mar. O velho labrego conduz o comandante at o
palcio onde se encontra o feitor e tem com este um incio
de negociao sobre a concesso dos bois para ajudar a
carregar a dorna de gua do elefante durante a viagem;
num segundo momento o comandante quem conversa
com o feitor e acaba por convenc-lo a emprestar dois
bois.
VIEGAS (Terra do Pecado): Homem forte, de cabelos e bigode
grisalhos, mope e usa culos de aros de tartaruga;
fuma cachimbo. O mdico vivo, bonacho, espirituoso,
brincalho, racional, ateu, contra a moralidade crist,
no aceita a existncia de outra vida. Nos dilogo
entre Viegas e Maria Leonor e nos conselhos dados a
ela, percebemos todo seu racionalismo, equilbrio e
humanismo: preocupa-se apenas com a vida na terra
em detrimento da vida futura e no execra Leonor, nem
considera pecado a relao sexual dela com o cunhado
(Antnio), pois sabe que os problemas, os confitos morais
de sua cliente advm dos conceitos cristos que ela traz
consigo. Possui um mtodo socrtico de discusso,
conduz a conversa com habilidade, chega sempre ao
clmax do seu raciocnio e leva seu interlocutor para o
ponto em que quer. Viegas uma personagem com pendor
flosfco. Para ele os seres humanos vivem pouco, so de
fragilidade espantosa, podem ser destrudos a qualquer
momento e por qualquer causa, ao contrrio das rochas e
montanhas que sobrevivem milhares de anos. Para esse
humanista a nica sada est no homem s o homem
poder salvar o prprio homem, dominando o universo e
achando novas formas de vida. O mdico narra sua vida,
sua infncia, afrma que sua primeira dvida acerca
da divindade ocorre aps sua formatura em Medicina.
VELHO LABREGO
309
Ele desde cedo se considerava ateu, fecha o ciclo de sua
vida ao se formar em medicina e presenciar o sofrimento
humano exposto diante de si e o pior e maior de todos
os mistrios: a morte. Cr que s o homem das cavernas
era feliz porque no conhecia o cristianismo. Sem o fardo
do cristianismo era tudo mais fcil, a natureza era a lei.
A personagem parece ser um alter ego do autor, tambm
ele ateu declarado em diversas entrevistas. Por causa
dos muitos encontros com Leonor, desses idlios, das
muitas confsses entre os dois, ocorre uma aproximao
inevitvel, e mdico e paciente acabam mantendo relaes
sexuais na cama do falecido marido de Leonor. Um
envolvimento ocorre e Viegas, que sempre fora carinhoso
com Leonor, a pede casamento, talvez para livr-la da
criada Benedita que patrulha todos os seus movimentos
e troca com sua patroa olhares silenciosos e carregados
de dio. No fnal do romance, o Dr. Viegas sofre um
acidente e o narrador termina o texto com reticncias,
induzindo o leitor a creditar essa morte a Benedita, que
assim mantm a ordem, a moral e os bons costumes na
quinta, exterminando aquele que ameaava tudo isso:
um ateu.
No fundo, apenas isto: o cessar de uma existncia, o
apagar duma lmpada. [...] isto a vida e isto a morte.
VIOLONCELISTA (As Intermitncias da Morte): Homem com
idade em torno dos cinqenta anos, calvo, e dono de
um co que lhe afugenta a solido completa. Com uma
rotina raramente abalada, o violoncelista passa seus
momentos de folga da orquestra passeando com seu co.
A grande maioria dos acontecimentos passa ao largo
de seu conhecimento, como se estivesse vivendo quase
por acidente, mais do que lhe fora designado. Acaba por
seduzir, ainda que involuntariamente, a morte, e mantm
um contato ntimo com ela.
doida, doida, doida, a nica vez na vida que algum me
vai esperar sada para dizer que toquei bem, sai-me uma
mentecapta, e eu, como um nscio, a perguntar-lhe se no
a tornarei a ver, a meter-me em trabalhos por meu prprio
p, h defeitos que ainda podem ter algo de respeitvel,
VIOLONCELISTA
310 SALMA FERRAZ
pelo menos digno de ateno, mas a fatuidade ridcula,
a enfatuao ridcula, e eu fui ridculo...
VITOR (O Ano da Morte de Ricardo Reis): Trabalha na Polcia de
Vigilncia e Defesa do Estado e encarregado de vigiar
Ricardo Reis. Cheira a cebola. Amigo de Salvador, o qual
solicitou que Reis fosse intimado.
VOGAL (Ensaio sobre a Lucidez): Empregado vaidoso e obediente.
Como muito ambicioso, quer subir na vida a qualquer
preo e no se importa de ser usado descaradamente.
Como sua inteno sempre agradar ao presidente da
mesa da assemblia eleitoral, serve de capacho a ele.
VON DER WIECK (In Nomine Dei): Sndico eleito de Mnster aps
a queda do sndico catlico. Seu conselho de maioria
protestante. Parece no ser muito fantico e obediente,
desagradando aos anabaptistas Knipperdolinck e
Rothmann. Em determinado momento, oferece certa
resistncia ao movimento reformista, entretanto sua
fgura no chega a representar uma ameaa efetiva ao
movimento.
VITOR
311
Z
313
ZAQUIAS (O Evangelho Segundo Jesus Cristo): Um dos trs ancies
que ela tinha recebido. Possui barbas e veste tnicas e
dele a sugesto para que se cave um buraco e que se
enterre no quintal a tigela com a terra enigmtica que
brilha e que tanto atormenta Jos.
[...] um bem, mesmo enterrado, no se perde, e um mal
ter menos poder longe da vista.
ZELOMI (O Evangelho segundo Jesus Cristo): Escrava que ajudou
no nascimento de Jesus e que o reencontra, quando ele
tem treze anos e vai a Belm em busca do seu passado.
Tem um tenso dilogo com Jesus.
[...] o homem s livre para poder ser castigado.

