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O CASAMENTO DE HESTER
Hester Warings Marriage
Paula Marshall 2001 Clssicos Histricos 201 Protagonistas: Tom Dillorne & Hester Waring Local: Sdnei. Perodo: 1812 PRLOGO Case-se com uma dama, pensou Tom. Bem, Hester Waring uma dama, embora no v muito longe, se cair na mais profunda misria. Porm, dama alguma de primeira viagem iria querer se casar comigo. Ela sensvel, esperta tambm, a julgar pelo jeito engenhoso com o qual me responde quando a provoco. Quando a entrevistei, julguei que tinha capacidade. Sim, ela dar uma excelente dona de casa, e uma esposa que saberia para que serve cada coisa, o garfo certo a usar, o que dizer e fazer. E uma idia! Porm, pensar em ir para cama com qualquer homem, especialmente comigo, faria com que sasse em disparada como uma lebre. Quase virou e fugiu quando me viu hoje, embora mostrasse um ar corajoso. Aquele seu pai tenebroso deve ter lhe enchido a cabea de bobagens. A julgar pela maneira como se comporta, fca apavorada diante de qualquer homem que encontre pela frente. Um lento sorriso apareceu em seus lbios. Bem, pensou Tom, conheo um truque ou dois, e um deles pode muito bem arrastar Hester Waring para um lugar que ela nunca imaginou! CAPTULO I Sdnei, Nova Gales do Sul, 1812 Uma coisa certa - disse Tom Dilhorne, com um sorriso divertido. - Se eu propuser que Hester Waring seja a nova professora do jardim de infncia da Escola Governador Macquarie, ningum ir me acusar de ter fns escusos em mente. Voc a viu ultimamente? Mais parece um ratinho estropiado. Uma alma penada. Oh, todos conhecem seu gosto por louras exuberantes disse o dr. Alan Kerr , e Hester Waring est longe de ser assim. Haviam acabado de jantar, como faziam habitualmente todo fm de semana, na esplndida manso dos Kerrs, com vista para o porto. O problema ele continuou que, embora ela seja a nica candidata, ningum no Conselho realmente deseja indic-la. Ningum, a no ser voc retrucou Sarah, estendendo a ele o mais novo cidado de Sidnei, John Kerr Junior, para que o segurasse. Verdade murmurou Tom, tomando o pequeno menino no colo, com cuidado para no amassar seu belo casaco. Finalmente, Tom Dilhorne fora aceito no rol das pessoas respeitveis. No mais usava as roupas rsticas de um emancipista, como eram chamados os ex- condenados degredados da Inglaterra, que tinham vindo povoar a nova colnia e que tinham sido muito teis, naquele tempo. Homens e mulheres livres que haviam aportado em Nova Gales do Sul, ofciais do governo, soldados, mari- nheiros ou outros emigrantes voluntrios que habitavam a mais nova possesso inglesa, eram usualmente chamados de exclusivos. Os exclusivos desprezavam e ignoravam os emancipistas e no os reconheciam corno parte da sociedade. O governador Macquarie vinha desenvolvendo esforos para demov-los de tais preconceitos e trazer os emancipistas para a vida ofcial da colnia. Tom podia ser o homem mais rico de Sidnei, mas permanecia margem do convvio social, como um pria, a despeito de Macquarie t-lo indicado para o Conselho da Escola. A diviso entre os dois grupos era profunda. Verdade fosse dita, o sucesso de Tom s fzera aumentar essa barreira. O assunto Hester Waring continuou a dominar a conversao. Ela realmente precisa do emprego disse Sarah, aps um instante de refexo. O pai, Fred, embora fosse um dos mais destacados exclusivos em razo de sua origem nobre, vivia jogando e se afundou na bebida at chegar ao fundo do poo e morrer. No deixou nada para a flha, voc sabia? Nada, a no ser dividas retrucou Tom, com secura, pegando o leno imaculado e limpando o leite que o aflhado regurgitara sobre ele, com um suspiro de desgosto que provocou risos nos Kerrs. Oh, podem rir disse, tambm sorrindo , mas um homem talentoso deve ser capaz de sair-se bem de qualquer situao.. mesmo que tenha em suas mos um beb vazando emendou depressa. O pequeno John acabara de demarcar seu territrio, urinando na cala nova de Tom. Seguiu-se um rebulio, e Hester foi temporariamente esquecida. Somente depois de Sarah ter levado John para a cama, a conversa continuou. E, desta vez, o assunto derivou para um tema que, poucos anos atrs seria impossvel de se abordar. Tom havia acabado de limpar a cala molhada. Em um tom cnico, comentou: Uma das vantagens de minhas antigas roupas de bandido era no haver motivos para lamentar os pecados que fossem cometidos com elas. Ou sobre elas. Pena, pois voc estava muito elegante, hoje disse Alan. Estou praticando. Para qu? Agora que o governador me colocou no Conselho da Escola - disse Tom, pegando a taa de vinho que o amigo lhe oferecia - , est pensando em fazer de mim um magistrado. Voc tambm - acrescentou. - Ele me pediu para que lhe falasse a respeito. Oh, que maravilha! exclamou Sarah. Voc ser o primeiro emancipista a fazer parte da Justia de Sdnei. A que est o problema. Existem aqueles que pensam que ex- condenados, como AIan e eu, no tm o direito de estar no Tribunal. Bem, se o governador quer que sejamos juizes, certamente o seremos, a longo prazo, se no puder ser em breve. Referia-se ao fato de que os poderes do governador eram praticamente ilimitados, em razo da distncia entre a Inglaterra e o governo. Na verdade, seus decretos poderiam ser revogados, mas somente depois de transcorridos meses. E cedo ainda para isso retrucou Tom. Tenho muito a fazer no Conselho da Escola. Deixe que eu me saia bem por l e ento passarei ao prximo desafo. Melhor que seja a longo prazo. Fred Waring deve estar se revirando no tmulo com a idia de voc se tornar um magistrado! exclamou Sarah, caindo na gargalhada. Tem razo, e isso me faz lembrar de sua flha, de novo: Confo em voc, Sarah. Quero que me diga que qualidades eu deveria buscar em uma professora. Pacincia disse Sarah, com um sorriso. A habilidade de ensinar o ABC, desenhar coisas simples, e passar a eles um pouco de Histria, que lhes mostre a velha Inglaterra. E, eu. tambm acho. Se ela tiver condies de fazer isso, ento poderia ser a preceptora, isso se o Conselho for justo e lhe der ao menos uma chance. O problema que Fred fez muitos inimigos. No culpa dela, pobre garota disseram, ao mesmo tempo, Alan e Sarah. A moa, com certeza, precisa desesperadamente de dinheiro acrescentou Sarah. Por que eles no a querem, excluindo o problema com Fred? Acham que tem um ar estranho e muito retrada. E no forte o sufciente para o posto. No quero condenar a pobre criatura sem mais nem menos, a despeito de Fred no gostar de mim. No gostar? Odiar seria a palavra correta, pensou Alan. Tom ps-se a caminhar de um lado para o outro, falando como se pensasse alto. Robert Jardine me disse, em confdncia, que ela est bem pior do que parece, bem abaixo da linha de uma pobreza aceitvel. Que mal pode pagar por uma refeio decente e orgulhosa como o demnio, embora esteja vivendo no limite da Inanio e da penria. Fred no lhe deixou nem um centavo sequer. A coisa feia assim? Os Kerr se entreolharam. Ento, voc pretende se assegurar de que eles a indiquem para o emprego, isso? Tom concordou. E, no pela primeira vez, um pensamento cruzou o pensamento de Alan. Seu amigo era uma criatura enganadora. A despeito de sua aparncia terna, quase bonita, com seus cabelos de um louro cor de areia e seus brilhantes olhos azuis, Tom era um dos mais perigosos homens que Alan j conhecera. E certamente o mais esperto e o mais maquiavlico. H um outro problema, Tom. Acho que a srta. Waring fcar com medo quando souber que voc faz parte do Conselho. Certamente que no! exclamou Tom, sua intuio o abandonando por um instante. Nunca guardava rancores. No pagava a pena. E Fred no passara de um provocador. Temo que Fred tenha repetido inmeras vezes a Hester que demnio voc , Tom disse Sarah. Voc sabe os conceitos exagerados que ele tinha de si mesmo e, realmente, nascem de uma boa famlia. Pobre Hester! Foi educada como uma dama, ainda que, com a runa de Fred, no tivesse dinheiro para sustentar tal papel. Espero realmente que voc possa ajud-la. Oh, sim, porm pode ser difcil. Depende um pouco de Hester tambm, voc sabe. difcil querer fazer as coisas certas para aqueles que no querem ou no podem ajudar a si prprios. Contudo, no gosto de pensar na garota morrendo de fome. E assim era de fato. Todos os trs, depois de comerem bem, rodeados de conforto, para no dizer de luxo, sentiam uma pontada de culpa em pensar na pobre Hester Waring, beira da inanio. Com a esperana de que Tom pudesse fazer algo por ela antes que isso acontecesse, o que parecia inevitvel, passaram a outro assunto. Chegou o domingo seguinte, o nico dia da semana em que Sidnei repousava em sossego. O sol de meados de outubro j comeava a trazer o calor do vero. De uni dos lados da cidade fcava o mar sem fm. Por ali tinham chegado todos os habitantes de origem britnica dessa ilha-continente, quer por livre vontade ou no. Do outro lado, quilmetros de vegetao, at onde a vista podia alcanar, a maior parte jamais cruzada ou explorada pelos brancos. Selvagem e inspita, continuava ainda a ser o lar dos aborgines, daqueles no haviam tro- cado o interior do pais para vir a Sidnei e viver nus nas ruas, a mendigar na terra que uma vez fora sua. Estes eram olhados apenas como objetos de passageiro interesse, tanto quanto os animais selvagens, cangurus e outros marsupiais estranhos que vagavam pela cidade. Erguer os olhos era ver as Montanhas Azuis, indistintas a distncia, separando a colnia do resto do vasto continente. Dizia a lenda que a liberdade e a China fcavam alm delas. Quanto China, ningum realmente tinha dvidas. Porm, com respeito liberdade, nenhum daqueles que escapara de Sidnei em direo montanha havia retornado para contar se a liberdade, ou qualquer outra coisa de valor, podia ser encontrada alm dos macios. Hester Waring entrou na Igreja de So Felipe, para assistir aos ofcios religiosos da manh. Essa era uma das poucas vezes em que voltava a se reunir sociedade da qual um dia fzera parte. Durante a missa, conseguia esquecer, por algum tempo, sua infeliz situao e a fome que a martirizava permanentemente. Hoje, iria oferecer a Deus, ou qualquer mie fosse o poder que regulava este mundo cruel, uma pequena prece para que a carta que enviara a Robert Jardine, secretrio da escola e de meia dzia de outros Conselhos, pudesse trazer a ela algum alivio a seu sofrimento. Ela o encontrara na rua York no dia anterior. Ele fora gentil, embora naquele seu jeito empertigado e formal, e lhe havia dado uma pequena esperana. Pequena, muito pequena. Mesmo assim, Hester se agarrara a ela com todas as suas foras, tentando no demonstrar quanto dependia disso. E se afastara, de cabea erguida, ainda que seu estmago roncasse de vazio. Jardine no se deixara enganar pela atitude corajosa, ainda que pattica, da moa. Era dolorosamente bvio a penria de Hester. Havia tentado infuenciar Godfrey Burrell em seu favor, mas no ousara pression-lo. Godfrey poderia simplesmente escapulir na direo oposta e mandar a garota para os diabos, defnitivamente. Tambm informara a Hester que Tom Dilhorne seria um dos membros do Conselho a entrevist-la. Jardine no partilhava do ponto de vista de Fred Waring sobre Dilhorne e, para tranqiliza-la, dissera que Tom, diferentemente dos outros, havia perdoado as dividas de Fred, quando este morrera, ao invs de cobr-la da flha, que no tinha um vintm. Hester o ftara friamente. Homem detestvel, esse havia dito. Fez tudo a seu alcance para ferir meu pai. Papai me contou que ningum estava a salvo de suas maquinaes, fosse homem, fosse mulher. Jardine havia dado de ombros, antes de se afastar. No havia porque contar a ela que estava errada quanto ao comportamento de Dilhorne com relao a seu pai ou quanto a mulheres. Ela no iria mesmo acreditar. Restava confar que, para seu prprio bem, ela no arruinasse sua apresentao ante o Conselho. Hester deixou a igreja, alimentando a esperana de que sua prece seria atendida. L fora, sob a luz brilhante do sol, caminhou silenciosa entre os fis que tagarelavam, cumprimentando-os ligeiramente. Percebeu os olhares estranhos que lhe dirigiam, pareciam surpresos que ela ainda estivesse viva. Ao chegar ao porto da igreja, Lucy Wright, amiga de longa data, aproximou-se. Ol, Hesterl aclamou. Senti sua falta no domingo passado. Voc est bem? No me parece ela emendou, em tom de dvida. Hester resistiu tentao de dizer, honesta e cruamente, que no sentia bem e que qualquer idiota poderia perceber isso. Ao invs disso, retrucou com suavidade: Tive uma febre na semana passada que me impediu de comparecer igreja. Oh, sinto muito, Hester Est praticamente recuperada agora, no ? A aparncia de Lucy era esplndida, e suas roupas elegantes contribuam para que Hester se sentisse ainda mais envergonhada e deprimida. Sim, praticamente respondeu, no se permitindo talar de sua indisposio ou de suas condies de penria. Tinha certeza de que Lucy, muito embora sua gentileza, no queria realmente ouvir nenhuma daquelas coisas bvias. Tambm tinha plena conscincia de que o marido de Lucy, o tenente Frank Wright, tirava o relgio do bolso do colete, olhando as horas ostensivamente, como a dizer esposa que ela j falara tempo bastante com a amiga. Bem, no seria ela, Hester, quem iria dar ateno a Frank. Lucy raramente o fazia, sempre com suas maneiras extrovertidas, segura da admirao do marido, mesmo quando ocasionalmente o exasperava. Como est o beb, Lucy? perguntou. Espero que esteja com sade. Seu interesse era genuno. Adorava crianas. A ateno de Lucy, sempre inclinada a se dispersar, voltou-se para ela. Seu rosto se iluminou. Comeou a falar com excitao dos encantos da menina, de como estava avanada para a idade, nunca houvera um beb como aquele. Ao mesmo tempo, evitava olhar de frente para Mester. Quanto mais a examinava, pior ela lhe parecia. Por qu, em nome dos cus, ela estava usando aquele vestido preto fora de moda, que parecia ter sido feito, e de forma bastante amadora, de uma das roupas velhas da fnada sra. Waring? Com certeza Hester possua coisa mais adequada para comparecer igreja! J era ruim que ela houvesse se esquivado do convvio da sociedade desde a morte de seu pai. Um casamento razovel era tudo o que Hester precisava, mas quem fria querer desposar um tal espantalho? Lucy pensou em dar alguns conselhos amiga, como comprar um vestido melhor, por exemplo, ou um chapu mais conveniente mas decidiu fcar calada. Quase podia sentir a impacincia de Frank s pelo fato de estar conversando com Hester. O marido no era um homem sem corao, mas no aprovava a amizade da esposa com a flha do falecido Fred Waring, que no tinha nem aparncia, presena, nem mesmo dinheiro para recomenda-la. Ao lado de Frank, o capito Jack Cameron, que havia comparecido igreja apenas por dever para com seus homens do 73 Regimento, tambm comeava a fcar impaciente. Certamente tinha coisas melhores a fazer do que fcar em p, esperando, enquanto Lucy Wright perdia tempo com Hester Waring. A moa, mesmo com a escassez de mulheres casadoiras na colnia, no tinha quaisquer atrativos aos olhos de Jack, ou aos de qualquer outro homem. A pacincia de Frank fnalmente esgotou-se, logo quando Lucy estava a ponto de convidar Hester para o almoo. Aproximou-se e tomou a esposa pelo brao. Venha, minha querida disse. O almoo vai esfriar, e Jack e eu temos um compromisso esta tarde. Vai nos desculpar, srta. Waring, tenho certeza. O lhar que dirigiu moa foi de uma indiferena to gritante, que ela baixou timidamente os olhos, evitando encar-lo. A Mester restou um nico consolo. Felizmente o capito Parker, subordinado de Frank, no estava ali para v-la na presente condio afitiva. Tinha um interesse pelo rapaz desde muito tempo. Estendeu a mo para tocar Lucy por um momento antes de se afastar. Sentia-se grata at mesmo por poder esboar esse simples gesto, pobre contato com a vida que uma vez havia conhecido. Por nada no mundo falaria amiga de suas verdadeiras condies, de como precisava urgentemente de uma boa refeio, de como estava desesperada por companhia. Em sua pobreza, aforara em seu ntimo um forte senso de orgulho que, em tempos mais felizes, no sabia que possua. Beije o beb por mim disse, em sua voz baixa e educada, que no espelhava seus reais sentimentos Preciso ir, meu almoo tambm est esfriando. Que mentira! Deixar que Lucy soubesse a verdade que a esperava era impossvel. Mentir era inevitvel. Uma dolorosa emoo de abandono a tomou, ao ver Lucy e Frank se afastarem. E se tornou ainda mais aguda quando ouviu, trazido pela brisa leve da primavera, o comentrio rude de Jack Cameron, ao se juntar a eles: Pensei que no iriam conseguir se livrar daquela cria horrorosa do Fred Waring. Ah-ah-ah! Cria horrorosa do Fred Waring! As orelhas de Hester fcaram em brasas. Seu orgulho, contudo, impediu-a de deixar as lgrimas rolarem. Melhor fcar sozinha do que exposta a tais insultos. Apressou o passo, disposta a afastar-se de todos. Tomou a direo oposta a sua residncia como se assim pudesse evitar a piedade e o menosprezo das pessoas. A casa da sra. Cooke, onde Hester morava, era uma construo de tijolos de dois andares, em um beco que saia da rua da Ponte. Seu pai havia alugado o andar superior da ara. Cooke, viva de um ofcial do exrcito que havia preferido permanecer na Nova Gales do Sul em vez de retomar Inglaterra. Assoberbada de dvidas aps a morte do pai, Hester havia pedido para ocupar apenas um quarto e preparar as prprias refeies. Tinha pouqussimo dinheiro vivo, a maior parte conseguida com a venda das ltimas Jias da me que haviam escapado dos dedos vidos de Fred Waring. Ele pusera fora tudo que possua para continuar bebendo e jogando, na v esperana de recuperar a fortuna perdida. Hester continuou a pensar no pai enquanto subia os degraus da varanda. Abriu a porta da frente e sentiu no ambiente o cheiro gostoso de comida. Sua boca encheu-se de gua que ela tentou conter, em vo. Oh, a est voc, srta. Waring disse a sra. Cooke, saindo de sua pequena cozinha. Pensei mesmo t-la ouvido. Havia muita gente na igreja, hoje? Sim retrucou Hester, tirando o chapu. A sra. Wright estava l. Disse que seu beb est timo. Encaminhou-se depressa para a escada, esperando que a ara. Cooke no a convidasse para o almoo. Com a fome que a consumia, no teria foras para recusar. Porm no aceitaria a caridade da sra. Cooke. No, nunca! Com um suspiro, a viva observou-a desaparecer rapidamente para dentro do quarto. J havia decidido oferecer a ela um pouco do ensopado. Afnal, Hester parecia extremamente abatida nos ltimos dias. No vinha se alimentando direito. Pena que seus refnados amigos nunca se lembrassem de convid-la para as refeies ou nem mesmo para um simples lanche. Sentada na cama, em seu quarto, Mester fcou a imaginar o que diria a Lucy, se a amiga a houvesse convidado para o almoo. Julgara que, por um instante, Lucy estivera a um passo de faz-lo. Frank, porm, logo havia posto um ponto fna] na inteno. Bem, ela no a convidara. Hester havia aprendido a no perder tempo pensando em possibilidades remotas, principalmente aquelas que estavam fadadas a no acontecer. Sua refeio seria uma fatia de po velho com um pouco de manteiga ranosa que comprara barato. E um bocado de ma. Para beber, gua. Havia terminado de passar a manteiga no po quando a sra. Cooke meteu a cabea no vo da poda. Fiz um pouco de ensopado, hoje, srta. Waring. Fiquei pensando se voc poderia me ajudar a acabar com ele. Oh, que pena... Hester foi to amvel quanto conseguiu, escondendo o po e a ma debaixo de uma toalha velha. Acabei de comer, mas foi multa gentileza sua pensar em mim. Uma outra vez, quem sabe. A sra. Cooke desceu a escada, aborrecida. Julgara que a moa no teria coragem de recusar um convite to tentador. Sabia perfeitamente qual devia ser o almoo de Mester. Uma migalha! Enfm, tinha cumprido seu dever de boa crist. Pena que nada que se fzesse conseguisse agradar a algumas pessoas. Para Hester, entretanto, no havia outra alternativa. O que estava em jogo era mais do que orgulho. Uma vez aceita a oferta caridosa da ara. Cooke, onde isso iria parar? Mester no desejava defrontar-se com ressentimentos amargos, talvez at mesmo receber um ultimato da ara. Cooper para deixar a casa. Se era uma injustia pensar assim, no queria saber e preferia no descobrir. Acabou de comer e estirou-se na cama, cansada at os ossos. Tentou dormir, mas as lembranas do passado vieram assombr-la. Normalmente, tentava esquecer. No gostava de relembrar como e por qu os Warings haviam sido exilados da Inglaterra, at terminarem ali, sozinhos e sem um tosto, perdidos na fronteira do mais recente domnio do. imprio britnico. Seu pai se arruinam na bebida, no jogo e fazendo investimentos insensatos. Tudo se fora: suas terras e a casa que a famlia havia possudo por cerca de trezentos anos. Os parentes conseguiram para ele a oportunidade de iniciar uma nova vida. Despachado para uma colnia penal, distante de tudo que conhecia, seu nico comentrio para a mulher e a flha; o flho, Rowland, havia morrido na Guerra da Pennsula, foi tpico de seu inveterado otimismo. Um novo comeo, minhas queridas, em um novo pas. Ainda faremos fortuna! A dura realidade da Nova Gales do Sul, onde desembarcaram, foi chocante para todos. A sra. Waring morreu prematuramente de desgosto, logo depois de se estabelecerem em Sidnei. Depois que ela se foi, ningum jamais soube do sofrimento de Hester durante os ltimos anos de Fred. Escorregando lentamente para o tmulo, seu pai atirou-se de volta bebida, sua constante companhia, at a morte. Em uma manh, Mester o encontrou ao p da escada, duro e frio, com uma garrafa vazia de usque ainda presa entre seus dedos. O pior, Hester recordou dolorosamente, era que at o ltimo dia, ele ainda conservara o orgulho de sua origem nobre, a despeito de ter perdido tudo. Escrevente do escritrio do governador, por indicao de parentes, fora demitido por incompetncia. Aquele que um dia fora um senhor de terras nutria um ressentimento profundo para com os ricos e bem-sucedidos Emancipistas, que ostentavam a riqueza que ele julgava ser sua por direito. Mais do que todos, Fred odiava Tom Dilhorne, que fzera uma fortuna incalculvel. Um dia, indo a uma reunio de um pequeno clube do qual era scio, surpreendeu-se ao encontrar Tom em meio melhor sociedade. O que aquele bandido est fazendo aqui? perguntou. O presidente, Godfrey Hurrell, do seleto grupo dos exclusivos, empresrio de alguma riqueza, e com o desejo de tomar-se ainda mais rico, desviou o olhar diante do rosto vermelho de raiva de Waring, que estava, como de costume, pouco sbrio. Tom acomodou-se na cadeira e encarou Fred diretamente nos olhos, com um misto de perplexidade e insolncia. O sr. Dilhorne est aqui a convite da comisso disse Burrell, empertigado. um homem de importncia, amigo do governador Macquarie e, como tal, ns o convidamos para fazer parte do clube. Ele, na verdade, deveria ter acrescentado que, naquele clube, todos estavam dispostos a tolerar Dilhorne, na esperana de poderem partilhar de sua fortuna sempre crescente. Afnal, era uma pena desperdiar a oportunidade de lucros. Arrogante e tolo, Fred exclamou: Voc convidou esse... condenado... para fazer parte do clube? Pode me dizer, por favor, por que no fui consultado? Fez-se um silncio desagradvel. No gosto de me sentar com a escria trazida acorrentada para c disse, por fm. Por mais rica que tenha conseguido fcar e por mais que alguns de vocs possam desejar arrancar dinheiro dela. Ou ele sai ou saio eu. Tom afundou-se ainda mais na cadeira. Sempre fora insensvel a insultos. Olhou para Burrell, ento para Fred, e murmurou: No tenho a inteno de sair. A resposta de Burrell foi encarar friamente o pobre Fred. E eu no tenho a inteno de pedir ao sr. Dilhorne que saia e acredito que a comisso tenha a mesma opinio. Ele est aqui a nosso convite. Peo que mude de idia, Waring, e seja educado com ele. De outra forma, voc quem deve sair. Fred tornou-se lvido. Havia se colocado em uma posio para a qual no havia sada. Em seus primeiros anos na colnia, havia se tomado um grande amigo de Burrell e de vrios outros membros do clube. Porm suas bebedeiras, as perdas no jogo, sua incapacidade de quitar as dvidas, associada a sua decadncia fsica e moral e sua desabrida liberdade sexual, haviam feito com que perdesse a maioria dos amigos que um dia conquistara. Eu disse que no me sentaria com Dilhorne retrucou , e pretendo manter minha palavra. Saiu cambaleando da sala, indo terminar o dia no inferninho de madame Phoebe, uma casa noturna de jogos. Mais tarde, fora trazido, bbado at a inconscincia, e jogado na soleira da porta da sra. Cooke. Mester o arrastara penosamente pela escada, limpara-lhe as roupas emporcalhadas e, sabe-se l como, colocara-o na cama. Muito depois, ele lhe contou, em detalhes, como Dilhorne liquidara com ele no clube, assim como nos negcios. Na verdade, havia perdido o cargo de escrevente por causa de sua falta de ateno para com seus deveres, mas escolheu culpar Tom ao invs de atribuir sua demisso prpria incompetncia. Nunca mais entrou no clube: era seu ltimo vnculo com a respeitabilidade. Sua prpria tolice cortara aqueles laos. Alm disso, havia suas dvidas de jogo. Emprestara dinheiro de um amigo, que vendera as promissrias a Tom. Outros dbitos tiveram o mesmo destino. Fred descobriu-se devendo urna considervel soma para o homem que mais detestava no mundo. Mesmo antes de sua discusso com os membros do clube, em confdncias flha, inmeras vezes Fred acusara Tom de ser o autor de sua desgraa. E em linguagem to veemente que Mester estremecera de pavor. Na decadncia que se seguiu, at a runa, culpou-o injustamente por tudo que lhe acontecia. Via-o como o mentor de sua desgraa, e ensinou Mester a tem-lo como ao prprio demnio. Hester levantou-se da cama e olhou pela janela. Suas recordaes sempre lhe traziam mente o pai como o homem em que se tomara na colnia. Difcilmente conseguia relembrar de como ele era, antes de chegar a Sidnei. De uma forma vaga, pareceu recordar-se de um sujeito grande e alegre, carinhoso para com ela, embora sua verdadeira afeio fosse sempre centrada em seu irmo. E sua me? Parecia, de alguma forma, que nunca tivera me, de fato. Assim que haviam chegado a Sdnei, a sra. Waring entrara em um processo de depresso que terminou com sua morte prematura. Para ser justa com a memria da falecida, a cidade na qual haviam desembarcado havia oito anos, depois de unia longa e miservel viagem por mar, era insignifcante. A maior parte das casas era de troncos de madeira. Vir parar ali devia ter parecido me como chegar a um ao inferno, povoado de bandidos, animais estranhos e selvagens, particularmente depois de viver na bela casa de campo, em Kent. Mester havia escrito ao tio, sir John Saville, contando da morte da me e, depois, da do pai. Nunca recebera resposta. Era dolorosamente evidente que sir John havia lavado as mos, esquecendo esse ramo da famlia. Tinha que encarar a realidade. Via-se presa a Sidnei pelo resto da vida. Porm, que tipo de vida? O que iria fazer quando acabassem as mseras moedas que guardava? E se no conseguisse o cargo de professora na nova escola? A vista se lhe turvou. Tudo desapareceu. Mester fechou os olhos, estremecendo diante de tal possibilidade. Se no conseguisse aquele emprego, sabia que havia apenas um destino a sua espera. O mesmo destino miservel das flhas dos menos favorecidos. As ruas, para vender a nica coisa que ainda possua, seu corpo. Quanto algum iria pagar por aquilo? Mester no tinha iluses sobre si mesma. Uma pobre criatura como ela iria arrancar apenas centavos de soldados rasos, que aceitavam qualquer companhia, desde que fosse mulher e disponvel. A menos que madame Phoebe julgasse que poderia fazer alguma coisa e a levasse para seu bordel. No devia pensar no passado. O bom senso dizia que era preciso pensar apenas no presente. Devia sentar-se e planejar o que dizer ao conselho da escola. Tinha de persuadir seus membros para que no dessem ouvidos a Tom Dilhorne. Assim, ele no poderia arruin-la, como havia arruinado a seu pai. Dilhorne! Dilhorne, venha c, seu maldito! Tom Dilhorne caminhava sob o sol quente do meio-dia, pela calada do quartel, a caminho das cocheiras. Ignorou os gritos atrs de si e continuou andando. O homem que o chamava era Jack Cameron, o mesmo que recentemente atormentara Mester com seus comentrios mordazes. Fazia parte de um grupo de ofciais do 73 Regimento, guarnio que fazia a proteo de Sdnei e dos distritos da redondeza, na Nova Gales do Sul. O ofcial adiantou-se e pegou Tom pelo ombro, tentando faz-lo voltar-se. Tarefa difcil, pois era mais baixo e mais magro que Tom, um dos homens mais robustos da colnia. Dilhorne. No pode responder quando um cavalheiro fala com voc? Um cavalheiro, no me diga! Ento, isso que voc ? resmungou Tom, livrando-se da mo que o segurava e baixando a cabea para encarar, Jack do alto de sua estatura. Sua mal disfarada insolncia no passou despercebida a .Jack, que no entendera as palavras exatas de Tom, mas captara seu sentido. Sua fsionomia fechada enfureceu-se ainda mais. Nenhum maldito ex-condenado iria falar com ele assim. Maldito seja, seu condenado! Se j no fosse sufcientemente ruim ser mandado para os confns da terra, ainda temos que agentar a insolncia dos velhacos que somos obrigados a proteger! Disfaradamente, esquadrinhou Tom de alto a baixo, notando-lhe as roupas caras e elegantes e acrescentou: Mesmo querendo macaquear os ricos, Dilhorne, voc ainda se parece com a escria qual realmente pertence! O semblante de Tom continuou impassvel diante daqueles insultos. Voc queria falar comigo? perguntou, com uma voz pausada. Conseguia, sem nem sequer tentar, parecer vagamente ameaador. Jack disse, com rudeza: Disseram-me que voc tem um cavalo para vender. Quanto quer por ele? E no tente me enganar, veja l. Nem sonhe com isso murmurou Tom, os brilhantes olhos azuis fxou nos olhos negros de Jack. Que eu tinha, certo. Apenas, no tenho mais. Com um ar quase distrado, limpou o ombro de seu elegante casaco azul escuro, por onde Jack o seguram. Porm, a insinuao de perigo que o rodeava como uma aura estava em cada gesto, em tudo que ele fazia. Era mentira, e o ofcial sabia disso. Tom tinha um cavalo para vender, mas no momento em que Jack o interpelara a respeito, resolvera retir-lo do mercado. Conhecia a reputao de Jack com a relao a ces, cavalos e mulheres. No tinha a inteno de permitir que seu belo garanho preto fosse maltratado por tal criatura. Melhor guard-lo. A raiva de Jack explodiu. Voc sabe muito bem que tem um cavalo venda, Dilhorne. Ramsey me disse isso, no disse, Ramsey? O capito Patrick Ramsey, que no sabia a qual dos dois homens detestava mais, Jack por ser um cafajeste e, Dilhorne por estar abaixo da considerao de um cavalheiro, deu de ombros e falou, com despreocupao: Pensei ter ouvido. A est, veja s. Um boato retrucou Tom, em tom de caoada. Sinto muito se voc se deixou iludir por isso, capito... Cameron, esse seu nome? Voc sabe muito bem quem sou eu esbravejou Jack, tomado de fria. Parece que no fomos apresentados comentou Tom. Sua audcia divertiu a todos os ofciais. Menos a Jack. A simples idia de um ofcial do Reino Unido, um cavalheiro, ser apresentado a um sujeito como Tom Dilhorne o deixava fora de si. Se isso tudo, Cameron, voc vai me permitir, mas preciso ir embora. Suas maneiras agora eram de uma frieza educada, o que atiou a fria de Jack. Sr. Cameron, como deve me tratar, Dilhorne gritou. Bom dia, capito Cameron. Cavalheiros. Voltou-se e saiu andando, aps um curto cumprimento de cabea, na direo dele e de seus companheiros. Jack ps-se a segui-lo. Foi contido por Pat Ramsey. Que droga, Jack, no faa isso! exclamou Ramsey. Por que lhe dar a oportunidade de ridiculariz-lo? Alm do mais, ele esperto como o demnio. Voc j devia saber disso. Tire suas mos de cima de mim, Ramsey! esbravejou Jack. Voc sabe muito bem que ele tem um cavalo para vender e que est insultando-me ao se recusar a negociar comigo. O cavalo dele, para fazer o que bem lhe aprouver disse Pat, com ponderao. Por que lhe dar o prazer que acabar com voc na frente de todos? Porque esses... esses emancipistas, e Dilhorne em particular, esto fcando muito cheios de si, desde que Macquarie tomou-se governador. Quem haveria de pensar que ele, logo ele, haveria de se aproximar desses bandidos? Quer lev-los para cima, coloc-los em p de igualdade com os cavalheiros. Vai nome-los magistrados ainda. Dilhorne e aquele sujeitinho, o Will French, voc vai ver. No acredito nisso, Jack retrucou Pat, calmamente. Nem mesmo Macquarie teria coragem de transformar Dilhorne em um juiz. Havia ocasies em que Pat sentia um misto de admirao e inveja daquele proscrito. At recentemente, Dilhorne ainda usava as roupas de um ex- condenado. Cala cinzenta ou de um preto desbotado, chapu amassado e cado, e um leno vermelho e branco no pescoo, todo sujo e manchado. Quase um uniforme. Sem dvida, era a ausncia desses trajes que enfurecia Jack. O capito devia ressentir-se ao ver um bandido abandonar a marca registrada de sua aparncia externa e tentar se passar por um cavalheiro, usando as roupas que distinguiam um exclusivo. Outro problema era que, diziam os rumores, Dilhorne havia feito de si o homem mais rico da colnia. Pat deu de ombros. Era assunto de Dilhorne, no seu. Mas achava estupidez de Jack deixar o sujeito caoar dele assim. Contudo, Jack sempre fora um tolo de cabea quente, incapaz de controlar seu temperamento. Que acha de um drinque? perguntou, com o intuito de aplacar a raiva do companheiro. Para esquecer que estamos aqui, metidos neste inferno. Imaginar que voltamos para casa. Tem razo. Pelo menos, assim que chegarmos l, no teremos que falar com essa escria. Meu sonho ver aquele co atrevido gemendo debaixo do chicote de novo, antes de deixarmos Sdnei. Chamou os outros ofciais. Venham, vamos sair de debaixo desse sol maldito e fngir que estamos em qualquer outro lugar que no seja aqui, sendo insultados por bandidos! Tom deixou o estbulo, montado em seu garanho. Olhou de um lado e de outro da rua e notou que os soldados desapareciam na direo da caserna. Bem, pelo menos no estariam ali para ver a direo que ele tomava. Isso iria apenas servir para causar em Cameron um outro ataque de raiva. E to violento que poderia beirar a apoplexia. Riu consigo mesmo, bateu o chicote de leve no fanco do cavalo, e partiu em direo do Palcio do Governo, para visitar o governador Macquarie. No caminho, ao passar por um grupo de homens acorrentados, ergueu o chicote, em resposta ao grito de Bom dia, Tom, de um deles. Cumprimentou-os com mais cortesia do que tinha usado para com Jack Cameron. Ele mesmo havia sido um trabalhador assim, um dia. E, se a sorte lhe sorrira e hoje era um homem rico, bem vestido, no lombo de um cavalo puro- sangue, no iria se permitir esquecer daquilo que fora Inesperadamente, e sem nenhuma razo, percebeu-se pensando em Mester Waring e no Conselho da Escola, que se reuniria no dia seguinte. Ficou a imaginar em como ela devia estar passando. O pensamento fugiu. O mundo dos negcios chamou por ele, de novo. CAPTULO II A duras penas, Hester Waring tentava administrar os ltimos tostes que lhe restavam. Ainda faltavam uns poucos dias antes que o Conselho da Escola se reunisse para decidir seu destino. Engolira o orgulho e pedira a sua. Cooke para ajud-la em seu pequeno negcio. Em troca, ganhava para pagar o aluguel e sobravam alguns trocados. Ainda no era a runa total. A viva suplementava a nfma penso que o marido lhe deixam fazendo camisas, roupas e peas ntimas para homens e mulheres e estava comeando a receber mais encomendas do que podia dar conta. Assim que compreendera que Hester falava a srio, passara a ela o trabalho que exigia menos habilidade e tambm a orientam quanto s costuras mais elaboradas. Estava comeando a fcar preocupada com sua inquilina, que se recusava a aceitar qualquer forma de caridade. Ficaria ainda mais nervosa se soubesse o que estava acontecendo com Hester. Uma falsa euforia, resultado de um estado prximo inanio, vinha mostrando seus sinais. Desde que chegara a Sidnei, Hester passam a escutar uma voz interior que lhe dizia coisas horrveis e irreverentes. Tambm lhe contava os reais motivos que moviam as pessoas, muitas vezes bem diversos daquilo que falavam da boca para fora. Ultimamente, essa voz desenvolvem um hbito desagradvel de usar uma linguagem bastante inadequada, que aparentemente aprendem com Fred Waring, quando ele estava bbado, ou no bar de onde Hester freqentemente o resgatava. Ela mesma jamais ousara falar assim em voz alta. E nem tinha idia de onde surgiam aquele modo cnico de enxergar os amigos. Entre divertida e abalada, escutava seu Mentor, como passara a chamar aquela voz, que a aconselhava com freqncia, indicando-lhe o que devia fazer A princpio, tentara expuls-lo de sua cabea. Aos poucos, porm, comeara a entender que, longe de a estar levando loucura, aquilo preservava sua sanidade. Seu Mentor estava, agora mesmo, e de urna maneira desagradvel, informando que se ela no conseguisse pagar o aluguel ou as contas, mesmo a bondade da si-a. Cooke teria seus limites. No, sua nica salvao era a reunio do conselho da Escola. Era nisso que deveria pensar e em nada mais. Alm disso, poderia no ser prudente chegar para a entrevista em um estado prximo ao colapso. Por isso, nesta tarde que antecedia ao compromisso, Hester aceitou o convite da sra. Cooke para o ch na tarde. Com alegria, devorou uma grande fatia de bolo de frutas, depois de a viva ter comentado, superfcialmente, que o fzera dias antes e que Hester lhe faria um favor se o comesse. Hester acordou, no dia seguinte, sentindo febre. 9uebrou o jejum com um pedao de po seco e um pouco da manteiga que a sra. Cooke lhe dera, com o pretexto de que estava sobrando e no deveria ser desperdiada. Ao se examinar no espelho quebrado, percebeu que mesmo seu melhor vestido estava bastante desbotado e difcilmente serviria para melhorar sua aparncia j to abatida. Mesmo assim, esforou-se em adotar um ar de vivacidade com o qual pretendia impressionar os membros do Conselho. Todos, cem exceo daquele bicho-papo monstruoso, Dilhorne! Nada que fzesse poderia impression-lo. O Mentor de Hester parecia ainda mais vulgar e falante que nunca, naquela manh. Arrasara com ela e com sua aparncia submissa e comportada. Dane-se!, pensou, saindo na gama fna de Sdnei com apenas um xale para proteg-la. A chuva contribuiu para piorar sua aparncia. Os cabelos grudavam-se a seu rosto. Tentou sec-los com um leno. No adiantou em nada. Ao v-la, Jardine, o secretrio do Conselho, ergueu os olhos para os cus quando ela cruzou a porta dos fundos, como lhe havia instrudo. Ficou a imaginar por que motivo a moa no tivera um cuidado um pouquinho maior ao se arrumar para a entrevista. Alm disso, no parecia ter condies para fazer qualquer coisa que exigisse energia. At mesmo tomar conta de crianas pequenas parecia alm de suas foras. Ah, srta. Waring, vejo que est adiantada. timo, timo, pontualidade importante disse ele, suavemente, procurando esconder seu desgosto. Devia ter dado a ela alguns conselhos. Jardine sabia que ela era pobre, mas nem mesmo ele poderia imaginar a profunda misria em que Fred Waring deixara mergulhada a flha. E que seus conselhos seriam de pouco uso, pois Hester no teria meios de segui-los. Com uni gesto corts, ele a conduziu para unia ante-sala, as paredes revestidas com painis de cedro. Os escritrios do Conselho faziam parte do edifcio onde funcionavam os departamentos menos expressivos do Governo, e a ante-sala era bastante grande e bem equipada. Um lugar onde Hester poderia aguardar a reunio com conforto. Ela no viu os outros membros do Conselho, provavelmente devessem utilizar uma outra entrada. Talvez a porta com aquela enorme argola de lato do meio, que dava para a rua George. A despeito do comentrio de aprovao de Jardine, Hester logo percebeu que ter chegado adiantada tinha sido um erro. Assim que o homem se afastou, gentilmente lhe desejando sucesso na entrevista, ela descobriu que sobrava tempo, tempo demais para fcar ali, em agonia, imaginando o que estava por acontecer. Chegou o momento em que pensou que no havia mais esperanas para seu pedido. Que era melhor voltar para casa e poupar-se da humilhao de ser recusada. Nesse instante, Jardine colocou a cabea no vo da porta, disse que o conselho estava reunido e que iria recebe-la. Hester levantou-se e seguiu-o. Deu-se conta de que entrava em uma enorme sala, com uma mesa de carvalho de frente para a porta. Os membros do Conselho estavam sentados em imponentes cadeiras, do outro lado da mesa. Godfrey Burrell, como presidente, ocupava o centro. Havia apenas um nico assento vazio. Olhando ao redor, Hester deduziu bem depressa que era o lugar do odioso Dilhorne. Ele no comparecera reunio, afnal! Sentiu-se to entontecida de alegria diante dessa ausncia que mal conseguiu ouvir Jardine perguntar-lhe o nome. Como se j no a conhecessem! Tinha plena conscincia de que todos em Sdnei sabiam quem era a infeliz flha do bbado Fred Waring. Hester acabara de gaguejar o nome, que Jardine escreveu no livro de atas, quando uma porta se abriu, e um homem entrou. Ela no o reconheceu de pronto. O recm-chegado era o retrato da elegncia. No apenas pela roupa talhada com perfeio, mas pela forma esplndida com que a vestia. Poucas vezes vira algum to magnifcamente bem trajado. Botes de prata brilhavam em seu colete, em cada um deles um minsculo diamante. Sim, diamantes, seus olhos fascinados lhe disseram. Tinha em uma das mos um chapu de pele de castor, no grito da moda, e, na outra, uma bengala de bano encimada por um dolo chins esculpido em marfm. Minhas escusas, srta. Waring, amigos membros do Conselho, sr. Jardine, mas o Governador me reteve. Pediu-me que lhes transmitisse suas desculpas, mas o assunto que tnhamos a discutir era urgente. Somente quando ele a encarou com seus brilhantes olhos azuis, Hester percebeu que aquela estonteante viso, que tambm era amigo do Governador, era Tom Dilhorne! Ficou to chocada que perdeu o rumo e sentou-se, a imagem da confuso, de queixo cado. A razo pela qual nunca mais o vira pelas ruas de Sdnei, recentemente, no era porque ele desaparecera, mas sim porque se tornara algum inteiramente diferente do homem que conhecera. Tom, do alto de sua cadeira, ao lado do presidente, foi tomado por uma intensa piedade. Se isso era a melhor maneira com que ela podia se apresentar para uma ocasio to importante, ento a moa devia estar bem pior do que Jardine o havia informado. Tambm sabia o motivo pelo qual ela se tornara violentamente rubra e depois plida como uma morta quando ele entrara. Mal- disse intimamente o falecido Fred Waring, algo que viria a fazer com crescente freqncia nos meses que estavam por vir. Consciente de que sua apresentao, nunca muito brilhante, estava deteriorando-se rapidamente e beirando incoerncia, Hester endireitou os ombros e tentou se recobrar. Godfrey Burrell lhe dirigia a palavra. E, por favor, srta. Waring, quais so seus talentos como educadora, quero dizer, nas reas mais srias do ensino? Um pensamento cruzou a cabea de Hester: como se eu fosse ensinar Csar e Lvia, os imperadores de Roma!. Sua resposta, entretanto, foi delicada. Fui educada pelo tutor do meu irmo e tenho domnio bastante bom do Latim e um pouco do Grego. Essa colocao, feita friamente, pareceu impressionar a todos do Conselho, a exceo do bicho-papo, que perguntou: Ento, acha que o conhecimento dos clssicos seja til para a juventude de Sidnei, srta. Waring? Essa uma deciso do Conselho, no minha, sr. Dilhorne ela retrucou. Se desejarem que eu os introduza ao conhecimento do amo, amas, assim ser! A demonstrao de presena de esprito pareceu divertir o monstro. E a matemtica, sra. Waring? Como se sai com os algarismos? Posso calcular uma porcentagem to bem como qualquer um, ar. Dilhorne. Ah, ento voc seria uma aquisio muito til para meu escritrio de contabilidade, srta. Waring ele redargiu suavemente. Alguns de meus escriturrios parecem um pouco inseguros com relao a porcentagens. Pensei que estava pleiteando um lugar para ensinar crianas pequenas, no um emprego em seu escritrio foi a resposta incisiva e espirituosa de Hester para essa provocao. Realmente, mas a competncia sempre apreciada, onde quer que se a encontre, srta. Waring. Essa troca de gentilezas teria ido em frente se Godfrey Burrell no os encarasse, aborrecido. Em um tom severo, perguntou: Quanto educao de crianas, srta. Waring, espero que acredite no velho ditado: de pequeno que se torce o pepino. Antes que pudesse se conter, Hester, cujo rosto se tomara intensamente animado aps a breve discusso, saiu-se como uma resposta que, imediatamente, percebeu ser a errada: Na verdade, no acredito em castigos, sr. Burrell. Sou de opinio que se obtm muito mais com afeio do que com severidade. Por alguma razo que ela no conseguiu compreender, Dilhorne pareceu achar sua colocao divertida, se o sorriso que deu a ela fosse indicao de seus reais pensamentos. Que Deus o reduzisse a p, pensou, praga favorita de seu pai. E suas roupas elegantes tambm, foi a reao de seu Mentor. Em um esforo para remendar a situao, que parecia insustentvel, se a expresso de Robert Jardine queria dizer alguma coisa, ela acrescentou: Mas, claro, espero ser capaz de controlar as crianas, com ou sem o uso de punies fsicas. Tom gostaria de gritar bravo! para mais essa mostra de raciocnio rpido; mas a etiqueta ordenava que se contivesse. Contudo, no pde deixar de notar, no ntimo, que a srta. Waring tinha bem mais a mostrai do que aquela sua aparncia exterior permitiria supor. A entrevista prosseguiu. Hester sentiu que difcilmente poderia se sair bem. Novamente foi rude com Godfrey Burrell quando ele anunciou, em um tom machista, que ela no devia esperar que as meninas acompanhassem os passos doa meninos. A seguir, rebateu Dilhorne quando este lhe fez uma pergunta bastante razovel sobre mtodos de ensino para um grupo de crianas de diferentes idades e nveis de instruo. Estava dolorosamente consciente de que suas maneiras oscilavam entre mostrar-se servil e sem entusiasmo e desagradavelmente rude, esta ltima atitude sempre que notava os olhos sarcsticos de Tom Dilhorne sobre si. Depois que fzera a infeliz colocao sobre os castigos, estava claro que a maioria no parecia convencida de sua capacidade de controlar crianas, tambm. O bicho-papo havia inclinado a cabea para trs e contemplava o teto. Esperava que fzesse bom proveito. Ele, de sbito, baixou o rosto, viu que ela o encarava e, por um aterrador momento, Hester pensou t-lo visto mandar-lhe uma piscadela de olhos. Devia estar fcando louca! Juntou as mos que tremiam. E ao faz-lo, Tom deixou escapar uni suspiro. Notara o estado deplorvel de seus dedos miados. A reunio caminhava para um desfecho. Pela expresso de Jardine, pelo ar divertido de Tom Dilhorne, e a julgar pela reao do conselho a suas ltimas respostas, Hester temia ter jogado fora sua ltima chance de evitar a runa. O que era bem pior, se a entrevista no terminasse logo, tinha medo de acabar desmaiando diante de todos. As contores da fome, cada vez mais e mais fortes, haviam comeado a preocup-la. Estavam se tomando insuportveis. Hester fcaria bastante surpresa se soubesse que havia um membro do conselho que tinha plena conscincia do que se passava de errado com ela. E era o homem do qual guardava uni amargo ressentimento. Tom disfarava a piedade, que instintivamente sabia que ela iria rejeitar, sob uma mscara de divertida indiferena. Alm disso, no poderia deixar que seus companheiros do Conselho soubessem de sua simpatia. Devia for-los gentilmente para que a contratassem. No tinha dvidas da competncia da moa: isso transparecia, mesmo atravs de seu estado de fraqueza e misria. Finalmente, tudo acabou. Hester, o corao na boca, levantou-se e fez uma ligeira curvatura de cabea, antes de deixar o Conselho entregue as suas deliberaes. Dilhorne guardou na mente apenas unia nica lembrana, ao fnal da entrevista. Hester, sentada diante deles, desesperanada e afita, cabea baixa, as mos avermelhadas no colo. Se nunca antes houvesse se deparado com o desespero silencioso, ele o tivera diante dos olhos. Percebeu que os companheiros conversavam entre si, deixando claro que no sabiam o que havia de errado com a moa. Burrell comentou que achara suas maneiras muito desagradveis. Falta-lhe bom senso emendou Fitzgerald, com secura. No tem condies de controlar nem mesmo crianas pequenas. E bem feiosa, tambm. Embora concordasse quanto aparncia de Hester, Tom no tinha certeza daquilo que os conselheiros esperavam de uma professora. Alguns, ele sabia, deviam considerar sua feira uma vantagem. Ela est morrendo de fome anunciou, com aspereza. por isso que parece to feiosa e magra e tem aquela cor emaciada. Todos os encararam. Tom, porm, havia visto a fome e suas conseqncias em seus dias vividos em Londres e as reconhecera em Hester. Os braos fnos, as faces encovadas, o pescoo comprido, os ossos saltando pela pele, o rosto que era s olhos, olhos embotados e fndos, a compleio doentia, os cabelos sem brilho. Pela aparncia, ela no desfrutava de uma boa refeio havia anos. Sua antipatia pelos companheiros, que sempre fora grande, aumentou. Bem alimentados, todos uns beberres, no reconheceriam unia criatura morrendo de inanio mesmo que casse morta diante deles. Julgou que era hora de intervir, a favor da moa. O dinheiro de Fred Waring, o pouco que tinha, ele o gastava consigo mesmo, com bebida. E agora que ele est morto, Deus sabe l como ela est sobrevivendo, O que mais importante, eu acho, que ela poderia controlar as crianas, h presena de esprito dentro dela, e tem o conhecimento necessrio para ensin-los efetivamente. Discutiu comigo asperamente e, uma ou duas vezes, falando com voc, Burrell, foi clara e incisiva. Godfrey Burrell ponderou, com seu jeito pomposo: Sinto que a opinio do conselho contrria a sua, Dilhorne. Tom sorriu. Sim, claro, no seria a primeira vez, seria? Porm, se a quiserem descartar, pensem um pouco. O que pretendem fazer? Quem ir preencher o posto? Ela foi a nica pretendente. Devemos esperar que aporte um outro navio vindo da Inglaterra... e descobrir que no h ningum adequado a bordo? Ou o qu, ento? E preciso levar isso em considerao concordou Burrell. Viam-se diante de uma total falta de opes. Era evidente que nenhum deles queria Hester, todos pelos motivos errados. Logo, a maioria iria preferir postergar a abertura da escola ao invs de empreg-la, a despeito do desejo do Governador de que isso fosse feito com urgncia. O fantasma de Fred Waring havia se levantado de seu tmulo para assombrar sua infeliz flha. E a falta de imaginao dos conselheiros tambm os levava a no compreender quais as conseqncias para a moa, se no a indicassem para o cargo. Tom no quis forar mais a situao em favor de Hester. Poderia criar antagonismos. Com seu usual leque de possibilidades, enxergou uma sada. Deixem o compromisso pendente sugeriu. Coloquem-na em prova. Vejam como ela se sai. Se no servir, ento est fora. Podemos encontrar algum at l. Todos relutaram um pouco mas, como estava se tornando cada vez mais comum em suas reunies, acabaram por aceitar a sugesto. Dariam trs meses srta. Waring, a ttulo de experincia, e ela que se sentisse feliz com isso. Dilhorne recostou-se na cadeira, satisfeito por ter encontrado um jeito de fazer valer sua opinio; feliz porque o Conselho estava contratando uma professora competente, e contente tambm porque a feiosa srta. Waring no teria que palmilhar as ruas a procura de sustento. Muito embora no estado em que a moa se encontrava, s um homem des~sperado pagasse para lev-la para cama. Hester, esperando na ante-sala, sentia que cada minuto que passava era um baque a mais em suas esperanas. Tinha certeza de que iria ser reprovada, e que Tom Dilhorne seria o responsvel por seu fracasso. Se ele no fosse membro do Conselho, quem sabe ela houvesse se sado bem. Depois dos confitos com seu pai, ele s poderia inclinar-se para o lado negativo, recusando-se a endossar qualquer pedido de uma Waring. No se preocupara com o jeito com que Dilhorne a ftara. Seu pai sempre lhe dissera que o sujeito era um mulherengo, embora no tenha sido com olhos cobiosos que ele a observara. O bom senso e o espelho j tinham deixado bastante claro a ela a prpria ausncia de atrativos. Um homem to rico e to inescrupuloso como era Dilhorne tinha seu quinho de mulheres, tanto as res- peitveis quanto aquelas aos cuidados de Madame Phoebe. A sra. Cooke uma vez lhe dissera, aps a morte do pai, que Tom Dilhorne no caava mulheres. Casamento no faz seu gnero completara. Ele mantm a viva Mahoney, que foi minha amiga durante anos, e isso lhe basta. Bem, disponvel ou no ao casamento, ela nunca havia pensado que seu destino dependesse de um Conselho com Tom Dilhorne como membro. Estivesse o pai vivo, ele a teria arrancado da sala em uni instante, depois de haver se recobrado do choque de ver um ex-condenado entronizado como um cidado de bem. Bem, talvez fosse melhor que ele no estivesse vivo. Uma coisa tinha que reconhecer, contudo. O patife tinha uma aparncia muito melhor do que ela esperava e era bem bonito, ainda que de uma forma estranha. No a atraa, porm, no havia como no admitir que usava roupas muito elegantes. Particularmente seu colete, muito refnado. Hester torceu as mos no colo. Se o Conselho no voltasse logo com seu veredicto, tinha medo de desmaiar diante deles, em um misto de medo e de fome. Levantou-se depressa. Oh, no, pensou. Se me recusarem, eu no vou chorar ou ter um ataque histrico, embora s Deus saiba o que farei se no me indicarem para o posto. Sua cabea comeou a rodar e rodar at que se sentiu atordoada. A porta se abriu. Jardine pediu que ela entrasse. Hester saltou da cadeira, branca como um defunto. O Conselho vai lhe comunicar sua deciso agora, srta. Hester disse ele, segurando a porta para que ela passasse. Ela caminhou para a sala, de cabea erguida, um ligeiro rubor colorindo suas faces magras. Tentou manter as mos frmes e postou-se de p, esperando que o presidente falasse. Seu pai fora amigo de Godfrey Burrell antes que a bebida o destrusse. Uma vez, quando era apenas uma garotinha, o conselheiro lhe havia dado um pacote de doces, mas isso fora havia muito tempo. Burrell comeou a falar com seu usual estilo pomposo: Srta. Waring, o Conselho decidiu oferecer a voc o posto, com a condio que entenda que deve passar por um perodo de experincia de trs meses para que a convenincia de sua contratao seja avaliada. Se, ao fnal desse perodo, seu desempenho no houver sido satisfatrio, ser demitida incontinenti. O ar. Jardine, o secretrio, redigiu a minuta do contrato. Est me entendendo? Perfeitamente disse Hester, secamente, fxando os olhos turvos em Tom, que se remexia com evidente desconforto em sua cadeira, diante da expresso afita da moa. Godfrey Burrell sentiu-se impelido a deixar clara a Hester a natureza precria do emprego. Julgo-me obrigado a lhe dizer, srta. Waring, que o Conselho lhe faz esta proposta com alguma relutncia. H alguns dentre ns que temem que no .esteja altura da tarefa. E se espera que a senhorita prove que esto enganados. Eu estava certa, pensou Hester. S podia ser Tom Dilhorne, ainda tentando dar o troco a papai. Bem, que ele se dane! Mostrarei que est errado. Tenho que fazer isso. Era impossvel a ela imaginar que apenas Tom tinha conseguido salvar seu emprego. Darei o melhor de mim para que