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Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial

e Continuada de Profissionais da Educação Básica

Aperfeiçoamento em Políticas Linguísticas


para Educação Escolar Indígena

São Paulo | 2015


Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff

Vice-Presidente
Michel Miguel Elias Temer Lulia

Ministro da Educação
Renato Janine Ribeiro

Universidade Federal de São paulo (UNIFESP)


Reitora: Soraya Shoubi Smaili
Vice Reitora: Valeria Petri
Pró-Reitora de Graduação: Maria Angélica Pedra Minhoto
Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa: Maria Lucia Oliveira de Souza Formigoni
Pró-Reitora de Extensão: Florianita Coelho Braga Campos
Secretário de Educação a Distância: Alberto Cebukin

Comitê Gestor da Política Nacional de Coordenação de Produção e Desenho


Formação Inicial e Continuada de Profissionais Instrucional
da Educação Básica - CONAFOR Felipe Vieira Pacheco
Presidente: Luiz Cláudio Costa
Coordenação de Tecnologia da informação
Coordenação geral do Comitê Gestor Daniel Lico dos Anjos Afonso
Institucional de Formação Inicial e Continuada
Secretaria de Educação Básica - SEB
de Profissionais da Educação Básica - COMFOR
Secretário: Manuel Palacios da Cunha e Melo
Coordenadora: Celia Maria Benedicto Giglio
Vice-Coordenadora: Romilda Fernández Felisbino Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão -
Coordenação pedagógica do curso
Coordenador: Sandro Luis da Silva
SECADI
Vice-Coordenadora: Indaiá de Santana Bassani Secretário: Paulo Gabriel Soledade Nacif

Coordenação de ead Fundo Nacional de Desenvolvimento da


Izabel Patrícia Meister Educação - FNDE
Paula Carolei Presidente: Antonio Idilvan de Lima Alencar

Rita Maria Lino Tárcia Fundação de Apoio à Universidade Federal


Valéria Sperduti Lima de São Paulo - Fap-Unifesp
Diretora Presidente: Anita Hilda Straus Takahashi

produção Secretaria Tecnologia da informação


Daniel Gongora Adriana Pereira Vicente André Alberto do Prado
Eduardo Eiji Ono Bruna Franklin Calixto da Silva Marlene Sakumoto Akiyama
Fabrício Sawczen Clelma Aparecida Jacyntho Bittar Nilton Gomes Furtado
João Luiz Gaspar Livia Magalhães de Brito Rodrigo Santin
Marcelo da Silva Franco Tatiana Nunes Maldonado Rogério Alves Lourenço
Margeci de Leal de Freitas Alves Sidnei de Cerqueira
Suporte técnico
Mayra Bezerra de Sousa Volpato Vicente Medeiros da Silva Costa
Enzo Delorence Di Santo
Sandro Takeshi Munakata da Silva
João Alfredo Pacheco de Lima
Tiago Paes de Lira
Rafael Camara Bifulco Ferrer
Valéria Gomes Bastos
Vanessa Itacaramby Pardim

Edição, Distribuição e Informações


Universidade Federal de São Paulo - Pró-Reitoria de Extensão
Rua Sena Madureira, 1500 - Vila Mariana - CEP 04021-001 - SP
http://comfor.unifesp.br

ISBN : 978-85-93527-02-9

Copyright 2015
Todos os direitos de reprodução são reservados à Universidade Federal de São Paulo.
É permitida a reprodução parcial ou total desta publicação, desde que citada a fonte
Apresentação
Estamos iniciando o curso de aperfeiçoamento em Políticas Linguísticas para a Educação Esco-
lar Indígena, na modalidade semipresencial. Teremos muitas atividades, reflexões, conversas
nesse caminho que percorremos juntos, que nos ajudarão a (re)pensar nossa prática docente.

Alguns conceitos serão importantíssimos para o desenvolvimento de nossas atividades. O nos-


so objetivo nessa disciplina é fazer uma apresentação geral do programa que desenvolvere-
mos.

Vamos lá!

Sobre o autor
Professor Adjunto II de Língua Portuguesa, curso de Letras e Coor-
denador do Programa de Pós-Graduação, Mestrado, em Letras na
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutor em Língua
Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Mestre em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade
de São Paulo. Graduado em Letras - Português Bacharelado - pela
Universidade de São Paulo, e licenciatura em Letras - Português -
pela mesma Universidade. Participação em congressos nacionais e
internacionais, cujo tema seja voltado para a área de língua portu-
guesa e ensino, discurso e novas tecnologias. Experiência docente
desde o Ensino Fundamental até o Superior, na área de Letras, com
ênfase em Língua Portuguesa.
DISCIPLINA
EDUCAÇAO PARA A
DIVERSIDADE
Autor: Prof. Dr. Sandro Luis da Silva
Disciplina: Educação para a diversidade

AULA 1
Educação Escolar Indígena:
algumas reflexões

Para começo de conversa...


O mundo contemporâneo é marcado por transformações que exigem diferentes olhares para
a realidade. O processo educacional nos oferece algumas possibilidades para vislumbrarmos
o caminho a ser percorrido, com segurança, democracia, paz, construção de conhecimento,
diálogos, enfim, todas as ações que promovam a interação e nos leve à escola que desejamos.

É preciso pensar que a educação escolar indígena encontra-se como um elemento desafiador,
tendo em vista que ela possui suas peculiaridades, distanciando-se, em alguns momentos, das
políticas educacionais colocadas para aqueles não pertencentes.

Em 2012, o Ministério da Educação, através da Resolução n. 5, de 22/06/2012, definiu as


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, evi-
denciando uma preocupação com o “direito a uma educação escolar diferenciada para os po-
vos indígenas, assegurado pela Constituição Federal de 1988 (...)”. A Lei de Diretrizes e Bases
também destinou espaço para a Educação Escolar Indígena em seu art. 78 e 79. O primeiro,
por exemplo, assegura que a educação escolar indígena deve ser intercultural e bilíngue entre
os indígenas para a “reafirmação de suas identidades étnicas, recuperação de suas memórias
históricas, valorização de suas línguas e ciências, além de possibilitar o acesso às informações
e conhecimentos valorizados pela sociedade nacional” (SILVA, 1994, p. 36)

Assim, do ponto de vista legal, então, temos uma compreensão de que os povos indígenas se
organizam socialmente de formas diferenciadas, têm uma identidade étnica, são portadores
de conhecimentos, valores, tradições e costumes próprios e transmitem esse universo de sig-
nificados – a cultura – para as gerações mais novas por meio de processos próprios de apren-
dizagem.

Alguns questionamentos fazem parte do nosso dia a dia, em nossa prática docente.

3
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

O que é
O que é
pluralidade
educação?
cultural?

ESCOLA
Processo de
ensino-aprendizagem

Quais as relações Por que tanto


entre a língua e foco na
a diversidade? diversidade?

Essas questões poderiam ser acrescidas de tantas outras, mas, por agora, vamos refletir sobre
elas, pois são essenciais para o nosso curso.

A preocupação com a diversidade se acentuou no momento em que o mundo abriu as portas


para a globalização, permitindo que novos olhares e questionamentos se lançassem para as
diferentes realidades.

Desde sempre foram impostos determinados fatos sociais e aqueles cidadãos que não obede-
cessem a esse “padrão” era excluído socialmente. Esse fato acabou por gerar os preconceitos
– no sentido mais amplo da palavra. Criam-se conceitos de certo e de errado, para o homem
e para a mulher, seja a religião, no trabalho, na família, nos relacionamentos sociais, enfim,
no cotidiano deles.

Os meios de comunicação deram oportunidade para a pluralidade de ideias, posicionamentos,


ideologias, permitindo a descoberta de novas culturas, religiões, formas de relacionamento
amoroso, interação, relações familiares, enfim de se viver em comunidade.

4
Disciplina: Educação para a diversidade

O que representa a figura abaixo? Como associá-la à educação e diversidade?

A sociedade contemporânea exige que o cidadão esteja preparado para conviver com e na
diversidade, abrindo o diálogo não apenas com os semelhantes, mas também com quem pense
e age de maneira distinta de nós. Como dizia Paulo Freire: “Somos iguais nas nossas diferen-
ças”. Segundo o autor, a educação, considerada como um processo de ler e de aprender, deve
levar os alunos a “ler o mundo”. Para atingir esse objetivo, é preciso considerar o contexto
cultural e familiar dos estudantes, dando a eles a oportunidade de participar do processo de
ensino-aprendizagem, tendo voz ativa e vislumbrando realidades de ensino nos conteúdos tra-
balhados que tivessem relação direta com o mundo em que estavam inseridos. Freire afirmava
que a Educação precisa respeitar as diversidades, as pluralidades culturais.

Um dos desafios da Educação para a diversidade é possibilitar:

a. A redução de desigualdades para que haja possíveis retrocessos na redução das assime-
trias socioeducacionais;

b. O respeito à diversidade, considerando as especificidades das culturas, línguas, regiões,


enfim, dos modos de ser de cada um.

c. A promoção da coexistência respeitosa com a diferença.

5
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

Ela tem a função de tornar seus sujeitos reflexivos, críticos, capazes de perceber as diversi-
dades que estão presentes na vida social, no mundo, no dia a dia. Não deve ser o espaço de
reprodução, mas de construção de conhecimento.

Quando pensamos em Políticas Linguísticas, estamos nos referindo à relação entre o poder e
os usos das línguas na sociedade, quais podem ou não ser usadas em determinadas situação
comunicativas, considerando o status do falante (GNERRE, 1998).

Recorremos a Faraco (2002), que lembra que a discussão política das questões linguísticas é
ainda muito reduzida e precária. Uma ou outra questão pontual é levada para o debate – e
em certos casos, logo esquecida. De acordo com o autor, a falta de discussão política sobre
questões linguísticas ocorre “porque, apesar de sua dimensão e relevância social, elas não são
ainda questões para a sociedade brasileira, isto é, elas não se apresentam como um problema
de natureza política para o conjunto da sociedade, como algo que mereça controvérsia e de-
bate” (FARACO, 2002, p.14).

Nos últimos anos, pesquisas e políticas públicas têm destinado olhares para as comunidades
indígenas, despertando o interesse e a conscientização da sociedade sobre as questões linguís-
ticas para a Educação Escolar Indígena, como veremos na próxima aula.

PARA REFLETIR
Assista ao vídeo “Diferente mas igual” e reflita sobre o pontos vistos
nesta aula.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=Quj3aIKkTqs

Referências
BRASIL, Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Diário Oficial da União. Brasil, 23/12/1996.

BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1982.

FARACO, Carlos Alberto. Questões de política de língua no Brasil: problemas e implicações.


Educar em Revista, n. 20, p. 13-22, 2002.

FREIRE, P. A importância do ato de ler – três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989.

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SILVA, Marcio Ferreira da. A conquista da escola: educação escolar e movimento de professo-
res indígenas no Brasil. Em Aberto, Brasília, ano 14, n. 63, p. 38-53, 1994.

6
Disciplina: Educação para a diversidade

AULA 2
Educação Escolar Indígena: uma temática
nas políticas públicas

Para começo de conversa...


Nesta aula vamos abordar algumas questões relacionais mais diretamente à Educação Escolar
Indígena. Poderíamos, então, partir das seguintes indagações: Por que houve a preocupação
com esta temática nas políticas públicas na Educação Brasileira? Como se encontra o quadro
de formação de professor para a Educação Escolar Indígena? Quais as diretrizes e resoluções
que a regulamentam? Essas são algumas das questões que procuraremos responder ao longo
desta aula.

Estaremos entendendo que as Políticas Públicas se constituem em conjuntos de programas,


ações e atividades desenvolvidas pelo Estado direta ou indiretamente, com a participação de
órgãos públicos ou privados, cujo objetivo é assegurar determinado direito de cidadania, de
forma difusa ou para determinado seguimento social, cultural, étnico ou econômico.

A expressão “Políticas públicas” objetiva, assim, definir uma si-


Política é uma palavra de
tuação específica da política. A melhor forma de compreendermos
origem grega, politikó,
essa definição é partirmos do que cada palavra, separadamente, que exprime a condição
significa: de participação da pessoa
que é livre nas decisões
Assim, a expressão “políolim, a expres”, do ponto de vista etimo- sobre os rumos da cidade,
lógico, refere-se à participação do povo nas decisões da cidade, do a pólis.

território. Porém, historicamente essa participação assumiu feições Pública lide origem latina,
distintas, no tempo e no lugar, podendo ter acontecido de forma publica, e significa povo,
do povo.
direta ou indireta (por representação). De todo modo, um agente
sempre foi fundamental no acontecimento da política púica p to
Estado. Por isso, vejamos qual é o sentido contemporâneo para o
termo “política pública”.

A discussão acerca das políticas públicas tomou nas últimas décadas uma dimensão muito am-
pla, haja vista o avanço das condições democráticas em todos os recantos do mundo e a gama
de arranjos institucionais de governos, que se tornou necessário para se fazer a governabilida-
de, as condições adequadas para que os governos se mantenham estáveis. São essas condições
adequadas, enquanto atitudes de governos (sejam eles de âmbito nacional, regional/estadual
ou municipal), que caracterizam as políticas políticas.

7
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

Portanto, se “políticas públicas” é tudo aquilo que um governo faz ou deixa de fazer, “políolo
aquilo que um governo f” é tudo aquilo que um governo faz ou deixa de fazer em relação à
educação.

Políolucaquilo que educacionais é um foco mais específico do tratamento da educação, que


em geral se aplica às questões escolares. Em outras palavras, pode-se dizer que políticas pú-
blicas educacionais dizem respeito à educação escolar. Por que é importante fazer essa ob-
servação? Porque educação é algo que vai além do ambiente escolar. Tudo o que se aprende
socialmente – na família, na igreja, na escola, no trabalho, na rua, no teatro, etc. –, resultado
do ensino, da observação, da repetição, da reprodução, da inculcação, é educação. Porém, a
educação só é escolar quando ela for passível de delimitação por um sistema que é fruto de
políticas públicas.

Nesse sistema, é imprescindível a existência de um ambiente próprio do fazer educacional,


que é a escola, que funciona como uma comunidade, articulando partes distintas de um pro-
cesso complexo: alunos, professores, servidores, pais, vizinhança e Estado (enquanto socieda-
de política que define o sistema através de políticas públicas).

Portanto, políticas públicas educacionais dizem respeito às decisões do governo que têm in-
cidência no ambiente escolar enquanto ambiente de ensino-aprendizagem. Tais decisões en-
volvem questões como: construção do prédio, contratação de profissionais, formação docente,
carreira, valorização profissional, matriz curricular, gestão escolar etc.

A Educação Escolar Indígena


Todo trabalho para ser bem sucedido necessita que seus agentes “acreditem naquilo que fa-
zem”. É essencial que o professor pense e repense suas atitudes nas práticas docentes, acredi-
tando no aluno, no contexto em que estão inseridos e no potencial de transformação. A escola,
em um todo, precisa acreditar no princípio de que todo os cidadãos podem aprender e todos
devem ter acesso igualitário a um currículo básico diversificado e uma educação de qualidade.
Esse direito é garantido pela Constituição Brasileira.

Dentro dessa perspectiva, podemos pensar a Educação Escolar Indígena, garantindo aos su-
jeitos desse processo – professores, alunos, diretores, coordenadores, apoio pedagógico e, por
que não, o administrativo – a oportunidade de (in)formação que leve à garantia de cidadão.

A realização de uma ação pedagógica precisa considerar as “diversidades”. Para isso, requer
uma percepção do sistema educacional como um todo unificado. É preciso estar disposto a
romper paradigmas e observar as constantes mudanças sociais que (in)diretamente refletem
no processo de ensino-aprendizagem.

A história tem nos mostrado que a garantia social dos índios possui um longo processo. E isso
também ocorreu em relação à Educação.

8
Disciplina: Educação para a diversidade

Como afirma Ângelo (2008, p. 107):

A luta por uma educação escolar diferenciada que respeita a diversidade cultural
e linguística dos povos indígenas foi um processo doloroso e somado às demais
lutas de resistência para sermos reconhecidos com diferenças culturais.

Com o apoio de entidades indígenas, a situação dos povos indígenas, em relação à Educação,
foi, gradativamente, conquistando espaços no processo escolar. A escola passa a ser pensada
dentro dos direitos humanos e sociais, com um olhar para a diversidade cultural.

As experiências dos povos indígenas passam a contribuir para a construção de uma política
educacional que considerasse o contexto em que o índio esteja inserido.

Vivemos uma nova era e, considerando o contexto mundial da perversidade da globalização,


da concentração de renda, da desigualdade e da injustiça social, que são o pano de fundo da
sociedade ocidental, necessitamos de oportunidades para mostrarmos a nossa capacidade e
responsabilidade de traçar nosso destino. E dentro desse novo cenário se configuram novas
propostas com a participação das comunidades indígenas que dão encaminhamento diferente
de ser cidadão indígena.

Como aponta Ângelo (2008, p. 108):

Com a inserção das escolas indígenas no sistema de ensino do País, como modali-
dade de ensino e a criação da categoria escola indígena, difere a escola indígena
de outras escolas existentes no sistema, e obriga as instituições mantenedoras a
se organizarem, a aprenderem a lidar com o novo contexto social da diversidade
cultural, de prover novos instrumentos democráticos que garantam o atendimen-
to dos direitos de cidadania.

Legalmente, foram as atitudes que garantiram o direito de cidadão indí indmente, fopromul-
gação da Constituição Federal do Brasil (1988), da Lei de Diretrizes e Bases (LDB, 1996) e da
Resolução 5 (2012). No entanto, precisamos operacionalizar essas conquistas. Nesse sentido,
houve uma preocupação das políticas públicas em propiciar uma escola voltada para a Educa-
ção Escolar Indígena, com vários programas cujo objetivo era refletir sobre esse tema.

Um dos principais documentos que regula esse princípio é a Resolução 5, de 22 de junho de


2012, como já mencionamos anteriormente. Esta resolução recupera toda a legislação que
regulamenta o direito indígena e, a partir dessa realidade, estabelece os objetivos para a Edu-
cação Escolar Indígena. E esse será o tema de nossa aula 3.

9
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

SAIBA MAIS
Assista ao vídeo https://youtu.be/cWUZCJQZlRw e veja em que
medida o assunto tratado nesta aula se reflete nas diferentes falas
que aparecem no documentário.

PARA REFLETIR
Culturas e línguas: diversidade cultural
Culturas e Línguas são termos fortemente imbricados. As diferentes
visões de mundo expressam-se na arte (na música, na dança, no teatro,
nas artes plásticas entre outras) e nas línguas, no discurso cotidiano
e/ou mítico. Os conhecimentos acumulados, os legados das gerações
anteriores, portanto, as representações simbólicas, as tradições culturais,
a organização sócio-cultural e política, as crenças, as práticas religiosas,
a concepção de educação manifestam-se e se reconstroem por meio de
linguagem e, em especial, pelas línguas. A linguagem verbal / a língua
é um dos mais importantes meios que permitem aos seres humanos
construir, modificar e transmitir a sua cultura.
Em função da diversidade cultural, o ensino bilíngue é nuclear no
projeto da educação intercultural, e, desse modo, passa a ocupar um
lugar fundamental nos debates sobre a escola indígena. Para Maher
(2006, p. 27), “a questão da interculturalidade, isto é, do conseguir
fazer dialogar comportamentos e conhecimentos sob bases culturais
distintas e, frequentemente, conflitantes é entendida como o esteio, a
razão de ser da escola indígena.”.

SAIBA MAIS
Leia: São Paulo (Estado). Secretaria da Educação. Educação
Escolar em contexto bilíngue intercultural: línguas indígenas e língua
portuguesa. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, 2010.

10
Disciplina: Educação para a diversidade

Referências
ANGELO, F. N. P. Politicas Educacionais com os povos indígenas in RAMOS, M. N., ADÃO, J.
M. e BARROS, G. M. N. Diversidade na Educação. Reflexões e Experiências. Brasília: Secreta-
ria da Educação Média e Tecnológica, 2003, p. 107-109.

BRASIL, Constituição Federal do Brasil. Brasília, 1988.

BRASIL, Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União. Brasil, 23/12/1996.

BRASIL, Resolução 5, Brasília, junho de 2012.

MARTINS, A. S. et al. Educação escolar em contexto bilíngue intercultural: línguas indígenas


e língua portuguesa. Secretaria Estadual de Educação. São Paulo: SEE/FEUSP, 2010.

11
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

AULA 3
Educação Escolar Indígena: desafios
e perspectivas
Vários são os documentos oficiais que afirmam que os
Povos Indígenas têm direito a uma educação escolar
específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/mul-
tilíngue e comunitária, conforme define a legislação
nacional que fundamenta a Educação Escolar Indígena. 

No âmbito das políticas públicas, a FUNAI, por exem-


plo, faz o Monitoramento, que pode ser compreendi-
do como um conjunto de atividades que contempla
a participação indígena no processo de discussão das
propostas, sua execução, acompanhamento e avaliação
como condição fundamental na definição e execução
das políticas destinadas aos povos.

Nesta perspectiva, o monitoramento ocorre sobre uma ação formulada e discutida pelos edu-
cadores indígenas e comunidades, com assessoria de educadores indigenistas - técnicos da
FUNAI. Desta forma, as pessoas que atuam nessa área podem acompanhar a execução da ati-
vidade, sendo parte de sua trajetória, e não apenas “fiscalizadores” da ação. 

O Ministério da Educação, por meio da SECADI, também possui uma diretoria que destina seu
olhar para essa temática. Com base no PPA 2012-2015 – o Plano Mais Brasil – a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) implementa políticas
públicas integradas aos Programas e Ações da Educação Superior, Profissional e Tecnológica
e Básica, contribuindo para o enfrentamento das desigualdades educacionais, considerando
diferentes públicos e temáticas, dentre eles, a Educação Escolar Indígena.

O PPA 2012-2015 é instrumento de planejamento governamental que define diretrizes, obje-


tivos e metas com o propósito de viabilizar a implementação e a gestão das políticas públicas,
orientar a definição de prioridades e auxiliar na promoção do desenvolvimento sustentável.

12
Disciplina: Educação para a diversidade

De acordo com o site da Secretaria,

As ações, projetos e programas da SECADI são destinados à formação de gestores


e educadores, à produção e distribuição de materiais didáticos e pedagógicos, à
disponibilização de recursos tecnológicos e à melhoria da infraestrutura das esco-
las, buscando incidir sobre fatores que promovam o pleno acesso à escolarização
e à participação de todos os estudantes, com redução das desigualdades educacio-
nais, com equidade e respeito às diferenças.

Este curso, como você verá, dialogará com o quadro da legislação que envolve esta temática.
É essencial que você conheça os artigos da Constituição Federal de 1988, da Lei de Diretrizes
e Bases de 1996 e a Resolução 5 de 2012, principais documentos que tratam do assunto.

Vamos, então, a eles!

13
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

Resgatando um pouco da história, ainda que recente, é importante lembrar que a política na-
cional de educação escolar indígena, a partir de 1991, está sob a coordenação do Ministério da
Educação (MEC). No entanto, na história do indigenismo nacional, as ações nessa seara, desde
o início do século XX, eram reservadas oficialmente ao órgão indigenista do Estado, primeiro
o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, e, a partir da segunda metade da década
de 1960, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

A Constituição Federal do Brasil (1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional


(1996) garantem aos povos indígenas uma educação escolar específica, marcada por diferen-
ciais interculturais, bilíngue-multilíngue e comunitária.

Pensar a educação escolar indígena é pensar também em políticas, que se constituam em ações
que possibilitam à comunidade indígena a expressão de qual escola deseja, de que forma a
escola deve atender aos seus interesses, como ela deve ser estruturada e como ela se integra à
vida e aos projetos comunitários.

Algumas decisões tomadas pelo MEC contribuíram para que fosse garantido aos povos indíge-
nas o respeito à cultura e à tradição, como:

a. A necessidade de assegurar os direitos à educação diferenciada aos povos indígenas e à


valorização de suas línguas, conhecimentos e processos pedagógicos próprios;

b. O entendimento de que o currículo compõe o todo do fazer escolar, e não apenas a


organização da matriz onde se abrigam as disciplinas, assim como o PPP se constitui
como elemento estruturante da vida escolar que expressa a identidade e os projetos
societários. A escola indígena deve refletir o modo de vida, a concepção cultural e po-
lítica de cada povo indígena e as relações intersocietárias que mantém.

c. O papel da escola na vida da comunidade, sua articulação com as demais ações e


projetos do povo indígena, assim como sua influência em outras áreas de atuação dos
governos, tendo como pressuposto, portanto, a necessidade do tratamento integrado de
questões de territorialidade, sustentabilidade e patrimônio cultural.

Seguindo a perspectiva de compartilhamento ou repartição de competências da matéria edu-


cacional presente em nosso sistema federativo, segundo a Constituição Federal de 1988, atri-
bui-se aos estados e municípios a responsabilidade pelo desenvolvimento das ações, conforme
definido no seu art. 2º: “As ações previstas no Art. 1º serão desenvolvidas pelas Secretarias de
Educação dos Estados e Municípios em consonância com as Secretarias Nacionais de Educação
do Ministério da Educação.”.

Da mesma forma, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em seus arts. 78
e 79, estabelece que a responsabilidade pelo desenvolvimento de programas voltados para
a educação escolar indígena é da União, cabendo-lhe prestar apoio técnico e financeiro aos
sistemas de ensino que ofertem esses programas.

De acordo com o art. 78, a criação de programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta
de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

14
Disciplina: Educação para a diversidade

• I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias


históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e
ciências;

• II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações e conheci-


mentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e
não indígenas.

A mesma Lei de Diretrizes e Bases, em seu Art. 79, determina que a União apoiará técnica
e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comu-
nidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa, destacando
ainda, em seu inciso 1°, que “os programas serão planejados com audiência das comunidades
indígenas”.

Desse modo, qualquer incentivo a esses programas servirá para pôr em prática um direito dos
índios, assegurado pela Constituição: a participação ativa no planejamento de sistemas alter-
nativos de educação, bem como na produção e divulgação de conhecimentos diferenciados – o
que não deverá significar a exclusão dos indígenas do sistema educacional tradicional.

Em 1999, o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu pela primeira vez as Diretrizes
Nacionais para o Funcionamento das Escolas Indígenas, por meio da Resolução nº 3, de 1999,
da Câmara de Educação Básica (CEB). Treze anos depois, através da Resolução CNE/CEB nº
5, de 2012, são definidas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indí-
gena na Educação Básica, que orientam a sua organização, em todas as etapas e modalidades,
segundo os princípios da igualdade social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e
da interculturalidade. Nessas normativas, são estabelecidas as competências dos entes federa-
tivos, de acordo com o modelo constitucionalmente previsto de regime de colaboração, des-
tacando o papel da União em legislar e coordenar as políticas nacionais de educação escolar
indígena e dos estados na oferta e execução dessa modalidade de educação.

De acordo com o documento, é ainda de sua competência a definição de diretrizes para a oferta
e a avaliação das ações de formação inicial e continuada de professores indígenas; a promoção
da formação continuada das equipes técnicas dos sistemas de ensino que executem programas

15
Módulo 1 - EaD e ferramenta moodle

de educação escolar indígena; a elaboração e publicação de material didático específico para


as escolas indígenas; a realização das conferências nacionais de educação escolar indígena,
além do apoio técnico e financeiro aos sistemas de ensino, conforme definido também na LDB.

Nos termos da referida Resolução, os Estados assumem papel fundamental, não podendo se
eximir da oferta dessa modalidade de educação, ainda que, em algumas situações, venham a
compartilhar com os municípios essa competência. Nesses casos, as comunidades indígenas
deverão ser ouvidas e os municípios terão que atender às exigências estabelecidas pela legisla-
ção, como a constituição de sistemas de educação próprios e condições técnicas e financeiras
adequadas ao atendimento das demandas de educação escolar dos povos indígenas.

Entre as atribuições dos estados, definidas no art. 25, estão ainda: “A criação de instâncias ad-
ministrativas de educação escolar indígena nas secretarias de educação, com a participação de
indígenas e de profissionais especializados nas questões indígenas, com dotação orçamentária
específica.” A regularização das escolas indígenas como unidades próprias, autônomas e espe-
cíficas no sistema estadual de ensino. “A implementação da política dos territórios etnoeduca-
cionais”. “A dotação de recursos financeiros, humanos e materiais para as escolas indígenas.”
A criação da categoria de professor indígena, mediante realização de concurso específico. “A
promoção da formação inicial e continuada dos profissionais da educação escolar indígena.“
A promoção da elaboração e publicação de materiais didáticos e pedagógicos específicos e
diferenciados para as escolas indígenas.

A partir da publicação da Constituição Federal, em 1988, os povos indígenas e seus parceiros


têm discutido as possibilidades de novos arranjos de gestão, bem como o lugar institucional
mais adequado para a localização dessas políticas.

Sendo assim, a instituição de marcos regulatórios específicos que respeitem efetivamente as


especificidades e os interesses societários dos indígenas, promovendo a sua autonomia e pro-
tagonismo, tem sido a tônica da discussão.

No âmbito do MEC, a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (Cneei), órgão con-
sultivo responsável pelo assessoramento nas diretrizes e ações, vem discutindo, entre outras
questões, a criação de um sistema próprio. A ideia de um sistema próprio aponta para a loca-
lização das políticas de educação escolar indígena no âmbito da União. Tal proposta, todavia,
também é marcada por posicionamentos diversos sobre a presença de diferentes agências
nesse campo, sejam organizações indígenas e indigenistas, sejam órgãos do Estado.

16
Disciplina: Educação para a diversidade

Nos debates a respeito do sistema próprio, é sugerida a criação de um Sistema Nacional de


Educação Escolar Indígena ou de um Subsistema de Educação Escolar Indígena ligado ao
Sistema Nacional de Educação; a criação de uma Secretaria Nacional de Educação Escolar
Indígena; a criação de Distritos Educacionais de Educação Escolar Indígena; bem como a cria-
ção de uma Câmara de Educação Escolar Indígena, no âmbito do CNE, ou a transformação da
atual Cneei em um Conselho Nacional de Educação Escolar Indígena.

A Resolução n. 5 de 22 de junho de 2012 também se constitui em um importante documento


que legisla sobre a temática.

Em síntese, as políticas e tendências atuais para a educação escolar indígena refletem os pro-
blemas da fragmentação das políticas indigenistas, colocando novos desafios para a relação
entre os povos indígenas e o Estado brasileiro. Eles devem ser enfrentados, buscando a articu-
lação de questões como universalização, especificidade, ineficiência das estruturas de gestão
e superação de situações de preconceito no trato com a diversidade.

SAIBA MAIS
Leia a Resolução 05 de 22 de junho de 2012.

Referências
BRASIL, Constituição Federal do Brasil. Brasília, 1988.

BRASIL, Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União. Brasil, 23/12/1996.

BRASIL, Resolução 5, Brasília, junho de 2012.

http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=817id=12499option=com_contentview=arti-
cle, acesso em 2 de março de 2015.

17
MÓDULO 2
CONHECENDO OS POVOS
INDÍGENAS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO -
DESCONSTRUINDO
PRECONCEITOS
DISCIPLINA
A SOCIODIVERSIDADE
INDÍGENA NO BRASIL
Autora: Priscilla Barbosa Ribeiro
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Apresentação
Nesta disciplina trataremos da sociodiversidade dos povos indígenas no Brasil: quais são eles,
onde estão localizados e quais são suas línguas. Vamos ver como o universo cultural indíge-
na é diversificado em inúmeras etnias, além de conhecer um pouco sobre os problemas de
distribuição de terras e refletir sobre as consequências que acarretam para a manutenção da
sociodiversidade no Brasil. Por fim, trataremos da diversidade linguística indígena e sua clas-
sificação genética.

Sobre a autora
Priscilla Barbosa Ribeiro é doutoranda em Filologia e Língua Portu-
guesa pela Universidade de São Paulo. É mestre nessa área (2011) e
licenciada (2005) em Letras pela mesma universidade. Dedica-se a
pesquisa interdisciplinar com vistas a analisar as relações entre lín-
gua e sociedade, com ênfase nas áreas de Sintaxe, Sociolinguística e
História Social da Língua.

22
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

AULA 1
Quem são e onde estão os povos indígenas
Parte I

Figura – Mosaico de fotos indígenas.


Fonte: Alquimiando Meio Ambiente, 20151.

Os índios no Brasil
É comum ouvirmos em conversa cotidiana, em notícias de jornais, referência ao sujeito
“brasileiro”. Por essa experiência, sabemos que “o brasileiro é alegre”, que “o brasileiro
deverá economizar energia em 2015”, que “o brasileiro tem viajado mais para o exterior”,
mas a quem exatamente se refere a expressão “o brasileiro”? Pessoas que hoje vivem em áreas
mais urbanizadas possivelmente visualizam um conjunto heterogêneo, com descendentes de
africanos, europeus, asiáticos, imigrantes latino-americanos, filhos da mistura desses povos.
Mas é provável que, ao recuperar sua própria concepção de “brasileiro”, poucos considerem

1 Disponível em: http://alquimiandoomeioambiente.blogspot.com.br/2012/04/dia-do-indio-em-2012-


contrastes.html

23
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

os indígenas, devido à pouca difusão de conhecimentos sobre esses povos e à falta de contato
com suas comunidades, efeitos do preconceito histórico contra essa população.

Nesta aula, vamos começar a estudar essa parcela da população que, embora seja numerosa,
é pequena se comparada à população total do país. O descaso da sociedade e a insuficiência
das políticas públicas lhes têm trazido inúmeros prejuízos, de forma que precisam empreender
grandes esforços para manter sua integridade e tradições. Pretendemos, com a abordagem de
aspectos da sociodiversidade2 indígena brasileira, tratar da presença e cultura indígenas no
Brasil e, principalmente, possibilitar a desconstrução de preconceitos ao trazer para o foco da
discussão esses povos que, por muito tempo, ficaram à margem da história e da sociedade.

Foto – Índio brasileiro.


Fonte: G1, 20153.

Quem são os índios no Brasil?


Por princípio, os povos indígenas têm uma forte integração com a natureza; eles a respeitam
e nela depositam o significado de sua cosmovisão4, suas mitologias, suas memórias. Contudo,
as inúmeras dificuldades advindas das lutas por terras, condições precárias de saúde e mo-

2 Para saber mais, veja o texto disponível em: http://fefisa.com.br/home/images/stories/conh_gerais/


sociodiversidade_exclusao_minorias.pdf
3 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/09/foto-de-indio-brasileiro-vence-concurso-global.
html
4 Segundo o Dicionário, cosmovisão é “Modo particular de perceber o mundo, geralmente, tendo em conta as
relações humanas, buscando entender questões filosóficas (existência humana, vida após a morte etc.); concepção
ou visão de mundo”. Disponível em: http://www.dicio.com.br/cosmovisao/

24
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

radia, situação de miséria, induzem seu deslocamento para as cidades em busca de melhores
condições. Com essa mudança, o indígena enfrenta um choque cultural pelo afastamento da
natureza e inserção em uma dinâmica orientada por concepções de vida e valores absoluta-
mente diversos dos seus.

Do mesmo modo, indígenas que se mantiveram em suas terras de origem enfrentam percalços
para a preservação de sua cultura. São exemplo dessa situação comunidades originadas de
aldeamentos eliminados por políticas do século XIX, como os Xocó (Sergipe), os Tingui-Botó
(Alagoas) e os Tapeba (Ceará), que, tendo perdido muito de sua tradição por conta das pres-
sões para se “desindianizar” ao longo do século XIX, posteriormente reivindicaram seu reco-
nhecimento como povos indígenas (GOMES, 1988, p.160) e têm se esforçado para recuperar
elementos ancestrais de suas culturas.

São muitas as forças que, há séculos, se voltam contra a identidade indígena; contudo, o indí-
gena resiste como parte vital da sociedade brasileira, em diferentes condições de existência.
Entende-se que a perda de certos costumes, a mudança de ambiente não torna alguém menos
índio. Índio é tanto aquele que vive em terras indígenas como o que se mudou para a cidade, é
o que foi oprimido e tenta resgatar sua identidade e, sobretudo, aquele que se reconhece índio
e como tal é reconhecido por sua comunidade. Portanto,

[...] não há que se falar em mestiço ou em biótipo, ou ainda por que questionar se
esse ou aquele é ou não falante de uma língua indígena, pois é comum ouvir-se:
“Este não vive mais nas matas, ou não fala a língua indígena, ou usa objetos da
sociedade envolvente, portanto, deixou de ser índio”. Como se fosse um estágio
provisório ser índio! (GUARANY in ARAÚJO, 2006, p.155)

Como aponta Guarany (2006), a identidade indígena constrói-se por traços que extrapolam
o estereótipo5 romântico, do índio que vive nu nas matas e fala uma língua estranha. Mas o
fato de os indígenas brasileiros apresentarem traços comuns, que os distinguem de não-índios,
não significa que compõem um grupo homogêneo, ao contrário: segundo dados do Instituto
Socioambiental, são cerca de 240 etnias presentes em território nacional, e 305 segundo o
censo do IBGE em 2010, cada qual com suas línguas e tradições.

Assim, diverso do não-índio, o indígena difere também de outros indígenas no que respeita a
inúmeros aspectos de sua cultura. Por sinal, é improvável que 896 mil pessoas, número de in-
dígenas auto-identificados no censo demográfico de 2010, possam compor um grupo cultural-
mente homogêneo. Com alguns elementos em comum, as identidades indígenas constroem-se
no interior de cada etnia, aí assumindo os traços que as diferenciam entre si.

5 “Pode-se definir estereótipo como sendo generalizações, ou pressupostos, que as pessoas fazem sobre
as características ou comportamentos de grupos sociais específicos ou tipos de indivíduos. O estereótipo é
geralmente imposto, segundo as características externas, tais como a aparência (cabelos, olhos, pele), roupas,
condição financeira, comportamentos, cultura, sexualidade, sendo estas classificações (rotulagens) nem sempre
positivas que podem muitas vezes causar certos impactos negativos nas pessoas”. Disponível em: http://www.
infoescola.com/sociologia/estereotipo/

25
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Há etnias bastante representativas numericamente, destacando-se, nesse sentido, os Tikuna


(Amazônia), que correspondem a 6,8% dos indígenas que declararam etnia, seguidos dos Gua-
rani Kaiowá (Mato Grosso do Sul) e dos Kaingang (Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina
e São Paulo). Além desses, há outros povos bastante numerosos:

Etnia População
Tikúna 46.045

Guarani Kaiowá 43.401

Kaingang 37.470

Makuxí 28.912

Terena 28.845

Tenetehara 24.428

Yanomámi 21.982

Potiguara 20.554

Xavante 19.259

Pataxó 13.588

Sateré-Mawé 13.310

Mundurukú 13.103

Múra 12.479

Xucuru 12.471

Baré 11.990

Tabela - Indicação das 15 etnias com maior número de indígenas no Brasil (2010).
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2010.

