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Mestres Artificeis Minas Gerais - IPHAN

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MESTRES ARTFICES

MINAS GERAIS

Cadernos de Memria

Torno para fazer panelas, Serro

Leonardo Barci Castriota


Coordenao

MESTRES ARTFICES

MINAS GERAIS

Cadernos de Memria

Autores

Douglas Ferreira Gadelha Campelo


Guilherme Maciel Arajo
Leonardo Hiplito Genaro Fgoli
Leonardo Barci Castriota
Paulo Henrique Alonso

crditos
Presidenta da Repblica do Brasil
Dilma Rousseff
Ministra de Estado da Cultura
Ana de Hollanda
Presidente do Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
Luiz Fernando de Almeida
Diretoria do Iphan
Andrey Rosenthal Schlee
Clia Maria Corsino
Estevan Pardi Corra
Maria Emlia Nascimento Santos

Execuo
Mestres Artfices: Minas Gerais
Fundao de Desenvolvimento da Pesquisa - Fundepe
Pesquisa realizada para identificao de mestres artfices
detentores de saberes construtivos tradicionais e
registro das tcnicas que dominam, com financiamento
e superviso do Iphan/Unesco/Monumenta/BID.
As opinies apresentadas nos textos desta publicao so
de responsabilidade de seus autores, bem como o modo
pelo qual as entrevistas foram nele transcritas e citadas.
Equipe de Pesquisa - Mestres
Artfices em Minas Gerais
Leonardo Castriota - Coordenador geral
Guilherme Maciel Arajo - Coordenador
do Estado de Minas Gerais

Coordenador Nacional do Programa Monumenta


Robson Antnio de Almeida
Departamento de Patrimnio Imaterial
Ana Carolina Rollemberg de Resende
Ana Gita de Oliveira
Daniel Barbosa Cardoso
Mrcia Gensia SantAnna
Maria de Ftima Duarte Tavares
Mnia Luciana Silvestrin
Yda Virgnia Barbosa
Superintendncia Estadual do
Iphan em Minas Gerais
Leonardo Barreto de Oliveira

Vilmar Pereira de Sousa - Coordenador de logstica


Livia Fortini Veloso - Assistente de coordenao
Leonardo Fgoli - Coordenador Antropologia
Pablo Lima - Historiador/Pesquisador de arquivo
Bernardo Capute - Pesquisador de campo Arquitetura
Fabiana Correia Dias - Pesquisadora de campo Arquitetura
Maria Raquel A Ferreira - Pesquisadora
de campo Arquitetura
Roberto Fonseca - Pesquisador de campo Antropologia
Douglas Campelo - Pesquisador de campo Antropologia
Leonardo Freitas - Pesquisador de campo Antropologia
Paulo Henrique Alonso - Pesquisador de Arquitetura
Rosemere da Silva - Pesquisadora de Arquitetura
Fernanda Silva, Guilherme Costa, Nikolas Mendes,
Arlete Soares de Oliveira, Flvia Mosqueira
Possato Cardoso, Alexis Azevedo Morais

Coordenao editorial
Sylvia Maria Braga

Fotografia

Organizao
Mrcia Gensia SantAnna

Arquivo INRC/Iphan

Reviso do projeto grfico e diagramao


Raruti Comunicao e Design/Cristiane Dias

Douglas Campelo
Fernanda Cristina de Oliveira e Silva
Guilherme Felip Marques da Costa
Leonardo Freitas

Reviso de texto
Fabiana Ferreira

M. Raquel Ferreira
Nikolas Mendes
Novembro de 2009 a maio de 2010.

M586 Mestres artfices de Minas Gerais / coordenao de Leonardo Barci Castriota. Braslia, DF : Iphan, 2012.
160 p. : il. color. ; 20 cm. (Cadernos de memria ; 1).
ISBN 978-85-7334-216-1
1. Arquitetura - Restaurao. 2. Artes e Ofcios. 3. Tcnicas Construtivas.
4. Mestres Artfices. I. Castriota, Leonardo Barci. II. Srie.
CDD 720.288

www.iphan.gov.br | www.cultura.gov.br

Detalhe de esteira feita com taquara

Encaixe do espigo nos frechais visto por baixo

Apresentao

13

O Registro dos Mestres Artfices:


Preservao do Saber-fazer da Construo Tradicional

17

Leonardo Barci Castriota

Tcnicas Construtivas Tradicionais em Minas Gerais:


Stios, Localidades e Ofcios

31

Guilherme Maciel Arajo e Paulo Henrique Alonso

Ofcios: Permanncias e Transformaes


Leonardo Hiplito Fgoli e Douglas Ferreira Gadelha

Ofcios da Pedra:
Cantaria

Ofcios da Cor e do Ornato:


Pintor/Estucador

Ofcios do Ferro:
Ferreiro/Forjador

Ofcios da Argila:
Oleiro/Adobeiro/Taipeiro

Ofcios da Madeira e da Taquara:


Capinteiro/Marceneiro/Esteireiro

55
58
78
88
100
118

Consideraes finais

144

Referncias Bibliogrficas

150

Mestres Artfices da Construo Tradicional


em Minas Gerais

156

Mestre Paulo Narciso amassando barro

10

11

Detalhe das peas de espigo encaixadas em boca-de-lobo na cumeeira

APRESENTAO
Luiz Fernando de Almeida

Presidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - Iphan

Este Caderno de Memrias, fruto dos Inventrios realizados pelo Programa Monumenta
/Iphan em regies de Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina, traz os resultados
expostos num documento destinado a especialistas, estudantes e pblico em geral.
Ao tratar do repasse de conhecimentos de gerao em gerao, dos hbitos presentes
na vida de inmeros cidados, das particularidades territoriais dispersas pelas regies
brasileiras, nos deparamos com a diversidade e a complexidade de processos que
retratam um conjunto de prticas culturais e se constituem em diferentes dimenses
do nosso patrimnio cultural, tanto de natureza material, quanto de natureza imaterial.
No mbito dessa diversidade do patrimnio cultural, as tcnicas construtivas
tradicionais constituem-se nas formas pelas quais vrios exemplares de nosso
patrimnio edificado foram erguidos e se mantm ntegros at hoje. Mas, de fato, a
representatividade desse acervo no se completa sem o conhecimento acumulado
pelos mestres e artfices responsveis pela perpetuao da prtica e aplicao dessas
tcnicas no acervo arquitetnico brasileiro.
Com o avano da indstria da construo civil em nosso pas, tais recursos construtivos
tm sido, em larga escala, substitudos e relegados a aproveitamentos localizados a
partir de manifestaes populares, em locais situados fora dos principais eixos de
interesse do mercado formal. Apesar desse processo hegemnico dos novos materiais
e tcnicas construtivas hoje em uso na construo civil, no se descarta o potencial
de aplicao dos processos e tcnicas construtivas tradicionais, tanto em obras de
restauro, quanto na perspectiva de seu aproveitamento em locais e circunstncias no
alcanadas por avanos tecnolgicos. Essa possibilidade, em vrios casos, representa
uma condio real de melhoria na qualidade de vida daquelas populaes que se
encontram fora dos eixos de atendimento do mercado formal.
A perspectiva de um mapeamento das principais tcnicas utilizadas nas diferentes
regies do pas, do registro desse saber-fazer local, alm da valorizao e resgate
dos detentores desse conhecimento so intenes iniciais que nortearam a proposta
de implementao de um Inventrio Nacional de Referncia Cultural sobre tcnicas
construtivas tradicionais a partir dos saberes e fazeres dos mestres e artfices.
O Projeto Mestres e Artfices nos possibilita identificar, documentar e buscar formas
de transmisso desses saberes e ofcios tradicionais, numa perspectiva de incluso
e valorizao dos seus detentores em prticas que vo alm de sua aplicao no
restauro dos bens patrimoniais a serem preservados. A sistematizao e difuso
desse conhecimento e de suas formas de aplicao viabilizam seu uso em diferentes
reas, seja pela insero de tcnicas tradicionais no sistema corrente da construo
civil, com a introduo do tema nas cadeiras de formao de profissionais e tcnicos
da rea de arquitetura e engenharia, seja pela formao e capacitao de mo-deobra que viabilize a aplicao e difuso de tais tcnicas.

13

Forro de taquara

15

Espelho de fechadura feito por mestre Antnio Eli

O PROJETO DOS MESTRES ARTFICES:


PRESERVAO DO SABER-FAZER DA
CONSTRUO TRADICIONAL
Leonardo Barci Castriota

Arquiteto-urbanista, doutor em Filosofia, professor da Universidade Federal


de Minas Gerais (UFMG) coordenador geral do INRC de MG e SC

O patrimnio imaterial ou intangvel tem se tornado objeto de crescente ateno


no campo acadmico e das polticas de preservao. interessante perceber que,
em 1989, quando a Unesco estabeleceu a Recomendao sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular poucos Estados Membros se interessaram pela sua
aplicao. Vrios acontecimentos, no entanto, mudaram o quadro nos anos 1990:
a emergncia de numerosos grupos tnicos que procuravam sua identidade em
suas culturas tradicionais; as comemoraes do 50 Centenrio do Descobrimento
das Amricas, e, principalmente, a rpida expanso da economia de mercado pelo
mundo e o tremendo progresso das comunicaes e das tecnologias de comunicao
e informao. Na esteira da globalizao avassaladora, parece reaparecer com fora
a questo das identidades culturais que so amplamente lastreadas nesta dimenso
imaterial do patrimnio1.
Nesta ltima dcada, a Unesco comea a implantar um amplo programa na rea,
instituindo aes como a nominao dos Tesouros Humanos Vivos e, mais
recentemente, a Proclamao das Obras-primas do Patrimnio Imaterial da
Humanidade. Alm disso, foi aprovada em outubro de 2003, a Conveno para
a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, preparada por meio de estudos
tcnicos e discusses internacionais com especialistas, juristas e membros dos
governos, que regula o tema do patrimnio cultural imaterial, complementando a
Conveno do Patrimnio Mundial de 1972, que cuida dos bens tangveis, de modo a
contemplar toda a herana cultural da humanidade.
No caso brasileiro, a Constituio Federal de 1988 j adotava um conceito ampliado
do patrimnio cultural, que compreendia a dimenso intangvel da cultura. Em 1997,
a Carta de Fortaleza, resultado do Seminrio Patrimnio Imaterial: Estratgias e
Formas de Proteo, recomendava que se aprofundassem os estudos na rea, com
auxlio das universidades e instituies de pesquisa, bem como se criasse um grupo
de trabalho destinado a regulamentar o instituto denominado registro, voltado
especificamente para a preservao dos bens culturais de natureza imaterial.
Seguindo tais orientaes, vai ser criado pelo Instituto do Patrimnio Histrico
e Artstico Nacional (Iphan) o Grupo de Trabalho Patrimnio Imaterial (GTPI),
que, aps dezessete meses de trabalho, prope a regulamentao do instituto do
registro cultural em nosso pas, efetivada atravs do Decreto N o 3.551, de 04 de
agosto de 2000.

17

Aqui nos parece importante ressaltar que a revalorizao atual do chamado


patrimnio imaterial ou intangvel passa pela compreenso do patrimnio no mais
como um produto, mas como um processo. Mediante essas expresses ressalta-se,
como anota texto do Iphan,
a importncia que tm os processos de criao e manuteno do
conhecimento sobre o seu produto (a festa, a dana, a pea de cermica,
por exemplo). Ou seja, procuram enfatizar que interessa mais como
patrimnio o conhecimento, o processo de criao e o modelo, do que o
resultado, embora este seja sua expresso indubitavelmente material2.

neste quadro mais amplo que devem ser situadas as chamadas tcnicas construtivas
tradicionais, importante saber-fazer a ser preservado como patrimnio intangvel.
Como se sabe, a arquitetura tradicional, fruto de um conhecimento profundo do meio
envolvente e da sua relao com os materiais, um dos mais importantes testemunhos
dos modos de viver de um povo e da viso de mundo de uma cultura, que se manifesta
na presena humana no territrio, integrando contextos socioeconmicos, tcnicos e
culturais. Essa ocupao, no entanto, no pode ser compreendida (nem preservada)
apenas em sua dimenso fsica, na medida em que repousa, em ltima instncia,
num saber-fazer que a gerou: as tcnicas construtivas tradicionais.
Ao se tratar dessas tcnicas tradicionais no podemos perder de vista que, num mundo
em rpido processo de globalizao e homogeneizao cultural, elas se encontram
crescentemente ameaadas por um processo de rpido desaparecimento. Se esta vai
ser a tendncia dominante, pode ser detectada, no entanto, uma contra-tendncia
no que diz respeito s tcnicas tradicionais: o reconhecimento da necessidade de
se preservar o patrimnio edificado bem como a crescente preocupao ecolgica
tm levado sua revalorizao. Assim que, aos poucos, tem-se desenvolvido todo
um trabalho de pesquisa e recuperao da memria, atravs de vrias estratgias,
desde investigaes em laboratrios at consultas aos velhos mestres. Em alguns
casos, como em Portugal, ao se constatar que havia falta de tcnicos especializados
para a recuperao do patrimnio, chegaram-se a se estabelecer cursos como o de
Mestre de Construo Civil Tradicional, pela Escola Profissional de Desenvolvimento
Rural de Serpa, numa parceria com a Direo-Geral dos Edifcios e Monumentos
Nacionais. Nesta mesma linha, no Brasil a parceria Iphan/Monumenta/Unesco tem
desenvolvido vrios cursos para a formao de oficiais em diversas dessas tcnicas.
E aqui no se trata apenas de se recuperar tcnicas prprias para o restauro: o fato
que muitas dessas tcnicas construtivas tradicionais prestam-se perfeitamente
a uma construo ecologicamente mais adequada, conforme as vises mais
contemporneas de um desenvolvimento sustentvel. Assim, foi unindo essas duas
perspectivas preservao do patrimnio e novas construes sustentveis que
se criaram vrios projetos internacionais, entre os quais pode se destacar a Ctedra
Unesco sobre Arquitetura de Terra, Culturas Construtivas e Desenvolvimento
Sustentvel3 .

18

Parte superior da guarita existente em muro em pedra seca

19

Viola e frma

Os inventrios como instrumentos de preservao do


patrimnio imaterial
Para assegurar a identificao com fins de salvaguarda desses bens, a Conveno
de 2003 recomenda a execuo de inventrios nacionais de bens culturais a
serem protegidos, estabelecendo em seu artigo 12 que cada Estado Parte dever
confeccionar um ou vrios inventrios do patrimnio cultural imaterial presente em
seu territrio. Em relao especificamente s tcnicas tradicionais relacionadas ao
patrimnio cultural tangvel (como, por exemplo, as tcnicas associadas arquitetura
vernacular), a Unesco recomenda a sua manuteno e registro, para manter o
estoque de tcnicas para restaurao, manuteno e substituio do patrimnio
tangvel criado por tcnicas tradicionais4. Assim, no campo da identificao em
geral, j se publicou um manual sobre como coletar o patrimnio musical, e est
sendo preparado um manual para se coletar o saber fazer (know-how) da arquitetura
tradicional5.
No caso brasileiro, a temtica do patrimnio imaterial ganha nova fora a partir da
redemocratizao do pas, especialmente no processo de feitura da nova Constituio
Federal, promulgada em 1988, resultado de um amplo processo de discusso, com
envolvimento de vrios setores da sociedade brasileira. Ali se reserva um tratamento
inovador s questes referentes preservao cultural, assentando-se esta sobre o
conceito mais abrangente de bem cultural. Assim, a Carta Magna brasileira define:
Art. 216 Constituem patrimnio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I. as formas de expresso;
II. os modos de criar, fazer e viver
III. as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas;
IV. as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados
s manifestaes artstico-culturais;
V. os conjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico,
arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico.

Como se pode perceber, a Constituio rev o conceito de patrimnio cultural,


absorvendo a ampliao conceitual de que ele vinha sendo objeto, e passa a tratar
tambm dos bens imateriais, falando nas formas de expresso e nos modos de
criar, fazer e viver, que so manifestaes eminentemente intangveis. Alm disso,
percebe-se preocupao anloga no tratamento conferido s comunidades indgenas,
agora protagonistas de captulo autnomo da Constituio Federal, onde se fala

21

da tutela de seus costumes, lnguas, crenas e


tradies, (art. 231 da CF).
Assim, pode-se perceber como as definies
trazidas pela Constituio Federal, ao contemplar
pela primeira vez bens que, embora dotados
de grande significao para a cultura brasileira,
jamais haviam merecido ateno legislativa,
se afinam com as discusses mais recentes no
plano internacional, estando em harmonia, por
exemplo, com as formulaes da Conveno para
a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial,
da Unesco, firmada em 2003. Com isso, rompese com uma viso, ainda cristalizada nos nossos
instrumentos jurdicos anteriores, que restringia
a proteo do patrimnio aos bens tangveis, num
enfoque reificado da cultura compreendendo-se
o patrimnio com esse novo enfoque no mais
como um produto, mas como um processo6.

Vista interna de trecho do telhado em


execuo: encontro de vrias guas do telhado

Torno Vale do Jequitinhonha

22

No entanto, no bastava definir o patrimnio de


forma mais ampla: era necessrio tambm se
propor medidas efetivas para a proteo desta
dimenso, desafio que j se colocara desde o
anteprojeto de Mrio de Andrade e as primeiras
formulaes do SPHAN, que, por razes operativas,
termina por se concentrar no chamado patrimnio
pedra e cal. No caso brasileiro, s muitos anos
depois da aprovao da Constituio de 1988
que vo se adotar polticas pblicas efetivas para
responder a essas novas formulaes, com a
promulgao do Decreto 3.551/2000, que cria o
Programa Nacional do Patrimnio Imaterial (PNPI),
que visa implementao de poltica especfica de
inventrio, referenciamento e valorizao desse
patrimnio. Para isso, o PNPI busca estabelecer
parcerias
com
instituies
dos
governos
federal, estadual e municipal, universidades,
organizaes
no-governamentais,
agncias
de desenvolvimento e organizaes privadas
ligadas cultura, pesquisa e ao financiamento,
atuando nas linhas de pesquisa, documentao
e informao; sustentabilidade; promoo e
capacitao.

Seus principais instrumentos so o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial


e o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC), instrumento legal e tcnico,
respectivamente. Respeitando a diversidade desse novo campo, o Decreto 3551
prope o registro dos bens culturais, segundo sua natureza, nos seguintes livros:
Livro de Registro dos Saberes, para os conhecimentos e modos de fazer enraizados
no cotidiano das comunidades; Livro de Registro de Celebraes, para os rituais e
festas que marcam vivncia coletiva, religiosidade, entretenimento e outras prticas
da vida social; Livro de Registros das Formas de Expresso, para as manifestaes
literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas; e Livro de Registro dos Lugares,
para mercados, feiras, santurios, praas e demais espaos onde se concentram
e reproduzem prticas culturais coletivas, podendo ainda ser criados novos livros
para abarcar melhor as especificidades do patrimnio.
Como um instrumento tcnico complementar ao registro cultural, o Iphan desenvolveu
o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC), que tem como objetivo, na
sua formulao oficial, produzir conhecimento sobre os domnios da vida social
aos quais so atribudos sentidos e valores e que, portanto, constituem marcos e
referncias de identidade para determinado grupo social7. Alm das categorias
estabelecidas no Registro, o INRC vai contemplar ainda edificaes associadas a
certos usos, a significaes histricas e a imagens urbanas, independentemente de
sua qualidade arquitetnica ou artstica. Aqui cabe destacar que o inventrio tem
se mostrado um extraordinrio instrumento de preservao, no s por conseguir
trabalhar com uma determinada base espacial cuja escala pode variar referindose a um a vila, a um bairro, uma mancha urbana e mesmo a uma cidade , mas
principalmente por conseguir mostrar, dentro daquela base, as relaes que os
diversos bens culturais tm entre si. Sua metodologia tem a liberdade de ir do geral
ao particular, do material ao imaterial, da tradio reinveno, pois no se prende
a nenhum paradigma imobilizador ou a nenhuma utopia museificante. Ele parte do
princpio que entende a cultura como um processo vivo, e no limite, ele prope, em
seu conjunto, o que chamaria de uma epistemologia com base nas ontologias ou nos
conhecimentos produzidos sobre cada um dos bens inventariados (OLIVEIRA, 2005,
p.3). Assim, como anota Ana Gita Oliveira, o inventrio pode constituir, de fato,
instrumento organizador dos conhecimentos locais em nexos regionais e
nacionais, realizando tambm a sntese da dicotomia, j superada, entre
o material e o imaterial, referida na Constituio Federal de 1988. Vale
lembrar, porm, que essa dicotomia traduziu-se, durante as dcadas de 70
e 80, em uma tenso estruturante do campo patrimonial. O INRC prope
a sua superao. Ele permite ainda entender a abrangncia dos processos
culturais definidores desses bens, do poder transformador dos padres
culturais em curso, identificando as transformaes nas tradies a que
pertencem. (OLIVEIRA, 2005, p.3)

O Programa Nacional do Patrimnio Imaterial j realizou, at o incio de 2010, 58


inventrios, vrios deles em parceria com rgos pblicos ou filantrpicos, podendo

23

Mestre Luiz Antonio da Silva

25

se citar, entre outros, os inventrios do Crio de Nossa Sra. de Nazar, do Ofcio das
Baianas de Acaraj, da Viola do Cocho, do jongo, da Cermica Candeal, do Bumbameu-Boi, do Museu Aberto do Descobrimento.
Como se v, trata-se de um processo em curso, estando o INRC ainda em processo
de avaliao e adequao, suscitando vrias questes, assim como todos os
outros instrumentos relativos ao registro e a salvaguarda dos bens imateriais. No
entanto, cabe destacar o grande interesse que tais instrumentos tm despertado
na sociedade, multiplicando-se, por exemplo, os pedidos junto ao Iphan de registro
e de utilizao da metodologia do INRC. Frente a essa ltima demanda, o Iphan
vai instituir em 2009 parmetros gerais para o licenciamento para a utilizao do
INRC, instrumento tcnico de levantamento e pesquisa das referncias culturais, que
passa a poder ser aplicado tambm por pessoas fsicas e jurdicas externas ao rgo
federal. Com isso, o instrumento pode ganhar em abrangncia, permitindo-se criar
um banco de dados amplo e alimentado, no esprito da Constituio Federal, com a
colaborao da comunidade.

Um inventrio das tcnicas construtivas


tradicionais brasileiras
Ao propor a identificao e documentao de mestres artfices detentores dos
saberes das tcnicas construtivas tradicionais da arquitetura brasileira, o Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) busca realizar um inventariamento
temtico das tcnicas construtivas tradicionais no Brasil, nos moldes do que j se
faz, por exemplo, em alguns pases da sia, onde se mantm bancos de dados sobre
as tcnicas tradicionais locais. Poderamos citar vrios exemplos deste tipo de ao
no continente asitico: o Seminrio Internacional para a Salvaguarda e Promoo
das Tcnicas Tradicionais em Bambu na Vida
Moderna, promovido no Vietn em 1997, a 7a
Regional Workshop of East Asian Lacquerware
(Myanmar, 1996) e o Banco de Dados sobre
Artes Cnicas Tradicionais e Populares na sia
e no Pacfico8, todos financiados pelo Japanese
Trust Fund for the Preservation and Promotion
of Intangible Cultural Heritage institudo junto
Unesco.
No caso brasileiro, no sentido de produzir
informao
sistematizada,
o
inventrio
das tcnicas construtivas tradicionais ser
completado com a insero das informaes
num banco de dados especialmente projetado
para tal fim, a ser disponibilizado para os
pesquisadores e para o pblico em geral, e
integrado ao banco mais geral mantido pelo
Chcara do Baro do Serro

26

Iphan para o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC). Neste caso


especfico, cabe chamar a ateno para o fato do inventariamento das tcnicas
construtivas tradicionais, realizado no mbito do Projeto Mestres Artfices apresentar
um eixo temtico e no espacial, como foi a tnica predominante em grande parte
dos trabalhos desenvolvidos pelo Iphan. Apesar disso, no podemos perder de
vista que a prpria estrutura do INRC d importncia dimenso espacial dos bens
inventariados, ao lig-los sempre a stios e localidades.
Finalmente, cabe chamar a ateno ainda para um dos marcos tericos centrais deste
trabalho, a noo de referncia cultural, tal como tem sido utilizada no mbito do
Programa Nacional de Patrimnio Imaterial (PNPI) do Ministrio da Cultura e no INRC,
desenvolvido pelo Iphan. importante perceber que, ao se adotar esta expresso,
est se privilegiando no s a diversidade da produo material, mas tambm dos
sentidos e valores atribudos pelos diferentes sujeitos a bens e prticas sociais.
Assim, se as informaes a serem coletadas partem sempre de um suporte material
no caso, prticas culturais -, elas s se constituem em referncias culturais
quando so consideradas e valorizadas enquanto marcas distintivas por sujeitos
definidos. Com isso, os sujeitos de diferentes contextos culturais no tm papel
apenas de informantes, mas tambm de intrpretes de seu patrimnio cultural9.
Seguindo esta lgica, as tcnicas construtivas tradicionais registradas so sempre
referenciadas antropologicamente a seu contexto cultural mais amplo.
Do ponto de vista metodolgico, a interdisciplinaridade, envolvendo os campos da
antropologia, arquitetura e histria, foi a palavra-chave para o desenvolvimento do
trabalho. De fato, mais que simplesmente utilizar o conhecimento de cada um destes
campos foi fundamental a utilizao de uma metodologia que, dentro do referencial
bsico j estruturado pelo Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC), levasse
a uma abordagem adequada complexidade do objeto. No centro desse mtodo,
encontra-se a abordagem antropolgica, fundamental para a perfeita compreenso
do universo e significado de cada tcnica. No entanto, essa compreenso no se limita
ao significado para o mestre ou a cultura em questo, tendo origem e significado no
prprio fazer, para cujo entendimento a dimenso da arquitetura fundamental. No
conhecimento das formas e seus desdobramentos tecnolgicos possvel uma nova
leitura e compreenso de todo o conhecimento j registrado pela dimenso cultural
antropolgica do objeto. A esses campos se junta tambm a histria, que, por meio da
leitura dos registros dos arquivos e da compreenso do prprio desenvolvimento das
tcnicas, conforma uma dimenso inicial e final em todo o processo.
Assim, dentro da estrutura geral do INRC, a abordagem dos mestres e o registro
de suas tcnicas exigiu uma perspectiva interdisciplinar, estruturada a partir dos
campos complementares da Antropologia, Arquitetura e Histria: a Antropologia
com sua abordagem e mtodo de registro da cultura especfica das comunidades; a
histria, com seus mtodos de pesquisa documental e sua abordagem de registro da
histria oral e a arquitetura com seus mtodos especficos de registro das tcnicas,
que utilizam largamente elementos grficos como desenhos e croquis. Com isso,
as tcnicas puderam ser registradas e estudadas a partir de uma metodologia que
permitiu no s o registro de todas as suas dimenses (cultural, esttica, tecnolgica,

27

etc...) mas, e principalmente, a interface entre elas, permitindo um aprofundamento


do conhecimento e registro em aproximaes sucessivas, fundamentais para a
abordagem de objeto to complexo como as tcnicas construtivas tradicionais.

O desafio da preservao
Finalmente, cabe chamar a ateno para outro objetivo desse projeto: propor
aes estratgias para a preservao e transmisso do saber vinculado s prticas
tradicionais da construo. Em sua atuao sobre o patrimnio imaterial, o Iphan tem
desenvolvido planos de salvaguarda, que, na mesma linha proposta pela Unesco, vo
atuar na melhoria das condies sociais e materiais de transmisso e reproduo,
que possibilitam a existncia do bem cultural de forma a apoiar sua continuidade
de modo sustentvel. No se trata aqui, como no caso do patrimnio material, de
apenas garantir a preservao de bens culturais, mas muitas vezes de se garantir
o apoio para sua sobrevivncia. Como se tem visto, esse apoio pode acontecer
de formas variadas, podendo viabilizar desde a ajuda financeira a detentores de
saberes especficos, objetivando a sua transmisso, a organizao comunitria ou
a facilitao de acesso a matrias primas. Nesta perspectiva, o Programa Nacional
do Patrimnio Imaterial j realizou diversos Planos de Salvaguarda, podendo se
citar aqueles concernentes Arte Kusiwa Pintura corporal e Arte grfica Wajpi,
ao samba de roda do Recncavo baiano, ao ofcio das Paneleiras de Goiabeiras,
viola de cocho, entre outros. As aes prioritrias nesses Planos de salvaguarda,
pautadas pelas questes observadas nos inventrios e debatidas com os segmentos
sociais envolvidos e interessados, se estruturam em duas linhas gerais: difuso
(produo de filmes, cd-roms e impressos) e articulao/fortalecimento de grupos e
comunidades (reunies, oficinas, etc).
Com isso, se retoma aquele desafio que j se colocava para o Centro Nacional de
Referncia Cultural nos anos 1980: como realizar um trabalho de preservao orientado
a partir da noo ampla e dinmica de referncia cultural? No se trata aqui, como no
caso da noo tradicional de patrimnio, de se preservar apenas em sua materialidade
bens de grande valor, valor esse reconhecido extrinsecamente por tcnicos dos rgos
de preservao. Aqui, ao contrrio, coloca-se a questo da referncia que esses bens
vo ter para os prprios sujeitos envolvidos
na dinmica de sua produo, circulao e
consumo, reconhecendo-lhes, como anota
Ceclia Fonseca, o estatuto de legtimos
detentores no apenas de um saber-fazer, como
tambm do destino de sua prpria cultura.
No caso das tcnicas construtivas tradicionais, a iniciativa de se realizar, atravs
do projeto Mestres Artfices, o seu completo
inventariamento parece-nos o primeiro passo
Detalhe de torno eltrico

28

de um processo, que teria sequncia com a instaurao de um procedimento de


certificao desses mestres, que poderia se constituir em instrumento eficaz de
valorizao dos saberes tradicionais e, ao mesmo tempo, criar instrumentos legais de
melhoria de mo-de-obra envolvida nos processos de restauro. A nosso ver, o atual
aquecimento do mercado da construo civil e programas como o PAC das Cidades
Histricas10 podero significar, de fato, uma ampliao significativa no mercado de
restaurao no pas, gerando, consequentemente, uma maior demanda por mode-obra qualificada na rea e condies de maior atratividade para a formao nos
ofcios tradicionais. E aqui se abrem novos desafios: como garantir a qualidade na
execuo desses ofcios? Como combinar a perspectiva das tcnicas tradicionais
com as descobertas cientficas na rea, que poderiam aprimor-las? Como lidar, na
contemporaneidade, com o ensino dos ofcios tradicionais?
Os diversos aspectos envolvidos na preservao e transmisso do saber vinculado
s prticas tradicionais da construo econmicos, culturais, sociais, pedaggicos
- esto, portanto, a demandar a realizao de um completo plano de salvaguarda.

