Psicologia Escolar em Busca de Novos Rumos
Psicologia Escolar em Busca de Novos Rumos
Psicologia Escolar em Busca de Novos Rumos
- Introduo 13
Marilene Proena Rabello de Souza
Adriana Marcondes Machado
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PREFCIO
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razo, o pessoal docente e administrativo das escolas cada vez mais refratrio presena
de estagirios. Dizendo de outro modo, um dos papis da Universidade a prestao
de servios comunidade poderia ser mais eficientemente cumprido se crissemos
frentes de trabalho, postos avanados de ao dos docentes encarregados no IP-USP do
conjunto de disciplinas relativas Psicologia aplicada escola. Mas ramos trs, com
vrias outras atividades no Departamento, e os alunos, setenta a cada ano letivo. Era
preciso juntar a ns outros psiclogos que possibilitassem a abertura desse novo espao
de teoria e prtica: ento que se forma o grupo que hoje traz a pblico alguns
resultados das experincias e reflexes realizadas no Servio de Psicologia Escolar nos
ltimos dez anos.
Adriana Marcondes Machado, Beatriz de Paula Souza, Cintia C. Freller e Yara Sayo
so, para a burocracia institucional, tcnicas de apoio ao ensino e pesquisa. Na
verdade, elas so muito mais que isso: jovens e capazes, poderiam estar comodamente
instaladas em seus consultrios particulares, mas escolheram, apesar da m
remunerao, a militncia do trabalho em escolas pblicas situadas nos bairros pobres
da cidade de So Paulo. Maria Cristina Machado Kupfer e Marilene Proena Rebello de
Souza, embora na categoria um pouco menos desconfortvel de docentes, no aceitaram
o ensino rotineiro e a produo acadmica quantitativa, preferindo o desafio da
interveno numa escola pblica maltratada e da criao de propostas profissionais
inovadoras.
Todas elas conhecem a fundo a realidade das escolas para o povo, sucateadas nos
pases latino-americanos; todas elas sabem que s possvel entender o que nelas se
passa referindo-as realidade social que as inclui; todas elas esto cientes dos limites
impostos pelas condies histricas atuais a qualquer projeto transformador da escola;
no entanto, mesmo sabendo que a Psicologia no tem o poder onipotente de fazer das
escolas um lugar de igualdade e liberdade numa sociedade congenitamente desigual,
opressora e excludente, todas elas lidam com maturidade com o inevitvel sentimento
de impotncia e permanecem num campo cheio de percalos.
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pela escola em crianas s quais foi vedada uma experincia escolar bem-sucedida.
Cristina Kupfer resume bem o que concluo ser a linha atual do trabalho desenvolvido
no Servio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP: Os discursos
institucionais tendem a produzir repeties, mesmice, na tentativa de preservar o igual e
garantir sua permanncia. Contra isso, emergem vez por outra falas de sujeitos, que
buscam operar rachaduras no que est cristalizado. exatamente como auxiliar de
produo de tais emergncias que um psiclogo pode encontrar o seu lugar. Em outras
palavras, as psiclogas aqui reunidas convidam os seus colegas a criarem, nas
instituies em que atuam, condies para que se mantenham acesos a capacidade de
pensar e o desejo de dignidade numa sociedade que conspira o tempo todo contra isso.
Maria Helena Souza Patto
So Paulo, abril de 1995
INTRODUO
Este livro apresenta as principais reflexes e aes levadas a efeito pelo grupo de
trabalho do Servio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de
So Paulo.
Desde sua criao, o Servio de Psicologia Escolar enfrenta dois grandes desafios:
oferecer estgios supervisionados aos alunos de Graduao em Psicologia de forma
que as atividades prticas contribuam para as instituies escolares e propor
alternativas de atuao psicolgica, levando em conta uma concepo crtica tanto em
relao escola quanto aos instrumentos de avaliao tradicionais em Psicologia.
Os captulos apresentados representam alguns dos grandes desafios colocados hoje ao
psiclogo. Aps uma dcada de crticas Cincia Positivista, que espao os
conhecimentos psicolgicos podem ocupar no campo da educao escolar? Que
contribuies o conjunto do conhecimento acumulado na rea pode dar s crianas e aos
professores das escolas pblicas brasileiras? Como (re)interpretar a subjetividade
presente nas prticas educativas luz da Psicologia Institucional, da Psicanlise e da
Antropologia Social?
Essas questes so objeto de discusso dos primeiros artigos A queixa escolar e o
predomnio de uma viso de mundo, As crianas excludas da escola: um alerta para a
Psicologia e O que toca /a Psicologia Escolar.
Tais anlises vm acompanhadas de questionamentos profundos referentes aos
instrumentos psicolgicos de avaliao tradicionalmente utilizados pelos psiclogos
frente queixa escolar. O artigo intitulado Crianas portadoras de queixa escolar:
reflexes sobre o atendimento psicolgico discute o papel dos psicodiagnsticos e a
compreenso hegemnica de interpretao e encaminhamento de crianas que
apresentam dificuldades no processo de escolarizao.
As crticas aos instrumentos utilizados pela Psicologia para a Compreenso da queixa
escolar e a convivncia diria com as crianas nas escolas pblicas perifricas, seus pais
e professores constituem um Corpo de conhecimento visando algumas alternativas de
trabalhos de
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que muito fizeram para que pudssemos socializar nossas experincias e reflexes na
rea em especial Profa. Maria Helena Souza Patto, pela leitura atenta e critica de
nossos artigos.
Marilene Proena Rebello de Zouza e Adriana Marcondes Machado
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de So Paulo possui uma renda per capita comparvel a de pases como Espanha,
Portugal e Grcia. Mas os ndices econmicos esto muito distantes da qualidade de
vida existente nesses mesmos pases(4). Em termos de taxa de escolarizao, tem-se um
ensino de primeiro grau altamente seletivo apenas 27% das crianas concluem o
primeiro grau no Brasil e 32% no Estado de So Paulo , um ensino mdio pior do que
o de pases com rendas per capita de cinco a dez vezes inferiores nossa, como a ndia
e Gana (35%) ou Madagascar (36%), e ainda uma rede pr-escolar recente, muito
aqum da demanda populacional (Helene, 1990).
Com relao seletividade escolar encontram-se dados inadmissveis nas contnuas
repetncias vividas pelas crianas no processo de escolarizao. As anlises estatsticas
recentes divulgadas por Ribeiro (1992) do conta que o aluno brasileiro permanece em
mdia oito anos e meio na escola, mas apenas trs entre cem ingressantes concluem o
primeiro grau sem repetncia. Ao longo do processo de escolarizao a defasagem
srie-idade aumenta, a ponto de termos em 1986 (SEADE, 1989) 70% dos alunos de 8
srie fora da idade real para o mesmo perodo (14 anos).
Dentro da lgica da pedagogia da repetncia acredita-se que um aluno ao repetir ter
a oportunidade de refazer, de reparar aquilo que no sabe ou que no estudou
convenientemente. As anlises estatsticas mostram, porm, uma outra face desse
processo: uma criana repetente tem a metade das chances de ser aprovada no ano
seguinte, quando comparada a uma criana ingressante nessa mesma srie. Ao invs da
repetncia permitir que o aluno refaa seu aprendizado, via de regra, cria espao para
a sua estigmatizao, marcando-o como diferente ou deficiente em relao aos demais.
No processo de seletividade na escolarizao tem-se como informao que a maioria
das crianas reprovadas ou que se evadem a que freqenta as escolas pblicas das
redes estadual e municipal de educao, proveniente das camadas mais pobres da
populao. Segundo dados da Fundao SEADE (1989), em 1986, os ndices de
reprovao
(4) A expectativa de vida no Estado de So Paulo corresponde a dez anos menos do que
nesses pases (UNICEF, 1987, 88).
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na segunda srie do primeiro grau so de 30,45% nas escolas pblicas paulistas contra
7,59% nas escolas particulares. Na dcada de 70, levantamento feito na cidade de So
Paulo constatou que, nos bairros onde as famlias ganham menos de cinco salrios
mnimos, os ndices de reprovao chegam a 43%, enquanto que em outros, onde a
maioria da populao moradora ganha acima dessa faixa salarial, esses mesmos ndices
no ultrapassam 10% (Barreto et alii, 1979).
Os encaminhamentos foram feitos, em sua maioria, pela escola (50%), uma parte pelos
pais (26%) e por outros profissionais, incluindo os da rea mdica (23%), pediatras,
clnicos e psiquiatras.
Parte desses dados se confirmam atravs de outro levantamento realizado na Regio
Sul da cidade de So Paulo, englobando os bairros de Graja, Interlagos e Parelheiros
(ARS-9), entre os meses de abril a junho de 1993, sorteando-se 15% dos pronturios de
atendimento. Os clientes das Unidades Bsicas de Sade dessa Regio da cidade esto
na faixa de 7 a 12 anos (75%), so em sua maioria meninos (63%), sendo que a partir
dos 12 anos h maior incidncia de meninas que procuram atendimento,
comparativamente aos meninos. So crianas que freqentam a escola pblica (82%),
sendo por ela encaminhados para atendimento em Sade (59%), com predominncia de
dificuldades de aprendizagem (57,5%). Embora a quase totalidade das crianas
encaminhadas tenha iniciado a escolarizao formal aos sete anos de idade, o pico dos
encaminhamentos est nas idades de 9 e 10 anos(27,9%), com estas mesmas crianas
cursando ainda a 2. srie do Ciclo Bsico, acumulando duas ou trs repetncias.
Embora no Estado de So Paulo, a partir de 1984, tenha sido implantantada a proposta
de um Ciclo Bsico, englobando a primeira e segunda sries do primeiro grau, podemos
observar a existncia de um grande nmero de crianas que oficialmente no so
reprovadas, mas que na realidade no so aprovadas para as sries seguintes. As
observaes empricas e dados preliminares de levantamentos de ndices dessa natureza
nas escolas nos mostra a formao de vrias classes de alunos que ingressaram aos 7
anos e aos 9 e 10 continuam no Ciclo Bsico.
A confirmao dos altos ndices de encaminhamentos de problemas escolares para
serem atendidos por psiclogos est presente nos levantamentos de demanda realizados
pelas Clnicas-Escola dos cursos de graduao em Psicologia. Em pesquisa feita por
Silvares (1989), analisando pronturios de todos os atendimentos da Clnica Escola do
Instituto de Psicologia USP de 1983-89, totalizando 766 clientes, obteve-se como
queixa mais freqente o mau desempenho escolar (41%), seguido de comportamento
agressivo ou de brigas (28%) e dificuldades de fala (25%). A maioria dos
encaminhamentos de 0 a 15 anos se concentra na faixa etria de 6 a 10 anos (59%), com
pico entre as idades de 8 e 9 anos. Essas crianas so predominantemente meninos (7
1%),
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psiclogo so, em geral, muito angustiantes, principalmente para uma populao pobre
onde o atendimento pelo psiclogo , via de regra, associado a problemas mentais,
loucura, enfim, a problemas graves. Em alguns casos a escola atrela continuidade da
criana na escola o acompanhamento psicolgico, desrespeitando dentre outras coisas
um preceito Constitucional. Muitos pais no conseguem compreender os motivos pelos
quais seus filhos foram encaminhados para os servios de atendimento psicolgico, e ao
serem arguidos pelo psiclogo a respeito dos motivos do encaminhamento procuram
encontrar suas causas na histria de vida no raro se culpando por muitos desses
acontecimentos. So depoimentos de pais a psiclogos:
Acho que foi porque quando ele era pequeno ele caiu de uma laje e bateu a cabea.
Ele tem problema no corao, fica nervoso toa.
Eu no sei no, a professora que disse que ele est precisando de tratamento.
Eu no sei por que na escola ele no aprende, porque eu acho ele um menino muito
esperto. Faz um monte de coisas pra mim. Ajuda muito em casa! Ele me ajuda a fazer as
contas, ler coisas, pegar nibus. E a professora diz que ele no aprende. No sei o que
.
Ele l pra mim as cartas que chegam, todinhas, e na aula a professora diz que ele no
quer ler.
O discurso da escola vivido, em geral, de maneira ambgua pelos pais, pois por um
lado a convivncia diria com as crianas possibilita uma certa percepo de seu
potencial e de suas realizaes e por outro est a escola e o professor, com a autoridade
que possui e a legitimidade do saber, dizendo o contrrio.
A queixa psicolgica mais freqente, portanto, no se relaciona a distrbios
emocionais ou a problemas familiares vividos pela criana, mas est diretamente
relacionada com dificuldades no mbito do processo de escolarizao; uma queixa
escolar, encaminhada na sua
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maioria pela escola ou por outros profissionais de sade. Ela se faz presente como
incidncia principal do trabalho do psiclogo, esteja ele atuando na Unidade Bsica de
Sade, na Clnica-Escola, na Unidade Escolar ou muito provavelmente no consultrio
particular.
O predomnio do modelo psicolgico clnico em relao aos problemas escolares
Como a queixa escolar vem sendo atendida pelos psiclogos ou, ento, que prticas de
atendimento tm sido geradas para solucion-la? H vrias descries da prtica
psicolgica que indicam que o processo psicodiagnstico da queixa escolar baseia-se no
trip entrevista inicial e anamnese, aplicao de testes, encaminhamento para
psicoterapia e orientao de pais.
No levantamento realizado pela Regional de Sade da Regio Sul da cidade de So
Paulo (op.cit.), as condutas psicolgicas adotadas confirmam que se atribui os
problemas de rendimento escolar s crianas e/ou seus pais: a maior parte dos
encaminhamentos so para psicodiagnstico (18,4%), terapia individual (13,5%),
terapia de grupo (13,5%), orientao dos pais (23,2%), totalizando 68,6% dos
encaminhamentos realizados. Em apenas 5,8% dos casos os psiclogos realizaram
alguma orientao com o professor que encaminhou a queixa.
Procedimento semelhante ao encontrado nas Unidades Bsicas de Sade de Graja-
Parelheiros observado quando se analisa os laudos psicolgicos presentes nos estudos
de caso de crianas multi-repetentes Solicitados por Patto (1990) a psiclogos da equipe
clnica da Prefeitura Municipal de So Paulo, no ano de 1985.
Atravs da leitura dos laudos realizados, observa-se que a avaliao Psicolgica
centrou-se em testes psicolgicos cujos nomes nem sempre
so especificados analisando trs reas: a inteligncia Escala de Inteligncia
Wechsler para Crianas (WISC); o desenvolvimento percepto-motor Teste Gestltico
Visomotor de Bender e uma avaliao de personalidade Teste de Apercepo
Infantil (CAT-A) e o teste House Tree, Person (HTP). Durante todo o relatrio as
anlises centram-se em aspectos intrapsquicos das crianas e nas respectivas dinmicas
familiares. Embora esses alunos tenham vivido a experincia
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da reprovao, no caso de um deles por trs vezes, esse dado no aparece. Em apenas
um dos laudos psicolgicos a escola citada e a referncia feita no sentido dos
reflexos dos conflitos familiares sobre a aprendizagem: na escola, tais conflitos
tambm aparecem, onde para ngela torna-se difcil integrar seus recursos e anseios
com a aprendizagem (p. 304). Para o leitor desses laudos, no possvel compreender
os motivos que teriam levado a tantas repetncias, parecendo que a gravidade deste
dado no foi sequer levada em conta. As concluses do psicodiagnstico so todas no
sentido de encaminhar os pais para orientao familiar, a criana para psicoterapia, e
no fazem qualquer sugesto sobre estratgias de ao do professor ou da escola que
minimizem as dificuldades de aprendizagem, motivo da queixa.
A maioria dos psiclogos que emitem laudos psicolgicos a respeito das crianas com
dificuldades escolares desconhecem a fora desse instrumento no meio escolar. Como
avaliou Patto (op.cit.), ao estudar casos de multi-repetentes, a avaliao de um
profissional de psicologia sela destinos. O laudo psicolgico um parecer tcnico,
entendido como um instrumento definitivo que atribu as verdadeiras causas de um
determinado problema psquico. Alguns psiclogos acreditam to cegamente nesse
instrumento a ponto de escrever em suas avaliaes que a criana definitivamente
deficiente mental leve. As conseqncias da utilizao desse instrumento na escola so
as mais diversas, mas, em geral, todas elas contrrias ao fortalecimento do aprendizado
e reforadoras da estigmatizao j sofrida pelas crianas na escola.
A maioria dos psiclogos que emitem laudos psicolgicos encaminhando crianas para
as classes especiais para deficientes mentais da rede estadual de ensino, por exemplo,
desconhece informaes mnimas educacionais: de que uma criana necessita ter no
mnimo duas repetncias na mesma srie e ser portadora de uma deficincia mental leve
(educvel) para vir a pertencer a uma dessas classes. Esses mesmos profissionais
conhecem ou imaginam uma classe especial hipottica com professores idealizados,
muito diferente daquela que existe na realidade da escola pblica. Os prprios testes
psicolgicos em seus manuais defendem essa mesma hiptese. Um exemplo disso est
no manual do teste Metropolitano de Prontido.
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BIBLIOGRAFIA
Introduo
Tomemos inicialmente, como exemplo, o aluno que no aprende, que como dizem vai
ficando para trs. O destino dele variado: ser aluno repetente (muitas vezes em classe
de repetentes ou classe dos lentos), ser aluno especial (encaminhado por psiclogos para
a classe especial), ou ento parar de estudar (parar de ser aluno).
Desviando o olhar destes alunos tido como alunos-problema que se percebe a srie
de prticas que os objetivaram. A prtica de encaminhamento de crianas com
problemas de aprendizagem e comportamento para psiclogos se ancora em uma srie
de prticas paralelas: psiclogos fazendo avaliaes diagnsticas para encaminhamento,
professores entendendo os problemas das crianas como algo individual ou familiar, a
exigncia de um laudo psicolgico para a criana estar na classe especial...
Para Michel Foucault, toda prtica de objetivao implica uma prtica de subjetivao.
Produz-se algo e produz-se o sujeito que entende este algo naturalmente. preciso que
essas crianas de 8 a 16 anos tenham sido objetivadas como alunos especiais para que
elas sejam percebidas pelos professores como alunos que precisam de um programa
especial de ensino. Mais lento. Mais individual. O professor que trata seus alunos como
especiais nem imagina que poderia faz-lo diferentemente. Faz o que lhe parece
evidente e natural. Veremos mais adiante como a naturalizao fortalece as
cristalizaes.
Atualmente somente cerca de 60 por cento das crianas que entram na primeira srie
chegam quarta srie do primeiro grau. Os 40 por cento restantes repetem ou evadem-
se da escola. Se so nas relaes e nas prticas que se produzem as objetivaes, ento
as perguntas devem ser feitas sobre as relaes e as prticas e no sobre os objetos. Ao
invs de perguntar por que a Escola Pblica produz alunos especiais, ou Porque aqueles
alunos no aprendem, deve-se perguntar como as relaes de aprendizagem e as
relaes diagnsticas fabricam esses alunos. Deve-se buscar , funcionamento
devolvendo-se com isso histria aquilo cuja existncia naturalizamos.