ZERLINA (Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido): Noiva de
Masetto, foi assediada por Don Giovanni sem, contudo,
ceder. Zerlina representa a absolvio de Don Giovanni,
assim como Dona Ana e Dona Elvira representam sua
condenao. Quando descobre que no existe mais o
mito Don Giovanni, procura-o e mostra-lhe que em
suas sedues ele tambm era seduzido, e que apesar
de ele no ser mais o mito Don Giovanni, sendo agora
um simples homem, ainda resta-lhe o sincero amor de
Zerlina.
No vim para me rir de ti. Vim porque havias sido
humilhado, vim porque estavas s, vim porque Don
Giovanni se tinha tornado de repente num pobre homem
a quem haviam roubado a vida e em cujo corao no
restaria seno a amargura de ter tido e no ter mais.
ZAQUIAS
315
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
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A Caverna (romance). Lisboa: Caminho, 2000.
A Esttua e a Pedra (discurso). Alessandria: DellOrso, 998.
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A Noite (teatro). Lisboa: Caminho, 979.
A Segunda Vida de Francisco de Assis (teatro). Lisboa: Caminho,
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De como a Personagem foi Mestre e o Autor seu Aprendiz
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Deste Mundo e do Outro (crnicas). Lisboa: Arcdia, 1985.
Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido (teatro). So Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
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O Ano da Morte de Ricardo Reis (romance). Lisboa: Caminho,
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O Ano de 1993 (prosa-potica). Lisboa: Futura, 1975.
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Potica dos Cinco Sentidos (contos). Lisboa: Bertrand, 979.
Provavelmente Alegria (poesia). Lisboa: Livros Horizonte, 1970.
Que Farei com este Livro? (teatro). Lisboa: Caminho, 980.
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O Conto da Ilha Desconhecida (conto). Lisboa: Caminho, 997.
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321
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323
- por gneros -
AUTOBIOGRAFIA
As Pcqucnas Mcnorias
CONTOS
O Conio da IlIa DcsconIccida
Oljccio Quasc
Pociica dos Cinco Scniidos

CRTICA
Canio ao ronancc, ronancc ao canio
CRNICAS
A Dagagcn do Viajanic
As Oinics quc o DL icvc
Dcsic Mundo c do Ouiro
Moly Dicl cn Lisloa
Os Aoniancnios

DIRIO
Cadcrnos dc Lanzaroic I
Cadcrnos dc Lanzaroic II
Cadcrnos dc Lanzaroic III
Cadcrnos dc Lanzaroic IV
Cadcrnos dc Lanzaroic V
DISCURSOS
A Esiaiua c a Pcdra
Dc cono a Pcrsonagcn foi Mcsirc c o
Auior scu Arcndiz

ENSAIOS
FolIas Poliicas
INFANTIL
A Maior Flor do Mundo

PEAS TEATRAIS
A Noiic
A Scgunda Vida dc Francisco dc Assis
Don Ciovanni ou O Dissoluio Alsolvido
In Noninc Dci
Quc Farci con csic Livro?
POESIA
Os Pocnas Possvcis
Provavclncnic Alcgria