NOTAs
1. A prpria Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Intangvel, aprovada em 2003, enuncia:
Reconhecendo que os processos de mundializao e de transformao social por um lado criam as
condies propcias para um dilogo renovado entre as comunidades, porm, por outro, tambm trazem
consigo, ..., graves riscos de deteriorao, desapario e destruio do patrimnio cultural imaterial,
devido em particular falta de recursos para salvaguard-lo.
2. MINC/IPHAN, 2003, p. 17. Nesta mesma linha vai a Conveno, que define o patrimnio imaterial como
os usos, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto como instrumentos, objetos,
artefatos e espaos culturais que lhes so inerentes que as comunidades, os grupos e em alguns casos
os indivduos reconheam como parte integrante de seu patrimnio cultural. (UNESCO, 2003)
3. Criada em 1991, essa Ctedra Unesco agrupa o Centro Internacional de Construo de Terra (CRATerreEAG), o Instituto de Conservao Getty e o Centro Internacional de Estudos sobre a Conservao e
Restaurao do Patrimnio Cultural
4. Some Considerations on the Protection of the Intangible Heritage: Claims and Remedies. Lyndel V.
Prott. Chief International Standards Section Division of Cultural Heritage, Unesco.
5. The Unesco Recommendation on the Safeguarding of Traditional Culture and Folklore (1989): Actions
Undertaken by Unesco for Its Implementation. Mrs. Noriko Aikawa. Director Intangible Heritage Unit,
Unesco.
6. A esse respeito, confira BOSI, 1987.
7. http://portal.iphan.gov.br
8. http://www3.accu.or.jp/PAAP/
9. LONDRES, 2003, p. 14.
10. Lanado pelo Governo Federal em outubro de 2009, o Programa de Acelerao do Crescimento
das Cidades Histricas dever destinar, nos prximos anos, R$ 890 milhes para a preservao do
patrimnio histrico nacional. Atravs dele, as cidades histricas contempladas podero receber obras
de requalificao e infra-estrutura urbana e de recuperao de monumentos e imveis pblicos. Tambm
esto previstas aes de divulgao nacional e internacional, de stios histricos, de espaos pblicos,
monumentos e smbolos socioculturais do pas, alm de cursos de especializao para guias de turismo
e da criao de uma pgina na internet bilnge sobre as cidades.

29

Telhado da Igreja Nossa Senhora do Amparo em Minas Novas

TCNICAS CONSTRUTIVAS TRADICIONAIS EM


MINAS GERAIS: STIOS, LOCALIDADES E OFCIOS
Guilherme Maciel Arajo

Arquiteto-urbanista, mestre em Ambiente Construdo e Patrimnio Sustentvel Coordenador do INRC em Minas Gerais

Paulo Henrique Alonso

Arquiteto-urbanista, mestre em Ambiente Construdo e Patrimnio Sustentvel.

Conforme afirma um clebre gegrafo brasileiro, a paisagem o conjunto de formas


que, num dado momento, exprimem as heranas que representam as sucessivas
relaes localizadas entre homem e natureza1. Assim, a paisagem se manifestaria
como um conjunto de objetos concretos, um conjunto transtemporal, uma construo
transversal formada pela juno de objetos passados e presentes. Ao contrrio do
espao, que constituiria numa situao nica, sempre presente. Assim, a paisagem
seria um sistema material, relativamente mutvel; enquanto o espao seria um
sistema de valores, permanentemente mutvel. A paisagem se manifestaria atravs
das formas criadas em diferentes momentos histricos, constituindo uma espcie de
palimpsesto, onde, mediante acumulaes e substituies, as aes das diferentes
geraes se sobreporiam. Ou seja, a paisagem seria um tipo de pergaminho ou
papiro cujo texto haveria sido raspado, dando lugar a outro.
Este seu carter de palimpsesto seria o que transformaria a paisagem num valioso
instrumento que nos permitiria rever as etapas do passado, sem perder a perspectiva
de conjunto. Dentro desta reviso que nos seria permitido retomar a histria que
esses fragmentos de idades diferentes representam juntamente com a histria tal
como a sociedade a escreveu de momento em momento. Olhando desta forma,
reconstituiramos a histria pretrita da paisagem. Se por um lado, observando-a
conseguimos esta reconstituio, por outro, s entenderemos sua funo se a
confrontarmos com a sociedade atual e suas necessidades. Assim, a paisagem seria
a histria congelada, mas participante da histria viva. As suas formas, seus
elementos naturais e materiais que realizam, no espao, as funes sociais.
Assim, sob este ponto de vista, foi que procuramos observar as paisagens que
caracterizam os stios nos quais essa pesquisa se delineou no Estado de Minas Gerais.
Nesses stios, sua paisagem, como sabemos, se modificou e se modifica, atravs
das relaes dadas entre o homem e a natureza, o homem e os objetos, e entre
o homem e o prprio homem. Seria aquela paisagem constituda por elementos
naturais e artificiais que, tocada pela ao e pelo trabalho do homem, tornou-se um
espao humano em perspectiva. Aquele espao humano sobre o qual se projeta
aquele conjunto das prticas, das tcnicas, dos smbolos e dos valores que se devem
transmitir s novas geraes para garantir a reproduo de um estado de coexistncia
social2, que, homogeneamente cultural, distingue um determinado grupo social de
outro. Assim, a pesquisa de identificao e documentao das tcnicas construtivas

31

Parede e porta originais de sobrado em Berilo

desenvolveu-se em trs stios que foram inventariados, ou seja, a Regio das Minas,
a Regio do Vale do Jequitinhonha e a de So Tom das Letras, no estado de Minas
Gerais. Tal delimitao justificou-se pelo fato de que esses stios se constituam
claramente como reas cultural, histrica e geograficamente homogneas, assim
como suas subdivises guardavam caractersticas de semelhana e peculiaridades.
Buscou-se assim, tecer um fio condutor sob o qual pudssemos ler, atravs da
paisagem, a formao daqueles stios, compreendendo os elementos que distinguem
histrica e culturalmente os grupos sociais que neles vivem.

A Regio das Minas


Pode-se observar, na poro central do estado de Minas Gerais, um stio que nessa
pesquisa denominou-se como Regio das Minas, cujo centro geogrfico a capital
do estado, Belo Horizonte, e que tem como fator importante em seu processo de
formao a significativa relao entre os elementos naturais e culturais. Esse stio
conhecido como uma das regies mais ricas do estado, congregando cidades
altamente povoadas e caracterizando-se por seus municpios tipicamente urbanos,
em sua maioria, bastante desenvolvidos nos seus mais diferentes aspectos.

32

Detalhe do altar da Igreja Nossa Senhora do Rosrio


em Chapada do Norte

33

Num breve olhar sobre a rea central do estado de Minas Gerais, pode-se notar que ela
tem como elemento marcante sua paisagem natural, com os rios e morros. O relevo
, em sua maior parte, montanhoso e marcado pela presena da Serra do Espinhao,
formada por uma cadeia de montanhas que segue em direo ao norte. Considerando
ainda esses elementos, existem importantes picos e serras que conformam o macio
do Espinhao e se destacam na paisagem em todo o stio, e muitas vezes dos prprios
municpios ali presentes, que so principalmente: Serra So Jos, no municpio de
Tiradentes; Pico do Itacolomi, em Ouro Preto; Serra do Caraa, em Baro de Cocais
e em Santa Brbara, e Serra do Curral, em Belo Horizonte. Assim, muitas vezes em
funo de sua imponncia, esses elementos contriburam significativamente para
dar a feio daquelas paisagens e para orientar os homens nas escolhas dos seus
locais de fixao. Alm disso, esses elementos tambm contriburam, claro, para
a formao da paisagem cultural do stio onde surgiram os pequenos povoados que,
por sua vez, se constituram em cidades portadoras de uma cultura que guarda
caractersticas da regio.
Por detrs destas formaes montanhosas que podemos dizer que esse stio
surgiu e se caracterizou socialmente e culturalmente. O processo de ocupao e
povoamento da regio das Minas pelos colonizadores se fez, efetivamente, somente
a partir das expedies para descoberta de ouro e metais preciosos no incio do
sculo XVIII, atravs das incurses que paulistas e outros forasteiros fizeram por
esta regio, vindos principalmente de So Paulo. A primeira grande expedio,
incentivada pela Coroa Portuguesa, foi a de Ferno Dias Paes, em 1674, que, segundo
alguns historiadores, deixou marcas no territrio como o chamado caminho, velho.
A partir de ento, a descoberta de ouro e metais preciosos e o grande afluxo de
imigrantes exploradores propiciaram o surgimento de pequenos arraiais que, mais
tarde, se configuraram como vilas e, posteriormente, como comarcas. Boa parte dos
historiadores descreve que as primeiras descobertas de ouro se deram na regio
da atual cidade de Ouro Preto, no crrego Tripu, ainda no final do sculo XVII. Foi
a partir dessas descobertas que comeou a corrida pela busca desses metais nas
Minas e, consequentemente, o povoamento e ocupao da regio por outros povos.
A atividade mineradora (ouro e pedras preciosas) atingiu o auge de produo na
primeira metade do sculo XVIII, proporcionando o surgimento de uma rede de
lugares que sobreviveram e se desenvolveram em funo da minerao.
Segundo Sylvio de Vasconcellos3, nas Minas, com exceo de Mariana e Diamantina,
que tiveram certo controle da Coroa Portuguesa, a urbanizao determinada pela
minerao, consolidando-se atravs do comrcio, tendendo conformao centrpeta
do grupamento humano, com trecho urbano compacto. Os povoados se formam,
num primeiro momento, atravs dos acampamentos de uma sociedade pouco
diferenciada - com moradias precrias muitas vezes cobertas somente de sap -, e
uma pequena capela, que aglutina os primeiros aventureiros instveis - procura de
fortuna- e dinmicos no comportamento. Os povoados se desenvolvem e se elevam
a vilas. O comrcio obtm alta lucratividade e o aglomerado humano passa a no ser

34

mais nivelado em um grupo social unitrio. Surgem novas necessidades e com elas
novos profissionais: ferreiros, carapinas, alvanus, alfaiates, seleiros, entalhadores,
que vo contribuir, dentre outras coisas, para dar feio quela paisagem construda.
Dessa forma, as Minas vo sendo ocupadas por povos de origens diversas e
multiculturais, conformando uma sociedade basicamente urbana, que enfrenta toda
sorte de adversidades: a convivncia com povos diferentes; terrenos ngremes,
montanhosos, desconhecidos, de difcil locomoo e instalao; luta constante contra
as restries impostas pela Coroa Portuguesa; luta contra os prprios pares na busca
pelo ouro e metais preciosos ao mesmo tempo em que precisam se organizar para
sobreviverem. Segundo alguns autores, foram essas condies que fizeram surgir nas
Minas uma sociedade irrequieta, dinmica, rebelde, democrtica e, de alguma forma
organizada, diferente da que se fez anteriormente no ciclo da cana-de-acar, que era
relativamente estvel, paternalista e conservadora na manuteno dos privilgios.
Com o declnio da atividade mineradora no final do sculo XVIII e incio do sculo
XIX, o governo portugus incentiva a explorao de novos territrios por meio da
abertura das regies anteriormente proibidas. As Minas sofrem, por todo o sculo
XIX, um grande processo de decadncia econmica: se antes, na primeira metade

Destaque para vdia da talhadeira lisa ou cinzel chato

35

Detalhe do frechal (marcas de estrutura de pau-a-pique) com os cachorros


do beiral encaixados em Ouro Preto

37

do sculo XVIII, est no auge do seu desenvolvimento propiciado pela atividade


mineradora, no sculo XIX, j com essa atividade exaurida, atravs dos meios que
se tinha para explor-la, a regio no consegue o mesmo desenvolvimento com
a pecuria e agricultura tendo em vista a natureza do seu solo pouco propcio a
essas atividades. No entanto, pouco a pouco, durante o sculo XIX, algumas novas
iniciativas so tomadas no que diz respeito atividade mineradora, dessa vez em
relao descoberta e utilizao do ferro, mineral tambm abundante nas terras
de Minas. Verifica-se a criao, em toda a regio, de fbricas de ferro. Em 1876,
a criao da Escola de Minas, em Ouro Preto, interpretada como um marco do
que seria a nova vocao das Minas, consolidada no decorrer do sculo XX. Estas
atividades econmicas impactariam consideravelmente na formao de profissionais
especializados em determinados ofcios.
ainda interessante notar que aquela interpenetrao mtua entre os fatores naturais
e culturais daria origem a uma paisagem construda de grande significado para a
vida dos moradores das Minas. Neste contexto, destaca-se o conjunto arquitetnico
e paisagstico do Santurio de Nossa Senhora da Piedade no municpio de Caet,
santurio religioso fundado no sculo XVIII e situado no alto da Serra da Piedade, de
onde se descortina paisagem montanhosa; o conjunto arquitetnico e paisagstico do
Colgio do Caraa, no municpio de Catas Altas, que tem suas origens ligadas ao
devocional da Capitania de Minas no sculo XVIII e se transforma, no sculo XIX, em
centro de formao educacional da provncia; o conjunto arquitetnico, paisagstico
e escultrico do Santurio de Bom Jesus de Matozinhos no municpio de Congonhas,
que teve sua construo iniciada em 1757, por iniciativa do imigrante portugus
Feliciano Mendes como agradecimento de graa alcanada. Esse ltimo composto
por templo, um grande adro ornamentado por conjunto de doze profetas esculpidos
em pedra-sabo e capelas que abrigam imagens, e hoje bastante conhecido pelos
trabalhos artsticos de Antnio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, Francisco Xavier
Carneiro e Manuel da Costa Athade.
Nota-se ainda, como resultado daquela interao, a existncia dos conjuntos
urbanos, muitas vezes resultantes daquele processo que, como afirma um conhecido
historiador, no chega a contradizer o quadro natural, e sua silhueta se enlaa na
4
linha da paisagem . Neste contexto, nota-se os conjuntos arquitetnicos e urbanstico
da cidades de Mariana e de Ouro Preto, compostos por edificaes remanescentes do
perodo colonial - construdos, principalmente, no sculo XVIII -, onde se destacam
Casa de Cmara e Cadeia, igrejas em estilo barroco ou rococ e casario entre um e
dois pavimentos, construdos em pau-a-pique, adobe ou taipa, com coberturas em
telhas cermicas e relao entre cheios e vazados que obedecem a uma mesma
proporo em todas as edificaes. Tambm destacam-se seus traados urbanos
com as ruas principais, em sua maioria, acompanhando o desenho dos morros e
crregos, entrecortado de becos, travessas e ladeiras com chafarizes e pontes
de cantaria, resultado da interligao entre os antigos ncleos esparsos do incio
da minerao aurfera. importante entender tais elementos construdos como

38

evidncias claras da presena e da ao de uma


sociedade complexa naquela regio, com seus
saberes e ofcios.
Por outro lado, seria interessante notar, tambm,
que a preservao desta paisagem s foi pensada
a partir da dcada de 1930, quando as primeiras
iniciativas de preservao do Patrimnio Cultural
no Brasil se voltam para as cidades mineiras
formadas no incio do ciclo da minerao: em
1933, Ouro Preto decretada pelo Governo
Federal como Monumento Nacional; em 1938,
So Joo Del-Rey, Serro, Ouro Preto, Tiradentes,
Mariana tm o seu Conjunto Arquitetnico e
Urbanstico tombados com inscrio no Livro
das Belas Artes, pelo recm-criado, naquela
poca, Servio Nacional do Patrimnio Histrico
e Artstico Nacional (Sphan). E, nas dcadas de
1980 e 1990, trs dessas cidades mineradoras,
ou parte delas, so eleitas Patrimnio Cultural
da Humanidade pela Unesco: Ouro Preto em
1981; o Santurio de Bom Jesus na cidade de
Congonhas, em 1985; e o centro histrico da
cidade de Diamantina, em 1999, este ltimo j
fora do stio das Minas.
No entanto, nota-se que esta atuao institucional
dos rgos de preservao do patrimnio
cultural foi um importante fator, alm de outros,
para se compreender essa rea enquanto
uma unidade de anlise. Assim, quanto a essa
delimitao, existem no stio quatro localidades
que se caracterizaram ou pela ao institucional
daqueles rgos; ou pela presena do turismo
como fomentador de restauraes no patrimnio
edificado e, consequentemente, pela demanda
por profissionais das tcnicas construtivas
tradicionais; ou pela atuao de profissionais em
lugares de ocupao mais recente, que atendem
com muita frequncia aos rgos de preservao,
oferecendo seu conhecimento das tcnicas
construtivas tradicionais. Seria importante notar
que, de alguma forma, todos esses fatores esto
relacionados atuao daqueles rgos.

Pea vertical da escada da Igreja Bom Jesus


do Matozinhos em Serro

39

Serra de fita

40

Dessa forma, na localidade de Ouro Preto, Mariana e adjacncias se verificou que


a existncia de ofcios e tcnicas construtivas tradicionais se deve, principalmente,
ao daqueles rgos, que promovem constantemente cursos e atividades no
sentido de manter os ofcios sempre existentes e nos quais se faz muito presente
a atuao do rgo de preservao federal, o Instituto de Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional e, nos ltimos anos, do Programa Monumenta. Alm desses, h
a Fundao de Artes de Ouro Preto e a Universidade Federal de Ouro Preto, que
tambm so protagonistas na oferta constante de cursos de formao profissional.
Em contraposio, na localidade de Sabar e adjacncias, verificou-se a ausncia
dessas instituies, percebendo-se, assim, certo desestmulo manuteno dos
ofcios e das tcnicas construtivas tradicionais. Tal fato, contribui, a nosso ver,
tambm para a formao de uma certa paisagem esquecida.
Podemos identificar que a localidade de So Joo Del-Rey, Tiradentes e adjacncias
est fortemente marcada pela atividade turstica. Nesta localidade, principalmente,
a grande afluncia de turismo que a cidade de Tiradentes vem experimentando
nos ltimos anos tem propiciado a restaurao e manuteno de grande parte do
patrimnio edificado o que, consequentemente, tem-se revertido em demanda por
profissionais com conhecimento de tcnicas construtivas tradicionais.
E por fim, na localidade constituda por Belo Horizonte, Contagem e Nova Lima, cuja
ocupao mais recente em relao s outras localidades, os profissionais atendem
com frequncia s demandas dos rgos de preservao no somente na regio,
mas em todo o stio e at mesmo fora dele. Aqui foram constatados profissionais de
nvel superior, cuja obteno do saber relativo ao ofcio, diferentemente das outras
localidades, est menos ligados tradio e seus meios de transmisso.
No stio como um todo foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais
diferentes ofcios e que contriburam para conformar a paisagem cultural do stio e de
suas diferentes localidades. Os ofcios identificados e documentados foram: ofcio de
carpinteiro e marceneiro, estucador, forjador artstico, fundidor, marmorista, pintor,
canteiro, esteireiro, ferreiro, pedreiro, oleiro, calceteiro.
Muitos destes ofcios, diferentemente de outros tempos, hoje lidam constantemente
com fatores importantes como as transformaes tecnolgicas e legislativas, dentre
outras, como o caso da carpintaria. Nessa atividade, por exemplo, algumas espcies
de madeira tradicionalmente usadas nas edificaes do sculo XVIII e XIX, como
o mogno e o jacarand, pelo fato de entrarem em processo de extino, ficaram
proibidas de serem extradas, e madeiras antes consideradas de qualidade inferior,
como o cedro, passaram a ser mais utilizadas. Por outro lado, neste contexto,
pode-se notar que, com o processo de industrializao e produo em srie, os
elementos construtivos, que anteriormente apresentavam uma diferenciao e uma
complexidade formal, tornaram-se plasticamente homogneos. Na poca atual, o
uso das tcnicas tradicionais destina-se, na regio das Minas, basicamente a obras
de restaurao ou confeco de elementos diferenciados para edificaes novas.

41

Conforme aponta relato feito pelos prprios pesquisadores, neste sitio foram
encontrados profissionais que trabalham na restaurao de edificaes histricas da
poca do incio da construo da capital. A aplicao de trabalhos bastante elaborados
(em ferro, como as escadarias das antigas secretarias, feitas sob encomenda na
Alemanha e aqui montadas; em estuque, tanto externo como nas fachadas) fez com
que os profissionais contratados atualmente para as restauraes nestes edifcios
soubessem tanto quanto seus predecessores, observando e aprendendo o saber
fazer at mesmo na prpria obra original.
Nota-se no stio uma clara relao de transmisso do conhecimento, que se d
prioritariamente pela relao mestre / aprendiz. No universo pesquisado, somente
23% deles tiveram uma formao acadmica, tcnica ou de nvel superior. Ainda
dentre os profissionais identificados, notou-se a presena de alguns com tradio
familiar no ofcio ou ainda com aprendizado na Europa.
Interessante notar novamente, o papel da atuao institucional no desenvolvimento
dos ofcios. Em primeiro lugar, sabe-se que, assim como o traado urbano, as
relaes sociais, econmicas e culturais de Ouro Preto sempre foram condicionadas
pela atividade mineradora. No sculo XVIII, era a minerao do ouro, e no sculo XX,
do minrio de ferro e da bauxita. Outra matria prima em abundncia so as pedras,
quartzito e pedra sabo, utilizados na cantaria. Neste mesmo contexto, como afirma
a equipe de pesquisa, com a transformao da regio em plo siderrgico, houve
a necessidade de formao de mo-de-obra qualificada, o que ocorreu atravs da
implantao de cursos tcnicos oferecidos por vrias instituies.
Segundo relatos da equipe de pesquisa, em Ouro Preto, destaca-se a atividade da
cantaria que foi retomada praticamente a partir do trabalho de Mestre Juca. Seus
discpulos tm um modo prprio de trabalhar, sentados na pedra e sentindo-a. Com
uma das mos seguram a ferramenta e com a outra sentem a pedra. Nesta regio,
nos chamou a ateno o uso da pedra na tcnica construtiva tradicional.

O Vale do Jequitinhonha
Continuando nossa caminhada, agora ao longo da poro nordeste do estado de Minas
Gerais, notamos a existncia de uma regio conhecida como Vale do Jequitinhonha,
cujo rio de mesmo nome o seu principal elemento articulador, percorrendo todo
o seu territrio. Assim como na regio das Minas, nota-se que o stio tem sua
paisagem marcada pela presena dos rios. O Rio Jequitinhonha, com nascentes na
Serra do Espinhao, nos municpios de Serro e Diamantina, percorre toda a rea
desenvolvendo-se no sentido nordeste e desaguando no Oceano Atlntico, no
estado da Bahia. O Rio Araua outro importante rio do stio, que, afluente do
rio Jequitinhonha, nasce nas proximidades do municpio de Diamantina, percorre
o stio em sentido nordeste, paralelamente ao Rio Jequitinhonha, onde desgua no
municpio de Araua. Esses rios foram os grandes responsveis pelo povoamento

42

local, era onde as populaes se instalavam para o garimpo de diamante. O relevo


caracterizado pela serra do Espinhao, os planaltos e a depresso do Jequitinhonha,
cobertos em sua maioria pela Mata Atlntica.
A regio marcada pela baixa densidade demogrfica e pela existncia de municpios
tipicamente rurais e pouco desenvolvidos. A populao se envolve principalmente em
atividades de agricultura, pecuria, silvicultura e explorao florestal. interessante
notar que alguns mestres encontrados nesta regio tm como ocupao tambm
a atividade agropecuria, principalmente em pequenas propriedades rurais. Nos
perodos de colheita, por exemplo, esta populao desloca-se de seus lugares de
origem para exercer atividades que complementem a sua renda e garantam a sua
sobrevivncia.
O processo de ocupao e povoamento da regio do Vale do Jequitinhonha se fez
efetivamente a partir das descobertas de ouro e metais preciosos no incio do
sculo XVIII, assim como aconteceu na regio das Minas Gerais. Por volta de 1720,
descobriu-se diamante na regio do Tijuco, atual cidade de Diamantina, o que fez
com que a corrida pela busca de metais preciosos se estendesse tambm, alm
da regio central do estado de Minas Gerais, para aquela regio, correspondendo
principalmente s atuais cidades de Diamantina, Serro e Minas Novas. Alguns
historiadores relatam que, ainda no sculo XVIII, j havia tambm uma ocupao

Parede de adobe

43

ligada atividade agropecuria de subsistncia, que por auxiliar no abastecimento da


atividade mineradora, vinha se firmando aos poucos nas margens do rio Jequitinhonha,
mais prxima foz e ao estado da Bahia, apesar das restries impostas pela Coroa
Portuguesa. Cabe notar que, nesta poro
do Vale do Jequitinhonha prxima foz,
desenvolveu-se, mesmo que de forma
incipiente, as atividades mais antigas ligadas
economia baiana pecuria, agricultura e
extrativismo , haja vista a influncia que
a Capitania da Bahia exercia sobre a regio
pela facilidade de acesso atravs do vale do
Rio Jequitinhonha.
Dessa forma, a atividade mineradora fez
surgir, dos primeiros acampamentos, as
primeiras vilas e a comarca da regio. Em
1714, foi instalada a Vila do Prncipe do Serro
Frio, atual cidade de Serro, que em 1720
elevada a Comarca. Em 1729, instala-se a Vila
do Bom Sucesso do Fanado de Minas Novas,
Detalhe de pingueira construda por mestre
Aleixo em Santa Luzia
com vinculao jurdica comarca de Serro
Frio, mas vinculao administrativa, militar
e eclesistica Capitania da Bahia at 1957. Naquela poca havia na regio intenso
controle da Coroa Portuguesa quanto ocupao, trnsito e explorao dos metais
preciosos, com vistas a no perder arrecadao de impostos, uma vez que era fcil a
circulao de exploradores atravs do Rio Jequitinhonha, entre a rea mineradora e
a Bahia. Com a decadncia da atividade mineradora, em meados do sculo XVIII, a
ocupao se expande ao longo do Rio Jequitinhonha em direo Capitania da Bahia,
onde o governo portugus instala alguns postos militares, com o objetivo de melhorar
a fiscalizao da regio - que se supunha diamantfera -, e de civilizar ndios. Apesar
da decadncia, surgiam frequentes surtos de descobertas de ouro e pedras preciosas
na regio, o que despertava desconfianas da Coroa. A atividade agrria que, at
ento, se mostrava incipiente, se desenvolve. A regio de Minas Novas at a cidade
de Jequitinhonha passa a produzir algodo, inclusive para exportao, sendo uma
atividade lucrativa at aproximadamente o incio do sculo XX.
No incio do sculo XX, at aproximadamente 1970, forma-se um contingente
populacional ligado, principalmente, agricultura e criao de animais constituindo
um grupo de pequenos produtores, que atravs das relaes entre si, estabelecem
uma sociedade de proprietrios, posseiros, parceiros e agregados. Na segunda
metade do sculo XX, por iniciativa do Estado, so criadas, sem sucesso, algumas
agncias e rgos visando ao desenvolvimento da regio, como Codevale Comisso
de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha e Gevale Grupo Executivo de
Coordenao de Aes dos rgos e Entidades dos Governos Estadual e Federal do