fquem satisfeitos retrucou, com frmeza. timo, timo cortou Burrell. Estava com pressa. Queria almoar. Alguma coisa, em Hester, perturbava-o. Provavelmente Dilhorne estivesse com a razo novamente, droga. Olhando bem a moa, parecia possvel que no ela estivesse alimentando-se decentemente. Uma lembrana sbita o assaltou, da garotinha bonita que ela era quando os Warings haviam desembarcado em Sdnei. Remexeu-se na cadeira, tomado de desconforto. Bem, tinham dado a ela uma chance, o que era mais do que muitos haviam feito. Apontou para o secretrio, parado ao lado da mesa, de cabea baixa. Jardine vai p-la a par das particularidades de seu cargo e ser o encarregado de sua remunerao. Ele lhe dar um pequeno adiantamento para suas despesas. Se desejar se comunicar com o Conselho, voc dever faz-lo atravs dele. Como seu desempenho est em questo, estou propondo que o ar. Dilhorne seja encarregado de supervision-la pelos prximos trs meses. O qu? O que sabe esse homem sobre educao ou ensino, para assumir essa tarefa?, pensou o Mentor de Hester, irritado. Eu o verei e a todos vocs no inferno, antes de lhes dar a satisfao de me despedir. Hester procurou dissimular seus reais sentimentos. A nica pessoa que conseguiu perceber a raiva latente oculta sob aquela expresso submissa foi o prprio Dilhorne. Enquanto Burrell falava, Tom vira os olhos da moa luzirem estranhamente, e ele reconhecia a insolncia muda quando se deparava com ela. Sua intuio, quase feminina, dizia-lhe que havia mais dentro dela, do que se poderia supor. H tempo bastante para descobrir, pensou. O encargo que lhe fora dado pelo Conselho possibilitaria a oportunidade de descobrir exatamente de que estofo a pobre e feiosa Hester era feita. CAPTULO III Lachlan Macquarie ps-se a ler o breve relatrio que estava sobre a mesa. Era de Jardine. Informava que o Conselho da Escola indicara Hester Waring para o posto de professora, a titulo de experincia. Ali havia o dedo maquiavlico de Tom Dilhorne, pensou. Nesse instante, o tenente Munro colocou a cabea no vo da porta, dizendo que o coronel OConnell, do 73 Regimento de Infantaria, tinha chegado e esperava para v-lo. Macquarie suspirou e colocou o relatrio de lado. Ultimamente, as visitas de OConnell no eram muito agradveis. O militar no apreciava nem um pouco muitas das medidas que o governador vinha adotando. Via nelas uma maneira de agradar populao de ex-condenados. Macquarie fcou a imaginar do que OConnell viria reclamar, desta vez. Mande-o entrar ordenou aborrecido. OConnell era um homem grandalho, a obesidade ganhando terreno na paz da fronteira meridional das ilhas Britnicas. Prazer em v-lo disse o governador, depois das formalidades cumpridas. No vai pensar assim depois de ouvir o que tenho a dizer. No? O que desta vez, Jack? Dilhorne retrucou OConnell asperamente. Correm boatos por ai, no sei se h alguma verdade, veja bem, j que parece que comearam com Jack Cameron... e voc sabe como ele no confvel, de que voc pretende nomear Tom Dilhorne como juiz. Logo esse sujeito! O homem chegou aqui acorrentado, cheio de truques, apossou-se de tudo quanto a vista alcana... dizem que, sabe-se l como, convenceu os ianques a deix-lo entrar em seu gigantesco negcio. Voc sabe to bem quanto eu que ele controla o ramo das olarias. Praguejo contra ele cada vez que o vento sopra vindo daquela direo e cobre tudo com uma poeira vermelha. Tambm tem o monoplio do transporte de carga, provavelmente o homem por trs da fbrica de benefciamento de l do Dempster, est brigando com Wil French pelo controle da extrao das pedreiras, e, acima de tudo, com certeza o investidor na retaguarda do empreiteiro de obras que est mudando a cara de Sidnei para voc... Ficou sem flego antes de terminar de enumerar os detalhes do imprio de Tom na colnia. Tudo isso continuou justifcaria plenamente que eu fzesse de um homem de tal importncia um magistrado, de preferncia a qualquer outro. Deus do cu! esbravejou OConnell com violncia. O homem um celerado! E como foi que ele conseguiu um controle total de tudo, assim to rpido, pode me dizer? Cumpriu sua pena, e eu no tenho razes para acreditar que tenha agido de forma criminosa ao adquirir sua fortuna retrucou Macquarie, determinado a no ser deixar irritar. Ele conhecido, na verdade, por ser um homem de palavra. Todos os fatos s fazem por torn-lo digno de crdito, se voc pensar que o sujeito chegou aqui ainda muito jovem com absolutamente nada. Creio que uma carreira to bem-sucedida merece ser premiada, no punida. A colnia precisa de pessoas assim. Precisa de pessoas assim? berrou OConnell horrorizado. Em nome de Deus, o que foi que aconteceu com voc, Lachlan, desde que se tornou governador? Nunca pensei que, dentre todos, logo voc fosse facilitar as coisas para essa escria criminosa. Tom Dilhorne um homem de talento retrucou Macquarie, com frmeza. E obrigado a fcar aqui, no pode mais retomar Inglaterra, e a colnia precisa de pessoas de inteligncia e viso cujo devotamento seja para Sidnei e Nova Gales do Sul e no para um lar imaginrio l no Hemisfrio Norte, h meses de distncia. Eu no tenho dvidas de que ele dar um excelente juiz. Se no por nada, porque entende a mentalidade do povo que ser trazido presena dele. Droga! OConnell estava incrdulo. claro que ele os entender! E farinha do mesmo saco. Eu no acreditei em Jack Cameron quando ele profetizou uma coisa dessas, porm at aquele estpido parece ter mais bom senso que voc. Aonde isso vai parar, hein? Pode me dizer? No concordo com voc. Acho melhor lhe contar logo que tambm pretendo nomear o dr. Alan Kerr como juiz. No o convidarei, porm, at que Dilhorne concorde em aceitar o posto. Quero indicar os dois juntos. Fazer de Kerr, um traidor e um amotinado, um magistrado? Esperar at que Dilhorne concorde? No vai me dizer que ele teve o topete de recusar, vai? Ou ser que o velhaco tem mais juzo que voc? Dilhorne um homem precavido, com o que, eu acho, at mesmo voc concorda. E to cuidadoso quanto eu no sentido de no nos precipitarmos. J ocupa um cargo no Conselho da Escola e tem se mostrado muito til l. Ora, indique-o para deputado e est feito retrucou OConnell, em um tom desagradvel. Realmente, Lachlan, sabe o que acho? Tudo isso se deve a sua idia maluca de que este buraco do inferno, cercado de vegetao impenetrvel, algum dia vai se tornar uma grande capital, rivalizando com aquelas da Europa! Imagine s, um lugar habitado por bandidos e mulheres de vida fcil, a ral da Inglaterra! Levar o Dilhorne para os tribunais a mesma coisa que colocar no Legislativo e no Judicirio todos esses cangurus, marsupiais e aborgines que pululam por aqui. E, quanto a Kerr... ele pode ter sido um cavalheiro, algum dia, mas to ruim quanto Dilhorne. Quer que a comida servida aos bandidos seja melhorada e exige melhores acomodaes para os sentenciados. Qual a prxima exigncia, posso lhe perguntar? O coronel estava to transtornado que foi obrigado a parar. Logo, porm, arrematou: Encare a realidade, Lachlan, este lugar no tem futuro a no ser como colnia penal e, por sua conduta, nem ao menos isso voc est permitindo que seja. O corpo inteiro de Macquarie estava retesado de raiva. Mal conseguia controlar-se, ao responder: No posso concordar. Porm, posso entender porque pensa dessa maneira. Voc v as coisas apenas a curto prazo, o que no surpresa para mim. D a Dilhorne o benefcio da dvida. Alguns dos exclusivos, como Godfrey Burrell, j esto agindo assim. Antes, eu preferiria dar com a chibata nas costas dele retrucou OConnell, levantando-se e enterrando o quepe na cabea. Intil conversar com voc, Lachlan. Mas, eu lhe aviso: meus homens esto muito perturbados com suas atitudes, tais como convidar gente como Dilhorne e Kerr para jantar no Palcio do Governo, junto com ofciais, cavalheiros e damas de boa famlia. Voc est arranjando encrenca para si mesmo. Porm, isso no vai me impedir de cumprir com meu dever. E se eu julgar que meu dever fazer de Dilhorne um magistrado, ento isso o que farei. OConnell abandonou a sala, O governador soltou um suspiro de desnimo. Descobria-se mais inclinado a simpatizar com um ex-condenado do que com seu velho amigo e companheiro de armas. No devido tempo, Dilhorne e homens como ele poderiam criar uma nova classe social na Nova Gales do Sul, e era isso que Macquarie gostaria de presenciar. Tom Dilhorne percebeu-se mergulhado em pensamentos. No eram pessoas como o governador Macquarie ou Hester Waring que lhe vinham cabea. Pensava, sim, em sua prpria vida, que tomara rumos insuspeitos. E no efeito que isso causara em seu relacionamento de longa data com sua amante, Mary Mahoney. Maiy sempre lhe dissera que no desejava despos-lo. Recentemente, porm, conforme se via mais velha, vinha mudando de idia com relao ao casamento. Em conseqncia, Tom tivera de encarar a realidade. Se quisesse se casar, sabia, no seria com Mary Mahoney. Nem julgava que ela pudesse ser feliz com ele, como marido. Apenas uma lealdade de anos e um senso de decncia o mantinham ao lado dela. Porm, no via jeito de romper a ligao de ambos sem mago-la. Sentia-se atado. E, de repente, a liberdade lhe chegam da maneira mais imprevisvel. Riu, ao lembrar-se. E pensar que achava que era o nico insatisfeito... Ao lhe fazer a costumeira visita semanal, Mary lhe dissera, friamente, embora com um leve toque de pesar, que estava tudo acabado entre os dois. Um bom homem quer se casar comigo, Tom, coisa que voc nunca far. Alm do mais, no sou a esposa certa para voc, agora. Voc mudou, no mais o homem que era. H de querer uma mulher educada para esposa, algum como Sarah Kerr, com quem voc possa conversar, que v morar em sua nova manso, sentindo-se vontade como eu nunca poderia ou conseguiria. Nunca pude me entender com os nobres, nem quero. Ele nada respondeu. E isso tambm, Mary compreendeu. Sei que nosso relacionamento acabou para voc faz algum tempo, porm, malgrado sua reputao, voc um homem correto e no me abandonaria depois de tantos anos. No, no tente negar. Voc tem certeza de que isso que quer, Mary? Plena certeza, e o que voc quer tambm. Ele no pde negar. Vou providenciar para que no lhe falte nada, Mary. Pede fcar com este chal, e lhe darei uma pequena penso. Quando ela fez meno de recusar, ele insistiu: Quem sabe o que voc pode vir a precisar, no futuro? Mary concordou, e os dois se separaram como amigos, sem qualquer amargura. Arranje uma esposa maravilhosa, meu amor, e que seja logo ela murmurou, dando-lhe um beijo de despedida. Tom dissera que fcaria de olhos em Hester, e ele sempre cumpria suas promessas. Em uma bela manh de sol, no muito tempo depois que ele e Mary Mahoney haviam se separado, resolveu ir at a escola, que ocupava um cmodo de um armazm reformado na rua York, para verifcar o trabalho da nova professora. Ao se aproximar, ouviu as risadas alegres que vinham da sala. No quis espiar pela janela para descobrir o que se passava, pois sabia que no era de bom tom. Entrou no prdio pela porta da frente, que estava aberta, e fcou em um canto, onde no poderia ser visto. Isso tambm no era muito bonito, porm no queria que Hester soubesse que ele estava ali. Sua presena iria perturb-la, faz-la perder a naturalidade. E, por alguma razo, ele queria descobrir como era ela quando no sabia estar sendo observada. Ela estava sentada diante de um grupo de crianas, com uma garotinha sorridente no colo, lendo uni texto de um livro infantil, uma das poucas relquias de sua antiga vida na Inglaterra. Atrs iela, meninos e meninas, curvados sobre suas lousas, copiavam ~om todo o capricho a lio do quadro-negro. Hester tinha no rosto um brilho misterioso. Ainda conservava i aparncia macilenta e encovada, as roupas continuavam esgaradas e antigas, porm sua expresso e comportamento eram muito diferentes daqueles de que ele se recordava por ocasio da entrevista. No havia dvidas de que a moa tinha o pleno controle da classe. E que ela e os alunos tambm estavam contentes. Tom escutou sua voz alegre e observou-a abraar distraidamente a garotinha que tinha no colo. Ela no sofrera apenas de uma enorme carncia de alimento, pensou, de sbito. Tinha fome de afeio. Terminara de ler a estria e, com alguma relutncia, colocava a menina no cho. Era hora de aparecer, pensou Tom. Fez barulho, fngindo chegar naquele momento. No queria que ela soubesse que estava ali havia algum tempo. Entrou na sala de aula e percebeu que o rosto de Hester se fechava. A vivacidade desaparecera, e a antiga aparncia de mal disfarado medo estava l de novo, assim que pusera os olhos nele. Em nome de Deus, o que aquele idiota do Fred Warning dissera a ela para assust-la assim? Ou isso acontecia diante de qualquer homem? Hester ftou-o com uni ar atoleimado. O que ele estaria fazendo ali? Viera para atorment-la? Estava to feliz havia poucos minutos. Observou-o caminhar at o grupo dos mais novos, para quem ela estivera lendo estrias. Viu que ele levava a mo ao bolso. Tenho um pacote de balas aqui, meus caros. Vocs acham que a professora vai deixar que vocs as dividam entre si? Atnita, Hester o encarou. Ento, para seu espanto, ouviu a prpria voz dizendo, em um tom esganiado: Claro. Dilhorne estendeu-lhe o pacote e fcou a observ-la, enquanto ela distribua as guloseimas entre as crianas. Eu havia prometido ao Conselho que iria verifcar seu progresso regularmente. Resolvi vir sem avisar disse ele. Era melhor para voc e as crianas. Maldito, pensou Hester, tristemente consciente de que a linguagem de seu Mentor descambava ainda mais que o usual na presena de Dilhorne. O que esse sujeito sabia que lhe dava o direito de inspecionar seu trabalho? Porm, de cabea baixa e ar submisso, ela ps-se a explicar o que vinha fazendo. Seus modos contrastavam to violentamente com a maneira alegre com que se ela comportava quando julgava estar sozinha, que Tom pensou ter imaginado a cena. Sorriu, inadvertidamente. Decidiu provoc-la. Queria ver se seu jeito humilde resistiria a uma pequena provocao. E o latim, srta. Waring? Quando vai iniciar o latim? Ela o encarou. Do qu ele estava falando? O latim que voc prometeu ao Conselho. Ou era grego? Amo, acho que foi o que disse. Pode me dizer o que signifca? Amo, em latim, quer dizer eu gosto muito ela respondeu, antes que conseguisse se impedir. E seu Mentor gritou: o homem louco? Amo... A expresso de Tom era to sria como a de um padre. Quando vai comear a ensinar aos pequenos essa disciplina to importante? No vou ensinar latim a eles rebateu Hester com impacincia. A simples idia ridcula! Se voc quem diz... retrucou Tom de forma duvidosa. Afrmo! Ento grego, quem sabe? A expresso de Tom era de quem quer ser til. Estaria o sujeito falando a srio? No havia nem sombra de um sorriso em seu rosto. No irei ensinar grego a eles, sr. Dilhorne. As estrias da Mame Gansa so mais que sufcientes para crianas dessa idade. Como posso estar tendo uma conversa assim ridcula com um homem que, apesar de outros defeitos, tido como inconvenientemente esperto?, pensou ela. Voc me deixa aliviado, srta. Waring. A simples idia de uma sala cheia de pequenos prodgios estava comeando a me preocupar. Ainda mais loucura. Hester teve uma vontade louca de rir. E realmente, sua voz adquiriu um ligeiro tom de diverso, quando respondeu: No tenho inteno de criar prodgios, sr. Dilhorne. Esplndido, srta. Waring. Poesias de ninar e somas fceis so o bastante. Fico com a cabea descansada. O pensamento de crianas mentalmente perturbadas no ir me assombrar de noite. Hester cerrou os dentes para evitar cair na risada. Pode fcar tranqilo, sr. Dilhorne. No tenho qualquer inteno de deix- los estressados. Nem pretendo ensinar porcentagem a eles, nem mesmo os rudimentos do hebraico. O rosto dela, seu corpo, sua maneira de falar haviam mudado. Ela estava ali, diante dele, calorosa e viva, no lugar da fgura fria e inanimada de poucos instantes antes. E o provocava com a lembrana das perguntas tolas de Godfrey Burrell. A submissa srta.. Waring havia desaparecido, para dar espao a uma jovem cheia de vivacidade, com um agudo e rpido raciocnio, e que no tinha medo de us-lo para tentar desarm-lo. Tom decidiu recompens-la. Excelente. Fico feliz em ouvir isso. E mais feliz ainda em relatar ao Conselho que achei seu desempenho muito satisfatrio, srta. Waring. Obrigada, sr. Dilhorne. Eu no gostaria que fosse assombrado, nem por crianas perturbadas nem por qualquer outra coisa. Bravo, srta. Waring, foi a resposta que Tom murmurou para si mesmo. Sua provocao trouxera cor ao rosto dela, um brilho a seus olhos e todo o corpo de Hester vibrava em uma combinao de divertimento e indignao. A julgar por sua expresso, a opinio que tinha do ar. Tom Dilhorne era digna de ser ouvida em voz alta. Ele cumprimentou-a com uma curvatura de cabea. Ela retribuiu e mandou que os pequenos fzessem o mesmo, os meninos com uma reverncia, as garotinhas com uma mesura. Esplndido, muito bem foi o comentrio de Tom. E bvio que est ensinando a eles como se comportar e to bem quanto a Mame Gansa. Lamento ter de deix-los, srta. Waring, mas tenho uma reunio. Quero que saiba que sou seu mais humilde e obediente criado. Ele curvou-se, em um salamaleque exagerado nas ltimas palavras. Voc nunca foi meu criado e pode ir para o diabo, pelo que me diz respeito, pensou Hester, fulminando-o com seu sorriso mais dissimulado. Ele, porm, percebeu o brilho em seu olhar e sabia que Hester Waring zombava internamente de Tom Dilhorne. De novo! O que est fazendo aqui, Tom Dilhorne? perguntou Madame Phoebe. Na verdade, seu nome era Fanny Dawkins. Dirigia uma casa de jogos e um bordel em uma das mais novas ruas de Sdnei, bem parecidos com aqueles inferninhos de reputao duvidosa instalados em quarteires do bairro das Pedras. Somente os ricos, os de aparncia respeitvel e os ofciais da guarnio freqentavam a casa de Phoebe. Podia-se comer uma boa refeio l, e Sdnei sempre fora carente de bons restaurantes. Melhor ainda, ela dirigia um local honesto e trabalhava com moas limpas e sadias. Assim, as autoridades se curvavam, fazendo vistas grossas a sua presena em um subrbio residencial. Tom nada respondeu. Raramente se explicava e no estava disposto a contar a Phoebe que ele e Mary haviam terminado tudo. Havia se trocado e vestira roupas de trabalho depois de deixar a escola. Estivera ajudando a descarregar carga nas docas. Nunca se recusava a dar duro, mesmo que fosse trabalho braal, quando a necessidade obrigava. Essa era a razo pela qual aqueles que trabalhavam para ele lhe eram leais. Em seus antigos dias de vida dura, havia sido uni cliente assduo de Phoebe, em sua primeira casa, nos limites do bairro das Pedras. No pelas garotas, mas pelo local, que usava para reunies de negcios e para jogar cartas, pois nunca se arriscava nos dados. O tdio o trouxera de volta, aps uma longa ausncia. Sabia que os ofciais da guarnio e os mais ricos exclusivos e emancipistas estariam ali e seria uma oportunidade de descobrir se suas velhas habilidades haviam enferrujado. Intuio e fria dissimulao haviam feito de Tom um formidvel homem de negcios e eram igualmente memorveis quando aplicadas nas cartas, motivo pelo qual nunca se envolvem com dados. Jogos de azar no o atraiam. No passado, sua presena na mesa de jogos havia sido um estorvo para alguns, porm um desafo para outros. Algum dizer que havia derrotado Tom Dilhorne era quase uma proeza, embora que raramente acontecia. E a memria dele que o faz imbatvel, no ? perguntou o ofcial da infantaria Osborne ao capito Pat Rainsey, ao observar Tom, que bebia ao lado de Madame Phoebe. Parker diz que ele parece se lembrar de todas as cartas, as prprias e as dos adversrios tambm. Sempre quis v-lo em ao, mas faz tempo que ele no vinha aqui. O que ser que o trouxe para c esta noite, pode imaginar? Sua memria? perguntou Pat, que havia perdido para Tom mais de uma vez. Duvido de que seja simples assim. Ele conhece os truques, conhece os homens, e isso algo que no se pode ensinar a algum. Eu no entraria em um jogo com ele, se fosse voc, Osborne. Ele vai depen-lo. Ele no poderia me depenar escarneceu Jack Cameron, que se aproximara enquanto Pat conversava. No? Pat deu de ombros. Voc nunca jogou com ele, jogou? E por que ele um emancipista? Claro que no esbravejou Jack, jogando-se na cadeira. O dinheiro dele to bom quanto o de qualquer outro, no ? No houve chance de me encontrar com ele nas mesas. Ele desistiu de vir aqui antes que eu chegasse para morar nesta terra maldita. Veremos se ele bom mesmo, esta noite. Tenho planos para jogar com o a mestre, como o chamam. Olhou ao redor, procurando parceiros para formar um grupo. Posso ver Parker, porm onde est o jovem Wright? Pensei que estaria aqui, hoje. Oh, Frank... disse Pat, com um bocejo. Ele parece um cachorrinho desde que se casou com Lucy Middleton. Ela no o deixa jogar. Raramente aparece por aqui. Maldio se eu deixar que algum rabo-de-saia, esposa ou no, afaste-me do jogo retrucou Jack, com agressividade. Girou na cadeira e berrou, na direo de Tom. Ei, Dilhorne, disseram-me que voc um mestre. Por que no vem arriscar uma rodada e me deixar descobrir se verdade? Ser um prazer derrotar um emancipista. Tom lanou um olhar superfcial para Cameron. Bebia seu usque com gua e, como viera para jogar, seu copo continha uma boa poro de gua e bem pouco de bebida. Enquanto alguns se entupiam de lcool, Tom apenas parecia beber. Eu vou retrucou Tom, e abriu caminho at a mesa. Tom conhecia bem a reputao suspeita de Jack Cameron como jogador, tanto nas mesas como em outros jogos de azar. Contudo, acusar um homem de trapacear com as cartas era algo pouco prudente. Havia um cdigo de honra quanto a isso, e as trapaas de Jack teriam que ser sufcientemente desmascaradas para que se pudesse dizer ou fazer algo a respeito. Uma falsa acusao, ou uma que no pudesse ser sustentada, iria arruinar o acusador, ao invs de o acusado. Aqueles que eram pegos trapaceando com cartas ou dados se tornavam prias. A honra exigia que renunciassem s Foras Armadas e ao convvio em sociedade. Tom conhecia os cdigos de honra, mas pouco se importava com eles. Tinham sido inventados por cavalheiros para passar o tempo. O nico cdigo com o qual se importava era o da sobrevivncia. Para sobreviver faria qualquer coisa, empregaria qualquer truque, destruiria inimigos, defenderia os amigos com toda a coragem, embora se tivesse juzo, no devesse ter muitos amigos. Manteria a palavra empenhada, porm somente se os outros mantivessem a sua, e evitaria agir estupidamente, tal como trapacear com cartas. Acima de tudo, fcaria de olho em suas costas. A honra era mantida com suas prprias regras, no com algumas delicadezas imaginrias que serviam meramente para perpetuar as diferenas sociais. Assim, comeou a jogar contra Jack, usando de sua excelente memria, como o jovem ofcial havia dito, calculando as probabilidades e, fnalmente, empregando sua intuio. Essa raramente falhava, tanto nas cartas como na vida. Logo percebeu que Jack trapaceava e que a maioria dos outros jogadores era ingnua demais, ou estava muito embriagada para se importar. Bbados a ponto de no notar que o usque na garrafa diante de Tom, cujo nvel baixava, no descia por sua garganta. Jack tambm no era o beberro que aparentava ser e, lentamente, ele e Tom eram os nicos vencedores a se defrontar. O sucesso de Tom, na vida, em parte era baseado em seu conhecimento de como ir em frente em qualquer empreendimento. De olhos fxos em Jack, rapidamente deduziu que perderia em qualquer jogo que disputasse contra um homem cujas habilidades eram quase iguais s suas, mas que tinha a vantagem de manusear as cartas com truques, estratagemas e dedos ligeiros. O baralho devia estar marcado. Para Tom, no interessava como Jack havia conseguido fazer isso. No tinha objees em perder em um jogo limpo, porm no tinha inteno de deixar o vigarista ainda mais sorridente nem queria confuso. Se o denunciasse, sem provas, ou usasse suas prprias habilidades para derrot-lo, poderia criar problemas para si mesmo. Aps um tempo, levantou-se. O que ganham havia desaparecido nas ltimas rodadas. Fitou as fchas que lhe restavam, bocejou, e disse: J chega. Hora de dormir. Jack reclinou-se na cadeira, com ar de zombaria. Assustado, Dilhorne? Com medo de perder? Jogue outra mo. Vamos ver quem o mestre. Oh, voc, com certeza. Mas eu no gostaria de dizer do qu. Cambaleou, apanhou a garrafa de brandi, sorrindo para Jack no silncio mortal que se seguiu a suas palavras. Jack, o rosto agora cor de prpura, encarou-o furioso. O que quer dizer com isso, Dilhorne? No vou permitir que um ex- condenado tente sujar minha reputao. Tom gingou o corpo, amparou-se na mesa para se equilibrar, chacoalhou a garrafa de brandi e levou-a a boca, tomando um longo trago, de verdade, desta vez. Sujar sua reputao? Eu estava apenas pensando no que voc era melhor. No baralho ou nos dados, o que me diz? Suas palavras saiam gaguejadas, porm seus olhos tinham um brilho de insolncia. Os circunstantes, que variavam de ofciais, colonos endinheirados e at uns poucos que tinham vindo mais para se divertir que para jogar, podiam, assim como Jack, tomar aquelas palavras em seu sentido literal, ou sentir nelas uma acusao velada. S Tom e Jack sabiam o que signifcavam realmente. Desembuche ou cale a boca esbravejou Jack. E melhor esclarecer logo o que quer dizer com isso! Tom desabou na cadeira, apertando a garrafa contra o peito. O que quero dizer, Cameron, que nunca mais jogarei com voc de novo. Nem hoje, nem amanh, nem nunca. Voc muito hbil para um pobre ex- condenado. Suas ltimas palavras vieram em um murmrio claro. Mal tinha acabado de falar, ele escorregou para debaixo da mesa, ainda agarrado garrafa. Ficou l deitado, imvel, enquanto a bebida escorria pelo assoalho, ensopando-lhe a camisa e a cala. Pat Ramsey, que, aps perder, abandonara o jogo algum tempo atrs, comeou a rir. Assim como vrios de seus amigos ofciais, ele desde muito alimentava suspeitas contra .Jack. Nunca ousara diz-las em voz alta ou parar de jogar com ele, o que seria o mesmo que uma acusao. Porm, com poucas e bem escolhidas frases, o mestre da malandragem, que agora jazia deitado sob a mesa, havia dito aquilo que todos na sala pensavam, e no havia nada que Jack pudesse fazer a respeito. Continuar a insistir que Tom o acusara de trapaa seria fazer tempestade em copo de gua. Se havia quem suspeitasse que a bebedeira de Tom era uma encenao magistral, ningum parecia disposto a tentar desmascar-lo. O que era pior, a acusao, embora velada, havia sido feita, e alguns usariam as palavras de Tom como desculpa para no jogar com Jack. Afnal, ele era um mestre. Seria tolice jogar dinheiro fora. Deitado debaixo da mesa, olhos fechados, Tom fcou a rir intimaxnente, divertido com a altercao que se seguiu. Jack berrava, deixando clara sua inteno de coloc-lo de p e enfrent-lo. No estava disposto a fazer papel de tolo. Quando um sujeito est incapacitado pela bebida resmungou Pat Ransey, deliciado por ver Jack passado para trs pelo menos uma vez , voc no pode atac-lo sem motivo. Riu, diante do rosto enraivecido de Jack. Ele apenas lhe fez um elogio. O que h de errado com voc, homem? Havia muita coisa de errado com Jack. De alguma forma, iria dar cabo daquele maldito Dilhorne antes de sair daquele bendito buraco onde ele e o 73 Batalho tinham sido confnados. Estou bem instalado aqui, pensou Tom, e o assoalho no to desconfortvel que eu no possa dormir. Foi o que fez, cansado pelo dia de trabalho duro. Sua ltima lembrana foi de Hester Waring caoando dele, pela manh. J era de madrugada quando Madame Phoebe aproximou-se, ftou os corpos largados pelo cho, e decidiu acordar Tom e lev-lo para seu quarto. No tente se fngir de bbado para mim, Tom Dilhorne. Eu enxergo longe. Hester fcou sabendo que Tom Dilhorne e Mary Mahoney haviam rompido, e foi tomada de uma alegria infantil com a notcia. Agora o monstro sabia o que era sofrer um bocado, disse o Mentor de Hester, impiedoso. Ter uma amante infel seria uma boa lio para ele, para ensin-lo de que no podia dirigir a vida a seu bel-prazer, sempre. A cidade inteira pensava que tinha sido Tom que abandonara Mary, particularmente quando a viva e Jem Wilkinson comearam a mostrar sinais que tinham um caso e pretendiam casar-se. O fato teria provocado o cime de Tom. Ningum conhecia a verdade, nem que Dilhorne havia dado dinheiro a Mary. Heater ps-se a cantar pela casa, para surpresa e alegria da sra. Cooke. Esta, entretanto, no estava nada feliz ao perceber que, a despeito de ter agora um salrio, o padro de vida de sua inquilina no tinha melhorado. O que no sabia era que Larkin, que havia arrematado todos os dbitos remanescentes de Fred, havia aumentado os juros e, consequentemente, o valor das parcelas a serem pagas, depois que soubera que a moa arranjara um emprego. Hester se vira, assim, em condies idnticas s que antes de comear a ensinar na escola. Porm, gostava de trabalhar l, pensou. E isso, junto com as boas-novas a respeito de Tom Dilhorne e Mary Mahoney, deixava-a com os passes lpidos. At mesmo aceitou o convite da sra. Cooke para o ch, junto com a vizinha, a sra. Smith, e a flha Kate. Kate era uma criana encantadora, e ela e Hester se davam muito bem. Depois do ch, a ara. Jack, sabendo disso e querendo fofocar com a sra. Smith sobre assuntos no muito adequados aos ouvidos de uma moa solteira, sugeriu que Hester levasse Kate para o quintal, para mostrar menina a nova ninhada de pintinhos. As duas senhoras haviam principiado a conversar quando se ouviu uma batida na porta. Ao levantar-se e ver quem era o visitante, a surpresa da sra. Cooke no poderia ser maior. Ora, sr. Dilhorne, o que ser que o senhor pode querer comigo? Dilhorne estava to elegante quanto de costume. Apenas dispensara a bengala e trazia um pequeno pacote com livros debaixo do brao. Cumprimentou-a com toda formalidade, como se ela fosse a esposa do governador. No com a senhora, madame Cooke. Ser que permitiria que eu entrasse para conversar com a srta. Waring? Entre, entre respondeu a senhora, alisando o avental, envergonhada com a aparncia esplndida do rapaz. Se soubesse da visita, teria colocado seu melhor vestido. Tom entrou na pequena sala e curvou-se em um cumprimento sra. Smith, tambm impressionada com sua elegncia. Colocando o pacote sobre a mesa, ele olhou ao redor, procurando por Hester. A srta. Waring est l fora disse a si-a. Cooke.. Vou cham-la. No preciso retrucou Tom. Se me permite, falarei com ela l, no quero que interrompam seu ch. Atravessou a cozinha e parou na porta do quintal, observando. Hester estava ajoelhada no cho, cercada de pintinhos. Sentada ao lado dela estava uma garotinha. Tom viu que Hester apanhava um dos pintinhos, que mais parecia uma bolinha amarela de plumas, com todo o cuidado, e o colocava nas mos da menina. Ento, levantou-se, tomou a criana nos braos e sentou-se em uma mureta de tijolos no fundo do quintal. Em um gesto cheio de carinho, beijou o rosto da garotinha. Tom resolveu aproximar-se, e Hester, de sbito, percebeu sua presena. Ficou imvel, como um animal apavorado, prestes a fugir, e seus dedos, involuntariamente, apertaram-se nos braos da menina. A vivacidade que iluminava seu rosto, um momento atrs, desapareceu, como havia acontecido quando ele a surpreendera na escola. Sr. Dilhorne? ela murmurou, surpresa, porm com uma voz controlada, quaisquer que fossem os seus medos internos. Tom caminhava com cuidado, procurando no pisar as avezinhas, e Hester no pde conter um sorriso ao ver um homem grandalho e bem vestido andando na ponta dos ps. Pode rir sra Waring, mas no quero esmagar nenhum pintinho. Eu no estava rindo. sr. Dilhorne. Por favor, no diga uma coisa dessas. Estava prestes a cair na gargalhada. Ainda est com um sorriso nos lbios. Hester fez uma cara seria. No estou sorrindo agora, sr. Dilhorne. Eu o aconselho a fcar onde est. As galinhas estaro mais seguras. Excelente sugesto, srta. Waring. Percebo que indic-la para professora foi uma atitude sbia. Voc capaz de dar aulas aos mais velhos, assim como s crianas. Tem algum motivo para ter vindo falar comigo, sr. Dilhorne? Alm de fazer questo de me lembrar de que sou descuidado, voc tambm sabe que minha presena no quintal da sra. Cooke s pode ser porque quero falar consigo e no para cuidar da nova ninhada de pintos. Muito perspicaz de sua parte, senhorita. Hester no conseguiu se conter e caiu na risada. Tenho a impresso de que nunca poderemos conversar de maneira adequada, sr. Dilhorne. No vejo nada inadequado na presente situao, srta. Waring. Eu apenas vim trazer as cartilhas de leitura que Jardine me disse que voc precisava. Hester pensou, por um instante, porque o prprio Jardine no entregara o material a ela, e porque motivo o grande Tom Dilhorne se dispunha a fazer o papel de ofce boy. Decidiu no question-lo. Ele sempre conseguia confundi-la. Tom pediu licena e sentou-se ao lado dela, no muro. Ps-se a acariciar a garotinha e fez vrias perguntas a Hester a respeito do trabalho com as crianas. A conversa parecia estar seguindo um padro normal quando, de repente, Hester, distraidamente, estendeu-lhe a menina para que ele a pegasse no colo. Coisas estranhas pareciam acontecer a uma percepo da realidade, cada vez que Tom Dilhorne surgia em seu horizonte, pensou Hester. A mais estranha era que conversava com ele de forma espontnea e natural, logo ela que fcava tensa e gaguejante cada vez que os ofciais da guarnio tentavam travar uma conversa. Tom recusou o convite para tomar uma xcara de ch, alegando outros compromissos, e despediu-se, afastando-se majestosamente. Hester, com toda a sinceridade, no pde deixar de se impressionar com sua aparncia soberba e as roupas extremamente elegantes. Bem! exclamou a sra. Cooke, depois que ele se fora e Hester examinava os livros que ele lhe trouxera. O que vem a ser isso, srta. Waring? Mas a srta. Waring no poderia lhe dizer. Tom, ainda com a lembrana de Hester ajoelhada entre os pintinhos, caminhou para casa bosque, a depois do que dissera, no tinha nenhum compromisso. Uma idia comeava a tomar forma em sua cabea. Uma idia nascida de sua separao de Mary e das noticiam que, naquele mesmo dia, sua governanta lhe contara. De novo, ele vira Hester com uma criana no colo e recordava-se da evidente afeio que ela demonstrava para com os pequeninos, na escola. Lembrava-se tambm do brilho sbito em seus olhos quando se voltara para ele, no meio da conversa, conversa que ela obviamente apreciara muito mais do que ele. Tinha vontade de provoc-la, de faz-la desabrochar para a vida, de ouvir suas respostas inteligentes s bobagens que ele, de forma sria, dizia-lhe. Somente seu rosto magro e encovado ainda o preocupava, pois certamente agora ela podia fazer uma boa alimentao. Era isso! Tenho certeza, pensou, de que a pobre criatura fcaria at bonita se tivesse boa comida, um pouco de afeio e algumas roupas novas. Ela j comeava a mostrar muito mais esprito desde que se tornara uma professora. No meu estilo, claro, mida e morena ao invs de exuberante e loura como Mary Mahoney e as outras. Porm, e dai? No corro o risco de me apaixonar por ela. O que Mary me disse antes de nos separarmos? Case-se com uma dama. Bem, Hester Waring uma dama; embora no tenha boa aparncia. Porm, dama alguma iria querer se casar comigo. Ela sensvel, esperta tambm, a julgar polo jeito engenhoso com o qual me responde quando a provoco. Quando a entrevistei, julguei que tinha capacidade. Sim, ela dar uma excelente dona de casa, e uma esposa que saberia para que serve cada coisa, o garfo certo a usar, o que dizer e fazer. E uma idia! Porm, pensar em ir para cama com qualquer homem, especialmente comigo, faria com que sasse em disparada como uma lebre. Quase fugiu quando me viu hoje, embora mostrasse um ar corajoso. Aquele seu pai tenebroso deve ter lhe cito muitas bobagens. A julgar pela maneira como se comporta, fca apavorada diante de qualquer homem que encontre pela frente. Um lento sorriso apareceu em seus lbios. Bem, pensou Tom, conheo um truque ou dois, e um deles pode muito bem arrastar Hester Waring para um lugar que ela nunca imaginou! CAPTULO IV Quero falar com voc, Jardine. Jardine levantou-se. Era um homem de idade indefnida, no um ex- condenado, que exercia vrios pequenos cargos para o governo, o que o colocava em contato com muita gente em Sdnei. Tom sempre o procurava quando precisava de informaes. O secretrio fcou a imaginar qual seria a informao que ele buscava, naquele momento. sobre Hester Warning disse Tom bruscamente. Seu salrio est sendo pago em dia, no ? Claro! Por que est me perguntando? Porque a garota parece mais magra e esfaimada do que nunca, O que ser que tem feito com o dinheiro? H uma explicao para o fato. Ah, ? perguntou Tom sarcstico. Eu gostaria de saber. Como voc sabe, Jem Larkin tem um pequeno negcio e compra promissrias de devedores com ou Jardine. Interrompeu-se quando Tom ps-se diante dele. Por Deus, est me dizendo que Larkin est obrigando a executar as dvidas do pai e que ela estpida o bastante... Exatamente, e Larkin aumentou os juros desde que soube que ela conseguiu emprego. Por que no fquei sabendo de nada? Tom sentiu uma onda de raiva que no conseguiu explicar. Eu no tinha noo de que isso era de seu interesse. Tudo me interessa retrucou Tom com secura. Particularmente esse assunto. Ento, essa a razo pela qual ela parece no ter nada para comer. Vamos tratar disso. Robert Jardine teve a impresso de que Dilhorne estava demasiadamente interessado em Hester Waring. O que mais poderia explicar um comportamento to atpico? Na prxima semana, teremos a festa de Natal do Conselho, para todos os professores das diversas escolas. Voc poder verifcar por si mesmo se ela vai ter algo para comer l comentou Jardine. Farei isso. Normalmente, no participaria de uma reunio assim, porm, desde que fcara sozinho, com a separao de Mary, realmente precisava cultivar outros interesses. E, quanto a Hester, providenciaria que se alimentasse. Poderia ainda tentar provoc-la e despertar aquela encantadora vivacidade que ela mostrara entre as crianas e os pintinhos amarelos. Havia ainda a idia monstruosa que lhe surgira. E que, a cada vez que pensava, fcava menos monstruosa. Em primeiro lugar, iria comprar as dvidas de Fred em poder de Larkin. Pretendia destru-las na frente do safado, para que aquele usurrio no pensasse que ele, Tom Dilhorne, era um explorador de vivas e rfos, particularmente de um ratinho quase morto de fome, como Hester Waring. Jardine observou-o sair, com uma expresso divertida. Realmente, o homem era imprevisvel. Primeiro, convencera o Conselho a contratar a garota, depois se pusera a rondar a escola. Em seguida, levara ele mesmo os livros at a casa dela, em vez de deixar isso a cargo do secretrio. Agora, reclamava que a moa no tinha o bastante para comer. Nesse momento, devia estar indo pagar as dvidas de seu pai. E, depois de dizer que no iria festa do Conselho, mudara de idia, s para se certifcar de que ela teria um lauto banquete espera. Se fosse outro, que no Tom Dilhorne, tido como um homem sem corao, ele diria que o sujeito estava interessado pela garota. O que, pensando bem, era improvvel, uma total bobagem, a julgar pelo gosto de Tom por mulheres exuberantes e ao lembrar da aparncia de Hester. Ele, Jardine, bem que podia atiar lenha fogueira. A pobre srta. Waring merecia um pouco de excitao em sua vida miservel. Bastava a palavra certa em seus ouvidos, e tudo podia acontecer. Festas eram um acontecimento raro na vida inspida de Hester. E a perspectiva de comparecer festa que o Conselho da Escola realizava a cada ano no Natal, no podia deixar de concentrar toda sua ateno. O dinheiro continuava curto. Por isso, ela pegou um dos velhos vestidos pretos de sua me, e foi at a casa de Lucy Wright pedir que esta lhe ajudasse a reform-lo. Lucy olhou Hester e avaliou o vestido. Torceu o nariz. No havia muito que fazer com aqueles andrajos. Seu marido entrou enquanto as duas estavam atarefadas, costurando, e dirigiu pobre Hester um olhar fulminante. O capito Parker estava com ele. Ver o ofcial normalmente deixava Hester ruborizada. Sempre se perturbara na presena do rapaz, de cabelos loiros e de corpo atltico e forte. Nesse dia, contudo, ela o achou bonito como sempre, porm jovem demais e um tanto desajeitado. Sua conversa lhe pareceu tola e desinteressante, e essa mudana de opinio a surpreendeu. Desde a primeira vez que o encontrara, Parker tinha se tornado seu ideal masculino. Talvez fosse porque conhecera outros homens mais velhos como... bem... como Tom Dilhorne. No havia dvida de que, diante dele, o capito Parker parecia quase um garoto inexperiente. Seu interesse pelo rapaz se foi. E ela se sentiu mais vontade, at ligeiramente atrevida, quando ele perguntou, olhando para o horrvel vestido que costuravam, o que elas faziam. Oh, capito Parker ela retrucou, encarando-o nos olhos , vou a uma festa muito importante, e Lucy est me ajudando a costurar este meu maravilhoso vestido. Que festa essa, Hester? O rapaz pareceu surpreso. Ora, para pessoas especiais disse ela, de maneira irreverente. E a que o Conselho da Escola oferece a todos os professores. Somente os gr-fnos, como o sr. Tom Dilhorne, receberam convites. Tem certeza de que deve ir, Hester? indagou Frank, com um ar de desagrado. Sei que trabalha para eles, mas, pelo que voc disse, o pessoal que vai estar l no grande coisa. Bem, Frank, tenho certeza de que, segundo sua maneira de ver, e a do capito Parker tambm, eu mesma no sou grande coisa, hoje em dia. Dizem que a comida que oferecem muito boa, e no quero perd-la. Gente que grande coisa no parece estar disposta a me oferecer nem ao menos um lanche! Um silncio espantado caiu na sala. Qual o problema comigo?, pensou Hester, surpresa com a prpria audcia. Dera agora para expor seus pensamentos em vez de guard-los para si? Frank vai dizer a Lucy para no me receber mais, pensou. E por qu, em nome de Deus, estou fazendo pouco do capito Parker? Ele um rapaz gentil, bonito... Comum. Conversar com Tom Dilhorne tem me feito fcar intratvel. Parece que comeo a pensar em coisas horrveis. Com os pensamentos atropelando-se em sua cabea, Hester despediu-se de Lucy, apanhou o vestido, acenou de maneira atrevida para Frank e o capito, que a encaravam, atnitos, e saiu, porta afora. Houve um silncio momentneo antes que os trs falassem, ao mesmo tempo: Ora, ora disse Lucy, abobalhada. Que absurdo... murmurou o capito Parker, que sempre se sentira lisonjeado com a tmida adorao de Hester, que hoje se desvanecera por completo. Deus do cu! exclamou Frank. Ela est mais feiosa que nunca e cada vez mais desagradvel e rude. No quero essa moa aqui em casa de novo, Lucy. Deixe disso, Frank. Ela uma coitada. Interrompeu-se, pensativa. Voc no acha que ela esteja realmente com fome, acha? Talvez seja esse o problema. Delrio de fome. Eu deveria ter oferecido a ela alguma coisa. Nunca parei para pensar como Hester est vivendo, agora que Fred est morto. Oh, meu Deus! No, Lucy, o problema so esses plebeus com os quais ela anda se misturando disse o capito, em um tom lgubre. Ela era uma coisinha suportvel, ainda que feiosa. Agora, est mais feia do que nunca e um pouco agressiva tambm. Parker sentia-se aliviado. Felizmente, a piedade no o levara a dizer a Hester qualquer coisa que pudesse ser interpretada como um pedido de casamento. Hester caminhou para casa com um sentimento estranho. Deixara a raiva falar mais alto. Por um instante, no sentiu remorso. Provavelmente, sentiria depois. Durante toda a vida, tinha sido uma criana tmida que mal ousava levantar a voz. Todos faziam questo de deixar claro que qualquer coisa que tivesse a dizer era de pouca ou nenhuma importncia. A me a ignorava. Fred, seu pai, tratava-a simplesmente como uma criada muito conveniente, j que mesmo uma criada no suportaria o tratamento que ele dispensava prpria flha. Nesse dia, ela levantara a voz e fzera sua presena ser percebida tambm. Estava perplexa com a prpria ousadia. Ao virar a esquina, chocou-se com Tom Dilhorne. Ele deu um passo atrs, algo surpreso e um pouco divertido ao perceber seu ar desafador. Boa tarde, srta. Waring. Boa tarde, sr. Dilhorne. Atarefada, srta. Waring? Ele olhou, com ar srio, para o horrvel vestido que ela segurava contra o peito. Novamente, Hester se viu tomada por uma onda de ira, igual a que a assaltara na casa de Lucy. Sim, pode-se dizer que sim, sr. Dilhorne. Estava arrumando este vestido para a festa do Conselho. Pretende comparecer, ento disse ele, com um trejeito dos lbios. No instante em que deixava transparecer o senso de humor, Hester se transformava. Ele estava certo. Havia alguma coisa, uma paixo ardente queimando sob aquele exterior sem graa. Sim, pode-se dizer que honrarei a festa com minha presena. Muito gratifcante, srta. Waring. Vou esperar com ansiedade para v-la por l. Realmente, sr. Dilhorne? O senhor me surpreende. Pensei que estava acostumado a reunies menos, digamos assim, decorosas! Ao contrrio, srta. Waring retrucou ele, muito srio. Estarei l amanh, com o mais profundo interesse. Ele a cumprimentou com um gesto de cabea. Ela respondeu. Que se danasse, ele e seu cinismo! Olhara para seu vestido com um ar de crtica. Tom conhecia o delrio do desespero e da inanio. Ficou a imaginar se ela tinha noo do como o ftara por uma ou duas vezes e tambm o que poderia t- la deixado to alvoroada. Bem, iria descobrir no dia seguinte. S que Hester nunca iria lhe confessar que a chama que a iluminava tinha sido atiada por ele. A festa do Conselho da escola no eram, como Hester poderia ter adivinhado, o mais excitante dos eventos. Sabia que, em uma sala repleta de homens e mulheres trajados com simplicidade, ela era a pior de todas. Mesmo os laarotes de Lucy no tinham podido salvar seu vestido. Por outro lado, havia muita comida, e sua boca encheu-se de gua e o estmago vazio ps-se a roncar. Teve que se esforar para agir como uma moa educada e servir-se de apenas um pouco. Tom estava na mesa-de-cabeceira. Vestira-se de forma extremamente elegante para a ocasio, colocando um colete com paves delicadamente bordados, e uma prola negra na gravata. Ao escolher o traje, ele mesmo se perguntara a quem estaria tentando impressionar. De l, observou, com piedade, os esforos de Hester para disfarar a fome. Hester estava com uma disposio de esprito muito diferente da do dia anterior. A comida a encantava, mas a euforia de sua visita a Lucy se desvanecera. Fora vencida pela vergonha diante da lembrana de seu comportamento, no apenas para com Lucy, mas tambm para com Tom Dilhorne. O que ele haveria de pensar a respeito dela? Ao recordar do ltimo comentrio que lhe atirara na cara, sentiu-se queimar. No podia imaginar por qu. Se algum lhe dissesse que ela estava comeando a se sentir sexualmente atrada por Tom Dilhorne, Hester iria negar at o ltimo suspiro. Mesmo a revelao que a atrao pelo capito Parker havia se desvanecido no tinham mostrado a verdade a ela. Nem seu flego curto e a excitao que a inundou, quando Tom se aproximou. Imediatamente, Hester viu-se presa da mais estranha das sensaes. Era como se no estivesse usando nada sobre a pele! Uma agitao esquisita tomou conta de seu estmago. Nada, em sua curta existncia, preparara-a para tais sensaes. Teve medo de estar acometida por uma febre. De repente, tinha conscincia plena de seu prprio corpo. Pior, tinha conscincia do corpo de Tom Dilhorne. Tudo ao redor pareceu brilhar, fcar iluminado. Os cabelos toiros de Tom, com suas ondas suaves, seus olhos de um azul profundo, o estranho trejeito de sua boca que traia o humor sarcstico com que quase sempre falava com ela, a largura de seus ombros, a solidez de seu peito, o comprimento de suas pernas, sua altura... ele tinha que se curvar para conversar com ela. Oh, no podia fcar to ansiosa, de uma forma to pouco adequada para unia dama, no podia. Lutou com difculdade para respirar, morta de vergonha pelas sensaes confusas que a invadiam E, de repente, comeou a se comportar da forma estpida. Voltara a ser a apavorada srta. Waring da entrevista. Est se divertindo, srta. Waring? Muito, porm temo que no seja graas a voc respondeu ela, amarga. Se fosse por sua vontade, eu no teria conseguido o emprego. O rosto de Tom se endureceu. Tinha conscincia de que ela devia pensar assim, mas, estranhamente, para o homem frio e calculista que era, ouvi-la falar dessa maneira o feriu. Apesar disso ele retrucou, continuando a trat-la com delicadeza , Natal, afnal de contas, srta. Waring. E quaisquer reservas que eu pudesse ter com relao a sua indicao desapareceram diante de seu esplndido desempenho. Hester afastou-se para que ele no pudesse ver seus olhos se encherem de lgrimas. Reprovou-se intimamente pela falta de educao. Ao voltar-se, viu Jardine, que ouvira a conversa, e que olhava para ambos com curiosidade. Jardine cumprimentou-a com a deferncia de sempre. Srta. Waring, gostaria de lhe dizer umas palavras. Decerto, sr. Jardine. Ela desviou o olhar. Nunca antes se sentira to feiosa e mal vestida. Srta. Waring, posso entender como se sente em relao ao sr. Dilhorne. Toda Sdnei sabe do dio que seu pai nutria para com ele. Porm, eu lhe asseguro, a senhorita o julga mal. A verdade outra. Longe de tentar impedir sua nomeao, foi por interveno dele que voc conseguiu o posto. O Conselho jamais a indicaria se no fosse a defesa que Dilhorne fez a seu favor. Jardine pensou que Hester fosse desmaiar. O rosto da moa adquiriu uma desagradvel tonalidade amarela-acinzentada, e ela oscilou sobre os ps. Tom, que estava conversando com Godfrey Burrell, mas que mantinha os olhos em Hester, percebeu o que estava acontecendo e correu para o lado dela. Srta. Waring, est se sentindo mal? O que aconteceu, Jardine 7 Jardine no tinha inteno de contar a verdade. Acho que a srta. Waring est se ressentindo do calor. Ento, precisamos tir-la daqui, homem. Dilhorne tomou a moa semi-inconsciente no colo e carregou-a para uma ante-sala, longe dos olhos curiosos, acomodando-a gentilmente em uma poltrona. Agora, Jardine. Imediatamente. Jardine, vendo fnalmente confrmadas todas suas suspeitas sobre Tom e seu interesse em Hester, saiu apressado. No estou inteiramente inconsciente, sr. Dilhorne Hester gaguejou, em um fo de voz. Estou me sentindo apenas um pouco fraca e muito envergonhada. Sra. Waring, voc pode no estar desmaiada, mas parece muito doente disse Dilhorne, em um tom preocupado, que jamais Hester ouvira de algum em toda sua vida. Seus olhos se encheram de lgrimas. Deve ser porque comi demais e porque tenho agido de forma terrvel. No posso acreditar nisso, srta. Waring. Ah, mas devia, sr. Dilhorne. Eu me comportei muito mal com voc hoje. O que eu disse sobre a entrevista foi imperdovel. O sr. Jardine me contou o que fez por mim, naquele dia. No brigue com ele por ter me dito isso. Ele tinha razo. No podia deixar que eu o insultasse quando tinha sido to generoso. Olharam-se, em silncio. Tom, pela primeira vez, via-se sem palavras. Gosto de seu colete disse Hester, inesperadamente. No se recrimine respondeu Dilhorne gentilmente. Diante das circunstncias, era natural que voc pensasse assim. De forma alguma ela retrucou. Eu no devia ter chegado a concluses to erradas. Voc sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros, os doces para as crianas. De sbito, emendou, parecendo delirar: L em casa, tnhamos paves no jardim... Quando Jardine voltar com a gua e voc tiver bebido um pouco, eu a levarei para casa disse Tom. Est exausta e precisa descansar. Os olhos de Hester se fecharam. Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre... Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais no estava acostumada e o choque com as palavras de Jardine eram os responsveis por esse seu estado, assim como o fm de meses de sofrimento. Nada disse, porm. Apenas ajudou-a a beber a gua. At mesmo segurar o copo, Hester no conseguia. Ao ver que ela se recostava de novo, os lbios lvidos, ele a tomou no colo e carregou-a pelo salo at o carro, diante dos olhos atnitos do Conselho e dos professores. Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pedindo a ele que lhe desse alguns dias para o pagamento da parcela da dvida de seu pai. Larkin havia dito que cobraria juros pelo tempo de atraso. Hester havia engolido em seco, porm concordara. Precisava de algum dinheiro para comprar uni presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianas da escola. Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com uni pacote de balas e um bolo de passas para ela e os alunos. Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras pequenas gentilezas que ela e as crianas haviam recebido por parte de Dilhorne durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos por tantos anos houvessem feito com que no percebesse a forma gentil como ele a tratava. Bem, Dilhorne podia ser um homem perigoso nos negcios, porm com ela, no era assim. Lembrou-se da festa e no pde deixar de recordar do sentimento clido que havia experimentado quando ele a carregara pelo salo, chamando a sra. Cooke para ajudar a lev-la para casa. Aninhada em seus braos, Hester no sentira medo ou raiva, apenas uma sensao de conforto e segurana. O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de interrogao. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a escada e voltara, ainda com a mesma expresso no rosto, trazendo um copo de licor de chocolate quente na mo e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, disse, havia chegado pelas mos de um empregado de Tom Dilhorne. um enigma, esse Tom comentou a sra. Cooke. Mary Mahoney disse que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porm, no me importo em beber seu maravilhoso licor e em comer suas fnas guloseimas. Hester no podia fazer outra coisa, a no ser concordar. Sentadas na cama, as duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com coisas deliciosas. Hester no saberia dizer. Gole a gole, logo as duas fcaram levemente embriagadas e caram no sono. Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale No estou inteiramente inconsciente, sr. Dilhorne Hester gaguejou, em um fo de voz. Estou me sentindo apenas um pouco fraca e muito envergonhada. Sra. Waring, voc pode no estar desmaiada, mas parece muito doente disse Dilhorne, em um tom preocupado, que jamais Hester ouvira de algum em toda sua vida. Seus olhos se encheram de Lgrimas. Deve ser porque comi demais e porque tenho agido de forma terrvel. No posso acreditar nisso, srta. Waring. Ah, mas devia, sr. Dilhorne. Eu me comportei muito mal com voc hoje. O que eu disse sobre a entrevista foi imperdovel. O sr. Jardine me contou o que fez por mim, naquele dia. No brigue com ele por ter me dito isso. Ele tinha razo. No podia deixar que eu o insultasse quando tinha sido to generoso. Olharam-se, em silncio. Tom, pela primeira vez, via-se sem palavras. Gosto de seu colete disse Hester, inesperadamente. No se recrimine respondeu Dilhorne gentilmente. Diante das circunstncias, era natural que voc pensasse assim. De forma alguma ela retrucou. Eu no devia ter chegado a concluses to erradas. Voc sempre se mostrou muito gentil em suas visitas, levando-me os livros, os doces para as crianas. De sbito, emendou, parecendo delirar: L em casa, tnhamos paves no jardim... Quando Jardine voltar com a gua e voc tiver bebido um pouco, eu a levarei para casa disse Tom. Est exausta e precisa descansar. Os olhos de Hester se fecharam. Como sabe que estou cansada? Acho que eu poderia dormir para sempre... Dilhorne poderia ter dito a ela que a comida e a bebida as quais no estava acostumada e o choque com as palavras de Jardine eram os responsveis por esse seu estado, assim como o fm de meses de sofrimento. Nada disse, porm. Apenas ajudou-a a beber a gua. At mesmo segurar o copo, Hester no conseguia. Ao ver que ela se recostava de novo, os lbios lvidos, ele a tomou no colo e carregou-a pelo salo at o carro, diante dos olhos atnitos do Conselho e dos professores. Pouco antes do Natal, Hester havia procurado Jem Larkin, pedindo a ele que lhe desse alguns dias para o pagamento da parcela da dvida de seu pai. Larkin havia dito que cobraria juros pelo tempo de atraso. Hester havia engolido em seco, porm concordara. Precisava de algum dinheiro para comprar um presente para a sra. Cooke e algumas guloseimas para as crianas da escola. Logo depois disso, Tom aparecera na sala de aula com um pacote de balas e um bolo de passas para ela e os alunos. Deitada na cama, na noite da festa, ela se recordou, dolorosamente, de outras pequenas gentilezas que ela e as crianas haviam recebido por parte de Dilhorne durante semanas. Era como se o veneno que seu pai havia destilado em seus ouvidos por tantos anos houvessem feito com que no percebesse a forma gentil como ele a tratava. Bem, Dilhorne podia ser uni homem perigoso nos negcios, porm com ela, no era assim. Lembrou-se da festa e no pde deixar de recordar do sentimento clido que havia experimentado quando ele a carregara pelo salo, chamando a era. Cooke para ajudar a lev-la para casa. Aninhada em seus braos, Hester no sentira medo ou raiva, apenas uma sensao de conforto e segurana. O semblante da era. Cooke se transformara em um imenso ponto de interrogao. Depois que Tom se fora, ela havia ajudado Hester a se despir. Descera a escada e voltara, ainda com a mesma expresso no rosto, trazendo um copo de licor de chocolate quente na mo e alguns biscoitos deliciosos em um prato. Tudo aquilo, havia chegado pelas mos de um empregado de Tom Dilhorne. E um enigma, esse Tom comentou a era. Cooke. Mary Mahoney disse que nunca se sabe em que terreno se pisa, com ele. Eu, porm, no me importo em beber seu maravilhoso licor e em comer suas fnas guloseimas. Hester no podia fazer outra coisa, a no ser concordar. Sentadas na cama, as duas dividiram a comida e a bebida enquanto conversavam. Aqui e ali, a velha tentava arrancar dela o motivo pelo qual Tom a teria levado para casa e a presenteava com coisas deliciosas. Hester no saberia dizer. Gole a gole, logo as duas fcaram levemente embriagadas e caram no sono. Dormiram juntas, a era. Cooke enrolada no xale por cima da cama, e Hester entre os lenis. A manh de Natal encontrou-as com as cabecinhas ligeiramente pesadas de ressaca. Hester deu seu presente de Natal era. Cooke, que a convidou para o jantar de comemorao. Ambas estavam ocupadas com o molho, quando o mensageiro de Tom apareceu. Trazia uma carta para Hester, uma garrafa de vinho do Porto e um enorme pudim de ameixas para ambas. Hester abriu a carta em frente senhoria, que queimava de curiosidade. A letra, no envelope, era de uma caligrafa elegante e clssica, e Hester fcou a pensar, por um instante, se fora o secretrio de Tom que a subscrevera. Dentro, porm, a letra era a mesma e, sem dvida, era dele. Perguntava se ela se sentia melhor, pedia que aceitasse a garrafa de Porto e o pudim como um presente de Natal, e desejava poder v-la bem, e de volta escola, depois da passagem do ano. Levantou os olhos e deparou-se com o ar de interrogao da era. Cooke. Esquivou-se de dizer qualquer coisa. No tinha a menor idia do motivo que levava Tom Dilhorne a ench-la de gentilezas. No jantar, Hester descobriu-se contando sra. Cooke sobre o colete de Tom, todo bordado com paves, e da prola negra que usava na gravata. Que extravagncia! foi o comentrio da senhora. Eu me lembro dele, percorrendo as ruas de Sldnei logo quando chegou aqui, um rapazola atrevido de pernas compridas, se bem me recordo. Quem iria pensar em v-lo assim elegante e falando to bem? Hester fxou os olhos turvos na companheira: o vinho j fzera seu efeito. Elegante no bem a palavra ela corrigiu, com a voz arrastada. Algum poderia pensar que ele usou roupas assim durante toda sua vida. Sorriu, diante de uma sbita recordao. Quando eu era menina, ns tnhamos paves em casa. Bichos barulhentos. Gritavam e abriam a cauda. Lindos! Mame no gostava deles. Enfm, ela no gostava de muita coisa. Exceto de Rowland emendou. Depois do jantar, as duas deixaram-se cair no sof, para um cochilo prazeroso. Mais tarde, degustaram um ch excelente, que aliviou os vapores do lcool. O ch, evidentemente, viera das mos de Tom Dilhorne. As festas de fm de ano fcaram para trs, e as preocupaes de Hester voltaram. Larkin havia dado a ela at o dia cinco de janeiro para pagar os juros. Assim, depois das aulas, ela contou o dinheiro, colocou-o na bolsa e rumou para o pequeno estabelecimento de crdito. Tinha plena conscincia de que a quantia que estava prestes a entregar ao agiota poderia aliment-la e vesti-la pelo resto do ms. O escriturrio olhou-a com insolncia e apontou para a sala de Larkin, quando ela pediu para v-lo. Ela j se acostumara com essa falta de educao. Boa tarde, sr. Larkin disse ela, abrindo a bolsa e comeando a contar o dinheiro. Vim pagar o que lhe devo. Larkin ftou-a com estranheza. No preciso, srta. Waring, no preciso. Como, sr. Larkin? No estou entendendo... As dvidas de seu pai foram compradas por um colega de negcios, que queimou as promissrias em minha frente. O dbito no existe mais. Pode guardar seu dinheiro. Comprou as dvidas de meu pai e cancelou-as, foi o que disse, sr. Larkin? Na verdade, srta. Waring, foi isso. Mas, quem? ela indagou. Pode, por favor, me informar, sr. Larkin? No, srta. Waring. Ele deu ordens expressas que seu nome no fosse revelado. S Deus sabia como ela estava feliz por no ter mais essa pedra em seu caminho. Porm, a transao toda a deixava com um estranho sentimento de indignao. Foi o sr. Dilhorne, no foi, sr. Larkin? No tenho liberdade para dizer. No h necessidade de dizer mais nada, sr. Larkin. Sei que foi o sr. Dilhorne. Quem mais poderia ser? O que ele pensa estar fazendo, comprando as dvidas de meu pai sem falar comigo? No posso acrescentar mais nada, srta. Waring. Se posso lhe dar um conselho, escute: voc deveria fcar agradecida pessoa que me pagou e poupou- a desse encargo. Poupou-me desse encargo?, pensou Hester, indignada. Garrafas de vinho, biscoitos, licor de chocolate, pudim de ameixas, votos de felicidade pelo Natal! O homem estava louco? Saiu apressada em direo ao escritrio de Tom, determinada a enfrent-lo. Sim, enfrent-lo. Porm, quanto mais perto estava do prdio, mais compreendia tudo o que ele havia feito, desde o dia em que ela chegara s portas de cedro da rua George, entrada para o Conselho da Escola. Toda a raiva se esvaiu. No sabia o que dizer a ele. Alguma coisa, porm, precisava ser dita. Se Joseph Smith, o escriturrio de Tom, fcou surpreso ao v-la, nada demonstrou. Senhor disse Hester circunspecta , desejo falar com o sr. Dilhorne. Por favor, diga-me se ele est e se posso v-lo. Certamente retrucou Smith, todo corts, com uma ligeira inclinao de cabea. Srta. Waring, no ? O homem sumiu dentro do escritrio. Logo depois, retornava. O sr. Dilhorne est e pode receb-la. Por favor, por aqui. O escritrio de Tom Dilhorne era enorme, com duas janelas envidraadas, instalado em um dos primeiros edifcios da cidade, resultado do desejo do governador Macquarie de tornar Sdne uma bela cidade, nos moldes das capitais europias. Tom deu a volta escrivaninha de madeira macia, indicando a ela uma cadeira. Estava imaculadamente vestido, e seu efeito sobre Hester foi to forte quanto tinha sido na festa de Natal. Tomada de uma estranha excitao, ela encarou-o sem medo. Pagar pelos dbitos de meu pai, realmente!, pensou. Quem o autorizara a isso? Boa tarde, srta. Waring. A que devo a honra de sua visita? Vim conversar com o senhor. Ele endereou a ela seu sorriso enviesado e encantador. E, em seu estado de perturbao, Hester registrou na mente a maneira com a boca de Tom se curvava no canto e uma sobrancelha se arqueava, dando a ele um ar de pirata, que, longe de assust-la, como sempre fzera, deixava-a desarmada. Mas no se deixaria levar por essas sensaes, de jeito nenhum! Sim, eu percebi, srta. Waring. O que posso fazer por voc? No o que o senhor pode fazer por mim, sr. Dilhorne, mas o que j fez. Ele simplesmente sorriu, com uma expresso de curiosidade. Ora, no estou acompanhando seu raciocnio. Como se no fosse bastante ter cumulado de presentes a era. Cooke e a mim, com comida, bebida, e pudim de ameixa, voc tambm comprou e destruiu as promissrias de meu pai. Por favor, tenha a bondade de se explicar. Pensei que voc e a sra. Cooke iriam apreciar a comida e a bebida que mandei. O que h de errado? No h nada de errado, sr. Dilhorne. Claro que apreciamos. Gostamos tanto que fcamos satisfeitas por dois dias. No essa a questo. A questo que comprou todas as dvidas restantes de meu pai e destruiu os documentos. Com que direito fez isso e qual a razo? Ele puxou uma cadeira em frente a ela, sentou-se e inclinou-se para frente, com um trejeito nos lbios. Bem, eu pensei que voc gostaria de comprar seu prprio vinho do Porto e seu pudim de ameixa, no futuro. Ele estava to prximo que Hester podia ver as linhas de expresso em seu rosto, a fora de suas mos que repousavam no colo, e sentir seu cheiro de homem asseado, to diferente do cheiro azedo do fnado Fred, em seus ltimos dias. A indignao comeou a ceder. O senso de humor e do ridculo, longamente escondidos sob a opresso, a escravido e a negligncia, emergiram ante a uma conversa to cheia de entrelinhas. Voc sabe perfeitamente bem a que estou me referindo, ar. Dilhorne. Por qu, ora essa, vem falar de pudins de ameixa? Acho que foi voc que tocou no assunto, srta. Waring. Oh, por que no pode falar srio? Ela gemeu. Porque voc tem levado a vida muito a srio, por tempo demais. Um momento, srta. Waring. Ele levantou-se da cadeira e atravessou a sala at um esplndido aparador de carvalho, onde havia vrias garrafas de bebida. Abriu uma garrafa de vinho tinto. Encheu dois clices e voltou a sentar-se. Estendeu-lhe um dos copos. Boquiaberta, ela notou que a taa era de qualidade insupervel, como tudo, alis, no aposento. Agora, est agradando-me com vinho, novamente, ar. Dilhorne. E o costume, srta. Waring. Homens e mulheres, quando concluem um negcio e partem para outro, partilham de uma taa de vinho. Atnita com o comentrio, Hester tomou o vinho de um s gole, sem pensar. Outra taa, srta. Waring? Certamente que no, sr. Dilhorne. Est tentando me embebedar? No hoje, srta. Waring. Outra hora, quem sabe. O senhor falou em negcios, sr. Dilhorne. Que negcios? E como posso estar envolvida com eles? Bem, o primeiro a compra que fz dos dbitos de seu pai. Estamos celebrando o fato de que eu queimei os papis para que voc possa comprar seu prprio Porto e pudins. O segundo, direi assim que se sinta um pouco mais tranqila. Estou perfeitamente tranqila, sr. Dilhorne ela retrucou, na voz mais frme e gelada que conseguiu. Tarefa impossvel. Eu disse mais tranqila, srta. Waring. Por ora, vou chamar meu secretrio para que ele traga alguma coisa de comer. E meu hbito, a essa hora. Espero que compartilhe de minha refeio. Quando terminarmos, poderemos ter uma pequena conversa sobre assuntos de mtuo interesse. Espero que possamos chegar a um acordo. No imagino que tipo de negcio o senhor pode propor a mim, sr. Dilhorne. Aceito, porm, compartilhar de seu lanche acrescentou, com a boca cheia de gua ao pensar na comida. A julgar por tudo que dizia respeito a ele, deveria ser espetacular. Ele levantou-se, tocou uma sineta que havia sobre a escrivaninha, e logo Smith entrava na sala. O de costume. No, melhor, Joseph, e para dois. To depressa quanto possvel, por favor. Tom voltou-se para Hester. Ela se acomodara na poltrona, de olhos alertas como um gato caador. Vejamos, srta. Waring, sobre o que iremos conversar? Em nossa situao, creio que manda a educao que falemos sobre amenidades. Podemos conversar sobre as notcias de casa, quem sabe... Ele sorriu de novo, aqdele seu sorriso torto. Se pensarmos que decorre quase um ano antes que cheguem at ns, concordo com voc. Certamente, no querem dizer nada. Hester no conseguiu evitar que uma risadinha lhe escapasse. E Tom ftou- a com aprovao. Excelente, srta. Waring. Creio que vamos nos entender muito bem. Seguiu-se uma batalha verbal cheia de meios sentidos. Hester nunca se sentira to solta em sua vida. Uma conversa inconseqente era novidade para ela e tambm a facilidade com que se descobria respondendo s provocaes de Tom Dilhorne a surpreendia. A excitao a dominava. O secretrio retornou, carregando uma cesta. Smith caminhou at o aparador, apanhou pratos de porcelana, talheres de prata, mais copos, algumas colheres de diversos tamanhos e facas para frutas com delicados cabos entalhados em marfm. Puxando uma pequena mesa redonda, arrumou-a diante de Tom e de Hester, estendendo fnalmente, a cada um, guardanapos de linho adamascado. Isso feito, curvou-se em um cumprimento e saiu. Tom comeou a tirar da cesta po, manteiga, queijo, carne fatiada e frutas. Recomendo que prove de tudo, srta. Waring, incluindo desse vinho. Tirou uma garrafa da cesta e ps-se a abri-la. Serviu-a de vinho em uma taa ainda mais fna. Desta vez, ela ps-se a beber aos golinhos, de maneira educada. E no tentou esconder a fome diante da bela refeio. Mal tocara em comida desde as festas de fm de ano. Tom observou-a com satisfao. Por fm, tirou da cesta um grande abacaxi, que dividiu entre os dois. Comeram os pedaos com as mos, entre risos, o lquido escorrendo entre seus dedos. Hester, agora em sua terceira taa de vinho, nunca havia comido abacaxi antes e achou a fruta deliciosa. Uma delcia, porm faz um pouco de baguna, no ? Diga, no h uma maneira mais elegante de comer uma especialidade como esta? Smith entrou, trazendo uma pequena bacia e um jarro de prata, e toalhas para que pudessem lavar as mos. Outro empregado entrou, recolhendo pratos, talheres e a cesta, deixando apenas a garrafa e os copos. Sozinhos de novo, Tom serviu Hester de mais vinho. A terceira ou quarta taa?, ela perguntou-se, com a mente turva. Era evidente que ele estava tentando corromp-la pelo estmago. Porm, que deliciosa sensao de bem-estar uma boa comida trazia! S por isso, poderia perdo-lo por qualquer coisa. Ele sentou-se frente a ela, novamente, agora com a fsionomia muito sria. Srta. Waring, tenho uma proposta a lhe fazer. Por favor, no a descarte sem pensar. Oua cuidadosamente o que vou dizer. Sua felicidade futura pode depender disso. Ele fez uma pausa. Minha felicidade futura? Devo estar ouvindo coisas. Foi o vinho, pensou Hester, tomando outro gole. Como deve saber, ou talvez no saiba, srta. Waring, em breve perderei minha governanta, que vai se casar e morar em Paramatta. No preciso dizer que desastre isso para um homem que gosta de uma vida ordenada. Ora, voc, srta. Waring, seria uma excelente pessoa para dirigir minha casa. perspicaz e seria urna excelente companhia com a qual eu poderia conversar. Hester fcou a ouvir boquiaberta. Tentou imaginar-se conversando com ele. Tomou o resto do vinho, sentindo a cabea ainda mais confusa, e ele apressou-se em encher a taa novamente. Porm, temos um problema, srta. Waring. Por mais que eu queira empreg-la e por mais que voc queira o emprego, no h como uma senhorita, encantadora e jovem como voc, aceitar viver na casa de um homem como eu, que tem uma certa reputao... Voc est me entendendo, tenho certeza. Pense nas fofocas que surgiriam por a. Ele fez uma pausa, para depois continuar. Ora, eu tambm preciso de uma esposa. Uma dama, que saiba tudo de etiqueta e as coisas certas a fazer. E voc seria uma excelente esposa, srta. Waring. Porm, temo que no deseje, na verdade, casar-se comigo no sentido literal. Estou certo, no estou? Hester limitou-se a concordar com a cabea, incapaz de falar. No tinha certeza se era o vinho ou o choque com o que ouvira. Estava paralisada. Muda. Ele continuou. Sendo assim, j que concorda comigo, o que diria se eu pedisse que se casasse comigo, nominalmente, claro, de forma que eu tivesse uma esposa e uma governanta, e voc pudesse ter segurana, respeitabilidade e uma boa casa? Tom recostou-se na cadeira, sorrindo para ela, os olhos azuis faiscando, o sorriso torto mais torto que nunca. Insistiu: O que diria, srta. Waring? Hester engoliu em seco, incapaz de acreditar no que estava ouvindo. Penso que fcou louco, sr. Dilhorne, embora me parea em sua plena sanidade mental, o que, tenho de admitir, deixa-me um pouco confusa. Est falando a srio? Sim, estou falando realmente a srio. Nominalmente, foi o que disse? Hester sentiu que seria muito indelicado dizer simplesmente: No vamos dormir juntos?, ou, Voc no vai exigir seus direitos de marido? Estava realmente tendo uma conversa inacreditvel com ele ou era tudo um sonho? Estava bbada? Sim, nominalmente, srta. Waring. Pode me entender, tenho certeza. Como vou saber se, uma vez casados, voc vai manter sua palavra? Sempre mantenho minha palavra. a alma de meus negcios. Talvez fosse melhor que Joseph Smith redigisse um contrato para que assinssemos. Que acha, srta. Waring? Um de meus escriturrios pode servir de testemunha. Um riso nervoso escapou dos lbios de Hester. Acho que no, sr. Dilhorne, no iria fcar bem. Diga-me, existem muitos homens de negcio como voc? Felizmente no, srta. Waring, ou eu no seria to rico. Cada vez mais atordoada, Hester resmungou: O senhor quer... ah... uma resposta... imediatamente, sr. Dilhorne? Estava fcando difcil falar. Sua lngua parecia estar inchada, e a cabea rodava. Precisava descansar. Oh, como precisava! No, srta. Waring. Pode me dar a resposta quando quiser. Espero que no demore muito. Nenhum de ns est fcando mais jovem a cada dia que passa. Sem dvida, sr. Dilhorne. Uni sono incontrolvel a dominava. Sem demora, ento. O que era isso? Cada vez que se encontrava com ele fcava com sono? E essa proposta absurda? Uma parte de si desejava responder sim, imediatamente. Outra parte, infuenciada pela criao dos pais, dizia que ela estava louca em confar nesse rufo, no importava a forma magnfca com que hoje ele se vestia e falava. Seu Mentor, de sbito, emergiu. Devia ter fcado adormecido, enquanto Tom Dilhorne a enchia de vinho para dobr-la a sua vontade, e murmurou, provocador: Pense no conforto, na comida boa, na conversa, voc gosta de conversar com ele, voc sabe que gosta... E voc estar a salvo dos Larkins da vida e de seus funcionrios atrevidos. Hester bocejou e entregou os pontos. Eu lhe darei uma resposta em uma semana, sr. Dilhorne. Colocando cuidadosamente o copo ao lado da garrafa praticamente vazia, ela acomodou-se na poltrona e mergulhou no sono. Com um misto de divertimento e ternura, uma expresso que teria deixado atnito qualquer um que o conhecesse, Tom Dilhorne ftou-a e, levado por um impulso que no conseguiu identifcar, inclinou-se e beijou-a na testa. Ergueu-se, caminhou para a escrivaninha e retomou o trabalho interrompido, no sem antes olhar para o rosto de Hester, sereno no sono. Murmurou, para si mesmo: E se eu no lev-la por sua livre vontade para minha cama em poucas semanas depois do casamento, no me chamo Tom Dilhorne! Hester acordou com uma sensao de bem-estar e um desejo imperioso de usar o banheiro. Tom pareceu compreender. Apontou para uma porta atrs de si, dizendo: Por ali, srta. Waring. Hester saiu pela porta e para o quintal, at a edcula onde fcava o banheiro, antes que tivesse tempo para fcar ruborizada ou envergonhada com os pequenos detalhes da vida. Necessidades satisfeitas, fcou a pensar na natureza estranha de seu improvvel benfeitor. E na curiosa intimidade a que haviam chegado, em que no precisavam de palavras para tratar as coisas com racionalidade. Depois disso, foi para casa, como uma dama, no coche que ele providenciou, com a promessa de lhe dar uma resposta em breve. O empregado deixou-a na porta, para xtase da sra. Cooke. CAPTULO V Hester no precisou de uma semana para se decidir. Soubera, desde o momento em que ele lhe fzera a proposta, que iria aceit-la. Entre escandalizada e chocada, percebera que estava disposta a vender a prpria alma em troca de se- gurana. No teria concordado se fosse uni casamento de verdade, porm, ser esposa, governanta e anftri sem ter de partilhar a cama com ele parecia um bom negcio. Tom dissera que honraria o compromisso assumido, tinha que acreditar que assim seria. Estaria bem instalada, e sua vida no seria inspida, se as conversas que haviam trocado pudessem ser alguma indicao. Nessas ocasies, seu pavoroso Mentor constantemente a provocava, levando-a a fazer os mais imprprios comentrios. O que faria quando ela estivesse a ss e a portas fechadas com Tom? Hester afastou para longe as preocupaes e concentrou-se frmemente nas partes mais impessoais do acordo. Nada havia a temer, tinha certeza. Depois de Mary Mahoney, disse-lhe seu Mentor, sem qualquer delicadeza, por que ele haveria de querer lev-la para a cama? Talvez por piedade, quem sabe... Ela levou a mo ao rosto em chamas e gritou horrvel voz para que parasse. No era nada disso. S no queria ser s~ia esposa de verdade. Tinha medo dele, apenas. No tanto quanto j teve, a voz do Mentor insistiu, e quando o conhecer melhor, seus medos sero menores ainda. Em meio a suas afies, o mensageiro de Dilhorne apareceu, mais uma vez, com uma cesta de frutas e algumas fores. Se eu no conhecesse bem a ambos, eu diria que voc tem um admirador, srta. Waring foi o comentrio espantado da sra. Cooke, enquanto se deleitava com uma das frutas. Ao encontrar com Hester na rua, no dia seguinte, Tom inclinou-se gentilmente e murmurou um cumprimento em tom suave. Por suas maneiras, ela percebeu que ele estava comeando uma brincadeira que seu Mentor teria qualifcado como o jogo do gato e o rato. Ainda no tenho uma resposta para voc disse Hester, em um tom irritado. A semana no terminou, e voc no precisa insistir no assunto, bombardeando-me com frutas. Ah, voc e a sra. Cooke no gostam de frutas? Que pena! Posso lhe mandar vinho, ento? Sei que disso voc gosta. Seus olhos sorridentes caoavam dela, embora seu rosto continuasse srio. No deve me mandar coisa alguma at que eu tenha me decidido, ar. Dilhorne. Ou vou pensar que est tentando infuenciar minha resposta. E voc no acha que seria sbio de minha parte, srta. Waring? Tal conduta normalmente considerada til nos negcios. Isso, porm, no um negcio, ar. Dilhorne retrucou Hester, impulsivamente. Logo percebeu que o comentrio a deixava exposta aos ataques de Tom, novamente. No ? Eu tinha a impresso de que sim. Corrija-me, se estou enganado. Se bem me lembro, at falamos de um contrato por escrito. Voc falou em um contrato escrito, ar. Dilhorne respondeu Hester. Era fcil para ele desarm-la, fazendo-a ter vontade de cair na risada. Creio que falei bem pouco. Muito prudente e bastante recomendvel de sua parte, srta. Waring. Quanto menos algum fala, menos se compromete. Por que enveredamos sempre para uma conversa to ridcula, sr. Dilhorne? Ele a observou, muito srio. Se aceitasse meus presentes com a inteno com os quais so enviados, srta. Waring, poderamos, quem sabe, travar uma discusso mais substancial e profunda. A natureza da Santssima Trindade, por exemplo. Oh, voc impossvel! Hester exclamou, em uma gargalhada. Eu lhe darei minha resposta na tera-feira, e voc vai me prometer portar-se com seriedade, ou no posso responder por mim mesma. Na tera-feira, ao sair da escola depois de um dia atarefado de trabalho, Hester encontrou Tom esperando por ela, do lado de fora. Ele estava impecavelmente vestido, como de costume. Puseram-se a caminhar, lado a lado. Tom estava determinado a manter a seriedade, nessa ocasio to importante, e Hester fcou surpresa ao perceber que lamentava um pouco tal fato. Teve um bom dia, srta. Waring? perguntou ele, em um tom to solene, que Hester precisou conter uma risada. Na verdade, sim, sr. Dilhorne. Ela se esforou por responder. E voc? Tolervel, srta. Waring, tolervel. Calaram-se e continuaram caminhando em direo casa da ara. Cooke, despertando olhares curiosos por onde passavam. O que estaria a srta. Waring, uma moa to compenetrada, fazendo na companhia de um safado, como Dilhorne? Assim que chegaram, Tom perguntou: Pode me dar a honra de me fazer saber a deciso a que chegou a respeito de minha proposta, srta. Waring? Hester percebeu que tremia. Agora, que chegara o momento da verdade, estava com medo de no ter condies de dizer aquilo que precisava. Tinha pensado e pensado acerca da proposta de Tom. Ao fnal, conclura que a nica pessoa a quem precisava agradar, no mundo, era a si mesma. Ele oferecia muito a ela em troca de pouco, e o nico pagamento solicitado era que se apresentasse aos olhos do mundo como a esposa de Dilhorne. Todos os que estariam prontos a critic-la pela deciso encontravam-se confortavelmente estabelecidos e no tinham nem sequer idia de quais as alternativas que restavam a ela. Na verdade, sr. Dilhorne, fcarei feliz em aceitar sua proposta de casamento nos termos combinados. E me casarei quanto voc achar conveniente. Ele inclinou-se e, em uma atitude respeitosa, levou a mo de Hester at os lbios, surpreendendo no s a ela como a uma velha senhora que atravessava a rua. Estavam se tornando o alvo de fofocas em Sdnei, pensou Hester, sufocando uma risada. Ento, srta. Waring, acho que meu dever dizer-lhe que, agora que me deu sua resposta, e estou realmente honrado com ela, voc deve visitar minha casa, to logo quanto possvel, j que ser sua tambm, para que possa fazer as mudanas que julgar convenientes. Ficarei feliz em fazer isso, ar. Dilhorne, e em tomar ch com voc, se eu puder. Porm, julgo mais apropriado levar comigo uma companhia feminina. Voc no tem uma senhora em casa para me receber. Ah, srta. Waring, voc sempre sabe as coisas certas. Quem poderia acompanh-la? Pensei na sra. Wright. Mas, o que iria dizer o tenente Wright? Bem, eu me permito dizer que Frank sempre faz o que Lucy quer, e, alm disso... Ela ergueu timidamente os olhos, tentando adivinhar como poderia provoc-lo, desta vez . .acha que Lucy adoraria ver com os prprios olhos a casa que todos em Sidnei chamam de brbara, no concorda? Voc nunca pra de me surpreender, srta. Waring. E, nesse comentrio divertido, havia sinceridade. Quando posso esper-la, e a que horas? Na prxima sexta-feira, se lhe convm, s quatro horas da tarde. Nesse horrio, uma xcara de ch seria bem-vinda. Ele inclinou-se, em um cumprimento. Hester pensou, com uma certa ironia, que somente o ar. Tom Dilhorne poderia ter aceitado receber uma resposta no meio da rua. E, ao fazer isso, havia poupado a ela o embarao de ter de convid-lo a entrar, expondo a ambos curiosidade da sra. Cooke. Tudo que ele fazia parecia ter um propsito, concluiu. Tenho certeza de que no ir lamentar nosso acordo, srta. Waring. Ele deixou-a, em passos lpidos. Estava contente com a vida e consigo mesmo. Quanto a Hester, esta no estava certa do que sentia. Hester colocou seu melhor vestido, o que no queria dizer grande coisa, pensou, com tristeza, e foi visitar Lucy Wright. A amiga a recebeu calorosamente, reclamando do longo tempo que se passara desde sua ltima e desastrada visita. Quando tentara convid-la para a festa de Natal, Frank, pela primeira vez, havia feito p frme, e dissera que no a queria em sua casa. Lucy desistira. Agora, ao cumprimentar a amiga, recordou-se que Sarah Kerr havia comentado que Hester parecia no ter nada para comer, tal sua magreza. Observando-a melhor, via que seu vestido era to velho quanto aquele que trouxera para reformar para o Natal. Bem, quanto a isso, nada podia fazer. Porm, alguma coisa para comer, isso poderia providenciar. Tocou a sineta, pediu ch, po e manteiga e algumas fatias de bolo de passas. Hester tentou tomar o ch sem parecer gulosa. Uma tarefa difcil. O salrio agora dava para comprar um pouco mais de comida, ainda no o bastante para satisfaz-la. Torceu as mos, afita: ia ser mais difcil do que pensara pedir o favor a Lucy. Lucy, preciso pedir a voc murmurou de sbito. Voc sabe que estou sempre pronta a fazer algo para ajud-la retrucou Lucy solicita. Gostava de se julgar uma pessoa generosa. Vou me casar com Tom Dilhorne em breve. Lanando essa bomba em plena sala de Lucy, Hester calou-se. Casar-se! Com Tom Dilhorne? Oh, Hester, acha que isso uma atitude prudente? Tem certeza de que quer uma coisa dessas? No h outro pretendente? Com certeza voc sabe que ele um ex-condenado! Chegou aqui acorrentado, dizem. Alm do mais, voc uma dama! No, no h outro disse Hester dolorosamente. Nem haver. Nunca. Eu gostava do capito Parker, porm voc sabe que ele nunca me proporia casamento. No tenho dinheiro e no sou nem mesmo bonita. E bvio, na verdade, que a maioria das pessoas me acha feiosa. Sei que outros ofciais me julgam uma piada. Disse isso com uma voz impassvel, porm, no ntimo, havia a amarga lembrana de Jack Cameron e a maneira com que se referira a ela: a cria horrorosa de Fred Waring. Oh, no, Hester gemeu Lucy penalizada. Voc no pode crer em uma coisa dessas... Porm, um olhar para o rosto de Hester lhe disse que a amiga devia, sim, acreditar. Mas... Tom Dilhorne , logo ele? Por qu? Eu nem sabia que voc tinha alguma familiaridade com ele. Eu o conheci desde que entrei na escola. Tem sido muito gentil comigo. Pensei que ele no queria que eu fosse professora ~ por causa de papai, mas foi ele quem fez com que eu fosse indicada. Interrompeu-se e decidiu contar a Lucy um pouco, um pouquinho s da verdade. Alm disso, acho que Tom precisa de uma governanta tanto quanto de uma esposa, agora que a sra. Jones est de partida. Se isso era motivo para algum se casar, pensou Lucy, com tristeza, era a razo mais infeliz de que j ouvira falar, na vida. No disse nada, porm. Decidiu tambm no impedir Hester de levar adiante a idia, por mais inconveniente que aquele homem fosse para marido da afta. Waring, da Casa de Essendene e Lighthorne. Olhando para ela, era bvio que, como solteira, o futuro de Hester era sem esperanas. Porm, casar-se com Tom Dilhorne? E por qu, pelos cus, aquele sujeito haveria de querer despos-la? Na realidade, sei pouco sobre ele disse, fnalmente, a voz cheia de dvidas. Nunca conversamos, claro. Recordou-se, de sbito, daquilo que Sarah Kerr havia dito quando a criticara pela amizade com aquele safado do Dilhorne: que ela e Alan preferiam perder todos os outros amigos a romper com Tom. Sentiu um certo alvio. Sei que Sarah e Alan Kerr entendem-se muito bem com ele, e que deve haver algo de bom a seu favor. Sim retrucou Hester. No tinha inteno de discutir com Lucy sobre seu casamento com Tom. Voc fcaria muito aborrecida se eu lhe pedisse para ir comigo tomar ch na casa de Tom, na sexta-feira? Ele acha que devo conhecer a residncia antes da cerimnia, e sua presena tornaria as coisas mais apropriadas. Frank se importaria? perguntou, com uma ingenuidade aparente. Importar-se?! exclamou Lucy enftica. E melhor ele nem pensar! Estarei apenas ajudando minha melhor amiga, acompanhando-a em uma visita ao futuro marido. O que h de errado nisso? Alm disso, estou morrendo de curiosidade para conhecer aquela casa por dentro. Dizem os boatos que simplesmente brbara. Mal posso esperar! Certamente irei, e devemos ir juntas em minha carruagem. No quero que voc v caminhando at l. Seria totalmente inapropriado que eu fosse de conduo e voc a p. Sexta-feira chegou, e Lucy, maravilhosa em seu novo vestido de musselina creme, feito de acordo com o mais novo fgurino proveniente de Londres, parou em frente casa da ara. Cooke para apanhar Hester. Assim que a amiga tomou seu lugar, Lucy instruiu o espantado cocheiro para que rumasse para a manso de Dilhorne. O patro sabe? perguntou o homem, com um certo atrevimento. No preciso de permisso de meu marido para minhas aes retrucou ela com altivez. Dirija, vamos. Externamente, a casa, erguida em um terreno com uma vista surpreendente para a baa de Sidne, era uma manso clssica de belas propores. Por dentro, contudo, era totalmente inusitada. O vasto hall de entrada continha apenas dois vasos chineses, imensos, em azul e branco, e uma gigantesca urna de bronze apoiada sobre uma base de madeira. A urna era coberta com um intrincado entalhe e, em torno dela, se enrodilhava um drago, sua cauda desaparecendo na base e a cabea erguendo- se para rugir aos visitantes. O cho, de pedra polida, era recoberto por um imenso tapete chins de um desenho delicado e em lindas cores. A ara. Jones conduziu-as at a um salo onde Tom as esperava. Para os olhos da maioria dos ingleses, acostumados elegncia georgiana, a sala era ainda mais extravagante. Havia mais tapetes chineses sobre o cho de pedra, mais vasos de porcelana em cada canto imaginvel, mais bronzes, assim como peas laqueadas e uma pintura japonesa que ocupava todo o comprimento do salo. Um tigre perambulava pelo quadro, os olhos fxos nos espectadores. Lembrava seu dono, pensou Hester, que as observava com um sorriso enigmtico na face. Diante do quadro havia uma longa mesa, a superfcie esculpida em um nico bloco de madeira negra polida. Atrs de Tom, fcava uma gigantesca lareira em pedra bruta, sobre a qual havia pendurada uma espada de Samurai. Ao lado, uma armadura completa de um guerreiro japons. Trs ou quatro cadeiras e vrias mesinhas laqueadas, um jogo de xcaras sem asas, e vrios pequenos e delicados bolos em meio a mais pratos de rara porcelana esperavam pelas convidadas. Os olhos de Lucy pareciam discos, de to arregalados. Hester sentou-se, determinava a examinar tudo sem comentrios. A pedido de Tom, ps-se a servir o ch e a agir como anftri, depois que as apresentaes e as regras de educao haviam sido cumpridas. Bem, ara. Wright disse Tom , gostaria de conhecer o restante de minha casa aps o ch? Oh, sim, por favor... E... ... inacreditvel. De fato retrucou ele, com um ar impenetrvel. E voc, srta. Waring, o que pensa? bonita ela respondeu com convico. Eu tambm acho. Porm, voc sabe que, se no gostar de algo, s dizer, e eu mandarei mudar imediatamente. Lembre-se disso. Lucy ouviu aquilo com alguma surpresa. No sabia o qu esperar desse homem, mas, olhando para ele, recostado em sua extravagante cadeira japonesa, e escutando a maneira gentil com que falava com Hester, pensou que talvez a amiga no tivesse feito uma escolha to ruim. O restante da manso, quando Tom mostrou os demais aposentos, seguia a mesma decorao. Nos quartos, havia sedas belssimas penduradas, grandes divs com longos travesseiros rolios e almofadas enormes recobertas de tecidos maravilhosos. Nada de camas antiquadas e escuras. Pinturas em fnssimo papel de arroz com pssaros exticos e fores, penduradas por todas as paredes. Do lado de fora do quarto principal, dois dolos chineses de estmagos proeminentes ladeavam as portas de bronze. A impresso de beleza selvagem predominava. Depois disso, encontrar uma cozinha moderna e uma biblioteca sisuda com suas prateleiras cheias de livros e papis, foi at surpreendente. Hester haveria de tomar posse de uma casa cheia de tesouros, pensou Lucy. Tom observou as duas moas com um ar divertido. Hester acertara ao dizer que a curiosidade iria trazer Lucy Wright at ali, se qualquer outro argumento falhasse. E ele bem podia imaginar Frank e seus colegas ofciais sendo regalados com detalhes de como vivia um emancipista. Tambm estava plenamente consciente de que Lucy havia sucumbido a seus encantos pessoais, embora ele no tivesse feito qualquer esforo para isso. No o surpreenderia que ela j houvesse decidido que ele era um homem fascinante e que a sociedade de Sdnei estava errada em ignor-lo. O que o agradava mais que tudo, pensou, era que, por sua expresso e comentrios, Hester no iria transformar sua residncia em uma imitao de uma casa de campo ao estilo ingls. Viviam no Pacfco, afnal de contas, e a manso refetia isso. No que lhe dizia respeito, nunca pensara na Inglaterra como um lar, era penas um lugar com o qual fazia negcios, e at mesmo o comrcio era mais freqente com os portos e os centros do longnquo Oriente. A Nova Gales do Sul tinha dado fortuna rpida a ele, fortuna que pretendia tornar ainda maior. Tambm lhe trazia uma esposa, uma dama. bvio que o aceitara em virtude de sua triste situao, ele, um ex-condenado, um homem a quem, em circunstncias normais, ela se recusaria a conhecer. Porm, depois de subir na vida e deixar para trs o terrvel comeo, Tom estava agora determinado a fazer com que a dama que seria sua esposa jamais lamentasse a barganha. E se o amor e as emoes mais doces no tivessem quase nenhuma parcela ou importncia nas consideraes que haviam por detrs de sua escolha por Hester, ora, era uma vantagem, tambm. Pois amar algum era se tornar refm da sorte, e Tom Dilhorne no tinha a menor inteno em se deixar ser magoado, de novo. Casara-se com seus negcios e no mentira a Hester quando lhe fzera a proposta. Havia ainda um outro fator: queria desafar as convenes. Fi- nanceiramente bem-sucedido, um ex-condenado poderia at mesmo casar-se com uma dama de impecvel linhagem. E, para tanto, a feiosa e pobre Hester Waring era um trofu. Quando, fnalmente, conduzisse as coisas para torn-la sua esposa de verdade, como tinha inteno de fazer, para que pudesse ter unia me para seus flhos, isso, tambm, disse Tom a si mesmo com frmeza, seria apenas outra deciso de negcios. No, voc deve estar brincando, Lucy. Hester Waring vai se casar com Tom Dilhorne? Ridculo! Ela no pode oferecer a ele nem beleza nem dinheiro. E, alm do mais, casar-se com um emancipista! Lembre-se do que o pai dela pensava deles... e de Dilhorne, em particular. A reao da me de Lucy foi a mesma de todos, assim que a novidade espalhou-se por Sdnei como um rastilho de plvora. A sociedade que se reunia em Hyde Park no falava em outra coisa. As fofocas eram o combustvel daquele mundo restrito, e aquela, em especial, era mais extraordinria at mesmo da mais recente loucura do governador. Loucura que tambm envolvia Tom Dilhorne, a quem Mcquarie pretendia nomear juiz, assim como a seu amigo ntimo, o dr. Kerr. Dilhorne perdeu o juzo, para se casar com aquela mulher feiosa e sem um centavo, flha de Fred Waring caoou Jack Cameron, dirigindo-se a seus companheiros de caserna. Ele era sempre veemente em criticar Hester. Por alguma razo, o total desamparo da moa o incomodava. Julgava o fato uma piada, a unio do inominvel com o infortnio. Como tantos outros, Jack achava que o senso de oportunidade e o faro para um bom negcio tinham abandonado Dilhorne. Que tipo de barganha poderia esperar de Hester Waring? A menos, claro, que a desposasse porque ela era uma dama de linhagem nobre. E isso vinha mostrar a que desespero um safado emancipista podia chegar em sua luta pela respeitabilidade. Mesmo o governador, quando sua esposa lhe contou a novidade surpreendente, ergueu as sobrancelhas, com ar de espanto. No fez, contudo, qualquer comentrio. Sabia que tudo o que Dilhorne fazia era cuidadosamente pensado. No eram apenas os exclusivos que se entretinham com as fofocas. A ltima jogada de Tom Dilhorne era celebrada com risos nos bares de Sidnei, reduzidos agora a bem poucos por decreto do governador, que mandara fechar a maioria deles, outro ponto negativo nos registros contra ele. O ricao Tom Dilhorne, que poderia ter qualquer mulher ou quase todas, tinha escolhido a professorinha, o arremedo pavoroso de gente que era a flha de Fred Waring. Peso dos anos ou desespero, era o veredicto geral. Se nada disso chegou aos ouvidos de Hester diretamente, ela no pde deixar de perceber o furor que seu casamento com Tom havia despertado. Cabeas que se voltavam, olhares signifcativos, e quase sempre os parabns com ar de zombaria, de gente que difcilmente lhe dirigira a palavra por anos. Longe de enfraquecer sua deciso, as crticas a fortaleceram. E os comentrios de seu Mentor, em resposta aos comentrios, eram ainda mais duros e impublicveis que o normal. Afnal de contas, poucos dos que a criticavam tinham dado a ela mais do que um pedao de po duro. Apenas a ara. Cooke a ajudara, antes que Tom entrasse em sua vida. Mesmo a senhoria estava to surpresa quanto o resto da cidade. Hester era muito diferente de Mary Mahoney. E mesmo a antiga amante, que o conhecia bem, fcou a imaginar a razo que o movia. Com Tom, havia sempre mais do que as aparncias sugeriam. Os preparativos para o mais estranho casamento que Sdnei j presenciara avanavam rapidamente. Nem Tom nem Hester queriam nada espalhafatoso. Haviam concordado que, corridos os proclamas, postar-se-iam diante de um pastor na igreja. A presena de outras pessoas era dispensvel. Contudo, havia alguns que, ambos julgavam, deveriam estar presentes. Havia outros problemas a resolver. Hester estava preocupada que o casamento pudesse signifcar que teria que deixar a escola. As crianas fcariam sem professora. Confdenciou a Tom sua afio e, conhecendo o leque de recursos do noivo, no fcou surpresa quando, poucos dias mais tarde, ele lhe contou que achara a soluo para o caso. Por sorte, falei com o capito Ramsey sobre nosso desejo de no deixar as crianas sem professora. Ele trocou umas palavras com o sargento Fenton, cuja esposa dirige uma escola dominical para os flhos dos ofciais da guarnio. Ela fcaria muito feliz em tomar seu lugar, desde que voc a ajude no incio, j que foi to bem-sucedida. O que lhe parece? Oh, claro respondeu Hester alvoroada. Eu gostaria de continuar a ensinar por algum tempo, o que quer que acontea, porm, no futuro minha principal responsabilidade ser voc. E assim fcou combinado. Em um sbado, Hester disps-se a acompanhar o noivo casa dos Kerrs. Na verdade, no tinha vontade alguma de visit-los, porm no ousara dizer ao noivo que no o acompanharia. Ainda sentia um pouco de medo de Tom, pois, l em seu ntimo, ele continuava o mesmo Tom Dilhorne que seus pais haviam odiado tanto. Algumas vezes, ao espi-lo quando estava de rosto fechado, fcava a imaginar com quem estaria se casando. Sua aparncia fsica a atraa e amedrontava, ao mesmo tempo. E se, depois do casamento, ele insistisse em seus direitos de marido? Poderia confar em sua palavra? Conhecia sua reputao. Sabia, tambm, que existiam estrias tenebrosas com respeito forma com que conseguira sua fortuna, fortuna surpreendente para quem chegara colnia acorrentado. Havia rumores de que tinha sido um ladro muito bem-sucedido no submundo de Londres. Dilhorne queria contar ele mesmo aos amigos de sua inteno de casar-se com Hester, mas uma srie de circunstncias o impedira. Conseguira falar brevemente com Alan, em uma manh em que o encontrou cumprindo sua rotina de mdico. Alan fcou to boquiaberto quanto o resto de Sidnei. Hester Waring! No conseguia pensar em ningum menos adequado para ser a esposa de Tom e senhora de sua magnfca casa. A reao de Sarah foi idntica. Hester Waring! Voc deve estar brincando, Alan! Sei como est se sentindo. No, no estou brincando. Foi o prprio Tom que me contou. Mas, por que Hester? Sempre imaginei que Tom se casaria com algum formidvel, unia mulher bonita e inteligente, que pudesse fcar em p de igualdade com ele. O que ele pode ter em mente? Para ser mais exata, o que ela deve tem em mente? Ele vai devor-la! Talvez ela queira ser devorada. Ou talvez.., queira simplesmente comer... sugeriu Alan, em um tom estranho. Pobre ratinha morta de fome... Que casamento vai ser esse? S sei que todos vo querer ver com os prprios olhos. Os proclamas esto correndo. E eu convidei a ambos para jantar no sbado. Isso explica porque Tom no tem vindo nos visitar ultimamente! exclamou Sarah. Cachorro! Est namorando. Fico feliz que tenha feito o convite. No importa o que eu pense a respeito desse casamento, farei o melhor para ajud-los. O que vai diverti-la ainda mais continuou Alan , saber que Hester levou Lucy Wright como acompanhante, quando foi tomar ch na casa de Tom. Lucy foi sem o consentimento de Frank, que s fcou sabendo quando Pat Ramsey o interpelou a respeito, na caserna. Ora, como descobriu isso? perguntou Sarah surpresa. Depois que conversei com Tom, Pat apareceu e me contou que Frank tentou repreender Lucy pela visita. Lucy respondeu, ofendida, que Hester precisava de seu apoio, que Tom Dilhorne era um homem a quem julgavam erroneamente, e mandou que Frank voltasse ao trabalho sem lhe servir o almoo! Sarah explodiu na gargalhada. E bem prprio de Lucy. Cada dia que passa est mais parecida com a me. E verdade. Pat disse que Lucy est fazendo um relato que um verdadeiro guia de turismo pela manso de Tom, a seu ver uma mistura entre o Palcio Imperial de Pequim e o Museu Britnico. Todos que se recusavam a conhec-lo vo estar disputando um convite para o jantar de casamento, mortos de curiosidade. Sarah enxugou os olhos, marejados de tanto nr. Ora, a Villa Dilhorne era o apelido que dera casa de Tom maravilhosa. Mas, no h perigo que Hester venha a transform-la em algo aconchegante e comum? No, de acordo com Pat. Lucy contou que Hester, aparentemente, achou tudo de bom grado. Que fofoqueiros so vocs, os homens... disse Sarah. Sarah, precisamos dar apoio a Tom. Hester a esposa que ele escolheu. Ele tem sido um bom amigo e precisamos ajudar a moa. Ela no tem ningum no mundo. Mas fsgou o homem mais rico de Sdnei. Sim, sim, eu sei. Serei boazinha e no vou dizer ou pensar bobagens. Ela, porm, nunca gostou muito de mim. Acho que voc a assusta. Eu? Assustar algum! Que bobagem! Sarah recebeu Tom e Hester para o jantar com todo o carinho de seu bom corao. Tomou Hester pela mo, quando esta entrou, beijou-a na face, e disse: A esposa de Tom ser sempre bem-vinda em minha casa. - Intimamente, estava chocada. Achou que Hester parecia doente. E no tinha certeza, mas a moa parecia ter medo de Tom. Hester falou pouco durante o jantar, exceto uma vez, quando Tom inclinou- se e perguntou-lhe a opinio sobre o pudim que, para evitar parecer gulosa, ela comia com absurda lentido. Seu autocontrole s refeies ainda era um tanto frgil. Est excelente, sr. Dilhorne. O manjar dos deuses. E o que exatamente isso, srta. Waring? perguntou Tom, com um trejeito nos lbios. Bem, algumas vezes pudim de ameixas, e outras, algo que realmente gosto quando saboreio. Ambrosia, o nctar dos deuses do Olimpo, ar. Dilhorne. Sarah percebeu que havia mais nesse intercmbio de palavras do que os olhos ou os ouvidos podiam apreender. A expresso enlevada de Hester e o sorriso irnico de Tom no haviam escapado a ela. Mais tarde, quando Tom conversava, falando de alguns acordos com Sandy Jameson e de como o escriturrio de Jameson tentara engan-lo, Hester comentou: Tentou engan-lo, ar. Dilhorne? Teria que ser algum corajoso para faz- lo... Ora, ora, srta. Waring, devo considerar suas palavras como um elogio? Se quiser, ar. Dilhorne, se quiser. Agora, se estivesse vestindo aquele colete com os paves bordados, ele no teria nem sequer tentado. Da prxima yez que fzer negcios com Jameson, vou me lembrar disso. Mesmo assim... Ele fez uma pausa, de forma provocante, at que Sarah perguntou, impaciente: Mesmo assim...? Mesmo assim, eu o peguei pelo nariz, torci-o, disse a ele o que achava de suas maneiras, joguei-o no cho, gentilmente, sem rudeza, e, ento, passei por cima dele e fui direto ao escritrio de Jameson. E o que foi que Jameson disse? Tendo em vista que Macquarie quer torn- lo um magistrado, e voc acabara de agredir o escriturrio? Nada. Eu que disse que me lembrava do tempo em que ele no tinha um gato para puxar pelo rabo; e que, se permitisse que o escriturrio me insultasse de novo, seria seu nariz que eu torceria. E que eu estava pensando em cobrar o dinheiro que ele me devia relativo pedreira. Isso o deixou vermelho como um pimento e fez com que fcasse anormalmente gentil, posso assegurar. Fico feliz que voc no tenha feito negcios assim comigo comentou Hester, muito sria. Ah, voc sempre foi extremamente gentil comigo, srta. Waring. Pessoas gentis ganham vinho e pudim de ameixas. Eu deveria ter dito isso ao Jameson. Alan caiu na risada. Voc daria um esplndido juiz, obediente lei, Tom. Pensei que tivesse deixado para trs esse jeito rude de ser. Bem, em grande parte. Mas nunca demais lembrar s pessoas que voc ainda pode ter certas recadas. Tome aquele escriturrio, por exemplo, to educado quando o vejo agora, que poderia at dar lies srta. Waring, embora voc no precise disso, no , srta. Waring? Temo que precise, s vezes, sr. Dilhorne. Porm, se eu merecer um corretivo, espero que me puxar pelo nariz esteja fora de questo! Dependendo do que fosse, srta. Waring, eu poderia achar uma punio mais adequada... Mais tarde, o assunto do casamento veio tona. Alan seria o padrinho. Tom anunciou que gostaria que Robert Jardine conduzisse a noiva. Pois justifcou , se no fosse por Jardine, eu no teria o prazer de desposar a afta. Waring. Para surpresa de Alan e Sarah, Hester corou. Antes que pudesse se conter, Sarah perguntou: Logo Jardine, Tom? Por qu? Ele, gentilmente, deu referncias sobre o meu carter, quando a afta. Wanng exps algumas dvidas a meu respeito. Assim, se a srta. Waring consentir, Jardine a levar ao altar. Se voc no tem outra pessoa em mente acrescentou, voltando-se para Hester. Hester respondeu que no, com sinceridade; no havia, em toda Sidnei, um homem a quem pudesse pedir uma tal coisa. A menos, claro murmurou Tom, maldosamente , que o capito Parker pudesse prestar essa ajuda. Para satisfao de Sarah, Hester deu um tapinha gentil em Tom, dizendo: No, obrigada, sr. Dilhorne. O sr. Jardine far o papel melhor que ningum. Queremos um casamento tranqilo continuou Tom. Porm, tenho interesses comerciais que requerem ateno, se a srta. Waring no se importar. Como aqueles com o escriturrio de Jameson murmurou Hester, baixinho. E logo tentou fngir que no dissera nada. Nem sempre, como agora, era possvel silenciar seu Mentor. Gostaria de convidar Lucy Wright acrescentou , e isso signifca convidar Frank. No sei como ele ir se sentir, comparecendo ao casamento de um emancipista. Ah, ele ir disse Tom, com um sorriso. Como o resto de Sdnei, ele vai querer se divertir no dia de meu casamento. E o capito Parker, Hester? Certamente, vai querer convid-lo, no ? Por que deveria? foi a resposta de Hester provocao. No tinha idia de como Tom havia descoberto seu interesse pelo rapaz. Ah, Sarah... continuou Dilhorne , iremos precisar de sua ajuda para conseguir uma governanta, quando a sra. Jones partir. Hester vai se encarregar de tudo, mas precisaremos de algum para supervisionar a cozinha. A nica disponvel a sra. Hackett e no posso dizer que gostaria de empreg-la. Farei o melhor que puder respondeu Sarah , mas no tenho muita esperana. Voc sabe que h falta de mulheres na colnia, incluindo criadas. Depois que os convidados saram, Sarah e Alan se entreolharam. Ainda no acredito disse Sarah. Ela um pedao de gente esfaimado. Porm, creio que ele gosta dela. Talvez at mais do que saiba. Nunca pensei ver unia coisa dessas. E, o que surpreendente, os dois se entendem. Eu avisaria a algum que desse valor prpria segurana para no dizer nada contra Hester, na presena ou no de Tom. Alan concordou. Ele ainda perigoso. As pessoas se esquecem disso porque ele adquiriu maneiras perfeitas e roupas elegantes. Para coroar, vai se casar com unia dama. Verdadeiramente unia dama, apesar de sua terrvel estria. S Deus sabe a que alturas ele ir chegar, a esse preo. Porm, no fundo, continua o mesmo homem. E no se torce o rabo dos tigres, embora possam parecer ter se transformado em tmidos gatos. Ser que ela gosta dele, Alan? Eu usaria suas palavras.., mais do que ela tem idia. E a moa tem senso de humor, Sarah. Voc no estava errada quanto a isso. Concordo com voc retrucou Sarah. Mas, surpreende-me Tom agindo assim, saindo com ela, fazendo-a falar... Fico a imaginar o que era tudo aquilo sobre pudins de ameixa. Gostaria muito de saber. Acha que vai dar certo, ento? Alan estava srio. Havia entre Tom e ele um elo muito forte, desde que haviam se encontrado no navio que os trouxera para Nova Gales do Sul. Ento, fcara sobre a proteo do amigo, embora fosse o mais velho dos dois. Era um ingnuo frente ao mundo perigoso em que Tom Dilhorne circulava com desenvoltura. Agora, queria que ele fosse feliz. Oh, sim, certamente que sim, meu amor. Para surpresa geral, a srta. Hester Waring, solteira, vinte e um anos de idade, dama sem nenhum tosto, de uma famlia que ostentava uma linhagem que remontava aos conquistadores, casou-se com o sr. Tom Dilhorne, solteiro e ex-condenado, flho s Deus sabe de quem, provavelmente ilegtimo, de idade desconhecida at de si mesmo, embora se julgasse por volta dos trinta anos, e que, por seus prprios esforos, tornara-se o homem mais rico da Nova Gales do Sul. A cerimnia realizou-se na Villa Dilhorne, e foi simples e restrita como Tom havia dito que seria. Presentes apenas Alan e Sarah Kerr, Robert Jardine, Will French, Joseph Smith,os Wiights, a sra. Cooke, a menina Kate e os pais, senhor e ara. Smith. Os ltimos, por causa das galinhas, dissera Tom, em um tom srio, fazendo Sarah imaginar o que ele queria dizer com aquilo. Hester, claro, entendera a insinuao. Alis, j aprendera a prestar ateno a tudo que Tom dizia e a captar o signifcado oculto que freqentemente jazia sob seus comentrios aparentemente descuidados. Tom, sendo quem era, resolvera levar a srio a brincadeira de Sarah, e mandara gravar o nome Villa Dilhorne em um bloco de granito entrada da casa, para que os convidados no se perdessem pelo caminho. O governador Macquarie enviara a Hester um belo buqu de fores de seu prprio jardim, e Tom comprara a ela um vestido novo, passando por cima de seus protestos de que isso no era apropriado para um noivo. No quero que use um daqueles vestidos pretos no dia de seu casamento retrucara, com razo. No adequado. Olhando para si mesma, diante do espelho, na manh do casamento, Hester percebeu que no tinha adiantado muita coisa ter uma roupa nova para usar. Continuava magra demais e feiosa, mesmo depois dos esforos de Tom para que se alimentasse melhor, durante as poucas semanas que faltavam para a cerimnia. Seria o nico casamento em que a aparncia do noivo ofuscaria com- pletamente a da noiva. Comentou tal fato com Sarah Kerr, que escolhera como madrinha. Sarah no conseguiu dizer nada que pudesse levantar-lhe o nimo. A preocupao e os temores de Hester eram to evidentes que s faltava ela abrir um buraco no cho e enfar-se dentro dele, diante dos olhos dos poucos convidados. O noivo, entretanto, ostentava uma expresso que podia bem ser comparada a um gato extremamente satisfeito, que se fartara de leite. Fato que, ao olhar para a noiva, os convidados acharam um pouco estranho. Depois da cerimnia, foi servido o banquete de casamento, um sortimento de comida sem igual, s Deus sabe vindo de onde, j que em Sdnei no havia variedade de suprimentos. Todos se fartaram. Menos a noiva. Pela primeira vez, Hester sentiu-se enjoada diante de tantos pratos. Ao se despedir, Sarah pensou que nunca vira alguma coisa to miseravelmente afita como Hester Dilhorne, em sua esplndida casa nova, na noite de seu casamento. Marido e mulher fnalmente estavam sozinhos na imensa manso. E, surpreendentemente, Hester sentiu um enorme e inexplicvel ressentimento, quando Tom a conduziu escada acima, beijou-lhe a mo