Naturalizar, o que isso? pensar que o que acontece decorrente da natureza
mesma das coisas e no da histria. Aprisiona-se assim a diferena. Explicando melhor:
quando sentimos que natural acontecer aquilo que nos incomoda, ficamos sem idia
sobre o que azei, Como se existisse algo fora de nosso alcance que nos impe a
existncia de um objeto a ser analisado. As perguntas passam a ser, por
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exemplo, o que fazer com essas crianas que no aprendem? Como se existisse a
criana que no aprende em si. Nos exclumos assim das prticas e das relaes... As
relaes ficam estagnadas.
Havamos perguntado acima o que uma relao cristalizada. aquela onde as
queixas so as mesmas h muito tempo, no h movimento. O efeito a sensao de
que no se pode fazer, apenas esperar. Nela pergunta-se muito o porqu de certas coisas
e de certos afetos acontecerem. Como movimentar? Nosso convite inicialmente
problematizarmos as perguntas que fazemos a respeito dos acontecimentos.
Deleuze, no livro El Bergsonismo, discute no primeiro captulo a intuio como
mtodo. Citando as obras de Bergson, explica os atos que determinam esse mtodo. Um
deles aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos problemas mesmos, denunciar os
falsos problemas e reconciliar verdade e criao no nvel dos problemas (Deleuze,
1987, p.11). Nos enganamos quando cremos que o verdadeiro e o falso se referem
somente s solues.
Os problemas so inventados e tm sempre a soluo que merecem, em funo da
forma, das condies e dos meios que so formulados. Para Bergson, os falsos
problemas so de dois tipos: os problemas inexistentes e os malpostulados.
Os problemas inexistentes, como por exemplo perguntar por que acontece isto e no
aquilo, aquilo que era igualmente possvel? Por que o aluno no aprende? Por que ela
no est feliz? Essas perguntas carregam a iluso de que o possvel existe antes do
existente, o no-ser antes do ser, como se o ser viesse encher o vazio, como se o real
viesse a realizar uma possibilidade primordial (Deleuze,1987, p.15), como se o normal
fosse aprender, fosse estar feliz.
Os problemas malformulados agrupam arbitrariamente coisas que diferem de natureza.
Cada vez que pensamos em termos de mais ou menos, vemos diferenas de graus ou
intensidades, onde h diferenas de natureza entre os seres, entre os existentes. So as
eternas comparaes: a sada daquele aluno da Escola foi uma fuga. Sair da escola e
fugir so prticas singulares e portanto de naturezas diferentes.
Nesse sentido falsa a idia de ser possvel se perguntar algo sobre algum objeto,
como se a pergunta no estivesse produzindo esse objeto. Ento, o que perguntar?
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Inicialmente nossas perguntas em relao a essas crianas eram, em sua maioria, falsos
problemas. Queramos saber o que significava, o que representava para essas crianas
estar na classe especial, porque elas estavam ali. Como se houvesse uma causa primeira,
original. Como se houvesse algo essencial, por trs das coisas que percebemos. Qual o
efeito dessa maneira de pensar, onde se fica buscando a razo e o significado de as
coisas acontecerem? Fica-se sem ideias sobre o que fazer, impede-se a criatividade.
Mudamos as perguntas. Inventamos uma pergunta interessante: Quem vai continuar e
quem vai sair da classe especial no prximo ano?. Essa pergunta exigia movimento.
Foi nesse novo territrio que surgiram ideias, como, por exemplo, fazer um mapa com a
histria das crianas na Escola. O pai de Carlos, um aluno de 15 anos, ficou
decepcionado ao saber que depois de 5 anos estudando na classe especial ele poderia ir
para uma 2 srie e no para a 6 srie.
Andreza, de 8 anos, dizia Eu estou na classe especial porque eu sou idade mental.
Ela no queria sair da classe especial naquele ano, queria ficar. Algo l lhe faz bem. O
que ? Como conseguir isso sem adoecer, sem ser idade mental?
Intenes e efeitos
Aprender... Ensinar... Algo comea a funcionar diferentemente do que se pretendia na
mquina escolar. Pensemos em uma professora que percebe as dificuldades de seus
alunos e est preocupada em descobrir o que fazer para ajudar essas crianas que
apresentam dificuldades. Imaginemos a delicadeza desse processo que convida o
professor a saber de seu prprio desejo para poder ter ideias sobre o que fazer...
Um professor que coloca as crianas com dificuldade em aprender a ler e a escrever
em uma especfica fileira das carteiras da classe, ou uma equipe de professores que
decide formar uma classe com os alunos lentos, deveriam perceber as produes de
subjetividade que essas prticas inventam. E comum a criana que est indo bem na
Escola, que est aprendendo, sentir que aquele que no aprende no tem nada a ver com
ela. comum a criana encaminhada para a classe especial encarar o problema que
motivou o seu encaminhamento ser um problema apenas individual. No a fileira dos
alunos lentos que em si boa ou m,
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para as crianas lerem. O desejo ler essa histria fica capturado pelo dever fazer a
lio. Nesse sentido, preciso libertar o desejo do que o aprisiona para se poder ter
ideias de como efetu-lo.
Aqui entendemos por desejo aquilo que se efetua; no remetemos o desejo falta.
Imaginemos, numa conversa, algum dizer em tom melanclico, queixando-se: Eu
gostaria muito que esse aluno aprendesse, mas no consigo ensin-lo. O que esta
pessoa est efetuando? Qual tendncia, qual desejo? Queixar-se; o desejo queixar,
que diferente do ensinar. No falta nada para o queixar realizar-se. Queixar no
querer algo e no ter, queixar queixar. uma positividade.
nossa inteno problematizar esse estado de coisas onde algo domina de forma a
aprisionar as relaes e o desejo. Entendendo as coisas como objetivaes que ocorrem
em um campo de foras, como pensar a produo to intensa dessas cristalizaes? Elas
no so monoplio de uma certa relao professor-aluno, e nem das classes especiais...
Essas cristalizaes percorrem infinitas relaes que constituem um campo de foras
atravessado dominantemente pela poltica educacional. Se o sentido da fora dominante
desse campo de foras o de estabelecer objetos e regras gerais, esse campo fica
sedentarizado. isso que acontece quando, por exemplo, escreve-se um projeto para a
rea da educao acreditando que ele possa ser em si bom, como se no importassem
as vrias maneiras de ser que surgem... Qualquer mtodo, qualquer enquadre vai ser
sempre singular. difcil pensarmos os acontecimentos singulares se ficamos somente
preocupados em saber se esta ou aquela atitude est dentro do mtodo e do enquadre.
Mas se nos importamos com a maneira pela qual as coisas tm sido entendidas, ento
no basta diz-las. Assim como no basta fazer um diagnstico e encaminhar a criana
para a classe especial. Tem-se que estar atento aos efeitos e processos dessas mudanas.
Uma criana que consegue pensar e opinar sobre as coisas da sua vida consegue
aprender a ler e a escrever. Estamos falando de processos de mesma natureza.
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etc. Essas observaes apontavam para o fato de que cada escola se constitui num
espao historicamente construdo por aqueles que o compem, e na impossibilidade de
encontrarmos duas escolas iguais, pois as redes de relaes e as prticas nelas existentes
so singulares.
Esse descobrir o heterogneo, dar-nos conta da diversidade, coloca-nos diante de
uma importante questo: o nosso saber psicolgico sobre as inmeras e complexas
relaes que se estabelecem no interior da escola e fora dela. Que saber esse? Que
prticas esse saber tem gerado? O que essas prticas excluem? O que incluem?
relevantes e importantes para a vida de cada um de ns. Mas como pensar uma prtica
psicolgica quando, por exemplo, nos chega um encaminhamento com queixa escolar?
Essa pergunta nos remete ao que essa prtica tem excludo. Exclui, por exemplo, todo
um contexto escolar onde a criana est inserida, onde ora sujeito de seu saber, ora
no . Exclui a existncia da diversidade escolar, de seus determinantes e variantes.
Um dos casos encaminhados a uma psicloga com quem trabalhamos referia-se a uma
criana ingressante na primeira srie, cuja professora suspeitava que fosse deficiente
mental. Segundo esta professora, a criana no conseguiu nos primeiros dias de aula
responder perguntas simples, tais como: seu nome, de seus pais. Quando desistiu de lhe
perguntar, mostrou-lhe um lpis, insistindo para que a criana dissesse o que era. O
menino olhou-o respondendo: preto. Mais uma sensao de estranheza, pois a
resposta certa para a professora era lpis ou lpis preto.
A psicloga foi ento conhecer essa criana na escola, formando com ela e outras,
tambm encaminhadas para psicodiagnstico, um pequeno grupo. Pde nessa ocasio
conversar com as crianas encaminhadas a respeito dos problemas de aprendizagem a
elas atribudas. Entrevistou algumas mes e levantou dados de escolarizao no
pronturio escolar. Qual no foi a surpresa! Este aluno-problema tinha apenas seis
anos, havia chegado recentemente do interior de um Estado do nordeste e estava
cursando a primeira srie a pedido de sua me, para no ficar sozinho em casa, pois sua
irm mais velha freqentava diariamente a escola. A me acreditava que estar na escola
facilitaria para o seu filho o aprendizado numa posterior primeira srie, pelo fato de
permanecer em contato com tarefas e objetos escolares. Mas isso no estava
acontecendo. Caso a psicloga em questo no tivesse entendido esse contexto escolar,
muito provavelmente esse menino iria para uma classe de lentos ou uma classe especial,
onde fatalmente as expectativas formadas sobre seu mau aprendizado dariam o contorno
s suas potencialidades futuras. Conhecemos a eficincia desse tipo de profecia!
Nos relatos de psiclogos que se mostram preocupados com essa questo, h inmeras
situaes de encaminhamentos que se enquadram nessas circunstncias. So comuns os
depoimentos das mes, quando encaminhadas pela escola para Unidades Bsicas de
Sade (UBS), tentarem atribuir significados a problemas que elas mesmas no
identificam. Eu no sei no. A professora que disse que ele est precisando de
tratamento. Outras mes, aflitas pela no compreenso dos porqus dos problemas
escolares, tentam encontrar as causas em histrias de vida: Acho que porque quando
ele era pequeno, ele caiu de uma laje e bateu a cabea. Outros relatos mostram o
conflito das mes diante de sua prpria observao, que contradiz a da escola: Eu no
sei por que na escola ele no aprende, eu acho ele um menino muito esperto. Faz um
monte de coisas pra mim. Ajuda muito em casa! Ele me ajuda a fazer contas, ler coisas,
pegar nibus. E a professora diz que ele no aprende.
Paulo tinha dez anos e uma histria de trs repetncias na primeira srie. Sua
professora queixava-se que no escrevia nada, apenas copiava da lousa, no
conseguind0 na maior parte do tempo, permanecer sentado. Nos primeiros encontros no
grupo de crianas da escola, mostrava-se da mesma forma. Ao final de oito encontros
escreveu um poema a uma das coordenadoras. Como explicar trs anos de sucessivas
tentativas escolares para superar um bloqueio que em oito encontros se resolve? O que
mais podemos oferecer, enquanto psiclogos, alm dessas oito sesses?
Nos tempos da sua infncia, a melodia era outra. Provinha da certeza de seus
praticantes de que a Psicologia Escolar tinha assegurado o seu lugar no mundo da
Educao. Jubilosamente festejavam a imagem recm-construda, tomada, porm de
emprstimo s ideologias que nela queriam ver uma prtica ortopdica, corretiva das
aes dos professores sobre as crianas. Mais que isso, pediam que confirmasse a
mxima liberal segundo a qual as diferenas no provm da desigualdade de
oportunidades e sim das diferenas individuais. Assim, buscando ir ao encontro daquilo
que seus criadores dela esperavam, a Psicologia Escolar elegia o objeto sobre o qual iria
concentrar seus esforos: os problemas de aprendizagem das crianas.
Durante algum tempo, ento, foi necessrio que a Psicologia Escolar se alienasse nessa
imagem que ela prpria no construra, mas que lhe conferia uma identidade e uma
existncia.
Para os psiclogos orientados por essa perspectiva, foi conferido um lugar concreto na
escola, dentro do qual podia exercitar suas funes. No se tratava nem de sala de aula,
nem do ptio de recreao, nem das dependncias administrativas. Era apenas uma sala
de atendimento, um espao em que podia aplicar testes. Um espao margem: caso
fosse eliminado, em nada mudaria a configurao geral da escola. Se instalado a uma
distncia de dois quarteires, seu trabalho poderia prosseguir sem prejuzos. Sua voz
no fazia coro com as demais vozes da escola.
51
No entanto, o psiclogo entrou na escola. l dentro, no podia deixar de ouvir as
vozes da escola. Tinha agora ao seu alcance novos dispositivos tericos de leitura da
realidade escolar e de seus problemas. Sabia, por exemplo, do peso dos determinantes
sociais sobre os problemas de aprendizagem. Dispunha das leituras estruturais, segundo
as quais h uma relao de determinao recproca entre os elementos de uma
instituio. Ou seja, no seria jamais possvel estudar uma criana sem levar em conta
as peculiares relaes com seus professores e pais, por exemplo.
Diante dessa mudana de viso, o psiclogo passou ento a enfrentar dois problemas:
o da demanda e o da tcnica. Em primeiro lugar, como participar mais ativamente da
vida da escola, se s o que lhe pediam era que testasse, discriminasse e expulsasse as
crianas indesejveis? E, caso uma brecha lhe fosse aberta, com que instrumentos iria
trabalhar, se essas teorias mais recentes ajudavam a entender, mas pouco diziam sobre
como intervir na realidade escolar?(1) A tica que o orientava era agora a tica da
transformao social, mas no tinha idia de como promov-la com os poucos
instrumentos que a Psicologia lhe havia fornecido. Estamos agora naquele momento em
que o pr-adolescente cresceu, mas no interiorizou ainda seu novo tamanho, e vive
esbarrando pelos cantos. Sua voz oscila freqentemente de um registro grave para um
agudo, o que decididamente no facilita a sua participao no coro da escola! Ou seja,
ora aceita seu antigo lugar de psicometrista, ora deseja participar de uma reunio de
professores. De modo canhestro, opina, aponta erros, critica o modo pouco afetivo de
alguns professores, interpreta-os. Quer agora ocupar o lugar do maestro do coro... A
escola se fecha, o trabalho do psiclogo escolar sofre uma retrao.
Onde encontrar teorias psicolgicas que viessem a orientar uma interveno nas
escolas ao mesmo tempo que levassem em conta a anlise da realidade social? Que
Psicologia poderia propor uma interveno no-alienante?
(1) Justia seja feita ao movimento institucionalista e proposta dos grupos operativos
de Bleger. Tais idias no chegaram, no entanto, a se constituir em um prtica efetiva
junto aos psiclogos escolares em nosso meio.
52
Na busca das respostas a essas perguntas, o psiclogo acabou por topar com a
Psicanlise. No que ela j no estivesse de alguma forma presente. Estava, sim,
exercendo influncias sobretudo na Psicologia Clnica, e de modo impreciso quando se
falava por exemplo em projeo, em identidade, em desenvolvimento afetivo. Mas
agora se tratava de ir beber diretamente da fonte, ir em busca da teoria psicanaltica da
personalidade.
De incio, as perspectivas pareciam muito promissoras. Tudo levava a crer que a tica
da Psicanlise no casava bem com a idia de adaptao do indivduo realidade social,
pois seus compromissos eram com outras coisas; com o desejo, por exemplo, muito
embora no se pudesse entender exatamente do que se tratava quando se falava em
desejo. A Psicanlise era vista como uma prtica no ideolgica, e o que se pretendia,
com a Psicanlise, era transform-la em um auxiliar na luta pela transformao social:
um homem mais equilibrado teria mais condies de lutar por ela.
No entanto, as principais barreiras contra um casamento da Educao com a
Psicanlise foram levantadas pela prpria Psicanlise. No incio de sua obra, Freud
acreditava que uma educao psicanaliticamente orientada podia ter um valor
profiltico, porque evitaria excessos repressivos e conseqentemente a instalao das
neuroses. No final, porm, essa crena havia sido desmontada: faa o que fizer um
educador, no haver como evitar a castrao, o recalque e a neurose. Alm disso, a
sexualidade, o inconsciente e a morte, temas que constituem a seara da Psicanlise,
precisam ser cuidadosamente evitados pelo educador. A Psicanlise e a Educao
assentam-se em terrenos opostos, no podem auxiliar-se mutuamente. Devido
antinomia entre essas duas prticas, no possvel transformar o professor em um
Psicanalista, nem criar um mtodo pedaggico inspirado na Psicanlise (Millot, 1987).
Mais do que isso, o encontro da Psicanlise com a Educao e com o psiclogo
interessado em intervir de modo no-alienado na instituio escolar criou ainda um
outro impasse: as explicaes dadas Pela Psicanlise a respeito das origens dos
problemas das pessoas parece no coincidir nem um pouco com as explicaes que
colocam um grande Peso sobre os determinantes sociais.
A escuta
A palavra recolocada em circulao o alvo. Para isso, seria necessrio apontar,
mostrar, interpretar os sujeitos nos grupos, mostrando
aquilo que s o psiclogo pode escutar? Isto no seria tirar proveito das leis de
funcionamento da linguagem, e sim das leis de funcionamento do poder da sugesto.
Estaramos tirando proveito do pedido dirigido ao psiclogo para que ele faa pela
instituio. H transferncia de poder da instituio para as mos do psiclogo, mas ele
no deve us-lo efetivamente, se quiser ser fiel aos princpios da Psicanlise.
Usando seu conhecimento sobre o funcionamento da linguagem, ser necessrio supor
que s a palavra proferida pelo sujeito pode ser por ele ouvida. No entanto, ele precisa
dirigir sua fala a algum para que esta retome e ele a oua. No se ouve se no usar esse
recurso(3). Portanto, o psiclogo estar em posio de escuta ativa. Para que esses
efeitos se produzam, preciso, em primeiro lugar, que o psiclogo tenha sido colocado
pelo falante em posio privilegiada. O falante precisa autoriz-lo a ser seu escutante.
Essa autorizao assegurada pela transferncia de que o psiclogo ser alvo. Em
seguida, ser necessrio proferir um escuto, para demonstrar essa sua disposio, para
oferecer-se nessa posio especfica e no em qualquer outra. Ao contrrio, caso atenda
ao pedido proferido na superfcie, possvel que se feche a possibilidade de aquele
pedido ter suas verdadeiras razes escutadas.
Em conseqncia, um psiclogo no aceitar a demanda da instituio, e tampouco se
recusar a aceit-la. S poder escut-la se quiser que os sujeitos nela envolvidos
venham, a saber, efetivamente o que est em jogo, o que querem, do que precisam, e por
que no podem formular tudo isso.