44

Vale do Jequitinhonha. Em 1972, as chapadas so classificadas como reas de terras


devolutas e so incorporadas por empresas estatais e privadas, que implantam
projetos agrcolas, como a monocultura do eucalipto, com incentivo do Estado, para
atender siderurgia, produo de papel e celulose. Esta iniciativa levou, segundo
alguns autores, ruptura entre a fauna, flora e recursos hdricos da regio.
Como j foi dito anteriormente, os elementos construdos por moradores so
evidncias de sua presena e suas aes. E o encontro entre estes aspectos culturais e
os fatores naturais d origem a uma paisagem construda que tem grande significado
para a vida dos moradores. Como resultado deste processo, a paisagem do vale
caracterizada pela existncia de conjuntos arquitetnicos e urbansticos como os da
cidade de Diamantina. Esse acervo arquitetnico e urbanstico remonta ao perodo
colonial, no incio do sculo XVIII, com a explorao de ouro e diamantes na regio,
e se consolidou at meados do sculo XIX. O centro urbano apresenta configurao
de padro irregular, com arruamentos transversais encosta, marcados por ruas
paralelas com pequenas variaes de abertura ou desvio de alguns becos e ruas
estreitas. A cidade conta com monumentos significativos dos sculos XVIII, XIX e XX,
destacando-se a arquitetura religiosa. A arquitetura civil uma referncia especial,
com ausncia de casas trreas, ficando em destaque o conjunto de sobrados. Os
tipos mais comuns de partido so os de implantao transversal s ruas, em lotes

Rabecas

45

Fole eltrico

estreitos e em terrenos que se desenvolvem paralelamente s mesmas contando


frequentemente com ptios internos. J o sistema construtivo desperta mais ateno
pela ausncia de trabalhos de cantaria.
Alm deste significativo marco paisagstico, pode-se notar tambm a existncia
do conjunto arquitetnico e urbanstico da cidade de Serro, que remonta,
presumivelmente, metade do sculo XVIII, resultado do povoamento em busca
do ouro nas margens dos ribeires e encostas dos morros. Destaca-se a arquitetura
religiosa e civil, homognea, tpica do perodo colonial; e do sobrado na cidade de
Minas Novas: construo de grandes dimenses, pouco usuais para uma estrutura
em madeira e taipa, formada por um nico bloco em quatro pavimentos, que
aparece como um interessante exemplar da arquitetura popular do seu perodo.
Nesse stio foram encontrados mestres e oficiais que executam os mais diferentes
ofcios, saberes que contriburam para conformar a paisagem cultural do stio. Os
ofcios identificados e documentados foram: ofcio de carpinteiro e marceneiro,
canteiro, ferreiro, oleiro, adobeiro, taipeiro, pintor, ladrilheiro, esteireiro. Muitos desses
adotaram transformaes que impactaram significativamente o desenvolvimento
de suas atividades. Assim, na regio de Minas Novas e Diamantina, foram vistos
ferreiros que substituram os tradicionais foles utilizados na forja, para atiar fogo ao
carvo, por motores movidos a energia eltrica. Em Araua, a equipe notou que o

46

ferreiro visitado substituiu o fole por uma espcie de ventilador manual que funciona
atravs de uma manivela comandada pelo artfice.
A equipe de pesquisa percebeu homogeneidade no stio. Apesar das diferenas
fsico-geogrficas, socioeconmicas e histricas das trs subdivises do Vale do
Jequitinhonha, em relao s tcnicas construtivas, o que se v so semelhanas.
Uma ou outra variao foi notada no modo de executar o ofcio, mas por opo do
artfice, e no por regio.
Isso pode ser claramente notado no que diz respeito, por exemplo, produo de
adobe. Essa apresenta algumas variaes na fabricao da massa utilizada podendo
apresentar, ou no, o capim meloso que, segundo os artfices, garante uma maior
consistncia do material. Por outro lado, alguns artfices afirmaram que a ausncia
do capim meloso acelera o processo de secagem do adobe. Assim, nota-se que a
escolha pelas etapas da atividade acaba por ser bastante pessoal.
No caso dos tijolos de adobe, as condies naturais geram diferenas de produo
entre o Mdio Jequitinhonha, o Serro e Diamantina. Nessa ltima, apesar da localizao
no Vale do Jequitinhonha, a produo de tijolos de adobe se faz mais escassa devido
qualidade do solo, mais rochoso. interessante notar que a arquitetura de terra
vai predominar no Vale do Jequitinhonha, onde esta ainda pode ser vista claramente
inserida no cotidiano dos moradores. Assim, v-se que, principalmente, na regio do
Vale do Jequitinhonha, a tcnica construtiva tradicional est viva. Nessa regio, foi
interessante perceber o uso marcante do barro na construo civil.
Neste mesmo sentido, notou-se tambm, durante o trabalho de campo o claro processo
de industrializao pelo qual passaram alguns ofcios e suas oficinas, ou seja, seus
locais de execuo da atividade. Em alguns casos, a equipe de campo percebeu
que o mtodo artesanal foi substitudo pela adaptao de algumas mquinas, como
aconteceu com uma tupia e um desengrosso em duas marcenarias, em Diamantina,
para a produo de cimalhas. Nos municpios de Araua e Almenara encontrou-se
a utilizao de cimento na mistura para a produo de ladrilhos hidrulicos e pisos
cermicos queimados utilizados em obras de restauro.
No Baixo Jequitinhonha, nos chamou a ateno a existncia de um ofcio ligado
produo arquitetnica ecltica da segunda metade do sculo XIX e da primeira
metade do sculo XX com destaque para a produo de ladrilho hidrulico e serralheria
artstica. Por outro lado, foram identificados ofcios ligados presena indgena na
regio, como a produo do forro de taquara, a cobertura em folhas de coqueiro e
o uso da mistura, utilizada como pintura, feita com barro branco, conhecida como
tabatinga - esta mistura feita de gua, goma de mandioca e, em alguns casos, leite.
Por fim, destaca-se que a execuo ou no das atividades durante o ano est ligada
principalmente a fatores socioeconmicos migrao para o interior do estado de
So Paulo durante os meses destinados ao corte da cana; fatores climticos perodo
das chuvas e mudana da lua; e fatores culturais festas populares e religiosas.

47

So Tom das Letras


Localizada ao sul do estado de Minas Gerais, a regio de So Tom das Letras tem
sua paisagem marcada pelas formaes naturais, como a conhecida Serra de So
Tom das Letras. Outro marco que chama ateno a Serra de Cantagalo, que
aparece tambm como um elemento marcante na paisagem. Em especial, essas
duas serras conformam um vale em meio ao qual se desenvolveram algumas cidades
da regio.
Neste mesmo meio natural, marca tambm a paisagem da regio, a presena
dos grandes e importantes rios: o Grande e o Verde, alm de outros pequenos
ribeires, como o Ca, o Peixe, o Cantagalo e o Vermelho, que desaguam no rio
Verde. Certamente, considerando-se esse meio natural caracterizado pelas serras,
cobertas por densa vegetao e rios, chama tambm a ateno a grande quantidade
de nascentes ali existentes. Percebe-se, assim, na paisagem, as diversas formaes
rochosas distribudas em todo o seu territrio, que resultam em cachoeiras e grutas,
bons atrativos para turistas, mas que esto envolvidas tambm pelas atividades
mineradoras. claro que, em meio exuberncia de suas matas, existem reas onde
a vegetao escassa, coincidindo com atividades antrpicas como agropecuria e
minerao.
Se por um lado nota-se o papel das formaes rochosas na formao da paisagem
natural, nota-se tambm seu papel na formao da paisagem construda, atravs,
principalmente, de sua explorao pela minerao. das formaes rochosas
especificamente que so extradas pedras ornamentais quartzito So Tom, em
que se ancora grande parte da economia local, mas que tem trazido profundas
degradaes ao ambiente natural do stio. H predominncia dos quartzitos de
colorao branca, amarela e rosa, denominados comercialmente de Pedra So Tom
Branco, Amarelo e Rseo. Os quartzitos brancos predominam nas exploraes, os
amarelos correspondem aos nveis superiores das jazidas, mais suscetveis aos
processos de alterao devido percolao de guas metericas, e os Rseos
ocorrem nas extremidades da frente de lavra. Desde as primeiras ocupaes do
municpio, verifica-se a utilizao das pedras quartzito em sua arquitetura verncula.
O municpio possui ainda um grande acervo arqueolgico, representado por inscries
rupestres espalhadas no seu territrio. Esse, no entanto, muito degradado, seu
valor parece no ser conhecido ou desprezado. Alm dos stios arqueolgicos com
inscries, existem relatos de moradores do municpio que afirmam ter encontrado
objetos de pedra, bastes e cabeas de machadinhas.
A ocupao da regio foi tambm bastante caracterstica: diante da povoao do
sudeste brasileiro, o municpio de So Tom das Letras se fez notvel pela sua
localizao ao sul da Capitania de Minas Gerais, cuja comarca do perodo colonial
pertencia do Rio das Mortes, uma das trs primeiras existentes na capitania. A
posio estratgica dessa regio foi reforada pela poltica de integrao da regio

48

Casa de pedra construda por mestre Vitor Castro


em So Tom das Letras

49

Preparao da pedra com corte manual

centro-sul que visava, em seus objetivos econmicos, garantir a produo e o


abastecimento da Corte no Rio de Janeiro. Foi nesse contexto que surgiu o ncleo
urbano de So Tom das Letras, prximo ao ncleo de Baependi - cujos primeiros
relatos a esse respeito so datados de 1770 - com a ereo de uma capela que,
posteriormente, em 1785, foi substituda pela atual Matriz. No entorno desta igreja
foram construdas as primeiras residncias e delimitado o primeiro traado das ruas,
com o eixo principal no sentido sudoeste-nordeste, que ligava a Igreja Matriz com a
Igreja Nossa Senhora do Rosrio, localizada ao nordeste do novo ncleo urbano. At
1897, foram abertas novas ruas e o nmero de edificaes aumentou. O traado das
ruas e o desenho original das quadras foram preservados, ou seja, novas edificaes
e ruas foram apenas adicionadas malha original.
A formao socioeconmica do municpio est estreitamente ligada extrao das
rochas de quartzito - a denominada pedra de So Tom. Essa extrao pode ser
definida, historicamente, em cinco estgios. O primeiro deles compreendido pela
retirada dos primeiros fragmentos de rocha, utilizados pelos colonizadores para
construir seus templos e suas moradas at o final do sculo XIX, quando as lajes do

50

quartzito j estavam circulando pela regio que faz o entorno da serra. O segundo
durou do final do sculo XIX at o incio da dcada de 1940, quando iniciada, no alto
da serra, a indstria da pedra, termo utilizado pelos prprios mineradores. O terceiro
estgio se deu entre as dcadas de 1940 e 1970, poca em que provavelmente a
utilizao de explosivos foi incorporada ao mtodo de lavra. O quarto se estende de
1970 at a dcada de 1990, e tem como marco o incio da atuao do poder pblico
sobre a minerao e os agentes fiscalizadores, que passaram a controlar a extrao
dos quartzitos em funo da degradao ambiental gerada pela atividade. O ltimo
estgio corresponde incorporao de medidas que visavam satisfazer as exigncias
dos rgos fiscalizadores do meio ambiente como maneira de garantir a permanncia
da atividade mineradora no alto da Serra de So Tom das Letras.
Na fuso de elementos naturais e culturais que formam a paisagem construda, alm
do conjunto arquitetnico e urbanstico de So Tom das Letras e Matriz de So Tom
das Letras, destaca-se tambm o conjunto arquitetnico e urbanstico da Capela de
Nossa Senhora do Rosrio - que, assim como o primeiro, remonta segunda metade
do sculo XVIII.
Nesse stio, os ofcios identificados e documentados foram os de canteiro e
taipeiro. No entanto, h um predomnio do uso da cantaria como principal tcnica
construtiva utilizada pelos mestres e desenvolvida segundo caractersticas bastante
particulares.
Em So Tom das Letras, foram tambm entrevistados os denominados pedreiros
de pedra. Todos apresentam parentesco e esto ligados histria da cidade e das
construes em pedra. Em suas falas mostraram, sem exceo, a influncia dos
antepassados, a profunda ligao com a natureza e a intimidade com a pedra.
Utilizam a mesma tcnica, com suas peculiaridades trabalham a pedra, mas o modo
de fazer que se torna sua marca
registrada. Ao olhar para uma
construo sabem identificar
seu construtor. Um entrevistado
afirmou: ... queria domar a
pedra. Comecei a domar e estou
aprendendo at hoje. s vezes,
acredito que ela doma a gente.
E cantou Milton Nascimento: No
meio do meu caminho sempre
haver uma pedra, plantarei
a minha casa numa cidade de
pedra.
Os entrevistados relataram com
orgulho o que sabem fazer e com
tristeza, por parte de alguns, a

Ferramentas utilizadas por Tom Roberto de Castro (Mzio)

51

situao de abandonar as construes e trabalhar nas pedreiras para sobreviver.


Apesar do predomnio da construo em pedra, foi encontrado tambm um senhor
de 80 anos que construiu muito com pau-a-pique na regio.
Na cidade de Antnio Carlos, encontramos um pintor italiano, especializado em
afresco e um pedreiro que trabalha com a pedra, que executa principalmente muros
e paredes de pedra seca ou argamassada. O pintor desenvolve outras tcnicas de
pintura e alguns trabalhos artesanais, alm do ofcio de canteiro; faz de tudo um
pouco e possui habilidades que vo desde pintura, escultura, jardinagem, trabalhar
com a madeira, fazer adobe e croch. A cidade no comporta os dois ofcios citados,
fazendo com que os oficiais desempenhem outras atividades para sobreviverem.
Por fim, podemos perceber que na regio na qual se localiza So Tom das Letras, os
municpios so ainda tipicamente rurais e pouco povoados, mas bem desenvolvidos.
O turismo uma atividade econmica importante do municpio, cujos principais
atrativos so a histria e arquitetura peculiar, com edificaes civis e religiosas
erguidas em pedra, as belezas naturais - que exibem quedas dgua, grutas, cavernas
e paredes, e tambm pelo misticismo. Entretanto, uma das maiores fontes de renda
do municpio ainda a extrao do quartzito que data desde o incio da ocupao
do arraial. Essa atividade de minerao tem se firmado como uma das principais
fontes de trabalho da populao local e tem sido feita sem planejamento, o que tem
prejudicado a atividade turstica, j que as paisagens natural e urbana esto sendo
comprometidas pela mesma.

Notas
1. SANTOS, 2002.
2. BOSI, 1995.
3. VASCONCELLOS, 1968.
4. HOLANDA, 2003.

52

Serra de fita

53

Queima do sino em So Joo Del-Rey

OFCIOS: PERMANNCIAS E
TRANSFORMAES NOS OFCIOS
Leonardo Hiplito Genaro Fgoli
Antroplogo, doutor em Antropologia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Douglas Ferreira Gadelha Campelo


Antroplogo, mestre em Antropologia.

Foi com base nas observaes, registros e impresses de campo elaboradas por cada
equipe de pesquisa que desenvolvemos esta parte do Caderno de Memrias. Durante
o trabalho de campo, os pesquisadores procuraram no se ater exclusivamente
aos materiais e s tcnicas para perseguir um conjunto intrincado de percepes,
sensibilidades e afetos dos mestres artfices em relao aos seus ofcios.
As equipes de pesquisa foram atrs ento de elementos diversos incorporados pelos
artesos em seus repertrios de experincias - resultado do emprego contnuo e
especializado de conhecimentos e prticas, acumulados ao longo de anos de trabalho.
Conhecimentos e experincias que permitiram aos mestres dominar no somente
as tcnicas mas tambm as mais puras sensaes fsicas e estticas, aplicadas ao
reconhecimento e avaliao precisos das matrias primas, esquadrinhadas para o
bom desempenho das funes visadas nos respectivos ofcios.
Na tentativa de penetrar nesse intrincado universo, foi necessrio uma escuta atenta
das falas dos mestres. Uma escuta direcionada s possveis fissuras nos tijolos
de adobe, s rachaduras das paredes de pau-a-pique e s dobras produzidas nos
ferros pelas forjas dos ferreiros para que pudssemos penetrar num universo de
percepes, sensaes e afeces que as falas dos
mestres permitiam inferir ampliando os sentidos
das prticas artesanais da construo civil no Brasil.
No entanto, quando as falas no cumpriam o seu
papel, se buscaram os veios como dizem os
mestres canteiros nos gestos, nos sons, nas
cores, nos cheiros identificados e interpretados
pelos mestres no momento em que executam as
suas atividades. A observao dos corpos de suma
importncia, j que no mundo dos ofcios vividos
pelos mestres artfices sobressai o uso tcnico do
prprio corpo, ocupante de uma posio nodal no
conjunto dos instrumentos empregados em cada
arte. A plasticidade do organismo humano, capaz

Compasso para marcar pedra

55

das mais variadas adaptaes,


produziu
correspondncias
estreitas e recprocas entre
os ofcios praticados e as
tcnicas corporais requeridas
por cada indstria, resultando
em corpos moldados pelos
ofcios e conformados para a
modelagem das diversas artes.
Sendo assim, ao ditar as
maneiras do seu uso, os
diferentes ofcios produziram
corpos finamente ajustados
tambm para reconhecer, planejar, modelar e combinar de
maneira eficiente as diferentes
matrias empregadas na construo civil. Alguns materiais
e tcnicas de trabalho dos
Oficina de Geraldo Apolnio em Ouro Preto
sistemas construtivos tradicionais, como a argila, por
exemplo, no pressupem outra ferramenta, ou pouca coisa alm do que o prprio
corpo do artfice para a fabricao do adobe ou a taipa. Os metais, entretanto, exigem
para a sua manipulao o uso de mquinas e ferramentas diversas, demandam um
corpo bastante experimentado e habituado s aes prprias do ofcio, atos que
podem variar de um simples e preciso movimento de fora, at a manipulao fina
dos instrumentos adequados. Tcnicas todas que exigem usos rotineiros, ritmados,
incorporados, seguros e ligeiros do corpo.
Essas sensibilidades treinadas reveladas pelas falas e inscrita nos corpos dos
mestres artfices se apresentaram em todas as artes: no decifrar os sons da pedra
a ser talhada, no ditar ou acompanhar os ritmos dos golpes na forja que ordenam
o trabalho associado; no reconhecer os sutis cheiros e gostos das madeiras para
decifrar suas propriedades; no praticar o delicado e gil reconhecimento ttil
das boas texturas, seja da argila, da madeira ou do gesso; na espera de vises
para a antecipao visual dos intrincados tranados das taquaras e bambus, todo
um universo prtico de sensaes, e de sentidos, que configuram esses mundos
complexos e vivos dos ofcios pesquisados. De um lado, os materiais falam, de outro,
os mestres olham, escutam e sentem, e com suas ferramentas iniciam um dilogo
silencioso para extrair o melhor de cada um deles.

56

Loja Casa de Artes So Jos em Chapada do Norte

57

Cantaria

Ofcios da Pedra

No meio do meu caminho


sempre haver uma pedra.
Plantarei a minha casa,
numa cidade de pedra.
Fernando Brant

Destaque para manuseio do ponteiro para


esculpir pedra quartzito.

Ofcios da Pedra: Cantaria


preciso escutar a pedra, ensinam os mestres canteiros. preciso v-la e
compreender a sua sade. Com o auxlio de ferramentas apropriadas, as mos
dos mestres canteiros entalham, desbastam e aparelham pedras destinadas
construo de casas e muros. As pedras trabalhadas pelas mos habilidosas dos
mestres canteiros espalhados pelas cidades setecentistas do estado de Minas Gerais
so utilizadas na construo, seja como peas estruturais, ou como ornamentos,
modelando de modo caracterstico as paisagens urbanas mineiras.
A arte da cantaria chegou ao Brasil em meados do sculo XVI. Nesse perodo, traziase diretamente de Portugal boa parte da matria-prima a ser utilizada no Brasil:
pedras talhadas, ferros fundidos e objetos de decorao portugueses foram as bases
para as primeiras construes erguidas no Brasil, desprezando-se inicialmente a
matria-prima local. Peas inteiras em calcrio Lioz vinham como lastro dos navios
para serem utilizadas nas construes pelos mestres canteiros1.
A descoberta do ouro na Capitania das Minas Gerais, em 1698, atraiu rapidamente
para a regio de Vila Rica gente de diversas partes do Brasil. Dificuldades materiais
e tcnicas impediram a reproduo dos modelos construtivos portugueses. Ao longo
dos dois sculos seguintes, a pedra nativa talhada e os mestres canteiros foram
elementos essenciais nas construes pblicas, religiosas e civis. As construes de
pedra argamassada ou seca (pedra sobre pedra, sem uso de argamassa) surgiam
vagarosamente na paisagem local2.
Trs fases se destacam no uso da pedra nas construes regionais. Na fase inicial,
foram usados para alvenarias blocos avulsos de minrio de ferro (canga). Em seguida,
vieram os quartzitos, amplamente empregados em Vila Rica, sobretudo nas partes
nobres das construes. A terceira fase do uso das rochas nas construes da vila
teve incio em meados do sculo XVIII, com o emprego da esteatita, conhecida como
pedra-sabo3.
Atribui-se a Antnio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, a adoo da pedra-sabo, pedra
muito malevel utilizada pelo artfice em inmeras esculturas, frontes e portadas
de igrejas. De acordo com Jlio Roberto Katinsky, a adoo da pedra-sabo para
ombreiras e padieiras de portas e janelas no pode deixar de ser mencionada como
inteligente adaptao s condies adversas locais j que estvamos em um pas
onde os instrumentos de ao eram to raros a ponto de comparecerem em inventrios
e a mo-de-obra to desvalorizada pela concorrncia clandestina dos escravos que,
apesar de proibida pelas corporaes, era tolerada4.
Assim, durante o sculo XVIII, o trabalho conjunto de mestres portugueses e a
primeira gerao de artfices mineiros, o emprego dos materiais ptreos locais e o

61

aperfeioamento da arte de construir deram origem s obras que caracterizaram a


arquitetura colonial das Minas Gerais.
A vinda da corte de D. Joo VI no incio sculo XIX e a adoo do estilo neoclssico
foram condies decisivas para o declnio da cantaria. O emprego de novos materiais,
a preferncia pelos tijolos nas alvenarias e o fim do trabalho escravo levaram o ofcio
s vias de extino. Consequentemente, perdeu-se a mo-de-obra especializada
em trabalhar a pedra, restrita, nesse momento da histria da arquitetura brasileira,
apenas pavimentao das ruas, pisos, escadas e revestimento de paredes.

O ressurgimento da cantaria em Minas Gerais


Quase extinta no sculo XIX, a arte da cantaria ressurge de diferentes formas em
Ouro Preto, Mariana, So Joo Del-Rey e So Tom das Letras, recebendo inmeras
denominaes, como: construo de pedra, artesanato de pedra, cantaria ou servio
artesanal, e seus mestres e oficiais so chamados de entalhadores de pedra ou
pedreiros de pedra.
Em Ouro Preto, a preservao da tcnica da cantaria foi possvel com a criao da
Oficina de Cantaria da Universidade Federal de Ouro Preto em 1995. A oficina de
cantaria criada na universidade teve como responsvel pelo ensino dessa arte o
sr. Jos Raimundo Pereira, falecido em 2006. Autodidata, hbil na manipulao da
maceta e da talhadeira, era o ltimo depositrio do saber de uma arte que ameaava
desaparecer. Assim, Mestre Juca foi tambm artfice do renascimento do ofcio da
cantaria na localidade, transmitindo seus conhecimentos a muitos discpulos. O
reconhecimento do trabalho de Mestre Juca em Ouro Preto levou-o a receber em
2002, das mos do Presidente da Repblica, a condecorao da Ordem do Mrito
Cultural a mais alta honraria para os que se dedicam s atividades culturais5.
Os trabalhos de Mestre Juca e seus alunos foram se mostrando de suma importncia
em diversos aspectos, pois alm de preservar em uma prtica e um saber tradicionais,
a manuteno da tcnica da cantaria se mostrou fundamental para os trabalhos
de restaurao de prdios histricos. Ediniz, aprendiz muito prximo de Seu Juca,
comenta: Muito raro algum fazer uma pea l na oficina que no tenha a ver com a
cidade. A gente comeou a ver que isso era legal porque formvamos pessoas para
trabalhar na restaurao. A gente tava capacitando pessoas pra fazer o patrimnio
de Ouro Preto. Para manter a caracterstica, manter aquilo que l. pedra, ento
vamos fazer de pedra. Toda a vez que vou capacitar algum aqui na oficina, a gente
trabalha com esse mesmo princpio. Vamos observar a cidade pra gente fazer as
peas parecidas. Porque quando for preciso restaurar a gente j tem uma idia.
Aquilo no ser to novidade assim.
Em Coronel Xavier Chaves, municpio prximo a So Joo Del-Rey, a cantaria tambm
ressurge com fora no incio dos anos de 1990. A cantaria nessa localidade tem
como pioneiros Mestre Davi e Mestre Jos Maria Mendona. A cantaria na regio

62

surge como uma promissora fonte de renda


para os mestres canteiros que comearam
a produzir peas talhadas em pedra com
o objetivo vend-las aos turistas que
visitavam So Joo Del-Rey e Tiradentes.
Apesar de no haver uma preocupao de
manuteno do patrimnio como em Ouro
Preto, o modo de fazer e as tcnicas em
muito se assemelham.
Se distinguirmos os estilos da cantaria em
Minas Gerais entre a arte da pedra esculpida
em grandes peas, como a predominante
em Ouro Preto, Mariana e So Joo DelRey, e aquela cantaria talhada, que visa o
ajustamento de partes distintas, de pedra
sobre pedra e sem argamassa, esta ltima
tcnica construtiva alcana sua melhor
expresso em So Tom das Letras.
Estilos diferentes, porm com semelhanas,
ambas as tcnicas escultricas supem a
ao hbil da mo para dar a forma s peas,
o que requer destreza em dividir e talhar,
e tambm em analisar e compor um todo
com as partes. Ao modeladora da mo
sobre a pedra, guiada pelas descobertas do
artfice dos segredos da matria, porque as
aes da mo ao dividir e talhar se orientam
pela anlise das formas e da composio
das estruturas ocultas da rocha. Destreza
das mos para manipular as ferramentas,
por um lado, e sensibilidade aguada para
descobrir as estruturas ocultas da natureza,
para sentir e compreender esse dilogo
mudo, que ir determinar as aes da talha.

Mesa de trabalho com cantaria e escultura em pedra

Na tentativa de descortinar ou de ao menos nos aproximar desse universo,


privilegiaremos a fala de trs mestres herdeiros de tradies distintas da arte da cantaria
em Minas Gerais. Para entrar num emaranhado e intrincado fluxo de pensamentos,
percepes e formas de se relacionar com a pedra e com o mundo, iniciaremos com
a fala de um dos mestres canteiros de So Tom das Letras para depois entrarmos
nas falas dos mestres canteiros de Ouro Preto e Coronel Xavier Chaves municpio
prximo a So Joo Del-Rey. A partir da fala desses trs mestres temos uma sntese
das questes, particularidades e semelhanas entre as trs tradies.

63

So Tom das Letras


Tem uma pedra enterrada no planeta
So Tom das Letras!
E essa pedra j no faz minha cabea
Pedra ramada, pedra branca, pedra preta
Um arco-ris num Vale das Borboletas
E essa pedra quis espalhar em meu planeta
So Tom das Letras!
So Tom das pedras, das lendas!
tudo o que eu preciso
Aqui o paraso
Tem o cu, o luar, a noite pra gente cantar
Aqui tem noite escura
Aqui tem nostalgia
E tem minha poesia
Tom Roberto de Castro
Mestre canteiro de So Tom das Letras

Aps trs tentativas fracassadas, ao longo da semana, de realizarmos uma


entrevista com Francisco Vitor Rosa mais conhecido como Vitinho Rosa foi no
sbado, em uma manh ensolarada do ms de maro, que conseguimos nossa
entrevista. Sempre esguio, Francisco Rosa nunca aparecia, como combinado, para a
entrevista. No entanto, apesar dos desvios de nosso entrevistado, sentamos que era
extremamente importante uma conversa.
Seguindo nossa intuio, numa sexta-feira, s vsperas de retornarmos para Belo
Horizonte, conseguimos encontrar com Francisco Rosa voltando do seu trabalho.
Cansado de nossa insistncia, mas com bom
humor, fez a seguinte exigncia: a entrevista
acontecer aps o treino de Frmula 1.
Aceitamos a sua condio e alguns minutos
aps o treino estvamos sentados sobre o frio
cho de pedra da calada da casa de Francisco
Rosa, que ainda no havia sido esquentada
pelo sol matinal.
Comeamos a entrevista. Francisco possui uma
voz extremamente grave. Quando percebe o
quo grave est a sua voz, ele relembra do
pai: eu estou acordando, eu tenho a voz um
pouco grave de manh. Essa voz negra. Meu
pai tinha essa voz grave, essa voz negra.
Mestre Tom Roberto de Castro (Mzio)

64

Aps esse comentrio, perguntamos como


denomina o seu ofcio e logo percebemos que

Francisco raramente responde pergunta de maneira direta. Sua narrativa repleta


de desvios, sobreposies e meandros. Ele responde: Eu vou comear pelo comeo.
Normalmente, as pessoas, onde elas esto, elas se adaptam ao ambiente em que
vivem. Eu acredito que l no comeo, quem descobriu So Tom das Letras, usou
a matria-prima que tinha aqui na poca: a pedra. Eles a trabalharam para montar
as suas casas, da que veio a cidade. Ento, quando criana, eu nasci em cima das
pedras e fui vendo as construes, fui crescendo, o tempo foi passando. Meu pai
trabalhava na pedra, foi um dos pioneiros na pedra. Ento, eu fui direto trabalhar
com a pedra e desde criancinha, vendo aquilo ali e mexendo com as pedras, sempre
construindo, desde pequeno, aquelas casinhas de pedra eu fui sobrevivendo delas. A
me chamaram para trabalhar, pois viram que eu tinha como trabalhar com construo
de pedra. Ento eu comecei a trabalhar, mas vendo que eu tinha que trabalhar mais
ela. Tinha que ir vendo o servio dos antepassados...
Aps essa bela introduo, Francisco Rosa fala sobre a sua infncia, as pedras, o
aprendizado e escolhas relacionadas ao modo de trabalhar: Eu comecei meio cedo no
servio, com oito anos eu comecei a trabalhar. E trabalhando nessa linha de talhar de
forma cuidadosa a pedra. Fala-se recortar as pedras, n? Eu comecei logo a recortar
as pedras. E vi que o recorte era uma coisa gostosa de fazer. Dentro do trabalho de
extrao das pedras, o recorte uma coisa que eu sentia mais prazer de fazer. A
eu comecei...

