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Psicologia Escolar em Busca de Novos Rumos

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Psicologia Escolar:

Em Busca de Novos Rumos


MACHADO, Adriana Marcondes; SOUZA, Marilene Proena Rebello de (Org.)
Psicologia escolar: em busca de novos rumos. So Paulo: Casa do Psiclogo, 1997.
NDICE
- Prefcio 7
Maria Helena Souza Patto

- Introduo 13
Marilene Proena Rabello de Souza
Adriana Marcondes Machado

- 1 A queixa escolar e o predomnio de uma viso de mundo 17


Marilene Proena Rebello de Souza
- 2 As crianas excludas da escola: um alerta para a Psicologia 35
Marilene Proena Rebello de Souza
Adriana Marcondes Machado
- 3 O que toca /a Psicologia Escolar 51
Maria Cristina Machado Kupfer
- 4 Crianas portadoras de queixa escolar: reflexes sobre o atendimento psicolgico 63
Cintia Copit Freller
- 5 Interveno psicolgica em creche/pr-escola 79
Yara Sayo e Renata L. Guarido
- 6 Relato de uma interveno na Escola Pblica 87
Adriana Marcondes Machado
- 7 Professora desesperada procura psicloga para classe indisciplinada 101
Beatriz de Paula Souza

05

- 8 Pr-escola teraputica Lugar de Vida: um dispositivo para o tratamento de crianas


com distrbios globais do desenvolvimento 111
Maria Cristina Machado Kupfer
- 9 Grupos de crianas com queixa escolar: um estudo de caso 121
Cintia Copit Freller
- 10 As contribuies dos estudos etnogrficos na compreenso do fracasso escolar no
Brasil 137
Marilene Proena Rebello de Souza
- 11 Para alm dos muros da escola: as repercusses do fracasso escolar na vida de
crianas reprovadas 153
Jacqueline Kalmus e Renata Paparelli
- 12 Mes contemporneas e a orientao dos filhos para a escola 183
Beatriz de Paula Souza
06

PREFCIO

Na dcada de 60, quando se formaram as primeiras turmas de psiclogos na


Universidade de So Paulo, a disciplina Psicologia Escolar e Problemas de
Aprendizagem, embora j fizesse parte do currculo mnimo dos cursos de graduao
em Psicologia criados h pouco, estava longe da identidade que foi assumindo no
decorrer das dcadas de 70 e 80. Dois fatos aparentemente sem importncia marcavam a
sua existncia naquele perodo: em primeiro lugar, uma preposio lhe dava um carter
inteiramente diverso do que tem hoje ela se chamava Psicologia do Escolar e
Problemas de Aprendizagem, numa indicao clara de que o foco da ateno era o
aluno; em segundo lugar, era ministrada por todos os docentes da Cadeira de Psicologia
Educacional, que examinavam os problemas de aprendizagem escolar a partir de suas
especialidades: a psicologia do desenvolvimento infantil, a psicologia do excepcional, a
psicologia diferencial, a psicologia da aprendizagem, os testes e medidas. Naquela
poca, j estava em pauta o tema das dificuldades de aprendizagem da leitura e da
escrita, vistas sobretudo do prisma das deficincias intelectuais, sensoriais ou dos
distrbios neurolgicos evolutivos que causariam problemas de lateralidade e dislexia,
ficando para a Cadeira de Psicologia Clnica a tarefa de olh-los do ngulo dos
distrbios afetivo-emocionais. Neste contexto, entender as dificuldades escolares era
sinnimo, para os que praticavam a psicologia educacional, de medir capacidades e
habilidades, o que fazia dos testes ferramentas imprescindveis ao escolar dos
psiclogos.
O desejo de criao de um Servio de Psicologia Escolar, por sua Vez, tambm
bastante antigo. Herdeiros da vocao que presidiu a prpria constituio da Psicologia
no sculo passado, os professores da Cadeira participavam da crena liberal de que a
sociedade de classes seria justa se cada um ocupasse o devido lugar, em funo de suas
capacidades pessoais, projeto que tinha na identificao dos mais e dos menos aptos
escolarizao uma pea fundamental. De outro lado, a

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criao do curso de Psicologia trouxe a necessidade do cumprimento, pelos alunos, de


horas de estgio para a obteno do diploma de psiclogo. Foi assim que, no fim dos
anos 60, um grupo de docentes da ainda Cadeira de Psicologia Educacional, liderados
pela professora Maria Jos de Barros F. de Aguirre, instalou-se numa sala do Grupo
Escolar Alberto Torres, vizinho Cidade Universitria, para a qual foram transferidos
depois que a extrema-direita expulsou a USP do prdio da rua Maria Antonia.
Embora curta, essa experincia foi marcante. Olhando-a de longe, percebo agora a
semelhana com as atividades desenvolvidas, desde 1914, no Laboratrio de Pedagogia
Experimental, de Ugo Pizzoli, anexo Escola Normal de So Paulo, e que algumas
fotos guardaram para a posteridade. Tal como ocorria no Gabinete de Psychologia
Pedaggica deste Laboratrio, usavam-se as crianas para pr no mais as normalistas,
mas agora, estudantes de Psicologia em contato com os instrumentos de medida da
cincia psicolgica, que deixaram de ser os aparelhos de medidas psicofsicas para se
transformarem em testes de inteligncia e de habilidades especficas, semelhana do
que se passava no Laboratrio de Psicologia Educacional de Noemy da Silveira
Rudolfer, desde os anos 30, no mesmo prdio imponente que abrigara o professor
italiano. Eram os docentes mais antigos da Cadeira de Psicologia Educacional dando
continuidade s concepes de Psicologia de seus mestres. Embora avaliar as crianas
com problemas de aprendizagem tambm fizesse parte dos planos, mal se chegou a
faze-lo, pois veio a reforma universitria que nos transformou em Instituto de Psicologia
e absorveu-nos momentaneamente em outras tarefas.
Ao longo dos anos 70, a idia de criar o Servio voltou a ser recorrente. Chegamos a
redigir um anteprojeto, de cujos termos no me lembro, a no ser da deciso de
privilegiar o trabalho em escolas pblicas de primeiro grau. De qualquer forma, aquela
dcada foi decisiva na redefinio dos objetivos da Psicologia Escolar que alguns
docentes do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento

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e da Personalidade certamente lideraram. Os tempos eram de ditadura militar, cuja


brutalidade alimentou a resistncia, ainda que surda. Enquanto alguns professores de
formao comportamental deste Departamento aderiram de vez ao tecnicismo que
dominou o perodo e passaram a difundir a instruo programada (nesta poca, atribua-
se a Skinner e no a Piaget a misso de salvar a escola pblica brasileira) e a
modificao do comportamento das crianas desviantes, Marlene Guirado e eu
somamos com as teorias crtico-reprodutivistas que comeavam a circular (primeiro
Althusser, pouco depois Bourdieu). Ao trazerem luz o papel ideolgico, domesticador
e excludente da Escola, estes autores no s nos alertaram para uma possvel
contribuio da Psicologia manuteno da ordem social flagrantemente injusta que
vigorava no pas, como tambm mudaram a maneira como concebamos as dificuldades
de aprendizagem de grande parte das crianas das classes populares: o foco deixava
definitivamente de ser o aluno para ser a instituio. Da at o encontro com a
Psicologia Institucional foi s uma questo de tempo.
O problema dos estgios continuava a exigir soluo. Desde a Psicologia do Escolar,
ministrada por vrios professores sem nenhuma atividade de estgio, at a criao do
Servio de Psicologia Escolar, com as caractersticas de hoje, houve vrias etapas
sucessivamente superadas: no incio, os prprios alunos encarregavam-se de buscar uma
escola onde pudessem fazer algum tipo de contato com a vida escolar; num segundo
momento, fizemos um contrato com o Departamento de Assistncia ao Escolar da
Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, mediante o qual fornecamos
caracterizaes gerais de unidades escolares em troca do acesso de nossos alunos s
escolas estudadas. Embora a convivncia com a realidade escolar tenha se ampliado e se
tornado mais proveitosa para os estudantes de Psicologia nessa etapa, nossa insatisfao
com o uso meramente burocrtico dos dados que oferecamos Secretaria de Educao
pedia outras solues; numa terceira fase, Ronilda Ribeiro, Ana Maria Curto Rodrigues
e eu percebemos que s poderamos desenvolver um trabalho mais conseqente,
duradouro e tico se dssemos incio ao atendimento efetivo de umas poucas unidades
escolares, nas quais os alunos do curso de graduao em Psicologia realizassem a cada
ano o seu estgio, sem que sua passagem necessariamente transitria pela escola
implicasse em descontinuidade ou trmino dos trabalhos, o que vinha tornando, com

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razo, o pessoal docente e administrativo das escolas cada vez mais refratrio presena
de estagirios. Dizendo de outro modo, um dos papis da Universidade a prestao
de servios comunidade poderia ser mais eficientemente cumprido se crissemos
frentes de trabalho, postos avanados de ao dos docentes encarregados no IP-USP do
conjunto de disciplinas relativas Psicologia aplicada escola. Mas ramos trs, com
vrias outras atividades no Departamento, e os alunos, setenta a cada ano letivo. Era
preciso juntar a ns outros psiclogos que possibilitassem a abertura desse novo espao
de teoria e prtica: ento que se forma o grupo que hoje traz a pblico alguns
resultados das experincias e reflexes realizadas no Servio de Psicologia Escolar nos
ltimos dez anos.
Adriana Marcondes Machado, Beatriz de Paula Souza, Cintia C. Freller e Yara Sayo
so, para a burocracia institucional, tcnicas de apoio ao ensino e pesquisa. Na
verdade, elas so muito mais que isso: jovens e capazes, poderiam estar comodamente
instaladas em seus consultrios particulares, mas escolheram, apesar da m
remunerao, a militncia do trabalho em escolas pblicas situadas nos bairros pobres
da cidade de So Paulo. Maria Cristina Machado Kupfer e Marilene Proena Rebello de
Souza, embora na categoria um pouco menos desconfortvel de docentes, no aceitaram
o ensino rotineiro e a produo acadmica quantitativa, preferindo o desafio da
interveno numa escola pblica maltratada e da criao de propostas profissionais
inovadoras.
Todas elas conhecem a fundo a realidade das escolas para o povo, sucateadas nos
pases latino-americanos; todas elas sabem que s possvel entender o que nelas se
passa referindo-as realidade social que as inclui; todas elas esto cientes dos limites
impostos pelas condies histricas atuais a qualquer projeto transformador da escola;
no entanto, mesmo sabendo que a Psicologia no tem o poder onipotente de fazer das
escolas um lugar de igualdade e liberdade numa sociedade congenitamente desigual,
opressora e excludente, todas elas lidam com maturidade com o inevitvel sentimento
de impotncia e permanecem num campo cheio de percalos.

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Embora de extrao terica diversa e embora incidam sobre diferentes segmentos do


universo escolar pblico, todos os artigos aqui reunidos tm denominadores comuns:
todos orientam-se por um srio compromisso com a melhoria da qualidade da escola
que se oferece s crianas das classes populares; todos esto voltados para a trama
institucional quando se trata de entender os seus sujeitos: todos superam, portanto, a via
estreita e tradicional do diagnstico e tratamento de desajustados; todos acreditam
explcita ou implicitamente que todas as crianas so capazes de aprender; todos
oferecem sugestes a psiclogos aflitos que se perguntam o que fazer depois de
criticado o modelo mdico.
A partir da percepo do que existe de repetio, de sempre o mesmo, de estereotipia,
de cristalizao (esta uma palavra-chave presente em todos eles) nas instituies
escolares estado de coisas que os psiclogos tm ajudado a perpetuar com suas
prticas no-crticas , as autoras se propem a colaborar com a restaurao ou o
fortalecimento do movimento, da criao, da vitalizao na qual predomina a
estagnao e a morte. Marilene e Adriana, baseadas em Deleuze, Foucault, Ezpeleta e
Rockwell, falam em intensificar a problematizao entre os sujeitos escolares,
inclusive as crianas, mesmo que estejam nas classes especiais; Beatriz parte de Bieger
e Pichon-Rivire para enfatizar o rompimento de discursos institucionalmente
cristalizados; Cintia sublinha, com base em Winnicott, a via contrria da paralisia e
estereotipia; Yara e sua colega de trabalho na creche, Renata Guarido, objetivam, a
partir da psicologia institucional de linha francesa e argentina, a circulao dos
discursos presentes na instituio, de forma a encontrar os significados do que acontece
em seu interior; Cristina vale-se de Lacan para propor a oxigenao das instituies
pela promoo da circulao discursiva, sem a qual a instituio atrofia-se. Mais
direta ou mais remota, a Psicanlise marca presena em todas as propostas.
Alm do relato de intervenes que vem realizando e das reflexes que elas suscitam,
o grupo decidiu incluir nesta publicao um captulo sobre mtodo de pesquisa e o
relato de uma investigao realizada por duas jovens alunas do curso de graduao na
poca Jaqueline Kalmus e Renata Paparelli , que elegeram como objeto de ateno
um aspecto to importante quanto desconsiderado pelos que pesquisam
burocraticamente o problema do fracasso escolar: as marcas deixadas

11

pela escola em crianas s quais foi vedada uma experincia escolar bem-sucedida.
Cristina Kupfer resume bem o que concluo ser a linha atual do trabalho desenvolvido
no Servio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP: Os discursos
institucionais tendem a produzir repeties, mesmice, na tentativa de preservar o igual e
garantir sua permanncia. Contra isso, emergem vez por outra falas de sujeitos, que
buscam operar rachaduras no que est cristalizado. exatamente como auxiliar de
produo de tais emergncias que um psiclogo pode encontrar o seu lugar. Em outras
palavras, as psiclogas aqui reunidas convidam os seus colegas a criarem, nas
instituies em que atuam, condies para que se mantenham acesos a capacidade de
pensar e o desejo de dignidade numa sociedade que conspira o tempo todo contra isso.
Maria Helena Souza Patto
So Paulo, abril de 1995
INTRODUO

Este livro apresenta as principais reflexes e aes levadas a efeito pelo grupo de
trabalho do Servio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de
So Paulo.
Desde sua criao, o Servio de Psicologia Escolar enfrenta dois grandes desafios:
oferecer estgios supervisionados aos alunos de Graduao em Psicologia de forma
que as atividades prticas contribuam para as instituies escolares e propor
alternativas de atuao psicolgica, levando em conta uma concepo crtica tanto em
relao escola quanto aos instrumentos de avaliao tradicionais em Psicologia.
Os captulos apresentados representam alguns dos grandes desafios colocados hoje ao
psiclogo. Aps uma dcada de crticas Cincia Positivista, que espao os
conhecimentos psicolgicos podem ocupar no campo da educao escolar? Que
contribuies o conjunto do conhecimento acumulado na rea pode dar s crianas e aos
professores das escolas pblicas brasileiras? Como (re)interpretar a subjetividade
presente nas prticas educativas luz da Psicologia Institucional, da Psicanlise e da
Antropologia Social?
Essas questes so objeto de discusso dos primeiros artigos A queixa escolar e o
predomnio de uma viso de mundo, As crianas excludas da escola: um alerta para a
Psicologia e O que toca /a Psicologia Escolar.
Tais anlises vm acompanhadas de questionamentos profundos referentes aos
instrumentos psicolgicos de avaliao tradicionalmente utilizados pelos psiclogos
frente queixa escolar. O artigo intitulado Crianas portadoras de queixa escolar:
reflexes sobre o atendimento psicolgico discute o papel dos psicodiagnsticos e a
compreenso hegemnica de interpretao e encaminhamento de crianas que
apresentam dificuldades no processo de escolarizao.
As crticas aos instrumentos utilizados pela Psicologia para a Compreenso da queixa
escolar e a convivncia diria com as crianas nas escolas pblicas perifricas, seus pais
e professores constituem um Corpo de conhecimento visando algumas alternativas de
trabalhos de
13

parceria com os educadores. Partindo das expectativas, representaes, relatos e cenas


do dia-a-dia escolar, os psiclogos apresentam cinco experincias distintas de
interveno: em pr-escola e creche atravs do captulo Interveno psicolgica em
creche! pr-escola; junto a crianas de uma classe especial Relato de uma interveno
na Escola Pblica; com classes de primeira quarta sries com problemas
disciplinares, intitulado Professora desesperada procura psicloga para classe
indisciplinada; Pr-escola teraputica Lugar de vida: um dispositivo para o tratamento
de crianas com distrbios globais do desenvolvimento, referente s crianas com
problemas emocionais graves, geralmente excludas do espao pedaggico; e por fim
com pequenos grupos de crianas com histrias de multi-repetncia no captulo Grupos
de crianas com queixa escolar: um estudo de caso.
Consideramos fundamental dedicar, neste volume, um espao de reflexo sobre o
importante papel desempenhado pelas pesquisas na rea, particularmente as de
abordagem etnogrfica. As pesquisas etnogrficas em Psicologia Escolar e Educao,
medida que descrevem e analisam os processos e mecanismos que constituem a vida
diria da escola, muito tm contribudo para repensar as causas do fracasso escolar no
Brasil e as prticas psicolgicas. Tratam-se dos captulos As contribuies dos estudos
etnogrficos na compreenso do fracasso escolar no Brasil e Para alm dos muros da
escola: as repercusses do fracasso escolar na vida de crianas reprovadas, este ltimo
relatando um estudo de caso de quatro crianas com histrias de repetncia no Ciclo
Bsico de uma Escola Pblica Estadual Paulista.
Finalizando este livro, encontra-se o captulo Mes Contemporneas e a Orientao
dos Filhos para a Escola, que discute o novo lugar da mulher no processo de
educao formal numa sociedade de classes.
Sem dvida, um prazer muito grande podermos organizar em um nico nmero as
produes de um grupo de trabalho e outras que dele derivam. Ao faz-lo, procuramos
dar conta de vrias abordagens da prtica psicolgica, explicitando a complexidade de
relaes presentes no processo de escolarizao. Consideramos que este um momento
de crtica e de busca de alternativas para o resgate da subjetividade no contexto social-
histrico em que estamos inseridos. Gostaramos, finalizando esta apresentao, de
agradecer a todos aqueles
14

que muito fizeram para que pudssemos socializar nossas experincias e reflexes na
rea em especial Profa. Maria Helena Souza Patto, pela leitura atenta e critica de
nossos artigos.
Marilene Proena Rebello de Zouza e Adriana Marcondes Machado
15

A QUEIXA ESCOLAR E O PREDOMNIO


DE UMA VISO DE MUNDO
Marilene Proena Rebello de Souza
O fracasso da educao escolar no Brasil um fato incontestvel. Embora a dcada de
80 seja marcada pelo aumento do nmero de vagas nas escolas, garantindo o acesso de
grande parte da populao da zona urbana, o mesmo no se pode dizer quanto aos
ndices relativos qualidade do ensino oferecido populao. Convive-se com altos
ndices de excluso escolar (evaso e repetncia)(1) baixa remunerao aos
professores(2), ausncia de polticas de formao em servio, baixos ndices de
investimento em educao pblica em relao ao produto interno bruto(3), dentre
outros.
Os ndices apresentados atravs de anlises e pesquisas denunciam o quanto a
escolarizao de nossa populao deficitria se comparada ao montante de riqueza que
acumulamos anualmente. O Brasil encontra-se entre os 15 pases de maior produo
econmica do mundo e o Estado
(1) Os dados do Relatrio sobre o Desenvolvimento Mundial, do Banco Mundial de
1989, apontam o Brasil entre os 10 pases de maior Produto Nacional Bruto e o l06 em
evaso escolar no primeiro grau (Helene, 1990, p.12).
(2) 1993 os professores nvel 1 formao em Magistrio, responsveis pelas classes
de primeira a quarta sries do primeiro grau em incio de carreira recebiam no Estado
de So Paulo um salrio de US$80,00, menos do que os pagos na ndia(US$200,00) e
no Paquisto (US$120,00), pases cuja renda per capita chega a ser cinco vezes menos
que a nossa. (Dimenstein, Folha de S. Paulo, 29.08.93).
(3) Estimando a produo do estado de So Paulo como sendo 40% da brasileira, o
nosso estado emprega 2,5 do PIB, contra 4,4 do Mxico, 3,4 da Argentina, 4,1 da
Polnia e 3,6 do Brasil. (Helene, l990,p.13).
17

de So Paulo possui uma renda per capita comparvel a de pases como Espanha,
Portugal e Grcia. Mas os ndices econmicos esto muito distantes da qualidade de
vida existente nesses mesmos pases(4). Em termos de taxa de escolarizao, tem-se um
ensino de primeiro grau altamente seletivo apenas 27% das crianas concluem o
primeiro grau no Brasil e 32% no Estado de So Paulo , um ensino mdio pior do que
o de pases com rendas per capita de cinco a dez vezes inferiores nossa, como a ndia
e Gana (35%) ou Madagascar (36%), e ainda uma rede pr-escolar recente, muito
aqum da demanda populacional (Helene, 1990).
Com relao seletividade escolar encontram-se dados inadmissveis nas contnuas
repetncias vividas pelas crianas no processo de escolarizao. As anlises estatsticas
recentes divulgadas por Ribeiro (1992) do conta que o aluno brasileiro permanece em
mdia oito anos e meio na escola, mas apenas trs entre cem ingressantes concluem o
primeiro grau sem repetncia. Ao longo do processo de escolarizao a defasagem
srie-idade aumenta, a ponto de termos em 1986 (SEADE, 1989) 70% dos alunos de 8
srie fora da idade real para o mesmo perodo (14 anos).
Dentro da lgica da pedagogia da repetncia acredita-se que um aluno ao repetir ter
a oportunidade de refazer, de reparar aquilo que no sabe ou que no estudou
convenientemente. As anlises estatsticas mostram, porm, uma outra face desse
processo: uma criana repetente tem a metade das chances de ser aprovada no ano
seguinte, quando comparada a uma criana ingressante nessa mesma srie. Ao invs da
repetncia permitir que o aluno refaa seu aprendizado, via de regra, cria espao para
a sua estigmatizao, marcando-o como diferente ou deficiente em relao aos demais.
No processo de seletividade na escolarizao tem-se como informao que a maioria
das crianas reprovadas ou que se evadem a que freqenta as escolas pblicas das
redes estadual e municipal de educao, proveniente das camadas mais pobres da
populao. Segundo dados da Fundao SEADE (1989), em 1986, os ndices de
reprovao

(4) A expectativa de vida no Estado de So Paulo corresponde a dez anos menos do que
nesses pases (UNICEF, 1987, 88).
18

na segunda srie do primeiro grau so de 30,45% nas escolas pblicas paulistas contra
7,59% nas escolas particulares. Na dcada de 70, levantamento feito na cidade de So
Paulo constatou que, nos bairros onde as famlias ganham menos de cinco salrios
mnimos, os ndices de reprovao chegam a 43%, enquanto que em outros, onde a
maioria da populao moradora ganha acima dessa faixa salarial, esses mesmos ndices
no ultrapassam 10% (Barreto et alii, 1979).

A presena dos problemas da sala de aula na sala de atendimento psicolgico


A realidade da educao escolar no Brasil e no Estado de So Paulo se reflete nos
servios de atendimento de sade mental oferecidos populao, principalmente na rea
de Psicologia. Essa constatao vem sendo feita atravs do levantamento do conjunto de
solicitaes de atendimento psicolgico presentes nas Unidades Bsicas de Sade
(UBS) da rede pblica e nas Clnicas-Escola das Faculdades de Psicologia.
Pesquisa realizada na Regio Sudeste do Municpio de So Paulo, em 1989, em oito
UBS, obteve como resultado que 70% dos encaminhamentos feitos para atendimento
psicolgico, na faixa etria de 5 a 14 anos, tinham como queixa problemas de
escolarizao. Estas dificuldades foram identificadas como problemas de aprendizagem
(50%) e problemas de comportamento (21%) na sala de aula e fora dela. Pelo menos um
tero dos alunos encaminhados tem entre 6 e 7 anos completos, e 40%, entre 8 e 9 anos
completos; 61% deles esto cursando a primeira ou a segunda sries do primeiro grau.
Outro dado importante neste levantamento refere-se ao fato de que metade das crianas
encaminhadas para atendimento psicolgico era de ingressantes cujos professores j
acreditam que apresentem problemas de aprendizagem. A pesquisa foi realizada no ms
de abril, Ou seja, durante o terceiro ms letivo escolar, significando que tais crianas
encontram-se no incio do processo de alfabetizao. Podemos levantar como hiptese
de um certo olho clnico do professor, representando o incio precoce da
responsabilizao do aluno por suas dificuldades escolares.
19

Os encaminhamentos foram feitos, em sua maioria, pela escola (50%), uma parte pelos
pais (26%) e por outros profissionais, incluindo os da rea mdica (23%), pediatras,
clnicos e psiquiatras.
Parte desses dados se confirmam atravs de outro levantamento realizado na Regio
Sul da cidade de So Paulo, englobando os bairros de Graja, Interlagos e Parelheiros
(ARS-9), entre os meses de abril a junho de 1993, sorteando-se 15% dos pronturios de
atendimento. Os clientes das Unidades Bsicas de Sade dessa Regio da cidade esto
na faixa de 7 a 12 anos (75%), so em sua maioria meninos (63%), sendo que a partir
dos 12 anos h maior incidncia de meninas que procuram atendimento,
comparativamente aos meninos. So crianas que freqentam a escola pblica (82%),
sendo por ela encaminhados para atendimento em Sade (59%), com predominncia de
dificuldades de aprendizagem (57,5%). Embora a quase totalidade das crianas
encaminhadas tenha iniciado a escolarizao formal aos sete anos de idade, o pico dos
encaminhamentos est nas idades de 9 e 10 anos(27,9%), com estas mesmas crianas
cursando ainda a 2. srie do Ciclo Bsico, acumulando duas ou trs repetncias.
Embora no Estado de So Paulo, a partir de 1984, tenha sido implantantada a proposta
de um Ciclo Bsico, englobando a primeira e segunda sries do primeiro grau, podemos
observar a existncia de um grande nmero de crianas que oficialmente no so
reprovadas, mas que na realidade no so aprovadas para as sries seguintes. As
observaes empricas e dados preliminares de levantamentos de ndices dessa natureza
nas escolas nos mostra a formao de vrias classes de alunos que ingressaram aos 7
anos e aos 9 e 10 continuam no Ciclo Bsico.
A confirmao dos altos ndices de encaminhamentos de problemas escolares para
serem atendidos por psiclogos est presente nos levantamentos de demanda realizados
pelas Clnicas-Escola dos cursos de graduao em Psicologia. Em pesquisa feita por
Silvares (1989), analisando pronturios de todos os atendimentos da Clnica Escola do
Instituto de Psicologia USP de 1983-89, totalizando 766 clientes, obteve-se como
queixa mais freqente o mau desempenho escolar (41%), seguido de comportamento
agressivo ou de brigas (28%) e dificuldades de fala (25%). A maioria dos
encaminhamentos de 0 a 15 anos se concentra na faixa etria de 6 a 10 anos (59%), com
pico entre as idades de 8 e 9 anos. Essas crianas so predominantemente meninos (7
1%),
20

freqentam a escola pblica (57%), estudam entre a 1 e a 4 sries do primeiro grau,


foram encaminhados pela prpria escola (29%) e j haviam passado por outro
profissional de Sade (52%).So trazidos pelos pais, que apresentam pouca
escolarizao (68% dos homens e 71% das mulheres tinham apenas o primeiro grau).
Esta pesquisa conclui que os meninos so encaminhados por grupos diferentes de
queixas em relao s meninas. Enquanto estas apresentam como queixa
comportamentos no-explcitos, os meninos tm como queixa predominante distrbios
do desenvolvimento e de habilidades escolares.
Neste trabalho Silvares apresenta a pesquisa realizada por Lopez( 1983), comprovando
a tendncia de atendimentos referentes a dificuldades escolares. Analisando quatro
clnicas-escola de Psicologia na cidade de So Paulo, em 1977, a autora constatou que:
a) a incidncia de encaminhamentos de meninos supera a de meninas; b) estes
encaminhamentos ocorrem preferencialmente na faixa etria escolar; e c) a queixa mais
freqente so as dificuldades escolares.

A presena da queixa escolar nos atendimentos psicolgicos: consideraes


preliminares
Os dados apresentados acima, embora no compreendam o conjunto dos equipamentos
sociais que atendem os encaminhamentos psicolgicos, representam dois segmentos
significativos na rea, trazendo informaes importantes, que nos instigam a tecer uma
srie de consideraes.
A primeira delas a constatao da presena macia de queixa escolar nos
atendimentos realizados pelos psiclogos. A maioria dos encaminhamentos feitos aos
profissionais de Psicologia refere-se a problemas vividos pelas crianas no processo de
aprendizagem escolar. Analisando a faixa etria das crianas encaminhadas e a srie que
esto Cursando, pode-se dizer que esses problemas se apresentam tanto no inicio do
processo de alfabetizao, quanto na sua continuidade nas primeiras sries. Ou seja, a
dificuldade de aprendizagem incide sobre as crianas ingressantes em alguns
levantamentos at na mesma Proporo que aquelas que j vivenciaram a experincia da
repetncia.
21

O encaminhamento de crianas que se encontram no incio do processo de


alfabetizao pode caracterizar a existncia de um conjunto de expectativas escolares
em relao ao aluno ingressante. Assim, qualquer aluno que desvie desse padro pr-
estabelecido pela escola passa a ser visto como um problema potencial, necessitando
de um atendimento preventivo. E nesse caso a escola acaba por apresentar um pr-
diagnstico das dificuldades escolares.
A presena da atitude diagnstica escolar ou preditiva da performance de atuao da
criana muito preocupante em funo das conseqncias que traro a esse aluno
iniciante. Pesquisa realizada na dcada de 60 por Jacobson e Rosenthal (1969) j
chamava a ateno para o fato de que a predio feita por uma pessoa quanto ao
comportamento de outra de algum modo chega a realizar-se (p.l99), ou seja, estes
autores consideram que possvel que a criana v mal na escola porque isso que se
espera dela. O trabalho desses pesquisadores americanos realizado no contexto da
problemtica da desvantagem escolar sofrida pelas crianas que vivem em situao de
pobreza (americanos negros, mexicanos americanos, porto-riquenhos). Os resultados da
pesquisa ressaltam dois pontos importantes para a nossa questo: a) as crianas que
cursam as primeiras sries so mais susceptveis s expectativas depositadas pelas
professoras do que as crianas mais velhas; b) a importncia de se dar mais ateno ao
professor.
O que acontece, ento, nessa relao de aprendizagem, nesse contato face a face, no
contexto da sala de aula para que tantos encaminhamentos ocorram? As perguntas que
nos remetem sala de aula e buscam explicar as dificuldades escolares no processo de
escolarizao no so tradio na psicologia brasileira. Tradicionalmente, as
explicaes psicolgicas para as dificuldades escolares consideram que muitas das
dificuldades tomam-se evidentes no momento de ingresso da criana na escola tanto
pelas habilidades psicomotoras que exige, quanto pela tarefa de adaptao a um
ambiente novo, que difere profundamente do ambiente familiar. A criana seria
portadora de dificuldades emocionais e conflitos internos que se revelam ao entrar em
contato com um ambiente desafiador e hostil como o escolar.
Esses dados preliminares tambm indicam que a alternativa do encaminhamento para
atendimento mdico e psicolgico das dificuldades de aprendizagem o modelo
praticado por grande parte dos professores e diretores das escolas. Esse dado nos leva a
questionar as caractersticas de formao de professores e especialistas em educao
levada a efeito nos cursos de Magistrio e de Pedagogia. A formao recebida acrescida
dos desafios enfrentados na prtica docente diria enfatizam as explicaes psicolgicas
aos problemas escolares.
Os encaminhamentos em funo de dificuldades na escolarizao formal tm em
comum uma questo de gnero: os meninos so os maiores encaminhados para o
atendimento psicolgico. Como analisa Silvares (op.cit) esta questo se repete na
literatura em vrios trabalhos de pesquisa realizados desde a dcada de 60 (Wolff,1967,
1968; Garralda e Bailey, 1988; Lopez,l983; Schoenfeldt e Longhin,1959; Terzis e
Oliveira, 1985 apud Silvares, op.cit.), em pesquisas realizadas em centros de
atendimento nos Estados Unidos, Gr-Bretanha e Brasil.
As explicaes para essa tendncia vo desde a constatao de diferentes perfis
comportamentais entre meninos e meninas (Achenbach,1966 apud Silvares, op.cit.)(5)
at aquelas que enfatizam a somatria de fatores envolvendo as condies do ensino
escolar e o tipo de comportamento exigido pela escola, como a defendida por
Rosemberg (1975 apud Silvares, op.cit.). No terreno dos esteretipos e preconceitos em
relao s crianas das classes populares, outra hiptese reside em observaes
realizadas em escolas perifricas na cidade de So Paulo Nota-se na escola o medo de
que esse menino(aluno) venha a ser um futuro marginal, passando-se a exigir dele uma
srie de habilidades e comportamentos considerados garantia de submisso(6).
Outro aspecto que constatamos atravs dos levantamentos feitos empiricamente com
psiclogos que atuam nas UBS o fato de os pais serem os intermedirios entre a escola
e o profissional de sade. Os significados para uma famlia de que seu filho dever
passar por um

(5) No estudo de Achenbach,os meninos, de maneira geral, apresentam na categoria


Sintomas agressivos uma razo de 3/1 em relao s meninas e de 2/1 na categoria
distrbios de hbitos. As meninas, por sua vez, s superavam os meninos na categoria
sintomas fbicos, numa razo de 5/1.
(6) Assim sendo, interpreta-se qualquer mulecagem como um exemplo do que
futuramente essa criana poder fazer na sociedade; o simples desaparecimento de um
lpis na sala de aula da periferia motivo de preocupao, pois no encontrar o
responsvel dentro de uma concepo preconceituosa em relao a essas crianas e
seus pais comum compactuar com a formao de um virtual ladro ou marginal.
23

psiclogo so, em geral, muito angustiantes, principalmente para uma populao pobre
onde o atendimento pelo psiclogo , via de regra, associado a problemas mentais,
loucura, enfim, a problemas graves. Em alguns casos a escola atrela continuidade da
criana na escola o acompanhamento psicolgico, desrespeitando dentre outras coisas
um preceito Constitucional. Muitos pais no conseguem compreender os motivos pelos
quais seus filhos foram encaminhados para os servios de atendimento psicolgico, e ao
serem arguidos pelo psiclogo a respeito dos motivos do encaminhamento procuram
encontrar suas causas na histria de vida no raro se culpando por muitos desses
acontecimentos. So depoimentos de pais a psiclogos:
Acho que foi porque quando ele era pequeno ele caiu de uma laje e bateu a cabea.
Ele tem problema no corao, fica nervoso toa.
Eu no sei no, a professora que disse que ele est precisando de tratamento.
Eu no sei por que na escola ele no aprende, porque eu acho ele um menino muito
esperto. Faz um monte de coisas pra mim. Ajuda muito em casa! Ele me ajuda a fazer as
contas, ler coisas, pegar nibus. E a professora diz que ele no aprende. No sei o que
.
Ele l pra mim as cartas que chegam, todinhas, e na aula a professora diz que ele no
quer ler.

O discurso da escola vivido, em geral, de maneira ambgua pelos pais, pois por um
lado a convivncia diria com as crianas possibilita uma certa percepo de seu
potencial e de suas realizaes e por outro est a escola e o professor, com a autoridade
que possui e a legitimidade do saber, dizendo o contrrio.
A queixa psicolgica mais freqente, portanto, no se relaciona a distrbios
emocionais ou a problemas familiares vividos pela criana, mas est diretamente
relacionada com dificuldades no mbito do processo de escolarizao; uma queixa
escolar, encaminhada na sua
24

maioria pela escola ou por outros profissionais de sade. Ela se faz presente como
incidncia principal do trabalho do psiclogo, esteja ele atuando na Unidade Bsica de
Sade, na Clnica-Escola, na Unidade Escolar ou muito provavelmente no consultrio
particular.
O predomnio do modelo psicolgico clnico em relao aos problemas escolares
Como a queixa escolar vem sendo atendida pelos psiclogos ou, ento, que prticas de
atendimento tm sido geradas para solucion-la? H vrias descries da prtica
psicolgica que indicam que o processo psicodiagnstico da queixa escolar baseia-se no
trip entrevista inicial e anamnese, aplicao de testes, encaminhamento para
psicoterapia e orientao de pais.
No levantamento realizado pela Regional de Sade da Regio Sul da cidade de So
Paulo (op.cit.), as condutas psicolgicas adotadas confirmam que se atribui os
problemas de rendimento escolar s crianas e/ou seus pais: a maior parte dos
encaminhamentos so para psicodiagnstico (18,4%), terapia individual (13,5%),
terapia de grupo (13,5%), orientao dos pais (23,2%), totalizando 68,6% dos
encaminhamentos realizados. Em apenas 5,8% dos casos os psiclogos realizaram
alguma orientao com o professor que encaminhou a queixa.
Procedimento semelhante ao encontrado nas Unidades Bsicas de Sade de Graja-
Parelheiros observado quando se analisa os laudos psicolgicos presentes nos estudos
de caso de crianas multi-repetentes Solicitados por Patto (1990) a psiclogos da equipe
clnica da Prefeitura Municipal de So Paulo, no ano de 1985.
Atravs da leitura dos laudos realizados, observa-se que a avaliao Psicolgica
centrou-se em testes psicolgicos cujos nomes nem sempre
so especificados analisando trs reas: a inteligncia Escala de Inteligncia
Wechsler para Crianas (WISC); o desenvolvimento percepto-motor Teste Gestltico
Visomotor de Bender e uma avaliao de personalidade Teste de Apercepo
Infantil (CAT-A) e o teste House Tree, Person (HTP). Durante todo o relatrio as
anlises centram-se em aspectos intrapsquicos das crianas e nas respectivas dinmicas
familiares. Embora esses alunos tenham vivido a experincia
25

da reprovao, no caso de um deles por trs vezes, esse dado no aparece. Em apenas
um dos laudos psicolgicos a escola citada e a referncia feita no sentido dos
reflexos dos conflitos familiares sobre a aprendizagem: na escola, tais conflitos
tambm aparecem, onde para ngela torna-se difcil integrar seus recursos e anseios
com a aprendizagem (p. 304). Para o leitor desses laudos, no possvel compreender
os motivos que teriam levado a tantas repetncias, parecendo que a gravidade deste
dado no foi sequer levada em conta. As concluses do psicodiagnstico so todas no
sentido de encaminhar os pais para orientao familiar, a criana para psicoterapia, e
no fazem qualquer sugesto sobre estratgias de ao do professor ou da escola que
minimizem as dificuldades de aprendizagem, motivo da queixa.
A maioria dos psiclogos que emitem laudos psicolgicos a respeito das crianas com
dificuldades escolares desconhecem a fora desse instrumento no meio escolar. Como
avaliou Patto (op.cit.), ao estudar casos de multi-repetentes, a avaliao de um
profissional de psicologia sela destinos. O laudo psicolgico um parecer tcnico,
entendido como um instrumento definitivo que atribu as verdadeiras causas de um
determinado problema psquico. Alguns psiclogos acreditam to cegamente nesse
instrumento a ponto de escrever em suas avaliaes que a criana definitivamente
deficiente mental leve. As conseqncias da utilizao desse instrumento na escola so
as mais diversas, mas, em geral, todas elas contrrias ao fortalecimento do aprendizado
e reforadoras da estigmatizao j sofrida pelas crianas na escola.
A maioria dos psiclogos que emitem laudos psicolgicos encaminhando crianas para
as classes especiais para deficientes mentais da rede estadual de ensino, por exemplo,
desconhece informaes mnimas educacionais: de que uma criana necessita ter no
mnimo duas repetncias na mesma srie e ser portadora de uma deficincia mental leve
(educvel) para vir a pertencer a uma dessas classes. Esses mesmos profissionais
conhecem ou imaginam uma classe especial hipottica com professores idealizados,
muito diferente daquela que existe na realidade da escola pblica. Os prprios testes
psicolgicos em seus manuais defendem essa mesma hiptese. Um exemplo disso est
no manual do teste Metropolitano de Prontido.
26

Como os profissionais de psicologia avaliam os encaminhamentos feitos para as


crianas das classes comuns e/ou das classes especiais? Essa uma questo
extremamente relevante. Pois a prtica existente atualmente nos aponta no sentido da
inexistncia de acompanhamento. O profissional desconhece o que ir acontecer com o
seu encaminhamento no interior da escola e no realiza outra avaliao posterior que
revise aspectos apontados como dificuldades ou ainda que analise as vantagens desse
lugar educacional para essa criana (Machado, 1994).
Outro aspecto grave dos encaminhamentos psicolgicos reside no fato de que ao se
encaminhar para o psiclogo uma criana com problemas escolares para que este
profissional a avalie fica implcita uma relao de causa e efeito entre problema
emocional e dificuldade de aprendizagem. Esta relao ainda no foi convincentemente
provada ou ainda comprovada pela Psicologia. Se compararmos as taxas de reprovao
das escolas particulares na cidade de So Paulo com as taxas de reprovao nos bairros
perifricos fica claro que no possvel atribuir essa discrepncia a tantos problemas
emocionais. como se afirmssemos que entre as crianas aprovadas das escolas
particulares no existisse problemas e conflitos psicolgicos.
As anlises de pronturios feita por Arajo (1993) na Clnica-Escola da Faculdade de
Psicologia de Taubat demonstra que so poucos os que se reportam a informaes
mnimas sobre a escolaridade. Perguntas como: srie cursada pela criana encaminhada,
nmero de repetncias, ano de ingresso na escola no so consideradas como
informaes importantes e/ou relevantes para a compreenso das dificuldades escolares,
quer sejam apontadas como problemas de aprendizagem, quer de comportamento.
Nega-se, com esse procedimento qualquer influncia que a escola possa ter sobre o
rendimento e o comportamento escolar da criana.
As anlises dos atendimentos de psiclogos frente queixa escolar tm mostrado um
modelo terico predominante em relao s crianas que apresentam dificuldades de
escolarizao: uma concepo que entende a queixa escolar como um problema
individual, pertencente criana encaminhada. Uma interpretao que no considera
aquilo que se passa na escola, analisando as dificuldades do processo de escolarizao
como dificuldades de aprendizagem cujas causas so de carter estritamente
psicolgico. A causa do fracasso escolar na maioria as praticas psicolgicas entendida
como um problema de mbito
27

emocional, que se revela no incio do processo de escolarizao em funo dos desafios


apresentados nesse momento do desenvolvimento da criana. Aquilo que se passa com a
criana na escola um sintoma dos conflitos vividos internamente por ela.
Com base nessas crenas, as prticas psicodiagnsticas so baseadas em um conjunto
de avaliaes que daro um quadro mais completo do que se passa no psiquismo e nas
diversas reas mentais do indivduo com ele relacionado. O principal instrumento
psicolgico nesse processo avaliativo passa a ser os testes psicolgicos: de nvel
intelectual, de percepo visomotora, projetivos ou ainda de prontido Os
procedimentos psicolgicos utilizados para explicar e atender a queixa escolar so os
mesmos instrumentos psicolgicos utilizados para queixas de outra natureza.
Quais so as concepes tericas que do sustentao a essas prticas de compreenso
e atendimento queixa escolar? Basicamente, os psiclogos consideram que as crianas
encaminhadas so as que sofrem as conseqncias da pobreza: apresentam dficit
cognitivo, vm de famlias desestruturadas, so vtimas de carncia afetiva. Outro
argumento apresentado considera que grande parte do dficit intelectual e da pobreza
da produo dessa populao causada por uma problemtica emocional. Essas
explicaes foram encontradas por Freller (1993, p.27) ao entrevistar psiclogos que
atuam na rede pblica de sade, atendendo os encaminhamentos de crianas portadoras
de queixa escolar.
A Psicologia tem utilizado um saber que estabelece o seu recorte sobre o indivduo,
enfatizando a importncia de seu mundo interno constitudo de fantasias, desejos,
habitado por mecanismos de projeo e introjeo, determinado pelas relaes vividas
no grupo familiar primrio. Essa observao fica evidente na apresentao dos mtodos
psicolgicos de avaliao de personalidade como o utilizado pelo CAT, quando seus
autores afirmam:
As ilustraes foram desenhadas para eliciar respostas especificamente a problemas de
alimentao e, em geral, a problemas orais; para investigar problemas de rivalidade
entre irmos; para esclarecer atitudes concernentes s figuras parentais e o modo como
estas
28

figuras so apercebidas; para apreender o relacionamento da criana no tocante aos pais


como um casal, tecnicamente falando, referente ao complexo de dipo, culminando na
cena principal: digamos, a fantasia das crianas, vendo os pais junto na cama. Com
respeito a isso, nossa inteno pelo provocar a fantasia do criana, no que concerne
agresso; sobre sua aceitao pelo mundo adulto e seu medo de ficar s noite, numa
possvel conexo com a masturbao, seu comportamento no banheiro e a reao dos
pais a isso (Bellak e Bellak, 1971, p. 5-6).