(3) Eis um trecho de O homem da mo seca, de Adlia Prado, que ilustra muito bem o
valor da escuta em uma anlise: Por que peso de Corcovado e no de Po de Acar?
Perguntou-me o doutor, inbil, recusando meu primeiro discurso, tomando meu
desenfeite orgulhoso por despojamento. Tinha mau sorriso. No confiaria quele
homem afoito a dor da minha alma. (...) O segundo doutor ouviu-me a um ponto que eu
mesma ouvi-me. Eu gostava da minha voz narrando, da tez, do sorriso obsceno, da
estatura an dos monstrinhos que permitia passear entre a estante e a poltrona de couro
da sala, o doutor balanando a cabea sem me criticar. Falei de novo peso de
Corcovado, ficou impassvel escutando, era bom falar, chamar luz do dia a populao
das trevas, meu desassossego. So Paulo, Siciliano, 1994, pp. 87-88.
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(4) Para entender melhor a transferncia, ver Miller, J. A., Percurso de Lacan. Rio de
Janeiro, Zahar, 1987.
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BIBLIOGRAFIA
JAPIASSU, H. Introduo Epistemologia da Psicologia. Rio de Janeiro, Imago, 1982.
MILLOT, C. Freud anti-pedagogo. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
SOUZA, H.R. Institucionalismo: a perdio das instituies. Temas IMESC, v.1,
n.1, pp.l3-24, 1984.
61
Este padro de atendimento tem sido considerado insatisfatrio pelas crianas, pais,
professores e at pelos psiclogos que o praticam.
Os pais, especialmente aqueles provenientes das camadas populares, relatam a enorme
dificuldade que enfrentam para seguir um tratamento to longo, oneroso e muitas vezes
incompreensvel e injustificvel. Muitas vezes no acham necessrio tal processo, j que
o filho no apresenta problemas em casa, s na escola.
As crianas se sentem discriminadas e desvalorizadas pelos colegas, familiares e
professores por necessitarem desse tipo de atendimento. Freqentemente se dizem
loucas, doentes ou burras e passam a agir como tal. Outras vezes dizem que so
perseguidas pelas professoras, pois todas as crianas fazem baguna, mas s elas so
encaminhadas. Sentem-se injustiadas e expressam seu descontentamento por serem o
bode expiatrio da classe.
Por fim, os psiclogos, ao mesmo tempo em que se defrontam com altos ndices de
desistncias no decorrer do processo de tratamento, so obrigados a dar conta de uma
fila de espera cada dia maior para o incio de atendimento. Expressam muitas dvidas
em relao adequao do tratamento psicolgico clssico dirigido populao de
baixa renda. Problematizam, no entanto, os pacientes e no a prtica psicolgica
proposta.
Encontram tambm dificuldade para explicitar os objetivos que almejam com seu
trabalho e uma certa insegurana em relao aos resultados obtidos. Afirmam que a
maior parte da clientela infantil procura atendimento por problemas escolares, mas no
incluem a escola no processo diagnstico nem na proposta de tratamento.
Assim, tratam as crianas e sua famlia sem problematizar os fatores intra-escolares
implicados na produo e manuteno da queixa escolar. Acreditam que todas as
crianas tm algum nvel de problema emocional que merece ser elaborado em um
processo teraputico.
O desconhecimento dos psiclogos em relao estrutura e ao funcionamento das
escolas pblicas no Brasil, somado ao preconceito em relao s famlias pobres, so
muitas vezes justificados e camuflados por teorias psicolgicas que explicam tudo pelos
mecanismos intrapsquicos da criana e pelas relaes familiares precoces que os
determinam.
O depoimento de uma psicloga que atende predominantemente crianas com
problemas escolares em um ambulatrio de sade mental da periferia de So Paulo
expressa bem essa realidade:
A maioria das crianas que procura o posto vem com cartinha da escola, que quer um
encaminhamento para classe especial, porque no acompanham nas classes normais. Eu
no sei bem como funcionam essas classes, fico insegura de encaminhar.. Sei que tm
menos alunos e a professora pode dar mais ateno. Eles j tm pouca ateno em casa.
Sabe como , essas famlias numerosas, desestruturadas, a me trabalha e tem montes de
filhos, no pode atender cada um, estimular, acompanharas lies. Ento eu encaminho
para classe especial. Acho que deve ajudar Pelo menos vo ter mais ateno da
professora, que at mais especializada neste tipo de criana.
Perguntamos a esta psicloga se ela j esteve em alguma destas escolas, conversou com
a professora, procurou conhecer como funciona de fato uma classe especial. Ela
responde:
Nunca fui nestas escolas que encaminham. s vezes fico com vontade de conversar
com a diretora de uma escola aqui perto que encaminha praticamente uma criana por
semana, ou porque no aprende ou por indisciplina. Mas eu nem saberia como entrai;
com quem falar..
A nossa formao diferente, clnica, e o que importa o que observamos no contato
com o cliente como sua relao com o psiclogo, com os brinquedos, os resultados
dos testes, o que a me fala. A trabalhamos com a criana, para ajudar ela. Nem daria
para ir na escola, conversar com a professora. So muitas escolas, muitas professoras.
s vezes eu mando um bilhete perguntando alguma coisa, como ele na sala de aula,
para ajudar no diagnstico.
Esta mesma psicloga, se conhecesse a histria escolar desta criana, poderia concluir
que o dficit intelectual (apurado atravs dos testes de inteligncia, sem que seu
desempenho global na vida cotidiana fosse levado m conta) pode ser conseqncia de
uma experincia escolar desastrosa, marcada por sucessivas mudanas de professores e
tcnicas de alfabetizao, entre outras coisas. No seu primeiro ano de escolarizao
cinco professoras assumiram a classe, determinando uma repetncia em bloco de todas
os alunos. A partir de ento as repetncias foram se sucedendo, a carreira de fracassos
se consolidando at o encaminhamento para classe especial, prejudicando sua auto-
imagem e provocando uma descrena na sua prpria capacidade.
aprender em uma pssima escola e outro nada consegue em uma escola considerada
boa.
Nesta perspectiva, para entender um sintoma ou conflito que o indivduo est
enfrentando no presente, o psiclogo busca as causas nas marcas deixadas pelas
relaes primitivas e procura, entre outras coisas, conhecer (avaliar) os vnculos
familiares (no caso da psicanlise, relaes dinmicas inconscientes) atravs do
psicodiagnstico.
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Dolto (1981), Mannonni (1981) e Winnicott (1975) afirmam que nem todos os casos
de inadaptao escolar necessitam tratamento
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psicanaltico e que muitos poderiam ser cuidados pelo prprio crculo escolar em que
esto inseridos. Alertam ainda que cabe ao psicanalista criar situaes em que o ensino
seja possvel para todas as crianas.
Mannonni (1981) relembra que: as nossas consultas so insuficientes para enfrentar o
nmero excessivo de casos benignos de inadaptao escolar que poderiam ter sido
resolvidos no mbito de um ensino tradicional normal, se este ltimo estivesse mais
bem adaptado s exigncias de cada indivduo. Desta forma, as crianas rotuladas de
doentes poderiam tirar partido de um ensino consentneo com suas dificuldades.
Dolto (1981) recomenda aos psicanalistas clnicos que s tratem casos decorrentes de
desordens profundas da vida simblica e no de dificuldades sadias vida escolar
atualmente efetivamente patognica. Ela afirma que o papel do psicanalista permitir
que o sujeito neurtico ou psictico encontre seu sentido, mas tambm dar seu grito de
alarme diante da carncia do ensino pblico (Isso na Frana!).
A preocupao em estudar o contexto onde se produzem (ou reproduzem) e se
manifestam os conflitos individuais outro aspecto marcante dos escritos de Winnicott.
Ele atribui um papel estruturante ao ambiente externo, inicialmente representado pela
me e posteriormente pelos crculos mais amplos como famlia, escola e sociedade.
Na sua teoria, o mundo externo no concebido como repressor, representante do
princpio da realidade cujo papel somente frustrar, limitar, cortar. Como afirma Luz
(1989), ele constitutivo na positividade, pois pensa a emergncia do sujeito e do
mundo humano em um espao de jogo e tematiza as modalidades de subjetivao na
experincia, que so singulares e variveis.
74
Ainda segundo Luz (1989), a relao conflitante entre o mundo externo e interno
superada atravs do conceito de espao intermedirio entre esses dois mundos. Ao invs
de estudar os processos intrnsecos de adaptao realidade e vida social, Winnicott
estuda os processos atravs dos quais o indivduo pode criar e, assim, aceitar a
realidade.
O autor prope a possibilidade de uma intercomunicao com o mundo externo,
caracterstica de uma troca significativa que no pode ser expressa em termos de
mecanismos de projeo e introjeo.
Winnicott (1975) concebe um papel contnuo de desenvolvimento humano, que
comea antes do nascimento e prossegue ao longo de toda a vida, at a morte. Portanto
reflete, em vrios artigos, sobre a evoluo do ambiente e sua relao com o sujeito em
crescimento.
Desta forma o fracasso escolar no pode ser explicado apenas pelos mecanismos
intrapsquicos da criana ou por suas relaes familiares primitivas, O ambiente escolar
merece ser considerado.
Winnicott acentua a importncia da aprendizagem criativa e do uso positivo da
agressividade para a experincia cultural, que desenvolvida a partir dos primeiros
objetos transicionais, passando pelo brincar at os processos mais elaborados de
simbolizao e produo cultural. Ele prope um regime especfico da experincia
cultural, em continuidade direta com os fenmenos transicionais e o brincar. O fio
condutor dessa experincia a criatividade, que permite ao indivduo transformar e se
apropriar do que est dado. uma experincia em que o sujeito est pessoalmente
envolvido e descobre o mundo ao mesmo tempo em que descobre a si prprio,
proporcionando um sentimento de que a vida vale a pena.
Cabe ao meio ambiente, suficientemente bom, no incio representado pela me e
depois pela escola e por outras instituies, Proporcionar essa experincia ao invs de
privilegiar uma relao com O mundo externo e com a cultura de cpia, adaptao e
submisso.
75
76
77
BIBLIOGRAFIA
COSTA, J.F. Violncia e Psicanlise. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
DOLTO, F. Prefcio. In: MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio
de Janeiro, Campus, 1981.
FERNNDEZ, A. A inteligncia aprisionada. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1991.
KUPFER, M. C. M. A contribuio da Psicanlise aos estudos sobre famlia e
LINS, M. Y. A. O jogo como interpretao. / Apresentado na Jornada Winnicott, Vinte
Anos Depois, Sociedade Brasileira de Psicanlise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
nov. 1991.
LUZ, R. O espao potencial. Tu: Percurso: Revista de Psicanlise. So Paulo, n- 3, p.
25-32, 1989.
MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio de Janeiro, Campus,
1981.
MELLO FILHO, J. O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1989.
NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Sujeito e cotidiano. Rio de Janeiro, Campus, 1987.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Zahar, 1982. A criana e o seu mundo. Rio de Janeiro,
Fontes, 1987. Privao e delinqncia. So Paulo, Martins
78
Introduo
79
medida em que todas as relaes ali estabelecidas e vividas pelas crianas afetam seu
desenvolvimento e se relacionam com seu jeito de ser e de se expressar.
Um pouco de histria
Nosso trabalho comea quando algo no vai bem. No caso das creches na USP(2), por
exemplo, quando uma classe (ou grupo) toda de crianas era considerada terrvel,
insuportvel. Parecia estranho que todo um grupo de crianas de 4-5 anos fosse to
terrvel a ponto de no ser contida por nenhum adulto da creche. O trabalho no anda,
no consigo ficar com eles, no sei como manter meu projeto, eram algumas falas
das educadoras a respeito de tais crianas. A diretora da creche nos conta que at
profissionais recentemente contratados diziam que no gostariam de trabalhar com
aquele grupo.
Do nosso ponto de vista, vrios fatores esto colocados nos comentrios apontados
acima. Vrias perguntas poderiam ser feitas: de onde viria esta idia dos terrveis?
Como cada trabalhador da creche fazia referncia quele grupo? Ser que ningum tinha
uma experincia diferente com estas crianas? Como as crianas sentiam-se?
Considerando estas questes devemos dizer que quando pensvamos, no Servio de
Psicologia Escolar, naquele grupo especfico de crianas, no conseguamos deixar de
pensar em toda a instituio. Ouvamos comentrios da direo e educadoras sobre as
crianas. O que falavam delas nos parecia dizer respeito a uma certa relao. Relao
esta que transformava aquele grupo numa classe de terrveis, difcil de ser trabalhado,
que precisava constantemente de respostas das educadoras, como, por exemplo, de
imposio de regras, de conteno etc. Estabelecia-se, ento, naquela creche, uma certa
relao entre a creche como um todo e as crianas daquele grupo.
(2) Este trabalho, desde seu incio em 1990, contou com a participao da Diviso de
Creche COSEAS-USP. As diferentes atuaes de deram em ambas as creches do
Campus-Cidade Universitria: Creche Central e Creche Oeste. Consideradas
exemplares tanto na sua concepo como no seu funcionamento, as creches da USP
contam com projetos educacionais que tm se mostrado eficientes, constituindo-se
referncias importantes para outras instituies pblicas que se destinam ao atendimento
de crianas de O a 7 anos.
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o grupo, como era sua relao, que fatos pareciam importantes no trabalho com aquelas
crianas, que entrada a psicloga e pedagoga da creche tinham tido com o grupo. Alm
disso, uma srie de elementos implcitos colocavam-se no discurso sobre as crianas.
histria cronolgica e factual de um grupo correm paralelamente muitas outras: a
histria imaginada sobre como deveriam ser aquelas crianas, a histria do desejo da
cada educadora ao exercer seu trabalho, a histria do investimento da creche enquanto
instituio pr-escolar da Universidade de So Paulo, histrias estas que nem sempre
esto aparentes para quem est inserido cotidianamente na estrutura da instituio. Da a
necessidade de um novo olhar, de novas perguntas, de algum ou algo que possa romper
com o que est dado.
Todos estes pontos, todas as histrias esto presentes na constituio dos sujeitos que
participam daquela instituio. este aspecto da subjetividade que preciso ser
considerado quando pensamos numa interveno institucional. O que importa saber,
no discurso presente na instituio, como aqueles sujeitos que delas participam se
percebem, como se relacionam. Fazer pensar sobre isso tornando possvel que algo mais
seja notado, alguma representao, uma idia, um conflito. Alm disso, que seja
retomado o investimento da instituio no exerccio de sua tarefa. Assim que uma
interveno tal como a pensamos permite ou deveria permitir um momento de ruptura,
um recorte que faz pensar. O que se procura a criao de espaos na instituio que se
caracterizem como lugar de escuta. Tais espaos pretendem garantir a circulao dos
discursos presentes na instituio buscando a construo de outros novos, de forma a
encontrar os significados dados quilo que acontece no interior da instituio.
Importa dizer que nestes espaos de escuta no se pretende ter algum, nico, que oua
e diga onde esto as falhas, os pontos cegos. O que se busca o estabelecimento de
relaes, de encontros e trocas onde os sujeitos envolvidos escutem-se, onde, naquilo
que dito, algo de novo possa ser encontrado ou algum fato re-significado. Por
exemplo, numa das intervenes uma das educadoras se refere ao horrio de sono das
crianas do seu grupo. Conta como era difcil, que as crianas demoravam a dormir, no
entanto, tinham que dormir (sic). Ao ser questionada pela coordenadora do grupo
sobre porque as crianas tinham que dormir, fala da necessidade do sono em crianas
daquela idade, como ficam no final do perodo se no dormem naquela hora etc.
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Diante disso, outra educadora conta como aquela hora era tambm importante para ela,
era o final de seu turno, momento de deixar o grupo, passar informaes para a
educadora da tarde. Algo ento nesta conversa se re-significa sobre o sono, a hora de
dormir, sobre o que se dava numa situao tida como dificuldade das crianas. As
explicaes lgicas sobre a necessidade daquele momento de descanso para as crianas
no davam conta da dimenso do problema da hora de dormir. Por qu? Porque
existiam outras respostas para aquela pergunta da coordenadora. Respostas estas que
envolviam as educadoras, suas necessidades e no somente a das crianas.
Neste caso, o coordenador de um grupo de interveno pode ser algum que, diante de
alguns fatos, aponta algo, faz perguntas, destaca algum exemplo ou situao narrada
produzindo novas histrias das quais tambm participante. Sua presena e atuao, na
situao de grupo, guiam-se pela via contrria a da paralisia e estereotipia. O que se
procura produzir so novas significaes para antigos fatos, sentido onde no existia
algum, possibilidade de deslocamento das pessoas em seus lugares normalmente
estabelecidos.
Voltando ao nosso ponto de partida, as crianas terrveis, apresentamos uma
proposta de interveno com o grupo de educadoras. Preferimos, a princpio, no estar
com as crianas porque avaliamos que muitas das questes levantadas estavam ligadas a
dificuldades das educadoras na conduo do trabalho com as crianas.
No incio, o grupo requisitava alguma orientao psicolgica sobre as crianas:
como lidar com elas, como agir. X. diz que poderiam trazer situaes do mdulo para o
grupo e discutir comigo [coordenadora] o que fazer.Y. coloca que o trabalho [como
educadora] precisa de muita orientao.Z. comenta que sentem falta desta orientao
na creche..., quando ocorrem brigas, quando as crianas no se envolvem no trabalho...
o que fazemos?.(3) Ao longo do processo foram surgindo comentrios a respeito de
como aquele grupo de educadoras se sentia orientado, pela equipe de direo da Creche,
sobre o que fazer com as crianas. Algo ento se transforma. O foco colocado desde o
incio sobre as crianas desloca-se para a relao entre equipe e educadoras. Comeam a
aparecer conflitos, insatisfaes
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etc. As crianas quase que no eram mencionadas, os problemas com elas pareciam ter
desaparecido, falava-se somente da relao entre educadoras e equipe da direo.
Que mudana seria aquela? As crianas no tinham mais problemas? Deixaram de ser
terrveis? Provavelmente no teramos como delimitar de que ordem exatamente foi a
mudana, no entanto, poderamos dizer que o que importa considerar o momento em
que aquelas questes sobre as crianas eram feitas. Podemos dizer que se partia de um
determinado ponto de vista (por exemplo: elas so terrveis e ns educadoras no
temos nada a ver com isso) e que, com a entrada da interveno, outras vises puderam
aparecer, outros fatos foram considerados fatos que permeavam o envolvimento das
educadoras no trabalho com aquelas crianas, por exemplo, sua relao com a equipe de
direo. Isso o que queramos ressaltar quando apontamos acima o significado de uma
interveno na instituio. Dizamos: recorte que faz pensar, lugar de fala e escuta,
possibilidade de novos movimentos.