A despeito de haver um número bastante elevado de indígenas em determinadas etnias, cerca


de metade delas tem até cem representantes, a exemplo dos Jiahui (Amazonas, 97 pessoas),
Xetá (Paraná, 86 pessoas) e Bará (Amazonas, 22 pessoas)6. Com grupos muito reduzidos ou
amplas populações, esses povos se distribuem ao longo de todo o território brasileiro:

6 Fonte: Quadro Geral dos Povos, do Instituto Socioambiental. Disponível em http://pib.socioambiental.org/


pt/c/quadro-geral. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.

26
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Figura – Distribuição dos povos indígenas no Brasil.


Fonte: MELATTI, 2007, p. 53.

No mapa acima, percebemos que a presença indígena no Brasil não é uniforme. A diferença
populacional destaca-se no gráfico a seguir, que ilustra a distribuição de indígenas por região,
evidenciando sua maior concentração nas regiões norte e nordeste, onde se observa também
uma maior variedade étnica:

27
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Centro-Oeste
103.494

Sul
Norte
74.945
305.873
Sudeste
97.960

Nordeste
208.691
Gráfico – Distribuição da população indígena em 2010.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 20107.

Os dados mais atuais sobre a população indígena brasileira, tanto pelo número de represen-
tantes quanto pelo de etnias, surpreendem àqueles que imaginavam que já não havia (ou
quase não havia) indígenas no Brasil. Porém, ainda que numerosos, correspondem a apenas
0,4% da população brasileira e são uma de suas porções mais frágeis socioeconomicamente.

Portanto, para que esses índices possam ser de fato significativos, é preciso esforço para pen-
sar fora da lógica urbana ocidentalizada, de tendência homogeneizante, que violentamente
aplaca diferenças, e reconhecer e valorizar a diversidade cultural, patrimônio de nossa socie-
dade do qual temos o dever de cuidar. Para tanto, é preciso cuidar das pessoas, portadoras da
cultura, valorizá-las, e aproveitar o contato com o diverso para repensar quem somos, quem
queremos ser e que sociedade queremos ter.

7 Disponível em http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao. Acesso em 15 jan 2015.

28
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

PARA REFLETIR
Daniel Munduruku8 é paraense, da etnia Munduruku. Estudou
filosofia, história e antropologia e atua como escritor, professor
universitário e em instituições de proteção à cultura indígena. Leia
abaixo um trecho de sua entrevista e aproveite a oportunidade
para pensar sobre o problema de se considerar o indígena de
forma genérica, observando a importância da cultura da etnia na
composição de sua identidade:
Munduruku: [...] senão, sempre vai dar a impressão de que o
indígena é só um brasileiro, e não é isso. O indígena não é brasileiro.
Entrevistador: Não?
Munduruku: Não do ponto de vista do lugar dele. Ele é brasileiro do
ponto de vista do território, que, aliás, querem acabar com o nosso
território... porque a ideia do brasileiro é exatamente aquela que
pertence a esse território, a essa nação, sem contar as diferenças. E
nós somos brasileiros, sim, mas diferenciados, e como tal queremos
continuar sendo. Não queremos simplesmente ser José de Alencar.
Eu quero ser o Daniel Munduruku. Munduruku significa dizer que
eu pertenço a um povo, a uma tradição, a uma trajetória de vida
que é peculiar.

Referências
ARAÚJO, Ana Valéria et alii. Povos indígenas e a lei dos brancos: o direito à diferença. Brasília:
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;
LACED/Museu Nacional, 2006.

GOMES, Mércio Pereira. Os índios e o Brasil. 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1991.

GUARANY, Vilmar Martins Moura. Desafios e perspectivas para a construção e o exercício


da cidadania indígena. In: ARAÚJO, Ana Valéria et alii. Povos indígenas e a lei dos brancos:
o direito à diferença. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010: Características


gerais dos indígenas. Rio de Janeiro, 2010.

LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

MUNDURUKU, Daniel. Entrevista. Disponível em: http://www.danielmunduruku.com.br/.


Acesso em 22/01/2015.

8 Disponível em: http://www.danielmunduruku.com.br/

29
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 2
Quem são e onde estão os povos indígenas
Parte II

Entre diferenças e semelhanças


Diversos aspectos aproximam as sociedades indígenas umas das outras e as distanciam das de-
mais: a concepção de natureza associada ao sobrenatural, as figuras do xamã e do chefe como
representação religiosa e política, a igualdade social, a organização regida pela coletividade,
a divisão do trabalho por sexo e por idade, a não existência de posse de meios de produção
e trabalho, bem como a não necessidade de acúmulo de bens. Trata-se de uma organização
em que “generosidade, redistribuição e reciprocidade criam, recriam e intensificam relações”
(GRUPIONI, 2000, p.18).

Essa intersecção cultural dos povos indígenas é parte essencial de sua identidade, mas rami-
fica-se em aspectos mais específicos que distinguem as etnias existentes, compondo uma di-
versidade muito rica. Por enquanto, nos referiremos a etnia indígena como um grupo social de
sujeitos indígenas que partilham as mesmas raízes culturais e uma identidade comum que os
diferenciam de outros grupos. Na próxima disciplina desse módulo esse conceito será tratado
mais detidamente.

A diversidade indígena brasileira é observada até mesmo na denominação das etnias, que
frequentemente têm mais de um nome, atribuídos por não-índios, por outros povos indígenas,
e pela própria comunidade. O nome definido por autodenominação, usualmente restrito à co-
municação no interior do grupo, em geral é menos conhecido e apresenta conotação positiva.
Os nomes atribuídos por outros indígenas costumam ser pejorativos quando utilizados para se
referir a um povo inimigo.

O povo mato-grossense bororo foi assim primeiramente chamado pelos bandeirantes, que,
tentando estabelecer comunicação, perguntou-lhes o nome e teve como resposta o lugar onde
estavam, o pátio ou, em boe wadaru, bororo - termo que também pode designar a praça ou
toda a aldeia. Entretanto, o grupo se autointitulava Boe, que significa “gente, ser humano”
(PORTOCARRERO, p.43-44). Os famosos Kayapó, por sua vez, ficaram assim conhecidos gra-
ças a povos Tupi inimigos que os nomearam como “aqueles que se assemelham a macacos”,
remetendo a ritual de dança em que utilizavam máscaras desses animais (RICARDO, 2001).
Nessa variedade de usos transparecem marcas do contato com indígenas e não-indígenas, os
olhares a que cada povo está submetido e sua concepção sobre si mesmo.

30
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

A maioria dos nomes hoje utilizados não são autodenominações, mas foram atribuídos por ou-
tros grupos, indígenas ou não. Para referência a esses povos, tem-se preferido o uso da forma
singular, como em “os Guarani”, “os Munduruku”, sem acréscimo do /-s/ final formador de
plural em português. Essa opção visa evitar incoerência, pois o termo pode já estar no plural,
bem como evitar o hibridismo, dado que as línguas indígenas brasileiras, quando apresentam
noção de plural, utilizam outras possibilidades de marcação (RICARDO, 2001).

Tanto quanto suas denominações, as etnias hoje existentes no Brasil diversificam-se em uma
série de valores, costumes, práticas artísticas, agrícolas e outros. Pode-se observar essa va-
riedade nas formas de casamento aceitas em cada povo, desde a monogamia, mais frequente
entre os povos brasileiros, até o misto de poliginia e poliandria:

TIMBIRA CINTA-LARGA
Monogamia: Poliginia e Poliandria:
para cada homem, uma homem e mulher podem ter
mulher mais de um parceiro, sendo
o segundo caso menos
frequente

ALGUMAS FORMAS DE
CASAMENTO ENTRE
INDÍGENAS

NAMBIKWARA XAVANTE, TENETEHARA


Poliginia restrita: Poliginia:
apenas o chefe pode ter mais um homem para mais de
de uma mulher uma mulher

Figura – Formas de Casamento.


Fonte: cf. MELATTI, 2007, p.131; DAL POZ NETO, 1991, p.45.

Cada uma dessas possibilidades matrimoniais é parte da cultura da etnia a que corresponde.
Somada a outros traços, ela especifica, no universo de sujeitos designados “indígenas”, os
“Timbira”, os “Xavante” e tantos mais, diferenciando-os de outros indígenas.

Etnólogos observaram a tendência de povos geograficamente próximos apresentarem mais


semelhanças culturais do que aqueles distanciados, em decorrência da maior facilidade de
contato social. A partir de características comuns aos povos indígenas brasileiros entre 1900
e 1959, Galvão (1979) identificou dez áreas culturais no território nacional com os seguintes
limites aproximados:

31
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Áreas culturais:
I I – Norte-amazônica
VII II – Juruá-Purus
II III – Guaporé
IV IV – Tapajós-Madeira
III V
XI V – Alto Xingu
VI – Tocantins-Xingu
VII – Pindaré-Gurupi
VIII
VIII – Paraguai
IX IX – Paraná
X
X – Tietê-Uruguai
XI - Nordeste

Figura - Áreas culturais indígenas no Brasil.


Fonte: GALVÃO, 1979, p.270.

Em algumas áreas há grupos destoantes do grupo cultural majoritário, como os Juruá e Purus
na região II, do Solimões; contudo, a classificação abrange de modo geral os povos envolvidos
na área delimitada, os quais, a despeito de eventuais diferenças linguísticas, podem apresentar
muitas semelhanças, caso do Alto Xingu (JUNQUEIRA, 2008).

Em regiões de fronteira, por vezes os povos ocupam áreas que se estendem para além do Brasil
até países vizinhos como Peru, Bolívia, Paraguai, estendendo-se também a área cultural por
eles integrada, fato devido à definição de limites políticos na América do Sul ser posterior à
presença indígena nesse território.

Índios isolados
Os levantamentos sobre áreas culturais e número de etnias indígenas no Brasil não incluem
grupos dos chamados índios isolados, aqueles com pouco ou nenhum contato com outros po-
vos, indígenas e não-indígenas, sendo que alguns deles já tiveram relações externas e então
optaram por retornar ao isolamento. A atitude desses grupos pode ser uma reação a conflitos,
a aquisição de doenças, a ameaça de suas vidas, territórios e autonomia, o que os teria tornado
insociáveis a elementos externos à comunidade.

Esses povos são monitorados e acompanhados à distância pela FUNAI, que, em princípio,
procura estabelecer contato caso identifique situação de risco. A maior parte deles vive em
terras indígenas, destacando-se as da região amazônica - particularmente no Vale do Javari,
na divisa com o Peru.

32
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Embora pouco se conheça a respeito desses grupos, eles são mais uma evidência da ampla
diversidade humana presente no território brasileiro. Sua atitude denuncia a violência que
foi e continua a ser promovida contra esses e tantos outros povos indígenas, que, cada um à
sua maneira, pelo afastamento ou pela luta, buscam garantir a própria continuidade. Nesse
momento, mais do que lhes garantir a mera sobrevivência, é imprescindível garantir o direito
de projetarem o próprio futuro, oferecendo condições materiais, políticas e educacionais para
que o façam.

SAIBA MAIS
O Brasil tem o privilégio de abrigar grande diversidade indígena.
Saiba mais sobre a cultura de algumas etnias consultando o site do
Instituto Socioambiental em: http://pib.socioambiental.org/pt

Referências
DAL POZ NETO, João. No país dos Cinta-Larga: uma etnografia do ritual. Dissertação de
Mestrado em Antropologia. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Humanas, Universidade
de São Paulo. São Paulo, 1991.

IBGE. Censo Demográfico 2010. Disponível em ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_


Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_dos_Indigenas/pdf/Publicacao_completa.pdf

GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1979.

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. As sociedades indígenas no Brasil através de uma exposição
integrada. In: ________ (org.). Índios no Brasil. 4ª ed. São Paulo, Global; Brasília, MEC, 2000,
p. 13-28.

PORTOCARRERO, José Afonso Botura. Bái, a casa Bóe: Bái, a casa Bororo Uma história
da morada dos índios Bororo. Dissertação de Mestrado em História. Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2001.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil


moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

RICARDO, Carlos Alberto. Passados 500 anos, sequer sabemos seus nomes. In: GRUPIONI et
alii (org). Povos indígenas e tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade.
São Paulo, Edusp, 2001, p.63-70.

33
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 3
Territorialidade e povos indígenas:
dados gerais sobre a demografia
Parte I

O crescimento da população indígena no Brasil


atual
Há uma visão comum, particularmente entre os moradores de grandes cidades, de que pouco
resta da sociedade indígena além de suas marcas em nossa cultura e história. De fato, a popu-
lação indígena brasileira sofreu um enorme decréscimo durante o século XVI, que, se não fosse
interrompido, provavelmente teria significado o fim desses povos. Por séculos, eles pereceram
com a violência de invasores e com doenças trazidas por não-indígenas, contra as quais não
tinham resistência imunológica nem recursos medicinais.

Na primeira metade do século XX, estima-se que tenha ocorrido o desaparecimento de mais
de 80 etnias, com queda da população indígena de 1 milhão para 200 mil (RIBEIRO, 2004),
principalmente devido ao avanço de fazendeiros, seringueiros, madeireiros e da agroindústria
sobre seus territórios. A partir da década de 80, ganham visibilidade movimentos sociais em
prol das minorias e, nesse contexto, os indígenas são favorecidos com o fortalecimento de
sua luta por terras e melhores condições de vida, ações cujos benefícios se refletiram, a longo
prazo, no aumento da população indígena:

Ano População indígena


1991 294.131

2000 734.127

2010 817.963

Tabela – Crescimento da população indígena.


Fonte: IBGE. Censos Demográficos 1991, 2000, 2010.

34
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Os resultados do censo mais recente, o de 2010, apresentam o efeito de nova estratégia na


coleta de dados não aplicada anteriormente. Toda pessoa, em um primeiro momento, indicava
o que chamaram de sua “raça” (entre as opções branca, preta, parda, amarela, indígena). Em
caso de pessoa residente em terras indígenas que não selecionasse “indígena” nesse primeiro
quesito, o pesquisador fazia a pergunta: “Você se considera indígena?”, que foi respondida
afirmativamente por 78.954 pessoas. Dessa maneira, o número de pessoas identificadas como
parte da população indígena subiu de 817.963 para 896.917, as quais responderam a um
questionário específico para esse grupo, abordando etnia, língua, alfabetização, certidão de
nascimento e condições do domicílio.

O crescimento da população indígena iniciado no final do século passado ainda está em pro-
cesso, com uma elevação em torno de 3% a 5% ao ano (PAGLIARO; AZEVEDO; SANTOS,
2005). O salto quantitativo da população indígena a partir da década de 90 é notável e, pro-
vavelmente, resulta da mudança de condições materiais (acomodação em terras demarcadas,
melhores condições sanitárias e de saúde) somada à revalorização social do indígena, que, nas
pesquisas, passa a se identificar como tal.

Ao longo do tempo, esse processo cultural levou vários grupos ao resgate de suas tradições
antes oprimidas por ações políticas, econômicas, religiosas e por preconceitos. Essa mudança
reforça a importância de se respeitar e valorizar a diversidade e a necessidade urgente de
quebrar estigmas para a construção de uma sociedade psicologicamente mais saudável e cul-
turalmente rica.

Índios e terras indígenas


A formação dos povos indígenas brasileiros ocorreu em meio a uma natureza tão rica quanto
as etnias aqui presentes, que desenvolveram suas culturas ancestrais em integração ao ecos-
sistema local. Os saberes desses povos são fruto do contato com a terra, da observação de seu
comportamento e, portanto, propiciam o uso racional e equilibrado dos recursos naturais,
viabilizando sua manutenção e preservação. Contudo, nada disso foi respeitado pelos povos
não-índios diante da possibilidade de obtenção de lucro com terra indígenas (TI) pela extração
de madeira, látex, minérios, de maneira que muitas delas vêm sendo invadidas e subtraídas de
seus povos desde os tempos da colonização.

Após anos de injustiça, as TI vêm sendo paulatinamente redistribuídas pelo governo brasileiro
a seus primeiros habitantes. Há quem ache essa medida desproporcional, sob a alegação de
ser muita terra para pouco índio - pois os indígenas, 0,4% da população total, ocupam 12,5%
do território nacional. Essa percepção desconsidera que os indígenas ocupavam as terras antes
que fossem deles tomadas e sua população dizimada por conta de invasões territoriais secu-
lares, assim como o valor simbólico da terra para esses povos e o fato de não ser, para eles,
propriedade privada, mas bem comum para usufruto e sustento coletivo.

A terra é para o indígena de uma importância vital. Privado dela, chega a perder o sentido da
própria existência, fundada na relação com a natureza. Assim como outros povos em território
brasileiro, os Guarani habitantes de regiões fronteiriças da Argentina, Brasil e Paraguai têm

35
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

sofrido por não poderem interagir com a mata, a fauna, a água, que, no seu entender, são
sagradas e habitadas por seres sobrenaturais. Nessa região, como em muitas outras do país, as
terras têm servido a largas plantações de monocultura, desprovidas de suas árvores e vegeta-
ção natural (AZEVEDO, 2008; SILVA GUARANI-KAIOWÁ, 2012).

Diante dessa situação, restou aos índios o trabalho como mão-de-obra de exploração de terras
que, para eles, são plenas de significado, e do trabalho em indústrias de álcool e açúcar, com
denúncias de condições de semiescravidão e escravidão. Um dos resultados dessa situação
perversa é o alto índice de suicídios nessa população, que, desamparada socioeconomicamen-
te, vê seus alicerces religiosos, morais e culturais se esfacelarem.

Esse quadro aponta a urgência de se promoverem políticas de acomodação dos povos indíge-
nas em TI com o cuidado de não os alocar em terras inadequadas a uma sobrevivência digna
(como tem ocorrido em terras de extensão insuficiente, inférteis, cortadas por estradas, não
servidas por águas, ou com as quais o povo não tem vínculo cultural, entre outros problemas).

O governo federal estabeleceu para si o ano de 1978 como prazo para concluir a demarcação
de TI no Brasil. Esse processo é fundamental para a defesa da posse da terra, que é então
oficialmente reconhecida e sinalizada, em seus limites, como patrimônio da União para uso
indígena, com vistas a evitar sua invasão por terceiros. Mais de trinta anos depois, o processo
ainda está em andamento, em luta contra forças políticas, sociais, econômicas.

São diversas as etapas que compõem o processo de demarcação territorial, e também muitos
os entraves que a eles se opõem. Contudo, o fortalecimento da identidade indígena e a conse-
quente melhoria da autoestima coletiva têm favorecido a luta pelo direito às terras, possibili-
tando a muitos povos a própria redescoberta.

O diferencial para garantir as TI ocorre na demarcação, que diferencia as terras delimitadas


das homologadas, estas, já oficializadas e em situação mais estável. Em 2010, havia 505 TI no
território nacional, 80% delas já regularizada:

Etapas Do Processo de Demarcação de Terras Indígenas

Em estudo: terras submetidas a estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais


que fundamentem sua delimitação
Delimitadas: terras com estudos concluídos e publicados no Diário Oficial da União pela FUNAI, em
processo de análise pelo Ministério da Justiça para expedição de Portaria Declaratória da Posse Tradicional
Indígena
Declaradas: terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória e estão autorizadas para serem
demarcadas
Homologadas: terras que foram demarcadas e tiveram seus limites homologados pela Presidência da
República;
Regularizadas: terras com limites homologados, registradas em cartório em nome da União e no Serviço
de Patrimônio da União
Reservas indígenas: terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, distintas das
de posse tradicional e, portanto, não sujeitas aos procedimentos anteriores

Figura – Demarcação de terras indígenas.


Fonte: IBGE, 2010, p.16.

36
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Terras indígenas
Situação fundiária
Número Superfície (ha)
Total 505 106.739.926

Declarada 49 2.689.068

Homologada 27 4.761.768

Regularizada 405 99.240.743

Em processo de aquisição como


24 48.347
Reserva Indígena

Tabela – Demarcação de terras indígenas.


Fonte: Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Apud IBGE, 2010, p.17.

Além da lentidão do governo em garantir aos indígenas o direito à terra, outro problema que
esses povos enfrentam é que parte das terras regularizadas e já ocupadas não estão em posse
plena dos povos indígenas, dificultando assim a proteção do espaço e das etnias presentes e
descaracterizando o espaço demarcado.

Atualmente, há TI em todo o território nacional em diferentes situações jurídicas, como indi-


cado no mapa, que explicita sua presença majoritária na região norte do país:

Situação fundiária
Declaradas homologadas, regularizadas
e encaminhadas como reserva indígena
Em estudo e delimitadas
Grandes regiões
Centro-Oeste Sudeste
Nordeste Sul
Norte
Limite da Amazônia Legal

Figura – Mapa com a situação fundiária no Brasil.


Fonte: Fundação Nacional do Índio - FUNAI. Apud IBGE, 2010, p.18.

37
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

A maior concentração de TI ocorre na região amazônica, Maranhão e Mato Grosso, área tam-
bém conhecida por Amazônia Legal, delimitada como ação política para melhor controle e
preservação ambiental e promoção de desenvolvimento socioeconômico sustentável. Trata-se
da localidade original de inúmeras etnias que hoje abriga mais de 50% da população indígena
brasileira, habitando as maiores TI existentes. Em outras áreas do país, à exceção do Mato
Grosso do Sul, as porções de terras apresentam extensão expressivamente inferior.

“Privar o índio da terra é condená-lo à extinção”9


Após séculos de destruição da natureza no Brasil, com desmatamentos, caça, pesca, extrações
minerais e outras atividades realizadas de modo indiscriminado pelo não-índio, somada à
forma injusta com que foram tratados os indígenas, vem-se tentando minimizar os prejuízos
impostos a essa população.

De acordo com a Constituição Federal (1988), são consideradas terras de índios aquelas que
são “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as
necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art.
231, parágrafo 1º). O texto constitucional é claro quanto ao respeito nacional à população in-
dígena e sua diversidade étnica. Falta, ainda, que as políticas de distribuição de TI se tornem
mais eficientes e capazes de assegurar o direito de uso e permanência do indígena em suas
terras, para que os preceitos da lei possam se tornar efetivos direitos.

Referências
AZEVEDO, Marta et alii. Mapa Guarani retã 2008: povos guarani na fronteira Argentina,
Brasil, Paraguai. UNaM, ENDEPA; CTI, CIMI, ISA, UFGD; CEPAG, CONAPI, SAI, GAT,
SPSAJ, CAPI, 2008. Disponível em http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/
caderno_guarani_%20portugues.pdf

JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma nova introdução. São Paulo, Educ, 2008.

PAGLIARO, H; AZEVEDO, M.M.; SANTOS, R.V. Demografia dos povos indígenas no Brasil: um
panorama crítico. In: ______; _______; ______. (Org.). Demografia dos povos indígenas no Brasil.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ABEP, 2005. p. 11-32.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil


moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

SILVA GUARANI-KAIOWÁ, Marina. Nós, guaranis-kaiowás. In: O Estado de São Paulo, São
Paulo, 28 out. 2012. Caderno Cultura. Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/
geral,nos-guaranis-kaiowas,952159

9 Disponível em JUNQUEIRA, 2008, p.81.

38
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

AULA 4
Territorialidade e povos indígenas:
dados gerais sobre a demografia
Parte II

Das matas à cidade: o indígena busca seu lugar


As lutas indígenas pela garantia de territórios têm em vista assegurar a seus povos um lugar e
vida dignos, condizentes com sua história e cultura. O que se observa, porém, é que, mesmo
em TI, esses povos estão vulneráveis a invasões e mudanças infra-estruturais do entorno, como
a construção de estradas e hidrelétricas, ficando à mercê de interesses alheios. Negligenciados
pelo Estado e muitas vezes em condição de miséria, eles são assediados a oferecer recursos de
suas terras em troca de produtos e favores. Muitos vão para as cidades à procura de uma alter-
nativa supostamente melhor, impelidos pela pobreza de seu local de origem e pela dificuldade
em desenvolver o trabalho agrícola. Como efeito desse movimento, hoje a população indígena
urbana, em particular fora de TI, é expressiva:

População indígena
Localização do domicílio
Total Urbana Rural
Total percentual 100% 36,2% 63,8%

Total absoluto 896.917 324.834 572.083

Terras indígenas 517.383 25.963 491.420

Fora de terras indígenas 379.534 298.871 80.663

Tabela - População indígena segundo a localização do domicílio


Fonte: baseado em IBGE, 2010, p. 67.

Em torno de 300 mil pessoas, 71% desse grupo é composto majoritariamente por adultos na
faixa dos 15 aos 64 anos. Esse alto índice se deve a baixas natalidade e mortalidade nesse grupo
(IBGE, 2010), além de corresponder a uma parcela da população que provavelmente migrou
para trabalhar, concentrando-se, portanto, na fase adulta. Dada a precariedade socioeconômica

39
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

de grande parte desses povos e à pouca hospitalidade das cidades, muitos indígenas têm como
opção instalar-se em favelas e zonas periféricas, acentuando-se sua condição social de risco.

Alguns municípios brasileiros têm populações indígenas elevadas considerando-se o total das
áreas rural e urbana:

Município – Estado População


São Gabriel da Cachoeira – AM 29.017

São Paulo de Olivença – AM 14.974

Tabatinga – AM 14.855

São Paulo – SP 12.977

Santa Isabel do Rio Negro – AM 10.749

Benjamin Constant – AM 9.833

Pesqueira – PE 9.335

Boa Vista – RR 8.550

Barcelos – AM 8.367

São João das Missões - MG 7.936

Tabela - Municípios com as maiores populações indígenas do País (rural e urbana)


Fonte: IBGE, Censo 2010. Disponível em http://indigenas.ibge.gov.br/gráficos-e-tabelas-2

É notável a prevalência do Norte brasileiro, principalmente do Amazonas, na concentração


populacional indígena em números absolutos e proporção - a exemplo de São Gabriel da Ca-
choeira, cuja população indígena corresponde a 85% da população total. Os indígenas dessa
região residem principalmente em área rural, como mostra o gráfico a seguir:

300.000

250.000

200.000
Urbana

150.000
Rural
100.000

50.000

0
e

rte

l
Su
est

est

est
No
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o-O
Su
No

ntr
Ce

Gráfico - População indígena nas áreas urbana e rural do Brasil, por região.
Fonte: Fundação Nacional do Índio – FUNAI10.

10 Disponível em http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao?start=3#

40
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

As regiões brasileiras apresentam-se bastante diversificadas quanto à proporção populacional


nas áreas rural e urbana, fruto das diferentes realidade e história indígenas de cada localidade.
O Norte acompanha a distribuição do Centro-Oeste, porém, com número absoluto de habitan-
tes bastante superior, certamente devido à ampla extensão de TI na Amazônia. Já o Nordeste
e o Sul, respectivamente com o maior e menor índice de residentes urbanos, apresentam equi-
líbrio nos dois tipos de localização domiciliar. Divergindo dessas tendências, o Sudeste tem a
maior proporção de indígenas em área urbana, com baixo índice no meio rural.

A população indígena em São Paulo


A maior presença de população indígena em áreas urbanas na região Sudeste provavelmente
ocorre por ser uma região altamente industrializada e, desse modo, concentrar maior oferta
de trabalho nas cidades, onde recebe indígenas locais e de outras regiões. Fechando o foco
para nosso campo de interesse maior, destacaremos o estado de São Paulo, que apresenta alta
concentração indígena urbana, como observado também na região:

Total Urbano Rural


Município Pop. Município Pop. Município Pop.
São Paulo 12.977 São Paulo 11.918 São Paulo 1.059

Guarulhos 1.434 Guarulhos 1.434 Avaí 542

Campinas 1.043 Campinas 1.021 Miracatu 164

São Bernardo do São Bernardo do


778 771 Arco-Íris 156
Campo Campo

Santo André 575 Santo André 575 Ubatuba 156

Ribeirão Preto 565 Ribeirão Preto 562 Sete Barras 135

Sorocaba 558 Sorocaba 552 Braúna 131

Avaí 557 Osasco 537 Pariquera-Açu 96

Osasco 537 Guarujá 481 Bertioga 92

Guarujá 481 Santos 468 Barão de Antonina 86

Tabela - Municípios paulistas com maior população indígena (2010)


Fonte: IBGE, 201011.

Os municípios indicados na tabela, com mais alta população indígena no estado, distribuem-
-se em quatro áreas:
• Oeste paulista (Barão de Antonina, Braúna, Ribeirão Preto, Avaí, Arco-Íris, Campinas,
Sorocaba);

11 Disponível em http://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2

41
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

• Litoral norte paulista (Bertioga, Santos, Guarujá, Ubatuba);


• Litoral sul paulista (Miracatu, Sete Barras, Pariquera-Açu);
• Grande São Paulo (São Paulo, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Santo André, Osasco).

A presença indígena nas duas áreas litorâneas faz-se evidente já nos nomes dos municípios: à
exceção de “Santos” e “Sete Barras”, todos os outros recebem nomes tupi. No caso dos muni-
cípios do interior e da Grande São Paulo ocorre o oposto, sendo o nome indígena exceção (em
“Guarulhos”, “Braúna” e “Sorocaba”).

Os dados mostram que a maior concentração urbana indígena no estado se encontra na área
metropolitana de São Paulo, conhecida por ter uma população bastante heterogênea quanto
a suas origens. No que se refere à presença indígena atual, tanto pode se tratar de geração
descendente de nativos locais, dos aldeamentos da época do Brasil colônia, como de indígenas
provenientes de outras localidades em busca de melhor qualidade de vida e oportunidade de
trabalho. Em maior ou menor grau, há indígenas em todos os bairros paulistanos:

Figura – População indígena nos distritos da cidade de São Paulo.


Fonte: Instituto Socioambiental, 201512

12 Disponível em http://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/ibge-detalha-dados-sobre-
povos-indigenas. Acesso em 10 jan 2015.

42
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Dentro dos limites da capital há três terras indígenas Guarani, nas áreas sinalizadas em mar-
rom escuro no mapa acima: Krukutu, Tenondé-Porã (ambas em Parelheiros, zona sul) e Jara-
guá (no Jaraguá, zona norte). A primeira delas é demarcada e as comunidades Tenondé-Porã
e Jaraguá têm se mobilizado para também conseguir a demarcação de suas terras.

De norte a sul do Brasil, os indígenas têm reivindicado espaços onde possam se desenvolver.
Infelizmente, por vezes eles não os têm conseguido, acarretando sua dispersão para cidades,
violentas e pouco familiares, fenômeno acentuado em São Paulo. É impossível apagar os da-
nos históricos impingidos a tantos, não só indígenas, em nossa sociedade, mas podemos espe-
rar que a urbanidade hostil, que só aceita quem cabe em sua forma, converta-se em espaço de
paz e tolerância, onde se comece a redimir desigualdades e multiplicar a diversidade.

SAIBA MAIS
A reportagem da revista Carta Capital indicada no link abaixo informa
sobre a realidade da menor aldeia brasileira, a Tekoá Pyaú, localizada
na zona norte da cidade de São Paulo. Leia a reportagem e entenda
um pouco mais sobre como o problema territorial afeta a manutenção
da cultura indígena e a qualidade de vida dessa população.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/
indigenas-vivem-situacao-precaria-dentro-de-sao-paulo-1996.html

PARA REFLETIR
A aldeia Tenondé-Porã localiza-se na cidade de São Paulo, em
Parelheiros. Conheça um pouco sobre as necessidades e reivindicações
desse povo:
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HrHOZOJa5xQ

SAIBA MAIS
No site do IBGE você pode visualizar dados de localidades
paulistanas como Jaraguá e Krukutu, acessando inclusive dados
sobre alfabetização e uso de língua indígena. O que acha de conhecer
um pouco mais a respeito dessas comunidades?
Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/terrasindigenas/

43
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Referências
AZEVEDO, Marta et alii. Mapa Guarani retã 2008: povos guarani na fronteira Argentina,
Brasil, Paraguai. UNaM, ENDEPA; CTI, CIMI, ISA, UFGD; CEPAG, CONAPI, SAI, GAT, SPSAJ,
CAPI, 2008. Disponível em http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/
caderno_guarani_%20portugues.pdf

JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma nova introdução. São Paulo, Educ, 2008.

PAGLIARO, H; AZEVEDO, M.M.; SANTOS, R.V. Demografia dos povos indígenas no Brasil: um
panorama crítico. In: ______; _______; ______. (Org.). Demografia dos povos indígenas no Brasil.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ABEP, 2005. p. 11-32.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil


moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.

SILVA GUARANI-KAIOWÁ, Marina. Nós, guaranis-kaiowás. In: O estado de São Paulo. São
Paulo, 28 out. 2012. Caderno Cultura. Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/
geral,nos-guaranis-kaiowas,952159

44
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

AULA 5
A classificação dos povos indígenas pela
diversidade linguística: troncos e famílias
linguísticas
Parte I

A diversidade linguística em terras brasileiras


Contígua à biodiversidade nativa do Brasil, desenvolveu-se ampla diversidade linguística ma-
nifesta entre os povos que aqui habitavam. Assim como aquela é de extrema importância para
a vida biológica da sociedade local e do mundo, essa é fundamento da vida cultural, elemento
essencial e distintivo do modo de ser dos grupos humanos.

As línguas nativas brasileiras são tão diversas quanto as histórias e culturas das etnias em que
circulam e que, por associação, representam. A multiplicidade de formas de expressão e de
organização dos conteúdos comunicados não é restrita ao aspecto estrutural da língua; trata-
-se de uma multiplicidade de visões de mundo, com lógicas e concepções próprias. Embora o
reconhecimento da heterogeneidade linguístico-cultural seja antigo, sua valorização é recen-
te. Por sinal, desde o século XVI ao início do XX foram extintos 85% das línguas brasileiras
(SEKI, 1999).

Estudos de linguística indígena, reunindo informações de pesquisadores que trabalham em


áreas distintas do Brasil, estimam a existência de cerca de 180 línguas indígenas no Brasil
atual (RODRIGUES, 1986; SEKI, 1999). O censo de 2010, primeiro levantamento oficial so-
bre indígenas, identificou 274 línguas (IBGE, 2010). A discrepância em relação aos números
apontados por linguistas provavelmente se deve à menção, pelos entrevistados do censo, de
variantes dialetais e de línguas que não são mais utilizadas, conforme observou o linguista
Aryon Rodrigues (PEREIRA JUNIOR, 2013).

De modo geral, índices populacionais e outras estatísticas referentes a povos indígenas são im-
precisos, pois afetados pelo deslocamento de povos, pelo alcance geográfico da pesquisa, pelo
risco constante de desaparecimento de etnias e línguas com poucos representantes. Apesar
de haver certa inconsistência nos resultados, é certo que a diversidade linguística brasileira é
bastante rica, com ao menos 180 línguas13 ainda vivas.

13 Adotamos aqui ao número de línguas indígenas identificado por linguistas no Brasil.

45
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

A classificação das línguas indígenas


As línguas humanas são analisadas, comparadas, relacionadas conforme suas semelhanças e
diferenças. Elas são classificadas como membros de uma mesma família quando compartilham
uma língua ancestral comum. O português ilustra essa relação ao lado do espanhol, italiano,
catalão, francês, romeno, entre outras línguas românicas, pertencentes à família do latim, do
qual são formas alteradas.

As línguas de uma mesma família apresentam semelhanças, pois são formas alteradas de uma
mesma língua original. Quando possível recuperar com maior recuo temporal as afinidades de
um conjunto de línguas, pode-se postular a existência de um tronco linguístico. O tronco con-
forma famílias linguísticas aparentadas de modo que, no interior de uma família, as línguas são
mais semelhantes do que línguas que compartilham o mesmo tronco, mas em famílias diferentes.

A tarefa de descobrir ou reconstruir a genética das línguas indígenas é dificultada pelo fato
de serem ágrafas e, em geral, não haver amostras de uso de épocas anteriores ao momento da
análise. Há alguns registros de estudiosos, principalmente com objetivo missionário, como as
obras publicadas nos séculos XVI e XVII de autoria do padre José de Anchieta e de Luís Figuei-
ra, sobre o tupi antigo, e de Luis Vincencio Mamiani, sobre o quiriri.

Esses registros históricos são muito importantes para o estudo da classificação das línguas e
conhecimento de seu estágio anterior, em especial no caso do quiriri, hoje extinto. Contudo,
devem ser usados com muita cautela, visto que nenhum deles foi escrito por falante nativo,
consistindo em descrições segundo uma ótica diversa daquela em que a língua descrita foi
concebida. Infelizmente, o fato de percebermos preconceitos do passado não nos livra dos mo-
dernos. Serve, porém, de alerta para sermos mais cuidadosos quanto à forma como pensamos
a sociedade e nela agimos.

O tronco Tupi
De acordo com estudiosos da área, as línguas indígenas brasileiras podem ser classificadas em
dois troncos: Tupi (que estudaremos nesta aula) e o Macro-Jê (tema da próxima aula), e em
diversas famílias linguísticas independentes, que aparentemente não derivam deles (ou cuja
relação com as línguas desses troncos não pôde, ainda, ser recuperada).

A distribuição que apresentaremos a seguir mostra a formação do tronco tupi explicitando


suas famílias e número de línguas que integra cada uma delas:

46
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Mondé
Jurúna 7 línguas
1 língua
Aweti
1 língua

Tupi Guarani
21 línguas

Tronco Ramaráma
2 línguas

Mundurukú
2 línguas
Tupi Tupari
3 línguas

Arikém
1 língua
Puruborá
Mawé 1 língua
1 língua

Figura – Formação do tronco tupi.


Fonte: MONTSERRAT, 2000.

O tronco tupi é formado por dez famílias, cada qual com uma variedade de línguas. Algumas
comportam uma única língua em seu grupo. A mais representativa delas, que dá nome ao
tronco, é a tupi-guarani, composta por 21 línguas diferentes, mas similares entre si. A afini-
dade que as aproxima pode ser claramente percebida na comparação das palavras de cinco
línguas tupi-guarani no quadro abaixo:

Guarani Mbya Tapirapé Parintintín Wayampí Língua Geral


(Paraná) (Araguaia) (rio Madeira) (Amapá) (Amazonas)
pedra itá itã itá takúru itá

fogo tatá tãtã tatá táta tatá

jacaré djakaré txãkãré djakaré iakáre iakaré

pássaro gwyrá wyrã gwyrá wýra wirá

onça djagwareté txãwãrã dja’gwára iáwa iawareté

ele morreu omanõ amãnõ omanõ ománo umanú

mão dele ipó ipá ipó ípo Ipú

Tabela – Comparação de palavras em cinco línguas diferentes.


