O documento discute a questão do outro na filosofia ocidental e como a mulher foi historicamente vista como "outra" em relação ao sujeito masculino. A autora argumenta que a mulher deve ser reconhecida como um outro sujeito irredutível e não como uma cópia imperfeita do homem. Ela critica a abordagem de Simone de Beauvoir por não reconhecer a mulher como um outro diferente.
O documento discute a questão do outro na filosofia ocidental e como a mulher foi historicamente vista como "outra" em relação ao sujeito masculino. A autora argumenta que a mulher deve ser reconhecida como um outro sujeito irredutível e não como uma cópia imperfeita do homem. Ela critica a abordagem de Simone de Beauvoir por não reconhecer a mulher como um outro diferente.
O documento discute a questão do outro na filosofia ocidental e como a mulher foi historicamente vista como "outra" em relação ao sujeito masculino. A autora argumenta que a mulher deve ser reconhecida como um outro sujeito irredutível e não como uma cópia imperfeita do homem. Ela critica a abordagem de Simone de Beauvoir por não reconhecer a mulher como um outro diferente.
O documento discute a questão do outro na filosofia ocidental e como a mulher foi historicamente vista como "outra" em relação ao sujeito masculino. A autora argumenta que a mulher deve ser reconhecida como um outro sujeito irredutível e não como uma cópia imperfeita do homem. Ela critica a abordagem de Simone de Beauvoir por não reconhecer a mulher como um outro diferente.
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labrys, estudos feministas
nmero 1-2, julho/ dezembro 2002
A questo do outro Luce Irigaray traduo: tania navarro swain Resumo: A questo do outro uma questo de poca. Mas esta questo muitas vezes mal colocada, permanecendo hierrquica e naturalista. Este o motivo pelo qual, sem dvida, Simone de Beauvoir no compreendeu que o outro sexo podia significar um sexo diferente e no um segundo sexo, no sentido de sexo inferior. A meu ver, afirmando a diferena que a mulher pode libertar-se da dominao sobre ela de uma cultura no masculino. Para cultivar esta diferena, deve definir as mediaes prprias a seu gnero: em nvel da linguagem, do direito, da religio, da genealogia, etc. Aps haver conquistado uma subjetividade livre e autnoma, a mulher deve aprender a entrar em relao com o homem como outro, um outro diferente, mas no hierarquicamente superior ou inferior. Palavras-chave: diferena, outro, gnero, linguagem A filosofia ocidental, e talvez toda a filosofia, constituiu-se em torno de um sujeito nico. Durante sculos, no se imaginou que poderiam haver sujeitos diferentes e que o homem e a mulher, em particular, poderiam ser sujeitos diferentes. Desde o fim do sculo XIX, certamente, a ateno voltou-se principalmente sobre a questo do outro. O sujeito filosfico, sujeito agora mais sociolgico, tornou-se um pouco menos imperialista. Admitiu que existiam identidades diferentes da sua: crianas, loucos, os "selvagens", operrios, por exemplo. Havia, portanto, diferenas empricas a serem respeitadas: todo o mundo no era igual e importava debruar-se um pouco mais sobre aos outros e suas s diversidades. Mas o modelo fundamental do ser humano permanecia imutvel: uno, nico, solitrio, e historicamente masculino, o do homem Pgina 1 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html ocidental adulto, racional, competente. As diversidades observadas eram assim pensadas e vividas de maneira hierrquica, o mltiplo sendo sempre submetido ao nico. Os outros no eram seno cpias da idia do homem, idia potencialmente perfeita, cujo modelo, todas as cpias, mais ou menos imperfeitas, deveriam esforar-se para igualar. Estas cpias imperfeitas no eram, alis, definidas a partir delas mesmas, logo, de uma subjetividade diferente, mas a partir da subjetividade ideal e em funo