O exemplo citado trata de uma interveno realizada com um grupo de educadoras, no
entanto, isto no constitui um modelo de atuao. A proposta de trabalho pode sugerir a
participao de um ou diversos grupos da instituio: profissionais, crianas, pais etc.
Cada trabalho surge de uma reflexo entre instituio e a equipe que o realiza, bem
como de uma avaliao no interior desta ltima. Neste processo tudo pode ser
reavaliado.
Consideraes finais
As instituies educativas, ao trabalharem com a transmisso/ produo do
conhecimento, lidam predominante-mente com a objetividade. Nosso trabalho, ao entrar
nessas instituies, o de buscar a dimenso psicolgica no interior das prticas
educativas, dimenso esta que dada pela subjetividade.
Nossa entrada na instituio se d exatamente quando, a nosso ver, ocorre
transbordamento da subjetividade: a dimenso no prioritria se impe produzindo,
no coletivo, situaes inusitadas ou recorrentes, sempre preocupantes, escapando ao
funcionamento normal. quando surge, por exemplo, o pedido de ajuda para o
atendimento
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Nestes quatro anos de trabalho temos observado que os efeitos e repercusses de nossa
interveno esto relacionados ao momento vivido pela instituio. Esta pode, em maior
ou menor grau, apropriar-se das questes que se explicitam no decorrer do trabalho e,
assim, reposicionar-se em relao aos objetivos a que se prope no exerccio de sua
tarefa institucional.
Nosso objetivo nesta exposio foi de, ao relatar uma situao de interveno, ainda
que resumidamente, e refletir sobre alguns aspectos que a contornaram, levantar
questes e ampliar a discusso sobre as diferentes possibilidades de trabalho psicolgico
em instituies educativas.
BIBLIOGRAFIA
BLEGER, J. O grupo como instituio e o grupo na instituio. In: KAES, R., org. A
instituio e as instituies: estudos psicanalticos. So Paulo, Casa do Psiclogo, 1991.
GUIRADO, M. Psicologia institucional: temas bsicos de psicologia. So Paulo, EPU,
1987. v.l5
GUIRADO, M. Psicologia escolar e psicologia institucional. /mimeografado/
KUPFER, M.C. Psicologia escolar ou psicologia na escola? /mimeografado/
LOURAU, R. A anlise institucional. Petrpolis, Vozes, 1975.
86
Os bastidores do trabalho
Em agosto de 1993, aps um levantamento das escolas que apresentavam alto ndice
de repetncia na regio prxima Cidade Universitria, em So Paulo, cheguei Escola
Estadual AJ.
Descreverei, a seguir, alguns trechos do histrico do trabalho, na forma de um dirio
de campo, os quais sero intercalados com algumas anlises dos acontecimentos.
(1) Esta interveno foi realizada com a colaborao de seis alunas estagirias do
curso de Graduao em Psicologia: Alessandra Isola, Alessandra Seabra, Ana
Cristina P. Rhulle, Fabiana P. de Lazzari, Lara Rossetti Machado, Rosana
Frischer.
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Telefonei para a escola. Uma das secretrias da escola atendeu. Perguntei-lhe o nome
da coordenadora do ciclo bsico, da vice-diretora e da diretora, e se podia falar com
alguma delas. A secretria contou-me que a diretora era recm-chegada escola e que
no estava l naquele momento, por isso conversei um pouco por telefone com a vice-
diretora. Apresentei-me e pedi para marcarmos um encontro para que eu pudesse lhe
explicar qual era nosso trabalho.
Tradicionalmente somos profissionais formados para analisar a demanda que nos
chega. O que recebemos, na maioria dos casos, so crianas portadoras de queixa
escolar, com um pedido de avaliao psicolgica. Entender o que est acontecendo
com elas exige o contato com quem encaminha, pois nessa relao que a queixa est
sendo produzida. Em alguns casos chegamos s escolas e recebemos uma lista de
crianas para atendermos. Se ocorrem encaminhamentos com a expectativa de
mudarmos uma criana, ou convenc-la de algo, de nossa responsabilidade apresentar
nossas idias e verses sobre os sintomas dos quais a escola se queixa. O contato com
os profissionais da escola um processo longo e complexo.
Fui escola na mesma semana. Aps uma rpida conversa com a vice-diretora, pediu-
me que apresentasse minhas idias e a possvel proposta de trabalho para as professoras.
A vai um pouco da apresentao: - Sabemos que a maioria das crianas encaminhadas
para atendimentos, em Psicologia, apresentam queixas escolares. Temos tabulaes de
algumas Unidades Bsicas de Sade que mostram que esses encaminhamentos so
feitos, em sua maioria, pelas escolas que relatam problemas de comportamento ou de
aprendizagem nas crianas. Optamos por trabalhar no territrio onde esses problemas
so produzidos, por acreditar que, em sua maioria, so sintomas do funcionamento das
relaes que essas crianas habitam. (Discuti tambm sobre a tendncia de analisarmos
os afetos racionalmente). Eu ainda
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Impressionava aos professores o fato de estar sendo proposto um trabalho que inclua a
participao deles. Alguns se queixaram da
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As professoras fizeram uma lista com os alunos que as preocupavam. Pedi-lhes para
responderem um breve relatrio com a inteno de ter a verso da professora sobre o
aluno encaminhado.
1 - Qual a preocupao e a queixa a respeito da criana?
2 - Como a criana age na sala de aula e no recreio? Como sua freqncia s aulas?O
que ocorre na aprendizagem?
3 - D exemplos de fatos, acontecimentos ou cenas com essa criana que lhe chamaram
a ateno.
4-Fornea pequeno histrico da vida escolar da criana, como: quando entrou na escola,
quais classes freqentou, quem foram seus professores.
5 - D informaes que sabe a respeito da famlia.
6- Quais hipteses formula sobre a queixa?
Algumas professoras defendiam a prtica construtivista de ensino, que considera a
aprendizagem um processo construdo pela criana. Seus erros so, na verdade,
hipteses. Mas, mesmo assim, algumas professoras queriam encaminhar crianas que
trocavam letras ou que escreviam sem dar espao entre uma palavra e outra. Propus a
discusso dessas questes aos grupos. J chamava ateno a expectativa pedaggica de
certos encaminhamentos. Eu privilegiava o atendimento s crianas que estivessem,
como j disse, cronificadas na escola.
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As crianas e as professoras
Iniciamos o trabalho em grupo com as quinze crianas encaminhadas. Aps o primeiro
encontro com as crianas deflagrou-se a greve dos professores em agosto de 1993. Das
quinze crianas, j. eram da classe especial. Como a professora da classe especial, Nadir,
no aderiu greve por motivos particulares, permanecemos trabalhando com seus
alunos. Todas as professoras do Ciclo Bsico, do perodo da tarde, participavam da
reunio por dois motivos: um que haviam resolvido que um dos horrios de HTP
(Hora de Trabalho Pedaggico) seria o da reunio comigo, pois as trs professoras que
no encaminharam crianas queriam estar presentes (no gostei muito desta deciso por
temer que se transformasse em mais uma reunio obrigatria); o outro motivo que,
durante a greve, esses encontros passaram a ser um momento onde elas iam escola e
encontravam-se para conversar sobre o movimento de paralisao das aulas.
No primeiro encontro com as crianas, colocamos o enquadre: nmero de encontros,
durao e local. Desenhamos alguma figura (trem, pizza...) que pudesse representar o
nmero de encontros. Para cada um deles pintava-se um dos vages, por exemplo. Era
muito comum as crianas acharem que no voltaramos aps o primeiro encontro.
Contamos para as crianas que elas foram encaminhadas pelas professoras que
estavam preocupadas com elas. Perguntei-lhes por que estavam no grupo? O que
preocupava a professora? E assim comeou a conversa: A tarefa pensar os
acontecimentos na escola. Para isso nos conheceremos durante os encontros.
Levamos material (sucata, cola, fita crepe, material grfico, jogos - domin, baralho,
memria...), que podia ser utilizado por eles. Esse material era de todos e o que fosse
produzido por eles seria guardado e entregue no final do grupo. Um pouco antes do
final de cada encontro, tnhamos que guardar o material e arrumar a sala. Enquanto
coordenadores, iramos trabalhar para que esse material no fosse destrudo e que
ningum se machucasse. E, logicamente, o grupo optativo.
Com o intuito de entender melhor o que vinha acontecendo na vida escolar deles,
pesquisamos na secretaria suas histrias escolares e conversamos com seus pais.
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encaminhamento para a classe especial, construiu com sucata, pela primei vez, um
projeto seu.
Juliana (11 anos) fora encaminhada para avaliao por sua professora com a inteno
de proporcionar-lhe uma ajuda durante a fase difcil pela qual passava (perda da me e
mudana de cidade), segundo relato das estagirias. Ela se queixava que Juliana estava
sempre emburrada, recusando-se a fazer as lies, mas ficou impressionada quando veio
o encaminhamento para a classe especial. Juliana ia aos encontros do grupo, participava
das atividades e dizia no querer ir. Se mal - interpretada, poderia parecer que Juliana
no gostava das pessoas.
Nadir, a professora da classe especial, passou a falar com freqncia no grupo de
professores. Foi possvel perceber que a agresso das crianas em relao a ela no era
algo pessoal. Nadir foi discutindo com eles a questo de estarem na classe especial.
Inicialmente ela achava que no deveria tocar nesse tema, pois as crianas poderiam
sofrer.
Muitas crianas so encaminhadas para avaliao por problema de comportamento.
Em algumas sesses dos grupos, comum acontecer de algumas crianas agredirem,
baterem, quebrarem o material. O que faz com que se comportem dessa forma? A
tendncia inicial somente dizer-lhes que isso no pode. Mas, elas sabem disso.
Algumas crianas dizem aprontar na sala de aula porque a professora fica lhe pedindo
para fazer a lio. Mas, no grupo, elas no tm essa desculpa. Propomos um lugar
optativo. , nesse lugar, muitas vezes aparece raiva, medo e defesa. importante tentar
impedir que a criana destrua. Se acontece de descontarmos na criana o que ela nos faz
(se ela pega fora um lpis de um colega do grupo, tirar-lhe tambm fora algo que
ela deseja), atuamos a raiva, e o personagem de o terrvel ganha fora. Um
personagem que muitas vezes esconde as tristezas. Sabemos que mais fcil produzir
um culpado e ficar com raiva do que entristecer. E, novamente a pergunta: a que
agridem? No nosso ponto de vista, sempre possvel associar esses gestos s histrias
escolares das crianas.
No grupo com as professoras, algumas dizem: devem acontecer coisas terrveis nas
vidas familiares dessas crianas, por isso so agressivas. Histrias de abandono, de
pobreza, de espancamento, de medo. Buscam-se hipteses nos problemas familiares,
como justificativa do fracasso escolar. Essas hipteses, assim como os laudos
psicolgicos, depositam nas crianas as causas dos problemas e no relacionam o
Sintoma ao contexto onde ele aparece. Como se as histrias familiares e
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os problemas de aprendizagem tivessem uma relao causal direta. E uma idia falsa.
Como trabalhar as questes afetivas que surgem na sala de a..., Um dia, durante os
encontros com as professoras, elas falaram de j menino que tinha trejeitos femininos na
forma de andar e que era a de gozaes das outras crianas. Queriam que eu o
atendesse. Nessa gozaes sofridas por ele, o tema da sexualidade aparecia. Ao invs
questionarmos a normalidade dele, era preciso pensar como esse tema na sala de aula.
Os acontecimentos nos revelam questes q... se so abafadas, tendem a reaparecer.
Certas questes so difceis serem trabalhadas pelo nosso prprio preconceito, diz
uma professoras. Preconceitos carregados de valores morais. Como que as diferenas
existam em uma sala de aula?
Muitas das perguntas formuladas pelas professoras mostravam u fantasia de que o
psiclogo aquele que adivinha e diagnostica todos os fatos. Por exemplo: Adriana,
outro dia pedi um exemplo de i quadrpede e a criana respondeu chapeuzinho
vermelho, o que e tem?. Havia uma idealizao dos diagnsticos e uma
desconsiderao sobre seu prprio saber em relao s crianas. Neste caso a professora
havia perdido a oportunidade de pesquisar a hiptese da criana.
Existem certos casos, na escola, que demandariam atitudes coletivas. Penso que
algumas regras e o funcionamento burocrtico dai escolas pblicas intensificam a
prtica de a professora ser a responsvel pelas crianas de sua sala (e, nesse ano de
1994, as s tm, em mdia, 38 alunos). Muitas crianas, encaminhadas para ai especial,
passam a ser de responsabilidade exclusiva da professora dessa classe. raro que uma
professora da classe comum, ao encaminhar aluno para uma avaliao que o manda
classe especial na condio a - deficiente, d continuidade relao com esse aluno. Por
isso a sensao de solido que as professoras da classe especial freqentemente
denunciam e a dificuldade em fazer da classe especial um lugar.... circulao.
As professoras criticaram o fato de as classes terem sido organizada pelas secretrias,
que possuam uma lista das crianas com problema comportamento, para que no as
colocassem na mesma classe. A formao de classes uma atividade muito delicada.
Decidir o destino das crianas exige considerarmos as amizades entre elas, os vnculos
formados.
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Lilian, a professora de uma outra classe especial dessa escola, disse que ele precisava de
carinho e ateno. Isso parecia estranho a algumas professoras: Aquele menino que
produz raiva na gente quer carinho?. Com relao professora de Juliana, ela passou a
sentir os mos da garota como um sim disfarado, como ela mesma expressou.
Parando de se sentir atacada por Juliana, foi possvel descobrir formas de conseguir que
ela fizesse as lies.
Foi enviado, no incio do trabalho, um comunicado para os pais. Durante o tempo do
grupo, os pais foram chamados. Como muitos no vieram at a escola para
conversarmos, propusemos s crianas que lhes perguntassem se poderamos ir visit-
los. As visitas domiciliares foram um momento muito rico do trabalho, tanto para os
pais como para os estagirios. Soubemos das histrias familiares das crianas e da
opinio dos pais a respeito da queixa escolar. Como de costume, havia mes que nem
sabiam direito o que estava acontecendo com seu filho na escola, outras estavam
resignadas ao fato de seu filho precisar de uma classe especial.
As crianas eram atendidas por uma dupla de estagirios. Cada dupla marcou encontro
com as professoras que as haviam encaminhado, com o intuito de conversarem sobre os
acontecimentos tanto na sala de aula, como nos grupos.
Com o final dos nove encontros propostos, fizemos uma entrevista individual com
cada criana encaminhada para o grupo. A greve terminara e com isso pudemos
conversar tambm com as crianas que no puderam participar de alguns encontros,
mas que haviam ido na primeira semana. Nessa entrevista individual com as crianas da
classe especial, foi relembrado todo o percurso que as levara para a classe especial. Foi
aplicado, numa abordagem qualitativa, o teste Raven, anteriormente utilizado pela
psicloga contratada para diagnosticar as crianas como deficientes. Todas quiseram a
aplicao do teste e obtiveram resultados categorizados dentro da normalidade. Foi-lhes
explicado a funo do teste. Nenhuma criana queria continuar na classe especial, mas
algumas sentiam medo de voltar para a classe comum.
Quem seriam as professoras dessas crianas no ano seguinte? Redigimos um relatrio
sobre cada criana, contendo a sua histria escolar, a queixa da professora, a
participao da criana no grupo e o funcionamento da relao escola-criana. Foi
pedido que fizssemos uma apresentao do trabalho para todos os professores de 1 a
4 sries.
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Nessa reunio devolutiva, temas como a questo da busca diagnstica, da formao de
classes homogneas, da solido do professor da classe especial foram discutidos. A
professora da classe especial declarou que todas as crianas iriam ser encaminhadas
para a terceira srie. Ela sairia da escola, pois ficaria sem classe para lecionar. Essa
classe especial foi desfeita.
Na ltima semana de aula, a professora Nadir pediu para seus alunos escreverem uma
redao com o seguinte tema: Minha passagem pela classe especial. Ela no tinha
mais medo de tocar nesse assunto. Reginaldo, 13 anos, escreveu: Quero ir para a outra
classe porque tambm sou filho de Deus.
Durante o ano de 1994, acompanhamos as crianas que foram transferidas para as
classes comuns. Das nove crianas, sete acompanhavam perfeitamente a terceira srie, e
duas apresentavam problemas de aprendizagem. Os problemas de comportamento
continuam aparecendo, mas existe uma infinidade de atitudes da escola que, ao nosso
ver, produzem esses problemas.
Em junho de 1994, uma reprter do jornal O Estado de S.Paulo foi escola e redigiu
uma matria com o ttulo: Estudo mostra erro em avaliao de crianas. Cinco
crianas saram na fotografia dessa matria. Uma delas era Laurentino. Sua foto no
jornal e o texto mostrando que Laurentino no era deficiente foram comemorados pela
famlia. Algumas crianas falaram, durante a entrevista, sobre a saudade que sentiam da
professora Nadir, quando comentavam da classe especial.
Sabemos que nas classes especiais existe uma variedade de motivos de
encaminhamento. Muitas crianas no possuem laudos que as diagnostiquem como
deficientes mentais educveis. O problema no a falta de diagnstico, pois muitas
crianas so diagnosticadas como deficientes e no o so. Mesmo que um diagnstico
possa estar correto, as crianas no so convidadas a pensar sobre o que lhes acontece,
isto , o encaminhamento para a classe especial vivido de maneira passiva. Foi
somente no momento em que as crianas perceberam que a classe especial deveria ser
um lugar de circulao que elas passaram a pensar se continuariam ou no na classe
especial no ano seguinte.
Muitos psiclogos revelam no conhecer a dinmica das classes especiais para as quais
encaminham as crianas. Ento, como prever que o efeito do encontro da criana com a
classe especial vai ser fortalecedor? Os instrumentos utilizados pelos psiclogos tm,
em
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BIBLIOGRAFIA
COLLARES, C.A. Ajudando a desmistificar o fracasso escolar. In: Toda criana
capaz de aprender? So Paulo, FDE, 1989, p. 24-8 (Srie Idias, 6).
MACHADO, A.M. Crianas de classe especial - efeitos do encontro da sade com a
educao. So Paulo, Casa do Psiclogo, 1994.
PATTO, M.H.S. A produo do fracasso escolar: histrias de submisso e rebeldia. So
Paulo, T. A. Queiroz, 1990.
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cristalizados; dentre outras formas, pela abertura de espaos de expresso para discursos
reprimidos e aclaramento destes.
Assim, realizei uma reunio inicial com as professoras, onde pudemos aprofundar a
queixa, pedido e contrato, estabelecer as especificidades de cada classe, verificar que
no parecia tratar-se de rigidez excessiva das professoras e que essas j haviam
explorado bem seus recursos. Uma das professoras no apresentava queixa, mas
interessava-se pelo assunto. Propus que, conjuntamente, vssemos e ouvssemos a
verso dos alunos com relao ao que estava acontecendo.