Os acontecimentos vividos pela criana na escola so interpretados como um sintoma


de conflitos de seu mundo interno e de sua relao familiar, que por ser inadequada e/ou
insuficiente traz conseqncias para o desenvolvimento deste aluno e por conseguinte
ao processo de aprendizagem. Justifica-se, ento, a aplicao de testes projetivos ou
sesses de ludodiagnstico que visam incursionar pela subjetividade e nesse trajeto
desvelar os aspectos inconscientes que justificariam um tratamento psicolgico.
Exemplificando essa posio, os autores do CAT afirmam:
O CAT clinicamente til em determinar quais os fatores dinmicos que podem estar
relacionados com as reaes infantis num grupo,na escola ou jardim da infncia, ou com
os acontecimentos de seu lar (Bellak e Bellak, op.cit., p.6).

Um dos objetivos centrais das psicoterapias est em libertar o indivduo de suas


dificuldades, das resistncias, diminuir a angstia em que se encontra para tornar-se
algum mais feliz, apropriar-se de seu desejo e dos limites deste na realidade. Como
possvel para uma Criana integrar ou instrumentalizar os aspectos vivenciados na
Situao teraputica convivendo durante 30 horas semanais com Situaes to
29

ameaadoras geralmente presentes na realidade escolar que independem de sua


ao direta?
Essa interpretao do mundo e dos indivduos no considerada como uma das
verses possveis na Psicologia, mas como a verso que explica todos os problemas de
escolarizao.
A prpria Psicanlise no tem uma concepo monoltica sobre o papel estruturante de
outras instncias sociais sobre os indivduos. Os trabalhos de Winnicott (Gr-Bretanha)
exemplificam essa diversidade. Para Winnicott (apud Freller, op.cit), o ambiente
influencia no desenvolvimento humano, incluindo em suas pesquisas tanto a anlise da
situao familiar, quanto a escolar e a cultural. Para ele:
Aspectos reais e imaginrios convivem no espao intermedirio entre o indivduo e o
ambiente. A experincia cultural supe a possibilidade de criar e recriar o que j foi
construdo pela humanidade, atravs dos mecanismos de iluso e desiluso. Atravs da
capacidade criativa, o sujeito pode reinaugurar constantemente a experincia vivida,
descobrindo seu prprio self, ao mesmo tempo que descobre o mundo(p.12).
Dentro dessa perspectiva, o que se passa com determinada criana na escola no
considerado como um simples sintoma de mecanismos psquicos; a escola passa a ter
um papel a desempenhar no manejo desses alunos, para facilitar seu desenvolvimento
de modo geral e sua relao com a cultura, especificamente(p.171).
Winnicott defende que o educador ou o psiclogo devem estar atentos complexidade e
ao quanto de investimento psquico e intelectual est presente no processo de criao.
Afirma que contrariamente ao que se pensa dar espao para a criao no
suficiente para neutralizar os impulsos destrutivos; preciso alm disso uma atitude em
relao s produes das crianas e adolescentes de apreciao no tanto do talento
como da luta que h por trs de qualquer realizao, por menor que seja (apud Freller,
p.l79).
Patto (op.cit.) analisa a relao entre a subjetividade e os mecanismos escolares,
afirmando que no se trata, portanto, de negar a influncia dos conflitos psquicos
vivenciados pelas crianas, mas de considerar que as relaes escolares contribuem,
modificam ou reforam quaisquer que sejam esses conflitos, criando e recriando
inmeras outras
30

situaes desafiadoras, aversivas ou violentas. Nesse sentido, afirma:


Mesmo no caso de identificao de uma psicodinmica familiar dificultadora do bom
rendimento escolar, no se pode entender o comportamento escolar de uma criana sem
levar em conta a maneira como a escola se relaciona com sua subjetividade. No basta
dizer que a criana vem para a escola presa de angstias predominantemente esquizo-
paranides ou depressivas decorrentes das relaes familiares que se estabelecem na
pobreza. Mesmo nos casos em que isto for demonstrvel, preciso levar em conta a
natureza da experincia escolar e suas relaes com os temores com os quais a criana
pode ter chegado escola; estas experincias certamente consolidam e aumentam tais
temores ou colaboram para sua elaborao e superao (p. 296). A predominncia do
modelo clnico psicolgico que considera a queixa escolar num contexto psquico tem
seus reflexos nos professores, nas suas concepes do processo pedaggico e nas
explicaes dadas aos problemas de aprendizagem.

Pesquisa recente realizada na cidade de Campinas (SP) com professores e diretores da


rede pblica (Collares e Moyss, 1992) reafirma esta tendncia ao constatar que a
maioria das causas dos problemas de aprendizagem so localizadas nas crianas e em
seus pais. Dos professores entrevistados, 92,5% afirmam que o fracasso escolar deve-se
a problemas emocionais ou neurolgicos das crianas e a totalidade dos entrevistados
acredita que as dificuldades escolares tm Como causas problemas biolgicos e de
desnutrio. Apenas 7,5% dos professores entrevistados considera como causas do
fracasso escolar problemas de funcionamento da escola e 22,5% apontam a existncia
de distores no sistema educacional.
A adeso dos psiclogos ao modelo psicologizante ou medicalizante do atendimento
queixa escolar um fato. Ela reflexo de Uma viso de mundo que explica a realidade
a partir de estruturas psquicas e nega as influncias e/ou determinaes das relaes
institucionais e sociais sobre o psiquismo, encobrindo as arbitrariedades,
31

os esteretipos e preconceitos de que as crianas das classes populares so vtimas no


processo educacional e social. Enquanto psiclogos precisamos urgentemente rever
nossas interpretaes e nossas prticas em relao queixa escolar, ampliando o nosso
olhar na direo da complexidade do conjunto de prticas que constituem a vida diria
escolar, complexidade esta que muda o significado dos comportamentos que as crianas
apresentam nesse contexto e que os instrumentos de avaliao psicolgica insistem em
no considerar.

BIBLIOGRAFIA

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rea de Sade Mental das Unidades Bsicas de Sade do Distrito de Sade
Graja/Interlagos e Parelheiros - ARS.9., abril a junho de 1993. S.P., mimeo., 1994.
33

2 AS CRIANAS EXCLUDAS DA ESCOLA: UM


ALERTA PARA A PSICOLOGIA
Adriana Marcondes Machado
Marilene Proena Rebello de Souza

Introduo

Os psiclogos vm se constituindo, no decorrer de dcadas no Brasil, em profissionais


que recebem os encaminhamentos de crianas portadoras de problemas escolares. Em
geral, as crianas consideradas problema so oriundas das escolas pblicas e
pertencentes s camadas mais empobrecidas da populao. Vrias formas de
atendimento caracterizam a atuao psicolgica, mas basicamente a queixa escolar
entendida como uma dificuldade do aluno em aprender. Em geral, essa dificuldade
atribuda a dficits cognitivos e/ou intelectuais e emocionais. A partir da dcada de 80,
vrias pesquisas passaram a pensar a relao fracasso escolar e pobreza, quer na rea da
Psicologia Escolar (Patto, 1984, 1990), da Psicologia Social (Leser e Freire, 1986), da
Lingustica (Cagliari, 1985; Soares, 1986), da Medicina (Moyss e Lima, 1982) e da
Pedagogia (Collares, 1989). Esses estudos, grosso modo, questionam a concepo que
culpabiliza a vtima, o aluno, pelo fracasso escolar, chamando ateno para a m
qualidade do ensino oferecido e para a presena, nas prticas escolares, de esteretipos e
preconceitos existentes a respeito da criana pobre.
Temos a convico de que no difundir as crticas a concepes preconceituosas
compactuar com a excluso de crianas, adolescentes e adultos do universo escolar, com
todas as conseqncias sociais desse
35

fato. Excluso, sim, pois, como analisaremos no decorrer de nosso texto, os


encaminhamentos de crianas para atendimentos psicolgicos e/ou mdicos selam
destinos, trajetrias escolares. Desmontar a produo de esquemas de resistncia ao
pensar, ao conhecer, ao criar, tem exigido muito trabalho e perseverana.
Muitas das idias deste texto foram desenvolvidas por ns, nos trabalhos de pesquisa e
interveno em Escolas Pblicas que realizamos enquanto profissionais do Servio de
Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.
Nossas evidncias nos fizeram mudar o olhar, o foco de nossas crenas, mudar as
perguntas e as prticas em relao aos professores, crianas e pais das escolas pblicas,
enfim, mudar nossa maneira de intervir.

As falsas perguntas sobre o aluno-problema


Sabemos que as idias expressam maneiras de ser, de pensar. Para pensar a prtica
excluir acontecendo nas relaes com a Escola Pblica, na Educao, iremos
inicialmente apresentar uma das maneiras de entender os acontecimentos, as tendncias.
Pensemos no mundo como sendo uma matria-viva se movimentando. Existe uma
diversidade de tendncias, afetos, desejos, com diferentes foras, sendo efetuados,
realizando encontros que produzem efeitos. Esses afetos atravessam a matria-viva,
acontecem. Assim podemos entender a timidez, a tristeza, o no saber o que fazer, o
sentir cimes, o enlouquecer, como sendo tendncias que atravessam os seres... Elas no
so necessariamente certas ou erradas, elas existem.
Dizer que uma pessoa tmida, repetente, dar o estatuto de ser coisa que vemos,
nos faz pensar no processo de normalizao e padronizao pelo qual passam certas
relaes. Os afetos atravessam as relaes. Eles no so monoplio do indivduo, eles
atravessam o ser.
Se algum apresenta uma tendncia de forma que nas relaes essa tendncia se
cristalize, essa pessoa vira um personagem;o aluno especial, o presidirio, o
louco, o pr-silbico, o aidtico, o chato, o tmido, o excludo. Esses
personagens so objetivaes de uma srie de prticas. Quais so essas prticas? Como
se d a cristalizao?
36

Tomemos inicialmente, como exemplo, o aluno que no aprende, que como dizem vai
ficando para trs. O destino dele variado: ser aluno repetente (muitas vezes em classe
de repetentes ou classe dos lentos), ser aluno especial (encaminhado por psiclogos para
a classe especial), ou ento parar de estudar (parar de ser aluno).
Desviando o olhar destes alunos tido como alunos-problema que se percebe a srie
de prticas que os objetivaram. A prtica de encaminhamento de crianas com
problemas de aprendizagem e comportamento para psiclogos se ancora em uma srie
de prticas paralelas: psiclogos fazendo avaliaes diagnsticas para encaminhamento,
professores entendendo os problemas das crianas como algo individual ou familiar, a
exigncia de um laudo psicolgico para a criana estar na classe especial...
Para Michel Foucault, toda prtica de objetivao implica uma prtica de subjetivao.
Produz-se algo e produz-se o sujeito que entende este algo naturalmente. preciso que
essas crianas de 8 a 16 anos tenham sido objetivadas como alunos especiais para que
elas sejam percebidas pelos professores como alunos que precisam de um programa
especial de ensino. Mais lento. Mais individual. O professor que trata seus alunos como
especiais nem imagina que poderia faz-lo diferentemente. Faz o que lhe parece
evidente e natural. Veremos mais adiante como a naturalizao fortalece as
cristalizaes.
Atualmente somente cerca de 60 por cento das crianas que entram na primeira srie
chegam quarta srie do primeiro grau. Os 40 por cento restantes repetem ou evadem-
se da escola. Se so nas relaes e nas prticas que se produzem as objetivaes, ento
as perguntas devem ser feitas sobre as relaes e as prticas e no sobre os objetos. Ao
invs de perguntar por que a Escola Pblica produz alunos especiais, ou Porque aqueles
alunos no aprendem, deve-se perguntar como as relaes de aprendizagem e as
relaes diagnsticas fabricam esses alunos. Deve-se buscar , funcionamento
devolvendo-se com isso histria aquilo cuja existncia naturalizamos.
Naturalizar, o que isso? pensar que o que acontece decorrente da natureza
mesma das coisas e no da histria. Aprisiona-se assim a diferena. Explicando melhor:
quando sentimos que natural acontecer aquilo que nos incomoda, ficamos sem idia
sobre o que azei, Como se existisse algo fora de nosso alcance que nos impe a
existncia de um objeto a ser analisado. As perguntas passam a ser, por
37

exemplo, o que fazer com essas crianas que no aprendem? Como se existisse a
criana que no aprende em si. Nos exclumos assim das prticas e das relaes... As
relaes ficam estagnadas.
Havamos perguntado acima o que uma relao cristalizada. aquela onde as
queixas so as mesmas h muito tempo, no h movimento. O efeito a sensao de
que no se pode fazer, apenas esperar. Nela pergunta-se muito o porqu de certas coisas
e de certos afetos acontecerem. Como movimentar? Nosso convite inicialmente
problematizarmos as perguntas que fazemos a respeito dos acontecimentos.
Deleuze, no livro El Bergsonismo, discute no primeiro captulo a intuio como
mtodo. Citando as obras de Bergson, explica os atos que determinam esse mtodo. Um
deles aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos problemas mesmos, denunciar os
falsos problemas e reconciliar verdade e criao no nvel dos problemas (Deleuze,
1987, p.11). Nos enganamos quando cremos que o verdadeiro e o falso se referem
somente s solues.
Os problemas so inventados e tm sempre a soluo que merecem, em funo da
forma, das condies e dos meios que so formulados. Para Bergson, os falsos
problemas so de dois tipos: os problemas inexistentes e os malpostulados.
Os problemas inexistentes, como por exemplo perguntar por que acontece isto e no
aquilo, aquilo que era igualmente possvel? Por que o aluno no aprende? Por que ela
no est feliz? Essas perguntas carregam a iluso de que o possvel existe antes do
existente, o no-ser antes do ser, como se o ser viesse encher o vazio, como se o real
viesse a realizar uma possibilidade primordial (Deleuze,1987, p.15), como se o normal
fosse aprender, fosse estar feliz.
Os problemas malformulados agrupam arbitrariamente coisas que diferem de natureza.
Cada vez que pensamos em termos de mais ou menos, vemos diferenas de graus ou
intensidades, onde h diferenas de natureza entre os seres, entre os existentes. So as
eternas comparaes: a sada daquele aluno da Escola foi uma fuga. Sair da escola e
fugir so prticas singulares e portanto de naturezas diferentes.
Nesse sentido falsa a idia de ser possvel se perguntar algo sobre algum objeto,
como se a pergunta no estivesse produzindo esse objeto. Ento, o que perguntar?
38

Pensando uma prtica de excluso


Realizamos um trabalho de interveno com as crianas professora de uma classe
especial em uma Escola Estadual(1). O que chamava ateno nessa classe? A presena
de algumas crianas que princpio no pareciam ter qualquer problema de deficincia, o
carter aleatrio de alguns encaminhamentos, e principalmente a relao cristalizada
que as crianas mantinham na classe especial: nenhuma criana se interessava por
pensar o que estava fazendo na classe especial. Muitas no sabiam dizer h quanto
tempo frequentavam a classe especial. E, no meio de toda essa situao, havia tambm
alegria.
Algumas referncias mudam na classe especial. No se diz repetiu o ano, pois nela
nem se passa e nem se repete; ou se fica, ou vai. Como disse um de seus alunos uma
vez: Eu achava que a classe especial era uma srie que durava para sempre . David,
um menino de 8 anos, disse:
- Uma mulher me mandou para a classe especial porque na classe normal eu no
respeitava ningum.
- O que voc fazia?, perguntei.
- Eu no sentava, ele respondeu.
- O que voc faz na classe especial?
- Fico sentado na carteira.
- Quem no senta tem que ir para a classe especial?...

Adriana, de 11 anos, comentou:


- Eu sou burra, pondo a mo na cintura e falando em tom bravo.
- Perguntei-lhe O que voc faz que um burro tambm faz?
- Eu no sei fazer lio e um burro tambm no sabe.
- Qual lio voc no sabe fazer?
- Lio difcil, ora!
39

Inicialmente nossas perguntas em relao a essas crianas eram, em sua maioria, falsos
problemas. Queramos saber o que significava, o que representava para essas crianas
estar na classe especial, porque elas estavam ali. Como se houvesse uma causa primeira,
original. Como se houvesse algo essencial, por trs das coisas que percebemos. Qual o
efeito dessa maneira de pensar, onde se fica buscando a razo e o significado de as
coisas acontecerem? Fica-se sem ideias sobre o que fazer, impede-se a criatividade.
Mudamos as perguntas. Inventamos uma pergunta interessante: Quem vai continuar e
quem vai sair da classe especial no prximo ano?. Essa pergunta exigia movimento.
Foi nesse novo territrio que surgiram ideias, como, por exemplo, fazer um mapa com a
histria das crianas na Escola. O pai de Carlos, um aluno de 15 anos, ficou
decepcionado ao saber que depois de 5 anos estudando na classe especial ele poderia ir
para uma 2 srie e no para a 6 srie.
Andreza, de 8 anos, dizia Eu estou na classe especial porque eu sou idade mental.
Ela no queria sair da classe especial naquele ano, queria ficar. Algo l lhe faz bem. O
que ? Como conseguir isso sem adoecer, sem ser idade mental?

Intenes e efeitos
Aprender... Ensinar... Algo comea a funcionar diferentemente do que se pretendia na
mquina escolar. Pensemos em uma professora que percebe as dificuldades de seus
alunos e est preocupada em descobrir o que fazer para ajudar essas crianas que
apresentam dificuldades. Imaginemos a delicadeza desse processo que convida o
professor a saber de seu prprio desejo para poder ter ideias sobre o que fazer...
Um professor que coloca as crianas com dificuldade em aprender a ler e a escrever
em uma especfica fileira das carteiras da classe, ou uma equipe de professores que
decide formar uma classe com os alunos lentos, deveriam perceber as produes de
subjetividade que essas prticas inventam. E comum a criana que est indo bem na
Escola, que est aprendendo, sentir que aquele que no aprende no tem nada a ver com
ela. comum a criana encaminhada para a classe especial encarar o problema que
motivou o seu encaminhamento ser um problema apenas individual. No a fileira dos
alunos lentos que em si boa ou m,
40

assim como no a classe especial, ou o repetir, que so em si bons ou maus. O


problema que certas prticas potencializam a diferena ser vivida como negao,
como algo qualitativamente inferior. Por mais orgnico e individual que nos parea um
sintoma, por exemplo, a cegueira, existe uma infinidade de maneiras de ser que
atravessam as relaes com aquela criana cega. Isto , a cegueira nos atravessa e os
efeitos desse encontro so infinitos. Ser cego e gostar de ler diferente de ser cego e
estar amando, e estar desanimado... e de gostar de tocar um instrumento musical. s
vezes nos preocupamos em demasia com o diagnstico, como se ele fosse definir o que
pode fazer bem ou mal para aquele ser, aquela relao. Iluso...
Muito j se tem criticado as prticas que buscam uma homogeneizao, que trabalham
com modelos, que restringem a diversidade e a diferena ao campo do normal e do
anormal.
Sabemos que a velha estratgia de juntar o que se julga homogneo para resolver
algum problema serve mais para produzir cristalizaes do que imprimir algum
movimento ao que est cristalizado. A recente portaria que estabelece que no se pode
fazer teste para AIDS nas crianas que esto na Escola, e que probe a formao de
classes especiais para crianas portadoras de AIDS nos mostra essa preocupao.
Algumas pessoas que acreditam nas potencialidades de um lugar de ensino especial, so
guiadas por essas ideias com boas intenes. Quer-se efetuar libertar, o escrever..., o
ler..., o pensar... Se ser portador do vrus da AIDS pode atrapalhar essas tendncias,
parece estranho criarmos um lugar onde aquilo que pretendemos libertar seja
secundrio. Ou melhor, no estranho, delicado. Est-se ao mesmo tempo
potencializando a existncia de algo que enfraquece a relao com esse mesmo ser. O
vrus da AIDS passa a ser algo que parece s existir naqueles que o portam, e a esse
acontecimento todos os outros se ligam. Numa Escola especial a criana vai ter sempre
o desejo capturado, aprisionado ao fato de ela ser especial.
Poderamos pensar que todos ns temos uma infinidade de tendncias, algumas
capturadas. Exemplificaremos o que podemos entender por captura de desejos. Uma
criana l um livro. Eu pergunto: o que voc est fazendo? Ela diz: fazendo lio.
Ela realiza cumprir uma tarefa. A professora recomendou esse livro porque lhe foi
pedido pela coordenadora Onde ficou o desejo ler? Em algum canto, guardado no
corao de quem achou interessante dar esse livro especfico
41

para as crianas lerem. O desejo ler essa histria fica capturado pelo dever fazer a
lio. Nesse sentido, preciso libertar o desejo do que o aprisiona para se poder ter
ideias de como efetu-lo.
Aqui entendemos por desejo aquilo que se efetua; no remetemos o desejo falta.
Imaginemos, numa conversa, algum dizer em tom melanclico, queixando-se: Eu
gostaria muito que esse aluno aprendesse, mas no consigo ensin-lo. O que esta
pessoa est efetuando? Qual tendncia, qual desejo? Queixar-se; o desejo queixar,
que diferente do ensinar. No falta nada para o queixar realizar-se. Queixar no
querer algo e no ter, queixar queixar. uma positividade.
nossa inteno problematizar esse estado de coisas onde algo domina de forma a
aprisionar as relaes e o desejo. Entendendo as coisas como objetivaes que ocorrem
em um campo de foras, como pensar a produo to intensa dessas cristalizaes? Elas
no so monoplio de uma certa relao professor-aluno, e nem das classes especiais...
Essas cristalizaes percorrem infinitas relaes que constituem um campo de foras
atravessado dominantemente pela poltica educacional. Se o sentido da fora dominante
desse campo de foras o de estabelecer objetos e regras gerais, esse campo fica
sedentarizado. isso que acontece quando, por exemplo, escreve-se um projeto para a
rea da educao acreditando que ele possa ser em si bom, como se no importassem
as vrias maneiras de ser que surgem... Qualquer mtodo, qualquer enquadre vai ser
sempre singular. difcil pensarmos os acontecimentos singulares se ficamos somente
preocupados em saber se esta ou aquela atitude est dentro do mtodo e do enquadre.
Mas se nos importamos com a maneira pela qual as coisas tm sido entendidas, ento
no basta diz-las. Assim como no basta fazer um diagnstico e encaminhar a criana
para a classe especial. Tem-se que estar atento aos efeitos e processos dessas mudanas.
Uma criana que consegue pensar e opinar sobre as coisas da sua vida consegue
aprender a ler e a escrever. Estamos falando de processos de mesma natureza.
42

Fragmentos da vida diria escolar


Nos primeiros contatos com escolas pblicas, entramos imbudos de certezas, tais
como: a escola uma instituio e como tal possui mecanismos que reproduzem a
realidade escolar, tem um corpo docente mal preparado para a tarefa pedaggica, regras
rgidas de funcionamento impostas pelo aparato estatal etc. Mas medida que
comeamos a observar cenas do dia- a- dia, andar pelos corredores da escola, conversar
com as crianas e seus pais, muitas dessas certezas passaram a ser dvidas. Nossos
referenciais tericos no davam conta de entender a diversidade, o dinamismo do dia- a-
dia escolar e das muitas maneiras como seus diversos protagonistas se relacionavam,
num conjunto de relaes complexas e pouco familiares para ns.
Nesse processo de conhecimento, fomos mudando nossas perguntas, iniciando por
questes bsicas: que lugar esse? A que ele se prope? Como funciona? Que pessoas
fazem parte dele? Quem so os professores? Como trabalham? Como se estabelecem os
agrupamentos nas salas de aula? Que prticas educacionais so processadas? A partir de
questes como essas procurvamos compreender, pouco a pouco, esse espao escolar.
Constatamos, por exemplo, que h classes que tm uma professora autoritria que
consegue alfabetizar todos os seus alunos, que h diretores extremamente dedicados e
negociadores e outros no, que h professores jovens descrentes de seus trabalhos,
enquanto outros esto interessados em aprender, que h professores de mais de vinte
anos de magistrio buscando novas significaes para continuar sua prtica docente...
Que h contedos curriculares comuns e opes totalmente diferentes em Como segui-
los; h prticas disciplinares distintas entre colegas que lecionam na mesma srie, na
mesma escola.
Ou seja, constatamos a diversidade, a heterogeneidade na vida diria escolar, com que
diferentes escolas, professores, corpo administrativo se apropriam dos direcionamentos
dados pelos rgos governamentais de ensino, quer na rea administrativa, quer na
Pedaggica. Um exemplo tpico o da implantao do Ciclo Bsico em nosso Estado.
Essa proposta pedaggica foi iniciada em 1984, entendendo que a criana deveria ser
alfabetizada nesse ciclo de dois anos, onde a reprovao no faz sentido, priorizando o
avano da criana
43
em cada etapa do processo de alfabetizao. Em nossas observaes notamos que cada
escola procura adaptar os princpios da proposta do ciclo bsico s suas crenas ou
maneiras de funcionamento. As escolas que dividiam suas classes em fortes, mdias e
fracas agora criam eufemismos para nomear essa diviso, passando a cham-las, de CB-
inicial, CB em continuidade ou intermedirio e CB-final. Mantm, portanto, a mesma
rigidez com que sempre conceberam a escola. Os grupos homogneos geram a prtica
de constantes remanejamentos para outro grupo, conforme avancem ou no no conjunto
de critrios propostos pelo professor. comum em escolas que tm essa concepo
algumas crianas passarem por quatro ou cinco professores e classes em um nico ano
de escolaridade.
Ao mesmo tempo que tais prticas so encontradas, tambm observamos professores
que tm buscado maneiras mais crticas de trabalho nessa verso do ciclo, participando
ou custeando pessoalmente cursos de atualizao, mudando sua prtica em sala de aula,
possibilitando s crianas maior expresso e significado quanto ao processo de
aprendizagem da lngua escrita. Tais professores buscam alternativas de trabalho com
grupos heterogneos de alunos. Outros, ainda, acreditam no potencial das crianas para
aprender; utilizando mtodos tradicionais e o construtivismo como tempero
conseguem resultados excelentes como alfabetizadores.
A recorrncia da presena das diferenas em nossas observaes passou a questionar o
conceito de instituio (Bleger,1984) com que trabalhvamos , pelo fato de esse
conceito enfatizar aspectos homogneos, determinantes e gerais da escola, que no se
confirmam em nossa convivncia no dia-a-dia escolar. De maneira nenhuma
poderamos falar da escola como um ser abstrato, como um corpo homogneo.
Embora submetida s determinaes dos rgos estatais superiores, imersa na
burocracia e nas normas pedaggicas a ela impostas, deparvamo-nos com um espao
contraditrio, dinmico, confuso, divergente, atravessado por muitas outras
instituies, tais como: a organizao poltica ou no dos moradores do bairro e dos
professores; a participao maior ou menor dos pais e o conhecimento de seus direitos a
respeito da escola, do significado do espao escolar no bairro e sua utilizao pelos
moradores; nos motivos pelo qual um ou outro professor havia escolhido (ou no) estar
trabalhando nessa escola; no entrelaamento de histrias individuais desses professores
e das crianas
44

etc. Essas observaes apontavam para o fato de que cada escola se constitui num
espao historicamente construdo por aqueles que o compem, e na impossibilidade de
encontrarmos duas escolas iguais, pois as redes de relaes e as prticas nelas existentes
so singulares.
Esse descobrir o heterogneo, dar-nos conta da diversidade, coloca-nos diante de
uma importante questo: o nosso saber psicolgico sobre as inmeras e complexas
relaes que se estabelecem no interior da escola e fora dela. Que saber esse? Que
prticas esse saber tem gerado? O que essas prticas excluem? O que incluem?

As prticas psicolgicas e a queixa escolar


A Psicologia tem utilizado um saber que, de maneira geral, estabelece o seu recorte
sobre o indivduo, na sua relao com ele mesmo e com o outro. Analisa os significados
dos grupos primrio e secundrio para o indivduo. No que se refere ao indivduo e
escola seria necessrio, nesse recorte terico, localizar as possveis causas psquicas que
estariam interferindo em seu no aprendizado, em seu mau comportamento na sala de
aula, vistos enquanto um sintoma de algo mais profundo. As causas de tais
comportamentos estariam intimamente vinculadas a uma relao familiar (grupo
primrio) inadequada ou insuficiente para o bom desenvolvimento dessa criana,
permeada por carncias afetivas, nutricionais e cognitivas. Esse saber tem gerado
diferentes prticas psicolgicas, sendo um dos instrumentos principais o
psicodiagnstico clnico, feito de diferentes formas: entrevistas com os pais ou
responsveis, sesses de ludodiagnstico individuais ou em grupo, aplicao de testes
de inteligncia e projetivos que buscam incursionar pela subjetividade e nesse trajeto
desvelar os aspectos inconscientes e cognitivos que justificariam um tratamento
Psicolgico. Um dos objetivos das terapias est em libertar o indivduo de suas
dificuldades, das resistncias, diminuir a angstia em que se encontra para tornar-se
algum mais feliz, apropriar-se de seu desejo e dos limites deste na realidade.
O que esta prtica inclui? O que exclui? Sem dvida, podemos dizer que inclui a busca
do sentido da existncia, do significado de estar no mundo, compreender-se, lidar com
seus anseios e desejos. Conhecer os limites e as possibilidades de ser e ter so aspectos
45

relevantes e importantes para a vida de cada um de ns. Mas como pensar uma prtica
psicolgica quando, por exemplo, nos chega um encaminhamento com queixa escolar?
Essa pergunta nos remete ao que essa prtica tem excludo. Exclui, por exemplo, todo
um contexto escolar onde a criana est inserida, onde ora sujeito de seu saber, ora
no . Exclui a existncia da diversidade escolar, de seus determinantes e variantes.
Um dos casos encaminhados a uma psicloga com quem trabalhamos referia-se a uma
criana ingressante na primeira srie, cuja professora suspeitava que fosse deficiente
mental. Segundo esta professora, a criana no conseguiu nos primeiros dias de aula
responder perguntas simples, tais como: seu nome, de seus pais. Quando desistiu de lhe
perguntar, mostrou-lhe um lpis, insistindo para que a criana dissesse o que era. O
menino olhou-o respondendo: preto. Mais uma sensao de estranheza, pois a
resposta certa para a professora era lpis ou lpis preto.
A psicloga foi ento conhecer essa criana na escola, formando com ela e outras,
tambm encaminhadas para psicodiagnstico, um pequeno grupo. Pde nessa ocasio
conversar com as crianas encaminhadas a respeito dos problemas de aprendizagem a
elas atribudas. Entrevistou algumas mes e levantou dados de escolarizao no
pronturio escolar. Qual no foi a surpresa! Este aluno-problema tinha apenas seis
anos, havia chegado recentemente do interior de um Estado do nordeste e estava
cursando a primeira srie a pedido de sua me, para no ficar sozinho em casa, pois sua
irm mais velha freqentava diariamente a escola. A me acreditava que estar na escola
facilitaria para o seu filho o aprendizado numa posterior primeira srie, pelo fato de
permanecer em contato com tarefas e objetos escolares. Mas isso no estava
acontecendo. Caso a psicloga em questo no tivesse entendido esse contexto escolar,
muito provavelmente esse menino iria para uma classe de lentos ou uma classe especial,
onde fatalmente as expectativas formadas sobre seu mau aprendizado dariam o contorno
s suas potencialidades futuras. Conhecemos a eficincia desse tipo de profecia!

Nos relatos de psiclogos que se mostram preocupados com essa questo, h inmeras
situaes de encaminhamentos que se enquadram nessas circunstncias. So comuns os
depoimentos das mes, quando encaminhadas pela escola para Unidades Bsicas de
Sade (UBS), tentarem atribuir significados a problemas que elas mesmas no
identificam. Eu no sei no. A professora que disse que ele est precisando de
tratamento. Outras mes, aflitas pela no compreenso dos porqus dos problemas
escolares, tentam encontrar as causas em histrias de vida: Acho que porque quando
ele era pequeno, ele caiu de uma laje e bateu a cabea. Outros relatos mostram o
conflito das mes diante de sua prpria observao, que contradiz a da escola: Eu no
sei por que na escola ele no aprende, eu acho ele um menino muito esperto. Faz um
monte de coisas pra mim. Ajuda muito em casa! Ele me ajuda a fazer contas, ler coisas,
pegar nibus. E a professora diz que ele no aprende.

Outro aspecto da relao psicodiagnstica que tem chamado a ateno refere-se a


episdios onde vrias vezes durante o processo as mes trazem informaes da escola
dizendo que seu filho havia melhorado com o atendimento sem que o psiclogo
tivesse ainda finalizado o processo . Que problemas so esses que ocorrem no escolar
que o simples fato de ser atendido pelo profissional de sade gera mudana?

Essas questes nos remetem necessidade de situarmos tais acontecimentos no marco


da ideologia e das relaes de poder numa sociedade dividida em classes. preciso,
portanto, vislumbrarmos o conjunto de tramas, relaes e processos que esto muito
alm dos referenciais tericos com os quais temos trabalhado. O que podemos incluir
nessa anlise? As queixas apresentadas pela escola encontram-se no conjunto de
processos que constituem a tarefa escolar, envolvendo a prtica docente, tomando tais
prticas centrais para a nossa anlise. Ao invs de perguntarmos me, numa anamnese
a respeito de um dia na rotina da criana, precisamos conhecer como a professora
entende os problemas de seu aluno, dando informaes sobre o contexto de sala de aula
Ao invs de colhermos informaes sobre os primeiros meses de Vida da criana,
podemos obter dados sobre sua histria escolar, sobre a classe em que est (critrios de
formao), por exemplo, e o que Pensa sobre as queixas feitas pela professora. Ao invs
de aplicarmos testes de inteligncia e projetivos, formamos pequenos grupos onde so
Criados espaos de expresso e comunicao, onde a criana fala de seu aprendizado,
de sua vida escolar e mostra as suas potencialidades cognitivas e expressivas.
Paralelamente, trabalhamos com as professoras que encaminham as crianas. Os grupos
de trabalho com crianas e professoras so feitos na prpria escola.
47

Paulo tinha dez anos e uma histria de trs repetncias na primeira srie. Sua
professora queixava-se que no escrevia nada, apenas copiava da lousa, no
conseguind0 na maior parte do tempo, permanecer sentado. Nos primeiros encontros no
grupo de crianas da escola, mostrava-se da mesma forma. Ao final de oito encontros
escreveu um poema a uma das coordenadoras. Como explicar trs anos de sucessivas
tentativas escolares para superar um bloqueio que em oito encontros se resolve? O que
mais podemos oferecer, enquanto psiclogos, alm dessas oito sesses?

As subjetividades vo sendo produzidas... Sem pensamento exclui-se do corpo aquilo


que ele pode. Enfraquece-se o ser. Os temas ser aluno de escola pblica hoje, ser aluno
especial, freqentar uma classe lenta, devem ser pensados com as crianas. possvel
intensificar a problematizao, por pior que sejam as dificuldades econmicas,
intelectuais ou afetivas por que passam algumas crianas. Dizemos isso porque
trabalhamos as relaes, nesse campo de foras com virtualidades, onde as objetivaes
vo sendo produzidas. Para isso inclumo-nos nesse campo.
BIBLIOGRAFIA
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VEYNE, P. (1982). Como se escreve a Histria - Foucault Revoluciona a Histria,
Braslia, Ed. Universidade de Braslia.
49

3. O Que Toca Psicologia Escolar


Maria Cristina Machado Kupfer
Como todo jovem que se preza, a Psicologia Escolar no cansa de perguntar por sua
prpria identidade. O coro dos estudantes, profissionais e tericos dessa rea/ria vem
repetindo de modo exaustivo e monocrdico uma s frase musical. Cantam em
unssono: qual o papel do psiclogo escolar?.

Nos tempos da sua infncia, a melodia era outra. Provinha da certeza de seus
praticantes de que a Psicologia Escolar tinha assegurado o seu lugar no mundo da
Educao. Jubilosamente festejavam a imagem recm-construda, tomada, porm de
emprstimo s ideologias que nela queriam ver uma prtica ortopdica, corretiva das
aes dos professores sobre as crianas. Mais que isso, pediam que confirmasse a
mxima liberal segundo a qual as diferenas no provm da desigualdade de
oportunidades e sim das diferenas individuais. Assim, buscando ir ao encontro daquilo
que seus criadores dela esperavam, a Psicologia Escolar elegia o objeto sobre o qual iria
concentrar seus esforos: os problemas de aprendizagem das crianas.
Durante algum tempo, ento, foi necessrio que a Psicologia Escolar se alienasse nessa
imagem que ela prpria no construra, mas que lhe conferia uma identidade e uma
existncia.

Para os psiclogos orientados por essa perspectiva, foi conferido um lugar concreto na
escola, dentro do qual podia exercitar suas funes. No se tratava nem de sala de aula,
nem do ptio de recreao, nem das dependncias administrativas. Era apenas uma sala
de atendimento, um espao em que podia aplicar testes. Um espao margem: caso
fosse eliminado, em nada mudaria a configurao geral da escola. Se instalado a uma
distncia de dois quarteires, seu trabalho poderia prosseguir sem prejuzos. Sua voz
no fazia coro com as demais vozes da escola.

51
No entanto, o psiclogo entrou na escola. l dentro, no podia deixar de ouvir as
vozes da escola. Tinha agora ao seu alcance novos dispositivos tericos de leitura da
realidade escolar e de seus problemas. Sabia, por exemplo, do peso dos determinantes
sociais sobre os problemas de aprendizagem. Dispunha das leituras estruturais, segundo
as quais h uma relao de determinao recproca entre os elementos de uma
instituio. Ou seja, no seria jamais possvel estudar uma criana sem levar em conta
as peculiares relaes com seus professores e pais, por exemplo.
Diante dessa mudana de viso, o psiclogo passou ento a enfrentar dois problemas:
o da demanda e o da tcnica. Em primeiro lugar, como participar mais ativamente da
vida da escola, se s o que lhe pediam era que testasse, discriminasse e expulsasse as
crianas indesejveis? E, caso uma brecha lhe fosse aberta, com que instrumentos iria
trabalhar, se essas teorias mais recentes ajudavam a entender, mas pouco diziam sobre
como intervir na realidade escolar?(1) A tica que o orientava era agora a tica da
transformao social, mas no tinha idia de como promov-la com os poucos
instrumentos que a Psicologia lhe havia fornecido. Estamos agora naquele momento em
que o pr-adolescente cresceu, mas no interiorizou ainda seu novo tamanho, e vive
esbarrando pelos cantos. Sua voz oscila freqentemente de um registro grave para um
agudo, o que decididamente no facilita a sua participao no coro da escola! Ou seja,
ora aceita seu antigo lugar de psicometrista, ora deseja participar de uma reunio de
professores. De modo canhestro, opina, aponta erros, critica o modo pouco afetivo de
alguns professores, interpreta-os. Quer agora ocupar o lugar do maestro do coro... A
escola se fecha, o trabalho do psiclogo escolar sofre uma retrao.
Onde encontrar teorias psicolgicas que viessem a orientar uma interveno nas
escolas ao mesmo tempo que levassem em conta a anlise da realidade social? Que
Psicologia poderia propor uma interveno no-alienante?