PROSA POTICA
O Ano dc 1993
ROMANCES
A Cavcrna
A Jangada dc Pcdra
A Viagcn do Elcfanic
As Inicrniicncias da Moric
Cain
Ensaio solrc a Ccgucira
Ensaio solrc a Lucidcz
Hisioria do Ccrco dc Lisloa
Lcvaniado do CIao
Manual dc Piniura c Caligrafia
Mcnorial do Convcnio
O Ano da Moric dc Ficardo Fcis
O EvangclIo Scgundo Jcsus Crisio
O Honcn Dulicado
Tcrra do Pccado
Todos os Noncs

TEXTOS PARA BLOG
O Cadcrno
VIAGENS
Viagcn a Poriugal
325
- tradues -
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343
AUTOBIOGRAFIA
Jos Saramago
5

N
asci numa famlia de camponeses sem terra, em Azinhaga,
uma pequena povoao situada na provncia do Ribatejo, na
margem direita do rio Almonda, a uns cem quilmetros a nordeste de
Lisboa. Meus pais chamavam-se Jos de Sousa e Maria da Piedade.
Jos de Sousa teria sido tambm o meu nome se o funcionrio do
Registo Civil, por sua prpria iniciativa, no lhe tivesse acrescentado
a alcunha por que a famlia de meu pai era conhecida na aldeia:
Saramago. (Cabe esclarecer que saramago uma planta herbcea
espontnea, cujas folhas, naqueles tempos, em pocas de carncia,
serviam como alimento na cozinha dos pobres). S aos sete anos,
quando tive de apresentar na escola primria um documento de
identifcao, que se veio a saber que o meu nome completo era
Jos de Sousa Saramago... No foi este, porm, o nico problema
de identidade com que fui fadado no bero. Embora tivesse vindo
ao mundo no dia 6 de Novembro de 922, os meus documentos
ofciais referem que nasci dois dias depois, a 18: foi graas a esta
pequena fraude que a famlia escapou ao pagamento da multa por
falta de declarao do nascimento no prazo legal.
Talvez por ter participado na Grande Guerra, em Frana, como
soldado de artilharia, e conhecido outros ambientes, diferentes do
viver da aldeia, meu pai decidiu, em 1924, deixar o trabalho do
campo e trasladar-se com a famlia para Lisboa, onde comeou a
exercer a profsso de polcia de segurana pblica, para a qual no
se exigiam mais habilitaes literrias (expresso comum ento...)
que ler, escrever e contar. Poucos meses depois de nos termos
instalado na capital, morreria meu irmo Francisco, que era dois
anos mais velho do que eu. Embora as condies em que vivamos
tivessem melhorado um pouco com a mudana, nunca viramos
a conhecer verdadeiro desafogo econmico. J eu tinha 13 ou 14
anos quando passmos, enfm, a viver numa casa (pequenssima)
s para ns: at a sempre tnhamos habitado em partes de casa,
com outras famlias. Durante todo este tempo, e at maioridade,
5
SARAMAGO, Jos. Autobiografa. In: FUNDAO JOS SARAMAGO. O
Caderno de Saramago. Disponvel em: <http://www.josesaramago.org/
saramago/detalle.php?id=677>. Acesso em: 24 de set. 2009.
344 SALMA FERRAZ
foram muitos, e frequentemente prolongados, os perodos em que
vivi na aldeia com os meus avs maternos, Jernimo Melrinho e
Josefa Caixinha.
Fui bom aluno na escola primria: na segunda classe j escrevia
sem erros de ortografa, e a terceira e quarta classes foram feitas
em um s ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois
anos, com notas excelentes no primeiro, bastante menos boas no
segundo, mas estimado por colegas e professores, ao ponto de ser
eleito (tinha ento 2 anos...) tesoureiro da associao acadmica...
Entretanto, meus pais haviam chegado concluso de que, por
falta de meios, no poderiam continuar a manter-me no liceu. A
nica alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola
de ensino profssional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi
o ofcio de serralheiro mecnico. O mais surpreendente era que o
plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente
orientado para formaes profssionais tcnicas, inclua, alm do
Francs, uma disciplina de Literatura. Como no tinha livros em
casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro
emprestado por um amigo, s os pude ter aos 19 anos), foram os
livros escolares de Portugus, pelo seu carcter antolgico, que
me abriram as portas para a fruio literria: ainda hoje posso
recitar poesias aprendidas naquela poca distante. Terminado
o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como serralheiro
mecnico numa ofcina de reparao de automveis. Tambm por
essas alturas tinha comeado a frequentar, nos perodos nocturnos
de funcionamento, uma biblioteca pblica de Lisboa. E foi a, sem
ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela
vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu
e apurou.
Quando casei, em 1944, j tinha mudado de actividade, passara
a trabalhar num organismo de Segurana Social como empregado
administrativo. Minha mulher, Ilda Reis, ento dactilgrafa nos
Caminhos de Ferro, viria a ser, muitos anos mais tarde, um dos
mais importantes gravadores portugueses. Faleceria em 1998. Em
1947, ano do nascimento da minha nica flha, Violante, publiquei
o primeiro livro, um romance que intitulei A Viva, mas que por
convenincias editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado.
Escrevi ainda outro romance, Clarabia, que permanece indito at
hoje, e principiei um outro, que no passou das primeiras pginas:
chamar-se-ia O Mel e o Fel ou talvez Lus, flho de Tadeu... A questo
fcou resolvida quando abandonei o projecto: comeava a tornar-se
claro para mim que no tinha para dizer algo que valesse a pena.
345
Durante 19 anos, at 1966, quando publicaria Os Poemas Possveis ,
estive ausente do mundo literrio portugus, onde devem ter sido
pouqussimas as pessoas que deram pela minha falta.
Por motivos polticos fquei desempregado em 1949, mas,
graas boa vontade de um meu antigo professor do tempo da escola
tcnica, pude encontrar ocupao na empresa metalrgica de que
ele era administrador. No fnal dos anos 50 passei a trabalhar numa
editora, Estdios Cor, como responsvel pela produo, regressando
assim, mas no como autor, ao mundo das letras que tinha deixado
anos antes. Essa nova actividade permitiu-me conhecer e criar
relaes de amizade com alguns dos mais importantes escritores