de suas carncias em relao quela: idade, sexo, raa, cultura, etc. O modelo do sujeito permanecia nico e os "outros" representavam exemplos inferiores, hierarquizados em relao ao sujeito nico. Este modelo filosfico corresponde, alis, ao modelo poltico de um chefe considerado o melhor, como o nico capaz de governar cidados mais ou menos altura de sua identidade humana, mais ou menos burilada. Esta posio relativa noo do outro explica, sem dvida, a recusa de Simone de Beauvoir de identificar a mulher ao outro. No querendo ser "segunda" em relao ao sujeito masculino, pretende alcanar um status subjetivo igual ao do homem, o mesmo ou semelhante ao dele. No plano filosfico, isto supe um retorno ao sujeito nico, historicamente masculino, e uma anulao da possibilidade de uma outra subjetividade que no fosse a do homem. Se o trabalho crtico de Simone de Beauvoir sobre a desvalorizao da mulher como "segunda" na cultura , de certa forma, exato, a recusa de considerar a questo da mulher como outra representa filosoficamente, e mesmo politicamente, uma regresso importante. Com efeito, sua reflexo historicamente menos avanada que a de certos filsofos que se interrogaram sobre a questo das relaes possveis entre dois ou mais sujeitos: filsofos existencialistas, personalistas ou mais polticos; ela se situa na retaguarda, tambm, em relao s lutas das mulheres pelo reconhecimento de uma identidade prpria. As proposies positivas de Simone de Beauvoir representam, em meu entender, uma falha terica e prtica, pois implicam na negao de um(a) outro (a), cujo valor seria equivalente ao sujeito. O outro: a mulher O ponto de vista de meu trabalho sobre a subjetividade feminina, , de certa forma, o inverso do de Simone de Beauvoir, no que diz respeito questo do outro. Em vez de dizer: no quero ser o outro do sujeito masculino e, para tanto, pretendo ser igual a ele, eu digo: a questo do outro est mal colocada Pgina 2 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html na tradio ocidental, o outro sempre o outro do mesmo, o outro do prprio sujeito e no um outro sujeito a ele irredutvel e de dignidade equivalente. Isto significa que ainda no existiu realmente o outro para o sujeito filosfico, e mais geralmente o sujeito cultural e poltico, nesta tradio. "O outro, De lautre femme, sub-ttulo de Speculum deve ser compreendido como um substantivo. Este supe designar, em francs, mas igualmente em outras lnguas, tais como o italiano, o ingls, o homem e a mulher. Neste sub-ttulo, eu quis indicar que o outro no , de fato, neutro, nem gramaticalmente, nem semanticamente, e que no mais possvel utilizar indiferentemente a mesma palavra para o masculino e o feminino. Ora, esta prtica corrente em filosofia, na religio, na poltica. Fala-se da existncia do outro, do amor ao outro, da preocupao com o outro, etc., sem que seja evocada a questo de quem ou o que representa o outro. Esta falta de definio da alteridade paralisou o pensamento, inclusive o mtodo dialtico, em um sonho idealista apropriado um sujeito nico (masculino), na iluso de um absoluto igualmente nico, e isto deixou a religio e a poltica em um empirismo, no qual, fundamentalmente, a tica est ausente, quanto ao respeito entre as pessoas. Com efeito, se o outro no definido em sua realidade efetiva, no seno um outro eu, pode haver um mais ou menos eu, no um outro em sua prpria realidade. Assim, o Outro pode representar o/ minha grandeza ou perfeio absoluta: Deus, Mestre, logos; pode nomear o menor ou mais desvalido: a criana, o doente, o pobre, o estrangeiro; pode nomear aquele que creio ser meu igual. No h nisto verdadeiramente um outro, mas o mesmo: menor, maior, igual a mim." (Jaime toi, Grasset, 1992 : 103-104) Em lugar da recusa de ser um outro gnero, o outro sexo, o que proponho ser considerada como realmente uma outra irredutvel ao sujeito