e disse: Boa-noite, sra. Dilhorne, na porta do quarto, antes de se dirigir a seus aposentos. Claro, no queria realmente que ele entrasse, pensou. A simples idia a deixava ofegante. Seu corao disparou. Um calor percorreu-a dos ps cabea. Sentiu-se to excitada e esquisita, que precisou tomar uni grande copo de gua e lavar o rosto para recuperar o domnio de si mesma. Tal no passou despercebido ao noivo. Boa alimentao, afeio e conforto fariam com que selassem uma unio de verdade, algumas noites mais tarde. Tinha certeza. CAPTULO VI O casamento de Tom Dilhorne foi o assunto da semana. Mesmo depois de passado o alvoroo inicial, sempre havia quem estivesse falando do acontecimento e imaginando como estariam se divertindo os recm-casados. A sociedade de Sdnei mal podia se conter, esperando sempre um fato que viesse alimentar sua curiosidade e manter suas lnguas ocupadas. Nos primeiros dias, quando Tom saia em seu coche, com Hester ao lado, logo fervilhavam os comentrios maldosos. Todos notavam a maneira solcita com que ele a tratava, ajudando-a a descer, carregando-lhe a bolsa, e, quando estava quente, abrindo a sombrinha para proteg-la do sol. Parece um homem com um novo brinquedo disse um engraadinho. Quem haveria de pensar uma tal coisa partindo do velho Tom? Parecia referir-se a ele como a um homem de sessenta anos. Na verdade, Dilhorne era visto na cidade como uma verdadeira instituio. Era difcil lembrar do tempo em que ele no dominava a vida econmica e social de Sidnei, mesmo no fazendo parte do restrito grupo social dos exclusivos. A casa do governador, entretanto, sempre tinha as portas abertas para receb-lo. Hester no tinha idia do que a esperava, em seu casamento com Dilhorne. Qualquer tentativa em imaginar seu futuro com ele tinha se chocado com a falta de conhecimento de como um homem assim viveria. E do que ele poderia esperar dela na estranha barganha que tinham frmado. A vida agora, era-lhe tranqila. Seu dia comeava no caf da manh, um ritual despreocupado, peculiar s maneiras de Tom. Ele aproveitava para ler papis e a correspondncia, enquanto comia e bebia em um ritmo lento, dirigindo a ela um ou outro comentrio. Tambm tomava notas em pequenos pedaos de papel que punha no bolso, e esquecia. Algumas vezes, dava a ela uma carta ou um dos papis, pedindo-lhe a opinio. A princpio, Hester se intimidara. Procurara dizer algo sem grandes pretenses, com a esperana que Tom no voltasse a agir dessa forma. Uma ttica sem sucesso. Logo percebeu que a nica maneira de satisfaz-lo era fazer comentrios procedentes, ainda que ligeiros. Era bvio que ele percebia o desagrado de Hester em comprometer-se. Mas tambm era igualmente bvio que Tom estava determinado a fazer com que ela se empenhasse em partilhar de seus negcios. Em uma dessas manhs, ele mostrou a Hester a carta de uni concorrente que lhe fazia uma oferta, primeira vista, atraente. Havia alguma coisa duvidosa por sob a aparncia de bom negcio. A carta deixava transparecer pouco que pudesse dar suporte a isso. Apenas sua intuio o guiava, como sempre. Hester leu a carta cuidadosamente e, depois, colocou-a de lado com um suspiro. E ento, sra. Dilhorne? Era assim que Tom a chamava agora, talvez para deixar claro que, a despeito de tudo, ela era sua esposa. Ou talvez para no a chamar pelo nome de batismo, Hester no tinha certeza. Fitou-o. Ele estava vontade, relaxado como um grande gato. Seu rosto, impassvel, imvel. Apenas seus olhos azuis, duros e frios, observavam-na. No gosto disso ela comeou, em um tom lento e hesitante. No sei por qu, mas h algo errado aqui. Exato, sra. Dilhorne. E eu tambm no sei dizer o que . Apanhou a carta. No podemos fazer negcio com ele, pelo menos no com base nesta oferta. Hester respirou aliviada. Tinha dito a coisa certa. Percebeu que Tom ainda a observava, enquanto reunia os papis e preparava-se para sair para o escritrio. E se eu tivesse aprovado? ela perguntou. Ele a brindou com um sorriso, aquele que deixava claro a amigos e inimigos que Tom Dilhorne enxergava longe. Ora, eu sabia que, se me desse uma opinio, seria essa. Seria esta? ela comentou, da forma breve como sempre fazia. Exatamente esta, sra. Dilhorne. O sorriso ampliou-se. -Voc tem perspiccia, certamente cultivada. Voc me deixa encabulada, senhor. Simplesmente lhe fao um elogio. E meu nome Tom. Ou, se preferir, Dilhorne. Nada de senhor para minha esposa, ou qualquer outra pessoa, dentro desta casa. Gato e rato, pensou Hester furiosa. Esse era o jogo que Tom empregava com as pessoas. Disse a si mesma que no o deixaria devor-la, e o sorriso que devolveu a ele foi to amistoso quanto pde imprimir no rosto. A resposta dele foi um beijo em seus dedos, que lhe arrepiou a carne, no s da mo como do corpo inteiro, de um jeito estranho, deixando-a insatisfeita pelo resto do dia. Sou seu ratinho de estimao, ela pensou encolerizada e ainda tremendo, quando se dirigiu cozinha para supervisionar os trabalhos. Ele no vai nem mesmo me devorar. Ah, no ele. Vai me manipular com patas macias, s para me mostrar quem manda aqui. Mas voc gosta disso, voc sabe que gosta disse-lhe a voz de seu horrvel Mentor , e no quer que o gato faa algo mais alm de brincar com voc sem a ferir. Ou quer? O que acha de uma brincadeira mais adulta? Oh, fque quieto, ela pensou, apavorada. De onde vinham essas idias horrveis? Ento, surgiu o problema com as roupas. Hester havia trazido um exguo nmero de vestidos velhos. Trajes pudos e fora de moda, que tinham visto melhores dias, e a maioria dos quais tinham sido feitos dos restos deixados por sua me. Nenhum deles prprios para sua compleio e seu tipo. Todos pretos. A sra. Waring guardara um luto perptuo pela perda de Rowland. Durante o caf, em uma das manhs, Hester sentiu o olhar de desaprovao do marido. A princpio, pensou que era pela opinio que tinha emitido. Logo, as palavras de Tom vieram desfazer o engano. Roupas, sra. Dilhorne disse ele, secamente. Roupas? ela murmurou, em um tom irnico. As suas so pouco estimulantes, sra. Dilhorne. Minhas roupas no precisam ser estimulantes, sr. Dilhorne. So as de uma dama. Sim, so. V falar com a sra. Herhert, no Emporium, e mande fazer alguma coisa menos sria e mais atraente. Minha esposa no deve se parecer com unia freira. As costureiras sabero o que fazer. Por alguma razo, Hester j entendem as maneiras de Tom. Sabia at aonde podia ir. Sabia tambm que ele preferia presena de esprito a submisso. No deve, ar. Dilhorne? No deve, sra. Dilhorne. Os olhos azuis mostravam que ele aprovava seu tom de desafo. Vamos jantar com o governador no sbado. Entre outras coisas, sou um rico comerciante, e minha esposa deve se parecer com a esposa de um homem rico. Porm... ainda assim uma dama, eu espero. O que usarei como dinheiro, sr. Dilhorne? Ora, nada, sra. Dilhorne. Use meu nome. Ficar estarrecida com o que isso far por voc, em Sdnei. Oh, no, isso no me causar espanto retrucou ela, rindo. Eu j sei. Hester saiu e comprou algo menos ostensivo do que aquilo que achou que Tom escolheria, embora o houvesse julgado de forma errada, como mais tarde viria a descobrir, mas sufcientemente fno e elegante, capaz de fazer o capito Parker erguer as sobrancelhas, com ar de espanto, ao v-la no Palcio do Governador, no sbado. Depois, foi a vez da comida. Durante a vida toda, desde que chegara Nova Gales do Sul, Hester havia passado fome. Como esposa de Tom, de repente podia entregar-se aos prazeres da gula. Ajudava a cozinheira e a sra. Hackett na cozinha e saboreava os resultados do trabalho conjunto com uma espcie de frentica delicadeza. Uma tarde, enquanto jantava, com uru ar de apreciao ainda mais evidente que o comum, ela ergueu os olhos e deparou com Tom, sorrindo. Era aquele seu sorriso de gato siams, que dava a entender que se divertia com algo que os outros no podiam ver. O que, pelos cus, poderia ter provocado isso?, pensou Hester, irritada. Apreciando o jantar, ara. Dilhorne? Realmente, esta carne de carneiro est excelente. Tambm acho. Cumprimente a cozinheira por mim. Voc deve enderear seus cumprimentos a mim, ar. Dilhorne. Ento, vou duplic-los, minha querida. Habilidade e beleza fcam bem em minha esposa. Ora, agora voc est brincando, ar. Dilhorne. Sua esposa no bonita. Tom encarou-a. Vrias semanas de boa alimentao e tratamento afetuoso haviam dado mais brilho aos frgeis cabelos de Hester, que comeavam a crescer fortes e ondulados. Sua compleio fsica agora j dava mostras de sade. Ela comeava a ganhar curvas onde antes nada existia. O divertimento dele aumentou ao observar a avidez elegante com que ela devorava a refeio. Voc nunca se olha no espelho, ara. Dilhorne? Com freqncia, ou de que outra forma eu me pentearia? De que outra forma, no mesmo? Era claro que Hester no tinha idia do quanto havia mudado e ainda continuava mudando. Achei que o capito Parker foi um tanto atencioso demais com voc, no ltimo sbado, considerando que voc minha esposa. Bobagem, ar. Dilhorne. O capito Parker sempre foi gentil. Mesmo quando eu no tinha amigos e era pobre. Ele agiu como sempre, no sbado. Gentil, como voc chama a isso... murmurou Tom, ignorando a verdade da ltima parte da frase, e o fato que Hester ainda no mudara o bastante para atrair um jovem bonito. Onde eu cresci tnhamos um outro nome para tal. Espero que ele se lembre de que voc, agora, minha esposa. Hester agora j o conhecia bem, para saber quando ele a estava provocando. O jeito lento de falar, os olhos ligeiramente cerrados, a maneira de observar como o ratinho reagia. E ainda assim, ainda assim, desta vez ela no tinha certeza. Sempre achei o capito Parker muito bonito ela murmurou, com um ar falsamente distrado, derramando uma generosa poro de creme de leite batido sobre os pssegos. de se esperar que ele encontre para si uma linda mulher que o agrade Cuidado com o creme, ara. Dilhorne foi a resposta de Tom a esse inesperado revide. No podemos nos arriscar a que voc fque gorda. Sei, por fontes seguras, que o capito Parker gosta das magras. Era quase impossvel venc-lo, pensou Hester, enfezada, e, para irrit-lo, colocou mais duas colheradas de creme. Gosto de creme disse desafadora , e comer um dos benefcios deste casamento. Um dos benefcios, ara. Dilhorne? Quais so os outros? Hester agitou a colher em um gesto pouco educado, respingando o creme sobre a toalha. Tom causava nela esse tipo de reao. Seu Mentor lhe disse que ele a estava corrompendo. Ento, gosto de ser corrompida, pensou ela, em retorno, feliz em dar o troco ao Mentor, pelo menos por uma vez. Alm de saborear creme, h quartos confortveis, o fato de eu no ter que me preocupar se posso pagar por um novo par de meias ou um vestido... e, antes que pudesse se conter, acrescentou: . . .e algum com quem conversar. Seu atrevimento tinha, sem que tivesse inteno, descido a um anticlmax. Ficou a imaginar o que Tom pensaria de urna lista to absurda. A expresso de Dilhorne continuou impassvel. Ele no iria se permitir deixar transparecer a piedade que o invadira diante dessa relao de coisas comuns, simples confortos da vida, como mostra dos benefcios que Hester julgava que o casamento lhe dera. Nem era a primeira vez que praguejava contra o egosmo lamentvel de Fred Waring, que privara a flha do mnimo necessrio. Nunca a deixaria perceber sua piedade. Ela poderia no acreditar nele, ou se ressentir com isso, furiosamente. E eu, sra. Dilhorne? Sou um dos benefcios de nosso casamento? A colher foi colocada sobre a mesa com cuidado. O que diria a isso? A verdade, claro. O rato podia no escapar das patas do gato, mas podia evitar ser maltratado. Realmente , sr. Dilhorne, como eu disse, O prazer de sua conversa compensa em muito as desvantagens da situao em que nos encontramos. Sempre podemos achar um remdio para isso, ara. Dilhorne. A reao de Hester, sugesto velada de acabarem com um casamento de mentira, foi imediata. Ela levou a mo boca, e seus olhos se arregalaram assustados. Tom encarou-a com um ar arrependido. Por trs das maneiras sedutoras e o aparente esprito de bravata, ela ainda no estava preparada para ser a esposa de Tom Dilhorne mais do que nominalmente. Tudo no passava de um jogo no qual ela podia brincar com ele, segura de que no haveria conseqncias. Bem, isso iria passar. Por ora, devia tranqiliz-la. Daria tempo ao tempo. Bocejou e no se esforou mais em conversar. Poderia provoc-la a dizer algo mais que ela pudesse vir a lamentar. Se fcasse quieto, Hester pensaria que o havia confundido. Homens e mulheres tinham um grande poder de autodecepo, como ele bem sabia pelos prprios e freqentes lucros. Enquanto isso, devia tentar faz-la ver que, lentamente estava se transformando em uma mulher atraente. Quando sorria e o desafava, fcava mais do que sedutora. Ele estava apenas parcialmente brincando quando a provocara, falando sobre o jovem Parker. Afnal, o rapaz tinha mais ou menos a idade dela e era de boa aparncia, louro e vigoroso. E isso o deixava estranhamente irritado. De sua parte, Hester, como Tom deduzira, concluiu que conseguira confundi-lo. O gato no tinha intenes de se atirar sobre a presa. A sra. Dilhorne podia ir, em segurana, para sua cama vazia. Ter empregado a sra. Hackett porque Sarah no fora capaz de encontrar ningum mais, foi um erro ainda maior do que Tom havia pensado. Para comear, a mulher detestava Hester. E detestava por no gostar de todas as mulheres mais jovens que ela; alm disso, Hester era feia demais e, para piorar, flha do velho beberro Fred Waring, e no havia como entender como conseguira casar com a fortuna, mesmo a fortuna de um emancipista. Quanto a Dilhorne, ela o odiava porque ele sempre a assustara, desde o tempo em que era esposa do cabo Hackett, e Tom era um recm-chegado levado at a Nova Gales do Sul fora. A empregada no era tola e logo percebeu que seus patres eram marido e mulher apenas no papel e dormiam em quartos separados. Ps-se a espion-los, observando-os furtivamente para certifcar-se de que suas suspeitas eram fundadas. E, ento, de posse dessa diveliid fofoca, boa demais para no ser partilhada, passou a espalh-la por todos os cantos de Sdnei. O que viria a seguir? Era inacreditvel! O esperto Tom Dilhorne perdera mesmo o bom senso. Alm de se casar com um espantalho, ainda arranjara uma esposa que no o deixava partilhar de seu leito! At que enfm, os boateiros tinham algo de slido em que enterrar os dentes. Madame Phoebe estava chocada com a novidade; a guarnio vibrava de alegria. Jack Cameron abriu um caderno, anotando apostas: Tom Dilhorne iria levar a esposa para a cama? Quanto tempo isso levaria? O casamento se manteria? Em uma tarde, Pat Ramsey contou a Lucy e Frank a espantosa notcia, depois de ter ouvido as fofocas no bar de Phoebe, na noite anterior. O casal se entreolhou e caiu na risada. Mesmo Lucy no se conteve e mal conseguiu encontrar um motivo para recriminar o marido, quando este, enxugando os olhos, disse: Nunca pensei que aquele pedao de coisa feia tivesse essa coragem. O grande Tom Dilhorne enganado por uma mulher. Ah-ah-ah! E to cheio de boas maneiras, agora, que no se impe a ela sem permisso. Desculpe-me, Lucy, mais isso demais! Outros boatos eram ainda mais indelicados. Correndo por toda a Sdnei, as conversas entraram at mesmo no Palcio do Governador e chegaram aos ouvidos de Lachlan Macquarie. O que estar aquele demnio maquiavlico aprontando agora? ele comentou com sua esposa. Conhecia Tom melhor do que a maioria e no podia acreditar que fosse passado para trs por Hester Waring. Outros, contudo, gostariam de acreditar que ele fora derrotado em sua pretenso. At mesmo Mary Mahoney, agora sra. Wilkinsou, sentiu pena dele. Os ltimos a saber foram os Kerrs. Muitos tinham medo de contar a novidade a eles. Em uma tarde, porm, ao visitar Lucy Wright, Sai-ah ouviu os comentrios envolvendo Tom e Hester, entre gargalhadas maldosas. O que isso, ara. Middleton? Voc est falando de meus amigos! Que tipo de difamao essa? Antes que sua me pudesse responder, Lucy, temendo uma exploso, em pblico, se Sarah tomasse conhecimento da fofoca, fez um sinal amiga e levou-a para outra sala. E contou-lhe o que toda Sdnei j sabia. No acredito! retrucou Sarah, com dureza, e, ento, calou-se. Tudo que havia imaginado acerca daquele casamento, a maneira com que o casal se comportava, de repente, encaixava-se. Lucy observou o rosto de Sarah mudar e deduziu que tudo era verdade, ento. Os boatos so verdadeiros. Sarah sabe. Mesmo ostentando ares de grande senhora, Lucy era jovem e irrefetida. E divertiu-se com aquela piada! Acha que verdade, Alan? Sarah perguntou ao marido, a ltima pessoa de Sdnei a saber. Pobre Tom. E se verdade, o que pode signifcar isso? Aonde ele pretende chegar agora? Creio que verdade. Eu vinha suspeitando disso h algum tempo. Hester no se parece nem age como uma mulher casada. Seu aspecto est mais saudvel do que antes, mas isso resultado de ter fnalmente o que comer. Contudo, Sarah, voc conhece Tom quase to bem quanto eu. Acredite, deve haver ai muito mais do que a cidade toda pensa. Confe em Tom, como eu confo. Consciente ou no dos comentrios sobre seu casamento, e seria estranho que no soubesse disso, pois Dilhorne sempre tomava conhecimento de tudo o que acontecia em Sdnei, Tom continuou a orientar a esposa pelos meandros de seu mundo. A princpio, insistiu para que se inteirasse de seus negcios. Vira muitas vivas de homens bem-sucedidos desbaratarem a fortuna que os maridos haviam lhes deixado e estava determinado a no permitir que Hester fcasse desprotegida. Dar-lhe as cartas para ler no caf da manh era apenas parte de seu mtodo de instruo. Nas tardes, ia alm. Uma semana aps o casamento, chamou-a at o escritrio, depois do jantar. Este aposento para seu uso, tanto quanto meu disse-lhe. Hester olhou ao redor, um pouco aparvalhada. Tom mostrou-lhe os livros de contabilidade, seus registros particulares e a ordem em que documentos e papis fcavam nas prateleiras. Lentamente, Hester aprendeu os mistrios da escriturao, dos descontos, dos emprstimos de dinheiro, do funcionamento do Emporium e seus armazns, da construo e manuteno de navios, g fabricao de coches, reboque de mercadorias, gerenciamento das pedreiras e das olarias, e at mesmo os segredos da arte de leiloar, da qual Tom era mestre. Muitas dessas coisas, ela achou tediosas, outras a interessaram e at mesmo despertaram um grande entusiasmo. Aprendia depressa, tinha a mente aguda, e impressionou-o pela rpida compreenso dos negcios e a maneira objetiva com que aceitou o que poderia parecer a ela um estranho aprendizado para uma dama. Certo dia, intrigada, perguntou: Por que tudo isso, Tom, por qu? Agora, quando estavam a ss, tratavam-se por Tom e Hester, deixando o senhor e sra. Dilhorne para as batalhas verbais que adoravam travar s refeies. Quero que saiba de tudo que fao, Hester. Voc a nica pessoa em quem confo e no quero outra. E minha esposa, ainda que apenas no papel. Acompanha o que lhe explico com habilidade invejvel. Se eu morresse de repente, ou fosse morto, j que este lugar ainda perigoso, no gostaria que fosse espoliada por algum. Ao ouvir a meno de morte, Hester estremeceu. E, sem pensar, abraou-se a ele. Instintivamente, queria ser tranqilizada, sentir a fora de Tom, saber que ele estava ali, que podia contar com a ajuda dele. De repente, a idia de perd-lo foi to terrvel que ela no pde suportar. Aprendera a confar totalmente no marido. Com a convivncia, o medo tinha sido substituido pelo bem-querer, bem mais que bem-querer, na verdade. Ela mal podia esperar para que Tom chegasse em casa, para estar com ele. Quando saam juntos e, por alguma razo, afastavam-se um do outro, ela o vigiava de longe. Os estranhos sentimentos que a presena de Tom despertavam nela estavam fcando cada dia mais e mais fortes. Queria... oh, Deus, queria o qu? Voc sabe perfeitamente bem o que quer, disse-lhe seu Mentor. E ele poderia lhe dar isso que deseja. Voc est comeando a lamentar sua barganha. Suponha que ele a beije agora. Apaixonadamente. Iria gostar? Claro que sim. Beij-lo, em retribuio, entre todas as coisas, seria a mais deliciosa... E, depois... Tom pousou a mo, com um ar distante, na cabea de Hester e acariciou- lhe os cabelos, procurando transmitir-lhe conforto. Sentiu que ela estremecia. Isso me parece to estranho ela murmurou, por fm. Voc a ltima pessoa que eu imaginaria, ensinando os meandros dos negcios a uma mulher. Ora, sra. Dilhorne ele retrucou, em um tom de zombaria , voc sabe que o primeiro dever de uma esposa agradar a seu marido. E voc me agrada muito fazendo isso. Ento, tentarei entender tudo, com o maior empenho, sr. Dilhorne. Apontou para a escrivaninha e para as paredes repletas de livros e papis. Porm, confo que no espere que eu seja o leiloeiro no prximo prego! No fnal da semana, Tom chegou a casa mais cedo e convidou Hester para ir at o jardim. Tinha uma surpresa para ela. Pondo de lado a camisa de seda em que bordava um monograma para ele, Hester se enrolou no xale e saiu. O jardim era grande, com topiarias ao estilo ingls e um gramado. Em um dos cantos fcava um pagode japons com uma mesa de madeira e cadeiras, pintadas de branco, colocadas uma em frente outra, onde costumavam tomar ch. Tom levou consigo uma caixa de mogno. Abriu-a e colocou sobre a mesa um coldre com uma pistola, uma cornucpia com plvora, balas, e uma bucha para carregar a arma. A distncia, enfara na terra fofa um pedao de madeira, cortado toscamente com a forma de um homem. Deus do cu, sr. Dilhorne, o que vai fazer agora? No o que eu vou fazer, sra. Dilhorne, mas o que voc vai fazer. Carregava a pistola enquanto falava. Preste muita ateno, Hester continuou. Depois, vou querer que voc a recarregue. Oh, no, Tom, no vou mexer com essas coisas horrveis! Oh, sim, Hester. Nova Gales do Sul um lugar perigoso e mesmo as mulheres deveriam ser capazes de se defender. Quero que aprenda a carregar e manejar uma pistola sem hesitar, como se realmente tivesse de matar um homem. Era intil protestar. Ele sempre vencia. Voc quer dizer que deseja que eu atire com uma dessas coisas? Exatamente. Deixe-me mostrar-lhe. Com pacincia e cuidado, Tom ps-se a ensin-la a atirar. Hester no era forte o sufciente para empunhar a pistola na posio tradicional dos duelos, brao esquerdo para trs, brao direito estendido, porm nem ele pretendia isso. Orientou-a para que segurasse a arma com ambas as mos, para ter frmeza. Voc no vai enfrentar um duelo, Hester, ento no h porque aprender um monte de regras. E ningum vai fcar esperando que voc atire. Atire primeiro, um tiro mortal. Ela o ftou, apavorada. S um idiota espera que o outro atire primeiro, e voc no idiota. No havia nada a fazer, a no ser obedecer a ele. Tom se mantinha infexvel, e Hester, aos poucos, acostumou-se com o barulho e o coice da arma. No estamos brincando de lordes e cavalheiros, em Londres disse ele, secamente, enquanto a ensinava a atirar em um ponto ao longe. Nem vamos brincar de atirar continuou, fazendo-a mirar a forma recortada na madeira. Voc estaria atirando em um homem, Hester, no em um crculo de papel. Sempre mire o peito e nunca a cabea. O trax um alvo maior, e voc certamente o machucar se o atingir. Nenhuma pistola efciente alm de uma distncia curta, de qualquer maneira. Hester logo compreendeu que, embora ele fzesse de tudo para que aquilo parecesse um jogo, no era jogo, era srio. Tentou agra d-lo, procurando perder o medo e tornar-se mais hbil. Era a nica maneira com a qual podia agradec-lo por salv-la da penria. E pela pacincia quanto s restries ao contato fsico desse estranho casamento. Nas primeiras lies, inevitavelmente fcavam muitos prximos, quando Tom se postava atrs dela e a ajudava a frmar a pistola. E essa proximidade, para Hester, era excitante. Seu corao batia mais rpido,, sua respirao mudava. E no s percebeu que no queria que ele se afastasse, como se ressentia quando isso acontecia. Tom tinha escrpulos. No procurava tirar vantagem desses contatos, mas Hester comeou a desejar que ele demonstrasse algum sinal de afeio. Descobriu-se ansiando por beij-lo no rosto cada vez que estava perto dela, e o desejo foi crescendo e fcando mais forte a cada dia que praticavam. Estava despertando para o mundo das sensaes que lhe havia sido negado durante toda a vida pela indiferena dos pais e rezava para que Tom no notasse suas estranhas reaes. Ele, contudo, estava atento a tudo. Sabia o que signifcavam, mas tambm sabia que devia ser paciente, no forar nada, ou ela poderia se retrair, de novo. Assim que Hester aprendeu a manejar a pistola com destreza, Tom fez com que ela praticasse todos os dias. Embora orgulhosa de seu desempenho, a outra conseqncia dessa intimidade continuada era perturbadora, para Hester. As noites, aps os treinos, eram insones. Ficava acordada, debatendo-se na cama, imaginando o que poderia estar acontecendo consigo. Tom poderia ter contado a ela o que havia de errado. Percebia como ela corava quando a tocava, para corrigir a pontaria ou a postura. Via tambm que Hester se apoiava nele sem necessidade. Ela teria fcado surpresa em saber como ele ansiava por tom-la nos braos e comear a ensin-la a arte do amor para a qual estava quase pronta. Ele, tambm, no conseguia dormir. E por mais motivos, j que estava determinado a no buscar alvio em casa de Madame Phoebe. Sua pacincia seria recompensada, tinha certeza. A hora se aproximava, a cada mudana no corpo e no esprito de Hester, e ela o receberia de braos abertos, sem pensar em repeli- lo. E se tomariam marido e mulher de fato, no apenas no papel. Em camas separadas, cada um deles encontrava conforto de maneiras diferentes. Tom se fxava em seu prximo negcio, e sonhava com maravilhas, no das mulheres, porm das porcelanas e sedas. E Hester? Hester fazia o que sempre fzera, desde que chegara a Sdnei. Imaginava-se de volta ao jardim de sua casa, na Inglaterra. Apenas com uma diferena. Quando mergulhava no sono e a porta, na muralha, abria-se, era Tom que entrava para cumpriment-la, e no seu irmo, Rowland, que morrera. Tom no estava surpreso com a inteligncia de Hester para os negcios, ou com sua crescente habilidade com uma pistola. Tinha uma viso pragmtica da vida. Anteriormente, notara que Madame Phoebe tinha um crebro muito melhor para negcios que muitos homens. E a coragem de sua prpria me, de quem se lembrava vagamente da longnqua infncia, sempre lhe parecera uma atitude exemplar. Hester tambm havia demonstrado uma excepcional fortaleza de carter, antes e depois da morte de seu pai. Na verdade, tinha sido por isso que a notara, a princpio. Ele no julgava que homens e mulheres eram iguais. Em seu mundo, no havia coisas tais como igualdade. Porm, achava que muitas mulheres que conhecia eram tolas, triviais e incompetentes, por, causa da vida que viviam e a que eram submetidas pelos homens. No que fossem mais tolas que a maioria dos cavalheiros. Apenas tinham menos oportunidade de serem diferentes. Sua compreenso da motivao humana e a habilidade para manipular as pessoas advinham do fato de no ter teorias de vida. Trabalhava unicamente com base na observao, aliada intuio que emergia dessa mesma capacidade e que lhe permitia enxergar alm dos fatos. Fora assim que descobrira as qualidades inatas de Hester Waringl A imagem da esposa, dia-a-dia ganhando confana e comeando a desfrutar de suas habilidades recm-descobertas, surgiu-lhe mente. E mais determinado que nunca, ele decidiu que faria dela sua mulher e a me de seus flhos. CAPTULO VII Hester postou-se diante da janela de seu quarto, olhando para o imenso oceano que a Primeira Esquadra Naval havia singrado at chegar a Botany Bay, em 2 de janeiro de 1788. 0 dia da chegada da Primeira Esquadra normalmente era comemorado em grande estilo. Era decretado feriado e at mesmo os condenados participavam dos festejos. Era distribudo rum entre a guarnio, e o governador promovia um grande banquete para o qual eram convidadas todas as pessoas relevantes da colnia. Este ano, as cerimnias ofciais tinham sido transferidas de dia, porque o governador fcara retido em Paramatta e somente agora, no fnal de fevereiro, MacQuarie promoveria o disputado banquete. Os Dilhornes haviam sido convidados, embora, como emancipista, Tom pudesse ser ignorado por todos os demais que estivessem presentes, a no ser o prprio governador e os Kerrs. Hester estava curiosa para descobrir como seus velhos amigos do regimento iriam trat-la. Ser que tratariam Tom com menosprezo? Seus pensamentos foram interrompidos por uma batida na porta. Era Tom, ela sabia. O marido era sempre cheio de escrpulos e nunca entrava em seu quarto sem se anunciar. Quando ela disse: entre, ele abriu a porta, hesitante por um momento, e avanou, estendendo a ela a gravata de seda amarrotada, com um sorriso infeliz no rosto. Desculpe, sra. Dilhorne, mas nunca vou aprender a amarrar essa coisa. Acho que voc pode dar um jeito nisso. Hester ftou-o, muito sria. No acreditava em uma palavra do que ele estava dizendo. Tinha notado que, ultimamente, Tom vinha pedindo a ela que o ajudasse a terminar de se vestir. A necessidade obriga, sra. Dilhorne era a desculpa habitual. Aonde isso iria parar? Ela gostaria de saber. A algo que voc haveria de gostar, murmurou seu Mentor, em um tom irnico. Eu costumava fazer isso para papai ela retrucou , depois que ele no podia mais pagar por um criado. Ela sabia que Tom no tinha um valete de quarto e mantinha poucos empregados na casa, alm da sra. Hackett, que tinha um quarto pr~amo da cozinha. As outras dependncias dos serviais eram afastadas da casa, perto das cocheiras. Hester puxou uma banqueta e ajeitou a gravata sobre ela, comeando a arrumar as pregas e o n. Este lao chamado de queda de gua disse. Era o predileto de Rowland. Acho que o que papai gostava era mais adequado para um homem de mais idade. Ento, voc no me considera um velho murmurou Tom. Que pena. Acho que agora que sou, no apenas seu marido, mas um dos mais eminentes cidados de Sdnei, eu devia parecer, a seus olhos, algum srio e compenetrado, a ser respeitado. At mesmo Macquarie deve me julgar com idade bastante ou no iria anunciar a minha indicao, e a de Alan, para a magistratura, hoje, durante o banquete, para desgosto dos exclusivos, eu suponho. Se seriedade e compenetrao so prprias de um velho retrucou Hester, levantando-se e estendendo-lhe a gravata, admirando seu trabalho , ento duvido de que o sr. Tom Dilhorne algum dia venha a ter tais qualidades, mesmo quando chegar aos noventa. Certamente nunca conseguirei, com uma esposa to atrevida murmurou ele, inclinando a cabea e beijando os dedos de Hester, quando esta lhe entregou a gravata. Diga-me, sra. D., o que aconteceu criatura meiga e doce que indicamos para ser a professora, no ano passado? Parece que ela desapareceu. Mais um comentrio desses, e voc vai parecer uma mula escoiceadora. Seu tom era divertido, no de reprovao, e Hester dirigiu a ele um olhar enviesado, por debaixo dos clios. Gostava de provoc-lo, de volta. Ora, senhor, um certo Tom Dilhorne apareceu na vida dela. Agora, vamos ver esses cabelos, sr. Dilhorne, esses cabelos... Tom olhou-se no espelho. Meus cabelos? Pensei que tinha dado um bom jeito neles, capaz de rivalizar com todos aqueles jovens ofciais cheios de vida de quem minha esposa gosta. Voc gosta de ofciais jovens, no , sra. Dilhorne? Hester o ignorou. Do jeito que est, voc pode se rivalizar com os vigaristas da rua das Pedras ela retrucou, com fngida severidade. Por favor, sente-se e deixe-me arrum-los. E uma mula escoiceadora, mesmo disse ele. Suponho que tudo isso porque voc teve de desistir da escola e no tem mais as crianas para mandar. Contudo, sentou-se e deixou que ela escovasse os rebeldes fos cor de areia. Agora murmurou Hester, espiando a imagem dos dois no espelho , por favor, diga-me porque no quer ser um juiz. Tenho certeza de que tem conscincia de que todos os exclusivos de Sdnei pensam que voc est ardendo de vontade de conseguir essa honra, e mal pode esperar que o governador marque a data. E cedo demais. Macquarie foi muito longe. Nunca serei aceito em uma sociedade tal como a de Sdnei. Alan, pode ser. Ele era um cavalheiro antes de ser deportado, enquanto eu... Fez um ar de desgosto . . .era a escria de Yorkshire e, depois, de Londres. Nem mesmo sei quem foi meu pai. A sombra de minha origem e da cadeia sempre vai estar sobre mim, por mais rico e poderoso que eu me torne. Seu rosto transformou-se subitamente. O ar divertido e de zombaria, normalmente visvel, praticamente desapareceu enquanto ele se olhava no espelho. C entre ns, minha esposa, ns criamos uma bela fraude, no mesmo? Sob sua orientao e travestido nestas roupas, falando como falo, e no como costumava fazer, eu pareo e me expresso como um perfeito cavalheiro. No, na verdade, no tenho vontade de ser um juiz. Creio que talvez eu deseje apenas provar que Tom Dilhorne, ladro, bandido, e comerciante, ainda Tom Dilhorne e pode rir na cara daqueles que se consideram melhores. Oh, mas voc j faz isso sem necessidade de ser um juiz disse Hester, com ironia. Ele se levantou, ergueu-a do cho e a chacoalhou no ar, gentilmente, dizendo: Agora eu sei por que me casei com voc, sra. D. Pensarei nisso quando nos sentarmos, de rostos srios, entre aquela gente respeitvel, hoje tarde. Que no estou mais sozinho, e que tenho algum com quem partilhar meus pensamentos secretos, mesmo que voc no partilhe a minha cama. Colocou-a no cho. Estamos prontos para encar-los em todos os sentidos, minha querida. Miller vai trazer a carruagem para que possamos chegar ao Palcio do Governo em alto estilo. Hester, claro, estava certa ao pensar que Tom seria tratado com menosprezo. Ele sentou-se mesa do lado oposto a ela, na bela sala do Palcio do Governo. Todos comiam sob a luz dos candelabros e ao som da banda do Regimento. Nem uma alma, alm do governador, dirigiu a palavra a ele. Ao fnal do banquete, os brindes comearam. At ento, as senhoras e os cavalheiros haviam brindado entre si, fazendo tinir as taas e trocando gentilezas. Pat havia feito um brinde a Hester, porm ningum brindara com Tom, cujo vinho continuava intocado, a sua frente. A banda comeou a tocar, suavemente desta vez, e com grande sentimento, a marcha do Regimento, Meu amor uma rosa vermelha, muito vermelha, para acompanhar o brinde ofcial. O criado de libr que coordenava a saudao pediu aos convidados que erguessem suas taas. O barulho dos convidados ao se levantarem foi seguido pelo som de um sbito tumulto na ponta da mesa, distante dos Dilhornes. Um jovem tenente, que havia bebido mais do que era conveniente, levantou- se, antes que a ordem fosse dada, e comeou a gritar para o Governador. No! ele bradou. No erguerei uni brinde nem jurarei lealdade a Sua Majestade, o rei George III, na companhia de bandidos e da escria que deveria estar trabalhando sob correntes! Voc pode ser o governador aqui, senhor, mas abusa de minha integridade moral se quer que eu partilhe do Brinde da Lealdade com ele. Apontou para Tom e, erguendo a taa ao alto, ps-se a despejar o brilhante liquido vermelho sobre a toalha da mesa, em uma cascata. O rumor cresceu. O coronel OConnell, o rosto to avermelhado como o vinho esparramado, deu uni murro na mesa. Cale a boca, seu idiota! Perdeu o juzo? Outros ofciais, sentados perto dele, embaraados que o jovem embriagado houvesse dito aquilo que todos pensavam no ntimo, procuraram fazer o rapaz sentar-se. Este, porm, no pretendia silenciar, e gritou novamente, antes que o major Menzies lhe tapasse a boca com a mo: ele que est louco berrou, indicando Macquarie, que se sentou, imvel, o rosto transformado em pedra, enquanto o tumulto continuava. Pedir a ofciais e cavalheiros que se sentem mesa e confraternizem com um sujeito como Dilhorne, pensar em fazer dele um magistrado... E vocs todos que aqui esto so uns hipcritas, que... O resto da frase se perdeu por trs da palma larga da mo de Menzies. Cabeas se viraram. Homens riam socapa. Mulheres tremiam. A nica pessoa impassvel na sala, alm de Macquarie, era o prprio Tom. Ele sorriu, pegou sua taa, e fcou a observar o jovem ser arrastado, esperneando, para fora da sala pelos constrangidos ofciais. Os protestos sufocados continuaram at que, fnalmente, ele sumiu atravs das portas duplas do salo. A expresso, no rosto de Tom, era imperscrutvel. Ele se voltou para a esposa do major Middleton, sentada a sua direita, que havia demonstrado seu desprazer por sua presena, no lhe dirigindo uma nica palavra durante o banquete, e disse: Vamos, madame, brindemos ao nico homem honesto nesta sala. Ele, e somente ele, teve a coragem de dizer aquilo que vocs todos esto pensando. Merece vivas por isso, certamente vocs o invejam. A ara. Middleton encarou-o e retrucou, em um tom glido: Sendo assim, sr. Dilhorne, fca-se a imaginar porque voc escolheu passar por isso. Tom continuou a segurar a taa no alto, a boca torcida em um sorriso. Ora, madame, eu vim aqui porque o governador me convidou, como fez com a senhora. No queria que eu o insultasse, recusando o convite, no verdade? Hester observava a tudo fascinada. Ah, conhecia aquela expresso e aquela voz. Percebeu que Pat Ramsey continha o flego, viu que o rosto da sra. Middleton tornava-se to vermelho como uni peru. O governador devia ter mais bom senso... a mulher comeou e, ento, percebeu o que Tom havia feito. Ele a obrigara a dirigir-lhe a palavra, no uma vez, mas duas, embora ela houvesse jurado intimamente, assim que soubera quem fcaria a seu lado na mesa, que jamais aquele homem ouviria uma palavra de sua boca. Pior, ele a levara a defender-se, quando era quem deveria estar se defendendo! Algumas pessoas ela se dirigiu a todos, mesa sabem seu lugar e se mantm nele! Tom bebeu seu vinho, esvaziando a taa antes de responder: Concordo com a senhora, madame. Seu sorriso era mortalmente perigoso. E, hoje, meu lugar aqui, nesta mesa, a seu lado. Olhou para o copo. Veja s, sra. Middleton, a esposa do major, no mesmo?, creio que bebi todo meu vinho e no sobrou nada para o Brinde da Lealdade. Afnal, no ter que brindar comigo... Pat Ramsey comeou a rir, no conseguindo se conter, lembrando-se do conselho que havia dado a Jack Cameron, de nunca travar batalhas verbais com Tom Dilhorne, pois estaria perdido. Seu marido arranca minha admirao disse a Hester. Apenas, eu... No precisa dizer mais nada pediu Hester, cortando-lhe a palavra. Sei exatamente aquilo que est pensando, capito Ramsey, e o mesmo que aquele pobre tenente. Voc sabe, tanto quanto eu, que Tom est certo. O rapaz a nica pessoa nesta mesa a dizer a verdade, e vai ser punido por isso. Ele vai estar com a cabea pesada pela manh e com tempo para pensar em sua tolice respondeu Pat. Agora, precisamos fazer o Brinde, da Lealdade, voc e eu. Ergueu a taa. Tom levantou o copo vazio e fez uma reverncia, primeiro para a sra. Middleton e, ento, para Hester. Ao ar. Dilhorne e a mim disse Hester, em tom de desafo. Ao que Pat retrucou, divertido: Bravo, minha cara Hester. Espero que sua lealdade a ele merea uma recompeRsa digna de sua coragem. Por um instante, Hester pensou que o capito estava brincando. Porm, talvez no estivesse. Ela estava comeando a descobrir que Pat Ramsey tinha qualidades ocultas. Depois do brinde, todos os convidados dirigiram-se ao jardim. Em grupos fechados, discutiam com grande animao, entre divertidos e zangados, tudo que havia se passado. A opinio geral era que Macquarie havia merecido um tal susto por ousar forar o inaceitvel dentro do Palcio do Governo, onde se supunha que tais desclassifcados, como Dilhorne, nunca fossem recebidos. Hester, seguida por olhos curiosos e reprovadores, recusou o convite de Pat Ramsey para acompanh-la e saiu, procura de Tom. Este estava impassvel como sempre, conversando com o governador, que fzera questo de aproximar-se dele no momento em que o jantar terminara. Tomara-o pelo brao e caminhara a seu lado para o jardim, em uma clara demonstrao de seu desprazer com o comportamento dos ofciais de seu antigo Regimento. Vendo que Hester se aproximava com unia expresso de desafo no rosto, Tom desculpou-se junto ao governador, tomou o brao dela e afastou-a dos convidados, levando-a at uma pequena alameda de pinheiros atravs dos quais, l embaixo, o oceano distante podia ser visto, desmanchando-se em ondas. Sentiu que ela tremia e murmurou, com doura: Ora, vamos, ara. Dilhorne. Voc foi uma moa corajosa l dentro. No lhes d a satisfao de mostrar-se aborrecida. Aborrecida?! exclamou Hester, elevando a voz. Eles que deveriam mostrar-se aborrecidos... Psiu... ele a interrompeu, em um tom gentil. O que aconteceu no nem mais nem menos do que aquilo que eu esperava. Talvez Macquarie agora perceba que minhas advertncias tm fundamento. Tenho que confessar que, em primeiro lugar, sua conduta em nos convidar, insistindo para que aceitssemos e, depois, fazendo questo de me honrar com sua ateno aps o tumulto, ainda que pessoalmente seja gratifcante para ns, no foi uma atitude nem sbia nem sensata. Alan me ensinou um ditado, em latim, um sobre o qual o governador deveria ponderar. Festina lente, ou traduzindo em linguagem vulgar, V devagar! Ele sorriu com sarcasmo. Voc deve compreender o ressentimento deles, Hester, e aprender a viver com isso. Agora, me d um sorriso. Estamos nos divertindo, no mesmo? Logo, vo espocar os fogos de artifcio. Voc vai gostar de ver, eu sei. E a banda est prestes a comear a tocar, o que, pelo que todos beberam, ser uma aventura, por si s. Subitamente, Hester percebeu que ele procurava tranquiliza-la, que nada do que tinha sido dito ou feito contra ele tinha o poder de feri-lo, e que ele estava tentando faz-la reagir da mesma maneira. Como se pudesse ler-lhe os pensamentos, Tom continuou, suavemente: Eles querem v-la aborrecida. Sorria e parea feliz, isso ir irrit-los ainda mais. o que fazem os japoneses. H uma luta, chamada jud, na qual usam a fora do oponente para derrub-lo. A despeito de tudo, Hester esboou um sorriso. Era bem prprio de Tom ouvir um insulto e us-lo para tirar alguma estranha lio de vida, em vez de permitir que isso o perturbasse. Ele percebeu sua expresso e apertou-lhe a mo carinhosamente. Will French, um dos amigos e rival de Tom em negcios, aproximou-se. Sra. Dilhorne disse ele, com seu jeito franco e rude , est com timo aspecto. Corada, na verdade. Oh, apenas efeito de uma crise temperamental, sr. French retrucou Hester espirituosamente. Ah, claro concordou French. Ouvi dizer que um dos jovens ofciais se encrencou. Mesmo para Sdnei, essa fofoca andou rpido emendou Tom, realmente divertido. French ftou-o com dureza; no conseguia compreender Dilhorne. Bem, no foi sobre isso que vim conversar. Importa-se que tratemos de negcios, senhora? Antes que Hester pudesse responder, Tom interveio: Se tem alguma coisa a dizer, French, pode fazer isso na frente de minha esposa sempre que quiser. Pois bem... Voc tem sido um bom amigo e sempre jogou limpo comigo. Achei que gostaria de saber que h um mercado clandestino de bebida e mercadorias do governo, ultimamente. Pensei que havia um acordo com OConnell de que o que estava aqui, em compromisso, seria distribudo por seu intermdio, e o suborno pago aos militares. Isso era novidade para Hester. Tom sabia o que ela estava pensando. E hora de voc saber como essas coisas so organizadas, Hester disse a ela. Ento, French, algum, um ofcial, ou ofciais, quem sabe, est roubando, por baixo do pano, lgico, em vez de s dares, e o material est sendo vendido por toda a Sdnei? French concordou. E isso est sendo feito sem o conhecimento de OConnell? Novamente, French concordou. Meus agradecimentos disse Tom, muito srio. Vou fcar atento. Ningum pode sair por ai com a parte do leo e passando a perna em seus colegas ofciais, sem dizer nada a Tom Dilhorne. Hester no pde se conter. Deixou escapar uma risada. Tom ftou-a com fngida severidade. Acha graa, no , querida? Acha graa que algum esteja fazendo Dilhorne e a scia de trouxas? Scia? perguntou French, um tanto espantado. Scia repetiu Tom, apontando para Hester. Era sua recompensa, ela sabia, por trabalhar duro e tentar se comportar como ele o faria. Tom comeara, agora, a dizer ao mundo que os dois eram mais que um simples casal de marido e mulher. No podia agradec-lo no momento, no em frente de Will French e dos espectadores hostis. Ao invs disso, ela fcou a observar alguns dos soldados particulares do 73~ Regimento caminharem pelo gramado, trazendo tochas nas mos, para acender os galhos cortados dos grandes pinheiros que apontavam para o cu. Outros acendiam lanternas entre o arvoredo para iluminar a penumbra crescente. Os primeiros fogos de artifcio comearam a espocar. A banda tocou uma verso de Fireworks Music, de Handel, distorcida pelo efeito do lcool, para acompanhar o espetculo. De semblante deslumbrado, Hester admirou o show de luzes e cores, esquecida dos insultos ao marido e dos ladres que surrupiavam mercadores. Tom, ao contrrio, fcou a observ-la e no aos fogos. Aquele ar inocente e deliciado, inesperadamente, penetrou em sua alma empedernida e amargurada. French, ao ft-lo, fcou surpreso. Ento, Dilhorne tinha um ponto fraco, afnal, e era a esposa feiosa, entre todas as pessoas. Quem haveria de imaginar unia coisa dessas? Essa mesma constatao faziam muitos outros, com um sorriso cruel. No incio, Tom at fzera descaso das fofocas desagradveis que circulavam por trs de suas costas. Seu casamento fora uma deciso tomada a sangre frio, e Hester, uni trofu, a melhor parte do jogo. E, se nisso tudo, seduzi-la e lev-la para a cama era apenas mais uma jogada, estava se tornando, surpreendentemente, bem mais que isso. No era apenas o fato de viver em ntima proximidade com Hester o que o levava a desej-la. Possu-la inteiramente no era simplesmente um mpeto da carne, era a prpria Hester que o compelia a faz-lo. Sentia-se tomado por unia emoo que o homem duro em que se tornara jamais sentira por qualquer mulher, por mais que tivesse gostado de suas amantes, e era algo absolutamente distanciado de sexo, apenas. Tinha experimentado um tal sentimento somente uma vez antes, quando se encontrara inesperadamente com Alan Kerr, confuso e perdido no navio, abandonado entre lobos humanos que viam nele uma presa sexual, todas as certezas de sua antiga vida destrudas, e sem entender a brutal realidade da nova situao. O mpeto de proteger algum to desamparado como Alan, em sua misria, havia desabado sobre Tom, na ocasio. E o levara a lhe oferecer sua amizade, o que permitiu a Alan sobreviver, e o resultado havia sido um relacionamento duradouro. Em Hester, ele encontrara algum mais que precisava dele. O mesmo impulso que o levara a salvar Alan assaltara-o desde a primeira vez que a vira, desde a entrevista at o dia em que a desposara. Para a prpria surpresa, ele estava comeando a se apaixonar por ela, no sentido mais completo e verdadeiro. A alegria inocente com a qual ela abraara a nova vida, sua cabea equilibrada, suas feies e o corpo gradualmente forescentes, e sua fora e inacreditvel lealdade a ele durante o banquete, tudo comeava a causar seus efeitos. Descobria-se pensando nela o tempo todo. Se fazia ou via alguma coisa interessante quando estava longe dela, lembrava a si mesmo de contar a ela, quando chegasse em casa. Um novo par de luvas, um leque bonito, que via ao entrar no Emporium, era logo apanhado como um presente a Hester, na certeza de que faria seu rosto reluzir de prazer. Qualquer lembrancinha, por insignifcante que fosse, a quem, como Hester, nunca recebera nada, causava uma imensa alegria. No dia anterior, ele fora supervisionar o desembarque de uma carga de seda chinesa. Chamara a sra. Herbert e ordenara que mandasse fazer um vestido para Hester. E surpresa, lembre-se disse a ela. Voc tem as medidas dela, e quero que seja um modelo da moda, porm simples, sem muitos enfeites. Use um dos moldes que chegaram de Londres, e cuide que ela no saiba de nada. E evite olhares signifcativos ou coisas assim. A asa. Herbert sempre respeitara o gosto de seu patro quanto aos trajes femininos, vestira Mary Mahoney, um gosto que julgava incongruente para um homem forte e sensual tal como ele. Os outros empregados riram quando ele se foi. Cheio de douras com ela, no acham? Olhem o que j levou para casa esta semana. No por vontade prpria que vai para a cama sozinho, posso apostar. A madame acha que boa demais para ele foi o comentrio geral. Se Tom sabia o que estava sendo dito s suas costas, tudo lhe era indiferente. O jogo que jogava com a vida ditava que soubesse e compreendesse o que as pessoas pensavam, diziam e faziam e, ento, usava isso contra elas mesmas. Somente um tolo dava importncia opinio de tolos e, aos olhos frios de Tom Dilhorne, a grande maioria das pessoas era tola. Estavam casados havia quase dois meses quando, uma certa tarde, Tom chegou em casa mais cedo e contou a Hester que, quando descia a King Street, um dos aborgines o havia parado e dito a ele que estava para desabar uma violenta tempestade naquela noite. Muitos europeus poderiam rir diante de tal profecia. Tom, porm, aprendera em sua vida dura que nada devia ser ignorado. Os aborgines j o haviam alertado antes, sobre coisas assim e, usualmente, estavam certos. Por isso, dera uma moeda ao homem. Este arreganhara os dentes e murmurara alguma coisa em sua estranha linguagem, que Tom esperava fosse algum tipo de agradecimento, mas que julgara fosse algo mais parecido com coitado de voc, pobre homem branco. Caso ele esteja com a razo Tom disse a Hester , vamos sair para um piquenique e observar a tempestade em campo aberto. J presenciou uma tempestade, Hester? Hester confessou que nunca vira. Bem, ento no h nada a perder e, se no houver tempestade, teremos passado uma tarde agradvel ao ar livre. Miller, o empregado, arreou os cavalos da carruagem, e Tom trouxe comida da cidade para o piquenique. Partiram pela campina at chegar a uma clareira, distante de Sdnei, em um promontrio do qual se via o mar, de um lado, e as montanhas distantes, de outro. A princpio, como dissera Hester, tudo no passara de um rumor. Nada de tempestade. Comeram a comida e beberam o vinho que, premeditadamente, Tom colocara na cesta. Mais vinho! exclamou Hester. Voc est me transformando em unia beberrona, ar. Dilhorne. Mas voc se comporta bem melhor, agora disse Tom, que nunca se cansava de mim-la, ultimamente. Colocou o xale em suas costas, deixando que os dedos se demorassem em seu pescoo. Sentiu que ela estremecia a seu toque e perguntou, ansioso: Est com frio? Em resposta, Hester corou e murmurou: No. E inclinou-se ligeiramente, recostando-se contra ele. Se a proximidade afetava Tom, afetava Hester ainda mais. Seu medo dos homens havia comeado a desaparecer, e o que comeara a sentir por Tom estava muito distante de temor. Tom gostava de comer ao ar livre e desfrutar de um piquenique no campo, o que freqentemente faziam. Isso inclua dar de comer a Hester na boca, com ela lambendo-lhe os dedos, como se fosse um bichinho de estimao, Hester pensava, divertida. O Dilhorne bicho-papo havia, h muito, desaparecido de seus monlogos interiores, para ser substitudo por Tom, que lhe trazia presentes e descobria coisas interessantes e divertidas para fazer. Ele havia prometido a ela que iriam nadar um dia e acrescentara, com um ar malicioso: Porm, visto no sermos realmente casados, sra. Dilhorne, difcil resolver o problema do qu vestir. Hester cara direitinho na armadilha. Como, ar. Dilhorne? Bem, nadar s vale a pena quando no se est preso pelas roupas. Pela primeira vez, Tom percebeu que ela no fcava ruborizada ao ouvir uma insinuao ousada. Pareceu ponderar sobre o assunto. No tenho experincia, ar. Dilhorne, com roupa ou sem ela, e no posso afrmar que tenha razo. Naquela tarde, deixaram que o piquenique se estendesse, e Hester foi tomada de atrevimento. Descascou uma laranja, colocou os gomos de laranja na palma da mo, levando-os aos lbios do marido, dizendo: Sua vez de bancar o bicho de estimao, sr. Dilhorne. Tom, em resposta, lambeu-lhe a mo, como se fosse um garanho vido por abocanh-la at o cotovelo. Depois de beberem o vinho, estenderam-se na grama. E Tom exigiu como prmio o chapu de Hester, se ela fosse incapaz de responder qual a taxa corrente dos Bnus do Tesouro, em Sdnei. Que utilidade ter meu chapu para voc, se ganhar? perguntou ela, que acabara de descobrir que sua taa de vinho, infelizmente, estava vazia. Tom ftou-a, reclinada a seu lado. Hester usava aia vestido de musselina sussa, um xale fnssimo, qual teia de aranha, e um chapu de palha com uma fta azul em torno da copa, cujas pontas amarrara sob o queixo. Sua aparncia havia melhorado tanto que era quase inacreditvel. Sua tez estava mais clara, com um rosado delicado, seus cabelos haviam ganhado volume e brilho. A expresso, ultimamente, era de um inocente mistrio. Seu chapu to atraente, querida, que talvez us-lo melhore minha aparncia tambm. Essa provocao sutil, para os padres de Tom, confundiu-a. Ela o avaliou com os olhos, admirando-o em sua cala de seda negra, a camisa da mesma cor, um cinto escarlate em torno da cintura, e disse-lhe que no tinha resposta para uma colocao to fora de propsito. Aonde isso iria terminar, Tom no sabia. Hester estava to descontrada que qualquer coisa parecia possvel, mesmo ali, ao ar livre. A tempestade, ento, resolveu fazer parte do jogo, e os acontecimentos tomaram um rumo inesperado. Justamente no momento em que Tom disse a Hester que a gola de seu vestido estava torta, o ribombar de um trovo anunciou que a prometida tormenta se aproximava. Pode arrumar, por favor? Meus dedos esto desajeitados com o vinho, sr. Dilhorne justifcou-se ela. Surpreso, Tom comeou a abrir-lhe a gola, com uma total falta de habilidade, roando os dedos no pescoo de Hester, provocando arrepios que a percorreram de alto a baixo, uma sensao realmente deliciosa que ela jamais havia experimentado antes. Hester saltou ao violento estrondo de um trovo, e Tom resignou-se diante do fato: o primeiro assalto no fora repelido, porm no surtira efeito. O comportamento de Hester, contudo, era tal que ele apostava consigo mesmo que ela poderia se descobrir uma mulher casada de verdade pela manh. Ficaram a observar a tempestade distante, por longo tempo, empenhados naquele jogo de provocaes, at que Hester deu um grito de susto quando um raio iluminou o cu, e um trovo ribombou. Era a oportunidade que Tom queria. Envolveu-a nos braos, oferecendo proteo, e abrigou-a de encontro ao peito. Nova experincia estranha, para ela, logo posta de lado ao perceber que a chuva se aproximava rapidamente. Ao se afastarem um do outro, era tarde demais. A carruagem estava longe e, agora, viam-se literalmente ensopados. Estranhamente, caram na risada. Diverso ainda maior foi resgatar o tapete do cho, as coisas do piquenique, a sombrinha de Hester e o casaco de seda de Tom, tudo encharcado pela chuva torrencial. Longe de extinguir a excitao, ambos prestes a romper com os termos do acordo, isso adicionou um toque a mais de tempero. Se Hester ainda no havia compreendido totalmente para onde a situao rapidamente se conduzia, Tom no tinha quaisquer dvidas quanto a isso. Ainda rindo, os dois correram para a carruagem. Tom praticamente lanou Hester para dentro, e, aoitando os cavalos, dirigiu para casa to depressa quanto pde. Para Hester, que sempre tivera medo de tempestades, tudo parecia fantstico. Agarrou-se a Tom, enquanto a carruagem cruzava a tarde escura, os troves e os raios