portugueses de ento. Para melhorar o oramento familiar, mas
tambm por gosto, comecei, a partir de 1955, a dedicar uma parte do
tempo livre a trabalhos de traduo, actividade que se prolongaria
at 1981: Colette, Pr Lagerkvist, Jean Cassou, Maupassant, Andr
Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, tienne Balibar, Nikos Poulantzas,
Henri Focillon, Jacques Roumain, Hegel, Raymond Bayer foram
alguns dos autores que traduzi. Outra ocupao paralela, entre Maio
de 967 e Novembro de 968, foi a de crtico literrio. Entretanto,
em 1966, publicara Os Poemas Possveis, uma colectnea potica
que marcou o meu regresso literatura. A esse livro seguiu-se, em
1970, outra colectnea de poemas, Provavelmente Alegria, e logo,
em 1971 e 1973 respectivamente, sob os ttulos Deste Mundo e do
Outro e A Bagagem do Viajante, duas recolhas de crnicas publicadas
na imprensa, que a crtica tem considerado essenciais completa
compreenso do meu trabalho posterior. Tendo-me divorciado em
970, iniciei uma relao de convivncia, que duraria at 986,
com a escritora portuguesa Isabel da Nbrega.
Deixei a editora no fnal de 1971, trabalhei durante os dois
anos seguintes no vespertino Dirio de Lisboa como coordenador de
um suplemento cultural e como editorialista. Publicados em 1974
sob o ttulo As Opinies que o DL teve, esses textos representam
uma leitura bastante precisa dos ltimos tempos da ditadura
que viria a ser derrubada em Abril daquele ano. Em Abril de 1975
passei a exercer as funes de director-adjunto do matutino Dirio
de Notcias, cargo que desempenhei at Novembro desse ano e de
que fui demitido na sequncia das mudanas ocasionadas pelo
golpe poltico-militar de 25 de daquele ms, que travou o processo
revolucionrio. Dois livros assinalam esta poca: O Ano de 1993, um
poema longo publicado em 1975, que alguns crticos consideram j
anunciador das obras de fco que dois anos depois se iniciariam
com o romance Manual de Pintura e Caligrafa, e, sob o ttulo Os
346 SALMA FERRAZ
Apontamentos , os artigos de teor poltico que publiquei no jornal
de que havia sido director.
Sem emprego uma vez mais e, ponderadas as circunstncias da
situao poltica que ento se vivia, sem a menor possibilidade de o
encontrar, tomei a deciso de me dedicar inteiramente literatura:
j era hora de saber o que poderia realmente valer como escritor. No
princpio de 1976 instalei-me por algumas semanas em Lavre, uma
povoao rural da provncia do Alentejo. Foi esse perodo de estudo,
observao e registro de informaes que veio a dar origem, em 980,
ao romance Levantado do Cho, em que nasce o modo de narrar
que caracteriza a minha fco novelesca. Entretanto, em 1978,
havia publicado uma colectnea de contos, Objecto Quase, em 979
a pea de teatro A Noite, a que se seguiu, poucos meses antes da
publicao de Levantado do Cho, nova obra teatral, Que Farei com
este Livro?. Com excepo de uma outra pea de teatro, intitulada A
Segunda Vida de Francisco de Assis e publicada em 1987, a dcada
de 80 foi inteiramente dedicada ao romance: Memorial do Convento,
982, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 984, A Jangada de Pedra,
986, Histria do Cerco de Lisboa , 989. Em 986 conheci a
jornalista espanhola Pilar del Ro. Casmo-nos em 1988.
Em consequncia da censura exercida pelo Governo portugus
sobre o romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (99), vetando
a sua apresentao ao Prmio Literrio Europeu sob pretexto de
que o livro era ofensivo para os catlicos, transferimos, minha
mulher e eu, em Fevereiro de 1993, a nossa residncia para a ilha
de Lanzarote, no arquiplago de Canrias. No princpio desse ano
publiquei a pea In Nomine Dei, ainda escrita em Lisboa, de que
seria extrado o libreto da pera Divara, com msica do compositor
italiano Azio Corghi, estreada em Mnster (Alemanha), em 993. No
foi esta a minha primeira colaborao com Corghi: tambm dele a
msica da pera Blimunda, sobre o romance Memorial do Convento,
estreada em Milo (Itlia), em 990. Em 993 iniciei a escrita de
um dirio, Cadernos de Lanzarote, de que esto publicados cinco
volumes. Em 1995 publiquei o romance Ensaio sobre a Cegueira e
em 997 Todos os Nomes e O Conto da Ilha Desconhecida. Em 1995
foi-me atribudo o Prmio Cames, e em 998 o Prmio Nobel de
Literatura.
Em consequncia da atribuio do Prmio Nobel a minha
actividade pblica viu-se incrementada. Viajei pelos cinco continentes,
oferecendo conferncias, recebendo graus acadmicos, participando
em reunies e congressos, tanto de carcter literrio como social
e poltico, mas, sobretudo, participei em aces reivindicativas da
347
dignifcao dos seres humanos e do cumprimento da Declarao
dos Direitos Humanos pela consecuo de uma sociedade mais
justa, onde a pessoa seja prioridade absoluta, e no o comrcio ou
as lutas por um poder hegemnico, sempre destrutivas.
Creio ter trabalhado bastante durante estes ltimos anos.
Desde 1998, publiquei Folhas Polticas (1976-1998) (999),
A Caverna (2000), A Maior Flor do Mundo (200), O Homem
Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004), Don Giovanni ou o
Dissoluto Absolvido (2005), As Intermitncias da Morte (2005) e As
Pequenas Memrias (2006). Agora, neste Outono de 2008, aparecer
um novo livro: A Viagem do Elefante, um conto, uma narrativa, uma
fbula.
No ano de 2007 decidiu-se criar em Lisboa uma Fundao com
o meu nome, a qual assume, entre os seus objectivos principais, a
defesa e a divulgao da literatura contempornea, a defesa e a
exigncia de cumprimento da Carta dos Direitos Humanos, alm
da ateno que devemos, como cidados responsveis, ao cuidado
do meio ambiente. Em Julho de 2008 foi assinado um protocolo
de cedncia da Casa dos Bicos, em Lisboa, para sede da Fundao
Jos Saramago, onde esta continuar a intensifcar e consolidar
os objectivos que se props na sua Declarao de Princpios,
abrindo portas a projectos vivos de agitao cultural e propostas
transformadoras da sociedade.
349
BIOGRAFIA