masculino. Deste ponto de vista, o sub-ttulo do Speculum poderia parecer revoltante a Simone de Beauvoir: De lautre femme. Enviei-lhe (o livro) poca, com a esperana de obter seu apoio, nas dificuldades que encontrava. Nunca recebi uma resposta sua e no entendi o porqu de seu silncio, seno recentemente. Devo t-la ofendido sem querer. Eu havia lido a "Introduo" do Segundo Sexo muito antes de escrever o Speculum e no me recordava da importncia da problemtica do outro na obra de Simone de Beauvoir. No deve ter entendido, por sua vez, que para mim no era aceitvel que meu sexo ou meu gnero seja "segundo", mas que os sexos ou os gneros sejam dois, sem primeiro ou segundo. Eu prosseguia, a meu modo e na ignorncia de seus trabalhos, uma Pgina 3 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html problemtica prxima das promotoras americanas do neo-feminismo, do feminismo da diferena, mais prximo da revoluo cultural de Maio 68, que do feminismo igualitrio de Simone de Beauvoir. Para lembrar a questo em algumas palavras: a explorao da mulher tem lugar na diferena entre os gneros e ela deve assim se resolver nesta diferena, e no pela abolio desta. No Speculum, o que interpreto e critico como o sujeito filosfico, historicamente masculino, reduziu o outro em uma relao com ele complemento, projeo, inverso, instrumento, natureza... no interior de seu mundo, de seu horizonte. Tanto em relao ao texto de Freud quanto a partir dos sistemas filosficos marcantes nossa tradio, mostro como o outro sempre o mesmo, e no um outro real. Assim, as crticas que fao a Freud esto contidas na mesma interpretao: vocs no vm a sexualidade, e geralmente a identidade da menina, da adolescente, seno em funo da sexualidade e da identidade do menino, do adolescente, do homem. Por exemplo, segundo esta tradio, o auto-erotismo da menina existiria durante o tempo em que ela confunde seu clitris com um pequeno pnis, ou seja, ela tem o mesmo sexo que o menino. Quando, atravs de sua me, descobre que a mulher no tem o sexo do homem, a menina renuncia ao valor de sua identidade feminina voltando-se para o pai, para o homem, para assim obter um pnis por procurao. Toda sua energia seria concentrada nesta conquista do sexo masculino. Mesmo a concepo e a gerao de uma criana teriam como objetivo a apropriao do pnis ou do falo, e , nesta perspectiva, a criana-menino seria prefervel criana-menina. Um casamento, alis, no poderia ter sucesso, a mulher no se tornaria uma boa esposa, seno depois de dar a seu marido um beb do sexo masculino. Hoje, uma tal descrio provocar sorrisos em algumas ou alguns. H alguns anos, cerca de vinte, porm, foi ela que sublinhou o alucinante machismo de nossa cultura, da qual se ria, excluindo-a do ensino universitrio. As coisas,alis, no so assim to claras quanto podem parecer. Certamente um pouco de luz se fez, mas, se a teoria freudiana machista, ela o pela reproduo da ordem scio-cultural existente: Freud, neste sentido, no inventou o machismo, ele o constatou. No que ele se engana como Simone de Beauvoir sobre os meios de resolver a questo: como ela, Freud no reconhece o outro enquanto outro de um modo diferente, ambos prope o homem como modelo subjetivo nico ao qual a mulher deve se igualar. Homem e mulher, por meio de estratgias um pouco diversas, segundo um ou outro, devem, portanto, tornar-se semelhantes. Este ideal est alinhado ao da filosofia tradicional, que prega um modelo nico de subjetividade, historicamente Pgina 4 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html masculino. Na melhor das hipteses, este modelo nico se acomodaria em um jogo de balano entre o um e o mltiplo, mas o um permanece o modelo que comanda, mais ou menos abertamente, a hierarquia dos mltiplos: o singular nico e/mas ideal, "o Homem". A singularidade concreta no seno uma cpia, uma imagem. A viso