(1) Justia seja feita ao movimento institucionalista e proposta dos grupos operativos
de Bleger. Tais idias no chegaram, no entanto, a se constituir em um prtica efetiva
junto aos psiclogos escolares em nosso meio.

52
Na busca das respostas a essas perguntas, o psiclogo acabou por topar com a
Psicanlise. No que ela j no estivesse de alguma forma presente. Estava, sim,
exercendo influncias sobretudo na Psicologia Clnica, e de modo impreciso quando se
falava por exemplo em projeo, em identidade, em desenvolvimento afetivo. Mas
agora se tratava de ir beber diretamente da fonte, ir em busca da teoria psicanaltica da
personalidade.
De incio, as perspectivas pareciam muito promissoras. Tudo levava a crer que a tica
da Psicanlise no casava bem com a idia de adaptao do indivduo realidade social,
pois seus compromissos eram com outras coisas; com o desejo, por exemplo, muito
embora no se pudesse entender exatamente do que se tratava quando se falava em
desejo. A Psicanlise era vista como uma prtica no ideolgica, e o que se pretendia,
com a Psicanlise, era transform-la em um auxiliar na luta pela transformao social:
um homem mais equilibrado teria mais condies de lutar por ela.
No entanto, as principais barreiras contra um casamento da Educao com a
Psicanlise foram levantadas pela prpria Psicanlise. No incio de sua obra, Freud
acreditava que uma educao psicanaliticamente orientada podia ter um valor
profiltico, porque evitaria excessos repressivos e conseqentemente a instalao das
neuroses. No final, porm, essa crena havia sido desmontada: faa o que fizer um
educador, no haver como evitar a castrao, o recalque e a neurose. Alm disso, a
sexualidade, o inconsciente e a morte, temas que constituem a seara da Psicanlise,
precisam ser cuidadosamente evitados pelo educador. A Psicanlise e a Educao
assentam-se em terrenos opostos, no podem auxiliar-se mutuamente. Devido
antinomia entre essas duas prticas, no possvel transformar o professor em um
Psicanalista, nem criar um mtodo pedaggico inspirado na Psicanlise (Millot, 1987).
Mais do que isso, o encontro da Psicanlise com a Educao e com o psiclogo
interessado em intervir de modo no-alienado na instituio escolar criou ainda um
outro impasse: as explicaes dadas Pela Psicanlise a respeito das origens dos
problemas das pessoas parece no coincidir nem um pouco com as explicaes que
colocam um grande Peso sobre os determinantes sociais.

Em busca de um esclarecimento a respeito desse aparente choque de opinies o


psiclogo encontrou uma explicao que lhe pareceu
53

satisfatria: se a Psicanlise no se importa com os determinantes sociais, porque ela


est operando com o sujeito do inconsciente, e no com o eu do sujeito.
O eu constitudo por identificaes, e se molda a papis sociais, se encaixa em tipos
psicolgicos, varia com as condies histricas. Para a Psicanlise, todo trabalho
psicolgico, seja ele realizado em uma psicoterapia individual, seja ele em uma
instituio, tem como alvo esse eu, e no o sujeito do inconsciente. Mas preciso no
esquecer que esse eu no se confunde com o eu do cogito, da conscincia. Ele possui
partes inconscientes, e basicamente uma instncia de defesa, o que o torna cego.
Longe de haver, nessa formulao, um menosprezo pelo trabalho sobre o eu, o que a
Psicanlise faz, ao afirmar essa distino, colocar com rigor um divisor de guas. A
doena mental, por exemplo, do mbito do sujeito do inconsciente, e precisa ser
tratada como tal; os problemas de aprendizagem so na sua maioria problemas no
funcionamento egico, e, portanto amplamente determinados pelas relaes vividas
pelas crianas no interior da instituio escolar.
A Psicanlise coloca, portanto, limites claros a respeito das possibilidades de uso dessa
teoria fora dos consultrios: no pode auxiliar diretamente um professor, a no ser que
esse professor se analise, no pode criar mtodos pedaggicos inspirados por ela, e no
tem os mesmos objetivos de qualquer trabalho institucional.
Levando em conta todas as restries que a Psicanlise coloca, e admitindo que o
trabalho do psiclogo em uma instituio escolar se dirija principalmente ao eu, poderia
a Psicanlise contribuir para a leitura das instituies, para a definio de objetivos e
para a criao de tcnicas de trabalho psicolgico em uma escola?

O espao psi na escola


Modernamente, existem teorias que podem ajudar a responder afirmativamente a essa
questo.
Ser preciso ter em mente que a Psicanlise que vai nos ajudar no a Psicanlise que
se preocupa em descrever fases psicossexuais
54
do desenvolvimento (oral, anal etc.), nem aquela interessada em apontar
constantemente desgnios e motivaes inconscientes para os comportamentos humanos
essas formas de Psicanlise no so, alis, freudianas (Japiassu, 1982). A partir do
ensino de Jacques Lacan, psicanalista francs, alguns parmetros passam a dirigir de
modo mais preciso o trabalho do analista. O discurso e no o comportamento o
alvo da anlise, e uma vez que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, o
analista estar operando com as leis de funcionamento da linguagem, e extraindo delas a
eficcia de sua ao.
Dito de outro modo, para essa Psicanlise a linguagem condio do inconsciente,
assim como condio da Cincia, assim como condio, fundamento, de toda
construo cultural. Condio, portanto, da construo das instituies humanas, e entre
elas, a escola.
Transportando esses princpios para o mbito de um trabalho institucional interessado
em adot-los, admitir-se- ento que toda instituio est estruturada como uma
linguagem. Se assim , estar sujeita s leis de funcionamento da linguagem.
Se as instituies seguem essas regras, tambm podemos ler os discursos que ali se
desenrolam da mesma maneira como se l o discurso de um sujeito em anlise. Embora
no estejamos psicanalisando as pessoas da instituio, estaremos aplicando as regras de
funcionamento da linguagem instituio como um todo.
Os discursos institucionais tendem a produzir repeties, mesmice, na tentativa de
preservar o igual e garantir sua permanncia. Contra isso, emergem vez por outra falas
de sujeitos, que buscam operar rachaduras no que est cristalizado. exatamente como
auxiliar de produo de tais emergncias que um psiclogo pode encontrar seu lugar:
eis o que pode propor uma Psicologia na escola que opere com parmetros da
Psicanlise.
O que poder acontecer quando uma instituio estiver toda voltada para a repetio,
para o igual? Pois bem, quando houver apenas repeties, quando houver apenas
discursos cristalizados, os sujeitos no mais podero manifestar-se. No falaro, no
podero oxigenar-se, ou seja, no Podero beneficiar-se dos efeitos de verdade e de
transformao que surgem quando h espao para emergncias ou falas singulares.
Nesses caso5, o resultado poder ser a impossibilidade de criao de novos discursos
mais flexveis e acompanhadores das mudanas. O passo seguinte e a fixao das
crianas em estereotipias, em modelos que lhes so pr-fixados;
55

vem a inibio intelectual, o fracasso escolar. Para os demais grupos da instituio


escolar onde no houver circulao discursiva, o resultado ser a falta de oxigenao e a
conseqente necrose do tecido social. A falta de circulao discursiva o incio do fim
de uma instituio, j que, no podendo jamais ficar parada, no lhe sobrar outra
alternativa a no ser recuar, e iniciar a sua atrofia. Independentemente dos alvos a que
se prope essa instituio, eles no sero atingidos.
De modo contrrio, quando h circulao de discursos, as pessoas podem se implicar
em seu fazer, podem participar dele ativamente, podem se responsabilizar por aquilo
que fazem ou dizem. Mudam ativamente os discursos, assim como so por eles
mudadas, de modo permanente.
Um psiclogo munido dessa leitura poder ento propor-se a criar condies para a
produo de tais mudanas.
Note-se ainda uma outra conseqncia do fato de encarar a instituio como
linguagem. As modificaes sofridas por um grupo podem provocar modificaes em
outros grupos da instituio, sem que esses outros tenham sido tocados ou mencionados,
j que a instituio est sendo encarada como uma rede de relaes interligadas e em
constante movimento, na qual a mudana de um elemento provocar necessariamente
uma alterao de posio nos demais. Isso uma decorrncia do fato de ela ser encarada
como uma linguagem. Se h mudanas em um grupo de professores, essas mudanas
podero transbordar para o grupo de crianas, sem que tenham sido dados conselhos,
orientaes, ou sem que os professores tenham tido conscincia da necessidade dessa
mudana. Simplesmente o ngulo de viso passa a ser outro, e o que se v outra coisa.
Um psiclogo que faa, por exemplo, um grupo de professores tendo como referncia
essa leitura institucional, de modo amplo, e do grupo, em seu funcionamento interior,
estar operando com princpios da Psicanlise, sem, contudo estar psicanalisando
ningum.
Assim, acredita-se que um psiclogo possa, atualmente, pedir Psicanlise que lhe
fornea alguns princpios orientadores da construo de um espao de trabalho dentro
da escola.
56

Parmetros do espao psi


O espao psi, definido por parmetros tomados de emprstimo psicanlise, pode ser
assim caracterizado:
1. O objetivo do trabalho do psiclogo na escola o de abrir um espao para a
circulao de discursos, naquelas instituies em que a ausncia dessa circulao estiver
comprometendo a realizao dos objetivos institucionais.
2. Um psiclogo estar autorizado a intervir em uma instituio quando estiver criada
a transferncia, seu principal instrumento de trabalho, da qual extrair seu poder de
ao, e com a qual poder criar o espao psi na escola.
3. Diante da demanda da escola, o psiclogo no a atender, nem a recusar, mas a
escutar (entendendo-se escuta em seu sentido psicanaltico).
4. O trabalho do psiclogo se movimentar na interseco entre a Psicologia e a
Pedagogia.
5. A tica que o orienta pode ser assim enunciada: um coordenador dirige os trabalhos,
mas no dirige as pessoas(2). Cada um dever responsabilizar-se por aquilo que diz,
condio para a eficcia da direo dos trabalhos. Disso se deduz ainda que o psiclogo
no participa da definio ou da transformao dos objetivos daquela instituio, pois
no faz uso poltico do poder que lhe confere a transferncia. Usa-a apenas para
produzir efeitos de verdade nos participantes dos grupos, e para ajudar na reorganizao
das condies de oxigenao daquele Organismo.
Tais princpios requerem uma explicao sobre seus fundamentos na Psicanlise.
Seguem-se algumas delas.

A escuta
A palavra recolocada em circulao o alvo. Para isso, seria necessrio apontar,
mostrar, interpretar os sujeitos nos grupos, mostrando

(2) Parfrase de um dito de Lacan: o analista dirige o tratamento, mas no dirige o


sujeito.
57

aquilo que s o psiclogo pode escutar? Isto no seria tirar proveito das leis de
funcionamento da linguagem, e sim das leis de funcionamento do poder da sugesto.
Estaramos tirando proveito do pedido dirigido ao psiclogo para que ele faa pela
instituio. H transferncia de poder da instituio para as mos do psiclogo, mas ele
no deve us-lo efetivamente, se quiser ser fiel aos princpios da Psicanlise.
Usando seu conhecimento sobre o funcionamento da linguagem, ser necessrio supor
que s a palavra proferida pelo sujeito pode ser por ele ouvida. No entanto, ele precisa
dirigir sua fala a algum para que esta retome e ele a oua. No se ouve se no usar esse
recurso(3). Portanto, o psiclogo estar em posio de escuta ativa. Para que esses
efeitos se produzam, preciso, em primeiro lugar, que o psiclogo tenha sido colocado
pelo falante em posio privilegiada. O falante precisa autoriz-lo a ser seu escutante.
Essa autorizao assegurada pela transferncia de que o psiclogo ser alvo. Em
seguida, ser necessrio proferir um escuto, para demonstrar essa sua disposio, para
oferecer-se nessa posio especfica e no em qualquer outra. Ao contrrio, caso atenda
ao pedido proferido na superfcie, possvel que se feche a possibilidade de aquele
pedido ter suas verdadeiras razes escutadas.
Em conseqncia, um psiclogo no aceitar a demanda da instituio, e tampouco se
recusar a aceit-la. S poder escut-la se quiser que os sujeitos nela envolvidos
venham, a saber, efetivamente o que est em jogo, o que querem, do que precisam, e por
que no podem formular tudo isso.

(3) Eis um trecho de O homem da mo seca, de Adlia Prado, que ilustra muito bem o
valor da escuta em uma anlise: Por que peso de Corcovado e no de Po de Acar?
Perguntou-me o doutor, inbil, recusando meu primeiro discurso, tomando meu
desenfeite orgulhoso por despojamento. Tinha mau sorriso. No confiaria quele
homem afoito a dor da minha alma. (...) O segundo doutor ouviu-me a um ponto que eu
mesma ouvi-me. Eu gostava da minha voz narrando, da tez, do sorriso obsceno, da
estatura an dos monstrinhos que permitia passear entre a estante e a poltrona de couro
da sala, o doutor balanando a cabea sem me criticar. Falei de novo peso de
Corcovado, ficou impassvel escutando, era bom falar, chamar luz do dia a populao
das trevas, meu desassossego. So Paulo, Siciliano, 1994, pp. 87-88.
58

O espao pela transferncia


O trabalho do psiclogo cria na escola um espao que no existe concretamente, que
no nem a sala de aula, nem a sala da diretora, nem o ptio de recreio. Trata-se de um
espao montado, de um recorte a partir de todos os espaos da escola. um novo
espao que se cria quando se entra na escola.
Como montar esse espao na escola? E por que ele no pode coincidir com os j
existentes?
A partir do momento em que um psiclogo se dispe a ouvir a demanda de trabalho
psicolgico feita por uma escola, j se inicia o desenho desse espao. A escola autoriza
o psiclogo a ocupar um determinado lugar, e essa autorizao indica o estabelecimento
de uma transferncia.
Sendo ele o alvo da transferncia, a ele que sero dirigidos os discursos, e essa a
condio para que ele possa l-los. Um psiclogo pode saber sobre a relao que um
sujeito estabelece com ele porque ele mesmo o alvo. Mas no h como saber como a
relao de um professor com seu aluno. Mesmo indo observ-la em sala de aula, ou
ainda que o professor a relate, estaramos apenas vendo comportamentos, com um risco
enorme de erros de interpretao. S poderemos intervir sobre as relaes
transferenciais de que formos alvo, da a necessidade de criar instncias especiais de
trabalho, sem a interferncia de outras tarefas ou de outras figuras de autoridade
presentes.
Aps ser configurada pelo estabelecimento da transferncia, prossegue a montagem
desse espao quando o psiclogo cria enquadres mais ou menos fixos para acionar seu
eu escuto; monta grupos, marca reunies. Ao faz-lo, pe a palavra em circulao.
Falam os professores no grupo, falam as crianas em outro, falam os pais na reunio. As
alternncias de falas, as relaes que o psiclogo estabelece entre elas, Vo
desenhando, dando contornos a esse espao. A transferncia de que se suporte e as
falas encadeadas montam o campo psi em que Circular o psiclogo(4).

(4) Para entender melhor a transferncia, ver Miller, J. A., Percurso de Lacan. Rio de
Janeiro, Zahar, 1987.
59

Entre a Pedagogia e a Psicologia


O espao psi se define, em termos de contedos, a partir da interseco entre o
pedaggico e o psicolgico. Ou seja, h aspectos do pedaggico que caem fora do seu
mbito, assim como h aspectos do psicolgico que tambm no devem ser abordados.
Se uma professora, por exemplo, pe-se a falar da infncia, ser preciso pensar a
interseco dessa histria com a questo dela enquanto professora ali. O trabalho dirige
a discusso para esse espao de interseco, e despreza os aspectos mais propriamente
psicanalticos do discurso daquela professora. Ao fazer isso, haver tambm aspectos do
pedaggico que cairo fora: tcnicas de alfabetizao etc. Do mbito institucional,
ficaro dentro do espao psi aqueles aspectos que dizem respeito, por exemplo, ao
especial modo como as crianas e os professores vivem e filtram para si as relaes de
poder, e ficaro fora as aes concretas que buscam modificar tais relaes.

A justificativa disso advm do mbito possvel de qualquer trabalho com a


subjetividade psicanaliticamente orientado, mas realizado fora do enquadre do
consultrio: o mbito ser o do eu do sujeito, e portanto o das identificaes, o dos
papis socialmente definidos. Em uma palavra, o do imaginrio. O que est em jogo o
modo como aqueles professores imaginam seu papel, e quais os discursos em torno
desse papel que impedem seu exerccio eficaz, muito mais que a verdade ltima daquele
sujeito do inconsciente que habita um professor.

O psiclogo voltou agora, como no incio, a no fazer parte do coro da escola.


Tampouco seu maestro, nem o compositor da melodia que entoam. Resta-lhe ento o
lugar do ouvinte, lugar difcil de manter. Mas no pelo fato de haver um ouvinte que
se justifica toda a mobilizao de um coro? No por ele que trabalham, que se
orientam? Se o psiclogo puder se manter nesse lugar, e se puder reproduzir em uma
escola os efeitos que um ouvinte causa a um coro, no ter trabalhado para consertar
uma escola, mas para ser um dos agentes na produo de uma instituio bem
concertada!
60

BIBLIOGRAFIA
JAPIASSU, H. Introduo Epistemologia da Psicologia. Rio de Janeiro, Imago, 1982.
MILLOT, C. Freud anti-pedagogo. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.
SOUZA, H.R. Institucionalismo: a perdio das instituies. Temas IMESC, v.1,
n.1, pp.l3-24, 1984.
61

4 CRIANAS PORTADORAS DE QUEIXA ESCOLAR:


REFLEXES SOBRE O ATENDIMENTO
PSICOLGICO

Cintia Copit Freller


Com este artigo pretendemos repensar o atendimento psicolgico clnico usualmente
dirigido s crianas portadoras de queixa escolar.

Nossa reflexo parte da pesquisa feita para a dissertao de mestrado, onde


entrevistamos psiclogos que atenderam crianas com dificuldades escolares e
analisamos os laudos por eles elaborados.
Constatamos que a grande maioria dos profissionais prope o mesmo procedimento
diagnstico seguido pelo mesmo tratamento para todas as crianas que procuram
atendimento psicolgico, independentemente da queixa ou do agente do
encaminhamento.

O processo psicodiagnstico consiste em entrevistas de anamnese com a famlia,


sesses de ludodiagnstico e aplicaes de testes de inteligncia e projetivos. Para
finalizar, marcada uma entrevista devolutiva com a famlia, em que geralmente
recomendada uma psicoterapia para a criana e orientao para a me. Algumas vezes
so sugeridos encaminhamentos para classe especial e outros atendimentos especficos,
como por exemplo tratamento fonoaudiolgico.

Este padro de atendimento tem sido considerado insatisfatrio pelas crianas, pais,
professores e at pelos psiclogos que o praticam.
Os pais, especialmente aqueles provenientes das camadas populares, relatam a enorme
dificuldade que enfrentam para seguir um tratamento to longo, oneroso e muitas vezes
incompreensvel e injustificvel. Muitas vezes no acham necessrio tal processo, j que
o filho no apresenta problemas em casa, s na escola.
As crianas se sentem discriminadas e desvalorizadas pelos colegas, familiares e
professores por necessitarem desse tipo de atendimento. Freqentemente se dizem
loucas, doentes ou burras e passam a agir como tal. Outras vezes dizem que so
perseguidas pelas professoras, pois todas as crianas fazem baguna, mas s elas so
encaminhadas. Sentem-se injustiadas e expressam seu descontentamento por serem o
bode expiatrio da classe.
Por fim, os psiclogos, ao mesmo tempo em que se defrontam com altos ndices de
desistncias no decorrer do processo de tratamento, so obrigados a dar conta de uma
fila de espera cada dia maior para o incio de atendimento. Expressam muitas dvidas
em relao adequao do tratamento psicolgico clssico dirigido populao de
baixa renda. Problematizam, no entanto, os pacientes e no a prtica psicolgica
proposta.
Encontram tambm dificuldade para explicitar os objetivos que almejam com seu
trabalho e uma certa insegurana em relao aos resultados obtidos. Afirmam que a
maior parte da clientela infantil procura atendimento por problemas escolares, mas no
incluem a escola no processo diagnstico nem na proposta de tratamento.
Assim, tratam as crianas e sua famlia sem problematizar os fatores intra-escolares
implicados na produo e manuteno da queixa escolar. Acreditam que todas as
crianas tm algum nvel de problema emocional que merece ser elaborado em um
processo teraputico.
O desconhecimento dos psiclogos em relao estrutura e ao funcionamento das
escolas pblicas no Brasil, somado ao preconceito em relao s famlias pobres, so
muitas vezes justificados e camuflados por teorias psicolgicas que explicam tudo pelos
mecanismos intrapsquicos da criana e pelas relaes familiares precoces que os
determinam.
O depoimento de uma psicloga que atende predominantemente crianas com
problemas escolares em um ambulatrio de sade mental da periferia de So Paulo
expressa bem essa realidade:

A maioria das crianas que procura o posto vem com cartinha da escola, que quer um
encaminhamento para classe especial, porque no acompanham nas classes normais. Eu
no sei bem como funcionam essas classes, fico insegura de encaminhar.. Sei que tm
menos alunos e a professora pode dar mais ateno. Eles j tm pouca ateno em casa.
Sabe como , essas famlias numerosas, desestruturadas, a me trabalha e tem montes de
filhos, no pode atender cada um, estimular, acompanharas lies. Ento eu encaminho
para classe especial. Acho que deve ajudar Pelo menos vo ter mais ateno da
professora, que at mais especializada neste tipo de criana.

Perguntamos a esta psicloga se ela j esteve em alguma destas escolas, conversou com
a professora, procurou conhecer como funciona de fato uma classe especial. Ela
responde:
Nunca fui nestas escolas que encaminham. s vezes fico com vontade de conversar
com a diretora de uma escola aqui perto que encaminha praticamente uma criana por
semana, ou porque no aprende ou por indisciplina. Mas eu nem saberia como entrai;
com quem falar..
A nossa formao diferente, clnica, e o que importa o que observamos no contato
com o cliente como sua relao com o psiclogo, com os brinquedos, os resultados
dos testes, o que a me fala. A trabalhamos com a criana, para ajudar ela. Nem daria
para ir na escola, conversar com a professora. So muitas escolas, muitas professoras.
s vezes eu mando um bilhete perguntando alguma coisa, como ele na sala de aula,
para ajudar no diagnstico.

Esta psicloga procura justificar a excluso da escola do diagnstico e tratamento


destas crianas atravs de dificuldades prticas, e principalmente recorrendo a
determinadas teorias psicolgicas que orientaram sua formao e dirigem sua prtica
atual.
Ela atendia Carlos, um menino de 8 anos, em terapia grupal, enquanto outra psicloga,
do mesmo posto, atendia a me em orientao. A me procurou atendimento porque a
professora de Carlos chamava-a freqentemente para reclamar que ele era imaturo,
agitado, no queria fazer as lies e s pensava em brincar. A professora deixava-o de
castigo, sem recreio, olhando para a parede. A me, recm-separada do pai, no
agentou a presso da professora, resolveu tir-lo da escola e trat-lo, para quando
melhorar retomar o processo de escolarizao.
A psicloga, atravs do psicodiagnstico, constatou que problemas emocionais
comprometiam o rendimento escolar de Carlos, entre eles uma relao doentia com a
me, que o infantilizava, alm do sofrimento decorrente da ausncia do pai, que era seu
modelo masculino e seu aliado. Essa problemtica, segundo a psicloga, merecia ser
elaborada atravs de um processo teraputico, prontamente iniciado.
Carlos fazia terapia duas vezes por semana e passava o resto do dia acompanhando a
me, passivamente, nas suas tarefas domsticas, fora da escola e do contato com outras
crianas. Isso no foi abordado e discutido pela psicloga. Ocupada com os aspectos
emocionais, os vnculos transferenciais, o inconsciente, etc., descuidou-se da realidade
objetiva do menino de oito anos, que deve, at por lei, se escolarizar.
Precisamos ento refletir sobre os pressupostos tericos, crenas e pr-juzos que
sustentam essa prtica, e analisar suas conseqncias para a criana e para a escola.
Acreditamos que o psiclogo, ao aceitar a criana inadaptada na escola como paciente e
propor um psicodiagnstico para conhec-la melhor, sem problematizar os fatores intra-
escolares envolvidos no caso, est limitando seu campo de compreenso e de ao. A
priori ele ratifica as concepes do agente encaminhador, em geral a escola, e procura o
problema na criana ou em sua famlia. Assim como os tericos da carncia cultural
desviam o olhar da escola e o fixam no aluno ou em sua famlia, que mais uma vez so
culpabilizados pelo fracasso escolar.
H um pressuposto comum entre ambos os profissionais de que o fracasso escolar
causado por problemas de ordem emocional e intelectual gerados por privaes afetivas
ou materiais. O vnculo entre rendimento escolar e relacionamento familiar precoce
estreito, linear e mecnico.
Um exemplo dessa relao encontra-se no laudo psicolgico de uma criana
encaminhada para classe especial:
H um carter deficitrio do ponto de vista intelectual j instalado, devido
problemtica emocional, assim como s privaes encontradas em sua histria de vida.
Em outro trecho do laudo encontramos:
H uma carncia afetiva muito grande... A sua auto-imagem encontra-se muito
prejudicada, h uma descrena na sua prpria capacidade, assim a criana evita entrar
em contato com a dificuldade, com a experincia.

Esta mesma psicloga, se conhecesse a histria escolar desta criana, poderia concluir
que o dficit intelectual (apurado atravs dos testes de inteligncia, sem que seu
desempenho global na vida cotidiana fosse levado m conta) pode ser conseqncia de
uma experincia escolar desastrosa, marcada por sucessivas mudanas de professores e
tcnicas de alfabetizao, entre outras coisas. No seu primeiro ano de escolarizao
cinco professoras assumiram a classe, determinando uma repetncia em bloco de todas
os alunos. A partir de ento as repetncias foram se sucedendo, a carreira de fracassos
se consolidando at o encaminhamento para classe especial, prejudicando sua auto-
imagem e provocando uma descrena na sua prpria capacidade.

O psicodiagnstico usual avalia fundamentalmente os conhecimentos e habilidades j


adquiridos pela criana, visando medir respostas, resultados, enfim, o produto final.
Feuerstein, por outro lado, atravs de sua proposta de psicodiagnstico apresentada no
XVII ISPAI/II CONPE objetiva conhecer o potencial da criana e o processo que utiliza
para chegar aos resultados. Ele acredita que todas as crianas so capazes de aprender,
independentemente do sintoma que apresente. Essa crena na capacidade da criana
pobre muito frgil por parte dos psiclogos e professores que trabalham diretamente
com essa populao, sendo apontada por pesquisadores da rea como importante causa
do fracasso escolar. Na verbalizao de outro psiclogo, a descrena nestas crianas
patente:
As crianas que chegam no posto, at os pais decidirem trazer porque tm problemas
srios mesmo. So vrias as carncias, deficincias e problemas cognitivos j
instalados. Aparecem crianas com 5, 6 anos de repetncia! Tem caso que o que d para
a gente fazer pouco perto dos problemas que o rodeiam. A eles acabam desistindo do
tratamento, percebem que no vai mudar muita coisa.

A histria familiar e as carncias materiais so utilizadas para explicar, com


exclusividade, os problemas escolares. A maioria dos psiclogos no se preocupou em
conhecer as prticas que produzem e mantm o fracasso escolar para articular a histria
escolar com a histria pessoal do aluno e, assim, propor alternativas de mudana na
prpria escola, alm do trabalho centrado na criana e sua famlia.

A concepo corrente de que os mecanismos intrapsquicos, tomados como


principais causadores dos problemas na escola, so inatos ou formados nas relaes
entre o beb e sua me nos primeiros anos de vida, O beb j nasce com um mundo
interno bastante formado, marcando sua personalidade e seu padro de relao com o
mundo externo, como, por exemplo, maior ou menor resistncia frustrao, inveja,
agressividade etc. As relaes familiares precoces tambm so consideradas
estruturantes e fundantes da organizao psquica do sujeito.
A escola e outros fatores ambientais posteriores no so considerados estruturantes, e
sua participao influenciaria pouco o desenvolvimento do sujeito e a formao de
distrbios afetivos e sociais.

A capacidade de enfrentar um ambiente adverso depende dos mecanismos


intrapsquicos do sujeito e conseqentemente o fracasso ou o sucesso escolar dependem,
em ltima instncia, da prpria criana. Isso explicaria porque um aluno consegue
68

aprender em uma pssima escola e outro nada consegue em uma escola considerada
boa.
Nesta perspectiva, para entender um sintoma ou conflito que o indivduo est
enfrentando no presente, o psiclogo busca as causas nas marcas deixadas pelas
relaes primitivas e procura, entre outras coisas, conhecer (avaliar) os vnculos
familiares (no caso da psicanlise, relaes dinmicas inconscientes) atravs do
psicodiagnstico.

Junto com os testes e questionrios, o psiclogo carrega tambm preconceitos e


descrenas que desviam sua escuta das foras emocionais encobertas e do sentido do
discurso que lhe comunicado. Sua escuta muitas vezes fica presa no concreto, distante
do desejo e daquele que deseja, colada s no sintoma e seu efeito no social. Distancia-se
do particular, do individual, estreitando sua capacidade de entender e ir ao encontro das
necessidades do paciente, deformando sua capacidade reveladora e limitando suas
escolhas.

Constatamos tambm certa ambigidade no trato com a realidade concreta dos


pacientes. No caso da histria escolar, o que importava para os psiclogos eram as
representaes e fantasias que a criana tinha da escola. No caso das relaes familiares,
as condies concretas de vida tais como privaes materiais e afetivas eram
efetivamente consideradas. Muitas vezes era frustrada a tentativa de ir alm da realidade
objetiva e depreender como tal ou qual situao marcou e se inscreveu naquele sujeito
particular:
Os pais de Carlos so separados, brigam muito e essa situao familiar parece ser
responsvel pela sua grande instabilidade emocional e insegurana. Essa problemtica
emocional compromete o seu rendimento escolar, dificulta sua concentrao...
69

A aproximao dos psiclogos da situao familiar dessas crianas pobres marcada


por desconhecimentos encobertos por preconceitos: as famlias so desestruturadas,
no se preocupam em atender s necessidades culturais e afetivas das crianas, no
cuidam dos seus filhos, gerando toda sorte de privaes e lacunas, tm um filho atrs do
outro, bebem etc..
Para muitos destes profissionais, essas famlias estabelecem relaes pobres em
estmulos e afetos, requerendo a atuao de profissionais especializados que possam
ajud-las a modificar e incrementar esses vnculos, gerando crianas mais capacitadas e
mais adaptadas escola e sociedade.
Como constatou Nicolaci-da-Costa (1987), as caractersticas especficas do modo de
viver dessa populao so consideradas inadequadas, o sistema simblico das famlias
das camadas populares, mais do que diferente, considerado pior do que o das
famlias de classe mdia. E a definio pela ausncia, pelo que falta ou pelo que essas
crianas tm de inadequado.
Essa autora analisa as caractersticas das intervenes propostas pelos tericos da
carncia cultural para preencher as lacunas deixadas pela educao familiar
supostamente inadequada das crianas pobres. So programas que visam oferecer uma
educao compensatria, que consiste em desenvolver na criana habilidades e
comportamentos adequados, ou que almejam agir sobre os pais, ensinando-os a educar
seus filhos adequadamente.
Em ambos os casos o tratamento dirigido s crianas e a suas famlias para ajud-las
a, em ltima instncia, ter sucesso em um sistema educacional que no modificado,
nem sequer problematizado profundamente.

Respondem ao nvel do fenmeno manifestado, do sintoma: angstia dos pais,


perturbao escolar ou caracterial da criana, por um emprego de dispositivos de
socorro especficos, preconizando medidas teraputicas ou corretivas destinadas a
reeducar (Dolto, 1981).
70

Freqentemente so encaminhadas crianas cuja queixa maturidade, indisciplina,


desobedincia. Elas no correspondem expectativa da instituio escolar, no
apresentam os comportamentos esperados pela professora, como ficar sentado, quieto,
fazendo as lies e obedecendo ordens. So geralmente crianas normais, apresentando
uma gama diversa de comportamentos esperados para a idade e outras vezes reativo a
situaes de ensino aborrecidas e/ou desrespeitosas. Cabe escola entender esses
comportamentos e educar, no sentido de permitir seu acesso cultura e no no sentido
de moralizar e domesticar.
Muitas crianas de sete, oito anos chegam s clnicas de psicologia porque so
agitadas, imaturas, no conseguem passar a manh sentadas, sem falar com os colegas,
fazendo seus ditados e cpias. S quer saber de brincar, fala a professora; ele no
quer aprender, afirma a me. Vamos tentar entender as causas do seu problema para
poder ajud-lo, decreta a psicloga, psicologizando e patologizando um
comportamento esperado para crianas dessa idade, que esto iniciando seu processo de
escolarizao. No se importam se a criana brinca, criativa, vivaz, alegre,
caractersticas reveladoras de sade mental. Atm-se apenas ao carter perturbador
desses comportamentos e, ainda que involuntariamente, trabalham para a submisso e a
adaptao da criana ao seu meio social.
Ao atender essas crianas o psiclogo confunde, como nos ensina Costa (1984), tipo
psicolgico ordinrio com sade mental. O primeiro refere-se a uma srie de
caractersticas consideradas ideais por uma determinada classe social para serem
atingidas por seus membros. O segundo remete a uma estrutura psquica patolgica.
Nesse sentido, fracassar no acesso ao tipo psicolgico que a instituio intenciona
produzir pode at ser fonte de sofrimento, mas no reflete necessariamente doena
mental, e no requer tratamento mdico-Psicolgico. Ao tratar a criana que no atinge
o tipo almejado socialmente, o psiclogo est realizando um trabalho adaptativo e
discriminatrio, predominando a idia de que a diversidade precisa ser domesticada e
uniformizada.
Como define Kupfer (1992), A doena mental, por exemplo, do mbito do sujeito
do inconsciente, e precisa ser tratada como tal; os problemas de aprendizagem, so na
sua maioria problemas no funcionamento egico, e portanto amplamente determinados
pelas relaes vividas pelas crianas no interior da instituio escolar.
71

Outro pressuposto que justifica a prtica indiscriminada de diagnosticar e tratar


psicanaliticamente os problemas de aprendizagem, sem levar em conta a necessidade
individual do caso e a necessidade social (demanda excessiva gerando filas de espera
enormes), o de que mal no faz e que a terapia sempre til para o
autoconhecimento e para a elaborao de conflitos.
Percebemos uma preocupao ainda embrionria por parte dos psiclogos em
discriminar os casos, na terminologia de Fernandez (1991), de fracasso escolar reativo
(problema social em que a criana no se adapta como uma defesa contra mecanismos a
que est submetida e no entende ou no concorda) e casos de fracasso escolar
sintomtico (inibies ou deficincias que podem ser localizadas mais especificamente
na criana) para dirigir uma interveno diferenciada que v ao encontro das
necessidades de cada caso. A maior parte das crianas que apresentam algum sintoma
ou diferena que a escola julgue como problemticos geralmente encaixada no pacote
psicodiagnstico-psicoterapia.
Os laudos, elaborados pelos psiclogos, no consideraram a possibilidade de
determinados comportamentos refletirem um momento de crise, natural e esperado para
crianas que esto em processo de escolarizao. Prevaleceu entre os psiclogos a
tendncia a patologizar e psicologizar comportamentos que desviam do esperado pela
sociedade e cronificar etapas de crise normais ao processo de crescimento.
Sabemos que a criana enfrenta inmeros momentos crticos, de desequilbrio, que so
etapas necessrias ao processo de crescimento, no demandando nenhuma interferncia
especial. A interveno psicolgica aplicada indiscriminadamente apenas estimula a
crena no saber competente e a dependncia dos professores em relao a profissionais
especialistas para tratar qualquer sintoma e qualquer conduta diferenciada, diminuindo a
confiana nos seus recursos e responsabilidades. E, como aponta patto, convence
crianas e pais de sua suposta incapacidade e anormalidade.
O cuidado em discriminar a necessidade de cada paciente, em particular da criana
encaminhada com queixa escolar, e no prescrever psicanlise para todos sugerido
por vrios psicanalistas.
No artigo Variedades de psicoterapia, Winnicott (1987) discute modificaes na
tcnica psicanaltica em funo das necessidades do paciente e no do ponto de vista do
terapeuta.

72

Dos muitos pacientes que me procuram, de um modo ou de outro, apenas uma


porcentagem muito pequena obtm, de fato, tratamento psicanaltico.
O autor procura sempre a doena central numa famlia ou uma doena social, sempre
levando em conta os aspectos econmicos do caso.
Os analistas so especialmente propensos a atolar-se em longos tratamentos, no
decorrer dos quais podem acabar perdendo de vista um fator externo adverso.

Winnicott (1982) afirmava ainda que:


nada mais enganador na avaliao dos mtodos educativos do que o simples xito ou
fracasso acadmico. O xito pode meramente significar que uma criana encontrou ser o
da subservincia o caminho mais fcil para lidar com um determinado professor ou
certo assunto, ou com a educao como um todo, uma boca sempre aberta com os olhos
fechados ou um engolir tudo sem inspeo crtica. Isto falso, pois significa a
existncia de uma completa negao de dvidas e suspeitas muito concretas. Tal estado
de coisas insatisfatrio no que respeita ao desenvolvimento individual, mas matria
prima para um ditador.

Dolto (1981), Mannonni (1981) e Winnicott (1975) afirmam que nem todos os casos
de inadaptao escolar necessitam tratamento

73

psicanaltico e que muitos poderiam ser cuidados pelo prprio crculo escolar em que
esto inseridos. Alertam ainda que cabe ao psicanalista criar situaes em que o ensino
seja possvel para todas as crianas.
Mannonni (1981) relembra que: as nossas consultas so insuficientes para enfrentar o
nmero excessivo de casos benignos de inadaptao escolar que poderiam ter sido
resolvidos no mbito de um ensino tradicional normal, se este ltimo estivesse mais
bem adaptado s exigncias de cada indivduo. Desta forma, as crianas rotuladas de
doentes poderiam tirar partido de um ensino consentneo com suas dificuldades.
Dolto (1981) recomenda aos psicanalistas clnicos que s tratem casos decorrentes de
desordens profundas da vida simblica e no de dificuldades sadias vida escolar
atualmente efetivamente patognica. Ela afirma que o papel do psicanalista permitir
que o sujeito neurtico ou psictico encontre seu sentido, mas tambm dar seu grito de
alarme diante da carncia do ensino pblico (Isso na Frana!).
A preocupao em estudar o contexto onde se produzem (ou reproduzem) e se
manifestam os conflitos individuais outro aspecto marcante dos escritos de Winnicott.
Ele atribui um papel estruturante ao ambiente externo, inicialmente representado pela
me e posteriormente pelos crculos mais amplos como famlia, escola e sociedade.
Na sua teoria, o mundo externo no concebido como repressor, representante do
princpio da realidade cujo papel somente frustrar, limitar, cortar. Como afirma Luz
(1989), ele constitutivo na positividade, pois pensa a emergncia do sujeito e do
mundo humano em um espao de jogo e tematiza as modalidades de subjetivao na
experincia, que so singulares e variveis.

74

Ainda segundo Luz (1989), a relao conflitante entre o mundo externo e interno
superada atravs do conceito de espao intermedirio entre esses dois mundos. Ao invs
de estudar os processos intrnsecos de adaptao realidade e vida social, Winnicott
estuda os processos atravs dos quais o indivduo pode criar e, assim, aceitar a
realidade.
O autor prope a possibilidade de uma intercomunicao com o mundo externo,
caracterstica de uma troca significativa que no pode ser expressa em termos de
mecanismos de projeo e introjeo.
Winnicott (1975) concebe um papel contnuo de desenvolvimento humano, que
comea antes do nascimento e prossegue ao longo de toda a vida, at a morte. Portanto
reflete, em vrios artigos, sobre a evoluo do ambiente e sua relao com o sujeito em
crescimento.
Desta forma o fracasso escolar no pode ser explicado apenas pelos mecanismos
intrapsquicos da criana ou por suas relaes familiares primitivas, O ambiente escolar
merece ser considerado.
Winnicott acentua a importncia da aprendizagem criativa e do uso positivo da
agressividade para a experincia cultural, que desenvolvida a partir dos primeiros
objetos transicionais, passando pelo brincar at os processos mais elaborados de
simbolizao e produo cultural. Ele prope um regime especfico da experincia
cultural, em continuidade direta com os fenmenos transicionais e o brincar. O fio
condutor dessa experincia a criatividade, que permite ao indivduo transformar e se
apropriar do que est dado. uma experincia em que o sujeito est pessoalmente
envolvido e descobre o mundo ao mesmo tempo em que descobre a si prprio,
proporcionando um sentimento de que a vida vale a pena.
Cabe ao meio ambiente, suficientemente bom, no incio representado pela me e
depois pela escola e por outras instituies, Proporcionar essa experincia ao invs de
privilegiar uma relao com O mundo externo e com a cultura de cpia, adaptao e
submisso.