F
ilho e neto de camponeses, Jos Saramago nasceu na aldeia
de Azinhaga, provncia do Ribatejo, no dia 16 de novembro
de 1922, se bem que o registro ofcial mencione como data de
nascimento o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele
no havia ainda completado dois anos. A maior parte de sua vida
decorreu, portanto, na capital, embora at aos primeiros anos da
idade adulta fossem numerosas, e por vezes prolongadas, as suas
estadas na aldeia natal.
Fez estudos secundrios (liceais e tcnicos) que, por difculdades
econmicas, no pde prosseguir. Seu primeiro emprego foi como
serralheiro mecnico, tendo exercido depois diversas profsses:
desenhador, funcionrio da sade e da previdncia social, tradutor,
editor, jornalista. Publicou seu primeiro livro, um romance, Terra
do Pecado, em 1947, tendo estado depois largo tempo sem publicar
(at 966). Trabalhou durante doze anos numa editora, onde
exerceu funes de direo literria e de produo. Colaborou como
crtico literrio na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da
redao do jornal Dirio de Lisboa, onde foi comentador poltico,
tendo tambm coordenado, durante cerca de um ano, o suplemento
cultural daquele vespertino.
Pertenceu primeira Direo da Associao Portuguesa de
Escritores e foi, de 1985 a 1994, presidente da Assemblia Geral da
Sociedade Portuguesa de Autores. Entre abril e novembro de 1975
foi diretor-adjunto do jornal Dirio de Notcias. A partir de 1976
passou a viver exclusivamente do seu trabalho literrio, primeiro
como tradutor, depois como autor. Em fevereiro de 1993 decidiu
repartir seu tempo entre a sua residncia habitual em Lisboa e a
ilha de Lanzarote, no arquiplago das Canrias (Espanha). casado
com Pilar del Ro.
6
6
FUNDAO JOS SARAMAGO. Biografa. In: ______. O Caderno de
Saramago. Disponvel em: <http://www.josesaramago.org/saramago/
detalle.php?id=679>. Acesso em: 24 de set. 2009. [Adaptado].
351
Distines e Honrarias
A obra de Jos Saramago foi distinguida em diversos pases e
em muitas modalidades, entre as quais cabe destacar o Prmio Lus
de Cames em 1995 e o Prmio Nobel da Literatura em 998.
7
Doutoramentos Honoris Causa
99 - Universidade de Turim (Itlia).
1991 - Universidade de Sevilha (Espanha).
1995 - Universidade de Manchester (Inglaterra).
1997 - Universidade de Castilla-la-Mancha (Espanha).
999 - Universidade de vora (Portugal).
999 - Universidade de Nottingham (Inglaterra).
999 - Universidade de Porto Alegre (Brasil).
999 - Universidade de Rio Grande do Sul (Brasil).
999 - Universidade de Minas Gerais (Brasil).
1999 - Universidade Politcnica de Valncia (Espanha).
999 - Universidade Fluminense (Brasil).
999 - Universidade de Santa Catarina (Brasil).
999 - Universidade do Rio de Janeiro (Brasil).
999 - Universidade Michel de Montaigne (Frana).
999 - Universidade de Massachusetts (EUA).
1999 - Universidade de Las Palmas, Gr Canria (Espanha).
1999 - Universidade Pontifcia de Valncia (Espanha).
2000 - Universidade de Salamanca (Espanha).
2000 - Universidade de Santiago do Chile (Chile).
2000 - Universidade do Uruguai (Uruguai).
200 - Universidade de Roma (Itlia).
2001 - Universidade Carlos III (Espanha).
2001 - Universidade de Granada (Espanha).
2002 - Universidade Stranieri de Siena (Itlia).
2003 - Universidade Autnoma do Mxico (Mxico).
2003 - Universidade de Tabasco (Mxico).
2003 - Universidade de Buenos Aires (Argentina).
7
FUNDAO JOS SARAMAGO. Prmios. In: ______. O Caderno de Sara-
mago. Disponvel em: <http://www.josesaramago.org/saramago/detalle.
php?id=679>. Acesso em: 24 de set. 2009. [Adaptado].