platnica do mundo, seu conceito de verdade , de uma certa forma, invertida em relao realidade emprica quotidiana: vocs se vem como uma realidade singular, mas so apenas cpias, mais ou menos boas, de uma idia perfeita, situada exteriormente. A tambm, antes de rir cedo demais, preciso interrogar a pertinncia ainda atual de uma tal concepo do mundo: somos fruto da carne, mas tambm da palavra; natureza, mas tambm cultura. Ora, ser frutos da cultura significa, igualmente, ser frutos da idia, encarnao mais ou menos conforme ao modelo ideal. Muitas vezes, para dele nos aproximarmos, imitamos, copiamos como crianas o que percebemos como ideal. Todo estes modos de ser ou de fazer so platnicos, segundo uma idia masculina da verdade. Mesmo na inverso que representa o privilgio do mltiplo sobre o um, inverso atual principalmente em nome da democracia, mesmo no privilgio do outro sobre o sujeito, do tu em relao ao eu (penso, por exemplo,em algumas obras de Buber ou emuma parte da obra de Lvinas, em que estes privilgios so mais morais e teolgicos, talvez, que filosficos), permanecemos no modelo velado do um e do mltiplo, do um e do mesmo, para o um sujeito nico determina um sentido em detrimento de outro. Da mesma forma, privilegiar a singularidade concreta em relao singularidade ideal no suficiente para questionar o privilgio de um universal vlido para todos e todas. Com efeito, cada singularidade concreta no pode prescrever um ideal vlido para todas e para todos, pois, para assegurar a coabitao entre os sujeitos, notadamentena cidade, um mnimo de universalidade necessrio. Para sair do modelo todo-poderoso do um e do mltiplo, preciso passar ao dois, um dois que no seja duas vezes o mesmo, nem um grande e um pequeno, mas dois realmente diferentes. O paradigma deste dois se encontra na diferena sexual . Por que a? Porque a existem dois sujeitos que no deveriam se situar em uma relao hierrquica e porque ambos tem como tarefa preservar a espcie humana e desenvolver a cultura no respeito de suas diferenas. Meu primeiro gesto terico foi, assim, de liberar o dois do um, o dois do mltiplo, o outro do mesmo, e de faze-lo horizontalmente, colocando em Pgina 5 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html suspenso a autoridade do Um: do homem, do pai, do chefe, do deus nico, da verdade nica, etc. Tratava-se de dar emergncia ao outro do mesmo, de recusar a idia de ser reduzida a este outro do mesmo, a um outro do um, a um ou uma outra do um , no para ele me tornar ou como ele, mas me constituindo como sujeito autnomo diferente. Evidentemente, este gesto coloca em questo toda nossa tradio terica e prtica, em particular o platonismo, mas sem um tal gesto, no podemos falar de liberao da mulher, nem de comportamento tico em relao ao outro, nem de democracia. Sem tal gesto, a filosofia, ela mesma, corre o risco de terminar, vencida, entre outras coisas, pelo uso da tcnica, que, na constituio do logos, corri a subjetividade do homem; vitria ainda mais fcil e rpida se a mulher no assegura mais o plo natureza, resistente techn masculina. A existncia de dois sujeitos provavelmente a nica coisa que poderia trazer o sujeito masculino a seu ser e isto graas ao acesso da mulher ao seu. Para isto, era, portanto, preciso libertar o sujeito feminino do mundo do homem e admitir este escndalo filosfico: o sujeito no mais um, nem nico . As mediaes necessrias ao sujeito feminino. A este sujeito feminino, ainda mal definido, sem contornos nem bordas, sem normas nem mediaes, seria necessrio, em seguida e ao mesmo tempo, dar-lhe alguns pontos de referncia para subsistir e assegurar seu futuro. Aps a fase crtica de meu trabalho, endereado a uma filosofia e uma cultura monosubjetivas, monosexuadas, patriarcais e falocrticas tentei definir as particularidades do sujeito feminino, necessrias a sua afirmao