O Ser e o Tempo - Dois Ensaios
O Ser e o Tempo - Dois Ensaios
O Ser e o Tempo - Dois Ensaios
criao potica
AGENCIA ESTADO
15 Setembro 2000 | 19h 15
De: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,alfredo-bosi-reflete-sobre-criacao-poetica,20000915p2609
literrias,
aqueles
que
escrevem
projetando
imediatamente
seus
superou o tempo. O sr. no usa essa diviso entre forma e contedo no seu livro.
Assim, foge da tradicional oposio entre formalistas e conteudistas. Sim. Os
primeiros estudos tratam do som, do ritmo do andamento, daquelas caractersticas
que normalmente so consideradas formais dentro da poesia, que so
caractersticas constantes atravs dos sculos. Procuro no s descrev-las,
classific-las, como faz um livro tradicional de teoria literria. A minha
preocupao era mostrar o significado dessas formas, mostrar que os sons tm uma
relao com o sentido, e discuto se essa relao social, cultural. No caso do ritmo,
no estou s preocupado em descrever forte-fraco-forte-fraco, ou forte-fraco-fracoforte-fraco-fraco, aquilo que a poesia tem em comum com a msica. H uma
reflexo sobre o sentido do ritmo, o que significa, que relao tem com a respirao,
o corpo. As mensagens so trabalhadas em determinados ritmos, e isso no
aleatrio: o ritmo tem um sentido. Um ritmo rpido tem um sentido diferente de
um ritmo lento, e o que um sentido? uma expresso. A minha inteno era
mostrar como a forma viva, a forma est em si mesma animada de significado. Eu
no dissocio forma de expresso, s que, didaticamente, eu falo primeiro de forma,
e depois de expresso. A linguagem no como a msica, voc no pode dizer todas
as coisas ao mesmo tempo. A msica tem o canto e o acompanhamento, e a frase
expositiva tem de dizer uma coisa depois da outra. A poesia no contedo, uma
palavra que considero imprpria, expresso articulada na linguagem. A expresso
sem forma o grito desarticulado. No existe uma expresso potica sem uma
correspondente forma potica, uma idia clssica que eu assumo. A questo da
ideologia muito forte no livro. Sim, sobretudo quando falo de poesia de
resistncia, pode haver quem entenda que eu defenda uma poesia abertamente
poltica. Isso no coincide exatamente com a minha proposta. A representao
ideolgica direta apotica, corresponde a um verso que j foi sistematizado por
um pensamento poltico, que um pensamento de ao, no de contemplao.
Poesia uma forma de expresso. Ao passo que a poltica uma forma de ao ou
de conformao. Antonio Gramsci, um revolucionrio autntico e amante de poesia,
dizia que muito comum a pessoa apaixonada politicamente fazer juzos de valor
imprprios quanto a poetas que no seguem a sua ideologia. Gramsci tambm dizia
que a diferena estava no fato de que o poltico (revolucionrio) olha a realidade
para mud-la, a cultura para mud-la. De sorte que h um desencontro quase fatal
porque o poeta est exprimindo, contemplando a realidade, sentido-a. Se o
revolucionrio no levar isso em considerao, vai jogar a poesia de Ezra Pound no
lixo porque ele fez um discurso favorvel Itlia fascista - verdade que logo
depois foi internado num manicmio. E vice-versa: um reacionrio no suportar
Maiakvski, que o tempo todo fala da revoluo. Maiakvski no um poeta de
ao? , mas ele grande por exprimir suas paixes, e no porque tinha uma
bandeira. Havia uma centena de poetas ruins na Unio Sovitica, que tambm eram
revolucionrios. preciso marcar essa diferena: a pura ideologia a morte da
poesia, no suporta que as pessoas sintam o que sintam, ela est numa fase de
impacincia poltica. Isso no significa que a poesia no contenha ideologia, mas o
valor intrnseco de um poeta no deve ser medido pelo grau de adeso a uma
ideologia. Nesse livro, o sr. nunca classifica os autores, em modernos, romnticos
etc. Isso faz parte do pensar a poesia dialeticamente? Sim. As classificaes
histricas so necessrias mas tm um limite. Um grande poeta um grande poeta,
independente de sua poca. Um crtico literrio tem de ir alm da classificao
histrica. Ele pode classificar historicamente, porque a histria se impe. Bilac
um parnasiano. Gonalves Dias um romntico. Mas, como Gonalves Dias maior
que Bilac, vamos estud-lo como poeta, enquanto no caso de Bilac a tendncia
identificar as caractersticas parnasianas. Benedetto Croce dizia que a classificao
s til para os bibliotecrios. Didaticamente, a gente usa at demais. No colegial,
no cursinho, d-se a lista das caractersticas do arcadismo, do romantismo, do
modernismo. O aluno decora e a poesia vai para o brejo, porque nem l o poeta, ou
s o l para encontrar aquelas mesmas caractersticas. Pensa que chegou ao final,
mas est no comeo. Felizmente a universidade vai alm. Uma pergunta de
jornalista: o sr. teria recomendaes a um jovem poeta? Isso lembra Reiner Maria
Rilke. Bom, difcil, porque eu tambm no sou poeta. E as recomendaes tm de
ser aquelas fundamentais. Primeiro, viver a vida com profundidade, estar sempre
procura do sentido da vida, resistir ao carter descartvel, parar. Deter-se na sua
experincia, seja um amor, uma doena, um sofrimento. Depois, saber o que outras
pessoas fizeram com seus sentimentos, o que os grandes poetas fizeram com sua
matria-prima existencial, para conhecer as formas que a cultura lhe d. E da
comear a escrever. Na verdade, no so conselhos, so reflexes em torno da
criao potica.