Fonte: RODRIGUES, 1986, p.32.

47
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Mesmo não sendo possível explorar outros aspectos a partir do quadro, vale destacar que a
análise de parentesco linguístico pode considerar, além da semelhança de palavras, elementos
fonéticos, morfológicos e sintáticos. É significativa a semelhança vocabular entre as línguas
apresentadas, apesar da distância geográfica existente entre os povos que as falam.

As línguas dessa família ocupam vasta área do território nacional, desde o sul até o norte, com
destaque para a Amazônia, onde se concentra a maior parte da população indígena brasileira.
Na época da chegada dos portugueses, o tupi ficou conhecido como a língua falada na costa
do Brasil, e ainda hoje é presente nessa região.

Distribuição geográfica das línguas do tronco Tupi


A imagem de difusão das línguas tupi no Brasil atual
é herança do espalhamento do tupi antigo durante o
período colonial. Já no século XVII havia se converti-
do em língua geral14, variedade que era aprendida por
outros povos (portugueses, africanos, índios não tupi)
para comunicação cotidiana.

A amplitude da dispersão deve-se principalmente ao


costume migratório da família tupi-guarani, ainda man-
tido pelos Guarani-Mbyá. Esses povos deslocam-se do
nordeste do Brasil, Argentina e Paraguai para o litoral
leste brasileiro (RODRIGUES, 1986), região onde os co-
lonizadores os encontraram pela primeira vez no país.
São, por isso, os maiores responsáveis pelo espalhamen-
to de seu idioma no sul e sudeste brasileiros e em países
vizinhos.

Figura – Costume migratório.

Conhecer para respeitar Fonte: MELATTI, 2007, p.62.

Apesar das inúmeras dificuldades e sofrimentos até hoje impostos aos indígenas brasileiros,
esses povos têm mostrado sua resistência. Seu modo de ser diverso do não-índio, enquanto
visto com estranhamento, reforça a distância entre eles, distância que por séculos tem alimen-
tado postura opressora e culturalmente homogeneizante. Linguisticamente, essa distância se
manifesta na priorização do português e no desprestígio das línguas nativas brasileiras, com
prejuízo para a identidade de seus falantes.

Ao utilizar sua variedade linguística materna para se comunicar, os indivíduos, bem como seu
grupo, sentem-se reconhecidos e valorizados, pois podem se expressar com as formas mais
adequadas a seu pensamento e visão de mundo. A depreciação de uma língua afeta direta-

14 A discussão sobre língua geral será aprofundada no módulo 3.

48
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

mente o sentimento de autoestima individual e coletiva, criando um lugar discursivo de sub-


missão, passividade e dependência do produtor da variedade prestigiada (RODRIGUES, s/d).

Somente no mosaico linguístico-cultural de nossa sociedade, com nossa heterogeneidade de-


clarada, é que poderemos encontrar e reconhecer os afetos, forças, criatividade e oportunida-
des necessários para a construção de uma sociedade mais tolerante e agregadora.

Para aprofundar a reflexão sobre a diversidade linguística indígena e a necessidade de políti-


cas que a favoreçam, sugerimos a leitura de trecho do artigo “Línguas indígenas: 500 anos de
descobertas e perdas”, do linguista Aryon Rodrigues:

SAIBA MAIS
A situação das línguas indígenas brasileiras é extremamente grave,
seja do ponto de vista da perda do conhecimento linguístico e cultural
que o desaparecimento de qualquer língua implica, seja do ponto
de vista da desintegração social e espiritual de cada um dos povos
que, com a perda da língua sob pressão externa, têm destruídos
seus valores tradicionais sem tempo para a incorporação ou o
desenvolvimento de novos valores, o que os leva ao empobrecimento
e à marginalização social. Para atalhar o curso das perdas ocorridas
neste meio milênio de confronto entre indígenas e alienígenas nesta
parte do mundo, fazem-se necessárias ações enérgicas e urgentes,
tanto de política social quanto de política científica, para assegurar
o equilíbrio mínimo imprescindível para a sobrevivência sadia das
minorias em convívio com a sociedade majoritária e para salvar,
para os próprios povos indígenas e para a ciência humana, o
conhecimento das duzentas línguas que ainda sobrevivem e cuja
preservação é irrecusavelmente a obrigação de todos nós, linguistas
ou não, que temos condições de perceber a importância das línguas e
a gravidade da situação a que foram levadas as minorias linguísticas
indígenas. (RODRIGUES, 1993, p.100-101, apud ANGELIS, 2014,
p.510-511)

PARA REFLETIR
Veja como a depreciação sociocultural de uma língua a coloca em
alto risco de extinção:
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wABxKHEcV74

49
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Referências
ANGELIS, Wilmar de Sousa. Aryon Rodrigues: 70 anos dedicados à Linguística e às Línguas
Indígenas. DELTA, São Paulo, v. 30,  n. spe, p.503-512, 2014. Disponível em http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502014000300503&lng=en&nrm=i
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IBGE. Censo Demográfico 2010: Características gerais dos indígenas. Rio de Janeiro, Censo
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JUNQUEIRA, Carmen. Antropologia indígena: uma nova introdução. São Paulo, Educ, 2008.

PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. Línguas retornam das cinzas. Revista Língua Portuguesa. São
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RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas


indígenas. São Paulo, Edições Loyola, 1986.

RODRIGUES, Giovana de Sousa. Política linguística para a diversidade: uma política cultural.
s/d. Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/
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URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo, Ed.Schwarcz, 1992, p.87-102.

50
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

AULA 6
A classificação dos povos indígenas pela
diversidade linguística: troncos e famílias
linguísticas
Parte II

A classificação das línguas no Brasil colônia


À época da colonização do Brasil, os portugueses recém-chegados interpretaram as sociedades
brasileiras nativas como integrantes de dois grandes grupos: os Tupi15, habitantes do litoral,
com os quais realizaram o primeiro contato; e os Tapuia, habitantes das áreas mais interiores
do continente. Essa classificação foi influenciada de forma tendenciosa por rivalidade dos
próprios Tupi com relação a outros grupos indígenas.

O termo “Tapuia”, que em tupi significa “inimigo, bárbaro”, remetia a um conjunto de grupos
indígenas muito diverso, sendo impróprio não fazer entre eles nenhuma distinção. Além do
problema de ser tratado por conceito generalizante, o Tapuia era estigmatizado como catego-
ria inferior de indígena, tido como bravo, bárbaro, selvagem (MONTEIRO, 2001) e de língua
“travada” (MATTOSO CÂMARA JR, 1967, p.99).

Do mesmo modo eram classificadas as línguas desses dois blocos indígenas: ao passo que as
línguas tupis se assemelhavam, as tapuias eram muito diversas umas das outras. Essa visão
dual dos indígenas brasileiros e suas línguas começou a ser superada apenas no século XIX,
com as observações do pesquisador alemão Von Martius, quem primeiro identificou a família
Jê e classificou a língua bacairi na família caribe (MELATTI, 2007, p.59). Com o passar dos
anos, o termo “Tapuia” acabou caindo em desuso.

15 O grupo aqui designado como “Tupi” era formado por alguns povos da família linguística tupi-guarani e
teve como principal modelo os Tupinambá, povo com quem os colonizadores travaram os primeiros contatos
(MONTEIRO, 2001, 0.18). Esse momento histórico será tratado mais detidamente na aula 1 da disciplina “Breve
introdução à história das línguas no Brasil”, no módulo 3.

51
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Nem Tupi, nem Tapuia: o tronco Macro-Jê


O que se entendia, até o século XVIII, como línguas tapuia, não possibilitava uma classificação
coerente do conjunto de línguas que tal designação abarcava. A partir da família Jê, extraída
das anteriormente chamadas tapuia, foi possível caminhar rumo a uma nova classificação e
à postulação do tronco Macro-Jê. Ainda hoje, as relações genéticas de línguas do tronco Ma-
cro-Jê são menos esclarecidas do que no tronco Tupi, este já bastante explorado por estudos
linguísticos. O tronco Macro-Jê é composto por nove famílias linguísticas, das quais se destaca
a Jê, com maior número de línguas aparentadas:

Karajá
3 línguas

8 línguas Yatê
1 língua

Botocudo
1 língua Tronco Maxakalí

Macro-Jê
3 línguas

Ofayé
1 língua Rikbaktsa
1 língua

Bororo
Guató
2 línguas
1 língua

Figura – Tronco Marcro-Jê


Fonte: MONTSERRAT, 2000.

As línguas Macro-Jê apresentam correspondências fonológicas e vocabulares. Dentre as seme-


lhanças gramaticais, destacam-se:
• a relação entre objeto e possuidor é marcada por elemento gramatical antecedente ao
objeto
• a distinção de duas terceiras pessoas possuidoras, uma reflexiva e a outra não (na maioria
das línguas)

Ex: João machucou a mão dele (dele = de José)

João machucou a mão dele mesmo (dele = a própria mão) (RODRIGUES, 1986, p.54)

52
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

A família Jê, maior representante do tronco, é encontrada no planalto brasileiro – ao contrário


da família Tupi-Guarani, que ocupa regiões de floresta tropical e subtropical (RODRIGUES,
1986; MELATTI, 2007):

Figura - Tronco Macro-Jê.


Fonte: MELATTI, 2007, p.65.

Por representar um possível passado comum entre povos, uma área linguística pode indicar a
existência de outros elementos de cultura compartilhados na região, o que serve de pista para
o pesquisador. Contudo, essa correspondência não é certa, pois elementos da cultura material,
econômica, cerimonial e social difundem-se mais rapidamente do que a língua (SEKI, 2011).

Somando-se às famílias linguísticas dos troncos Tupi e Macro-Jê, há famílias sem tronco co-
mum identificado:

Família n.º de línguas Família n.º de línguas


Karib 21 Pano 13

Aruák 17 Txapakúra 3

Arawá 7 Nambikwara 3

Katukina 4 Tukano 11

Múra 2 Yanomami 4

Guaikuru 1 Maku 6

Tabela – Famílias sem tronco


Fonte: Seki, 2011.

53
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

As famílias Karib e Aruák são as maiores, com 21 e 17 línguas cada uma. Localizam-se na
região norte e Mato Grosso. As outras famílias encontram-se fora do curso principal da bacia
amazônica, em sua periferia.

Família Aruaque Famílias Carib e Arauá

Famílias Ianomâmi, Tucano e Pano Famílias Txapacura, Nambiquara, Guaicurus

Figura – Famílias Indígenas.


Fonte: MELATTI, 2007, p. 68.

54
Disciplina: A sociodiversidade indígena no Brasil

Como se vê nos mapas acima, a área linguística indicativa da presença de línguas brasileiras
avança os limites do território nacional. Esse fato é comum em regiões de fronteira, de tal
modo que cerca de 30 das línguas indígenas brasileiras também são faladas nos países vizi-
nhos. (LUCIANO, 2006, p.117)

Além de famílias linguísticas de cuja relação não se depreende um tronco comum, há as


línguas isoladas, das quais não se supõe relação genética com outras línguas. No final do sé-
culo XX, sabia-se da existência de dez línguas isoladas no Brasil (MONTSERRAT, 1998). Elas
apresentam grande risco de extinção por terem poucos falantes - à exceção do Tikuna, língua
indígena com maior número de falantes:

Línguas isoladas
Aikaná (RO) Mky (MT)

Koaiá (RO) Trumái (MT)

Kanoê (RO) Awakê (RR)

Jabuti (RO) Máku (RR)

Arikapú (RO) Tikuna (AM)

Tabela – Línguas isoladas.


Fonte: Montserrat, 1998.

É provável que as línguas da mesma família das atuais línguas isoladas tenham sido extintas sem
deixar registro, inviabilizando a recuperação de suas relações de parentesco com outras línguas.

Reconhecendo as línguas do Brasil


A análise da classificação das línguas indígenas brasileiras evidencia a enorme variedade que
apresentam, contributo ao patrimônio cultural do Brasil e da humanidade. Evidencia também
lacunas na articulação de línguas e de famílias linguísticas que remetem ao genocídio humano
e cultural aqui ocorrido. A despeito de a história das línguas do mundo ser “uma história de
sucessivas multiplicações” (RODRIGUES, 1986, p.18), são muitos momentos de subtrações.

Para mudar esse histórico, é necessário desacomodar. Desestruturar a hierarquia cultural e dar
centralidade às culturais locais, revalorizando as línguas indígenas e nos desfazendo de gene-
ralizações e preconceitos que se reapresentam e, ainda hoje, nos separam em tupis e tapuias.

SAIBA MAIS
Para conhecer mais detalhadamente a classificação das línguas
brasileiras segundo sua genética, veja o esquema do link abaixo:
Disponível em: http://treinamento.folhasp.com.br/linguasdobrasil/
arvores.html

55
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Referências
LUCIANO. Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

MATTOSO CÂMARA Jr., Joaquim. Introdução às línguas indígenas brasileiras. Rio de


Janeiro, Ao Livro Técnico S.A., 1977.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo, Edusp, 2007.

MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e historiadores: estudos de história indígena e do


indigenismo. Tese de Livre Docência. Departamento de Antropologia. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2001. Disponível em http://www.
ifch.unicamp.br/ihb/estudos/TupiTapuia.pdf. Acesso em 10 fev. 2015.

MONTSERRAT, Rosa Maria Fonini. Línguas indígenas no Brasil contemporâneo. In: GRUPIONI,
Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. 4ª ed. São Paulo, Global; Brasília, MEC, 2000,
p. 93-104.

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas


indígenas. São Paulo, Edições Loyola, 1986.

SEKI, Lucy. Alto Xingu: uma área linguística? In: FRANCHETTO, Bruna (org.). Alto Xingu:
uma sociedade multilíngue. Rio de Janeiro, Museu do Índio/Funai, 2011. Disponível em
http://www.etnolinguistica.org/xingu:p57-85. Acesso em 10 fev. 2015.

URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuela
Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo, Ed.Schwarcz, 1992, p.87-102.

56
DISCIPLINA
ASPECTOS LINGUÍSTICOS
DA CULTURA INDÍGENA
Autora: Indaiá de Santana Bassani
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Apresentação
Nas primeiras três aulas desta disciplina, estudaremos diversos termos usados em referência
aos povos e indivíduos indígenas. Exploraremos suas definições mais simplificadas, associa-
das sempre ao uso popular do termo, mas teremos como objetivo final discutir as comple-
xidades que estão escondidas em cada uso. Buscaremos, também, discutir os estereótipos e
preconceitos gerados e/ou associados a tais simplificações. Apresentaremos importantes con-
ceitos, como etnia, raça, aculturação a partir de diferentes estudiosos e lideranças indígenas.
Nas aulas de 4 a 6, abordaremos a questão dos direitos linguísticos como parte dos direitos
indígenas. Iremos explorar a ideia de direito linguístico como um direito universal, passan-
do pelo estudo da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos da UNESCO, até chegar ao
caso específico das línguas indígenas no Brasil. Como objetivo final, buscaremos refletir sobre
como as políticas linguísticas e a educação escolar indígena atuam ou podem atuar na garan-
tia de tais direitos.

Sobre a autora
Indaiá de Santana Bassani possui bacharelado em letras (por-
tuguês e linguística - 2002-2006), licenciatura em português
(2006-2007), mestrado em linguística (2007-2009) e doutorado
na mesma área (2009-2013) pela Universidade de São Paulo,
com estágio Sanduíche na Universidade da Pensilvânia (jan-
-dez/2012). Atua nas áreas de morfologia e suas interfaces com
a sintaxe (estrutura argumental), semântica verbal e fonologia.
Atualmente é professora Adjunto A-I no curso de Letras da Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

58
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

_____________________________________________________

AULA 1
Terminologias utilizadas para conhecer os
povos indígenas: povos, tribos,
comunidades, etnias

Terminologias utilizadas para conhecer os povos


indígenas: povos, tribos, comunidades, etnias
Nesta primeira aula do conjunto de três aulas sobre as terminologias utilizadas para conhecer
os povos indígenas, discutiremos o uso dos termos povos, tribos, comunidades e etnias. A
existência desses quatro termos - povos, tribos, comunidades, etnais - para nos referirmos a
conjuntos de indivíduos indígenas, já é por si só reveladora de complexidade.

No entanto, quando os navegadores europeus chegaram ao continente americano, acharam


que haviam chegado à Índia e, por isso, denominaram simplesmente de índios todos os habi-
tantes que aqui habitavam. Mesmo notando o erro de localização posteriormente, continua-
ram chamando a todos aqueles que encontraram por tal nome. A singularidade e simplicidade
de tal nomenclatura ainda hoje revela e fomenta de certo modo a ignorância sobre a comple-
xidade que abrangia o território naquele momento. Todos os habitantes do continente Ameri-
cano, a despeito de suas diversas características físicas, culturas, línguas, tipos de organização
social, foram denominados índios, desde os incas até os tupinambá (MELATTI, 2007, p. 31).
Ameríndios é um outro termo utilizado hoje em referência aos conjuntos de indivíduos que
já habitavam há milhares de anos o território americano como um todo antes da chegada dos
europeus.

Carneiro da Cunha (2012), ao discutir a história indígena pré-colombiana no Brasil, afirma o


seguinte:

59
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

“Em suma, o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de um tecido social cuja trama,
muito mais complexa e abrangente, cobria provavelmente o território como um todo”
(2012, p. 13).

Povos indígenas
O termo povos indígenas pode se referir a uma pluralidade de conjuntos de pessoas que ha-
bitavam e habitam a extensão do continente americano. A arbitrariedade inicial do termo é
revelada quando confrontamos com a nomenclatura usada em outros lugares do mundo. Na
Austrália, por exemplo, chamam-se povos aborígenes ou aborígenes os conjuntos de pessoas
nativas do país e do continente (Oceania), instaladas antes da colonização. Contudo, esses
povos se apropriaram do termo indígena e hoje há uma busca pela retomada da identidade
indígena. Observemos a seguinte definição técnica das Nações Unidas de 1986, retirada de
Luciano (2006), seguida de alguns critérios de autodefinição elencados pelo autor:

“[...] as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com
uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi
desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da
sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras
seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada
como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais
e os sistemas jurídicos” (LUCIANO, 2006, p. 27).

Alguns critérios de autodefinição para povos indígenas:


• Continuidade histórica com sociedades pré-coloniais;
• Estreita vinculação com o território;
• Sistemas sociais, econômicos e políticos bem definidos;
• Língua, cultura e crenças definidas;
• Identificar-se como diferente da sociedade nacional;
• Vinculação ou articulação com a rede global dos povos indígenas.

Segundo o texto “Povos Indígenas1” do Instituto Socioambiental, falar em povos indígenas no


contexto brasileiro atual significa reconhecer o seguinte:

1 Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/quem-sao/povos-indigenas

60
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

• Nestas terras colonizadas por portugueses, onde viria a se formar um país chamado
Brasil, já havia populações humanas que ocupavam territórios específicos;
• Não sabemos exatamente de onde vieram; dizemos que são “originárias” ou “nativas”
porque estavam por aqui antes da ocupação européia;
• Certos grupos de pessoas que vivem atualmente no território brasileiro estão historica-
mente vinculados a esses primeiros povos;
• Os índios que estão hoje no Brasil têm uma longa história, que começou a se diferen-
ciar daquela da civilização ocidental ainda na chamada “pré-história” (com fluxos
migratórios do “Velho Mundo” para a América ocorridos há dezenas de milhares de
anos); a história “deles” voltou a se aproximar da “nossa” há cerca de, apenas, 500
anos (com a chegada dos portugueses);
• Como todo grupo humano, os povos indígenas têm culturas que resultam da história
de relações que se dão entre os próprios homens e entre estes e o meio ambiente; uma
história que, no seu caso, foi (e continua sendo) drasticamente alterada pela realida-
de da colonização;
• A divisão territorial em países (Brasil, Venezuela, Bolívia etc.) não coincide, neces-
sariamente, com a ocupação indígena do espaço; em muitos casos, os povos que hoje
vivem em uma região de fronteiras internacionais já ocupavam essa área antes da
criação das divisões entre os países; é por isso que faz mais sentido dizer povos indí-
genas no Brasil do que do Brasil.

Comunidades
Vimos acima que a definição das Nações Unidas usa como sinônimo povos e comunidades. Po-
demos afirmar que esse termo tem sido usado de um modo mais vago do que vimos para etnia
e tribo, que veremos adiante, e também de modo mais territorialista. O antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro discute o que define o pertencimento a uma comunidade indígena, enfa-
tizando as dificuldades em oferecer uma definição prática e cabal para o que é comunidade.
Vamos transcrever o trecho2 destacado a seguir:

2 Fonte: http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf

61
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

“ ‘Comunidade indígena’ é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou


vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações
sociais indígenas pré-colombianas.

1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as rela-


ções de afinidade, de filiação adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geral-
mente, definem-se nos termos da concepção dos vínculos interpessoais fundamentais
própria da comunidade em questão.
2. Os laços histórico-culturais com as organizações sociais pré-colombianas compreen-
dem dimensões históricas, culturais e sociopolíticas, a saber:

a. A continuidade da presente implantação territorial da comunidade em relação à


situação existente no período pré-colombiano. Tal continuidade inclui, em parti-
cular, a derivação da situação presente a partir de determinações ou contingências
impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migrações
forçadas, descimentos, reduções, aldeamentos e demais medidas de assimilação e
oclusão étnicas;

b. A orientação positiva e ativa do grupo face a discursos e práticas comunitários de-


rivados do fundo cultural ameríndio, e concebidos como patrimônio relevante do
grupo. Em vista dos processos de destruição, redução e oclusão cultural associados
à situação evocada no item anterior, tais discursos e práticas não são necessaria-
mente aqueles específicos da área cultural (no sentido histórico-etnológico) onde
se acha hoje a comunidade;

c. A decisão, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se


constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunhão nacional,
com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composição (modos de recru-
tamento e critérios de inclusão de seus membros) e negócios internos (governança
comunitária, formas de ocupação do território, regime de intercâmbio com a so-
ciedade envolvente), bem como de definir suas modalidades próprias de reprodu-
ção simbólica e material”.

Tribos
Dentre os povos indígenas, há diversos tipos de organização social e cultural, diversas etnias.
Apesar de o termo tribo estar sendo cada vez menos usado para se referir aos povos indígenas,
vamos discuti-lo em seguida. Comecemos por explorar as definições do termo tribo elencadas
pelo “Dicionário de Conceitos Históricos” de Silva e Silva (2006), em especial no que se refere
à organização social dos povos indígenas brasileiros.

62
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Para o senso comum


• O uso do termo tribo é carregado de etnocentrismo3. Consideram-se tribos as organizações "primitivas' de
povos que são historicamente subdesenvolvidos.

Surgimento do termo
• O termo se origina nas Ciências Sociais. É cunhado por antropólogos e pré-historiadores para designar um
dos quatro tipos de organização de sociedade "primitiva': bando, tribo, chefia e Estado antigo. Esse uso é
também etnocêntrico, pois baseia-se nas comunidades europeias ocidentais como modelos de desenvol-
vimento ideal.

Sanders e Marino (1971)


• a definição geral para uma tribo é "uma sociedade de agricultores sedentários, de no máximo alguns milhares
de pessoas, que possui vários clãs e não apenas uma única linhagem de parentesco. Apesar de haver diferenciação
de status entre seus membros, não tem nem uma estratificação social nem um chefe com poder de mando."
(SANDERS E MARINO, 1971 apud SILVA E SILVA, 2006)

Júlio César Melatti


• nas sociedades indígenas, tribo é considerada "um grupo de indivíduos que ocupam área contígua, falam uma
mesma língua e têm os mesmos costumes. E, além disso, possuem uma unidade de origem e um sentimento de
unidade que os identifica como pertencentes a uma tribo específica, em oposição a outras." (MELATTI,1993 apud
SILVA E SILVA, 2006)

Surgimento do termo
• O termo foi cunhado pelo antropólogo Vancher de Lapouge no início do séc. XIX para contrastar com a
noção de raça, entendida como as características hereditárias, associadas às características físicas, comuns
a um grupo de indivíduos. O conceito de etnia serviria então para referir "às características não abarcadas
pela raça, definindo etnia como um agrupamento humano baseado em laços culturais compartilhados".

Max Weber
• Max Weber fez uma distinção não apenas entre raça e etnia, mas entre etnia e Nação, entre o fim do
século XIX e o início do séc. XX. "Para ele, pertencer a uma raça era ter a mesma origem (biológica ou cultural),
ao passo que pertencer a uma etnia era acreditar em uma origem cultural comum. A Nação também possuía tal
crença, mas acrescentava uma reivindicação de poder político."

Nadel e Meyers Fontes


• Durante o séc. XX, os estudiosos Nadel e Meyers Fontes propuseram, segundo Silva e Silva, que: "uma
etnia é um grupo cuja coesão vem de seus membros acreditarem possuir um antepassado comum, além de
compartilharem uma mesma linguagem. Para essa definição, baseada em Weber, uma etnia seria um conjunto de
indivíduos que afirma ter traços culturais comuns, distinguindo-se, assim, de outros grupos culturais."

3 Etnocentrismo: “uma visão de mundo fundamentada rigidamente nos valores e modelos de uma dada cultura;
por ele, o indivíduo julga e atribui valor à cultura do outro a partir de sua própria cultura”. (SILVA E SILVA,
2006, p. 127)

63
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Como vemos, segundo essas definições, o termo etnia não está diretamente relacionado à
relação biológica comprovada ou às características físicas comuns e evidentes, mas é antes
uma etnia um conjunto de pessoas que se sentem, se reconhecem e se acreditam parte de uma
mesma comunidade, com religão, língua, costumes comuns, ou seja, traços culturais, comuns.
Tal crença motiva a busca de construção de identidades próprias, especialmente no caso de
etnias minoritárias. Vale destacar que o conceito de etnia definido desse modo é insuficiente
para tratar de etnias africanas, por exemplo. Você pode notar, assim, que o assunto é bastante
complexo. Para conhecer mais sobre a problemática envolvendo a definição de etinais em
diversos contextos, para além do universo indígena.

Os estereótipos associados ao termo etnia são ainda um tanto virtuais. Teme-se, por exemplo,
que o termo venha a ser usado simplemente em substituição ao termo “Nação” dos “Estados
Civilizados”, estando subjugado a referir a sociedades primitivas. Veja que aí o uso é o mesmo
que se vem fazendo para tribo. Para fugir de tal erro, é preciso apropriar-se de uma visão ét-
nica sem etnocentrismo. No âmbito do ensino, Silva e Silva (2006) afirmam o seguinte:

“Enquanto os antropólogos discutem a validade de termos como raça e etnia, o que


precisamos apreender de todo esse debate e discutir com os alunos é que, seja na raça
ou na etnia, o fato de um indivíduo pertencer a um desses grupos é mais uma questão
de sentimento, de identidade, do que de determinação física ou mesmo cultural.
Vale lembrar ainda que tanto a concepção atual de raça quanto a de etnia são
conceitos que buscam dar conta da multiplicidade de culturas, de hábitos e crenças
que a humanidade apresenta, e das implicações políticas dessas diferenças”. (SILVA;
SILVA, 2006, p. 126)

Segundo Luciano (2006), a cada ano novas comunidades ou povos se autodeclaram como
pertencenters a uma etnia indígena. A esses povos costuma-se chamar povos indígenas emer-
gentes. Para concluir, podemos afirmar que a aproriação do termo indío e indígena, o reco-
nhecimento de etnias e fortalecimento das comunidades estão inseridos em um projeto de
autoafirmação da identidade dos povos pré-colombianos no Brasil:

“O processo de reafirmação das identidades étnicas, articulado no plano estratégico pan-


-indígena por meio da aceitação da denominação genérica de índios ou indígenas, resul-
tou na recuperação da auto-estima dos povos indígenas perdida ao longo dos séculos de
dominação e escravidão colonial. O índio de hoje é um índio que se orgulha de ser nativo,
de ser originário, de ser portador de civilização própria e de pertencer a uma ancestra-
lidade particular. Este sentimento e esta atitude positiva estão provocando o chamado
fenômeno da etnogênese, principalmente no Nordeste. Os povos indígenas, que por força
de séculos de repressão colonial escondiam e negavam suas identidades étnicas, agora
reivindicam o reconhecimento de suas etnicidades e de suas territorialidades nos marcos
do Estado brasileiro” (LUCIANO, 2006, p. 33).

64
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Referências
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil. História, direitos e cidadania. São Paulo:
Claro Enigma, 2012.

CASTRO, Eduardo Viveiros. “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”.
Entrevista à equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil. Disponível
em http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_
mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf.

MELATTI, Júlio César. Índios do Brasil. Brasília/São Paulo: Ed. UnB/Hucitec, 1993.

_______________. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007.

SANDERS, William; Marino, Joseph. Pré-história do Novo Mundo: Arqueologia do índio


americano. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

SILVA, Kalina Valderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. São
Paulo: Contexto, 2006.

Vídeos
Série de vídeo-aulas ‘O Estado e os povos indígenas no Brasil’. Centro Indígena de Estudos
e Pesquisa (Cinep), Laced/Museu Nacional/UFRJ, Universidade de Brasília (UnB) e Instituto
Internacional de Educação do Brasil (IIEB). Disponível em: http://laced.etc.br/site/atividades/
video-aulas/o-estado-e-os-povos-indigenas-no-brasil/ Acessado em: 10/02/2015.

65
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 2
Terminologias utilizadas para conhecer os
povos indígenas: primitivo, aculturado,
integrado

Nesta segunda aula sobre terminologias utilizadas para conhecer os povos indígenas, vamos
refletir de maneira muito crítica sobre os usos dos termos índios primitivos, índios acultu-
rados, índios integrados, dentre outros termos que surgiram no Brasil ao longo da história
como tentativas de classificar os tipos de índios a partir do contato e da ótica da sociedade
dos brancos. Novamente, devemos ter em perspectiva que os termos são cunhados de modo
etnocêntrico. Reveja a definição apresentada na aula anterior:

Etnocentrismo: “uma visão de mundo fundamentada rigidamente nos valores e modelos de


uma dada cultura; por ele, o indivíduo julga e atribui valor à cultura do outro a partir de sua
própria cultura”. (SILVA E SILVA, 2006, p. 127)

Devemos nos perguntar sempre quais eram os fins práticos por trás de tais critérios de classi-
ficação e nomenclaturas.

Vamos começar explorando definições do termo Aculturação e seus similares. Veja, abaixo,
a definição de dois tipos de processo de Aculturação ocorridos durante a colonização do
continente americano, de acordo com o “Dicionário de Conceitos Históricos” de Silva e Silva
(2006), e vamos refletir sobre as cargas semânticas associadas ao termo aculturado.

No entanto, a maior parte dos estudiosos não acredita na ideia de aculturação sem imposição
cultural. Segundo Silva e Silva (2006), por exemplo, para o historiador Frédéric Rogno (Rog-
no, 1991) e para o crítico literário e escritor Alfredo Bosi (Bosi, 1996), a aculturação é sempre
uma forma de exterminar a identidade étnica de um povo. Rognon propõe, inclusive, o uso do
termo etnocídio para esses casos de contato por colonização:

66
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Aculturação Imposta
"quando um grupo estranho controlava diretamente a sociedade dominada, direcionando seu processo de
aculturação. Caso daqueles povos nativos que por toda a América foram submetidos ao controle de
missionários. Sob tal domínio, os indígenas tiveram de assimilar muitas das instituições espanholas e
portuguesas, como o catolicismo, a língua, os costumes matrimoniais, os hábitos de vestimenta etc. Essa
aculturação imposta destruiu grande parte das culturas originais indígenas, como os laços familiares, a
religiosidade e a língua."

Aculturação não imposta


"o segundo tipo de aculturação pode ser percebido quando a sociedade indígena, longe de qualquer
controle externo, adotou alguns elementos da cultura colonial voluntariamente, como o uso do cavalo e de
armas de fogo. Nesse caso, a aculturação foi espontânea, e a cultura nativa preservada em suas estruturas
originais. Os elementos estrangeiros assimilados nesse segundo caso não eram suficientes para modificar as
estruturas internas dessas sociedades, mas foram escolhidos, ao contrário, por se ajustarem a essas
estruturas."

No entanto, a maior parte dos estudiosos não acredita na ideia de aculturação sem imposição
cultural. Segundo Silva e Silva (2006), por exemplo, para o historiador Frédéric Rogno (Rog-
no, 1991) e para o crítico literário e escritor Alfredo Bosi (Bosi, 1996), a aculturação é sempre
uma forma de exterminar a identidade étnica de um povo. Rognon propõe, inclusive, o uso do
termo etnocídio para esses casos de contato por colonização:

Etnocídio: “enquanto o genocídio é a extinção física de um grupo, violenta e deliberada, o


etnocídio seria a destruição de uma cultura, resultante do processo de aculturação. Situação
que ocorreu, sobretudo, com as populações indígenas das Américas, sendo possível encontrar
na Oceania processos de aculturação aos quais a população sobreviveu. De acordo com Rog-
non, o etnocídio apenas precede o genocídio, e todo processo de aculturação termina por ser
um fenômeno de imposição de uma cultura sobre outra.” (SILVA; SILVA, 2006, p. 17).

Genocídio: “1 Sociologia Delito contra a humanidade, definido pela ONU. Consiste no em-
prego deliberado da força, visando ao extermínio ou à desintegração de grupos humanos, por
motivos raciais, religiosos, políticos etc.” Dicionário Michaelis. Disponível em: http://mi-
chaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=-
genoc%EDdio

Para Bosi, a aculturação tem sempre como base o ato de sujeitar um povo ou tentar adaptá-lo
tecnologicamente a um padrão que se acredita superior, e é necessariamente um fenômeno de
controle social e dominação de um povo sobre outro.

Agora, vamos refletir sobre o que os termos primitivo, aculturado e integrado significaram
em uma história mais recente para os povos indígenas no Brasil. Essas três nomenclaturas
estão inseridas em um processo de “integração e assimilação cultural” dos povos indígenas
que estavam sob o regime de tutela do Estado brasileiro, denominado por Sílvio Cvuscens de
Indigenismo Governamental Tutelar (LUCIANO, 2006, p. 70):

67
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

O primeiro período seria o denominado Indigenismo Governamental Tutelar,


que teve a duração aproximada de um século e caracterizou-se pela criação e forte
presença do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, que posteriormente foi reformulado
para se tornar a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, criada em 1967 e atuante no
presente.

Nesse período, a tutela, tal como se inicia com a criação do SPI, é um regime de proteção que
se baseia na suposta incapacidade civil e intelectual dos índios. Por isso, as nomenclaturas
primitivo, aculturado e integrado fazem sentido neste contexto em que se pensa o primitivo
como o primeiro nível de um estado de total incapacidade civil e intelectual e do qual se deve
escapar, e cujo objetivo a ser alcançado é o de índio integrado, um cidadão capaz. A “proges-
são” do índio desde seu estado primitivo, passando pelo aculturado e chegando ao integrado
se daria pelo contato com a sociedade civilizada. A integração permanente permitiria ao índio
o desligamento total de sua cultura e de suas terras, deixando-as livre para também serem
desapropriadas pelo Estado e também livres para o mercado nacional:

“Paralelamente à atuação do SPI, havia em curso um processo conhecido por “inte-


gração e assimilação cultural” dos povos indígenas sob a tutela do Estado, o que na
prática significava a efetiva e inexorável4 apropriação de suas terras e a negação de
suas etnicidadades e identidades” (Luciano, 2006, p. 71).

Nas decádas de 1960 e 1970 houve uma tentativa de criação por parte do governo de “crité-
rios de indianidade” que tinham como ojbetivo estabelecer quem era mais ou menos índio.
Os índios eram classificados de acordo com o grau de contato com a sociedade brasileira do
seguinte modo:
• índios arredios ou isolados;
• índios não-aculturados;
• índios em vias de aculturação;
• índios aculturados;
• índios brasileiros integrados.

O objetivo final do Estado, segundo Luciano, era o de afirmar a inexistência de povos indí-
genas primitivos ou puros em determinadas regiões a fim de revogar os direitos daquelas
comunidades sobre seus territórios. Para tal, chegou-se, inclusive, a propor que se realizassem
exames de sangue para definir o grau de integração ou aculturação. Segundo Luciano, ainda:

4 Inexorável: adj 1 Que não cede. 2 Que não se move à compaixão. 3 Austero, imparcial, reto. 4 Implacável. 5
Rígido. 6 Cruel.

68
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Essas diferentes tentativas de emancipação dos povos indígenas deixaram até hoje
suas marcas na forma de pensar dos brasileiros. Na região Nordeste, por exemplo,
pelo fato de o contato dos índios com a sociedade branca ter sido mais longo e intenso
desde o início da colonização, os índios, ao perderem várias de suas características
culturais, como a língua, a cor do cabelo, a cor da pele e os hábitos que muito se
assemelham ao dos camponeses não-indígenas, são discriminados e taxados de não
serem mais índios, negando-se a eles, assim, o direito à terra e a outros aspectos
específicos dos povos indígenas do Brasil.

Na próxima aula, vamos continuar falando de certo modo sobre critérios de “indianidade”,
mas agora explorando os termos branco, índio puro e índio misturado, que se referem não
tanto ao contato mas antes ao grau de miscigenação das populações indígenas.

Referências
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

LUCIANO. Baniwa Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os
povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em:
http://laced.etc.br/site/acervo/livros/o-indio-brasileiro/ Acessado em: 09/02/2015.

ROGNO, Frédéric. Os primitivos, nossos contemporâneos. Campinas: Papirus, 1991.

SILVA, Kalina Valderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. São
Paulo: Contexto, 2006.

69
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 3
Terminologias utilizadas para conhecer os
povos indígenas: branco, índio puro,
índio misturado e critérios de
“indianidade”

Parece óbvio que os termos branco, índio puro e índio misturado são categorias para definir o
que se concebe por raças, e não necessariamente etnias, como vimos acima. Além disso, o uso
dos adjetivos puro e misturado revela que por trás de tais termos existe a ideia de que há raças
que são puras e raças que sofreram “mistura”.

Quando os colonizadores chegaram à America, foi tarefa bastante fácil identificar quem eram
“os índios” (lembre-se da simplicidade dessa identificação discutida acima), termo que eles
mesmos cunharam, e quem eram os brancos, como vimos nas aulas anteriores. Hoje em dia,
após centenas de anos e da constituição de uma população mestiça, a tarefa não é fácil. Con-
tudo, antes de classificar quem é e quem não é índio, devemos nos perguntar: qual o intuito de
tal classificação? Qual a necessidade de tal classificação? E quem pode dizer quem é e quem
não é índio?