como tal, sob pena de recair na indiferenciao, assujeitamento ao sujeito nico. Uma das dimenses importantes desta preocupao quanto ao futuro do sujeito feminino e, portanto, do meu, era de sair de um poder genealgico nico, de afirmar: nasci de uma mulher e de um homem e a autoridade genealgica pertence ao homem e mulher. Era preciso, ento, tirar do esquecimento as genealogias femininas, no para encobrir pura e simplesmente a existncia do pai, em uma espcie de inverso cara aos ltimos sistemas filosficos, mas para retornar realidade do dois. Mas bem verdade que preciso tempo para reencontrar e restabelecer este dois, e isto, no pode ser a obra de uma s. Alm dos reencontros e reconciliaes com a genealogia, as genealogias femininas ainda longe de ser completadas , seria preciso dotar a Pgina 6 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html mulher, as mulheres, de uma linguagem, de imagens, de representaes que lhes conviesse: em nvel cultural, em nvel mesmo religioso, Deus permanecendo um grande parceiro do sujeito filosfico. Comecei a faz-lo, no Speculum e Ce sexe qui nen est pas un, e continuei, principalmente, em Sexes et parents, Les temps de la diffrence e Je, tu, nous. Neles, trato das particularidades do mundo feminino, mundo diferente daquele do homem, em sua relao com a linguagem, o corpo (idade, sade, beleza e claro, a maternidade), em sua relao com trabalho, a natureza e o mundo da cultura. Dois exemplos: tento mostrar que o desenrolar da vida diferente para a mulher e para o homem, pois constituda, para aquela, por etapas corporais, muito mais marcadas: puberdade, deflorao, maternidade, menopausa- e pedindo um futuro subjetivo mais complexo que o do homem. Quanto ao trabalho, mostrei que a justia econmico-social no consiste somente na aplicao da regra: trabalho igual/salrio igual, mas tambm no respeito e valorizao da mulher na escolha de suas prioridades e das maneiras de produzir, das qualificaes profissionais, das relaes no lugar de trabalho, no reconhecimento do trabalho, etc. Nesses trabalhos, comecei igualmente a falar da necessidade de direitos especficos para as mulheres. A liberao das mulheres no pode progredir sem passar por esta etapa, tanto em nvel de reconhecimento social, quanto o do crescimento individual e das relaes comunitrias, entre as prprias mulheres e entre mulheres e homens. Um grande interesse e uma certa desconfiana seguiram estas propostas jurdicas: um interesse da parte das mulheres, no especialistas nem feministas, que percebiam a importncia da questo, um interesse tambm da parte das feministas de certos pases que se preocupavam h muito com a mediao necessria do direito para a liberao humana, em particular a das mulheres. A resistncia veio de duas correntes de mulheres. As mulheres igualitaristas no compreendiam a necessidade de direitos positivos para as mulheres; estavam de acordo para a obteno de direitos iguais aos dos homens, estavam prontas a lutar contra as discriminaes, mas no estavam atentas ao fato que as mulheres so levadas a fazer escolhas especficas em relao aos homens, e que estas escolhas no podem permanecer individuais nem privadas, mas precisam ser garantidas pela lei: a escolha livre da maternidade, a escolha dos ritmos de trabalho, a escolha da sexualidade, a escolha de quem ter a guarda das crianas menores em caso de divrcio ou de separao, j no quadro dos casamentos multiculturais, nos quais o direito Pgina 7 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html positivo para as mulheres no lhes permite passar da naturalidade civilidade: a maioria dentre elas continuam a ser corpos-natureza, submetidos ao Estado, Igreja, ao pai, ao marido, sem ter acesso ao status de pessoas civis responsveis por elas mesmas e pela comunidade. Esta necessidade de direitos civis, prprias mulheres, contestada