75

Nesse sentido a escola, se cumprisse seus objetivos de socializar o conhecimento


humano, respeitando a individualidade de cada sujeito na recriao da cultura,
potencializaria a criatividade humana, o que segundo Mello Filho (1989) um dos
objetivos de uma psicoterapia analtica.
Para que a criana possa ser responsvel e se comprometer com atividades sociais e
culturais necessria a presena de um outro que receba, aceite e valorize sua produo,
d oportunidades e reconhea a agressividade como um componente necessrio ao
impulso de aprender (o que geralmente no ocorre na escola).
A partir dessas idias precisamos rever a prtica clnica usualmente dirigida s crianas
com problemas escolares e propor um processo preliminar, breve, de escuta de todos os
personagens envolvidos para juntos delinearem uma interveno que v ao encontro das
necessidades de cada caso.
Esta interveno, prvia e breve, nos problemas escolares toma como paciente no
apenas a criana, mas tambm sua famlia e seus professores. O objetivo desse trabalho
criar um espao onde todas as pessoas envolvidas possam formular questes,
expressar seus conflitos, repensar vnculos, buscar determinantes histricos especficos
de cada caso para procurar estratgias que possam promover o desenvolvimento da
criana
Atravs desta interveno penetramos no conflito predominante, promovendo
mudanas, dissolvendo dificuldades, mobilizando aes, possibilitando a comunicao e
facilitando um caminho progressivo no processo de amadurecimento da criana e das
relaes.
Esse processo inclui um diagnstico social, uma vez que parte do princpio que h
alguma dificuldade ou deficincia ambiental mantendo e/ou causando os problemas
escolares da criana.
Assim, trata-se de uma interveno iluminada pelas falhas ambientais (presentes e
passadas) ocorridas, baseada na reconstruo da histria da criana, feita junto a ela,
seus pais e professores. Esse esforo conjunto pode facilitar seu crescimento, ao
propiciar uma proviso ambiental mais adequada.
O psiclogo deve preocupar-se em promover um clima ldico, em que as mltiplas
verses sejam expressas na rea de superposio dos diversos espaos potenciais
envolvidos, possibilitando uma experincia de jogo e de comunicao profunda em um
espao confivel.

76

Seu objetivo principal no localizar os problemas, as lacunas e as deficincias,


produzindo uma culpabilizao mtua. Sua prtica se orienta no sentido de reconhecer,
possibilitar e implementar o espao de jogo na criana e nas reas de Superposio entre
ela e os demais sujeitos, promovendo e valorizando encontros das reas do brincar.
O brincar uma experincia importante e tem efeitos teraputicos para a criana,
professores e pais. Como nos ensina Lins (1991), no brincar os paradoxos so mantidos,
enriquecendo e movimentando a experincia. Atravs da brincadeira pode-se re-
significar e elaborar cenas vividas passivamente, atravs da recriao, enquanto sujeito,
destas situaes para ento poder reagir apropriadamente. Produz mudanas de lugares e
transforma desprazer em prazer.
O psiclogo junto com os demais participantes se debruam sobre os problemas,
buscando uma reviso e um resgate das histrias individuais, escolares e do cruzamento
entre elas.
Nossa hiptese que a compreenso da causa do conflito da criana (que no s da
criana), nesse novo enfoque que inclui o ambiente na delimitao dessa problemtica,
ajuda a instituio escolar, os pais e a prpria criana a enfrentar melhor os problemas e
a mudarem seus lugares.
Desta interveno inicial podem emergir outras propostas de atendimento,
desdobramentos especficos para cada caso. Por exemplo, pode concluir-se pela
necessidade de um atendimento individual da criana inadaptada ou, em outros casos,
determinadas modificaes na instituio escolar que facilitem a aprendizagem da
criana, ou ainda um trabalho com a famlia.
Nesse sentido destacamos nossa preocupao central em relao ao uso indiscriminado
e automtico do psicodiagnstico da criana com problemas na escola e propomos um
processo preliminar de atendimento ao grupo envolvido no fracasso escolar, que no
necessariamente fracasso da criana, mas tambm da escola, da famlia etc.
S ento poderemos penetrar de fato nas complexas redes de relaes envolvidas na
queixa escolar e abrir uma possibilidade de desmonte do fracasso e de abertura para o
crescimento da criana, da famlia e da escola.

77

BIBLIOGRAFIA
COSTA, J.F. Violncia e Psicanlise. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
DOLTO, F. Prefcio. In: MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio
de Janeiro, Campus, 1981.
FERNNDEZ, A. A inteligncia aprisionada. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1991.
KUPFER, M. C. M. A contribuio da Psicanlise aos estudos sobre famlia e
LINS, M. Y. A. O jogo como interpretao. / Apresentado na Jornada Winnicott, Vinte
Anos Depois, Sociedade Brasileira de Psicanlise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
nov. 1991.
LUZ, R. O espao potencial. Tu: Percurso: Revista de Psicanlise. So Paulo, n- 3, p.
25-32, 1989.
MANNONI, M. A primeira entrevista com o psicanalista. Rio de Janeiro, Campus,
1981.
MELLO FILHO, J. O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1989.
NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Sujeito e cotidiano. Rio de Janeiro, Campus, 1987.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Zahar, 1982. A criana e o seu mundo. Rio de Janeiro,
Fontes, 1987. Privao e delinqncia. So Paulo, Martins

78

5 INTERVENO PSICOLGICA EM CRECHE/PR-ESCOLA


Yara Sayo e Renata L. Guarido(1)

Introduo

Tradicionalmente, o trabalho de psiclogos em instituies educativas pr-escolares


pauta-se pelo atendimento aos familiares de todas as crianas atendidas e, em especial,
daquelas que apresentam aspectos destoantes do suposto desenvolvimento normal.
Constitui-se tambm em demanda para o psiclogo (quando este faz parte do quadro de
funcionrios da creche/pr-escola) as crianas-problema. Via de regra so crianas
no conformes ao atendimento oferecido, interferindo e atrapalhando as atividades
propostas. Tambm podemos chamar de tradicional a explicao dada para a existncia
dessas crianas: elas tm problemas oriundos das relaes familiares e seriam clientes
em potencial do psiclogo clnico. Caberia, portanto, ao psiclogo da creche/ pr-escola
ouvir e orientar os familiares destas crianas, alm de proceder sugesto de
encaminhamento psicodiagnstico e/ou terapia para os pais. Seria ainda desejvel que o
psiclogo, nessas instituies, transmitisse conhecimento sobre o desenvolvimento
infantil para os educadores, auxiliando-os assim em sua tarefa cotidiana.
As consideraes e o relato que apresentamos aqui so fruto de intervenes distintas
das anteriormente citadas. Partimos do pressuposto de que a creche como instituio
est sempre implicada diretamente com os problemas apresentados pelas crianas que
a freqentam, na

(1) Psicloga da Creche - Central-USP; na poca do trabalho na creche cursava


Graduao

79
medida em que todas as relaes ali estabelecidas e vividas pelas crianas afetam seu
desenvolvimento e se relacionam com seu jeito de ser e de se expressar.

Um pouco de histria
Nosso trabalho comea quando algo no vai bem. No caso das creches na USP(2), por
exemplo, quando uma classe (ou grupo) toda de crianas era considerada terrvel,
insuportvel. Parecia estranho que todo um grupo de crianas de 4-5 anos fosse to
terrvel a ponto de no ser contida por nenhum adulto da creche. O trabalho no anda,
no consigo ficar com eles, no sei como manter meu projeto, eram algumas falas
das educadoras a respeito de tais crianas. A diretora da creche nos conta que at
profissionais recentemente contratados diziam que no gostariam de trabalhar com
aquele grupo.
Do nosso ponto de vista, vrios fatores esto colocados nos comentrios apontados
acima. Vrias perguntas poderiam ser feitas: de onde viria esta idia dos terrveis?
Como cada trabalhador da creche fazia referncia quele grupo? Ser que ningum tinha
uma experincia diferente com estas crianas? Como as crianas sentiam-se?
Considerando estas questes devemos dizer que quando pensvamos, no Servio de
Psicologia Escolar, naquele grupo especfico de crianas, no conseguamos deixar de
pensar em toda a instituio. Ouvamos comentrios da direo e educadoras sobre as
crianas. O que falavam delas nos parecia dizer respeito a uma certa relao. Relao
esta que transformava aquele grupo numa classe de terrveis, difcil de ser trabalhado,
que precisava constantemente de respostas das educadoras, como, por exemplo, de
imposio de regras, de conteno etc. Estabelecia-se, ento, naquela creche, uma certa
relao entre a creche como um todo e as crianas daquele grupo.

(2) Este trabalho, desde seu incio em 1990, contou com a participao da Diviso de
Creche COSEAS-USP. As diferentes atuaes de deram em ambas as creches do
Campus-Cidade Universitria: Creche Central e Creche Oeste. Consideradas
exemplares tanto na sua concepo como no seu funcionamento, as creches da USP
contam com projetos educacionais que tm se mostrado eficientes, constituindo-se
referncias importantes para outras instituies pblicas que se destinam ao atendimento
de crianas de O a 7 anos.
80

Ao pedir ajuda ao Servio de Psicologia Escolar, a creche passa por um momento de


avaliao interna e considera que no era possvel entender o que se passava. No
conseguiam manter o trabalho necessrio com as crianas, as educadoras no estavam
satisfeitas com o grupo.
Vrios elementos presentes no discurso da creche revelavam, novamente, algo que se
estabelecia entre crianas e creche e, num recorte limitado, entre crianas e educadoras.
Essa relao, qualificada da forma como era, deixava marcas tanto nas crianas como
nas profissionais que delas se Ocupavam. Vamos que num trabalho de interveno
seria preciso falar sobre esta relao, tentando ampliar as observaes a respeito
daquelas crianas. Que significado assumiam? O que lidar com aquele grupo significava
particularmente para as educadoras?
Portanto, seria importante saber como se davam as diversas relaes naquela creche,
considerando o grupo de crianas como referncia. Como a instituio estava envolvida
naquela questo que parecia restrita (problemas com um grupo de crianas), e que, no
entanto, tomava naquele momento grandes dimenses? Que histria existiria na creche
daquele grupo de crianas?
As perguntas voltam porque necessrio sempre questionar, inquirir sobre o que est
dado, tomar possvel que algo mais seja dito.
Saber a respeito daquelas relaes que existiam entre educadoras e crianas no
simplesmente um recorte que limita o olhar. preciso destacar que entendemos a
instituio como rede de relaes, mutuamente determinantes dos movimentos que
ocorrem no interior da mesma. Relaes estas legitimadoras de aes, reprodutoras de
formaes imaginrias a respeito desta ou daquela parcela da instituio. claro para
ns que nesta rede as ligaes so mltiplas e que um recorte no pode manter-se por
muito tempo. Ele apenas uma estratgia de atuao que visa compreender, ou melhor,
permitir alguma reflexo a respeito de um fato, por exemplo, neste caso, a dificuldade
com as crianas. Se considerarmos esta rede de relaes como estrutura da instituio,
poderamos dizer que uma atuao, por mais pontual que Possa parecer, amplia-se no
universo institucional como um todo, traz elementos de vrios nveis das relaes
institucionais.
A histria daquele grupo de crianas, considerada pontualmente, no aparece desligada
de toda uma srie de outras histrias. Por exemplo, ao falar sobre aquele grupo,
pensando numa proposta de interveno, vimos surgir nos relatos outros dados: quais
educadoras estiveram com

81

o grupo, como era sua relao, que fatos pareciam importantes no trabalho com aquelas
crianas, que entrada a psicloga e pedagoga da creche tinham tido com o grupo. Alm
disso, uma srie de elementos implcitos colocavam-se no discurso sobre as crianas.
histria cronolgica e factual de um grupo correm paralelamente muitas outras: a
histria imaginada sobre como deveriam ser aquelas crianas, a histria do desejo da
cada educadora ao exercer seu trabalho, a histria do investimento da creche enquanto
instituio pr-escolar da Universidade de So Paulo, histrias estas que nem sempre
esto aparentes para quem est inserido cotidianamente na estrutura da instituio. Da a
necessidade de um novo olhar, de novas perguntas, de algum ou algo que possa romper
com o que est dado.
Todos estes pontos, todas as histrias esto presentes na constituio dos sujeitos que
participam daquela instituio. este aspecto da subjetividade que preciso ser
considerado quando pensamos numa interveno institucional. O que importa saber,
no discurso presente na instituio, como aqueles sujeitos que delas participam se
percebem, como se relacionam. Fazer pensar sobre isso tornando possvel que algo mais
seja notado, alguma representao, uma idia, um conflito. Alm disso, que seja
retomado o investimento da instituio no exerccio de sua tarefa. Assim que uma
interveno tal como a pensamos permite ou deveria permitir um momento de ruptura,
um recorte que faz pensar. O que se procura a criao de espaos na instituio que se
caracterizem como lugar de escuta. Tais espaos pretendem garantir a circulao dos
discursos presentes na instituio buscando a construo de outros novos, de forma a
encontrar os significados dados quilo que acontece no interior da instituio.
Importa dizer que nestes espaos de escuta no se pretende ter algum, nico, que oua
e diga onde esto as falhas, os pontos cegos. O que se busca o estabelecimento de
relaes, de encontros e trocas onde os sujeitos envolvidos escutem-se, onde, naquilo
que dito, algo de novo possa ser encontrado ou algum fato re-significado. Por
exemplo, numa das intervenes uma das educadoras se refere ao horrio de sono das
crianas do seu grupo. Conta como era difcil, que as crianas demoravam a dormir, no
entanto, tinham que dormir (sic). Ao ser questionada pela coordenadora do grupo
sobre porque as crianas tinham que dormir, fala da necessidade do sono em crianas
daquela idade, como ficam no final do perodo se no dormem naquela hora etc.

82

Diante disso, outra educadora conta como aquela hora era tambm importante para ela,
era o final de seu turno, momento de deixar o grupo, passar informaes para a
educadora da tarde. Algo ento nesta conversa se re-significa sobre o sono, a hora de
dormir, sobre o que se dava numa situao tida como dificuldade das crianas. As
explicaes lgicas sobre a necessidade daquele momento de descanso para as crianas
no davam conta da dimenso do problema da hora de dormir. Por qu? Porque
existiam outras respostas para aquela pergunta da coordenadora. Respostas estas que
envolviam as educadoras, suas necessidades e no somente a das crianas.
Neste caso, o coordenador de um grupo de interveno pode ser algum que, diante de
alguns fatos, aponta algo, faz perguntas, destaca algum exemplo ou situao narrada
produzindo novas histrias das quais tambm participante. Sua presena e atuao, na
situao de grupo, guiam-se pela via contrria a da paralisia e estereotipia. O que se
procura produzir so novas significaes para antigos fatos, sentido onde no existia
algum, possibilidade de deslocamento das pessoas em seus lugares normalmente
estabelecidos.
Voltando ao nosso ponto de partida, as crianas terrveis, apresentamos uma
proposta de interveno com o grupo de educadoras. Preferimos, a princpio, no estar
com as crianas porque avaliamos que muitas das questes levantadas estavam ligadas a
dificuldades das educadoras na conduo do trabalho com as crianas.
No incio, o grupo requisitava alguma orientao psicolgica sobre as crianas:
como lidar com elas, como agir. X. diz que poderiam trazer situaes do mdulo para o
grupo e discutir comigo [coordenadora] o que fazer.Y. coloca que o trabalho [como
educadora] precisa de muita orientao.Z. comenta que sentem falta desta orientao
na creche..., quando ocorrem brigas, quando as crianas no se envolvem no trabalho...
o que fazemos?.(3) Ao longo do processo foram surgindo comentrios a respeito de
como aquele grupo de educadoras se sentia orientado, pela equipe de direo da Creche,
sobre o que fazer com as crianas. Algo ento se transforma. O foco colocado desde o
incio sobre as crianas desloca-se para a relao entre equipe e educadoras. Comeam a
aparecer conflitos, insatisfaes

(3) Estes trechos foram retirados dos relatos do grupo realizado.

83

etc. As crianas quase que no eram mencionadas, os problemas com elas pareciam ter
desaparecido, falava-se somente da relao entre educadoras e equipe da direo.
Que mudana seria aquela? As crianas no tinham mais problemas? Deixaram de ser
terrveis? Provavelmente no teramos como delimitar de que ordem exatamente foi a
mudana, no entanto, poderamos dizer que o que importa considerar o momento em
que aquelas questes sobre as crianas eram feitas. Podemos dizer que se partia de um
determinado ponto de vista (por exemplo: elas so terrveis e ns educadoras no
temos nada a ver com isso) e que, com a entrada da interveno, outras vises puderam
aparecer, outros fatos foram considerados fatos que permeavam o envolvimento das
educadoras no trabalho com aquelas crianas, por exemplo, sua relao com a equipe de
direo. Isso o que queramos ressaltar quando apontamos acima o significado de uma
interveno na instituio. Dizamos: recorte que faz pensar, lugar de fala e escuta,
possibilidade de novos movimentos.
O exemplo citado trata de uma interveno realizada com um grupo de educadoras, no
entanto, isto no constitui um modelo de atuao. A proposta de trabalho pode sugerir a
participao de um ou diversos grupos da instituio: profissionais, crianas, pais etc.
Cada trabalho surge de uma reflexo entre instituio e a equipe que o realiza, bem
como de uma avaliao no interior desta ltima. Neste processo tudo pode ser
reavaliado.

Consideraes finais
As instituies educativas, ao trabalharem com a transmisso/ produo do
conhecimento, lidam predominante-mente com a objetividade. Nosso trabalho, ao entrar
nessas instituies, o de buscar a dimenso psicolgica no interior das prticas
educativas, dimenso esta que dada pela subjetividade.
Nossa entrada na instituio se d exatamente quando, a nosso ver, ocorre
transbordamento da subjetividade: a dimenso no prioritria se impe produzindo,
no coletivo, situaes inusitadas ou recorrentes, sempre preocupantes, escapando ao
funcionamento normal. quando surge, por exemplo, o pedido de ajuda para o
atendimento

84

das crianas-problemas. Nosso olhar e nossa escuta se dirigem, pois, a todo o


contexto que engloba tais situaes.
As relaes vividas e imaginadas no interior de uma instituio constituem o que se
chama de cultura institucional, e esta desempenha importante papel nas atividades
cotidianas e nos vnculos estabelecidos. Portanto, faz-se necessria a criao de espaos
especificamente voltados para a produo/circulao dos diferentes discursos existentes
sobre os fatos em questo. Nossa interveno breve e se constitui a partir do
problema/questo apresentada. Isto se viabiliza no atendimento em grupos: de crianas,
de educadores, da direo, dos familiares das crianas usurias da creche/pr-escola.
Nmero limitado de encontros e contrato explcito para a finalidade a que se presta so
instrumentos bsicos do nosso trabalho. E a finalidade desses encontros a de,
buscando todas as significaes possveis e enunciadas pelos profissionais, usurios e
familiares, possibilitar a relao entre esses discursos e novas facetas antes no
pensadas.
O trabalho psicolgico realizado nas creches da USP apresenta, ento, caractersticas
que o definem, a saber:
- a realizao de grupos pontual, circunscrita s questes que o originaram. Ocorre em
nmero delimitado de encontros, normalmente uma vez por semana;
- os participantes dos grupos so convidados e nunca convocados;
- h sempre um contrato para cada grupo realizado, focado em sua temtica especfica.
Esta explicitada no grupo,
- no h modelos pr-definidos. De acordo com a demanda circunstancial da creche
realiza-se a montagem daquela interveno especfica;
- a interveno realizada envolve os diferentes segmentos envolvidos na problemtica
detectada: familiares, crianas usurias, profissionais da creche;
- ao final do trabalho apresenta-se creche (direo e profissionais) o processo
percorrido pelo grupo e as questes ali surgidas;
no so grupos teraputicos, muito embora tenhamos notado efeitos dessa natureza a
partir da realizao dos mesmos;
- o objetivo deste tipo de interveno o de possibilitar que a instituio retome ou
redirecione as tarefas educacionais que se encontravam dificultadas e que motivaram a
demanda pelo trabalho Psicolgico.

85

Nestes quatro anos de trabalho temos observado que os efeitos e repercusses de nossa
interveno esto relacionados ao momento vivido pela instituio. Esta pode, em maior
ou menor grau, apropriar-se das questes que se explicitam no decorrer do trabalho e,
assim, reposicionar-se em relao aos objetivos a que se prope no exerccio de sua
tarefa institucional.
Nosso objetivo nesta exposio foi de, ao relatar uma situao de interveno, ainda
que resumidamente, e refletir sobre alguns aspectos que a contornaram, levantar
questes e ampliar a discusso sobre as diferentes possibilidades de trabalho psicolgico
em instituies educativas.

BIBLIOGRAFIA
BLEGER, J. O grupo como instituio e o grupo na instituio. In: KAES, R., org. A
instituio e as instituies: estudos psicanalticos. So Paulo, Casa do Psiclogo, 1991.
GUIRADO, M. Psicologia institucional: temas bsicos de psicologia. So Paulo, EPU,
1987. v.l5
GUIRADO, M. Psicologia escolar e psicologia institucional. /mimeografado/
KUPFER, M.C. Psicologia escolar ou psicologia na escola? /mimeografado/
LOURAU, R. A anlise institucional. Petrpolis, Vozes, 1975.

86

6 RELATO DE UMA INTERVENO NA ESCOLA PBLICA(1)


Adriana Marcondes Machado

O Servio de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da Universidade de So


Paulo (USP) composto por trs docentes e quatro psiclogos tcnicos. Ns, tcnicos,
temos como funo organizar e supervisionar os estgios dos alunos que cursam as
disciplinas da rea de Psicologia Escolar, fazer pesquisa e atender comunidade.
Descreverei, a seguir, o trabalho realizado no segundo semestre de 1993, com o intuito
de apresentar uma prtica de atendimento que visa combater a j denunciada produo
de fracasso escolar.

Os bastidores do trabalho
Em agosto de 1993, aps um levantamento das escolas que apresentavam alto ndice
de repetncia na regio prxima Cidade Universitria, em So Paulo, cheguei Escola
Estadual AJ.
Descreverei, a seguir, alguns trechos do histrico do trabalho, na forma de um dirio
de campo, os quais sero intercalados com algumas anlises dos acontecimentos.

(1) Esta interveno foi realizada com a colaborao de seis alunas estagirias do
curso de Graduao em Psicologia: Alessandra Isola, Alessandra Seabra, Ana
Cristina P. Rhulle, Fabiana P. de Lazzari, Lara Rossetti Machado, Rosana
Frischer.

87

Telefonei para a escola. Uma das secretrias da escola atendeu. Perguntei-lhe o nome
da coordenadora do ciclo bsico, da vice-diretora e da diretora, e se podia falar com
alguma delas. A secretria contou-me que a diretora era recm-chegada escola e que
no estava l naquele momento, por isso conversei um pouco por telefone com a vice-
diretora. Apresentei-me e pedi para marcarmos um encontro para que eu pudesse lhe
explicar qual era nosso trabalho.
Tradicionalmente somos profissionais formados para analisar a demanda que nos
chega. O que recebemos, na maioria dos casos, so crianas portadoras de queixa
escolar, com um pedido de avaliao psicolgica. Entender o que est acontecendo
com elas exige o contato com quem encaminha, pois nessa relao que a queixa est
sendo produzida. Em alguns casos chegamos s escolas e recebemos uma lista de
crianas para atendermos. Se ocorrem encaminhamentos com a expectativa de
mudarmos uma criana, ou convenc-la de algo, de nossa responsabilidade apresentar
nossas idias e verses sobre os sintomas dos quais a escola se queixa. O contato com
os profissionais da escola um processo longo e complexo.
Fui escola na mesma semana. Aps uma rpida conversa com a vice-diretora, pediu-
me que apresentasse minhas idias e a possvel proposta de trabalho para as professoras.
A vai um pouco da apresentao: - Sabemos que a maioria das crianas encaminhadas
para atendimentos, em Psicologia, apresentam queixas escolares. Temos tabulaes de
algumas Unidades Bsicas de Sade que mostram que esses encaminhamentos so
feitos, em sua maioria, pelas escolas que relatam problemas de comportamento ou de
aprendizagem nas crianas. Optamos por trabalhar no territrio onde esses problemas
so produzidos, por acreditar que, em sua maioria, so sintomas do funcionamento das
relaes que essas crianas habitam. (Discuti tambm sobre a tendncia de analisarmos
os afetos racionalmente). Eu ainda

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falava, quando a vice-diretora me contou que, no comeo do ano, vrias crianas


haviam sido diagnosticadas por uma psicloga de uma clnica particular contratada pela
Delegacia de Ensino, a qual havia recebido uma verba da Secretaria de Educao para
avaliao de alguns alunos. Essas avaliaes consistiram em testagem das crianas em
grupo e uma pequena conversa com um dos pais. Nove crianas foram diagnosticadas
como definitiva-mente deficientes mentais e encaminhadas para classe especial. Mas,
segundo a professora da classe especial, as coisas no iam bem; as crianas estavam
agressivas com ela e algumas se recusavam afazer a lio. A professora da classe
especial desconfiava dos laudos. As professoras perguntavam:- Por que as crianas
agem assim?.
Logo no comeo do trabalho vou introduzindo uma forma de pensar os acontecimentos
que nos convida a, inicialmente, repensarmos as perguntas feitas em relao aos
mesmos. Querse saber as causas individuais que fazem com que as crianas sejam
agressivas, isto , o efeito dessa agressividade nas relaes a busca de causas
individuais. Mas, conhecer um fenmeno implica entendermos o campo de foras onde
ele se manifesta.
Apresentei uma proposta de trabalho e marquei um outro encontro com as professoras.
Conto com a ajuda de seis estagirias, alunas do terceiro ano do curso de psicologia.
Preocupa-nos as crianas cronificadas, isto , aquelas cuja relao na escola est
cristalizada. Podemos formar alguns grupos de crianas com a inteno de pensar com
elas as suas histrias escolares. As professoras que encaminharem crianas devero
participar de encontros semanais, para irmos discutindo o que tem acontecido, no
somente com a criana, mas principalmente na sua relao com o professor e na escola.

Impressionava aos professores o fato de estar sendo proposto um trabalho que inclua a
participao deles. Alguns se queixaram da

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prtica diagnstica que no lhes ajudava no dia-a-dia da sala de aula. Mas se a


expectativa s vezes no para definirmos o que a criana tem, ela ainda carrega a
iluso de podermos dizer o que fazer para mud-la, como se essa mudana no
demandasse um movimento relao.
Os estagirios cursam uma disciplina optativa chamada Psicologia Escolar e
Problemas de Aprendizagem II. a primeira vez que lhes oferecida a oportunidade de
realizarem um trabalho de interveno supervisionado. No incio muito comum os
estagirios terem intervenes pedaggicas com as crianas. Assim comeamos a
discusso sobre como intensificar o pensamento.
Fui escola mais algumas vezes e combinamos que seriam organizados grupos de
crianas e tambm grupo de professores com atendimento semanal, num total de nove
encontros. Formamos trs grupos com cerca de cinco crianas em cada um, tendo nove
encontros de uma hora de durao cada, durante nove semanas. Escrevi a proposta de
trabalho e entreguei-a para direo, secretaria e professores.
* Proposta - Trabalhar com cerca de quinze crianas que apresentam uma vida escolar
cronificada e com os professores das mesmas.
* Objetivos:
- grupo de crianas - resgatar a histria escolar das crianas e pensar com elas a
produo da queixa das professoras;
- grupo de professoras - intensificar a anlise dos acontecimentos do dia-a-dia escolar
considerando o contexto onde os mesmos so produzidos e buscar idias em relao s
tendncias que atravessam o cotidiano escola ,
* Metodologia:
- montar trs grupos de crianas, com cerca de cinco em cada grupo, com a coordenao
de uma dupla de estagirios do curso de Psicologia. Sero nove encontros com uma
hora de durao;
- realizar encontros semanais com as professoras cujas crianas foram encaminhadas;
- realizar entrevistas com os pais das crianas.

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As professoras fizeram uma lista com os alunos que as preocupavam. Pedi-lhes para
responderem um breve relatrio com a inteno de ter a verso da professora sobre o
aluno encaminhado.
1 - Qual a preocupao e a queixa a respeito da criana?
2 - Como a criana age na sala de aula e no recreio? Como sua freqncia s aulas?O
que ocorre na aprendizagem?
3 - D exemplos de fatos, acontecimentos ou cenas com essa criana que lhe chamaram
a ateno.
4-Fornea pequeno histrico da vida escolar da criana, como: quando entrou na escola,
quais classes freqentou, quem foram seus professores.
5 - D informaes que sabe a respeito da famlia.
6- Quais hipteses formula sobre a queixa?
Algumas professoras defendiam a prtica construtivista de ensino, que considera a
aprendizagem um processo construdo pela criana. Seus erros so, na verdade,
hipteses. Mas, mesmo assim, algumas professoras queriam encaminhar crianas que
trocavam letras ou que escreviam sem dar espao entre uma palavra e outra. Propus a
discusso dessas questes aos grupos. J chamava ateno a expectativa pedaggica de
certos encaminhamentos. Eu privilegiava o atendimento s crianas que estivessem,
como j disse, cronificadas na escola.

Escrever um resumo da proposta de trabalho com as datas e horrios do mesmo e


distribuir para direo, secretaria e sala dos professores parece um detalhe, mas no .
Era comum chegarmos escola e a sala reservada para o atendimento estar ocupada, ou
terem dispensado os alunos por algum motivo e esquecido que haveria grupo.
Esqueciam algo que nos muito importante; assim como esses profissionais da
educao tm sido esquecidos, excludos, de projetos polticos que os beneficiem.
Os relatrios pedidos facilitavam-nos o acesso verso da professora sobre seu aluno.
E comum justificar os problemas de comportamento e de aprendizagem atravs das
histrias familiares das crianas. Uma vez justificado, fica difcil criar alternativas para
movimentar uma situao.

91

As crianas e as professoras
Iniciamos o trabalho em grupo com as quinze crianas encaminhadas. Aps o primeiro
encontro com as crianas deflagrou-se a greve dos professores em agosto de 1993. Das
quinze crianas, j. eram da classe especial. Como a professora da classe especial, Nadir,
no aderiu greve por motivos particulares, permanecemos trabalhando com seus
alunos. Todas as professoras do Ciclo Bsico, do perodo da tarde, participavam da
reunio por dois motivos: um que haviam resolvido que um dos horrios de HTP
(Hora de Trabalho Pedaggico) seria o da reunio comigo, pois as trs professoras que
no encaminharam crianas queriam estar presentes (no gostei muito desta deciso por
temer que se transformasse em mais uma reunio obrigatria); o outro motivo que,
durante a greve, esses encontros passaram a ser um momento onde elas iam escola e
encontravam-se para conversar sobre o movimento de paralisao das aulas.
No primeiro encontro com as crianas, colocamos o enquadre: nmero de encontros,
durao e local. Desenhamos alguma figura (trem, pizza...) que pudesse representar o
nmero de encontros. Para cada um deles pintava-se um dos vages, por exemplo. Era
muito comum as crianas acharem que no voltaramos aps o primeiro encontro.
Contamos para as crianas que elas foram encaminhadas pelas professoras que
estavam preocupadas com elas. Perguntei-lhes por que estavam no grupo? O que
preocupava a professora? E assim comeou a conversa: A tarefa pensar os
acontecimentos na escola. Para isso nos conheceremos durante os encontros.
Levamos material (sucata, cola, fita crepe, material grfico, jogos - domin, baralho,
memria...), que podia ser utilizado por eles. Esse material era de todos e o que fosse
produzido por eles seria guardado e entregue no final do grupo. Um pouco antes do
final de cada encontro, tnhamos que guardar o material e arrumar a sala. Enquanto
coordenadores, iramos trabalhar para que esse material no fosse destrudo e que
ningum se machucasse. E, logicamente, o grupo optativo.
Com o intuito de entender melhor o que vinha acontecendo na vida escolar deles,
pesquisamos na secretaria suas histrias escolares e conversamos com seus pais.

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O objetivo dos encontros falado enquanto uma criana v o que os coordenadores


levaram, outra pula em cima da carteira, outra, com vergonha, senta sem levantar a
cabea... Muitas vezes os estagirios ficavam em dvidas se foram ouvidos.
Os assuntos sobre a escola, o aprendizado, o encaminhamento, so temas que s
podem ser abordados numa relao mais ntima. Por isso, inicialmente, importante
estabelecer uma relao de confiana e cumplicidade com as crianas.
O material grfico e os jogos (baralho, memria, domin) facilitavam essa interao.
Muitas vezes construamos um jogo de percurso com as crianas. Elas elegiam as
tarefas de vrias casas do percurso, que deveriam ser executadas quando a pea casse
nessas casas.
Vagner, Pedro, Wellington, Laurentino, Juliana, Jos Antonio, Fbio... crianas
perfeitamente normais do ponto de vista do desenvolvimento intelectual. Algumas
agrediam a professora, uma pessoa carinhosa, que gosta do trabalho que faz e que
desconfiava dos laudos psicolgicos. O que agrediam? Encaminhadas para classe
especial sem terem noo do que estava ocorrendo, a maioria no queria e no gostava
de estar ali. Expressavam isso de formas diferentes. Wellington (13 anos) o famoso
tipo indisciplinado, ele fora encaminhado para avaliao devido a problemas de
comportamento. A psicloga que o encaminhou para a classe especial aplicou-lhe o
teste Raven para avaliar a inteligncia. O resultado foi baixssimo. Soubemos depois
que Wellington no teve pacincia para responder todas as questes. Com 13 anos de
idade, ele gosta de alegria, alegria, como dizia. No queria pensar sobre o fato de
estar na classe especial. Era famoso na escola por desacatar, aprontar, responder...
Wellington ocupava o lugar de o terrvel. Um lugar que escondia sua insegurana e o
fracasso de sua histria escolar. Um dia, jogando o jogo de percurso, ele caiu em uma
casa onde deveria contar uma histria real. Chorou ao lembrar de sua av que morreu.
Ela era quem cuidava dele. As estagirias escreveram em seu relatrio final:
Wellington se apresentava diferente a cada encontro. s vezes estava bravo, terrvel,
outras vezes chorava. Entendemos (depois de muita angstia e algum tempo de
trabalho) que Wellington pde se utilizar do espao do grupo para mostrar essas suas
mltiplas faces. Sua situao na escola se encontra cristalizada, ele o terrvel e o
filho de famlia problemtica. Por que agride as outras crianas?

93

Wellington pediu o telefone de Alessandra, uma das coordenadoras do grupo. Depois


de terminado os encontros ele ligava para ela diariamente. Ficava clara a necessidade de
Alessandra passar na escola para v-lo. Um dia, conversando com Wellington, eu lhe
disse que era incmodo ele ligar todos os dias. Ele respondeu: Ela foi a primeira
pessoa nessa escola que me escutou, no vou ficar sem saber dela. Durante os
encontros do grupo, foi conversado com Wellington a respeito da existncia de um
relatrio sobre ele, na escola, o qual o encaminhava para a classe especial. Depois de
terminados os nove encontros, as estagirias fizeram uma entrevista individual com as
crianas. Nessa oportunidade elas perguntaram ao Wellington se ele queria fazer
novamente o teste que j realizara. Ele aceitou. A abordagem ao teste foi qualitativa,
isto , no estvamos avaliando as respostas, mas sim produzindo potencialidade. Nas
questes em que apresentava mais dificuldade dizia estar com a pacincia fervendo.
Queria desistir. Nesse momento, foi possvel entender o que fizera com que ele tivesse o
laudo de deficiente.
Laurentino (10 anos), no dia em que foi chamado para o grupo, foi andando como um
rob que obedece a estmulos. Dessa mesma forma havia ido para a sala especial. Sua
professora o enviara para uma avaliao devido a ser muito quieto e recusar-se a realizar
algumas atividades. Embora fosse bom aluno, foi diagnosticado como definitivamente
deficiente mental. De posse desse diagnstico, as professoras o encaminharam para a
sala especial por no se sentirem aptas a criticar o laudo de um especialista. No grupo,
as coordenadoras o definiam como um menino cativante e muito presente. Sua me
no compreendia o motivo de seu filho cursar uma classe especial, porque ele seu
filho mais inteligente. A famlia de Laurentino famosa entre as professoras, pois eles
so em cinco irmos que estudam na escola e vivem muitas crises. Ao conversar com a
professora da classe especial, as estagirias anotaram, em seus relatrios, que atribui os
problemas escolares observados s turbulncias familiares e raiva que Laurentino
sente pelo pai. A professora no o considerava deficiente, mas era difcil colocar suas
idias no grupo das professoras, pois era nova na escola e havia presso para que essas
crianas ficassem na classe especial.
No grupo, Laurentino costumava imitar o trabalho de alguma criana. No dia em que
ele se interessou e escutou a histria de seu

94

encaminhamento para a classe especial, construiu com sucata, pela primei vez, um
projeto seu.
Juliana (11 anos) fora encaminhada para avaliao por sua professora com a inteno
de proporcionar-lhe uma ajuda durante a fase difcil pela qual passava (perda da me e
mudana de cidade), segundo relato das estagirias. Ela se queixava que Juliana estava
sempre emburrada, recusando-se a fazer as lies, mas ficou impressionada quando veio
o encaminhamento para a classe especial. Juliana ia aos encontros do grupo, participava
das atividades e dizia no querer ir. Se mal - interpretada, poderia parecer que Juliana
no gostava das pessoas.
Nadir, a professora da classe especial, passou a falar com freqncia no grupo de
professores. Foi possvel perceber que a agresso das crianas em relao a ela no era
algo pessoal. Nadir foi discutindo com eles a questo de estarem na classe especial.
Inicialmente ela achava que no deveria tocar nesse tema, pois as crianas poderiam
sofrer.
Muitas crianas so encaminhadas para avaliao por problema de comportamento.
Em algumas sesses dos grupos, comum acontecer de algumas crianas agredirem,
baterem, quebrarem o material. O que faz com que se comportem dessa forma? A
tendncia inicial somente dizer-lhes que isso no pode. Mas, elas sabem disso.
Algumas crianas dizem aprontar na sala de aula porque a professora fica lhe pedindo
para fazer a lio. Mas, no grupo, elas no tm essa desculpa. Propomos um lugar
optativo. , nesse lugar, muitas vezes aparece raiva, medo e defesa. importante tentar
impedir que a criana destrua. Se acontece de descontarmos na criana o que ela nos faz
(se ela pega fora um lpis de um colega do grupo, tirar-lhe tambm fora algo que
ela deseja), atuamos a raiva, e o personagem de o terrvel ganha fora. Um
personagem que muitas vezes esconde as tristezas. Sabemos que mais fcil produzir
um culpado e ficar com raiva do que entristecer. E, novamente a pergunta: a que
agridem? No nosso ponto de vista, sempre possvel associar esses gestos s histrias
escolares das crianas.
No grupo com as professoras, algumas dizem: devem acontecer coisas terrveis nas
vidas familiares dessas crianas, por isso so agressivas. Histrias de abandono, de
pobreza, de espancamento, de medo. Buscam-se hipteses nos problemas familiares,
como justificativa do fracasso escolar. Essas hipteses, assim como os laudos
psicolgicos, depositam nas crianas as causas dos problemas e no relacionam o
Sintoma ao contexto onde ele aparece. Como se as histrias familiares e

95
os problemas de aprendizagem tivessem uma relao causal direta. E uma idia falsa.
Como trabalhar as questes afetivas que surgem na sala de a..., Um dia, durante os
encontros com as professoras, elas falaram de j menino que tinha trejeitos femininos na
forma de andar e que era a de gozaes das outras crianas. Queriam que eu o
atendesse. Nessa gozaes sofridas por ele, o tema da sexualidade aparecia. Ao invs
questionarmos a normalidade dele, era preciso pensar como esse tema na sala de aula.
Os acontecimentos nos revelam questes q... se so abafadas, tendem a reaparecer.
Certas questes so difceis serem trabalhadas pelo nosso prprio preconceito, diz
uma professoras. Preconceitos carregados de valores morais. Como que as diferenas
existam em uma sala de aula?
Muitas das perguntas formuladas pelas professoras mostravam u fantasia de que o
psiclogo aquele que adivinha e diagnostica todos os fatos. Por exemplo: Adriana,
outro dia pedi um exemplo de i quadrpede e a criana respondeu chapeuzinho
vermelho, o que e tem?. Havia uma idealizao dos diagnsticos e uma
desconsiderao sobre seu prprio saber em relao s crianas. Neste caso a professora
havia perdido a oportunidade de pesquisar a hiptese da criana.
Existem certos casos, na escola, que demandariam atitudes coletivas. Penso que
algumas regras e o funcionamento burocrtico dai escolas pblicas intensificam a
prtica de a professora ser a responsvel pelas crianas de sua sala (e, nesse ano de
1994, as s tm, em mdia, 38 alunos). Muitas crianas, encaminhadas para ai especial,
passam a ser de responsabilidade exclusiva da professora dessa classe. raro que uma
professora da classe comum, ao encaminhar aluno para uma avaliao que o manda
classe especial na condio a - deficiente, d continuidade relao com esse aluno. Por
isso a sensao de solido que as professoras da classe especial freqentemente
denunciam e a dificuldade em fazer da classe especial um lugar.... circulao.
As professoras criticaram o fato de as classes terem sido organizada pelas secretrias,
que possuam uma lista das crianas com problema comportamento, para que no as
colocassem na mesma classe. A formao de classes uma atividade muito delicada.
Decidir o destino das crianas exige considerarmos as amizades entre elas, os vnculos
formados.