Em geral, os principais motivos para se diferenciar quem é índio, puro ou misturado, e quem
é branco são de ordem prática e frequentemente ligados à questão da demarcação e distribu-
ição de terras e garantia de direitos. Além disso, nessa ideia de diferenciação persiste a visão
simplista e etnocentrista do colonizador, em que brancos simplesmente opõem-se a índios,
e diversas outras etnias formadores da população brasileira são sistematicamente excluídas,
como a população negra, por exemplo.

Índio “misturado” e índio “puro”


Segundo Oliveira (1998), a partir do ano de 1975, o termo “indios misturados” foi usado com
bastante frequência por pesquisadores envolvidos em estudos que viriam a subsidiar progra-
mas de assistência e desenvolvimento para os índios da região Nordeste do Brasil. Tal termo
era uma nomenclatura carregada de atributos negativos que visavam a desqualificar a legiti-

70
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

midade dos ínidos,.de aldeamentos. Os índios rotulados como “misturados” eram contrastados
com os idealizados índios ‘puros’ do passado, apresentados como antepassados míticos e, por
isso, teriam menos direitos do que eles.

“No Nordeste, contudo, os “índios” eram sertanejos pobres e sem acesso à terra, bem
como desprovidos de forte contrastividade cultural. Em uma área de colonização antiga,
com as formas econômicas e a malha fundiária definidas há mais de dois séculos, o órgão
indigenista atuava apenas de maneira esporádica, respondendo tão-somente às demandas
mais incisivas que recebia. Mesmo nessas poucas e pontuais intervenções, o órgão
indigenista tinha de justificar para si mesmo e para os poderes estaduais que o objeto de
sua atuação era efetivamente composto por “índios”, e não por meros “remanescentes”.
(OLIVEIRA, 1998, p. 53)

Também entre os próprios índios a classificação entre puros e misturados está presente, e é
utilizada muitas vezes para reforçar separações entre facções, distribuir trabalhos e direitos.
Segundo Oliveira (1998), os Xukuru e Xukuru-Kariri, por exemplo, classificam como “índios
puros” os “de famílias antigas e reconhecidas como indígenas” e como “braiados” os índios
que são “produto de intercasamento com brancos ou outros já mestiçados” (p. 60-61).

Segundo Melatti (2007), o termo branco tem sido usado de modo diverso em diferentes es-
tudos: tem sentido mais estrito, ligado à raça em estudos raciais, mas em estudos sobre acul-
turação, pode ter um sentido mais amplo que abrange todos os não-índios, negros inclusive.

O autor afirma ainda que vários foram os critérios propostos ao longo da história para identi-
ficação de índios, desde o critério racial, o mais antigo e de difícil aplicação, até o mais aceito
na atualidade, o de identificação étnica.

Critérios ao longo da história para uma definição do termo índio (MELATTI, 2007)

71
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Critério racial
• Muito antigo e em desuso;
• Baseia-se em características biológicas e físicas;
• Problemas: 1. os diversos povos indígenas apresentam características físicas diversas; 2. Problemas para
classificação dos indivíduos frutos de relações interraciais

Critério legal
• Considera índigenas todos os que satisfizerem as características definidas por lei como peculiares aos
índios.
• Essas características podem ser de ordem genética (comprovação de parte de sangue indígena) ou
demonstração histórico-documental.

Critério cultural
• Define como índios os povos que mantêm elementos culturais indígenas, a despeito de suas características
físicas e biológicas.
• Esse critério sozinho é insuficiente, mas o elemento cultural não deve ser descartado.

Critério do desenvolvimento econômico


• Leva em conta as deficiências das populações indígenas por meio de dados sociodemográficos;
• É um critério pessimista, pois associa o índio à situação de exclusão social e não considera que regiões
carentes não são ocupadas somente por índios.

Critério de identificação étnica


• "O índio é o descendente dos povos e nações pré-colombianas que têm a mesma consciência social de sua
condição humana, assim mesmo considerada por eles próprios e por estranhos, em seu sistema de trabalho, em
sua língua e em sua tradição, mesmo que essas tenham sofridos modificações por contatos estranhos". (AZEVEDO
1957 Apud MELATTI, 2007)

Atualmente, principalmente frente aos fortalecimentos de identidades indígenas suprimidas


por diversos processos históricos (veja o conceito de etnogênese abaixo), é mais sensato afirmar
que índio é o indivíduo que se auto-identifica como tal e é assim reconhecido pela comunida-
de indígena em que se insere.

O que é Etnogênese ?

A tradição legalista e o forte senso comum sobre o que deve ser um índio (naturalidade e ime-
morialidade) têm funcionado como sérios obstáculos à implementação de avanços teóricos e
jurídicos no reconhecimento de povos indígenas resistentes.

As “emergências”, “ressurgimentos”, ou “viagens da volta” são designações alternativas, cada


uma com suas vantagens e desvantagens, para o que, de forma mais clássica e estabelecida,
a antropologia designa por etnogêneses. Esse é o termo, ainda assim conceitualmente contro-
vertido, usado para descrever a constituição de novos grupos étnicos.

72
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

SAIBA MAIS
Para saber mais sobre a identidade indígena e os termos usados pela
população em referência aos índios, assista ao Episódio “Quem são
eles” do documentário “Índios no Brasil”. O vídeo foi produzido em
1999, mas traz informações ainda atuais. Acesse em:
http://tvescola.mec.gov.br/tve/video;jsessionid=
3C83EBAE78DDD96BB72AB1023D6DFFB0?idItem=6100
Para informações mais atualizadas, navegue pelo site “Povos
Indígenas do Instituto Socioamabiental”: http://pib.socioambiental.
org/pt

Referências
MELATTI, Julio Cézar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007.

OLIVEIRA, João Pacheco. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. MANA 4(1): 47-77, 1998.

Sites
Povos indígenas no Brasil - Instituto Socioambiental: Disponível em: http://pib.socioambiental.
org/pt/c/no-brasil-atual/quem-sao/povos-indigenas. Acessado em: 09/02/2015.

Vídeos
Documentário Índios no Brasil. TV ESCOLA. MEC. Disponível em: http://tvescola.mec.gov.
br/tve/videoteca-series!loadSerie;jsessionid=3057B3F0E88FA01740344072B50DFEDD?idS
erie=6093. Acessado em: 09/02/2015.

73
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 4
Direitos indígenas; direitos linguísticos:
Por que e para quem direito linguístico?
Imagine um cenário em que você aborda um falante nativo de português e pergunta se seus
direitos linguísticos estão sendo garantidos pelo Estado Brasileiro. Que tipo de resposta você
acha que obteria nessa situação? Certamente, encontraríamos muitos interlocutores surpresos,
se indagando: O que é mesmo esse tal de direito linguístico? Por que a língua é uma questão
de direito? Por que o estado precisa garanti-lo? Isso ocorre porque, para muitas pessoas, em
especial as monolíngues, a ideia de não poder se expressar, interagir com o mundo, obter co-
nhecimentos através de sua língua materna dentro de seu próprio país é bastante contraditá-
ria. O mesmo estranhamento não ocorre quando se indaga sobre a garantia de outros direitos
básicos, como a saúde, a educação, o trabalho e o lazer.

A pergunta toma outra dimensão quando dirigida a um indígena, por diversas razões históri-
cas, sociodemográficas e linguísticas. Nessa aula, vamos estudar as principais razões para que
o uso da língua se torne uma questão de direito e de política linguística para as comunidades
indígenas brasileiras.

PARA REFLETIR
Logo acima, criamos uma situação hipotética em que você pergunta
a um falante sobre a garantia de seus direitos linguísticos, e também
apresentamos uma suposta reação a essa pergunta. Por que não
ver como isso funciona na realidade? Faça a pergunta a algumas
pessoas de seu círculo social e profissional com diferentes perfis
linguísticos: monolíngues, bilíngues, multilíngues e reflita sobre as
diferentes reações e respostas. Uma dica é inserir o direito linguístico
como mais um direito na sua questão, para contextualizar o assunto.
Por exemplo: - Como você avalia a garantia do direito do cidadão à
saúde hoje em dia? E quanto ao direito linguístico?

Antes de entrarmos nessas razões propriamente, precisamos definir o que é, então, o direito
linguístico. Nas próximas aulas, vamos explicitar e discutir os aspectos técnicos e legais do
termo, mas, por ora, vamos somente assumir o seguinte:

74
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Em termos amplos, o direito linguístico está relacionado ao direito fundamental que


falantes e povos têm de usar suas próprias línguas em qualquer situação.

Na disciplina anterior, você já viu diversos aspectos da sociodiversidade indígena no Brasil,


mas, no que se segue, iremos resgatar muito brevemente como a situação das línguas indíge-
nas passou de um alto grau de diversidade e complexidade para estados de (quase) extinção
ao longo dos mais de 500 anos pós-descobrimento. A intenção é entendermos a relação entre
a diminuição das línguas indígenas e a importância atual da questão do direito linguístico no
controle ou reversão desse processo. Dando sequência a nosso curso, nas aulas 1 e 2 da Disci-
plina Breve Introdução à história das línguas no Brasill, Módulo 3, você verá detalhadamente
aspectos sócio-históricos, culturais e políticos importantes para compreensão da realidade
linguística brasileira, especialmente entre os séculos XVI e XIX.

Como você sabe após estudar a Disciplina Sociodiversidade indígena no Brasil, estima-se que
há 180 línguas indígenas vivas na atualidade no território brasileiro. Em contraste, Rodrigues
(1993) estima que o número de línguas vivas no território brasileiro antes da chegada dos
europeus pudesse chegar a mais de 1.000.

Em 1584 Pe. Fernão Cardim lista Projeção: na Antiguidade


69 línguas em uma área de
550.000 km2, que hoje Essa área corresponde a 6,4 % do
corresponde aos estados de território brasileiro, e a projeção
Sergipe, Bahia, Espírito Santo e para a área total do Brasil leva ao
Rio de Janeiro número de 1.078 línguas

75
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Curiosidade
Para comparar: países com territórios muito menores do que o do Brasil
podem apresentar enorme diversidade llinguística e multilinguismo

Índia Indonésia
Nigéria
Território: 3.287.590 km2 Território: 1.904.569 km2
Território: 923.768 km2
População: 1,210,727,000 População: 237,642,000
População: 150,199,000
Línguas em uso: 187 Línguas em uso: 261
Línguas em uso: 357

Língua em uso (“vigorous”): língua em sua situação estável (fora de perigo de extinção), que é usada para comunicação
presencial e por todas as gerações.
Língua ameaçada (em perigo de extinção): língua usada para comunicação presencial em todas as gerações,
mas está perdendo falantes.
Língua extinta (morta): a língua não é mais usada e nenhum indivíduo preserva identidade étnica associada a ela.

Fonte: Ethnologue.com (Catálogo das línguas do mundo).

Partindo para um cenário mais atual, segundo o Censo Demográfico Brasileiro realizado pelo
IBGE em 2010, 274 línguas índigenas são faladas em todo território nacional por pessoas com
5 anos de idade ou mais. Uma diferença númerica surge em Rodrigues (1993), que estima que
cerca de 180 línguas indígenas eram faladas no Brasil no ano desta publicação.

Contudo, o que temos de destacar aqui é o fato de que o número de línguas indígenas possi-
velmente existentes no Brasil pré-histórico, ou ainda nos primeiros anos da chegada dos euro-
peus, deveria ser em torno de 1000 ao passo que, segundo os últimos registros, esse número
caiu para cerca de duas centenas, no máximo.

Outro fator crucial refere-se à quantidade de falantes de cada uma das línguas indígenas hoje:
apesar de citarmos os números absolutos de línguas registradas atualmente, é preciso ter em
conta que algumas delas são faladas por pequenos grupos. O Censo do 2010 revelou, ainda,
os grupos com mais de 1000 falantes de línguas indígenas estão concentrados em apenas 15
línguas das 274 listadas, sendo que os grupos com mais de 10.000 falantes estão concentra-
dos em apenas 5 nos territórios indígenas: Tikúna, Guarani Kaiowá, Kaingáng, Yanomámi e
Xavante. Observe que há uma importante diferenciação na quantidade de falantes por língua
dentro e fora das terras indígenas.

76
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Total Nas Terras Indígenas Fora das Terras Indígenas


Número
de ordem Nome da língua Pessoas Nome da língua Pessoas Nome da língua Pessoas
indígena de 5 anos indígena de 5 anos indígena de 5 anos
1 Tikúna 34 069 Tikúna 30 057 Tikúna 4 012

Língua Geral
2 Guarani Kaiowá 26 528 Guarani Kaiowá 24 368 3 466
Amazônica

3 Kaingáng 22 027 Kaingáng 19 905 Tukáno 2 670

4 Xavánte 13 290 Yanomámi 12 301 Guarani Kaiowá 2 160

5 Yanomámi 12 706 Xávante 11 733 Kaingáng 2 122

6 Guajajára 9 502 Guajajára 8 269 Guarani Mbya 2 106

7 Mawé 8 934 Mawé 8 103 Teréna 1 890

8 Teréna 8 204 Teréna 6 314 Xávante 1 557

Língua Geral
9 7 237 Kayapó 5 520 Guajajára 1 233
Amazônica

10 Tukáno 7 082 Guarani Nhandeva 4 887 Mundurukú 1 138

11 Kayapó 6 204 Makuxi 4 675 Makuxi 1 099

12 Makuxi 5 774 Tukáno 4 412 Pataxó 836

Língua Geral
13 Guarani Nhandeva 5 394 3 771 Mawé 831
Amazônica

14 Guarani Mbya 5 354 Kaxinawá 3 588 Wapixána 801

15 Mundurukú 4 701 Mundurukú 3 569 Baníwa 784

Tabela 1 - Pessoas indígenas de 5 anos ou mais de idade com indicação das 15 línguas com
maior número de indígenas, por localização do domicílio - Brasil - 2010.
Fonte: IBGE Censo Demográfico, 2010.

Por outro lado, dentre as línguas faladas nas terras indígenas, 48,1% possuíam mais de 100
falantes e 22,9% até 10 falantes. O comportamente é justamente o inverso para as pessoas in-
dígenas de 5 anos ou mais de idade fora das terras indígenas: 47,4% das línguas eram faladas
por grupos de até 10 falantes ao passo que 18,9% das línguas eram faladas por mais de 100
falantes. Veja a tabela 2, que revela que há, no Brasil, diversas línguas ameaçadas, especial-
mente fora das terras indígenas.

77
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Classes de pessoas indígenas Proporção de línguas indígenas faladas no domicílio, por localização
de 5 anos ou mais de idade que do domicílio
falavam língua indígena Nas Terras Indígenas Fora das Terras Indígenas
Total 100,0 100,0

Até 10 falantes 22,9 47,4

De 11 a 30 falantes 10,3 19,7

De 31 a 50 falantes 6,1 6,0

De 51 a 100 falantes 12,6 8,0

Mais de 100 falantes 48,1 18,9

Tabela - Pessoas indígenas de 5 anos ou mais de idade com indicação das 15 línguas com maior número
de indígenas, por localização do domicílio - Brasil - 2010.
Fonte: IBGE Censo Demográfico, 2010.

Diversos motivos levaram a essa drástica redução de falantes e de línguas, dentre os quais se
destacam:
• Campanhas de extermínio ou de caça a escravos por parte dos europeus;
• Epidemias por doenças contagiosas trazidas pelos estrangeiros;
• Redução dos territórios indígenas de coleta, caça e plantio com consequente redução de
meios de subexistência;
• Assimilação forçada ou induzida a usos e costume dos colonizadores.
Infelizmente, após o período de colonização, durante o período imperial (1822-1889) e a Re-
pública (1889-presente), o processo de extinção de línguas indígenas não cessou. Isso não se
deu, todavia, de modo homogêneo: determinadas regiões demográficas sofreram mais com o
extermínio do que outras. Vejamos o seguinte trecho de Rodrigues (1986, p. 19):

“Uma linha imaginária traçada de São Luís do Maranhão, ao norte, até Porto
Alegre, ao sul, passando por perto de Brasília, no centro, deixa a oeste a área onde
sobrevivem as línguas indígenas e a leste a área onde elas se extinguiram quase
sem exceção”.

Interessantemente, 24 anos depois, o IBGE publica um mapa que “revela” a tal linha imagi-
nária citada por Aryon Rodrigues: o mapa apresenta a proporção de pessoas indígenas com 5
anos ou mais de idade que falavam uma língua indígena e não falavam português.

78
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Figura 1: Mapa das a proporção de pessoas indígenas com 5 anos ou mais de idade que
falavam uma língua indígena e não falavam português.
Fonte: IBGE.

Além das razões favorecedoras do extermínio das línguas indígenas já listadas, devemos acres-
centar medidas legislativas e administrativas tomadas na segunda metade do século XVIII
para inibir o uso das línguas indígenas em favor do uso do português. Essas medidas atingiram
muito mais o uso da Língua Geral Paulista, obtendo pouco efeito sobre a Língua Geral Ama-
zônica. No módulo 3, estudaremos os processos de espraiamento e declínio das línguas gerais
e as demais questões referentes à história das línguas no Brasil.

Nesse momento, a questão colocada logo no início dessa aula passa a fazer sentido: porque
falar em uso da língua como uma questão de direito? Porque aos índios foi privado, direta e
indiretamente, de modo invasivo e cruel ou por meio legal, o direito da comunicação em sua
própria língua materna.

79
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Na próxima aula, nos voltaremos para a tarefa de definir claramente o que é o direito linguísti-
co não só para o nosso país, mas para o mundo, pois essa é uma questão de direitos humanos.

SAIBA MAIS
Para saber mais sobre características demográficas, socioeconômicas,
territoriais, étnicas e linguísticas da população indígena brasileira
atual, releia as aulas da disciplina “A sociodiversidade indígena no
Brasil” e, ainda, veja a publicação resultante do Censo Demográfico
de 2010, do IBGE: Características Gerais dos indígenas: resultados
do universo.
Você pode fazer o download da obra no seguinte link: http://biblioteca.
ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=795

Referências
Rodrigues, Aryon Dall’Igna. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. Revista
DELTA, n. 1, vol. 9, 1993.

Rodrigues, Aryon Dall’Igna. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indígenas.
São Paulo: Loyola, 1986.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico - 2010.


Características gerais dos indígenas. Resultados do Universo. Disponível em: http://
biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=795 Acessado em:
09/02/2015.

Sites
Ethnologue: Catálogo de línguas do mundo. Disponível em: www.ethnologue.com

IBGE Indígenas. Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/

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Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

AULA 5
Direitos indígenas; direitos linguísticos:
Declaração Universal dos Direitos
Linguísticos
No ano de 1996, realizou-se a Conferência Mundial dos Direitos Linguísticos na cidade de
Barcelona, Espanha. Durante o evento, estiveram presentes mais de 60 organizações não-
-governamentais (ONGs), mais de 40 clubes de poetas, escritores e novelistas (PEN-clubs) e
mais de 40 especialistas em linguística, oriundos dos cinco continentes. Como resultado do
encontro, esses participantes foram os responsáveis pela publicação da Declaração Universal
dos Direitos Linguísticos. Nessa aula, estudaremos essa declaração com o objetivo de ter uma
visão global da questão dos Direitos Linguísticos e da sua forte relação com as Políticas Lín-
guísticas. Após essa aula, teremos maior embasamento para discutir a questão brasileira, mais
especificamente a situação atual do direito linguístico indígena no Brasil. Vamos lá!

No link abaixo você pode encontrar uma versão traduzida para o português da
Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, por Wanda Ramos:
http://www.penclubeportugues.org/?page_id=213

A versão original está no endereço http://www.linguistic-declaration.org/.

Além disso, há nele um guia que leva o leitor a entender como se deu o processo de organização
da Conferência Mundial dos Direitos Linguísticos e o processo de escritura da
Declaração Universal dos Direitos Linguísticos. O texto está escrito em inglês e catalão.

Este é o logo da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos

Dica: se preciso, utilize a ferramente Google Translate para traduzir a página para o português.

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Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Definições iniciais
A Declaração Universal dos Direitos Linguísticos está ao lado de outras instituições interna-
cionais, como a UNESCO, para garatir desenvolvimento igualitário e sustentável para toda a
humanidade. Tomando como ponto de partidas as comunidades linguísticas e não os Estados
propriamente, seu objetivo é favorecer a organização política da diversidade linguística basea-
da no respeito, convivência harmoniosa e no benefício mútuo.

Comunidade linguística é

Em uma definição prioritariamente política: qualquer comunidade humana


historicamente radicada em um determinado espaço territorial, sendo este espaço
reconhecido ou não, que se identifica como um povo e desenvolveu uma língua
comum como meio natural de comunicação e de coesão cultural entre seus membros;

Em uma definição prioritariamente linguística: grupo de falantes que partilham


o mesmo conjunto de regras, normas e valores relativos a uma língua. Esse conceito
provém da Sociolonguística Variacionista, com a qual você terá contato a partir do
Módulo 3.

Apesar de citar o termo “espaço territorial” na definição de comunidade linguística acima,


considera-se que o termo se refere não apenas a uma área geográfica em que a comunidade
está fisicamente localizada, mas também qualquer espaço funcional que permita o desenvolvi-
mento pleno da língua. Assim, não ficam excluídos da Declaração os falantes que estão sepa-
rados de seu povo por motivos políticos ou fronteiras administrativas, quando estão isolados
e rodeados por outras comunidades linguísticas ou quando dividem um mesmo espaço com
membros de outras comunidades linguísticas com história similar.

Direitos Linguísticos
Comecemos, então, a observar os direitos individuais listados. São direitos pessoais inaliená-
veis que podem ser exercidos em qualquer situação:
• Direito a ser reconhecido como membro de uma comunidade linguística;
• Direito a usar a sua própria língua em situação pública ou privada;
• Direito a usar o seu próprio nome;
• Direito a relacionar-se ou associar-se com outros membros da sua comunidade linguística
de origem;
• Direito a manter e desenvolver a sua própria cultura.

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Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Os direitos coletivos, que se referem a grupos e comunidades linguísticas como um todo, são
os seguintes:
• Direito ao ensino da própria língua e da própria cultura;
• Direito ao acesso a serviços culturais;
• Direito a presença igualitária de sua própria língua e cultura nos meios de comunicação;
• Direito a receber atendimento, assistência de organismos oficiais e de estabelecer relações
socioeconômicas em sua própria língua.

Princípios Gerais da Declaração


De um conjunto de oito artigos, destacamos algumas passagens que se referem aos princípios
gerais da Declaração e que são cruciais para revelar o seu intuito:

• Todas as línguas são a expressão de uma identidade coletiva e de uma forma dis-
tinta de perceber e descrever a realidade e deve, portanto, poder desfrutar das
condições necessárias para seu desenvolvimento em todas as funções.
• Todas comunidades linguísticas têm direitos iguais.

Dando continuidade, sugerimos a seguinte atividade para que você possa ter contato e refletir
a respeito desses princípios gerais:

PARA REFLETIR
Acesse a versão traduzida para o português da Declaração Universal
dos Direitos Linguísticos, por Wanda Ramos, no link abaixo e faça
a leitura do texto, em especial da parte Princípios Gerais, que
compreende do artigo 7 ao artigo 14.
Reflita: Esses princípios gerais têm sido respeitados (ou desrespeitados)
de algum modo nas comunidades linguísticas, especialmente
indígenas, que você conhece ou com as quais têm contato?
http://www.penclubeportugues.org/?page_id=213

Além dos princípios gerais, há disposições acerca de administração pública, comunicações,


novas tecnologias, cultura e situação socioeconômica. No entanto, o que é de maior interesse
para esse curso é o tópico Educação, vamos a ele!

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Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Direitos Linguísticos e Educação


Quando pensamos no Direito Linguístico e sua relação com a questão da Educação, somos le-
vados instantaneamente a pensar nas políticas públicas que visam a promover e asssegurar o
desenvolvimento da capacidade linguística de uma determinada comunidade e a minimizar ou
extinguir injustiças e preconceitos relacionados historicamente àquela comunidade de falantes.

A Declaração dedica uma seção inteira à Educação, em uma série de 8 artigos, dentre os quais
destacamos os seguintes:

Artigo 23. 2. “A educação deve ajudar a manter e desenvolver a língua falada pela
comunidade linguística do território onde é oferecida”
Artigo 24. “Todas as comunidades linguísticas têm o direito a decidir em que
medida suas línguas estarão presentes, como língua veicular e como objeto de
estudo, em todos os níveis escolares de seu território: pré-escola, primário, secun-
dário, técnico e profissionalizante, universitário e formação de adultos”.
Artigo 28. “ Todas as comunidades têm direito a uma educação que permitirá a
seus membros adquirir conhecimento completo de sua herança cultural (história,
geografia, literatura, e outras manifestações culturais), bem como de conheci-
mento mais extenso possível de qualquer outra cultura que desejem conhecer”.

Estes artigos foram escolhidos para destaque por que permeiam três questões fundamentais:
o fomento do uso língua na escola, a escolha dos falantes sobre em que medida desejam ter
contato e incentivar e estudar a sua língua em todos os níveis escolares e a ideia de educação
como transmissora de herança cultural.

Segundo Gersem José dos Santos Luciano, professor de Antropologia da Universidade Federal
do Amazonas e representande indígena no Conselho Nacional de Educação, a questão ecolar
indígena é desafiadora e, no Brasil, já passou por vários momentos desde o período colonial.
Podemos dialogar com o último artigo destacado (artigo 28), o que remete à educação como
transmissora de herança cultural, observando a afirmação do estudioso de que há diferentes
percepções dessa questão no cenário internacional.

Comunidades indígenas de alguns países,


como o Chile, acreditam em um modelo Um modelo completamente oposto ocorre
de apropriação da escola do homem em alguns países africanos, em que os
branco, ou seja, não acreditam em uma indígenas não acreditam em nenhum tipo
educação própria. A ideia é utilizar o de influência da escola do branco. A

X
mesmo modelo do branco e deixar a escola e o ensino da língua neste
questão da transmissão da língua e ambiente é tida como um instrumento de
cultura como função do povo e dos pais retomada do espaço daquela comunidade
na educação da criança. Portanto, no que e deve ser priorizado e exclusivo.
se refere ao ensino da língua, acreditam
que esta deve ser aprendida em casa e
não no ambiente escolar.

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Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Essses exemplos são citados na videoaula Desafios da Educação Escolar Indígena, que é parte de
uma série de videoaulas sobre O Estado e os Povos Indígens no Brasil . A posição das comu-
nidades indígenas brasileiras sobre o ensino da língua materna no âmbito escolar ficará para
a aula 6.

Para se preparar para essa discussão e para a da próxima aula, propomos a você a seguinte
atividade.

Referências
United Nations Educational Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Universal
Declaration of Linguistic Rights. France: UNESCO, 1996.

Vídeos
Série de vídeo-aulas ‘O Estado e os povos indígenas no Brasil’. Centro Indígena de Estudos
e Pesquisa (Cinep), Laced/Museu Nacional/UFRJ, Universidade de Brasília (UnB) e Instituto
Internacional de Educação do Brasil (IIEB). Disponível em: http://laced.etc.br/site/atividades/
video-aulas/o-estado-e-os-povos-indigenas-no-brasil/ Acessado em: 10/02/2015.

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Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

AULA 6
Direitos indígenas; direitos linguísticos:
direitos linguísticos para os povos indígenas
no Brasil e a educação escolar
Diversas razões históricas, políticas, econômicas e sociodemográficas levaram a maior parte
das línguas indígenas brasileiras à extinção ou ao estado de língua ameaçada, como veremos
detalhadamente nas próximas aulas do Módulo 3. Você verá que, ao longo da história, foram
implementadas políticas contrárias à valorização das línguas indígenas. Além disso, há visões
que defendem que escolarização dos índios, desde seu início atrelada à catequização e ao pro-
cesso de aculturação, favoreceu deliberadamente o monolinguismo. Felizmente, a resistência
dos povos indígenas não permitiu que esse projeto se realizasse inteiramente. Nessa última
aula desta disciplina, vamos estudas algumas políticas linguísticas no contexto da educação
escolar indígena.

Para além das políticas oficiais: O Direito


Linguístico e a Educação Escolar Indígena
Além das medidas oficiais, no ambiente escolar, havia repressão, na forma de atribuição de
notas baixas e mesmo de castigos, àqueles que utilizassem línguas indígenas. Assim, a política
linguística que decretou a proibição do uso das línguas nativas foi efetivada e reforçada pela
educação escolar até meados dos anos 70 no Brasil. No entanto, Segundo Luciano (2006), já
a Escola Colonial empregava também uma política intencional de extermínio do índio, sem
necessariamente efetuar a sua morte física: o ensino matava a sua língua, a sua cultura, a sua
identidade. Observemos as duas passagens:

“Primeiramente cristianizados pelos jesuítas através de escolas fora e dentro das missões,
os povos indígenas, quando da proibição de suas línguas, passaram a ter educação es-
colar em língua portuguesa. Isso quando tinham qualquer tipo de educação escolar. No
começo do século 20 foram instaladas escolas em língua portuguesa em várias comuni-
dades. Oficialmente essa política funciona até meados dos anos 70 e só mudou com a
Constituição de 1988.” (BRAGGIO, 2002, p. 134).

86
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

“A escola foi o principal instrumento devorador de culturas e de povos indígenas no


Brasil. Ela esmagou os índios, arrasou línguas, ignorou conhecimentos, perseguiu e
proibiu culturas, tradições, ritos e cerimônias. Aplicou com rigor o projeto do mo-
nolingüismo no Brasil, em parte obtendo sucesso, o que ajudou a destruir mais de
1.000 línguas indígenas em 506 anos. Por outro lado, o propósito não se consumou,
graças à resistência dos indígenas que ainda conservam com orgulho 180 línguas fa-
ladas, quase a mesma quantidade existente em todo o continente europeu (230). Até
pouco tempo, essas línguas indígenas sobreviventes estavam relegadas a ambientes
familiares restritos, limitadas a uma comunicação privada, porque era proibido ou
vergonhoso fazê-la em público. Falar em língua indígena na escola era repreendido
com notas baixas ou castigado com duras e violentas medidas disciplinares”. (LU-
CIANO, 2006, p. 123-4)

No documentário Índios no Brasil, Episódio Nossas Línguas, há depoimentos sobre punições


aos indígenas que usassem suas linguas maternas em vez do português nas escolas das missões
jesuíticas, da igreja católica. Um falante da língua Tariano comenta que passou 08 anos em
um internato da igreja católica em que era obrigado a falar o português. Outras línguas indíge-
nas também eram utilizadas para a comunicação, pois índios de vários povos eram colocados
em um mesmo local e acabavam sendo obrigados a abandonar o uso da língua materna em
favor de uma língua em comum, com vistas à comunicação com os demais. Esse tipo de uso
também favoreceu o desaparecimento de diversas línguas nativas.

SAIBA MAIS
Para o documentário Índios no Brasil, acesse:
Disponível em: http://tvescola.mec.gov.br/tve/videoteca-series!loa
dSerie;jsessionid=3057B3F0E88FA01740344072B50DFEDD?idS
erie=6093

O seguinte trecho é um relato do antropólogo Gersem José dos Santos Luciano, do povo Bani-
wa, sobre sua experiência escolar:

“Relato como exemplo uma experiência que vivi nos meus anos de escola-internato nas
décadas de 1970 e 1980. Naquela época, fomos rigidamente proibidos de falar nossas
línguas maternas nas escolas-internatos dos missionários. Quem descumpria as ordens
era severamente punido e castigado. Os castigos iam desde ficar um dia sem comer, a
permanecer em pé horas e horas no sol quente, a trabalhos forçados ou a castigos com
efeitos psicológicos terríveis. Para mim, os maiores sofrimentos e dor foram gerados
pelos castigos de efeitos morais e psicológicos, como uma das modalidades de que fui
várias vezes vítima. Tratava-se de um pedaço de pau grande com uma corda que conti-
nha uma frase em português: “Eu não sei falar português”. Quando algum aluno da
escola era flagrado falando uma língua indígena, a placa assustadora era pendurada
em seu peito ou nas costas e ficava com ele até que descobrissem um novo violador da
regra, para quem a placa era passada. O castigo provocava pavor e extremo constran-
gimento, uma vez que admitir naquela época não saber falar português ou só falar na
língua indígena era ser identificado a um animal – sem alma, sem educação, pagão e
antipatriótico.” (LUCIANO, 2006, p. 124).

87
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Portanto, a educação escolar até pouco tempo atrás trouxe sérios prejuízos à sobrevivência
e ao desenvolvimento natural das línguas indígenas. Segundo Luciano (2006), ao pensar na
educação e sua relação com a comunidade indígena, há de se distinguir dois conceitos:
• Educação indígena: processos próprios de transmissão e produção dos conhecimentos dos
povos indígenas;
• Educação Escolar Indígena: processos de transmissão e produção dos conhecimentos não-
-indígenas e indígenas por meio da escola, uma instituição própria dos povos colonizadores.

Enquanto a Educação Indígena tende a preservar a cultura e a identidadade dos povos indí-
genas, tendo a língua materna como peça fundamental desse processo, assim como o é em
qualquer cultura, a Educação Indígena Escolar se mostrou historicamente contrária a esse
objetivo. Por isso, há alguns anos, a comunidade indígena apresentava resistência, descon-
fiança e repulsa com relação à escolarização nos moldes do branco, por considerá-la um meio
exclusivo de aculturação (LUCIANO, 2006, p. 129).

Da Convenção 107, passando pela constituição de 1988, até os


dias atuais: a educação escolar como espaço de viabilização de
políticas linguísticas
Os avanços da Constituição de 1988 são, segundo Luciano, fruto de agendas reinvindicatórias de
organizações indigenistas não-governamentais e do movimento indígena já nos anos 70. Esses
movimentos foram influenciados por diretrizes da Convenção n. 107 da Organização Internacio-
nal do Trabalho, de 26 de junho de 1957. Do reconhecimento dessa Convenção em 1966 até a
incorporação de seus princípios por mecanismos jurídicos e administrativos na legislação indi-
genista, houve interrupção do progresso causada por um duro período de ditadura militar, em
que se voltou a buscar a incorporação dos índios. Abaixo, apresentamos alguns dos princípios
da Convenção 107 que se relacionam mais fortemente com a questão da língua materna e sua
relação com a educação escolar (Para mais princípios, v. Luciano, 2006, p. 152).

26 de junho de 1957
Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho

1 A prescrição de modelos de alfabetização em língua materna e de educação


bilíngue (art. 23).
2 O reconhecimento oficial das línguas indígenas como instrumentos de
comunicação com essas minorias (art. 26).

88
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Em 19 de dezembro de 1973, é instituída a lei n. 6.001, que ficou conhecido como “Estatuto
do Índio” e, nesse momento, observam-se incipientes mudanças de perspectiva em relação
aos direitos linguísticos dos povos indígenas brasileiros.

Lei n. 6.001 de 19 de dezembro de 1973


“Dispõe sobre o Estatuto do Índio”

• Art. 47 “ É assegurado o respeito ao patrimônio cultural das sociedades


indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão”
• Art. 49 “ A alfabetização dos índios far-se-á na língua do grupo a que
pertençam, e em português, salvoguardo o uso da ”
• http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm

Segundo Braggio, essa é a primeira vez que as línguas indígenas são oficialmente reconhecidas
desde o início da colonização, ou seja, após mais de 400 anos de conhecimentos dos idiomais
pelos colonizadores e pelo Estado brasileiro. Esse pequeno avanço é seguido por um ainda
maior: o reconhecimento e a referência ao tópico dos direitos dos povos indígenas na Consti-
tuição de 1988.

Constituição de 1988
Capítulo VIII, “DOS ÍNDIOS”

• Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
Capítulo III, “DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO”
• Art. 210, § 2º “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”
• Seção II, “Da Cultura”, Art. 215, § 1º “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

89
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Apesar dos avanços inegáveis, a nossa constituição não reconhece as línguas indígenas como
idiomas oficiais do Brasil. Esse fato implica em que o caráter multilíngue de nosso país não é
reconhecido pela Constituição.

Alguns outros dispositivos constitucionais surgiram como fruto da discussão sobre a Educação
Escolar Indígena e tocam a questão da língua. Em geral, são medidas que buscam uma escola
diferenciada, em que se privilegie o ensino bilíngue em que a língua indígena não seja mero
instrumento de acesso ao português. Em outras palavras, um ensino bilíngue de fato e não um
ensino bilíngue com vistas ao monolinguismo. Listamos a seguir algumas medidas:
• Decreto nº. 26 de 1991: Transferência da responsabilidade da Educação Escolar Indí-
gena da FUNAI para o MEC (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/
D0026.htm );
• Portaria Interministerial MJ e MEC nº. 559 de 16 de abril de 1991. Artigos 7 e 8: traz
determinações sobre a garantia do respeito às línguas, ensino bilíngue e criação de materiais
didáticos específicos para as comunidades indígenas. Um avanço fruto dessa determinação
está na elaboração pelos próprios indígenas de materiais escritos nas línguas indígenas;
• Diretrizes para a Política Nacional de Educação Indígena 1993/1994: elaboradas pelo
Comitê de Educação Escolar Indígena, da Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indíge-
nas (CGAEI), dentro do Ensino Fundamental do MEC, são instrumentos “na implantação
de uma política que garanta, ao mesmo tempo, o respeito à especificidade dos povos indí-
genas (frente aos não-índios) e à sua diversidade interna (linguística, cultural, histórica).”
Duas passagens propõem diretrizes diretas para o ensino de língua materna e língua ofi-
cial, com consequências diretas na preservação e trasmissão dessas línguas nativas (http://
emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/959/864);
• Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabele as diretrizes e bases da educação
nacional e promove a valorização linguística. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9394.htm);
• Resolução CEB nº. 3 de 10 de novembro de 1999 do Conselho Nacional de Educação:
coloca a educação escolar indígena no Plano Nacional de Educação e, mais uma vez, a
importância do ensino intercultural é destacada. (portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/
CEB0399.pdf);
• Plano Nacional de Educação (PNE) (Lei nº 10.172/2001), que vigorou até 2011: aler-
ta que a definição de diretrizes, objetivos e metas depende da iniciativa da União e dos
Estados para a implantação dos programas de Educação Escolar Indígena, mas que essas
só deverão acontecer com a anuência das comunidades indígenas.
• Proposta Político-pedagógica do Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI) da
Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura do Município de São Paulo. No ano
de 2002, lideranças indígenas Guarani da cidade de São Paulo tiveram a iniciativa de
procurar a Secretaria Municipal de Educação para expor o desejo de construir um centro
de educação e cultura indígenas frente à constante ameaça de perda de identidade graças
à proximidade com o urbano. A partir desse diálogo, foi criado o Centro de Educação e
Cultura Indígena no ano de 2004. Esses centros atendem três aldeias Guarani na cidade
de São Paulo, a saber: Aldeia Tenonde Porã (aproximadamente 599 indígenas no Distri-
to de Parelheiros), Aldeia Krukutu ( aproximadamente 254 indígenas na mesma região)
e Aldeia Jaraguá (aproximadamente 598 indígenas no Distrito do Jaraguá). No ano de
2012, foi apresentada a Proposta Político-pedagógica do Centro de Educação e Cultura

90
Disciplina: Aspectos linguísticos da cultura indígena

Indígena (CECI) e do Centro de Educação Infantil Indígena (CEII), vinculado ao CECI .