espocando sobre suas cabeas. Segure-se em mim, ara. Dilhorne, logo chegaremos em casa, sos e salvos. A resposta dela foi uma risada. O aguaceiro era implacvel. A gua escorria pelos cabelos de Hester, e suas roupas estavam encharcadas. Tom voltou-se para ela, e seus olhos luziram quando um raio cruzou o cu. No est assustada, sra. Dilhorne? gritou, para ser ouvido acima dos troves. No! E era verdade. Estando ao lado dele, no tinha medo. Eram apenas os dois em meio ao mundo selvagem. Hester quase desejou que aquela corrida maluca nunca terminasse. Agarrou-se ao brao de Tom, e ele v~ltwi-se, de novo, para tranqiliz-la. Viu, porm, que no havia necessidade. A satisfao que o dominava tomara conta de Hester tambm. Tinham se unido na alegria de estarem juntos e de enfrentarem o mundo inteiro. Os poucos meses de casamento os levara a esse momento de prazer compartilhado. Toda a decepo, toda a amargura, tinha se esvado do corao de Tom. Se havia desposado Hester em parte para desafar o mundo ao qual ela pertencia, iria fazer dela sua esposa de verdade, e s porque ela era Hester, e ele era Tom. Se pertenciam aos exclusivos ou aos emancipistas, isso era irrelevante. Para Hester, o que estava acontecendo era quase como algum sonho impossvel. A felicidade que as ultimas semanas haviam trazido a ela, a perda gradual de seus medos do estranho marido, e a substituio desse sentimento pela afeio, que rapidamente se transformava em um amor apaixonado que ela ainda no sabia como expressar, tudo era algo que nunca pensara experimentar. Dissera a ele que no estava com medo, e era verdade. Tivera, unia vez, porm fora antes de conhec-lo. O bom senso poderia dizer que ela devia tem-lo, mas o que quer que ele fosse perante os outros, ele era o homem que a libertara da priso na qual vivera por mais de vinte anos. Abandonada, ignorada, desprezada, deixada a morrer de inanio ou condenada a se prostituir, os fatores externos de seu mundo no tinham qualquer signifcado em face daquilo que estava comeando a sentir por ele. A viagem estava perto do fm. A villa surgiu diante deles, branca em meio escurido. CAPTULO VIII Um ultimo estrondo de trovo saudou-os, na chegada. Tom ajudou Hester a descer e, ento, tomou-a no colo, chamando pelo empregado, para que levasse os cavalos e a carruagem para as cocheiras. O rapaz correu a atend-lo, de boca aberta e de olhos fxos no casal, observou o patro caminhar para casa com Hester nos braos. Tom subiu a escada com pressa, a gua escorrendo por suas roupas. A sra. Hackett, a quem no tinham visto, entreabriu a porta e espiou pela fresta. Ao ver que ele carregava Hester para o quarto, beijando-a a cada degrau da escada, o rosto da empregada contraiu-se de desgosto. De sbito, Tom surgiu, correndo para o prprio quarto, para reaparecer quase imediatamente, com uma garrafa de brandi na mo e toalhas sobre o ombro. Bateu porta do quarto de Hester e entrou. Encontrou-a tentando secar os cabelos ensopados. Ela o ftou. A gua escorria pelo rosto dele, dos cabelos encharcados, e, como as dela, suas feies irradiavam um brilho misterioso. Ele caminhou at a penteadeira e colocou uma dose generosa de brandi no copo, oferecendo-o a ela. Beba isto, ara. Dilhorne, vai lhe fazer bem. Hester sentiu como se alguma invisvel mo, que a segurara pelas costas durante toda sua vida, houvesse sido removida. Tomou o copo e, recordando-se do pai, engoliu a bebida de um s gole. Imediatamente, engasgou e ps-se a tossir, o lcool queimando-lhe a garganta e escorrendo como um fuxo quente em direo a seu estmago. De olhos lacrimejantes, voltou-se para ao marido, que ria da expresso de seu rosto. Muito corajoso de sua parte, ara. Dilhorne! Avanou para ela, segurando uma das toalhas. Deixe-me ajud-la a secar-se. Ela poderia ter recusado, afastando-se, lembrando-o do acordo. Hester, porm, descobriu que unia estranha excitao a tomava. Longe de se sair com um cerimonioso: Oh, no, sr. Dilhorne, posso fazer isso sozinha, tinha mais vontade de sentir as mos de Tom em contato com seu corpo. Pior, ou seria melhor?, a proximidade entre os dois, que deveria faz-la encolher-se de desgosto, provocava um ataque de risinhos, na verdade. E Tom parecia no apenas disposto a enxug-la, mas a tirar-lhe as roupas, e, o mais estranho, tirar as dele tambm! Esto muito encharcadas, sra. Dilhorne, no vamos arriscar a provocar uma febre. Longe de assustar Hester como antes poderia ter acontecido, isso provocou nela uma sensao inusitada. Estavam quase nus, enrolados em uma das toalhas gigantes que tinha trazido. Voc vai pegar uma gripe, sra. Dilhorne, se continuar a tremer assim. Deixe que eu a ajude a trocar de roupa. E ajud-la a vestir-se signifcava toc-la por todo o corpo. Na verdade, ele o fazia muito suavemente. Porm, agora, o tremor no era de frio. Hester estremecia pelo efeito que aquelas mos lhe causavam. A princpio, os toques eram quase casuais e inocentes. Lentamente, porm, ele se ps a massagea-la nas costas e ombros e, logo, corria as mos por seus quadris e os selos. Os polegares fechavam-se sobre seus mamilos retesados e os apertaram de um jeito estranho. O prazer que a invadiu fez com que Hester no apenas gritasse, mas se apertasse contra ele, o que serviu apenas para dar a Tom novas oportunidades de acarici-la e toc-la, tudo isso em meio a murmrios, dizendo que, logo, ela estaria aquecida outra vez, ele poderia assegurar! A sensao de algo se derretendo em seu ventre tomava-se cada vez mais forte. As mos atrevidas a percorriam e, quando abandonaram seus selos, Hester quase se ressentiu, para descobrir, no entanto, que elas haviam se transferido para a parte interna de suas coxas e, l, buscavam um lugar ainda mais secreto, apalpando e acariciando. Tom estava em silncio e, ao invs de murmurar-lhe palavras doces, ele a beijava no rosto, no pescoo, nos ombros e, fnalmente, nos seios desnudos. E ela descobriu que aquela boca cheia de surpresas, comprimindo-lhe os mamilos, dava-lhe um prazer ainda maior que aquelas mos. As carcias provocavam uma sensao to poderosa dentro de Hester, que ela pensou que iria, literalmente, queimar em chamas. Todo o senso de vergonha, de modstia, tinha desaparecido. Percebeu que se apertava contra ele, e s o que conseguiu dizer, foi: Oh, por favor, Tom, por favor... O que mais ela queria que ele fzesse, no sabia explicar, mas, de alguma forma, sabia que havia outras coisas ainda por vir, e queria experimentar. Para aumentar ainda mais a falta de compostura, ela parecia ter perdido o controle de si mesma, a ponto de, quando no estava pedindo que continuasse, ela o apalpava e acariciava, tambm! Hester no estava inteiramente segura do que fazer para agrad-lo como ele a agradava, mas percebia que a respirao de Tom estava se tomando ofegante, como a sua. Devia estar fazendo a coisa certa, o que era um alvio. As mos de Tom, de repente, mergulharam nos cabelos molhados de Hester, e a boca sugou-lhe o seio, a lngua percorrendo o contorno do mamilo, e ela se contorceu toda, esfregando-se contra ele. Estava esquecida de tudo, do decoro, da modstia prpria de uma dama, do acordo frmado antes do casamento, dos cdigos de conduta entre exclusivos e emancipistas. Sabia apenas que todo seu corpo vibrava por ser invadido, e que o homem cujo membro ereto ela podia sentir contra seu ventre desnudo, era a nica pessoa no mundo a quem desejava se entregar. A boca de Tom abandonou-lhe o seio. Ento, ele a beijou, primeiro em seu ventre, no ponto onde as contraes eram mais fortes, e ela gritou de prazer, e, subindo, ele mordiscou-lhe a orelha, sussurrando, a voz pesada de desejo: Mais quente agora, ara. Dilhorne? Ainda quer que continuemos com nosso acordo? Ela deveria t-lo empurrado para longe, chocada. Porm, ao invs disso, suas mos agarraram-se a ele com uma tal fria que suas unhas enterraram-se nas costas de Tom. Com mais gentileza, sra. Dilhorne, com mais gentileza ele murmurou, e carregou-a para a cama, os dois ainda meio enrolados na toalha. O medo faiscou por um instante nos olhos de Hester, ao sentir as costas na cama e o peso do corpo de Tom sobre o seu. Imediatamente, consciente da reao, ele rolou para o lado. Lanou-lhe um olhar malicioso, e ela soltou um risinho involuntrio. Ento, os lbios dele novamente a percorreram, a comear da orelha, descendo pelo pescoo, at mais abaixo, pelo ventre, deixando um rastro de fogo. Algum j lhe disse como voc cheira gostoso, sra. Dilhorne? O capito Parker, por exemplo? Hester no conseguiu reprimir uma risada. A vontade de retribuir com paixo a todas as carcias voltou, e ela respondeu a cada toque, cada beijo, at que Tom a beijou nos lbios, sua lngua penetrando-lhe a boca, provocando-a, excitando-a, cada vez mais. E ela devolveu a provocao. Sentia-se prestes a derreter. O brandi, a fria da tempestade, a excitao de ambos, a toalha que os enrolava, e, agora, as atenes inconfundveis com que Tom a cumulava, comearam a fazer seus efeitos. Seu ltimo pensamento, quanto ele arrancou a toalha que os separava e preparou-se para possu-la, foi: Ser verdade que isto est acontecendo comigo? No fque com medo ele murmurou. Posso machuc-la um pouquinho no comeo, mas depois, ora... Depois, prometo que vai gostar e chegaremos ao xtase, juntos. Ele tinha razo de novo, descobriu Hester. Depois da primeira investida, a sensao de dor era quase nenhuma. O contrato frmado no casamento tinha sido quebrado, mas ela no se importava, de jeito nenhum. Corpos unidos, ela com dedos enterrados nas costas de Tom, ele agarrado a seus quadris, a sensao de preenchimento e prazer era indescritvel. Gritou de alegria, uma alegria que nunca sentira em seus vinte anos, estranha, completa, total. Depois, mergulhou no sono da exausto, nos braos do amado, amado que era seu marido, o homem que a desposara por brincadeira e que agora descobria que a brincadeira voltara-se contra ele. Hester acordou na manh seguinte, recordando-se que, em algum momento, durante a noite, tinham feito amor de novo, dessa vez lentamente, to lenta e perturbadoramente, que o prazer fora ainda mais longo, to extraordinrio que seus gritos e os de Tom haviam se fundido em um s, ao alcanarem o xtase. Depois, exausta, ela havia se aninhado em seu brao direito, a cabea apoiada em seu peito. Olhou para cima e descobriu que ele j estava acordado. Vendo que ela se espreguiava, Tom deu-lhe um beijo nos cabelos. Depois de tudo o que havia acontecido noite, e a resposta apaixonada que dera a ele, em retribuio, Hester sentiu-se um pouco envergonhada. Porm, o conforto de seu corpo quente, a confana com que ele a prendia no brao forte, e sua aceitao franca da situao, fzeram com que quaisquer reservas que ela pudesse ter parecessem absurdas. Deixou-se mergulhar em um cochilo prazeroso. Um pouco mais tarde, Tom esgueirou-se da cama e deixou-a, e Hester fcou a imaginar se havia sonhado. O corpo lhe disse um enftico no! Ficou a imaginar se ele iria voltar. A cama parecia estranhamente vazia, sem ele. Dormiu de novo, acordando apenas quando a porta se abriu, e Tom entrou. Vestia um traje de estilo militar, enfeitado com botes banhados a ouro, muitos cordes e gales nos ombros. Suas feies eram estranhamente incompatveis com o traje. Hester sorriu. Ele se aproximou e sentou-se na cama. Por que est sorrindo, sra. Dilhorne? Voc parece um membro do clube dos mais elegantes. Quando me visto assim, mulher, voc precisa saber, eu sou do clube dos mais elegantes! Sem pensar, ela ergueu os braos e puxou-lhe a cabea para baixo. Um tanto desequilibrado e surpreso, ele ajeitou-se e, contorcendo-se, segurou-lhe a cabea com a mo esquerda, enfou a direita sob o corpo de Hester e soergueu-a. Sua boca procurou-lhe o seio, em uma carcia prolongada. A respirao de Hester, j ofegante, foi entrecortada por espasmos, enquanto ele explorou, vido, outras partes de seu corpo. Ela se ps a gri~ar-1he o nome, em um crescendo. Motivo de outra exploso de prazer, Tom penetrou-a lenta e deliciosamente, antes de desabar sobre ela, o rosto no travesseiro. Hester afagou-lhe os cabelos, exausta e satisfeita, at que dormiu. Ao acordar, encontrou-o na cama. O que aconteceu com seus trajes, sr. Dilhorne? Esto perdidos por a, sra. D., mas eu os encontrarei de novo. No logo, ar. D., posso afrmar. Em resposta, Tom tomou-a nos braos, murmurando em seu ouvido: Voc uma amante maravilhosa, ara. Dilhorne. Aprende depressa. Fui ensinada por um mestre, ar. Dilhorne. timo. Voc demonstra ter por mim o respeito que mereo. Caram na risada e trocaram carcias at que ela experimentou um sono ligeiro, novamente, imaginando como dormir se tomara fcil, to fcil como fcar acordada. A conscincia voltou aos poucos. Ele ainda estava a seu lado, afagando-lhe os cabelos e beijando-lhe suavemente a face. Feliz, sra. Dilhorne? Divertindo-se? Estou com fome! ela exclamou, ftando-o muito sria. Morrendo de fome. Foi o esforo, amor. Bem, podemos dar um jeito nisso. Levantou-se da cama em um movimento suave, e comeou a se vestir. Espere aqui. No v embora. Ora, aonde poderia ela ir?, pensou Hester, sonolenta. Com nada sobre o corpo e amada at a exausto, aonde poderia ir? Sem dvida, o amor era muito mais delicioso do que algum poderia faz-la acreditar. E divertido, tambm. A alegria enfeitou-lhe o rosto, e os cantos de sua boca curvaram-se em um sorriso de felicidade. E foi assim que Tom a encontrou, ao voltar. Trazia uma bandeja nas mos, com uma tigela de porcelana chinesa sobre ela, uma colher, e um enorme guardanapo. Sente-se, ara. Dilhorne. Hester bocejou, sentou-se e deixou que ele amarrasse o guardanapo em torno de seu pescoo. A tigela continha po quente e leite, e algo mais, de aroma bastante agradvel, que ela no soube identifcar. Tom sentou-se na cama, a seu lado e, envolvendo-a com um dos braos, comeou a dar-lhe colheradas do mingau na boca, como se ela fosse uma criana, de novo. Hester nunca se sentira mais amada e mimada em toda sua vida. Delicioso, sr. Dilhorne. O que ? Po e leite, meu amor. Ela deu-lhe um tapa carinhoso na mo. Sei disso. Que mais? Bem, eu no ousaria dizer que no h um pouco de rum a. para manter suas foras. Hester lambeu a colher e engoliu mais um bocado, antes de provoc-lo, com doura: Ora, o que voc poderia dizer, ar. Dilhorne, a no ser isso? Que se voc olhar para mim assim, mais uma vez, no responderei pelas conseqncias. A propsito, eu disse ara. Hackett que voc no est muito bem, e que vai passar o dia na cama. E voc, sr. Dilhorne? O que vai fazer? Passar o dia com voc, sra. Dilhorne. A menos que queira que eu mande buscar o capito Parker. E, neste caso, ser meu dever abat-lo com um tiro, antes de castig-la como voc merece. Ela terminara o mingau. Tom colocou a tigela no criado-mudo, ao lado. E o que eu mereo, ar. Dilhorne? ela o provocou. Isto. Desta vez, foi uma pequena batalha de carinhos, beijos, abraos, e uma brincadeira de empurra-empurra. Depois, ele deitou-se a seu lado, observando-a, corada e com uma expresso de plenitude, parecendo muito menos a pobre e esfaimada Hester Waring, e muito mais alguma ninfa rosada das pinturas de Boucher. Como se sente sendo a ara. Dilhorne? ele lhe perguntou. Hester refetiu por um instante. Feliz, ainda que um pouco exausta em alguns momentos. Estou aliviada de no ter de me levantar hoje. E voc ela o interrogou, os olhos brilhando , quando vai para o trabalho, ar. Dilhorne? Amanh, sra. Dilhorne, amanh. Depois de amanh, se voc tiver sorte. Tom disse Hester, sria. Tom percebeu que, pela forma de trat-lo, ela no o estava provocando; mas precisava de uma resposta franca e direta. Estavam deitados, quietos, no conforto da cama, na manh seguinte, observando o nascer do dia. Tom detestava cortinas, embora o aposento estivesse decorado com um belo par, de brocado da China. Sim, Hester. H uma coisa que me preocupa um pouco. O que ? Bem, pelo que mame disse, e no foi muita coisa, eu deduzi que ir para a cama com um homem era uma cruz que as mulheres tinham que suportar. No era agradvel, ela disse, mas tinha que ser feito se uma moa quisesse se casar e ter uma famlia. Ela me assustou tanto com isso que, antes de conhec-lo, eu no conseguia olhar um homem nos olhos. Nem mesmo o capito Parker, a quem costumava achar atraente, como voc sabe, j que vive provocando-me sobre ele. Contudo... sua voz falhou. Agora ela comeou, de novo , agora, porm... Agora... Hester? Bem... H alguma coisa errada comigo, por que eu gostei muito do que fzemos. A gargalhada de Tom disfarou a raiva oculta contra a fnada ara. Waring, por ter enchido a cabea da flha de bobagens. Claro que no. E a coisa mais natural do mundo. No haveria bebs, Hester, se ns no nos divertssemos juntos, e voc no gostasse disso. Tem certeza? ela perguntou, ainda em dvida, escondendo o rosto em seu peito largo. Ele tomou-a pelo queixo e ergueu-lhe o rosto. Olhe para mim, Hester. Voc foi feita para desfrutar a vida, assim como eu. Somente pessoas tolas e, desculpe-me, mulheres idiotas, pensam de maneira diferente. Por que deveramos nos atormentar com aquilo que aconteceu to naturalmente? Apenas quando depreciamos a ns mesmos, ou um ao outro, que est errado. Oh, Tom, voc me conforta. Eu estava comeando a pensar que era to desviada quanto as mulheres do bordel de Madame Phoebe. As mulheres de Madame Phoebe no sentem prazer em seus atos, meu amor ele lhe disse, suavemente. Por essa razo, nunca dormi com elas. Voc foge da alegria e satisfao honestas quando paga por isso, ou faz isso por dinheiro. O que inclui maridos e esposas que usam um ao outro. As garotas de Phoebe no so desvirtuadas, Hester, ganham a vida, pobres criaturas, do nico jeito que podem. Hester retesou-se nos braos do marido. Se ele no a houvesse resgatado daquela vida miservel, ela poderia ser uma dessas infelizes, se tudo o mais lhe faltasse. Ela a salvara daquilo... Estremeceu e voltou-se, procurando por segurana. Voc sabe tanta coisa, Tom, e eu to pouco. Diga-me, todos os homens so como voc? Deus me livre, no! ele respondeu, em um mpeto, com sbita violncia e extremamente srio. A nica coisa boa que voc pode dizer de mim, Hester, que no gosto de ver as mulheres sofrerem. A nica... ela murmurou, suavemente, para si mesma, quando ele fnalmente dormiu, ao lado dela. Mas uma grande coisa, Tom. Grudada contra a porta do quarto dos patres, os ouvidos atentos, a expresso vida e cruel, havia algum que no apreciava em nada aquela paixo e aquela felicidade recm-descoberta. A nica coisa que desejava era espalhar a fofoca por toda a Sidnei. Ora, ora, ele fnalmente se apossou daquela madame arrogante na noite da tempestade cacarejou a ara. Hackett a seus amigos e a quem mais quisesse ouvir. Carregou-a para a cama e fcou l, com ela, por dois dias inteiros! S saiu de l, e foi ele que levantou, para ir at minha cozinha, usando uma roupa de dormir. Minha esposa est doente me disse, na maior tranqilidade e no vai se levantar, hoje. Vou levar a comida para ela. Explodiu em uma horrvel gargalhada. Doente! Olhem s para ela! Dois dias inteiros fazendo aquilo! Fico a imaginar como no os ouviram, em toda a Sdnei! A novidade se espalhou, chegando aos ouvidos da guarnio. E o livro de apostas de Jack Cameron o ameaava com a falncia. Quando a fofoca atingiu os portes do Palcio do Governo, Lachlan Macquarie sorriu, e pensou consigo mesmo: Aquela raposa esperta... Qual ser seu jogo, desta vez?. Alan Kerr ouviu Pat Ramsey comentando com o jovem cabo Osborne sobre a ltima investida de Tom Dilhorne, entre gargalhadas, e levou a boa-nova para casa. Quando contou a Sarah, ela o beijou. Eu disse a voc que confasse em Tom murmurou ele. CAPTULO IX Fazia uma quinzena que Tom e Hester eram marido e mulher de verdade e ainda desfrutavam das delicias da lua-de-mel, quando receberam um convite de Lachlan Macquarie para um baile. Um baile! Hester nunca fora a um baile. Havia lido a respeito, porm nunca esperara poder fazer parte da seleta lista de convidados do Palcio do Governo. Por outro lado, nem poderia jamais imaginar o que aconteceria a ela, desde que se casara com Tom Dilhorne. Cada dia lhe trazia urna nova experincia, ou quem sabe fosse melhor dizer duas, pois eram as noites que mais a enchiam de prazer. Devia estar agradando a Tom, tambm, pois, ao contar a ela sobre o baile, ele dissera: Por ser uma esposa to maravilhosa na cama, sra. Dilhorne, voc vai ganhar um vestido novo para o baile, e ser a dama mais elegante da festa. Tom, como sempre, era fel a sua palavra e voltara para casa com um esplndido traje de noite da mais fna seda cor de ametista. Tambm lhe dera um colar e um anel de ametista. Naquela noite, ele a fez usar todas aquelas preciosidades, como se fosse para o baile, ajudou-a a prender o cabelo no alto da cabea e pediu que calasse delicadas sapatilhas. Ento, muito devagar, desnudou-a com um carinho demorado, que a fez gemer de frustrao. Tirou tudo, porm o colar de ametista fcou em seu pescoo durante a longa noite de amor que se seguiu. Hester ainda no havia adquirido a aparncia que Tom tinha certeza de que ela haveria de apresentar quando seu desabrochar fosse completo, mas era agora bem mais bonita do que a moa com quem ele tinha se casado. Sentia-se orgulhoso de lev-la pelo brao, senhor e ara. Dilhorne de direito e de fato, para atormentar Sidnei com seu sucesso e a emergente beleza da esposa, assim como para desafar os fofoqueiros que vinham devorando os boatos sobre seu casamento como abutres. Antes de sairem, Hester perguntou, envergonhada: Estou bem, Tom? Ele ftou-a, correu a mo delicadamente por seu pescoo, e murmurou a seu ouvido: Muito bem, Hester, embora eu a prefra usando apenas as ametistas, mas isso no seria prprio para o baile... para mais tarde, quem sabe. Ruborizada e sorrindo, pois Tom passara todo o trajeto provocando-a com as delcias que os esperavam, quando voltassem para casa, Hester chegou ao Palcio do Governo segura de si mesma como jamais se sentira. O que veio apenas mostrar, ela concluiu mais tarde, que pobre profetiza era ela. Estava feliz! S o fato de estar presente a um acontecimento to importante a enchia de alegria. Lachlan Macquarie tratou-a com gentileza, quando chegou. Porm, depois de algum tempo, Hester percebeu que ela e Tom eram objeto de mais do que um simples interesse, e que, pela expresso, era algo de desagradvel. Tom notou tambm, e seu rosto se endureceu. Nada disse, porm, a Hester. Deu de ombros, afastando o desconforto e concentrou-se em tentar assegurar que ela se divertisse. Hester procurou ignorar os sussurros, os cochichos, os olhares. Viver com Tom criara nela uma armadura. Depois de desfrutarem de uma leve refeio servida em tira buf em uma das pontas do enorme salo, ela manifestou o desejo de sentar-se longe do calor. Tom imediatamente levou-a a um canto da sala, prximo ao jardim de inverno recm-construdo, onde era agradavelmente fresco, e no havia outros convidados. Sentaram-se por algum tempo, observando a movimentao, at que Tom sugeriu a Hester que tomasse algo refrescante. Diante da concordncia dela, ele levantou-se para buscar o drinque, deixando-a sozinha, a ouvir a banda e admirando os danarmos. Tom raramente danava. No faz parte de minha educao havia explicado. Hester por diversas vezes se perguntara em que consistira essa educao e como tivera acesso a ela. Ele, porm, nunca falava de sua vida passada. Dois ofciais, um deles Jack Cameron, pela voz, e o outro a quem ela no conhecia, entraram no jardim de inverno, para fumar, longe do salo onde isso era visto com desagrado. Pararam diante da porta aberta e pareciam despercebidos da presena de Hester, ali perto. Ela podia ouvi-los, rindo e conversando. A conversa e a fumaa a perturbavam. Estava a ponto de afastar-se e tentar encontrar Tom quando ouviu seu nome e o dele, repetidos. Ento ele levou aquela coisa feia para a cama, afnal disse o ofcial desconhecido, em um tom de caoada. Ouvi dizer que foi h uma quinzena e parecem estar se divertindo bea: dois dias trancados no quarto, o comentrio. Todas as apostas precisam ser pagas, Jack. Quando posso pegar meu dinheiro? No sei, velho amigo. Ele a levou para a cama, verdade, mas ir mant- la l? Tom Dilhorne sabe como manipular as coisas, porm quem poder ter certeza de que ela deseja continuar a ter relaes com um bruto como aquele? No, vamos esperar para ver o que acontece, antes de eu pagar a ele, ou a qualquer outro. Voc to ardiloso como um demnio, tanto quanto ele, Cameron reclamou o outro ofcial. Eu gostaria de ver a cor de meu dinheiro. Bem, levou dois meses para que ele conseguisse dobr-la, pode no levar tanto tempo para cair do cavalo. Ningum pode ganhar todas as vezes, nem mesmo Dilhorne. Voc a viu hoje, Cameron? No posso dizer que tive o prazer caoou Jack. Se algum pode chamar isso de prazer! Bem, devo admitir que no est to feia quanto era. E aquele maldito Dilhorne colocou sua marca registrada nela. Ela est com uma fortuna em ametistas em tomo daquele pescoo esqueltico. Pensei que Dilhorne era apaixonado por Sarah Kerr. Aquela Waring um pouco mais que um bagulho, ouso dizer. Porm, se ele quer enrol-la em ametistas, culpa de seu mau gosto. Acho que ele investe seus lucros em pedras preciosas e quer exibi-las. Afastaram-se, e Hester no ouviu mais nada. Estava como que paralisada, incapaz de se mover, enquanto a verdade tenebrosa se apresentava diante dela. Tom havia quebrado o acordo, no porque a amava, mas para ganhar uma aposta. E o casamento, ser que no passara de uma brincadeira planejada por um homem que amava outra mulher? Mulher que era Sarah Kerr? Jack Cameron apagou o cigarro descuidadamente em um dos vasos de Elizabeth Macquarie, antes de se afastar. Havia chegado tarde ao baile e vira Tom deixar Hester sozinha. Manobrara a situao para conduzir Menzies a um ponto do salo onde tinha certeza de que Hester poderia ouvir cada uma de suas palavras cruis e prfdas. Se ela deduzisse que o marido a fzera objeto de apostas vulgares e piadas ainda mais vulgares, no era culpa de Jack Cameron. E se essa insinuao no empanasse o brilho do casamento do mestre Tom, ento nada poderia fazer com que isso acontecesse. Melhor ainda, se houvesse assegurado que o casamento desmoronasse, ele poderia salvar-se da runa fnanceira que o espreitava. E tambm ensinaria Dilhorne a no humilhar um ofcial e cavalheiro, na casa de Madame Phoebe. Hester estava rgida. O colar de ametistas parecia queimar-lhe o pescoo. Ento, afnal, o acordo com Tom no era secreto, como Tom havia dito. Pior, ele apostara que a levaria para a cama. Todos sabiam de tudo, a julgar pelos olhares e ares de caoada pelo salo. De que outra forma Jack Cameron saberia o que ela e Tom haviam feito, se o prprio Tom no houvesse contado? Aquelas palavras no podiam ter outro signifcado. Arrepios a percorreram, frio e calor se alter- nando. O brilho, em seu rosto, desapareceu. O que mais ele contara? Por que havia confado nele? Seu pai e sua me tinham razo a respeito daquele homem. Ele havia se vingado de seu pai, tornando-a sua esposa e, ento, humilhando-a publicamente. Pensou nas noites de amor e na alegria que haviam trazido a ela, e sentiu que fosse desmaiar. Aquele bruto, aquele bruto odioso! Ele a trata como uma vagabunda, e ela ainda o consideram to gentil, to atencioso... A sala girou diante de seus olhos. Tom voltou com os drinques e percebeu, imediatamente, que algo havia acontecido. O semblante de Hester havia se transformado e estava plido como cera. Estava mais parecido com o aspecto macilento de antes; mesmo seus olhos haviam se encovado, e sua aparncia era de um fantasma. Hester! O que houve? ele indagou, pondo as taas em unia mesa, ao lado da cadeira. Fez meno de tomar-lhe a mo, mas uma expresso de horror perpassou pelo rosto dela. No me toque, proibo que me toque. Leve-me para casa. Ela fez um gesto, procurando afast-lo, mas sua voz falhou ao dizer a palavra casa. No tinha casa... Tom endireitou-se, o semblante consternado. Por qu, Hester, por qu? Eu ouvi ela murmurou. Eu os ouvi falando. Estavam rindo da coisa feia que Tom Dilhorne levou para cama, para ganhar uma aposta. Ele fcou imvel, o rosto impassvel. Hester, voc no pode acreditar em uma coisa dessas. Oh, mas eu acredito, acredito mesmo. Eles sabiam de tudo. Sabiam exatamente quando aconteceu. Que fcamos dois dias juntos na cama. Como nos divertimos... Sua voz fraquejou. Pensei que era um segredo nosso, e a piada que corre por toda a Sdnei. Levantou-se e ps as mos trmulas no pescoo, soltou o colar de ametistas e entregou-o a Tom. No vou usar sua marca registrada, Tom Dilhorne. Foi isso que disseram que era. Sua marca registrada. Agora, leve-me para... casa... Comeou a tremer. Tom levou a mo para tomar-lhe o brao, mas ela o rejeitou. Est proibido de me tocar. Hester, por favor. O rosto de Tom estava sombrio. Era a primeira vez que ele implorava algo a ela, ou a qualquer um, homem ou mulher. Olhou para o colar, em sua mo. Por favor, ponha o colar de novo. Se j no souberem que voc est me rejeitando, iro saber quando virem que voc no o est usando. E acredite-me, Hester, eu a amo. Pelo meu bem, ponha de volta. Por Tom, Hester, por Tom. Ali, fnalmente, ele dissera o que nunca havia dito a ela, diretamente, enquanto faziam amor. Aquilo que nunca pensara que haveria de dizer a algum: eu a amo. Pelo seu bem? Por que eu deveria? Eles parecem saber tudo sobre ns, ento quero que saibam que eu o rejeitei, assim voc perder sua maldita aposta, e Jack Cameron pode fcar com os lucros. Jack Cameron? Foi Jack Cameron a quem voc escutou? Como pode acreditar em um crpula como aquele e no acreditar em mim? Porque voc um crpula ainda pior que ele, e toda a Sdnei sabe disso. Sim, foi ele. Os dois sabiam. A propsito, acho que todas essas pessoas que estavam me olhando sabiam. Sua voz tremeu, em um soluo. Sabiam o que havamos feito ,e que voc apostara que iria me possuir. Voc contou a eles no dia seguinte? Oh, por favor, leve-me para casa. No agento mais ser olhada dessa forma. Tom, pela primeira vez, sentiu-se derrotado. Hester comeou a afastar-se, cabea erguida, e ele caminhou atrs dela, sem a tocar. Cruzaram o salo de baile, sem olhar para nada e para ningum, o rosto dela to impassvel como o dele: a sra. Dilhorne tinha sido bem treinada pelo ar. Dilhorne. Mais de uma pessoa notou que ela no usava mais o colar de ametista, entre elas um sorridente Jack Cameron. Era, porm, o rosto de Tom que prendia a maioria dos olhares. Estava to srio e pesaroso como se estivesse se encaminhando para o cadafalso. Durante todo o caminho para casa, Hester manteve-se afastada de Tom. Ele dirigiu com um cuidado incomum e, quando chegaram villa e estavam fnalmente l dentro, ela o deixou sem uma palavra, subindo a escada para o quarto. A porta, ela se voltou, os lbios tremendo. Voc pode recolher suas coisas e ir para seus antigos aposentos, Tom Dilhorne! O acordo original entre ns continua em p, isso tudo! Ele ignorou-lhe as palavras e caminhou em sua direo. Hester, voc precisa me ouvir. Por que eu deveria? Voc me enganou desde o princpio. Posso ver isso agora. Tudo no passou de uma grande piada para voc, casar-se com uma dama, e ainda levar uma boa governanta na barganha. Eu poderia ter contratado uma governante ele retrucou sem precisar me casar com ela. A prpria sra. Hackett serviria, e nem posso pensar em mim, casando-me com ela. Por que ser meu comigo? Por que quer uma dama como esposa? Disseram que voc amava Sarah Kerr. E que eu era um bagulho. Ele fechou os olhos. As batalhas verbais que enfrentara com Hester desde o dia da entrevista no cabiam ali. Na verdade, ela estava certa. Ele comeara a persegui-la de uma maneira cnica e friamente premeditada. Manipulara a situao para que se casasse com ele, e tambm usara de ardis para lev-la para cama. Mesmo que Hester o quisesse tanto quanto ele mesmo a queria, no fnal, ainda assim tudo no passara de manipulao. Seu casamento havia comeado, em princpio, como um dos jogos que ele jogava com a vida, uma de suas piadas sarcsticas. Se fosse honesto, podia dizer que tinha sido um jeito canhestro de se vingar daquele porco desagradvel, o pai dela, levar a flha dele para a cama e fazer dessa flha sua parceira. Mas, em determinado ponto, o jogo havia mudado, e tudo o mais ento. Conforme a conhecia, comeara a gostar dela. A mudana havia sido lenta, e era difcil saber quando aquilo que era uma diverso inconseqente havia se transformado em amor. Impossvel precisar o momento em que seu frio corao comeara a se derreter. Se ele a transformara, de uma criatura frgida em uma mulher cheia de paixo e fogo, ela o transformara tambm, irrevogavelmente, e ele no conseguia nem sequer lembrar quando essa constatao o atingira. Certa manh, contra o costume, Hester saira da cama antes dele, totalmente nua, pois no tinha falsos pudores, embora continuasse modesta e envergonhada em pblico, e comeara a se pentear diante do espelho. Deitado, apoiado em um dos braos, observando-a, ele vira, no pela primeira vez, que embora franzino, o corpo dela era bonito, perfeitamente proporcionado e de belos contornos, agora que a boa alimentao e a felicidade o faziam desabrochar. Quando ela erguera os braos e se voltara, as linhas adorveis haviam se revelado em toda a sua beleza. A promessa que vira nela, quando a observara, distrada, na sala de aula, havia se concretizado: tinha uma mulher graciosa diante dos olhos, e ainda no era, certamente, tudo que ainda seria. As duas Hesters, aquela no espelho e aquela real, haviam se movido, e o refexo o ftara nos olhos. Ela sorrira, a boca erguendo-se no canto, de um jeito encantador. Um sentimento estranho, que Tom Dilhorne jamais havia experimentado, inundou-o. Soube, pela primeira vez, que o que sentia por Hester no era simplesmente orgulho de sua propriedade ou desejo pelas delcias de seu corpo, mas era amor, amor por ela, por algo alm de si mesmo, amor pela essncia de Hester. Ela no era apenas querida por que era dele, uma extenso de suas coisas, mas porque era ela mesma, era Hester. Jack Cameron havia esmagado o amor e a confana que haviam comeado a crescer entre os dois com musa poucas e prfdas palavras. Tinha certeza de que haviam sido ditas deliberadamente, e Cameron, ele jurou a si mesmo, iria pagar por isso. Dolorosamente. Julgava que sabia quem poderia ter espalhado a fofoca por toda a Sidnei, fofoca que permitira a Cameron destilar seu veneno. Alguma coisa precisava ser feita a respeito, tambm. Culpou a si mesmo por ter ignorado os fatos, por achar que ningum ousaria desafar Tom Dilhorne ou sua esposa, por temor do que ele poderia fazer. No havia pensado que aquela fofoca odiosa fosse destruir o casamento que Hester e ele estavam construindo, baseado na confana e na alegria. Precisava, a todo custo, trazer Hester de volta. No podia perd-la, agora que a encontrara, e encontrara a si mesmo, atravs dela. Os ltimos meses haviam lhe mostrado como era o verdadeiro amor, e o sofrimento que comeara a sentir era imenso. O Tom Dilhorne que Mary Mahoney havia conhecido desaparecera de dentro dele sem deixar rastros. Hester Waring, a flha feiosa do velho bbado Fred, o havia destrudo. Ele reconhecia que Hester era ainda insegura, ainda emocionalmente vulnervel em virtude dos anos de sofrimento e negligncia, mas ela no deveria cair vtima to facilmente das mentiras de Jack Cameron. Ela continuava de costas para ele, negando-se a encar-lo. Tom fez um ltimo apelo. Hester, por favor, acredite, Jack Cameron estava mentindo com a inteno de mago-la e para faz-la voltar-se contra mim. Eu nunca contei a ningum o que estvamos compartilhando, nem mesmo fz alguma aposta desgraada, envolvendo ns dois. Jamais apostei algo em uma mulher em toda minha vida. Isso no comportamento dos que se dizem cavalheiros. No tenho dvidas de que, de alguma forma, nossa vida em comum se tornou do conhecimento pblico, eu prprio ouvi comentrios, e que Cameron apostou no fracasso do nosso relacionamento. Mas, no fui eu que espalhei essa fofoca. Hester ainda se recusava a encar-lo. Ele podia ver-lhe o corpo tremendo e balanando, mas, quando ela falou, sua voz era frme e cheia de desdm. Oh, ele a transformara, sem duvida, e agora ela era forte o bastante para encar-lo, em p de igualdade. Quem tinha sido dobrada por ele, iria, desta vez, dar-lhe o troco. Oh, voc precisa ser honesto comigo, Tom Dilhorne. Ela cuspiu o nome dele como se fosse algo nojento. Sei exatamente o que ouvi, e de quem mais eles teriam sabido, a no ser atravs de voc? Ela estava coberta de razo. Pior, levaria tempo para mostrar a Hester quem estava por trs da fofoca. Naquele momento, implorar no funcionaria. Ela se fortalecera. At que ponto? Ironicamente, ele a fzera forte, e, pela primeira vez, ela usava essa fora, e contra ele. Tom sempre apreciara as ironias da vida, mesmo quando se voltavam diretamente contra si. Essa, porm, no podia apreciar. Pela primeira vez, estava disposto a usar toda sua fortaleza moral e intelectual contra ela. Nada menos serviria, pois no era ela, agora, a ara. Dilhorne, sua parceira de direito e de fato? De rosto conturbado, contra-atacou. No tinha nada a perder. Seu modo lacnico de falar desapareceu. O jeito clssico e elegante que usara no escritrio para convenc-la a aceitar a barganha se foi. Pela primeira vez, palavras impensadas sairam de sua boca em enxurrada. Era o maquiavlico Tom Dilhorne que se expressava, com o corao partido. O corao que ningum, incluindo a ele mesmo, acreditava que ele possua. Honesto! Oh, sejamos honestos, com efeito. E verdade que sempre quis lev-la para minha cama desde que nos casamos. Claro, eu no tinha a inteno de manter nosso acordo. Sempre desejei possui-la, desde que a vi na sala de aula, ou sentada entre os pintinhos com Kate Smith, e mesmo quando a encontrei car- regando aquele abominvel vestido. Voc me olhou como se pudesse me comer, e nem mesmo sabia que estava agindo assim! Seja honesta tambm, Hester. Desde o comeo, sim, desde o comeo, voc me quis tanto quanto eu a quis. Eu podia ver a paixo incandescente que a rodeava, sob a aparncia fria e o jeito emproado, to palpvel que eu podia liber-la, quebrar o gelo. Hester balanou a cabea e levou as duas mos ao rosto vermelho que, fnalmente, voltara para ele. Oh, no negue, sra. Dilhorne ele continuou. E a verdade, e voc sabe disso. Voc me desejava tanto quanto eu a desejava, apenas no sabia disso. A pior coisa que Fred Waring fez, e tambm sua esposa, no foi submet-la inanio, negligenci-la ou espanc-la, por horrvel que isso fosse, mas transform-la em uma pessoa assustada, pronta para se esconder cada vez que um homem a ftasse. Ela o ftou e nada disse. Voc se divertiu muito comigo nessas ltimas semanas e mostrou um raro talento para o amor, tambm. Sei que se lhe houvesse proposto um casamento de verdade, no princpio, voc iria fugir como uma gua assustada em quem eu quisesse pr uma sela. Ele no parou para respirar, mas continuou falando, estendendo as mos fortes para agarrar as dela, para segur-la, mesmo que ela lutasse para se desvencilhar. Sim, verdade que um dia eu pensei que amava Sarah Kerr e teria me casado com ela, se ela me quisesse. Isso, porm, acabou faz tempo. E voc que amo agora. Meu Deus, me ajude! E ser uma idiota se deixar que essa fofoca se interponha entre ns. No, eu no contei os segredos de nosso casamento por toda a Sdnei, embora possa adivinhar quem fez isso. Nem apostei que a levaria para a cama, embora haja alguns que julgam que agi assim. No h segredos nesta cidade; tudo um mal-entendido. Ela permanecia distante, indiferente. Teria tampado os ouvidos, recusando- se a ouvir? No importava. O homem que nunca justifcara seus atos antes, no conseguia parar de se explicar. Sim, Hester, tudo um mal-entendido. O que quer que houvesse de decepcionante em nosso casamento, h muito se desvaneceu. Acima de tudo, eu a amo de verdade, como nunca amei algum antes, nem nunca pensei que fosse capaz de amar. No a amo como um trofu, nem simplesmente como algum para ser a me de meus flhos. Eu a amo, somente a voc, porque voc Hester. Nunca senti algo assim por algum, nem mesmo por Sarah Kerr. No deixe que destruam o que h entre ns, Hester, no deixe. Aquele amontoado de palavras, sadas do corao, to incomuns para a maneira sempre cuidadosa com que Tom se expressava e que deveriam mostrar a ela quanto ele estava ferido, o quo profundo eram seus sentimentos para com ela, caram no vazio. No tinham efeito sobre Hester. Ela fora desconsiderada por toda sua vida, e o amor de ambos fora curto demais para que pudesse acreditar em si mesma, ou nele, no momento em que o mundo pusera seus dedos sujos em seus assuntos ntimos. No acredito em voc. Meu pai estava certo. Voc no presta. Eu nunca deveria ter me casado com voc. No fale em nossas horas de intimidade. Estremeo s em pensar como me comportei, nem um pouco melhor do que as prostitutas de Madame Phoebe. Porm, no to cheia de criatividade ele emendou, brutalmente, j que era evidente que ela no desejava poup-lo. Sua fora estava retrocedendo para voltar a se confrontar com a dela, pois agora eram iguais, e, infelizmente, no desespero tambm, que nunca havia sido igual antes. No se gabe, ara. Dilhorne, voc tem muito a aprender ainda, antes de poder se estabelecer na Rua das Pedras. Oh, voc intratvel ela gritou, desesperada. Cada palavra que diz s confrma a opinio de meu pai sobre voc. Hester ps-se a torcer as mos; um gesto antigo que o tocou, apesar da raiva e da dor de se sentir rejeitado. Culpou-se por t-la deixado sozinha. Por fm, culpou os homens que ela escutara conversando. Ele tinha ido ao baile tomado de orgulho, levando, fnalmente, a esposa de fato pelo brao, protegidos pela felicidade mtua. Voc precisa me escutar gritou, roucamente, percebendo-se em uma situao nunca antes enfrentada. Tom Dilhorne havia jurado, muito tempo atrs, que se bastava a si mesmo, e que ningum iria penetrar seu corao. Tinha negado, a si e ao mundo, at mesmo que possua um corao. Na cama, com Hester, ele se entregara a ela de corpo e alma, e a rejeio que sentia tornava tudo mais amargo. Hester recusava-se a chorar, no daria a ele esse prazer, mas o choque e a vergonha que ainda a sufocavam fzeram-na desabar na cadeira do quarto, no quarto onde se dera a Tom e onde tinham vivido horas de amor e paixo. Lamentou as lembranas. Tom lanou-se de joelhos, diante dela. Venha, meu amor, venha para mim. Vamos esquecer tudo isso. Precisamos confar um no outro. Eu no a magoaria, nem com palavras nem com atos. Voc j deveria saber disso. Hester afastou o brao com que ele tentava enla-la. A expresso alheada de seu rosto, que ele julgara banida para sempre, havia retornado. No confo em voc. No quero. Eu deveria ter compreendido melhor as coisas. Quem haveria de querer a feiosa Hester Waring, a no ser como um trofu? Algum para ser exibido entre outras taas de conquistas na mesa de uni bar. Desde que tenha se casado com a flha de um exclusivo, urna dama, no importa que ela seja feia e pobre, ela era tudo que voc queria para atingir seus objetivos. Se a situao no fosse to sria, Tom teria rido desse retrato de si mesmo. Ele, o mais reservado dos homens, jactando-se de sua vida? Mesmo assim, havia alguma verdade: ele a desposara porque Hester era uma dama. Levantou-se. Era intil insistir. Serviria apenas para criar maia antagonismos, e ele era sufcientemente perspicaz para saber que somente a pacincia teria o condo de remendar as coisas. Precisava tentar mostrar a ela que Jack Cameron havia mentido, e que a ara. Hackett, de quem suspeitava, tinha espalhado a fofoca pela cidade. Ento, quem sabe, o problema pudesse ser resolvido, se pudesse ser resolvido. Afnal, pensou carrancudo, que no era totalmente inocente e que ela estava certa quanto a isso. Ele a enganara. Pensou em seu rosto risonho quando ela o provocara, na noite anterior, at que o levara quase loucura. Depois, rendera-se com um ar de desamparo. E ele havia jurado que sempre iria velar por ela. Por Deus, tudo mudara em menos de vinte e quatro horas. Vou para meu antigo quarto, ento ele disse, lentamente, alimentando ainda uma pequena esperana de que ela pudesse mudar de idia e permitir que ele fcasse. Voc pode ir para o inferno, pelo que me diz respeito, Tom Dilhorne. Bem, pelo menos ela ainda tinha presena de esprito, pensou ele, frustrado. Era uma ratinha que se transformara, pelas mos dele, em urna tigresa. Na porta, voltou-se para dizer boa noite, apenas para ver que ela lhe virava o rosto, escondendo-o nas costas da cadeira, para no v-lo. Mas, ao deitar-se em sua cama vazia, ele disse a si mesmo com toda aquela fria ferocidade que o haviam transformado, de um condenado sem vintm, no magnata mais rico da colnia: Sra. Dilhorne, eu a terei em minha casa de novo, e escolha como, se preferir! CAPTULO X Passada a tempestade de raiva e desespero, Hester mergulhou em uni mar de sofrimento. Sentada do lado oposto a Tom, mesa do caf, na manh seguinte, dois desejos contraditrios a sacudiam. O primeiro era nunca mais v-lo ou falar de novo com o homem que a trara to vergonhosamente, O segundo tinha a ver com o fato que corpo e mente ansiavam por ele, implorando para que ele a levasse para a cama e a possusse com toda a paixo que, sabia, ele era capaz. Ou, ainda, que a segurasse, quieta, praticamente imvel, aninhada em seus braos, como sempre fazia por um longo tempo, depois de saciados. Ela no podia conceber urna vida em que isso nunca mais pudesse acontecer, outra vez. Tom sentado do lado oposto a ela, observando-lhe o semblante infeliz, o mesmo rosto que Hester Waring tivera um dia, foi avassalado por um simples desejo. Lev-la para cama e possui-la, para que ela pudesse corresponder com toda a paixo que, sabia, ela era capaz. Ou, ainda, segur-la, aninhada entre seus braos, o corpo quente contra o dele, dormindo ou acordada, como faziam sempre quando saciados. Ele no podia conceber uma vida em que isso nunca mais pudesse acontecer, outra vez. Tom tinha absoluta certeza de que fora a sra. Hackett que os traira, mas precisava de uma evidncia defnitiva. Simplesmente confront-la sem essa evidncia seria intil. Ela era perfeitamente capaz de negar com toda a veemncia. Por alguns instantes, dedicou-se a estudar o assunto, at chegar a uma possvel soluo. Como sempre, a empregada os espionara. Na noite do baile, vira que Tom voltara a seus antigos aposentos com seus pertences e no tivera dvidas do que havia acontecido. Ardia de vontade de passar adiante o ultimo captulo do escndalo e mal podia esperar que o meio-dia chegasse. Iria visitar um velho amigo que certamente adoraria escutar o que ela ansiava por contar. Enquanto Hester, sozinha em casa, pregava um boto solto de uma das camisas de Tom, a sra. Hackett, entre goles de ch, anunciava, com um estranho prazer, a seus camaradas: Madame no o quer mais, e o belo Mestre Tom foi posto para fora de sua cama, de novo! A fofoca, como um rastilho de plvora, espalhou-lhe pela cidade. A caminho de casa, a sra. Hackett foi interceptada por Jack Cameron, que lhe perguntou se ela conseguira saber alguma novidade sobre os Dilhornes. Se assim fosse, haveria uma recompensa. Oh, sim, claro que sabia. E contou-lhe a ltima fofoca. Chegou em casa leve, bem-humorada, e com mais dinheiro no bolso! Tom descia a rua da Ponte, tarde, quando viu o cabo Osborne entrando em um bar, freqentado pelos jovens ofciais. O instinto o fez seguir o rapaz, que lhe devia um favor. Em um jogo pesado, por falta de juzo, Osborne perdera um bocado de dinheiro, e se. vira sem condies de pagar no ato, assinando uma promissria. O papel fora trocado entre os comerciantes e acabara nas mos de Dilhorne. Tom raramente demonstrava simpatia para com os tolos, mas a explorao da ingenuidade de Osborne e o fato de saber que o jovem era de uma famlia pobre e que a maior parte de seu salrio era mandado para casa, para sua me, fzeram com que sentisse piedade pelo pobre idiota. Acertara o dbito por menos da metade de seu valor e dissera a Osborne que mantivesse a boca fechada: ele no poderia fnanciar a guarnio inteira. Tambm o aconselhara a no jogar cartas novamente com espertalhes como Jack Cameron. A gratido de Osborne fora pattica, gratido que poderia bem servir aos interesses de Tom, nesse momento. Ele entrou no bar, fazendo um ar de surpresa ao ver o ofcial. Importa-se se eu me sentar com voc, rapaz? Estou sozinho, tambm. Osborne, no sem motivos, apreciava Tom e, freqentemente, defendia-o perante os outros ofciais. Mais que depressa, concordou com a sugesto. Garom, traga brandi para mim e para meu amigo pediu Tom. Puseram-se a beber, despreocupados, bebida paga, naturalmente, por Dilhorne. Digam o que quiserem, Dilhorne disse Osborne, depois de alguns tragos , mas voc uni bom amigo, mesmo que tenha sido um bandido. No d importncia ao que Jack e o resto das pessoas pensam. Voc no est apostando de novo nas cartas contra Jack, eu espero. De jeito nenhum! Nem coloquei meu nome no livro que ele abriu para voc e Hester. A bebida fzera com que Osborne se esquecesse da discrio. Ficou vermelho, e emendou: Eu no deveria ter dito isso, Dilhorne. No se preocupe, garoto retrucou Tom, alegremente , somos todos homens vividos. Indecente, no acha, apostar no casamento de um homem? Foi o que disse a ele respondeu Osborne, em um tom sombrio. Ele riu de mim. Disse que sou tolo, e que criminosos no merecem bons casamentos. Desculpe de novo, Dilhorne. Acho que ele est chateado porque vai perder um monte de dinheiro se voc e Hester continuarem juntos. E coisa sria o que ele anda dizendo de Hester por a, subornando sua governanta para tagarelar sobre vocs, e rindo de sua esposa por ser feia. Eu disse a ele que no culpa dela ser feia. Agora, Osborne estava perdido. Viu que o rosto de Dilhorne se alterava quando falou dos comentrios de Jack sobre Hester. Fitou-o, encabulado. Ele no presta. Gostaria de lhe dizer isso, mas no sou homem o bastante. At mesmo Pat Ramaey, que o melhor homem no regimento com a espada e as pistolas, no quer briga com Jack. No sou preo para ele. Uma pena. Ele precisava de uma lio, achar um homem que lhe desse um corretivo. Bocejou, engoliu o ltimo gole, e murmurou: Coisa estranha. Estou cansado como o diabo esta tarde, Dilhorne... Pousou a cabea na mesa e comeou a ressonar. Desculpe-me por isso, rapaz disse Tom, apanhando urna toalha das mos do garom e colocando-a sob a cabea do ofcial. Mas eu tinha que descobrir, e agora tenho a informao que precisava. Pediu ao garom que mandasse um de seus ajudantes levar Osborne de volta ao quartel, quando o rapaz se recobrasse. Foi para casa. Seus pensamentos quanto a Cameron eram permeados de sangue. Saber que o nome de Hester andava na boca daquele homem e de toda a Sidnei era o pior e o mais degradante insulto. A aposta e o suborno j eram sufcientemente indecentes, mas o abuso contra Hester era intolervel. Diabos disse a si mesmo , me d metade de uma chance de cair sobre voc, Jack, meu camarada, e voc vai desejar nunca ter nascido. Agora, ia acertar as contas com a sra. Hackett. J em casa, encontrou a empregada na cozinha. Ela o encarou, mal- humorada. Um dia, tivera medo dele, mas a familiaridade havia embotado essa sensao, substituda pelo desprezo. Se fosse homem de verdade insistiria em seus direitos sobre Hester. Ele foi categrico: Dentro de cinco minutos, apresente-se em meu escritrio. Nunca um por favor ou muito obrigado, pensou ela, ressentida. Mas, cinco minutos mais tarde, batia na porta. Tom estava de costas. E assim continuou. Ignorou-a por vrios minutos, tempo em que pde sentir a agitao da mulher crescendo, atrs de si. Subitamente, voltou-se e inspecionou-a, de alto a baixo, os olhos to duros como pedras. Divertindo-se, no mesmo? perguntou com cinismo. No sei o que quer dizer, mestre Dilhorne. Senhor, para voc, Hackett. Senhor! Insistir em ser chamado assim era um sinal de sua profunda irritao. Desejava humilh-la, como ela havia humilhado Hester. Pode pensar em uma simples razo para que eu no a expulse daqui, sem pagamento e sem carta de recomendao, com a certeza absoluta de que ningum, em Sidnei, jamais a empregar de novo? A mulher fcou lvida e, em seguida, pavorosamente arroxeada. O senhor.., no faria isso... A expresso de Tom alterou-se, e ela comeou a tremer. O medo, que um dia tivera dele, voltou, em um s mpeto. No faria? Tenho em mente fazer isso agora, exatamente agora. Neste minuto! E se eu o fzer, quem ir empreg-la, para espalhar seus boatos por a? Se me contar tudo o que vem dizendo e fazendo contra mim e minha esposa, eu poderei pensar em mant-la aqui. Porm, fque a e fnja que no sabe do que estou falando, e eu a jogarei porta afora, neste exato minuto. Agora, raciocine. Ele no erguera a voz nem por um instante, e isso era pior e mais mortal do que se houvesse gritado com ela. Eu posso ter contado alguma coisa para uns poucos amigos, senhor... a mulher comeou. Seu medo era tanto que no conseguia mentir para ele. E dinheiro? ele perguntou, observando que a fsionomia dela se transtornava, diante dessas palavras. Algum lhe pagou para dar com a lngua nos dentes? Como ele soubera? Hackett julgava que o assunto era um segredo entre ela e Cameron. Gostaria de negar, mas em face da ira reprimida de Dilhorne, no ousou. Aquele ofcial ela murmurou em desespero. Cameron. Logo depois que vocs casaram, ele me parou na rua. Disse que me pagaria por qualquer informao sobre o senhor e a sra. Dilhorne. Eu nunca peguei dinheiro antes... foi a primeira vez, Deus minha testemunha. De repente, ela se lanou de joelhos, diante dele. Oh, por Deus, ar. Dilhorne, por favor, no me expulse. No tenho para onde ir, se o senhor se voltar contra mim. Ningum ir me querer, vo fcar com medo de me dar emprego. Vou morrer de fome. Ela deixou escapar um soluo e agarrou-se em seus tornozelos. Tom olhou para baixo, para a mulher amontoada a seus ps, e a raiva esvaiu-se de dentro de seu peito. Era apenas uma pobre velha, afnal, que no tivera bom senso de ver que desfrutava de uma cama macia ali, e que Heater era uma boa patroa. Acima de tudo, ele no podia conden-la ao destino do qual resgatara Hester. Levante-se, levante-se disse bruscamente. Quanto ele lhe pagou? Ele me deu outro guinu hoje, quando lhe contei sobre ontem noite. Juro por Deus que verdade, senhor, foi tudo. Tom fechou os olhos. Ento os fatos da noite anterior tambm j eram motivo de comentrios pela cidade. Graas aos cus, Hester no fcaria sabendo. Acertaria as contas com a velha megera e resolveria o assunto com Cameron. D-me o guinu, e estamos quites. Primeira condio: h um quarto de despejo sobre as cocheiras, perto de onde vivem os outros empregados. No to grande nem to bonito como o que voc ocupa, mas Miller vai arrum-lo e, quando estiver em ordem, leve seus pertences para l. No quero mais empregados espionando-me em minha prpria casa. Empurrou-a, e a mulher comeou a soluar seus agradecimentos, remexendo os bolsos procura do guinu, que colocou nas mos que ele estendia. Fique quieta, mulher, est me pondo doente. Agora, a segunda condio. Se eu descobrir que est contando coisas de novo, alm daquelas que eu queira que voc conte, eu a jogarei nas ruas. Preste ateno no que digo, e agradea por no lhe ter acontecido coisa pior. Agora, saia daqui! O que fazer agora? Contar a Hester? Sobre a sra. Hackett, sim. Sobre Cameron, no. Antes, precisava acertar as contas com o capito. Apanhou os papis da escrivaninha. Madame Phoebe queria falar com ele com urgncia sobre um assunto de negcios. Sorriu para si mesmo, com um ar de lobo. Iria v-la