Eu sempre tive esse dom tambm, eu sou um pouco curioso, muito curioso de
conhecer o desconhecido, sabe? A, eu queria alm de recortar a pedra comear a
dom-la. Eu estou aprendendo a domar a pedra at hoje. difcil porque, muitas
vezes, a gente acha que sabe domar a pedra. Esse o perigo. Eu acredito que ela
que doma a gente, mas voc tem que trabalhar com ela, conversar com ela.
Quando criana, eu j observava as formas de trabalhar e percebia que existem
umas formas mais trabalhadas, outras menos trabalhadas, outras nada trabalhadas.
Alguns pedreiros pegavam a pedra bruta do jeito que estava e eles j colocavam
sobre os muros. A gente, enquanto criana, s vezes nem olha bem para esse lado.
Mas, com o passar do tempo, voc vai vendo
Quer um exemplo? Essa igreja aqui do Rosrio, acho que ela foi terminada em 1978.
Ela uma construo inacabada. Ento. Enquanto criana eu brincava em cima
dela. A gente escalava a igreja e andava em cima dela. Ento eu cheguei a ver as
pedras empilhadas pelos escravos. Hoje, eu tenho essa conscincia, assim, mais
clara. Porque antes no, antes eu corria e via aquilo. Mas eu no percebia. Estava
vendo que a igreja era feita da forma como eu gosto atualmente de trabalhar com a
pedra. Na poca, eu no tinha tanta conscincia de que ela era mais encaixada. Com
o passar dos anos que a gente envelhece e o corpo fica lento, mas a cabea vai se
encaixando, as peas, l dentro, se assentando, como as pedras. Ento, eu acho que
a gente aprende s vezes da raiz, da raiz do nosso passado, porque, normalmente
tudo j est na cabea da gente, j est tudo pronto na cabea. com o passar dos

65

66

Pedras filetadas de quartzito

anos que a gente vai reaprendendo aquilo. Reaprendendo a refazer aquelas coisas.
Ento, eu acho que ela tem que ser bem encaixada como as pedras da Igreja do
Rosrio. Tem uns que usam outra forma. Mas a minha tcnica essa de encaixar
bem. E bem devagar, bem processo lento, tranquilo.

Escolha esttica e tcnica


E quando eu comecei a trabalhar eu j adotei essa linha de trabalhar mais a pedra.
Eu no usava ela muito bruta, no. Pode-se usar ela bruta, mas ela fica um pouco
rstica. Aqui em So Tom cada um trabalha de uma forma. Tem uns que trabalham
a, deixam as pedras mais brutas, mais rsticas. Tem outros que trabalham mais ela,
principalmente eu e meus primos. Acho que foi a forma que aprendemos com nossos
parentes. Eu sempre procurei aperfeioar o meu trabalho para que ele fique bem
perfeito mesmo. Virginiano tem essa mania de ser perfeccionista. E ela trabalhada,
fica mais... Ela entalhada, igual eu falo com voc, ela fica mais...

Aprender com a pedra


Acho que agora, com a conscincia do processo que adotei, que eu tenho essa
viso. Quando eu comecei a trabalhar eu tinha uma forma, via e trabalhava da
forma que eu gostava. Mas com o processo de ir trabalhando, quanto mais voc vai
trabalhando, mais voc vai aprender com o trabalho. Voc consegue tirar do seu
trabalho o mximo de voc.
Ento, eu estou nesse processo de tentar tirar do meu trabalho o mximo de
aprendizagem com a pedra. Porque ela tambm te ensina como ser usada, o lugar
que voc tem que colocar. Eu pego uma
e penso no, essa aqui daquele lugar,
ela est querendo ser colocada naquele
lugar. Ento, eu acredito que bem assim
balanceado. Voc j acha ela e acha o lugar
dela. Voc s tem que deslocar ela at o
lugar dela para construir. Ela j est ali para
ser colocada l naquele lugar. por isso que
eu continuo aprendendo com ela. Voc pega
uma pedra l, bruta, voc no sabe o que,
onde que voc vai colocar, ela um quebracabea. Tem hora que voc est num monte
de pedra e voc no acha. A, voc vai para
outro canto, acha outra de l, outra de c e
s vezes voc estava em cima daquela pedra
que voc estava procurando. por isso que
tem de ter muita pacincia!
Casa de mestre Tom Roberto de Castro (Mzio)

67

Conversar com a pedra


por isso que voc tem que conversar com a pedra. Algumas vezes voc a golpeia,
e ela te golpeia. Nessa, vai a cabea de um dedo embora, vai uma bolha na mo.
Ento, se voc quebra a pedra, ela tambm te quebra de vez em quando. Tem dia
que se voc estiver de mau humor, brigado com a mulher, a... A tem um perigo
danado de se machucar. Por isso, que eu me recuso ficar de mau humor e brigar
com a esposa, porque eu vou chegar l no servio eu vou acabar me machucando.

Mudanas ao longo do tempo


No passado, aqui em So Tom por ser um quilombo, eu acredito... E volto a repetir
a histria, o pessoal tinha todo o tempo do mundo, eu falo dos fujes, os quilombolas,
era uma outra histria...
Eu acredito que esse trabalho artesanal mesmo, diferenciado de alta produo.
Por isso, parece que antigamente no se usava a linha e o prumo e, sim, o olho.
Tem uns que falam: a linha burra. At hoje eu acho que essa tcnica vem l dos
meus antepassados. Muitas das vezes eu no uso prumo e nem linha. Eu vou no
olhmetro, algumas vezes eu uso o prumo e a linha. Por qu? Para conferir se o
olhmetro est bom. Apesar da minha vista estar um pouco cansada, ainda est
dando para ver bem. O olhmetro funciona bem, j est... Como se diz: o ndio j
tem o caminho na cabea. O olhmetro, j vem embutido: o prumo e a linha.
Vocs estiveram na Igreja Matriz? L em cima na torre? L em cima ainda tem pedra
de 8, 10 toneladas que foram parar l em cima daquela torre em 1700, cara! Naquela
poca no tinha mquina. No tinha mecanismo nenhum! Os caras usaram a tcnica
para deixar a pedra l, tipo aquela obra... Machu Pichu. Os caras colocaram aquelas
pedras l... Aqui tambm, colocaram porque... uma pacincia. uma engenharia
dos burros que eles falam. Eu j ouvi falar, no tenho certeza. Eles soltavam o
burro na estrada para poder acompanhar o burro. Eles colocavam um peso bom em
cima dele, nas costas dele, e normalmente ele estando pesado ele no queria subir
morro, ele ia buscando os lugares mais baixos. Ento eu acredito que antigamente
eles tambm tinham essa tcnica dos burros. No se usava tanto a fora, usava-se
a sabedoria para colocar as pedras nesses lugares. Eu tambm, de vez em quando,
ainda uso as tcnicas dos burros para colocar uma pedra em cima, uma pedra
pesada, quando no tem ningum para ajudar, ainda uso a tcnica dos burros e
consigo colocar sem muita fora. Porque a pedra mesmo ensina a gente...
Olha para voc ver, uma outra engenharia. Meu pai e o pessoal antigo da cidade
falavam dar fogo, explodiam as pedras. Eles pegavam uma pedra e colocavam
canela de ema [Vellozia squamata] por baixo da pedra. Pegavam um pedao de
ferro e levantavam ela numa altura, principalmente a parte que a gente chama
de pedro. Pedro uma parte bem grossa assim. Eles levantavam aquele bloco,
pegavam a canela de ema e colocavam em cima daquele bloco, de uma distncia
que ia da ponta do bloco at o meio do bloco, e colocavam fogo. Deixavam aquilo ali
queimando numa noite inteira com bastante canela de ema. Depois, no outro dia,

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eles raspavam, puxavam aquela canela de ema para fora dali e jogavam gua. A,
colocavam um choque e quebravam ali. Eles falavam dar fogo, ento at hoje ainda
se usa essa palavra dar fogo, porm hoje nos garimpos se utiliza as dinamites.
Atualmente, acho que o pessoal tinha que usar melhor a pedra. Acho que a cidade, a
estratgia da cidade, o lugar, a cidade muito conhecida. Tinha que se explorar melhor
a pedra. O garimpo est desenfreado. Esto s tirando e destruindo, destruindo... E
construindo quase nada. E... Parece at difcil, no fcil, entalhar uma pedra e pegar.
Mas que nem voltar atrs como eu estava falando. tempo, o pessoal precisa ter
tempo, ter mais calma com ela. Ela uma matria-prima muito boa. pedra, n? Se
voc faz uma construo de pedra uma coisa eterna. Como l no Peru.

Percepes
E voc, quando est trabalhando, est sozinho. Tem vezes que quando voc bate a
ferramenta o eco ecoa l longe. Voc v o silncio. Voc consegue ouvir o silncio.
Eu consigo ouvir o eco da minha voz. O barulho das pedras, quando voc joga as
pedras assim, voc v o barulho delas ecoando... l longe. A msica eleva a gente, a
alma, o esprito. Tem uma do Milton Nascimento... Longe, longe, ouo essa voz. Que
o tempo no... engraado, quando moleque eu gostava muito de gritar. Como aqui
pedra para todo lado, eu gritava, o eco ia l longe. Eu ficava gritando para ver o
eco da minha voz, entendeu?
Eu gosto de trabalhar assim, de levantar antes do sol. Levantar e agradec-lo pelo
dia que ele vai iluminar. Astro rei, est l em cima iluminando a gente o dia todo. O
dia todo eu vou conversando com ele. O dia todo eu converso com ele: astro rei.
astro rei tarde n?. A eu fao o meu agradecimento. Porque para mim um
astro. O astro dos ndios. Diz que os ndios saudavam o sol e a lua. Eu acredito que
l na me frica tambm se sada o sol e a lua. A minha filha, quando passa por
mim, eu sempre falo com ela. Ns nos encontrvamos muito na lua, pois de vez em
quando ela me diz: pai, ontem eu olhei para a lua, eu vi que voc estava na lua. Ela
tambm est sempre nessa linha, olhando para a lua, o sol, as estrelas...
Da mesma forma que eu converso com a minha filha, eu conversei com o meu pai
e foi numa conversa com o meu pai um dos pioneiros em So Tom das Letras
com relao construo de pedra que ele me contou. E eu acredito que isso
aqui foi um quilombo. Havia uma fazenda aqui perto e houve um assassinato nessa
fazenda. Uma histria muito comprida. Os fujes dessa fazenda vieram para c. E
aqui, quando eu era mais novo, eu via muitas construes de pedra esparramadas
pela serra, no meio do mato. por isso que eu falo que foi um quilombo. Porque
naquela poca, em torno de 1700, eles vieram para o meio do mato, na serra virgem
e comearam a trabalhar a pedra. Eu imagino que esses fujes devem ter vindo de
Ouro Preto, So Joo Del-Rey. Eles devem ter aprendido por l a entalhar a pedra.
Partindo da fala de Francisco Rosa, em So Joo Del-Rey e Ouro Preto que
encontramos com dois outros importantes canteiros: Ediniz Jos Reis e Jos de
Ftima, e nos deparamos com a reinveno da cantaria em ambas as cidades.

69

Ouro Preto

A cantaria era uma coisa bem, era mais uma poesia...


E eu vou te falar que todas as minhas curas so com pedra.
Ediniz Jos Reis mestre canteiro de Ouro Preto

Conversar com Ediniz Jos Reis sobre a sua relao com a cantaria trazer tona
a figura de Seu Juca importante mestre e canteiro de Ouro Preto. A relevncia de
Seu Juca na formao de Ediniz percebida quando diz: Eu descendo de um mestre.
Eu no fui a uma faculdade. Eu fiquei com meu mestre por mais de dez anos. A
formao de Ediniz na arte da cantaria iniciou-se quando Seu Juca administrava o
curso de cantaria na FAOP (Fundao de Arte de Ouro Preto) para a sua segunda
turma. Desde ento, Ediniz foi um aprendiz bastante prximo de Seu Juca, at a sua
morte em 2006, e com ele realizou trabalhos de restaurao, alm de ajud-lo nos
cursos de cantaria para as turmas posteriores.
Ediniz relembra quando foi apresentado a Seu Juca: a gente comeou a bater papo,
e eu fui descobrir que seu Juca era vizinho dos meus pais. Ele conhecia toda a minha
famlia. Inclusive ele me conhecia desde pequeno. E a, eu gostei. Ele tambm gostou
de mim. E como ele estava fazendo um trabalho de restauro, ento ele falou para
mim: ! eu estou fazendo um trabalho l, se voc quiser... A, eu fui ajud-lo, n?
Ele trabalhava sozinho na poca [1998], no tinha ningum que trabalhava com ele.
A gente tinha uma amizade muito boa. Eu vou te falar que aprendi muita coisa que
eu nem imaginava que pudesse aprender.
Ediniz narra algumas historietas sobre o modo de ensinar e a forma de Seu Juca se
relacionar com as pessoas: Porque . Ele . Ele era uma pessoa que tinha uma forma
de ensinar bem diferente. Ele era prtico. Ele no chegava e falava o que voc tinha
que fazer. Ele geralmente fazia e falava: olha aqui o que eu estou fazendo. E, se
voc no tivesse uma percepo, ele saa e te deixava. Ele te dava a pedra, ia l e
rabiscava o desenho, faz isso a. E ele fazia um pouco pra gente ver, e saa.

Eu me lembro de uma vez que ele pegou uma marreta de 15 quilos e comeou a
bater numa pedra. Ele est batendo, batendo e eu olhando. Ele dizia: olha a. Eu
falei: t... A, eu pensei: p, esse moo no vai me deixar bater nessa pedra? Passou
40 minutos, 50 minutos... Ele batia sem parar, o suor j tava pingando nele. Eu
falava: seu Juca, deixa eu dar uma batida, a? Ele: no, olha a, primeiro! Falei: t.
A, uma hora e quinze dele batendo na pedra, ele virou e perguntou: toma, voc viu
mesmo? Falei: vi.
Eu peguei a marreta, olhei pra ele, falei: , agora que eu vou mostrar proc. Vou

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quebrar essa pedra a com uma marretada s! Peguei a marreta e dei uma pancada
na pedra. Do jeito que a marreta foi, ela voltou dois metros. Ela foi l longe e me
levou junto. Seu Juca virou pra mim e falou: Est vendo! Voc no tava me olhando!
A, ele pegou a marreta, continuou e disse: Olha a!
Eu vi o que ele estava fazendo. Vi o que que ele fazia. Ele pegava a marreta, jogava
ela pra cima, batia ela na pedra e a deixava cair. Ele fazia o pndulo, s a fora inicial.
Na hora que ele batia na pedra, a marreta quicava. A, ele deixava a marreta vir,
fazer o pndulo e voltar.
Essa era a praticidade dele. Ele j tinha aquele costume de trabalhar. Ele comeou
com cantaria, acho que com cinquenta e poucos anos. No foi o primeiro ofcio da
vida dele. Ele j teve outros porque ele j tinha sido aposentado umas duas vezes.
Ele j tinha muita experincia de vida e de profisso. Ento, ele fazia a coisa de
forma bem natural, sabe?
Alm disso, Seu Juca tinha muita fora de vontade. Ele fazia questo que a gente
entendesse isso, que era necessrio ter fora de vontade e querer fazer o negcio.
Por isso que o Seu Juca, ele no fazia nada pelo dinheiro, pra ele o dinheiro era uma
coisa que no importava, entendeu? s vezes, ele pegava um trabalho, ele fazia um
trabalho na cidade e ele pagava a gente com o dinheiro dele. Ele sabia que a gente
tinha que ter dinheiro e a prefeitura no pagava, ou ele mesmo no pegava todo o
dinheiro, ento, ele pagava.
A cantaria para ns era uma coisa bem... Era mais uma poesia, sabe, a gente tava
preocupado em desenvolver a tcnica, porque a nossa tcnica era muito rstica.
Ento, por exemplo, a maceta, tinha uma maceta s. Eu peguei essa ferramenta,
trouxe aqui, na mina. A gente conseguiu que eles fizessem mais. A gente tinha essa
vontade de fazer, de descobrir e ir atrs das coisas que facilitassem o nosso trabalho
e a gente tinha que descobrir. Porque toda a cantaria aqui era o que Seu Juca sabia,
o que ele sabia era experincia dele mesmo, ningum nunca chegou pra ele e falou:
, assim. Entendeu? Ele sozinho foi desenvolvendo e descobrindo.
Sobre a condio de mestre: por isso que eu considero Seu Juca um mestre.
Primeiro, o mestre tem que ter experincia de vida. No adianta eu falar que eu sou
um mestre. Eu no sou. Por qu? Porque eu no tenho experincia de vida. A vida
tem essa carga que voc leva. Ela te ensina muita coisa. Ento pra ser mestre eu
acho que a pessoa deve ter mais de cinquenta anos de idade. Porque, a, sim, ela
j uma pessoa madura. No no trabalho, mas na vida. Porque, quando o Seu Juca
est trabalhando, o trabalho faz parte da sua vida e vice-versa. O mestre tem que
ter essa dedicao tambm no trabalho. Eu acho que so fatores fundamentais. No
adianta falar que eu sou um canteiro. No sou. A gente est aprendendo e isso vai
ser um aprendizado at o final da vida.
Ediniz diz que os canteiros discpulos de Seu Juca trabalham da seguinte maneira.
Todos ficam sentados na pedra segurando-a. Com uma das mos seguram a

71

ferramenta e com a outra sentem a pedra. Ediniz comenta que preciso fazer isso,
pois no se trata somente de uma pedra e sim de um objeto diferenciado. Deu uma
pancada mal dada nela, volta tambm. E ainda, sempre que a gente est trabalhando
estamos com a mo na pedra. Isso pra poder escutar a pedra. Ali, quando se d
um batido que o som diferente, voc consegue entender aquele som. porque o
material est vivo, com muita energia. Eu, quando eu vou tirar uma pedra maior,
sempre vou ao seu lado e peo licena. Pra ela me levar onde eu preciso, que pra
eu no ficar perdendo tempo e para eu ter uma ligao com ela, justamente pra
voc entender o que tem na sua frente. A pedra tem energia. Se ela no quiser sair
dali, ela no vai sair. Ela tem uma vida prpria, ela est mudando, ns no vemos o
processo. bem diferente a questo do tempo. Mas, ela muda! At mesmo as pedras
que esto ali no patrimnio, elas esto mudando. E eu, na poca, escolhi trabalhar
com a pedra justamente por causa disso.

Engraado, s vezes a gente est trabalhando e no est legal a energia, a gente tem
que parar. Entendeu? E quem trabalha com a pedra eu tenho certeza absoluta que
sente isso. O quartzito, me parece que ele passa mais isso, ele vibra mais. Quando
voc t trabalhando com ele, ele tem uma vibrao maior. Ento, se ela vai quebrar,
ela te avisa antes. uma coisa que se aprende com o tempo, at mesmo quem no
tem muita sensibilidade, comea a trabalhar e com o tempo vai percebendo isso.
Ediniz afirma que seu trabalho bastante direcionado para a preservao do
patrimnio arquitetnico da cidade de Ouro Preto, como tambm o era o trabalho
de Mestre Juca, e questiona a falta de reconhecimento no Brasil dos profissionais
que no se formaram em universidades, como o seu caso. E por que eu preciso
de um diploma para fazer uma restaurao? Tem que ser um arquiteto? Eu venho
sofrendo com isso. Eu preciso ter um diploma pendurado pra poder falar que eu
tenho condies de fazer uma restaurao. (...) Ento, essa questo uma questo
que, n, eu j quis estudar vrias vezes, n. Ano passado at eu fui fazer prova,
eu fui fazer supletivo de novo. Da eu at passei em todas. Fui fazer vrias, vrias
provas, passei em todas. Tinha 14 anos que eu no estudava. Mas, a, vai fazer o
vestibular. A, ao mesmo tempo que eu vou l fazer a matrcula, volto no meio do
caminho: ah, quer saber, no vou! No , no , eu tenho que manter essa linha,
entendeu? Porque se isso acaba. Agora, c tem que ter os valores, n, esses valores
eles tm que existir. Entendeu? Porque, p, eu t dedicando mais da minha vida, o
tempo todo da minha vida a esse negcio. Entendeu?
Se em Ouro Preto encontramos uma forte relao da cantaria com o patrimnio da
cidade, em Coronel Xavier Chaves a cantaria se atualiza na forte relao comercial
com lojistas e revendedores encontrados nas cidades vizinhas: Tiradentes e So
Joo Del-Rey. A cantaria na localidade comeou a se expandir no incio dos anos
de 1990. Inicialmente, nos reporta Jos de Ftima Aparecida Chaves, os principais
compradores eram turistas que visitavam So Joo Del-Rey e Tiradentes e passavam
na cidade para conhecer nossa arte em pedra.

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So Joo Del-Rey e proximidades


a cantaria em Coronel Xavier Chaves

Mestre Jos de Ftima Aparecida Chaves

Jos de Ftima Aparecida Chaves, mais conhecido como Godinho, relembra que no
incio dos anos de 1990 quando comeou a trabalhar como canteiro em Coronel
Xavier Chaves o comrcio das peas fruto da cantaria praticada na cidade acontecia
sem a presena de intermediadores lojistas, como atualmente. Nesse momento
inicial, o produto era vendido diretamente ao turista que, ao visitar as cidades de
So Joo Del-Rey e Tiradentes, passava em Coronel Xavier Chaves para conhecer
a famosa arte em pedra da cidade. Nesse perodo, relembra Jos de Ftima, a
produo era mais artesanal pois no se usava o pesado maquinrio eltrico que
se usa atualmente. Jos de Ftima relembra todo esse processo.

Quando iniciei, apesar de produzir pouco, ns conseguamos um bom preo. Na


poca, o nosso trabalho valia bem mais. Eu no sei porqu. No sei se era porque
quase no tinha esse tipo de trabalho na poca, ou se a moeda era mais forte ou se

73

Pedras brutas para servio de cantaria

74

o poder aquisitivo do pessoal era maior. At hoje eu no sei o que aconteceu. Uma
pea que a gente vendia numa mdia de cinco salrios, h quase vinte anos, hoje
vendemos por apenas um salrio, dois salrios no mximo. E interessante que a
qualidade era muito inferior tambm, pois ns estvamos iniciando. A, comeamos
a comprar maquinrio para aumentar a produo. Ento uma pea que gastvamos
um ms para fazer manualmente, em uma semana essa mesma pea era feita com
o martelete pneumtico.
Ento, quando comeamos, o pessoal olhava e dizia: o pessoal que mexe
com pedra que est ficando rico. Eles tinham aquela iluso. No incio no tinha
concorrncia. A oferta era pouca, ento o produto podia sair mais caro. Eu acho que
isso mesmo, porque hoje tem muito desse trabalho aqui na cidade, na regio. Aqui
na cidade tem muita gente que produz esse tipo de trabalho.
Aqui ns trabalhamos muito com os comerciantes, com os lojistas. Eles no valorizam
o produto da gente. O lucro maior fica na mo deles. Essa a maior dificuldade que
ns enfrentamos. Porque apesar de ser perto de So Joo Del-Rey e Tiradentes, que
so cidades histricas, os turistas que vo para l, eu acho que nem trs por cento
descobriram a nossa cidade. Eu acho que o que falta isso.

O aprendizado do ofcio e suas mudanas tcnicas


ao longo do tempo
Nos dois primeiros anos, quando comecei na cantaria, o trabalho era s manual,
com a marreta, o ponteiro e a talhadeira. Era bem difcil. Tinha dia que dava vontade
de ir embora e no voltar mais. Porque a pedra muito dura. Rende muito pouco
o trabalho, a gente fica batendo o dia inteiro ali. E no final do dia a gente via que
tnhamos pouco servio. Eu me lembro. A pedra era muito dura. A experincia que
eu tinha no era nenhuma ainda. Eu machucava muito a mo. s vezes a marreta
batia, o ponteiro escapulia e pegava na mo. Eu ficava todo machucado. Porm, o
pouco que a gente conseguia produzir, ns conseguamos um bom preo.
Por isso que, primeiramente, a pessoa deve ter vontade de aprender. Depois que
comear a trabalhar com a pedra ela deve ter persistncia. Muita fora de vontade
mesmo porque um trabalho meio rduo. Trata-se de um trabalho que exige muita
fora tambm, por causa do peso. Mas ao mesmo tempo a pessoa precisa da tcnica,
da pacincia, principalmente com relao ao acabamento. Os retoques finais, o
acabamento. Todos eles exigem muita habilidade e pacincia, por causa da tcnica.
A pessoa no pode ser uma pessoa nervosa, afobada, tem de ser uma pessoa calma.
Ento, no dia que a pessoa no estiver muito bem, ela j no pode trabalhar. Se a
pessoa briga em casa e est meio p da vida, esse dia j no d certo, no sai nada.
A pessoa deve estar em paz de esprito. Muito concentrada.

75

Foi na oficina do Jos Maria Mendona que eu j consegui uma tcnica boa. A melhor
escola que eu tive foi l. Porque l a gente era obrigado a trabalhar com medidas
exatas, entendeu? Ns trabalhvamos sob encomenda. Ento eu j comecei a trabalhar
em cima dos projetos. Ento ramos obrigados a trabalhar com medidas exatas. As
medidas tinham que ser em cima do que estavam nos pedidos dos projetos. A, eu
fui obrigado a aprender, a adquirir rpido essas tcnicas. E l era alta produo. L,
eu no estava para aprender mais, eu estava para produzir mesmo. J era fbrica
mesmo, a gente no podia errar. Porque se errarmos a gente perde a pedra. A o
patro j vem e puxa a orelha, j alopra n? L, tinha o encarregado, que qualquer
dvida ele ajudava, ele dava algumas dicas e ns tnhamos que descobrir as coisas
sozinho. Se era pea com esquadro tinha de ser com o esquadro, se fosse coluna,
chafariz. Lapidar a pedra, a face dela devia ser tudo super certinho, no podia ter um
empeno no podia ter nada. Fazamos isso numa rgua. Igual um pedreiro mesmo
para fazer uma parede mesmo, tinha que ser impecvel mesmo. Essa foi a minha
principal escola.

O tempo para se ensinar um aprendiz


Os meus funcionrios, aqueles que no desistiram antes, com dois anos eles ficaram
bons. Os dois que comearam comigo e que no tinham experincia nenhuma, com
dois anos eles ficaram bons mesmo. Hoje eles so excelentes em qualquer tipo de
trabalho que eles desenvolvem. Eles tiveram fora de vontade e, com dois anos,
eles conseguiram. Porque at os dois anos, o que eles produzem s para cobrir
os gastos. Antes de dois anos, o profissional no tem lucro nenhum. Ele tem de
acreditar e investir.