A fim de aproximar a criança indígena de sua cultura através da língua. Destacamos os
seguintes dos objetivos do CECI/CEII para o trabalho com crianças de zero a cinco anos e
onze meses:

• Estimular e valorizar o uso da língua materna e suas formas próprias de construção do


conhecimento;

• Fortalecer as formas de transmissão da cultura oral.

Não podemos deixar de notar que a língua materna é uma questão que veicula e permeia qua-
se todos os objetivos traçados para reafirmar e fortalecer a identidade, como, por exemplo, a
questão da transmissão de tradições culturais por meio do canto, histórias e tradições orais.
No que se refere à organização e funcionamento dos CECI/CEII, respeitando a especificidade
de cada região, prevê-se:

“Aulas ministradas na língua materna, como forma de preservação da realidade


sociolingüística do povo Guarani” (grifo nosso)

• Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Esta lei altera o Art. 26 a Lei nº. 9.394, de 20
de dezembro de 1996 de modo a inlcuir a obrigatoriedade do estudo da história e cultura
indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e pri-
vados, além do estudo da história e cultura afro-brasileiras, já presente no trecho da lei de
1996. (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm)
• Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação
Básica. (Resolução no 5, de 22 de junho de 2012): são diversos os artigos que desta-
cam a garantia do ensino bilingue, multilingue e intercultural, a preservação dos registros
linguísticos, a produção de materiais diferenciados elaborados por professores e alunos
indígenas, para todos os níveis da educação escolar. No que se refere à formação de pro-
fessores indígenas, destaca a promoção de concurso público adequado às particularidades
linguísticas e culturais das comunidades indígenas;

Fechando a discussão, mas não a reflexão…


Neste breve histórico, notamos que a educação escolar sempre esteve fortemente relacionada
à questão dos direitos linguísticos dos indígenas, seja como ferramenta de opressão no caso
das escolas das missões jesuíticas ou como direito assegurado pelo Estado. Atualmente, estu-
diosos acreditam que a educação escolar tenha papel fundamental da recuperação das línguas
indígenas, em sua forma oral ou escrita, e na reconstrução de uma identidade indígena per-
dida por alguns povos em anos de processos de repressão, tutela e assimilação. Uma série de
medidas positivas surgiram como resultado da luta da comunidade indígena pela preservação
de seus direitos, inclusive o linguístico. Entretanto, é preciso permanecer vigilante para a efe-
tivação real dessas medidas.

91
Módulo 2 - Conhecendo os povos indígenas no Brasil contemporâneo - desconstruindo preconceitos

Referências
BRAGGIO, Silvia Lucia Bigonjal. Políticas e direitos linguísticos dos povos indígenas
brasileiros. SIGNÓTICA, 14: 129-146, jan./dez. 2002.

LUCIANO - BANIWA, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível
em: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/o-indio-brasileiro/ Acessado em: 09/02/2015.

Documentos oficiais
BRASIL. Constituição (1967). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal.

_______. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado Federal.

_______. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação


Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. 2013
Disponível em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&
cd=2&ved=0CCAQFjAB&url=http%3A%2F%2Fportal.mec.gov.br%2Findex.php%3
Foption%3Dcom_docman%26task%3Ddoc_download%26gid%3D13448%}
26Itemid&ei=nz7ZVJqEJNHbaonTgagP&usg=AFQjCNFY1GltVAen1lXPIkRpJM
hY5TjTLw&sig2=xPSQKQAHG4RqhvnkDPOdkg&bvm=
bv.85464276,d.d24. Acessado em: 09/02/2015.

_______. Ministério da Educação. Plano Nacional de Educação. 2001. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/pne.pdf. Acessado em: 09/02/2015.

_______. Ministério da Educação. Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar


Indígena. Brasília: MEC, SEF, 1993. 22p. (Cadernos educação básica. Série institucional, 2).
Em Aberto, Brasília, ano 14, n.63, jul./set. 1994.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Centro de Educação e cultura


indígena. Proposta político-pedagógica. São Paulo, SP, 2013. 12 p.

Vídeos
Documentário: Índios no Brasil. TV ESCOLA. MEC. Disponível em: http://tvescola.mec.gov.
br/tve/videoteca-series!loadSerie;jsessionid=3057B3F0E88FA01740344072B50DFEDD?idS
erie=6093 Acessado em: 09/02/2015.

92
MÓDULO 3
MARCOS CONCEITUAIS
REFERENTES À VARIAÇAO
LINGUÍSTICA
DISCIPLINA
BREVE INTRODUÇAO À
HISTÓRIA DAS LÍNGUAS
NO BRASIL
Autora: Hosana dos Santos Silva
Apresentação
Nessa disciplina, discutiremos alguns aspectos sócio-históricos, culturais e políticos importan-
tes para compreensão da realidade linguística brasileira, especialmente entre os séculos XVI
e XIX.

Nas três primeiras aulas, trataremos dos contatos linguísticos no período colonial, focalizando
as línguas indígenas e sua importância para formação do português brasileiro, bem como os
processos de espraiamento e de declínio das chamadas línguas gerais.

Nas aulas 4 e 5, exploraremos as experiências linguísticas de africanos e afrodescendentes,


observando a influência das línguas africanas no português do Brasil e analisando a presença
do português afro-brasileiro em comunidades remanescentes quilombolas, como Helvécia e
Cafundó.

Na aula 6, analisaremos as origens do português brasileiro, retomando o postulado crioulístico


e a hipótese da deriva histórica natural.

Esperamos que essas discussões facilitem a sua formação e contribuam para estimular e dar
visibilidade aos estudos das línguas minoritárias brasileiras.

Bons estudos!

Sobre a autora
Hosana dos Santos Silva é doutora (2012) em Letras pelo programa de Filologia e Língua Por-
tuguesa / Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP);
mestre (2007), licenciada (2004) e graduada em Letras (2002), com habilitação em Linguística e
Língua Portuguesa, pela mesma Universidade. Atua principalmente nas áreas de Teoria Linguís-
tica, Sociolinguística e História Social da Linguagem, com ênfase nos seguintes temas: teorias e
descrições sintáticas, aquisição da escrita, interação, variação e mudança linguísticas e história
do português brasileiro. É professora adjunta no curso de Letras (área de Linguística) da Esco-
la de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Atualmente, desenvolve projeto de pesquisa em História Social da Linguagem.

95
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 1
O contato linguístico no Brasil colonial

As línguas indígenas no Brasil colonial


Conforme observamos nas aulas anteriores, quando os portugueses aportaram nessa terra que
viria a se chamar Brasil, encontraram uma situação linguística bastante complexa: mais de mil
línguas indígenas (cf. Rodrigues, 1983; 1999), faladas por mais de um milhão de indivíduos1.
Reveja a estimativa apresentada na aula 4 da disciplina “Aspectos linguísticos da cultura indí-
gena”, com base nos estudos de Rodrigues (1993):

Em 1584 Pe. Fernão Cardim lista Projeção: na Antiguidade


69 línguas em uma área de
550.000 km2, que hoje Essa área corresponde a 6,4% do
corresponde aos estados de território brasileiro, e a projeção
Sergipe, Bahia, Espírito Santo e para a área total do Brasil leva ao
Rio de Janeiro número de 1.078 línguas

Embora os dados empíricos sejam insuficientes para atestar as condições sócio-históricas e lin-
guísticas do período pré-colonial, podemos afirmar que a história de contato entre as línguas
autóctones precede a história de colonização e não se restringe aos efeitos do contato com a
língua portuguesa (MELLO, RASO E ALTENHOFEN, 2011).

Em que pese a falta de apontamentos ou classificações precisas das línguas faladas nessa re-
gião no período seiscentista, os dados disponíveis sobre os primeiros contatos interlinguísticos
evidenciam que a esquadra de Pedro Álvares Cabral defrontou, inicialmente, os Tupinambá

1 Esses dados mudam de um estudo para o outro. De todo modo, esse número comumente varia entre um
milhão e quinhentos mil e seis milhões de indivíduos.

96
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

– designação comum aos indígenas do litoral2. Sabe-se que os usos linguísticos desses falan-
tes – do grupo tupi-guarani - eram ainda desconhecidos pelos portugueses (cf. Vainfas, 2000;
entre outros). Não foi sem motivo que Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada cabralina,
ao apresentar suas impressões sobre as novas terras em sua carta ao rei D. Manuel I, observou:

“[...] Eram [os indígenas] pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.Vinham todos rijos sobre o
batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar
na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que
levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de
papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que
querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais
fala, por causa do mar.” (grifo nosso)

Em outra passagem do texto, Caminha acrescenta:

“[...] Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chega-
do à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava,
enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o
entender, nem ele a nós.” (grifo nosso).

Esse documento, escrito entre março e maio de 1500, deixa ver a dificuldade de comunica-
ção entre portugueses e indígenas. Esse parece ser um dos motivos pelo qual, ao retornar à
metrópole, Cabral decidiu não levar consigo quaisquer dos nativos, mas manter em terra dois
degredados com missão de aprender suas línguas (cf. RODRIGUES, 1983).

2 Reveja a aula 6 da disciplina “A sociodiversidade indígena no Brasil”.

97
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Figura - Antigo mapa do Brasil, de Jacopo Gastaldi (cerca de 1500- cerca de 1565)
Fonte: Biblioteca Nacional do Brasil.

Após esse contato linguístico inicial, pelos desdobramentos da co-


Língua autóctone
lonização portuguesa, formou-se nas terras brasileiras uma popu-
lação mestiça, falante de línguas indígenas diversas, incluindo as A palavra autóctone se
origina no grego autók-
chamadas línguas gerais.
ththon - e significa “ori-
ginário do próprio solo”.
Note-se que outras línguas alóctones entraram no Brasil - ainda Pelo latim, temos a forma
no século XVI - com a presença dos primeiros africanos escraviza- autochtone – “nascido no
dos. Contudo, apesar da intensificação da diversidade linguística, país em que habita, indíge-
o quadro sócio-cultural da colonização se mostrou desfavorável na” (Houaiss, 2001).
Essa palavra é comumente
à preservação das línguas indígenas e africanas. Já observamos -
empregada como adjetivo
nas aulas do módulo anterior - que no decurso dos séculos, apesar para indicar ou distin-
da luta e resistência contínua dos povos indígenas, muitas línguas guir as línguas nativas
desapareceram em consequência, sobretudo, da morte de seus fa- ou naturais de uma certa
lantes (por doenças trazidas pelos europeus, pela violência da es- terra, região ou país. Nos
estudos linguísticos, o
cravidão e pelo massacre de diversos grupos), da aculturação e das
termo “língua autóctone”
é comumente empregado
para designar as línguas
indígenas.

98
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

políticas linguísticas de inibição (cf. RASO, MELLO E ALTENHO- Língua alóctone


FEN, 2011). Disso resulta a completa ausência de línguas africa-
A palavra alóctone desig-
nas remanescentes no Brasil. Quanto às línguas indígenas, restam na “o que não é originá-
cerca de 180, boa parte em risco de extinção (cf. MOORE, 2011; rio do país que habita”
MATTOS; SILVA,1998; entre outros). (HOUAISS, 2001). No
campo da línguística, o
termo se aplica às línguas

As línguas gerais
não originárias de uma
dada terra, região ou
país, mas resultantes de
processos sócio-históricos
de imigração e contatos
Na aula 6 da disciplina “Aspectos linguísticos da cultura indígena”, linguísticos.
estudamos um pouco as línguas gerais. A partir daqui, estendere-
mos essas discussões. Inicialmente, é preciso notar que o termo
língua geral muitas vezes tem sido empregado para denominar uma língua de base tupi, gra-
maticalizada pelos jesuítas com o fim de viabilizar a doutrinação dos indígenas. Nesse sentido,
é comum referir-se à Arte da gramática mais usada na costa do Brasil, do Padre Joseph
Anchieta (1595), como marco do disciplinamento da língua tupi (VAINFAS, 2000).

Figura - Capa de A arte da Gramática da Língua mais usada na costa do Brasil, de Padre Anchieta (1595)
Fonte: Biblioteca Nacional do Brasil.

99
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

É frequente, ainda, o uso do termo língua geral com um sentido abrangente, significando uma
a língua de comunicação desenvolvida por indígenas da costa – falantes de línguas do tronco
tupi – e adotada e modificada pelos primeiros colonos portugueses (LUCCHESI, 2009).

Para Aryon Rodrigues (1996, p. 7), em tese geralmente compartilhada pelos linguistas, o
termo língua geral refere as línguas surgidas em situação de miscigenação e efetivo contato
cultural e linguístico. Nesse sentido, a própria condição de colonização da América do Sul
propiciou a formação de populações mestiças, falantes das línguas indígenas maternas - tupi,
tupinambá e guarani, todas da família linguística tupi-guarani.

“Essas condições se produziram mais tipicamente entre os portugueses e os tupis


(também chamados tupinakins ou tupinikins) de São Vicente e do planalto de Pi-
ratininga, no leste do atual estado brasileiro de São Paulo, no século XVI; entre
os espanhóis e os guaranis do Paraguai, nos séculos XVI e XVII; e entre os portu-
gueses e os tupinambás no norte dos atuais estados brasileiros do Maranhão e do
Pará, no século XVII [...]” (RODRIGUES, 1996, p. 7).

Podemos identificar, desse modo, ao menos três línguas gerais – a paulista, a amazônica e a
guarani-crioulo, esta última estabelecida entre os rios Paraná e Paraguai (RODRIGUES, 1996).

Apesar das diferenças sociais e geográficas, parte dos estudiosos costuma enfatizar o fato de
que esses povos comungavam algumas normas socioculturais e linguísticas, o que possibilitou
o estabelecimento de interações análogas entre os diferentes grupos indígenas e os povos eu-
ropeus, propiciando o bilinguismo parcial, com uma minoria de falantes de línguas européias
(o português e o espanhol) (RODRIGUES, 1996).

Nesse quadro sócio-histórico e linguístico, a língua geral se expandiu de tal modo que, nos
séculos XVII e XVIII, se estabeleceu como língua de comunicação entre os colonos e mesmo
entre indígenas de troncos linguísticos diversos (VAINFAS, 2000). Um bom número de docu-
mentos históricos é constantemente retomado para enfocar o predomínio, entre os séculos XVI
e XVIII, da língua geral – ou das línguas gerais, dadas as diversidades internas das variantes
usadas nas diferentes regiões do Brasil.

Por fim, apesar das diversidades linguísticas em cada região, as línguas gerais apresentam
características sociolinguísticas comuns, notadamente sua origem pela interação entre ho-
mens europeus e mulheres indígenas, sua transmissão ininterrupta, seu estabelecimento como
instrumento de interação verbal entre europeus, mestiços e os diversos povos indígenas (RO-
DRIGUES, 1986, p. 10-11).

100
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Figura - Índios Tupinambás Guerreiros, de Jean de Léry


Fonte: [ic] Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais3

PARA REFLETIR
No Brasil coexistem mais de 210 línguas (cerca de 180 línguas
indígenas e mais 30 línguas de imigração), contudo, o português é a
língua oficial do Brasil e a língua materna da maioria dos brasileiros.
Como abordar esse assunto em sala de aula, levando em conta o
pluralismo cultural e linguístico das escolas brasileiras?

SAIBA MAIS
Para saber mais, leia “Nheengatu: a outra língua brasileira”, de
Bessa Freire (2008). Link: http://www.coresmarcasefalas.pro.br/
adm/anexos/08122008190121.pdf

3 Disponível em www.dominiopublico.gov.br

101
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Texto complementar
Para compreender melhor a configuração do Brasil antes da chegada dos portugueses, leia, a
seguir, um trecho da obra “A Presença Indígena na Formação do Brasil”, de João Pacheco de
Oliveira e Carlos A. da Rocha Freire.

No link http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me004372.pdf você encontrará


o texto completo.

Os índios do Brasil em 1500


(OLIVEIRA E FREIRE, 2006, p. 21-22)

Inúmeras pesquisas arqueológicas assinalam a ocupação do território brasileiro por popu-


lações paleoíndias há mais de 12 mil anos. Os pesquisadores acreditam hoje que houve vá-
rias etapas nesse processo de dispersão humana, pois as novas descobertas arqueológicas
questionam os dados que cercam antigas interpretações do povoamento americano, como
a migração asiática pelo Estreito de Behring (v. Funari e Noelli, 2005). Pesquisas dirigidas
pela arqueóloga norte-americana Ana Roosevelt (1992) na Amazônia apontam registros
de sociedades complexas, sofisticadas no desenvolvimento tecnológico (cerâmicas) e na
organização social (cacicados). As investigações posteriores, se não mantêm um acordo
completo, questionam as antigas hipóteses de povoamento, baseadas na pressuposição
de existência de sociedades pequenas e simples, de caçadores e coletores, caracterizadas
por uma alta mobilidade e o uso de materiais perecíveis, como cestarias.O etnólogo Curt
Nimuendaju assinalou no seu mapa etno-histórico a existência de cerca de 1400 povos
indígenas no território que correspondia ao Brasil do descobrimento [...]. Eram povos de
grandes famílias linguísticas – tupi-guarani, jê, karib, aruák, xirianá, tucano etc. – com
diversidade geográfica e de organização social. A respeito dos povos Tupi haveria várias
hipóteses de sua dispersão sobre o território brasileiro. Arqueólogos como Francisco Noelli
defendem o modelo desenvolvido por Donald Lathrap e José Brochado, no qual as rotas de
expansão estiveram vinculadas a um centro de origem localizado na “região junto à con-
fluência do Madeira com o Amazonas” (Noelli, 1996:31). Segundo este modelo, a expansão
dos Tupinambá se deu do Baixo Amazonas ao litoral nordestino, chegando até São Paulo,
enquanto os Guarani seguiriam para o sul até a foz do rio da Prata. Os povos Tupi eram
encontrados em toda a costa e no vale amazônico, onde dividiam o território com grupos
da família aruák (nos rios Negro e Madeira) e karib (nas Guianas e no Baixo Amazonas).
As descrições geográficas e culturais da vida desses povos elaboradas pelos cronistas co-
loniais contêm inúmeras limitações. Freqüentemente se equivocavam na identificação das
populações, e pouco compreendiam como os índios se rearticulavam para fazer frente ao
projeto colonial português (Pacheco de Oliveira, 1987). A incapacidade dos portugueses
em subjugar alguns grupos indígenas contribuiu para identificar genericamente os índios
hostis como “Tapuios”. Tal identidade ocultava as iniciativas indígenas, os processos so-
cioculturais intertribais de aliança ou conflito com colonizadores.

Há várias estimativas sobre o montante da população indígena à época da conquista, tendo


cada autor adotado um método próprio de cálculo (área ocupada por aldeia, densidade
da população etc.). Julian Steward, no Handbook of South American Indians calculou em
1.500.000 os índios que habitavam o Brasil (Steward, 1949). William Denevan projetou

102
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

a existência de quase 5.000.000 de índios na Amazônia (Bethell, 1998:130-131), sendo


reduzida posteriormente essa projeção para cerca de 3.600.000 (Hemming, 1978).

O historiador John Hemming elaborou detalhadas tabelas por região, estimando em


2.431.000 a população indígena em 1500. Entretanto, seu trabalho sofreu críticas, pois
transportou dados populacionais de séculos posteriores para 1500, além de incluir gru-
pos que não se situavam em certos lugares naquele século (Monteiro, 1995). Especialista
em demografia histórica, Maria Luiza Marcílio (2004) adotou os números de Hemming,
enfatizando o caráter precário e incompleto das fontes coloniais. Marcílio lembrou a de-
população sofrida pelas populações indígenas através de guerras de conquista, extermínio
e escravização, além do contágio de doenças, como a varíola, o sarampo e a tuberculose,
que dizimavam grupos inteiros rapidamente, sofrimento testemunhado por jesuítas como
José de Anchieta e Manoel da Nóbrega.

[...]

Referências
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. 2003. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Letras/
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

______. Nheengatu:  a outra língua brasileira In: LIMA, Ivana Stolze; CARMO, Laura do
(Org.).  História social da língua nacional. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa,
2008. p. 119-150

BESSA FREIRE, José Ribamar; ROSA, Maria Carlota. Línguas gerais: políticas linguísticas e
catequese na América do Sul no período colonial. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 2003.

BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. A língua geral em São Paulo. Raízes do Brasil. Rio de
Janeiro: Livraria José Olimpio, 1971, p. 88-96.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objetiva,


2001.

LUCCHESI, Dante. História do contato entre língua no Brasil. In: LUCCHESI, Dante, BAXTER,
Alan., and RIBEIRO, Ilza., orgs. O português afro-brasileiro [online]. Salvador: EDUFBA,
2009.

MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Diversidade e unidade: a aventura linguística do português


(parte 1). Revista ICALP, vol. 11, Março de 1988, p. 60-72.

______. Diversidade e unidade: a aventura linguística do português (parte 2). Revista ICALP,
vol. 12/13, Junho-Setembro de 1988, p.13-28.

MOORE, Denny. Línguas indígenas. In: MELLO, Heliana; ALTENHOFEN, Cléo; RASO,
Tommaso. (Orgs.). Os contatos linguísticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

103
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

OLIVEIRA,, João Pacheco de; FREIRE, Carlos A. da Rocha. A Presença Indígena na Formação
do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em http://www.dominiopublico.
gov.br/download/texto/me004372.pdf. Acessado em 10/01/2014.

RASO, Tommaso; MELLO, Heliana; ALTENHOFEN, Cléo. Os contatos linguísticos e o Brasil


– Dinâmicas pré-históricas, históricas e sociopolíticas. In: MELLO, Heliana; ALTENHOFEN,
Cléo; RASO, Tommaso. (Orgs.). Os contatos linguísticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas.


D.E.L.T.A. 9(1). São Paulo, 1993, p.83-103.

______. A originalidade das línguas indígenas brasileiras [conferência realizada na


inauguração do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília em 08 de julho
de 1999]. Brasília, DF: Laboratório de Línguas Indígenas, 1999. 17p. Disponível em: <http://
www.laliunb.com.br>. Acessado em: 12/11/2014.

______.Aryon Dall’Igna. As línguas gerais sul-americanas. PAPIA: Revista Brasileira de Estudos


Crioulos e Similares, São Paulo, v. 4, n. 2, 1996.

RODRIGUES, José Honório. A vitória da língua portuguesa no Brasil colonial. Humanidades,


vol. 1, n. 4. Brasília, 1983, p. 22-41.

VAINFAS,  Ronaldo  (dir.). Dicionário do Brasil colonial  (1500-1808). Rio de Janeiro:


Objetiva, 2000.

104
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

AULA 2
Processos de enfraquecimento
das línguas gerais

Políticas linguísticas e mudança social: os


processos de apagamento das línguas gerais
Vimos na aula anterior que as línguas gerais prevaleceram no Brasil até o século XVIII. Na história
da colonização, os processos de dominação dos grupos nativos, as ações de extermínio motivadas
por conflitos diversos, as mortes por doenças epidêmicas e o avanço da imigração portuguesa pro-
vocaram a brusca redução da população indígena e, consequentemente, de suas línguas.

Figura - Dança dos índios tupinambás, de Jean de Léry


Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais4

4 Disponível em www.domíniopublico.gov.br

105
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Nesse quadro, o enfraquecimento das línguas gerais se apresenta como consequência dire-
ta das mudanças sociais, políticas e econômicas processadas na sociedade colonial. Dentre
os múltiplos fatos históricos que marcaram esse período, destacamos as políticas lusitanas
dirigidas à colônia, substanciadas na Lei do Diretório, de 03 de maio de 1757, proposta por
Marquês de Pombal, ministro de D. José I – rei de Portugal.

No plano geral, o Diretório cultivou o objetivo de dirimir as diferenças socioculturais e supe-


rar a cultura indígena. No que se refere, especificamente, às políticas linguísticas, a legislação
pombalina estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa em detrimento das
línguas gerais. A expulsão dos jesuítas, observados como importantes reprodutores e legiti-
madores das línguas gerais, em 1759, é apontada pelos historiadores e linguistas como um
importante fator para o gradativo enfraquecimento das línguas e culturas indígenas.

Conforme notamos na aula anterior, em São Paulo seu enfraquecimento ocorre ainda no sé-
culo XVIII. Na região Amazônica, a língua geral perde sua hegemonia somente no XIX, por
ocasião da emancipação do Brasil e consequente dissolução do estado do Grão-Pará como
entidade autônoma (cf. Bessa Freire, 2003).

É importante enfatizar que a hegemonização da língua portuguesa se dá a partir da segunda


metade do século XVIII, como parte de um processo de ”secessão das línguas”, conforme pro-
põe Honório Rodrigues (1983). Dito de outro modo, a sociedade colonial brasileira viveu um
verdadeiro embate linguístico, decidido com vitória da língua portuguesa:

“Numa sociedade dividida em castas, em raças, classes, mesmo quando é evidente


o processo de unificação da língua, especialmente num continente como o Brasil,
onde durante três séculos combateram várias línguas indígenas e negras contra
uma branca, não havia paz cultural, nem paz linguística.
Havia, sim, um permanente estado de guerra, e qualquer que seja o nome que se
dê à secessão das línguas, vulgaridade, estupidez, tédio, o resultado é sempre a
separação de um homem do outro, mas também a divisão em si mesma de cada
ser”. (RODRIGUES, 1983, p. 37).

Esse breve traçado histórico deixa ver que o estabelecimento da língua portuguesa como lín-
gua oficial do Brasil e língua materna da maioria dos brasileiros não decorre de um processo
natural, mas resulta de penosas realidades sócio-culturais, irremediavelmente atravessadas
por sucessivas decisões políticas. Devemos lembrar, nesse sentido, que o enfraquecimento das
línguas indígenas não encerrou os conflitos linguísticos e culturais no Brasil, mesmo porque,
não obstante a imposição da língua portuguesa, parte da população indígena subsistente pre-
servou suas línguas maternas.

106
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Lembre-se:
As aulas do primeiro módulo do curso apresentam muitas informações sobre as línguas indígenas
no Brasil.

Afora isso, o tráfico de escravos africanos só foi interrompido, definitivamente, na segunda


metade do século XIX, com a promulgação da lei nº 581, conhecida como Lei Eusébio de
Queirós, em 04 de setembro de 1850. Assim, desde a legislação pombalina, as disputas socio-
linguísticas prosseguiram por mais de um século:

era ainda uma privação, uma aflição, uma angústia permanente que escravos
negros chegados cada vez em maiores proporções revelavam na separação das lín-
guas e na expectativa do esforço que representaria falar, exprimir-se, revelar-se.
(RODRIGUES, 1983, p. 37).

Figura - Índios Guarani civilizados, soldados de artilharia no Rio de Janeiro, de Jean Baptiste Debret.
Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais5

Apesar dessa história de apagamentos, declínios e glotocídio (aniquilamento deliberado de


línguas), na atualidade, conforme vimos nas aulas anteriores, a população indígena que vive
no Brasil ainda fala uma multiplicidade de línguas, entre elas as variedades do nheengatu
comumente referida, entre outras denominações, como língua geral amazônica. Desde 2002,
o nheengatu tornou-se, no município de São Gabriel da Cachoeira, a primeira língua indígena
cooficializada em território brasileiro, juntamente com o tukano e o baniwa (cf. BESSA FREI-
RE, 2003; NAVARRO, 2012).

5 Disponível em www.domíniopublico.gov.br

107
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

PARA REFLETIR
Quais medidas podem ser adotadas, na educação básica (ensino
fundamental e médio), para preservação das línguas indígenas?

Texto complementar
Leia um trecho do clássico texto de Sérgio Buarque de Holanda sobre a importância das lín-
guas gerais em São Paulo.

A língua geral em São Paulo


(BUARQUE DE HOLANDA, 1971 [1948] , p.88-96)

[...]

Admite-se, em geral, sobretudo depois dos estudos de Teodoro Sampaio, que ao bandei-
rante, mais talvez do que ao indígena, se deve nossa extraordinária riqueza de topônimos
de procedência tupi. Mas admite-se sem convicção muito arraigada, pois parece evidente
que uma população “primitiva”, ainda quando numerosa, tende inevitavelmente a aceitar
os padrões de seus dominadores mais eficazes.

Não faltou, por isso mesmo, quem opusesse reservas a um dos argumentos invocados por
Teodoro Sampaio, o de que os paulistas da era das bandeiras se valiam do idioma tupi em
seu trato civil e doméstico, exatamente como os dos nossos dias se valem do português.

Esse argumento funda-se, no entanto, em testemunhos precisos e que deixam pouco lugar
a hesitações, como o é o do Padre Antonio Vieira, no célebre voto que proferiu acerca
das dúvidas suscitadas pelos moradores de São Paulo em torno do espinhoso problema da
administração do gentio. “É certo – sustenta o grande jesuíta – é certo que as famílias dos
portugueses e índios de São Pulo estão tão ligadas hoje umas às outras, que as mulheres
e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala é a
dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender na escola...”

Não se diga que tal afirmação, vinda de quem veio, pudesse ter sido uma invenção pie-
dosa, destinada a abonar o parecer dos adversários da entrega do gentio a particulares e
partidários do regime das aldeias, onde, no espiritual, pudessem os índios ser doutrinados
e viver segundo a lei da Igreja. Era antes um escrúpulo e dificuldade, que tendia a estorvar
o parecer de Vieira, pois “como desunir esta tão natural união”, sem rematada crueldade
para com os que “assim se criaram e há muitos anos vivem”?

Tentando precaver-se contra semelhante objeção, chega a admitir o jesuíta que se os índios
ou índias tivessem realmente tamanho amor aos seus chamados senhores, que quisessem
ficar com eles por espontânea vontade, então ficassem, sem outra qualquer obrigação além
desse amor, que é o cativeiro mais doce e a liberdade mais livre.

108
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Que Vieira, conhecendo apenas de informações o que se passava em S. Paulo, tenha sido
levado facilmente a repetir certas fábulas que, entre seus próprios companheiros de roupe-
ta, correriam a respeito dos moradores da capitania sulina, não é contudo improvável. Ca-
beria, por conseguinte, ao lado do seu coligir outros depoimentos contemporâneos sobre o
assunto e verificar até onde possam eles ter sido expressão da verdade.

O empenho que mostraram constantemente os paulistas do século XVII em que fossem


dadas as vigariarias da capitania, de preferência a naturais dela, pode ser atribuído ao
mesmo nativismo que iria explodir mais tarde na luta dos emboabas. Mas outro motivo
plausível é apresentado mais de uma vez em favor de semelhante pretensão: o de que os
religiosos procedentes de fora, desconhecendo inteiramente a língua da terra, se enten-
diam mal com os moradores.

É explicita, a propósito, uma exposição que, isso já em 1725, enviaram a el-Rei os cama-
ristas de São Paulo. E em 1698, ao solicitar Sua Majestade que o provimento de párocos
para as igrejas da repartição do Sul recaísse em religiosos conhecedores da língua-geral
dos índios, o Governador Artur de Sá e Meneses exprimia-se nos seguintes termos: “... a
maior parte daquela Gente se não explica em outro idioma, e principalmente o sexo femi-
nino e todos os servos, e desta falta se experimenta irreparável perda, como hoje se vê em
São Paulo com o novo Vigário que veio provido naquela Igreja, o qual há mister quem o
interprete...”.

Que entre as mulheres principalmente o uso da língua-geral tivesse caráter mais exclu-
sivista, eis uma precisão importante, que o texto citado vem acrescentar às informações
de Vieira. Mais estreitamente vinculada ao lar do que o homem, a mulher era aqui, como
tem sido em toda parte, o elemento estabilizador e conservador por excelência, o grande
custódio da tradição doméstica [...]

Referências
BESSA FREIRE, José Ribamar. Da Língua Geral ao Português: para uma história dos usos
sociais das línguas na Amazônia. 2003. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Letras/
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

BRASIL. Quem são, quantos são e onde estão os povos indígenas e suas escolas no Brasil?:
Programa Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena. GROUPIONI, Luís Donisete
Benzi (Org.). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2002.

BUARQUE DE HOLLANDA, Sérgio. A língua geral em São Paulo. Raízes do Brasil. Rio de
Janeiro: Livraria José Olimpio, 1971, p. 88-96.

NAVARRO, Eduardo de Almeida.  O último refúgio da língua geral no Brasil.  Estud.


av. [online]. 2012, vol.26, n.76, pp. 245-254. ISSN 0103-4014.

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. As línguas gerais sul-americanas. PAPIA: Revista Brasileira de


Estudos Crioulos e Similares, São Paulo, v. 4, n. 2, 1996.

RODRIGUES, José Honório. A vitória da língua portuguesa no Brasil colonial. Humanidades,


vol. 1, n. 4. Brasília, 1983, p. 22-41.

109
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 3
As línguas indígenas e o português
brasileiro

As línguas indígenas no século XIX


Observamos, nas aulas anteriores, que as línguas indígenas brasileiras se enfraqueceram entre
os séculos XVI e XIX, como consequência da depopulação e dos processos de aculturação.

Figura - A passagem de um rio pelos indígenas guaicurus.


Fonte: Biblioteca Nacional Digital Brasil6

6 Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital

110
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

No século XIX, com a emancipação política do Brasil, assentou-se um projeto nacionalista, que
implicou a busca por uma língua e literatura próprias, livres dos enlaces lusitanos. Nesse con-
texto, renovou-se, entre as elites brasileiras, o interesse pelas línguas indígenas, especialmente
o tupi. Reavivaram-se os antigos debates acerca do papel integracionista desempenhado pelas
línguas gerais e, ainda, acerca de seu valor enquanto herança linguístico-cultural na formação
da história nacional brasileira (RODRIGUES, 2002; 2008). No Estado Imperial, os acadêmicos
encarregaram-se de impulsionar o tupi. Todavia, podemos dizer que nunca houve no Brasil
verdadeira valorização das línguas e culturas indígenas. Conforme propõe Rodrigues (2008,
p. 333), o que ressurge, no Brasil oitocentista, é uma língua idealizada, um tupi “morto-vivo”,
suficiente para fixar uma “impressão de brasilidade”:

“O quadro que se pintava era de um idioma descolado de seu povo. Ou seja,


um idioma que era patrimônio da Igreja, do Estado e de letrados. O idioma tupi
sobrevivera, mas a raça tupi desaparecera, ou estava praticamente extinta” (RO-
DRIGUES, 2008, p. 333).

Nos anos seguintes e até o final do século XIX, com o avanço dos projetos nacionalistas, o
interesse pelas questões indígenas alinha-se ainda mais às perspectivas ideológicas das elites.
De fato, nas últimas décadas do Império, vigora uma visão romântica, em que o indígena é
representado como o “bom selvagem” – símbolo da identidade nacional (SCHWARCZ, 2008,
p. 111).

Figura - Menino índio de Mato Grosso, de Marc Ferrez.


Fonte: France Diplomatie, 2015.

111
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Não obstante o processo de idealização do tupi, o interesse da intelectualidade pela língua


indígena acabou por lhe conferir algum prestígio. Ora, a literatura romântico-indianista, os
estudos científicos, as pesquisas e discussões sobre as línguas indígenas tiveram importância
na formação do português brasileiro. Isto porque, para além dos usos linguísticos propria-
mente ditos, os traços das línguas indígenas passaram a integrar as ideologias linguísticas
brasileiras (cf. SANTOS SILVA, 2012). Dito de outro modo, a noção de correção linguística no
Brasil - mediada pelo conhecimento e legitimação das línguas indígenas enquanto formadoras
do português brasileiro - passa a distinguir-se do normativismo europeu.

Por fim, é necessário observar que, a despeito do interesse acadêmico pelas línguas indígenas,
em especial o tupi, a hegemonia da língua portuguesa sobre as demais línguas faladas no Bra-
sil permaneceu inabalável.

As línguas indígenas e o português brasileiro


Não devemos perder de vista o fato de que a força sócio-cultural da língua portuguesa não
decorre de um processo natural, mas das condições políticas, econômicas e sócio-culturais que
resultaram na imposição dessa única língua em detrimento de todas as outras.

Se a emancipação cultural brasileira acarretou a busca por uma língua própria, é fato que,
no plano geral, a intelectualidade brasileira oitocentista não chegou a reivindicar a validação
das línguas indígenas ou africanas como língua nacional e/ ou oficial no Brasil (cf. PAGOT-
TO,1998; LIMA, 2008). Na verdade, aquela sociedade fortemente hierarquizada, sustentou
as hierarquias linguísticas estabelecidas ao longo da história colonial (MARIANI, 2004), em
consonância com os estudos cientificistas dos séculos XIX e XX, que tão bem postularam a
existencia de línguas estruturalmente primitivas (línguas indígenas, africanas, crioulas etc.),
por oposição a línguas estruturalmente complexas (notadamente, as línguas europeias).

Sobre o léxico do português brasileiro


Quando se discute o papel das línguas indígenas na formação do PB, o enfoque recai no léxico,
aspecto linguístico muito explorado, desde o século XIX, para afiançar a autonomia do portu-
guês do Brasil em relação a Portugal (cf. Petter, 2002; Horta Nunes e Petter, 2002).

Com efeito, é bastante vasto o léxico de origem indígena presente no português do Brasil. Nes-
se sentido, podemos exemplificar com algum vocabulário extraído do Dicionário histórico
das palavras portuguesas de origem Tupi, de Antonio Geraldo da Cunha (1998 [1978]):

112
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Vocabulário de origem tupi


Açaí: espécie de palmeira da subfamília das ceroxilíneas, cujo fruto é comestível e fornece uma bebida
fermentada muito apreciada; açaizeiro.
Aipim: planta da família das euforbiáceas.
Amendoim: nome de diversas plantas da família das leguminosas.
Anhanguera: gênio maléfico, entre os indígenas.
Arara: nome comum a diversas aves de grande porte da família dos psitacídeos.
Beiju: bolo de farinha de mandioca.
Biboca: buraco, cova, local de difícil acesso; por extensão, ruelas, ou logradouros frequentados por indivídu-
os de baixa condição social.
Caatinga: mata de vegetação xerófila, constituída de árvores de filhas finas, cardos e gravatás, característica
dos sertões do nordeste do Brasil.
Caboclo: índio; mestiço de branco com índia; homem do sertão, de hábitos rudes e de pele queimada pelo sol.
Canindé: ave da família dos psitacídeos.
Capão: pequeno bosque insulado num descampado.
Capim: denominação comum a diversas plantas das famílias gramíneas e das ciperáceas; erva, mato em
geral.
Emboaba: alcunha que, nos tempos coloniais, principalmente na região das minas, foi dada pelos descen-
dentes dos bandeirantes paulistas aos portugueses e aos forasteiros em geral; reinol.
Guri: bagre novo; por extensão, criança.
Indaiá: nome comum às palmeiras da subfamília das cocosoídeas.
Jabuti: réptil da ordem dos quelônios, família dos testudinídeos.
Jacarandá: nome comum a diversas plantas das famílias das mimosas e das bignoniáceas que fornecem
excelente madeira para móveis e outras obras finas de marcenaria.
Maguari: ave da ordem dos ciconiformes, família dos ciconídeos.
Mirim: pequeno.
Paçoca: iguaria preparada com carne desfiada e farinha de mandioca socadas no pilão; amendoim ou
castanha-do-pará torrados e socados no pilão, com açúcar e farinha; por extensão, mistura, confusão.