Foi pedido a eles que expressassem de alguma forma no papel anonimamente se
quisessem como sentiam a classe. Analisei a produo dos alunos, reuni-me com
cada professora para discutirmos tal anlise, levantar mais hipteses e pensar a
devolutiva com a classe, feita com a professora presente. Com algumas classes, foram
feitas vrias reunies.
Com as professoras, o trabalho prosseguiu algum tempo mais, com reunies de
acompanhamento. Foi interessante ter adotado procedimento similar com a classe da
professora no-queixosa, pois seus resultados ofereceram interessante e produtivo
contraponto.
Passo a apresentar algumas das produes que mais se repetiram e que ilustram as
questes mais candentes.
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As figuras 1 que aparecem nesse desenho no so bem seres humanos, como se o que
pudesse habitar a escola fossem seres escolares, que de humano s tm a cabea.
Melhor dizendo, na escola s estaria havendo espao para o racional, para a produo
intelectual. O corpo transformado ou misturado carteira, onde deve permanecer o
tempo todo. Aparecem figuras inteiras quase que s nos desenhos de ptio, quadra, rua,
enfim, fora da classe.
Abre-se a questo da massificao, da indiscriminao entre os membros da classe.
Nesse ponto, interessante notar que as produes da classe da professora no-queixosa
eram repletas de nomes. Nomearam de quem gostavam ou no, quem queriam namorar.
Percebia-se com facilidade os subgrupos da classe etc.
Esse texto vem aclarar o que j aparecia na ilustrao anterior: num lugar onde s a
racionalidade admitida, no pode haver brincadeira, que em tal contexto muda de
nome e significado. Brincadeira, na escola, baguna. Baguna, na rua, brincadeira.
Veja- se como o aluno se perde com esses dois termos pelo meio do texto, quando passa
da escola para a rua. Isso indicou e confirmou-se depois no contato com o aluno-
autor que o fenmento o mesmo. Diferentes so os significados conforme o contexto.
Ora, a necessidade de brincar,
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irreprimvel (so crianas!), sem possibilidades institucionais de satisfao, procura
canais por sua prpria conta: a baguna.
A questo da ciso entre o estudar e o brincar, ou melhor (ou pior), entre estudar e ter
prazer, foi das que mais apareceu. No que eu acredite ser possvel estudar tendo prazer
e brincando o tempo todo, mas sabemos que existem muitas estratgias pedaggicas que
contemplam integradamente ludicidade e contedo escolar, alm de propiciar a
aprendizagem significativa. Estratgias com estas caractersticas quase no vinham
sendo utilizadas pelas professoras. quando isso ocorria, a classe ficava muito
insegura, pois era algo que desde a pr-escola praticamente deixaram de vivenciar. Tal
ciso naturalmente contribui para afastar o interesse dos alunos dos contedos escolares,
influindo diretamente na aprendizagem.
Mais uma vez foi muito positivo o envolvimento da professora no-queixosa e de sua
classe, pois ficou claro que no era coincidncia o fato de ela ser a nica que usava com
freqncia tcnicas de trabalho em grupo, colagens, desenhos etc.
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Assim, difcil transmitir prazer em estudar quando seu prprio vnculo com o estudo e
as produes acadmicas ruim. difcil descobrir sentido em contedos especficos
onde nunca se viu nenhum, difcil ensinar de forma significativa e ldica quando
nunca se passou por algo assim.
Esse um exemplo claro de onde a ao do pedagogo e do psiclogo se
complementam. Faltam ao psiclogo as tcnicas pedaggicas, falta essa que alis foi
sentida ao longo desse trabalho. E falta ao pedagogo a formao para lidar com questes
mais profundas como essas, sem o que a simples apresentao de tcnicas corre o risco
de cair no vazio.
Na figura 5 retoma-se o tema j discutido do cerceamento do corpo e aparecem
crianas como que amarradas s cadeiras, que seriam as educadas, que seguem as regras
presentes no texto do terceiro quadro do desenho. Tal texto reproduz o discurso oficial,
o permitido.
No segundo quadro aparece referncia a um conflito marcante em todas as classes e
bem conhecido de quem lida com escolas: o que ocorre entre meninos e meninas, estas
ltimas sendo massacradas pelos meninos. Vejamos o desabafo de uma delas na figura
seguinte.
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Esse um exemplo claro de que no se pode pensar a escola isolada da sociedade, pois
vem-se reproduzidos dentro dela mecanismos, tal como o machismo, que se fazem
presentes em toda a sociedade assim como as contradies que podem levar
mudana.
Como no mundo extra-muros escolares, observamos tambm os mais fortes
dominando os mais fracos. Mescla-se a isso a questo dos repetentes, que agridem os
menores no s por serem mais fortes, mas tambm como uma atuao. Reagem ao fato
de se sentirem agredidos por estarem na mesma classe de crianas bem menores, o que
os pe em evidncia e os faz lembrar constantemente de sua condio de repetentes,
com todos os significados degradantes a ela associados.
O racismo marcou presena forte, com a rejeio dos negros pelos brancos e mulatos.
Esses ltimos tambm eram rejeitados pelos brancos. Negros e mulatos
envergonhavam-se de sua raa e por vezes revidavam com agresses.
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A responsabilizao dos alunos pelo que ocorre de errado na classe, de mau
rendimento a mau comportamento, faz parte do discurso oficial. Este freqentemente
internalizado por tais alunos, como mostra a figura 7 e outras manifestaes dos
mesmos, fenmenos c conseqncias perigosas para essa e outras reas de relao
desses seres humanos em desenvolvimento.
importante, sim, a considerao das responsabilidades dos alunos. No se trata aqui
de isent-los disso, imputando tudo Escola e Sociedade. No toa que os
emergentes das vrias questes aqui tratadas foram determinados alunos e no outros.
Certamente houve algo neles que se combinou com os determinantes externos, O que
preocupa quando a responsabilidade do aluno superestimada,
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junto a uma outra cuja professora mostrou-se fechada e delegou-me todo o trabalho,
com alunos que tinham muitos conflitos envolvendo questes de mbito social, como o
racismo, por exemplo.
Foram eleitos alguns temas de trabalho com toda a escola, tais como a reviso das
estratgias pedaggicas desde as sries iniciais (como a adoo de trabalhos em grupo,
por exemplo), o repensar os mecanismos escolares que reforam o afastamento de
meninos e meninas (como fila, chamada e Educao Fsica diferenciadas); o
aproveitamento da Semana do Negro para trabalhar o tema do racismo etc.
Por fim, alguns reparos tcnicos: notei ser aos alunos importante e prazeroso rever
suas produes e discutir cada uma. Aliado ao fato de o tempo decorrido entre a
produo do material e a devolutiva dever ser o mais curto possvel, tornou-se
imperativa e produziu melhores resultados a adoo de produes em pequenos
grupos. Essas eram exploradas primeiramente em separado com cada grupo e numa
outra ocasio se reunia a classe toda.
BIBLIOGRAFIA
ANZIEU, D. Os mtodos projetivos. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
BLEGER, J. Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre, Artes Mdicas,
1984.
FREUD, S. Mas all dei principio dei placer. Madrid Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
(Obras Completas, v.3)
PATTO, M.H.S. A produo do fracasso escolar: histrias de submisso C rebeldia. So
Paulo, T.A. Queiroz, 1990.
PATTO, M.H.S. Psicologia e ideologia. So Paulo, TA. Queiroz, 1984.
PIAGET, J. A psicologia da criana. So Paulo, Ditel, 1974.
PICHON-RIVIRE, E. O processo grupal. So Paulo, Martins Fontes, 1983.
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Dentro dessa nova categoria encontram-se, de acordo com as estatsticas americanas
apontadas nesse manual, 10 a 15 crianas ou adolescentes em cada 10.000. Supondo-se
que essa incidncia seja semelhante no Brasil que tem hoje, segundo o IBGE, uma
populao estimada de 60 milhes de crianas e adolescentes de at 17 anos (Crianas e
adolescentes, 1989) , 60.000 a 90.000 crianas e adolescentes estariam dentro desse
quadro.
Estimar, dentre essas crianas, quais aquelas que no tm condies de se submeter a
um tratamento adequado por falta de recursos econmicos tarefa ainda mais
complexa. No existem estudos que permitam ter uma noo da incidncia dos
distrbios globais de desenvolvimento por faixa de renda. Sabe-se, apenas e este
um dado do DSM-III-R , que no h correlao entre nvel scio- econmico e
aparecimento de distrbios como as psicoses. Porm, a consulta aos dados estatsticos
do IBGE j suficiente para causar preocupaes. Esses dados revelam que 50% das
crianas e adolescentes de at 17 anos vivem em situao de pobreza rendimento
mensal familiar per capita de at 1/2 salrio mnimo (Crianas e Adolescentes, 1989).
Caso a estratificao por faixa de renda da populao de crianas psicticas estimada
por ns entre 60.000 e 90.000 crianas no provocasse alteraes na incidncia geral,
possibilitando o cruzamento direto entre faixa de renda e incidncia de distrbios
globais do desenvolvimento, teramos hoje no Brasil entre 30.000 e 45.000 crianas e
adolescentes apresentando distrbios globais de desenvolvimento.
Os dados disponveis na rede pblica sobre o tratamento oferecido a essas crianas so
tambm imprecisos, em razo das discordncias diagnsticas; entre as atendidas por um
neurologista, pode haver algumas que um psicanalista diagnosticaria como psicticas, e
entre as classificadas como deficientes mentais pelos psiclogos poderia haver Outras
tantas psicticas. A consulta aos nmeros fornecidos pelo CEPI Centro de
Epidemiologia, Pesquisa e Informao dar ainda assim Uma noo do tratamento
oferecido atualmente s crianas psicticas na cidade de So Paulo. A Secretaria de
Sade do Municpio criou recentemente uma rede de hospitais-dia em Sade Mental. De
acordo Com a definio do CEPI, um hospital-dia uma unidade ambulatorial
especializada (...) para casos de crises psquicas agudas que meream ateno intensiva
de uma equipe multidisciplinar especializada em sade mental, com objetivo de
diminuir a intensidade do quadro (...). Trata-se
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portanto de um equipamento apto a receber crianas portadoras dos distrbios globais
de desenvolvimento, uma vez que elas podem ser recebidas na crise e obter tambm um
tratamento continuado atravs de abordagens mltiplas (medicamentos, psicoterapias,
terapia ocupacional, orientao e apoio familiar e atividades scio-culturais
esportivas), ainda segundo o CEPI. Pois bem: na rede de hospitais-dia da Prefeitura, h
apenas dois que recebem crianas, o que significa uma capacidade mxima de 85 vagas
para toda a capital(2).
No seria excessivo insistir na importncia de tratar essas crianas. A ausncia de
tratamento pode gerar pelo menos duas conseqncias negativas: o sofrimento das
crianas e de seus pais, de um lado, e, de outro, o aumento do nus pblico, j grande,
com os custos de tratamento das doenas mentais incidentes na populao adulta. As
crianas no tratadas iro, inexoravelmente, engrossar duas fileiras: a dos doentes
mentais e a dos deficientes mentais.
Quem e quantas so, em nmeros mais exatos, essas crianas, como oferecer
explicaes e atendimento psicoteraputico para suas profundas desarmonias evolutivas,
como proporcionar-lhes oportunidades educacionais, como impedir que sejam retiradas
do convvio social com outras crianas, como diminuir os riscos de cronificao? Como
evitar tantos descaminhos diagnsticos, em que se perde um tempo precioso? Como
garantir uma formao especializada para os profissionais de sade mental que deparam
com essas crianas?
A criao, na USP, de uma pr-escola teraputica para crianas com problemas
emocionais graves o Lugar de Vida uma tentativa de encontrar algumas
respostas a essas perguntas. Em uma instituio desse gnero, busca-se oferecer s
crianas atendimento psicoteraputico e educacional integrados, desenvolver pesquisas
sobre o diagnstico e o tratamento dos distrbios globais de desenvolvimento
psicoses, autismo e esquizofrenias , e oferecer cursos de aperfeioamento e
superviso para profissionais da rea.
A pr-escola teraputica Lugar de Vida existe na USP desde 1991, e em 1995 ampliou
suas atividades para atender demanda crescente tanto de crianas como de
profissionais em busca de formao.
O eixo educacional
Sabe-se que toda excluso dos chamados doentes mentais do convvio com a
sociedade em geral no propicia a sua recuperao. As tentativas de desospitalizao,
o repdio internao cronificante e a condenao da segregao tm sido as bandeiras
empunhadas pelas polticas atuais de sade mental (Marsiglia, 1987).
Para uma criana, o principal agente de insero social sem dvida a escola. Ora, as
psicticas e autistas estavam, at h bem pouco tempo, excludas da escola e, portanto,
do circuito social por dois motivos: no se pensava que eram capazes de aprender e era
impossvel mant-las por muito tempo em uma escola, devido sua instabilidade,
agressividade ou comportamentos bizarros.
No entanto, fala-se atualmente cada vez mais das condies intelectuais que podem ser
encontradas nessas crianas; so as ilhas de inteligncia que permanecem intocadas,
apesar da violenta interrupo de seu desenvolvimento provocada pela irrupo das
crises.
O movimento natural, que se segue a essas novas consideraes, deveria ser o de
buscar a reinsero dessas crianas na escolarizao regular, caso se queira ser fiel s
polticas de sade mental mencionadas. Caminhando na direo oposta, a criao de
escolas especiais para autistas e psicticos seria ento acusada de prtica
segregacionista.
No entanto, as tentativas de colocar essas crianas na rede escolar regular nunca foram
de fcil execuo. Tomem-se, por exemplo, as experincias europias reportadas em um
Colquio Internacional realizado na Noruega sobre esse tema (Integrao de jovens
deficientes no ensino obrigatrio na Noruega, 1983). Ali se descrevem as tentativas
feitas no sentido de manter em classes regulares do ensino pblico algumas crianas
autistas e psicticas: elas terminaram, depois de se verificar que as escolas acabavam
criando classes especiais, em que havia apenas uma criana exatamente a psictica
ou a autista, com quem o convvio se tornara insuportvel.
115
Por isso, o Lugar de Vida uma pr-escola: trata-se de um trabalho prvio, anterior
escola, que busca colocar nossas crianas em condies mnimas de freqentar uma
escola. De nada adianta tentar imp-las a uma professora, estando ainda instveis,
agressivas.
Assim, a reinsero escolar, no Lugar de Vida, o alvo final, que equivale aos
objetivos de diminuio do nmero de internaes ou insero no mercado de trabalho,
usados pelos servios de atendimento e hospitais-dia para adolescentes e adultos.
A pr-educao pode ainda prover uma sustentao imaginria para essa insero
social. Meu filho est na escola, poder dizer a si mesmo e aos vizinhos um pai que
v seu filho sair do Lugar de Vida segurando um trabalho de sucata. O menino ter
colaborado com um nico gesto, o de colar um tubo pintado resto descartvel em
uma base de papelo, fazendo-o ficar de p. Mas o olhar que lhe dirigir seu pai ter
valor mais estruturante que seu gesto: somado a outros que lhe sero dirigidos em outras
ocasies, agora ao menino que poder ajudar a ficar de p.
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Indo depois para a escolinha, mostra que sabe ler os nomes das outras crianas,
escritos no mural. agora uma leitura que faz sentido para ele: designa as crianas
ausentes.
Pouco tempo depois, comeam os primeiros desenhos, que culminam com uma figura
humana. Seu nome: Maurcio.
O grupo de pais, os atelis, o grupo teraputico e o educacional trabalham em
diferentes frentes, na tentativa de compor uma estruturao da qual uma criana venha a
se apossar, se puder.
Para concluir: o desamparo no o nico responsvel pela produo da doena
mental, j que esta multideterminada. Mas um fato que a doena mental produz
desamparo. E contra esse desamparo, sobretudo, que o Lugar de Vida quer lutar.
BIBLIOGRAFIA
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distrbios mentais - DSM-III. 3.ed., So Paulo, 1989.
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MANNONI, M., org. Bonneuil, seize ans aprs. Paris, Denoel, 1987.
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enfrentar. Este trabalho uma oportunidade para refletir sobre seus limites e
possibilidades.
Acredito que reunir algumas crianas com queixa escolar, diante de uma caixa com
material grfico, sem nenhuma atividade pr-estabelecida, com um adulto disponvel a
acompanh-las e escut-las, pode ser uma oportunidade para a expresso do conflito
predominante de cada criana e do grupo. Tambm permite ao psiclogo esboar um
pr-diagnstico, localizando o tipo de dificuldade que apresentam para delinear
estratgias de trabalho.
A funo teraputica, ou facilitadora, dessa experincia deve ser avaliada,
constantemente, e o material clnico que relato a seguir uma boa oportunidade para
iniciar essa reflexo.
O enquadre proposto para as crianas suporta variaes, mas os parmetros bsicos
so: seis a oito participantes, aproximadamente 10 sesses, uma hora de durao, uma
vez por semana, uma caixa com material grfico e, dependendo da idade, jogos, animais
de plstico e famlias de pano.
Procuro conversar uma vez com o grupo de pais e com o de professores,
separadamente, uma vez antes de comear o trabalho com os alunos e no final do
processo, objetivando, por um lado, escutar sua verso sobre os problemas enfrentados
pelas crianas e seus sentimentos e atitudes frente a essa problemtica. Por outro lado,
procuro ajud-los a pensar em formas de facilitar o crescimento das crianas,
aproveitando possveis mudanas ocorridas a partir do processo grupal, ao propiciar
uma proviso ambiental mais adequada.
Com as crianas, inicio o processo contando o motivo do encaminhamento dos
professores, o objetivo do trabalho e o enquadre. Convido-as para participar do grupo
(j que a participao optativa, assim como a dos professores), a fim de que possam
expressar sua verso sobre os problemas que enfrentam na escola e fora dela, falar de
suas preocupaes e brincar.
Estudo de caso
A seguir, relato, sucintamente, o percurso percorrido por um grupo formado por
crianas repetentes que estavam cursando a primeira srie
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pela terceira ou quarta vez, encaminhadas por professores de uma escola pblica
estadual. Repito que meu intuito com esse relato fornecer material para reflexo sobre
essa prtica, e no generalizar mecanismos, j que cada processo grupal nico,
particular e diverso.
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A histria escolar
A histria escolar inicial de todos comum, pois embora estivessem freqentando, no
momento do trabalho, classes diversas, pertenceram, na primeira srie, mesma classe,
a qual ficou marcada na escola por ter sido reprovada em massa (70%) e pela
substituio constante de professores. Estes tiraram licena mdica ou se aposentaram
(foram sete professores em um ano).