352 SALMA FERRAZ
2004 - Universidade Charles de Gaulle (Frana).
2004 - Universidade de Alicante (Espanha).
2004 - Universidade de Coimbra (Portugal).
2004 - Universidade de Braslia (Brasil).
2005 - Universidade de Alberta (Canad).
2005 - Universidade de El Salvador (El Salvador).
2005 - Universidade da Costa Rica (Costa Rica).
2005 - Universidade de Estocolmo (Sucia).
2006 - Universidade de Dublin (Irlanda).
2007 - Universidade Autnoma de Madrid (Espanha).
Prmios
Espanha
Prmio Rosala de Castro.
Prmio Europa de Comunicao Jordi Xifra Heras.
Prmio Canrias Internacional 200.
Inglaterra
Prmio The Independent para Fico Estrangeira.
Itlia
Prmio Grinzane-Cavour de Romance O Ano da Morte de Ricardo
Reis, 987.
Prmio Internacional Ennio Flaiano por Levantado do Cho,
992.
Prmio Literrio Brancatti (Zafferana Siclia), pelo conjunto da
obra, 992.
Prmio Internacional Literrio Mondello (Palermo), pelo conjunto
da obra, 992.
Prmio Scanno - Universidade Grabiele dAnnunzio.
Prmio Penne-Mosca.
Prmio Nacional de Narrativa Citt di Penne.
Portugal
Prmio da Associao de Crticos Portugueses por A Noite,
979.
Prmio Cidade de Lisboa por Levantado do Cho, 980.