113
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Texto complementar
Apresentamos, a seguir, um trecho do “Pós-escrito à Diva”, de José de Alencar. Nesse texto, o
autor rejeita as críticas que recebera por empregar em suas obras uma variedade linguística
afastada do modelo lusitano. Observem que as palavras de Alencar se apresentam como crítica
à proposta de subordinação do Brasil aos ditames sociolinguísticos portugueses.

Pós-escrito
(ALENCAR, 1865)

[...]

A língua é a nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo. Da


mesma forma que instituições justas e racionais revelam um povo grande e livre, uma lín-
gua pura, nobre e rica, anuncia a raça inteligente e ilustrada.

Não é obrigando-a a estacionar que hão de manter e polir as qualidades que porventura
ornem uma língua qualquer: mas sim fazendo que acompanhe o progresso das ideias e se
molde às novas tendências do espírito, sem contudo perverter a sua índole e abastardar-se.

Criar termos necessários para exprimir os inventos recentes, assimilar-se aqueles que, em-
bora oriundos de línguas diversas sejam indispensáveis e sobretudo explorar as próprias
fontes, veios preciosos onde talvez fixaram esquecidas muitas pedras finas; essa é a missão
das línguas cultas e seu verdadeiro classismo.

Quanto à frase ou estilo, também se não pode imobilizar quando o espírito, de que é ela a
expressão, varia com os séculos de aspirações e de hábitos. Sem o arremedo vil da locução
alheia e a imitação torpe dos idiotismos estrangeiros, devem as línguas aceitar algumas no-
vas maneiras de dizer, graciosas e elegantes, que não repugnem ao seu gênio e organismo.

Deste modo não somente se vão substituindo aquelas dicções que por antigas e desusadas
caducam, como se estimula o gosto literário, variando a expressão que afinal de tanto re-
petida se tornaria monótona. De resto, essa é a lei indeclinável de toda a concepção do es-
pírito humano, seja simples idéia, arte ou ciência, progredir sob pena de aniquilar-se [...].

PARA REFLETIR
Quais os efeitos, na atualidade, da dominação glotocida e etnocida
que seguiu ao descobrimento das terras brasileiras?

SAIBA MAIS
Para saber mais sobre esse assunto, leia “A língua brasileira e os
sentidos de nacionalidade e mestiçagem no Império do Brasil”,
de Ivana Stolze Lima (2003). Link: http://www.revistatopoi.org/
numeros_anteriores/Topoi%2007/topoi7a5.pdf

114
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Referências
CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem Tupi.
4. ed. São Paulo: Companhia Melhoramentos; Brasília: Universidade de Brasília, 1998 [1978].

HORTA NUNES, José; PETTER, Margarida (Org.) História do saber lexical e constituição
de um léxico brasileiro. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Pontes, 2002.

LIMA, Ivana Stolze; CARMO, Laura do. (Org.). História Social da Língua Nacional. Edições
Casa Rui Barbosa: Rio de Janeiro, 2008, p. 327-349.

PAGOTTO, Emílio G. Norma e Condescendência, Ciência e Pureza. In: Línguas Instrumentos


Lingüísticos, 3, Campinas: Pontes, 1998.

PETTER, Margarida. Termos de origem africana no léxico do português do Brasil. In: Horta
Nunes, José; Petter, Margarida (Org.) História do saber lexical e constituição de um léxico
brasileiro. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Pontes, 2002. p. 123-145.

RODRIGUES, João Paulo C. S. A pátria e a flor: língua, literatura e identidade nacional


no Brasil, 1840-1930. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas:
Campinas, 2002.

______. Tupifilia internacional: tupi, cientistas e viajantes no século XIX. In: Lima, Ivana Stolze;
CARMO, Laura do. (Org.). História Social da Língua Nacional. Edições Casa Rui Barbosa:
Rio de Janeiro, 2008, p. 327-349.

SANTOS SILVA, Hosana. O lugar da língua na São Paulo transformada: os usos linguísticos
dos intelectuais republicanos paulistas. Tese de Doutorado. 2002. São Paulo: Universidade
de São Paulo.

SCHWARCZ, Lilia M. O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e pensamento racial no


Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1993].

VAINFAS,  Ronaldo  (dir.). Dicionário do Brasil colonial  (1500-1808). Rio de Janeiro:


Objetiva, 2000.

115
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 4
As línguas africanas no período colonial
Nas aulas anteriores, discutimos questões a propósito das línguas indígenas, analisando as
condições iniciais de contato linguístico, a expansão e gradual enfraquecimento das línguas
gerais e seu lugar no discurso fundador das nacionalidades brasileiras.

Mas é fato que a realidade sociolinguística no Brasil colonial foi ainda mais complexa, dada a
presença das línguas africanas. Conforme propõe José Honório Rodrigues:

a língua portuguesa teve na geral e na diversidade de línguas faladas pelos índios


sua principal inimiga, mas as africanas também tiveram que ser dominadas para
a vitória da língua portuguesa (RODRIGUES,1983, p. 19) .

Figura - Cabeças de negros (1835). Rugendas, Johann Moritz (1802-1858)


Fonte: Biblioteca Nacional Digital Brasil

116
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Os primeiros escravos africanos foram introduzidos nas terras brasileiras já no século XVI,
talvez com a primeira expedição oficial de povoadores (cf. PRADO JR., 2006 [1974]) e, nas
últimas décadas do século XVII, a mão de obra africana passou a constituir a base do sistema
colonial.

É comum nos estudos sócio-históricos e linguísticos (cf. MATTOSO CÂMARA, 1965; RODRI-
GUES, 1993; BONVINI, 2013, entre outros) a referência a quatro grandes ciclos de escraviza-
ção africana:

Primeiro iniciado no século XVI, o chamado ciclo da Guiné, alcançou


ciclo os sudaneses da Costa da Guiné.

Segundo o ciclo do Congo e de Angola, no século XVII, escravizou


ciclo africanos da zona banta.

Terceiro o ciclo da costa da Mina, na primeira metade do século


XVIII, atingiu novamente os sudaneses e, entre 1770 e 1850,
ciclo recaiu na baía de Benin.

Quarto Por fim, no século XIX, o Brasil recebeu africanos de diversas


ciclo regiões, em especial, de Angola e de Moçambique.

(cf. RODRIGUES, 1983; BONVINI, 2013).

É importante enfatizar que a manutenção do sistema escravista intensificou a pluralidade lin-


guística no Brasil, já que, retomando as palavras de Bonvini (2013):

A transplantação das línguas africanas para o Brasil foi concomitante à impor-


tação dos escravos africanos que começou em terras brasileiras, na metade do
século XVI, e prosseguiu até o século XIX. Ela flutuou segundo os diversos ciclos
que a caracterizam.(BONVINI, 2013).

Não se pode apontar com certeza quais as línguas faladas pelos africanos cativos, todavia, con-
siderando a área atingida pelo tráfico, acredita-se que foram transplantadas para o Brasil uma
vasta quantidade de línguas da área oeste-africana e da área austral ou banta. Nesse sentido,
Nina Rodrigues, ainda na década de 1930, propõe:

117
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

[...] as línguas africanas faladas no Brasil sofreram para logo grandes alterações,
já com a aprendizagem do português por parte dos escravos, já com o da língua
africana adotada como língua geral pelos negros aclimados ou ladinos. De fato,
ninguém iria supor que falassem a mesma língua todos os escravos pretos. Antes,
no número das importadas, na infinita multiplicidade e matizes dos seus dialetos,
elas eram tantas que, num exagero quase desculpável, se poderiam dizer equi-
valentes em número ao dos carregamentos de escravos lançados no país (NINA
RODRIGUES, 2010 [1933], p., 132).

É possível que as condições sócio-culturais e econômicas estabelecidas na colônia tenham fa-


vorecido a adoção do quimbundo (ou congolesa) como língua de comunicação entre africanos
originários da área banta, além do nagô (ou iorubá), entre sudaneses ou falantes do grupo
central (cf. Castro, 2005; Lucchesi, 2009; Bonvini, 2013; entre outros). Acredita-se, ainda,
que línguas de outros grupos linguísticos africanos também se constituíram línguas francas no
Brasil, consoante a origem e predominância dos grupos africanos escravizados em cada região
(LUCCHESI, 2009, p. 66).

Figura - Negros de Benguela e Congo (1835). Rugendas, Johann Moritz (1802-1858)


Fonte: Biblioteca Nacional Digital Brasil

118
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

As línguas africanas e o português brasileiro


É preciso notar que o contato entre a língua portuguesa e as línguas africanas não tem sua
origem no empreendimento colonial, mas na história de interação entre portugueses e africa-
nos, iniciada na expansão portuguesa no continente africano e na presença de africanos em
Portugal. Assim, o português das caravelas já trouxera consigo marcas linguísticas tomadas
das línguas africanas (cf. BONVINI, 2002; PETTER, 2002; ALMEIDA, 2012).

Com a presença das línguas africanas no Brasil, o português brasileiro assumiu características
ainda mais singulares em relação à língua falada em Portugal; haja em vista as notáveis dife-
renças lexicais.

Nesse sentido, consideramos, ainda, que o tratamento das diferenciações lexicais carreia o
problema de se distinguir as palavras entradas a partir do contato linguístico com os africanos
escravizados no Brasil e o vocabulário de origem africana, já presente na língua portuguesa no
período que antecede à colonização.

“É o caso de inhame, palavra africana que se encontra sob a forma espanhola


nãme no Diário de Cristóvão Colombo (1492) e sob a forma portuguesa na carta
em que Pêro Vaz de Caminha, em 1500, dá notícia do descobrimento do Brasil ao
Rei D. Manuel” (TEYSSIER, 1997, p. 110).

Dentre os estudos sobre a importância das línguas africanas na formação do português do Bra-
sil, destacamos A influência africana no português do Brasil, de Renato Mendonça (1973
[1933], p. 109-164), estudo pioneiro, que apresenta 375 verbetes de origem africana (cerca
de 10% do total estimado) usados no Brasil e/ ou empregados por escritores brasileiros, até o
início do século XX. Seguem alguns exemplos:

119
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Vocabulário de origem africana


Agogô: Instrumento de dupla campânula.
Angu: massa feita de fubá de milho ou mandioca.
Banguela: 1. nome de um povo negro embarcado em Benguela. 2. pessoa sem dentes da frente. Provém do
costume dos banguelas que arrancavam os dentes da frente das crianças.
Banzar: pasmar de mágoa.
Batuque: dança com sapateados e palmas.
Bobó: sopa de inhame.
Bunda: nádegas, assento.
Cabaça: gêmeo que nasce em segundo lugar.
Cambada: corja; súcia.
Dengo: designação familiar de menino.
Fubá: farinha de milho ou de arroz.
Gongá: cestinha com tampa.
Macumba: feitiçaria, candomblé.
Mandinga: feitiço, talismã para “fechar” o corpo.
Quilombo: povoação fortificada dos negros fugidos ao cativeiro.
Quitute: iguaria de sabor apurado; do quimbundo kitutu, indigestão. Naturalmente um bom prato é repetido
imprudentemente, o que produz às vezes uma indigestão.
Sinhá: forma popular de senhora, criada pelos negros sobre o masculino sinhô.
Xingar: injuriar, ofender.

Apesar de enfocarmos os aspectos relativos à diversidade lexical, vários estudos procuram


reconhecer as interferências das línguas africanas na estrutura do português brasileiro. Já no
início do século XX, João Ribeiro, em seu Dicionário Gramatical (1906, p. 230), observou
que essas alterações não são superficiais, ao contrário, se encontram em todos os níveis da
estrutura da língua.

120
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Texto complementar
Vários estudos discutem a influência das línguas africanas no português. A seguir, apresenta-
mos um pequeno trecho da obra História da Língua Portuguesa, de Paul Teyssier (1997).

Vocabulário de origem africana


(TEYSSIER, 1997, p. 110)

[...]

Com efeito, os escravos pertenciam às mais variadas etnias. Entretanto, duas línguas afri-
canas tiveram um papel particularmente importante no Brasil: o ioruba (falado atualmente
na Nigéria) e o quimbundo (falado em Angola). O ioruba está na base de um vocabulário
próprio à Bahia, relativo às cerimônias do candomblé (por ex,: orixá) ou à cozinha afro-
-brasileira (ex.: vatapá, abará, acará, acarajé). O quimbundo legou ao Brasil um vocabu-
lário mais geral, quase sempre integrado à língua comum (ex.: caçula, cafuné, malombo,
moleque). Muitas vezes esses vocabulário evoca o universo das plantações de cana-de-açú-
car (ex. bangüê), com os escravos, seu modo de vida e suas danças (ex.: senzala, mocambo,
maxixe, samba).

Finalmente, o vocabulário específico do português do Brasil é considerável. Ele encontra-


-se registrado e explicado em certos dicionários, e em particular no Novo Dicionário da
Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro, 1975).

PARA REFLETIR
Quais os efeitos do processo histórico de apagamento das línguas
africanas na formação da identidade cultural e linguística do povo
afro-brasileiro?

SAIBA MAIS
Leia o texto “As línguas africanas e o português falado no Brasil”,
de Emilio Bonvini (2010). Link: http://www.educadores.diaadia.
pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/2010/Lingua_
Portuguesa/dissertacao/Aslinguas_escravos_brasil.pdf

121
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Referências
CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas africanas no português brasileiro. Secretaria
Municipal de Educação de Salvador. Pasta de textos da professora e do professor. Salvador:
Secretaria Municipal de Educação, 2005. Disponível em: Acesso em: 12 out. 2013.

ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. Ladinos e Boçais: o regime de línguas do contrabando de
africanos. Dissertação de Mestrado. 2012. Campinas:Universidade de Campinas.

BONVINI, Emilio. Palavras de origem africana no português do Brasil: do empréstimo


à integração. In: NUNES, José Horta; PETTER, Margarida. História do saber lexical e a
constituição de um léxico brasileiro. São Paulo: Humanitas/Pontes, 2002.

BONVINI, Emílio. Os vocábulos de origem africana na constituição do português falado


no Brasil. FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida. África no Brasil: a formação da língua
portuguesa. São Paulo: Editora Contexto, 2013.

FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida. África no Brasil: a formação da língua portuguesa.
São Paulo: Editora Contexto, 2013.

MATTOSO CÂMARA, J. Introdução às línguas indígenas no Brasil. Rio: Acadêmica, 1965.

MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1973.

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro


Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. 303 p. ISBN: 978-85-7982-010-6. Available from SciELO
Books

PETTER, Margarida. Termos de origem africana no léxico do português do Brasil. In:


Nunes, José Horta e Petter, Margarida. História do saber lexical e a constituição de um léxico
brasileiro. São Paulo: Humanitas/Pontes, 2002.

PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 26 ed São Paulo: Brasiliense, 2006.

RIBEIRO, João. Diccionario Grammatical. 3 ed. São Paulo: Livraria Rodrigues Alves, 1906.

RODRIGUES, Jose Honório. A vitória da língua portuguesa no Brasil colonial. Humanidades,


I(4), 1983, p. 21-41.

TEYSSIER, Paul. História da língua portuguesa. Trad. Celso Cunha. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.

122
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

AULA 5
Comunidades afro-descendentes e o
português afro-brasileiro

O que restou das línguas africanas no Brasil?


Já observamos que, na atualidade, sobrevivem no Brasil cerca de 180 línguas indígenas, boa
parte em risco de extinção. Mas, o que restou das línguas africanas? Essa questão, pouco de-
batida na educação básica, tem recebido diferentes respostas. É comum a abordagem desse
assunto pela análise da preservação das línguas africanas nos usos cerimoniais e religiosos ou,
especialmente, pela análise dos africanismos. Contudo, para além das assimilações e dos usos
linguísticos específicos, algumas comunidades rurais afro-brasileiras conservam vestígios das
línguas africanas trazidas para o Brasil nos séculos passados. Esse é o caso, por exemplo, da
comunidade de Helvécia e do Cafundó, conforme veremos a seguir.

A comunidade de Helvécia
Desde meados do século XX, investigam-se indícios de crioulização no português falado no
Brasil. Para desenvolvimento desses estudos, focalizam-se as comunidades rurais afro-brasilei-
ras isoladas, as quais teriam conservado variedades linguísticas específicas, formadas a partir
do contato da língua portuguesa com as línguas africanas.

Nessa direção, nos anos de 1960, Carlota Ferreira, analisando a comunidade afro-brasileira de
Helvécia, registrou a existência de uma variedade linguística bastante singular, talvez origi-
nada de processos de crioulização do português (LUCCHESI et. al, 2009). Essa hipótese ainda
não foi confirmada, contudo, entre as décadas de 1980 e 1990, os linguistas Alan Baxter e
Dante Lucchesi, retomando os estudos sobre Helvécia, concluíram que os usos linguísticos des-
sa comunidade podem ter sido afetados pelo “processo de transmissão linguística irregular”.

Essa comunidade, situada ao extremo sul da Bahia, no município de Nova Viçosa, foi fundada
por colonos europeus, no século XIX. Em 1818, alemães, franceses e suíços formaram a Colô-
nia Leopoldina para o cultivo e exportação de café, a partir do trabalho de escravos africanos,
crioulos e mestiços. Todavia, com a abolição da escravatura e o avanço da agricultura cafeei-
ra para regiões mais produtivas, a colônia entrou em declínio e vários colonos regressaram

123
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

para a Europa. Nesse contexto, muitos ex-escravos se fixaram nessa região, cultivando a terra
para o próprio sustento. O relativo isolamento dessa comunidade – até meados do século
XX – favoreceu a preservação de traços culturais e linguísticos próprios de seus antepassados
africanos (LUCCHESI et. al, 2009).

Devemos notar, entretanto, que, já na década de 1960, a significativa variedade linguística de


Helvécia se restringia aos falantes mais idosos.

Exemplos de usos linguísticos em Helvécia


Alguns linguistas (cf. Ferreira, 1984; Baxter, 1992; Lucchesi, 2009, entre outros) defendem
a hipótese de que a variedade linguística de Helvécia tem antecedente crioulo. Vejamos os
exemplos de Carlota Ferreira (1984, apud Lucchesi et. all, 2009):

(i) uso variável do artigo definido


Ex.: “quando abri janela”
(ii) variação na concordância de gênero, tanto no interior do Sintagma Nominal quanto na relação
com um termo predicativo:
Ex.: “io nõ póde rumá o casa”
“ela é muito saído”

(iii) simplificação da morfologia flexional do verbo:


- variação na flexão número-pessoal que atinge a 1 pessoa do singular:
Ex.: “io sabe”; “io esqueceu”
- uso da forma do presente pela forma do pretérito do indicativo:
Ex.: “io nõ póde rumá o casa” (‘eu não podia arrumar a casa’)
- uso da forma do infinitivo em contextos de formas finitas:
Ex.: “io conhecê” por ‘eu conheço’; “ele morê” por ‘ele morreu’; e “quando io andá na Ponta de
Areia, nõ tinha nada” (‘quando eu andava em Ponta de Areia, não havia nada lá’)” (op. cit, p.
92, grifo nosso).

124
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

A comunidade do Cafundó
Outra comunidade rural afro-descendente é Cafundó, formada pelas famílias Almeida Caetano
e Pires Cardoso, que desde os tempos da escravidão permanecem arraigadas à terra.

Segundo a tradição oral de seus moradores, as terras do Cafundó - situado em Salto de Pi-
rapora, nas proximidades da cidade de São Paulo - foram doadas pelo antigo proprietário,
por volta de 1888. Ainda assim, a história recente dos cafundoenses é marcada pelas muitas
disputas judiciais empreendidas contra os fazendeiros que, ao longo do tempo, ocuparam as
suas terras.

Em 1978, essa comunidade ganhou notoriedade nacional ao ser redescoberta por jornalistas
e pesquisadores de diferentes áreas e apresentada como um reduto cultural e histórico da
escravidão, especialmente pela conservação da cupópia – um léxico de origem africana, cons-
titutivo da identidade cultural desse povo (VOGT e FRY, 1996).

Exemplos do léxico de cupópia, “língua africana”


do Cafundó:
A cupópia, também chamada de “língua africana” e “a língua”, afigura-se como elemento
estruturante das relações do grupo, por funcionar como símbolo da resistência negra (VOGT
e FRY, 1996).

Vejamos alguns exemplos do léxico dessa “língua”, constituído de 115 substantivos, 15 ver-
bos, 8 adjetivos e 2 advérbios, conforme registrados nos estudos pioneiros de Carlos Vogt e
Peter Fry (1996):

125
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Exemplos de léxico cupópia


adomador – lagarto canguru – porco
afoché – espingarda chicombo – sombra
alá – deus chicongo/chipango – chapéu
ambara – cidade chusso/inchusso – frango, galinha
ambere – pênis coçumbar – ouvir, escutar, escolher, passar
andaru – fogo colombo – pescoço
[..] [...]
camaco – menino tenhora da mucanda – enxada da escrita (caneta)
cambererá – caça, carne cambererá do vava – carne da água (peixe)
caméria – cara, rosto, boca mutombo do injequê – mandioca do saco (amendoim)
camundongo – rato (op. cit., p. 143-145).

Apesar de ser usado por um pequeno grupo, esse vocabulário, provavelmente originário do
quimbundo, permanece ativo. As estruturas que o atualizam são, todavia, emprestadas do
português local (VOGT e FRY, 1996).

Português afro-brasileiro

Variedade linguística usada por comunidades rurais afro-brasileiras isoladas (cf. Lucchesi,
Baxter & Ribeiro, 2009).

Transmissão linguística irregular

De acordo com Lucchesi e Baxter (2009, p. 101), o processo de transmissão linguística


irregular é desencadeado por situações de contato linguístico abrupto e massivo entre
línguas tipologicamente distintas, especialmente motivados por situações de colonização.
Esse processo compreende a aquisição forçosa e precária da língua dominante – no caso
brasileiro, a língua portuguesa – por falantes subjugados e marginalizados. A variedade
linguística adquirida e usada por esses sujeitos serve de modelo linguístico para as ge-
rações seguintes: “Tal processo de nativização da língua dominante ocorre de maneira
irregular no sentido de que os dados linguísticos primários de que as crianças que nascem
nessas situações dispõem para desenvolver a sua língua materna provêm praticamente de
versões de segunda língua desenvolvidas entre os falantes adultos das outras línguas, que
apresentam lacunas e reanálises em relação aos seus mecanismos gramaticais”.

126
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

PARA REFLETIR
Qual a importância sócio-cultural e política das variedades
linguísticas de Helvécia e do Cafundó?

Referências
FRY, Peter; VOGT, Carlos (com a colaboração de Robert Slenes).  Cafundó: A África no
Brasil. Linguagem e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objetiva,


2001.

LUCCHESI, Dante; Baxter, Alan & Ribeiro, Ilza (org.). O português afro-brasileiro. Salvador:
EDUFBA, 2009. 576 p.

LUCCHESI, Dante. História do contato entre línguas no Brasill. In: Lucchesi, Dante; Baxter,
Alan & Ribeiro, Ilza (org.). O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009. 576 p.

VOGT, Carlos; FRY, Peter. As formas de expressão na “língua» africana do Cafundó. Cienc.
Cult.,  São Paulo,  v. 57,  n. 2, June  2005 .   Available from <http://cienciaecultura.bvs.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000200019&lng=en&nrm=iso>.
access on  12  Feb.  2015.

127
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 6
Sobre as origens do português
brasileiro

Sobre as origens do português brasileiro


As discussões sobre o contato linguístico no Brasil e sua importân-
cia para formação do português brasileiro (PB) geralmente enre- Pidginização

dam a “questão crioula”. Fica em pauta, nesse sentido, se os traços O termo pidginização
que singularizam o PB contemporâneo devem ser interpretados refere o processo de desen-
volvimento de um pidgin,
como parte de um processo de pidginização, crioulização e poste-
isto é, uma língua de
rior descrioulização ou se devem ser observados como resultado de comunicação, formada em
um processo natural de mudança linguística. situações de contato e que
não conta, portanto, com
Pela hipótese crioulista, argumenta-se que as situações de contato falantes nativos.
linguístico no Brasil favoreceram a formação de pidgins e, em um Crioulização
segundo momento, a formação de uma variedade crioula, de base Designa o processo pelo
portuguesa. qual um pidgin adquire
mais complexidade e se
Nessa direção, Adolfo Coelho, ainda no século XIX, afirma que as torna a língua materna de
diversas características que particularizam o PB, especialmente as uma determinada comu-
nidade.
variações de concordância verbal e nominal, podem ser encontra-
das em diferentes dialetos crioulos (COELHO, 1967 [1880], p. 43- Descrioulização
44). No século XX, Gladstone Chaves de Melo (1946), Serafim da O termo descrioulização
Silva Neto (1951), entre outros, reafirmam a hipótese crioulista é comumente empregado,
como plausível para explicação das diferenças estruturais do por- nos estudos linguísticos,
para referir o processo de
tuguês do Brasil em relação ao português europeu (PE).
reestruturação de uma
língua crioula em direção
Embora inconsistente, dada a escassez de evidências históricas, o à língua de superestrato,
postulado crioulista se constrói pela análise linguística comparativa isto é, em direção à língua
entre o PB e o PE e, ainda, pela proposta de assemelhação das con- dominante.
dições sócio-históricas brasileiras às condições de outras sociedades
coloniais que desenvolveram crioulos autênticos (cf. GUY, 1981).

Note-se que nas teses crioulistas, muitas vezes se discute a hipótese de descrioulização. Ques-
tiona-se, portanto, se o português brasileiro está se reestruturando em direção ao seu superes-
trato original, isto é, em direção ao português europeu (GUY, 1981).

128
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

Dos autores que refutam as hipóteses crioulístas, podemos citar os estudos de Naro (1973;
1978; 1981), Naro e Scherre (1993; 2001;2007, entre outros), que propõem uma certa con-
tinuidade genética do português brasileiro. Nessa proposta, os traços que singularizam o PB
resultariam do cruzamento de fatores diversos, os quais teriam favorecido a realização de
um conjunto de variáveis já previstas em seu sistema (cf. Naro & Scherre, 2007, entre outros
estudos). Em outras palavras:

o impulso motor do desenvolvimento do português do Brasil veio já embutido


na língua de Portugal. Se as sementes trazidas de lá germinaram mais rápido e
cresceram mais fortes é porque as condições, aqui, mostraram-se mais propícias
devido a uma confluência de motivos. (NARO; SCHERRE , 1993, p. 45).

Conforme se vê, essa proposta minimiza a importância das línguas africanas e indígenas na
constituição do PB e reafirma a tendência imanente da língua.

Tarallo (1983), em seu conhecido estudo intitulado “Sobre a alegada origem crioula do portu-
guês brasileiro: mudanças sintáticas aleatórias”, refuta completamente a hipótese de descriou-
lização, pelo argumento de que as mudanças sintáticas do PB caminham em direção oposta à
língua original - o português europeu.

Conforme dissemos anteriormente, os dados empíricos da história não comprovam a criouli-


zação, todavia, conforme propõe Pagotto (2007, p. 37), a história do português do Brasil se
constrói como um “caleidoscópio de avanços e recuos, de rupturas radicais e de acomoda-
ções”. Assim, são as condições sócio-culturais, históricas, políticas e econômicas de formação
do Brasil que nos impedem de descartar definitivamente a hipótese do substrato crioulo.

Devemos enfatizar, por fim, que a “questão crioula” figura na agenda linguística brasileira
desde o século XIX, isto porque não se discute somente a origem do português brasileiro, mas
a relevância das línguas africanas ou indígenas em sua composição.

Conforme Lucchesi (2009), ainda hoje prevalecem os obstáculos ideológicos, sustentados pe-
los princípios estruturantes da sociedade colonial brasileira, que tão bem legitimou as opo-

129
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

sições entre colonizador e colonizado, entre senhor e escravo, entre brancos e não-brancos.
Nesse sentido, o que de fato alimenta a tese da deriva natural não é a escassez de evidências
históricas e de estudos linguísticos que comprovem a relevância do contato linguístico, mas
a ideia, ainda arraigada na sociedade brasileira, de superioridade da língua portuguesa em
detrimento das línguas africanas e indígenas.

Texto complementar
Para compreender melhor essas discussões – propostas desde o século XIX – sobre as origens
do português brasileiro, leia um trecho do texto “Brasileirismos”, de João Ribeiro – filólogo,
gramático e historiador - cujos estudos reforçaram a hipótese crioulista.

Brasileirismos
(RIBEIRO,1889)

É a expressão que damos a toda a casta de divergências notadas entre a linguagem portu-
guesa vernácula e a falada geralmente no Brasil.

Há quem dê ao conjunto dessas divergências o valor de dialeto. O conceito de dialeto não


tem, na verdade, limites bem assinalados e, como diz Whitney, há dialetos em todas as
classes sociais no seio da própria família. A noção de dialeto pois pode, sem grande in-
conveniente, ser aplicada a qualquer sistema de degenerações ou diferenciações parciais
e geográficas da língua. Que esse dialeto, porém, tenha foros de língua literária e culta é
o que de todo se torna inadmissível, atendendo-se a que a dialetação brasileira não é sufi-
cientemente caracterizada e intensa de modo que torne possível a revolta contra a língua
pura e vernácula.

Em toda a parte, as províncias e os domínios de qualquer língua caracterizam-se por mo-


dos especiais divergentes que não destroem a unidade da língua fundamental. Quando o
dialeto se desvia consideravelmente da língua matriz, pode tornar-se literário e culto. Foi
o que sucedeu ao galego, e ao catalão modernamente e, na idade média, a todas as línguas
romanas que se emanciparam do latim bárbaro. A emancipação do dialeto brasileiro se
não é de todo inexeqüível, é seguramente, pelo menos, prematura. A língua clássica não
constitui óbice de espécie alguma para os brasileiros – a não ser a exigência, que se dá em
todas as línguas literárias de meditada cultura.

No decurso das linhas seguintes não se tratará especialmente da influência do tupi, aba-
neén, guarani, nem do africano, elemento negro ou de outros quaisquer influxos produzi-
dos na língua, e que serão estudados nos lugares indicados (Negro, tupi, cigano etc.).

Apenas faremos a análise da linguagem que foi criação e produto do mestiçamento de


raças e povos fundamentais. A possibilidade e fatalidade da dialetação crioula ou mestiça
resultou da vida nova dos europeus coloniais. Diversos fatores colaboram para isso: o cli-
ma, a presença de três raças, duas de cooperação embora forçada (a portuguesa e africana)
e a outra inimiga (a tupi), os ciganos, os espanhóis, o tipo mestiço ou crioulo resultante do

130
Disciplina: Breve introdução à história das línguas no Brasil

caldeamento, as novas necessidades, novas perspectivas, novas cousas e novas indústrias.


Datam os primeiros estabelecimentos de ensino de meados do século XVI. Daí em diante a
colonização espanhola em S. Vicente (S. Paulo), e o fundo crescente da imigração portu-
guesa adiantaram o mestiçamento da raça aborígine, quando desde cedo as necessidades
industriais impuseram o tráfego de africanos. No século atual a crise do proletariado euro-
peu, ocasionando diversas correntes de despovoamento e emigração do solo, procurando,
por aclimação mais fácil, a zona subtropical e temperada, tende a produzir no Brasil dois
tipos étnicos diferentes: o nortista, fiel às tradições, unitarista, homogêneo e brasileiro do
tipo colonial; o sulista, perdendo o caráter nacional na incoesão do cosmopolitismo, italia-
nizado, germanizado, federalista. Deixando de parte a apreciação geral, no que respeita à
língua, a dialetação do crioulo, sob modificações secundárias, conserva-se hoje em dia, por
todo o país, em estado de quase equilíbrio [...].

PARA REFLETIR
Como as discussões acerca da importância das línguas indígenas
e africanas na formação do português brasileiro contribuem para
valorização da diversidade cultural e linguística do Brasil?

Referências
COELHO, Adolpho. Notas Suplementares. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa,
1880. Reproduzido em Estudos Lingüísticos Crioulos, p. 129-196, 1967.

GUY, Gregory. Linguistic Variation in Brazilian Portuguese. Aspects of phonology, syntax


and language history. 1981. Tese de Doutorado. Universidade da Pensilvânia.

LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan & RIBEIRO, Ilza (org.).  O português afro-brasileiro.
Salvador: EDUFBA, 2009. 576 p

LUCCHESI, Dante. História do contato entre línguas no Brasill. In: Lucchesi, Dante; Baxter,
Alan & Ribeiro, Ilza (org.). O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009. 576 p

MELO, Gladstone Chaves de. A Língua do Brasil. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1975 [1946]

NARO, Antony. Crioulização e mudança natural. Estudos diacrônicos. Petrópolis: Vozes,


1973.

______. A study on the origins of pidnization. Language. V. 54, n. 2, p. 314-347, 1978.

______. The social and structural dimension of a syntactic change. Language, 1981, p. 63-98.

NARO, Antony e SCHERRE, Maria Marta Pereira. Sobre as origens do português popular do
Brasil. D.E.L.T.A. 9 – Especial, p. 145-153, 1993.

131
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

______. Sobre as origens do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

PAGOTTO, Emílio G. . Crioulo sim, crioulo não: uma agenda de problemas. In: Ataliba T. de
Castilho; Ruth E. Vasconcellos Lopes; Maria Aparecida Torres Morais; Sônia Maria Lazzarini
Cyrino. (Org.). Português Brasileiro: Descrição, História e Aquisição. 1a. ed. Campinas:
Pontes, 2007, p. 461-482.

RIBEIRO, João. Brasileirismos. In: Pinto, Edith Pimentel (org.). O português do Brasil - textos
críticos e teóricos 1 1820/1920 – Fontes para a teoria e a história. São Paulo: EDUSP, 1978,
p. 333-348.

SILVA NETO, Serafim da . 1977. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. Rio
de Janeiro: Presença, 1977 [1950]

TARALLO, Fernando. Sobre a alegada origem crioula do português brasileiro: mudanças


sintáticas aleatórias. Em Roberts & Kato (eds.). Português Brasileiro – Uma viagem diacrônica.
Ed.UNICAMP: Campinas, 1993; 35-68.

132
DISCIPLINA
FUNDAMENTOS
LINGUÍSTICOS: ESTUDOS
SOCIOLINGUÍSTICOS
Autora: Hosana dos Santos Silva
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Apresentação
Nessa disciplina, vamos discutir as relações entre língua e sociedade, enfocando a dinâmica
das línguas em relações interétnicas, a diversidade linguística brasileira e o uso da linguagem
como instrumento de poder.

Para alcançarmos nosso objetivo, torna-se indispensável que você conheça alguns termos,
conceitos e teorias da Linguística. Assim, nas duas primeiras aulas, discutiremos alguns aspec-
tos do processo de constituição do campo de estudos da linguagem.

Nas aulas 3 e 4, focalizaremos os estudos das relações entre língua e sociedade no domínio da
Sociolinguística e discutiremos alguns aspectos da diversidade linguística no Brasil.

Nas aulas 5 e 6, enfocaremos a temática do preconceito linguístico e suas consequências para


o ensino formal de língua materna.

Bons estudos!

Sobre a autora
Hosana dos Santos Silva é doutora (2012) em Letras pelo programa de Filologia e Língua Por-
tuguesa / Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP);
mestre (2007), licenciada (2004) e graduada em Letras (2002), com habilitação em Linguís-
tica e Língua Portuguesa, pela mesma Universidade. Atua principalmente nas áreas de Teoria
Linguística, Sociolinguística e História Social da Linguagem, com ênfase nos seguintes temas:
teorias e descrições sintáticas, aquisição da escrita, interação, variação e mudança linguísticas
e história do português brasileiro. É professora adjunta no curso de Letras (área de Linguísti-
ca) da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP). Atualmente, desenvolve projeto de pesquisa em História Social da Linguagem.

134
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

AULA 1
O campo de estudos da linguagem

O que é linguagem?
O título dessa seção é certamente provocativo, pois não existe resposta simples para a pergun-
ta “o que é linguagem”? Para John Lyons (1987), em sua obra Linguagem e linguística: uma
introdução, esse questionamento equivale a um outro – “o que é a vida?”, “cujas pressuposi-
ções circunscrevem e unificam as ciências biológicas” (p. 15).

Por isso mesmo essa pergunta tem recebido múltiplas respostas, conforme os conhecimentos,
crenças e ideologias dos estudiosos em cada época (cf. KRISTEVA, 1988). De modo geral, é
bastante comum o emprego do termo linguagem para referir os diversos processos comunica-
tivos. É nessa direção que Sapir (1929, p. 8) define a linguagem como “um método puramente
humano e não instintivo de se comunicarem ideias, emoções, desejos por meio de símbolos
puramente produzidos”. Essa definição, tal como apresentada, compreende os conceitos de
linguagem escrita, linguagem corporal, linguagem da dança etc.

Mas não são todos os estudiosos que observam a linguagem como instituição puramente hu-
mana. Numa proposta mais abrangente, o termo se aplica a qualquer processo de comuni-
cação; assim, é possível conceber conceitos como “linguagem das abelhas”, “linguagem dos
golfinhos” etc.

Note-se que essa concepção de linguagem, que enfoca a comunicação e a interação, implica,
em todo o caso, a ideia de que as línguas naturais – como, por exemplo, o português, o inglês
ou o birmanês – constituem formas de linguagens.

No decurso da história, muitos outros conceitos foram associados a esse termo. Podemos no-
tar, por exemplo, que Schleicher, no século XIX, observou a linguagem como um organismo
vivo; Humboldt a definiu como atividade humana. Sob outro enfoque, a linguagem pode ser
concebida como resultado de uma atividade psíquica.