Aps este incio conturbado, as crianas reprovadas foram reunidas com outras
crianas-problema, tendo sido designada uma professora novata, sem experincia
docente, para assumir a classe, informalmente chamada lixo,
Essas crianas repetiram novamente e foram redistribudas pelas classes iniciantes, a
fim de recomear, pela terceira vez, o processo de alfabetizao, com exerccios de
coordenao motora fina e orientao espao-temporal.
A pesquisa da histria escolar, geralmente desconsiderada pelos psiclogos clnicos,
fundamental para entender a problemtica enfrentada por essas crianas.
Freqentemente revela um processo escolar complicado, fruto de prticas escolares
equivocadas e inadequadas.
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das carteiras e corriam pela sala. Slvia desenhava flores, menininhas de maria
chiquinha, rvore, casa. Carlos ficava no canto, murmurava frases que no
entendamos, andava pela sala.
A quarta sesso caiu em um feriado e esqueci de avis-los que seria transferida para
outro dia.
Quando me viram, na quinta sesso, olharam admirados e perguntaram em unssono:
Voc voltou?.
Sim, respondi, vocs pensaram que me assustei tanto com a ltima sesso que no
voltaria mais? Esqueci de avis-los que no haveria sesso por causa do feriado.
Essa sesso se caracterizou por brincadeiras de luta, brigas, cadeiras derrubadas, gritaria
e agitao geral. At a Slvia participou do empurra-empurra, e Carlos, tambm, como
depositrio de tapas e puxes de cabelo. O clima estava to tenso que todos pediam para
ir ao banheiro. Intervi impedindo apenas as agresses que provocariam algum estrago
material irreparvel ou que machucassem realmente algum.
Comentei que eles ficaram com muita raiva da minha falta, e que tinham razo. Eu
havia sido displicente ao esquecer de avis-los do feriado. Acrescentei que eles tambm
devem ter ficado muito bravos com as sucessivas faltas de professores que sofreram no
primeiro ano escolar e em outras ocasies de sua vida pessoal. A guerra Continuou
at o final da sesso.
Na sexta sesso, demonstraram novamente surpresa com a minha presena: Hoje
era dia de voc vir ? e Voc esta bonita, cortou o cabelo?.
Pegaram a massinha e Slvia fez uma menina com longos cabelos, que eles se
revesavam para cortar. Chamaram Carlos para cortar tambm, o que ele fez com um
sorriso nos lbios. Cada vez que o cabelo era cortado, Slvia recolocava-o ainda maior,
o que provocou o comentrio de Fbio: Parece uma bruxa. Parece Regina,
nossa professora, aquela que tinha aquele cabelo, acrescentou Marcos.
Construmos uma sala de aula e fizemos crianas de massinha, que colocamos
sentados. A professora de p. Dramatizaram, com os bonequinhos de massinha, uma
situao de sala de aula com uma professora brava, autoritria e injusta. A dramatizao
prosseguiu com eles se revesando para interpretar os personagens.
A professora sempre gritava e emitia ordens absurdas para os alunos, que acuados
obedeciam. Ela reclamava da baguna e gritava sem parar.
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No meio da gritaria, tropeou no lixo jogado pelos alunos, bateu a cabea e morreu.
Lembraram que Regina, primeira professora, ficou doente, saiu de licena mdica, no
se despediu e nunca mais apareceu. Outra professora a substituiu, sem dar qualquer
notcia ou explicao. Levantaram hipteses sobre a sua doena, e Jorge falou que ela
saiu porque teve sistema nervoso e no podia mais dar aula. Essa dramatizao foi
acompanhada de risada e gritinhos, por todas as crianas.
Na sesso seguinte, desenharam, contaram estrias e fizeram objetos com massinha.
Enquanto produziam, conversavam, com evidente prazer sobre situaes cotidianas, da
escola ou do bairro, trocando idias sobre diversos assuntos.
Um assunto em pauta nesse dia foi um acidente de bicicleta sofrido por uma criana.
Conversaram sobre as mes e o que cada uma permitia ou proibia, como deixar que eles
brincassem na rua, at que hora etc. Tambm falaram sobre cenas de violncia que cada
um j ouviu ou presenciou, e que faziam parte do seu cotidiano.
Na oitava sesso, houve uma disputa de material. Cada um queria ficar com um pedao
maior de massa e achava que o outro tinha mais. Puderam conversar sobre as
quantidades: o que contm mais massa, uma bola ou uma cobra? Tambm discutiram
sobre as injustias que sentiam sofrer em casa e na escola. Quem era protegido, quem
era discriminado, perseguido e vtima de determinadas situaes?
Sua produo inicialmente pobre, estereotipada e infantilizada foi se tomando cada vez
mais rica e pessoal. Caprichavam nos detalhes e pareciam contentes ao manipular o
material e ao se deparar com o produto final, me mostrando orgulhosamente.
Na penltima sesso, Slvia perguntou se o grupo acabaria e ns no nos
encontraramos mais. Respondi que teramos mais um encontro.
Cada criana reagiu diferentemente ao final do processo. Jorge falou que no ligava
que ia acabar, pois podia desenhar na classe e brincar no recreio. Slvia se fechou,
permaneceu em silncio quase o tempo todo, desenhando. Marcos e Wagner inventaram
uma brincadeira de peteca, feita de massinha. Construam a peteca e jogavam at que
ela acabasse; refaziam a peteca e recomeavam o jogo. Carlos ficou fazendo
dobraduras. Fbio e Gabriel mudavam de atividade
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Discusso
A partir deste relato podemos supor que descobrimos algumas coisas sobre estas sete
crianas e sobre o grupo que elas constituram, mas, principalmente, podemos dizer que
elas descobriram vrias coisas sobre elas mesmas.
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BIBLIOGRAFIA
FERNNDEZ, A. A mulher escondida lia professora. Porto Alegre, Artes Mdicas,
1994.
UNS, M.Y.A. O jogo como interpretao/Apresentado na Jornada Winnicott, Vinte
Anos Depois, Sociedade Brasileira de Psicanlise do Rio de Janeiro, nov.1991./
PATTO, M.H.S. A criana da escola pblica: deficiente, diferente ou mal trabalhada?
Projeto IP, So Paulo, 1985.
WINNICOTLD.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Consultas teraputicas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro, Imago, 1984.
Privao e delinqncia. So Paulo, Martins Fontes, 1987.
Exploraes Psicanalticas. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1994.
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natureza da vida diria que se processa nas escolas pblicas, as redes de relaes a
construdas, maneira como os educadores concebem sua atuao e seus alunos, que
prticas valorizam em sala de aula, como os pais e as crianas entendem e explicam o
processo de escolarizao, quem so as crianas que fracassam, que trajetria escolar
percorreram, como se produz a medicalizao dos problemas de aprendizagem, como as
polticas educacionais e pedaggicas se fazem presentes nas prticas escolares. Esse
conhecimento s poderia ser possvel atravs da longa convivncia com as crianas e
com a escola, atravs de um detalhado processo de observao participante, entrevistas
abertas, visitas domiciliares, participao em espaos ldicos, objetivando estabelecer
um vnculo de confiana entre pesquisador-informantes, permitindo que as vozes das
crianas, de seus pais e dos educadores pudessem emergir como sujeitos de sua prpria
histria. Metodologias de pesquisa oriundas da Antropologia Social, com nfase em
estudos de caso, histrias de vida e observao participante, passaram a ser utilizadas
pelos pesquisadores em educao e em psicologia no Brasil, principalmente a partir de
meados dos anos 80.
O conjunto do conhecimento que vem se acumulando neste perodo tem permitido
uma srie de anlises a respeito do processo de produo do fracasso escolar. Alguns
desses trabalhos objetivam compreender mais radicalmente as questes que envolvem o
usurio da escola, questionando os mitos que envolvem os alunos multi-repetentes
provenientes das classes populares (Patto, 1990), os processos de excluso escolar
(Goldenstein, 1986) e a repetncia (Gatti, 1981; Andrade, 1986), a impossibilidade da
manuteno de relaes de causa e efeito entre desempenho escolar e nutrio (Moyss
e Lima,1983; Collares,1989) e entre rendimento escolar e linguagem (Soares,1986;
Cagliari,1985, Sawaya, 1992).
Outros trabalhos desvelam aspectos presentes no cotidiano escolar, tais como os
processos: de dominao e resistncia (Andr et al.,1987; Carvalho, 1991; Andr,
1992); relativos alfabetizao (Kramer et al.,1987); s possibilidades de atuao dos
professores nas sries iniciais (Guarnieri, 1990; Davis, 1992); s questes referentes s
representaes que as crianas ingressantes das classes populares tm da escola (Cruz,
1987); aos professores bem-sucedidos no processo de escolarizao (Kramer e Andr,
1983; Cunha, 1988; Coelho, 1989; Souza, 1991); ou ainda questes relativas didtica
do professor (Andr,
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1987, 1993; Andr e Mediano, 1986; Andr e Fazenda, 1989) e prtica pedaggica
(Dias da Silva, 1992; Davis, 1988).Um terceiro grupo de pesquisas centra-se na questo
da participao poltica dos professores (Souza,1991) e da gesto popular na escola
pblica (Paro, 1991,1992).
Tais pesquisas tm subsidiado propostas de interveno na escola, possibilitando um
trabalho de parceria entre psiclogos e educadores (Machado,1991; Souza et alii,1989).
confiana na sua capacidade de aprender(p. 268). Sobre elas paira um constante ataque
sua auto-estima, alm de recriminaes que so maiores medida que as crianas
manifestam no estar entendendo o que a professora explica. A ameaa de expulso
uma constante, tendo como causas dois fatores: a incapacidade para aprender e os
problemas de comportamento. O preo e a representao que permanece para as
crianas serem aceitas o de perda de sua identidade: Elas sentem que s sero
aprovadas (duplamente) se apresentarem apenas com certas partes de si, deformarem-
se (p. 271).
Com relao ao aprendizado, a questo formal se sobrepe ao contedo, o
comportamento sobre o pensamento, a rotina est acima do sentido do que se aprende.
Domina entre a professora a crena na incapacidade dos alunos para o aprendizado e a
necessidade de manter a ordem a todo custo.
As famlias, vistas na literatura como pertencentes a uma classe social que desvaloriza
a educao formal em detrimento do trabalho, apresentam posies completamente
diferentes daquelas defendidas pelos adeptos da teoria da carncia cultural. As mes,
pais ou avs entrevistados atribuem grande valor educao e, mais do que isso,
mostram o sacrifcio que fazem para manter seu filho ou seu neto na escola. Sabem,
tambm, que o trabalho est diretamente ligado escolarizao. Mas suas expectativas
em relao a esse canal para a melhoria da qualidade de vida vai se modificando
medida que o desempenho de seus filhos no corresponde ao esperado pela escola e ao
fato de que a escola exige muito alm daquilo que diz dar. Resta aos pais, ento,
modificar seus filhos, castigando-os ou doutrinando-os. Essa estratgia s questionada
no final do ano letivo, quando os pais se deparam com o fracasso de seus filhos e
percebem que os castigos foram em vo. As crticas passam a se voltar para a escola,
embora ainda centradas nas caractersticas pessoais do professor.
Outra temtica bastante discutida em relao ao fracasso das crianas das classes
populares na escola refere-se ao dficit de linguagem. Esse debate mobilizou lingistas
e psicolingistas de vrias correntes, possibilitando o surgimento de uma srie de
trabalhos tericos sobre o tema, destacando-se ode Soares(1986); Cagliari (1985),
Abaurre (1985 apud Cagliari, op.cit.), Lemie (1981 apud Cagliari, op.cit.). Cagliari
defende a competncia lingstica das crianas das classes populares e questiona a
maneira como a escola pretensamente se diz ensinando.
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temtica da relao entre linguagem oral e pobreza atravs de pesquisa realizada com
crianas de um bairro perifrico da cidade de So Paulo.
Essa pesquisa tem como objetivo verificar o uso que essas crianas fazem da
linguagem, ou seja, sobre o que a verbalizao desses meninos e meninas informa ao
pesquisador a respeito de suas percepes, anlises e explicaes de diferentes aspectos
da realidade.
A faixa etria dos participantes da pesquisa varia de 3 a 9 anos e os encontros
semanais, durante aproximadamente um ano, foram realizados no prprio bairro, em
suas casas e em outros espaos informais, registrando e gravando vrias circunstncias
diferentes de interao verbal, participando de brincadeiras de roda,jogos, conversas
informais, ouvindo relatos e narrativas sobre o bairro, sobre suas vidas e de seus
familiares e amigos, ou ainda sobre episdios vividos na escola, considerada pela
pesquisadora como o um lugar central em suas vidas.
A anlise e a riqueza dos relatos e narrativas levam a autora a afirmar a complexidade
com que as estas crianas utilizam a linguagem verbal, conquistando seu lugar no
mundo adulto e expressando suas vivncias em seu ambiente prximo. Utilizam-se de
ricas interaes verbais, apropriando-se de recursos, como msicas populares e
folclricas, produzem narrativas dos acontecimentos do bairro e a expresso verbal de
suas fantasias e temores. Atravs da interao verbal, as crianas:
falam dos acontecimentos centrais em sua vida e tentam elabor-los, tomando-os
inteligveis e suportveis: o preconceito, a discriminao, os estigmas, as ameaas
constantes prpria vida, as relaes familiares, as condies de moradia, os
acontecimentos do bairro, a precariedade de suas condies materiais de vida, as
dificuldades na escola, e as fantasias, medos e desejos infantis em estreita relao com
esse acontecimentos (p. 255).
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o questionamento dos mitos da desnutrio e dos problemas emocionais, dentre outros,
como causadores do fracasso escolar; a reconstruo da histria escolar dos alunos que
vivem a reprovao escolar; o esclarecimento da dinmica de produo do fracasso
escolar e o resgate de experincias bem-sucedidas no processo de escolarizao. Do
ponto de vista das polticas educacionais vigentes, defrontamo-nos, assim como os
educadores, as crianas e seus pais, com a pauperizao cada vez mais crescente das
escolas pblicas estaduais que atendem as famlias mais pobres dos bairros de nossa
Capital, a manuteno de altos ndices de reprovao e de evaso escolares, apesar dos
dez anos de existncia do projeto educacional denominado Ciclo Bsico.
Procuramos, atravs desta reflexo, ampliar a discusso quanto s contribuies das
pesquisas etnogrficas com nfase nos processos constitutivos das relaes escolares
para a atuao de profissionais que se propem a somar sua participao na luta por
uma escola mais democrtica. Sabemos das dificuldades que as mudanas de enfoque
terico-metodolgico compreendem, principalmente porque temos de superar
preconceitos socialmente construdos. Mas no podemos aps tantas evidncias
advindas de trabalhos srios e inovadores de pesquisa continuar a perpetuar prticas
e explicaes que, longe de contriburem para as modificaes das relaes escolares de
excluso, somente as perpetuam.
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Antonio dos Santos. Condies de vida, potencial cognitivo e escola: um
estudo etnogrfico sobre alunos repetentes na primeira srie do primeiro grau. Tese
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ANDR, Marli E.D.A.e FAZENDA, I.C.A. O cotidiano da escola normal e a busca de
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ANDR, Marli. E.D.A. Os estudos etnogrficos e a reconstruo do saber didtico.
Revista da Associao Nacional de Educao-ANDE, ano 12, n.19:17-22, 1993.
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(1) Esta pesquisa foi realizada com apoio da FAPESP (Processos n 92/5108-6 e n 92/
5166-6, correspondentes s duas bolsas de iniciao cientfica) e sob a orientao de
Maria Helena Souza Patto.
(2) Psiclogas; na poca da pesquisa (entre 1992 e 1994) cursavam a graduao do
Instituto de Psicologia-USP.
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seu fracasso nela? Quais as repercusses desse fracasso e do estigma dele decorrente em
sua auto-imagem e no seu grupo familiar?
na passagem do Ciclo Bsico(3) para a 35 srie (no caso da rede estadual paulista)
que se verificam os maiores ndices de reprovao. Assim, optou-se por realizar o
trabalho numa unidade escolar pblica da periferia de So Paulo, onde as professoras do
Ciclo Bsico (CB)(3) foram solicitadas a encaminhar s pesquisadoras alguns de seus
alunos que apresentassem dificuldades de aprendizagem e ajustamento escolar. Essa
pesquisa no se props a estudar o aluno reprovado, mas algumas crianas, que estudam
em uma determinada escola, em um determinado bairro. Isso no significa dizer que as
histrias de vida aqui encontradas no sejam representativas de enorme parcela das
crianas que sobrevivem escola pblica.
A pesquisa desenvolveu-se durante dois anos, em trs fases. Na primeira, estabeleceu-
se um contato individual com as crianas na escola, onde mostraram suas primeiras
representaes do fracasso escolar. Para isso foi utilizado um procedimento (histria-
desenho) que consistiu em contar, a cada criana, uma histria cujo personagem era
multirepetente e, em seguida, pedir-lhes que desenhassem tal personagem e
respondessem a um inqurito a partir do desenho. Na segunda fase foram realizados sete
encontros ldicos com o grupo de crianas no ambiente escolar, com o intuito de
estabelecer um espao na escola que proporcionasse s crianas uma experincia
diferenciada daquela vivida em suas constantes reprovaes e onde pudessem expressar
aspectos de sua histria de vida e de seu percurso escolar. O que se observou nesses
dois momentos corrobora outras pesquisas (Freller, 1993; Machado, 1990 & Patto,
1990): crianas com imagem de si mesmas e da escola extremamente negativas.
Finalmente, foram realizados encontros com cada criana em sua casa, na rua, no bairro,
onde foi possvel conhecer, deste outro ngulo, cada criana, sua insero no grupo
familiar e a repercusso de sua histria de fracasso alm dos muros da escola.
Privilegiaremos neste artigo a terceira fase da pesquisa.
(3) O Ciclo Bsico foi institudo pelo governo do Estado So Paulo atravs de um
decreto de 1983. Consiste na unio da l e 2 sries com o objetivo de diminuir os ndices
de reprovao escolar: a alfabetizao e a aprendizagem das operaes bsicas da
Matemtica ocorreriam em dois anos consecutivos, sem reprovaes do 12 ano (Ciclo
Bsico Inicial) para o 22 (Ciclo Bsico Continuao).
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PRIMEIRA APRESENTAO:
Surgem Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo na voz das professoras
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Ela ficava desesperada para aprender chorava, acabava passando o desespero pr mim
(...) Ultimamente est mais desanimada, mais quietona (...) Eu noto que a Nivnia no
mais a mesma. Ela finge que aprende, ela descobriu que pode escapar (...) No sei se ela
se colocou na cabea que no capaz.
Rildo, 12 anos, multi-repetente:
quietinho, educado, ajuda a professora (...) mas s vezes fica nervoso, fica violento,
muito agitado. (...) Ele oito ou oitenta.