igualmente por mulheres mais sensveis uma cultura poltica da diferena, mas que temem a lei como uma servido ao Estado. Ora, direitos civis relativos s pessoas representam, ao contrrio, uma garantia para os cidados de poder se opor ao poder do Estado como tal; mantm uma tenso entre os indivduos e o Estado, podendo mesmo assegurar a passagem de uma sociedade estatal a uma sociedade civil, cujo carter seria sustentado pelos direitos individuais das pessoas. Eu no posso seno desejar que as mulheres compreendam e promovam esta questo do direito das pessoas, j que estes direitos lhes so necessrios para proteger e afirmar sua identidade prpria, e porque elas esto mais preparadas, enquanto sujeitos femininos, a se interessar pelos direitos relativos das pessoas e s relaes entre elas, mais do que aos direitos relativos aos bens: a posse, a propriedade, o possuir so direitos que compem a maior parte dos cdigos civis masculinos. Tratar-se-ia de completar os cdigos civis e constituies existentes com direitos para as mulheres e direitos definidos segundo seu modo de ser, isto , alm de uma especificidade sexuada, para as/os cidad/os enquanto pessoas. O outro: o homem Esta singularidade do carter feminino leva-me tambm a voltar-me para a questo do outro na ltima parte deste texto. Enquanto sujeito autnomo, a mulher se encontra, desde ento, por sua vez, conduzida a se situar em relao ao outro, e a especificidade de sua identidade faz com que ela privilegie muito mais a dimenso da alteridade em um vir a ser subjetivo. A tradio diz da mulher que ela a guardi do amor, imps-lhe o dever de amar, e de amar apesar das infelicidades do amor, sem explicar porque deve assegurar uma tal tarefa. Certamente no serei cmplice deste imperativo relativo ao amor, muito menos daquele relativo ao dio, que me parece seu complemento. Vou, em vez disto, comunicar aqui os resultados obtidos por ocasio de pesquisas sobre a maneira de falar das meninas, das adolescentes, das mulheres, e propor uma interpretao a respeito das particularidades da Pgina 8 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html linguagem no feminino (ver a este respeito, J`aime toi) A linguagem mais atenta ao outro a linguagem da menina. Ela se dirige ao outro em minha amostragem, sua me pedindo-lhe seu acordo para uma atividade a ser realizada em conjunto: "Mame, quer jogar comigo?", "Mame, posso te pentear?" Em tais enunciados, a menina respeita sempre a existncia de dois sujeitos, cada um dos dois tendo direito palavra. Alm disto, o que ela prope uma atividade implicando os dois sujeitos. A menina poderia, neste ponto, servir de modelo a todos e a todas, mesmo me que se dirige filha nestes termos: "Arrume suas coisas, se quiser ver televiso", "Traga o leite voltando da escola". A me ordena a sua filha sem respeitar o direito palavra para os dois sujeitos e no prope um fazer juntas, a duas. Curiosamente, a me fala de outra forma ao menino, respeita mais sua identidade: "Voc quer que eu venha te dar um beijo na cama, antes de dormir?" O menino, ele, j se exprime como um pequeno chefe: "Eu quero jogar bola", "Eu queria um carrinho". De uma certa maneira, a me d ao menino o tu que lhe d a menina. Porque este gosto do dilogo de parte da menina? Sem dvida, porque mulher, nascida mulher, com propriedades e qualidades de mulher, entre as quais a de gerar, a menina se encontra, desde seu nascimento, em uma situao de relao possvel dois sujeitos. Isto explicaria tambm seu gosto pelas bonecas sobre as quais derrama sua nostalgia pelo dilogo, nem sempre satisfeito pela me. Mas esta primeira companheira, feminina, de dilogo, a menina vai perd-la na aprendizagem de uma cultura na qual o sujeito ainda e sempre masculino: ele, Ele, eles, quer se trate do gnero lingstico no sentido estrito ou de metforas diversas, supostamente representando a