96

Um dia, discutindo a questo da formao da classe especial, perguntei s professoras


quais seriam suas atitudes se a coordenadora da escola de seus filhos telefonasse para
elas e dissesse: Fizemos uma valiao em seu filho e o resultado foi que ele precisa de
uma ateno indiVid1. Por isso iremos coloc-lo numa sala de aula com um ritmo mais
lento, mais adequado ao processo de aprendizagem dele. Responderam que iriam
escola no mesmo dia, tirando-o de l. Lembrei-lhes que algumas mes das crianas
repetentes encaminhadas para as classes dos alunos considerados fracos ou para uma
avaliao psicolgica no so consultadas, outras acreditam que as professoras sabem o
que melhor para seus filhos. Assim como as professoras acreditam ser o psiclogo
quem pode dizer o que melhor para seu aluno. Uma das professoras disse, ento, que
sentia tratar seus alunos como objetos. Como se perante um acontecimento qualquer
(por exemplo, remanejar a criana de uma sala de aula para outra), a criana no fosse
sentir nada e nem fantasiar nada. Entendesse, simplesmente, que a deciso tomada por
ela era a melhor. comum as professoras contarem que j conversaram com a criana e
explicaram os acontecimentos. Por exemplo, terem dito que o remanejamento ser bom
para ela, pois a outra classe est em um ritmo mais adequado ao dela. Razes,
explicaes, que desconsideram os efeitos nessa criana remanejada. Em alguns casos a
criana diz que a professora a mudou de classe por no gostar dela. Como a criana
participou desse processo? O desinteresse das crianas, em relao ao fato de serem
alunos da classe especial, revelava o processo de encaminhamento. O pensamento
racional e lgico para o entendimento de certos gestos uma herana filosfica que
carregamos em nossa formao. E fica ento a questo: qual tipo de ser queremos
formar? Um ser simplesmente obediente?
Tambm amos conversando sobre algumas crianas. As professoras se
impressionaram com relatos dos grupos que mostravam potencialidades das crianas.
Vagner, tambm diagnosticado como deficiente, levou no grupo seu jogo de domin.
Ele no s ganhava sempre como, sensibilizado pelo fato de a estagiria no ganhar
dele, resolveu, em um dos jogos, deix-la jogar. Ele descobria, com facilidade, as peas
que os vrios jogadores deveriam ter, ao observar as jogadas dos mesmos. Em relao a
Wellington, parecia lgico a algumas professoras que ele precisava de limites e que era
um menino terrvel. Perguntei-lhes sobre o motivo desse comportamento de Wellington.

97

Lilian, a professora de uma outra classe especial dessa escola, disse que ele precisava de
carinho e ateno. Isso parecia estranho a algumas professoras: Aquele menino que
produz raiva na gente quer carinho?. Com relao professora de Juliana, ela passou a
sentir os mos da garota como um sim disfarado, como ela mesma expressou.
Parando de se sentir atacada por Juliana, foi possvel descobrir formas de conseguir que
ela fizesse as lies.
Foi enviado, no incio do trabalho, um comunicado para os pais. Durante o tempo do
grupo, os pais foram chamados. Como muitos no vieram at a escola para
conversarmos, propusemos s crianas que lhes perguntassem se poderamos ir visit-
los. As visitas domiciliares foram um momento muito rico do trabalho, tanto para os
pais como para os estagirios. Soubemos das histrias familiares das crianas e da
opinio dos pais a respeito da queixa escolar. Como de costume, havia mes que nem
sabiam direito o que estava acontecendo com seu filho na escola, outras estavam
resignadas ao fato de seu filho precisar de uma classe especial.
As crianas eram atendidas por uma dupla de estagirios. Cada dupla marcou encontro
com as professoras que as haviam encaminhado, com o intuito de conversarem sobre os
acontecimentos tanto na sala de aula, como nos grupos.
Com o final dos nove encontros propostos, fizemos uma entrevista individual com
cada criana encaminhada para o grupo. A greve terminara e com isso pudemos
conversar tambm com as crianas que no puderam participar de alguns encontros,
mas que haviam ido na primeira semana. Nessa entrevista individual com as crianas da
classe especial, foi relembrado todo o percurso que as levara para a classe especial. Foi
aplicado, numa abordagem qualitativa, o teste Raven, anteriormente utilizado pela
psicloga contratada para diagnosticar as crianas como deficientes. Todas quiseram a
aplicao do teste e obtiveram resultados categorizados dentro da normalidade. Foi-lhes
explicado a funo do teste. Nenhuma criana queria continuar na classe especial, mas
algumas sentiam medo de voltar para a classe comum.
Quem seriam as professoras dessas crianas no ano seguinte? Redigimos um relatrio
sobre cada criana, contendo a sua histria escolar, a queixa da professora, a
participao da criana no grupo e o funcionamento da relao escola-criana. Foi
pedido que fizssemos uma apresentao do trabalho para todos os professores de 1 a
4 sries.

98
Nessa reunio devolutiva, temas como a questo da busca diagnstica, da formao de
classes homogneas, da solido do professor da classe especial foram discutidos. A
professora da classe especial declarou que todas as crianas iriam ser encaminhadas
para a terceira srie. Ela sairia da escola, pois ficaria sem classe para lecionar. Essa
classe especial foi desfeita.
Na ltima semana de aula, a professora Nadir pediu para seus alunos escreverem uma
redao com o seguinte tema: Minha passagem pela classe especial. Ela no tinha
mais medo de tocar nesse assunto. Reginaldo, 13 anos, escreveu: Quero ir para a outra
classe porque tambm sou filho de Deus.
Durante o ano de 1994, acompanhamos as crianas que foram transferidas para as
classes comuns. Das nove crianas, sete acompanhavam perfeitamente a terceira srie, e
duas apresentavam problemas de aprendizagem. Os problemas de comportamento
continuam aparecendo, mas existe uma infinidade de atitudes da escola que, ao nosso
ver, produzem esses problemas.
Em junho de 1994, uma reprter do jornal O Estado de S.Paulo foi escola e redigiu
uma matria com o ttulo: Estudo mostra erro em avaliao de crianas. Cinco
crianas saram na fotografia dessa matria. Uma delas era Laurentino. Sua foto no
jornal e o texto mostrando que Laurentino no era deficiente foram comemorados pela
famlia. Algumas crianas falaram, durante a entrevista, sobre a saudade que sentiam da
professora Nadir, quando comentavam da classe especial.
Sabemos que nas classes especiais existe uma variedade de motivos de
encaminhamento. Muitas crianas no possuem laudos que as diagnostiquem como
deficientes mentais educveis. O problema no a falta de diagnstico, pois muitas
crianas so diagnosticadas como deficientes e no o so. Mesmo que um diagnstico
possa estar correto, as crianas no so convidadas a pensar sobre o que lhes acontece,
isto , o encaminhamento para a classe especial vivido de maneira passiva. Foi
somente no momento em que as crianas perceberam que a classe especial deveria ser
um lugar de circulao que elas passaram a pensar se continuariam ou no na classe
especial no ano seguinte.
Muitos psiclogos revelam no conhecer a dinmica das classes especiais para as quais
encaminham as crianas. Ento, como prever que o efeito do encontro da criana com a
classe especial vai ser fortalecedor? Os instrumentos utilizados pelos psiclogos tm,
em

99

inmeros casos, prejudicado a vida escolar desses alunos, por no considerarem o


contexto escolar onde a queixa fora produzida e por produzirem um efeito rotulador. Por
isso realizamos um trabalho voltado interveno nas relaes.

BIBLIOGRAFIA
COLLARES, C.A. Ajudando a desmistificar o fracasso escolar. In: Toda criana
capaz de aprender? So Paulo, FDE, 1989, p. 24-8 (Srie Idias, 6).
MACHADO, A.M. Crianas de classe especial - efeitos do encontro da sade com a
educao. So Paulo, Casa do Psiclogo, 1994.
PATTO, M.H.S. A produo do fracasso escolar: histrias de submisso e rebeldia. So
Paulo, T. A. Queiroz, 1990.

100

7 PROFESSORA DESESPERADA PROCURA PSICLOGA PARA CLASSE


INDISCIPLINADA
Beatriz de Paula Souza

O pedido de lidar com baguna e agressividade de alunos dos mais freqentes, de


professoras de escolas pblicas para as psiclogas escolares, tomando importante a
discusso do que ele revela.
Antes de passar ao relato e anlise de uma experincia especfica, algumas
consideraes gerais devem ser feitas. Primeiramente, algo indisciplina para algum,
portanto o conceito varia conforme a exigncia de cada um. Naturalmente, faz-se
necessrio verificar qual a do queixoso, por vezes muito alta em relao ao que os
alunos tm possibilidade de satisfazer sadiamente.
Em segundo lugar, indisciplina freqentemente referida como distrbio, desvio,
como se o natural fosse a disciplina. Ora, a transgresso e a agressividade so inerentes
ao ser humano e fundamentais para o desenvolvimento seja do indivduo, seja da
sociedade.
Passo a contar uma experincia com cinco classes de terceira srie do primeiro grau de
uma escola pblica da cidade de So Paulo, que, apesar de ocorrida em 1986, no
perdeu a atualidade.
Eu era, na poca, psicloga de uma escola e as professoras Solicitaram minha ajuda. A
queixa era de indisciplina excessiva, quase inviabilizando o trabalho pedaggico.
Estavam visivelmente extenuadas.
abordagem que fiz, subjaz a idia do psiclogo como agente capaz de contribuir
para o rompimento de discursos institucionalmente

101

cristalizados; dentre outras formas, pela abertura de espaos de expresso para discursos
reprimidos e aclaramento destes.
Assim, realizei uma reunio inicial com as professoras, onde pudemos aprofundar a
queixa, pedido e contrato, estabelecer as especificidades de cada classe, verificar que
no parecia tratar-se de rigidez excessiva das professoras e que essas j haviam
explorado bem seus recursos. Uma das professoras no apresentava queixa, mas
interessava-se pelo assunto. Propus que, conjuntamente, vssemos e ouvssemos a
verso dos alunos com relao ao que estava acontecendo.
Foi pedido a eles que expressassem de alguma forma no papel anonimamente se
quisessem como sentiam a classe. Analisei a produo dos alunos, reuni-me com
cada professora para discutirmos tal anlise, levantar mais hipteses e pensar a
devolutiva com a classe, feita com a professora presente. Com algumas classes, foram
feitas vrias reunies.
Com as professoras, o trabalho prosseguiu algum tempo mais, com reunies de
acompanhamento. Foi interessante ter adotado procedimento similar com a classe da
professora no-queixosa, pois seus resultados ofereceram interessante e produtivo
contraponto.
Passo a apresentar algumas das produes que mais se repetiram e que ilustram as
questes mais candentes.

102

As figuras 1 que aparecem nesse desenho no so bem seres humanos, como se o que
pudesse habitar a escola fossem seres escolares, que de humano s tm a cabea.
Melhor dizendo, na escola s estaria havendo espao para o racional, para a produo
intelectual. O corpo transformado ou misturado carteira, onde deve permanecer o
tempo todo. Aparecem figuras inteiras quase que s nos desenhos de ptio, quadra, rua,
enfim, fora da classe.
Abre-se a questo da massificao, da indiscriminao entre os membros da classe.
Nesse ponto, interessante notar que as produes da classe da professora no-queixosa
eram repletas de nomes. Nomearam de quem gostavam ou no, quem queriam namorar.
Percebia-se com facilidade os subgrupos da classe etc.

Figura 2 tem um texto: Eu acho a classe muito bagunceira, Eu no sou de muita


baguna, Eu s baguno quando estou na rua, E aqui na escola eu no gosto tambm
porque quando chego na minha casa eu penso s na baguna e eu no agento ver os
outros brincando e da eu vai brincar tambm.

Esse texto vem aclarar o que j aparecia na ilustrao anterior: num lugar onde s a
racionalidade admitida, no pode haver brincadeira, que em tal contexto muda de
nome e significado. Brincadeira, na escola, baguna. Baguna, na rua, brincadeira.
Veja- se como o aluno se perde com esses dois termos pelo meio do texto, quando passa
da escola para a rua. Isso indicou e confirmou-se depois no contato com o aluno-
autor que o fenmento o mesmo. Diferentes so os significados conforme o contexto.
Ora, a necessidade de brincar,

103
irreprimvel (so crianas!), sem possibilidades institucionais de satisfao, procura
canais por sua prpria conta: a baguna.
A questo da ciso entre o estudar e o brincar, ou melhor (ou pior), entre estudar e ter
prazer, foi das que mais apareceu. No que eu acredite ser possvel estudar tendo prazer
e brincando o tempo todo, mas sabemos que existem muitas estratgias pedaggicas que
contemplam integradamente ludicidade e contedo escolar, alm de propiciar a
aprendizagem significativa. Estratgias com estas caractersticas quase no vinham
sendo utilizadas pelas professoras. quando isso ocorria, a classe ficava muito
insegura, pois era algo que desde a pr-escola praticamente deixaram de vivenciar. Tal
ciso naturalmente contribui para afastar o interesse dos alunos dos contedos escolares,
influindo diretamente na aprendizagem.
Mais uma vez foi muito positivo o envolvimento da professora no-queixosa e de sua
classe, pois ficou claro que no era coincidncia o fato de ela ser a nica que usava com
freqncia tcnicas de trabalho em grupo, colagens, desenhos etc.

104

Na figura 3 repetiram-se muito os desenhos em que s apareciam nomes de objetos


escolares, sem qualquer representao visvel dos alunos. Note-se que a lousa est
repleta de exerccios repetitivos, maantes e que exigem que grande parte do tempo seja
gasto em cpia. Ora, essas tm-se revelado caractersticas ainda marcantes do nosso
ensino, apesar de ser hoje significativa a busca de uma nova pedagogia, que privilegie o
pensar em detrimento das tarefas mecnicas, postulado bsico do ensino construtivista
que vem ganhando espao.
Na figura 4 outra representao de lousa freqente: vazia. Uma metfora do vazio de
significados dos contedos escolares para os alunos, que no conseguiam relacion-los
a nada de mais imediato em suas vidas. So como obstculos a serem saltados para se
chegar ao diploma, ou a ser um bom aluno, ou ainda a ser uma pessoa de bem, um
cidado respeitvel. A discusso desse ponto, assim como a dos anteriores, com as
professoras, mostrou a complexidade que envolve a mudana de abordagens
pedaggicas. A professora, como todo ser humano que desempenha papis com os quais
j se relacionou ou se relaciona, tende a repetir modelos que teve e as vivncias pelas
quais passou ou passa.
105

Assim, difcil transmitir prazer em estudar quando seu prprio vnculo com o estudo e
as produes acadmicas ruim. difcil descobrir sentido em contedos especficos
onde nunca se viu nenhum, difcil ensinar de forma significativa e ldica quando
nunca se passou por algo assim.
Esse um exemplo claro de onde a ao do pedagogo e do psiclogo se
complementam. Faltam ao psiclogo as tcnicas pedaggicas, falta essa que alis foi
sentida ao longo desse trabalho. E falta ao pedagogo a formao para lidar com questes
mais profundas como essas, sem o que a simples apresentao de tcnicas corre o risco
de cair no vazio.
Na figura 5 retoma-se o tema j discutido do cerceamento do corpo e aparecem
crianas como que amarradas s cadeiras, que seriam as educadas, que seguem as regras
presentes no texto do terceiro quadro do desenho. Tal texto reproduz o discurso oficial,
o permitido.
No segundo quadro aparece referncia a um conflito marcante em todas as classes e
bem conhecido de quem lida com escolas: o que ocorre entre meninos e meninas, estas
ltimas sendo massacradas pelos meninos. Vejamos o desabafo de uma delas na figura
seguinte.

106

Figura 6 texto: Eu me sinto ruim, Porque eles vo comear a fazer barulho no


deixaro a gente fazer lio. Da fica uma gritaria e a professora grita de c e os
meninos gritam de l. E eles puxam a gente e enchem o saco que nem agora. E eles no
deixam a gente quieto.

Esse um exemplo claro de que no se pode pensar a escola isolada da sociedade, pois
vem-se reproduzidos dentro dela mecanismos, tal como o machismo, que se fazem
presentes em toda a sociedade assim como as contradies que podem levar
mudana.
Como no mundo extra-muros escolares, observamos tambm os mais fortes
dominando os mais fracos. Mescla-se a isso a questo dos repetentes, que agridem os
menores no s por serem mais fortes, mas tambm como uma atuao. Reagem ao fato
de se sentirem agredidos por estarem na mesma classe de crianas bem menores, o que
os pe em evidncia e os faz lembrar constantemente de sua condio de repetentes,
com todos os significados degradantes a ela associados.
O racismo marcou presena forte, com a rejeio dos negros pelos brancos e mulatos.
Esses ltimos tambm eram rejeitados pelos brancos. Negros e mulatos
envergonhavam-se de sua raa e por vezes revidavam com agresses.

107
A responsabilizao dos alunos pelo que ocorre de errado na classe, de mau
rendimento a mau comportamento, faz parte do discurso oficial. Este freqentemente
internalizado por tais alunos, como mostra a figura 7 e outras manifestaes dos
mesmos, fenmenos c conseqncias perigosas para essa e outras reas de relao
desses seres humanos em desenvolvimento.
importante, sim, a considerao das responsabilidades dos alunos. No se trata aqui
de isent-los disso, imputando tudo Escola e Sociedade. No toa que os
emergentes das vrias questes aqui tratadas foram determinados alunos e no outros.
Certamente houve algo neles que se combinou com os determinantes externos, O que
preocupa quando a responsabilidade do aluno superestimada,

108

mascarando outros fatores que, se no desvendados e mexidos, continuaro atuando e


pouco ou nada se avanar, alm de termos como subproduto um rebaixamento da auto-
estima das crianas.
A ltima sentena da figura 7 parece contrapor-se tnica da autodescrio que vinha
sendo feita, e o texto torna-se representativo de algo muito freqente, que fonte de
conflito entre pais e professores e surpreende aqueles que fazem a experincia de
realizar visitas domiciliares s crianas-problema das escolas: encontrar, fora da escola,
estas mesmas crianas revelando-se bem diferentes, espertas, inteligentes,
descontradas, prestativas o que mais uma vez coloca a necessidade de se rever o
contexto escolar.
A troca de professoras mostrou-se fator importante e trouxe a revivescncia de vrias
ocorrncias similares no passado, pondo em xeque a febre de remanejamentos de alunos
durante o ano letivo procedimento bem mais complexo e sofrido para os alunos do
que muitas professoras que o adotam supem.
Em xeque ficam tambm as regras legais que regem a vida funcional na escola, ou no
mnimo o modo como tm sido utilizadas. No caso em questo, uma professora havia se
licenciado por questes de sade no incio do ano. Sua licena terminou ao final do ano.
Uma professora substituta havia, portanto, trabalhado com a classe quase o ano todo.
Por ocasio do regresso da licenciada, vagou uma outra classe, tambm por licena da
professora. Evidentemente, o lgico seria que a substituta continuasse seu trabalho at o
fim e a retornante se ocupasse da classe recm-deixada. Mas, pela regras existentes, a
classe que a substituta trabalhara quase o ano todo era da ex-licenciada, assim os
alunos desta tiveram que passar por nova troca, desnecessria, de professora e em plena
poca de provas finais. Classe agressiva? Ou agredida?
Os resultados desta experincia cujo relato vai-se findando, foram Variados. Em
algumas classes ocorreu um certo grau de tomada de Conscincia de alunos e da
professora que diminuiu a incidncia de atuaes que deslocavam o eixo das questes,
inclusive com revises metodolgicas por parte da professora. Em outras, quase nada
aconteceu.
Variou o peso de questes envolvendo medidas de curto, mdio OU longo prazo,
implicando maiores ou menores esferas de mudana. Variou a disponibilidade dos
alunos e das professoras. Assim, foi mais eficaz a interveno junto a uma classe com
uma professora disponvel, em que o principal problema eram as estratgia pedaggicas,
do que

109

junto a uma outra cuja professora mostrou-se fechada e delegou-me todo o trabalho,
com alunos que tinham muitos conflitos envolvendo questes de mbito social, como o
racismo, por exemplo.
Foram eleitos alguns temas de trabalho com toda a escola, tais como a reviso das
estratgias pedaggicas desde as sries iniciais (como a adoo de trabalhos em grupo,
por exemplo), o repensar os mecanismos escolares que reforam o afastamento de
meninos e meninas (como fila, chamada e Educao Fsica diferenciadas); o
aproveitamento da Semana do Negro para trabalhar o tema do racismo etc.
Por fim, alguns reparos tcnicos: notei ser aos alunos importante e prazeroso rever
suas produes e discutir cada uma. Aliado ao fato de o tempo decorrido entre a
produo do material e a devolutiva dever ser o mais curto possvel, tornou-se
imperativa e produziu melhores resultados a adoo de produes em pequenos
grupos. Essas eram exploradas primeiramente em separado com cada grupo e numa
outra ocasio se reunia a classe toda.

BIBLIOGRAFIA
ANZIEU, D. Os mtodos projetivos. Rio de Janeiro, Campus, 1979.
BLEGER, J. Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre, Artes Mdicas,
1984.
FREUD, S. Mas all dei principio dei placer. Madrid Editorial Biblioteca Nueva, 1973.
(Obras Completas, v.3)
PATTO, M.H.S. A produo do fracasso escolar: histrias de submisso C rebeldia. So
Paulo, T.A. Queiroz, 1990.
PATTO, M.H.S. Psicologia e ideologia. So Paulo, TA. Queiroz, 1984.
PIAGET, J. A psicologia da criana. So Paulo, Ditel, 1974.
PICHON-RIVIRE, E. O processo grupal. So Paulo, Martins Fontes, 1983.

110

8 PR-ESCOLA TERAPUTICA LUGAR DE VIDA: um dispositivo para o


tratamento de crianas com distrbios globais do desenvolvimento
Maria Cristina Machado Kupfer

Um olhar atento s crianas que costumam ser chamadas de deficientes mentais e


freqentam classes especiais poder localizar entre elas algumas que escapam s
caractersticas gerais dessa populao. Esto ali inseridas por apresentarem grande
retardo no desenvolvimento e por demonstrarem grande dificuldade em aprender. So,
porm, crianas que apresentam graves distrbios de comportamento: batem-se,
mordem-se sem razo aparente, por vezes isolam-se em um canto, no conseguem
manter uma conversao porque no respondem, embora algumas faam uma profuso
de perguntas sem esperar respostas. Vez Por outra, surpreendem com a demonstrao de
sinais de inteligncia. Fazem rpidas passagens pelas instituies escolares,
transferidas de fato, expulsas de uma para outra, pois produzem um
desassossego que no chega a ser nomeado pelos educadores. O que se diz sobre elas e
que so estranhas.
Ao procurar atendimento mdico e psicolgico, deixam de ser chamadas de
estranhas e recebem nomes cientficos: so agora psicticos borderlines, autistas.
Supe-se ento que so portadoras de desordens fsicas que os exames nem sempre
acusam, fala-se

111

de deficincias auditivas que no so detectadas, de disfunes neurolgicas etc(1).


Seja qual for o diagnstico, o destino dessas crianas um s: a excluso. No caso das
crianas pobres, a grande maioria delas no encontra nem atendimento psicoteraputico
pblico nem escolas especializadas que as recebam. So duplamente desafortunadas:
alm de pertencerem s camadas mais pobres da populao, o que as obriga a buscar a
j insuficiente rede de atendimento pblica, padecem de um mal pouco conhecido,
que poucos profissionais esto dispostos a enfrentar, pois no dispem nem de formao
nem de recursos adequados para o seu tratamento.
O Brasil no dispe de estatsticas capazes de apontar o nmero de crianas que se
encontram hoje nessa situao de pobreza conjugada s psicoses ou ao autismo. Uma
das principais razes para a ausncia de dados epidemiolgicos est na profunda
discordncia, entre os profissionais da rea, sobre o que sejam as psicoses infantis e
sobre quais sejam suas causas. O DSM-III - R - Manual de Diagnstico e Estatstica da
Associao Americana de Psiquiatria - coloca dentro de uma mesma categoria as
crianas que eram anteriormente classificadas como esquizofrnicas, psicticas e
autistas, sejam quais forem as causas admitidas. s crianas desta ampla categoria foi
atribudo o nome de portadores de distrbios globais do desenvolvimento (Associao
Americana de Psiquiatria, 1989).
Essa nova categoria possui um mrito: o de permitir uma avaliao do nmero de
crianas que a se encontram, e portanto os nmeros da excluso.
Os distrbios globais do desenvolvimento so propostos em substituio aos quadros
de autismo e psicose porque descrevem mais precisamente a essncia clnica da
perturbao, na qual muitas reas bsicas do desenvolvimento psicolgico so afetadas
ao mesmo tempo e em nveis graves, afirma o DSM-III-R.
(1) Veja-se, por exemplo, um levantamento dos diagnsticos recebidos por 14 crianas
psicticas e autistas atendidas no CPPL Centro de Pesquisas em Psicanlise e
Linguagem , instituio que se dedica ao atendimento dessas crianas no Recife.
Vrias delas receberam sucessivamente diagnstico de surdez, acomodao idiota,
bloqueio do sistema nervoso central, problemas resultantes de superproteo familiar e
finalmente psicose simbitica.

112
Dentro dessa nova categoria encontram-se, de acordo com as estatsticas americanas
apontadas nesse manual, 10 a 15 crianas ou adolescentes em cada 10.000. Supondo-se
que essa incidncia seja semelhante no Brasil que tem hoje, segundo o IBGE, uma
populao estimada de 60 milhes de crianas e adolescentes de at 17 anos (Crianas e
adolescentes, 1989) , 60.000 a 90.000 crianas e adolescentes estariam dentro desse
quadro.
Estimar, dentre essas crianas, quais aquelas que no tm condies de se submeter a
um tratamento adequado por falta de recursos econmicos tarefa ainda mais
complexa. No existem estudos que permitam ter uma noo da incidncia dos
distrbios globais de desenvolvimento por faixa de renda. Sabe-se, apenas e este
um dado do DSM-III-R , que no h correlao entre nvel scio- econmico e
aparecimento de distrbios como as psicoses. Porm, a consulta aos dados estatsticos
do IBGE j suficiente para causar preocupaes. Esses dados revelam que 50% das
crianas e adolescentes de at 17 anos vivem em situao de pobreza rendimento
mensal familiar per capita de at 1/2 salrio mnimo (Crianas e Adolescentes, 1989).
Caso a estratificao por faixa de renda da populao de crianas psicticas estimada
por ns entre 60.000 e 90.000 crianas no provocasse alteraes na incidncia geral,
possibilitando o cruzamento direto entre faixa de renda e incidncia de distrbios
globais do desenvolvimento, teramos hoje no Brasil entre 30.000 e 45.000 crianas e
adolescentes apresentando distrbios globais de desenvolvimento.
Os dados disponveis na rede pblica sobre o tratamento oferecido a essas crianas so
tambm imprecisos, em razo das discordncias diagnsticas; entre as atendidas por um
neurologista, pode haver algumas que um psicanalista diagnosticaria como psicticas, e
entre as classificadas como deficientes mentais pelos psiclogos poderia haver Outras
tantas psicticas. A consulta aos nmeros fornecidos pelo CEPI Centro de
Epidemiologia, Pesquisa e Informao dar ainda assim Uma noo do tratamento
oferecido atualmente s crianas psicticas na cidade de So Paulo. A Secretaria de
Sade do Municpio criou recentemente uma rede de hospitais-dia em Sade Mental. De
acordo Com a definio do CEPI, um hospital-dia uma unidade ambulatorial
especializada (...) para casos de crises psquicas agudas que meream ateno intensiva
de uma equipe multidisciplinar especializada em sade mental, com objetivo de
diminuir a intensidade do quadro (...). Trata-se

113
portanto de um equipamento apto a receber crianas portadoras dos distrbios globais
de desenvolvimento, uma vez que elas podem ser recebidas na crise e obter tambm um
tratamento continuado atravs de abordagens mltiplas (medicamentos, psicoterapias,
terapia ocupacional, orientao e apoio familiar e atividades scio-culturais
esportivas), ainda segundo o CEPI. Pois bem: na rede de hospitais-dia da Prefeitura, h
apenas dois que recebem crianas, o que significa uma capacidade mxima de 85 vagas
para toda a capital(2).
No seria excessivo insistir na importncia de tratar essas crianas. A ausncia de
tratamento pode gerar pelo menos duas conseqncias negativas: o sofrimento das
crianas e de seus pais, de um lado, e, de outro, o aumento do nus pblico, j grande,
com os custos de tratamento das doenas mentais incidentes na populao adulta. As
crianas no tratadas iro, inexoravelmente, engrossar duas fileiras: a dos doentes
mentais e a dos deficientes mentais.
Quem e quantas so, em nmeros mais exatos, essas crianas, como oferecer
explicaes e atendimento psicoteraputico para suas profundas desarmonias evolutivas,
como proporcionar-lhes oportunidades educacionais, como impedir que sejam retiradas
do convvio social com outras crianas, como diminuir os riscos de cronificao? Como
evitar tantos descaminhos diagnsticos, em que se perde um tempo precioso? Como
garantir uma formao especializada para os profissionais de sade mental que deparam
com essas crianas?
A criao, na USP, de uma pr-escola teraputica para crianas com problemas
emocionais graves o Lugar de Vida uma tentativa de encontrar algumas
respostas a essas perguntas. Em uma instituio desse gnero, busca-se oferecer s
crianas atendimento psicoteraputico e educacional integrados, desenvolver pesquisas
sobre o diagnstico e o tratamento dos distrbios globais de desenvolvimento
psicoses, autismo e esquizofrenias , e oferecer cursos de aperfeioamento e
superviso para profissionais da rea.
A pr-escola teraputica Lugar de Vida existe na USP desde 1991, e em 1995 ampliou
suas atividades para atender demanda crescente tanto de crianas como de
profissionais em busca de formao.

(2) Os nmeros e as informaes sobre os hospitais-dia foram fornecidos mediante


consulta pelo CEPI Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informao, da
Secretaria Municipal de Sade.
114

Seguem-se consideraes a respeito de trs grandes eixos do trabalho no Lugar de


Vida: o eixo educacional, os atelis e a montagem institucional.

O eixo educacional
Sabe-se que toda excluso dos chamados doentes mentais do convvio com a
sociedade em geral no propicia a sua recuperao. As tentativas de desospitalizao,
o repdio internao cronificante e a condenao da segregao tm sido as bandeiras
empunhadas pelas polticas atuais de sade mental (Marsiglia, 1987).
Para uma criana, o principal agente de insero social sem dvida a escola. Ora, as
psicticas e autistas estavam, at h bem pouco tempo, excludas da escola e, portanto,
do circuito social por dois motivos: no se pensava que eram capazes de aprender e era
impossvel mant-las por muito tempo em uma escola, devido sua instabilidade,
agressividade ou comportamentos bizarros.
No entanto, fala-se atualmente cada vez mais das condies intelectuais que podem ser
encontradas nessas crianas; so as ilhas de inteligncia que permanecem intocadas,
apesar da violenta interrupo de seu desenvolvimento provocada pela irrupo das
crises.
O movimento natural, que se segue a essas novas consideraes, deveria ser o de
buscar a reinsero dessas crianas na escolarizao regular, caso se queira ser fiel s
polticas de sade mental mencionadas. Caminhando na direo oposta, a criao de
escolas especiais para autistas e psicticos seria ento acusada de prtica
segregacionista.
No entanto, as tentativas de colocar essas crianas na rede escolar regular nunca foram
de fcil execuo. Tomem-se, por exemplo, as experincias europias reportadas em um
Colquio Internacional realizado na Noruega sobre esse tema (Integrao de jovens
deficientes no ensino obrigatrio na Noruega, 1983). Ali se descrevem as tentativas
feitas no sentido de manter em classes regulares do ensino pblico algumas crianas
autistas e psicticas: elas terminaram, depois de se verificar que as escolas acabavam
criando classes especiais, em que havia apenas uma criana exatamente a psictica
ou a autista, com quem o convvio se tornara insuportvel.

115
Por isso, o Lugar de Vida uma pr-escola: trata-se de um trabalho prvio, anterior
escola, que busca colocar nossas crianas em condies mnimas de freqentar uma
escola. De nada adianta tentar imp-las a uma professora, estando ainda instveis,
agressivas.
Assim, a reinsero escolar, no Lugar de Vida, o alvo final, que equivale aos
objetivos de diminuio do nmero de internaes ou insero no mercado de trabalho,
usados pelos servios de atendimento e hospitais-dia para adolescentes e adultos.
A pr-educao pode ainda prover uma sustentao imaginria para essa insero
social. Meu filho est na escola, poder dizer a si mesmo e aos vizinhos um pai que
v seu filho sair do Lugar de Vida segurando um trabalho de sucata. O menino ter
colaborado com um nico gesto, o de colar um tubo pintado resto descartvel em
uma base de papelo, fazendo-o ficar de p. Mas o olhar que lhe dirigir seu pai ter
valor mais estruturante que seu gesto: somado a outros que lhe sero dirigidos em outras
ocasies, agora ao menino que poder ajudar a ficar de p.

O trabalho nos atelis


Os atelis foram propostos nos mesmos moldes em que vm sendo realizados nas
instituies de tipo hospital-dia. Neles se prope uma participao da criana nas
produes culturais humanas, ao mesmo tempo em que se oferece um espao de
trabalho em que a nfase no est na interpretao da loucura, mas na socializao do
discurso.
Nos atelis, trata-se, para a criana, de um jogo ao redor deste lugar que lhe
proposto; jogo que pode comportar toda a seriedade de um trabalho de criao, de
explorao de novas vias que se oferecem a ela. Sua participao em uma prtica social,
em uma atividade humana, pode ser por ela colocada em questo usando o seu prprio
estilo, sua prpria histria, declinando-a de modo singular. Ela aborda esse lugar de
modo diverso e mutvel. O grupo, na pessoa de algum adulto mais atento, acolhe ento
seu dito e seus atos para integr-la na trama do ateli (Mannoni, 1987).

116

Bases institucionais do Lugar de Vida


Uma instituio para crianas psicticas precisa ser desenhada a partir da compreenso
que se tem dessa patologia. Ou seja, a proposta das atividades, sua freqncia, seu
arranjo e sua distribuio no decorrer do dia, nada disso pode ser casual. Mais do que
isso, a hiptese de trabalho a de que a prpria montagem institucional deve funcionar
como ferramenta teraputica.
Pode-se dizer, grosseiramente, que em uma criana dita psictica o que falta a
falta. Dito de outro modo, a estrutura que as organiza pode ser comparada de uma
frase meldica sem um repouso na tnica, o que equivale a uma frase sem ponto final. A
falta de ponto final, de uma pausa no enunciado, de um momento de concluso, impede
a emergncia do sentido. As palavras voam sem o necessrio momento de pausa, o
momento que teria permitido o movimento de retroao e de compreenso do que havia
sido enunciado at a. A parada, renncia entrega ao movimento da linguagem, que
tende para o constante deslocamento, implica que se introduza a uma falta, uma
suspenso, sem a qual, no entanto o sentido no pode advir. Ento, o que se diz que
falta criana dita psictica o equivalente a esse ponto final, falta-lhe esse momento de
interrupo, e o sentido que no pode ento advir.
Poder o sentido que lhe falta ser provocado de modo ortopdico? No Lugar de Vida,
estamos apostando nessa criao atravs de recursos da montagem institucional,
entendida em seu sentido amplo, alm da tentativa de cri-lo em cada instncia de
trabalho.
No sentido amplo, busca-se acompanhar as respostas das crianas aos manejos
institucionais ali praticados. Verificam-se, por exemplo, os efeitos da introduo das
atividades educacionais em seguida s teraputicas. Observa-se o modo como as
crianas recebem o corte que acontece na passagem de uma atividade para outra, espera-
se que a alternncia de atividades, espaos e pessoas crie o equivalente a frases, tecendo
redes de linguagem nas quais a criana poder vir a se situar.
Entende-se ainda que as trs grandes redes de linguagem que se tecem no Lugar de
Vida o discurso dos pais, o institucional e o das crianas no conjunto das atividades
esto sempre entrecruzando-se, produzindo pontos nodais. A reunio semanal da
equipe, chamada reunio de sntese, o momento em que esses pontos nodais so

117

localizados e interpretados. Depois de t-los atravessado, a equipe retoma ao trabalho,


que agora estar reformulado, e assim sucessivamente.
Desse modo, todas as atividades ali realizadas, assim como a sua. ordenao dentro do
espao institucional, tm funo teraputica em seu sentido amplo, ao passo que o grupo
teraputico o espao em que se d o trabalho teraputico entendido em seu sentido
estrito.
Para terminar, podem-se tomar os movimentos de uma criana como fio condutor para
a ilustrao de como se realiza o trabalho no Lugar de Vida.
Maurcio um menino de 11 anos, cuja histria de vida nos leva a crer que foi um dia
um autista, e hoje um psictico. capaz de aprendizagens casuais, mas no parece
implicar-se nelas. Verificamos com espanto que sabia ler, embora no fizesse nenhum
esforo para demonstr-lo. Fala muito mal, e sua aproximao extremamente
desorganizada; busca to somente agarrar as mui e puxar-lhes o cabelo.
Quando seu pai passa a lev-lo instituio, produzem-se mudanas em sua posio
frente ao filho, operadas, supe-se, a partir de sua transferncia com a instituio. No
grupo dos pais, ele observa que se os profissionais do Lugar de Vida cuidam tanto de
filhos que no so deles, com mais direito deve ele cuidar do seu. Os resultados no
filho fazem-se notar: toma-se mais organizado e obediente ao pai.
No ateli de msica, pendura-se sensualmente a uma das profissionais e cola seu corpo
ao dela, escorrega-se nela, que responde propondo-lhe que dance com ela ao som da
msica, ritmadamente, corpos afastados, j que no so namorados. Ou seja, prope
uma forma estruturada, sublimada, criada pela cultura, de arranc-lo, pela via do prazer,
do gozo em que se achava mergulhado. Maurcio poderia no aceitar, mas aceitou.
Maurcio trabalha um pouco mais organizadamente nas atividades educacionais,
folheia livros de estria, encontra l materiais, nomes e atividades que o ajudam na
conquista de uma estabilizao crescente.
No grupo teraputico, v-se um dia sozinho. As outras crianas faltaram. Angustia-se,
e pergunta cad? por cada um deles. Constata-se que conhece os nomes, e que
pode registrar ausncias. Em seguida, comea uma brincadeira em que ele, agora,
quem desaparece.

118

Indo depois para a escolinha, mostra que sabe ler os nomes das outras crianas,
escritos no mural. agora uma leitura que faz sentido para ele: designa as crianas
ausentes.
Pouco tempo depois, comeam os primeiros desenhos, que culminam com uma figura
humana. Seu nome: Maurcio.
O grupo de pais, os atelis, o grupo teraputico e o educacional trabalham em
diferentes frentes, na tentativa de compor uma estruturao da qual uma criana venha a
se apossar, se puder.
Para concluir: o desamparo no o nico responsvel pela produo da doena
mental, j que esta multideterminada. Mas um fato que a doena mental produz
desamparo. E contra esse desamparo, sobretudo, que o Lugar de Vida quer lutar.

BIBLIOGRAFIA
ASSOCIAO Americana de Psiquiatria. Manual de diagnstico e estatstica de
distrbios mentais - DSM-III. 3.ed., So Paulo, 1989.
CRIANAS e adolescentes: indicadores sociais. Rio de Janeiro, IBGE, 1989. v.3.
INTEGRAO de jovens deficientes no ensino obrigatrio na Noruega. (Relatrio do
Colquio Internacional, Oslo, 07 a 10 fev. 1985).
MARSIGLIA, R. et ai. Sade mental e cidadania. So Paulo, Mandacaru, 1987.
MANNONI, M., org. Bonneuil, seize ans aprs. Paris, Denoel, 1987.

119

9 GRUPOS DE CRIANAS COM QUEIXA ESCOLAR: UM ESTUDO DE


CASO
Cntia Copit Freller
Um pouco de histria: o trabalho na escola
Joo, Paulo, Carlos, Marcos, Maria...
Esta era mais uma lista de crianas com problemas escolares encaminhadas por
professores para atendimento, enquanto, ns, psiclogos do Servio de Psicologia
Escolar do IPUSP, propnhamos outro tipo de trabalho, envolvendo os professores e
demais profissionais da escola. No fazia parte do nosso repertrio o atendimento de
crianas, na medida em que privilegivamos os grupos de reflexo com os professores,
a fim de repensar as relaes institucionais e as prticas escolares que produzem e
mantm o fracasso escolar.
Nesses grupos de professores, a partir de cenas e situaes ocorridas no cotidiano
escolar, analisamos ngulos da relao pedaggica, problemas na dinmica institucional
da escola, na interao com os alunos, identificamos alguns dos atravessamentos
ideolgicos que suportam a prtica docente etc. Como destaca Fernandez (1994),
necessrio abrir espao para a pergunta, para a dvida, e, eu acrescento:
paradoxalmente, tambm, valorizar o saber, a experincia profissional de cada professor
e suas estratgias para enfrentar os problemas que encontra no dia-a-dia da sala de aula.
Os professores se queixam das crianas e ns procuramos juntos entender, em cada
aluno, os sentidos expressos por seu comportamento agressivo ou por sua dificuldade de
aprender. Buscamos escutar esses comportamentos como um sintoma, no apenas
produto de mecanismos

121

intrapsquicos e de relaes familiares, mas principalmente de prticas escolares. Nesses


casos, fundamental articular a histria familiar e pessoal da criana com a sua histria
escolar.
Indagamos, tambm, como determinado comportamento de um aluno atinge seu
professor e quais as estratgias facilitadoras dessa relao, visando aprendizagem e ao
desenvolvimento global da criana.
No entanto, ao percorrermos os corredores da escola, percebemos que as crianas no
so apenas motivo de queixa dos professores. Elas tambm se queixam e expressam seu
desejo de estabelecer contato, conversando, propondo brincadeiras e principalmente
perguntando coisas.
Aos poucos, pudemos entender essa aproximao das crianas como um pedido, uma
demanda de trabalho que tambm merecia ser atendida. Elas no sofrem caladas com as
prticas escolares, que precisam ser profundamente repensadas pelos educadores, mas
tambm tm algo a dizer. Querem e podem falar, precisando, pois, de algum para
escut-las.