353
Prmio PEN Clube Portugus por Memorial do Convento, 982
e O Ano da Morte de Ricardo Reis, 984.
Prmio Literrio Municpio de Lisboa por Memorial do
Convento, 982.
Prmio da Crtica (Associao Portuguesa de Crticos) por O Ano
da Morte de Ricardo Reis.
Prmio Dom Dinis por O Ano da Morte de Ricardo Reis, 986.
Grande Prmio de Romance e Novela da Associao Portuguesa
de Escritores O Evangelho Segundo Jesus Cristo, 992.
Prmio Vida Literria da Associao
Portuguesa de Escritores (APE), 993.
Prmio Consagrao SPA (Sociedade Portuguesa de Autores),
1995.
Prmio Cames, 1995.
Sucia
Prmio Nobel de Literatura, 998.
Condecoraes
Argentina
Membro Correspondente da Academia Argentina de Letras.
Blgica
Membro Honorrio do Conselho Consultivo do Tribunal de
Bruxelas.
Brasil
Scio Correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Chile
Medalha Reitoral, Universidade do Chile.
Colmbia
Membro Honorrio do Colgio Mximo das Academias.
Membro Honorrio do Conselho Supremo das Academias.
Membro Honorrio do Instituto Caro y Cuervo de Bogot.

354 SALMA FERRAZ
Costa Rica
Visitante Distinguido, So Jos da Costa Rica.
Equador
Medalha Guayasamn Unesco.
Medalha General Rumiahui Pichincha.
Gr Cruz de Mrito Cultural e Literrio do Congresso Nacional.
Gr Cruz de Mrito Educativo e Cultural Juan Montalvo.
Hspede Ilustre, So Francisco de Quito.
Espanha
Gr Cruz da Ordem Ilhas Canrias.
Diploma de Honra, A. C. Casa de Amrica das Canrias.
Medalha de Honra, U. I. Menndez Pelayo.
Medalha de Ouro, Governo das Canrias.
Acadmico Honorrio, Academia Canria de La Laguna.
Filho Adoptivo de Granada.
Membro do Patronato de Honra da Fundao Csar Manrique.
Membro da Academia Europeia de Yuste.
Beca de Honra da Residncia de Estudantes da Universidade
Carlos III.
Scio Honorrio da A. P. de Sevilha de Amigos de Apoio ao Povo
Saauri.
Presidente Honorrio de Son Latinos.
Presidente Honorrio da Fundao Alonso Quijano.
Presidente Honorrio da Fundao Centro Jos Saramago.
Membro do Comit de Honra da Fundao Rafael Alberti.
EUA
Membro da Academia Internacional de Humanismo.
Frana
Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras.
Legio de Honra.
Membro do Conselho do Futuro, Unesco.
Itlia
Membro Honoris Causa do Conselho do Instituto de Filosofa
da Universidade de Pisa.

355
Mxico
Medalha Isidro Fabela da Faculdade do Distrito de UNAM.
Reconhecimento, Faculdade de Direito, Universidade do
Mxico.
Portugal
Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada.
Grande Colar da Ordem Militar de Santiago de Espada.
Cidado de Honra, Cmara Municipal do Porto.
Medalha de Ouro, Universidade de Coimbra.
Scio Honorrio Desportivo do Sport Lisboa e Benfca.
Chaves de Ouro da Cidade de Pinhel.
Scio Honorrio da Academia de Cincias de Lisboa.
Professor Coordenador Honorrio do Instituto Politcnico de
Leiria.
Membro Honorrio do Centro Nacional de Cultura.
Medalha de Ouro da Cidade de Mafra.
Repblica Dominicana
Visitante Distinguido, Santo Domingo.

