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Gagnebin, J.M. As Formas Literárias Da Filosofia (Lido)

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In: Lembrar escrever esquecer. So Paulo: Editora 34. 2006.

14.
AS FORMAS LITERRIAS DA FILOSOFIA

Jeanne Marie Gagnebin

Para Salma, isto , uma grande amiga!

O ttulo desta palestra emprestado a uma coletnea preciosa,


organizada por Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht,1 j h alguns anos. Este tema permite um recorte instigante dentro da problemtica muito ampla das relaes recprocas entre literatura e filosofia,
filosofia e literatura. Tal recorte tem a vantagem de no colocar de
antemo uma questo normativa sobre as diferenas, os direitos, os
domnios respectivos dos discursos literrios e filosficos o que
pressuporia ter, a priori, definies claras daquilo que literatura e
daquilo que filosofia para poder, justamente, distingui-las com clareza e determinao. Mesmo que existam definies claras a esse respeito, me parece imprescindvel refletir criticamente sobre a constituio histrica destas definies mesmas, isto , refletir sobre as transformaes histricas destas "partilhas" do saber, como diz Foucault,
sobre as cambiantes definies de "filosofia" e de "literatura", antes
de querer proceder ao estabelecimento de novas distines mais finas.
Uma abordagem bastante comum da problemtica filosofia/literatura consiste em analisar a presena de teorias ou de doutrinas filosficas na obra de um escritor ou de um poeta: por exemplo, a presena de Spinoza em Goethe, de Schopenhauer ou Bergson em Proust,
de Adorno ou Nietzsche em Thomas Mann, de Heidegger em Clarice
Lispector. No nego o interesse dessas anlises quando apontam para
a elaborao esttica de elementos histricos singulares, retomados e
transformados pela escritura literria. Mas trata-se, ento, de tambm
mostrar como se do, na obra literria especfica, tal retomada e tal
transformao, isto , no s quais "contedos filosficos" esto presentes ali, mas como so transformados em "contedos literrios".

1
Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht, Literarische Formen der Philosophie, Stuttgart, J. B. Metzler, 1990.

As formas literrias da filosofia

201

Usei de propsito a noo, discutvel, de "contedo", para apontar o que me parece o grande perigo dessas anlises, a saber: tornar
os filsofos especialistas na inveno de "contedos tericos", mais
ou menos incompreensveis, e os escritores, especialistas em "formas
lingsticas", mais ou menos rebuscadas. Assim, s caberia aos escritores e aos poetas traduzir de maneira mais agradvel aquilo que os filsofos j teriam pensado de maneira complicada ou "abstrata", como
se diz s vezes. No limite, isso significa que os filsofos sabem pensar,
mas no conseguem comunicar seus pensamentos, que no sabem nem
falar nem escrever bem; e que os escritores sabem falar bem, sabem
se expressar, mas no tm nenhum pensamento prprio consistente.
Apesar da descrio caricatural, o leitor certamente concordar que
esses clichs constituem ainda representaes corriqueiras das figuras
e dos ofcios respectivos do filsofo e do escritor/poeta.
A imagem da literatura como sendo uma linguagem bela, mas
vazia, que precisa de "recheio filosfico" para no se reduzir a uma
brincadeira to graciosa quanto ftil, tem seu oposto simtrico numa
representao da filosofia como "pura" atividade intelectual, sria,
profunda, complicada e incompreensvel para o comum dos mortais
(que, alis, passa muito bem sem ela, o que torna questionvel sua
reiterada importncia). Nesta estranha atividade, reservada a poucos,
a comunicabilidade no importa tanto. At no prprio meio filosfico, por exemplo na academia, reina certa desconfiana em relao aos
aspectos formais mais apurados de uma palestra oral ou de um texto
escrito de filosofia. Geralmente, estes aspectos so vistos como concesses ao pblico, ornamentos estilsticos prescindveis, ou, ainda, como
algo meramente metafrico ou meramente retrico. Ora, a afirmao
implcita da existncia de uma dimenso "meramente metafrica" ou
"meramente retrica" repousa numa concepo acrtica, dogmtica
e mesmo trivial das relaes entre pensamento e linguagem: como se
o pensamento se elaborasse a si mesmo numa altivez soberana sem o
tatear na temporalidade das palavras que, no entanto, o constitui. Dito
de maneira mais simples: a concepo da literatura como algo belo,
mas ornamental, superficial, suprfluo, e a concepo da filosofia como algo verdadeiro, mas difcil, incompreensvel e profundo, esses dois
clichs complementares perpetuam, no mais das vezes, privilgios estabelecidos e territrios de poder no interior de uma partilha, social e
historicamente constituda, entre vrios tipos de saber. Assim, os escritores e os poetas poderiam se dedicar ao sucesso e ao entretenimen-

202

Lembrar escrever esquecer

to, enquanto os filsofos continuariam aureolados pela bus<ca i desinteressada da verdade.