Repensando posies: um espao para a comunicao com as crianas


Em 1985, iniciava o trabalho com grupos de crianas com queixa escolar, objetivando
sobretudo lhes oferecer um espao de comunicao.
Estava preocupada em desenvolver uma tcnica, em um espao de tempo limitado, que
facilitasse o contato com as crianas e imprimisse alguma mudana em sua situao
escolar.
A Consulta Teraputica, proposta por Winnicott (1984), uma variao tcnica, em
que se pode utilizar o jogo dos rabiscos, para facilitar uma breve e profunda
comunicao com o paciente, que expor seu problema principal nas primeiras
entrevistas.
Inspirada nas Consultas, optei por um trabalho com grupos de crianas, apesar das
restries que o autor apresenta quanto a esse tipo de interveno. Alguns dos
seguidores de Winnicott trabalharam com grupos e obtiveram resultados favorveis.
De qualquer forma uma possibilidade tcnica interessante e representa um desafio que
resolvi

122

enfrentar. Este trabalho uma oportunidade para refletir sobre seus limites e
possibilidades.
Acredito que reunir algumas crianas com queixa escolar, diante de uma caixa com
material grfico, sem nenhuma atividade pr-estabelecida, com um adulto disponvel a
acompanh-las e escut-las, pode ser uma oportunidade para a expresso do conflito
predominante de cada criana e do grupo. Tambm permite ao psiclogo esboar um
pr-diagnstico, localizando o tipo de dificuldade que apresentam para delinear
estratgias de trabalho.
A funo teraputica, ou facilitadora, dessa experincia deve ser avaliada,
constantemente, e o material clnico que relato a seguir uma boa oportunidade para
iniciar essa reflexo.
O enquadre proposto para as crianas suporta variaes, mas os parmetros bsicos
so: seis a oito participantes, aproximadamente 10 sesses, uma hora de durao, uma
vez por semana, uma caixa com material grfico e, dependendo da idade, jogos, animais
de plstico e famlias de pano.
Procuro conversar uma vez com o grupo de pais e com o de professores,
separadamente, uma vez antes de comear o trabalho com os alunos e no final do
processo, objetivando, por um lado, escutar sua verso sobre os problemas enfrentados
pelas crianas e seus sentimentos e atitudes frente a essa problemtica. Por outro lado,
procuro ajud-los a pensar em formas de facilitar o crescimento das crianas,
aproveitando possveis mudanas ocorridas a partir do processo grupal, ao propiciar
uma proviso ambiental mais adequada.
Com as crianas, inicio o processo contando o motivo do encaminhamento dos
professores, o objetivo do trabalho e o enquadre. Convido-as para participar do grupo
(j que a participao optativa, assim como a dos professores), a fim de que possam
expressar sua verso sobre os problemas que enfrentam na escola e fora dela, falar de
suas preocupaes e brincar.

Estudo de caso
A seguir, relato, sucintamente, o percurso percorrido por um grupo formado por
crianas repetentes que estavam cursando a primeira srie

123

pela terceira ou quarta vez, encaminhadas por professores de uma escola pblica
estadual. Repito que meu intuito com esse relato fornecer material para reflexo sobre
essa prtica, e no generalizar mecanismos, j que cada processo grupal nico,
particular e diverso.

Os alunos, segundo seus professores


Os professores selecionaram sete crianas, consideradas incapazes de progredir na
escola, casos graves, que precisavam se submeter a tratamento com especialistas, uma
vez que os recursos pedaggicos para auxili-las j haviam sido esgotados. Esses
professores falaram das caractersticas pessoais de cada criana, de forma genrica,
demonstrando no conhec-las em profundidade. Alm disso, como j foi observado por
Patto (1985), a definio das crianas feita pela negativa, pelo que falta ou pelo que
inadequado.
Jorge, 11 anos, j havia freqentado outra escola na Bahia. No sabe ler, nem
escrever. No faz nada na sala de aula e extremamente desinteressado.
Marcos, 10 anos, bagunceiro, destrutivo e agitado, no obedece e s quer saber
de jogar futebol e conversar.
Wagner, 9 anos hiperativo, no para na carteira, no sabe nem segurar um
lpis, tem uma letra horrvel e problemas familiares graves: seu pai no mora em casa
e o padrasto bebe.
Fbio, 10 anos, lento, no tem memria, o que aprende esquece no dia
seguinte.
Gabriel, 9 anos, um menino largado, vem sujo para a escola, est bloqueado, no
consegue dar o dique, aprende at certo ponto e depois no vai.
Slvia, 10 anos, aptica, fica divagando, no mundo da lua, no seu caderno, ao invs
de lies s tem flores.
Carlos, 10 anos, tmido e introvertido, no entende o que a gente faIa, no
participa de nada, nem de Educao Fsica, no tem amigos, no faz nada.

124

A histria escolar
A histria escolar inicial de todos comum, pois embora estivessem freqentando, no
momento do trabalho, classes diversas, pertenceram, na primeira srie, mesma classe,
a qual ficou marcada na escola por ter sido reprovada em massa (70%) e pela
substituio constante de professores. Estes tiraram licena mdica ou se aposentaram
(foram sete professores em um ano).
Aps este incio conturbado, as crianas reprovadas foram reunidas com outras
crianas-problema, tendo sido designada uma professora novata, sem experincia
docente, para assumir a classe, informalmente chamada lixo,
Essas crianas repetiram novamente e foram redistribudas pelas classes iniciantes, a
fim de recomear, pela terceira vez, o processo de alfabetizao, com exerccios de
coordenao motora fina e orientao espao-temporal.
A pesquisa da histria escolar, geralmente desconsiderada pelos psiclogos clnicos,
fundamental para entender a problemtica enfrentada por essas crianas.
Freqentemente revela um processo escolar complicado, fruto de prticas escolares
equivocadas e inadequadas.

A verso dos pais


Na primeira reunio com os pais, todos compareceram e aceitaram, aparentemente
satisfeitos, o trabalho com seus filhos. Falaram de sua preocupao com o fracasso
escolar das crianas e com o seu destino: sem estudo ele no vai ser nada na vida, igual
a gente, trabalhar, trabalhar e ficar na mesma. Contaram situaes de sua vida e da vida
dos filhos.
Segundo os pais, as crianas tiveram um desenvolvimento normal at entrarem na
escola, quando surgiram os problemas e preocupaes. Os professores comearam a
cham-los na escola para se queixarem dos seus filhos, cobrando-lhes providncias.
A exceo foi a me de Carlos, que sempre se preocupou com o o jeito diferente e o
desenvolvimento atrasado do filho.
Os pais de Jorge, Marcos e Wagner achavam que seus filhos no aprendiam porque
eram desinteressados e preguiosos, ao mesmo tempo

125

em que problematizaram aspectos da escola que consideravam inadequados. Eles


relataram que o problema estava localizado na rea escolar; o brincar e o resto da vida
dos filhos continuavam preservados.
Os pais de Slvia, Fbio e Gabriel estavam, no momento, preocupados com o
desempenho geral das crianas, questionando sua capacidade e inteligncia, para a
escola e para a vida. A me da Slvia contou que a filha, antes alegre e vivaz, andava
desanimada e triste, no querendo ir escola, s vezes, at inventa doena. Alguns
j buscaram ajuda de outros profissionais especialistas, mas nada conseguiram nos
servios pblicos.
Relato: grupo de crianas
Comecei a primeira sesso me apresentando e perguntando se sabiam porque estavam
l. Ningum respondeu. Expliquei que, segundo os professores, eles estavam com
dificuldades na escola e precisavam de ajuda. Acrescentei que era um convite para que
eles exprimissem a sua verso, em um espao onde poderiam falar o que pensavam e
sentiam, poderiam brincar, desenhar e utilizar todo o material da caixa, o qual seria do
grupo, durante o processo. Explicitei o resto do enquadre (nmero de sesses etc.) e
mostrei a caixa.
Na primeira sesso, todos aceitaram participar do grupo, mas se restringiram a
responder as perguntas com a cabea ou com gestos, no brincaram e falaram o mnimo
necessrio.
Na segunda sesso, relutaram para entrar na sala. Assim que viram a caixa tiraram todo
o material, que foi arduamente disputado por todos, exceto por Carlos, que ficou em um
canto. Dividiram todo o material, com alguma briga ou discusso. Cada um segurou
firmemente suas coisas e assim permaneceram at o fim da sesso. No brincaram, no
manipularam os objetos. Apenas tomaram posse deles.
Na terceira sesso, os objetos foram manipulados e, em seguida, destrudos. Marcos
fazia bolas de massinha, as amontoava formando uma torre e em seguida chutava longe.
Jorge amassava os papis antes de terminar seus desenhos, falando que estavam feios.
Escondia para que ningum visse sua produo. Fbio apontava o lpis,
obsessivamente, at que ficassem toquinhos e no pudessem ser utilizados. As pontas
eram espalhadas pela sala inteira. Wagner e Gabriel subiam e desciam

126

das carteiras e corriam pela sala. Slvia desenhava flores, menininhas de maria
chiquinha, rvore, casa. Carlos ficava no canto, murmurava frases que no
entendamos, andava pela sala.
A quarta sesso caiu em um feriado e esqueci de avis-los que seria transferida para
outro dia.
Quando me viram, na quinta sesso, olharam admirados e perguntaram em unssono:
Voc voltou?.
Sim, respondi, vocs pensaram que me assustei tanto com a ltima sesso que no
voltaria mais? Esqueci de avis-los que no haveria sesso por causa do feriado.
Essa sesso se caracterizou por brincadeiras de luta, brigas, cadeiras derrubadas, gritaria
e agitao geral. At a Slvia participou do empurra-empurra, e Carlos, tambm, como
depositrio de tapas e puxes de cabelo. O clima estava to tenso que todos pediam para
ir ao banheiro. Intervi impedindo apenas as agresses que provocariam algum estrago
material irreparvel ou que machucassem realmente algum.
Comentei que eles ficaram com muita raiva da minha falta, e que tinham razo. Eu
havia sido displicente ao esquecer de avis-los do feriado. Acrescentei que eles tambm
devem ter ficado muito bravos com as sucessivas faltas de professores que sofreram no
primeiro ano escolar e em outras ocasies de sua vida pessoal. A guerra Continuou
at o final da sesso.
Na sexta sesso, demonstraram novamente surpresa com a minha presena: Hoje
era dia de voc vir ? e Voc esta bonita, cortou o cabelo?.
Pegaram a massinha e Slvia fez uma menina com longos cabelos, que eles se
revesavam para cortar. Chamaram Carlos para cortar tambm, o que ele fez com um
sorriso nos lbios. Cada vez que o cabelo era cortado, Slvia recolocava-o ainda maior,
o que provocou o comentrio de Fbio: Parece uma bruxa. Parece Regina,
nossa professora, aquela que tinha aquele cabelo, acrescentou Marcos.
Construmos uma sala de aula e fizemos crianas de massinha, que colocamos
sentados. A professora de p. Dramatizaram, com os bonequinhos de massinha, uma
situao de sala de aula com uma professora brava, autoritria e injusta. A dramatizao
prosseguiu com eles se revesando para interpretar os personagens.
A professora sempre gritava e emitia ordens absurdas para os alunos, que acuados
obedeciam. Ela reclamava da baguna e gritava sem parar.

127

No meio da gritaria, tropeou no lixo jogado pelos alunos, bateu a cabea e morreu.
Lembraram que Regina, primeira professora, ficou doente, saiu de licena mdica, no
se despediu e nunca mais apareceu. Outra professora a substituiu, sem dar qualquer
notcia ou explicao. Levantaram hipteses sobre a sua doena, e Jorge falou que ela
saiu porque teve sistema nervoso e no podia mais dar aula. Essa dramatizao foi
acompanhada de risada e gritinhos, por todas as crianas.
Na sesso seguinte, desenharam, contaram estrias e fizeram objetos com massinha.
Enquanto produziam, conversavam, com evidente prazer sobre situaes cotidianas, da
escola ou do bairro, trocando idias sobre diversos assuntos.
Um assunto em pauta nesse dia foi um acidente de bicicleta sofrido por uma criana.
Conversaram sobre as mes e o que cada uma permitia ou proibia, como deixar que eles
brincassem na rua, at que hora etc. Tambm falaram sobre cenas de violncia que cada
um j ouviu ou presenciou, e que faziam parte do seu cotidiano.
Na oitava sesso, houve uma disputa de material. Cada um queria ficar com um pedao
maior de massa e achava que o outro tinha mais. Puderam conversar sobre as
quantidades: o que contm mais massa, uma bola ou uma cobra? Tambm discutiram
sobre as injustias que sentiam sofrer em casa e na escola. Quem era protegido, quem
era discriminado, perseguido e vtima de determinadas situaes?
Sua produo inicialmente pobre, estereotipada e infantilizada foi se tomando cada vez
mais rica e pessoal. Caprichavam nos detalhes e pareciam contentes ao manipular o
material e ao se deparar com o produto final, me mostrando orgulhosamente.
Na penltima sesso, Slvia perguntou se o grupo acabaria e ns no nos
encontraramos mais. Respondi que teramos mais um encontro.
Cada criana reagiu diferentemente ao final do processo. Jorge falou que no ligava
que ia acabar, pois podia desenhar na classe e brincar no recreio. Slvia se fechou,
permaneceu em silncio quase o tempo todo, desenhando. Marcos e Wagner inventaram
uma brincadeira de peteca, feita de massinha. Construam a peteca e jogavam at que
ela acabasse; refaziam a peteca e recomeavam o jogo. Carlos ficou fazendo
dobraduras. Fbio e Gabriel mudavam de atividade

128

constantemente, desenhavam, faziam massinha, jogavam futebol com o dedo.

Arremates: conversa com professores e pais


Aps o final do grupo conversei com as professoras, que relataram progressos
escolares em todas as crianas, exceto Fbio, cuja professora foi de opinio que ele
piorou, ficou mais bagunceiro e desobediente. A professora de Carlos achou que ele
ficou mais interessado, conseguindo ler algumas palavras, conversando mais e, em
alguns momentos, brincando com os colegas.
Fbio e Carlos repetiram de ano. Os demais passaram e esto acompanhando a classe e
correspondendo expectativa da escola. Continuo acompanhando, na medida do
possvel, o desenvolvimento dessas crianas.
Discuti com as professoras sobre parmetros para avaliar os resultados do trabalho, j
que meu objetivo no era o sucesso escolar desses alunos. Conversamos tambm sobre
os mltiplos fatores que contriburam para o movimento das crianas, inclusive
modificaes na relao professor-aluno.
Assinalei a mudana de atitude das professoras e apontei como elas puderam dirigir
um olhar mais favorvel e esperanoso em direo a esses alunos e investir na sua
aprendizagem, at antes do incio do processo grupal, a partir da expectativa do
atendimento psicolgico. O espao de escuta e apoio, oferecido por mim, tambm
motivou e fortaleceu o vnculo com as crianas, assim como encorajou-as a buscar
estratgias para facilitar o processo de ensino- aprendizagem.
Continuo disponvel para eventuais encontros com as professoras, com os pais e com
as crianas.
Carlos foi encaminhado para uma psicoterapia individual.

Discusso
A partir deste relato podemos supor que descobrimos algumas coisas sobre estas sete
crianas e sobre o grupo que elas constituram, mas, principalmente, podemos dizer que
elas descobriram vrias coisas sobre elas mesmas.

129

Recuperando o movimento do grupo, podemos localizar um primeiro momento de


extrema desconfiana e inibio, expresso atravs da paralisia e apatia inicial, seguido
pelo apossar-se, sem brincar, dos objetos da caixa.
Podemos supor que estavam vivendo no grupo a incapacidade de brincar e de
aprender, que as professoras relataram. A desconfiana que demonstravam fazia parte
de um sentimento mais geral de que as pessoas no so capazes de atender suas
necessidades, que o ambiente no contm o que eles necessitam e no passvel de
transformao e recriao. As prprias crianas tambm no acreditavam mais na sua
capacidade de aprender, de produzir e principalmente de crescer.
Havia, no entanto, uma esperana: elas concordaram em participar do grupo e seu
comportamento foi mudando, movimentando-se rapidamente, revelando que a
capacidade de brincar estava constituda, apenas fraca e perdida, pronta para ser
resgatada.
medida que a confiana se estabelecia, fruto de uma atitude diferenciada da
professora ou da me, e do setting estvel e seguro, puderam liberar sua agressividade.
Os comportamentos agressivos e agitados encontravam conteno e limites, evitando,
assim, a destruio concreta das pessoas e das coisas. E tambm foram suportados,
respeitados em sua legitimidade e principalmente escutados.
Outro fator que pareceu importante foi o uso que fizemos da minha falha, que
reproduziu situaes vivenciadas pelas crianas na escola e provavelmente tambm em
sua vida pessoal.
O reconhecimento do meu erro permitiu que liberassem sua raiva apropriada, reativa
falha ambiental, substituindo, como diz Winnicott (1994), a seqncia de traumas
cumulativos por uma seqncia de raivas cumulativas.
A agressividade, vivida sem risco, como parte do potencial criativo e construtivo, sem
a destruio e a retaliao do outro, pode ter facilitado a emergncia de uma experincia
fundamental no processo desse grupo: a dramatizao, vivenciada de forma intensa e
prazerosa, da morte da professora.
A experincia da dramatizao desta cena com a professora, vivenciada com os
sentimentos apropriados, marcou um momento importante de mudana e ruptura, para
todas as crianas do grupo. A possibilidade de falar sobre a cena, rememorando
fragmentos da histria escolar e associando com particularidades de cada histria
pessoal,

130

contribuiu para integrarem idias e sentimentos e redimensionarem os fatores


envolvidos no fracasso escolar.
Nossa hiptese que, atravs dessa cena, as crianas puderam vivenciar a dor, a raiva
e a culpa, decorrentes do abandono, sem explicao, da primeira professora e das
demais que a sucederam, emoes que no puderam ser vividas/faladas na poca e que
foram associadas s sucessivas reprovaes e fracasso na escola.
A partir de ento, estavam mais livres para conversar, falar de problemas que
enfrentavam, como perseguies, injustias, preferncias, limites etc. Principalmente
estavam mais capazes de brincar, desenhar, criar e aprender, extraindo prazer destas
experincias, enriquecendo sua personalidade e crescendo, adquirindo mais autonomia e
autenticidade.
Puderam brincar e extrair prazer na brincadeira, o que revelava sade. O espao
potencial, ou terceira rea de vida, intermediria entre mundo externo e interno e lugar
do brincar e da experincia cultural (estudado por Winnicott, 1975) pde ser resgatado e
experimentado pelas crianas e por mim.
Nesta superposio das reas de brincar, das crianas e minha, puderam ocorrer
comunicaes significativas, relaes interpessoais ricas, mais autnticas e flexveis.
Tambm puderam utilizar smbolos cada vez mais complexos e estabelecer relaes
com o meio e com a cultura de forma criativa, explorando e descobrindo o mundo ao
mesmo tempo que descobriam a si prprios.
Pudemos analisar as condies que tomaram possvel o brincar, nessas crianas, e o
potencial curativo inerente ao processo de brincar que puderam experimentar.
No caso da dramatizao, as crianas repetiram situaes vividas na escola, que tiveram
um efeito traumtico porque no puderam ser sequer conversadas e articuladas
simbolicamente. Na brincadeira/cena, elas passaram da posio passiva, em que
sofreram caladas com a ao da professora, para sujeitos ativos, reelaborando a
experincia.
O brincar teraputico em si, ajuda a fazer amizades, possibilita o movimento, a
comunicao significativa. caracterstico da criatividade, da aprendizagem real, rica e
pessoal.
Acreditamos que esta experincia no constituiu um reasseguramento efmero, mas
como prope Lins (1991), constituiu um primeiro passo para essas crianas
readquirirem a crena em si

131

prprias e no mundo. Apostamos que saram um pouco mais fortalecidas e confiantes


na possibilidade de outros encontros felizes e de vivncias prazerosas na mbito da
experincia cultural, esttica e do brincar.
Origem do problema escolar para o grupo
Nossa hiptese de que essas crianas, exceto Carlos, que merece uma discusso
parte, puderam ter um desenvolvimento considerado adequado at iniciarem a primeira
srie.
O incio do processo de escolarizao um momento extremamente importante para a
criana e para os pais, onde fantasias e expectativas em relao capacidade e ao
destino de cada indivduo e de sua famlia podem se concretizar, em funo do
desempenho escolar.
uma etapa que marca o crescimento da criana e a passagem para crculos sociais
mais amplos, podendo ser considerada uma fase crtica, de transio, onde muitos
fatores so postos prova. As experincias vividas nessa fase se somam e re-significam
experincias da histria passada da criana, influindo na forma de auto-expresso e
interao com a cultura.
Winnicott (1987) atenta para a importncia de um caminho gradual que parte da
relao do indivduo com a me, em seguida com a famlia, com a escola e com a
sociedade mais ampla. A criana vai percorrendo crculos cada vez mais abrangentes,
adquirindo capacidade para se identificar com a sociedade sem perder a espontaneidade
e o senso individual.
Assim ele destaca a funo facilitadora do ambiente, capaz de promover o crescimento
da criana, dando-lhe continuidade existencial e contribuindo para enriquecer o seu self.
Cabe escola facilitar a passagem do mundo familiar para a cultura mais ampla,
capacitando a criana a fruir a herana cultural, simbolizar de forma cada vez mais
complexa e diversificada e se integrar ao mundo compartilhado de forma pessoal e
criativa.
Podemos entender, ento, que determinadas privaes, descontinuidades ou situaes
adversas podem resultar na perda da rea do brincar e, em conseqncia, do aprender.

132

Neste sentido, podemos pensar que a escola no facilitou o desenvolvimento do


potencial daquelas crianas, contribuindo para obturar e eclipsar as capacidades j
estruturadas, comprometendo seriamente sua auto-estima e sua confiana na recriao
do ambiente. Alm disso, no reconheceu as falhas que imps s crianas, assim como
no entendeu o comportamento reativo das mesmas como uma justa reivindicao.
Rotulou como doena e incapacidade, culpabilizando e estigmatizando alguns alunos
por um fracasso que no s seu. E ainda no proporcionou um ambiente seguro e
interessante, onde as crianas pudessem aprender de forma mais criativa e prazerosa,
descobrindo um estilo prprio de se relacionar com a cultura.
A produo do fracasso, por parte da escola, foi praticada atravs da valorizao da
aprendizagem mecnica e repetitiva, que exige do aluno apenas sua submisso e
adaptao. Tambm atravs da falta de investimento no vnculo professor-aluno e na
possibilidade de abrir espaos para que as crianas expressem seus sentimentos e os
problemas que enfrentam no cotidiano escolar. Ainda pela discriminao, represso e
punio de toda atitude diferente da criana, distante da expectativa da escola,
especialmente os comportamentos considerados agressivos. E, principalmente, pelo
desrespeito aos direitos da criana e da famlia, expressos, por exemplo, pelas abusivas
faltas, abonos, licenas e substituies das professoras, sem nenhuma explicao aos
alunos.
A manuteno do fracasso, por parte da escola, ocorreu pela incapacidade de entender
as necessidades destes alunos para tentar ajuda-los a sair do lugar de incapazes que
foram confinados (sem precisar recorrer a outros profissionais especialistas como
mdicos, psiclogos). E sobretudo pela dificuldade em cumprir sua funo educativa,
em um ambiente interessante, estvel, criativo e mais respeitoso.
Podemos supor que as prticas adversas da escola provocaram descontinuidades no
crescimento das nossas crianas, que para se defender contra tais situaes
imprevisveis se recolheram, inibindo suas capacidades; ou reagiram, mostrando sua
insatisfao atravs da recusa em aprender e da indisciplina.
O comportamento agressivo que apresentavam, parte da vida e do impulso de
aprender, deve ter sido vivido como muito perigoso e capaz de provocar danos reais no
ambiente. Provavelmente as crianas interpretaram a mudana constante de professores,
assim como as

133

reprovaes, como conseqncia de suas agresses. A sua fantasia teve o


correspondente real: os professores foram destrudos pela sua agresso, ou seja, estavam
retaliando, se vingando.
Sentiam-se culpadas e simultaneamente com muita raiva. Desconfiavam da escola, dos
professores, dos adultos em geral, e tambm de si prprias.
Certamente, a dinmica individual de cada aluno, fruto de sua histria pessoal,
determinou a forma como pde reagir s prticas escolares. No podemos nos esquecer,
por exemplo, de que a reprovao da primeira srie, a que referimos neste trabalho, foi
de 70%. E os outros 30%, reagiram melhor s sucessivas substituies de professores?
No. Podemos afirmar que aqueles que foram promovidos no so necessariamente
saudveis, pois o xito escolar no revela sade mental, assim como o fracasso escolar
no significa doena.
Para concluir, lembramos que o self de cada indivduo basicamente constitudo nas
etapas precoces do desenvolvimento, a partir da relao com a me-ambiente,
suficientemente boa, que garanta a sua integrao e autonomia. No entanto, o ambiente
concreto e objetivo, inicialmente constitudo pela me e gradativamente pelos crculos
sociais mais amplos e, no nosso caso, pela escola, tem um papel fundamental para
enriquecimento do mesmo.
Assim como um ambiente (por exemplo, a escola) adequado pode promover e facilitar
o crescimento da criana, um ambiente adverso e hostil pode obstruir seu
desenvolvimento e at comprometer as estruturas e capacidades j adquiridas por ela.
Neste sentido, para o entendimento da queixa escolar, necessrio procurar articular a
histria pessoal com a histria escolar da criana.
Para buscar uma interveno teraputica que d conta da complexidade desta
problemtica, precisamos trabalhar no s com o aluno, mas com seus pais e
professores. Procurando enfocar no s o mundo interno da criana, mas tambm o
ambiente externo e principalmente a rea intermediria, ajudando a constitu-la, quando
necessrio. Esse esforo conjunto pode facilitar o crescimento da criana, ao possibilitar
o uso de seus recursos e capacidades, com maior liberdade e criatividade, e ao propiciar
uma proviso ambiental mais adequada.

134

BIBLIOGRAFIA
FERNNDEZ, A. A mulher escondida lia professora. Porto Alegre, Artes Mdicas,
1994.
UNS, M.Y.A. O jogo como interpretao/Apresentado na Jornada Winnicott, Vinte
Anos Depois, Sociedade Brasileira de Psicanlise do Rio de Janeiro, nov.1991./
PATTO, M.H.S. A criana da escola pblica: deficiente, diferente ou mal trabalhada?
Projeto IP, So Paulo, 1985.
WINNICOTLD.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Consultas teraputicas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro, Imago, 1984.
Privao e delinqncia. So Paulo, Martins Fontes, 1987.
Exploraes Psicanalticas. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1994.

135

10 AS CONTRIBUIES DOS ESTUDOS ETNOGRFICOS NA


COMPREENSO DO FRACASSO ESCOLAR NO BRASIL
Marilene Proena Rebello de Souza

A abordagem etnogrfica vem se afirmando enquanto importante instrumento de


pesquisa na rea educacional na Amrica Latina. Rockwell (1991) analisa em seu artigo
Ethnography and critical knowledge ofeducation in Latin America as diversas temticas
presentes na pesquisa etnogrfica educacional e sua contribuio na concretizao de
um conhecimento crtico na rea.
No intuito de dar continuidade s anlises feitas pela autora, prope-se, neste artigo,
apresentar e tecer comentrios a respeito de alguns dos trabalhos recentes desenvolvidos
em reconhecidos centros de pesquisa no Brasil, mais especificamente no Estado de So
Paulo, utilizando a perspectiva etnogrfica de pesquisa em educao(1). Estes trabalhos,
em funo da profundidade e da riqueza de suas anlises, trazem novas luzes na
compreenso dos processos que constituem o dia-a-dia escolar e so valiosos
instrumentos na elaborao de propostas crticas de atuao de psiclogos escolares em
parceria com os educadores.

(1) No Estado de So Paulo, os principais centros de pesquisa situam-se nas


universidades pblicas e catlicas, como a Universidade de So Paulo e a
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, atravs dos programas de ps-
graduao nos nveis de Mestrado e Doutorado, e em fundaes como a
Fundao Carlos Chagas.
137

H muito as pesquisas em Educao e em Psicologia vm considerando os problemas


de escolarizao, principalmente os que incidem sobre os alunos ingressantes das
escolas pblicas, enquanto dificuldades advindas da situao de pobreza a que as
crianas das camadas populares so submetidas. At o incio dos anos 80, um
significativo nmero de pesquisas foi produzido no Brasil atribuindo o fracasso dos
alunos das sries iniciais a problemas nutricionais, cognitivos, afetivos e culturais. Tais
trabalhos, comprometidos com uma viso estreita dos processos escolares, produziram
explicaes preconceituosas e distorcidas a respeito das crianas e de suas famlias,
largamente difundidas entre educadores e psiclogos. A pesquisa em Psicologia, at
ento, possibilitou a legitimao de um discurso que medicalizou e/ou psicologizou os
problemas de aprendizagem e,via de regra, depositou sobre a criana e seus pais a causa
dos problemas escolares. Pesquisas recentes revelam que o preconceito em relao s
classes populares e sua relao com o discurso cientfico, no Brasil, tem suas origens
nas teorias racistas, que aqui chegaram no final de sculo passado e no incio deste
sculo (Patto,1990).
As discusses desencadeadas por uma anlise crtica da escola e de sua funo numa
sociedade de classes possibilitaram movimentos em busca de explicaes do fracasso
escolar que levassem em conta a escola como instituio situada numa estrutura social.
A crtica terica que se processou a partir da leitura de autores neo-marxistas a
princpio no foi acompanhada da crtica metodolgica(Gouveia, l985, apud Patto,
1988). Era preciso construir uma metodologia que desse conta de uma leitura
materialista dialtica. No era possvel usarmos os mesmos instrumentos
observaes com categorias previamente definidas, situaes artificiais de
experimentao, ou questionrios para compreender uma instituio to complexa
quanto a escola numa sociedade de classes e para ampliar a compreenso do fenmeno
da repetncia e da evaso escolares.
No caso especfico das explicaes dominantes a respeito do fracasso escolar, era
preciso mudar o eixo de discusso, descentrando-as das explicaes atribudas aos
alunos e/ou professores e construir um conjunto de conhecimentos que contextuasse tais
explicaes no conjunto do pensamento histrico brasileiro e que possibilitasse
conhecer como esse processo de escolarizao produz os alunos que repetem e que
desistem de continuar na escola. As perguntas principais referem-se

138

natureza da vida diria que se processa nas escolas pblicas, as redes de relaes a
construdas, maneira como os educadores concebem sua atuao e seus alunos, que
prticas valorizam em sala de aula, como os pais e as crianas entendem e explicam o
processo de escolarizao, quem so as crianas que fracassam, que trajetria escolar
percorreram, como se produz a medicalizao dos problemas de aprendizagem, como as
polticas educacionais e pedaggicas se fazem presentes nas prticas escolares. Esse
conhecimento s poderia ser possvel atravs da longa convivncia com as crianas e
com a escola, atravs de um detalhado processo de observao participante, entrevistas
abertas, visitas domiciliares, participao em espaos ldicos, objetivando estabelecer
um vnculo de confiana entre pesquisador-informantes, permitindo que as vozes das
crianas, de seus pais e dos educadores pudessem emergir como sujeitos de sua prpria
histria. Metodologias de pesquisa oriundas da Antropologia Social, com nfase em
estudos de caso, histrias de vida e observao participante, passaram a ser utilizadas
pelos pesquisadores em educao e em psicologia no Brasil, principalmente a partir de
meados dos anos 80.
O conjunto do conhecimento que vem se acumulando neste perodo tem permitido
uma srie de anlises a respeito do processo de produo do fracasso escolar. Alguns
desses trabalhos objetivam compreender mais radicalmente as questes que envolvem o
usurio da escola, questionando os mitos que envolvem os alunos multi-repetentes
provenientes das classes populares (Patto, 1990), os processos de excluso escolar
(Goldenstein, 1986) e a repetncia (Gatti, 1981; Andrade, 1986), a impossibilidade da
manuteno de relaes de causa e efeito entre desempenho escolar e nutrio (Moyss
e Lima,1983; Collares,1989) e entre rendimento escolar e linguagem (Soares,1986;
Cagliari,1985, Sawaya, 1992).
Outros trabalhos desvelam aspectos presentes no cotidiano escolar, tais como os
processos: de dominao e resistncia (Andr et al.,1987; Carvalho, 1991; Andr,
1992); relativos alfabetizao (Kramer et al.,1987); s possibilidades de atuao dos
professores nas sries iniciais (Guarnieri, 1990; Davis, 1992); s questes referentes s
representaes que as crianas ingressantes das classes populares tm da escola (Cruz,
1987); aos professores bem-sucedidos no processo de escolarizao (Kramer e Andr,
1983; Cunha, 1988; Coelho, 1989; Souza, 1991); ou ainda questes relativas didtica
do professor (Andr,

139

1987, 1993; Andr e Mediano, 1986; Andr e Fazenda, 1989) e prtica pedaggica
(Dias da Silva, 1992; Davis, 1988).Um terceiro grupo de pesquisas centra-se na questo
da participao poltica dos professores (Souza,1991) e da gesto popular na escola
pblica (Paro, 1991,1992).
Tais pesquisas tm subsidiado propostas de interveno na escola, possibilitando um
trabalho de parceria entre psiclogos e educadores (Machado,1991; Souza et alii,1989).

A pesquisa etnogrfica e o questionamento s afirmaes da teoria da carncia


cultural
1. O processo de produo do fracasso escolar
Na rea de Psicologia Escolar, Patto( 1990) pesquisou os processos presentes nas
relaes construdas na complexidade da vida diria da escola.
Utilizando como metodologia a observao participante e os conceitos de
cotidianidade e no-cotidianidade de Agnes Heller, este trabalho possibilitou, entre
outras coisas, a convivncia durante aproximadamente dois anos em uma escola pblica
de periferia da cidade de So Paulo, durante o qual realizou quatro estudos de caso de
crianas multi-repetentes. Tendo como foco as condies de escolarizao destas
crianas, observou salas de aula, conversou e entrevistou professores, realizou visitas
domiciliares e resgatou a verso dos pais sobre a escolarizao de seus filhos, bem
como as histrias de vida das famlias pesquisadas.
As visitas domiciliares tinham como objetivo conhecer essas crianas consideradas
na viso da escola como portadoras de deficincias e problemas graves de aprendizagem
e/ou comportamento em contextos extra-escolares, acompanhando cenas de sua vida
diria, ouvindo suas verses sobre a escola e sobre temas de seu interesse, observando
aspectos de seu desenvolvimento, levantando dados a respeito de suas capacidades e
responsabilidades no ambiente domstico, mostrando-se atenta s suas perguntas e
dvidas.
140

Este conjunto de observaes conduziu a uma srie de constataes em relao s


questes escolares, destacando-se em primeiro lugar a discrepncia entre a incapacidade
atribuda s crianas com histrias de repetncia pelos professores e orientadores
escolares e as capacidades observadas pelos pesquisadores fora da sala de aula. Essas
crianas fora da escola mostravam-se observadoras, capazes, autnomas, apresentando
inmeras habilidades, curiosidade e ateno concentrada em tarefas de seu interesse e
em alguns casos com importantes responsabilidades no mbito domstico.
As observaes em sala de aula levaram a crer que, no espao escolar, essas crianas
provenientes das classes populares sofrem um processo de constante rotulao e
estigmatizao, que se concretiza nas relaes de aprendizagem, impedindo-as de se
alfabetizarem e de dar continuidade apropriao do conhecimento socialmente
acumulado.
Na escola tudo conspira para que professores e alunos vivam situaes dirias de
descontentamento, perda da auto-estima, descrdito na prpria produo, reduzindo,
portanto, as possibilidades de reflexo em relao a essa realidade que aliena e impede
de dar conta de um processo adequado de escolarizao. Os professores acabam se
apropriando de uma viso burocratizada do ensino, defendendo os interesses estatais em
detrimento da qualidade da escola, distantes do compromisso com os usurios da escola,
principalmente com os mais pobres. A imerso na cotidianidade escolar dificulta a
visualizao do compromisso com a criana, com o direito escolarizao plena e com
o acesso ao conhecimento socialmente acumulado.
O discurso dos professores em relao s possibilidades de aprendizagem das crianas
das classes populares um discurso no mnimo ambguo, que ora analisa a escola e seus
problemas, afirmando as faltas nela existentes para um ensino de qualidade, ora
considera que a responsabilidade pelo fracasso escolar est nas deficincias das crianas
e/ou nos problemas e desinteresse de suas famlias.
Outro aspecto importante apontado por esta pesquisa o papel desempenhado pelos
profissionais de sade mental, em especial os Psiclogos, na perpetuao da viso
medicalizante e ou psicologizante do processo de aprendizagem. A participao do
psiclogo frente queixa escolar se d, via de regra, atravs da realizao de laudos
Psicolgicos, baseados em psicodiagnsticos cujos pressupostos traduzem
141

o predomnio da viso psicanaltica e/ou psicomtrica dos problemas de aprendizagem.


Tais explicaes deixam de considerar qualquer participao das relaes escolares na
produo do fracasso escolar.
Uma das crenas comuns entre os educadores centra-se no fato de que as crianas que
vivem em situao de pobreza desconhecem o que a escola e sua importncia, no
sabem as finalidades da leitura e da escrita, tm pais analfabetos ou semi-analfabetos e
por isso em grande parte desinteressados do aprendizado de seus filhos. Esse conjunto
de fatores seria um empecilho a mais para seu processo de escolarizao.

2. As conseqncias da experincia escolar


Discutindo algumas dessas questes, Cruz (1987) pesquisou crianas ingressantes na
primeira srie do primeiro grau, na cidade de Fortaleza (CE). A pesquisadora
acompanhou cinco crianas no processo de ingresso na primeira srie do primeiro grau.
Sua preocupao reside em saber como as crianas representam a escola antes de nela
ingressar (Moscovici,1978, apud Cruz, op.cit.), quais suas expectativas em relao
primeira srie, aos contedos que iro aprender, professora, ao significado que
atribuem para o estar na escola. Para isso conviveu com estes alunos no perodo
imediatamente anterior ao incio do ano letivo, aps o primeiro semestre e no final do
ano escolar. Utilizou vrios procedimentos de coleta de dados, desde contatos
informais, entrevistas com as crianas e seus pais, at procedimentos mais estruturados
como os testes de desenhos e histrias (Trinca,1976; Thomas, s/d apud Cruz, op.cit.).
As professoras tambm foram ouvidas a respeito do que esperam de seus alunos e como
procedem na relao de aprendizado no incio do processo de alfabetizao.
Vrias questes so levantadas e apontam no sentido de relatar a mudana de
expectativas dessas crianas em relao escola medida que as experincias do dia-a-
dia vo se somando. Para essas crianas ingressantes, a escola vai se tomando pouco a
pouco um lugar hostil e perigoso, povoado de repreenses e castigos. A escola passa a
ser vista, no decorrer do ano letivo, no mais como um lugar onde se aprende a ler e a
escrever e ainda faz-se amigos, mas sim onde se tem que mostrar o que se sabe(p.
267).
Cruz analisa que no final do ano letivo s custa de muito esforo as crianas
conseguem manter um pouco do que lhes restou da
142

confiana na sua capacidade de aprender(p. 268). Sobre elas paira um constante ataque
sua auto-estima, alm de recriminaes que so maiores medida que as crianas
manifestam no estar entendendo o que a professora explica. A ameaa de expulso
uma constante, tendo como causas dois fatores: a incapacidade para aprender e os
problemas de comportamento. O preo e a representao que permanece para as
crianas serem aceitas o de perda de sua identidade: Elas sentem que s sero
aprovadas (duplamente) se apresentarem apenas com certas partes de si, deformarem-
se (p. 271).
Com relao ao aprendizado, a questo formal se sobrepe ao contedo, o
comportamento sobre o pensamento, a rotina est acima do sentido do que se aprende.
Domina entre a professora a crena na incapacidade dos alunos para o aprendizado e a
necessidade de manter a ordem a todo custo.
As famlias, vistas na literatura como pertencentes a uma classe social que desvaloriza
a educao formal em detrimento do trabalho, apresentam posies completamente
diferentes daquelas defendidas pelos adeptos da teoria da carncia cultural. As mes,
pais ou avs entrevistados atribuem grande valor educao e, mais do que isso,
mostram o sacrifcio que fazem para manter seu filho ou seu neto na escola. Sabem,
tambm, que o trabalho est diretamente ligado escolarizao. Mas suas expectativas
em relao a esse canal para a melhoria da qualidade de vida vai se modificando
medida que o desempenho de seus filhos no corresponde ao esperado pela escola e ao
fato de que a escola exige muito alm daquilo que diz dar. Resta aos pais, ento,
modificar seus filhos, castigando-os ou doutrinando-os. Essa estratgia s questionada
no final do ano letivo, quando os pais se deparam com o fracasso de seus filhos e
percebem que os castigos foram em vo. As crticas passam a se voltar para a escola,
embora ainda centradas nas caractersticas pessoais do professor.
Outra temtica bastante discutida em relao ao fracasso das crianas das classes
populares na escola refere-se ao dficit de linguagem. Esse debate mobilizou lingistas
e psicolingistas de vrias correntes, possibilitando o surgimento de uma srie de
trabalhos tericos sobre o tema, destacando-se ode Soares(1986); Cagliari (1985),
Abaurre (1985 apud Cagliari, op.cit.), Lemie (1981 apud Cagliari, op.cit.). Cagliari
defende a competncia lingstica das crianas das classes populares e questiona a
maneira como a escola pretensamente se diz ensinando.