http://sombras-eletricas.blogspot.com.br/2008/04/o-ser-e-o-tempo-da-
poesia.html
Um dos livros mais belos e inteligentes de teoria / crtica que j tive a oportunidade
de ler O Ser e o Tempo da Poesia, de Alfredo Bosi. uma obra que focaliza a
Literatura, mas a erudio e o interesse humanstico do autor fazem-na transcender
para todas as outras formas de arte e expresses da cultura humana: msica, artes
plsticas, religio, mitologia, filosofia, psicologia, antropologia e pro que no?
Cinema. Tomo a liberdade de reproduzir abaixo alguns trechos do primeiro captulo
(Imagem, Discurso), que discute a natureza da imagem e o como ela ser
apropriada pelo discurso verbal, particularmente o potico.
A experincia da imagem, anterior da palavra, vem enraizar-se no corpo. A
imagem afim sensao visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol,
do mar, do cu. O perfil, a dimenso, a cor. A imagem um modo da presena que
tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a
sua existncia em ns. O ato de ver apanha no s a aparncia da coisa, mas alguma
relao entre ns e essa aparncia: primeiro e fatal intervalo. Pascal: Figure porte
absence et prsence.
(...)
A Teoria da Forma ensina que a imagem tende (para ns) ao estado de sedimento,
de quase-matria posta no espao da percepo, idntica a si mesma. Cremos fixar
o imaginrio de um quadro, de um poema, de um romance (e tambm, por que
no?, de um filme, acrescento eu). Quer dizer: possvel pensar em termos de uma
constelao, se no de um sistema de imagens, como se pensa em um conjunto de
astros. Como se objeto e imagem fossem entes dotados de propriedades homlogas.
Mas a mesma cincia que nos adverte do engano (parcial) que a identificao
supe. A imagem no decalca o modo de ser do objeto (nem mesmo no cinema,
ouso acrescentar), ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado , a
um s tempo, dado e construdo. Dado, enquanto matria. Mas construdo,
enquanto forma-para o sujeito. Dado: no depende da nossa vontade receber as
sensaes de luz e cor que o mundo provoca. Mas construdo: a imagem resulta de
humana j produziu; mas tal construo, em Francis Ford Coppola, reveste-se (ou
disfara-se) de uma naturalidade assombrosa, de uma verdade axiomtica quase
que metafsica. o momento, dentro da cena em questo, em que uma equipe de
TV filma a chegada dos soldados, enquanto o reprter-diretor (interpretado no por
acaso pelo prprio Coppola) grita aos combatentes para agirem naturalmente,
como se estivessem combatendo, pois para a TV. O humor negro de Coppola, o
bruxo do Cinema. Talvez a resida o poder da imagem no cinema de Coppola: o
poder da epifania.
claro que aqui temos uma epifania negativa, niilista (se que isso concebvel). A
imagem que, disfarando-se de verdadeira, revela-se falsa, est presente no filme
inteiro. Mas no fundo, Coppola no niilista, pois seus filmes so dotados de
grande religiosidade: mas a de um catolicismo jansenista. Nunca, nunca mais me
esquecerei da imagem da missa sendo celebrada no meio do caos ps-batalha: o
padre consagrando a eucaristia para fiis soldados ajoelhados enquanto
helicpteros voam ao redor (um deles rebocando uma vaca viva), a fumaa
colorida e surreal do sinalizadores tomando conta de todo o ambiente do
crepsculo na aldeia praiana recm-destruda, corpos de combatentes e civis
mortos, retalhados, agonizantes, feridos, o Coronel Killgore s pensando em
resolver logo as pendncias para cair nas ondas e surfar...