identidade humana e seu futuro. Nem a menina, nem a adolescente renunciam, entretanto, a sua relao com o outro, relao ao objeto. Assim, proposta de fazer uma frase com a preposio com ou o advrbio junto, as adolescentes, as estudantes e uma boa parte das mulheres adultas tendem para enunciados do tipo: "Eu sairei esta noite com ele", "Ns viveremos sempre juntos"; os sujeitos masculinos, diro, por sua vez: "Eu vim com minha moto", "Eu escrevi esta frase com meu lpis", "Eu e minha guitarra nos sentimos bem juntos" . Esta diferena entre os enunciados dos sujeitos do gnero feminino e os do gnero masculino se exprime, de uma maneira ou de outra, na maior Pgina 9 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html parte das respostas obtidas a uma srie de questes, servindo para definir as particularidades sexuadas da linguagem (a pesquisa prosseguiu em diferentes lnguas e culturas, em particular romanas e anglo-saxs). alternativa da escolha masculina da relao sujeito-objeto com a escolha feminina da relao sujeito-sujeito, se apem outras caractersticas: as mulheres privilegiam o presente ou o futuro, a contigidade, o meio-ambiente concreto, as relaes na diferena, o ser com, o ser (a) dois; os homens, por sua vez, privilegiam o passado, o metafrico, a transposio abstrata, as relaes entre semelhantes, mas atravs de uma relao com o objeto, as relaes entre o um e o mltiplo. Configuraes subjetivas e mundos diversos correspondem, portanto, mulher e ao homem. E no se trata somente de determinaes scio- histricas, nem de alienao do feminino, que seria necessrio reduzir graas a uma igualdade com o masculino. A linguagem das mulheres testemunha algumas alienaes ou inrcias, com certeza, mas manifesta tambm uma riqueza prpria que no tem nada a invejar linguagem dos homens, principalmente pelo gosto da intersubjetividade, que seria uma pena abandonar em favor de uma relao sujeito-objeto, dificilmente transposta pelo homem. Como, ento, levar o sujeito feminino e antes de tudo, eu mesma a cultivar a partilha com o outro sem alienao? O gesto a ser feito corresponde ao gesto efetuado na poca do Speculum: considerar o respeito ao outro enquanto outro. Certamente tenho, temos, enquanto mulheres, a nostalgia do dilogo e da relao, mas teramos chegado ao ponto de reconhecer o outro como outro e nos dirigirmos a ele ou a ela enquanto tal? Ainda no, no na verdade. Com efeito, as palavras das adolescentes e das mulheres so testemunho de uma inclinao para a relao a outrem, mas igualmente do desejo de uma relao eu-voc, que nem sempre leva em conta quem este voc, e que desejo o seu (dela/dele). Assim o sujeito feminino privilegia a relao com o outro gnero, o que no faz o sujeito masculino. Esta prioridade do masculino, como companheiro de dilogo, testemunha, por um lado, da alienao cultural, mas manifesta igualmente diversas particularidades do sujeito feminino. A mulher conhece mais o outro gnero que o homem: ela o engendra nela mesma, ela o bera desde seu nascimento, ela o nutre com seu corpo, ela o vivencia nela, no amor. Sua relao com a transcendncia do outro , desde ento, diferente da vivida pelo homem, para quem ela est sempre fora, sempre marcada pelo mistrio e a ambivalncia quanto origem, materna ou paterna. A mulher tem uma Pgina 10 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html relao com o homem mais ligada a uma partilha carnal, a uma experincia sensvel, a um vivido imanente, inclusive o da gerao. A alteridade do outro, ela a ressente, sem dvida, na estranheza de seu comportamento, na resistncia que ope a seus sonhos e a suas vontades, mas esta transcendncia, ela deve constru-la na horizontalidade, em uma partilha de vida que respeita absolutamente o outro como outro, alm de todas as intuies, sensaes experincias, conhecimentos que pode ter. Seu gosto pelo dilogo tem o risco