Gagnebin, J.M. As Formas Literárias Da Filosofia (Lido)
Gagnebin, J.M. As Formas Literárias Da Filosofia (Lido)
Gagnebin, J.M. As Formas Literárias Da Filosofia (Lido)
14.
AS FORMAS LITERRIAS DA FILOSOFIA
1
Gottfried Gabriel e Christiane Schildknecht, Literarische Formen der Philosophie, Stuttgart, J. B. Metzler, 1990.
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Usei de propsito a noo, discutvel, de "contedo", para apontar o que me parece o grande perigo dessas anlises, a saber: tornar
os filsofos especialistas na inveno de "contedos tericos", mais
ou menos incompreensveis, e os escritores, especialistas em "formas
lingsticas", mais ou menos rebuscadas. Assim, s caberia aos escritores e aos poetas traduzir de maneira mais agradvel aquilo que os filsofos j teriam pensado de maneira complicada ou "abstrata", como
se diz s vezes. No limite, isso significa que os filsofos sabem pensar,
mas no conseguem comunicar seus pensamentos, que no sabem nem
falar nem escrever bem; e que os escritores sabem falar bem, sabem
se expressar, mas no tm nenhum pensamento prprio consistente.
Apesar da descrio caricatural, o leitor certamente concordar que
esses clichs constituem ainda representaes corriqueiras das figuras
e dos ofcios respectivos do filsofo e do escritor/poeta.
A imagem da literatura como sendo uma linguagem bela, mas
vazia, que precisa de "recheio filosfico" para no se reduzir a uma
brincadeira to graciosa quanto ftil, tem seu oposto simtrico numa
representao da filosofia como "pura" atividade intelectual, sria,
profunda, complicada e incompreensvel para o comum dos mortais
(que, alis, passa muito bem sem ela, o que torna questionvel sua
reiterada importncia). Nesta estranha atividade, reservada a poucos,
a comunicabilidade no importa tanto. At no prprio meio filosfico, por exemplo na academia, reina certa desconfiana em relao aos
aspectos formais mais apurados de uma palestra oral ou de um texto
escrito de filosofia. Geralmente, estes aspectos so vistos como concesses ao pblico, ornamentos estilsticos prescindveis, ou, ainda, como
algo meramente metafrico ou meramente retrico. Ora, a afirmao
implcita da existncia de uma dimenso "meramente metafrica" ou
"meramente retrica" repousa numa concepo acrtica, dogmtica
e mesmo trivial das relaes entre pensamento e linguagem: como se
o pensamento se elaborasse a si mesmo numa altivez soberana sem o
tatear na temporalidade das palavras que, no entanto, o constitui. Dito
de maneira mais simples: a concepo da literatura como algo belo,
mas ornamental, superficial, suprfluo, e a concepo da filosofia como algo verdadeiro, mas difcil, incompreensvel e profundo, esses dois
clichs complementares perpetuam, no mais das vezes, privilgios estabelecidos e territrios de poder no interior de uma partilha, social e
historicamente constituda, entre vrios tipos de saber. Assim, os escritores e os poetas poderiam se dedicar ao sucesso e ao entretenimen-
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'dl
stellung), que participam inseparavelmente da transmisso de conhecimento ou da busca de verdade que visa o texto filosfico.4 Um exemplo torna esta hiptese mais clara: qual seria a "verdade" que almejam os Dilogos de Plato? Se esquecermos a forma literria "dilogo" para procurar estabelecer um "sistema" de afirmaes platnicas
e, a partir delas, extrair algumas proposies essenciais que formassem a verdade procurada, encontraremos muitas contradies, muitas incoerncias, poucas certezas e poucas evidncias. Mas se levarmos
a srio a forma dilogo, isto , a renovao constante do contexto e
dos interlocutores, o movimento de idas e vindas, de avanos e regressos, as resistncias, o cansao, os saltos, as aporias, os momentos de
elevao, os de desnimo e t c , ento perceberemos que aquilo que
Plato nos transmite no nenhum sistema apodtico, nenhuma verdade proposicional, mas, antes de mais nada, uma experincia: a do
movimento incessante do pensar, atravs da linguagem racional (logos) e para alm dela "para alm do conceito atravs do conceito", dir tambm Adorno. 5
O movimento auto-reflexivo da filosofia sobre seu carter de linguagem, seu carter lingstico no sentido amplo do termo, isto ,
sobre sua forma literria, permite, em termos de histria da filosofia,
uma leitura renovada, mais atenta singularidade dos textos. Gottfried Gabriel cita o exemplo do texto da "prova ontolgica": quando
se lembra que o escrito de Anselmo um tipo de orao (proslogion),
o carter de prova (onto)lgica no desaparece, mas passa a ter um
outro peso, porque tratar-se-ia aqui muito mais de confirmar a prpria f do que de provar logicamente a necessidade da existncia de
Deus. Poderamos tambm dizer que ler o Zaratustra de Nietzsche como um poema teatral, com indicaes de ritmo e de palco, suscita uma
nova compreenso do papel dos animais ou mesmo do alm-do-homem. Sem falar de todos os mal-entendidos oriundos de uma leitura
que faz do Tractatus de Wittgenstein um manual de epistemologia, ou
das Teses de Walter Benjamin, lies de filosofia da histria.