Ele muito educadinho, ningum nunca desconfiava dele. Mas comearam a sumir
coisas. E apareceram com ele. Eu perguntava como foi que aquilo apareceu com ele e
ele inventava histrias, dizia que comprou de outras pessoas. (...) Ele fica muito nervoso
quando desconfiam dele, pela mnima coisa. Quando chamo a ateno dele, tem uma
veia no pescoo que salta. (...) Quando ele t nervoso e faz alguma coisa d pra ver nos
desenhos e na letra que ele t nervoso.
A me d impresso que deixa os filhos muito soltos. So muitos, so sete. Acho que
ela empregada (...) as crianas vm na escola pra comer
SEGUNDA APRESENTAO:
Do Jardim(4) COHAB ou as histrias de Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo...
possvel, e muito provvel, que este bairro tenha grande semelhana com outros
bairros Vilas e Jardins, segundo o eufemismo dos loteadores - deste imenso cinturo
de misria que circunda So
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Paulo. Mas, assim como as crianas Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo -, o Jardim (o
Sem-Terra, a COHAB) nico.(5)
I. O Jardim
no centro de um pequeno bairro localizado na Zona Oeste de So Paulo, divisa com
Osasco, cujos limites so uma rodovia estadual, uma pedreira, uma grande indstria e
outro bairro (j em Osasco), que se encontra a Escola Estadual onde se desenvolveu a
pesquisa. Tambm aqui que moram duas das crianas com quem convivemos: Carlos
e Ricardo.
O Jardim era s mato (fala de Carlos, terceira etapa da pesquisa). Gerado sem
condies, o bairro reflete a histria de muitos que o habitam: cada conquista
transforma a vida do lugar e daqueles que o constroem. Foi assim que aos poucos,
atravs da mobilizao popular, foram surgindo, entre outros, desde a l linha de nibus
(1977), passando pela escola municipal, canalizao da gua (1980), asfaltamento de
ruas, at a fundao, ampliao e transformao em Escola-Padro da Escola Estadual
(1987, 1991 e 1994).
Apesar de ser um bairro pobre da periferia de So Paulo, o Jardim no homogneo:
existem trs reas que se distinguem pelas condies econmicas de seus moradores. A
rea mais pobre a favela. A rea intermediria localiza-se nas ruas fronteirias do
bairro, aquelas pelas quais os nibus trafegam. L, a maioria das casas, que vo sendo
construdas cmodo a cmodo, possui quintal e, algumas, carro na garagem. comum a
construo de mais de uma habitao em cada terreno, havendo inclusive alguns
cortios que abrigam diversas famlias. nessa parte do bairro que se encontra a casa de
Ricardo. A rea onde os moradores tm melhores condies de vida localiza-se nas ruas
centrais do bairro. L as casas so maiores, as ruas so mais tranqilas
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do que na rea intermediria, O comrcio local centraliza-se em uma de suas ruas, onde
encontram-se um mercado, farmcia, padaria. nessa parte do Jardim que moram
Carlos e sua famlia.
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que no queria falar sobre sua histria escolar (pelo menos, no da forma direta como
abordamos o assunto). Na segunda, sua irm trouxe-nos a mensagem: O Carlos fugiu
quando viu que vocs chegaram. Fugiu porque no queria falar com vocs . Na terceira
visita, ningum veio atender porta. Os olhos de Carlos e sua me, que nos espiavam da
laje, deram o recado.
Parece que retomar a histria escolar, para Carlos, era retomar uma histria de
fracasso, excluso, sentimentos de incapacidade. Histria onde no aparecia o Carlos
sagaz, irnico, inteligente; o Carlos lder do grupo. Histria que seria melhor no
aparecer, no retomar.
Carlos no consegue negar-se verbalmente a participar da terceira etapa do trabalho
(como no consegue negar-se a assistir s aulas do CBC h 3 anos); sem poder falar,
Carlos baixa os olhos, no atende porta, foge. No pde falar, da mesma forma que
no pode dar sua opinio sobre a escola onde estuda: Isso eu tambm no posso falar
(primeira etapa da pesquisa, procedimento histria-desenho), Carlos nunca teve voz na
escola. Dos nossos encontros ele ainda pde fugir; da escola, no. obrigado a repetir
os mesmos programas curriculares h anos e a repetir todo ano a experincia de
conviver com crianas cada vez menores. E, como Carlos, h tantos meninos mudos e
com olhares eternamente desconfiados, como registram os rapazes da Escola de
Barbiana: O Gianni, por sua vez, sempre foi o mais velho entre os seus colegas de
turma. Quando est sozinho com eles, ainda tenta um bocado armar aos cgados, mas na
frente dos adultos nem abre o bico (Carta, 1982, p. 57).
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Mora com os pais e a irm mais nova numa pequena casa numa curva da avenida que
liga a Rodovia ao Jardim e segue em direo ao Sem-Terra, casa de quarto, sala,
cozinha, banheiro e o quartinho de ferramenta na laje, cada um construdo num
momento diferente, o que imprime um aspecto de falta de conjunto ao local. Na parede
da sala podem-se avistar dois retratos que contam um pouco a histria do filho mais
velho: Ricardo-beb sentado num banco de praa, Ricardo de beca e chapu na
formatura da Escola Municipal de Educao Infantil (T a pra prova que ele se form;
pra quem quiser v eu mostro, contou D. Irene, me de Ricardo).
D. Irene conta que, nos ltimos 15 anos, o bairro vem mudando muito: No tinha
escola, as ruas era tudo de terra e no passava nibus, s l na Raposo; faa chuva ou
faa sol, a gente tinha que ir l na Raposo, atravessar o morro pra pega nibus . Mas, se
as linhas de nibus que hoje servem ao Bairro representaram facilidades para os
moradores, ao mesmo tempo constituem uma das maiores preocupaes de D. Irene,
que relatou inmeros atropelamentos e acidentes na rua onde mora. Algumas casas
vizinhas s suas j foram parcialmente destrudas por caminhes e nibus
desgovernados: Eu sempre sonho que algum vai entra gritando aqui em casa, dizendo
que o Ricardo foi atropelado. S fico sossegada mesmo quando o Ricardo t dormindo,
dentro de casa . Longe de ser desvinculado da realidade, o sonho de D. Irene mostra a
insegurana em que vivem as pessoas das camadas populares e o temor que tm da
perda de tudo: os poucos bens, a casa, os filhos, a vida.
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D. Irene uma mulher to pequena e to franzina que parece nem caber tanta
braveza e fora dentro dela. A expresso normalmente sria, de quem j passou por
muita coisa na vida, s vezes deixa escapar um sorriso tambm pequeno, mas muito
expressivo. Ouvindo D. Irene, pode-se entender de onde vem essa feio sria: todo seu
relato poderia ser intitulado Manifesto contra o Desrespeito. Desrespeito que,
continuamente repetido e que no se pode combater, transforma-se em ameaa
constante vida de D. Irene e daqueles que, como ela, no tm assegurada a garantia de
seus direitos.
Desrespeito a que foi submetida em dois de seus partos, onde, por falhas dos mdicos,
dos enfermeiros, do hospital, enfim, do Servio Pblico, uma criana morreu e outra,
Rosemary, foi condenada a ter uma vida dependente: no anda, no fala, no coordena
os movimentos, deficiente mental.
Desrespeito a que foi submetida em um centro de reabilitao para deficientes, onde
participou de algumas reunies com pais de crianas em tratamento, sob a coordenao
de um profissional: Eu ficava gastando dinheiro com nibus, tempo (...) S ficava me
perguntando o que eu como, como minha casa, como que eu me visto, como tomo
banho, modo de dizer, n? Em que isso pode me ajuda?! .
Desrespeito a que foi submetida por uma psicloga: devido s inmeras reprovaes,
Ricardo (como a maioria das crianas que vo mal na escola) foi encaminhado a uma
psicloga, que afirmou que o menino no tinha nenhum problema e que ele repetia de
ano por outros motivos. Disse que quem deveria voltar para ser atendida seria D. Irene:
Eu achei muito estranho, mas acabei indo l mais duas vezes. Mas a psicloga s
ficava perguntando como eu me dava com o meu marido, como era com meu filho, se
eu batia ou no, como que era dentro da minha casa. Mas eu nem estudo! Como vai
quer trat de mim?! Como que eu posso t problema na escola?.
D. Irene foi parar numa psicloga sem nem saber por qu ou para qu. A reflexo que
faz a partir desse episdio deveria ser ouvida por todos aqueles professores que chegam
a encaminhar metade de sua classe aos Postos de Sade e por todos aqueles psiclogos
que recebem essa
161
162
Por trs dessa exigncia encontra-se o preconceito de que os pais dos alunos das
camadas populares no tm interesse na escolarizao dos filhos e, portanto, no
contribuiriam com a escola caso no fossem ameaados. O absurdo se intensifica
quando afirmam que a taxa arrecadada, cujo valor corresponde ao po e ao leite da
famlia, destina-se construo da Escola-Padro: a mentira deixa claro o desprezo
absoluto para com a clientela. O absurdo se perpetua na justificativa que o diretor
apresenta para a extorso: o Estado no liga pra educao, ento todos tm que
colaborar pra escola funcionar. A justificativa da taxa acaba por justificar o prprio
Estado (que deveria dar condies para que no existissem as taxas), o que contribui
para perpetuar a situao absurda da Educao.
Na Festa Junina, as professoras exigiram das crianas que levassem a comida e a
bebida da festa, determinando inclusive o que cada aluno deveria levar. D. Irene, com
sacrifcio, conseguiu comprar a lata de leo, o quilo de acar e o quilo de pipoca
destinados a Ricardo. Surpreendeu-se, porm, quando viu o filho voltar para casa no
meio da festa.
Deu duas, trs horas da tarde e ele voltou amarelinho.., O bichinho tava amarelo de
fome. Perguntei porque ele j tinha voltado e ele falou que tava com fome. (f! Mas
no tinha comida na escola, no t tendo festa? Ele respondeu: Mas pra comer tem que
pagai:.. Onde j se viu, a gente faz um sacrifcio pra mandar o que a escola pede, e
chegando l eles vendem o bolo ou o que voc mandou por um preo que voc s vezes
no consegue pagar Tudo bem se os pais tem que pagar pela comida. Mas no as
crianas!! As crianas que deram as coisas, a festa delas. Eles devia t o direito de
come
Exigncias de sacrifcios (doao de alimento ou dinheiro) para a realizao de
festas juninas parecem ser uma prtica comum nas escolas pblicas paulistanas. Patto
(1991), em sua pesquisa realizada em outra escola, j se refere a mecanismos dos quais
as crianas se utilizam para escapar s descabidas exigncias da escola: ... algumas
crianas faltavam s aulas na classe de Neide para fugir da cobrana em dinheiro para a
festa junina (p. 276).
163
Muitas vezes a professora que nutre tais preconceitos encontra-se numa situao scio-
econmica semelhante dos seus alunos, driblando a misria com a jornada tripla de
trabalho; geralmente tm como melhor (seno a nica) opo profissionalizante o
Magistrio; trabalham em condies precrias (salas de aula, material) etc. Utilizam-se
ento de mecanismos para marcar as diferenas entre elas e os alunos: no raro o
preconceito e o desprezo cumprem esse papel.
Segundo D. Irene, em uma reunio de pais, a professora insinuou que alguns deles no
alimentavam bem seus filhos, deixando-os com fome. Apenas uma me conseguiu
contest-la: Meu filho no passa fome, no!! A gente pobre, mas tem comida pra dar
pras crianas . A professora, ao acusar os pais, tenta estabelecer uma relao entre o
fracasso escolar das crianas e a falta de alimentao(6). Porm, h estudos (Moyss e
Lima, 1982) que demonstram que, geralmente, a desnutrio no explica o fracasso
escolar, e que por trs de tal teoria encontra-se a inteno de responsabilizar os pais e a
famlia do aluno pelo seu fracasso, eximindo a escola de qualquer responsabilidade.
Numa reunio onde todos ficam calados, impotentes frente opresso exercida pela
autoridade, a voz que manifesta o descontentamento de todos acaba escorraada. Foi o
que aconteceu com a me de uma criana, quando reclamou das freqentes faltas da
(6) Tal relao vem sendo largamente estabelecida a partir da dcada de setenta, no
apenas pelos agentes escolares, mas tambm por cientistas, meios de comunicao e a
sociedade como um todo.
164
Dentro desse cenrio atroz da escola pblica, que desvaloriza e desumaniza o professor
e despreza a clientela, quando surge algum que ouve com ateno e respeito o que os
pais tm a dizer, trata e ensina as crianas de forma digna, essa pessoa transforma-se em
merecedora de enorme gratido. o que acontece com a professora Vanda: Amo a
Vanda at corno um homem ama uma mulher Nem sei explicar por qu . D. Irene no
consegue explicar o porqu desse sentimento, mas a totalidade de seu relato acaba por
deixar claro: na relao que me e filho estabelecem com a professora Vanda existe o
respeito. D. Irene tambm no sabe como responder pergunta: por que s existe uma
professora Vanda na escola?
D. Irene percebe diversas mazelas da escola. Por vezes, reconhece o papel da escola
nas reprovaes de Ricardo, principalmente na figura da professora:
O Ricardo gostou de duas professoras at hoje: a Vanda e a do pr. A ele sempre
queria ir pra escola, fazia sempre lio, at acordava antes da hora. Com as outras
professoras ele chorava pra no t que ir Desde a 1 srie que ele chora.
165
Inteligente ele . Mas muito preguioso, vagabundo. Ele no t tendo aula desde
agosto por causa da greve, s teve uma semana, e no pegou nenhuma vez o caderno.
Essas falas de D. Irene apontam para um discurso ambguo (tal como definido por
Chau, 1981): nem totalmente lcido, nem totalmente alienado, encontra-se na fala da
maioria das mes quando se referem ao fracasso escolar de seus filhos.
166
Em um dos encontros, Ricardo tenta escrever Irineu e escreve Irineu. Todos riem
dele. Renan diz: T na 2 srie e no sabe nem escrever!. Ricardo tenta consertar o
erro, visivelmente desesperado:
Mas s troc o o pelo e e o u!. Continuam rindo. Ricardo se levanta e comea
a gritar: E o Balinha que s leva bilhete!. Renan fala: Eu s tiro nota azul, A, B e C.
Ricardo sai correndo atrs de Balinha. Depois fica andando de um lado para outro e
neste dia no desenha mais. O Ricardo que ensina os amigos a fazer uma mquina
fotogrfica de papel, que admirado pelos colegas, o repetente da turma, o que mal
sabe escrever. Seu desespero vem demonstrar os efeitos de sua histria de reprovaes
em sua subjetividade. De um momento a outro, Ricardo passa de admirvel a burro, de
grande a pequeno, de companheiro a agressivo.
Em outro encontro, as crianas foram convidadas a construir a maquete de uma escola.
Ricardo e Balinha construram-na juntos. A primeira coisa que Ricardo fez foi o porto
de grades, porto fechado, intransponvel, dando escola um aspecto de priso. J
Balinha fez a escola com um toldo cobrindo a entrada, cuja porta ficava aberta.
167
II. O Sem-Terra(7)
No caminho que leva do jardim ao Sem-Terra, lugar onde morava Nivnia, encontra-se
a Vila, bairro intermedirio entre a boa infra-estrutura do primeiro e a misria absoluta
do segundo. Procurvamos o endereo de Nivnia, que, segundo informaes da escola,
encontrava- se em uma das ruas deste bairro (mais tarde viemos a saber que o endereo
era de um tio da menina, nica ligao possvel entre o correio e a famlia de Nivnia,
entre a posse da cidadania e o noreconheciment0 da existncia dos sem-terra). Mas,
nesse bairro os nomes das ruas s so feitos para quem de fora (a Prefeitura - que
apenas deu os nomes - e os
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Nivnia tem 10 anos, grandes olhos arregalados que no conseguem se esconder atrs
das lentes dos culos baratos, corpo franzino, rabo-de- cavalo. Maranhense, veio h
cinco anos para So Paulo com a me, D. Antnia, e o irmo mais novo, Nivaniel,
encontrar com o pai, Sr. Nivaldo, que tinha vindo antes tentar a vida na cidade. Foi no
ano em que decorreu a pesquisa que a famlia se estabeleceu no Jardim dos
Trabalhadores, bairro do Sem-Terra (antes moravam na casa do irmo do Sr. Nivaldo,
na Vila). O dinheiro economizado nesses cinco anos foi suficiente para comprar um
pequeno terreno e trocar as tbuas do velho barraco de trs cmodos que nele se
encontrava. Mas no foi suficiente para conformar Nivnia, que se recusava a entrar na
nova casa e, chorando, dizia querer voltar para o Maranho.
Na falta de numerao, as novas tbuas do barraco, vermelhas, e o amontoado de lixo
nas proximidades servem como referncia para quem quer distinguir a casa de Nivnia
das demais. A energia eltrica chega casa de Nivnia da mesma maneira que s
incontveis casas do Sem-Terra: atravs do emaranhado de fios das mais variadas cores
e espessuras, atados a postes de madeira em forma de cruz, que partem de ligaes
clandestinas dos postes oficiais da Rua Paranaense, a ltima asfaltada, a penltima
nomeada, a que divide a Vila e o Sem-Terra.
Quando chove, o Sem-Terra adquire um aspecto desolador. A lama e o lixo misturam-
se e invadem as casas. Dentro e fora so a mesma coisa, vive-se dentro o mesmo
desconforto da sujeira e do cheiro da gua e do barro (Mello, 1986, p.84). Quando
chove, Nivnia vai para a escola carregada nas costas pelo pai, leva outro chinelo para
trocar. Nivnia no gosta de andar na lama. Parece que nasceu pra ser rica. No sei a
quem puxou, porque me no foi. E muito manhosa (D5. Antnia, me da menina).
a figura triste e inconformada de Nivnia que vai se delineando como porta-voz do
desejo da famlia de ter melhores condies de vida, desejo de voltar para o Maranho
de suas lembranas. J no primeiro encontro de Nivnia com uma das pesquisadoras, a
menina responde, quando indagada a respeito de sua morada: Eu moro no Maranho .
Depois deixa claro que seu endereo atual o Sem-Terra. Mostra-se ento o significado
de sua fala: para aquela famlia o Maranho ainda o lar; a precariedade que
encontraram na cidade de So Paulo rapidamente transformou-a num lugar de
passagem, numa estada provisria.
170
Nivnia conta a trajetria da famlia que saiu do Maranho em busca das mesmas
melhores condies de vida que agora anseiam encontrar na terra de onde partiram:
L foi onde eu nasci, eu gosto mais de l porque l mais ,nelho, l no tem perigo, l
no rua, l tem uni lugar que assim, n? A tem um quintal assim, d pra gente
brinc... Aqui muito perigoso, n? Meu pai falou que quando ele ir receber dinheiro,
ele vai sair embora daqui. Vai l pro Maranho .