143

Atribui os problemas de dificuldades de aprendizagem da lngua escrita a questes de


natureza lingstica e metodolgica e no a causas biolgicas.

Algumas de suas afirmaes:


As crianas aprendem a falar apesar das condies scio-culturais, econmicas e
materiais do meio ambiente em que vivem. As condies materiais no afetam a
qualidade das estruturas mentais, a competncia lingstica nem a manipulao do
pensamento, como faculdade cognitiva (p.S8).
A falta de condies materiais no causa danos cognitivos, mas pode causar a falta de
condies para o uso dessa capacidade no sentido de realizar coisas que socialmente
esto ao alcance apenas das pessoas que dominam a sociedade atravs do dinheiro e do
saber acumulado e socializado, como por exemplo tudo aquilo que se faz na escola ou
atravs dela (p..59).
As dificuldades de aprendizagem tm sua causa na prtica escolar na incompetncia
da escola e dos autores de livros didticos e pedaggicos, nas metodologias usadas nas
salas de aula, bem como na poltica educacional do pas. Essas dificuldades de
aprendizagem so baseadas numa viso errada da natureza e do uso da linguagem (uma
grande parte) das chamadas crianas carentes, na discriminao social e no resultado de
trabalhos de pesquisa acadmica mal conduzidos e de sua influncia no trabalho
escolar(p.62).

3. A criana pobre sabe falar?


Abordando a questo da linguagem a partir de outro espao de convivncia social que
no o escolar, Sawaya( 1992) contribui para a

144

temtica da relao entre linguagem oral e pobreza atravs de pesquisa realizada com
crianas de um bairro perifrico da cidade de So Paulo.
Essa pesquisa tem como objetivo verificar o uso que essas crianas fazem da
linguagem, ou seja, sobre o que a verbalizao desses meninos e meninas informa ao
pesquisador a respeito de suas percepes, anlises e explicaes de diferentes aspectos
da realidade.
A faixa etria dos participantes da pesquisa varia de 3 a 9 anos e os encontros
semanais, durante aproximadamente um ano, foram realizados no prprio bairro, em
suas casas e em outros espaos informais, registrando e gravando vrias circunstncias
diferentes de interao verbal, participando de brincadeiras de roda,jogos, conversas
informais, ouvindo relatos e narrativas sobre o bairro, sobre suas vidas e de seus
familiares e amigos, ou ainda sobre episdios vividos na escola, considerada pela
pesquisadora como o um lugar central em suas vidas.
A anlise e a riqueza dos relatos e narrativas levam a autora a afirmar a complexidade
com que as estas crianas utilizam a linguagem verbal, conquistando seu lugar no
mundo adulto e expressando suas vivncias em seu ambiente prximo. Utilizam-se de
ricas interaes verbais, apropriando-se de recursos, como msicas populares e
folclricas, produzem narrativas dos acontecimentos do bairro e a expresso verbal de
suas fantasias e temores. Atravs da interao verbal, as crianas:
falam dos acontecimentos centrais em sua vida e tentam elabor-los, tomando-os
inteligveis e suportveis: o preconceito, a discriminao, os estigmas, as ameaas
constantes prpria vida, as relaes familiares, as condies de moradia, os
acontecimentos do bairro, a precariedade de suas condies materiais de vida, as
dificuldades na escola, e as fantasias, medos e desejos infantis em estreita relao com
esse acontecimentos (p. 255).

Um aspecto importante do trabalho de Sawaya reside na voz dada s prprias crianas,


como reais informantes e protagonistas do trabalho de pesquisa, apresentando na ntegra
vrios trechos de suas narrativas.

145

Chama-nos a ateno a importncia dada pelas famlias escola dedicando ao estudo


uma ateno redobrada. Os relatos tambm so claros ao mostrar cenas de uma escola
hostil, distante de ser interlocutora dessas crianas, ou ainda de compreender os
significados por elas atribudos a muitas das marcas deixadas pelas estratgias de
sobrevivncia num bairro onde as dificuldades so muitas.
Esses so alguns dos trabalhos desenvolvidos a respeito das questes que envolvem o
fracasso escolar, mudando o foco das pesquisas que predominava at ento, voltando-se
para o dia-a-dia da escola e de seus usurios, procurando resgatar a sua histria no-
documentada. Esta histria no est presente nos arquivos escolares, mas precisa ser
reconstruda analiticamente a partir de referenciais tericos crticos, tendo como
elemento fundamental as diferentes verses ou os diferentes significados que os
diversos protagonistas atribuem ao processo de escolarizao e suas dificuldades,
analisando a presena estatal e como essa presena interpretada e transformada em
prticas na vida diria escolar (Ezpeleta e Rockwell, 1986).
No caso das concepes arraigadas na escola a respeito das limitaes das crianas e
famlias provenientes das classes trabalhadoras, a convivncia do pesquisador com o
bairro, a rua, as situaes vividas no dia-a-dia dessas famlias, tem possibilitado um rico
material de pesquisa, que no seu conjunto questiona as explicaes at ento defendidas
pelas pesquisas na rea.
Algumas conseqncias das pesquisas qualitativas para o trabalho do psiclogo
escolar.
As anlises e descries dos processos de produo do fracasso escolar existentes nas
escolas pblicas brasileiras trazem questes fundamentais em relao ao trabalho
psicolgico levado junto aos alunos que apresentam problemas no processo de
escolarizao. Tais questes referem-se maneira como a queixa escolar tem sido
entendida pelo meio psi e as prticas diagnsticas e teraputicas.
O centro das explicaes e das prticas psicolgicas frente queixa escolar marcado
pela viso clnica. A Psicologia tem utilizado um saber que estabelece seu recorte
terico sobre o indivduo, enfatizando a importncia de seu mundo interno constitudo
de fantasias e desejos, habitado por mecanismos de projeo e de introjeo e
determinado pelas relaes vividas no grupo familiar primrio. Essa constatao pode
ser feita atravs dos mtodos de psicodiagnstico da queixa escolar

146

baseados no trip entrevista inicial e anamnese, aplicao de testes (de inteligncia,


psicomotores e projetivos) e encaminhamento para psicoterapia e/ou orientao de pais.
Na viso predominante na Psicologia, os acontecimentos vividos pela criana na escola
so interpretados como um sintoma de conflitos de seu mundo interno e de sua relao
familiar inadequada. Justifica-se, ento, a aplicao de testes projetivos ou sesses de
ludodiagnstico que visam incursionar pela subjetividade e nesse trajeto desvelar os
aspectos inconscientes que justificariam um tratamento psicolgico individualizado.
Nessa concepo, as relaes e processos vividos pela criana na escola no so
considerados como condicionantes ou estruturantes de quaisquer dificuldades no
aprendizado, eximindo, portanto a escola de participao nas dificuldades vividas no
processo de aprendizagem e/ou nas manifestaes de atitudes contrrias s normas
institucionais. No h qualquer questionamento a respeito do funcionamento das
relaes escolares e das normas impostas ou ainda da qualidade da escola oferecida aos
seus usurios; via de regra, a criana ou ainda sua famlia que so culpabilizadas pelas
dificuldades apresentadas.
Outro problema refere-se s teraputicas propostas s crianas portadoras de
problemas de aprendizagem. Em pesquisa realizada junto a psiclogos da Rede Pblica
de Sade de So Paulo (Urbinatti et alii, 1994), a maior parte dos encaminhamentos de
crianas que apresentam problemas de rendimento escolar feita para terapia individual
e orientao de pais (68%) e em apenas 5,8% dos casos os psiclogos realizaram
alguma orientao como professor que encaminhou a queixa.
As pesquisas relativas vida diria escolar, utilizando a abordagem etnogrfica
baseada numa leitura crtica da educao escolar, trazem para o centro da anlise os
processos constitutivos das relaes de aprendizagem e das interaes institucionais que
do forma ao dia-a-dia da sala de aula e da escola. A complexa rede de relaes e o
funcionamento escolar, conforme vo sendo desvelados, explicam como os chamados
problemas de aprendizagem e de comportamento so produzidos na escola.
Consideramos, ento, que o psiclogo precisa voltar sua ateno para o dia-a-dia
escolar, para os processos que constituem as relaes na escola, levando em conta os
alunos, professores e corpo tcnico como protagonistas da dinmica escolar na sua
dimenso histrica, resgatando

147

suas representaes e as conseqncias de suas escolhas e prticas para o sucesso ou o


fracasso escolar.
A partir desse olhar temos desenvolvido nossa atuao com estudantes, pais,
professores e corpo tcnico das escolas pblicas paulistas, junto ao Servio de
Psicologia Escolar da Universidade de So Paulo. Nossa prtica, como grupo de
psiclogos e professores, pauta-se na busca dos processos de produo do fracasso
escolar. Em geral, as crianas que nos so encaminhadas apresentam uma histria de
multirepetncia ou de problemas de comportamento, seus professores acreditam que
no so capazes de aprender a leitura e a escrita, que no tm capacidade de
concentrao mnima para as tarefas escolares.
Entendemos essa queixa como produzida pela prpria escola e procuramos levantar
vrias informaes e relatos buscando esclarece-la. Para isso, convivemos com os
pessoas envolvidas na vida diria escolar, estabelecendo espaos de expresso e
reflexo, atravs de conversas individuais com alunos e professores ou organizando
pequenos grupos de discusso com pais e crianas, onde procuramos levantar as
diferentes verses sobre os atuais problemas de escolarizao. Em muitas ocasies
participamos de momentos de observao nas salas de aula, sala de professores,
reunies escolares e perodos de recreio, levantamos dados sobre a histria de
escolarizao dessas crianas, reconstruindo a histria escolar no-documentada e
construda na complexidade da vida diria (Ezpeleta e Rockwell,1986).
Por meio de nossa ao temos observado que: os problemas de aprendizagem e
disciplina so apenas fragmentos de uma complexa rede de relaes locais, constitudas
no dia-a-dia da escola; os discursos e as prticas escolares so heterogneos, frutos de
diferentes apropriaes dos diversos protagonistas envolvidos no processo de
escolarizao e que a complexidade da vida diria escolar questiona intimamente a
formao e instrumentao psicolgicas para compreender questes que abarcam o
cotidiano escolar.
Nas prticas escolares se manifestam as determinaes histrico-sociais, assim como
as diferentes maneiras que os indivduos entendem e criam alternativas ao processo de
escolarizao. Professores, estudantes, pais e demais funcionrios da escola so parte de
um conjunto de relaes sociais mais amplo, que se objetiva na vida cotidiana escolar.
A convivncia com as escolas tem possibilitado a explicitao das contradies
presentes nas prticas e nos discursos educacionais:

148
o questionamento dos mitos da desnutrio e dos problemas emocionais, dentre outros,
como causadores do fracasso escolar; a reconstruo da histria escolar dos alunos que
vivem a reprovao escolar; o esclarecimento da dinmica de produo do fracasso
escolar e o resgate de experincias bem-sucedidas no processo de escolarizao. Do
ponto de vista das polticas educacionais vigentes, defrontamo-nos, assim como os
educadores, as crianas e seus pais, com a pauperizao cada vez mais crescente das
escolas pblicas estaduais que atendem as famlias mais pobres dos bairros de nossa
Capital, a manuteno de altos ndices de reprovao e de evaso escolares, apesar dos
dez anos de existncia do projeto educacional denominado Ciclo Bsico.
Procuramos, atravs desta reflexo, ampliar a discusso quanto s contribuies das
pesquisas etnogrficas com nfase nos processos constitutivos das relaes escolares
para a atuao de profissionais que se propem a somar sua participao na luta por
uma escola mais democrtica. Sabemos das dificuldades que as mudanas de enfoque
terico-metodolgico compreendem, principalmente porque temos de superar
preconceitos socialmente construdos. Mas no podemos aps tantas evidncias
advindas de trabalhos srios e inovadores de pesquisa continuar a perpetuar prticas
e explicaes que, longe de contriburem para as modificaes das relaes escolares de
excluso, somente as perpetuam.

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151

11 PARA ALM DOS MUROS DA ESCOLA: AS REPERCUSSES DO


FRACASSO ESCOLAR NA VIDA DE CRIANAS REPROVADAS(1)
Jaqueline Kalmus
Renata Paparelli(2)

O presente trabalho integra uma das linhas de pesquisa desenvolvidas no


Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade
do Instituto de Psicologia da USP dentro da qual j foram realizadas vrias pesquisas
(Patto, 1991; Souza, 1991; Machado, 1990 & Freller, 1993), sempre tendo em vista
elucidar o problema dos altos ndices de reprovao e evaso, sobretudo nas escolas
pblicas de primeiro grau que atendem s crianas dos segmentos mais pobres das
classes populares.
Atravs da convivncia com quatro crianas multi-repetentes, portadoras de queixa
escolar (dificuldades de aprendizagem e/ou ajustamento) em ambientes diferentes, como
a escola, a casa e o bairro, procurou-se responder basicamente s seguintes questes:
Quem so essas crianas multi-repetentes? Como vivem (representam) a escola e

(1) Esta pesquisa foi realizada com apoio da FAPESP (Processos n 92/5108-6 e n 92/
5166-6, correspondentes s duas bolsas de iniciao cientfica) e sob a orientao de
Maria Helena Souza Patto.
(2) Psiclogas; na poca da pesquisa (entre 1992 e 1994) cursavam a graduao do
Instituto de Psicologia-USP.

153
seu fracasso nela? Quais as repercusses desse fracasso e do estigma dele decorrente em
sua auto-imagem e no seu grupo familiar?
na passagem do Ciclo Bsico(3) para a 35 srie (no caso da rede estadual paulista)
que se verificam os maiores ndices de reprovao. Assim, optou-se por realizar o
trabalho numa unidade escolar pblica da periferia de So Paulo, onde as professoras do
Ciclo Bsico (CB)(3) foram solicitadas a encaminhar s pesquisadoras alguns de seus
alunos que apresentassem dificuldades de aprendizagem e ajustamento escolar. Essa
pesquisa no se props a estudar o aluno reprovado, mas algumas crianas, que estudam
em uma determinada escola, em um determinado bairro. Isso no significa dizer que as
histrias de vida aqui encontradas no sejam representativas de enorme parcela das
crianas que sobrevivem escola pblica.
A pesquisa desenvolveu-se durante dois anos, em trs fases. Na primeira, estabeleceu-
se um contato individual com as crianas na escola, onde mostraram suas primeiras
representaes do fracasso escolar. Para isso foi utilizado um procedimento (histria-
desenho) que consistiu em contar, a cada criana, uma histria cujo personagem era
multirepetente e, em seguida, pedir-lhes que desenhassem tal personagem e
respondessem a um inqurito a partir do desenho. Na segunda fase foram realizados sete
encontros ldicos com o grupo de crianas no ambiente escolar, com o intuito de
estabelecer um espao na escola que proporcionasse s crianas uma experincia
diferenciada daquela vivida em suas constantes reprovaes e onde pudessem expressar
aspectos de sua histria de vida e de seu percurso escolar. O que se observou nesses
dois momentos corrobora outras pesquisas (Freller, 1993; Machado, 1990 & Patto,
1990): crianas com imagem de si mesmas e da escola extremamente negativas.
Finalmente, foram realizados encontros com cada criana em sua casa, na rua, no bairro,
onde foi possvel conhecer, deste outro ngulo, cada criana, sua insero no grupo
familiar e a repercusso de sua histria de fracasso alm dos muros da escola.
Privilegiaremos neste artigo a terceira fase da pesquisa.

(3) O Ciclo Bsico foi institudo pelo governo do Estado So Paulo atravs de um
decreto de 1983. Consiste na unio da l e 2 sries com o objetivo de diminuir os ndices
de reprovao escolar: a alfabetizao e a aprendizagem das operaes bsicas da
Matemtica ocorreriam em dois anos consecutivos, sem reprovaes do 12 ano (Ciclo
Bsico Inicial) para o 22 (Ciclo Bsico Continuao).
154

PRIMEIRA APRESENTAO:
Surgem Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo na voz das professoras

Carlos, 15 anos, multi-repetente:


Ele no aprende, no l, se recusa afazer ditado. S escreve slabas simples. Vai bem
em matemtica, tem boa coordenao motora (...) Problema de comportamento at que
no tem. Ele tava na outra sala, quando voltou pra minha, a disciplina melhorou cem
por cento.
Eu converso com ele. Ele j me falou que quer ir trabalhai; que acha que est perdendo
tempo, ele no consegue, no aprende (...) O Carlos pra mim uma incgnita.
Ricardo, 12 anos, multi-repetente:
Ele se sente culpado por ter nascido normal enquanto sua irm deficiente. A me
prende ele muito em casa, tem que cuidar da irm . (...) nos ltimos tempos ele vem
melhorando, est bem mais alegre (...) Acho que a me est soltando ele mais,
permitindo que ele seja de fato um menino sadio.

Nivnia, 10 anos, multi-repetente:


Quando eu dou um tema de redao, ela escreve uma histria sobre outra coisa (...) Ela
esteve muito doente, com problema de rim (...) no ano passado foi encaminhada pro
Posto de Sade. No diagnstico do mdico deu que ela tem um lado meio
esquizofrnico .
Em portugus ela vai bem; matemtica, no, fica desesperada. Tem um irmo na 3
srie que tambm tem dificuldade em matemtica. (...) Em casa faz lio, na classe no.
Acho que no bem ela que faz.

155

Ela ficava desesperada para aprender chorava, acabava passando o desespero pr mim
(...) Ultimamente est mais desanimada, mais quietona (...) Eu noto que a Nivnia no
mais a mesma. Ela finge que aprende, ela descobriu que pode escapar (...) No sei se ela
se colocou na cabea que no capaz.
Rildo, 12 anos, multi-repetente:
quietinho, educado, ajuda a professora (...) mas s vezes fica nervoso, fica violento,
muito agitado. (...) Ele oito ou oitenta.
Ele muito educadinho, ningum nunca desconfiava dele. Mas comearam a sumir
coisas. E apareceram com ele. Eu perguntava como foi que aquilo apareceu com ele e
ele inventava histrias, dizia que comprou de outras pessoas. (...) Ele fica muito nervoso
quando desconfiam dele, pela mnima coisa. Quando chamo a ateno dele, tem uma
veia no pescoo que salta. (...) Quando ele t nervoso e faz alguma coisa d pra ver nos
desenhos e na letra que ele t nervoso.
A me d impresso que deixa os filhos muito soltos. So muitos, so sete. Acho que
ela empregada (...) as crianas vm na escola pra comer

SEGUNDA APRESENTAO:
Do Jardim(4) COHAB ou as histrias de Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo...
possvel, e muito provvel, que este bairro tenha grande semelhana com outros
bairros Vilas e Jardins, segundo o eufemismo dos loteadores - deste imenso cinturo
de misria que circunda So

(3) Jardim o primeiro nome do bairro onde se realizou a pesquisa.

156

Paulo. Mas, assim como as crianas Carlos, Ricardo, Nivnia e Rildo -, o Jardim (o
Sem-Terra, a COHAB) nico.(5)

I. O Jardim
no centro de um pequeno bairro localizado na Zona Oeste de So Paulo, divisa com
Osasco, cujos limites so uma rodovia estadual, uma pedreira, uma grande indstria e
outro bairro (j em Osasco), que se encontra a Escola Estadual onde se desenvolveu a
pesquisa. Tambm aqui que moram duas das crianas com quem convivemos: Carlos
e Ricardo.
O Jardim era s mato (fala de Carlos, terceira etapa da pesquisa). Gerado sem
condies, o bairro reflete a histria de muitos que o habitam: cada conquista
transforma a vida do lugar e daqueles que o constroem. Foi assim que aos poucos,
atravs da mobilizao popular, foram surgindo, entre outros, desde a l linha de nibus
(1977), passando pela escola municipal, canalizao da gua (1980), asfaltamento de
ruas, at a fundao, ampliao e transformao em Escola-Padro da Escola Estadual
(1987, 1991 e 1994).
Apesar de ser um bairro pobre da periferia de So Paulo, o Jardim no homogneo:
existem trs reas que se distinguem pelas condies econmicas de seus moradores. A
rea mais pobre a favela. A rea intermediria localiza-se nas ruas fronteirias do
bairro, aquelas pelas quais os nibus trafegam. L, a maioria das casas, que vo sendo
construdas cmodo a cmodo, possui quintal e, algumas, carro na garagem. comum a
construo de mais de uma habitao em cada terreno, havendo inclusive alguns
cortios que abrigam diversas famlias. nessa parte do bairro que se encontra a casa de
Ricardo. A rea onde os moradores tm melhores condies de vida localiza-se nas ruas
centrais do bairro. L as casas so maiores, as ruas so mais tranqilas

(5) Adaptado de um trecho do artigo Relatos da (Con) Vivncia: Crianas e Mulheres


da Vila Helena nas Famlias e na Escola, de Sylvia Leser de Mello.

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do que na rea intermediria, O comrcio local centraliza-se em uma de suas ruas, onde
encontram-se um mercado, farmcia, padaria. nessa parte do Jardim que moram
Carlos e sua famlia.

1. Isso eu no posso falar: a histria de Carlos


Carlos filho de baianos, tem um irmo e uma irm mais velhos e um irmozinho de 1
ano de idade. Seu pai, Sr. Claudionor, confeiteiro; sua me, Dn. Maria, divide seu
tempo entre a casa, a famlia e a igreja pentecostal. Sua casa localiza-se na rua paralela
da escola, situada no alto de um morro, parte privilegiada do Jardim. Nesse local todas
as casas so de alvenaria, no parece haver problemas de saneamento, h algumas
rvores nas caladas e no raro encontrarem-se carros estacionados na frente das casas
ou nas garagens.
Carlos nasceu em So Paulo e passou parte de sua infncia em Salvador, onde teve o
primeiro contato com a escola. Em 1990 voltou para So Paulo, matriculando-se na
Escola Estadual, que ignorou seu histrico escolar: Carlos tinha 12 anos, j havia
passado pela escola, mas ingressou no Ciclo Bsico Inicial (CBI). Hoje, com 15 anos,
cursa pela terceira vez o Ciclo Bsico Continuao (CBC).
Nos encontros ldicos na escola, mostrou ser um rapaz inteligente, que se valia com
freqncia da ironia em seus comentrios. Em consonncia com seus 15 anos, tinha
interesses e atitudes de adolescente. No grupo, manteve-se como lder, aquele que
organiza as brincadeiras, sem brincar. Quando demonstrava carinho pelos encontros ou
pelos membros do grupo, fazia-o de forma ambgua, desconfiada, parecendo querer
sempre guardar uma certa distncia. Foi nessa etapa da pesquisa que mostrou quo fora
de lugar pode se sentir um garoto de 15 anos numa sala de CBC: desenhou-se com
uniforme de presidirio, chamando o desenho de O marginal; no causava de chamar
os seus colegas, que se encontravam em situao semelhante dele, de burros.
Nos ltimos encontros em grupo, Carlos modificou um pouco sua postura de
observador, juntando-se aos colegas. Tambm mostrou, de forma mais enftica, a
relao de carinho e confiana que estabeleceu com os colegas e as pesquisadoras.
Nossa convivncia fora da escola foi muito breve: na primeira visita encontramos um
Carlos tenso, temeroso, olhos baixos, lacnico,

158

que no queria falar sobre sua histria escolar (pelo menos, no da forma direta como
abordamos o assunto). Na segunda, sua irm trouxe-nos a mensagem: O Carlos fugiu
quando viu que vocs chegaram. Fugiu porque no queria falar com vocs . Na terceira
visita, ningum veio atender porta. Os olhos de Carlos e sua me, que nos espiavam da
laje, deram o recado.
Parece que retomar a histria escolar, para Carlos, era retomar uma histria de
fracasso, excluso, sentimentos de incapacidade. Histria onde no aparecia o Carlos
sagaz, irnico, inteligente; o Carlos lder do grupo. Histria que seria melhor no
aparecer, no retomar.
Carlos no consegue negar-se verbalmente a participar da terceira etapa do trabalho
(como no consegue negar-se a assistir s aulas do CBC h 3 anos); sem poder falar,
Carlos baixa os olhos, no atende porta, foge. No pde falar, da mesma forma que
no pode dar sua opinio sobre a escola onde estuda: Isso eu tambm no posso falar
(primeira etapa da pesquisa, procedimento histria-desenho), Carlos nunca teve voz na
escola. Dos nossos encontros ele ainda pde fugir; da escola, no. obrigado a repetir
os mesmos programas curriculares h anos e a repetir todo ano a experincia de
conviver com crianas cada vez menores. E, como Carlos, h tantos meninos mudos e
com olhares eternamente desconfiados, como registram os rapazes da Escola de
Barbiana: O Gianni, por sua vez, sempre foi o mais velho entre os seus colegas de
turma. Quando est sozinho com eles, ainda tenta um bocado armar aos cgados, mas na
frente dos adultos nem abre o bico (Carta, 1982, p. 57).

2. A minha a melhor de todas!: a histria de Ricardo


Ricardo tem 12 anos, est crescendo rapidamente, mostrando no corpo as marcas da
adolescncia que se anuncia. Seus cabelos castanho claros grandes e desarrumados
fazem com que seja conhecido pelas outras crianas como o Pipoca. Seu bonito
sorriso lhe confere uma aparncia simptica desde a primeira vista. Entrou na escola
quando estava prestes a fazer 3 anos, ficou 4 anos no prezinho e com 7 anos foi para o
CBI. Cursa pela quinta vez o Ciclo Bsico Continuao.

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Mora com os pais e a irm mais nova numa pequena casa numa curva da avenida que
liga a Rodovia ao Jardim e segue em direo ao Sem-Terra, casa de quarto, sala,
cozinha, banheiro e o quartinho de ferramenta na laje, cada um construdo num
momento diferente, o que imprime um aspecto de falta de conjunto ao local. Na parede
da sala podem-se avistar dois retratos que contam um pouco a histria do filho mais
velho: Ricardo-beb sentado num banco de praa, Ricardo de beca e chapu na
formatura da Escola Municipal de Educao Infantil (T a pra prova que ele se form;
pra quem quiser v eu mostro, contou D. Irene, me de Ricardo).
D. Irene conta que, nos ltimos 15 anos, o bairro vem mudando muito: No tinha
escola, as ruas era tudo de terra e no passava nibus, s l na Raposo; faa chuva ou
faa sol, a gente tinha que ir l na Raposo, atravessar o morro pra pega nibus . Mas, se
as linhas de nibus que hoje servem ao Bairro representaram facilidades para os
moradores, ao mesmo tempo constituem uma das maiores preocupaes de D. Irene,
que relatou inmeros atropelamentos e acidentes na rua onde mora. Algumas casas
vizinhas s suas j foram parcialmente destrudas por caminhes e nibus
desgovernados: Eu sempre sonho que algum vai entra gritando aqui em casa, dizendo
que o Ricardo foi atropelado. S fico sossegada mesmo quando o Ricardo t dormindo,
dentro de casa . Longe de ser desvinculado da realidade, o sonho de D. Irene mostra a
insegurana em que vivem as pessoas das camadas populares e o temor que tm da
perda de tudo: os poucos bens, a casa, os filhos, a vida.

2.1. D. Irene, me de Ricardo


...apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raa an teimosa que um dia vai talvez
reivindicar o direito ao grito.
Clarice Lispector, A Hora da Estrela

160
D. Irene uma mulher to pequena e to franzina que parece nem caber tanta
braveza e fora dentro dela. A expresso normalmente sria, de quem j passou por
muita coisa na vida, s vezes deixa escapar um sorriso tambm pequeno, mas muito
expressivo. Ouvindo D. Irene, pode-se entender de onde vem essa feio sria: todo seu
relato poderia ser intitulado Manifesto contra o Desrespeito. Desrespeito que,
continuamente repetido e que no se pode combater, transforma-se em ameaa
constante vida de D. Irene e daqueles que, como ela, no tm assegurada a garantia de
seus direitos.
Desrespeito a que foi submetida em dois de seus partos, onde, por falhas dos mdicos,
dos enfermeiros, do hospital, enfim, do Servio Pblico, uma criana morreu e outra,
Rosemary, foi condenada a ter uma vida dependente: no anda, no fala, no coordena
os movimentos, deficiente mental.
Desrespeito a que foi submetida em um centro de reabilitao para deficientes, onde
participou de algumas reunies com pais de crianas em tratamento, sob a coordenao
de um profissional: Eu ficava gastando dinheiro com nibus, tempo (...) S ficava me
perguntando o que eu como, como minha casa, como que eu me visto, como tomo
banho, modo de dizer, n? Em que isso pode me ajuda?! .
Desrespeito a que foi submetida por uma psicloga: devido s inmeras reprovaes,
Ricardo (como a maioria das crianas que vo mal na escola) foi encaminhado a uma
psicloga, que afirmou que o menino no tinha nenhum problema e que ele repetia de
ano por outros motivos. Disse que quem deveria voltar para ser atendida seria D. Irene:
Eu achei muito estranho, mas acabei indo l mais duas vezes. Mas a psicloga s
ficava perguntando como eu me dava com o meu marido, como era com meu filho, se
eu batia ou no, como que era dentro da minha casa. Mas eu nem estudo! Como vai
quer trat de mim?! Como que eu posso t problema na escola?.

D. Irene foi parar numa psicloga sem nem saber por qu ou para qu. A reflexo que
faz a partir desse episdio deveria ser ouvida por todos aqueles professores que chegam
a encaminhar metade de sua classe aos Postos de Sade e por todos aqueles psiclogos
que recebem essa

161

demanda e acabam por ratificar a atribuio de problemas psquicos criana e a seus


pais em detrimento de uma viso mais crtica da escola e sociedade. Mesmo
considerando que se encontre uma psicodinmica familiar dificultadora do bom
rendimento escolar, no se pode entender o comportamento escolar de uma criana sem
levar em conta a maneira como a escola se relaciona com sua subjetividade (Patto,
1990, p. 296).
Desrespeito a que foi submetida na escola.
H alguns anos, na poca da re-matrcula, Ricardo apareceu em casa com um bilhete
ameaador avisando que havia uma taxa no- obrigatria de 20 cruzeiros para a APM
(Associao de Pais e Mestres) e que, caso no fosse paga at o dia seguinte, no
haveria garantias sobre a vaga do aluno para o prximo ano. D. Irene relata o drama
que viveu nesse dia:
Tudo bem o Ricardo fic sem leite, sem po; ele j grande e pode entender Mas a
Rosemary no entende; ela sabe ouvir, mas no sabe falar Ela no ia entend t que fic
sem po e leite. Ento eu sempre preciso fic com um dinheirinho pra essas coisas. Mas
eu fiquei com tanto medo, to preocupada com a ameaa do bilhete, que usei o dinheiro
pra pagar a APM na escola.(...) Fic sem com, at pode; mas fic sem estud, no.
Com, voc no come num dia e no outro voc come, pede emprestado pro vizinho Mas
fic sem estudo, no.

Indagada a respeito da finalidade da taxa, D. Irene contou o que lhe responderam:


pra reformar as cortinas da escola, construir o prdio novo, pra limpeza.., eles disse
rani que os professores tambm ajudam. O diretor falou que o Estado no liga pra
educao, ento todos tm que colaborar pra escola funcionar.
O absurdo se inicia no momento em que, numa escola pblica e gratuita, se cobra
uma taxa, travestida de no-obrigatria, e se vincula o pagamento dessa contribuio
quilo que direito de todos: uma vaga na escola. O absurdo continua medida que se
desconsidera o poder aquisitivo do usurio e se transforma o pagamento em obrigao.

162

Por trs dessa exigncia encontra-se o preconceito de que os pais dos alunos das
camadas populares no tm interesse na escolarizao dos filhos e, portanto, no
contribuiriam com a escola caso no fossem ameaados. O absurdo se intensifica
quando afirmam que a taxa arrecadada, cujo valor corresponde ao po e ao leite da
famlia, destina-se construo da Escola-Padro: a mentira deixa claro o desprezo
absoluto para com a clientela. O absurdo se perpetua na justificativa que o diretor
apresenta para a extorso: o Estado no liga pra educao, ento todos tm que
colaborar pra escola funcionar. A justificativa da taxa acaba por justificar o prprio
Estado (que deveria dar condies para que no existissem as taxas), o que contribui
para perpetuar a situao absurda da Educao.
Na Festa Junina, as professoras exigiram das crianas que levassem a comida e a
bebida da festa, determinando inclusive o que cada aluno deveria levar. D. Irene, com
sacrifcio, conseguiu comprar a lata de leo, o quilo de acar e o quilo de pipoca
destinados a Ricardo. Surpreendeu-se, porm, quando viu o filho voltar para casa no
meio da festa.
Deu duas, trs horas da tarde e ele voltou amarelinho.., O bichinho tava amarelo de
fome. Perguntei porque ele j tinha voltado e ele falou que tava com fome. (f! Mas
no tinha comida na escola, no t tendo festa? Ele respondeu: Mas pra comer tem que
pagai:.. Onde j se viu, a gente faz um sacrifcio pra mandar o que a escola pede, e
chegando l eles vendem o bolo ou o que voc mandou por um preo que voc s vezes
no consegue pagar Tudo bem se os pais tem que pagar pela comida. Mas no as
crianas!! As crianas que deram as coisas, a festa delas. Eles devia t o direito de
come
Exigncias de sacrifcios (doao de alimento ou dinheiro) para a realizao de
festas juninas parecem ser uma prtica comum nas escolas pblicas paulistanas. Patto
(1991), em sua pesquisa realizada em outra escola, j se refere a mecanismos dos quais
as crianas se utilizam para escapar s descabidas exigncias da escola: ... algumas
crianas faltavam s aulas na classe de Neide para fugir da cobrana em dinheiro para a
festa junina (p. 276).

163

No s cobrando doaes para a Festa Junina que as professoras constrangem as


crianas em sala de aula. na distribuio do material escolar, que muitas vezes deixam
mais patente o preconceito em relao s crianas mais pobres:
Eu no tinha dinheiro pra compr o caderno e ento ele (Ricardo) no levou. A
professora falou, na frente de todas as crianas, que tm pais e mes que no compram o
material dos filhos pra fic tomando pinga em porta de bar e compr cigarro .
Ningum vai roub, nem mata pr compr material de escola. Nem deix de com.

Muitas vezes a professora que nutre tais preconceitos encontra-se numa situao scio-
econmica semelhante dos seus alunos, driblando a misria com a jornada tripla de
trabalho; geralmente tm como melhor (seno a nica) opo profissionalizante o
Magistrio; trabalham em condies precrias (salas de aula, material) etc. Utilizam-se
ento de mecanismos para marcar as diferenas entre elas e os alunos: no raro o
preconceito e o desprezo cumprem esse papel.
Segundo D. Irene, em uma reunio de pais, a professora insinuou que alguns deles no
alimentavam bem seus filhos, deixando-os com fome. Apenas uma me conseguiu
contest-la: Meu filho no passa fome, no!! A gente pobre, mas tem comida pra dar
pras crianas . A professora, ao acusar os pais, tenta estabelecer uma relao entre o
fracasso escolar das crianas e a falta de alimentao(6). Porm, h estudos (Moyss e
Lima, 1982) que demonstram que, geralmente, a desnutrio no explica o fracasso
escolar, e que por trs de tal teoria encontra-se a inteno de responsabilizar os pais e a
famlia do aluno pelo seu fracasso, eximindo a escola de qualquer responsabilidade.
Numa reunio onde todos ficam calados, impotentes frente opresso exercida pela
autoridade, a voz que manifesta o descontentamento de todos acaba escorraada. Foi o
que aconteceu com a me de uma criana, quando reclamou das freqentes faltas da
(6) Tal relao vem sendo largamente estabelecida a partir da dcada de setenta, no
apenas pelos agentes escolares, mas tambm por cientistas, meios de comunicao e a
sociedade como um todo.

164

professora. D. Irene contou que todos os pais concordavam com a me que se


manifestou: a professora havia faltado duas semanas seguidas. Mas a concordncia e
indignao dos pais no foi suficiente para que conseguissem apoiar aquela me. Como
todas as outras, D. Irene mantm-se quieta, nas reunies e em todos os momentos em
que sofre a opresso das autoridades. Sua quietude a incomoda e, de uma forma ainda
no absolutamente clara, sugere a organizao dos pais para garantir o respeito:
Eu no esperava que ela (a me que se manifestou) fosse fal aquilo... Talvez se ela
tivesse avisado a gente antes que ela ia fal... talvez a as outras mes poderia te falado.
Mas ela no avis e todo mundo fic assustado, fic quieto. Quem ficou louca foi ela.

Dentro desse cenrio atroz da escola pblica, que desvaloriza e desumaniza o professor
e despreza a clientela, quando surge algum que ouve com ateno e respeito o que os
pais tm a dizer, trata e ensina as crianas de forma digna, essa pessoa transforma-se em
merecedora de enorme gratido. o que acontece com a professora Vanda: Amo a
Vanda at corno um homem ama uma mulher Nem sei explicar por qu . D. Irene no
consegue explicar o porqu desse sentimento, mas a totalidade de seu relato acaba por
deixar claro: na relao que me e filho estabelecem com a professora Vanda existe o
respeito. D. Irene tambm no sabe como responder pergunta: por que s existe uma
professora Vanda na escola?
D. Irene percebe diversas mazelas da escola. Por vezes, reconhece o papel da escola
nas reprovaes de Ricardo, principalmente na figura da professora:
O Ricardo gostou de duas professoras at hoje: a Vanda e a do pr. A ele sempre
queria ir pra escola, fazia sempre lio, at acordava antes da hora. Com as outras
professoras ele chorava pra no t que ir Desde a 1 srie que ele chora.

Mas, outras vezes, atribui a culpa pelas reprovaes somente ao filho:

165
Inteligente ele . Mas muito preguioso, vagabundo. Ele no t tendo aula desde
agosto por causa da greve, s teve uma semana, e no pegou nenhuma vez o caderno.
Essas falas de D. Irene apontam para um discurso ambguo (tal como definido por
Chau, 1981): nem totalmente lcido, nem totalmente alienado, encontra-se na fala da
maioria das mes quando se referem ao fracasso escolar de seus filhos.

2.2. Ricardo & Cia.


Nossa convivncia com Ricardo em sua casa transformou-se em convivncia com
Ricardo e seus amigos na rua. Foi assim que conhecemos vrios meninos e meninas do,
com suas histrias e alegria. Muitos apareciam e desapareciam, deixando lembranas de
rostos e nomes. Eram Douglas, Honorato, Jssica, Aline, Juliana, Drcio, Danilo,
Renan, Rafael... Outros, trs irmos, vizinhos e primos de batismo de Ricardo,
formaram, junto com ele, o grupo que se reunia na escada da calada do outro lado da
rua para brincar, desenhar, conversar e falar sobre a vida. Seus nomes: Maurcio, de 10
anos, estudante da 4il srie da Escola Municipal; Mauro, o Balinha, de 9 anos, cursa a
3 srie da Escola Estadual; Irineu, de 7 anos, est no CBI da Escola Estadual.
Ricardo o lder do grupo. Mais velho, gil no futebol de latinha e no rolim sem
rodas, o Titi e o Pipoca que todos querem desenhar, o que todos solicitam.
A improvisao marca o dia-a-dia das crianas: Irineu e Balinha, sentados lado a lado,
constroem uma mesa para desenhar usando uma revista apoiada metade no colo de
cada um; Maurcio faz um dirio desenhado (desenha as coisas que acontecem na sua
vida) com folhas de comandas de um bar; os meninos utilizam pedaos velhos de
frmica para escorregar ladeira abaixo junto gua que corre na sarjeta.
O cotidiano da escola foi amplamente representado pelas crianas no decorrer dos
encontros:
- Juliana: Minha professora a bruxa.
- Maurcio: . Na minha escola tambm tem uma... Sabe aquela mulher que eu
desenhei? Ento, aquela l que a bruxa.

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- Pesquisadora: Mas toda escola tem uma bruxa?


- Maurcio: . Num tens a bruxa l? O marido o bruxo, depois vem a mulher do
diabo e tem o diabo .
- Maurcio Na minha escola tem uma menina que nem sabe desenh. S sabe escrev:
A caixa - dgua precisa ser lavada de seis em seis meses (em tom de deboche).
- Balinha: Onde niesnio que ela (a professora) batia, Titi?
- Ricardo: Aqui (mostra a mo).
- Douglas: Minha professora s bate na cabea. Quando faz garrancho, ela p!

As crianas costumam re-significar os contedos escolares de forma ldica:


- Irineu: Tem que fazer um micrrbio (pronuncia com dificuldade) aqui, . Eu sei
como o nome do micrbio. E micorbio.(Cantando:) Aqui tem sujeira, micorbio. ,
micorbio! Aperta a buzina e fica micorbio .