4
Gottfried Gabriel, "Literarische Form und nicht-propositionale Erkenntnis
in der Philosophie", op. cit., pp. 1-4.
5
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no tira
lsofo" e o "sofista",
d provas do prestgio do qual gozavam
retrica e sofistica em Atenas.
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u.
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s da discus-
Talvez assistamos hoje a uma reconfigurao de formas orais na transmisso da filosofia ("caf-philo", entrevistas e bate-papos televisivos etc). A anlise
dessas formas deveria se inscrever numa anlise (crtica!) das transformaes dos
meios de comunicao social e no se restringir defesa irada de uma nica forma autntica.
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por exemplo, o florescimento do gnero "dilogo" ou "carta" na Antigidade, sua transformao no Renascimento e seu quase completo desaparecimento na filosofia contempornea? Podemos observar
igualmente que, no interior da obra de um mesmo filsofo, a passagem de uma forma para outra tambm assinala transformaes nada
acidentais do pensamento: o Wittgenstein do Tractatus e o Wittgenstein
das Investigaes filosficas o mesmo pensador em termos de pessoa individual, mas no o mesmo pensador em termos de concepo filosfica. Enfim, uma reflexo mais apurada sobre a historicidade
das formas literrias da filosofia nos ajuda a compreender melhor a
historicidade da prpria filosofia, este estranho exerccio em torno de
algumas questes e de alguns conceitos, sempre retomados e recolocados, sempre deslocados e reinventados.
Estas observaes me levam ao terceiro e ltimo complexo de
questes, com o qual gostaria de concluir. A multiplicidade das formas literrias em filosofia tambm assinala as diversas tentativas filosficas de abordar aquilo que excede a linguagem discursiva racional, o logos, linguagem da filosofia por excelncia, mesmo que as
definies deste logos tambm variem no decorrer de sua histria.
Desde a Carta VII de Plato at o Tractatus de Wittgenstein o tema
do dizvel e do indizvel na linguagem, e pela linguagem, constitutivo
da filosofia. Mas esta questo assume vrias figuras. Aquilo que no
pode ser dito foi, muitas vezes, interpretado como sendo a fonte divina da linguagem e da existncia humanas, seu fundamento to necessrio como inacessvel, como a figura de Deus ou do Bem supremo
que, a rigor, nem pode ser nomeada, j que a nomeao restringiria
sua infinitude. Esse motivo teolgico primordial, comum tradio
judaica e tradio platnica, percorre toda a tradio filosfica at,
digamos, a tentativa de ruptura operada por Nietzsche (se Nietzsche
conseguiu realmente operar esta ruptura uma outra questo). Esse
motivo caracteriza, segundo a famosa expresso de Derrida, que se
apoia em Heidegger, o teologocentrismo da metafsica. Ao chamar
este indizvel de "Deus" e ao saber da insuficincia desta nomeao,
o discurso da metafsica tambm afirma, de inmeras maneiras, que
seu fundamento ltimo, fonte da linguagem e da razo, do logos, nele
est presente e, simultaneamente, lhe escapa. Tal afirmao paradoxal assume vrias formas de apresentao, vrias formas literrias: o
dilogo aportico no chega a nenhum resultado e, atravs dessa falha, indica que se negligenciou o fundamento inatingvel do qual, no
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