nessa nesta noite, sem falta, na casa de jogos. Os ofciais do 73 regimento deveriam estar l, Cameron entre eles, e quem sabe ento o que Tom Dilhorne iria resolver fazer? Apanhou o guinu do bolso, jogou-o no ar, girando, pegou-o, f-lo desaparecer, e depois o sacou do centro da for de um dos vasos que Hester colocara no escritrio. Ento, tendo aparentemente colocado a moeda no bolso direito da camisa, esticou as mos para mostrar que nada tinha nelas, e retirou-o do bolso esquerdo. O bandido Tom Dilhorne no havia perdido suas habilidades, nem o homem de negcios que hoje ele era. Qual dos dois iria dar uma lio em Jack Cameron, ele no sabia. No caminho para a casa de Madame Phoebe, Tom sentia-se estimulado. Contara a Hester, durante o jantar, que a sra. Hackett fora a informante e que havia confessado. Tambm lhe contara sobre o guinu que um ofcial a subornara. No dissera o nome de Cameron. Hester, sentada do Lado oposto, a fsionomia fria e reservada, ouvira-o sem o interromper. Porm, mesmo que no tivesse dito nada, vislumbrara um brilho em seus olhos, que lhe dissera que ela desejava acreditar que no fora ele quem espalhara os detalhes da intimidade de ambos por toda a Sidnei. Hester estava detestando aquele rompimento tanto quanto ele. De sbito, ela perguntara: Mas, e a aposta, ar. Dilhorne? No me explicou sobre a aposta. timo! Ela o tratava de sr. Dilhorne, novamente. Antes que ela pudesse impedi-lo, inclinara-se e a beijara, na face. Isso ser explicado tambm prometera. Agora, tenho negcios a tratar e preciso sair. No espere que eu volte logo para casa, hoje. Sua ultima lembrana era a fsionomia de Hester, que traa seu desapontamento porque ele sara. Tom entrou na casa de Madame Phoebe com desenvoltura. Madame Phoebe recebeu-o carinhosamente. Pensei que no mais viria aqui, Tom, depois de se casar com a nobreza. Voc me conhece, Phoebe. Alm do mais, a ara. D. no vai se importar que eu venha aqui, j que minha scia nos negcios. A sra. D. esperta nesses assuntos. Madame Phoebe sorriu. Tempos atrs, Tom havia emprestado a ela o capital para instalar sua casa, em Sidnei. Nunca quisera nenhuma participao, embora ela sempre o procurasse quando precisava de dinheiro ou conselhos. A ltima fofoca da sra. Hackett sobre Tom e Hester j chegara a seus ouvidos, por intermdio de Jack Cameron , ela sabia que Tom havia sido banido da cama da esposa, de novo. Sorridente, ela ofereceu a ele no apenas a costumeira garrafa de vinho para partilhar enquanto conversavam, mas, discretamente, sugeriu que estava disponvel. No que eu desaprove, porm tenho uma esposa, agora, e um futuro no qual pensar. Porm, sempre estarei disposto a ajud-la ele emendou. Phoebe era uma mulher sensata e aceitou tudo sem ofensa. Ofereo um servio necessrio disse, simplesmente, e fcou a imaginar por quanto tempo Tom fcaria sem satisfazer seus instintos, se a esposa se mostrasse obstinada, e agora que Mary Mahoney era uma respeitvel mulher casada. A casa estava lotada. Tom, com uma s inteno em mente, abriu caminho at a sala de jogos. Olhou ao redor e encontrou o homem que procurava. Sentado na grande mesa principal, no meio de seus companheiros, l estava Jack Cameron. Caminhou at ele, com todos os olhares sobre si. Acima do rudo reinante, ouviu o prprio nome, e, ento, o de Hester, seguidos por uma gargalhada estrepitosa. Logo a seguir, a voz do capito Parker V com calma, Jack, a dama minha amiga. Tom estacou. O grupo de ofciais fez silncio, ao v-lo. Deliberadamente, no se barbeara e ainda usava as roupas de trabalho: havia visitado as olarias, naquela tarde. Jack no estava nem um pouco abalado com a chegada de Dilhorne. Levantou o copo e provocou: Ao nosso homem, em carne e osso. Fez um cnico brinde a Tom. Parker, em p ao lado dele, segurou-o pelo brao. Jack desvencilhou-se. Tom ignorou a caoada e o brinde. Capito Jack Cameron, eu creio. Como voc sabe muito bem, Dilhorne. Ora, o que posso fazer por voc? Pode me contar o que anda dizendo sobre minha esposa, Jack. Capito Cameron, senhor, para os bandidos como voc, Dilhorne, e o que digo sobre sua esposa assunto meu, no seu. Esvaziou o copo, e serviu-se de outra dose de bebida. Parker, novamente, segurou-o pelo brao. E, de novo, Jack o repeliu. Seguiu-se um silncio impressionante. Ento, Tom exclamou: Oh, mas assunto meu, Jack. Vou perguntar de novo: o que anda dizendo sobre minha esposa? Ignore-o, Dilhorne, ele est bbado pediu Parker, o semblante preocupado. Tom no lhe deu ouvidos. A ateno da sala inteira estava agora centrada em Jack e nele mesmo, como se fossem um par de gladiadores prestes a se matarem. Em um bordel, os problemas resolviam-se por regras peculiares. Muitos dos presentes achavam que, desde que Dilhorne era um ex-condenado e no um cavalheiro, Jack poderia dizer qualquer coisa que quisesse a Tom, fosse sobre ele ou sobre a esposa, afnal, esta ultrapassara os limites, casando-se com uni bandido. Sabendo disso, Tom colocou a mo no bolso, puxou o guinu da ara. Hackett e jogou-o sobre a mesa, ela frente a Cameron. Se eu lhe der o dinheiro de volta, Jade, vai me contar, ou devo arrancar isso de voc? A resposta de Cameron foi uma gargalhada. Seu rosto tornou-se rubro. Ignorou a moeda. Por Deus, Dilhorne, vai ter o que quer. Eu estava dizendo que sujeito especial voc. To especial que at mesmo aquela coisa feia de sua esposa, e, diabos, no existe coisa mais feia, que devia estar desesperada para trepar, no quer deixar um ex-condenado como voc deitar em sua cama, de novo. O que me diz disso, Dilhorne? Sua risada de bbado ressoou no silncio opressivo. Tom havia conseguido o que queria. Provocara Jack e o fzera dizer algo que mesmo os ofciais mais ciosos de sua classe achariam difcil de engolir. E, ao faz- lo, destrura seu prprio crculo de proteo. Dilhorne era indiferente aos insultos dirigidos contra sua pessoa. Sabia que tinha sido um ladro e um renegado: era um fato, no uma ofensa. O que no suportava era que Hester fosse mal-falada. Ouvi-la ser escarnecida por uni bbado em um bordel, diante da metade dos ofciais da guarnio de Sidnei, era demais. Isto! ele respondeu, e se lanou por cima da mesa, sobre Jack. Copos, garrafas, vinho, fchas de jogo, promissrias, cartas de baralho, voaram em todas as direes. Antes que algum pudesse impedi-lo, Dilhorne agarrou Jack pelas orelhas e, com uma fora espantosa, esmagou-lhe o rosto contra a madeira dura da mesa. Ergueu a cabea de Cameron, agora ensangentada, para repetir a ao, mas os homens ao redor, a princpio estatelados pela rapidez e ferocidade do ataque, agarraram-no, obrigando-o a soltar a vitima. Cameron caiu, semi- inconsciente, o sangue jorrando da face destroada, misturando-se ao vinho esparramado. O silncio mortal foi seguido por um tumulto. Um grupo se amontoou em torno de Jack e outro empurrou Tom duramente contra a parede. Ele no fez meno de resistir. Por Deus gritou o ofcial cujo brao prendia o peito de Tom, para impedi- lo de atacar Jack novamente , voc no mesmo um cavalheiro, Dilhorne. E voc chama aquilo de cavalheiro? foi a resposta incisiva de Tom. Solte-me, e ele nunca mais vai insultar uma dama outra vez. Meu trabalho est apenas pela metade. Sua voz era o que mais impressionava a todos, tal sua frieza e indiferena. Quando se recobrar, Jack vai querer satisfaes disse o jovem ofcial que segurava Tom pelo ombro direito. Tom o ftou friamente. Ento, ele vai querer me espetar com sua espada, eu suponho. Conheo um truque que vale dois desses. Ele no vai insultar ou dizer mentiras sobre minha esposa de novo, se eu lhe cortar a lngua e silenci-lo para sempre. O jovem ofcial se encolheu apavorado. O grupo, em torno de Jack, afastou-se, subitamente ofendido. Parker, com o semblante fechado, caminhou para perto de Tom, e disse: Ele no devia ter dito o que disse a respeito de Hester, Dilhorne, garanto, porm voc o marcou para o resto da vida. O nariz dele est quebrado, e os dentes, perdidos. Ser que esto por aqui? caoou Tom, ainda mais provocativo. Acha que isso ir ensin-lo a tomar cuidado com o que diz sobre minha esposa, no futuro? Bem, ele estava bbado... disse Parker, em dvida. Voc deveria ter esperado para resolver isso quando ele estivesse em seu estado normal, e no lhe cair em cima, sem aviso. Do jeito que aconteceu, ele tem direito a satisfaes quando se recobrar. E o que est acontecendo? Ele quer satisfaes de mim? Eu diria que ele j conseguiu. No vou entrar nesse jogo idiota, Parker. Se ele no der satisfaes a Jack disse o ofcial que continuava prendendo Tom pelo ombro , eu proponho que ns o levemos justia para ser indiciado por assalto. Antes que Parker pudesse responder, Pat Ramsey decidiu intervir. At ento, permanecera encostado contra a parede, observando o tumulto com o divertido cinismo de um homem que no tomara partido a favor de nenhuma das partes. Dirigiu-se ao ofcial: Seu tolo, idiota, o que isso iria trazer de bom? Quer que esse problema se tome mais pblico do que certamente se tomar? Uma briga em um bordel? A sala inteira ouviu Jack insultar Dilhorne e, o que pior, a esposa de Dilhorne. Hester Dilhorne urna dama. Por ter defendido a esposa de um insulto to grosseiro como o que Jack lhe dirigiu, o tribunal absolveria Dilhorne. Voc quer desgraar o Regimento? O que Cameron disse e fez j no foi o bastante? Essas verdades evidentes silenciaram o tumulto dos que queriam o sangue de Dilhorne. Estavam em um beco-sem-sada. Ramsey baixou o tom autoritrio que vinha usando e, apanhando o guinu da mesa onde ainda permanecia, surpreendentemente inclume ao caos que Tom havia provocado, perguntou: Ora, tudo isso por causa de um guinu? Olhou para Jack, que estava sendo carregado da sala. A bebida e a pancada fnalmente haviam feito com que perdesse os sentidos. Acha que Jack poderia nos contar? Isto , se pudesse falar? Osborne, sentado a um canto, curtindo a cabea pesada e observando a confuso, de repente resolveu dar uni aparte: Era tempo de Jack Guinu levar a sua, voc sabe, e Dilhorne foi homem para isso. Ele no deveria ter falado aquilo da pobre Hester. A vingana de Tom estava completa. Jack Guinu era, de agora em diante, o apelido depreciativo de Cameron. Os homens ainda estavam relutantes em soltar Dilhorne. Quem poderia saber se ele no iria seguir Jack e terminar o que havia comeado, como prometera? A chegada de Madame Phoebe, a quem o tumulto fzera descer a escada e que observara tudo, em silncio, desde o princpio, resolveu o impasse. Ela havia esperado pelo momento adequado para intervir, e percebendo que o pior havia passado, imps sua autoridade. Que diabos vocs pensam que esto fazendo? Soltem Tom, imediatamente! E assim que ofciais e cavalheiros se comportam quando tomam uma garrafa de vinho? Digam ao capito Cameron que ele no mais bem-vindo aqui, por mencionar o nome de uma mulher decente em uma casa de prostituio. V para casa, Tom Dilhorne, deix-lo solto entre cavalheiros como colocar um tigre entre gatinhos. Tom riu das expresses ofendidas dos militares e se dirigiu mesa destroada. Por Deus, Tom Dilhorne, no pode resolver seus assuntos particulares sem arruinar os negcios de uma pobre mulher? Vou querer ressarcimento disso tudo, lembre-se. Tom, subitamente, sentiu-se infnitamente feliz. A lembrana do rosto mutilado de Jack Cameron encheu-o de um selvagem prazer. E a sutileza de Madame Phoebe ao embaraar os cavalheiros ali reunidos vinha somar-se a isso. Minha querida, voc ser ressarcida. Apanhou do cho o quepe de Cameron e jogou-o para Parker. Passe o chapu como um bom camarada, capito Parker, e pague a Madame Phoebe pela diverso. Toda a Sidnei fervilhava de comentrios. Como em toda sociedade fronteiria, todos sabiam de tudo acerca dos assuntos alheios. E a estaria era boa demais para no ser contada. Que excitante, o elegante Tom Dilhorne havia voltado a suas origens primitivas e destrudo, no apenas o rosto de Jack Cameron, mas o inferno de jogatina de Madame Phoebe. Quem conta um conto aumenta um ponto. O mais surpreendente era que, no fnal, Dilhorne havia feito, de alguma forma, com que os ofciais do 73 Regimento pagassem pelos danos. Quando o chapu chegara at ele, dissera que, considerando que fora quem proporcionara a diverso, no via porque haveria de pagar por isso, tambm! A nica pessoa, em Sidnei, que nada sabia, era Hester. Ela havia ouvido Tom chegar em casa de madrugada, subir a escada correndo, e, mais tarde, escutara-o assobiando enquanto se preparava para dormir. O que o tinha tomado assim to feliz? Na manh seguinte, no caf, ele se sentara, sorrindo com uma expresso que, fosse em outro homem, ela chamaria de estpida. Tom decidira provoc-la um pouco. A deduzir de seu comportamento, Hester parecia disposta a esquecer tudo, sem explicaes. Rira sozinho diante da curiosidade que queimava a esposa e de sua determinao em no se deixar trair. Oh, iremos celebrar esta noite, sra. Dilhorne, pensou, ora, se no vamos! Quando a deixara para ir a Sdnei, ele a beijara no topo da cabea, murmurando: Eu lhe contarei tudo esta tarde, ara. Dilhorne, o que a provocara mais ainda. No obstante, enquanto o observava afastar-se, seu rosto j se suavizara, e a infeliz e maltratada Hester Waring havia desaparecido em um limbo do qual jamais haveria de retornar. Hester decidiu ir at a cidade para fazer algumas compras. Imediatamente percebeu que algo estranho havia ocorrido. Algo envolvendo Tom e ela mesma, pensou, ao se dar conta da reao das pessoas, seus olhares e seus sorrisos. Entrou no Emporium. Todas as cabeas voltaram-se em sua direo. As conversas pararam, para logo recomear. Ela podia ouvir seu nome e o dele sendo sussurrado, o que no era novidade, exceto que, desta vez, sua presena provocava ainda mais excitao. Quando voltou para casa, o cocheiro que a levara cidade, em um sbito atrevimento, pensando que ela sabia dos fatos, insinuou que o patro fzera bem em defender-lhe o bom nome diante da guarnio. Isso a fez perceber que, de alguma forma, Tom, os militares e ela estavam envolvidos em algum incidente de conhecimento pblico. Bem, se os militares estavam no meio daquela estria, ento, iria procurar Lucy Wright. Colocou um vestido novo, que Tom havia escolhido para ela em sua loja, e ps na cabea um novo chapu. Escolheu uma bela sombrinha e resolveu usar o colar e o anel de granadas que ele lhe dera. Ento, pronta para a guerra, ordenou que o cocheiro a levasse at a casa de Lucy. A amiga fcou encantada de v-la de novo, depois de uma longa ausncia. Oh, Hester, voc est esplndida! Foi Tom que escolheu tudo isso para voc? Para um homem, ele tem um gosto notvel no que se refere a roupas femininas. Pena que no atende mais na loja. Sim retrucou Hester, secamente. No tinha vindo falar de Tom. Precisava descobrir qual era a fofoca que corria de boca em boca. Havia aprendido a ser paciente na dura escola da vida, e somente depois de mostrar sua admirao pelo beb, tomar ch e apreciar o novo trabalho de agulha que Lucy estava fazendo, que tocou no assunto que causara sua visita. Olhou, um tanto encabulada para a amiga e perguntou: Frank disse alguma coisa a voc sobre algum problema envolvendo Tom e os militares? Lucy colocou de lado o bordado, com um suspiro. Oh, Hester, voc no sabe o que aconteceu? Tom no lhe disse nada? Voc o conhece. Claro... Bem, talvez seja melhor que voc saiba. No posso lhe contar em todos os detalhes, porque Frank julgou que no eram dignos de meus ouvidos. Devo, como uma mulher virtuosa, ignorar que o bordel de Madame Phoebe existe. Pergunto a voc, como eu poderia desconhecer uma tal coisa? Porm, ele me contou o bastante. Seu marido foi, ontem noite, quele lugar, quando todos os ofciais da guarnio estavam l, e teve alguma espcie de desentendimento com Jack Cameron. E Jack levou a pior, Frank viu tudo. Aparentemente, Tom destruiu o lugar, tambm. E a maior piada que, segundo Frank, Tom fez os ofciais pagarem pelos prejuzos, e foi embora sem arcar com nada. Tpico de Tom, no ? Riu, e no entrou em detalhes sobre os motivos do desentendimento. Hester queria saber mais e insistiu: Sobre o qu foi a discusso, Lucy? Lucy hesitou e, ento, decidiu contar a Hester o que sabia, embora fosse pouco. Tem alguma coisa a ver com voc e Tom. O capito Canieron estava bbado e dirigiu-lhe palavras insultuosas. Frank acha que ele tem espalhado mentiras sobre voc e seu marido. Voc quer dizer que Tom o atacou por minha causa? Sim. Frank diz que ele fez um estrago no rosto de Jack. No quis me contar como. Se Frank fosse to corajoso como Tom, eu fcaria feliz, caso fosse eu a insultada em um inferninho de jogatina ou em qualquer outro lugar. E por que Tom haveria de destruir tudo? Bem, no foi bem assim. S a mesa de jogo e o que estava sobre a mesma, quando ele caiu sobre Jack. Ambas tentaram visualizar a cena descrita por Lucy. Sabiam to pouco dos lugares que os homens e aquelas mulheres freqentavam, que era difcil imaginar exatamente como tudo havia se passado. Hester apenas compreendia que Tom, sem dvida, havia punido Jack por aquilo que o ofcial dissera no baile, por subornar a sra. Hackett, e por outro qualquer insulto dito na casa de Madame Phoebe. Frank diz que Jack quer satisfao de Tom, quer desaf-lo para um duelo, mas h um problema quanto a isso. Frank acha que ningum pode decidir quem a parte desafante, Tom ou Jack. O caso foge a todas as regras normais entre cavalheiros. Mas, o que importa quem desafa quem? perguntou Hester, confusa com as tolices que regiam o cdigo de honra. Oh, importa sim retrucou Lucy vivamente. Veja voc, o homem desafado tem o direito de decidir quais as armas a usar, e ningum sabe quem desafou quem. Foi Tom que atacou Jack? Ou foi Jack que desafou Tom? De repente, ela caiu na risada. Parece uma estupidez, no acha? Tom diria que sim concordou Hester. De sbito, ela se sentiu lisonjeada. Tom havia atacado Cameron por causa dela. De repente, entendeu tudo. Percebeu quem havia contado estarias a Jack Cameron e que a tal aposta envolvendo Tom nunca havia existido. Com o pensamento, veio a lembrana do rosto de Tom, quando ele implorara que o escutasse na noite do baile. Ela se voltou e comeou a recolher suas coisas. O marido no merecia sua raiva estpida, no merecia. Voc precisa ir embora logo? perguntou Lucy. Eu no lhe contei sobre o guinu. Hester ftou a amiga. O guinu da sra. Hackett. A moeda comeou a briga murmurou. Sim. Como soube disso, Hester? Eu no sabia. Adivinhei. Precisava ir para casa e esclarecer tudo. Desculpe-me, preciso ir, Lucy. Sorriu, um sorriso deslumbrante, e pareceu mais bonita do que quando fora ao baile. Lucy observou-a caminhar em passos frmes at o coche. Ora, o que havia dito para faz-la sair com tanta pressa? Frank dissera que ela e Tom estavam separados. Lucy duvidou aquilo ao lembrar-se do sorriso de Hester cada vez que dizia o nome do marido. Naquela tarde, Jack Cameron se apresentou com os dois olhos pretos, o nariz quebrado, a boca arrebentada e os dentes perdidos, na sala do coronel OConnell, no alojamento. Anteriormente, no deixara o quartel, exceto para consultar o dr. Kerr, que lhe dissera que, tirando o nariz quebrado, para o qual no havia conserto, poderia dar um jeito em tudo o mais, incluindo os dentes, era s uma questo de tempo. Suas palavras iniciais foram categricas: Quero aquele bastardo do Dilhorne preso, acorrentado, acusado de assalto qualifcado. OConnell ftou-o com visvel desgosto. Voc sabe que no posso fazer isso, Jack. Por mais que eu queira ver Dilhorne em uma gaiola, no posso fazer qualquer coisa contra ele, diante disso. Jack apontou para o rosto deformado. O bruto quase me matou na noite passada. No sufciente? Voc sabe que no. Se tivesse se limitado a insult-lo, tudo bem, eu j o teria colocado atrs das grades. Mas voc insultou sua esposa, e no importa o que ele seja, ela uma dama. E mais, nunca houve um nico escndalo que a envolvesse. Fora, claro, o fato de ter se casado com Dilhorne. Porm, aquele asno do Fred Waring deixou-a em uma situao to miservel que casar com ele foi uma alternativa melhor que morrer de fome ou parar na casa de Madame Phoebe. Jack comeou a bufar. Voc est mal informado. Quem lhe contou os fatos? Parker me fez um relatrio completo do acontecido na noite passada. Parker! O sarcasmo de Jack era contundente. Aquele sujeitinho inexperiente! Eu s poderia esperar isso dele. Mesmo voc, Jack, no pode chamar Pat Raxnsey de inexperiente disse OConnell, em um tom cansado , e seu relatrio bate com o de Parker. Ento Dilhorne se safou dessa, e no ter que me dar satisfaes... Ora, cale a boca, Jack. Voc deveria aprender a controlar a bebida. A expresso de Cameron era a de um assassino. Pensar naquele porco caminhando por Sdnei como se a cidade lhe pertencesse, o que eu no posso suportar. Vamos l, Jack. Ele o dono de Sdnei, ou quase isso resmungou OConnell. Ora, arque com os prejuzos e certifque-se de atingir um alvo mais fcil, da prxima vez. Se no sabia que Dilhorne era perigoso, agora j sabe. Jack afastou-se, revoltado, mas voltou ao ouvir o comentrio de OConnell. Feia, foi como voc se referiu a ela. Voc no a tem visto ultimamente, Jack. Ao contrrio, devo lhe dizer, desde que se casou com Dilhorne, aquela garota est transformada. Est se tornando uma belezinha. Aquilo o irritou. Uma belezinha?, pensou Jack furioso. Se OConnell quem diz, deve haver alguma coisa ai, ele mulherengo. E fcou a imaginar como poderia dar o troco quele animal, se atravs de sua esposa ou de seus negcios. O que poderia ser mais fcil? Melhor mesmo seria poder destrui-lo, v-lo morto! Tom sentou-se para jantar, ainda exaltado pela satisfao que sentira por ter atacado Jack Cameron. Havia encontrado com Alan Kerr pela manh, e o amigo se mostrara assombrado com o que ele fzera. Eu havia me esquecido o brigo que voc , Tom. Voc trilhou uni longo caminho desde que desembarcamos em Nova Gales do Sul. Ele insultou Hester explicou, simplesmente. Eu sei. No preciso Lhe dizer que essa histria corre de boca em boca. Voc destruiu a casa de Madame Phoebe tambm? Tom explodiu em uma gargalhada. E o que andam dizendo? Mas apenas quebrei a mesa na qual melhorei a aparncia de Cameron. Tenho para com os ofciais, amigos dele, uma dvida de gratido. Eles me impediram de mat-lo, o que poderia ter sido o meu fm. Fez uma pausa. Voc sabe, pensei que isso tudo tinha passado. Que eu era um homem civilizado. Quando ele disse aquilo sobre Hester, somado a outras coisas, eu me senti com dezoito anos novamente, pronto para matar se fosse confrontado. Deu de ombros. E tinia lio, preciso aprender a controlar meu temperamento. Engraado, se ele tivesse me insultado, eu teria rido em sua cara. Mas ele falou de Hester... eu poderia t-lo matado por isso. Agora, sentado do lado oposto a ela, Tom fcou a imaginar o que poderia ter causado aquele ligeiro rubor no rosto de Hester, e por que ela escolhera usar as granadas que havia dado a ela, e o vestido combinando, cujo tom avermelhado iluminava-lhe as feies. Ela costumava vestir-se assim quando estavam sozinhos. A aparncia de abandono e desamparo, que havia retomado na noite do baile, desaparecem de seu rosto, e ela comia a sopa com avidez. Ia perguntar por qu, quando ela ergueu os olhos e lhe disse, no tom de brincadeira que costumavam usar, antes da briga. O que andou fazendo na casa de Madame Phoebe na noite passada, sr. Dilhorne? O que os homens costumam fazer l, sra. Dilhorne. Ela apertou os lbios, em um gesto cmico. No me atrevo a falar em uma coisa dessas, ar. Dilhorne. Bem.., eu no estava fazendo aquilo. Ento, estava fazendo o qu? Pensei que comparecia a um encontro de negcios, ara. Dilhorne, mas ento descobri que tinha me metido em uma confuso com um dos ofciais de OConnell. Acho que posso ter melhorado as maneiras de Cameron, mas no creio que fz o mesmo com seu rosto. Oh, ar. Dilhorne, em Sdnei no se fala de outra coisa! Conte-me, estou ansiosa por saber, por que quebrou a casa de Madame Phoebe? O rosto de Tom era to cmico como o Hester, instantes atrs. Quantas vezes tenho de dizer que no quebrei a casa de Madame Phoebe? Ser que vou receber uma conta por causa disso? Bem, se no o fez, ar. Dilhorne e, claro, eu aceito sua palavra, o que foi que os ofciais pagaram? Uma mesa arrebentada, ara. Dilhorne, e algumas garrafas de vinho, tudo por uma boa causa. Por mim, Tom? A voz de Hester era doce. Por causa daquilo que Cameron disse no baile? E na casa de Madame Phoebe? Ele aquiesceu. Por voc, Hester. Apenas e to somente por voc. Fitaram-se longamente. Hester colocou os talheres sobre a mesa e levantou-se, caminhando para ele. Tom ajoelhou-se, aos ps dela, tomou-lhe a mo e beijou-a. Estou perdoado, ento? No havia nada a perdoar. voc quem deveria perdoar-me. Voc tinha razo. A ara. Hackett andou contando histrias, e Jack Cameron estava mentindo. No sei por que no acreditei em voc. Porque fcou magoada com o que ouviu. Fui to grosseira quanto naquela festa de Natal. E, novamente, estava errada. No importa, agora ele murmurou, gentilmente, beijando-lhe a mo, novamente. Oh, mas importa, sim. Eu fui cruel. Em parte, creio que foi porque eu no podia acreditar que podia ser feliz, e, em parte, por causa de tudo aquilo que minha me e meu pai sempre disseram de voc. Quando Lucy me contou, esta tarde, o que voc tinha feito por mim, senti-me culpada, de novo. Lucy lhe contou, ento... Ele parecia sinceramente divertido. Bem; nem tudo. Apenas a fofoca e um pouco do que Frank disse. Eu estou usando as granadas, ar. Dilhornel Estou vendo. Acho melhor tir-las. Tenho vontade de fazer coisas terrveis com voc, ara. Dilhorne... ou, pensando melhor, fque com as jias. Ela se recostou contra ele, roando os lbios em seu rosto. Faa tudo que voc quiser, tudo que gostar. E disto que eu gosto. Ele a ergueu do cho e jogou-a por sobre o ombro, com se fosse um saco de carvo. Hester fcou suspensa, rindo. Oh, ar. Dilhorne, o que vai fazer, agora? Isto Refetiu, e saiu pela porta. Ao p da escada, encontrou a ara. Hackett, seguida pela criada, trazendo a carne assada. Ah, sra. Hackett disse ele, girando o corpo para que o rosto de Hester fcasse oculto dos olhos dela. No vamos querer jantar esta noite. Podem se servir. Riu, diante do ar abobalhado da empregada. E voc tem minha inteira permisso... No, uma ordem!, . ..para contar cidade inteira que Tom Dilhorne est levando sua esposa para a cama, hoje! Deixando a ara. Hackett engasgada atrs de si, Tom subiu a escada correndo, e, passando pelas portas de bronze, colocou seu doce fardo sobre a cama. Em um frenesi de paixo, ps-se a fazer amor com Hester, sem nem mesmo esperar que tirassem as roupas. Por fm, caram exaustos, rindo saciados, juntos de novo, e desta vez, para sempre. CAPTULO XI Aqueles primeiros meses aps a reconciliao foram, ara Hester, um perodo em que tudo era novo e excitante. Ela e Tom eram to selvagens e irresponsveis no ato do amor como os tigres que, algumas vezes, ela imaginava que eram. Na manh seguinte ao reencontro, ela estava deitada, cochilando, quando seu Mentor, que permanecem calado desde que Tom fzera amor com ela, pela primeira vez, subitamene se ps a falar: Adeus, Hester disse. Antes, a voz sempre fora baixa. Agora, era to clara que ela imaginou que Tom, que estava barbeando-se diante do espelho, poderia ouvi-la. Por que estava dizendo adeus? No instante em que o pensamento lhe ocorreu, a voz retrucou, com tristeza: Voc no precisa mais de mim, Hester. No mais uma ratinha indefesa. E a parceira de Tom, sua tigresa. Iro caar juntos, vai ver. Vou sentir saudade suas. No, eu no sou mais querido. Mas sempre que precisar, eu estarei de volta. Adeus, Hester. Silncio. Ele se fora. Por um instante, ela fcou desolada com a idia. Mas depois sentiu-se feliz por no ser mais a assustada Hester Waring e por saber que poderia falar em voz alta tudo o que pensava. Para aumentar sua confana, Tom continuara a educ-la nos meandros da vida, e isso, agora, envolvia desvendar-lhe os mistrios e a arte do amor. Sua criatividade, em termos de prazer, ia muito alm do ato fsico em si. Ele parecia capaz de encontrar algo novo para fazerem a cada ocasio, quer no trabalho ou no lazer. Ele a cumulava de presentes: leques, roupas, comidas exticas e vinho. Comprara-lhe um cavalo, para cavalgarem juntos, mandam fazer calas de montaria para que ela pudesse sentar-se na sela confortavelmente. Ensinara-lhe a nadar e fazia amor com ela na gua. Alis, fazia amor em qualquer lugar onde Lhe desse vontade. A felicidade a tomara por inteiro. A transformao, na aparncia de Hester, era to marcante, que Tom fcou atnito ao perceber que ela no se dava conta disso. Minha Vnus disse-lhe uma vez, quando estavam nus, entre os arbustos, rodeados de fores e perfumes. Minha rara miniatura da deusa do amor. Ela se tornara a bela mulher que ele sempre acreditara que seria, mesmo quando todos em Sidnei viam nela apenas a pobre e feiosa Hester Waring. Era bvio, contudo, que ela julgava que eram os olhos apaixonados do amado que a viam assim e que tal comentrio no fosse a verdade. Hester no conseguia esquecer que fora pela interveno de Tom que se salvara da runa, de cair na cova que esperava aqueles que tinham sido varridos do banquete da vida. Nas reunies de negcios, Tom sempre a levava consigo e a maneira com que a tratava com deferncia e pedia freqentemente sua opinio, era notada com um divertimento irnico. Tal atitude teria mudado se soubessem quantas vezes Hester, na verdade, aconselhava-o e como seu discernimento era agudo. Complementavam-se, um ao outro. Se Tom, por vezes, era muito duro, Hester estava l, para amans-lo. Se ela, por sua parte, era suave demais, ele estava l, para enrijec-la. Mesmo assim, ela ainda permanecia inconsciente de que Hester Dilhorne havia se transformado em uma linda mulher, segura do amor de seu marido. Naquela tarde, Jack Cameron entrou no salo de baile do Palcio do Governo, determinado a avaliar Hester Dilhorne. Durante os meses transcorridos desde que cara nas mos daquele bastardo do Dilhorne, ele andara procurando por ela por toda a Sdnei e, de alguma forma, nunca parecia encontr-la. Ela se tornou de uma beleza singular disse-lhe Ramsey, um dia, parafraseando OConnell. Os porcos podem voar ele caoou, bufando de dio. Hester Waring, uma beleza! Sempre que a vira antes, o que no fora freqente, graas a Deus, era uma mocinha desajeitada e feiosa que fcava pavorosamente vermelha ao ser encarada. Aquele asno, Frank Wright, tambm tinha dito que ela estava muito melhor, mas, que diabos, quando ele entendera de alguma coisa? OConnell o aconselhara a cortar a bebida e, assim, ele estava sbrio quando correu os olhos pelo salo. Seu rosto ainda exibia as marcas das mos daquele bandido. Seu nariz nunca mais seria o mesmo. Onde estava Hester Dilhorne? Queria olh-la com ateno, mas a madame no estava vista. No importava. Tanto quanto dar uma boa risada na cara dela, ele precisava de um pouco de alivio com uma bonita mulher, antes de partir para o cumprimento do dever. Um camarada to maltratado como ele no merecia menos que isso. Logo encontrou seu alivio. No meio do salo, sentada praticamente sozinha, estava urna criatura deliciosa que ele no conseguia se lembrar de ter visto antes. Usava uru elegante vestido de seda de um verde-limo muito plido e um cordo de prolas de excepcional qualidade prendia seus brilhantes cabelos negros. Em torno de seus ombros acetinados, uma echarpe primorosa, chinesa, bordada com fores de ltus. No colo, uni leque entreaberto, tambm da China, notvel pela beleza pura de sua decorao em porcelana. Nos ps pequenos, usava sapatilhas cor de creme, bordadas com prolas, como as damas chinesas. Fascinado, Jack se perguntou como uma tal beleza, de imensa delicadeza, poderia ter escapado de sua ateno? A moa devia ter chegado no navio que atracara nas docas, na semana anterior. Decidiu tirar vantagem da liberdade que o salo de baile proporcionava e apresentar-se a ela. Caminhou resolutamente, cruzando o salo, tudo o mais esquecido. Estava absolutamente inconsciente de que, quando seu destino se tornou bvio, uma centena de pares de olhos o seguia, antecipando um outro delicioso escndalo. Perto dela, viu seus belos olhos escuros se arregalarem e um rubor tingir-lhe as faces cor de marfm. Inadvertidamente, tomou isso como um tributo a seu prprio atrevimento. Cumprimentou-a, com uma profunda reverncia. Nunca gostei de ver a beleza negligenciada, madame. Posso me apresentar? Sou o capito Jack Cameron, a seu servio. A bela mulher deixou escapar um leve suspiro. Seu rubor se acentuou, e ela abriu o leque para encobrir o rosto. De sbito, o entendimento o atingiu. Ora, mal posso acreditar... Jack gaguejou. No pode ser! Ser que estou me dirigindo srta. Hester Waring? Hester balanou a cabea, orgulhosa, at um tanto divertida com a confuso evidente. Meu nome Hester Dilhorne, senhor, como bem sabe. No creio que devesse estar dirigindo a palavra a mim. E pouco prudente. Ela havia abaixado o leque para encar-lo, de maneira frme. Sua frieza e sua pose eram duplamente surpreendentes para Jack, quando se recordava de suas maneiras antigas. OConnell e todos tinham razo. Ela estava mudada. Havia se transformado em uma mulher elegante, de uma beleza extraordinria. A raiva o inundou. O que tinha feito aquele maldito Dilhorne para merecer uma prola de tamanho preo? Sra. Dilhorne, ento. Ele cumprimentou-a, de novo. Estou encantado de t-la encontrado. Quero me desculpar por qualquer mgoa que possa ter-lhe causado no passado, e dizer-lhe de minha admirao, esta noite. A senhora a beleza em pessoa, madame. Jack no estava mentindo. Diante dele estava a mulher que pedira ao destino, mas nunca procurara encontrar. Hester, contudo, no o deixou ir avante. No h necessidade, senhor. No desejo conversar com o senhor, nem receber suas desculpas. Por favor, retire-se. Deve ter conscincia de que se dirige a mim por sua conta e risco. Intil falar com ele assim. Jack estava fascinado. Indiferente ao perigo, insistiu. Seus olhos no conseguiam se afastar daquele rosto maravilhoso. No havia quem se comparasse a ela no salo. A beleza e o comportamento orgulhoso a destacavam, de forma singular, de todas as outras. Hester olhou ao redor, procurando por Tom, que estava em p, longe dali, conversando com Wil French. No poderia responder pelas conseqncias, se o marido a visse sendo importunada. No podia acreditar que a admirao de Jack era genuna. Tarde demais! Jack no fez qualquer meno de se afastar, e Tom, aborrecido com a tagarelice sem fm de Will, procurou Hester com os olhos, para descobrir que ela estava sendo molestada por Cameron. Era claro, por seu comportamento, que ela queria que ele se fosse. Minha esposa precisa de mim disse a Will, abruptamente, e atravessou o salo, os olhos fascinados de todos sobre si, at onde Jack ainda se desfazia em atenes para com Hester. Tom segurou-o pelo ombro e obrigou-o a voltar-se, feliz em ver que o rosto de Jack empalidecia diante de sua presena. Eu agradeceria que no perturbasse minha esposa, Cameron. Eu estava apenas tentando me desculpar, Dilhorne. De um porco como voc, um insulto no se apaga com um pedido de desculpas. Eu estava somente tentando comportar-me com decncia, Dilhorne. Voc no saberia como, Cameron. Jack decidiu que recuar, diante do salo inteiro, que observava avidamente a troca de palavras, seria sua ltima desgraa. Comeou a esbravejar. Ora, veja bem, Dilhorne... A raiva assassina, que tomara conta de Tom quando vira Jack falando com Hester, aumentou ainda mais. Tinha difculdade em se autocontrolar. Sua mo se fechou cruelmente no ombro de Jack. E lhe perguntou, em urna voz gelada: Tenho que ensin-lo a se comportar, mais uma vez? Vou avis-lo das conseqncias, Cameron, se testar minha pacincia. Fique longe de minha esposa! O salo inteiro tinha os olhos presos na cena. Hester encarou o marido e viu que sua expresso era perigosa. Mal podia reconhec-lo. Algo tinha que ser feito para evitar que Tom matasse Jack Cameron, ali mesmo, na sala. Ergueu-se, em um gesto gracioso, ps a mo esquerda no brao livre de Tom e, ao mesmo tempo, fechou o Leque com o toque desafador que Tom lhe dissera que as japonesas utilizavam. Sr. Dilhorne, meu amor, eu me sinto um pouco tonta. Quero dar uma volta, l fora. Estou certa de que o capito Cameron no pensaria em nos reter. Tom ftou-a. No havia o menor sinal de que ela estava tonta ou tinha qualquer outra indisposio. Falara com ele com a voz que usava para provoc-lo. E o inclinar de cabea, para Jack, era uma forma de dispens-lo, elegantemente. A raiva o abandonou e foi substituda pela admirao. Hester tinha sangue frio. No pela primeira vez, ela usava sua suposta fraqueza feminina para se sair de situaes difceis. Relutante, ele soltou o ombro de Cameron. Tomou o brao da esposa e, sem olhar para trs, a cabea inclinada de maneira solcita para ela, caminhou para as portas de vidro, abertas para o jardim. O salo, atrs dos dois, deixou de segurar o flego. Jack Cameron foi deixado sozinho, como um tolo, parte. Metade dos observadores estavam desapontados, lamentavam que o famoso acontecimento em casa de Madame Phoebe no se repetira, desta vez com conseqncias ainda mais srias. A outra metade, que gostava de Tom e comeava a admirar Hester, estava aliviada. Lucy Wright, que estivera sentada perto dela, disse a Frank: Voc estava certo quando disse que, se o deixassem, Tom teria matado Jack naquela noite, em casa de Madame Phoebe. Por um instante, pensei que ele fosse mat-lo aqui, publicamente, diante de ns. Jack um idiota exclamou Frank , e algum deveria dizer isso a ele! Ser que realmente no a reconheceu? Tenho certeza de que no declarou Lucy. Pat Ramsey, que se divertira observando o desconforto de Jack Guinu nas mos de ambos os Dilhornes, voltou-se para os camaradas do 735 Regimento e saiu-se com essa: Ora, ora, eu gostaria muito de descobrir como aquele demnio maquiavlico sabia que, se alimentasse e tratasse bem dela, na cama, aquela coisinha insignifcante se tornaria de urna beleza assim to exuberante e to sagaz quanto ele! Esse tipo de conhecimento no est venda, meus rapazes, seno teramos todos a mesma sorte! L fora, no jardim, Tom conduziu Hester at um banco rstico, pintado de branco, entre algumas accias. Nenhum dos dois falou, por alguns instantes, at que Hester disse, bastante determinada: Meu querido, voc no deveria ter fcado to transtornado ao ver o capito Cameron falando comigo. Sei que no gosta dele, mas parece um tanto agressivo, de sua parte, querer mat-lo por isso. A expresso severa de Tom suavizou-se, e ainda mais, quando ela continuou. Foi, realmente, uma coisa bastante estranha. Tem certeza de que no abalou o crebro do capito naquele dia, na casa de Madame Phoebe? Ele veio se desmanchando sobre mim como se eu fosse a Rainha de Sab, fez-me uma srie de elogios extravagantes com a expresso mais absurda na cara e, ento, tentou fngir que no me reconhecera! Tom murmurou, com cuidado: Acho que, talvez, ele realmente no a tenha reconhecido, sra. Dilhorne. Bobagem! Hester retrucou spera. Acho que so estas roupas que estou usando. Era intil dizer a ela quanto havia mudado. Tom sorriu e disse, simplesmente: No obstante isso, voc no est se sentindo tonta, no verdade, sra. Dilhorne? No, realmente, no. Porm, eu tinha de afast-lo de Jack, de alguma forma. No estava errada, estava? No de todo. Voc tinha razo. Seria unia pena arriscar minha liberdade por causa de um asno como ele. Ele sua prpria punio. Pena que no tenha visto sua expresso, quando a reconheceu. Hester levantou-se. Acho que podemos voltar ao salo. Demos tempo sufciente para que falassem de ns, e creio que j devem ter achado um novo assunto. Ele sorriu. Ora, eu duvido. Porm, vamos voltar, sim. Preciso aplacar os nimos de Will French, deixei-o falando sozinho. O retorno de ambos ao salo era ansiosamente aguardado. Tom deixou Hester junto a Lucy Wright e seus amigos. Senhoras, senhores inclinou-se, cumprimentando o grupo. Imagino, sra. Wright, que a senhora possa velar por minha esposa enquanto eu me desculpo com o sr. French por minha conduta, um tanto grosseira. Ela no est se sentindo muito bem. Todas as cabeas se voltaram para examinar Hester. Se ela no estava se sentindo bem, ento essa era uma condio que todas as mulheres deveriam almejar. Nunca parecera mais charmosa e elegante. Os ofciais que a haviam evitado quando ela era a pobre Hester Waring mostravam-se quase servis, na tentativa de agrad-la, a ponto de ela se mostrar embaraada. Disse, envergonhada, para Lucy: Acho que todos fcaram loucos, esta noite. Primeiro, foi Jack Cameron e suas bobagens, e depois o capito Parker, que no pra de me dirigir galanteios extravagantes, falando de ninfas belssimas. At mesmo Frank se juntou a esse grupo. Lucy ftou-a, com dureza. Ser que Hester realmente no sabia o quanto mudara? Tom no lhe dissera? Voc nunca se olha no espelho, Hester? perguntou, inconscientemente repetindo a frase de Tom. possvel que no tenha conscincia da notvel melhora em sua aparncia? E to grande que voc se tornou o assunto do baile. Ela teria continuado se o governador Macquarie e a esposa no houvessem se aproximado. Queria que seu marido estivesse aqui, com voc, sra. Dilhorne, para que pudesse cumpriment-lo pela esposa. Se realizssemos aquele antigo concurso, A Rainha da Beleza, em nos bailes, no haveria dvidas de quem seria a vencedora que levaria a coroa, hoje. Tom Dilhorne conseguiu a mulher mais bonita de Sidnei para esposa. O cho se abriu perante Hester. Jack Cameron no a convencera, mas o governador, sim. Fazendo coro com as observaes de Lucy, ele fnalmente a fzera compreender que Tom no a elogiava por amor, mas lhe fazia cumprimentos, no sentido literal da palavra. Precisava examinar-se no espelho, quando chegasse em casa. O governador beijou-lhe a mo, antes de se afastar. O salo inteiro observou-o prestar a homenagem sra. Dilhorne. Tom, que se aproximara do pequeno grupo depois de deixar Will French, era um espectador deleitado com a cena. Na carruagem para casa, que cortava a estrada escura iluminada por urna enorme lua cheia, Hester murmurou: Voc tinha razo, sr. Dilhorne. Eu sempre tenho razo, sra. D. Em particular, a que se refere, desta vez? Minha aparncia. Tenho que aceitar que passei por uma grande mudana e no apenas por causa das roupas maravilhosas e os presentes que voc escolhe para mim. Oh, sim, sra. D., claro que eu estava com a razo quanto a isso. Mas, por qu? ela indagou. E como? O que aconteceu para que eu me transformasse tanto assim, a ponto de no me reconhecerem? Boa alimentao, Hester, meu amor, vinho e diverso na cama. Especialmente, diverso na cama. Vamos para casa depressa, quero deix-la ainda mais adorvel! Por mais feliz que Tom fosse, Jack precisava ser neutralizado, o sujeito era uni canho pronto para disparar. Tom se ps em ao, rapidamente. Ouvira falar, em uma vinha secreta que existia em Sdnei, que Jack estava determinado a se vingar dos insultos que Tom lhe dirigira, malgrado seu nariz quebrado e a aparncia arruinada. Ele um co danado, Tom seu informante, Natty Jemson, disse-lhe. Eu tomaria cuidado, se fosse voc, camarada. Pede lhe fazer mal. Melhor cuidar de suas costas. Sim, co danado era uma boa descrio para um homem que rondava a rua das Pedras, meio ignorado, permitindo que seu dio por Tom e seu desejo por Restei- se tornasse de conhecimento pblico. Enquanto havia aqueles, nas Pedras, que poderiam gostar de ver Tom Dilhorne em maus lenis, havia outros que o temiam, tanto por sua pacincia ou pelo que ele havia feito no passado longnquo, quando era ainda o jovem ladro de Londres em uma cidade de fronteira, pronto para fazer dali seu prprio territrio. Tom dirigiu o coche para seu escritrio, desviando-se do trfego crescente, pensando sobre o que Jemson lhe dissera, e ponderando em como cortar as garras de Cameron. Tratar com um co danado era difcil: eram os mais perigosos de todos, porque eram irracionais. Acima de tudo, Hester no podia fcar sabendo das ameaas. No queria que nada turvasse a felicidade de ambos, e, por isso, Jack devia ser neutralizado com rapidez. Era escolher a melhor oportunidade. Entrou no escritrio, dizendo, abruptamente para Joseph Smith: Quero que percorra Sdnei e resgate os dbitos do capito Cameron, o mximo que puder. Smith sorriu. No necessrio. Larkin me procurou h menos de uma hora e me ofereceu uni lote.., e fcou feliz de livrar-se das promissrias. Eu relutei um pouco, embora soubesse que voc fosse fcar satisfeito em t-las. Estava certo? Certssimo. Pague a Larkin to pouco quanto possa barganhar, so inteis, exceto para mim. Tom sentou-se diante da escrivaninha, rindo, dizendo para si mesmo: compre as dividas de uni homem e poder controla-lo, eis a como cortar as garras de Mestre Jack. Escreveu-lhe uma carta informando-o para comparecer ao escritrio da Dilhorne & Co., no prazo de uma semana, para discutir assuntos de negcios relativos a seus dbitos. Isso deveria for-lo duplamente a aparecer, refetiu Tom, estendendo a correspondncia para que o mensageiro a entregasse. Estava particularmente alegre durante o jantar, naquela noite. Hester comentou, sorrindo: Se eu no o conhecesse muito bem, sr. Dilhorne, pensaria que andou bebendo. Uma boa idia essa, minha querida retrucou ele, com uma risada. Ultimamente, temos negligenciado o prazer de um bom vinho. Levantou-se e caminhou at o grande aparador laqueado e voltou com uma garrafa de vinho tinto, que abriu. Encheu uma taa. Ao invs de entreg-la esposa, levou-a aos lbios de Hester, dizendo: Beba em homenagem a Tom, meu amor. Fiz um excelente negcio, hoje. No, no direi do que se trata, desta vez. Deixarei a coisa fcar madura. Riu da prpria sagacidade enquanto ela, obediente, bebia o vinho. Mais tarde, ele haveria de olhar para trs e conclui- que a felicidade o havia tornado descuidado e orgulhoso em excesso, algo que o sofrimento nunca fzera. Por ora, no entanto, celebrava. O vinho foi terminado na cama. Durante a noite, ele acordou e procurou-a, de novo, queimando de intenso desejo. Chegaram ao xtase, rindo de felicidade. Tom ergueu-se nos cotovelos, sobre ela, ftando-a, cheio de amor. E Hester, acariciando-lhe o rosto, entre suspiros e gargalhadas, murmurou: Oh, voc meu lindo menino, Tom! Meu lindo menino! Frase incongruente para dizer, diante da fora e tamanho daquele homem. Ele a encarou, com uma expresso estranha. Sua risada se calou. Sem uma palavra, desabou ao lado dela, na cama, tremendo violentamente. A princpio Hester pensou que ele estava tendo um acesso de riso. Porm, quando ele se encolheu como um novelo, as mos protegendo a cabea, ela subitamente percebeu que Tom estava chorando. Soluos intensos sacudiam o corpo de um homem que nunca mais chorara, desde que era um garotinho: um homem que demonstrava pouca piedade para com os outros e nenhuma para consigo mesmo. Hester fcou apavorada. Tom havia se tornado sua rocha, sua pedra fundamental. Ele a resgatara da penuria e da runa. V-lo assim, alquebrado, angustiado, abalava os alicerces de seu mundo. O que havia dito ou feito para provocar tamanha reao? Nada importava, a no ser que precisava confort-lo, tal como ele a confortava, freqentemente. Sentou-se e dobrou-se para prend-lo de encontro ao peito, como se ele fosse uma criana. Ninou-o e afagou-o, murmurando-lhe o nome, evitando qualquer adjetivo, j que o ltimo que usara se mostrara to desastroso. Lentamente, ele foi se aquietando. Depois de um instante imvel, segurou- lhe o rosto com as mos espalmadas. Hester. Eu a assustei. Desculpe-me: Fiquei assustada, sim, um pouco ela respondeu, afagando-lhe a mo. Mas, isso no importa. Voc me tornou mais corajosa do que eu era. Ele deixou escapar uma risada meio engasgada. Bem, talvez, afnal, eu tenha feito alguma coisa boa. Calou-se. Se ajudar ela murmurou gentilmente , voc poderia me contar o que foi que eu fz ou falei que o aborreceu tanto. Mas, no diga nada, se isso o machucar demais. Por alguns instantes, Tom no respondeu. Oh, Restei- ele disse, por fm , voc despertou uma lembrana de minha infncia. Algo que eu tinha varrido de meus pensamentos e esquecido. Durante anos, eu agi como se minha vida tivesse comeado quando eu cheguei a Londres. Destru minhas recordaes mais antigas de forma deliberada, porque no podia suportar relembr-las. Era como se nunca houvessem existido. Poder- se-ia at dizer que nasci como o Tom Dilhorne que sou, quando conheci Alan Kerr no transporte que nos trouxe a Botany Bay. Minha vida mudou completamente. Tom caiu em silncio de novo e, quando, por fm, falou, foi com uma voz sem infexo, diferente das muitas maneiras de expressar que ela j ouvira dele, antes. Meu lindo menino, voc disse. Minha me costumava me chamar assim, quando eu era um garotinho. Eu me esqueci disso tambm, at que voc disse, com amor, o que ela me dizia, tambm com amor. Quando a ouvi, de repente me senti uma criana de novo, e tudo aquilo que eu havia deliberadamente esquecido, voltou, em uma avalanche e, junto, todas as coisas que fz, desde ento. Deus me perdoe por tudo que sou e por tudo que tenho feito. Novamente, ele fcou em silncio. Dizer alguma coisa poderia ser desastroso. Fazer perguntas ou apress-lo poderia pr tudo a perder. Ele precisava apenas saber que ela estava ali e que o amava. Voc me contou espontaneamente toda sua vida, e eu nunca lhe falei nada da minha. Eu estava errado, no deveria haver segredos entre ns. Vou lhe contar o que jamais disse a algum. Nem mesmo Alan sabe quem eu fui e de onde vim, embora suspeite como deve ter sido minha vida, pelas palavras que deixei escapar. Minha me era flha de um fazendeiro, instalado bastante decentemente nos vales de Yorkshire. Dizia que sua famlia tinha uma vida confortvel e era costume mandar as flhas para o castelo, para adquirirem educao e experincia. Riu ligeiramente. Experincia! Bem, ela conseguiu, pobre garota. Rico o bastante, o flho do dono do castelo fez dela sua amante. Ela dizia que era um amor verdadeiro. Falou-me algumas bobagens sobre um casamento s escondidas; disse que, antes disso, nunca tinha deitado com ele. O castelo era perto dos pntanos, mas um tio do rapaz os casou, secretamente, em urna pequena igreja bem distante. Hester o ouvia com ateno e curiosidade. Qualquer que seja a verdade, ela se viu esperando um flho. Um dos outros criados fcou sabendo e disse ao pai de seu amante que ela estava carregando o flho ilegtimo de seu primognito. O senhor do castelo era um tirano, temido por todos, e a conseqncia disso foi que o jovem cavalheiro abandonou minha me. Ela nunca mais o viu de novo, depois que o pai dele descobriu a gravidez. Hester assentiu, encorajando-o a continuar. Hart... ela o chamava assim. Meu amado Hart. Minha me nunca acreditou que ele a houvesse abandonado, realmente. Dizia a si mesma que o pai dele o impedia de v-la. Ele nunca a trairia. Qualquer que fosse a verdade, ela foi mandada como empregada para todo o servio em uma fazenda longe dali, afastada tanto do castelo como de sua prpria casa e de sua gente. Nunca mais viu nenhum deles, de novo. Sua famlia a deserdou, ela os desgraara. Tinha que ser tratada como uma prostituta banida. E teve o seu bastardo, eu. A voz de Tom era triste, quase um suspiro. Cresci na fazenda. Lembro que no tnhamos urna vida ruim, a princpio. Porm, a esposa do fazendeiro fcou velha e doente. Minha me era urna moa bonita, e o fazendeiro arrastou-a para a cama, contra a sua vontade. Eu me lembro da noite em que isso aconteceu. Eu a vi se debater e lutar com ele... Sua esposa contou aos irmos o que o marido havia feito. Eles chegaram fazenda, deram uma surra nele e nos expulsaram, a mim e minha me. Hester o ouvia e entendia seu sofrimento. Voc pode compreender por que eu quero esquecer meu passado, Hester . uma estria feia. Minha me havia sido estuprada, mas foi punida to severamente como se houvesse consentido. No me lembro qual minha idade, ento. Ainda no sei quantos anos tenho, na verdade. Outro fazendeiro nos acolheu. Era um bruto que no conseguia manter criados. Ele passou a abusar de minha me e a me surrar. Logo, ela j no tinha mais a aparncia bonita. O corao de Hester estava amargurado. Ela tentava ocultar sua dor ao pensar no sofrimento do amado. Ele comeou a bater em minha me. Batia por prazer, para satisfazer sua crueldade, e por isso que no posso suportar ver uma mulher maltratada. Eu me lembro claramente agora de tudo aquilo que me obriguei a esquecer, e de como tudo terminou. Acho que tinha uns doze, treze anos, e era grande para minha idade. Minha me dizia que eu estava fcando parecido com meu pai. Ela me alfabetizara e me fazia ler e escrever. Na casa, havia uma Bblia, o Livro dos Martrios, de Foxe, e alguns libretos religiosos. Um dia, ele chegou e nos encontrou lendo juntos. Por alguma razo, isso o enfureceu. Comeou a espancar minha me, cruelmente. Antes, eu sempre tivera medo, embora tivesse prometido a mim mesmo que daria cabo dele, um dia, quando crescesse. Achei que ele fosse mat-la. Havia uma faca sobre a mesa. Posso enxerg-la, agora mesmo. Lembro que a peguei e a enterrei em seu peito. Nunca fquei sabendo se o matei ou no... Hester levou a mo boca. Ele caiu, sangrando, sobre minha me. Ela chorava e gemia: Vo enforc-lo por isso, Tom. Tom acomodou-se melhor, estava visivelmente perturbado pelas lembranas. Nunca eu respondi. Era jovem e estpido e fquei aturdido de orgulho com minha coragem. Ns o deixamos l, deitado em um mar de sangue e fugimos para Londres. Tom deu uru suspiro profundo. O fuxo de recordaes no poderia ser contido. Londres! Ela no tinha idia, nem eu, da distncia em que fcava. Era apenas um nome para ns. Caminhamos sem descanso, e isso foi sua morte. Ela havia comeado a cuspir sangue na fazenda. Ns dormamos em celeiros e debaixo do feno. E eu no era to pequeno que no soubesse que ela se vendia para ter comida e nos manter vivos. Chegamos a Londres, no sei como. Lembro que ter pensado que havamos chegado ao inferno. Sabia alguma coisa do inferno atravs do Livro dos Martrios. Minha me estava morrendo quando chegamos e no demorou muito para que isso acontecesse. Em seus ltimos suspiros, balbuciava, falando de si e de Hart nos pntanos, quando eu ainda no havia nascido. Hester o abraou. O amor que sentia por aquele homem se intensifcou ainda mais. Fiquei sozinho. No tinha ningum, nem nada, nem famlia, nem meios para sobreviver, nem uma roupa decente para me dar respeitabilidade, nem trabalho e nem mesmo um teto. Dormia nas ruas, debaixo das pontes, nos jardins, mendigando por migalhas. Tom parecia disposto a contar tudo, e Hester o ouvia, vida. Logo percebi que um garoto de treze anos pode ser enganado, mas descobri tambm maneiras de evitar isso. Trabalhei para uni mgico durante algum tempo e aprendi uma poro de truques teis. Ele, porm, queria me levar para a cama, e eu fugi. Por fm, tornei-me uni ladro, no podia ser outra coisa. Era grande, forte e esperto, e logo me tornei um lder, entre garotos que conheci. Tornara-me um criminoso antes da adolescncia. Oh, eu era inacreditavelmente ladino, posso lhe assegurar. Restei- no o censurava, aceitava-o. Na poca em que tinha uns dezoito anos, eu poderia dizer que era rico. Tinha um colcho s meu e uma linda amante. s vezes, fcava a imaginar o que aconteceria com ela se os guardas me prendessem, se eu me aventurasse a pegar mais do que poderia carregar. Eu achava que poderia superar os mestres de meu mundo. Sua risada, desta vez, foi mais amarga. Isso me ensinou a prestar a ateno s minhas costas, Hester , tarde demais, no entanto, para me