Na introduo ao livro citado no incio deste artigo, Gottfried
duas
Gabriel afirma que a filosofia, desde seu nascimento, oscila entre dllftl
formas de saber/sabedoria, entre a Dichtung (a criao potica no sen
tido amplo) e a Wissenschaft, a cincia no sentido mais rigoroso. No
decorrer de sua histria, podemos, ento, observar um movimento
pendular: quando se aproxima demais da poesia, a filosofia envereda
novamente para o lado da cincia e quando esta ltima ameaa
abocanh-la, ela se volta novamente para uma dimenso de sabedoria mais potica. Esta observao tem o mrito de apontar para o estatuto ambguo da atividade filosfica, desde seu incio grego. Mareei
3
Dtienne^ lembra que a figura do filsofo uma formao hbrida,
oriunda da tradio religiosa de sabedoria, em particular do pitagorismo, e, simultaneamente, da afirmao, na polis democrtica, da
dignidade e do poder da palavra racional logos e da autonomia
da organizao poltica. Esta ambigidade tambm pode ser vista como fonte de riqueza; ela perdura at hoje, sob configuraes e refiguraes histricas diversas.
Neste contexto, falar das formas literrias da filosofia adquire
um sentido preciso. No se trata de estudar alguns aspectos formais
episdicos, mas sim de refletir sobre este estatuto ambguo do discurso filosfico e, mais especificamente, de explicitar a ntima relao entre formas de exposio, de apresentao, de enunciao
Darstellungsformen e a constituio de conhecimento(s) ou de
verdade(s) em filosofia. A hiptese de princpio consiste em afirmar
que tais formas no so indiferentes ou exteriores aos enunciados filosficos, mas, como formas de exposio ou de apresentao (Dar-

"Die Philosophie steht von Anfang an zwischen Dichtung und Wissen


schaft. Sie hat nicht nur die Poesie immer wieder ablsen wollen, sie sollte aucfa
ihrerseits immer wieder in Wissenschaft aufgehen. In ihrem Versuch, sich von der
Dichtung zu unterscheiden, hat sie sich verwissenschaftlicht, und in ihrer Sorge,
von dieser vereinnahmt zu werden, hat sie sich poetisiert", Gottfried Gabriel, " 1 111
leitendes Vorwort", op. cit. p. VII. Devemos mencionar aqui que Gabriel n i o
Wittgenstein
discpulo de Heidegger ou de Hlderlin, mas sim especialista em Wittgerutein I
Frege, cuja cadeira ocupa na Universidade de Iena.
3

Mareei Dtienne, Les maitres de vrit dans Ia Grce archaique, Ptril,


Maspro, 1981.

As formas literrias da filosofia

203
'dl

stellung), que participam inseparavelmente da transmisso de conhecimento ou da busca de verdade que visa o texto filosfico.4 Um exemplo torna esta hiptese mais clara: qual seria a "verdade" que almejam os Dilogos de Plato? Se esquecermos a forma literria "dilogo" para procurar estabelecer um "sistema" de afirmaes platnicas
e, a partir delas, extrair algumas proposies essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradies, muitas incoerncias, poucas certezas e poucas evidncias. Mas se levarmos
a srio a forma dilogo, isto , a renovao constante do contexto e
dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de avanos e regressos, as resistncias, o cansao, os saltos, as aporias, os momentos de
elevao, os de desnimo e t c , ento perceberemos que aquilo que
Plato nos transmite no nenhum sistema apodtico, nenhuma verdade proposicional, mas, antes de mais nada, uma experincia: a do
movimento incessante do pensar, atravs da linguagem racional (logos) e para alm dela "para alm do conceito atravs do conceito", dir tambm Adorno. 5
O movimento auto-reflexivo da filosofia sobre seu carter de linguagem, seu carter lingstico no sentido amplo do termo, isto ,
sobre sua forma literria, permite, em termos de histria da filosofia,
uma leitura renovada, mais atenta singularidade dos textos. Gottfried Gabriel cita o exemplo do texto da "prova ontolgica": quando
se lembra que o escrito de Anselmo um tipo de orao (proslogion),
o carter de prova (onto)lgica no desaparece, mas passa a ter um
outro peso, porque tratar-se-ia aqui muito mais de confirmar a prpria f do que de provar logicamente a necessidade da existncia de
Deus. Poderamos tambm dizer que ler o Zaratustra de Nietzsche como um poema teatral, com indicaes de ritmo e de palco, suscita uma
nova compreenso do papel dos animais ou mesmo do alm-do-homem. Sem falar de todos os mal-entendidos oriundos de uma leitura
que faz do Tractatus de Wittgenstein um manual de epistemologia, ou
das Teses de Walter Benjamin, lies de filosofia da histria.