A relao com os funcionrios-aprendizes


Bom, e a, depois que o funcionrio se torna profissional, que voc pode confiar.
Quando voc pode entregar um projeto para ele executar. A, voc tem que remunerar
bem tambm, porque seno ele vai embora. O que acontece muito isso. Ele comea
a produzir bem e pensa: Ah! Eu vou trabalhar por minha conta. Ento voc tem que
remunerar eles bem, porque seno voc perde a mo de obra. A, eu vou ter que
pegar um outro que nunca trabalhou, vou ter de ensinar ele, apenas depois de dois
anos ele vai comear a dar lucro, a, se eu no melhorar a gratificao dele, ele vai
embora e, a, eu vou estar sempre formando mo-de-obra e sempre sem mo-deobra.
Apesar de muitas pessoas trabalharem com a cantaria em Coronel Xavier Chaves e
de Jos de Ftima apontar como uma da causas para a queda no preo das peas
produzidas ele considera importante ensinar a atividade e fica orgulhoso ao contar que

76

transmitiu o conhecimento das tcnicas de cantaria para, pelo menos, dez pessoas
que trabalharam com ele em sua oficina. Ele comenta com pesar a possibilidade da
profisso acabar pela diminuio, a cada ano, das vendas: acho que, de agora pra
frente, vai ser difcil comear outros, formar os profissionais por isso, porque j no
est sendo to compensador mais como era no incio. uma pena, porque isso a
no est criando, no est ajudando a resgatar uma poca do Brasil colonial.
Desta maneira, considera favorvel a iniciativa da prefeitura em criar o Festival
Internacional da Pedra e lanar o nome da cidade como cidade da pedra, valorizando
as atividades tradicionais da escultura e da cantaria em Coronel Xavier Chaves. Aqui
na regio trabalhamos com a antiguidade. A antiguidade envolve dois setores. A
madeira tem o estilo antigo e a pedra tambm uma coisa que est relacionada
com a antiguidade, com cultura dos europeus, do Brasil imperial, dos europeus que
trouxeram esse trabalho em pedra, das igrejas de hoje. preciso encontrar formas
de divulgar a nossa cidade para que um nmero maior de pessoas conhea o nosso
trabalho.
Apesar da preocupao maior de Jos de Ftima ser com o comrcio em detrimento
da relao da cantaria com a cidade, e seu patrimnio arquitetnico como o em
Ouro Preto e, em certa medida, em So Tom das Letras, encontramos, em um
determinado momento da sua fala, uma aproximao de sua profisso com as
construes da sua cidade, como tambm aconteceu com Francisco Rosa e Ediniz
Jos Reis em suas entrevistas. Eu me inspirei muito e me inspiro muito na igrejinha
de pedra que temos aqui em Coronel Xavier Chaves. [Conhecida atualmente como:
Capela do Rosrio]. Ela foi construda no sculo XVIII, pelos escravos ainda, ento
ela toda de pedra, ento eu admiro muito aquele trabalho. Isso me inspirou muito
e ainda me inspira at hoje. Algo feito h 200, 300 anos e no tinha equipamento e
eles conseguiram realizar um acabamento perfeito, entendeu? Voc encontra portais
l, empinadinho, muito bem feito, pia batismal, soleira. Ento aquele trabalho l.
Alm dessa, todas as outras igrejas da regio, tanto em So Joo Del-Rey como
em Tiradentes, encontramos muitas igrejas e em todas elas encontramos muitos
trabalhos ricos com relao pedra. E naquela poca no tinha os equipamentos que
ns temos hoje. Essas obras so coisas divinas mesmo. Acho que as igrejas foram.

Notas
1.
2.
3.
4.
5.

Cf.
Cf.
Cf.
Cf.
Cf.

VILELA, 2003.
VILELA, 2003.
VILELA, 2003.
KATINSKY, 1994, p. 81.
VILELA, 2003.

77

pintor
estucador
78

Ofcios da Cor e do Ornato

Detalhe das folhas de acanto desenhadas no floro


80

Ofcios da Cor e do Ornato:


Pintor/Estucador
Num sentido amplo, a arte pode ser considerada como todo embelezamento da vida
ordinria alcanado com destreza e que tem uma forma que se pode descrever1. Nenhum povo que conhecemos diz Franz Boas por dura que seja sua vida, investe
todo o tempo, todas as energias na aquisio do alimento e moradia. Todos os grupos humanos produzem obras que lhes proporcionam prazer esttico e todas as atividades humanas podem revestir formas que concedem mrito esttico: ocupaes
industriais como cortar, talhar, modelar, tecer, etc. Quando o tratamento tcnico
dos materiais alcana certo grau de excelncia, quando o domnio dos processos
tal que produz certas formas fixas, tpicas, ao ponto de alcanar a perfeio formal,
damos a esse processo, por simples que seja, o nome de arte2.
nesses termos que devemos considerar aquelas tcnicas construtivas praticadas
em Minas Gerais que, como a tabatinga, a pintura cal e o estuque ornamental,
mesmo obedecendo a alguns fins prticos, expressam, sobretudo, um claro significado esttico.

Tabatinga
Mais fcil de encontrar do que a cal primeiro importada, mais tarde obtida de
conchas ou mariscos o emprego da tabatinga para o revestimento das vedaes
se generalizou. O uso da tabatinga frequente, hoje, na zona rural do Vale do Jequitinhonha, na construo das casas de pau-a-pique ou adobe e rebocadas com
estrume de boi. O termo tabatinga
de origem tupi: tawatinga, que quer
dizer argila, barro branco, esbranquiado; tambm h registro das variantes tauatinga, tobatinga, tabatingua3. Trata-se de uma terra argilosa
mole e untuosa ao tato, geralmente
de cor branca, que resulta numa espcie de argamassa usada para caiar
e revestir casas populares. tabatinga adiciona-se algum fixador, como
leite ou resina de sorveira, leite de
vaca, solues de pedra-ume4, ou
gua de mandioca - esta ltima mais
comum na atualidade na regio do Parede de adobe pintada com tinta de barro branco

81

Vale do Jequitinhonha. A partir de um modo artesanal de trabalho, o barro branco


transformado em uma pasta, posteriormente a pasta coada, e por fim adiciona-se
goma de mandioca, dando origem mistura para aplicar nas paredes e no cho das
construes. A aplicao, que d construo um aspecto liso e claro, feita com
um pau (pau dema), com a ponta em formato de pincel. A melhor poca para se
pintar as casas no perodo de estiagem, para que a chuva no desmanche a pintura
antes desta secar totalmente.
Jos Trindade da Costa um mestre com mltiplas habilidades, e desde 1983 participa da equipe de obras do Iphan em Tiradentes. Apesar de considerar-se um especialista da marcenaria, conhece profundamente inmeras das tcnicas construtivas,
desde o adobe at as tintas que produz a partir da tabatinga. Z Trindade lembra
que aprendeu a manipular o material ainda moleque, quando frequentava uma fbrica em Tiradentes que produzia tintas com a tabatinga. Curioso, ficava ali horas
a observar os mestres manipulando terras e cores. Z Trindade no apagou de sua
memria o contato que teve com esses mestres das cores de Tiradentes, lembra o
nome de todos eles: Pedro Gameleira, Z Malta e Ramalho. Hoje, capaz de criar e
manipular diversos materiais de origem vegetal com materiais industrializados produzindo tintas utilizadas para restaurar e embelezar igrejas e casares mineiros do
perodo colonial.

Pintura
A tcnica da pintura cal bastante difundida nas regies visitadas, especialmente
na Regio Metropolitana de Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana, Congonhas e Santana dos Montes. Esta tcnica data da poca colonial, quando dos primeiros assentamentos urbanos em virtude da atividade mineradora, e atualmente empregada
em obras de restaurao.
Na fabricao artesanal da tinta base de cal, a etapa inicial consiste na hidratao
de blocos de cal virgem. Mergulhados em gua, formam uma pasta que deve ser
deixada reagindo por um tempo mnimo, que pode variar de um dia a seis meses. Ao
que informam os artfices, quanto mais tempo a cal for deixada neste molho, melhor
qualidade ter a tinta. Maria Caldeira, restauradora do Iepha, afirmou que tintas
apresentam excelente qualidade por at 15 anos.
A preparao para aplicao da tinta cal praticamente a mesma em todas as
regies onde se utiliza a tcnica: mistura-se a pasta de cal obtida no processo de
hidratao com gua, adicionando um pouco de leo de linhaa como fixador. O sr.
Geraldo da Silva, pintor de Congonhas, tambm recomendou adicionar um pouco de
sal mistura. Sebastio Benigno, carpinteiro e pedreiro de Santana dos Montes, utiliza folhas de mandacaru como fixador, que adicionadas cal virgem acabam se desfazendo. As propores dos ingredientes no so exatas, em geral so determinadas

82

pela experincia, mas todos concordam que a tinta cal


deve ter uma consistncia bem ralinha, semelhante ao
leite, para no desprender da parede; apenas Eliana de
Oliveira, de Belo Horizonte, indicou a proporo de uma
parte de cal para trs de gua.
A aplicao da tinta base cal feita, em geral, com
broxa ou trincha larga, e deve ser de maneira a cruzar as
demos, uma na vertical e outra na horizontal, alternadamente, para que a pintura final no fique manchada.
Em Belo Horizonte e Ouro Preto, emprega-se a pintura
tradicional com pigmentos para aplicao em madeiras;
utilizam-se pigmentos naturais (minerais ou vegetais)
adicionados a leo de linhaa e alvaiade, ou tabatinga,
como secante. Maria Caldeira, restauradora do Iepha,
em lugar do leo de linhaa utiliza cola branca, e no
acrescenta alvaiade. Paulo Cirilo, de Ouro Preto, realiza
testes para analisar a quantidade de pigmento necessria para dar uma boa liga com o leo, nos quais pesa
uma quantidade de pigmento, que misturado aos poucos com leo de linhaa, adicionado com conta-gotas.
Ele verifica a consistncia da tinta com o dedo: pega
um pouco da mistura, fazendo um biquinho; se no fizer, est muito seca e preciso adicionar mais leo; se
escorrer, a tinta est muito fluida e preciso adicionar
mais pigmento. Costuma tambm adicionar um pouco
de aguarrs a essa mistura com leo, para diluir. Ainda
segundo Paulo, na manipulao de tintas com pigmentos
naturais, ao se usar terra, preciso peneir-la, para separar as impurezas, como folhas e gravetos. Em seguida, tritura-se os pedaos maiores de terra ou canga para
se obter o pigmento de granulao fina, pressionando o
material sobre uma base de granito polido, com o uso
de moleta tambm em granito, fazendo um movimento
circular. Tanto com pigmentos naturais quanto com o p
xadrez possvel conseguir uma variao cromtica em
degrad, atravs de um pigmento inicial. Com o auxlio
de um fogareiro, o amarelo ocre, por exemplo, aquecido, possibilitando a obteno de vrios tons, at atingir
o vermelho. Paulo Cirilo explica ainda que antigamente
aquecia-se uma tabatinga amarelada para se obter esta
transformao. Na fabricao da tinta branca, usava-se

Acima, mestre Eliana Mrcia Ferreira de


Oliveira, pintora restauradora
Abaixo, mestre Geraldo Jos da Silva,
pintor

83

Artesos restauradores de ornatos e esculturas, Leandro Marchi

(filho) e Afonso Marchi (pai), estucadores tradicionais


84

85

tabatinga branca ou alvaiade, que, por conter chumbo na composio, material txico ao organismo, foi substitudo por branco de zinco.
A camada de fundo da pintura com pigmentos feita com uma demo de uma mistura de branco de zinco com leo de linhaa. Aps secar a base, passam-se duas
demos de tinta a leo com pigmento. A aplicao de tinta a leo nos elementos
construtivos em madeira feita atravs do uso de pincel chato.

Estuque
Ofcio encontrado, principalmente, nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto, o
estuque uma tcnica que foi muito utilizada nas construes de estilo neoclssico
e ecltico, ambos predominantes na cidade de Belo Horizonte no final do sculo XIX
e incio do XX.
O estucador designa, em princpio, aquele que aplica o estuque: a massa de revestimento a base de cal e areia, conhecida comumente como reboco. Porm, estucador
designa tambm o artista que modela e molda os ornatos a serem aplicados ou integrados nas edificaes. O enfoque principal do ofcio do estuque o desenvolvimento
das competncias sobre a anlise das tcnicas antigas de aplicao de revestimentos
em argamassas, elaborao de ornatos aplicados e integrados. O estucador deve
conhecer os principais aglutinantes e agregados das argamassas, bem como as tcnicas de preparao das massas.
O estuque consiste numa argamassa branca, o policroma, composta de cal fina, areia
fina, p de mrmore e gesso, usada em variados tipos de ornatos relevados, em
muros exteriores, interiores ou tetos. H
vrias modalidades de estuque. Pode ser
usado para revestir paredes internas, forros para vedaes, para preencher interstcios, para pinturas de afrescos ou ainda para revestimentos conhecidos como
marmorino e escaiola. Tambm, para se
fazer altos e baixos-relevos, como flores,
rosceas, arremata pinculo, centro de
teto, centro de abbada conforme o lugar
e o fim a que se destina, interna ou externamente, num edifcio5. Na atualidade, o
termo estuque reservado para referir-se
s argamassas aplicadas em edificaes
antigas.

Ambiente interno da Sede do UAI, em restaurao

86

Cada pea a ser realizada em estuque exige um tipo especfico de molde. As peas

mais lisas so moldadas com gesso e as mais detalhadas com silicone ou borracha.
O molde de borracha precisa ser cozido durante 15 dias, porm mais barato e pode
ser reutilizado. O molde em silicone, material mais contemporneo, feito com a
aplicao em camadas do lquido de silicone com pincel, e tem um tempo de secagem de cinco minutos.
Na tcnica chamada fundio, a mistura da massa utiliza areia e cimento na proporo de 2:1, acrescentando-se um pouco de gua. A consistncia da massa de
fundio pastosa, semelhante massa de um angu, segundo o sr. Afonso Marchi e
o filho Leandro, conhecidos estucadores da cidade de Belo Horizonte. Na tcnica do
cimento prensado, a mistura da massa utiliza areia e cimento na proporo de 2:1,
e se diferencia da tcnica anterior pela consistncia da massa, bem porosa, semelhante a uma farofa, por utilizar menos gua.
Para a tcnica do gesso, a mistura feita com p de gesso e gua, e acrescenta-se
sisal (barbante, corda de bacalhau), para estruturar o estuque. O estuque que utiliza
terra foi encontrado na Regio de Ouro Preto e Mariana. O canteiro Rinaldo Urzedo
da Silva est executando um forro de estuque em sua casa na roa, utilizando uma
mistura de barro e areia aplicada sobre estrutura de vergalhes revestida com tela
de arame, em formato abobadado. O reboco ser em areia e cal, e o acabamento
final com uma massa de p de pedra. Srgio Romo, taipeiro e estucador de Ouro
Preto, executa a tcnica como profisso. Para estruturar forro de estuque, faz um
engradado com peas rolias de candeia, com espaamento de 30 por 30 cm, onde
ser pregado um forro de esteira. A massa do estuque utiliza areia e cal e feita
com o auxlio de uma colher de pedreiro sobre a esteira previamente instalada. Para
melhorar a aderncia da massa, ele agrega um pouco de cola amarela. Srgio amplia
uma imagem em tamanho reduzido para o teto ou parede observando o original e
desenhando a mo livre com pigmento preto no teto. Para trabalhar no teto, precisa
montar andaime e desenhar deitado. A pintura das imagens feita com tinta a base
de pigmentos naturais, aplicada com pincel.
Apenas algumas matrias-primas das frmas e os tipos de cimento tm mudado.
Porm, de modo geral, tanto as matrias-primas quanto o modo de fazer referentes
estucaria mantm-se os mesmos da poca da construo da capital.

Notas
1. Cf. HERSKOVITS, 1968, p. 416.
2. Cf. BOAS, 1947, p.15.
3. TABATINGA (verbete). In: DICIONARIO ELETRNICO HOUAISS. 2001.
4. Cf. VASCONCELOS, 1979, p. 71.
5. Cf. REAL, 1962, p.226. Ver tambm: ESTUQUE (verbete). In: DICIONARIO ELETRNICO HOUAISS. 2001.

87

ferreiro
forjador
88

Ofcios do Ferro

Bigorna na ferraria de mestre Luiz Gonzaga

90

Ofcios do Ferro:
Ferreiro/Forjador
Ver um ferreiro trabalhando, um punho na marreta e outro na tenaz, com as batidas
ritmadas e as fascas salpicando a escurido do ambiente, uma dessas experincias
que no se esquece. O fascnio de um ofcio bruto, quase medieval, exercido no
trtaro da caverna de Hades, como aparenta a tenda do ferreiro.
O que para uns o inferno, para outros o cu, com santos, dolos e tudo o mais.
Desde a antiguidade, e em quase todas as culturas, a metalurgia sempre exerceu
esse fascnio, foi considerada uma arte sagrada. Os metais representavam a presena
mesma de foras obscuras, desconhecidas, mgicas. Por isso, a fundio dos metais
sempre foi rodeada de lendas, crenas e segredos.
O ferreiro esse homem, o homem dos metais, aquele que conhece os segredos da
metalurgia. Com forja, bigorna, marreta, tenaz e maarico, sabe aquecer o metal e,
assim, os domestica,h sua resistncia, o molda, fura, torce, corta, rosqueia e dobra
para criar uma grande variedade de objetos.
O ferreiro e forjador produz, conserta e amola ferramentas diversas, especialmente
para o garimpo e a atividade agrcola. Cuida de implementos tais como: alavancas,
picaretas, machados, cunhas, ferraduras, dobradias e, at mesmo, armas. Alm
disso, fabrica e repara objetos e peas metlicas empregadas em construes
tradicionais, como fechaduras, trincos, dobradias, cravos e gradis residenciais.
A primeira preocupao do ferreiro com a obteno de matria-prima, geralmente
produto da colheita de pedaos de ferro e outros metais encontrados nas ruas ou
de sucata de oficinas mecnicas de conhecidos e parentes. Assegurados a reserva
de carvo, o gs e a solda, a segunda preocupao angariar clientes - em geral
provindos da zona rural procura de um servio de conserto das ferramentas
agrcolas, quando no, fabricao ou conserto de peas de automveis indisponveis
no mercado.
A proximidade com o pai e o evocar de antepassados comum na trajetria de
aprendizado dos ferreiros. Em Minas Gerais, na cidade de Tiradentes, Luz Gonzaga
Frana mais conhecido como Mestre Zinho evoca uma vocao que corre em suas
veias, em seu sangue, atravs de uma raizinha que possui suas ramas em um tio
materno nunca dantes visto por Luz Gonzaga, mas que tambm era ferreiro. Se Luz
Gonzaga no aprendeu o ofcio com seu pai, o mesmo no ocorreu com seu filho, Luz
Heitor da Silva Frana. Ainda criana o pai disse a ele: ou voc estuda ou trabalha,

91

voc tem que me ajudar, voc tem que me ajudar. E


trazia o filho, puxando-o pelas orelhas, quando este
se escondia na casa de um vizinho querendo brincar.
Foi tambm na relao com o pai que se deu o
aprendizado de Antnio Eli Coelho mestre ferreiro
de Ouro Preto que, assim como Mestre Zinho, ensinou
o ofcio a seus filhos.

Mestre Luiz Gonzaga vestindo


roupa de segurana

Mestre ferreiro forjador e serralheiro


Antnio Eli Coelho

92

Jlio Sena Chagas, tambm chamado de Julinho


Ferreiro em Minas Novas, municpio localizado na
regio do Vale do Jequitinhonha, relata que a tradio
do ferro na sua famlia se inicia h trs geraes com
o seu bisav. A importncia dos antepassados, e do
pai em especial, para este ferreiro percebida na foto
colocada na parede da sua oficina, que no passado
pertencia ao seu pai. Sebastio Ferreira, importante
mestre ferreiro de Ouro Preto, por outro lado, teve
com Elmo de Castro Guimares, um antigo carpinteiro
e ferreiro da cidade, sua primeira orientao.
Com trajetrias dspares, todos comearam produzindo
pequenas peas ou pecinhas midas como dizem
alguns deles. Luz Gonzaga, por exemplo, trabalhava
inicialmente em uma fbrica de mveis de Tiradentes
com a fundio e o acabamento de pequenas peas de
ferro utilizadas em mveis, tais como alas, puxadores
e fechos. Didaticamente, iniciou o seu filho Luiz Heitor
no ofcio ensinando-o, aos 8 anos, a confeccionar
peas como puxadores de gaveta e dobradias de ba.
Foi com idade semelhante, aos 7 anos, que Jlio Sena
Chagas aprendeu as habilidades necessrias para um
ferreiro fazendo facas para o pai, ele tinha um torno
dessezinho... a, botava as facas... Que era pra ns
limar as facas pra ele. A gente era to pequeno, que ele
mandava limar e botava um caixote, que antigamente
usava querosene, pra gente subir. E quando limava
errado, menino... Batia at pra arrebentar... Batia
com ferro tambm. O sofredor era eu... eu era muito
atentado... Quando comeou a trabalhar para Elmo
de Castro Guimares, Sebastio Ferreira relata que
foi cortando espelhinho para ele, eu s cortava

Fabricao de dobradia

espelhinho para ele. S depois, que ele me pediu para bater uns cravos. J Antnio
Eli, aos nove anos de idade, era capaz de realizar trabalhos com forja e solda.
Se depender de boa parte desses mestres, o ofcio ainda perdurar por algumas
geraes. Alm de seu filho, Luz Gonzaga Frana formou vrios outros ferreiros
em Tiradentes e costuma brincar: se eu ensinar mais para outras pessoas, eu no
terei mais como trabalhar. Em Ouro Preto, Antnio Eli tambm possui uma relao
generosa com seus aprendizes, que chama de pessoal. Vem gente aqui. Esse
pessoal tem um respeito com a gente, viu? Tem um, ele deve ter uns 50 anos, mais
ou menos. Respeita a gente como se fosse pai dele.
Por outro lado, a forma generosa de se relacionar com aprendizes no encontrada
na fala de outro mestre de Ouro Preto, Sebastio Ferreira: Voc comea a ensinar
a pessoa uma coisa, ela j acha que sabe tudo. A, ela no vai fazer o acabamento
do servio igual eu fao e passa, sem querer, a derrubar o nome da gente. Por
isso eu prefiro trabalhar sozinho. Em Minas Novas, Jlio Sena Chagas no possui
aprendizes, pois na sua viso o trabalho no atrai jovens, j que mexer com a

93

94Dobradia

95

Carimbo de marcar gado

forja algo extremamente pesado, servio bruto,


servio que o mdico no recomenda, servio sem
aprendiz.

Mestre Jlio Sena Chagas

96

Os clientes variam de lugar para lugar e de mestre


para mestre. Jlio Sena Chagas, por exemplo,
tem na populao rural de Minas Novas sua maior
clientela. Sentado na porta de sua residncia, a
partir das 8h, espera os trabalhadores da zona
rural chegarem, trazerem suas ferramentas para
ele fazer as devidas manutenes nos implementos
agrcolas. Quando recebe algum cliente indesejado,
o entrevistado afirma que direciona as fascas do
esmeril para o local onde o cliente est sentado
para que o mesmo v embora e diz preferir as
pessoas humildes, pois os ricos no o valorizam.

Candelabros e lamparinas de meineiro feitos por meste


Sebastio Ferreira

97

At se iniciar a restaurao da
Igreja do Amparo em Minas
Novas, Jlio Sena Chagas
nunca tinha trabalhado em
obras de restauro. Com o
incio das obras, Jlio pde
fazer
as
dobradias,
as
caixinhas do sacrrio e as
fechaduras. Em Ouro Preto,
tanto Antnio Eli quanto
Sebastio Ferreira possuem
como
clientela,
em
sua
maioria: clientes particulares,
empresas de capital privado,
rgos
e
instituies
pblicas - como a Prefeitura
Municipal de Mariana - e
instituies privadas - como
a Arquidiocese de Mariana.
Porm,
como
todos
os
servios foram realizados para
edificaes de uso pblico, o
trabalho de ambos destinase comunidade em geral.
J em Tiradentes, os turistas
aparecem como os principais
compradores de Luiz Gonzaga
e seu filho Luiz Heitor.
Tanto em Tiradentes quanto
em Ouro Preto, as peas
confeccionadas pelos antigos
ferreiros das cidades no sculo
XVIII exercem um verdadeiro
fascnio nos mestres, que
se inspiram nessas peas
produzidas, criando novas
peas que costumam chamar
em Tiradentes de ferragem
colonial.
Ferreiro e aspirante a aprendiz

98

Luiz Gonzaga Frana gosta de ser desafiado e de trabalhar com peas mais complexas,
ricas em detalhes e arabescos como eram as peas dos sculos anteriores. Gosta das
peas que exigem muito da mente. O bom trabalho, na viso de Luiz aquele que,
quando finalizado, se diz: ser que foi eu mesmo que fiz? Sobre o processo de criao, Luz
relata que quando v uma pea na cidade olha para ela e comea a imaginar uma nova.
Eu, s vezes, estou l na minha mesa. Acabo de jantar, pego um papel, com a
caneta comeo e penso: , isso aqui ficou bom. A, eu passo o desenho para a chapa
e comeo a fazer. Para Luiz necessrio que o ferreiro tenha uma criatividade que
sai de dentro, do interior, e reclama da falta de criatividade dos ferreiros no
mercado. Herdeiro da tradio iniciada pelo pai, Luiz Heitor da Silva Frana tambm
gosta de desafios e se considera um perfeccionista: gosta de trabalhar cada detalhe
de uma pea em ferro, repete inmeras vezes at conseguir o resultado almejado,
quando sai certo um alvio, comenta. Quando se depara com muitas dificuldades
na execuo da pea chega a sonhar com ela e no sonho, muitas vezes se v
executando e encontrando solues para os problemas ao realizar uma pea.
Sebastio Ferreira tambm se inspira na paisagem urbana de Ouro Preto e nas
criaes dos ferreiros do passado. No gosta apenas de copiar as peas e sim
de misturar detalhes e criar. Apesar disso, suas peas costumam ser to fiis s
peas do sculo XVIII, que algumas chegaram a ser vendidas como originais em
alguns antiqurios da cidade. No entanto, Sebastio Ferreira enftico: no sou

arteso-copiador. Muito feio. No gosto! Detesto quem fala: ah, eu vou fazer um
igual. Detesto essas pessoas. Ento, tudo o que eu fao criativo, eu s tiro cpia
quando os outros falam: c faz igual assim, assim, e tal. Mas no gosto, detesto.
Sebastio diz no se engrandecer com as peas que produz, pois a autoria no lhe
pertence no eu, minha mente, o meu superior, ningum nunca t sozinho...
Desde a antiguidade a metalurgia foi considerada uma arte sagrada por ter o poder
de mudar a natureza dos elementos que submete sua forja. Do mesmo modo,
observando, imaginando e criando, os mestres ferreiros percorrem e recriam os
saberes, as prticas e as tcnicas metalrgicas tradicionais refazendo a cidade
colonial. So verdadeiros artfices-artistas, mgicos-ferreiros-criadores de novas
peas, no limite tnue entre o novo e o objeto que, ao mesmo tempo, reencarnam
as formas e o esprito das peas tradicionais que povoam as cidades onde nasceram.
Os artfices acabam por criar peas para cidades e construes que ainda viro a
ser, mas que no deixam de emergir desse passado imaginado, tanto pelos turistas
seus principais clientes quanto pelos prprios artfices, que o recriam com suas
interpretaes perdurveis, pela magia da ressurreio dos metais.

99

Oleiro
adobeiro
taipeiro
100

OFCIOS DA ARGILA

102 Boca do forno da olaria em Prados

OFCIOS DA ARGILA: OLEIRO/


ADOBEIRO/TAIPEIRO
No sem razo, diz Claude Lvi-Strauss, so vrias as mitologias que comparam a
obra do criador do ceramista: dando forma argila tirada do solo, o criador deu
vida matria bruta amorfa e nua, segundo a Bblia1.
diferena da pedra, que requer do entalhador perscrutar as estruturas ocultas
da rocha para a quebra da matria bruta, visando a dar a forma adequada para o
perfeito ajustamento das partes, a fabricao do tijolo de adobe ou o emprego da
taipa de pilo, requerem um modo diferente de tratamento dos elementos naturais.
O tijolo de adobe, a taipa de pilo, o pau-a-pique, solues empregadas na vedao
dos vos na construo civil, so tcnicas construtivas de uma arquitetura verncula
baseada na moldagem manual de um nico elemento natural: a argila. Transformada
em matria plstica pelo acrscimo da gua, capim e outros materiais, a argila
aceita facilmente as formas impostas pelo homem.
H mais de um sculo, na obra Lgende et curiosits des mtiers, o folclorista Paul
Sbillot fez um inventrio dos traos de personalidades associadas, pela tradio,
ao exerccio de determinados tipos de profisses. Curiosamente, dentre os mais
de trinta ofcios listados, no h nenhuma meno aos ceramistas. Para explicar
essa ausncia, observa Lvi-Strauss, necessrio considerar que nas sociedades
europeias tradicionais o ofcio de ceramista costumava ser exercido por grupos, por
famlias inteiras e no indivduos isolados; por outro lado, as oficinas de cermica
instalavam-se fora da cidade, perto dos bancos de argila necessrios para a indstria,
distanciando-se socialmente das aldeias. Ao contrrio do que acontecia com o ferreiro
e com outros ofcios, no se ia at o ceramista para se consertar um utenslio ou
encomendar um novo. O ceramista levava os seus produtos para o mercado ou
utilizava um intermedirio. As pessoas no mantinham contato direto com eles2.
Na arte da fabricao do adobe, a mo que determina a forma dos materiais. Entre
as artes da civilizao, a cermica provavelmente aquela em que se encontra
realiza o menor nmero de etapas intermedirias entre a matria-prima e o produto,
que sai formado das mos do arteso. Se a arte da cermica encurta a distncia
entre a matria-prima e a forma, , em compensao, uma arte de resultados
incertos e cheia de riscos, que repercutem no psiquismo daqueles que a praticam. A
preocupao com a segurana de resultados induz o ceramista a reproduzir fielmente
os materiais e os mtodos de fabricao, que sabe, por experincia, que so os mais
apropriados para evitar um desastre. Desconfiado em relao a todas as inovaes,
o ceramista um esprito profundamente conservador. Assim, o conhecimento
das tcnicas cermicas um assunto privado, s se fala dele em famlia3. Esses

103

mesmos traos caractersticos do ofcio foram notados entre os mestres das vrias
regies percorridas no estado de Minas Gerais: o emprego de escassas ferramentas
na moldagem direta da argila, a execuo das tarefas a relativa distncia dos
aglomerados urbanos, o aprendizado em famlia e um esprito predominantemente
conservador dos seus artfices em relao s tcnicas tradicionais.