Se por um lado o discurso nostlgico de Nivnia remete a uma idealizao do passado,
por outro mostra a dura realidade de um presente que no garante condies de uma
vida digna. Foi tambm o que observou Patto (1991) em sua convivncia com a me de
ngela, menina multi-repetente: O desejo de voltar para o norte, nem que seja por
alguns tempos, explcito, como se nesta volta pudesse resgatar o passado idealizado e
fazer uma pausa que a realimente para a vida desenraizada e solitria que leva em So
Paulo (p. 290).
D. Antnia fala do desempenho escolar da filha: Eu fico meio triste que a Nivnia
no passa de ano faz cinco anos. Nivnia no foi reprovada cinco vezes, mas sim duas;
cinco anos foi o tempo que passou desde que a famlia deixou o Maranho. Tempo que
acabou se configurando como um tempo que no progride, j que a vida em So Paulo
traz as mesmas mazelas da pobreza do lugar de origem. Na verdade, IY. Antnia fala de
duas reprovaes: a de Nivnia na escola, a da famlia na grande metrpole.
A me busca desesperadamente encontrar explicaes para as reprovaes da filha.
Confiando nos doutores em criana (mdicos, psiclogos, professores...), levou
Nivnia para fazer exames da cabea, um eletroencefalograma que no acusou
nenhuma anormalidade. No acreditando plenamente no resultado, solicitou um exame
mais minucioso, que foi negado pelo mdico, afirmando que o problema da menina era
psicolgico. D. Antnia passa ento para uma explicao que atribui o fracasso
escolar da filha preguia: O mdico disse que ela no tem nada. O remdio cabo de
vassoura.
Rapidamente, volta explicao psico-orgnica, ao fazer uma imitao grotesca de
uma criana anormal quando quer dizer como
171
Nivnia, como se tivesse sido convencida de que a filha assim (mesmo que s se
perceba o contrrio): boca semi-aberta, cabea inclinada, olhos mirando lugar nenhum,
catatonia. D. Antnia toma o discurso competente (Chau, 1981) como verdadeiro,
procura em sua filha caractersticas que possam comprov-lo e desautoriza por
completo a sua experincia de me: a imagem de Nivnia, gil e contente, pulando as
poas dgua enquanto caminhava com a me e as pesquisadoras difere, e muito, da
imagem que h instantes havia sido apresentada por D. Antnia. A menina, que na
escola desanimada, quietona (segundo sua professora), mostrou-se, no contexto
no-escolar, conversando com as pesquisadoras, extremamente viva, carinhosa e
curiosa:
Na casa de quem vocs j foram? Cs moram juntas? Quando vocs vm almo na
minha casa? Cs tm me? Ainda bem que eu tenho me!.
Nossa convivncia com Nivnia em sua casa no passou de uma visita. Sua famlia
mudou repentinamente para um bairro na periferia da Zona Sul da cidade, no deixando
o novo endereo nem com vizinhos, nem na escola. Desapareceram na cidade grande na
tentativa de buscar a concretizao do desejo d uma vida melhor, de encontrar o
Maranho com que tanto sonham, num canto de So Paulo.
III. A COHAB
Pegando uma estrada de terra a partir do Sem-Terra, ou percorrendo alguns
quilmetros alm da entrada do Jardim pela rodovia, chega-se COHAB, onde mora
Rildo. Pertencente ao municpio de Osasco, compe-se de um conglomerado de casas
no centro, cercado pelos dois lados de prdios de trs andares idnticos.
No h rvores na COHAB. As casas parecem ser as nicas coisas plantadas nos
terrenos (Mello, 1988, p. 70). A cor predominante o cinza do asfalto, dos blocos das
casas, do reboque das paredes dos prdios. A sombra s se faz no incio da manh ou no
final da tarde, sombra de prdios. Nos horrios em que o sol est a pino difcil
encontrar pessoas andando pelas ruas. O ar quente, denso,
172
Rildo tem 12 anos, alto, magro, tem os olhos castanho-claros meigos e expressivos.
Vive na COHAB h 5 anos e h 2 estuda na Escola Estadual. Mora com a me, D.
Marlene, o pai, que tambm se chama Rildo, e alguns dos irmos: Romualdo, de 15
anos; Isabel, de 13 anos; Renato, de li anos; Misleine, de 9 anos. Tem ainda uma irm,
j casada e com filhos, que mora em Diadema, e um irmo que mora no Recife, de onde
migraram seus pais.
No pequeno contato que tivemos com Rildo fora da escola, ele se mostrou bastante
carinhoso com seus familiares, da mesma forma como se apresentava no grupo, onde
gostava muito de desenhar e suas produes eram criativas, adaptando o material
conforme suas necessidades.
Na primeira vez que fomos COHAB, a casa de Rildo se destacava muito das demais.
No pelo quarto-sala com a cama de casal e o beliche, onde sete dormem, sete comem,
passam o tempo, mas pela descrio que vizinhos faziam: urna casa com muro alto,
porto alto e bastante caco de vidro no muro. A primeira impresso a respeito da casa
foi a de uma espcie de presdio, com seu muro mais alto do que o de todas as casas
vizinhas, o porto vermelho de ferro que no deixava nenhuma fresta onde fosse
possvel avistar o interior da casa, da mesma forma
173
que no era possvel avistar a rua de dentro do pequeno quintal. Trancar-se dentro de
casa, erguer muros, no se aproximar dos vizinhos foram as formas que a famlia,
representada por D. Marlene, encontrou para tentar proteger-se da violncia que
permeia a vida na pobreza. Mas os muros parecem no ser suficientes, j que a violncia
e a marginalidade podem surgir dentro de casa, pois a misria tem na ilegalidade uma de
suas alternativas. E o que ocorre, atravs da figura do filho Romualdo...
Aqui tem gente boa, mas a maior parte ruim, nunca d pra saber Porque o
Romualdo, ele confiou, ele tinha uns amigos que ele achou que eram legais. Mas
levaram ele prum caminho que c precisava ver! Foi s Deus pra tirar ele desse
caminho.(...) Ele passava o dia inteiro fumando maconha, cheirando cola, no queria
mais ir pra escola saiu da escola, parou... Foi pra rua, durmia na rua. At roub,
roubava. Ele brigava, apanhava da polcia, da polcia e de quem ele roubava. Eu pedia:
Romualdo, no faz isso! No sabia se tinha raiva ou pena dele. Tinha vezes que ele
passava vrios dia na rua e chegava todo cheio de sangue, todo machucado de ter
apanhado da polcia e com a roupa assim, de mendigo, toda estrupiada e suja. At pedir
esmola ele j pediu (D. Marlene).
...atravs do estigma de delinqncia que Rildo e Isabel carregam na escola...
O Renato sim, o tempo todo agitado, bagunceiro. No estranho, no fica uma hora
quieto e outra hora agitado. E sempre de um jeito. No acho que ele que rouba. O
Rildo sim, que tem unia cara de santinho (professora de Rildo e Renato).
A Isabel no burra, sempre tirou nota azul, nunca nota vermelha, sempre foi tima
aluna, uma das melhores, e elas (as inspetoras da escola) ficam enchendo o saco,
dizendo que ela ladrona (D. Marlene).
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Quando fala sobre a Casa de Itanham, D. Marlene parece perder- se no sonho, divaga
e conta como conseguir realiz-lo: J tenho cano, tanque, pia. Tamo comprando
mvel novo pra casa, ento os velho posso guard pra casa de Itanham, invs de dar
pra vizinha de nove filhos. Dinheiro pra construir eu j tenho. S que tamo pagando os
mveis novos, trocamo agora o som. D. Marlene v a Casa de Itanham pronta e nesse
momento parece esquecer-se que na casa da COHAB a comida racionada e nem
geladeira tem.
Se o sonho da Casa de Itanham aparece como redeno para a famlia, a escolarizao
dos filhos surge como promessa de um futuro um pouco melhor que o dos pais. D.
Marlene quer que os filhos estudem pra poder trabalhar e se manter, apesar do
sacrifcio que mant-los estudando: h que se comprar mala, material, fardamento.
Sr. Rildo traz o dinheiro para as despesas do dia-a -dia, D. Marlene arruma o dinheiro
para manter os filhos na escola (pblica e gratuita...): T fazendo uns bico desde j pra
conseguir o dinheiro (...) Tem muita me que tira os filho da escola, mas eu acho que
tem que fic. A Isabel j quis sair da escola, ir trabalh. Eu e o meu marido no
deixamo, muito importante estud .
Mas a vontade dos pais no basta para garantir a escolarizao dos filhos. Aps
inmeras reprovaes, Romualdo sai da escola: Porque ele ficou na escola at o 22ano,
no passou, tudo, quis sair da escola. Mas pelo menos ele j sabe, j consegue assin o
nome dele, ento d pra assin uma ficha pra conseguir um emprego(8). Os anos de
escolarizao de Romualdo s fizeram render a assinatura, a averso a tudo o que
escolar, a estigmatizao e o sentimento de incapacidade.
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(8) Muitas vezes, nas falas de D. Marlene, a histria de Romualdo parece se sobrepor
histria de Rildo. Na verdade, ao falar de Romualdo, D Marlene est contando a saga
escolar de todos os seus filhos,j que as marcas deixadas pelo percurso de Romualdo na
Escola Estadual tambm marcam, de forma decisiva, a vida escolar de Rildo, Renato,
Isabel e Misleine.
(9) Este dado permite formular a hiptese segundo a qual, nas escolas pblicas, alm do
estigma individual, ocorre com freqncia o que podemos chamar de estigma
familiar, que merece maior investigao.
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D. Marlene percebe que os filhos que surgem nas conversas com a diretora, nas
reunies de pais, nos bilhetes, no correspondem aos filhos com quem convive
diariamente. Revolta-se, fica indignada, mas apenas com o guarda que ganha um
salrio que nem d pra comprar comida que consegue discutir. Frente s autoridades
escolares permanece calada, humilhada, e aconselha os filhos a fazerem o mesmo:
Eu j falei com eles pra eles no se meterem. E assim ocorre com milhares de
brasileiros, que tomam seus direitos como favores e agradecem por poderem ficar na
fila do mdico ou da matrcula.
D. Marlene no sabe ao certo as causas das reprovaes dos filhos, mas desconfia que
a escola tenha ao menos um parcela da responsabilidade: A Misleine repetiu s uma
vez. Eu no sei se foi culpa minha, que no dava tempo... que no ficava em cima para
ela fazer lio e ela era muito pequena, ou se foi a professora que no sabia ensinar
mesmo
A me, ento, muda os filhos sucessivamente de escola (foi assim h dois anos, ser
assim no prximo): Vou mud eles pruma escola em Pinheiros (....) vou bot eles
mais pra frente . O duplo sentido da frase de D. Marlene revela o desejo desesperado
de que a mudana da escola dos filhos possa tambm bot eles mais pra frente, fazer
com que progridam na escola e na vida; esperana que se renova a cada mudana de
escola. Mas, assim como a Casa de Itanham, a escola mais pra frente vem se
mostrando inacessvel famlia de Rildo, aos moradores da COHAB, do Sem-Terra, do
Jardim.
Concluindo...
Depois da convivncia com quatro crianas multi-repetentes, o que se apresentou para
ns foram crianas muito diferentes daquelas descritas pelas professoras: encontramos
crianas inteligentes, criativas, curiosas, geis, com capacidade reflexiva. Esses
resultados vm a corroborar dados obtidos em pesquisas anteriores com outras crianas
e em outras unidades escolares (Patto, 1990; Machado, 1991; Freller, 1993). Se cada
uma dessas pesquisas qualitativas restringiu-se a um pequeno nmero de estudos de
caso, voltados para a especificidade de situaes e de pessoas, e entendendo que essa
particularidade
178
reveladora do geral, a somatria dos resultados de todas elas vem a ratificar cada uma.
Em nosso estudo, encontramos: um Carlos capaz de exercer liderana, que se utiliza
freqentemente de ironias, demonstrando sua capacidade reflexiva e inteligncia. Nos
encontros ldicos na escola era ele quem, muitas vezes, pontuava as falas, quem
gerenciava as brincadeiras;
um Ricardo gil, com boa coordenao motora, capaz de reproduzir em uma maquete
detalhes da escola onde estuda, o que mostra inteligncia, boa memria e raciocnio
espacial; em seu grupo de amigos era o chefe, um amigo brincalho, companheiro e
sorridente, diferente da imagem triste delineada por sua professora;
uma Nivnia gil, atenta, curiosa, alm de muito carinhosa; desmente a fala de sua
professora de que teria um lado meio esquizofrnico;
um Rildo cujos desenhos demonstram criatividade, um menino muito meigo e
carinhoso, o oposto da imagem ameaadora que sua professora lhe atribua: Quando
chamo a ateno dele, pela mnima coisa, tem uma veia no pescoo que salta (...) D pra
ver nos desenhos e na letra quando ele est nervoso.
A presente pesquisa pde registrar as implicaes do fracasso escolar na subjetividade
das crianas reprovadas e de suas famlias, mostrando que tais implicaes ultrapassam
as cadernetas escolares e os muros da escola.
Nas crianas, as conseqncias do fracasso escolar apareceram com maior ou menor
nitidez: Ricardo quieto se comparado a seus amigos da rua; Carlos desconfiado;
Rildo muito mais tmido que seus irmos, que no tm no currculo tantas
reprovaes; Nvnia aparece quase sempre como uma figura triste. A auto-imagem de
todos profundamente negativa: reconhecem-se enquanto burros, incapazes,
marginais, mas ainda conservam a vivacidade e o desejo do sucesso escolar...
O caso de Ricardo nos parece exemplar. Depois de quatro reprovaes, qualquer erro
na escrita pode se tornar fatal: o lder admirado pela turma, aquele que ensina os colegas
a fazerem brinquedos de papel, d lugar a um menino ridicularizado pelos mesmos
colegas, que no teria nada a ensinar. Depois de quatro reprovaes perde-se o
179
BIBLIOGRAFIA
BUARQUE DE HOLANDA, F. At o fim. In: Chico Buarque, letra e msica. So
Paulo, Cia. das Letras, 1989.
CARTA a uma professora, pelos rapazes da escola de Barbiana. Lisboa, Presena, 1982.
CHAUI, M.S. Cultura e democracia. So Paulo, Moderna, 1981.
FRELLER, CC. Crianas portadoras de queixa escolar: um enfoque Winnicotiano. So
Paulo, 1993. Dissertao de mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de So
Paulo.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
180
181
183
Entendo que, para abordar este tema, passamos obrigatoriamente por uma anlise da
maternagem contempornea, entendida no bojo de sua histria.
Mulher e feminismo
por demais conhecida a caracterizao da questo do gnero na diviso tradicional
dos papis, dentro do imaginrio social das sociedades ocidentais: ao homem, o
universo do pblico, o trabalho remunerado, o papel de provedor econmico da famlia,
a racionalidade, a fibra. mulher, o universo do privado, o trabalho no-remunerado do
lar, o cuidado com os filhos, a sensibilidade, a fragilidade.
O feminismo vem a subverter esta ordem. Legitima que a mulher exera papis antes
vistos como exclusivamente masculinos. Embora esta mudana venha de longe e
tenhamos mulheres pioneiras j nos tempos de nossas bisavs e mesmo antes,
observamos uma mudana de uma magnitude e extenso sem precedentes ocorrida da
ltima gerao para a atual, principalmente se falarmos das camadas mdias e altas da
populao. A percepo da acelerao brutal desta mudana nos ltimos tempos
fundamental para nosso tema.
Nas camadas de baixo poder aquisitivo, existem diferenas, pois nestas as mulheres
sempre estiveram bem mais presentes no mercado de trabalho, j que as necessidades
econmicas sempre as pressionaram a obter remunerao. fato conhecido que os
primeiros braos na nascente indstria paulistana eram femininos (e infantis); as
empregadas domsticas so uma categoria de trabalhadoras bastante antiga, existem
desde o fim da escravatura. No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na
lavoura, basta ver qualquer ilustrao de colheitas de caf ou cana-de-acar para
constat-lo. Mas esta presena sempre se deu apesar do que se passava no nvel do
imaginrio social, que reprovava e cobria de vergonha tal prtica, ao invs de valoriz-
la, como passa a poder acontecer a partir do advento do feminismo.
A reorganizao do universo do pblico, mormente do mundo do trabalho fora de casa,
no vem acompanhada de uma mudana que a corresponda tal e qual no universo do
privado, no lar e na famlia. A
184
Filhos contemporneos
Neste contexto, reinveno uma grande palavra. Reinventar a mulher, reinventar o
amor, reinventar a maternagem, reinventar os filhos. A educao para a autonomia
ganha novo significado e a relao me filho(s) assume muito mais um sentido de
parceria.
As idias de frmulas para orientar os filhos nos estudos e tambm na vida (se que
frmulas podem realmente ajudar, j que resvalam
185
186
H que se dizer que estamos em pleno meio desta nova experincia e os tropeos so
muitos. Esto-se tornando comuns os relatos da produo de crianas tiranas e rebeldes,
desrespeitosas com relao aos mais velhos. Isto voz corrente entre os pais e
professores. E de se pensar se esta parceria no tem perdido o horizonte de que h uma
diferenciao de papis entre o adulto e a criana e que autonomia no fazer o que se
quer (confuso natural para o pensamento egocntrico caracterstico da criana no
no sentido moral, mas no evolutivo, como uma fase normal e necessria no
desenvolvimento do ser humano).
Consideraes finais
Pensando nas escolas, fundamental que estas possam adequar seus discursos aos
novos tempos, sob o risco de estarem desvalorizando as mes trabalhadoras diante de si
mesmas e de seus filhos, dentre outros riscos. Tenho trabalhado j h longos anos
(desde 1981) junto a escolas pblicas, percebo que ainda muito forte a presena do
discurso que tem como modelo subjacente a diviso tradicional de papis entre homens
e mulheres, supondo uma me que no trabalha fora ou o faz meio-perodo, sempre
tendo o trabalho como secundrio. Supe ainda uma famlia estruturada com pai, me e
filhos que vivem juntos, considerando como desviantes indesejveis os que no
obedecem a estes padres.
Mitos como mes que no respondem adequadamente s convocaes da escola
(reunies gerais e particulares, encaminhamentos) = mes desinteressadas, ou pais
separados = famlia desestruturada = problemas psicolgicos povoam o universo
escolar.
Entendo que estes, assim como muitos outros que vm sendo apontados na literatura
especializada (Patto, 1990 e Souza et al.,1994), como criana pobre desnutrida, por
isso no aprende, crianas pobres tm dficit cognitivo etc., fazem parte de um
arsenal imaginrio que vem culpar as crianas pobres e suas famlias pelo fracasso
escolar, lanando uma cortina de fumaa sobre os fatores de outra natureza que vm a
determin-lo, tais como o sistemtico uso eleitoreiro da questo da Educao no pas e
efetivo abandono poltico e econmico das
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BIBLIOGRAFIA
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