Em um dos encontros, Ricardo tenta escrever Irineu e escreve Irineu. Todos riem
dele. Renan diz: T na 2 srie e no sabe nem escrever!. Ricardo tenta consertar o
erro, visivelmente desesperado:
Mas s troc o o pelo e e o u!. Continuam rindo. Ricardo se levanta e comea
a gritar: E o Balinha que s leva bilhete!. Renan fala: Eu s tiro nota azul, A, B e C.
Ricardo sai correndo atrs de Balinha. Depois fica andando de um lado para outro e
neste dia no desenha mais. O Ricardo que ensina os amigos a fazer uma mquina
fotogrfica de papel, que admirado pelos colegas, o repetente da turma, o que mal
sabe escrever. Seu desespero vem demonstrar os efeitos de sua histria de reprovaes
em sua subjetividade. De um momento a outro, Ricardo passa de admirvel a burro, de
grande a pequeno, de companheiro a agressivo.
Em outro encontro, as crianas foram convidadas a construir a maquete de uma escola.
Ricardo e Balinha construram-na juntos. A primeira coisa que Ricardo fez foi o porto
de grades, porto fechado, intransponvel, dando escola um aspecto de priso. J
Balinha fez a escola com um toldo cobrindo a entrada, cuja porta ficava aberta.

167

Ricardo, vendo a construo do amigo, exclamou: Abrir a escola?!!! Sua besta!!!


Balinha queria inventar uma maquete diferente da escola em que estudavam. Ricardo
no deixava: , Balinha! Que c t fazendo?!. C s t zoando!. Ricardo pintava o
telhado da maquete de preto. Perguntou Balinha: Ser que vai fic feio? Balinha,
resignado, respondeu: O prdio da escola assim... A escola de quem reprovado
fechada, seja nas portas, seja porque esttica, impossvel de ser modificada, colorida.
A escola de quem bem sucedido aberta e nela cabe a criatividade. Nesse momento
fica patente que as repercusses da histria escolar na vida de uma criana vo muito
alm de uma caderneta cheia de notas.
Finalizada a obra, Ricardo, com um sorriso no rosto, exclama: A minha a melhor de
todas! De fato, sua maquete representava em detalhes o prdio da Escola Estadual: a
caixa - dgua, a janela da cozinha, os portes, cada qual em seu lugar. Ricardo
demonstrou possuir inteligncia, coordenao motora, memria, orientao espacial...
Era o dia de sua redeno: saa-se melhor na escola que seus amigos nunca antes
reprovados. Ricardo transformou-se naquele que obtm sucesso na escola, mas, para
isso, teve que transformar-se tambm em um menino muito diferente daquele que
havamos conhecido at ento. Pela primeira vez, deparamo-nos com um Ricardo
egosta, mesquinho, que no dividia o material, impedindo os amigos de fazerem suas
construes.

II. O Sem-Terra(7)
No caminho que leva do jardim ao Sem-Terra, lugar onde morava Nivnia, encontra-se
a Vila, bairro intermedirio entre a boa infra-estrutura do primeiro e a misria absoluta
do segundo. Procurvamos o endereo de Nivnia, que, segundo informaes da escola,
encontrava- se em uma das ruas deste bairro (mais tarde viemos a saber que o endereo
era de um tio da menina, nica ligao possvel entre o correio e a famlia de Nivnia,
entre a posse da cidadania e o noreconheciment0 da existncia dos sem-terra). Mas,
nesse bairro os nomes das ruas s so feitos para quem de fora (a Prefeitura - que
apenas deu os nomes - e os

(7) Sem-Terra o nome dado ao local onde se encontra o conjunto de barracos


resultante de ocupaes do movimento sem-terra.

168

passantes); os moradores as conhecem pelo nmero ou como rua da casa da D.


Maria. Assim, demoramos a encontrar a rua cujo nome ningum conhecia.
Continuando a caminhada, onde acaba o asfalto e a energia eltrica, onde a lama
dificulta o andar nos dias chuvosos e o lixo encontra-se espalhado pelo cho, deparamo-
nos, morro abaixo, com a infinidade de barracos de madeirit que forma o Sem-Terra.
A grande favela que o Sem-Terra originou-se de duas invases de um terreno da
prefeitura de Osasco por alguns milhares de famlias sem teto. Wilson, presidente da
Sociedade Amigos de Bairro do Jardim, que militava na poca no Centro de Defesa dos
Direitos Humanos, em Osasco, e participava do movimento dos sem-terra, contou-nos
um pouco da epopia daqueles que nada tm, que lutam por alguns metros quadrados de
terra. Das duas primeiras invases para a conquista de alguma dignidade, resultaram os
dois bairros do Sem-Terra, com os significativos nomes de Jardim dos Trabalhadores
e Vila da Conquista. Mas, se os nomes deixam claro as marcas da histria do lugar, por
outro lado aqui tambm no se v nenhuma vila ou jardim.
Foi, porm, o drama da terceira invaso que Wilson, emocionado, escolheu para contar
com mais detalhes:
Porque o pessoal j tava morando na rua, o pessoal t no desespero mesmo, n?A ns
no conseguimos pegar porque ns dissemos: Gente, entrar na terra e ter que sair (...)
Mesmo assim o pessoal resolveu ir pra cima (...) Ns numervamos os barracos, n?
Chegamos ao nmero mil... mil quinhentos... (...) Ento entrou na terra, s ficou uni
ms.

O movimento foi reprimido. Os participantes daquele que se chamou Movimento


NOVA VIDA foram expulsos daquele Sem-Terra, que nem existe na planta da cidade,
para retornar mesma vida, sem terra.

1. Eu moro no Maranho: a histria de Nivnia


...limito-me a contar as fracas aventuras de uma moa numa cidade toda feita contra ela.
Clarice Lispectoi A Hora da Estrela

169

Nivnia tem 10 anos, grandes olhos arregalados que no conseguem se esconder atrs
das lentes dos culos baratos, corpo franzino, rabo-de- cavalo. Maranhense, veio h
cinco anos para So Paulo com a me, D. Antnia, e o irmo mais novo, Nivaniel,
encontrar com o pai, Sr. Nivaldo, que tinha vindo antes tentar a vida na cidade. Foi no
ano em que decorreu a pesquisa que a famlia se estabeleceu no Jardim dos
Trabalhadores, bairro do Sem-Terra (antes moravam na casa do irmo do Sr. Nivaldo,
na Vila). O dinheiro economizado nesses cinco anos foi suficiente para comprar um
pequeno terreno e trocar as tbuas do velho barraco de trs cmodos que nele se
encontrava. Mas no foi suficiente para conformar Nivnia, que se recusava a entrar na
nova casa e, chorando, dizia querer voltar para o Maranho.
Na falta de numerao, as novas tbuas do barraco, vermelhas, e o amontoado de lixo
nas proximidades servem como referncia para quem quer distinguir a casa de Nivnia
das demais. A energia eltrica chega casa de Nivnia da mesma maneira que s
incontveis casas do Sem-Terra: atravs do emaranhado de fios das mais variadas cores
e espessuras, atados a postes de madeira em forma de cruz, que partem de ligaes
clandestinas dos postes oficiais da Rua Paranaense, a ltima asfaltada, a penltima
nomeada, a que divide a Vila e o Sem-Terra.
Quando chove, o Sem-Terra adquire um aspecto desolador. A lama e o lixo misturam-
se e invadem as casas. Dentro e fora so a mesma coisa, vive-se dentro o mesmo
desconforto da sujeira e do cheiro da gua e do barro (Mello, 1986, p.84). Quando
chove, Nivnia vai para a escola carregada nas costas pelo pai, leva outro chinelo para
trocar. Nivnia no gosta de andar na lama. Parece que nasceu pra ser rica. No sei a
quem puxou, porque me no foi. E muito manhosa (D5. Antnia, me da menina).
a figura triste e inconformada de Nivnia que vai se delineando como porta-voz do
desejo da famlia de ter melhores condies de vida, desejo de voltar para o Maranho
de suas lembranas. J no primeiro encontro de Nivnia com uma das pesquisadoras, a
menina responde, quando indagada a respeito de sua morada: Eu moro no Maranho .
Depois deixa claro que seu endereo atual o Sem-Terra. Mostra-se ento o significado
de sua fala: para aquela famlia o Maranho ainda o lar; a precariedade que
encontraram na cidade de So Paulo rapidamente transformou-a num lugar de
passagem, numa estada provisria.

170

Nivnia conta a trajetria da famlia que saiu do Maranho em busca das mesmas
melhores condies de vida que agora anseiam encontrar na terra de onde partiram:
L foi onde eu nasci, eu gosto mais de l porque l mais ,nelho, l no tem perigo, l
no rua, l tem uni lugar que assim, n? A tem um quintal assim, d pra gente
brinc... Aqui muito perigoso, n? Meu pai falou que quando ele ir receber dinheiro,
ele vai sair embora daqui. Vai l pro Maranho .
Se por um lado o discurso nostlgico de Nivnia remete a uma idealizao do passado,
por outro mostra a dura realidade de um presente que no garante condies de uma
vida digna. Foi tambm o que observou Patto (1991) em sua convivncia com a me de
ngela, menina multi-repetente: O desejo de voltar para o norte, nem que seja por
alguns tempos, explcito, como se nesta volta pudesse resgatar o passado idealizado e
fazer uma pausa que a realimente para a vida desenraizada e solitria que leva em So
Paulo (p. 290).
D. Antnia fala do desempenho escolar da filha: Eu fico meio triste que a Nivnia
no passa de ano faz cinco anos. Nivnia no foi reprovada cinco vezes, mas sim duas;
cinco anos foi o tempo que passou desde que a famlia deixou o Maranho. Tempo que
acabou se configurando como um tempo que no progride, j que a vida em So Paulo
traz as mesmas mazelas da pobreza do lugar de origem. Na verdade, IY. Antnia fala de
duas reprovaes: a de Nivnia na escola, a da famlia na grande metrpole.
A me busca desesperadamente encontrar explicaes para as reprovaes da filha.
Confiando nos doutores em criana (mdicos, psiclogos, professores...), levou
Nivnia para fazer exames da cabea, um eletroencefalograma que no acusou
nenhuma anormalidade. No acreditando plenamente no resultado, solicitou um exame
mais minucioso, que foi negado pelo mdico, afirmando que o problema da menina era
psicolgico. D. Antnia passa ento para uma explicao que atribui o fracasso
escolar da filha preguia: O mdico disse que ela no tem nada. O remdio cabo de
vassoura.
Rapidamente, volta explicao psico-orgnica, ao fazer uma imitao grotesca de
uma criana anormal quando quer dizer como

171

Nivnia, como se tivesse sido convencida de que a filha assim (mesmo que s se
perceba o contrrio): boca semi-aberta, cabea inclinada, olhos mirando lugar nenhum,
catatonia. D. Antnia toma o discurso competente (Chau, 1981) como verdadeiro,
procura em sua filha caractersticas que possam comprov-lo e desautoriza por
completo a sua experincia de me: a imagem de Nivnia, gil e contente, pulando as
poas dgua enquanto caminhava com a me e as pesquisadoras difere, e muito, da
imagem que h instantes havia sido apresentada por D. Antnia. A menina, que na
escola desanimada, quietona (segundo sua professora), mostrou-se, no contexto
no-escolar, conversando com as pesquisadoras, extremamente viva, carinhosa e
curiosa:
Na casa de quem vocs j foram? Cs moram juntas? Quando vocs vm almo na
minha casa? Cs tm me? Ainda bem que eu tenho me!.

Nossa convivncia com Nivnia em sua casa no passou de uma visita. Sua famlia
mudou repentinamente para um bairro na periferia da Zona Sul da cidade, no deixando
o novo endereo nem com vizinhos, nem na escola. Desapareceram na cidade grande na
tentativa de buscar a concretizao do desejo d uma vida melhor, de encontrar o
Maranho com que tanto sonham, num canto de So Paulo.

III. A COHAB
Pegando uma estrada de terra a partir do Sem-Terra, ou percorrendo alguns
quilmetros alm da entrada do Jardim pela rodovia, chega-se COHAB, onde mora
Rildo. Pertencente ao municpio de Osasco, compe-se de um conglomerado de casas
no centro, cercado pelos dois lados de prdios de trs andares idnticos.
No h rvores na COHAB. As casas parecem ser as nicas coisas plantadas nos
terrenos (Mello, 1988, p. 70). A cor predominante o cinza do asfalto, dos blocos das
casas, do reboque das paredes dos prdios. A sombra s se faz no incio da manh ou no
final da tarde, sombra de prdios. Nos horrios em que o sol est a pino difcil
encontrar pessoas andando pelas ruas. O ar quente, denso,

172

abafado. H muitas COHABs como essa nas periferias de So Paulo: sem a


preocupao com os futuros moradores, sem um espao para plantar rvores,
transformam-se em cidadelas ridas, secas, desrticas. Alm disso, o fornecimento de
gua pela SABESP constantemente interrompido. Ironicamente, as pequenas vielas
entre as casas trazem nomes como Cachoeira da Felicidade, Cachoeira da Fartura.

1. Vou bot eles mais pra frente: a histria de Rildo


Inda garoto deixei de ir escola
Cassaram meu boletim
No sou ladro, eu no sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro o que jamais me esperou
Mas vou at o fim.
Chico Buarque, At o Fim.

Rildo tem 12 anos, alto, magro, tem os olhos castanho-claros meigos e expressivos.
Vive na COHAB h 5 anos e h 2 estuda na Escola Estadual. Mora com a me, D.
Marlene, o pai, que tambm se chama Rildo, e alguns dos irmos: Romualdo, de 15
anos; Isabel, de 13 anos; Renato, de li anos; Misleine, de 9 anos. Tem ainda uma irm,
j casada e com filhos, que mora em Diadema, e um irmo que mora no Recife, de onde
migraram seus pais.
No pequeno contato que tivemos com Rildo fora da escola, ele se mostrou bastante
carinhoso com seus familiares, da mesma forma como se apresentava no grupo, onde
gostava muito de desenhar e suas produes eram criativas, adaptando o material
conforme suas necessidades.
Na primeira vez que fomos COHAB, a casa de Rildo se destacava muito das demais.
No pelo quarto-sala com a cama de casal e o beliche, onde sete dormem, sete comem,
passam o tempo, mas pela descrio que vizinhos faziam: urna casa com muro alto,
porto alto e bastante caco de vidro no muro. A primeira impresso a respeito da casa
foi a de uma espcie de presdio, com seu muro mais alto do que o de todas as casas
vizinhas, o porto vermelho de ferro que no deixava nenhuma fresta onde fosse
possvel avistar o interior da casa, da mesma forma

173

que no era possvel avistar a rua de dentro do pequeno quintal. Trancar-se dentro de
casa, erguer muros, no se aproximar dos vizinhos foram as formas que a famlia,
representada por D. Marlene, encontrou para tentar proteger-se da violncia que
permeia a vida na pobreza. Mas os muros parecem no ser suficientes, j que a violncia
e a marginalidade podem surgir dentro de casa, pois a misria tem na ilegalidade uma de
suas alternativas. E o que ocorre, atravs da figura do filho Romualdo...
Aqui tem gente boa, mas a maior parte ruim, nunca d pra saber Porque o
Romualdo, ele confiou, ele tinha uns amigos que ele achou que eram legais. Mas
levaram ele prum caminho que c precisava ver! Foi s Deus pra tirar ele desse
caminho.(...) Ele passava o dia inteiro fumando maconha, cheirando cola, no queria
mais ir pra escola saiu da escola, parou... Foi pra rua, durmia na rua. At roub,
roubava. Ele brigava, apanhava da polcia, da polcia e de quem ele roubava. Eu pedia:
Romualdo, no faz isso! No sabia se tinha raiva ou pena dele. Tinha vezes que ele
passava vrios dia na rua e chegava todo cheio de sangue, todo machucado de ter
apanhado da polcia e com a roupa assim, de mendigo, toda estrupiada e suja. At pedir
esmola ele j pediu (D. Marlene).
...atravs do estigma de delinqncia que Rildo e Isabel carregam na escola...
O Renato sim, o tempo todo agitado, bagunceiro. No estranho, no fica uma hora
quieto e outra hora agitado. E sempre de um jeito. No acho que ele que rouba. O
Rildo sim, que tem unia cara de santinho (professora de Rildo e Renato).
A Isabel no burra, sempre tirou nota azul, nunca nota vermelha, sempre foi tima
aluna, uma das melhores, e elas (as inspetoras da escola) ficam enchendo o saco,
dizendo que ela ladrona (D. Marlene).

Em nossa convivncia com a famlia de Rildo, D. Marlene acabou praticamente


monopolizando a ateno: enquanto as crianas desenhavam e pouco intervinham na
conversa, a me contava sua histria

174

e a de seus filhos. Pernambucana batalhadora conhece o que trabalho desde os nove


anos; hoje, aos 45, tem as pernas repletas de cicatrizes e varizes, marcas dos anos dessa
vida de trabalho e sonhos, na qual a violncia ronda, e o ato de criar os filhos toma-se
uma conquista.
D. Marlene perdeu a me quando estava no bero ainda, comeou a trabalhar como
empregada domstica no Recife. Nunca mais parei (de trabalhar), por isso no tive
tempo de estud, nem sei assin o nome. Conta que juntou-se com o marido quando
tinha 13 anos e vieram para So Paulo; depois de algum tempo, voltaram terra natal e
mais algumas vezes traaram o mesmo percurso. As idas e vindas da famlia, que com o
passar do tempo crescia, mostram, assim como na histria da famlia de Nivnia, a
insatisfao com a vida de quem migra e a impossibilidade da vida de quem fica: L
no d, n filha. Ou voc rico, com bar e restaurante, ou turista; os outros no tm
vez, tm. que ir embora.
D. Marlene fala com orgulho do marido que sabe ler e tem um emprego no Metr h
muitos anos. Ao mesmo tempo, esse orgulho traz consigo um certo sentimento de
inferioridade, que pode ser visto em seu discurso: Eu sou burra, mas no pros meus
filhos serem, as pessoas que no sabe ler pode aprender depois, porque o meu marido
no sabia nada e aprendeu com outras pessoas. Ele trabalha no Metr e s deu pra
trabalh l porque aprendeu a ler. As pessoas podem aprender a ler depois, mas
quem aprendeu foi o marido e no a prpria D. Marlene, que se considera burra. Em
contrapartida, D. Marlene faz questo de ressaltar que, se no fosse por ela, muitas das
conquistas da famlia no teriam ocorrido.
E dentro de casa que ela permanece, dividindo o espao com o marido, os filhos, um
arbusto plantado por Renato, que insiste em crescer num canto de terra batida, um
cachorro e dois galos, dos quais D. Marlene diz no gostar porque do muito trabalho,
muito gasto. O Boio (cachorro) come carne, d muita despesa. Mas, em Outro
momento, quando nos conta a respeito de seu sonho (uma casa em Itanham, beira da
praia, onde pudesse criar uns bichos, cuid duma horta), acaba por explicitar do que
de fato no gosta: no dos animais ou das plantas, mas da pobreza que faz com que
cri-los seja um sacrifcio.
A Casa de Itanham surge como uma redeno: redeno da vida na COHAB,
redeno da vida no Recife...

175

Tentamo mor em Pernambuco, mas a Misleine e o Renato no se acostumaram com


o calo,; quase morreram de diarria, vomitaram, tudo. Aa gente teve que volt.
...e redeno do filho marginal...
Ia deix o Romualdo l, porque a ele no ia sab como volt. Quando eu tivesse
dinheiro, eu ia pr l, viajava pra l e deixava ele l preso. Porque aqui ele tem m
companhia; de l ele no ia pod sa porque ele no ia sab o caminho.

Quando fala sobre a Casa de Itanham, D. Marlene parece perder- se no sonho, divaga
e conta como conseguir realiz-lo: J tenho cano, tanque, pia. Tamo comprando
mvel novo pra casa, ento os velho posso guard pra casa de Itanham, invs de dar
pra vizinha de nove filhos. Dinheiro pra construir eu j tenho. S que tamo pagando os
mveis novos, trocamo agora o som. D. Marlene v a Casa de Itanham pronta e nesse
momento parece esquecer-se que na casa da COHAB a comida racionada e nem
geladeira tem.
Se o sonho da Casa de Itanham aparece como redeno para a famlia, a escolarizao
dos filhos surge como promessa de um futuro um pouco melhor que o dos pais. D.
Marlene quer que os filhos estudem pra poder trabalhar e se manter, apesar do
sacrifcio que mant-los estudando: h que se comprar mala, material, fardamento.
Sr. Rildo traz o dinheiro para as despesas do dia-a -dia, D. Marlene arruma o dinheiro
para manter os filhos na escola (pblica e gratuita...): T fazendo uns bico desde j pra
conseguir o dinheiro (...) Tem muita me que tira os filho da escola, mas eu acho que
tem que fic. A Isabel j quis sair da escola, ir trabalh. Eu e o meu marido no
deixamo, muito importante estud .
Mas a vontade dos pais no basta para garantir a escolarizao dos filhos. Aps
inmeras reprovaes, Romualdo sai da escola: Porque ele ficou na escola at o 22ano,
no passou, tudo, quis sair da escola. Mas pelo menos ele j sabe, j consegue assin o
nome dele, ento d pra assin uma ficha pra conseguir um emprego(8). Os anos de
escolarizao de Romualdo s fizeram render a assinatura, a averso a tudo o que
escolar, a estigmatizao e o sentimento de incapacidade.

176

Romualdo parte ento busca de bicos. Mas ao almejado emprego de carregador de


pacotes em um supermercado, Romualdo no tem acesso: No Eldorado t pegando (...)
mas ele no sabe l, no sabe escrev (fala de Rildo sobre o irmo).
A ficha de Romualdo na escola resulta na generalizao do estigma de
marginalidade para seus irmos e em maus-tratos por aqueles que deveriam cumprir a
tarefa de ensinar muito mais do que a assinatura do nome(9). E o que nos conta, D.
Marlene:
Elas ficam enchendo o saco da Isabel, dizendo que ela ladrona, no troca de sapato.
Um dia a inspetora falou: Finalmente trocou de sapato! Sete dias com o mesmo! Mas
sapato de ir na escola no tnis? Ou ela qu que v de sapato de salto alto, com meu
sapato, o qu?
L na escola tem um guarda gordo e os menino chamava ele de um Maia e punham o
dedo na barriga, na banha dele. A me chamaram pra convers, disseram que eu no dou
educao pros meus filhos. V se pode, a diretora me mandou ir daqui l pruma
bobagem dessas! Mas a eu falei tudo, falei pro guarda que se ele fosse mesmo o Tim
Maia ele no taria trabalhando na escola cum salrio ruim que nem d pra compr
comida!
A professora no fala direito com ele (Rildo), porque se falar direito ele obedece. Ele
meigo e bonzinho em casa, at meio bobo. Como que a professora pode fal que ele
nervoso e estpido?! s saber falar com ele que ele legal. Ela me disse que ele
assim comigo porque eu sou a me. Mas ela professora e tem que saber ensinar .

(8) Muitas vezes, nas falas de D. Marlene, a histria de Romualdo parece se sobrepor
histria de Rildo. Na verdade, ao falar de Romualdo, D Marlene est contando a saga
escolar de todos os seus filhos,j que as marcas deixadas pelo percurso de Romualdo na
Escola Estadual tambm marcam, de forma decisiva, a vida escolar de Rildo, Renato,
Isabel e Misleine.
(9) Este dado permite formular a hiptese segundo a qual, nas escolas pblicas, alm do
estigma individual, ocorre com freqncia o que podemos chamar de estigma
familiar, que merece maior investigao.

177

D. Marlene percebe que os filhos que surgem nas conversas com a diretora, nas
reunies de pais, nos bilhetes, no correspondem aos filhos com quem convive
diariamente. Revolta-se, fica indignada, mas apenas com o guarda que ganha um
salrio que nem d pra comprar comida que consegue discutir. Frente s autoridades
escolares permanece calada, humilhada, e aconselha os filhos a fazerem o mesmo:
Eu j falei com eles pra eles no se meterem. E assim ocorre com milhares de
brasileiros, que tomam seus direitos como favores e agradecem por poderem ficar na
fila do mdico ou da matrcula.
D. Marlene no sabe ao certo as causas das reprovaes dos filhos, mas desconfia que
a escola tenha ao menos um parcela da responsabilidade: A Misleine repetiu s uma
vez. Eu no sei se foi culpa minha, que no dava tempo... que no ficava em cima para
ela fazer lio e ela era muito pequena, ou se foi a professora que no sabia ensinar
mesmo
A me, ento, muda os filhos sucessivamente de escola (foi assim h dois anos, ser
assim no prximo): Vou mud eles pruma escola em Pinheiros (....) vou bot eles
mais pra frente . O duplo sentido da frase de D. Marlene revela o desejo desesperado
de que a mudana da escola dos filhos possa tambm bot eles mais pra frente, fazer
com que progridam na escola e na vida; esperana que se renova a cada mudana de
escola. Mas, assim como a Casa de Itanham, a escola mais pra frente vem se
mostrando inacessvel famlia de Rildo, aos moradores da COHAB, do Sem-Terra, do
Jardim.

Concluindo...
Depois da convivncia com quatro crianas multi-repetentes, o que se apresentou para
ns foram crianas muito diferentes daquelas descritas pelas professoras: encontramos
crianas inteligentes, criativas, curiosas, geis, com capacidade reflexiva. Esses
resultados vm a corroborar dados obtidos em pesquisas anteriores com outras crianas
e em outras unidades escolares (Patto, 1990; Machado, 1991; Freller, 1993). Se cada
uma dessas pesquisas qualitativas restringiu-se a um pequeno nmero de estudos de
caso, voltados para a especificidade de situaes e de pessoas, e entendendo que essa
particularidade

178

reveladora do geral, a somatria dos resultados de todas elas vem a ratificar cada uma.
Em nosso estudo, encontramos: um Carlos capaz de exercer liderana, que se utiliza
freqentemente de ironias, demonstrando sua capacidade reflexiva e inteligncia. Nos
encontros ldicos na escola era ele quem, muitas vezes, pontuava as falas, quem
gerenciava as brincadeiras;
um Ricardo gil, com boa coordenao motora, capaz de reproduzir em uma maquete
detalhes da escola onde estuda, o que mostra inteligncia, boa memria e raciocnio
espacial; em seu grupo de amigos era o chefe, um amigo brincalho, companheiro e
sorridente, diferente da imagem triste delineada por sua professora;
uma Nivnia gil, atenta, curiosa, alm de muito carinhosa; desmente a fala de sua
professora de que teria um lado meio esquizofrnico;
um Rildo cujos desenhos demonstram criatividade, um menino muito meigo e
carinhoso, o oposto da imagem ameaadora que sua professora lhe atribua: Quando
chamo a ateno dele, pela mnima coisa, tem uma veia no pescoo que salta (...) D pra
ver nos desenhos e na letra quando ele est nervoso.
A presente pesquisa pde registrar as implicaes do fracasso escolar na subjetividade
das crianas reprovadas e de suas famlias, mostrando que tais implicaes ultrapassam
as cadernetas escolares e os muros da escola.
Nas crianas, as conseqncias do fracasso escolar apareceram com maior ou menor
nitidez: Ricardo quieto se comparado a seus amigos da rua; Carlos desconfiado;
Rildo muito mais tmido que seus irmos, que no tm no currculo tantas
reprovaes; Nvnia aparece quase sempre como uma figura triste. A auto-imagem de
todos profundamente negativa: reconhecem-se enquanto burros, incapazes,
marginais, mas ainda conservam a vivacidade e o desejo do sucesso escolar...
O caso de Ricardo nos parece exemplar. Depois de quatro reprovaes, qualquer erro
na escrita pode se tornar fatal: o lder admirado pela turma, aquele que ensina os colegas
a fazerem brinquedos de papel, d lugar a um menino ridicularizado pelos mesmos
colegas, que no teria nada a ensinar. Depois de quatro reprovaes perde-se o

179

direito de errar: o que deveria fazer parte do processo de aprendizagem toma-se


confirmao de incapacidade. No toa que Ricardo quase nunca se prope
espontaneamente a escrever, e se comete um erro fica desesperado.
A imitao grotesca que fez a me de Nivnia, D. Antnia, de uma criana anormal,
dizendo que aquela era Nivnia desatenta, ilustra de forma significativa as
repercusses na famlia do parecer das autoridades escolares sobre o aluno reprovado.
D. Antnia parece ter sido convencida de que a filha tal qual a escola a caracteriza, a
ponto de desconsiderar por completo o conhecimento que vem de sua convivncia com
Nivnia e se esquecer da vivacidade e da graa que a menina freqentemente manifesta.
Esta pesquisa permitiu-nos tambm perceber a existncia do que chamamos estigma
familiar nas escolas pblicas: as autoridades escolares tendem a transferir para todos os
componentes de uma mesma famlia a imagem que formam de um de seus membros.
o que acontece na famlia de Rildo: a fama de Romualdo (marginal) contaminou para
Rildo e Isabel. Eis um espao importante de trabalho dos psiclogos junto aos
professores da escola pblica.

BIBLIOGRAFIA
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Paulo, Cia. das Letras, 1989.
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Paulo, 1993. Dissertao de mestrado, Instituto de Psicologia da Universidade de So
Paulo.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

180

MACHADO, A.M. Crianas de classe especial: efeitos do encontro da sade com a


educao. So Paulo, Casa do Psiclogo, 1994.
MELLO, S.L. Trabalho e sobrevivncia. mulheres do campo e da Periferia de So
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PATTO, M.H.S. A produo do fracasso escolar: histrias de submisso e rebeldia. So
Paulo, T.A. Queiroz, 1991.
SOUZA, D.T.R. Conquista documentada, SP., Dissertao de Mestrado, IPUSP, 1991.

181

12 MES CONTEMPORNEAS E A ORIENTAO DOS FILHOS PARA A


ESCOLA
Beatriz de Paula Souza
Se folhearmos revistas femininas e de puericultura dos meses que precedem o incio
das aulas, encontraremos com freqncia artigos que tratam de como as mes devem
agir com seus filhos para ajud-los a se organizar para os estudos.
Repetem-se antigas frmulas, tais como arrumar um local apropriado silencioso,
com iluminao adequada etc., combinar um horrio para o estudo cotidiano,
verificar regularmente as lies e auxiliar sempre que necessrio para o desespero
das mes cujos filhos estudam em frente TV, no tm horrio fixo para estudar e nem
suas mes conseguem ter controle sobre isto porque esto trabalhando fora. As mes,
desta forma, nem sempre conseguem controlar tanto as lies, mesmo porque chegam
em casa cansadas e com saudades dos filhos e preferem usar os momentos que tm para
usufruir gostosamente do seu convvio, ao invs de ficarem ocupando muito deste
tempo com questes administrativas.
Ora, estas frmulas certamente tm por trs um modelo de me, de organizao
familiar e de estilo de vida em famlia que tem uma localizao no tempo, no espao e
em categorias sociais, mas esta ancoragem no explicitada e tudo aparece como
natural.

183

Entendo que, para abordar este tema, passamos obrigatoriamente por uma anlise da
maternagem contempornea, entendida no bojo de sua histria.

Mulher e feminismo
por demais conhecida a caracterizao da questo do gnero na diviso tradicional
dos papis, dentro do imaginrio social das sociedades ocidentais: ao homem, o
universo do pblico, o trabalho remunerado, o papel de provedor econmico da famlia,
a racionalidade, a fibra. mulher, o universo do privado, o trabalho no-remunerado do
lar, o cuidado com os filhos, a sensibilidade, a fragilidade.
O feminismo vem a subverter esta ordem. Legitima que a mulher exera papis antes
vistos como exclusivamente masculinos. Embora esta mudana venha de longe e
tenhamos mulheres pioneiras j nos tempos de nossas bisavs e mesmo antes,
observamos uma mudana de uma magnitude e extenso sem precedentes ocorrida da
ltima gerao para a atual, principalmente se falarmos das camadas mdias e altas da
populao. A percepo da acelerao brutal desta mudana nos ltimos tempos
fundamental para nosso tema.
Nas camadas de baixo poder aquisitivo, existem diferenas, pois nestas as mulheres
sempre estiveram bem mais presentes no mercado de trabalho, j que as necessidades
econmicas sempre as pressionaram a obter remunerao. fato conhecido que os
primeiros braos na nascente indstria paulistana eram femininos (e infantis); as
empregadas domsticas so uma categoria de trabalhadoras bastante antiga, existem
desde o fim da escravatura. No campo, as mulheres sempre estiveram presentes na
lavoura, basta ver qualquer ilustrao de colheitas de caf ou cana-de-acar para
constat-lo. Mas esta presena sempre se deu apesar do que se passava no nvel do
imaginrio social, que reprovava e cobria de vergonha tal prtica, ao invs de valoriz-
la, como passa a poder acontecer a partir do advento do feminismo.
A reorganizao do universo do pblico, mormente do mundo do trabalho fora de casa,
no vem acompanhada de uma mudana que a corresponda tal e qual no universo do
privado, no lar e na famlia. A

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mulher se v diante da dupla jornada de trabalho.


Embora muitas de ns tenhamos informao objetiva sobre o que estamos
vivenciando, quando falamos de emoo as coisas se complicam bastante. O fato de a
gerao anterior funcionar maciamente de acordo com o modelo tradicional deixa-nos
a informao afetiva de que devemos dar conta de nossos papis tradicionais tal como
nossas mes.
Espremidas por um lado por esta exigncia (interna e externa) e por outro pelas
exigncias dos novos tempos (observamos com facilidade sentimentos de vergonha e
inferioridade em mulheres que no trabalham fora perante as que o fazem), vivemos
dominadas pelo mito do que M. Suplicy chamou de Mulher Maravilha, no prefcio do
livro Vida de Mulheres, de Massi (1992). Esta mulher binica consegue ser uma
profissional competente, dedicada, bem-sucedida e bem paga e, ao mesmo tempo,
responsvel por uma casa em ordem, bonita, com tudo funcionando a contento, bem
organizada, com filhos e marido bem cuidados e orientados. E, com isto tudo, ainda
consegue ser bonita, tratada e boa de cama!
Ora, em alguma coisa ou em um pouco de tudo, vamos falhar. Frustraes, culpa,
depresso, stress. E, para complicar um pouco mais as coisas, vemo-nos obrigadas a
lidar com uma outra novidade que, certamente, tem muito a ver com estas mudanas de
papis de que vimos falando: as freqentes rupturas dos casamentos.
Em contrapartida, temos a maravilha de nos aventurar por terrenos deliciosos que antes
nos eram vedados, desenvolver potencialidades antes proibidas, conhecer o gosto da
liberdade em muitos campos que antes no dominvamos e no precisarmos nos
submeter a humilhaes e sacrifcios de que algumas de nossas mes no puderam se
livrar. Alvio, potncia, liberdade, criatividade.

Filhos contemporneos
Neste contexto, reinveno uma grande palavra. Reinventar a mulher, reinventar o
amor, reinventar a maternagem, reinventar os filhos. A educao para a autonomia
ganha novo significado e a relao me filho(s) assume muito mais um sentido de
parceria.
As idias de frmulas para orientar os filhos nos estudos e tambm na vida (se que
frmulas podem realmente ajudar, j que resvalam

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sempre para o genrico e simplista) vo hoje muito mais na seguinte direo:


-no faa por seu filho o que ele pode fazer sozinho;
-quando no for possvel para ele, veja se pode fazer com ele, proporcionando-lhe
ocasio para que ele pense e descubra a lgica da coisa, para que se torne capaz de fazer
sozinho o quanto antes.
Enfim, prepare seu filho para ser capaz de se virar ao mximo, sem depender de
voc, o que hoje uma forma de amor, no de abandono.
Entendo que o boom do construtivismo nas instituies educativas tem muito a ver
com este modo de vida que supe uma criana ativa e autnoma (o quanto se pode falar
em autonomia em se tratando de uma criana como a prpria palavra diz ).
Segundo seu autor mais conhecido, J. Piaget, a aprendizagem um mecanismo de
adaptao do ser humano ao meio ambiente. Tem como finalidade ltima a preservao
da vida, O autor partiu da Biologia para estudar aquela que a grande questo de sua
vasta obra: como possvel o conhecimento. Observa que o que caracteriza um ser vivo
(e conseqentemente o diferencia de um ser inanimado) a possibilidade de no ficar
simplesmente merc das caractersticas e mudanas do meio externo com o qual
interage. Modificando-o ou a si prprio em funo dele, garante sua sobrevivncia.
No caso do ser humano, o grande instrumento de adaptao a inteligncia. Na
interao com o meio, busca a coerncia, a lgica que regula o que apreende dele, e
assim que seu conhecimento e as estruturas de sua inteligncia (as ferramentas do
pensar) so construdos.
Assim, o ser humano essencialmente ativo e busca a autonomia na medida em que
vai tomando seus os conhecimentos e conceitos que permitem sua interao cada vez
mais independente com seu ambiente. Desta concepo resulta uma pedagogia que
estimula estas atitudes, privilegiando situaes em que os alunos buscam por conta
prpria a resoluo de problemas, ao invs de acatar passivamente um conhecimento
que vem pronto. Deslocado do centro da aprendizagem, que agora se coloca no aluno-
sujeito, o professor assume o papel de mediador entre este aprendiz ativo e o universo
dos contedos escolares.
Enfim, o construtivismo d legitimidade e trabalha na direo de desenvolver uma
atitude de busca de autonomia que vem ao encontro das necessidades dos novos tempos.

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H que se dizer que estamos em pleno meio desta nova experincia e os tropeos so
muitos. Esto-se tornando comuns os relatos da produo de crianas tiranas e rebeldes,
desrespeitosas com relao aos mais velhos. Isto voz corrente entre os pais e
professores. E de se pensar se esta parceria no tem perdido o horizonte de que h uma
diferenciao de papis entre o adulto e a criana e que autonomia no fazer o que se
quer (confuso natural para o pensamento egocntrico caracterstico da criana no
no sentido moral, mas no evolutivo, como uma fase normal e necessria no
desenvolvimento do ser humano).

Consideraes finais
Pensando nas escolas, fundamental que estas possam adequar seus discursos aos
novos tempos, sob o risco de estarem desvalorizando as mes trabalhadoras diante de si
mesmas e de seus filhos, dentre outros riscos. Tenho trabalhado j h longos anos
(desde 1981) junto a escolas pblicas, percebo que ainda muito forte a presena do
discurso que tem como modelo subjacente a diviso tradicional de papis entre homens
e mulheres, supondo uma me que no trabalha fora ou o faz meio-perodo, sempre
tendo o trabalho como secundrio. Supe ainda uma famlia estruturada com pai, me e
filhos que vivem juntos, considerando como desviantes indesejveis os que no
obedecem a estes padres.
Mitos como mes que no respondem adequadamente s convocaes da escola
(reunies gerais e particulares, encaminhamentos) = mes desinteressadas, ou pais
separados = famlia desestruturada = problemas psicolgicos povoam o universo
escolar.
Entendo que estes, assim como muitos outros que vm sendo apontados na literatura
especializada (Patto, 1990 e Souza et al.,1994), como criana pobre desnutrida, por
isso no aprende, crianas pobres tm dficit cognitivo etc., fazem parte de um
arsenal imaginrio que vem culpar as crianas pobres e suas famlias pelo fracasso
escolar, lanando uma cortina de fumaa sobre os fatores de outra natureza que vm a
determin-lo, tais como o sistemtico uso eleitoreiro da questo da Educao no pas e
efetivo abandono poltico e econmico das

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escolas, e fatores intra-escolares, como os remanejamentos de alunos entre classes,


trocas e faltas freqentes de professoras etc.
Ora, com a sistemtica Pauperizao das professoras na escola pblica, a barreira
socioeconmica que as separa dos alunos e seus pais est bastante frgil. Assim,
referenciar as professoras em suas prprias realidades ou na de parentes e amigas
enfim, pessoas com quem se identificam tem sido um recurso cada vez mais eficiente
para desmistificar o discurso do desinteresse das mes trabalhadoras por seus filhos,
pois trabalho por perodos prolongados (no mais meio-perodo) hoje a realidade da
maioria das professoras: j em 1978, Bruschini (1978) encontrava 60% de sua amostra
de professoras lecionando mais de 35 horas semanais, alm de despender de dez a
quinze horas semanais em trabalhos extra-classe (correo de provas, preparao de
aulas etc.).
Quanto idia de que vir de uma famlia de pais separados significa ter problemas
psicolgicos, o mesmo recurso utilizvel, j que, como em toda a sociedade, cresce a
populao de separadas dentro do magistrio e seus arredores relacionais
Em tempo: possvel que este mesmo modelo de mulher/me que trabalha pouco ou
nada fora do lar e que compe uma famlia de pais e filhos que vivem juntos tambm
esteja fortemente presente nas escolas privadas, pois Massi (1992) tambm cita este
fenmeno sem diferenciar ensino pblico e particular.

BIBLIOGRAFIA
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BRUSCHINI, M.C.A. Mulher e trabalho: engenheira, enfermeiras e professoras. In:
Cadernos de Pesquisa n. 27, pp.5-17 1978.
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LA TAILLE, Y.; OLIVEIRA, M.K.; DANTAS, H. Piaget, Vigotsky e Wallon: teorias
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PATTO, M.H.S. A criana da escola pblica: deficiente, diferente ou mal trabalhada?.
In: Revendo a proposta de alfabetizao, Projeto Ip. So Paulo, CENP/SEE, 1985.
A produo do fracasso escolar: histrias de submisso e rebeldia. So Paulo, T.A.
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RODRIGUES, A.M. Operrio, operria. So Paulo, Smbolo, 1978.
SARTI, C. Feminismo no Brasil: uma trajetria particular. In: Cadernos de Pesquisa,
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SOUZA, M.P.R. et aI. A questo do rendimento escolar: mitos e preconceitos. In:
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