benefciar, ento. Os mais velhos perceberam que eu ameaava seus ganhos e me traram, entregaram-me para os policiais. Oh, sim, eu era uma ameaa real, sempre soubera como manipular as pessoas e tomava conta dos garotos que eu chefava. Eu no os explorava simplesmente, como os outros faziam. Fui denunciado polcia e pego em fagrante. O rosto de Tom se contorceu diante das lembranas, e Hester no soube o que dizer ou fazer. Eu cometera crimes capitais. Um velho, com um camisolo e uma capa preta, sentenciou-me morte. Suponho que o fm usual de um criminoso bastardo. Eu no podia acreditar. O esperto Tom Dilhorne tinha sido preso. Minha pouca idade no era levada em considerao. O velho disse, quando me sentenciou, que eu era um exemplo terrvel dos vcios da juventude e que faria um favor ao mundo, mandando-me para o inferno. Eu me lembro de que fquei prostrado, em Newgate, tomado de estupor. No acreditava poder escapar, desta vez. Recordo-me de jurar que, se houvesse alguma chance de eu no ser enforcado, seria mais esperto. Meu melhor amigo me delatara, nunca confaria em ningum, novamente, e nunca mais me colocaria em uma posio em que pu- desse ser trado por algum. Hester sentiu um arrepio de horror. Um dia antes de meu enforcamento, o carcereiro veio at minha cela. Eu estava estendido no catre, cochilando. Levante-se, garoto ele berrou. Pensei que meu dia chegara mais cedo, ou que eu havia perdido a conta. No tinha mais a noo de tampo. Ele me fez pensar que a rvore me esperava. Levaram-me para fora e me acorrentaram a outros trs pobres diabos e nos conduziram em uma carroa para um navio velho. Falaram que nossas sentenas haviam sido comutadas para a deportao e, de fato, foi o que aconteceu. Ele deu um grande suspiro antes de comear a falar de novo. Hester percebeu que, de alguma forma, aquilo era urna espcie de purgao. Ele precisava contar toda aquela triste estria. Encontrei Alan no transporte. Ele comeava a sair de seu estupor. Seu caso era pior que o meu, pois ele era um cavalheiro e verde como o capim entre os lobos que o rodeavam, eu mesmo, inclusive. Ele fora um cirurgio em um navio de carreira, sentenciado por traio, por ter expressado, inadvertidamente, simpatia pelos ideais da Revoluo Francesa, algo que seu capito resolveu ver como um motim. Tivera sorte de no ser enforcado. Ao invs disso, fora deportado. Hester sorriu docemente. Senti pena de algum que era to inexperiente quanto eu fora, um dia. No sei por qu. Ningum nunca tivera pena de mim. Penso, agora, que precisava de algum para tomar conta, proteger como eu no pudera proteger minha pobre me. Eu me tornei amigo dele, cuidei dele, salvei-o de assaltos e de coisas piores. Foi a melhor coisa que jamais fzera. Restei- sabia que seu amado era um ser humano que tinha um corao, embora ele mesmo quisesse, s vezes, parecer de pedra e insensvel. Ele era educado, hbil, e um professor nato. E eu queria aprender. Como eu queria aprender! Achei que, se soubesse mais, no teria sido pego to facilmente, no desceria condio de um ladro. Queria sair do poo onde mergulham. Ento, quando ele disse que queria me pagar por t-lo salvo, pedi que me ensinasse tudo que sabia. Nos longos dias e noites no transporte e, depois, nas Ilhas Norfolk, ele cuidou de minha educao, at chegarmos Nova Gales do Sul. Ao pensar no amigo, a expresso de Tom Dilhorne se suavizou. Eu sabia ler um pouco e rabiscar alguma coisa que passava por uma escrita e era, naturalmente, habilidoso com fguras, mas falava como o marginal que eu era. Ele me ensinou a ler direito e a escrever com urna letra elegante, a caligrafa que surpreende a muitos quando a vem. Imagino que tenha surpreendido a voc... Hester concordou, e ele riu, com amargura. Ele me ensinou a falar como um cavalheiro. Eu sempre fora um bom mmico e aprendia depressa. Dominei o latim, tambm, isso ajudava a passar o longo tempo da viagem e a manter nossa sanidade. Eis porque eu sabia perfeitamente bem o que estava fazendo quando a provoquei, perguntando se iria ensinar os pequeninos a aprender latim. Sabia muito bem o que signifcava amo, mas queria ver sua expresso quando me respondesse. Ela sorriu com amargura ao lembrar de como se sentira sendo questionado por ele, naquele instante no passado. Estvamos no Cabo da Boa Esperana quando ele comeou a me ensinar um pouco de grego, era tudo o que ele sabia. Mau disse que eu tinha a melhor memria que ele j vira em algum. Nunca esqueci nada que tivesse lido, escrito, ouvido, ou experimentado; e por isso que me intriga o fato de ter esquecido minha infncia to completamente. Tom levantou-se, caminhou at a janela e voltou a sentar-se. Restei- o observava com ateno e pde perceber que seus msculos estavam retesados. Por que eu me lembrava de tanta coisa, mas me esquecera daquilo? A menos, dai-o, que houvesse me obrigado a varrer da memria todos aqueles fatos. Eu me recordava vagamente de que minha me era coruja e adorvel, mas era tudo. E, ento, tudo isso voltou de repente, quando voc falou, agora a pouco. E um mistrio. Querendo esquecer aquilo, ele continuou a contar sua vida. Hester respeitava suas confdncias, evitava fazer perguntas. Ouviria somente aquilo que o marido lhe permitisse saber. Mau tambm me ensinou medicina e me fez seu assistente, no transporte. Disse que poderia ser um bom doutor ou, melhor ainda, at mesmo um professor. Eis a uma coisa para voc pensar! O selvagem Tom Dilhorne, um professor! Ento, quando eu a entrevistei para o cargo, eu provavelmente sabia mais que o resto do Conselho todo, porque eu lera muito, desde ento. Um velho escriturrio, deportado por furto, ensinou-me contabilidade e outras matrias lidadas aos negcios, em retribuio por ajud-lo, assim como ajudam a Mau. Ambos me passaram tantos ensinamentes que eu me salvei de ser incapaz de ganhar uma vida honesta. Nunca revelei o que havia aprendido. Quando chegamos a Sdnei, Mau e eu nos separamos para seguir cada um seu caminho. Deixei que pensassem que Tom Dilhorne era um homem selvagem e ignorante. Isso me ajudou a tornar-me rico, posso afrmar. Muitas foram as vezes que meus rivais ou os exclusivos falaram, em minha presena, com seu jeito pedante, sem saber que eu entendia exatamente o que diziam. Citavam seus parcos conhecimentos de um latim vulgar e falavam francs na frente de um estpido condenado, certos de que pareciam superiores. Hester riu-se enlevada, aquele homem era esperto e era seu marido. Amava-o. Eu no lhe contei tudo, meu amor, nem tudo o que fz. No para seus ouvidos. Mesmo Mau no conhece toda a verdade, mas o pobre bastardo perdido sobreviveu, a que preo! Tom havia terminado. Hester prendeu-lhe a cabea contra os seios, como se ele fosse seu beb e embalou-o. Meu pobre amor, oh, meu pobre amor. A histria do garoto perdido e de sua me trada a comovera, muito alm das palavras. E pensar que ela julgava ter sofrido, mal sabia o que era o sofrimento. A falta de autopiedade de Tom, a maneira crua como havia falado, haviam- na chocado ainda mais. Tinha lhe contado sua histria em urna voz neutra, como se falasse de outra pessoa. O que quer que pensasse acerca de seu passado, ela nunca poderia imaginar aquilo que ele lhe contara. De sua parte, Tom jazia quieto, aninhado contra ela, quando ela o beijou e afagou gentilmente. Mostrava-se passivo, o amado, o receptador, e no o amante ao mesmo tempo feroz e carinhoso que a iniciara no prazer. Ele deixam seu passado para trs, tornara-se Tom Dilhorne, rico e poderoso, que regia e controlava seu mundo de forma absoluta. Recordar era tornar-se um garoto indefeso de novo, ser controlado, no controlar. Havia conquistado seu lugar ao sol, porm a um preo terrvel. Contar a Hester, ambos sabiam, era, de urna forma estranha, dar o maior presente que podia a ela. Havia se rendido, entregue as profundezas da alma a outrem, embora, em Newgate, houvesse jurado nunca mais confar em algum. Castigado, purifcado, ele fnalmente dormiu. Hester, apertando-o de encontro ao corao, fcou acordada at que o dia miou para traz-los de volta ao presente. Ela no era mais o brinquedinho de Tom, era sua parceira de verdade, como seu Mentor havia prometido. O que ele lhe contara explicava o que o impulsionara to freneticamente em direo ao sucesso em tudo o que tocava. Acima de tudo, explicava a energia que lhe permitira encontr-la, compreend-la, transformar sua existncia inteira, sem, ao mesmo tempo, esquecer-se de qualquer detalhe de sua vida agitada. Ningum, que o observasse, poderia adivinhar que esse homem se libertara do mundo do qual proviera. Nem imaginar quanto ele sofrem. Ela, jamais, iria contar a algum os segredos dele. CAPTULO XII Tom estava em sua sala, na casa bancria, na manh do dia em que pedira a Jack Cameron que comparecesse aos escritrios, quando uma agitao, nos corredores, tirou-o de sua concentrao no trabalho. Mal teve tempo de se levantar quando a porta se abriu. Jack Cameron surgiu, com a carta de cobrana em unia das mos, e, com a outra, arrastava Joseph Smith pela orelha. Vou dar uma lio a esse seu lacaio insolente, Dilhorne. Eu simplesmente pedi a ele que esperasse at que eu verifcasse se o senhor estava livre para atend-lo, mestre Dilhorne. Ex-condenados esto sempre livres para me receber, quando eu preciso v-los debochou Cameron. Est enganado retrucou Tom suavemente. Sou eu que preciso v-lo. Estava perfeitamente controlado agora, j que Hester no estava envolvida no problema. Se no soltar o si-. Smith imediatamente, temo que eu tenha que lhe ensinar como se comportar. Parece at que se esqueceu da ultima lio que lhe dei. Jack libertou Smith com um safano. Ora, muito bem, Dilhorne, vou deixar esse seu miservel criado continuar com sua escrita, novamente. Eu creio continuou Dilhorne, com uma voz mais macia que a seda que voc acaba de acrescentar mais dois por cento de juros na taxa que vou exigir para o pagamento de seus dbitos. O valor servir para compensar o sr. Smith por ter sido maltratado desta forma. Dois por cento, ? caoou Jack, observando Smith afastar-se. Que signifca isso? E o que esta intimao que me enviou? Devo dizer que estou atnito que voc saiba escrever. Jogou a carta de Tom sobre a mesa. Temos alguns assuntos de negcio a resolver retrucou Dilhorne, ignorando a insolncia de Jack, mas notando, com um certo desprezo, que o ofcial evitava entrar em confrontao fsica com ele. Eu no tinha idia que pudesse haver quaisquer assuntos de negcios entre mim e voc, Dilhorne. Sempre fui cuidadoso em evitar contatos com condenados, na medida do possvel. Ex-condenado o termo correto, Jack foi a resposta seca de Tom , e se imagina que no tem negcios comigo, est to enganado como quando resolveu difamar minha esposa. A raiva de Jack cresceu, a essas palavras. Contudo, refreou-se, cauteloso, ao se confrontar com o oponente. Capito Cameron para a escria como voc, Dilhorne. Certo, capito Cameron concordou Tom, em seu sotaque exasperadamente educado. Muito bem, capito Cameron, devo lhe dizer que comprei todas suas dividas. Esto na escrivaninha, aqui em sua frente, capito. E eu pediria ao capito Cameron que concorde com trs condies, se puder fazer a gentileza de escut-las. Maldito, pare de repetir meu nome, seu biltre! rosnou Jack. Tive a impresso de que voc me ordenou que usasse seu nome, capito Cameron, mas, se me pede to educadamente que no o faa, ento fcarei muito feliz em atend-lo. Que condies so essas, Dilhorne? Como ousa falar em condies, seu maldito renegado? Irei acrescentar mais um por cento por abuso disse Tom, calmamente , e voc ir conversar comigo a respeito das condies porque, se no o fzer, chamarei a polcia e informarei ao coronel OConnel1 da transao. Jack estava a ponto de espumar de dio. Vamos direto ao ponto concordou, fnalmente, com um suspiro de raiva. Temo que tenha se enganado, de novo. H trs pontos que deve considerar. Primeiro, eu comprei suas dvidas e, agora, tenho era mos todas as promissrias que voc andou espalhando por Sdnei. Segundo, cobrarei uma porcentagem a ser paga no primeiro dia de cada trimestre, cujo valor Smith ir inform-lo, daqui a pouco, e voc no ir atac-lo novamente, ou todos os papis sero imediatamente enviados a OConnell. Terceiro, qualquer inadimplncia de sua parte, ou interferncia dirigida a mim e aos meus, e, novamente, mandarei chamar a polcia. Fez uma pausa signifcativa. Est tudo perfeitamente claro, capito Cameron... senhor? A palavra senhor foi dita com tal estudada insolncia que era, em si, um insulto, no um tratamento respeitoso. Jack afundou na poltrona do lado oposto mesa de Tom e ftou, mudo, o rosto sorridente do homem a sua frente. Ento, com a voz pesada de dio, esbravejou: Por Deus, seu maldito condenado, eu vou peg-lo, espere para ver. Faa isso, por favor. Aqui e agora, se quiser. Devo escolher as luxas de boxe j, ou mais tarde? Fique certo de que eu nunca darei motivos para um duelo, embora me sinta tentado a mat-lo, e, assim, por suas regras ridculas, a escolha ser minha, sempre minha. Por Deus, Dilhorne gritou Jack desesperado. Nunca pensei que me veria arruinado, em um buraco do inferno como Sdnei, por um bandido como voc! No mesmo? Ento, voc deveria ter administrado melhor seus negcios. Mas... voc no me perguntou... Que outra resposta posso lhe dar, que no seja sim? Voc me pegou pelo pescoo. Porm, ainda vou aprontar uma para voc, Dilhorne, ah... se vou. Tom ftou-o com um sorriso mortal no rosto. Hester mal o reconheceria, nesse momento. Acho-o um sujeito extremamente aborrecido, Cameron disse, por fm. Seu vocabulrio limitado. Tem o encanto de uma prostituta de quinze anos, e sua falta de coragem faz a desgraa da Armada que jurou servir. No tem estmago para me desafar para um duelo, por mais que eu o insulte. Se no fosse pelo lucro que sua falta de habilidade nos negcios pode me proporcionar, eu no iria me incomodar em cham-lo. Por Deus, Dilhorne, vou fazer voc pagar por isso. Engano seu. E voc quem vai me pagar. Agora, retire-se daqui. Tenho trabalho a fazer. Sentou-se, apanhou a caneta de pena de sobre a mesa e ps-se a escrever. Jack encarou-o, a cor do rosto mudando alternadamente de lvida a escarlate, a boca se remordendo. Baixou os olhos para os ps e levantou-se, saindo da sala e batendo a porta com violi~cia. Ora, acho que passei da conta murmurou Tom para si mesmo. Mas o idiota um alvo fcil. Deu de ombros e tocou a sineta, chamando por Smith. Vrios dias se passaram. Tom e Hester conversavam, programando um passeio, na noite em que, no sabiam, era a ltima de felicidade sem sombras. Como sempre, falavam de uni piquenique. Ultimamente, tornara-se inseguro sair pelos campos. Recentemente, em Sdnei, houvera uma fuga em massa de condenados, e um grupo de bandidos vinha atacando quem quer que se aventurasse a ir para perto da mata. Tom, naturalmente, pensou em uma variao de suas costumeiras excurses. Decidiu que o bosque em sua propriedade era seguro o bastante para que ele e Hester acampassem ali, com comida e bebida, tapetes, travesseiros.., e pistolas. Assim fzeram. Hester colocou as roupas masculinas que usava para cavalgar: uma camisa de seda de gola aberta, calas pretas e um bon. Tom, igualmente, vestiu um traje de montaria, sem, contudo, colocar o bon. Instalaram-se em uma clareira e, depois de comerem at se fartar, decidiram atirar em alvos, em uma competio imaginada por Tom. O vencedor teria que tomar dois drinques e o perdedor um, ao fnal de cada rodada. Era mais divertido que simplesmente beber o vinho com a refeio. Ele no teve que se esforar para deixar que Hester ganhasse algumas vezes. A pontaria dela era quase to boa quanto a dele. As risadas de ambos ecoavam pela noite enluarada, e acertar os disparos era cada vez mais difcil, conforme o jogo prosseguia, at que Tom observou que continuar poderia se tornar perigoso, mais para eles mesmos que para o alvo. Alm disso, duvido que eu queira fazer amor com um garoto comentou, olhando para a cala de Hester, quando a deitou no tapete sob as rvores. Posso perceber, sr. Dilhorne, que isso talvez possa lhe dar algum problema. Suponha que eu as tire, ser que ajudaria? No se incomode, sra. Dilhorne, deixe que eu fao isso. Nesse caso, insisto em fazer o mesmo com a sua. Amaram-se com paixo e volpia e adormeceram nos braos um do outro, sem que Hester soubesse que os empregados de Tom patrulhavam os limites da Villa, para que o patro e a esposa pudessem desfrutar de seu prazer em segurana. Uma precauo mais sbia do que poderia imaginar, pois Tom havia arranjado um inimigo cujo dio era implacvel. O terrvel sentimento que se apossara de Jack Cameron era mais amargo que o fel. Ele havia sido humilhado, em pblico e em particular, por Dilhorne, e tinha sido brutalmente machucado depois de uma discusso que provocam risos por toda a Sdnei A mais grave de todas as humilhaes era o apelido de Jack Guinu, por causa da moeda que Tom lhe jogam, na casa de jogos de Madame Phoebe, e o nome pegara. Ao reclamar com Pat Ramsey sobre isso, um ofcial que detestava Jack por julgar que ele era a desonra do Regimento, o militar o ftara com frieza, dizendo, secamente: Voc deveria fcar feliz de no ser chamado de coisa pior. Jack comeara a xingar e fazer ameaas tais que Pat, antes de se afastar, exclamara: Nunca mais vou jogar nem brigar com voc, Jack, minha palavra fnal. Era tudo culpa de Dilhorne, e a entrevista que tivera com ele, acerca das dvidas, tinha sido a gota de gua. Na verdade, no, pois a verdadeira gota de gua tinha sido Hester Dilhorne, e o impacto que produzira nele no baile. Tom tinha razo ao julgar que passara dos limites na entrevista com Jack, pois a maneira com que o tratara, somada obsesso que passara a nutrir por Hester, tinha se apossado do capito de uma forma prxima insanidade. Felizmente para ele, Tom ainda no se dera conta da paixo que a esposa despertara em um homem j bastante abalado com outros problemas. Antes de t-la visto no baile do governador, Jack havia se gabado de que todos os rabos-de-saia eram iguais. No h nada de diferente no vo das pernas confdenciara, com grosseria, aos camaradas. E tudo a mesma coisa, no escuro, tanto faz! Havia caoado de Frank Wright por mimar Lucy demais e ali estava ele, como um bobo quer a lua, desejando uma mulher que no podia ter. E, para tornar as coisas ainda piores, aquela mulher era a esposa de Dilhorne. Jack no conseguia tirar da cabea, por mais que tentasse, a lembrana do rosto de Hester, quando ela o ftara por sobre o leque, a graciosidade com que se afastara dele e colocara a mo delicada no brao musculoso daquele bandido. Seguia os rastros de Tom, pela cidade, ardendo por vingana, mas tambm andava sorrateiramente atrs de Hester, queimando de uma vontade que no sabia bem qual era, pois ela lhe parecia inacessvel. A idia de lev-la para a cama era, para ele, um sacrilgio. E pensar nela, nos braos daquele bruto do Dilhorne, fazia-o sentir vertigens. Essas emoes eram to novas, que ele mal sabia como agir. O cime sempre fora, para ele, uma piada. Agora, consumia-se de cime de qualquer um, mesmo que apenas falasse com ela, pois nem isso podia fazer. Um dia, quando Hester saa da carruagem e caminhava pela rua, depois de visitar amigos, ele a viu. Jack prendeu o flego. Emparelhou o passo com ela. Nada iria impedi-lo de abord-la. Talvez isso suavizasse a estranha dor que sentia, sempre que pensava nela, o que, para a prpria surpresa, era to freqente. Cumprimentou-a, com uma profunda reverncia. Sra. Dilhorne, estou a seus servios, agora e sempre. Hester encarou-o. No tinha nada, nada mesmo, a tratar com ele. Por favor, capito Cameron, deixe-me passar foi tudo que conseguiu dizer. No, at que tenha lhe apresentado minhas mais humildes desculpas. Acredito que tenha lhe deixado claro, antes, que se dirige a mim por sua conta e risco. Mas eu desejo realmente retirar tudo que eu possa ter dito de voc, no passado. Voc incomparvel, Hester, se que posso cham-la assim. No h ningum como voc. Dispenso seus elogios, senhor, no vou agradec-lo por isso. Ser que o homem enlouquecera?, pensou. Jack estava desesperado por toc-la. Estendeu a mo. Ela recuou. Devia envergonhar-se, senhor, por tentar me deter. De novo, eu peo, deixe-me passar. Ele no iria resistir. Queria ter olhado voc mais de perto, antes que tivesse se casado com aquele bandido. Voc olhou, capito Cameron, mas no gostou do que viu. Se no deixar que eu passe, vou ter que informar meu marido desse seu comportamento inadmissvel. Vai arcar com as conseqncias, se eu o fzer. O rosto de Jack contorceu-se de desgosto. Como posso convenc-la de que lamento meu comportamento anterior, como persuadi-la a conversar gentilmente comigo, nem que seja por um instante? Hester encarou-o com frmeza. Se me permitir continuar meu caminho, talvez eu possa enxerg-lo de forma mais gentil. Pare de me importunar com suas atenes indesejadas. Por favor, conscientize-se de que, mesmo que eu desejasse conversar com voc, o que no quero, meu marido nunca o permitiria. Ele iria fazer tudo para castig-lo. Jack deu um passo atrs. No vou mais det-la, porm, acredite-me, minha admirao por sua pessoa e seu esprito no conhece limites. Hester fechou os olhos, preferindo no v-lo. No podia imaginar o que Tom faria ou diria, se soubesse daquele encontro. Jack fcou a observ-la at que ela desapareceu, virando a esquina. Quando se livrasse de Dilhorne, ela iria ouvi-lo, tinha certeza disso. Uma manh, ao acordar, ao invs de se levantar alegre para saudar o novo dia, Hester sentou-se na cama com uma sensao estranha de mal-estar. Sentia- se doente. Quando, fnalmente, conseguiu fcar de p, foi tomada de nuseas. A princpio, pensou que comera algum alimento estragado, algo muito comum em Sdnei, mas a sensao persistiu. Com o decorrer da semana, percebeu que o mal-estar a atacava todas as manhs, at que culminou em vmitos incontrolveis. No disse nada a Tom, que invariavelmente se levantava antes dela. Um dia, porm, quando se sentia horrivelmente doente, ele a encarou com uma ateno cuidadosa. Observou-a comer pouqussimo, mas nada comentou. Na manh seguinte, depois de sair, ele voltou e subiu correndo a escada. Encontrou-a na cama, o rosto empapado de suor. Ele molhou uma toalha, sentou-se ao lado dela e ps-se a refrescar-lhe a testa, gentilmente. H quanto tempo isso est acontecendo? Todas as manhs, j faz uma semana. Parece que passa, durante o dia disse Hester, em uma voz fraca. Eu esperava melhorar e achei que no devia preocup-lo. Tem idia do que se passa com voc, Hester? Um problema no estmago, eu acho. Pode-se dizer que sim. Tom estava sorrindo. Mas eu acho que voc est grvida. H algum outro indcio que possa ser isso? Ela sentou-se, agitada. Oh, sim. Minha menstruao est atrasada, mas j atrasou muitas outras vezes, antes, como voc sabe, e no era por causa disso. Mas ento, voc estava se recuperando de uma grave desnutrio, que sempre afeta a menstruao de uma mulher. E, antes, voc nunca amanheceu adoentada. Se isso continuar e as regras no voltarem, precisamos consultar Alan. Porm, no tenho dvidas de que voc est esperando um beb. Hester ftou-o ansiosa. Voc acha, Tom? Ele a abraou contra o peito. Oh, Hester, eu nunca lhe disse, mas esse era meu mais fervoroso desejo, que ns tivssemos um flho. Espero que sinta o mesmo, mas, ao me lembrar de como voc se comportava com o flhinho de Sarah e as crianas da escola, nem preciso perguntar. Ela sorriu, tomada de felicidade. E meu maior desejo tambm, e espero que voc tenha razo. Que estranho... Como voc poderia saber, e eu no? Bem, em alguns assuntos, sua vida .foi muito reservada. Enquanto a minha... Ele sorriu, malicioso. H muito pouco que eu no saiba sobre homens e mulheres. Alan, com certeza, deu-me mais conhecimentos enquanto eu o ajudava, no transporte. H alguma coisa que eu possa tomar para melhorar o mal-estar? Eu me recordo de que Alan prescrevia sopa de aveia e uma dieta leve, pela manh, antes de a paciente se levantar, e, de agora em diante, isso que vamos fazer. O doutor Kerr confrmou que Hester estava grvida, e a atitude de Tom, diante disso, foi a que se esperava. Tornou-se superprotetor e, ao mesmo tempo, rspido. Disse a Hester, abruptamente, que embora se sentisse adoentada, ela devia levar uma vida ativa, na medida do possvel, no era uma invlida. Foi encorajado a isso por Alan, defensor de tratamentos diferenciados na gravidez e no parto, insistindo em uma dieta saudvel para evitar complicaes. Hester fez apenas uma exigncia aos dois. Quando o nen nascesse, queria ter certeza de que Tom estaria por perto. Vai me prometer isso, no vai, sr. Dilhorne? E seu flho, tanto quanto meu. Prometo, sra. D., farei tudo que a torne feliz. Isso a deixar contente? Para grande alvio de Tom, logo os mal-estares de Hester diminuram, e sua energia voltou. Longe de prejudicar-lhe a aparncia, a gravidez deixou-a ainda mais esplndida, conferindo-lhe uma nova radincia que mais de uma pessoa de seu circulo de amizade notou. Uma noite, deitada na cama, sem conseguir dormir, pois a gravidez lhe tornam difcil conciliar o sono, Hester fcou a pensar na delicadeza de Tom e na considerao com que a tratava. Oh, ele ainda era o homem duro e maquiavlico que toda Sidnei conhecia, e ela no tinha iluses quanto a isso. O que importava era o Tom que somente ela conhecia: uni homem complexo, multfacetado, que a manipulam para lev-la ao casamento, pelo que ela s tinha a agradecer. Tambm o compreendia cada vez mais. Ultimamente, tinha certeza, alguma coisa o vinha preocupando. Ao contrrio de sua prtica usual, ele no lhe contara o que era. Agora, estava comeando a fcar preocupada. Tom mexeu-se na cama e rolou para o lado dela, abrindo os olhos. Puxou-a para perto. Ainda acordada, mulher? Precisa dormir. H algo errado? No disse Hester, sem disposio para question-lo sobre possveis problemas. E estranho, quando eu o conheci e, depois, quando me casei com voc, parecia que precisava dormir bastante. Agora, no consigo. No estranho ele murmurou, recusando-se a levar adiante a conversa. Rodeou-a com o brao e aconchegou-a junto ao peito. Ela se aninhou e, logo, adormeceu. Jack Cameron vagava por Sdnei, carregando o dio no peito. Tinha avanado pouco em seus planos para vingar-se de Dilhorne. A raiva o consumia, crescendo mais forte a cada dia, alimentada pelo fato de estar mais difcil pagar quele condenado os juros da dvida. Depois do encontro que tivera com Hester, encontrar-se com Dilhorne caminhando ou de carruagem, com ela a seu lado, ouvir os comentrios de seus sucessos nos negcios, saber que um de seus cavalos vinha vencendo as corridas com regularidade, e que ele marcara uni gol em seu acordo com os baleeiros ianques, tudo servia para infam-lo ainda mais. A noticia de que o governador estava prestes a nome-lo juiz foi o bastante para deix-lo enlouquecido. Para coroar tudo, estivera em casa de Lucy Wright, unia tarde, e ouvira algo que acabara por destruir seus ltimos vestgios de sanidade. Ter ido at l mostrava quanto ele havia cado. O jovem Wright, apiedado do co desprezado em que ele se tornara, convidara-o para tomar um ch, um convite que o antigo Cameron teria desprezado veementemente. O homem marginalizado em que ele se transformara aceitara o oferecimento com sofreguido. Conversas fteis rolavam, envolvendo pessoas menores que Jack normalmente evitava. Estava a ponto de ir embora quando Lucy, vendo que ele estava deslocado e sozinho, estendeu-lhe uma xcara de ch. Mal tocara na xcara quando uma mulher, ao lado, disse, em voz alta o bastante para ser ouvida por todos: J souberam da ultima? Hester Dilhorne est grvida. Antes que algum pudesse fazer qualquer comentrio, Jack soltou um grito estrangulado. Esmagou a xcara nas mos, escaldando-se com o ch e derrubando o liquido fervente e os pedaos da preciosa porcelana de Lucy no caro tapete. Foi uma comoo gemi. Seguiu-se uma correria para estancar o corte profundo na mo de Jack, passar ungento nas queimaduras, envolv-las em ataduras, chamar a criada para recolher os pedaos da porcelana, secar o tapete. O comportamento de Cameron era inusitado. Apenas um espectador sarcstico, Pat Ranisey, o ltimo convidado a chegar e a presenciar o espetculo proporcionado por Jack Guinu no ch da tarde, ergueu as sobrancelhas, e disse: Ora, ora!, para ningum em particular. Deduzira tudo. Jack sentou-se atordoado, com todas as mulheres falando ao mesmo tempo em torno dele. Era objeto de mais simpatia do que j recebera durante anos. Todos presumiram que Lucy havia derramado o ch em sua mo e que Jack sofrera um acidente. Ningum, alm de Pat Ramsey, poderia adivinhar o que realmente acontecera. Ao saber da gravidez de Hester, Jack sofrera um abalo mortal que o empurrara para a loucura completa. Grvida! Daquele homem nojento! Jack voltou para o quartel, acalentando a mo enfaixada e o dio, recordando-se de algo que sentira e que fazia da simples idia de Hester grvida algo ainda mais obsceno. Acontecera algumas semanas antes, quando seu inferno particular tinha se tornado insuportvel. Naquele dia, no sabia o que havia de errado com ele. Na noite anterior, quando fora para a cama com uma das garotas de Madame Phoebe, tentando esquecer que era um infeliz, o rosto de Hester havia se erguido diante dele e arruinara seu prazer. Mesmo Ramsey, aquele vira-casacas que surpreendera vrias vezes conversando com Dilhorne, havia tentado ser gentil com ele, porm um cavalheiro devia fazer coisa melhor do que se relacionar com uni bandido. A desolao o acompanhou enquanto selava o cavalo e saa cavalgando, sozinho, em direo do bosque. Tentou no pensar, concentrar-se no caminho, mas o sol e a paisagem no signifcavam nada para ele, e sua mente fcou a remoer as runas de sua vida. Chegou a uma grande feira de rvores e a um pasto verdejante e sombreado, e penetrou no bosque para escapar do sol que brilhava, indiferente a seu estado de esprito. Apeou e sentou-se l, por algum tempo, escondido da vista, at que, de repente, percebeu que tinha companhia. A pouca distncia dali, para alm de uma larga abertura entre os arbustos, dois cavaleiros emergiram de outro bosque. Um deles era o grosseiro inominvel, Dilhorne, vestido de um jeito estranho, camisa de seda branca, cala larga de seda negra enfada em belas botas de cavalgar. O outro cavaleiro, e o corao de Jack saltou com uma alegria selvagem, era um garoto! Um garoto usando uma roupa de montaria em preto e branco e um quepe branco que ocultava seu rosto. Que histria para contar a Sdnei! Tom Dilhorne, sozinho no bosque, na companhia de um garoto! Fascinado, Jack observou-os desmontar. Dilhorne primeiro, que, ento, ajudou o garoto a descer do cavalo. Ficaram, por um instante, muito prximos, conversando, mas no ele conseguia ouvir o que diziam, estavam muito longe. A atitude era estranha, para Jack, afetuosa demais. Ento, Dilhorne gostava de garotos. Isso seria uma forma de desmoraliz-lo, perante a sociedade. Dilhorne enfou a mo na bolsa da sela, pegou alguma coisa e, depois, ele e o garoto caminharam em direo a unia clareira. Jack viu que era uma bola que estavam jogando, a curta distncia, enquanto caminhavam. Tom tinha levado a bela para casa alguns dias antes, depois de ter visto um jogo de crquete entre os ofciais do Regimento e outros homens, escolhidos entre os funcionrios do Governo e quem mais quisesse jogar. Quando o par chegou ao centro da clareira, os dois fcaram frente a frente e comearam a jogar a bola um para o outro. Se a bola cala, cruzavam a distncia, apanhavam-na e atiravam de novo. Havia algo estranho na maneira de o garoto apanhar e jogar a bola, embora fosse habilidoso. A princpio, Dilhorne jogava de forma que fosse fcil para o garoto pegar e, ento, de repente, os arremessos tornaram-se mais fortes e mais difceis, at que atirou uma bola baixa, ligeiramente desviada para o lado. O garoto mergulhou para apanh-la e, quando conseguiu, ergueu o punho, triunfante para o ar. Seu bon caiu, e Jack percebeu que no poderia dizer nada em Sdnei. O garoto era Hester Dilhorne! As risadas e gritos invadiam seu esconderijo, de onde observava o jogo, contorcendo-se nas agonias do cime. E a brincadeira acabou quando Hester chegou ao limite de suas foras. Dilhorne jogou a bola acima de sua cabea e, tentando apanh-la, ela caiu de costas no meio dos arbustos. Dilhorne correu e ergueu-a, abraando-a e beijando-a. Felizmente, para a sanidade de Jack, o jogo acabara. Os dois fcaram enlaados por alguns instantes. Ento, Dilhorne levou-a at o cavalo, ajudou-a a montar, e ela lhe beijou a mo, agradecendo. Afastaram- se, cavalgando, passando perto de onde Jack estava escondido, e a ltima coisa que ele ouviu foi a voz de Hester, gritando: Vamos apostar uma corrida at em casa! Jack nunca soube por quanto tempo fcou ali, sentado. Estava lavado de suor e experimentava emoes que nunca sentira. Por que um demnio como aquele tinha um tesouro assim? Como podia ser to descuidado com ela? O bandido rira quando a pobre criaturinha cara nos arbustos. Ele, Jack, cuidaria dela muito melhor. Onde estava Deus, que o deixara quase arruinado e permitia que Tom exibisse sua fortuna por Sdnei, cavalgando cavalos de raa e proclamando seu preo? Os sentimentos para com Hester, que haviam sido despertados na noite do baile, mostravam-se ainda mais fortes. Suas lembranas fxaram-se na graa com que ela corria e pulava para agarrar a bola. Aquele m~ld4o deveria ter mais cuidado, no a deixar arriscar-se assim. Jack sabia que estava sendo irracional. No conseguia distinguir se desejava Hester por si mesma ou porque ela era a esposa de Dilhorne. Sabia apenas que, desde a noite do baile, no podia descansar em paz. Agora, aquela mulher graciosa estava com a barriga pesada por causa dos instintos animalescos de Dilhorne. No podia suportar. Daria um fm quele maldito e mataria dois coelhos com uma s cajadada: vingar-se-ia do homem que o humilhara, e satisfaria o desejo de ter Hester para si. Certamente, com Dilhorne fora do caminho, ela iria olhar com mais gentileza para algum que a amava com tanto carinho. Consumido pelo dio, Jack cavalgara de volta a Sidnei e se pusera a observar cada movimento do inimigo, a partir daquele dia. Descobriu que sua presa costumava ir s pedreiras toda semana, mesma hora da tarde. Na volta para casa, passava por um bom lugar, prprio para uma emboscada. Pegou seu cavalo, o mosquete e a pistola. Percorreu a trilha, desmontou, e se postou na sombra de uma moita. Ali, quieto, esperando por sua vtima, seu tormento aumentou. Isolado, naquele lugar ermo e desconhecido, viu que perseguia um homem que, na Inglaterra, difcilmente teria conhecido, um homem que se tornara, um smbolo da runa na qual sua vida se tornara. A apario de Dilhorne trouxe a Jack uni alvio quase sensual, em sua intensidade. Ele ergueu o mosquete, mirou cuidadosamente e desferiu o tiro. Acabaria com o atrevido de unia vez por todas. O chapu de Tom voou de sua cabea. O cavalo empinou com o estampido do tiro. Com o instinto que raramente o abandonava, Dilhorne pulou do fanco do animal e caiu entre os arbustos, fcando imvel na esperana de enganar seu atacante. Com sorte, ele poderia sair de cena, pensando que o alvo estava morto, ou poderia se aproximar para terminar o que havia comeado, dando a Tom a oportunidade de peg-lo. No silncio que se seguiu, Jack levantou-se, empunhou sua pistola, e fcou em dvida. Iria embora ou acabaria de vez com a vtima? Mesmo com a loucura crescente, a precauo aconselhou-o a se afastar. No, pensou, melhor deix-lo l. Se est morto, bem-feito, se no est, tolice me envolver com um sujeito cheio de artimanhas, que certamente anda armado e pode estar esperando por mim. Se no o matei, fca para outro dia. No podia confessar a verdade a si mesmo de que seu medo de Dilhorne era quase to grande quanto seu dio. Tom, deitado de costas, o brao direito estendido, havia apanhado a pistola do cinto assim que cara e estava pronto para enfrentar o inimigo, como Jack havia suspeitado. Ouviu o bater de cascos se afastando e esperou algum tempo, antes de se levantar. De rosto pensativo, foi em busca do cavalo que se metera em meio aos arbustos e agora pastava sossegadamente. Tom no tinha dvidas de quem havia desferido o tiro e que no se tratava de acidente. S podia ser Jack Cameron. Tambm no tinha dvidas de que precisava cuidar da retaguarda. Cameron com certeza iria atac-lo novamente, assim que descobrisse que sua primeira tentativa havia falhado. Acima de tudo, Hester no devia descobrir o que estava acontecendo por uma nova razo, razo essa que comeava a preocup-lo. Sua sade e energia, que haviam retornado depois que os enjos matinais haviam cessado, haviam desaparecido de novo, e ele no queria que nada a perturbasse. Ao chegar em casa, no havia nada em seu comportamento que trasse que ele fora alvo de um ataque assassino, exceto que Hester, sensvel a tudo que dizia respeito a ele, percebeu que algo estava errado. O qu, no sabia. Sabiamente, calou-se. Jack logo descobriu que no avanara muito em sua vingana e tentou afogar o desapontamento na bebida. Devia haver, quem sabe, maneiras mais seguras de acabar com Dilhorne do que mat-lo com as prprias mos. Arruin- lo poderia ser um bom ponto de partida. Tinha amigos nas Pedras, que poderiam fazer-lhe um favor, particularmente se ele perguntasse se queriam ajud-lo a pilhar os estoques de bebida do Regimento, de novo. Difcilmente usaria o dinheiro que o saque poderia trazer. De um jeito ou de outro, ele iria parar nas mos daquele infeliz. CAPTULO XIII Hester sabia que algo estava aborrecendo Tom. Tinham estado jogando xadrez, as atividades fsicas haviam sido interrompidas, agora que a gravidez de Hester estava adiantada. Seu ventre estava bastante grande, e o peso do beb parecia ser demais para ela carregar. Mesmo andar se tornam difcil. Nada de folias ao ar livre, nem excurses a lugares estranhos, nem cavalgar at as pedreiras, ou ir de carruagem at os escritrios em Sidnei, onde a viso da delicada ara. Dilhorne seguindo pelas mos do marido tinha se tomado lugar comum. Hester nunca reclamava de sua vida reclusa, o estoicismo que aprendem durante a pobreza ainda a sustinha. Tom voltara sua criatividade para desenvolver jogos que no exigiam esforo fsico. Jogavam cartas, ele lhe mostrava os truques das mgicas e explicava que tudo dependia de se desviar o foco de ateno. Durante a noite, ela lia para ele. Tom continuava a consult-la em assuntos de negcios, mesmo quando ela no podia mais acompanh-lo s reunies. Voc amadureceu, sra. Dilhorne dissera a ela uma tarde. No quero que se restrinja ao papel de esposa. E minha scia, agora, e precisa lidar com os negcios. Pode cuidar de nosso flho, mas isso no pode ser o foco de sua vida, pois dia vir que a criana estar crescida e, pense, o que faremos, ento? S Tom, pensou Hester, divertida, poderia contemplar a esposa, que nem mesmo dera luz ainda, e decidir com frmeza o que ele, ela, e o flho ainda no nascido, fariam, vinte anos depois. Recentemente, suas lies sobre negcios pareciam ter se tornado mais urgentes. Certa vez, ela o ouvira dizendo a Joseph Smith: Por Deus, homem, se algo acontecer a mim, no quero que ela se torne presa de gente sem escrpulos, como tantas vivas ignorantes que conheo. Seria a possibilidade de uma morte prematura que o preocupava? E se assim fosse, por qu? Muitas vezes, enquanto bordava, pois suas mos eram to habilidosas como sua mente, ela o observava sentado a sua frente e se vira tentada a perguntar o que o aborrecia. O que a impedira era que ele, provavelmente, contar-lhe-ia, no tempo certo. Sempre agira assim, anteriormente. Seu silncio fez com que ele a encarasse. Cansada, sra. Dilhorne? No mais que o usual. A intuio de Tom no o enganava. Ele tinha certeza de que Hester havia detectado uma mudana em seu comportamento desde que Jack se transformara em uma ameaa, mas no queria sobrecarreg-la com aquele problema. Ao invs disso, murmurou: Hora de mais um pouco de Gibbon? Hester sorriu e apanhou o pesado livro que estava sobre a mesa. Comeam a ler para ele O Declnio e Queda do Imprio Romano, e Tom descobrira que o cinismo de Gibbon combinava com o seu prprio. Estavam se enfronhando no mundo dos Antoninos, onde outros homens e mulheres, como Dilhorne e ela, haviam vivido em fronteiras para que outros pudessem viver no conforto. Mesmo que Tom estivesse esperando por um outro ataque, foi surpreendido quando aconteceu. Somente seus refnados instintos o salvaram. Custaa~ ~ livrar-se do falante Will French naquela noite e dirigia-se apressado para casa. Sentia-se cada vez menos inclinado a deixar Hester sozinha, embora tivesse postado um empregado armado, Miller, no hail da Villa, para fcar como co de guarda durante sua ausncia. Estava escuro nas ruas sem pavimentao que se afastavam do centro de Sdnei, e, noite, ele sempre andava com cuidado. Foi somente no ultimo instante que pressentiu seus atacantes. Nunca soube quantos eram, possivelmente dois ou trs, e apenas por imensa sorte ele evitou um golpe de cassetete que poderia ser fatal, se o atingisse em cheio, na cabea. Mesmo assim, sentiu a pancada. Outro soco fez com que cambaleasse. Mais outro, e sentir tudo rodar. Meio atordoado, mas com a determinao instintiva de sobreviver, ele esquivou-se de outro ataque como o brigador de rua que um dia fora, e usou alguns dos golpes que havia aprendido com os japoneses que viviam em Sdnei. Com o lado da mo espalmada, ele golpeou no pescoo o homem que empunhava o cassetete, de forma to dura que o sujeito caiu, incapaz de gritar, inconsciente, no cho. Ento, com a ponta da bota, aplicou aia chute no sexo do segundo atacante, com tamanha fora, que o bandido soltou aia berro de agonia e caiu amontoado. Tom, quase inconsciente, caiu de costas contra a parede de uma casa atrs de si e deixou-se escorregar at fcar sentado, no solo. O terceiro homem, se que havia um terceiro, havia sumido ao ouvir o barulho de alguns noctvagos aproximando-se. A nata do 730 Regimento voltava da casa de Madame Phoebe, para o quartel, encharcada de vinho e cantando. Um dos ofciais o viu, recostado contra a parede e parecendo desmaiado. Por Deus, Dilhorne! exclamou o jovem Parker. Acha que est bbado? Seria um espanto retrucou Pat Ramsey, inclinando-se e encontrando o olhar irnico de Tom. Bbado no, fui atacado resmungou Tom. Ajude-me a levantar, Ramsey. Minha nossa, h outro aqui disse o major Menzies, apontando o dedo para o bandido cuja laringe Tom havia praticamente arrebentado. Deviam ser dois, pelo menos murmurou Tom, cambaleando entre os braos de Ramsey. Dois! berrou Pat. Onde est o outro? Osborne encontrou o segund homem, e Menzies examinou-o, detidamente. Ele quase matou os dois rosnou Menzies, levantando-se. H um ali que vai demorar a falar de novo e, pelo jeito, o outro ter sorte se conseguir dar prazer a alguma garota. Com o que os atingiu, Dilhorne? Com uma pedra? Parker havia encontrado o cassetete, e Pat havia carregado Tom at sent-lo em um muro baixo. Eles machucaram sua cabea e seu ombro esquerdo afrmou, depois de examin-lo. Aqui, Osborne, venha segur-lo para mim. Quero ver exatamente o que Dilhorne fez com eles. Sob o olhar curioso dos ofciais mais novos, Pat examinou as vtimas de Tom, antes de voltar e perguntar: S para satisfazer minha curiosidade, Dilhorne, com o qu, exatamente, voc os a tingiu? Tom olhou para Pat, ainda com a vista turvada. Tinha uma ligeira concusso, um dos olhos estava se fechando, e os hematomas comeavam a arroxear seu rosto. Com a mo... quase a quebrei resmungou. E com o p. Apontou para a bota. Osborne sugeriu, cheio de cuidados. Vamos lev-lo para a casa de Madame Phoebe. No! exclamou Tom, a voz quase no tom normal. Quero ir para casa. Hester vai fcar preocupada. O coche est na esquina, vou dirigindo. Ela fcaria preocupada se voc dirigisse nesse estado, meu amigo disse Pat, secamente, pensando que essa era uma tima oportunidade para conhecer o interior da Vila. Parker e eu vamos lev-lo. Eu vou tambm ofereceu-se Osborne ansioso. No, rapaz, no h lugar disse Pat. Mas ns lhe contaremos tudo, mais tarde. Particularmente, seu respeito por Dilhorne, j alto, havia aumentado depois de ver o que ele havia feito, semiconsciente, aos assaltantes. Aquele estpido Jack Cameron podia se considerar com sorte que Dilhorne no tivesse lutado com ele. J eram duas da madrugada quando chegaram Vila Dilhorne. Tom deu as chaves a Pat. O ofcial abriu a porta, e Miller, pistola da mo, os recebeu. Hester, preocupada, apareceu, carregando um lampio. Os dois ofciais ajudaram Tom, ainda sob o efeito da dor e da pancada, a entrar no hall. Tom, o que aconteceu? perguntou Hester afita. Seus olhos voltaram-se para Parker e Pat. Tom ergueu a cabea. Estou ferido esforou-se em dizer. Mal conseguia parar em p. Soltou o peso todo do corpo sobre Ramsey. Fui atacado. Os bons amigos aqui me trouxeram para casa. Os olhos fascinados de Parker estavam sobre Hester. Seu corpo, avolumado pela gravidez, estava envolto em um robe de seda chinesa, de um rosa plido, decorado com ris em tons de creme e amarelo. Era preso por uma faixa mole, de um malva suave. Sua pele parecia translcida, resultado de sua crescente fragilidade. Sua extrema beleza era cheia de delicadeza, e o rosto mostrava toda sua preocupao. Quando o primeiro susto passou, ela colocou o lampio sobre a mesa e rapidamente comeou a organizar as coisas. Miler foi mandado para buscar socorro. Pat Ranisey e Parker foram incumbidos de levar Tom ao quarto. Ambos estavam ansiosos para descobrir como eram os aposentos ntimos no homem mais rico de Sdnei, agora que haviam visto o esplendor estonteante do salo. Ficaram particularmente impressionados com a imensa pintura do tigre, correndo. O jovem Parker no conseguia deixar de se lamentar pelo fato de ter rejeitado, estupidamente, o raro espcime de mulher em que Hester se tornara. Ela poderia ter sido sua, era apenas uma questo de pedir. Ficou a imaginar, como Pat Ramsey tambm fazia, como o pirata brutal que ajudavam a carregar, e cuja obra com as mos deixara os assaltantes largados na poeira, tinha con- seguido fazer desabrochar um tesouro to raro. Seguiram pela escadaria suntuosa, passaram pelos dolos chineses e cruzaram as portas de bronze. Hester comeou a acender as numerosas velas azuis e brancas, incrustadas em seus preciosos castiais de porcelana que estavam espalhados pelo quarto magnfco. Hester fcou divertida em perceber que os olhos dos dois ofciais percorriam tudo, depois de estenderem Tom na cama enorme. Ela entrou no quarto de vestir e saiu carregando uma bacia chinesa, de preo incalculvel. Os dois homens recuaram para que ela limpasse as faces do marido, um dos lados j bastante arroxeado. A chegada de Miller, depois de recolher o cavalo e a carruagem, deixou-os livres para ir embora, de olhos cheios com o que haviam visto. Hester levou-os at a ante-sala onde o tigre ocupava toda a parede, imponente. Uma criada trouxe sanduches. Hester apanhou uma garrafa de brandi e serviu a eles uma dose, em sofsticados copos de cristal. Ela os interrogou, com uma voz fria: Agora, preciso saber exatamente o que aconteceu, antes e depois de vocs o terem encontrado. O tom autoritrio em sua voz foi to incisivo que Pat nada pde fazer, a no ser obedecer. Quando ele terminou o relato, ela insistiu: Voc tem alguma idia de quem so os atacantes, ou por que ele foi atacado? Particularmente, Hester era de opinio que aquele ataque sujo tinha algo a ver com as mudanas recentes no comportamento de Tom, mas no estava disposta a dizer isso a Pat. Ele balanou a cabea. No, no posso dizer nada quanto a isso. A suposio mais provvel que os bandidos viram uma oportunidade excelente de roub-lo. Era tarde da noite. Os atacantes foram to severamente surrados que eu duvido de que possam dizer alguma coisa, tambm. Ele no iria agir com gentileza ela murmurou, com frmeza. Vocs tiveram tanta considerao com meu marido como eu esperava. Nunca poderemos agradec-los o bastante. Os ofciais partiram. Se fora a casa ou Hester que os impressionara mais, nenhum dos dois saberia dizer. Na cantina do quartel, no dia seguinte, eles contaram sua histria e como era a casa onde tinham entrado. Vocs deveriam ter visto o quarto! exclamou Pat. Lucy Wright no exagerou, nem mesmo contou tudo. E cheio de tesouros: deuses de marfm, vasos chineses, sedas, moblia laqueada... E a cama? Vocs nunca viram nada como aquilo. Sem cortinados, s travesseiros e almofadas para todo o lado. E to grande como um salo de baile. Juro por Deus que Dilhorne poderia reunir ali todas as garotas de Madame Phoebe, se lhe desse na cabea. Tom recobrou-se rapidamente dos ferimentos. Disse a Hester que devia ter sido vitima de unia tentativa de roubo. Ambos os bandidos eram condenados que haviam fugido, viviam escondidos nas matas prximas a Sdnei e eram conhecidos por serem pequenos Ladres. O homem que podia falar contou aos juizes que estavam atrs do dinheiro de Tom e de coisas valiosas. Tom e Hester, por diferentes razes, duvidavam disso. Tom tinha certeza de que Cameron estava por trs do ataque, mas no tinha como provar. Outras coisas o preocupavam. Os carroes do comboio que operavam entre Sidnei, Paramatta e outros assentamentos distantes, vinham sendo constantemente vitimas de ataques, cada vez piores. Os homens que trabalhavam no transporte no andavam armados, mas os bandidos sim, e o mais recente assalto deixara um empregado bastante ferido. De novo, a suspeita recaiu nos condenados fugitivos. Alguma idia de quem pode estar por trs de tudo isso? Tom perguntou a ONeill, o chefe dos transportes, que encontrara no cais do porto. Nenhuma, exceto que... O homem hesitou. Ningum mais tem sido alvo, a no ser ns. Correto. Se nos atacarem na prxima viagem, eu os acompanharei pessoalmente, depois disso. Estarei armado, e meia dzia de rufes estar s nossas costas, armados tambm. No podemos permitir que nos peguem de surpresa. No disse mais nada. S o tempo diria se os assaltos aos carroes eram simples coincidncias ou aia sinal de que Jack havia mudado sua ttica. Infelizmente, mais uma coisa a esconder de Hester. O governador Macquarie convidara os Dilhornes para um jantar ntimo, talvez um dos ltimos compromissos a que Hester pudesse comparecer, antes de o beb nascer. A razo do convite restrito era que o governador desejava discutir alguns assuntos com Tom, extra-ofcialmente. Com sua usual gentileza, Macquarie preocupou-se em agradar seus convidados. Sabia que toda Sdnei estava certa quando comentava o cuidado amoroso de Tom Dilhorne, antes tido com sem corao, para com a esposa, em estado de gravidez avanada. No podia deixar de perceber como ele a cercava de atenes, a presteza com que se movimentava para proporcionar-lhe conforto ou aliviar-lhe o desconforto, nem a maneira como se ftavam, um ao outro. Depois do jantar, a esposa do governador conduziu Hester para a agradvel sala de estar enquanto o marido acompanhou Tom at o jardim de inverno, oferecendo-lhe cigarros e brandi. Tom aceitou a bebida e recusou o cigarro. Estava imaginando qual era a fnalidade de tudo aquilo. Era hora de assumir seu papel de homem de negcios. Durante o jantar, havia se comportado como um cavalheiro ingls de maneiras refnadas. O problema comeou Macquarie, depois de conversarem amenidades e discutirem a possibilidade de explorar e estabelecer assentamentos no interior, ao invs de se limitarem a permanecer no litoral do vasto continente que voc sabe como tenho me empenhado em nome-lo juiz. Fez uma pausa. Tom concordou, emendando, em uma entonao irnica: Mas... Macquarie pareceu surpreso. Dilhorne decidiu explicar-se. Eu aprendi disse que quando algum se mostra to veemente como voc, e, ento, faz uma colocao nesse tom de voz, h sempre um mas por trs da conversa! Bem... continuou o governador, dando uma risada que, enquanto eu quero tom-lo um magistrado, pois sei que voc ser um bom juiz, justo e equnime, sei tambm que juizes no andam por a, deformando as feies dos ofciais da Armada, em casa de Madame Phoebe! Eu estava preparado para esquecer esse fato, mas h um outro motivo. Isto , tenho a impresso de que, at recentemente, voc vinha se preparando para ser um magistrado, mas algo mudou sua atitude. Sem entrar em detalhes, acredito que sei e compreendo por que tal aconteceu. Tom sorriu. H uma poro de mas, e sei que compreende porque desejo que a nomeao seja protelada, por enquanto. O governador concordou, antes de murmurar, aparentemente de forma inconseqente: Vejo que se recobrou do ataque, mas adivinho que est tendo outros problemas, ou assim dizem os boatos. Verdade, e por isso mesmo vai entender que no posso comprometer minha Liberdade de ao, no momento. Entendido. Quero que, quando esse assunto se resolver de forma satisfatria, voc me d sua palavra de honra de que concordar em ser nomeado para o posto. Sei que voc honrar o compromisso e no vou permitir que venha a usar de seus truques maquiavlicos para se safar. o governador falando, sr. Dilhorne, e no seu amigo Macquarie. Do contrrio, no lhe darei liberdade de ao. Espero que resolva seu problema da forma mais discreta possvel. Tom tocou sua taa na dele, em ata brinde, e cedeu insistncia do governador. No podia fazer por menos. Macquarie sabia, Deus era testemunha, de que Jack Camemn estava por trs dos ataques e lhe dera permisso para resolver a questo como lhe agradasse. Ao mesmo tempo, usava do problema para chantage-lo a aceitar o cargo de magistrado, algo que ele, particularmente, havia jurado nunca ser. Gostasse ou no, a respeitabilidade o chamava para seu seio! Claro! respondeu, e, pela primeira vez, bebeu tudo de um s gole. Depois disso, os acontecimentos se sucederam de forma rpida. A semana em que conversara com ONeill passou e, nesse perodo, os carroes e carretas de Dilhorne foram novamente atacados. ONeill, preocupado, chegou a Villa com as notcias. Foi coisa feia, mestre Dilhorne. Um carroo carregado foi saqueado, no caminho de Paramatta, e dois fcaram homens gravemente feridos. Ento, est decidido disse Tom. Estarei no prximo embarque, como prometi. Ningum deve saber que viajarei com vocs. Mande avisar quando tudo estiver pronto. Dois ou trs dias, o mais tardar. Tom coou a barba, refetindo. Quatro ou cinco dias. Estou com a aparncia ainda muito respeitvel. Quando ONeilL se foi, ele retomou sala onde Hester estava reclinada em um sof, com um livro nas mos. Estive pensando... disse a ela. Preciso passar uns dias em Paramatta, os negcios me obrigam a ir at l, e n~o gostaria de deix-la sozinha. Voc poderia passar algum tempo com Alan e Sarah enquanto estou fora. Alan disse- me, ontem, que quer examin-la, e voc teria a ele e Sarah, para no citar o pequeno John, como companhia. Hester ergueu os olhos para o marido. Percebeu, de imediato, que havia ali um problema. Se isso o deixa feliz, claro que irei respondeu. Gosto muito dos Kerrs. Ento, est combinado ele retrucou, beijando-a. Tom saiu assobiando, para apanhar o cavalo. Pelo menos, no teria que somar suas preocupaes com Hester, vulnervel e abandonada, ao resto de seus problemas. As coisas iriam se resolver por si mesmas. Tom chegou a Paramatta com ONeil, trs carretas de bois, dois carroes puxados por cavalos e a meia dzia de rufes, como prometera, anteriormente. No se conseguia distingui-lo entre os homens. No se barbeara e nem tomara banho depois que deixara Hester com os Kerrs e usava as roupas rsticas de seus dias pregressos, ao chegar a Sdnei. Cruzara com Pat Ramsey, na estrada, e o olhar do ofcial o examinara superfcialmente, sem reconhec-lo, avaliando