4
Gottfried Gabriel, "Literarische Form und nicht-propositionale Erkenntnis
in der Philosophie", op. cit., pp. 1-4.
5

"Die Anstrengung, ber den Begriff durch den Begriff hinauszugelangen."


Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1970, p. 25.
6

204

Gottfried Gabriel, op. cit., p. 16.

Lembrar escrever esquecer

no tira

A auto-reflexo da filosofia sobre sua "literalidade" 11,10 11.1/


apenas proveitos metodolgicos ou hermenuticos. Mais do c|iic isso,
acompanham
a
firemete a trs conjuntos de questes que sempre acompanli.ii.nn .1 li
losofia, desde seu nascimento em Plato cuja obra pode ser vista
como o palco privilegiado deste embate. Trata-se de questes ligadas
filosofia enquanto gnero discursivo diferente de outros gneros
discursivos em vigor.
Na poca de Plato, a filosofia tentava se distinguir de dois tipos principais de discursos muito importantes do ponto de vista cultural e poltico em Atenas: primeiro, a poesia pica e trgica encarnada por Homero (a poesia pica), o Mestre da Grcia, estudado pelos
meninos em seu aprendizado de futuros cidados; e por Sfocles e
Eurpides (a poesia trgica), encenados anualmente para o conjunto
dos cidados (as crticas de Plato s prticas pedaggicas vigentes e
aos saberes artsticos e mimticos de seu tempo pressupem esse papel central da poesia na formao pedaggica dos cidados e na vida
poltica da cidade, 7 papel que, hoje, a poesia deixou totalmente de ter).
Em segundo lugar, a retrica e a sofistica, ambas prticas discursivas
ligadas ao nascimento de formas jurdicas codificadas, instituio do
tribunal e de uma esfera do direito (instituio da acusao e da defesa) diferente do domnio de poder do soberano; prticas igualmente
relacionadas com o peso crescente da palavra, do saber falar e do saber persuadir (isto , tambm do saber "manipular" pela palavra lisonjeira e enganadora), na assemblia democrtica dos cidados. A
luta incessante de Plato contra os "sofistas", estes mestres de retrica em particular suas reiteradas tentativas, da Apologia de Scrates
at O Sofista, de estabelecer uma diferenciao essencial entre o "fi8

lsofo" e o "sofista",
d provas do prestgio do qual gozavam
retrica e sofistica em Atenas.

Ver a este respeito as instigantes pesquisas de Eric Havelock em Prefcio


a Plato (Campinas, Papirus, 1996).
8
A necessidade desta diferenciao por Plato no mostra somente o quantl 1
bem
a filosofia seria, ontologicamente, diferente da sofistica, como a histria (Inin
comportada!) da filosofia sempre repete; se esta diferenciao era uma tarefa t i o
necessria assim, que ela no era nem clara nem evidente para o povo ateniense,
da
que, alis, condenou Scrates em termos e por motivos muito semelhante!s aos dl
condenao de... Protgoras!

As formas literrias da filosofia

205
u.