Oleiros
Nos arredores do municpio de Santa Brbara, em Minas Gerais, os pesquisadores se
perdem pelas estradas tortas do distrito desta cidade conhecido como Cubas. Eles
esto procura do oleiro Jos Vicente Lopes, conhecido como Seu Juca Ceramista.
Na procura de informaes para se chegar at a olaria, um dos membros da equipe
desce do carro e atravessa a porteira de uma fazenda, onde encontra algumas
crianas moendo milho. Chega at elas, e pergunta: Vocs conhecem o Seu Juca
Ceramista? Uma delas interrompe a sua atividade, pensa, e responde: Ah! Sei sim,
ele meu primo! O pesquisador pergunta a essa criana se ela pode ensinar-lhe o
caminho. Com riqueza de detalhes, o garoto tece as imagens do caminho por onde
a equipe deve passar. Cita a Igreja do distrito como ponto de referncia e diz: ...
s observar a fumaa no outro lado do morro e as madeiras queimando, l vocs
encontraro meu primo e sua olaria.
Seguindo essas pistas, os pesquisadores chegam at a olaria de Jos Vicente Lopes.
A conversa flui, o sol esturrica a nuca dos pesquisadores. Jos Vicente os convida
a se protegerem do sol sob o teto do local onde empilha as telhas. Elas ainda esto
midas. Todos protegidos do sol, inicia-se a entrevista.
O oleiro fala extremamente rpido, possui uma narrativa densa. Os pesquisadores
perguntam: o senhor se considera um mestre, oficial ou aprendiz? O oleiro responde:
Bom, mestre, mestre, eu no sou. Mas assim, hoje em dia, no tem ningum mais
que sabe tomar conta de uma olaria. S eu mesmo para fazer isso aqui. Eu costumo
trazer trabalhador e eu tenho que ensin-lo durante quase uma semana. Ento so
as ltimas pessoas que trabalham com isso, eu as considero como mestres por isso.
Porque se eu estiver em qualquer lugar que tiver argila e for montar esse trem tudo,
aquela pipa, o forno, as formas, a gente consegue, mas no ... Bom, antigamente
tinha mais pessoas que tinham mais perfeio para fazer... A narrativa de Jos
Vicente comea a se direcionar para antigamente. Para a sua infncia, para o seu
pai e para o tempo em que oleiros eram na sua maioria escravos.
Em meio a uma narrativa repleta de palavras novas para os pesquisadores, Seu
Juca relembra a infncia e seu pai. Foi na infncia que aprendeu o ofcio e suas
tcnicas. O pai de Jos Vicente era dono de uma olaria prxima casa onde Jos
Vicente cresceu. Eu comecei a aprender o ofcio assim: meu pai trabalhava na
olaria. A, minha me pedia para levar caf para o meu pai. Quando entregava o
caf, eu observava o pessoal trabalhando. Como eu aprendi? Eu no vou dizer que
aprendi com o meu pai. Meu pai sempre teve olaria, mas ele mesmo no mexia l. Eu

104

passei a trabalhar na olaria do meu pai e ento aprendi


a mexer. Como vrias crianas da sua gerao, Jos
Vicente teve de conciliar os estudos e o aprendizado
no ofcio. Antigamente, menino trabalhava desde novo.
Eu, por exemplo, vinha caminhando 6km da escola at
a minha casa, eu descansava um pouquinho e ia para
a olaria do meu pai; ali trabalhei dos 10 anos at os 20
anos de idade.
Enquanto aprendiz descobriu que a maior dificuldade
no aprendizado do ofcio a confeco de telhas.
Na tentativa de explicar esse ponto, Juca Ceramista
comenta como difcil encontrar ajudantes para auxiliarlhe na olaria, mostra um tijolo e explica as dificuldades
tcnicas enfrentadas por um oleiro: Esse tijolo, por
exemplo, foi um ajudante que fez. Mas no foi bem
feito, no. E olha que o tijolo fcil. Pra voc ver como
temos dificuldade com relao a isso. Eu quase no
aguento trabalhar com isso, difcil para mim, estou
velho. Ento eu mando fazer, mas os caras custam a
aprender. difcil at ensinar. Para ele amassar isso
l. raro voc encontrar uma pessoa que consegue
temperar o barro e colocar ele na pipa. Porque se voc
coloca o barro seco ele quebra a pipa, pois o cavalo
no aguenta puxar. Ou ento, se pe mole demais sai
lama. Voc entendeu? difcil a pessoa treinar para
fazer argila. Para fazer certinho. Outra dificuldade est
relacionada principalmente s telhas porque elas so
feitas na frma. Faz em cima de uma banca e depois
puxa. difcil pois o barro molinho. Tem que ser mole,
porque se ele for duro ele quebra. H o tempo certo
para puxar a frma. A frma sai e a telha j sai no seu
formato. A frma no pode ficar l. Quando tira a forma
tem arreio e os aprendizes no sabem fazer, difcil de
achar gente que sabe fazer isso.
Uma vez que Jos Vicente aprendeu as tcnicas do
ofcio, ele narra, que aos 20 anos, aproximadamente em
1965, decidiu construir a sua prpria olaria. Ele explica
que a olaria construda naquela ocasio a mesma
que se v erguida nos dias atuais. A deciso de erguer
a olaria para produzir tijolos e telhas foi para ajudar
o irmo que na poca necessitava do material para
construir sua casa. Jos Vicente narra que, na ocasio,

Acima, mestre ceramista Juca


amassando a argila
Abaixo, mestre ceramista Juca junto
ao galpo

105

procurou o melhor local para construir a sua olaria. Ele precisava de um lugar onde
no houvesse vegetao densa, pois isso facilitaria a construo da olaria. Aps um
tempo de procura, encontrou o lugar adequado e explica: sabe por que encontrei
esse lugar com pouca vegetao onde hoje a minha olaria? Vou te explicar. No
passado, antes do meu pai comprar a sua terra em 1920, toda essa regio pertencia
a um senhor de escravos. Nesse espao onde hoje voc v a olaria, existia uma outra
olaria e no foi meu pai que construiu, no, foi muito antes dele. Quando comecei a
procurar argila no local, encontrei as runas de um forno e um cercado de pedras. Ali
nesse cercado fui descobrir com os mais velhos que os escravos colocavam cavalos
e burros para pisotearem o barro, por isso que no cresceu vegetao no lugar. Eu
aproveitei o mesmo lugar para tirar o barro.
Jos Vicente explica que o perodo ureo de produo das olarias na regio foi
durante os anos de 1920 a 1975. Percebe-se a discrepncia entre esse perodo e
o atual quando ele comenta: de 1920 at 1970 existiam pelo o menos 30 olarias
na regio. Atualmente, acho que s a minha, e ela funciona de forma espordica
apenas quando ocorrem raras encomendas.
Apesar de ainda produzir e trabalhar como oleiro, Jos Vicente considera que o perodo
ureo da olaria j passou e, que para a comunidade de Cubas, praticamente no est

Produo de tijolo de adobe e telha

106

tendo muita importncia a atividade. Quem fez


telhado com isso aqui praticamente foi embora
para a cidade. Ficaram s os velhos a, mas
eles no mexem com isso, no. Alm disso, eu
no dou emprego para as pessoas daqui mais.
Todos esto saindo para trabalhar na cidade.
Eu preciso buscar gente na cidade [que esteja
desempregada] para trabalhar aqui. Sobre a
sua clientela atual, comenta: Normalmente,
os clientes so apenas pessoas que possuem
alto poder aquisitivo. Esse produto apenas um
artigo de luxo, raridade. Eles compram pois
gostam de algo mais rstico, tem uns que at
me pedem para produzir ranhuras no tijolo para
ele parecer mais rstico ainda. Ele compara
a compra desse material moda, e o sucesso
ou no do seu uso, maneira como a relao
entre produto, pessoas e mdia efetuada.
assim, se um artista comear a usar uma roupa,
mesmo esta sendo pior, todos usaro, assim o
tambm com os tijolos e telhas.

Mestre Jos Gonalves mostra como se


produz uma telha

Essas mesmas observaes de Jos Vicente se aplicam ao oleiro Jos Gonalves


Teixeira, ou Z Pechincha, como conhecido em Bichinho distrito de Prados. Em
uma tarde chuvosa e fria do ms de fevereiro de 2010, Jos Gonalves relata na sua
olaria que da produo desta que retira o seu sustento. O pblico que compra o
seu produto basicamente o mesmo pblico de Jos Vicente, que busca um produto
extico, artesanal e rstico. Porm, diferentemente de Jos Vicente, Jos Gonalves
tem a sua olaria localizada prxima da famosa cidade de Tiradentes, onde o turismo
mais explorado que nas cidades vizinhas olaria de Jos Vicente. Isso permite
que a produo de Jos Gonalves seja maior e constante. Alm dos turistas que
procuram um produto mais rstico e artesanal, Jos Gonalves relata que consegue
vender para lojas de material de construo os seus tijolinhos, todo mundo adora
esse a, acrescenta Jos Gonalves. Essa vendas possibilitam a perpetuao das
atividades da sua olaria.
Jos Gonalves narra que enfrentou as mesmas dificuldades tcnicas apresentadas
por Jos Vicente para aprender a fazer a telha. Eu consegui produzir boas telhas
somente depois de muito treino, de erros e acertos. Quando comecei a produzir
telhas, de cada dez telhas costumava perder quatro. O tijolo no, o tijolo era fcil.
Eu frequentava a olaria do Velho Ferreira, a nica da regio na poca, e observava
o pessoal trabalhar. Aos 16 anos, produzi meu primeiro tijolinho imitando o forno da
olaria do Velho Ferreira, a pipa e a forma do pessoal fazer os tijolinhos. O tijolinho
fcil, a telha que difcil.

107

Mestre Jos Gonalves alisando a argila enformada na grade

Diante da dificuldade tcnica para a produo das telhas que dificulta a presena
de ajudantes, Jos Gonalves ressalta a solido do ofcio. O mestre artfice relata
que no perodo de grande produo necessrio permanecer em tempo integral na
olaria. As atividades so diurnas e noturnas. Durante o dia, aproveita-se o sol para
secar as peas que ainda se encontram midas. Uma vez secas, essas peas so
levadas ao forno.
O forno deve ser observado de forma contnua. Para que o forno no perca o seu
calor, necessrio dormir ao seu lado durante toda a noite para que se possa
colocar lenha em seu interior constantemente. Por isso, Jos Gonalves possui uma
cama ao lado do forno para ali permanecer nos perodos noturnos. Nesse espao,
o entrevistado passou vrias noites, teve diversos sonhos e chegou at a encontrar
com o esprito de um cliente. Ah! Isso tem uns trs anos, dessa vez eu fiquei at
com medo de trabalhar aqui no forno. Apesar dessa floresta aqui atrs, eu nunca
fiquei com medo de nada, de bicho, de assombrao, mas dessa vez eu fiquei com
medo. Foi um rapaz que me encomendou 2000 telhas dessa daqui e ele era o meu
vizinho aqui. Ele morava perto da igreja, numa casa cor de vinho. A, eu no sei o que

108

aconteceu, ele mexia muito com roa. Ele trabalhava perto da caixa dgua, l em
Tiradentes. L havia uma ponte cheia de cabo de ao. O cara caiu l e morreu. A, os
urubus comearam a comer ele. Comeu ele quase todo. E ele tinha me encomendado
essas tal de telha, a eu estava queimando aqui e estava sozinho, foi numa noite.
Eu morava ali naquela casinha, vim para c para o forno havia pouco tempo. A eu
comecei a ver o homem aqui do meu lado, morto. A, eu no aguentei ficar aqui,
no, eu tive de ir embora. S no outro dia que eu vim aqui olhar o forno, resolvi ir
embora para casa. Foi a nica coisa que me deu medo, fora isso, fico dias sozinho
aqui trabalhando.

Adobeiros
Dona Tereza Vaz Fernandes Machado, mais conhecida como Tereza do Dito, nasceu
em Leme do Prado e mudou-se aos 16 anos para Chapada do Norte, no Vale do
Jequitinhonha, onde reside at os dias atuais. Dona Tereza nunca frequentou
a escola, no sabe ler ou escrever e atualmente considerada uma agricultora
aposentada. Como vrias pessoas da regio onde ela nasceu, Dona Tereza fez todo
o tipo de atividade capaz de gerar renda para sua famlia. Foi domstica, cozinheira,

Dona Tereza Vaz Fernandes Machado

109

benzedeira, curandeira, cortadora de cana,


catadora de lenha e gua, e fabricante de
tijolos de adobe. A essa ltima atividade
dedicou pelo menos 35 anos da sua vida
e atualmente no a exerce pela falta de
demanda.
Dona Tereza aprendeu a produzir os adobes quando tinha aproximadamente 20
anos de idade, pois necessitava de alguma
renda para se sustentar. Como no havia
muitas escolhas para quem quisesse
praticar uma atividade remunerada em
Chapada do Norte, comeou a produzir os
tijolos.
Dona Tereza aprendeu a tcnica observando outras pessoas na regio. Ela fala
dos segredos do adobe. Descobriu-os ao
longo dos anos, com muita observao
e prtica: O adobe... A gente cavava
a terra, molhava e massava de p... O
barro tinha que ser muito bem massado.
E, a, eu punha a pessoa pra carregar e
quando chegava perto da forma, eu ia
batendo a forma... Era s barro e gua...
E colocava capim tambm, um mato que
chama capim meloso. Eles falam meloso.
Colocava o capim pra ficar seguro, pra
segurar. Antigamente, eles faziam o
adobe era assim. A, esperava secar,
punha ele em p, batia ele l na frma,
bem batidinho e tinha uma espcie assim
de uma tabinha, passava assim por riba
dele pra alisar. Pra sair lisinho. Suspendia
pra fora e eles ficava em p. Antigamente,
usava foice, mas eu usava mesmo era os
p. Pro adobe secar era mais ou menos
uns oito dias, com esse sol quente assim...
mais ou menos uns oito dias.
Dona Tereza do Dito conta que produzia
muitos adobes para os moradores da
vizinhana: menino, antigamente, eu
fazia adobo. Fiz pra essas casas aqui. Essa
Pipa utilizada para amassar o barro

110

aqui, depois de mim. Essa outra de l, essas que


tem aqui, depois que desmancharam pra... ficou
estragando, n? Ento, tudo pra-qui-afora,
tudo pra rua de cima, ali tudo, inclusive uma
casa, uma casa que eles desmancharam, via,
l na... rua de baixo, em frente de Dona Dod...
menino, eu vou te contar uma histria, um
dia eu fui apostar mais um homi, esse homi
at j morreu... Eu fui apostar com ele quantos
adobe que eu cortava... e ele cortou duzentos e
eu cortei trezentos e cinquenta. Num dia.
Com relao aos aprendizes, Dona Tereza
comenta que praticamente no h novos
aprendizes, pois se trata de um ofcio bastante
rduo, o que afasta os jovens de se interessar
pela profisso. Esse pessoal novo num quer
Pilha de tijolos de adobe em deteriorao
aprender as coisas desse pessoal antigo. Num
gostam de t l matano frango..., limpano
frango..., custurano frango... e num chega ningum..., se chegar algum, vai
chegando e saindo. Antigamente, eu ensinava... ensinava. Tem muita gente a...
Ensina. S que cad a coragem? Pesado, quem que quer? Ningum.
Sobre o perodo em que trabalhou com adobe, Dona Tereza relata que: Vendia pro
povo, pro pessoal. Tinha vez no ano, eu fazia era cinco, seis mil adobe, num ano.
No dava quase nada de dinheiro. Naquele tempo era pouca coisa... Naquele tempo,
era um dinheiro fracassado... Era pouco dinheiro. Eu chegava, cavava... Meu marido
bebia muito, o coitado... Era muito trabalhador, mas bebia demais. Quando pegou
beber... Eu que tomei conta do servio todo..., da casa... pra poder sustentar, que ele
dominou s na bebida... Ainda tinha a buscao de lenha no mato... pra vender...,
pra vender... gua no rio... pra vender... Buscando lata de gua no rio... pra vender,
que no existia gua na rua... pro c v como a coisa... a pessoa sofre... Toda hora
eu falo... Hoje... As mulher de hoje to banhando em gua de rosa... to banhando
gua de rosa, porque os marido d de tudo... Ainda tinha a lavoura, ainda... Eu ainda
trabalhava na lavoura...
Em Bichinho, no so poucas as casas construdas recentemente com tijolos de adobe.
Os novos moradores advindos de outros estados, principalmente Rio de Janeiro e So
Paulo, preferem os adobes da regio para dar um aspecto mais rstico e tradicional
s suas casas. nesse cenrio e contexto que encontramos com o adobeiro Luiz
Fernando Moreira, conhecido na regio como Luiz Brejeiro, que, diferentemente de
Dona Tereza, continua a produzir os seus adobes para a venda.
Quando seguimos pela estrada que d acesso a Bichinho pode-se ver, da estrada,
tijolos empilhados sob a proteo de uma lona - fevereiro , perodo de muitas

111

112

Pilha de tijolos de adobe

113

chuvas na regio, o que explica a utilizao da lona. Da estrada, v-se tambm a


terra extremamente avermelhada que d o tom no s aos adobes, mas tambm s
inmeras casas de joo-de-barro espalhadas pelas rvores em volta da propriedade
de Luiz Fernando Moreira.
Luiz, como Dona Tereza, aprendeu a produzir adobe por necessidade; porm,
diferentemente dela, iniciou a fabricao de tijolos para a construo da sua casa,
no ano de 1988, e apenas posteriormente comeou a comercializ-los.
Quando comeou a produzir os tijolos para erguer a sua casa, no teve orientao,
era na base do erro e do acerto mesmo, comenta Luiz. Quando construiu a sua
casa teve dificuldade para enformar e desenformar o barro - processo de encher
a frma que d forma aos tijolos de barro e posteriormente esvazi-las em um cho
previamente limpo para deix-los secar. Luiz comenta que tinha muita dificuldade j
que muitos dos seus tijolos rachavam. Como no encontrou algum para enformar
o barro, comeou a trabalhar sem a ajuda de terceiros. Pensou: se outros sabem, eu
mesmo vou enformar os tijolos da minha casa.
Em 2006, 18 anos aps a construo da sua casa de adobe, um primo do entrevistado
pediu a ele uma grande quantidade de adobes para a construo de uma casa de
um pessoal de fora expresso de Lus. O pessoal de fora exigia dos pedreiros a
construo de paredes de adobe. Como a terra da propriedade de Luz extremamente
propcia para a confeco dos adobes, o primo do entrevistado sugeriu a ele que os
fizessem para vender a esses moradores estrangeiros.
Luz Teixeira aceitou a proposta de seu primo e comeou a produzir os adobes. Os
novos moradores exigiram que os adobes fossem amassados no p, alegando esta
ser a forma mais artesanal de se fazer adobe. Exigncia que no foi seguida por Luis,
que, amassando o barro numa pipa de trao animal, pensou tudo artesanal do
mesmo jeito.
Diante da sua experincia inicial de fabricar tijolos de adobe para construo da sua
casa, procurou a orientao das pessoas mais velhas para conhecer os segredos
do adobe, principalmente com relao rachadura dos adobes que produzia. Um
dos antigos tijoleiros ensinou a Luz que para os tijolos no racharem necessrio
coletar o barro na lua minguante.
Luz comenta orgulhoso que ensina a tcnica aos filhos adolescentes de sua prima,
e menciona que seu pai foi um grande fabricante de adobe na regio. Porm, Luiz
Fernando Moreira no teve oportunidade de acompanhar o pai no perodo em que
este produzia adobes - comenta que o pai chegava a fabricar cerca de 600 adobes por
dia, juntamente com outro morador de Bichinho. Por ltimo, Luiz Fernando Moreira
comenta possuir uma raizinha herdada do pai com relao ao ofcio, apesar de no
ter aprendido o ofcio diretamente com o ele.

114

Deteriorao de parede de pau-a-pique junto ao esteio

Taipeiros
Jos Ladislau estudou at a 3 srie do ensino fundamental. Caminhava uma hora da
zona rural at a escola, na cidade de Bom Jesus do Amparo, na companhia de uma
turma de meninos, dentre os quais vrios tornaram-se pedreiros, como ele. Aprendeu
o ofcio com o pai, um carpinteiro da cidade de Bom Jesus. Iniciou o trabalho com o
pai quando tinha 10 anos e parou de trabalhar com ele aos 20. Com o pai, aprendeu
as tcnicas construtivas tradicionais, como: adobe, peneira seca, alicerces e pau-apique. No teve nenhum outro mestre alm do pai, e, indiretamente, o av paterno,
que ele ensinou as tcnicas ao seu pai. Pouco aprendeu diretamente com o av,
pois morreu quando Jos Ladislau tinha apenas cinco anos. O aprendizado depois
da morte de seu pai veio com o tempo, com a prtica, por meio da execuo das
atividades, aprimorando-as.
Durante a infncia e adolescncia, construiu e reformou muitas casas na cidade de
Bom Jesus. Em 1987, alguns anos depois de deixar sua cidade natal, Z de Lau

115

foi chamado para retornar para Bom Jesus e reformar uma casa construda com
tcnicas construtivas tradicionais. Recentemente, recebeu o convite para trabalhar
na restaurao do prdio da Secretaria Municipal de Turismo e Cultura de Baro de
Cocais, no entanto o projeto da obra ainda no foi concludo.
O entrevistado um dos poucos mestres artfices que habita uma casa de pau-apique, porm Jos Ladislau manifesta certo desconforto ao falar da sua moradia. O
incmodo pode ser notado, pois, enquanto revela todo o seu conhecimento sobre as
tcnicas construtivas tradicionais com cuidado, empolgao e generosidade, quando
indagado o tipo de casa em que prefere morar, sua voz praticamente some, parece
no querer que outras pessoas escutem a sua resposta. Com essa postura, sussurra
ao microfone: vou falar com vocs a verdade, eu no tenho casa, eu tenho um
barraco de pau a pique.
A contradio manifesta entre o explcito valor que o mestre artfice atribui s tcnicas
construtivas tradicionais, que conhece e executa, e a confisso embaraosa sobre sua
prpria moradia, coloca questes complexas em relao a essas mesmas tcnicas,
tanto prticas quanto simblicas,
que merecem ser exploradas e
problematizadas. A contradio
sugere
fortes
divergncias
entre os modos idealizados ou
romnticos de representao dos
modos vernculos de construo,
postos luz nos discursos mais
ou menos cristalizados sobre as
tcnicas, viso estimulada, talvez,
por um mercado consumidor ou
turstico que as valoriza porque
exticas, e os modos locais
de percepo dessas mesmas
tcnicas. Do ponto de vista local,
muitas vezes, constituem solues
tcnicas que sofrem o peso de
uma desvalorizao simblica,
qui negada, talvez at alvo
de uma relativa estigmatizao
enquanto signos sociais negativos
quando olhadas da perspectiva
dos atores ou, mais ainda, quando
consideradas
como
recursos
Mestre Jos de Lau

116

tcnicos para o uso pessoal dos prprios artfices que, no entanto, e paradoxalmente,
as conhecem profundamente e as praticam com virtuosismo artstico para o mercado.
Para responder a essas questes, ser necessria pesquisa etnogrfica mais
demorada que permita maior convvio com os artfices e a populao local. Essa
aproximao propiciaria maior refinamento na compreenso dessa aparente
discrepncia dos modos valorativos das tcnicas construtivas tradicionais: de um
lado, a viso idealizada ancorada na perspectiva externa ou de mercado e, de outro,
a viso interna, regional, posta de manifesto, de modo paradoxal, pelas prticas e
usos de solues construtivas pelos prprios artfices. A melhor compreenso desse
conflito, entre percepo-representao e prticas-usos dos recursos tradicionais
e/ou modernos de tcnicas de construo civil, nos contextos sociais particulares,
fundamental para melhor definio de polticas que aspirem preservao e
fomento, nessas populaes, do emprego das solues construtivas vernculas.

Notas
1. LVI-STRAUSS, 1986, p. 222.
2. LVI-STRAUSS, 1986, p. 17-18.
3. LVI-STRAUSS, 1986, p. 222-223.

117

carpinteiro
marceneiro
esteireiro

OFCIOS DA MADEIRA
E DA TAQUARA

Plaina manual

120

OFCIOS DA MADEIRA E DA
TAQUARA: CARPINTeiro/
MARCENeiro/ESTEIREIRO
O emprego da madeira para o fabrico de instrumentos de usos diversos, como
armas e utenslios domsticos ou proteo e abrigo, to antigo quanto a prpria
humanidade. No Brasil, formas nativas de uso da madeira na construo influenciaram
fortemente o saber fazer dos portugueses, principalmente na carpintaria, deixando
marcas permanentes nas tcnicas construtivas tradicionais, como o uso do pau-apique - mistura de barro e madeira, uma soluo verncula para a vedao de casas
populares1.
Em Minas Gerais, a madeira foi um dos materiais de uso mais intenso e diversificado
nas tcnicas construtivas e obras de ornamentao do perodo colonial. Constam
nos autos de arrematao e de condio de execuo dos contratos, as madeiras
de lei mais empregadas e a sua utilizao: brana e aroeira para esteios e cunhais;
candeia, canela, cangerana, guapeva, ip e sucupira para telhados; bagre, brana,
canela, cedro e sucupira para os assoalhos; vinhtico para os forros; aroeira e peroba
para as vigas do assoalho e coro; cedro, pinho, pinho de riga, canela preta e parda,
jacarand e sucupira para esquadrias, escadas, janelas e portas; e toda sorte de
madeiras de lei para as mais diversas peas de ornamentao e mobilirio2.
Dos artesos que se ocupam da madeira, se destaca o carpinteiro, antigamente
conhecido como carapina ou carpina. O carpinteiro aquele que se ocupa de cortar,
lavrar e talhar a madeira para a construo, geralmente beneficia as madeiras mais
resistentes e duras, cabendo a ele a montagem das estruturas mais pesadas, como
os vigamentos, assoalhos, forros, etc.
Se o carpinteiro leva a cabo o seu empreendimento no canteiro de obra da construo,
o marceneiro realiza a sua arte, em geral, na oficina. O marceneiro se diferencia por
utilizar madeiras mais macias e maleveis, prprias para o torneado e os pequenos
entalhes; emprega ferramentas de maior preciso e se preocupa com o acabamento
delicado e belo dos materiais, podendo ser diferenciado do carpinteiro, sobretudo, pelos
objetos que fabrica, em geral, mveis e peas decorativas. Em outras palavras, se
distingue do carpinteiro pelo modo mais minucioso e demorado de trabalhar a madeira.
Ofcio de natureza essencialmente masculina, os mestres artfices lembram que as
madeiras usadas para estrutura das edificaes antigamente eram retiradas da mata
local, como o tamburi, a canela e o jacarand, entre outras. Ao contar suas histrias
de vida, descrevem que se iniciaram cedo no ofcio acompanhando os pais ou

121

parentes prximos nas incurses na mata,


procura das madeiras adequadas para
os servios encomendados. Introduzidos
pelos mais velhos no universo das
madeiras, aprenderam cedo a distinguir
as rvores pelas folhas, pelas cores,
pelas fibras e pelas cascas. As mudanas
sociais e econmicas ocorridas ao longo
do tempo trouxeram o adensamento
urbano e a diminuio das reas de mata
nativa. Muitas espcies entraram em
extino e tiveram que ser substitudas
por madeiras vindas de outros estados ou
recicladas.
Se a mxima dos mestres canteiros reza
que para a boa escolha da matria a ser
trabalhada preciso escutar os sons da
pedra, os artfices da madeira confiam a
sua cincia classificatria dos materiais
ao conjunto das restantes faculdades
perceptivas: o tato, a viso, o palador e
olfato. As classificaes da natureza por
cheiros ou gostos no so exclusivas das
artes construtivas, so comuns a muitos
povos indgenas da Amrica do Sul, sendo
que o cheiro nem sempre se restringe
mera experincia sensorial, incluindo uma
vaga sensao valorativa de qualidades
distintas, de atrao ou repugnncia3.
preciso que o mestre tenha adquirido
familiaridade com os materiais para o
reconhecimento gil, tanto visual quanto
ttil das madeiras. Assim, cada espcie
pode ser distinguida, primeiramente,
pela cor, a intensidade da tonalidade e
a textura aparente, informaes que
lhe permitem ordenar as madeiras
num gradiente que vai das madeiras
mais escuras s mais claras. A essa
classificao visual corresponde um arco
de sensaes olfativas e gustativas: as
madeiras mais escuras so amargas ou
Mestre Jos Geraldo

122

Detalhe aproximado do encaixe de espigo em cumeeira e pernas no pontalete

amarujadas, como a peroba rosa, o cedro, o angelim margoso, o murici ou cambuat


- madeiras resistentes ao ataque de cupins; as madeiras mais claras so adocicadas,
doces ou gostosas, como a garapa, a ou a canela parda, mais frgeis ao ataque de
insetos. Alm disso, h aquelas madeiras que cheiram de modo singular, ou com
maior ou menor intensidade, como a canela sassafrs; ou que soltam partculas
que fazem espirrar, como o paraj; ou que provocam sensaes de gastura, como
o ip ou a brana. As estruturas das fibras so observadas tambm, estas podem
apresentar conjuntos de filamentos mais fechados ou mais abertos, que permitem
classificar as madeiras em aquelas que tm cerne ou madeiras sem cerne - sinais
que so considerados para a avaliao do grau de resistncia da espcie, tanto
ao mecnica quanto degradao orgnica.
Caminhando pelos morros da cidade de Ouro Preto, em meio a igrejas barrocas, lojas
diversas, turistas e moradores locais, encontramos o marceneiro Jos Geraldo Rosa.
Com seus 55 anos, 36 deles dedicados carpintaria, S Geraldo como conhecido
na cidade comenta modestamente: no sou bem um mestre. Apesar da modstia
do carpinteiro, seu trabalho muito valorizado em Ouro Preto. Na cidade, possui
muitos clientes e tem conscincia da importncia do seu trabalho para a manuteno
do patrimnio edificado. No entanto, para ser respeitado como carpinteiro e como
restaurador o caminho do sr. Jos Geraldo foi longo.