357
ADAPTAES
I
nmeros tm sido os trabalhos desenvolvidos a partir da obra de
Jos Saramago, desde as Artes Plsticas ao Cinema, passando
pelo Teatro, pera, Msica. Alguns desses trabalhos so aqui
apresentados.
Do seu romance Memorial do Convento foi feita pelo compositor
italiano Azio Corghi uma adaptao para pera intitulada Blimunda.
A estria mundial, com encenao de Jerme Savary, teve lugar no
Teatro Alla Scala de Milo (Itlia) em 20 de Maio 990. Tambm
da obra In Nomine Dei foi extrado um libreto, o da pera Divara,
estreada em Mnster (Alemanha) a 3 de Outubro de 993, com
msica de Azio Corghi e encenao de Dietrich Hilsdorf. Igualmente
de Azio Corghi a msica da cantata A Morte de Lzaro, sobre textos
de Memorial do Convento, O Evangelho Segundo Jesus Cristo e In
Nomine Dei, com estria em Milo na Igreja de San Marco em 2 de
Abril de 1995. De Azio Corghi ainda a msica da cantata sobre O
Ano de 1993, com estria em Florena a 8 de Junho de 999. Da
sua obra teatral Don Giovani ou o Dissoluto Absolvido foi extrado
o libreto da pera de autoria de Azio Corghi Il dissoluto assolto,
estreada em Lisboa a 8 de Maro de 2006 no Teatro Nacional de
So Carlos e em Setembro no Teatro Alla Scala de Milo.
O seu romance A Jangada de Pedra foi adaptado para cinema
pelo realizador holands George Sluizer, em 2002, com o ttulo Het
Stenen Vlot Spoorlos.
O seu romance Ensaio sobre a Cegueira foi adaptado para
cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, reconhecido
internacionalmente pelos flmes Cidade de Deus (2002) e O Fiel
Jardineiro (2004). Com o nome de Blindness, o flme, um longa
metragem, estreiou em 2008 com um notvel elenco de actores:
Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael Garcia Bernal, Danny Gloover,
entre outros.
359
SOBRE A AUTORA
S
ALMA FERRAZ graduou-se em Letras pela Faculdade Hebraico
Brasileira Renascena de Letras de So Paulo (Hebraica),
especializou-se em Literatura Brasileira e Literatura Infantil pela
Faculdade Severino Sombra do Rio de Janeiro. mestre em
Literatura Portuguesa e Doutora em Literatura Portuguesa pela
Unesp, campus de Assis. Concluiu o Ps Doutorado em Teologia
e Literatura em 2008 na rea de Teologia e Literatura na
Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Associada
de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa
Catarina UFSC em Florianpolis e atua na Ps Graduao de
Literatura com a linha de Pesquisa Teopotica - Os Estudos
Comparados entre Teologia e Literatura. contista, crtica e
ensasta com inmeros artigos publicados e autora de diversos
livros de crtica literria.

LIVROS PUBLICADOS (CRTICA LITERRIA):
1) Desmistifcando a redao (co-autoria). Florianpolis: UFSC, 1997.
2) Ensaios: Fernando Pessoa, Ea e Saramago. So Paulo: Cone Sul, 1998.
3) O jeitinho Brasileiro de Sherlock Holmes. Blumenau: Furb, 1998.
4) O rei Leo e a Memria do Mundo. Blumenau: Furb, 1998.
5) A sagrada luxria de criar: Porto Alegre: Edipuc, 1999.
6) O quinto evangelista. Braslia: UNB, 1999.
7) Na Terceira Margem da Histria. Blumenau: Furb, 1999.
8) Dicionrio Machista. Londrina: Campanrio, 2002.
9) As Faces de Deus na Obra de um Ateu Juiz de Fora: EUFJF, 2004.
10) No princpio era Deus e Ele se fez Poesia. Rio Branco: EDUFAC, 2007.
11) Deuses em potica. Joo Pessoa: UFPB, 2009
12) Maria Madalena: A mulher que amor o amor (EDUEM, 2011).
13) O Poln do Divino (EDIFURB, 2011)
14) Dicionrio de personagens da obra de Jos Saramago (EDIFURB, 2011)
13) As malasartes de Lcifer (EDUEL, 2012)
15) Sois deuses (EDUFGD, 2012)

LIVROS PUBLICADOS - FICO
1) Em nome do Homem. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999.
2) O Ateu ambulante. Blumenau: Furb, 2001.
3) A Ceia dos Mortos. Florianpolis: Edio do autor, 2007.
4) Nem sempre amar tudo. (no prelo)

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DICIONRIO

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