Uma definição predominante na atualidade é a de linguagem como capacidade propriamente


humana de falar e compreender uma língua. Nessa concepção, conforme proposta no interior
da teoria gerativa, a linguagem é uma característica mental, inata à espécie humana. O que
se enfoca, nesse caso, não é sua função comunicativa ou interativa, mas seus aspectos estrutu-
rais. Com efeito, para Chomsky (1980, p. 9), iniciador do modelo gerativo, importa descobrir,
por meio dos estudos da linguagem, “os princípios abstratos que governam sua estrutura e
uso, princípios universais por necessidade biológica e não por simples acidente histórico, e
que decorrem de características mentais da espécie humana”.

135
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Podemos admitir várias outras definições para o termo linguagem; todavia, mais que estender
a lista de conceitos, importa compreender que não existem, nesse caso, concepções certas e
erradas, mas tão somente divergências de pontos de vista, de abordagens, de escopos teóricos
que, em conjunto, constroem a história da Linguística.

Os estudos da linguagem
Sabemos que os estudos sobre a linguagem são remotos e envolvem reflexões de campos dis-
tintos: linguística, antropologia, sociologia, história etc. Todavia, não se pode dizer, ao certo,
quando a linguagem se converteu em objeto de investigação e análise.

Efetivamente, conforme observa Mattoso Câmara (1975, p. 16), é pelo desenvolvimento da


sociedade que se criam condições favoráveis à manifestação dos estudos da linguagem. Das
múltiplas motivações para a definição desse campo de estudos, a invenção da escrita, pelo
impacto dos fatores sócio-culturais e estruturais que lhes são inerentes, certamente constitui
um fato especialmente relevante (CÂMARA JR., 1975).

Os primeiros estudos sobre a linguagem provavelmente nasceram com as demarcações entre


as diferentes classes sociais. Conforme propõe Mattoso, numa sociedade desigual, os grupos
socialmente privilegiados impõem seus usos linguísticos aos demais. Surgem, nesse contexto,
os “estudos do certo e do errado”, ou seja, estudos normativo-descritivos que visam à conser-
vação da linguagem supostamente “correta” das classes superiores. De outra parte, os conta-
tos culturais e linguísticos estimularam as comparações sistemáticas entre línguas distintas.
Ademais, numa perspectiva ampla, os processos naturais de mudança linguística fomentaram,
desde a antiguidade, os estudos filológicos da linguagem (CÂMARA JR., 1975).

136
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Na antiguidade grega, o desenvolvimento do pensamento filosófico propiciou, ainda, o surgi-


mento dos “estudos lógicos da linguagem”. Já no período evolucionista, os avanços científicos
facilitaram o assentamento dos estudos biológicos da linguagem (CÂMARA JR., 1975).

Maior impacção decorre, por fim, da compreensão da linguagem como manifestação cultural
e de sua observação como objeto de estudo histórico. Nessa direção, manifestam-se os estudos
descritivos, que visam explicar a origem e desenvolvimento sócio-histórico da linguagem e/
ou sua real função na sociedade.

Figura – Linguagem.
Fonte: Itabuna Centenaria, 20151.

Devemos notar que – na análise de Mattoso Câmara Jr. – somente os estudos históricos e des-
critivos da linguagem constituem a essência da ciência linguística, porque desenvolvem um
método científico para focalização do objeto de estudo e, ainda, se voltam à explanação de
seu funcionamento no contexto social e/ ou à explicação de sua origem ou desenvolvimento
através do tempo (op. cit., 1975, p. 19- 20).

Observa-se que o ponto de vista de Mattoso, conforme propõe Cristina Altman (2009), é par-
cial e fortemente restritivo, já que deixa fora da linguística os traços de sua própria história,
cooperando, assim, para a implantação, no Brasil, de uma disciplina descontínua, filiada uni-
camente a uma tradição europeia.

De fato, Mattoso Câmara Jr., tal como vários outros linguistas que o seguiram, situa a linguís-
tica (propriamente dita) na Europa do século XIX, introduzida especialmente pelos estudos
histórico-comparativos dos neogramáticos e pelas iniciativas de Saussure, conforme veremos
na próxima aula. Todavia, retomando as palavras de Robins (2004, p. 4): ”a linguística euro-
peia não teria alcançado a posição em que hoje está se não houvesse se enriquecido com as

1 Disponível em: http://cemanosdeitabuna.ning.com/profiles/blog/list?tag=O+mundo+da+linguagem

137
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

ideias dos trabalhos desenvolvidos fora da Europa [...]”.

Vale ressaltar a importância do desenvolvimento do campo de estudos linguísticos para a sociedade


em geral. Entre muitos outros aspectos, o estudo sistemático das línguas facilitou a compreensão
de que não existem línguas estruturalmente primitivas ou simplificadas – noção comum entre os
pensadores dos séculos XIX e XX. Retomando as palavras de Sírio Possenti (1996, p.26), pelo
conhecimento científico, “hoje sabemos que todas as línguas são estruturas de igual complexidade.
Isto significa que não há línguas simples e línguas complexas, primitivas e desenvolvidas. O que há
são línguas diferentes”. Na prática, esse conhecimento contribui para o combate às hierarquizações
linguísticas e às ações discriminatórias ainda presentes em nossa sociedade.

Texto complementar
Para introduzir as discussões sobre a constituição da Linguística moderna, tema de nossa pró-
xima aula, apresentamos um trecho do texto “O que é Linguística”, de Eni Orlandi:

Um interesse antigo e uma ciência moderna


(ORLANDI, 2009 [1986], p. 8-9)

A sedução que a linguagem exerce sobre o homem existe desde sempre.

A gente pode observar esse fascínio de inúmeras maneiras: por meio da literatura, da poesia,
da religião, da filosofia etc. Não faltam lendas, mitos, cantos, rituais, histórias e até polêmicas
muito antigas que revelam a curiosidade do homem pela linguagem.

Na Grécia antiga, os pensadores estendiam-se em longas discussões para saber se as palavras


imitam as coisas ou se os nomes são dados por pura convenção. Ou então mantinham calo-
rosos debates sobre a própria organização da linguagem: ela se organiza, perguntavam eles,
de acordo com a ordem existente no mundo, seguindo princípios que têm como referência as
semelhanças ou as diferenças?

Também os antigos hindus são conhecidos pela sua agudeza no tratamento da linguagem verbal.
Com a redescoberta do sânscrito (língua sagrada da Índia antiga), no século XIX, apareceram os
sofisticados estudos de linguagem que os hindus tinham feito em épocas muito remotas. Os mo-
tivos pelos quais eles se interessavam pela linguagem eram religiosos - estabelecer pela palavra
uma relação íntima com Deus - mas nem por isso seus estudos eram menos rigorosos.

Na Idade Média, a reflexão sobre a linguagem teve nos Modistae uma de suas manifestações
relevantes. Eles procuraram construir uma teoria geral da linguagem, partindo da autonomia
da gramática em relação à lógica. Consideram, então, três tipos de modalidades (modus) ma-
nifestados pela linguagem natural: o modus essendi (de ser), o intelligendi (de pensamento)

138
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

e o significandi (de significar).

Há um número enorme de fatos que mostram essa atenção que os homens de diferentes épocas
sempre dedicaram à linguagem. Mas é só com a criação da linguística que essas manifestações
da curiosidade do homem tomam a forma de uma ciência, com seu objeto e método próprios
[...].

PARA REFLETIR
Qual a relevância sócio-histórica dos “estudos do certo e errado”? Na
atualidade, é importante conservar os estudos normativo-descritivos
da linguagem?

Referências
ALTMAN, Cristina. Retrospectivas e perspectivas da historiografia da lingüística no Brasil.
Revista Argentina de historiografia lingüística, I, 2, 115-136, 2009

CALVET, Louis-Jean. Saussure: pró e contra para uma linguística social. São Paulo: Editora
Cultrix, 1975.

CHOMSKY, N. Reflexões sobre a linguagem. São Paulo: Cultrix, 1980.

CÂMARA JR., Joaquim Matoso. Princípios de Lingüística Geral como Fundamento para os
Estudos Superiores da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Briguiet, 1941.

______. História da Lingüística. Petrópolis: Vozes, 1975 [1962].

KRISTEVA, Julia. El lenguaje, ese desconocido. Introduccion a la linguistica. Madrid:


Editorial Fundamentos, 1998.

LYONS, John. Linguagem e linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

ORLANDI, Eni P. O que é linguística? São Paulo: Editora Brasiliense, 2009 [1986].

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB (Associação


de Leitura do Brasil) / Mercado de Letras, 1996.

ROBINS, Robert H. Pequena história da linguística. Rio de Janeiro: Editora ao livro técnico,
2004.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006

139
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

[1916]

AULA 2
Reflexões sobre a linguística moderna

O campo de estudos linguísticos


Na última aula nos ocupamos da questão “o que é linguagem?” - indagação de base dos estudos
linguísticos (LYONS, 1987, p. 43). Nesse sentido, observamos que o interesse pela linguagem
é provavelmente tão antigo quanto as relações humanas; todavia, seu estudo sistemático é
bastante recente.

Nessa aula, apresentaremos alguns conceitos e pressupostos da Linguística com o fim de fir-
mar as bases teóricas das discussões propostas em nosso curso. É importante observar, ainda,
que alguns desses conceitos são retomados na formulação dos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (PCNs).

Levando em conta as diferentes culturas, várias são as motivações para o desenvolvimento


do campo de estudos linguísticos. Mesmo por isso, diversos estudiosos enfatizam a imperti-
nência de uma história da linguística estabelecida em ordem cronológica. Na Índia Antiga,
por exemplo, prevaleceu a preocupação com a compreensão correta dos textos religiosos dos
“Vedas”, enquanto na Grécia, o estudo da linguagem se vincula às discussões filosóficas, apre-
sentando-se como uma via possível para acessar o conhecimento da realidade. Já no período
helenístico, em Alexandria, o enfoque recaiu na análise dos diversos estágios da língua e nos
traços distintivos do dialeto grego, com o fim de explanar os textos literários (CÂMARA JR.,
1975, p. 26-27).

É somente no século XVIII que os estudos da linguagem adquirem mais especificidade, pelo
desenvolvimento da linguística histórico-comparativa:

140
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Se a tradição anterior sempre havia tratado a linguagem em projetos que a rela-


cionavam com outros interesses (em especial, à lógica, à retórica, à poética e ao
bom uso), é com a linguística comparativa e histórica que, pela primeira vez, se
tratará da linguagem em si mesma e por si mesma (FARACO, 2011, p. 29).

No século XIX, tornaram-se mais precisos os métodos de análise dos estudos linguísticos. As-
senta-se, definitivamente, o método comparativo, que consiste na análise e comparação entre
diferentes línguas, com o fim de verificar suas (co) relações histórico-genéticas. Essas inves-
tigações permitiram a apreensão de características comuns a diversas línguas e/ ou famílias
linguísticas.

No final do século XIX, um outro grupo de linguistas – conhecidos como neogramáticos –


acrescentam outra novidade aos estudos da linguagem: eles criticam o descritivismo da lin-
guística histórico-comparativa e se propõem a apreender, a partir de um conjunto de postula-
dos teóricos, os princípios da mudança linguística (WEEDWOOD, 2002; FARACO, 2011; entre
outros). Nesse momento se lançam as bases da linguística moderna.

Saussure e o Curso de Linguística Geral


É comum a referência ao suíço Ferdinand Saussure como precursor da linguística moderna;
sua obra póstuma – o Curso de Linguística Geral (CLG) – se apresenta como referência obriga-
tória para as teorias linguísticas.

Figura – Capa do Livro, 28ª edição, 2012 - 2ª reimpressão, 2014.

141
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Fonte: Saussure, 2014.

Resultado, especialmente, das anotações de aula reunidas por seus discípulos Charles Baily e A.
Sechehaye, o CLG, publicado em 1916, formalizou e explicitou o objeto de estudo da Linguísti-
ca – a língua – e confinou a Linguística no domínio da Semiologia. Além disso, Saussure propôs
uma distinção entre a linguística diacrônica (ou histórica), que enfoca a evolução do sistema
linguístico, e a linguística sincrônica, que observa sua organização e seu funcionamento.

Enfocando a linguística sincrônica, Saussure faz distinção entre linguagem, langue (língua)
e parole (fala). Seu objeto, conforme dissemos, é a langue, observada como “um sistema de
signos” compartilhado pelos indivíduos de uma mesma comunidade. Dito de outro modo,
trata-se de um conjunto de unidades fonológicas, lexicais, sintáticas que, inter-relacionadas,
compõem um sistema. O valor de cada elemento não é absoluto, mas definido no interior
desse sistema. Desse modo, a língua funciona a partir de um jogo de associações e correspon-
dências entre os diversos elementos que compõem a estrutura.

Nessa proposta teórica, a linguagem - multiforme e heteróclita – atende a necessidade de


comunicação dos indivíduos. Seu domínio é individual e social, e não se pode conceber um
sem o outro (SAUSSURE, 2006, p. 22). A língua, caracterizada por sua natureza homogênea
e social, se distingue da fala – observada como um ato individual, próprio da vontade e in-
teligência do falante. A fala se apresenta, portanto, como contraparte concreta desse objeto
abstrato que é a língua.

Ao separar língua e fala, Saussure propõe uma linguística estruturalista, que rejeita as discus-
sões atinentes às relações entre língua e sociedade. Pelas palavras de Calvet (1975, p. 51) :

o projeto saussureano, “associado à problemática estrutural, é singularmente li-


mitativo, ocultando simplesmente o importante fato de que uma língua é falada
por pessoas, no seio de uma sociedade que é atravessada por conflitos sociais,
tensões, lutas, que é herdeira de uma história e cheia de reviravoltas... Tudo
isso, que ninguém ignora e não ousaria hoje negar, é radicalmente rejeitado pelo
estruturalismo [...]

142
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Figura – Jogo de palavras (linguagem).


Fonte: JEL, 20152.

É importante enfatizar que no campo de estudos linguísticos o enfoque não recai na normati-
zação, isto é, a Linguística não procura privilegiar ou prescrever um determinado uso linguís-
tico, em detrimento dos demais, pois, conforme dissemos anteriormente, todas as línguas são
igualmente desenvolvidas.

No que diz respeito à situação linguística brasileira, já está bem comprovado que a preco-
nização da língua portuguesa, em prejuízo das línguas indígenas e africanas, não se explica
por fatores propriamente linguísticos, mas pela estrutura das relações sociais, que autoriza a
dominação de um grupo sobre o outro e legitima as hierarquizações linguísticas.

PARA REFLETIR
De acordo com os PCN’s, “A escola, na perspectiva de construção de
cidadania, precisa assumir a valorização da cultura de sua própria
comunidade e, ao mesmo tempo, buscar ultrapassar seus limites,
propiciando às crianças pertencentes aos diferentes grupos sociais
o acesso ao saber, tanto no que diz respeito aos conhecimentos
socialmente relevantes da cultura brasileira no âmbito nacional
e regional como no que faz parte do patrimônio universal da
humanidade” (BRASIL, 1997). Como o conhecimento linguístico
pode contribuir para o alcance desse objetivo?

SAIBA MAIS
Para saber mais, leia O que é linguística?, De Eni Orlandi (2009
[1986]).

2 Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/linguistica/jel/2010/

143
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Referências
ALTMAN, Cristina. Retrospectivas e perspectivas da historiografia da lingüística no Brasil.
Revista argentina de historiografía lingüística, I, 2, 115-136, 2009

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Introdução aos Parâmetros Curriculares


Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC?SEF, 1997.

CALVET, Louis-Jean. Saussure: pró e contra para uma linguística social. São Paulo: Editora
Cultrix, 1975.

CÂMARA JR., Joaquim Matoso. 1941. Princípios de Lingüística Geral como Fundamento
para os Estudos Superiores da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Briguiet.

______. História da Lingüística. Petrópolis: Vozes, 1975 [1962].

FARACO, Carlos Alberto. Linguística Histórica: uma introdução ao estudo da história das
línguas. São Paulo: Parábola Editorial, 2005

______. Estudos pré-saussurianos. In. MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna Christina (org.).
Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. Volume 3. São Paulo: Cortez, 2011.

LYONS, John. Linguagem e linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

ORLANDI, Eni P. O que é linguística? São Paulo: Editora Brasiliense, 2009 [1986].

SAUSSURE, Ferdinand de. /Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006
[1916]

WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da lingüística.[trad.] Marcos Bagno. São Paulo:


Parábola Editorial, 2002.

144
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

AULA 3
As relações entre língua e sociedade - I

Língua e sociedade
Provavelmente você já refletiu sobre a função comunicativa da linguagem, sobre os processos
de variação e mudança linguísticas e, ainda, sobre as relações de poder que se estabelecem
pelo discurso. Nesse caso, você certamente percebeu que língua e sociedade são realidades
complexas mutuamente relacionadas.

O caráter social da língua é facilmente verificável. Basta observar, por exemplo, que uma
criança só desenvolve a linguagem pelo contato com outros seres humanos. Além disso, os
usos linguísticos dos diferentes sujeitos variam conforme a região, a situação comunicativa, o
grupo social a que pertencem, as identidades dos falantes etc.

No Brasil, por exemplo, a maioria dos sujeitos fala a língua portuguesa, no entanto, essa lín-
gua é muito distinta daquela falada em Portugal. Veja os exemplos a seguir, extraídos de dois
sites portugueses:

Preto & Cinza3


Este casaco foi o meu investimento nos saldos. Andava a “namorá-lo” há meses, mas o preço
impedia-me de ultrapassar a relação platónica...
Super quentinho, tem sido companhia assídua nos looks diários e tem a vantagem de poder ser
apertado junto ao pescoço, impedindo o frio de entrar [...]. 

3 Disponível em: mini-saia.blogs.sapo.pt. Acesso em 14/01/2015.

145
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Crianças de Albergaria-a-Velha vão mexer-se mais e comer melhor4


Depois de constatar que uma parte significativa das crianças que frequentam os estabelecimentos do
ensino do primeiro ciclo do concelho de Albergaria-a-Velha já apresenta excesso de peso ou obesidade,
a câmara municipal decidiu arregaçar as mangas e tentar interverter os números. Com a ajuda dos
agrupamentos de escolas de Albergaria-a-Velha e Branca, das associações locais e das unidades de
saúde do município, a autarquia irá pôr os mais novos a praticar mais desporto e a comer melhor.
Na certeza de que também os pais irão ser chamados a assumir um papel activo [...].

Nos textos acima, grifamos algumas construções comuns no português europeu, mas ausentes
no português do Brasil. De fato, raramente ouvimos algum brasileiro dizer “andava a namorá-
-lo” em lugar de “estava namorando” ou “irá pôr os mais novos a praticar mais desporto” em
lugar de “vai por as crianças pra praticar mais esporte”.

O distanciamento entre o português brasileiro e o europeu está diretamente relacionado às


distintas práticas e experiências de cada povo. Conforme vimos nas aulas anteriores, as mu-
danças demográficas, sócio-culturais, políticas, econômicas alteram o curso das línguas. Na
configuração do português do Brasil, por exemplo, o contato linguístico constitui um fator
especialmente relevante.

Ademais, bem sabemos que as línguas não são homogêneas. Os usos linguísticos de cariocas,
por exemplo, são distintos dos usos linguísticos de baianos e de mineiros; a variedade usada
por paulistas do interior difere da variedade usada por paulistas da capital.

Numa mesma comunidade, podemos verificar, ainda, variações condicionadas pela idade,
grupo social a que pertence o falante, identidade de gênero etc. Retomando as palavras de
Goffman:

É quase impossível citar uma variável social que ao surgir não produza um efeito
sistemático sobre o comportamento linguístico: idade, sexo, classe, casta, país de
origem, geração, região, escolaridade; pressuposições cognitivo-culturais; bilin-
guismo, e assim por diante. A cada ano, novos determinantes sociais do compor-
tamento linguístico são apresentados (GOFFMAN, 2002, p. 13-14).

Aliás, a fala de um mesmo sujeito pode variar, dependendo das situações sociais, isto é, con-
forme o ambiente, o assunto, a posição social do interlocutor etc.

4 Disponível em: http://www.publico.pt/local/noticia/criancas-de-albergariaavelha-vao-mexerme-mais-e-comer-


melhor-1684772. Acesso em 14/01/2015

146
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Algumas variações lexicais, registradas em capitais brasileiras, para o conceito “pessoa que não gosta de gastar seu dinheiro
e, às vezes, até passa dificuldade para não gastar” (com base nos dados de Aragão, 2012).

A despeito disso, muitas vezes a língua tem sido estudada livre das condições sociais práticas
de sua produção. Já observamos que o estruturalismo saussuriano separou língua e fala. Nessa
proposta, a língua é apresentada como um sistema de formas linguísticas “do qual todas as
partes podem e devem ser consideradas em sua realidade sincrônica” (SAUSSURE, 2006, p.
102). Esse sistema linguístico, tomado como homogêneo e estático, passa a ser estudado por
si mesmo, independentemente das relações sociais.

Mas um outro enfoque no objeto da linguística, especialmente a partir da segunda metade do


século XX, considera os diversos aspectos relativos às inter-relações humanas que atuam na
estruturação das línguas.

A necessidade, sempre premente, de entender a variação e a mudança linguísticas e, ainda, de


compreender as condições sociais de produção e reprodução linguísticas move boa parte dos
estudiosos não adeptos do programa estruturalista.

Na modernidade, os principais estudos produzidos a partir dessa perspectiva se constroem pe-


los pressupostos da Sociolinguística – disciplina recente, estabelecida na década de 1960 – que
observa a língua como um sistema heterogêneo e toma a variação e a mudança linguísticas
como objeto de reflexão e análise.

147
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Texto complementar
Leia um trecho da obra Sociolinguística: uma introdução crítica, de Louis-Jean Calvet
(2002); um dos primeiros manuais de sociolinguística publicados no Brasil.

Introdução
(CALVET, 2002, p. 11-12)

A linguística moderna nasceu da vontade de Ferdinand de Saussure de elaborar um modelo


abstrato, a língua, a partir dos atos da fala [...]. E, não obstante certas passagens nas quais
se encontra a afirmação de que a língua “é a parte social da linguagem”, ou que a “língua é
uma instituição social”, este livro insiste sobretudo no fato de que “a língua é um sistema que
conhece apenas sua ordem própria” ou que, como afirma a última frase do texto, “a linguística
tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma”.

Saussure traçava assim uma nítida separação entre o que lhe parecia pertinente, “a língua em si
mesma”, e o resto, e nesse ponto foi seguido por pesquisadores tão distintos quanto Bloomfield,
Hjelmslev ou Chomsky. Todos, elaborando teorias e sistemas de descrições diversificados, con-
cordavam em delimitar o campo de sua ciência de modo restritivo, eliminando de suas preocu-
pações tudo o que não fosse a estrutura abstrata que eles definiam como objeto de seu estudo.

Ora, as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a história de uma língua é a história
de seus falantes. O estruturalismo na linguística foi construído, portanto, sobre a recusa em
levar em consideração o que existe de social na língua, e se as teorias e se as descrições deriva-
das desses princípios são evidentemente uma contribuição importante ao estudo geral das lín-
guas, a sociolinguística [...] teve de tomar o sentido inverso dessas posições. O conflito entre
essas duas abordagens da língua começa muito cedo, imediatamente depois da publicação do
Curso de Linguística Geral, e nós veremos que, até bem recentemente, as duas correntes vão
se desenvolver de modo independente [...]. Será preciso na prática esperar por William Labov
para encontrar a afirmação de que, se a língua é um fato social, a linguística então só pode ser
uma ciência social, isto significa dizer que a sociolinguística é a linguística. [...]

PARA REFLETIR
Podemos dizer que, em qualquer situação, os fatores sociais
interferem nas escolhas linguísticas dos diferentes sujeitos?

148
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Referências
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A distribuição diatópica e diastrática das variantes
de “sovina” em capitais brasileiras – ALIB. In: ALTINO, Fabiane Cristina (org.). Múltiplos
olhares sobre a diversidade linguística: uma homenagem à Vanderci de Andrade Aguilera.
Londrina: Midiograf, 2012.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad. MARCIONILO, Marcos.


São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

BRIGHT, William. Dialeto social e história da linguagem. In FONSECA, Maria Stella Vieira da;
NEVES, Moema Facure (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974

GOFFMAN, Erving. A situação negligenciada. In RIBEIRO, Branca Telles & GARCEZ, Pedro M.
(org). Sociolinguística Interacional. 2 ed. Edições Loyola, São Paulo: 2002.

LABOV, William. Sociolinguística: uma entrevista com William Labov. Revista Virtual de
Estudos da Linguagem - ReVEL. Vol. 5, n. 9, agosto de 2007. Tradução de Gabriel de Ávila,
Othero. ISSN 1678-8931 [www.revel.inf.br].

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006
[1916]

149
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 4
As relações entre língua e sociedade - II

Os estudos sociolinguísticos
Nesta aula, vamos discutir os principais pressupostos da sociolinguística, campo de estudos
interdisciplinar que se ocupa das correlações sistemáticas entre a língua e os diversos fatores
sociais, culturais e históricos.

Essas discussões são especialmente importantes porque os estudos produzidos nesse campo,
por seu alcance teórico e metodológico, nos fornecem arcabouço para a análise e mesmo para
o combate das práticas sociais que fazem da linguagem um instrumento de poder e dominação.

Conforme observa Vandresen (1964, p.10-11), o florescimento da sociolinguística teve evi-


dente motivação social. Entre outros fatores, destacam-se: a preocupação com a integração de
minorias étnicas e linguísticas, particularmente em países de ampla imigração estrangeira; a
necessidade de planejamento linguístico para definição e legitimação de línguas nacionais em
jovens nações na África e Ásia; a possibilidade de desenvolvimento do campo educacional,
especialmente pelo combate às ações discriminatórias e ao normativismo.

Dimensões da sociolinguística
As relações entre língua e sociedade vêm sendo estudadas há bastante tempo. Com efeito,
Meillet (1866-1936), já no início do século XX, define a língua como um fato social. Nesse
sentido, observa que “ao separar a variação linguística das condições externas de que ela
depende, Saussure a priva de realidade; ele a reduz a uma abstração que é necessariamente
inexplicável” (MEILLET, 1905-1906, apud CALVET, 2002).

Vemos com isso que a linguística moderna, desde seu nascimento, abriga um discurso for-
temente estruturalista, isto é, voltado à forma da língua, e um discurso que insiste em suas
funções sociais (CALVET, 2002, p. 17).

Mas o assentamento da sociolinguística, enquanto campo de pesquisa distinto, ocorre somente


em meados do século XX. Entre as décadas de 1960 e 1970, linguistas como Willian Bright,
Dell Hymes, John Fisher, Willian Labov, Charles Fegurson, entre outros, publicam os primei-
ros trabalhos nesse campo específico. Nesse contexto, a conferência de sociolinguística reali-
zada na Universidade da Califórnia/ Los Angeles, em 1964, constitui um marco importante no
desenvolvimento dessa área de estudos.

150
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

É importante notar que a “sociolinguística” abriga uma grande quantidade de linhas de pes-
quisa, parcialmente interseccionadas pelo objetivo comum de analisar as relações entre língua
e sociedade (BRIGHT, 1964).

Embora outras disciplinas, como a etnolinguística e a sociologia da linguagem, partilhem o in-


teresse pela língua em seu contexto social, a sociolinguística tem objeto próprio. Em uma das
primeiras tentativas de definição do campo, Willian Bright (1964, p. 17) propõe que a tarefa
da sociolinguística é “demonstrar a covariação sistemática das variações linguística e social”
e, ainda, “demonstrar uma relação causal em uma ou outra direção”. O que se busca, portanto,
é o funcionamento e a estrutura das línguas a partir do enfoque social a ela subjacente. Isso
fica bastante visível nos estudos pioneiros de Labov (1966; 1972), que tomam como objeto de
reflexão e análise a própria estrutura e a evolução da linguagem no contexto social.

Vale ressaltar que o postulado essencial, nesse campo, é o de que a variação e a mudança são
características inerentes às línguas naturais. Nessa direção, descarta-se a perspectiva estrutu-
ralista que concebe a língua como sistema homogêneo e estático.

Níveis de variação
É possível encontrar variações em todos os níveis da estrutura linguística, isto é, no nível
fonológico, morfológico, lexical, sintático etc. Essas variações são condicionadas por fatores
propriamente linguísticos e também sociais, relacionados à origem geográfica, idade, gênero,
classe social, situação interacional etc. Quanto às variáveis sociais, os linguistas tradicional-
mente propõem as seguintes classificações (cf.Coseriu, 1980; Pretti, 1982; entre outros):

151
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

reflete socialmente as características regionais da fala,


Variação identificando o falante com uma determinada localidade.
Entram em jogo, nesse caso, as diferenciações entre o rural
geográfica e o urbano.
(ou diatópica)

compreende as diferenças linguísticas relacionadas ao lugar


Variação ocupado pelo falante na estrutura das relações sociais –
escolaridade, classe social, gênero etc.
social
(ou diastrática)

compreende as diferenças linguísticas associadas às


Variação circunstâncias de comunicação – tipo de texto, assunto da
estilística mensagem, lugar da interação etc.

(ou diafásica)

O mais importante a se observar é que a variação é constitutiva das línguas naturais. Ademais,
conforme propõe Labov (2008, entre outros estudos), a variação não é caótica ou desordena-
da, mas condicionada por fatores intralinguísticos e sociais. Sob a perspectiva sociolinguística,
“todas as variedades, do ponto de vista estrutural linguístico, são perfeitas e completas entre
si. O que as diferencia são os valores sociais que seus membros têm na sociedade” (CAGLIARI,
1999).

O quadro a seguir, adaptado de Pretti (1982, p. 38), sistematiza algumas discussões propostas
nessa aula:

152
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

variedade Variação Classe social;


Variedades
rural influenciada gênero;
culta e
por escolaridade;
popular
Variação Variedades Variação profissão; etc.

geográfica regionais sócio-cultural


Variação ambiente;
variedade Registro
influenciada assunto;
urbana Formal/
por grau de formalidade;
informal
grau de intimidade; etc.

Variação
“Numa comunidade linguística, possibilidade de representação de determinados elementos linguísticos (fonéticos, morfológicos, sintáticos etc.) por
diferentes modos de expressão. A sociolinguística se caracteriza pelo reconhecimento da variação linguística como constitutiva das línguas humanas e
por assumir essa heterogeneidade natural como objeto de estudo” (CALVET, 2002, p. 156).

Variante
“Diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome
de variável linguística” (TARALLO, 1987, p. 8)

Comunidade linguística
Grupo de pessoas que partilham um conjunto de regras e valores semelhantes em relação à linguagem. Não diz respeito à concordância marcada no
uso de elementos linguísticos, mas se define pela participação num conjunto de normas compartilhadas (LABOV, (2008 [1972], p.150)

Texto complementar
A seguir, apresentamos um trecho do texto “Dialeto Social e História da Linguagem” (Social
Dialect and Language History), de Willian Bright. Esse artigo, publicado inicialmente em
1960, expõe as discussões iniciais sobre as relações entre língua e sociedade, no âmbito da
chamada linguística moderna.

Dialeto social e história da linguagem


(BRIGHT, 1974 [1960], p. 41)

Em cada comunidade linguística, encontram-se normalmente variações em todos os níveis de


estrutura linguística: fonológico, gramatical, lexical. Algumas dessas variações estão correlacio-
nadas à localização geográfica: há diferenças sistemáticas, por exemplo, entre o inglês de Lon-
dres e o de Nova Iorque. Este tipo de variação linguística tem sido estudado em detalhe pelos
dialetologistas. Outros tipos de variações linguísticas têm, no entanto, recebido menor atenção.
Pode-se afirmar que algumas dessas variações dependem da identidade da pessoa a quem se fala
ou da pessoa de quem se fala; os casos clássicos são aqueles do Nootka, onde se usam formas
linguísticas diferentes quando se fala às crianças ou sobre elas, o mesmo acontecendo quanto a
pessoas gordas, anãs, corcundas, etc. (SAPIR, 1915). Outras variações estão correlacionadas à
identidade do falante. Entre elas incluem-se, por exemplo, os casos de diferenças entre a fala do
homem e da mulher, verificadas no Koasati (HAAS, 1944). Mais tipicamente, a variação linguís-
tica está correlacionada ao status do falante; pode-se chamar a isto uma variedade de variação
sociolinguística. Um caso que recentemente tem recebido considerável atenção é o que se refere
à fala da classe alta [“u” (upper-class) e da classe média [“non-u” (middle-class)] na Inglaterra;
sabe-se que atualmente a diferença na fala se tornou virtualmente a única marca exterior distin-

153
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

tiva dessas duas classes naquele país (ROSS, 1954, pp. 20-23). Consequentemente, esse tipo de
variação fornece um índice potencial para o diagnóstico do status social, embora os sociólogos
até agora tenham explorado muito pouco este potencial.

Deve-se notar que alguns casos de variações linguísticas estão relacionados simultaneamente
à identidade do ouvinte e à do falante. Assim, a “fala feminina” em Yana era usada não somen-
te pelas mulheres, mas ainda por homens ao falar a mulheres; a “fala masculina” era usada
somente por homens se dirigindo a homens (SAPIR, 1929). Na área sociolinguística freqüen-
temente reflete a relação entre o status do falante e o status do ouvinte, em vez de se adotar o
status de cada um; um exemplo é o vietnamita (EMENEAU, 1950, pp. 206-209).

Outros casos, ainda, de variação linguística não estão correlacionados primordialmente à


identidade das pessoas, mas a outros fatores existentes no contexto social e cultural [...]. Um
tipo de variação comumente encontrado na maioria das sociedades está correlacionado à
diferença entre situações formais e informais; a “formalidade” e a “informalidade” definidas
naturalmente em termos de cada sociedade específica [...].

PARA REFLETIR
Que fatos comprovam o pressuposto sociolinguístico de que nenhuma
variedade linguística é inerentemente superior ou inferior a qualquer
outra?

Referências
BRIGHT, William. Dialeto social e história d alinguagem. In FONSECA, Maria Stella Vieira da;
NEVES, Moema Facure (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e linguística. São Paulo: Scipione, 1999.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad. MARCIONILO, Marcos.


São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

GOFFMAN, Erving. A situação negligenciada. In RIBEIRO, Branca Telles & GARCEZ, Pedro M.
(org). Sociolinguística Interacional. 2 ed. Edições Loyola, São Paulo: 2002.

LABOV, Willian. The Social Stratification of English in New York City: Center for Applied
Linguistics, 1966.

______. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania, Press, 1972.

______. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.

PRETTI, Dino. Sociolinguística – os níveis da fala. 4ª ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1982.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006
[1916]

VANDRESEN, Paulino. Introdução. In FONSECA, Maria Stella Vieira da; NEVES, Moema
Facure (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974

154
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

AULA 5
A diversidade linguística no Brasil

Variação linguística no português brasileiro


A variação é um processo inerente às línguas naturais. Conforme observa Labov (2008 [1968]),
extraordinário seria um sistema linguístico homogêneo e unitário.

Há uma extensa bibliografia sociolinguística sobre a diversidade do português brasileiro, a


qual evidencia formas em variação em todos os níveis de sua estrutura:

Fonético-fonológico
Exemplos: <olho ~ oio>; <blusa ~ brusa>

Sintático
Exemplos: <nós vamos ~ nós vai>; < eu o vi ~ eu vi ele>

Morfológico
Exemplos: <calorzão ~ calorão>; <molequinho ~ molecote>

Lexical
Exemplos: <abóbora ~ jerimum>; <cofre ~ mealheiro>

Conforme observamos na aula anterior, essas diferenças estão associadas a um conjunto de


variáveis diatópicas, diastráticas e diafásicas, isto é, podemos analisar os usos linguísticos
segundo a origem geográfica do falante (ex.:< piá ~ menino>); idade (ex. <patota ~ gale-
ra>); profissão (ex. <elemento ~ pessoa>)5, entre outros.

Embora nem todas as diferenças constituam alvo de reflexão dos falantes, de modo geral,
os usuários de uma língua, especialmente os nativos, mostram algum controle das variações
extralinguísticas. Nesse sentido, são especialmente perceptíveis as variantes lexicais e foné-
ticas associadas às diferenciações regionais.

5 A variante “elemento” é comum na fala de policiais.

155
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

É comum, por exemplo, a referência à realização de vogais médias abertas em sílabas pretôni-
cas como um traço linguístico identificador dos falares nordestinos, por oposição à realização
da vogal média fechada – comum em outras regiões do Brasil, como São Paulo e Paraná.

Veja os exemplos a seguir:

Outra diferença fonética, sempre observada, diz respeito à realização do fonema /R/ em final
de sílaba. Em algumas cidades do interior de São Paulo, por exemplo, é comum o emprego
da variante retroflexa, muitas vezes referida como /-r/ caipira. Já o /-r/ aspirado (fricativa
velar) é comumente associado ao falar carioca. Na capital paulista, parece haver preferência
pelo tepe ou pela vibrante.

Veja algumas realizações dos vocábulos “carta” e “mar” no português brasileiro:

Quanto à variação lexical, é comum a referência às diferenças no uso de vocábulos do campo


semântico da alimentação. Para a distribuição espacial das variantes mandioca, aipim, macaxeira
e coruda, os dados do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB), levando em conta os Estados do Rio
Grande do Sul, Bahia, Ceará, Maranhão e Rondônia, revelam que mandioca é a forma preferida
pelos brasileiros, exceto no Rio Grande do Sul, onde é comum o uso de aipim. Em Rondônia é
frequente a variante macaxeira, também encontrada em Estados do Nordeste; já a variante coru-
da é uma das formas registradas no Maranhão (AGUILERA, 2000 apud PONTES, 2000).

156
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Nos estudos sobre a variação sintática, uma diferença, sempre retomada, diz respeito à pre-
sença/ ausência da marcação de plural no verbo e/ou no nome.

Veja alguns exemplos dessa variação:


a. Eles come o peixe. a. Os meninos mais bonito.
b. Eles comem o peixe. b. Os meninos mais bonitos.

a. Nós vai. a. A casa com dois quarto.


b. Nós vamos. b. A casa com dois quartos.

a. As carta chegou. a. Dois carrinho de supermercado.


b. As cartas chegaram. b. Dois carrinhos de supermercado.

Os exemplos em “b” apresentam concordância de número (verbal e/ ou nominal) e são consi-


deradas corretas por atender às prescrições da gramática tradicional. Já os exemplos em “a”,
apesar de sua recorrência nas diversas comunidades linguísticas brasileiras, são considerados
incorretos, dada a redução das marcas de plural.

Vários estudos evidenciam os aspectos sociais e linguísticos que condicionam essa redução das
marcas de concordância no português brasileiro. Os resultados dessas análises indicam que,
entre outros aspectos, a ausência de concordância é tanto mais nítida quanto menor os anos
de escolarização do falante (cf. NARO, 1981; SCHERRE & NARO, 1998; entre outros).