suas botas desgastadas, suas roupas e faces imundas, e seu chapu rasgado enterrado nos cabelos ensebados. Em Paramatta, descarregaram as mercadorias vindas de Sdnei e carregaram os produtos agrcolas, artefatos de madeira e metros de tecido rstico que as camponesas teciam. Esperaram pela tarde, antes de empreender a viagem de volta. Trs dos rufes estavam escondidos sob as traves das carretas maiores, os outros trs ajudavam com a carga, as armas escondidas. Tom dirigia o primeiro carroo. Resolvera seguir para casa noite. ONeill tinha certeza de que estavam sendo observados a distncia e que os assaltantes poderiam julgar que uni ataque noturno seria mais fcil do que durante o dia. Tom instrura seus homens a esconderem as armas e a agirem como se estivessem ligeiramente bbados. Estavam cantando, parecendo descuidados, quando o ataque ocorreu, prximo a umas cabanas abandonadas onde os bandidos haviam se escondido, depois de seguir o comboio desde Sdnei. O ataque foi repentino. Meia dzia de homens apareceu a cavalo e ordenou que descessem e abandonassem a carga. Dispararam uma bala de advertncia pouco acima da cabea de Tom e pareciam dispostos, desta vez, a cometer um assassinato. Vo para o inferno gritou Dilhorne, e assobiou. Era o sinal para os homens escondidos nas carretas. Os ladres no esperavam resistncia. Com a vantagem da surpresa, o grupo de Tom no teve grande trabalho em dominar seus atacantes. O lder, um emancipista de nome Kaye, notrio marginal de Sdnei, foi apartado dos demais, depois de ser capturado. Tom deixou que ONeil reorganizasse os carroes e carretas, cuja carga havia se espalhado com o ataque, e foi at uma das cabanas, dando ordens para que Kaye fosse levado para l, dentro de quinze minutos. Essa demora era deliberada, queria inquiet-lo ainda mais do que o fracasso do assalto havia conseguido. O miservel foi jogado dentro do cmodo parcamente iluminado. Ao lado de uma mesa rstica, no meio da sala, ele viu Tom Dilhorne, uma cigarrilha presa entre os dentes e uma pistola na mo. Dilhorne no parecia o homem respeitvel que caminhava, elegante, por Sdnei. Tinha, agora, uma aparncia vulgar e suja e usava roupas rasgadas, como um bandido. Kaye no o reconheceu, a princpio, to diferente ele lhe parecia. E seu corao disparou: havia esquecido como Dilhorne era perigoso. Tom encarou-o fxamente, fumando a cigarrilha devagar, fazendo-o esperar pelo pior. Kaye tinha os nervos em frangalhos. Finalmente, ele apagou o cigarro na mesa e apontou para o assaltante, com a pistola. O que prope que eu faa com voc, Kaye? Seus olhos eram to duros e cruis como Kaye jamais vira em algum. No me entregue aos militares, mestre Dilhorne. Eu seria pendurado na corda, desta vez. Seria mesmo. Mas o que o faz pensar que eu gostaria disso? Fez um gesto com a pistola. Um tiro s, e eu iria me livrar de uni problema e poupar Sdnei do custo de um julgamento. No faa isso, mestre Dilhorne. Poderamos fazer um bom acordo: sua vida pela minha. Sua voz demorou-se na ultima palavra. Tom no baixou a pistola. Poderamos, mesmo? Ora, o que o leva a dizer isso? Abaixe essa coisa, e eu Lhe contarei. Voc vai me contar com essa coisa apontada para seus miolos, ou no vai poder mais falar nada com ningum! E que poderia disparar, por acidente... No, no poderia. Eu nunca deixo que nada acontea por acidente, Kaye. No teste minha pacincia. Mal consigo me controlar, no momento. Kaye pensou que nunca vira algum mais controlado que Tom Dilhorne, sentado ali, ameaando mand-lo para o inferno. Est certo, vou falar. H um homem que quer acabar com voc, Dilhorne, e quer muito. Tanto que pagou a turma do Fitzpatrick para o atacar, semanas atrs. O pobre Fitz acabou em uma estrepada e no vai ser capaz de falar, de novo. Ento, o homem me contratou para saquear seus carroes, para prejudi- c-lo. Ele o mataria se pudesse, Deus sabe disso. Tom abaixou a pistola e encarou o miservel. Suas suspeitas se confrmavam. Nada havia de acidental no ataque de rua, sem falar no tiro que lhe perfurara o chapu, anteriormente. Continue ordenou. Esse homem deve ter um nome. Diga-me, estou curioso. Como foi que lhe pagou? O homem em que estou pensando no tem dinheiro. Continua no tendo, mestre Dilhorne, mas tem acesso aos estoques de bebida da guarnio, e isso melhor que dinheiro. Ah... ento isso. Mas, e o nome? Se no me disser, eu o matarei a, onde est. O senhor sabe o nome dele, no sabe, mestre Dilhorne? E o capito Cameron, cujo rosto bonito o senhor arrebentou. Tom ergueu a pistola e apontou-a para Kaye, que deixou escapar um berro de desespero, e disparou um tiro no ombro do miservel. Kaye caiu no cho, apertando o ferimento. Eu contei o que o senhor queria, mestre Dilhorne. Uma vida pela outra, voc concordou, e quebrou sua palavra. Tom jogou a arma fumegante sobre a mesa e olhou para a porta que se abria. ONeill entrou e sorriu, ao se deparar com Kaye, retorcendo-se de dor. No, no quebrei minha palavra retrucou Dilhorne com frieza. Estou Lhe deixando com vida, no falei nada sobre seu ombro. Voltou-se para o empregado. ONeill, providencie para que ele seja levado ao dr. Kerr. Isso para voc aprender a no interferir em meus negcios, Kaye. Enfou a mo no bolso, pegou uni guinu e entregou-o a ONeill. Pague o doutor e d o troco a Kaye. ONeil arrastou Kaye para fora, comentando que, em sua opinio, o mestre Dilhorne tinha se tornado mole, ultimamente. Se fosse ele, ONeill, teria dado o fgado de Kaye para os abutres, pelo trabalho sujo daquela noite e das outras. Tom recarregou a pistola. Sua expresso era terrvel. Ento, sua suposio era correta. Jack estava agindo como um louco, tentando mat-lo e arruin-lo. Agora, tinha vrias pistas para usar contra ele. Para comear, OConnell gostaria de saber quem era o responsvel pelos saques aos estoques do Regimento. A questo era, como poderia fazer para que OConnell soubesse o que Cameron andava aprontando, sem que tomasse conhecimento de quem era o informante? Tom caiu na gargalhada. A malcia iria achar um jeito, sempre achava. Tom voltou de Paramatta e levou Hester para casa. O medo dela, de que ele estivesse escondendo algo, era cada vez mais forte. Desta vez, o marido contara pouco sobre a viagem, falando superfcialmente sobre a renovao de contrato com os locais, explicao que, ela pensou, difcilmente convenceria uma criana. Tom Dilhorne gastara uma semana, renegociando contratos insignifcantes, os quais Joseph Smith poderia muito bem resolver em unia tarde? No disse nada, porm. Era um jogo a ser disputado a dois. Cedo ou tarde, ela iria descobrir o qu, exatamente, estava acontecendo. Descansava no sof, e Tom havia se sentado a seu lado, no cho. Acariciou- lhe os cabelos. Resolveu provoc-lo. Espero que seus negcios em Paramatta tenham sido bastante bem- sucedidos para justifcarem sua viagem at l. Ele ftou-a, atentamente, mas o rosto de Hester no a denunciou, nem ela parou de acarici-lo. A Senhora da Dissimulao, pensou ele, divertido, entendendo que ela se comportava como ele prprio costumava se comportar. Mais ou menos, querida, mais ou menos. Tenho que manter ONeill e seus companheiros de bom humor. No gostariam de pensar que perdi o interesse neles. E um problema ter muito ferro na brasa. Oh, realmente, sr. Dilhorne. O tom de Hester era ligeiramente irnico, ou ele estava imaginando coisas? Tom pensou em contar-lhe tudo. Alan, porm, havia-o advertido de que ela estava fragilizada e precisava de cuidados. Levantou-se e atravessou a sala para servir-se de um copo de brandi. gua, minha querida? perguntou. Alan o avisam para evitar que ela tomasse bebidas alcolicas, pois podiam prejudicar o beb. Hester observou-o, de p, contra a luz do candelabro. Seus cabelos cor-de- areia estavam revoltos, desalinhados por suas carcias, e, quando ele se voltou, ela conteve o flego. A paixo que sentia por ele era ainda mais forte, por causa da abstinncia forada. Voc parece feliz, sra. Dilhorne. Oh, eu sou! Ele tambm parecia feliz. Suas feies estavam relaxadas, e a boca, ultimamente to contrada, mostrava um leve sorriso. Ele lhe trouxe a gua. Prenda a respirao enquanto bebe, sra. Dilhorne. No quero que fque bbada brincou, com um sorriso. Vai ser difcil se acostumar a beber alguma coisa mais forte que um vinho, depois que o mestre Dilhorne nascer. Voc tem certeza de que um menino ela murmurou, divertida. Mas, e se for uma menina? Ento, eu prometo amar a srta. Dilhorne tanto quanto o irmozinho que ainda est para nascer. Hester fcou em silncio. E por tanto tempo, que Tom se preocupou. O que a est aborrecendo, Hester? Deve ser difcil para voc tambm, que eu me sinta to fraca ultimamente... Faz tempo que no somos marido e mulher... Ele a interrompeu. Nunca fomos to marido e mulher quanto agora, que voc carrega o meu flho! Oh, sr. Dilhorne! Hester, de repente, sentia-se feliz de novo. Voc sempre me confunde com esse seu modo de falar. Ele se aproximou e tomou-lhe a mo, beijando-a. Meu amor, eu entendi o que est tentando me dizer. Deve ser difcil para voc, um homem, ter de se refrear. Difcil para mim?! Ele beijou-lhe a mo, de novo, e ftou-a, com paixo. Quando voc est assim, indefesa...? Oh, Hester, o que so meus desejos passageiros comparados condio que lhe dei? O rosto de Hester iluminou-se. Ora, pensei que tinha contribudo mais do que um pouquinho para meu estado atual, sr. Dilhorne. E contribui, sra. Dilhorne. Mas voc quem tem de arcar com as conseqncias, no eu. O mnimo que posso fazer por voc suportar com pacincia, como voc suporta, em respeito a nosso flho. Ele soltou-lhe a mo e colocou a sua gentilmente no ventre da esposa. Sentiu a criana se mexer. ativo o camaradinha, no ? Hester caiu na risada. Ele, ou ela, chuta tanto que quase me machuca, s vezes. grande como um flhote de elefante, mas muito mais irrequieto. O rosto de Hester se contraiu, conforme a criana se agitava, e seu estmago se deslocou como uma onda sob a mo de Tom. No podia faltar muito tempo agora, pensou Tom, at a criana nascer. Alan dissera que seria logo. Tente fazer com que ela se exercite um pouquinho aconselhara o mdico. Ser difcil, se ela fcar deitada a maior parte do tempo. Hora de passear murmurou Tom. Ajudou-a a sentar-se e atravessou com ela o salo, fazendo-a repetir o trajeto duas vezes. No podia lev-la a Sdnei, o balano da carruagem a incomodava. Andar tambm se tomara um problema. Principalmente, ela precisava de sua proteo mais do que nunca, e no devia fcar sabendo das vilanias de Cameron. CAPTULO XIV Tom investiu contra Jack Cameron com toda a fria determinao, rapidez e esperteza que conseguiu reunir para a tarefa. Quanto mais cedo se livrasse dele, mais cedo poderia descansar. Assim que a ameaa a sua vida houvesse sido afastada, ele poderia concentrar-se em cuidar de Hester, e no teria mais que a enganar. Agiu da forma mais sigilosa que pde, enquanto colocava em ao as engrenagens que iriam enrodilhar Jack na armadilha, e que no deviam deixar traos de seu prprio envolvimento. Voltando de unia dessas empreitadas, encontrou-se com o tenente Wright, com Lucy pelo brao, descendo a rua Macquarie. Tom foi cauteloso em no dividir com eles suas preocupaes acerca da sade de Hester. Ficou particularmente feliz com a forma calorosa com que ambos o tratavam, um contraste marcante frente ao comportamento de um ano atrs. Disse-lhes que, embora caseira, Hester estava sempre disposta a receber os amigos. Ento, iremos visit-la, uma hora dessas! exclamou Lucy, que, diante da transformao notvel de Hester, depois de seu casamento com Tom, sentia-se envergonhada que a elite de Sdnei tivesse feito to pouco pela moa, depois da morte de Fred. A participao de Frank, na conversa, foi mais comedida. Suponho que ainda no saiba das noticias esplndidas sobre Pat Ramsey comentou j que ele mesmo as recebeu somente ontem, quando o ultimo navio atracou. Ele herdou o ttulo da famlia e, mais importante, seus grandes domnios. Teremos que cham-lo de sir Pat, agora, embora por pouco tempo. Ele esperado em casa e, sem dvida, vai renunciar carreira militar e cuidar de suas terras. Ento, a Roda da Fortuna girara, favorecendo Pat. Tom esperava que no acontecesse o mesmo com Jack, que j devia ter sabido, a essa altura dos acontecimentos, que sua ultima investida havia falhado. Jack, realmente, estava plenamente consciente de que algo ocorrera. Kaye nunca mais aparecera para pegar seu pagamento em espcie, nem fzera qualquer tentativa de entrar em contato para explicar o que havia dado errado. Os dias passavam, e sua impacincia crescia. Investigaes discretas revelaram que Kaye estava escondidos nas Pedras, com o brao direito na tipia. Um acidente dissera a todos. Jack, fnalmente, aventurou-se a ir at as Pedras por si prprio, e deparou- se com Kaye. Eu o conheo, senhor? esquivou-se Kaye quando Jack comeou a pression-lo. Maldito seja grunhiu Jack, cujo vocabulrio era composto de palavres. Voc estava fazendo um servio para mim, contra Dilhorne. Dilhorne, ? O rosto de Kaye, de repente, empalideceu. Eu nunca me meto em encrencas com Dilhorne. Homem perigoso, aquele. Se eu fosse o senhor, tomaria cuidado em qualquer negcio que tenha a resolver com ele, capito. Era imaginao de Jack ou o olhar de Kaye recara sobre seu nariz quebrado? Saiu dali, tomado de fria. Intil insistir no assunto, e perigoso tambm. Dilhorne havia vencido aquela parada e assustam Kaye, tirando-o do caminho. Como assustara todos os demais, tambm. Pior ainda, Jack acabara de voltar ao quartel quando descobriu que tinha mais com que se preocupar do que com atingir Dilhorne. Ramsey, agora um baronete, maldito fosse, disse-lhe que OConnell queria v-lo o mais depressa possvel. Ora, um garoto de recados, voc virou agora... sir Pat caoou. Impossvel tirar Pat do srio, qualquer insinuao era como gua escorrendo das penas de um pato. Nunca o atingia. Ele deu de ombros, girou nos calcanhares e afastou-se, deixando Jack soltando fumaa pelas ventas. Cameron dirigiu-se sala de OConnell, onde o encontrou esperando por ele, com Menzies a seu lado. Malditos fossem, esses hipcritas! Podemos tornar as coisas bem duras comeou OConnell, sem prembulos ou mais suaves, depende de voc, Cameron. Se eu souber do que esto falando... No se faa de tolo OConnell esbravejou. Tenho provas concretas de que voc vem roubando os estoques de bebida, entre outras coisas. A bebida da guarnio est sendo esparramada por toda a cidade, e voc o responsvel. Suponho que tenha sido aquele maldito Dilhome, que disse isso a voc. Dilhorne? O que Dilhorne tem a ver com isso? No, o mestre da intendncia que voc subornou foi pego com a boca na botija, ontem, vendendo sua parte em Sdnei. Ele confessou, e voc foi implicado, juntamente com outros, embora voc seja o nico ofcial envolvido, graas a Deus. Tudo se ajusta, Jack, inclusive o fato de voc estar cheio de dinheiro ultimamente. O rosto de Jack se retorceu. O que me diz dos estoques do governo que voc desviou para Dilhorne e outros tantos? Voc vai responder por aquilo, tambm? Aquilo que o Regimento disponibiliza para os comerciantes tudo anotado, como voc bem sabe. Incluindo as propinas que recebe de Dilhorne e dos outros, eu suponho. Ento, ele o envenenou contra mim! Voc cismou com o homem, Jack. Ele no tem nada a ver com isso. No o vejo h meses. E que propinas? Que provas voc tem para fazer essa acusao? Ora, temos testemunhas que o acusam de culpa, e evidncias sufcientes para acabar com voc. Porm, no vou fazer isso, se for compreensivo. Vai mostrar-se compreensivo, Jack? Depende do que isso signifque... senhor. Vou-lhe explicar. O tom de OConneil era cansado. Estou rebaixando o mestre da intendncia de posto, alegando insubordinao, no roubo. Assim, no haver escndalo. Ele deve fcar agradecido por no levar umas chibatadas e ser expulso da corporao. Quanto a voc, pode assinar os papis e ir para casa no prximo navio. No o quero mais andando como uni co perdido por Sdnei. Pedir demisso, o que voc quer dizer? Que seja. Pode tornar as coisas mais duras e ser levado corte marcial. E com voc, no me importa. Que escolha essa? perguntou Jack, o rosto retorcido. aquele maldito Dilhorne o responsvel por isso. Sei que . OConnell suspirou, pesadamente. Voc no nega as acusaes, no , Cameron? Deixe-me darlhe um conselho. Desde que brigou com Dilhorne, seu juzo, nunca muito racional, parece ter fcado completamente distorcido. Briguei com ele? Jack quase berrou. Nunca briguei com ele. O maldito me atacou brutalmente e sem avisar, quando eu estava bbado e incapaz de me defender. Sei que ele est por trs de tudo isso. De rosto fechado, OConnell levantou-se. Ningum est por trs desse problema. Voc se enredou em sua prpria estupidez e arruinou outro homem, na barganha. Agora, d o fora de minhas vistas e, se no trouxer os papis assinados amanh de manh, ser preso e submetido corte marcial. E mesmo que se demita, vai fcar confnado no quartel at que o prximo navio parta para casa, com voc l dentro, claro. Mergulhado em desespero, Jack tinha absoluta conscincia de quem o arruinara, e quem haveria de pagar por isso, antes que deixasse Sdnei, nem que isso fosse a ltima coisa a fazer. Nenhuma ordem de OConnell o impediria de atingir seus fns. Tom descobriu que suas maquinaes haviam sido bem-sucedidas quando encontrou-se com Pat Ramsey na rua George, na tarde seguinte. A saudao calorosa de Pat foi a medida de como tudo mudara. Ah, deixe-me dizer-lhe uma palavrinha, Dilhorne. Tenho a impresso de que no fcar surpreso em saber que Jack Cameron foi obrigado a assinar sua demisso e est indo para casa. Parece que se encheu de Sdnei, pelo menos, essa a verso ofcial. Tom ergueu as sobrancelhas, em um gesto de indiferena. Ser, capito Ramsey? Ou melhor, devo cham-lo de sir Patrick, agora? Oh, pare com isso, Dilhorne, Ramsey basta. Devo partir em breve, e a nica coisa de que sentirei falta o prazer de sua companhia, que aprendi a apreciar recentemente. Pena que voc no possa me acompanhar. Uma pena, realmente retrucou Tom suavemente. Quanto a Cameron, Sdnei fcar feliz em v-lo pelas costas. E voc tambm, pensou Pat, observando Dilhorne se afastar, em largas passadas. Parabns a voc, por t-lo enredado nessa trama. O Regimento fcar melhor sem ele. O melhor de tudo isso, pensou Tom, que poderia procurar Hester sem esse peso nas costas e sem a necessidade de engan-la mais. Poderia se concentrar em cuidar dela, apenas. Hester haveria de se lembrar, mais tarde, como aquele dia, em particular, fora agitado. Tom acabara de dizer que havia contratado uma enfermeira para cuidar dela at que o beb nascesse. Iria chegar naquele fm-de-semana. Ele a ftou, sentada do lado oposto, mesa do caf. Hester estava alegre, porm mais plida do que nunca. Seus olhos estavam fundos, e as olheiras escureciam sua face abatida. Decidi fcar em casa at que a enfermeira chegue. No quero que fque sozinha disse Tom, de repente, o medo apertando-lhe o corao. Devia ter esperado que ela fosse recusar. Oh, no, Tom, sei que est muito ocupado, hoje. Est resolvendo os negcios da fbrica de farinha, no est? Ele concordou. O problema, minha querida, que h um jantar tambm, e um coquetel, mais tarde, de modo que tenho medo de chegar tarde em casa. Acho que no devo fcar fora durante muitas horas, at que o beb nasa. Seu assunto com Cameron podia ter sido superado, mas ele no iria descansar em paz at que Hester estivesse em segurana. No seja por isso ela continuou. No irei fcar sozinha. As senhoras do Crculo de Costura vo se reunir aqui, pela manh, e Lucy vai trazer Frank, Stephen Parker, Pat Ramsey e todos os amigos do Regimento, esta tarde. Finalmente, veja s, fomos aceitos pelos exclusivos. Tom abriu a boca para argumentar e, ento, recordando-se da demonstrao de amizade que lhe dera Pat Ramsey no dia anterior, recuou. Eu desisto disse levantando-se e beijando-lhe o rosto , mas no se canse. O fato de Hester ter usado a palavra ns, ao se referir a sua aceitao no crculo restrito da elite de Sdnei, deixava-o profundamente feliz. Havia ocasies em que temia que o amor de Hester, por ele, fosse simplesmente gratido por t-la salvado da misria e no uma paixo verdadeira pelo homem, Tom Dilhorne. Eu ainda gostaria que a enfermeira j estivesse aqui. No gosto que fque sozinha. No se preocupe com isso, tenho Miler para me proteger. Diante disso, Tom no insistiu. O dia inteiro, porm, seus pensamentos fcaram presos lembrana dela, agora fechada aos limites da casa, to diferente da Hester que um dia havia sido. A Hester que atirava com pontaria certeira em alvos, corria e saltava enquanto jogavam bola no jardim e na grama. Tinha medo de que nunca mais pudesse reencontrar aquela Hester. Hester estava certa quando dissera a Tom que no fcaria sozinha, principalmente quando Lucy e seus amigos chegaram. Ela no pde deixar de se recordar, enquanto riam e conversavam, como sua vida tinha sido diferente, um ano atrs, quando era uma solitria e negligenciada inquilina da sra. Cooke. E essa transformao to grande era obra de um s homem, e esse homem era Tom Dilhorne, o bicho-papo de seu pai. Pat Ramsey beijou-lhe a mo, antes de partir. Foi uni prazer visit-la, porm temo que tenhamos dado muito trabalho a voc. No, de forma alguma retrucou Hester. Foi um prazer para mim tambm, particularmente depois que Tom me contou que o Regimento logo receber ordens de mand-lo para casa, e, ento, ns o perderemos de uma vez por todas. A casa pareceu estranhamente silenciosa depois que todos se foram. Hester, contudo, no se sentia triste por estar sozinha, depois da agitao do dia. Recostou-se, pensando na admirao que os ofciais haviam demonstrado a ela, a despeito de sua condio, e fcou a imaginar o que teria sido sua vida se Parker a houvesse olhado assim, antes que se casasse com Tom. O que era um pensamento estpido, concluiu. Tom era o responsvel por sua transformao. E, pela primeira vez, pensou no pai e na me sem rancor ou lstima pelo tratamento que recebera deles. Se tivesse cuiidado dela, Hester jamais o encontraria. Nunca teria conhecido a excitao e a paixo de viver ao lado de um homem difcil, exigente e complexo, que lhe pedia apenas, apenas!, que fzesse par com ele e o tratasse em condies de igualdade. Ainda que, ao mesmo tempo, quando estava abatida, como agora, cuidasse dela sem egosmo. Tom teria fcado ali, se no o mandasse tratar de seus negcios. A tarde caiu e, ento, veio a noite. Miller assumiu seu posto, no hall. Percorreu o interior da casa para ver se tudo estava bem, antes de se postar na entrada. Hester cochilou por algum tempo, e foi acordada por um rudo. Tom, era Tom, voltando. Um sorriso de prazer curvou-lhe o canto da boca. Saiu da sonolncia e dirigiu-se a uma mesinha lateral para colocar um dedo de brandi em um clice, para ele, e serviu-se de um copo de gua. Estava com o clice de bebida na mo quando a porta se abriu. O homem que entrou no era Tom. Diante da surpresa, ela deixou cair o clice. A bebida esparramou-se, manchando o delicado tapete chins. Que pena, minha cara disse Jack Cameron, uma pistola no cinto, outra na mo, apontada para ela. Sente-se, querida continuou. E se cair na tentao de chamar aquele seu co de guarda para ajud-la, eu no irei machuc-la, mas atirarei nele como faria a um animal. Depositou a pistola na mesinha diante da lareira e puxou uma cadeira para que Hester se sentasse, fazendo-lhe uma reverncia com um respeito que, a princpio, ela pensou que fosse uma caoada, at que suas maneiras e seu olhar a convenceram que tudo era terrivelmente sincero. Ele se afundou em uma outra poltrona do lado oposto e tirou a pistola do cinto, colocando-a sobre a mesa, enquanto segurava a outra, pendente, da mo. Apontou-a para a porta. Hester o encarou. Estava surpresa com o prprio autocontrole. At mesmo sua voz era frme, quando perguntou: O que est fazendo aqui, capito Cameron? Oh, gosto disso! ele exclamou, abrindo um largo sorriso. o que poderia esperar de uma verdadeira dama, como voc. Nada de Jack Guinu, nem a maneira irnica com que aquele seu maldito marido fala comigo. Ele fez uma pausa, o rosto retorcido. Vim para mat-lo. De preferncia, na sua frente. Mal conseguia olhar para o ventre intumescido de Hester. Era o que Hester queria saber desde o momento em que vira que ele estava armado. Por essa razo estava to calma. O homem pretendia matar Tom, e ela precisava evitar que isso acontecesse. Descubra como, era o que Tom diria. Recordou-se de que ele, certa vez, mostrara-lhe alguns truques de mgica e falara sobre a importncia de desviar o foco da ao. Pois bem, tentaria desviar a ateno de Jack, se pudesse. Como entrou aqui? Gosto disso, tambm. Voc fria, minha querida. Muitas mulheres teriam um ataque histrico, a essas alturas. O desqualifcado de seu marido no merece um tesouro como voc, Hester. Ela soube, ento, que ele no usava de ironia, que sua admirao era real, no uma farsa. Tremeu, diante dos olhos que a acariciavam. Como entrou, passando por Miller e os guardas, l fora? Eu no passei ele retrucou, com um leve sorriso, encantado com a prpria esperteza. Estou aqui dentro desde o meio-dia. Ningum estava preocupado com quem entrava ou saa, ento, e a casa grande. Estava espreita e observei aquele maldito bajulador, Ramsey, chegar com seus acompanhantes, e vi quando foram embora. Oh, tenho sido paciente, tudo por uma boa causa. Por que deseja matar Tom? Ele o machucou, eu sei, mas voc disse coisas horrveis sobre ns. Voc devia ter esperado que ele agisse assim. Oh, meu amor disse ele, com a voz alterada ,se ele no tivesse se casado com voc, eu poderia at deix-lo viver, mesmo tendo me humilhado alm dos limites e provocado a minha runa. Mas, no posso, se ele a tem. No suporto pensar que aquele bruto partilha de sua cama. No pode sentir-se assim, capito Cameron. Voc sempre me julgou uma coisa feia e fez de tudo para que eu soubesse que me via dessa forma. Oh, por Deus, como eu pude ser to tolo e no ver que prola, que tesouro voc era. Voc tem me assombrado desde o baile. Tem sido um calvrio v-la com ele. E agora, olhando para voce assim... indefesa... e doente... Ele merece morrer pelo que lhe fez. Est enganado, capito Cameron. Ele no fez nada a mim. Quero meu beb tanto quanto ele. Deve me matar tambm, se deseja tirar a vida de Tom por causa na criana. O rosto de Jack se retorceu, de novo. Oh, Hester, certamente que a matarei, mas no a magoaria jamais. Ele a corrompeu, eu sei, mas isso vai passar. Ele me arruinou, pois tenho certeza de que foi ele que informou OConnell sobre mim. Aquele idiota do OConnell disse que no foi ele, mas eu sei que foi. Ele pegou Kaye em Paramatta, e Kaye deu com a lngua entre os dentes. Ento era isso. Jack Cameron era o problema que atormentava Tom, todo o tempo. Ela estava certa quanto a Paramatta, tambm. Oh, Tom, por que no me contou? Por que carregar todo esse fardo, sozinho? Seu olhar, porm, sobre Jack, permaneceu frme e nada deixou transparecer. Ele no estava to fora de si que no percebesse que o que havia dito a tocara. Balanou a cabea, como para aclarar os pensamentos. Dizem que ele conta tudo a voc. Boa piada, essa. O espertalho do Dilhorne partilhando suas falcatruas com a jovem esposa, ora essa... Vejo que no bem assim, que no lhe contou sobre mim. No, ele no me contou. Tem certeza de que quer acrescentar o assassinato lista de seus outros crimes? Isso, certamente, no vai ajud-lo. No, no vai, mas me sentirei melhor quando atirar nele e livr-la daquele sujeito. Se no posso t-la para mim, Dilhorne tambm no a ter. Ento, poderei dormir em paz. Faa-o continuar falando, disse o Mentor de Hester, subitamente retornando vida, depois de uma longa ausncia e falando com o tom de voz de Dilhorne. Mudana de foco, lembre-se, sempre funciona. Ele no sabe que voc uma esplndida atiradora. Vai pensar que voc tem medo de armas. Hester quase meneou a cabea, concordando, enquanto a voz continuava: se voc se apossar da pistola sobre a mesa, lembre-se de apontar para o peito e no para a cabea, se quiser mat-lo. Sim, ela respondeu mentalmente, com frmeza, quando a voz se calou. Eu vou mat-lo, se com isso puder salvar Tom. Porm, tenho que apanhar a pistola, primeiro. A arma estava diante dela, sobre a mesa. Era inacessvel, no momento, os olhos de Jack estavam continuamente sobre ela. Era bvio que o capito estava no limite da sanidade e poderia at mesmo disparar se pensasse que ela pretendia ajudar Tom. Hester fechou os olhos. Sua vida no valeria nada, se Cameron matasse Tom, mas tinha o beb a considerar. Se no fosse pelo flho, poderia se arriscar. Pensando, Hester, minha querida? Sim. Estava imaginando como voc pde descer a esse ponto. Deve ter sido, realmente, por minha causa. Oh, Hester, eu estava cego, cego! Se eu, pelo menos, soubesse como era voc, na verdade, eu teria feito de tudo para que se interessasse por mim, no por ele. Jamais voc teria se casado com aquele porco. Era intil tentar usar da razo para com ele. Jack estava transtornado. Sua louca adorao por ela poderia ser at divertida, quando comparada a ojeriza anterior, se no fosse to perigosa. Os deuses deviam estar rindo de uma tal reviravolta, se que no a tinham planejado para se divertirem. O silncio de Hester deixou Jack irritado. Fale comigo, Hester, pois Dilhorne no deve demorar, agora. Implore por ele, embora nada do que diga possa salv-lo. No ela respondeu, calmamente. No o farei. No? Ento, sirva-me um drinque, querida, como estava servindo para ele quando eu cheguei. Esperar d sede. Se voc fosse minha esposa, eu no a deixaria sozinha, noite. Mas eu no sou sua esposa, capito Cameron. E nunca serei, e matar Tom no vai mudar isso. Ela se levantou e caminhou para o aparador. Ele ergueu a pistola, acompanhando o trajeto desengonado de Hester, e mirou nela, enquanto ela colocava o brandi em dois copos. Um barulho, l fora, alertou-o. Est ouvindo o porco, chegando? As mos de Hester, servindo a bebida, continuaram frmes, e seu rosto, ao voltar, era calmo e sereno como se estivesse oferecendo um ch ao visitante. Ela no fez meno de responder. Colocou o copo na mesa, diante de Cameron. Ficou a observ-lo beber, em um s gole desesperado, o que despertou nela a triste recordao do rosto de seu pai. Outro? ela estendeu o outro copo e, sorrateiramente, moveu a pistola para mais perto. Jack, com os olhos fxos nela, no percebeu a manobra disfarada. No, voc quem deve beber disse, empurrando o copo de volta. Agora, a voz de Tom ecoava no hall, dispensando Miler do trabalho e mandando-o de volta a seus aposentos. Hester suspirou. Esperava poder agir quando Jack fosse distrado pela chegada de Tom, mas o louco ainda a observava de perto. Pior, o corpo pesado a impedia de tentar um movimento sbito para apanhar a pistola. Fixou os olhos no inimigo, quando a porta se abriu e Tom entrou. A princpio, no se deu conta da presena de Jack, pois a sala estava em sombras. Ora, meu amor ele falou. Ainda acordada, e no escuro? No devia ter fcado esperando por mim... Ento, de sbito, todos os seus piores temores se confrmaram, e ele viu Jack, com um sorriso horrvel no rosto, a pistola agora apontada para Hester. O que est fazendo aqui, Cameron? No avanou, fcando imvel, no mesmo lugar. Entretendo sua esposa e esperando por voc, Dilhorne. Balanou a pistola. Como v, vim mat-lo. No muito esperto de sua parte, Jack. Ser enforcado, se o fzer. Conversa fada, no ? Sem tirar os olhos de Jack, Tom comeou a se mover, contra a parede, para perto de onde Hester servira as bebidas. Fique parado, Dilhorne. Quero olhar bem para a sua cara antes de acabar com voc. No devia ter se casado com Hester. Eu poderia deix-lo viver se no houvesse feito isso. Tom percebeu claramente que Jack estava na linha divisria que separa a sanidade e a loucura. Se era uma condio temporria, ou permanente, no podia dizer. Olhou para Hester, que estava de costas, os olhos focalizados, ainda que Tom no soubesse, na pistola em frente a ela, to perto e, ao mesmo tempo, to longe. Ela no pretendia agir sem a certeza de que nada precipitaria a ao de Jack contra Tom. Meu Deus, pensou, d-me uma chance, e eu saberei aproveitar. Voc no est ferida, est, Hester? perguntou Tom, ignorando o maluco. No, s assustada. A voz de Hester era fria e controlada. Ela corajosa, Dilhorne disse Jack, com admirao. Voc no a merece. Sei disso retrucou Tom, falando em tom natural, para no provocar Jack. Voc no a machucaria, no verdade? Eu? No! Eu no a deixaria cair no meio do mato... Tom comeou a deslizar lentamente em direo ao aparador. Se conseguisse fcar por baixo dele.. - Na verdade, marido e mulher calculavam os prs e contras para neutralizar Jack, enquanto o mantinham preso conversa e cego a seus propsitos. Como se tivesse pressentido esse jogo de gato e rato, Jack ergueu a pistola, apontou-a para Tom e disparou. Dilhorne, adivinhando a inteno pelo brao estendido, lanou-se para debaixo do aparador, a bala atingindo-o quando desapareceu da vista. Hester, enquanto isso, aproveitara a oportunidade, quando Jack se voltara, afastando a ateno tanto dela quanto da arma sobre a mesa. Apossou-se da pistola no momento em que ouviu o estampido do tiro e o barulho da queda. Soltou um grito desesperado de angstia e desespero. Voc o matou, voc o matou! Jack deixou caiu o brao e virou-se, sorrindo: Com prazer, Hester, com prazer. Jogou a pistola fumegante sobre a mesa. Hester, as mos escondendo a arma que havia apanhado, levantou-se, empurrou a cadeira atrs de si com o p e, antes que Jack entendesse o que estava acontecendo, deu dois passos para trs, frmando-se como Tom havia lhe ensinado e como fzera tantas vezes, nos exerccios de tiro. Usando ambas as mos, ergueu a pistola e apontou-a para o peito de Jack. Cameron, que se deleitava com uma alegria selvagem ao ver Dilhorne caldo, subitamente se deu conta de que a morte o espiava pelo cano de sua prpria pistola, e de um ngulo fatal. De semblante plido, olhos faiscando, Hester o encarou, as intenes claras em seu rosto. Voc matou Tom, e vou mat-lo por isso. As mos de Jack se levantaram, em um gesto involuntrio. Deu uni passo em direo a ela. Era bvio que ela pretendia fazer o que dizia. A posio de tiro dizia a ele que Hester tinha o conhecimento e a habilidade para atirar. No, por favor, no! gritou roucamente. Os dedos de Hester fecharam-se sobre o gatilho. Armou o co. Tom, ferido, mas no morto, levantou-se por detrs do aparador e gritou: No, Hester, no! No atire. Hester disparou. CAPTULO XV O ecoar do tiro permaneceu no ar por alguns instantes. E, ento, fez-se o silncio. Cameron baixou as mos, tateando o corpo, desorientado. No estava ferido nem morto. No derradeiro momento, ao ouvir a voz de Tom, Hester atiram por cima da cabea de Jack, atingindo o painel de cedro. Ainda segurando a pistola, a fumaa esvaindo-se de seu cano, de rosto plido como a cera, ela caiu na poltrona, seus olhos fxos em Tom, que caminhava do aparador at onde ela estava. Tinham olhos apenas um para o outro. Jack Cameron fora quase esquecido. viso dos dois, juntos, o dio e o desejo de vingana, que aos poucos haviam arrastado Jack loucura, esvaram-se, e com eles, sua obsesso por Hester. Oh, podia admirar sua coragem e sua beleza, mas no permitir que isso o desencaminhasse para os excessos da ira e da insanidade. Sentiu apenas um amargo ressentimento por estar vivo. Sabia que somente o comando de Dilhorne havia feito com que Hester se desviasse do alvo e o tiro no o atingisse no peito, lanando-o ao cho. O pior, muito pior, era dever a vida piedade de um membro da escria emancipista. Exausto, esgotado, Jack foi invadido por uma sbita e terrvel constatao: no havia ningum, no mundo inteiro, que gostasse dele o bastante para matar por ele, mesmo para proteg-lo, ou por vingana, como marido e mulher haviam acabado de mostrar que estavam preparados para fazer, um pelo outro. Tom lanou-se de joelhos, perante Hester, sem se importar que o sangue de seu ombro ferido manchasse seu vestido. Abraou-a, com o outro brao so. Hester comeou a chorar. Soluos a sacudiam e, entre eles, repetia o nome de Tom, incessantemente. Pensei que ele o tivesse matado murmurou, por fm. Eis a, a minha garota corajosa Tom falou com doura. Psiu... estamos salvos agora. Ps-se a embal-la, como uma criana. Eu o teria matado ela continuou , por voc. Gradualmente os soluos cessaram, e ela recostou-se contra o peito do marido, exausta. Jack Cameron deu alguns passos e afundou na cadeira, a mesma que ocupara antes. Seu rosto tambm estava plido. A pistola descarregada jazia a sua frente, mas ele era incapaz de recarreg-la ou, na verdade, de fazer qualquer gesto. Em confuso, imaginava o que estaria fazendo ali, naquela sala estranha, nos limites do mundo que conhecia, observando um homem e uma mulher que no se davam conta de sua presena. Olhou vagamente para Tom que, agora que se assegurara que Hester estava calma, tomara a pistola da mo da esposa e a colocara sobre a mesa. Saia ele disse a Jack, sua voz quase indiferente. Retire-se daqui. No gritou Hester, reagindo. No, Tom! Ele tentou mat-lo. Ele o feriu. Voc no pode deix-lo ir. Ele tentou sosseg-la. Meu amor, precisamos ser sensatos. Nenhum de ns deseja ir corte para punir este salafrrio. Ele j foi sufcientemente punido. No me matou e deve sua vida a mim, pois, se eu no houvesse gritado, voc o teria atingido e no ao teto, e ele estaria, agora, morto aqui no cho. Hester mostrou-se infexvel, como uma tigresa, defendendo o companheiro e q, cr~a ainda no nascida. Ele deveria ser enforcado. Eu quero que seja enforcado. Ele pensou que o havia matado. Ficou feliz. Disse isso. Tom acariciou-lhe o rosto. Calma, minha querida. Foi minha culpa tambm. Meu orgulho por minha esperteza provocou essa reao. Estava tentando proteg-la, e o amor transtornou meu julgamento. Voc no deve incorrer no mesmo erro. Encarou Jack de novo, o semblante fechado. V embora, antes que eu mude de idia. Vou enviar-lhe as promissrias pela manh, e voc poder queim-las. No quero nada de voc. Sua carreira terminou porque eu o pressionei demais. Meu ombro ferido pagamento sufciente. As pernas de Jack amoleceram. Lutou para equilibrar-se, apoiando-se na mesa. Voc quer que eu o agradea por me salvar? O sarcasmo era dbil, mas, mesmo assim, estava l. No. No quero nada de voc, nem qualquer gesto de gentileza. Saia e fque longe de mim e dos meus no futuro. No contarei nada do que aconteceu aqui a ningum. No quero vingana. Volte ao quartel antes que dem por sua falta. Jack era um homem derrotado, pensou Tom. Voltou-se, dando-lhe as costas e beijando Hester nos cabelos. Ela ainda estava em choque, vtima de forte reao por tudo o que passara. O amargo ressentimento que, pouco antes, havia invadido Jack Cameron, envolveu-o de novo. Sua carreira militar estava acabada, seu futuro era negro, e ele fora esbulhado por um ex-condenado que, sabia-se l como, tivera a sorte de obter um amor que a maioria dos homens apenas sonhava em ter. Que mulher mataria por ele? Nem Tom nem Hester o viram sair. Hester tremia violentamente. Acabou! exclamou Tom. Ele um homem derrotado. At deixou para trs suas pistolas. Vou providenciar para que sejam devolvidas, sem que OConnell descubra o que ele tentou fazer. Gradualmente, ela se acalmou sob as mos suaves e carinhosas do marido. O corao de Tom estava cheio de amor por ela. Estranhamente agradecido. No apenas por ter sido salvo da morte, mas porque a atitude de Hester havia revelado a fora de seus sentimentos para com ele. Diga-me, meu amor, voc realmente o teria matado? Gosta tanto assim de mim? H momentos em que temo que tudo o que sinta seja gratido, que eu me engane ao pensar que pode me amar, um bruto como eu. Oh, sim disse Hester, e no poderia haver dvidas quanto sinceridade de sua voz. Eu o amei desde que entrou na sala do Conselho, para me entrevistar. Quando brigamos, depois do baile, voc me disse isso e tinha razo. Eu no sabia, ento, mas tenho pensado nisso desde essa ocasio. Eu no sabia o que era amar algum ou ser amada. Foi somente depois que nos tomamos marido e mulher de verdade que comecei a entender o que eu queria de voc, desde o primeiro momento em que o vi naquele belo colete com os paves. Pensei, a princpio, que era medo o que eu sentia, mas, ento, subitamente, percebi que era amor, que voc se tomara meu mundo. Ela o abraou. Sim, eu o teria matado. Por voc, apenas e to somente por voc. Tom fcou em silncio. Hester repetira a frase que dissera a ela, na discusso. Cabea baixa, as palavras saram de sua boca, e ele disse a Hester aquilo que jamais pensara em dizer a algum: Eu no a mereo, ou o seu amor, Hester. Sou um homem mau, ardiloso, duro e cruel. Cameron tem razo em me odiar. Eu atirei no pobre Kaye no ombro, quando estava em p, indefeso, diante de mim. Fiz outras coisas, ainda piores, terrveis. Sei disso ela retrucou simplesmente. E no importa. Eu o amo, tudo que sei e que me interessa. O resto nada! Sei que voc foi gentil comigo, a princpio, porque isso o divertia. Apenas a princpio. Mais tarde, percebi que tambm me amava, como eu o amava. Voc me transformou, e, ento, transformou-se tambm. Ela afagou-lhe os cabelos. Por que estamos falando sobre isso, enquanto esse pobre brao precisa de cuidados? O ferimento no foi srio, mas tem que ser curado imediatamente. Voc continua prtica como sempre, amor ele respondeu, beijando-a. Eu lhe direi o que fazer por meu ombro e, depois, mandaremos buscar Alan para examin-lo. Ele no vai falar ou fazer perguntas. Hester foi buscar gua e ataduras, para limpar e envolver o ferimento. A bala no se alojara no ombro, tendo, por sorte, desviado-se do osso. Pouco depois, Tom recostava-se no sof, saboreando o brandi que ela lhe trouxera. Por alguns instantes, ele deixou de ser o observador atento que sempre fora. Fechou os olhos. A dor e o susto o desviaram do fato de que Hester tambm estava sofrendo, e que o sofrimento, em vez de desaparecer, aumentava. O esforo para empurrar para trs a pesada poltrona, e levantar-se to subitamente para confrontar Jack com a pistola, tinha provocado uma dor aguda e penetrante em suas costas. No havia pensado em nada naquele instante, atribuindo isso ao movimento violento e ao peso do corpo. Mais tarde, quando trouxera a bacia com gua para limpar o sangue do ferimento, do cho e da parede, a dor voltara de novo, desta vez mais forte. Ela precisou apoiar-se na mesa, para suport-la. Se no fosse nas costas, ela teria sabido que o beb estava prestes a nascer. Contudo, sups que fosse mais um dos desagradveis sintomas de sua difcil gravidez. At que, caminhando at onde estava Tom, para verifcar se estava confortvel, foi tomada de uma dor to forte que a obrigou a se agarrar ao brao da cadeira. Deixou escapar um gripo estrangulado. Tom arregalou os olhos e agarrou-lhe o pulso com a mo boa. Hester? O que houve? Minhas costas ela murmurou, com uma voz abafada. unia dor horrvel. Quando comeou? Diga depressa, querida pediu ele, levantando-se. Ela o ftou, assustada. Eu me machuquei quando pulei para pegar a pistola de Jack e empurrei a cadeira para trs, com fora. Mas, no pode ser o beb. A dor nas costas, e o beb ainda no est pronto para... oh! Ela quase caiu sobre ele, dobrada por uma pontada ainda mais forte. Meu Deus, mas o beb, Hester! Depressa, precisamos lev-la para cama, e Alan tem que vir at aqui, imediatamente. Se eu no estivesse ferido, poderamos nos arranjar sem ele. Fiz o parto de mais de uma criana no transporte. Mas isso! Oh, Deus! No temos nem mesmo uma enfermeira! Hester nunca vira Tom to descontrolado. A dor no ombro ferido e sua preocupao para com ela o estavam deixando desarvorado. Tentou peg-la no colo para subir a escada, mas ela o impediu. Oh, no, por favor, voc pode me deixar cair. Posso andar sem sua ajuda. No tente fazer mais do que pode, Tom. Pense em seu brao. Dane-se meu brao! Ele insistiu em ajud-la a subir a escada, segurando-a cada vez que a dor a invadia, o que acontecia a intervalos cada vez mais curtos. Mesmo no auge da agonia, Hester no podia deixar de pensar que par ridculo os dois faziam: um homem ferido e uma mulher grvida, com unia barriga enorme, arrastando-se escada acima. Finalmente, Tom conseguiu lev-la at o quarto e deitou-a na cama. Fique ai disse como se ela pudesse ir a alguma outra parte! Vou acordar Miler e mand-lo buscar Alan. Deus ajude que ele chegue a tempo. Ela o ouviu descer a escada correndo, chamando por Miller, pela sra. Hackett, pela criadinha. Por que no a cozinheira? Hester pensou, em meio vertigem, e, ento, todos seus pensamentos se dissolveram em uma dor ainda mais intensa. Agarrou-se aos lenis e mordeu o travesseiro. No vou gritar! No vou!, o estoicismo de anos estava de volta. Quando Tom retomou, tinha posto um casaco para proteger a bandagem do ombro, e carregava toalhas e lenis limpos. A sra. Hackett est colocando gua para ferver. Acha que chegou a hora. Sente-se, precisamos tirar sua roupa, meu amor. Voc disse que queria que eu estivesse com voc quando o beb nascesse, e sua vontade ser feita. Ele a ajudou a vestir uma camisola, sem saber que seu rosto e o dela, estavam lvidos com o esforo. Torceu um lenol, arrastou uma poltrona para perto e amarrou uma das pontas em torno de um dos braos. Deu a outra ponta a ela. Puxe quando as dores vierem, querida. Vai ajudar a suport-las. Hester ftou-o, olhos arregalados, e murmurou, em uma voz quase inaudvel, antes que nova onda de sofrimento a assolasse: Existe alguma coisa que no possa fazer, sr. Dilhorne? Ele tomou-lhe a mo e beijou-a. No posso sofrer a dor em seu lugar, meu amor, ou faria isso. E nosso primeiro flho. Alan sempre me disse que demoram mais a nascer, de modo que ele deve chegar a tempo. Agora, beba isso, sra. Dilhorne. Vai ajud-la a se sentir melhor. Estendeu-lhe um copo de brandi puro, que ela bebeu, obediente. No fundo da memria, lembrou-se do brandi que tinham bebido juntos, em sua primeira noite de amor. De novo, um espasmo violento sacudiu-a. Sob o efeito da dor e da bebida, passado e presente se confundiram, e ela se viu sozinha, na sala da sra. Cooke e, logo depois, estava com ele, nas longas noite de amor que desfrutavam. O tempo se arrastava. Tom ftou-a, enxugando-lhe o rosto molhado de suor, embora ela mal se apercebesse de sua presena. Finalmente, ela relaxou, pegou-lhe a mo e disse, em uma voz sumida: Voc nunca vai saber quanto me fez feliz, Tom. Havia algo, em seu modo de falar, que soava como se Hester estivesse se despedindo. Tom estremeceu, ao pensamento. Filho nenhum valia a perda de sua amada esposa e, pela primeira vez, ele viu, diante de si, uma vida vazia e sem fnalidade, se a perdesse. Agarrou-lhe a mo, e deitou o rosto sofrido sobre a palma. A sra. Hackett entrou, com a gua quente. A piedade assomou a sua face, endurecida pelos anos. No havia dvidas de que ele estava sofrendo com a agonia da esposa. Logo depois, ela voltou, com toalhas secas e velas novas, e disse a ele que descansasse um pouco, enquanto ela cuidava de Hester. As dores vinham, agora, em ondas mais violentas e a intervalos cada vez mais breves, sinal de que a criana estava prestes a nascer. Porm, quando Tom a ajeitou sobre os travesseiros e chamou a sra. Hackett para ajud-lo no parto, nada aconteceu, embora Hester cooperasse, fazendo fora. Ele j havia visto isso ocorrer antes, e no era nada bom. A esperana ameaava abandon-lo, quando ouviu o barulho de uma carruagem parar na entrada da casa. Alan! Atordoado, quase prestes a perder a conscincia, Tom correu escada abaixo para saudar o amigo, que tinha Sarah a seu lado, ela que sempre atuava como enfermeira nos partas. Por Deus, Alan gritou, antes de lev-lo ao quarto. Algo est errado, se no estou enganado. Todos os pais pensam assim foi a resposta calma de Alan. Deixe-me examin-la. Alan foi minucioso em seu exame. Seu semblante denotava preocupao. Mais tarde, quando a criana ainda no dava mostras de querer nascer, comeou a fcar afito. Tinha visto que Tom estava com o brao ferido e, deixando Hester com Sarah, levou-o para outro aposento. Examinou-lhe o ombro e disse ao amigo para que tentasse descansar. No, no posso deix-la. Voc no pode ajud-la, mesmo que fque a seu lado disse Alan, com tranqilidade. No vou esconder o fato de que ela est muito fraca e temo por ambos, por ela e pelo beb. Se houver uma emergncia, a quem devo salvar, a me ou a criana? Tom afastou-se, com violncia, de perto do amigo. Por Deus, Alan, que pergunta! A me, claro. No posso perder Hester. Voc no pode imaginar o que ela estava disposta a fazer por mim, esta noite. Posso adivinhar murmurou Alan, que ouvira os delrios de Hester. Vou fazer o melhor que puder para os dois, e para voc. Mas, o problema est fora do alcance de minhas mos. Em um parto, Deus pe e dispe. Se a situao fcar desesperadora, prometo que mando cham-lo. Banido do lado de sua Hester, seu amor, sua estrela e razo de seu viver, Tom percebeu que sua vida no teria mais sentido se ela morresse, e tudo que conquistara se transformaria em cinzas. Desabou sobre a cadeira, o rosto entre as mos. Tinha se casado com ela quase como uma brincadeira, julgando que ela era apenas uma coisa a mais que adquirira em seu caminho rumo ao poder e a dominao. Agora, era ela quem o possua. Eram almas gmeas que o destino havia unido, e, se Hester morresse, o que seria de Tom Dilhorne? Dentro do quarto, Alan e Sarah uniam esforos para salvar pelo menos Hester, se no fosse possvel salvar o beb. Era o que parecia prestes a acontecer, Alan percebeu, com tristeza. Sarah saiu do quarto e deparou-se com Tom, no corredor, o ombro so apoiado contra a parede. Seu rosto era inconsolvel. Oh, Tom, pelo menos, sente-se disse ela, apavorada com sua aparncia. Est se deixando abater sem motivo. Nada est consumado. No, no enquanto Hester sofre essa brutal agonia. Oh, meu Deus, oh, Sarah, eu sou um bruto egosta, e ela to frgil. Ela sabia quanto eu queria um flho. Nunca, nesses meses todos de sofrimento, reclamou. No perca a esperana Sarah insistiu. Alan acha que pode salvar os dois. O parto nunca fcil, na maioria das vezes. Mas, trata-se de Hester! Nunca me importei tanto com algum, antes, e no h nada que eu possa fazer para ajud-la, nada! Se eu pudesse, suportaria todas as penas, mas no posso... Meu corao vai se partir se eu perd-la. Comeou a soluar, o rosto escondido entre as mos, o corpo tremendo sob a violncia de sua dor. Sarah nunca havia pensado em ver Tom Dilhorne, o homem duro e frio, assim, to acabado. Engoliu em seco. No prprio de voc, Tom, que eu tenha que lhe dizer que seja corajoso. No, como pode ver, estou arrasado. Agarrou-a pelos punhos com tamanha fora que ela quase gritou. Tem de me prometer que, se algo sair errado vai me deixar entrar. Preciso estar ao lado dela. Claro. Precisa confar em ns, Tom. Precisa confar em Deus. Se acontecer o pior, ns o mandaremos chamar imediatamente. A noite avanou. Lentamente, Hester comeou a defnhar. O sofrimento a consumira por to longo tempo que estava fraca e debilitada a ponto de resvalar para a inconscincia. Uma onda de paz a inundou, nem a dor, nem a alegria, nem qualquer sensao a tocava. Seu Mentor, despertado pelas ameaas de Jack Cameron, havia-a ajudado no princpio, mas silenciara diante da prolongada agonia. Os clamores da fora de vontade e do ego haviam silenciado, tambm. Alan, baixando os olhos para ela, viu um semblante resignado e de aceitao pacfca, que j presenciara anteriormente. Percebeu que ele a estava perdendo para a morte. Sarah, do outro lado da cama, tambm percebeu. Seu rosto transformou-se em uma mscara de pesar. Perguntou ao marido: Devo trazer Tom? No! exclamou Alan, com violncia. Ainda no. No vou falhar com eles. Pelo menos, tentarei salvar Hester. Ao ouvir o nome do marido, Hester abrira os olhos, para fech-los, logo em seguida. Alan, inclinando-se, colocou as mos sob o corpo de Hester, ergueu-a para uma posio sentada na cama, e apoiou-lhe a curvatura da coluna com uma almofada. Hester! chamou imperioso. Olhe para mim. Ela abriu os olhos. Ele no queria que se fechassem outra vez. Faa o que eu mando. Por Tom e pelo beb. Tom e o beb, murmurou seu Mentor, ganhando novamente a vida. Pense em Tom e no beb. No durma. Dormir morrer. Lembre-se, Hester, Tom e o beb. Voc quer ver o beb, e ver Tom com o beb, no quer? A princpio, Hester quis ignorar a voz incisiva. Acordar, voltar vida, signifcava sofrimento e dor. Tudo o que queria era paz, libertar-se do sofrimento. Tom no gostaria que ela sofresse. A voz insistiu, novamente, mais alta e mais forte. Pense em Tom e no beb. Voc no quer deixar seu marido sozinho, quer? Lembre-se de quanto o ama. Sim ela respondeu, com uma voz to fraca, que Alan mal a conseguiu ouvir , eu me lembro. Quero ver Tom outra vez, e o beb. Segure as mos de Sarah disse Alan, encontrando os olhos dela que agora pareciam reconhecer que ele estava ali, a seu lado e, ento, quando a dor voltar, no a reprima, no a ignore. Grite, Hester, grite to alto quanto puder. Aceite a dor, associe-se a ela e, s assim, eu posso ajud-la. Enquanto ele falava, a dor veio de novo, to violenta que parecia emergir das profundezas de seu prprio ser. To poderosa que Hester pensou que s partiria em duas. Um primeiro grito escapou, o grito continha a mesma angstia daquele que soltara quando pensara que Jack Cameron havia matado Tom. Como Alan disse mais tarde, era seu estoicismo que a estava destruindo. L fora, Tom enterrou o rosto entre as mos horrorizado. L dentro, Sarah caiu sobre Hester, com a fora com que esta a agarrou. Alan berrou, vendo que um novo espasmo a sacudia: Vamos, fora! timo! De novo! Voc quase conseguiu. Empurre, Hester, empurre com todas as foras! Desta vez, ela empurrou, mas no gritou. Sentiu um terrvel alvio, uma sensao incrivelmente estranha, que Alan partilhou com ela de uma forma diferente. Uma cabea pequena, coberta de cabelos negros, saltou para fora. Logo, o corpo acomodou-se na cama, entre as pernas de Hester, berrando desafadoramente. Alan tomou a criana e entregou-a a Sarah. Voltou-se para cuidar de Hester. Deu um grito, de espanto: Por Deus! So dois! Uma cabea coberta com cabelos cor-de-areia aparecia, a razo do tamanho de Hester, sua fraqueza e o prolongado trabalho de parto. A segunda criana nasceu sem difculdade. Sarah enxugou o rosto de Hester, empapado de suor, e colocou o primeiro beb em seu brao direito. Alan ergueu o outro, ainda molhado, tambm berrando desesperadamente, e colocou-o no esquerdo. Dois murmurou Hester deslumbrada. A alegria da maternidade, depois de tanto sofrimento, tomou-a por inteiro. Seu pobre corpo dolorido e a fraqueza terrvel recebiam uma bela recompensa. Dois, sua garota esperta disse Alan , e ambos meninos. No era de admirar que eu estivesse do tamanho de um elefante suspirou Hester, com a voz fraca. Os dois mestrezinhos Dilhorne. Ele j sabe? Oh, quero mostr-los a Tom. Alan vai cham-lo, Hester. E no deve contar que so dois disse Hester, com um toque travesso na voz. Alan, Sarah e Hester diriam depois que a nica ocasio em que tinham visto Tom Dilhorne desorientado foi quando Hester mostrou-lhe os gmeos, dizendo: Tom e Alan. Ele encarou os dois bebs zangados, berrando de fria por terem deixado o ninho quente do corpo da me. Mas, sendo Tom Dilhorne recobrou-se rapidamente, como sempre. Juros compostos, Hester, minha querida. Voc disse que sabia tudo sobre porcentagens, da primeira vez que nos encontramos. Finalmente, quando Alan e Sarah lhe entregaram os dois garotos, aos berros, para que os segurasse, ele exclamou, orgulhoso: Dilhorne & Filhos! Hester, Dilhorne & Filhos. Nome perfeito para uma famlia de sucesso. FIM