de levar a uma reduo do outro como outro, se ela no constri a transcendncia do outro como tal, em sua irredutibilidade a ela: por fuso, contigidade, empatia, mimetismo. Esta construo da transcendncia do outro tentei indicar em Jaime toi e Essere due (primeira edio em lngua italiana, Bollati Boringhieri, 1994).Mostrei que a operao do negativo, que habitualmente se exerce para passar a um grau superior do tornar-se si mesmo, em um movimento dialtico entre si e si, deveria se exercer entre dois sujeitos para impedir a reduo do dois em um, do outro ao mesmo. Com certeza, trata-se ainda de um negativo aplicado a mim mesma, em meu vir a ser subjetivo, mas para marcar a irredutibilidade entre o outro e eu e no para re-absorver a exterioridade em mim. Neste gesto, o sujeito renuncia a ser um e nico. Respeita o outro, o dois, em uma relao intersubjetiva. Este gesto , antes de tudo, para ser feito na relao entre os gneros, pois a alteridade a real e ela permite rearticular natureza e cultura, em uma relao mais verdadeira e mais tica, sobrepujando assim a falta essencial de nosso vir a ser espiritual, denunciada por Hegel, a respeito da excluso e da morte de Antgona. (Hegel, cap.VI, Phnomnologie de lesprit). Esta passagem histrica do sujeito um e nico existncia de dois sujeitos de valor e dignidade iguais parece-me uma tarefa apropriada s mulheres, em nvel filosfico e poltico. As mulheres, como j assinalei, so mais destinadas a uma relao a dois, e em particular relao ao outro. Do fato dessa propriedade de sua subjetividade, podem abrir o horizonte do um, do semelhante, e mesmo do mltiplo, para se afirmar como um sujeito outro, e impor um dois que no seja um segundo. Realizar sua liberao implica, por outro lado, que reconheam o outro como outro, sob pena de retomar o crculo de um sujeito nico. Reconhecer o homem como outro representa assim uma tarefa tica a sua medida, certamente, mas igualmente uma indispensvel etapa da afirmao de sua autonomia. Alm disto, o uso do negativo para realizar esta tarefa permite-lhes Pgina 11 de 12 A questo do outro 4/3/2004 http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/irigaray1.html passar de identidade natural a identidade cultural e civil, sem negar sua/suas natureza/s graas ao pertencimento a um gnero. Este negativo intervir, a partir disto, em todas as relaes com o outro: em palavras, como "Eu te amo - voc" mas da mesma forma, na percepo pelo olhar ou na escuta, e mesmo no toque. Em Essere Due, tento definir este novo modo de aproximao do outro, inclusive pela carcia. Realizar esta revoluo, da passagem da afirmao de si como outro ao reconhecimento do homem como outro, representa tambm o gesto capaz de sustentar o conhecimento de todas as outras formas de outros, sem hierarquia, privilgio nem autoridade sobre eles: que se trate de raas, idades, culturas, religies. Colocar o dois em lugar do um na diferena sexual significa, portanto, um gesto filosfico e poltico decisivo, aquele que renuncia a ser um no plural para passar a s-lo dois, como fundamento necessrio de uma nova ontologia, de uma nova tica, de uma nova poltica, na qual o outro reconhecido como outro e no como um mesmo: maior, menor, no melhor dos casos, igual a mim. Nota: Esta traduo ainda no foi revista pela autora. Nota biogrfica Luce Irigaray diretora de pesquisa em filosofia no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris. Tem uma formao de lingista, psicloga e psicanalista. Trabalha , terica e politicamente, construo de uma cultura contendo dois sujeitos, um feminino, outro masculino, respeitosos de suas diferenas e capazes de engendrar em conjunto, um mundo mais justo e mais feliz. autora de vrios livros, entre os quais: Speculum de lautre femme, Ce sexe qui nen est pas un, Parler nest jamais neutre.
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