123

Filho de lavradores comeou a trabalhar


com carpintaria e marcenaria aos 19 anos
de idade na cidade de So Paulo, onde
trabalhou com marceneiros e comeou
a se interessar pelo ofcio. Na capital
paulista, trabalhou com montagem de
mveis e, posteriormente, passou a
trabalhar com carpintaria na construo
civil. Ao longo de sua vida participou
de diversos cursos, dentre eles: um
curso de mestre de obras na UFOP que
envolveu conhecimentos nas reas de
carpintaria, estrutura, acabamento,
concreto armado, instalaes eltricas
e hidrulicas e posteriormente um
curso de restaurao, pelo Projeto
Monumenta do Ministrio da Cultura,
em Veneza, na Itlia.
Com toda a experincia adquirida
ao longo dos 36 anos dedicados
carpintaria e com nos cursos dos
quais participou, Seu Geraldo muito
Mestre Jos Geraldo mostrando encaixe do cachorro
consultado e requisitado quando se
no frechal em meia madeira
realizam obras de restauro na regio do
Campo das Vertentes. Sobre a demolio de Nossa Senhora do Rosrio, em Piranga,
que se encontrava na iminncia de desabamento, sr. Geraldo, contrariando todas as
opinies obtidas, no concordou com a idia de demoli-la, e assumiu a responsabilidade
dos trabalhos de restaurao do bem. Porque ia acabar com o patrimnio da cidade.
Como fizeram com a Igreja Matriz de Nossa Senhora da conceio em Piranga.
Teve um padre que deu a igreja para uma vistoria de engenharia. A igreja estava
comprometida, no podiam deixar a igreja em p. Demoliram a igreja e construram
uma igreja nova, moderna. Com relao Igreja do Rosrio, quando caiu o telhado,
eles queriam fazer o mesmo. Falei: vai descaracterizar a praa, perder uma coisa
que possui valor histrico para a cidade. Eu j tinha certo conhecimento disso e
opinei contra.
Seu Geraldo comenta que, para trabalhar com restaurao, alm de conhecer
as tcnicas tradicionais, o carpinteiro precisa ter pacincia, saber trabalhar com
ferramentas especficas, dialogar com outros profissionais envolvidos na obra e
saber quando concordar e quando discordar destes profissionais. Segundo o sr. Jos
Geraldo, ao discordar, o profissional assume responsabilidades, o que uma postura
difcil. preciso ainda um dom intelectual para perceber o que o outro fez e saber
desenvolver o trabalho sozinho, pois a mo faz aquilo que a cabea manda.

124

A partir da sua experincia como carpinteiro, Jos Geraldo Rosa conta com pesar que
muitas empresas realizam obras de restaurao sem o conhecimento necessrio para
executar servios especficos da carpintaria. Segundo ele, o resultado dos trabalhos
em carpintaria no se diferencia de um profissional para outro, mas as tcnicas
usadas pelos carpinteiros so diferenciadas, e implicam em bons resultados ou no.
Ningum fica a olhar os detalhes. Depois de coberto, tudo telhado, est tudo
bonitinho. Agora, os detalhes de execuo do trabalho, a segurana, a durabilidade
que vem depois. Ento, frechais encaixados, tesouras encaixadas, cachorros
encaixados, espiges, tudo encaixadinho na cumeeira, nos frechais, isso que o
esprito de durabilidade do telhado. E muitas vezes, isso no acontece, porque muitos
carpinteiros chegam com uma pea na outra e bate prego. E amanh, o telhado
trabalha muito, a comea: abre num canto um pouquinho, puxa no outro. s vezes
a carga de um lado t mais do que no outro, a, aquele troo vai desequilibrando e
o telhado comea a: selando, abrindo, empurrando parede. Isso a o proprietrio s
v depois que comeam os danos, n. E valor tambm, porque a mo de obra bem
aplicada, ela tem uma demanda maior de tempo. A, comea aquele negcio, aquela
questo de oramento: um faz por dez, o outro faz por quinze, o outro faz por oito, o
outro faz por vinte. Mas o proprietrio no olha muito isso, ele quer o mais barato.
A exigncia que tem enquanto profissional repassada para seu filho que atualmente
acompanha sr. Geraldo nos intervalos do seu curso, no Centro Federal de Educao

Mestre Lus Antonio da Silva

125

Bancada de marcenaria

Tecnolgica - Cefet de Tcnicas em Edificaes. Na companhia do pai, o filho aprende


no apenas a carpintaria, mas todo o trabalho na construo civil. Ele considerado
por seu pai como um quase oficial. Tem dois anos que ele trabalha comigo. A
gente consegue enxergar habilidade na pessoa quando se pede, faa isso ou faa
aquilo, sem precisar orientar. Ento, ele j tem na cabea dele o que que deve
fazer, e ele aplica os prprios meios dele. Porque enquanto ele copia o que a gente
faz, ele no oficial.
Aps conhecermos rapidamente as especificidades da carpintaria em So Joo DelRey, foi na busca das especificidades da marcenaria que encontramos o marceneiro
Lus Antnio da Silva. Mais conhecido como Tonho, aos seus 50 anos de idade, o
administrador da Marcenaria e Carpintaria So Caetano Ltda. Na marcenaria, Lus
precisa dar conta da relao com os clientes, com as revendedoras de madeira,
com os lucros e prejuzos, com o estado das mquinas e com o bem-estar dos
funcionrios. Segundo o entrevistado, a produo da sua marcenaria concentra-se
principalmente em mveis que exigem a utilizao da tcnica do entalhe, porm
recebe esporadicamente encomendas de portas e janelas que exigem, da mesma
forma, o conhecimento dessa arte.
Luis Antnio da Silva opta por no confeccionar portas e janelas que no necessitam
da tcnica do entalhe, devido presena de duas grandes empresas que se dedicam

126

produo em larga escala dessas peas. Eu trabalho com o que chamamos de


obra s se for assim: se tiver uma casa antiga l e eu tiver que copiar duas janelas
daquele tipo l, a, a gente vai fazer. Ento eu trabalho com aquilo que exige tcnica,
porque esses servios corridos em que eu tenho de fazer dez portas, eu no gosto.
Eu consigo esse servio pela pacincia que empenho. Uma firma pega a, a reforma
de um telhado de alguma igreja famosa. Eles se perguntam: mas como que vamos
fazer com essa balaustrada que tem duas ou trs peas entalhadas? A, algum vai
e diz: ah! Procura o Tonho, o sr. Lus. Ele tem pacincia, isso a ele gosta de fazer.
A relao de Lus com a marcenaria de longa data, ele aprendeu o ofcio na infncia,
frequentando a marcenaria de seu pai, conhecido como Geraldo Milito da Silva. Eu
fui nascido e criado dentro de uma marcenaria. por isso que eu te falo: se voc
falar: seu Lus, eu preciso fazer um servio que ningum est querendo fazer a
porque um servio antigo. Eu falo: olha, posso no fazer agora, mas eu dou um
jeito. porque est apurado, todos os tipos de tcnicas. Porque a gente foi nascido
e criado dentro de uma coisa e aprendi desde pequeno, ento tenho profundidade
da coisa, entendeu?
Lus relembra que produziu as primeiras peas aos 13 anos e comenta sobre como
se processou o aprendizado na arte da marcenaria: Eu vou te falar, at hoje, a
sequncia que repassada para um garoto dentro da oficina. Ele chega, ele vai
varrer, observar as pessoas trabalhando, vai carregar... ah, vai carregar isso daqui
para l. Comea assim, s observando, a, voc aprende a ligar uma mquina. Voc
sente uma satisfao em aprender a ligar uma mquina...
E foi assim que ocorreu seu aprendizado. Aps aprender as primeiras atividades
dentro da marcenaria varrer, carregar peas e ligar mquinas o pai, Geraldo
Milito, sugeriu ao filho que comeasse a aprender a tcnica do entalhe em madeira.
Meu pai queria muito que eu comeasse a entalhar, a tinha o mestre que trabalhava
para ele l, e meu pai dizia: voc vai varrer e, de vez em quando, voc ficar mais
perto dele. Ento eu o via desenhar, eu comeava a desenhar junto dele e a a coisa
foi fluindo... A, depois, quando eu desenhava, o mestre dizia: esquisito, voc para
desenhar tem uma mo melhor do que a minha. Acho que porque voc est mais
novo, est com uma vista melhor, por isso.
O mestre ao qual se refere Lus era conhecido como Totonho Andrade. Sobre ele e a
arte do entalhe relembra o aprendiz: Totonho Andrade era aquele senhor antigo,
todo cheio de mania, mas que tinha um carinho e generosidade muito grande com
o jovem. Ele era viciado em lcool. E foi por isso que eu no me aprofundei s
na tcnica do entalhe. Porque eu fui pela experincia dele e fiquei com medo de
trabalhar s com o entalhe. E principalmente com a produo de imagem de santos.
Eu acho que fica muito bitolado, muito focado. De repente, eu vi isso nele, no sei se
eu estou certo. A, meu pai disse: , agora eu j estou comeando a ficar cansado,
e voc ter de administrar a marcenaria. Eu achei a melhor coisa do mundo, pois
eu tinha de comprar, eu tinha de vender, eu tinha de atender o cliente. E isso, me

127

Oficina do mestre Lus Antnio da Silva em So Joo Del-Rey

128

tirava muito do entalhe. A, eu me


senti melhor, pois no entalhe eu
senti que eu poderia sair igual ao
mestre, e me envolver muito com
o lcool.
Lus teve contato dirio com
Totonho Andrade dos 13 anos at os
23 anos, quando Totonho Andrade
parou de trabalhar na marcenaria
de seu pai. Independente da sada
do mestre, ambos mantiveram uma
relao de amizade e aprendizado
por toda a vida. Mesmo aps a
sada de Totonho Andrade, Lus
continuou a procur-lo em busca
de orientao na execuo de
peas entalhadas. Segundo o
entrevistado, ele s parou de se
aconselhar profissionalmente com
Totonho Andrade quando este
faleceu em 1995. Totonho mestre
porque na tcnica de entalhar ele
era muito bom. Com relao ao
entalhe, ele me ensinou o mximo
possvel da coisa, manuseio, tudo.
A fiao de ferramenta, ele me
ensinou isso tudo. Ele me ensinou
no s o bsico, ele me ensinou
tudo de entalhe. E como pessoa,
ele era uma excepcional pessoa. E
at o vcio dele, ele me ensinou.
Olha para voc ver, eu tenho medo.
Ele foi um mestre alm da arte. E
um mestre para poder me ensinar
o dia-a-dia. Um aprendiz que me
acompanha ele no aprende s
especificamente a tcnica do
entalhe, ele aprende a marcenaria
no geral. E eu acredito que para a
gente repassar para uma pessoa,

129

necessita, mesmo , de pelo menos uns dez anos. A no ser que o cara vai aprender
s o entalhe. Mas ele precisa de ir na mquina. Ele precisa de aprender a tirar, ele
precisa aprender a textura de madeira. Isso no se aprende assim s fazendo o
entalhe. Ele tem que fazer outra coisa. Ele tem que aprender alguma coisa dentro da
marcenaria. No pode ser s o entalhe, eu acho que no funciona. Ele precisa saber
posio de fura, porque voc vai fazer uma pea, vai mandar ela desmontada para
a pessoa. Uma mesa, por exemplo, ele vai entalhar tudo, ele precisa ter uma noo
de tudo, ele no pode ser s profissional no entalhe. A no ser que ele v trabalhar
com imagem, escultura, a , eu fico quieto. Mas se for em marcenaria, ele precisa
aprender um pouco mais da marcenaria, ele no precisa aprender s do entalhe. Se
for s no entalhe e tem dom, aprende em menos tempo. Se tem dom, aprende com
menos tempo, com dois anos se forma um bom entalhador.
Lus comenta que guardou os ensinamentos de Totonho Andrade. Sobre a forma
de se posicionar com relao a mltiplos aspectos da vida, Lus tece o seguinte
comentrio: A maioria dos meus sobrinhos e meus empregados, todos gostam de
conversar comigo. Tem problema, eles pensam, eu vou l conversar com o Tonho
para ver se ele me d uma... E eu no jogo nada fora. Eu s penso assim: o que
que voc est pensando. Eu vou te ajudar dentro do que voc est pensando.
Eu no vou te inovar, eu no vou colocar nada na sua ideia, no. Eu vou trabalhar
em cima daquilo que voc est pensando, a vida sua. Simples, tranquilo, isso foi
o que eu aprendi com esse grande mestre. Ele no foi s um grande mestre do
entalhe, foi um mestre da calma, da tranquilidade. Ele estava trabalhando muito
bem l. Muitas vezes a gente estava l, afoito, dizendo estamos atrasados vamos
acabar logo com isso aqui. Ele falava assim: no, tem um mato aqui em cima, eu
vou l beber uma gua da mina.
Interessado e empolgado em falar da marcenaria, Lus nos descreve algumas lendas
e aspectos mgicos relacionados ao seu ofcio. Ento, tem uma lenda que diz: Todos
os marceneiros esto com a vida atrasada. o seguinte: Eles falam que a madeira no
geral, se voc for tirar um p de cadeira, voc tem que tentar cortar o p para que
o lado do p da cadeira seja o lado do p da rvore e o lado de cima naturalmente
seja o lado de cima. Por que se voc inverter, voc faz o atraso de vida seu mesmo,
entendeu? Se voc colocar a madeira de cabea para baixo, ih! Como que voc far
isso, no tem jeito, no. Por isso que est todo mundo atrasado, pois no tem jeito
de colocar o p da cadeira da forma como diz a lenda. Como que voc vai adivinhar.
Quando voc est l tirando a placa de madeira, voc est vendo, a, de repente voc
vai casar um modelo, pe um para c e outro para c. assim que vai funcionar para
ns aproveitarmos o material. Essa uma histria que tem por a...

Outra histria que eu gosto muito de contar. Quando ns temos duas morsas para
mexer com entalhe, quando chega cinco horas, momento que ns vamos parar, devese tirar tudo. Nada deve ficar preso, porque, seno, a gente sonha com o servio. Est
vendo aquela pea de madeira presa ali? Quando chega cinco horas, bambeia, tira
a pea de madeira e pe em cima da bancada. Com relao caixa de ferramentas,

130

deixa ela fechada. No deixa aberta, porque seno a gente sonha com o servio. Essa
uma lenda que tem por a. Eu sigo, pois eu no quero nem pensar no meu servio de
noite. Eu bambeio tudo e a gente vai para a casa. Isso que eu estou lhe falando pode
ter certeza que tem uma grande histria por trs disso, e a gente s vezes apega.
Tudo tem uma grande histria, e que deve ser respeitada, porque bonito.
O marceneiro sustenta sua famlia e criou os filhos com a renda da oficina. Lus
demonstra orgulho e conscincia por deter o conhecimento de uma tcnica que vem
sendo empregada no lugar desde a poca colonial. Demonstra ter conscincia da
tcnica enquanto patrimnio cultural imaterial. Comenta que as peas produzidas
pela marcenaria, pelo engenho e habilidade exigidos, desde uma simples janela at
um mvel ou adorno entalhados, consistem em obras de arte. Lus tem a inteno
de realizar um museu com as ferramentas e os equipamentos antigos herdados de
seu pai e obtidos com outros marceneiros da cidade. Tambm considera importante
a transmisso deste conhecimento para que haja continuidade do saber fazer.
Agradece ter tido a oportunidade de aprender com o pai uma atividade to prazerosa
e criativa e considera importante transmitir aos aprendizes o que foi bom para ele
na infncia, adolescncia: as noes de vivncia que acabam sendo passadas junto
com o conhecimento da tcnica, dando responsabilidade e auxiliando na formao
do indivduo de forma integral.

Taquara e tranado: ofcio de esteireiro


A arte da cestaria inclui no somente a fabricao de cestos, mas tambm as
caniadas superfcie plana feita de varas, canas, vimes ou juncos , os tranados
decorativos e as esteiras, esta ltima muito prxima do engenho txtil, mas sem
utilizao de marco nem de tear4.
Por meio de tranados complexos e intrincados e utilizando a taquara como matriaprima, o esteireiro confecciona o forro que ir cobrir diversas reas das casas no
interior do estado de Minas Gerais. Com as mos desarmadas e com a ajuda dos ps
os mestres do tranado confeccionam ainda cestos, esteiras e balaios - motivo pelo
qual muitos destes artfices da construo civil ganham o apelido de balaieiro.
Sem utilizar ferramentas para o tranado, o corpo do esteireiro se ajusta s exigncias
da taquara, uma melindrosa mas, ao mesmo tempo, malevel matria-prima. Com
seu corpo dobrado e suas mos calejadas pelo seu trabalho, o esteireiro est prestes
a atualizar uma das mais antigas tcnicas da humanidade entre as artes do tranado
de fibras vegetais: o tranado.
Claude Lvi-Strauss observa que no temos a cestaria em alta considerao, no
h espao para ela nos museus, ao lado da pintura ou da escultura. Instigado por
esse esquecimento e pelos mltiplos significados da sua arte e tecnologia, lembra a
antiguidade e utilidade da cestaria, que fora praticada pelos patriarcas do deserto e os
eremitas em seus retiros. Tiravam da a maior parte de sua subsistncia e forneciam

131

obras muito refinadas para servir mesa dos grandes, de onde desapareceram
substitudas pelos recipientes de cristal5.
entre os povos sem escrita que esta arte ocupa um lugar importante e, muitas
vezes o mais elevado. A cestaria se perpetua na mo de especialistas, constitui
uma arte nobre, que entre alguns grupos indgenas se converte em privilgio de
um crculo de iniciados. A rica mitologia dos cestos, encontrada em quase toda a
Amrica, evidencia a importncia dada a cestaria entre os povos indgenas, por
representar, na viso de Lvi-Strauss, um estado de delicado equilbrio entre a
natureza as fibras vegetais extradas da floresta e a cultura o utenslio obtido
com o entrelaamento das fibras6.
A antiguidade da cestaria s no excede, provavelmente, a da confeco de cordas
e a manufatura de trabalhos em malha ou fil. No continente americano, existem
indcios arqueolgicos de que a arte do tranado era praticada desde 11 mil anos
a.C.7 No Brasil, a tcnica do tranado, dentre as tcnicas elaboradas pelos ndios,
alcanou o mais alto grau de domnio e de distribuio geogrfica8.
Para os ndios, os tranados apresentam variadas funes como: transporte da caa,
da pesca, de frutos silvestres, sementes e outros elementos de coleta. As tcnicas de
tranado (torcido, enlaado) so empregadas pelo indgena brasileiro na construo
do arcabouo e cobertura da sua casa9.
Apesar das suas sofisticadas invenes tcnicas, o legado do ndio cultura brasileira
e universal, na sua qualidade de Homo faber, ainda no foi totalmente avaliado e
talvez nunca venha a s-lo, em toda a sua plenitude, porque grande parte do saber,
do conhecimento e manejo da natureza se perdeu na noite dos tempos10.
essa a impresso que se tem quando nos deparamos com os forros de taquara
confeccionados pelos mestres esteireiros espalhados pelo estado de Minas Gerais.
possvel que essa tcnica construtiva tradicional seja uma incorporao dos materiais
e tcnicas indgenas de tecido de fibras naturais, adaptadas como soluo para a
construo das moradias do homem branco.
Olhar para o teto de uma casa construda nas cidades setecentistas do interior do
estado de Minas se deparar, muitas vezes, com um jogo intrincado de imagens, que
remetem ora a um imaginrio indgena ora a um imaginrio cristo ocidental. De um
lado, vemos imagens de escamas e rabos de peixes, desenhos de cobras, o couro da
ona, alm de objetos geomtricos e figurativos que muito se assemelham queles
produzidos nas cestarias indgenas11. Do outro lado, vemos tambm a insero de
smbolos cristos e ocidentais como cruzeiros e letras do alfabeto.
A taquara a matria que d suporte a esse imaginrio. Essa gramnea nativa
da Amrica do Sul uma companheira de longa data dos esteireiros. Enquanto
aprendizes, durante anos, a taquara cortou e machucou as mos do artfices; alguns
desistiram, outros criaram mos geis e resistentes s fibras cortantes.

132

A taquara era conhecida e usada pelos povos nativos da Amrica do Sul, que lhe
davam as mais diversas utilidades, desde o uso de seus colmos ocos como pequenos
recipientes, como canudos para diversas finalidades (inclusive a zarabatana), vigas e
travessas leves para a construo de suas habitaes, cercas ou paliadas leves para
a conteno de aves ou outros pequenos animais e, principalmente, com suas lascas,
para feitio de cestas das mais diversas formas e para as mais diversas utilidades,
como alqueires e balaios12.
Em Minas Gerais, a concavidade da taquara esconde uma larva extremamente
apreciada por alguns grupos indgenas. Nos escritos de Saint-Hilaire13, botnico,
naturalista e viajante francs do sculo XIX, h meno aos grupos indgenas da
regio que apreciavam o bicho da taquara no apenas como um delicioso alimento
mas como uma espcie de substncia exttica, causadora de sonhos e vises14
(entre os Maxakali, por exemplo, o bicho da taquara encontrado em sua mitologia,
nas prticas rituais e corporais at os dias atuais15).
Se para os ndios de Minas Gerais a taquara esconde um poderoso estimulante de
viagens xamnicas e onricas, no parece ser muito diferente para os esteireiros
que, com as dobras, cruzamentos e sobreposies de suas fibras vo moldando

Forro de esteira tranado em forma de escama de peixe

133

mundos imaginrios, feitos de uma constelao


de formas, desenhos e figuras nos forros que
laboriosamente tecem.
Se a viagem xamnica no a fonte de
inspirao dos desenhos entre os mestres
esteireiros, a viagem e o encontro com outras
tcnicas de tecido de esteira de fundamental
importncia para a recriao de seus desenhos.
O jovem esteireiro Vantuir de Figueiredo (27
anos), de Bichinho, teve de viajar para o Caraa
e descobriu que na igreja principal dessa
cidade havia um extenso forro com inmeros
desenhos. Encantado, o jovem passou horas a
observar aquelas imagens novas para tentar
reproduzi-las em sua oficina. Impossibilitado de
realizar essa tarefa, ficou aliviado ficou quando
descobriu que o forro da igreja seria reformado;
retornou at a cidade para pedir pedaos
das tramas daquele forro confeccionado
Mestre Divino Ferreira da Silva mostrando
os desenhos de temas possveis de serem
por outro esteireiro e tentou reproduzi-los.
aplicados esteira
Desse momento, o jovem pensa: meu Deus!
Esse cara um artista!. Entusiasmado com
a possibilidade de aprender e criar novas formas e imagens, foi a uma feira de
artesanato em Tiradentes e l se deparou com cestarias indgenas, oriundas dos
mais diversos grupos, e pensou tenho muito a aprender.
Interessados em conhecer e aprender um pouco mais sobre esse universo, partimos
em direo a Baro de Cocais Municpio do estado de Minas Gerais, localizado
a 95Km de Belo Horizonte - , procura do esteirista Divino Ferreira da Silva, que
nos disseram ser capaz de produzir 50 tipos distintos de tramas e tranados para
produzir imagens diversas nos forros.
Seguindo pelas ruas da cidade chegamos a uma pequena vila em meio a muitas
rvores e plantas. Caminhando por uma trilha em meio a alguns ps de banana,
cana, milho e mamo, a certa distncia, avistamos Divino, que se movimentava entre
as casas e as plantas de forma apressada. Ao nos ver, Divino disse logo um venha,
pode chegar e pela movimentao do seu gil corpo, que ainda no se revelava
completamente, percebemos a intimidade que tem com o espao que o cerca. Ao se
movimentar, permitiu que os visitantes notassem o contorno peculiar de seu corpo.
Divino caminhava com as costas curvadas, com um aspecto corcunda, despertando a
curiosidade dos visitantes.
Assim que nos aproximamos, o mestre artfice comeou a falar. Ele retornou ao
passado, sua infncia e sua adolescncia, comentando sobre o grande interesse

134

e persistncia que teve para aprender o ofcio. Ele se lembra da primeira vez que
viu uma pessoa tecendo um forro de taquara e das dificuldades: eu tinha 5 anos de
idade e vi o senhor Djalma, ele tranava o forro de maneira muito apressada. Ele no
permitia s pessoas aprenderem a fazer forro. Senhor Djalma percebia o interesse
das pessoas sua volta, mas ele no ensinava. Ele tinha medo das outras pessoas
tomarem o servio dele.
A dificuldade enfrentada com senhor Djalma no foi empecilho para o aprendizado
de Divino. Sua curiosidade e vontade de aprender permitiram a ele superar a todas
as dificuldades. Eu observava com ateno como os fazedores de forro executavam
o seu trabalho. Eu no conseguia aprender, eles tranavam muito rpido eu tinha
de praticar. Eu desmanchava forro velho e fazia novamente, s que nunca que saa
igual. Aps inmeras tentativas fiz a primeira esteira aos 10 anos de idade.
Esse cenrio muda com a chegada, cidade, de Natividade, uma exmia esteirista
oriunda da cidade de Bom Jesus. Com ela aprendi a fazer forro, comenta Divino e
logo aps, completa: aos 14 anos fiz a minha primeira esteira para ser vendida e
aprendi a fazer diversos tipos de tranados.

Tranado de material plstico

135

A parcimnia caracterstica do ofcio


Divino lembrou-se tambm dos antigos esteireiros de Baro de Cocais. Na sua
fala percebemos que no passado havia toda uma tica e parcimnia dos mestres
esteireiros em no dizer, de prontido, a habilidade que possuem. No meio da sua
narrativa surgiu a seguinte histria: Uma historiazinha que eu sei... foi um caso.
No foi comigo que aconteceu, no... Um moo contou-me que morava em uma
fazenda aqui para o lado de Catas Altas. Ele foi l em Itabira buscar dois fazedores
de forro. Porm, havia um fazedor de forro que trabalhava h muitos anos nessa
fazenda. assim, sempre que a pessoa sabe, ela no demonstra que sabe. O rapaz
que me contou a histria foi l em Itabira buscar os dois fazedores de forro, pois eles
realmente eram bons. Chegaram na fazenda e pediram para o fazedor de forro que
no disse a ningum que sabia fazer forro para ele bater 5 quilos de taquara ou
mais, pois eles precisavam retornar para Itabira. Ao retornarem, a matria-prima
para a realizao do forro j estaria pronta para ser utilizada. Um dos fazedores de
forro de Itabira disse em tom de brincadeira para o fazedor de forro da fazenda:

- Ah, se voc souber fazer algum forro j pode comear a fazer e deixar pronto.
O fazedor de forro da fazenda elaborou o forro da sala e nele escreveu: Fazenda
Magalhes Pinto. Quando os dois fazedores de forro de Itabira retornaram, eles
ficaram espantados. Um deles ficou nervoso com o patro e disse a ele:
- Uai moo, voc est abusando com a cara da gente.
- No estou, no - o patro responde.
Um dos fazedores de forro de Itabria replica:

- No, no possvel, voc sair daqui de Catas Altas, ir l para Mariana para nos
buscar sendo que voc tem um fazedor de forro aqui, que comparado a ns... Ns
no servimos nem para lavar os ps dele.
O patro, sem entender, diz:

- No, o que que isso, uai? Voc est doido?