Hoje a filosofia no precisa se diferenciar, em primeiro lugar, do


epos, da tragdia, da retrica ou da sofistica; nem da teologia como
na Idade Mdia. Ela tenta muito mais afirmar sua especificidade discursiva e conceituai em contraposio aos discursos das cincias naturais e de seu pretenso ou autntico "rigor", aos discursos das
cincias humanas e seus territrios de pesquisas prticas, ao discurso
da literatura e de sua ficcionalidade. Essas transformaes histricas
ressaltam a hiptese principal desta comunicao: a saber, que uma
reflexo sobre as formas literrias, isto , tambm sobre as formas lingsticas (no sentido amplo de sprachlich, que inerente Sprache,
lngua e linguagem) da filosofia significa tambm uma reflexo sobre
sua historicidade como gnero especfico de discurso e de saber.
Dizia h pouco, seguindo aqui tambm as indicaes de Gottfried Gabriel, que podemos determinar trs conjuntos de questes que
esta auto-reflexo da filosofia sobre seu carter de linguagem, sobre
sua literalidade, levanta. Enumero estes trs conjuntos para, depois,
retom-los em detalhe. H, primeiro, o fato de que, em filosofia, no
se trata somente de analisar linguagem, mas, mais precisamente, de
analisar textos escritos. Em segundo lugar, a diversidade das formas
literrias dos textos filosficos tambm indica uma separao entre
dois tipos de exerccio da filosofia: uma filosofia ligada especificamente ao ensino e uma filosofia como exerccio de meditao ou de reflexo, sem relao obrigatria com prticas pedaggicas institucionais.
Enfim, em terceiro lugar, a multiplicidade destas formas tambm indica que h vrias maneiras possveis de tentar abordar, em filosofia,
aquilo que excede a linguagem racional discursiva [logos), linguagem
por excelncia da filosofia.
Retomemos estes trs complexos de questes. O primeiro e o
segundo podem ser abordados em conjunto. Tratar da filosofia como
gnero discursivo distinto e analisar suas diversas formas literrias,
seus diversos modos de apresentao, restringe, pois, a pesquisa a um
corpus de textos, isto , ao territrio da escrita. Tal restrio pode nos
parecer evidente porque estamos acostumados a ela, em particular no
contexto do ensino da filosofia que, no mais das vezes, se confunde
com o ensino da histria da filosofia, com o estudo de textos dos
"grandes filsofos", ensino e estudo baseados, portanto, na transmisso escrita. Mas se pensarmos na constituio da filosofia em Plato,
autor de dilogos escritos, copiados e transmitidos por escrito at ns,
e, simultaneamente, autor de crticas contundentes s pretenses de

206

Lembrar escrever esquecer

s da discus-

verdade da escritura, defensor da transmisso oral atravl dl di$CUS'


so viva, se lembrarmos disso, ento perceberemos que esti relao
entre filosofia, texto e escritura advm de uma partilha anterior entre
tradio oral, mtica ou potica, transmisso oral da sabedoria, e
transmisso escrita, no seio de instituies socioculturais diversas.9 A
questo da prevalncia da transmisso escrita em filosofia recorta,
portanto, a questo da progressiva separao entre uma filosofia ligada especificamente a seu ensino, da Academia de Plato at as universidades de hoje, uma Schulpbilosophie, diz Kant, mais tcnica e
h (Kant igualmente) ou filosofia univererudita, e uma Weltphilosopbie
sal, isto , um exerccio de meditao, de reflexo, uma prtica terica que retoma os problemas fundamentais da existncia humana e, em
particular, pode assumir uma posio tico-poltica no debate da cidade, no espao pblico comum aos cidados.
Podemos estabelecer uma lista provisria de algumas formas literrias em filosofia; perceberemos, ento, que estas formas so ligadas a dois fatores principais: a pocas histricas precisas e separao entre Schulpbilosophie e Weltphilosopbie. Hoje, ningum mais
escreve uma summa formada por uma srie de questiones; antes de
Montaigne, no parece ter havido necessidade de escrever ensaios. O
ensino e o aprendizado acadmicos da filosofia passam pela redao
de monografias, trabalhos, dissertaes, teses, apostilas, aulas, resumos, lies e manuais cujas regras cientficas estritas acarretam conseqncias estilsticas e literrias especficas. No se usam citaes, por
exemplo, da mesma maneira numa dissertao de mestrado, restrita
ao rastreamento claro de uma temtica bem definida, exerccio tpico
de Schulpbilosophie, ou num ensaio mais amplo, obra de maturidade
de um pensador singular, meditao prpria de Weltphilosopbie. No
h o mesmo tipo de argumentao nas Confisses de Santo Agostinho,
R
na Crtica da v,azo
pura ou em Alm do bem e do mal e isso no
s porque Agostinho, Kant e Nietzsche so trs pensadores individuais
diferentes, mas tambm porque as formas literrias confessional, sistemtica e aforstica implicam exigncias especficas. Como entender,

Talvez assistamos hoje a uma reconfigurao de formas orais na transmisso da filosofia ("caf-philo", entrevistas e bate-papos televisivos etc). A anlise
dessas formas deveria se inscrever numa anlise (crtica!) das transformaes dos
meios de comunicao social e no se restringir defesa irada de uma nica forma autntica.

As formas literrias da filosofia

207

por exemplo, o florescimento do gnero "dilogo" ou "carta" na Antigidade, sua transformao no Renascimento e seu quase completo desaparecimento na filosofia contempornea? Podemos observar
igualmente que, no interior da obra de um mesmo filsofo, a passagem de uma forma para outra tambm assinala transformaes nada
acidentais do pensamento: o Wittgenstein do Tractatus e o Wittgenstein
das Investigaes filosficas o mesmo pensador em termos de pessoa individual, mas no o mesmo pensador em termos de concepo filosfica. Enfim, uma reflexo mais apurada sobre a historicidade
das formas literrias da filosofia nos ajuda a compreender melhor a
historicidade da prpria filosofia, este estranho exerccio em torno de
algumas questes e de alguns conceitos, sempre retomados e recolocados, sempre deslocados e reinventados.
Estas observaes me levam ao terceiro e ltimo complexo de
questes, com o qual gostaria de concluir. A multiplicidade das formas literrias em filosofia tambm assinala as diversas tentativas filosficas de abordar aquilo que excede a linguagem discursiva racional, o logos, linguagem da filosofia por excelncia, mesmo que as
definies deste logos tambm variem no decorrer de sua histria.
Desde a Carta VII de Plato at o Tractatus de Wittgenstein o tema
do dizvel e do indizvel na linguagem, e pela linguagem, constitutivo
da filosofia. Mas esta questo assume vrias figuras. Aquilo que no
pode ser dito foi, muitas vezes, interpretado como sendo a fonte divina da linguagem e da existncia humanas, seu fundamento to necessrio como inacessvel, como a figura de Deus ou do Bem supremo
que, a rigor, nem pode ser nomeada, j que a nomeao restringiria
sua infinitude. Esse motivo teolgico primordial, comum tradio
judaica e tradio platnica, percorre toda a tradio filosfica at,
digamos, a tentativa de ruptura operada por Nietzsche (se Nietzsche
conseguiu realmente operar esta ruptura uma outra questo). Esse
motivo caracteriza, segundo a famosa expresso de Derrida, que se
apoia em Heidegger, o teologocentrismo da metafsica. Ao chamar
este indizvel de "Deus" e ao saber da insuficincia desta nomeao,
o discurso da metafsica tambm afirma, de inmeras maneiras, que
seu fundamento ltimo, fonte da linguagem e da razo, do logos, nele
est presente e, simultaneamente, lhe escapa. Tal afirmao paradoxal assume vrias formas de apresentao, vrias formas literrias: o
dilogo aportico no chega a nenhum resultado e, atravs dessa falha, indica que se negligenciou o fundamento inatingvel do qual, no

208

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sistema

entanto, dever-se-ia ter partido (concluso do Crtilo); ou o liltemi


se edifica e se totaliza, mas nunca se aquieta num resultado definiti
vo, j que somente o movimento em busca da transcendncia deli
consegue dar uma representao imanente (conforme a Fenomcimlo
gia do Esprito).
Ora, a filosofia moderna, e mais ainda a contempornea, sofre
um processo de secularizao que caracteriza toda a modernidade cm
sentido poltico amplo. Assim, chamar este indizvel, fundamento e
fonte de nossa existncia e de nossa linguagem, de "Deus" no parece mais ser adequado. Mas a questo persiste. Tenta-se transformla, surgem outras tentativas de respostas, outros nomes (re)surgem: o
Ser, o Sublime, o Real. E, numa vertente mais ligada herana crtica, tambm se afirma, simplesmente, que a linguagem humana no
pode dizer sua origem, no pode dizer, definir, explicitar sua relao
realidade do mundo, j que no podemos sair nem da linguagem
nem do mundo para observar e descrever como se relacionam. Entre
a palavra que enuncia e a realidade que ela quer apreender, sempre
haver um abismo que ela pode, sim, atravessar (Blanchot), mas nunca abolir.
Algumas formas literrias bastante fortes da filosofia contempornea como o ensaio, o aforismo, o fragmento tentam, em oposio
crtica concepo totalizante dos grandes sistemas clssicos, tematizar na prpria exposio, na prpria apresentao do pensamento,
este real que s se mostra (conforme a expresso de Wittgenstein)
quando se desenha a figura de sua ausncia. Ali, neste lugar paradoxal, nesta figurao da ausncia, filosofia e literatura contemporneas,
com todas as suas diferenas, certamente se encontram.

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