Um dos fazedores de forro de Itabria diz:
- Ento ns vamos l que eu te mostro.

Eles foram at o forro, o abriram e os fazedores de forro de Itabira comentaram:


- Aqui, ns sabemos fazer muitos desenhos de forro, mas esse desenho aqui ns
no somos capazes de realizar, ns nem sabemos por onde que passou esse trem.
A, comenta o entrevistado, os caras ficaram nervosos, os fazedores de esteira
de Itabira ficaram nervosos, e insistiram com o patro:
- Voc est querendo curtir com a cara da gente.
O patro responde:

- No, eu no estou querendo curtir, no, s. que eu no sabia. Agora que eu


estou sabendo.

136

O fazedor de esteiras da fazenda comenta:


- Eu trabalho h muitos anos para o meu patro, mas ele
quis buscar vocs l em Itabira.
Os fazedores de forro de Itabira perguntam:
- Mas por que voc no quis fazer forro para ele?
O fazedor de esteiras da fazenda responde:

- No, uai, ele acreditou em vocs l de Itabira, sabia


que vocs que eram bons e foi buscar vocs, se ele
quisesse que eu fizesse, eu fazia.
E Divino continua: um dos fazedores de forro de Itabira
queria ir embora e disse:

- No, vocs agora terminam o forro, pois eu tenho muito


forro para fazer e d para vocs trabalharem sem mim.
Porm, o patro pediu para eles terminarem o forro.
Eles quase foram embora por causa do outro fazedor de
forro que j existia na fazenda. Eles foram fazer forro
em um lugar e encontraram um fazedor de forro at
melhor do que eles. ... Ento, foi essa histria que eu
queria contar. Ela importante.
No momento em que Divino narrava a histria,
lembramos de outro entrevistado, tambm esteireiro. Oficial Vicente de Paulo
Vicente de Paulo Ferreira, da cidade de Santa Brbara
cidade vizinha cidade de Baro de Cocais, cidade de Divino. Vicente de Paulo
narrou-nos a seguinte histria que exemplificava a parcimnia caracterstica do
ofcio: Eu trabalhava numa fazenda que cultivava eucalipto. Um carregador me
perguntou: voc sabe fazer esteira? Respondi: no sei, no, mas sei rachar taquara.
Disse isso para ver se algum sabia fazer melhor do que eu. A, estou vendo o cara
tecendo e disse a ele: voc est tecendo errado. O cara virou e me disse: mas, por
qu? ento voc sabe tecer? Respondi: no sei, no, mas que est errado, est.
Aps esses depoimentos, nos perguntamos: cuidado e parcimnia em revelar o que
se sabe estariam relacionados ao carter pessoal e solitrio prprios deste ofcio?
Revelar aquilo que sabe no , num certo sentido, se revelar tambm?
Divino, com sua fala rpida e instigante, imediatamente continuou a entrevista,
deixando transparecer que essa moderao no se aplica a ele. Foi enftico em
dizer aquilo que sabe e se mostrou extremamente generoso em ensinar o ofcio para
qualquer um que queira aprend-lo.

137

Desenho feito por Cristiane Ferreira da Silva de um


tema de esteira que mestre Divino Ferreira da Silva faz

A nica herdeira de
todo um saber e sua
capacidade criativa
Enquanto a conversa com Divino
prosseguia, acercou-se uma adolescente
com
seus
aproximados
17 anos. Em seus braos, trazia
biscoitos e refrigerante para os
convidados. Cuidadosa e educadamente comeava a participar da
entrevista. Pela sua fala, demonstrava conhecimento profundo das
questes e problemas do ofcio.
Ela filha de Divino. Orgulhoso,
o pai explicou: tudo o que eu sei,
eu passei para ela, os filhos esto
sempre a superar os seus pais.
O pai relembrou a infncia de
Cristiane: com cinco anos, Cristiane
j sabia tranar forros e com seis
anos produzia forro para vender. Ela
aprendeu ficando prxima de mim
enquanto eu tranava esteira. Ela
observava atentamente. Aprendeu
a tranar errando e acertando. Eu a
ensinava, sempre ao seu lado.
A destreza de Cristiane ficou evidente quando o pai relembrou o
quanto ela o ajudou durante os
perodos de grandes encomendas.
Nesse perodo, disse Cristiane, eu
tirava notas muito baixas na escola,
pois ficava at meia noite fazendo
forro com meu pai.
A partir desse momento, Cristiane
participou mais da conversa. Aflita
ao ver que os pesquisadores no
acompanhavam o raciocnio do pai,
insistiu com ele: pai, acho melhor o
senhor fazer um forro.

138

Aflitos em nos mostrar como se trana um forro, pai e filha lamentaram o fato de no
possurem, naquele momento, nem um pouco do material adequado para se tranar
um forro taquara.
Para a sorte dos pesquisadores, Cristiane coleta tiras de plstico conhecidas como
fitas de arquear. Tiras que possuem uma textura extremamente dura, que possibilita
a realizao da trama de pequenos forros. Juntadas as tiras de plstico em cores
verde e preta, pai e filha caminharam at uma casa em construo ao lado da
residncia de Divino e comearam a cortar em pedaos as tiras. Divino as separava
por cores. Cristiane o ajudava.
Terminada essa etapa, Divino comeou a tranar vagarosamente o primeiro desenho
que aprendeu com Natividade sua professora dando incio ao que ele chama de
forro bordado. Na sobreposio das cores o desenho formado. Divino nos convidou
a ajud-lo a tranar, para aprendermos a lgica matemtica, geomtrica e espacial
do desenho. Assim, com erros e acertos, aprendemos um pouco sobre a difcil arte
do tranado.
Cristiane observava atenta e, com um olhar distanciado, percebeu um erro do pai.
Aproximou-se imediatamente e comeou, rapidamente, a desfazer o erro. Ao contrrio
do pai, no se preocupava com a didtica, mas, sim, em resolver os problemas de
forma eficiente e rpida. Em certa medida, a sua pouca preocupao com a didtica
foi extremamente positiva, pois nos permitiu observar a sua habilidade e destreza
na realizao de um forro de esteira.
Divino terminou o forro bordado e pediu para desmanchar a trama - queria mostrar
outro desenho mais complexo, de uma cruz. Com o passar do tempo, aos poucos
o desenho foi formado. No incio, no se via o desenho e s com o avanar das
sobreposies pde-se entender a sua forma. Divino pediu: mudem de posio,
seno vocs no conseguem ver. Mudamos de posio, de perspectiva, de ponto de
vista, mas nada. As mos do pai e da filha se misturavam e cada vez mais rpido, o
desenho se formava. A maestria de ambos ficou clara e de forma mgica para nossos
olhos destreinados, surgiu uma bela cruz da sobreposio das fitas de arquear verde
e preta.

Pai e filha: pensadores e criadores


Pai e filha terminaram o tranado. O pai pediu filha para trazer um caderno,
Cristiane atendeu ao pedido do pai e nos deixou a ss com Divino, que continuou a
entrevista. Ele falou das diversas espcies de taquaras e bambus e das propriedades
de cada uma delas. Conhec-las permite a ele produzir variaes e contrastes de
cores, qualidades, texturas e espessuras. Ele se lembrou que desde quando iniciou
o seu aprendizado desenvolveu a capacidade de aprender e criar inmeras formas
de realizar os tranados e produzir a partir dessas tramas desenhos diversos. O
aprendizado de novos desenhos praticamente foi uma imposio das circunstncias

139

e coube a ele dar solues a essas imposies. Os


clientes reclamavam da repetio dos desenhos por
parte dos esteiristas: elas me pediam ah! Faz assim,
ah! Faz assado e eu fazia. Hoje sou capaz de fazer pelo
o menos uns 50 desenhos. Numa espcie de desafio a
ele mesmo, acrescenta: estou prestes a criar mais um
desenho, quando retornarem talvez eu j tenha mais
de 51 desenhos.

Tranado de material plstico

Aps Divino mencionar esses feitos, Cristiane


retornou com seu caderno. Nas folhas deste caderno
h diversos quadradinhos que podem ser preenchidos
por cores diversas. No caderno, os desenhos das
esteiras tomam forma com o contraste entre os
quadradinhos brancos e aqueles pintados de preto.
Cristiane reproduz no caderno os desenhos criados
pelo pai nos forros. Ela os reproduz para que no
sejam esquecidos e perpetuem no tempo.

Cristiane, assim como seu pai, uma criadora e pensadora do ofcio. Ambos amam o
que fazem. O uso das tiras de plstico (fita de arquear), 50 tramas distintas criadas e o
caderno de memria do pai criador so exemplos da dedicao de pai e filha ao ofcio.
Cristiane explicou que a utilizao das fitas de plstico uma forma dela continuar
a brincar de fazer forro, j que as encomendas, nos ltimos 5 anos diminuram
bastante e, alm disso, as taquaras tornaram-se escassas devido s queimadas, o
que intensificou a fiscalizao do Ibama rgo que atualmente probe a retirada
de espcies vegetais para fins comerciais. Sendo assim, pai e filha concluram: esse
um ofcio morto. Ambos continuam a tranar e a refletir sobre a prtica do seu
ofcio pelo puro e simples prazer que sentem em fazer isso, j que no recebem mais
encomendas.

A adaptao do corpo ao trabalho


Retornamos para Belo Horizonte, com lembranas do encontro com Cristiane e
Divino. Voltamos nosso pensamento para o aspecto corcunda do corpo de Divino
e da deselegncia de seu andar, mas lembramos tambm do momento em que
Divino estava no cho tranando um forro. Nesse momento, o que antes parecia
deselegncia cedeu lugar a uma figura elegante e bela. Divino permaneceu o tempo
todo de ccoras ou de joelhos sobre as fitas de plstico utilizadas para a realizao do
forro. Seus ps se posicionaram como garras a prender as fitas que se movimentavam
enquanto as mos buscavam tran-las.
Olhando a silhueta de Divino sob a pouca luz que penetrava naquele cmodo, veio a
nossa memria um corpo que se assemelha ao de um pssaro a tranar um ninho.

140

Uma esteira-ninho? No seria o joo-graveto (Phacellodomus rufifrons), perguntamos,


tal qual marceneiro Jos Trindade da cidade de Tiradentes, que tambm compara os
adobeiros com outro pssaro, o joo-de-barro. Os mitos e o folclore, por numerosos
exemplos, atestam esse tipo de comparao16.
Lembramos do forro de esteira servindo como forro das diversas casas por onde
passamos. O forro de esteira aparece como uma superfcie utilizada para separar
a parte mais alta da casa o telhado, local onde termina a casa, fronteira com
a natureza, onde algumas espcies de pssaros costumam pousar ou tranar os
seus ninhos e a parte mais baixa o assoalho, os cmodos, local onde moram
os humanos. Assim, o forro de esteira fica a meio caminho entre a humanidade e
a animalidade, ou, como foi observado para a cestaria, num estado de delicado
equilbrio entre natureza e cultura.

Notas
1. KANTINSKI, 2003.
2. AVILA, 1996, p. 61.
3. LVI-STRAUSS, 1986. p. 15.
4. ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAIN AND IRELAND, 1973. p. 336-340.
5. LVI-STRAUSS, 1997a, p. 128.
6. LVI-STRAUSS, 1997a, p. 128-132
7. ADOVSIO, 1976, p. VII, apud RIBEIRO, 1989, p. 38.
8. RIBEIRO, 1989, p. 38.
9. RIBEIRO, 1989, p. 39. Sobre a arte de tranar e seus diversos usos praticados pelos povos indgenas no
Brasil, Lvi-Strauss observa: Na floresta e no cerrado, vi muitas vezes um ndio, para transportar frutas
selvagens ou caa, cortar uma folha de palmeira, dobrar os fololos e tran-los in loco. Assim, fabricase com as plantas um cesto que ser jogado fora assim que se retorna ao acampamento, pois uma
embalagem improvisada e de pouca utilidade. Trata-se sem dvida de um caso extremo em comparao
com as obras-primas que costumam ser, na Amrica, os cestos de tranado espiralado, costurados
em vez de tranados, cuja fabricao toma vrios dias de uma artes experiente, e que muitas vezes
sobrevivem gerao que os viu serem fabricados. Entre os mesmos povos, os cestos flexveis utilizados
para guardar os objetos domsticos eram, ao contrrio, pouco durveis. (LVI-STRAUSS, 1997a, p. 129)
10. RIBEIRO, 1989, p. 41
11. Cf. GUSS 1989 e RIBEIRO, 1989 e 1988.
12. http://pt.wikipedia.org/wiki/Taquara.
13. Cf. SAINT-HILAIRE, 1830, p. 432.
14. Segundo as narrativas do viajante francs: Les Indiens emploient encore le bicho da taquara un
usage fort diffrent. Lorsque lamour leur cause des insomnies, ils avalent un de ces vers que lon a fait
scher, sans en ter Le tube intestinal, et alors ils tombent dans une espce de sommeil extatique qui
dure plusieurs jours. Celui qui a mang un ver dessch Du bambou raconte, en se rveillant, des songes
merveilleux; il a vu des forts brillantes, Il a got des fruits exquis.
15. Cf. MAXAKALI (2009a e b).
16. Cf. LVI-STRAUSS 1997b, 229.

141

142

Detalhe de espelho de fechadura em Minas Novas

143

CONSIDERAES finais

Leonardo Barci Castriota


Guilherme Maciel Arajo
Como notamos, ao realizar a identificao e documentao dos detentores dos
saberes das tcnicas construtivas tradicionais da arquitetura brasileira, o Instituto do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) est produzindo um inventariamento
temtico indito, criando, atravs do Projeto Mestres Artfices, um banco de dados
nico sobre esse importante patrimnio cultural de nosso pas.
No entanto, esse projeto no pretende se ater a essa dimenso de documentao,
sendo sua pretenso tambm identificar aes estratgicas para a transmisso desse
saber vinculado s prticas construtivas tradicionais, considerando, naturalmente, a
situao e os contextos caractersticos onde estas prticas se desenvolvem.
Para se desenvolver essa discusso, foi realizado, no mbito da pesquisa realizada
em Minas Gerais, em dezembro de 2010 um seminrio em Belo Horizonte, para o
qual foram convidados pesquisadores do projeto nos estados de Santa Catarina e
Minas Gerais, profissionais envolvidos na rea de restaurao e formao em ofcios
tradicionais, bem como representantes do Instituto Estadual do Patrimnio Histrico
e Artstico de Minas Gerais (Iepha-MG), do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional (Iphan) - da administrao central de Braslia e da 13 Superintendncia
Regional -, alm de tcnicos da Unesco.
J no documento inicial da pesquisa mestres artfices em 2005, Heloisa Gama de
Oliveira e Mara Freire Naves chamavam a ateno para o carter integrador e
emergencial deste projeto, apontando que o saber dos mestres artfices, riqueza
acumulada em sculos de trabalho, engenho e arte, precisava ter reconhecido seu
alto valor de mercado e seu potencial para contribuir com solues voltadas para
a melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento econmico com incluso social
neste pas1. A seus veres, o grande desafio a ser enfrentado pelo poder pblico seria
exatamente revitalizar um bem cultural de natureza imaterial e retir-lo da condio
de espcie em extino
Para responder a esse desafio, nas ricas discusses ocorridas no mbito do
seminrio organizado pelo projeto, apontou-se inicialmente para a conjuno de

144

fatores favorveis, no momento atual, para as pretendidas aes de valorizao e


transmisso do saber vinculado s prticas tradicionais de construo. Em primeiro
lugar, a prpria iniciativa do Iphan2 de inventariar essas tcnicas estaria criando um
banco de dados amplo e sistemtico, que poderia ser continuamente alimentado e
enriquecido com registros realizados nas diversas regies brasileiras.
Alm da criao desse banco, reconheceu-se tambm a necessidade de se
aprofundarem os estudos cientficos sobre as tcnicas tradicionais, de modo
a se propiciar a ampliao do seu conhecimento e a sua eventual melhoria, com
modificaes necessrias para se adaptarem essas tcnicas s condies da
contemporaneidade com a substituio de materiais escassos, aperfeioamentos
em nvel de resistncia e durabilidade, entre outros. Para isso, recomendou-se
uma estreita parceria com as universidades e os centros de pesquisas que tm
capacidade instalada para a realizao sistemtica e contnua dessa investigao.
Dentro de uma viso mais ampla, portanto, essa produo e documentao das
tcnicas tradicionais seria apenas o primeiro passo de um processo, que teria
continuidade com a instaurao de um sistema de certificao desses mestres
artfices, que poderia se constituir em instrumento eficaz de valorizao desses
saberes tradicionais, criando instrumentos que propiciariam a melhoria de mode-obra envolvida. Esse processo de certificao por instncias legais recriaria, de
certa forma, o reconhecimento scioinstitucional que, no passado, era conferido ao
saber-fazer pelas corporaes de ofcio e pelas Casas de Cmara e Cadeia, no caso
do Brasil Colonial.
Para isso, recomendou-se que se forme junto ao Governo Federal um grupo de
especialistas com o objetivo de estabelecer parmetros e propor dois modelos de
certificao, um destinado aos mestres artfices cadastrados e outro a empresas
especializadas. Esse sistema teria desdobramento na prpria contratao de obras
de restauro, para as quais deveria ser elaborado tambm um modelo especial de
edital que previsse a incorporao desses profissionais certificados pelo Iphan em
tcnicas construtivas tradicionais.
Outra circunstncia potencialmente favorvel, apontada pelos participantes
do seminrio, seria o atual aquecimento do mercado da construo civil e a
proposio de programas do Governo Federal, como o PAC Cidades Histricas3,
que poderiam significar uma ampliao do mercado de restaurao no pas, o que,
consequentemente, poderia gerar uma maior demanda por mo-de-obra qualificada
na rea. Com isso, seriam criadas condies de maior atratividade para a formao nos
ofcios tradicionais, o que per si poderia contribuir para garantir a sua continuidade.
Apesar dessa perspectiva positiva, no se pode negar que os profissionais envolvidos

145

na rea percebem a necessidade de um maior reconhecimento social dessas tcnicas


e do saber-fazer de seus detentores, j que muitas vezes tambm elas so ligadas no
imaginrio popular pobreza e ao atraso. Para se atingir esse maior reconhecimento,
foram sugeridas aes de divulgao e um efetivo trabalho de envolvimento da
sociedade e dos rgos pblicos na questo, atravs de seminrios, publicaes e
aes institucionais de valorizao desses saberes.
Finalmente, o seminrio apontou para uma questo central: a da formao dos novos
oficiais e mestres da construo. Se j no temos mais as corporaes, um mestre
se forma hoje no exerccio dirio de vrios anos do seu ofcio. H diversos processos
de aprendizado: alguns fizeram cursos formais; outros aprenderam, trabalhando
com mestres; outros, ainda, fizeram cursos prticos administrados pelo mestre no
processo de trabalho. Percebe-se, no entanto, que todos aprenderam a partir da
experimentao, da repetio e do aprimoramento.
Para a continuidade desse processo, sugeriu-se a introduo de um efetivo programa
de formao continuada de mo-de-obra nos ofcios tradicionais da construo, que,
articulando teoria e prtica, no deixaria se romper a cadeia da tradio, permitindo
aos aprendizes dominar, com o tempo, o rico campo das tcnicas construtivas
tradicionais.

Notas
1. OLIVEIRA; NAVES, 2005, p. 12.
2. O Projeto Mestres Artfices prev, alm da produo de conhecimento, a realizao de aes
de salvaguarda, como a certificao profissional - que ajudaria os mestres a se reinserirem no
mercado - e o fortalecimento das condies de transmisso dos saberes, para a formao de
novos mestres. Nesse sentido, a discusso desses temas em seminrios fazem parte da ao de
inovao.)*
3. Lanado pelo Governo Federal em outubro de 2009, o Programa de Acelerao do Crescimento
das Cidades Histricas dever destinar, nos prximos anos, R$ 890 milhes para a preservao
do patrimnio histrico nacional, quantia indita na rea em nosso pas. Atravs dele, as cidades
histricas contempladas podero receber obras de requalificao e infraestrutura urbana e de
recuperao de monumentos e imveis pblicos. Tambm esto previstas aes de divulgao,
nacional e internacionalmente, de stios histricos, espaos pblicos, monumentos e smbolos
socioculturais do pas, alm de cursos de especializao para guias de turismo e da criao de
pginas na internet sobre as cidades.

146

Detalhe de taquara que sero usadas para a produo de forros

147

148

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152

Mestre ferreiro Luiz Gonzaga em Tiradentes

153

154

Assoalho e estrutura de vedao

155

Mestres Artfices da Construo


Tradicional em Minas Gerais

156

MESTRE

OFCIO

CIDADE

REGIO

Joo Aparecido Moreira dos Santos

Cantaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Jos Dias Magalhes

Cantaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Antnio Luiz de Matos

Carpintaria

Minas Novas

Vale do Jequitinhonha

Devanir da Paixo Santos

Carpintaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Geraldo da Luz Ranulfo

Carpintaria

Diamantina

Vale do Jequitinhonha

Jaime Secundo da Silva

Carpintaria

Minas Novas

Vale do Jequitinhonha

Jos Agostinho Vertelo Filho

Carpintaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Jos Dilson de Paulo

Carpintaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Jos Pereira dos Santos

Carpintaria

Turmalina

Vale do Jequitinhonha

Narcsio Rita de Souza

Carpintaria

Serro

Vale do Jequitinhonha

Romualdo Janurio Ranulfo Filho

Carpintaria

Diamantina

Vale do Jequitinhonha

Serafim Fernandes dos Santos

Carpintaria

Minas Novas

Vale do Jequitinhonha

Ademir Passos dos Santos

Forja - Ferreiro

Diamantina

Vale do Jequitinhonha

Jlio Sena Chagas

Forja - Ferreiro

Minas Novas

Vale do Jequitinhonha

Geraldo Batista de Souza

Marcenaria

Capelinha

Vale do Jequitinhonha

Luiz Humberto Fonseca

Marcenaria

Diamantina

Vale do Jequitinhonha

Paulo Elias Lopes

Marcenaria

Diamantina

Vale do Jequitinhonha

George Fernandes Pinheiro

Olaria

Veredinhas

Vale do Jequitinhonha

Jos Rodrigues de Moura

Olaria

Felcio dos Santos

Vale do Jequitinhonha

Devanir da Paixo Santos

Pedreiro adobe
e pau a pique

Serro

Vale do Jequitinhonha

Isaas Jos dos Santos

Pedreiro - adobe

Minas Novas

Vale do Jequitinhonha

Jos Maria dos Santos

Pedreiro - adobe

Turmalina

Vale do Jequitinhonha

Sebastio Antnio dos Santos

Pedreiro - adobe

Serro

Vale do Jequitinhonha

Tereza Vaz Fernandes Machado

Pedreiro Adobe Chapada do Norte

Vale do Jequitinhonha

Salvador Roque

pedreiro

Vale do Jequitinhonha

Araua

Rosalvo Borges de Souza

Oleiro

Almenara

Vale do Jequitinhonha

Nilton Alves Pereira

Carpintaria e
Marcenaria

Araua

Vale do Jequitinhonha

Jason Santana Santos

Ferreiro

Araua

Vale do Jequitinhonha

Jander Lus Guedes

Serralheiro

Araua

Vale do Jequitinhonha

MESTRE

OFCIO

CIDADE

REGIO

Elzi Gonalves Pereira

Pintura

Jequitinhonha

Vale do Jequitinhonha

Cordiolindo dos Reis

Forro de esteira

Almenara

Vale do Jequitinhonha

Alrio Alves Guimares

Produo de ladrilho hidrulico

Almenara

Vale do Jequitinhonha

Luiz Gonzaga Frana

Ferreiro

Tiradentes

Campo das Vertentes

Jos Trindade da Costa

Marceneiro

Tiradentes

Campo das Vertentes

Luiz Heitor da Silva Frana

Ferreiro

Tiradentes

Campo das Vertentes

Vantuir de Figueiredo

Tranador de
Forro de esteira

Prados

Campo das Vertentes

Antenor Martins da Silva

Produtor de
Adobes

Prados

Campo das Vertentes

Jos Gonalves Teixeira

Oleiro

Antnio Carlos

Campo das Vertentes

Tomas Lancini

Pintor

Coronel Xavier
Chaves

Campo das Vertentes

Weber Fernandes da Silva

Canteiro

So Joo Del-Rey

Campo das Vertentes

Luis Cludio das Mercs

Canteiro

So Joo Del-Rey

So Joo Del-Rey

Luis Antnio da Silva

Marceneiroentalhador

So Joo Del-Rey

So Joo Del-Rey

Jos Edivaldo Ribeiro da Silva

Fundio

Coronel Xavier
Chaves

So Joo Del-Rey

Jos de Ftima Aparecida Chaves

Cantaria

Santa Cruz de
Minas

So Joo Del-Rey

Francisco de Assis Ferreira

Calcetaria

Belo Horizonte/
MG

So Joo Del-Rey

Afonso Marchi

Estucaria

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Alpim Honorato Campos

Carpintaria, paua-pique, adobe,


taipa de pilo,
pintura a cal,
calamento em
pedra portuguesa.

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Ana Vldia de Souza Marques

Carpintaria/
marcenaria

Contagem/ MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Irineu de Oliveira Rodrigues

Fundio

Nova Lima/ MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Joerg Artur Ammann

Forja

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Maria da Conceio Caldeira

Pintura

Contagem/ MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Paulo Henrique Maciel Senra

Marcenaria

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

157

158

MESTRE

OFCIO

CIDADE

REGIO

Armando Jair da Silva

Carpintaria/
marcenaria

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Ricardo Afonso Frana Garcia Bergmann

Marmoraria

Belo Horizonte/
MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Wagner Luiz de Oliveira Canto

Carpintaria e
marcenaria

Mariana/ MG

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Antnio Eloi Coelho

Ferraria

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Arlindo de Souza

Carpintaria

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Carlos Aurlio de Camargo

Confeco de
forro de esteira

Distrito de Lavras
Novas,

Regio das Minas

Ediniz Jos Reis

Cantaria

Mariana/ MG

Regio das Minas

Francisco Brbara de Oliveira

Cantaria

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Geraldo Apolnio dos Santos

Ferraria

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Geraldo Nascimento de Freitas

Mestre de Obras
- carpintaria,
pau-a-pique,
cantaria, pintura
a cal.

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Paulo Cirilo Pereira

Pintura

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Rinaldo Urzedo da Silva

Cantaria

Mariana/ MG

Regio das Minas

Sebastio Ferreira

Ferraria

Mariana/ MG

Regio das Minas

Srgio Romo Pereira

Pau-a-pique

Ouro Preto/ MG

Regio das Minas

Carlos Henrique dos Reis

Carpintaria

Sub distrito de
Chapada

Regio das Minas

Geraldo Jos da Silva

Pintura

Congonhas do
Campo/ MG

Regio das Minas

Mateus Lcio da Silva

Confeco de
forro de esteira

Congonhas do
Campo/ MG

Regio das Minas

Sebastio Benigno de Souza

Carpintaria,
pau-a-pique e
pintura a cal

Santana dos Montes/ MG

Regio das Minas

Jos Geraldo Rosa

Carpintaria

Santana dos Montes/ MG

Regio das Minas

Aleixo Toms de Andrade

Pedreiro de
Alvenaria

Ouro Preto

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Rogrio Jnior Narciso

Pedreiro de
Alvenaria

Santa Luzia

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Paulo Jos Narciso

Pedreiro de
Alvenaria

Santa Luzia

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Jos Antnio Torres

Marceneiro

Santa Luzia

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Emerson Fidlis

Marceneiro

Santa Luzia

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

MESTRE

OFCIO

CIDADE

REGIO

Carlos Alberto de Freitas

Carpinteiro

Sabar

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Sebastio Ferreira da Silva

Tranador de
forro de esteira

Sabar

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Divino Ferreira

Tranador de
forro de esteira

Caet

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Jos Ladislau Vinturino

Pedreiro de alvenaria

Baro de Cocais

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Sebastio Elza de Paula

Pedreiro de
Alvenaria

Baro de Cocais

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Jos Vicente Lopes

Oleiro

Santa Brbara

Regio Metropolitana
de Belo Horizonte

Tom Roberto de Castro

Canteiro

So Tom das
Letras

So Tom das Letras

Valdemir Edson de Castro

Canteiro

So Tom das
Letras

So Tom das Letras

Victor Donizete de Castro

Canteiro

So Tom das
Letras

So Tom das Letras

Francisco Victor Rosa

Canteiro

So Tom das
Letras

So Tom das Letras

Vicente Cardoso da Silva

Pedreiro de
alvenaria Paua-pique

So Tom das
Letras

So Tom das Letras

159

Este livro foi finalizado em Maro de 2012, impresso pela


Finaliza Editora, utilizando a famlia da fonte Verdana no
corpo e ttulos. Utilizou-ze na capa, papel Carto supremo
300g e no miolo, papel couch fosco 115g. A tiragem foi de
3.000 exemplares.

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