Vale ressaltar, entretanto, que escolaridade (ou os anos de escolarização) é apenas uma das
variáveis sociais que interferem na produção linguística.

157
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

A partir da imagem abaixo, reflita sobre a dinâmica das relações entre língua e sociedade.

Almanaque do Biotônico, 1935, p. 4 (ilustração de J. U. Campos)

Variação linguística e ensino


O ensino de língua na escola muitas vezes se restringe aos preceitos da gramática normativa.
Esse é um problema fundamental, já que

o tratamento da língua portuguesa como um todo unívoco e isolado mascara o multilinguismo e


propicia a avaliação negativa de nossa diversidade linguística.

É importante observar que a política educacional brasileira reconhece as diferenças culturais


e linguísticas como parte da estrutura da língua e da sociedade. Nesse sentido, os PCNs (Parâ-
metros Curriculares Nacionais) de Língua Portuguesa propõem que:

158
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela


sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normati-
va. Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade
que se constitui de muitas variedades.
Embora no Brasil haja relativa unidade lingüística e apenas uma língua nacional,
notam-se diferenças de pronúncia, de emprego de palavras, de morfologia e de
construções sintáticas, as quais não somente identificam os falantes de comunida-
des lingüísticas em diferentes regiões, como ainda se multiplicam em uma mesma
comunidade de fala. Não existem, portanto, variedades fixas [...]. (BRASIL, SEF,
1998, p. 24).

Conforme se vê, os PCNs se valem de alguns postulados da Sociolinguística, manifestando-se


em defesa do direito linguístico. Nessa direção, o documento reconhece, ainda, que a língua
pode funcionar como um marcador de distinção social, implicando discriminações e mesmo
fracasso escolar (cf. SOARES, 2000, p. 17).

Numa perspectiva social e política, os PCNs enfatizam que “frente aos fenômenos da variação,
não basta somente uma mudança de atitudes; a escola precisa cuidar para que não se repro-
duza em seu espaço a discriminação linguística”. (BRASIL, SEF, 1998, p. 81). Esse é um dos
nossos maiores desafios!

Texto complementar
A seguir, apresentamos um trecho da obra “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral. Esse texto,
publicado em 1920, é um dos primeiros estudos sobre um falar regional brasileiro.

Dialeto Caipira
(AMARAL, 1920, p. 3)

[...]

Fala-se muito num “dialeto brasileiro”, expressão já consagrada até por autores notáveis de
além-mar; entretanto, até hoje não se sabe ao certo em que consiste semelhante dialetação, cuja
existência é por assim dizer evidente, mas cujos caracteres ainda não foram discriminados.

Nem se poderão discriminar, enquanto não se fizerem estudos sérios, positivos, minuciosos,
limitados a determinadas regiões.

O falar do Norte do país não é o mesmo que o do Centro ou o do Sul. O de São Paulo não é
igual ao de Minas. No próprio interior deste Estado se podem distinguir sem grande esforço
zonas de diferente matiz dialetal - o Litoral, o chamado “Norte”, o Sul, a parte confinante com
o Triângulo Mineiro.

159
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Seria de se desejar que muitos observadores imparciais, pacientes e metódicos se dedicassem


a recolher elementos em cada uma dessas regiões, limitando-se estritamente ao terreno co-
nhecido e banindo por completo tudo quanto fosse hipotético, incerto, não verificado pessoal-
mente. Teríamos assim um grande número de pequenas contribuições, restritas em volume
e em pretensão, mas que na sua simplicidade modesta, escorreita e séria prestariam muito
maior serviço do que certos trabalhos mais ou menos vastos, que de quando em quando se
nos deparam, repositórios incongruentes de fatos recolhidos a todo preço e de generalizações
e filiações quase sempre apressadas.

Tais contribuições permitiriam, um dia, o exame comparativo das várias modalidades locais e
regionais, ainda que só das mais salientes, e por ele a discriminação dos fenômenos comuns a
todas as regiões do país, dos pertencentes a determinadas regiões, e dos privativos de uma ou
outra fração territorial. Só então se saberia com segurança quais os caracteres gerais do diale-
to brasileiro, ou dos dialetos brasileiros, quantos e quais os subdialetos, o grau de vitalidade,
as ramificações, o domínio geográfico de cada um. [...]

Referências
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira, 1920. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.
br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7381. Acessado em 12/01/2015.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e


quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998. 106 p.

BRIGHT, William. Dialeto social e história da linguagem. In FONSECA, Maria Stella Vieira da;
NEVES, Moema Facure (Orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad. MARCIONILO, Marcos.


São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

NARO, A. J. (1981).The social and structural dimensions of a syntactic change. Language.


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PONTES, Ismael. Atlas linguístico do Brasil (Alib): perspectivas teórico-metodológicas. Acta


Scientiarum 22 (1):1-6, 2000.

SCHERRE, M. M. P. & NARO, A. J. Sobre a concordância de número no português falado do


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XXI Congresso Internazionale di Linguistica e Filologia Romanza) Centro di Studi Filologici e
Linguistici Siciliani, Universitá di Palermo. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 5:509-523, 1998.

VANDRESEN, Paulino. Introdução. In FONSECA, Maria Stella Vieira da; NEVES, Moema
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SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. 17 ed. São Paulo: Editora
Ática, 2000.

160
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

AULA 6
Linguagem, poder e preconceito linguístico

Linguagem e poder
Nas últimas aulas, observamos que a Linguística rejeita qualquer esquema social de classifica-
ção das línguas. De fato, nesse campo de estudos prevalece o postulado de que não há língua
ou variedade dialetal superior ou inferior, já que os diferentes falares são igualmente estrutu-
rados, ordenados, complexos e eficazes (POSSENTI, 1996; CAMACHO, 2011).

Contudo, bem sabemos que socialmente as variedades linguísticas sofrem constantes avalia-
ções e classificações e recebem valores desiguais, de acordo com a posição que o falante ocupa
na sociedade (cf. BOURDIEU, 2008).

Para compreender melhor essas relações, basta observar as classificações sociais e geográficas
que opõem falares rurais e urbanos. Considere as seguintes frases:

F1. Nóis percisa curtivá os direito linguistico.


F2. Precisamos cultivar os direitos linguísticos.

Da perspectiva propriamente linguística, as duas frases são equivalentes. Contudo, na intera-


ção social, F2 receberia menor valor. Isso ocorre porque – numa sociedade desigual, fortemen-
te hierarquizada – alguns usos linguísticos são estigmatizados. O rotacismo (presença de “r”
em lugar de “l”) em “curtivá”, bem como a metátese (inversão no interior da sílaba) em “per-
cisa” manifestam-se como marcas sociográficas que caracterizam a variedade linguística e de
falantes da zona “rural”. Já a ditongação (inserção de “i”) em “nóis” e a ausência de concor-
dância nominal em “os direito linguístico” cooperam para sua classificação como “não-culto”.

Conforme observou Boutet (1989, p.113), “a diferenciação social pela linguagem opera ao
mesmo tempo no plano da produção dos enunciados e no de seu reconhecimento ou identifi-
cação”. Nesse sentido, a língua, assim como qualquer outro produto simbólico, funciona como
marcador de distinção entre os diferentes grupos sociais.

161
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Fica em evidência, nesse sentido, a importância social e política da “variedade culta”, isto é,
dos usos linguísticos efetivamente empregados pelos falantes com grau superior de escolari-
dade e/ ou alto grau letramento, e da chamada norma-padrão – modelo linguístico imposto,
mediante um discurso coercitivo, como única língua boa, correta e oficial.

Fazendo prevalecer a noção de erro, a “variedade culta” e, sobretudo, a “norma padrão” cum-
prem o papel de regular, distinguir e excluir algumas realizações linguísticas. Nessa estrutura,
os diferentes usos linguísticos – socialmente classificados – são considerados tanto mais corre-
tos quanto mais alinhados às variedades normatizadas.

O reconhecimento e legitimação de uma única variedade – padrão, “culta”– como língua


correta, em detrimento de todas as outras variedades, contribui para estratificação social e
linguística. Vejamos mais um exemplo:

a. “A cada um minuto, quatro coisas vendem”;


b. A cada minuto, vendem-se quatro coisas.
A cada minuto, quatro coisas são vendidas.

A frase em “a”, extraída de um anúncio publicitário de grande circulação, apesar de bem


aceita entre os falantes, é considerada incorreta, por oposição às frases em “b”, produzidas de
acordo com as prescrições da gramática tradicional.

Já observamos que o valor das variedades prestigiadas não é propriamente linguístico, mas
advém das relações sociais, que transforma as produções linguísticas em objetos de classifica-
ção (cf. BOURDIEU, 2008).

É importante notar que, no caso brasileiro, a imposição do “português padrão” como única
língua legítima e oficial tem o efeito de obscurecer o pluralismo linguístico presente em nossa
sociedade e também a diversidade que caracteriza o português do Brasil.

Preconceito Linguístico
A variação linguística, conforme acabamos de observar, é constitutiva das línguas naturais.
Essa diversidade fundamental é motivada por variáveis intralinguísticas e, também, por va-
riáveis históricas, geográficas, sociais e contextuais. Sob esse aspecto, os diferentes falares
se equivalem (cf. POSSENTI, 1996; SOARES, 2000; CAMACHO, 2011; entre outros). Ocorre,
entretanto, que, numa sociedade estratificada, é comum atribuir-se mais valor à variedade
usada pelas classes sociais privilegiadas, as quais geralmente detêm maior capital cultural e
escolar (cf. BOURDIEU, 2008).

162
Disciplina: Fundamentos linguísticos: estudos sociolinguísticos

Dada a estreita relação entre as práticas linguísticas e a posição social que os sujeitos ocupam
nas sociedades, os falantes que empregam as variedades socialmente estigmatizadas muitas
vezes se tornam vitimas de preconceito linguístico.

Mas, o que é preconceito linguístico? Ora, esse conceito, conforme propõe Marta Scherre
(2008, p. 12), pode ser definido como:

o “julgamento depreciativo, desrespeitoso, jocoso e, consequentemente,


humilhante da fala do outro”.

Todos nós podemos identificar, sem dificuldades, ao menos uma pessoa ou um grupo social
que tenha sido mal avaliado, julgado ou discriminado por usar uma variedade regional ou
não-padrão. Na verdade, boa parte das piadas admite a discriminação contra falantes de zonas
rurais e/ ou não-alfabetizados.

Devemos notar, nesse sentido, a importância da instituição escolar, que age pela apreciação,
sanção e legitimação das produções linguísticas (cf. BOURDIEU, 2008). De modo geral, a es-
cola ensina e reproduz a “variedade padrão” e, ainda, ignora, censura e estigmatiza, de forma
objetiva ou velada, os usos linguísticos considerados não-padrão.

Conforme discutimos na seção anterior, nas relações de produção linguística o estigma recai
não somente nos usos propriamente linguísticos, mas também no sujeito que os emprega. É por
isso que essa prática pedagógica conservadora, à medida que sustenta os sistemas de classifica-
ção social e linguística, contribui para o fracasso escolar dos sujeitos pertencentes aos grupos
sociais menos privilegiados (cf. BOURDIEU, 1975; SOARES,2000). Dito de outro modo, a ação
da escola colabora para o estabelecimento de estreitas associações entre “língua e inteligência/
burrice, competência/ incompetência, beleza/ feiúra; sucesso/ insucesso”, acentuando, assim,
as oposições de classe e a desigualdade social” (SCHERRE, 2008, p.88 e 89).

No Brasil, essas associações estão presentes há tempo demais. De fato, no decorrer da história,
os usos linguísticos de negros e indígenas, especialmente, e de indivíduos de baixa escolari-
zação, de modo geral, foram definidos como “língua ruim”, “língua errada”, “língua de gente
selvagem”, “língua incivilizada”, “língua estropiada” etc., por oposição ao português padrão
– correto e oficial.

O preconceito linguístico é, portanto, um problema histórico e só pode ser combatido se,


nas práticas de ensino, independentemente da área de conhecimento, levarmos em conta os
princípios de classificação social que explicam o prestígio atribuído a determinados traços so-
ciais e linguísticos, em detrimento de outros similares (cf. SOARES, 2000). Dessa perspectiva,
conforme propõe Camacho (op. cit, p. 37), a escola deve abandonar o modelo da diferença e
adotar uma estratégia mais eficaz para o ensino de língua materna:

163
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

“Nessa perspectiva, o ensino da variedade-padrão continua a ser um dever da


escola e um direito do aluno, mas não precisa ser necessariamente substitu-
tivo e, por isso, não implica a erradicação das variedades não-padrão”.

PARA REFLETIR
Leia o texto “O colocador de pronomes”, de Monteiro Lobato, e
discuta a importância social da “norma linguística”.
Link: http://contobrasileiro.com.br/?tag=o-colocador-de-
pronomes-monteiro-lobato

Referências
BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico: o que é, como se faz. 54ª ed. São Paulo:Loyola,
2011.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e


quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília:MEC/SEF, 1998. 106 p.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 2008.

BOUTET, Josiane. A diversidade social do francês. In: Boutet, J.; Vermes, G (org.).
Multilinguismo. Campinas : Editora da Unicamp, 1989.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad. MARCIONILO, Marcos.


São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

CAMACHO, Roberto Gomes. Norma culta e variedades linguísticas (reedição). In: Universidade
Estadual Paulista. (Org.). Caderno de Formação: formação de professores didática dos
conteúdos. V. 3: Conteúdos e Didática de Língua Portuguesa. 1ª ed. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2011, v. 3, p. 34-49.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado das
Letras, 1996.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle - Variação lingüística,
mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005. 155p.

SOARES, Magda. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. 17 ed. São Paulo: Editora
Ática, 2000.

164
DISCIPLINA
FUNDAMENTOS LINGUÍSTICOS:
BILINGUISMO E
MULTILINGUISMO
Autora: Indaiá de Santana Bassani
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Apresentação
Nas primeiras duas aulas desta disciplina, abordaremos definições e conceitos teóricos gerais
acerca dos tema monolinguismo, bilinguismo e multilinguismo. Discutiremos tais conceitos
tanto em nível coletivo ou social quanto em nível individual ou pessoal. Na aula 3, aperfei-
çoaremos o conceito do bilinguismo através do estudo dos graus de bilinguismo e das funções
internas e externas da língua na vida do indivíduo bilíngue. A partir da aula 4, iremos estudar
o bilinguismo e o multilinguismo associado ao tema indígena. Na aula 4, estudaremos o caso
de multilinguismo da cidade de São Gabriel da Cachoeira (Amazonas) e nas aulas 5 e 6 discu-
tiremos o bilinguismo na educação indígena, propondo reflexões acerca da sua efetividade e
do papel que a formação do professor indígena e a produção de material didático bilíngue por
esses professores e pela comunidade tem no sucesso do ensino bilíngue diferenciado.

Sobre a autora
Indaiá de Santana Bassani possui bacharelado em letras (por-
tuguês e linguística- 2002-2006), licenciatura em português
(2006-2007), mestrado em linguística (2007-2009) e doutorado
na mesma área (2009-2013) pela Universidade de São Paulo,
com estágio Sanduíche na Universidade da Pensilvânia (jan-
-dez/2012). Atua nas áreas de morfologia e suas interfaces com
a sintaxe (estrutura argumental), semântica verbal e fonologia.
Atualmente é professora Adjunto A-I no curso de Letras da Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

166
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

AULA 1
Monolinguismo e multilinguismo:
definições e conceitos associados
Nesta primeira aula, discutiremos o conceito de monolinguismo e mo·no·lin·guis·mo1
multilinguismo. Comecemos, então, observando uma definição bas- substantivo masculino 1.
tante simples e corriqueira do primeiro termo: [Linguística] Situação
de uma comunidade em
Já nesta simples definição de dicionário, notamos que a questão que é falada apenas uma
língua.2. [Linguística]
tem dois aspectos importantes a considerar: o nível coletivo, rela-
Domínio de apenas uma
cionado à comunidade de falantes, e o nível individual, relaciona- língua por parte de um
do ao uso e conhecimento de cada falante isoladamente. A discus- falante.”monolinguismo”,
são de todos os conceitos fundamentais que vamos abordar neste in Dicionário Priberam
módulo - monolinguismo, bilinguismo e multilinguismo - pode ser da Língua Portuguesa
feita a partir dessas duas abordagens: a coletiva ou social e a in- [em linha], 2008-2013.

dividual ou pessoal, e nem sempre o que vale para um vale para a


outra. A cada discussão, deixaremos muito claro de que perspecti-
va estamos falando.

No que se refere ao monolinguismo, existe certo ceticismo por parte dos estudiosos em relação
à real existência desse tipo de situação no nível coletivo. Esse ceticismo faz surgir a seguinte
pergunta:

Existem mesmo países monolíngues no mundo? Ou seria o monolinguismo um ideal, uma abstração
política?

Isso se dá porque muitos países classificados oficialmente como monolíngues ou conhecidos


mundialmente como tal, em geral, são casos mais complexos do que parecem. Listamos dois
cenários possíveis a seguir:

1 Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/monolinguismo [consultado em 26-01-2015].

167
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

1. Alguns países têm somente uma língua nacional oficialmente reconhecida, mas abri-
gam diversas pessoas bilíngues ou multilíngues de comunidades de imigrantes que
preservam o uso de suas línguas maternas;
2. Alguns países têm somente uma língua nacional oficialmente reconhecida, mas abri-
gam diversas comunidades indígenas que preservam suas línguas maternas, ou seja,
as línguas nativas do país antes de processos de colonização.

Por outro lado, um país pode ser oficialmente reconhecido como bilíngue ou multilíngue, mas
abrigar diversos cidadãos que só tem conhecimento de uma única língua e, portanto, essas
pessoas são monolíngues em suas vidas diárias.

Essa afirmação também não vem na literatura sem alguma polêmica: autores como Edwards
(2006) se perguntam se o monolinguismo, a condição de conhecer, usar, compreender somen-
te uma língua pode existir na realidade mesmo para um falante, no nível individual. Por isso,
o autor afirma que “todo mundo é bilíngue”:

Todo mundo é bilíngue. Ou seja, não existe ninguém no mundo (nenhum adulto) que
não saiba ao menos algumas poucas palavras que não pertençam a sua variedade ma-
terna. (…) Essa capacidade, é claro, não leva muitos a pensar em casos de bilinguismo.
(Edwards, 2006, p. 7 - tradução nossa).

Apesar de parecer um pouco contraditória, a afirmação do autor nos leva a pensar os termos
de forma mais complexa. Para ele, principalmente no que se refere ao nível individual, o bi-
linguismo deve ser medido em graus, ou seja, cada falante possui um grau de bilinguismo e,
muito dificilmente, alguém será completamente monolíngue, ainda mais na situação de alta
globalização e conectividade em que vivemos hoje.

Além disso, precisamos compreender que o monolinguismo é um conceito relativo, ou seja, só


faz sentido se pensado em contraposição ao conceito de bilinguismo e/ou multilinguismo. E
todos esses conceitos podem ser abordados tanto do ponto de vista coletivo e social quanto do
ponto de vista individual e pessoal e serão tratados nas nossas próximas aulas.

monolinguismo
Coletivo Individual
Social bilinguismo Pessoal

multilinguismo

168
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Nessa e na próxima aula, iremos pensar na questão do bilinguismo


e do multilinguismo, principalmente, de uma perspectiva social.
Em outras palavras, vamos discutir os conceitos de comunidades Mul.ti.lín.gue adj.2g. que
é escrito ou falado em
bilíngues e multilíngues. Antes de adentrarmos conceitos e defi-
muitas línguas.
nições mais complexas, vejamos o que diz o dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa (2001) a respeito do termo multilíngue:

A definição é bastante simples, mas esconde uma realidade bem diferente. As realidades e
contextos em que se formam comunidades bilíngues e multilíngues são muito complexos - so-
cial, cultural e linguisticamente. Nessa aula, vamos abordar alguns perfis e características de
comunidades bilíngues e multilíngues a partir do texto de Romaine (2006).

Comunidades bilíngues e multilíngues


A primeira questão que se coloca se refere à definição do que é uma comunidade de falantes.
Uma comunidade pode ser definida por suas características sociais, étnicas, nacionais, reli-
giosas, etc. Uma forma mais simples para começarmos a pensar em comunidade é a medida
oficial: um país é formado de uma comunidade de falantes, e muitas dessas comunidades, se-
não todas, são bilíngues ou multilíngues. Isto porque há uma estimativa de que existam 6.700
línguas no mundo, para 200 estados-nações oficializados.

… o bilinguismo ou multilinguismo está presente em praticamente todos os países do


mundo, seja ele oficialmente reconhecido ou não. (ROMAINE, 2006, p. 388, tradução
nossa).

Embora exista um enorme número de línguas em todo o mundo, e é certo que em todos os
países mais de uma língua é usada pela população, mais de 70% das línguas encontradas no
mundo estão concentradas em vinte países. Vejamos os dez países com a maior concentração
de línguas, dentre os quais está o Brasil:

169
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

1. Nova Guiné, África - 860 línguas

2. Indonésia, Ásia - 670 línguas

3. Nigéria, África - 427 línguas

4. Índia, Ásia - 380 línguas

5. Camarões, África - 270 línguas

6. Austrália, Oceania - 250 línguas

7. México - América Central - 240 línguas

8. Zaire, África - 210 línguas

9. Brasil, América
do Sul -
210 línguas

10. Filipinas, Ásia - 160 línguas

A constituição de países multilíngues


Apesar de quase todos os países incorporarem um grande número de grupos falantes de di-
versas línguas, como é o caso do Brasil, em muitos casos, apenas uma ou duas línguas são
reconhecidas como oficiais. O fato de serem reconhecidas como oficiais implica em que serão
línguas ensinadas na escola, nas instituições oficiais e nas instituições legitimadoras, como a
mídia. Isso porque, no geral, os grupos politicamente mais poderosos de qualquer sociedade
conseguem impor suas línguas aos grupos menos poderosos. Convenciona-se chamar de mino-
rias linguísticas os grupos menos poderosos.

No que diz respeito ao uso do termo minorias linguísticas como comunidades linguísticas em
um estado-nação, os estudiosos classificam dois tipos de configuração populacional: as que
são indígenas, também chamadas de autóctones, e as não-indígenas, que são aquelas formadas
por imigrantes ou migrantes.

O termo minoria, no entanto, não significa necessariamente que a comunidade de falantes é


pequena, mas se refere, sobretudo, ao seu papel político na sociedade em que se insere.

170
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Você se lembra das definições de “autoctonia” e “aloctonia” apresentadas na primeira aula da


disciplina “Breve introdução à história das línguas no Brasil”? Reveja:
Língua autóctone
A palavra autóctone se origina no grego autókththon - e significa “originário do próprio solo”.
Pelo latim, temos a forma autochtone – “nascido no país em que habita, indígena” (Houaiss,
2001). Essa palavra é comumente empregada como adjetivo para indicar ou distinguir as línguas
nativas ou naturais de uma certa terra, região ou país. Nos estudos linguísticos, o termo “língua
autóctone” é comumente empregado para designar as línguas indígenas.
Língua alóctone
A palavra alóctone designa “o que não é originário do país que habita” (Houaiss, 2001). No
campo da línguística, o termo se aplica às línguas não originárias de uma dada terra, região ou
país, mas resultantes de processos sócio-históricos de imigração e contatos linguísticos.

O que é importante reter dessa nossa discussão é o fato de que a definição de um país ou esta-
do-nação é algo arbitrário quando se considera apenas a questão da língua. Pensando no caso
do Brasil, por exemplo, não é possível pensar em uma comunidade linguística homogênea,
ou seja, nem todas as partes do nosso país têm a mesma natureza: há no território geográfico
de nosso país diversas comunidades linguísticas, com culturas, crenças e costumes variados.
Assim, quando pensamos em um país multilíngue, isso é fruto de uma abstração teórica. A
partir, então, dessa abstração, vamos estudar o modo como se dá a formação de alguns tipos
de países multilíngues.

Uma abstração teórica é uma ideia abstrata que existe no pensamento ou na teoria e é baseada
na realidade, mas não é exatamente o que existe na matéria ou na prática. As abstrações teóricas
servem para podermos estudar assuntos ou relidades muito complexas de um modo mais prático. No
entanto, o ideal é que partamos sempre de uma asbtração teórica para o estudo mais aprofundado
da realidade em um segundo momento.

Muitas comunidades de falantes que compartilham uma mesma língua ou línguas de uma
mesma família ultrapassam os limites geográficos de fronteiras oficiais dos países. Esse é o
caso de comunidades indígenas que compartilham a mesma língua na América do Sul. Veja-
mos o que Rodrigues (1986, p. 32) comenta da enorme extensão territorial de uso de línguas
da família Tupi-Guarani:

171
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

A família Tupi-Guarani se destaca entre outras famílias linguísticas da América do Sul


pela notável extensão territorial sobre a qual estão distribuídas suas línguas. No século
XVI encontraram-se línguas dessa família sendo faladas em praticamente toda a exten-
são do litoral oriental do Brasil e na bacia do rio Paraná. Hoje falam-se línguas dela
no Maranhão, no Pará, no Amapá, no Amazonas, em Mato Grosso, em Mato Grosso
do Sul, em Goiás, em São Paulo, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul,
no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, assim como, fora do Brasil, na Guiana Francesa,
na Venezuela, na Colômbia, no Peru, na Bolívia, no Paraguai e na Argentina.

O interessante é que mesmo tendo esta enorme extensão geográfica, as línguas preservam
identidade (s), apresentando pouca diferenciação, segundo Rodrigues. Veja novamente abaixo
o quadro comparativo apresentado primeiramente na aula 5 da disciplina A sociodiversidade
indígena no Brasil, que mostra a semelhança entre palavras de variedades do guarani localiza-
das em partes diversas do Brasil:

língua geral
guarani tapirapé parintintín wayampí
do alto
mbiá do do rio Ma- do norte do
do Araguaia rio Negro
Paraná deira Amapá
(Amazonas)
pedra itá itã itá takúru itá

fogo tatá tãtã tatá táta tatá

jacaré djakaré txãkãré djakaré iakáre Iakaré

pássaro gwyrá wyrã gwyrá wýra Wirá

onça djagwareté txãwãrã dja’gwára iáwa iawareté

ele morreu omanõ amãnõ omanõ ománo umanú

mão dele ipó ipá ipó ípo Ipú

Do bilinguismo à Diglossia
Em nossa aula sobre o bilinguismo no nível individual, veremos que a escolha pelo uso de uma
das duas línguas pelo falante está sujeita a diversos fatores, internos e externos, muitos deles
definidos pela situação comunicativa. No entanto, em muitas comunidades essa escolha pode
passar do nível individual para o nível institucionalizado, dada a abrangência da situação de
bilinguismo. Nesses casos, cada língua ou variedade linguística serve a uma função especial
e é usada para propósitos particulares. Afirma-se que essas comunidades passam a viver em
situação de diglossia.

172
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Nesse contexto, Diglossia é o termo usado para referir-se a um tipo de especialização funcional
entre línguas, em que a língua utilizada em casa e em outras situações de nível pessoal de in-
teração entre os membros da comunidade é diferente daquela que é usada em outras funções
oficiais, como, por exemplo, a linguagem oficial do governo, da mídia e da escola. Vejamos
no quadro abaixo alguns países muito próximos a nós que vivem em situação de diglossia
institucionalizada:

Exemplos próximos de diglossia: países da América do Sul

No Paraguai, o idioma espanhol é tido como língua de Alta Variedade por ser
a língua oficial do governo e a língua utilizada para o ensino. O Guarani,
idioma falado por 90% da população, é tida como Baixa variedade, por ser a
língua usada para interação familiar e cotidiana.

No Peru, a língua indígena quechua é tida como a língua da família,


da comunidade, a língua domiciliar, e o espanhol é tido como língua
de tudo o que ocorre fora desses domínios. Assim, o quechua é identificado
com partes territoriais de comunidades rurais e o espanhol está ligado às
cidades, minas e áreas da costa.

Os estudiosos chegaram a uma caracterização dos tipos de situações em que são usadas as
variedades linguísticas tidas como Alta e Baixa em países com situação de diglossia institu-
cionalizada. Devemos lembrar que essa é uma caracterização fruto de uma asbtração e no dia
a dia a situação pode ser muito mais complexa. Veja abaixo o quadro adaptado de Romaine
(2006, p. 394).

Situações Alta Baixa


Serviços religiosos (religião oficial) +

Instruções a garçons, empregados +

Carta pessoal +

Discursos políticos +

Palestras em universidades +

Conversas com amigos , familiares e colegas +

Noticiários +

Novelas de rádio +

Editoriais de jornais, notícias impressas +

173
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Comédia +

Poesia +

Literatura popular +

Tabela - Algumas situações para variedades Alta e Baixo em Diglossia.


Fonte: Romaine, 2006.

Na próxima aula, vamos estudar bilinguismo a partir de uma perspectiva individual.

Referências
EDWARDS, John. Foundations of Bilingualism. In: Bhatia, Tej K; Ritchie, William C. The
Handbook of Bilingualism. Maiden, MA.:Blackwell, 2006, p. 7-31.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objeti-
va, 2001.

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas Brasileiras: Para o conhecimento das línguas indíge-
nas. São Paulo: Loyola, 1986.

ROMAINE, Suzanne. The Bilingual and Multilingual Community. In: Bhatia, Tej K; Ritchie, Wil-
liam C. The Handbook of Bilingualism. Maiden, MA.:Blackwell, 2006, p. 385-405.

174
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

AULA 2
Bilinguismo:
definições e conceitos associados
Nas aulas anteriores, abordamos a questão do bilinguismo e multilinguismo pensando mais es-
pecificamente nas comunidades. Nesta aula, trataremos do conceito de Bilinguismo e Bilíngue
no nível individual. Preferimos, além disso, focar no bilinguismo em vez do multilinguismo
em nível indivíiual porque esse é o cenário mais comum. Também escolhemos assim porque
muito do que falaremos do bilinguismo serve para caracterizar o multilinguismo, ambos no
nível individual. Aos olhos do senso comum, os conceitos de bilinguismo e bilíngue podem
parecer simples, assim como são simplificadas as definições dadas pelo dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa (2001):

“bi.lin.guis.mo s.m. 1 coexistência de duas línguas num país 2 uso de duas línguas por um falante
ou grupo.” “bi.lin.gue adj.2g. 1 que fala duas línguas 2 que tem duas língua 3 escrito em duas
línguas.”

No entanto, no campo dos estudos da linguística, psicolinguística, psicologia e aquisição de


linguagem, sabe-se que esses conceitos são bastante elaborados. A classificação de um falan-
te como bilíngue pode variar muito a depender dos critérios utilizados para tal. Além disso,
podemos pensar em tipos de bilinguismo, ou seja, nem todos os casos de bilinguismo são
idênticos. No contexto da educação escolar bilíngue, é importante que os educadores saibam
exatamente com qual tipo de situação de bilinguismo estão lidando a fim de propor práticas
pedagógicas adequadas e eficientes, que façam sentido em cada contexto. No trabalho de
Flory e Souza (2009) são apresentados alguns critérios adotados para a classificação de tipo
de bilinguismo. Nessa aula, vamos estudar esses critérios, atentando primeiro para como po-
demos definir o indivíduo bilingue, também chamado por alguns autores de bilingualidade.

Critérios para classificação de bilinguismo (FLORY E SOUZA, 2009):


1. Proeficiência nas línguas em questão

Esse critério diz respeito à capacidade do indivíduo no uso das duas línguas em questão. A
partir desse critério, é possível chegar a dois tipos de falantes bilíngues, os balanceados e os
dominantes:

175
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

• Falante bilíngue balanceado: tem competência similar no uso das duas línguas;
• Falante bilíngue dominante: tem melhor competência em uma das duas línguas.

2. Idade de aquisição da segunda língua


O termo aquisição de linguagem pela criança ou pelo adulto pode se referir amplamente à
aquisição da língua materna, de uma segunda língua e da língua escrita (Scarpa, 2012, p.
243-4). No caso aqui em questão, trata mais profundamente da aquisição de uma segunda
língua. A depender da idade em que adquirem a segunda língua, os falantes bilíngues podem
ser classificados em precoces (subdivididos em tipos de bilinguismo simultâneo ou sequencial)
e tardios:
• Falante bilíngue precoce: adquire a segunda língua durante a infância, sendo que a situa-
ção de aquisição pode ser de:

• Bilinguismo Simultâneo: a aquisição das duas línguas se dá ao mesmo tempo;

• Bilinguismo Sequencial: a aquisição da segunda língua se inicia após a aquisição da pri-


meira estar completa.

• Falante bilíngue tardio: adquire a segunda língua durante a adolescência ou idade adulta.

Essa questão do período em que a segunda língua é adquirida traz um ponto bastante contro-
verso nos estudos linguísticos e psicolinguísticos: a existência de um período ideal, chamado
período crítico, para o desenvolvimento da linguagem. Alguns autores consideram que existe
um período ideal para o desenvolvimento da linguagem pela criança e que, depois desse pe-
ríodo crítico, a aquisição se torna muito mais complicada, até deixa de ser um processo genuí-
no de aquisição e passa a se configurar como um processo de aprendizagem de habilidades.
Outros acreditam que os argumentos utilizados até hoje não são completamente convincentes
para assumir esse período crítico. Vejamos as palavras de um adepto da primeira corrente:

Entre dois e três anos de idade, a linguagem emerge através da interação entre ma-
turação e aprendizado pré-programado. Entre os três anos de idade e a adolescência,
a possibilidade de aquisição primária da linguagem continua a ser boa; o indivíduo
parece ser mais sensível a estímulos durante esse período e preservar uma certa flexi-
bilidade inata para a organização de funções cerebrais para levar a cabo a complexa
integração de subprocessos necessários a adequada elaboração da fala e da linguagem.
Depois da puberdade, a capacidade de auto-organização e ajuste às demandas psicoló-
gicas do comportamente verbal declinam rapidamente. O cérebro comporta-se como se
tivesse se fixado daquela maneira e as habilidades primárias e básicas não adquiridas
até então geralmente permanecem deficientes até o fim da vida. ( LENNEBERG, 1967
apud SCARPA, 2012).

3. Organização dos códigos linguísticos

O terceiro critério se refere ao modo como os falantes bilíngues organizam seus códigos lin-
guísticos. Isso, por sua vez, se relaciona à organização cognitiva. São previstos, a partir deste
critério, três tipos de bilinguismo:

176
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

• Bilinguismo composto: situação em que dois conjuntos de códigos linguísticos estão as-
sociados a uma unidade de significado. Por exemplo, imagine que um falante utiliza as lín-
guas tupinambá e português. Se o bilinguismo é composto, supõe-se que dois conjuntos de
códigos como “iawar” e “onça” estejam relacionados a uma mesma unidade de significado;
• Bilinguismo coordenado: cada código linguístico está organizado separadamente em
dois conjuntos de unidades de significado;
• Bilinguismo subordinado: os códigos linguísticos da segunda língua estão organizados e
são interpretados com base na primeira língua.

4. Status da língua em questão

Este critério organiza o bilinguismo de acordo com o status social e político das línguas dentro
da sociedade em que são faladas. São propostos dois tipos: o Bilinguismo de Elite e o Bilin-
guismo Popular.
• Bilinguismo de Elite: o indivíduo fala a língua dominante dentro daquela sociedade e
também fala uma língua que lhe confere prestígio neste mesmo grupo;
• Bilinguismo Popular: esse tipo de bilinguismo ocorre em grupos linguísticos minoritários.
A língua falada não tem status elevado na sociedade em que seus falantes estão inseridos.

5. Manutenção da Língua Materna

Este critério diz respeito à manutenção (ou não) da língua materna no processo de aquisição
de segunda língua. Com relação a esse critério, o bilinguismo pode ser de dois tipos: bilinguis-
mo aditivo e bilinguismo subtrativo.
• Bilinguismo Aditivo: o indivíduo adquire a segunda língua sem prejuízo da primeira.
Nesses casos, em geral, as duas línguas são valorizadas na sociedade em que está inserido;
• Bilinguismo Subtrativo: o indivíduo adquire a segunda língua às custas da perda da lín-
gua materna. Nesses casos, em geral, a língua materna não é valorizada na sociedade em
que o falante está inserido.

6. Identidade cultural do indivíduo bilíngue

O sexto e último critério de bilinguismo diz respeito ao tipo de identificação do indivíduo com
os grupos culturais que falam as suas línguas e se este indivíduo quer ou não ser reconhecido
como membro desses grupos. A partir daí, são derivados quatro tipos de bilinguismo:
• Bilinguismo bicultural: o falante se identifica positivamente com os dois grupos de falan-
tes e é reconhecido como membro de ambos;
• Bilinguismo Monocultural: o falante tem competência bilíngue, mas somente se identifi-
ca culturalmente com o grupo de sua língua materna;
• Bilinguismo Aculturado: o falante renuncia ou é obrigado a renunciar da identidade
cultural do grupo de sua língua materna e adota a identidade cultural do grupo falante da
segunda língua;
• Bilinguismo Deculturado: o falante renuncia da identidade cultural própria, mas não
passa a adotar a identidade cultural do grupo falante da segunda língua.

177
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Vemos, ao acompanhar tantas definições para bilinguismo a partir de diferentes critérios li-
gados a aspectos linguísticos, cognitivos e sociais, que esse conceito não é nada simples. As
pesquisas continuam em andamento e devem considerar os diferentes contextos de ocorrência
dos diferentes “bilinguismos”. Na nossa próxima aula, vamos discutir a questão da existência
de graus de bilinguismo.

SAIBA MAIS
No youtube, você pode encontrar um vídeo produzido por
estudandes da Universidade Federal da Paraíba que apresenta,
nos primeiros 4 minutos, algumas definições de bilinguismo
acompanhadas por ilustrações. Acesse aqui: https://www.youtube.
com/watch?v=TChOaF9rDvM

Referências
FLORY, Elizabete Villibor; SOUZA, Maria Thereza Costa Coelho. Bilinguismo: Diferentes defi-
nições, diversas implicações. Revista Intercâmbio, volume XIX: 23-40, 2009. São Paulo: LAEL/
PUC-SP. ISSN 1806-275x.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de. Janeiro, Ed. Objeti-
va, 2001.

LENNEBERG, Eric. Biological foundations of language. Nova York: Wiley, 1967, p. 158.

SCARPA, Ester Mirian. Aquisição da Linguagem. In: Mussalin, F; Bentes, C (orgs). Introdução
à Linguística: domínios e fronteiras. Vol.2. São Paulo: Cortez, 2012 (8ed.)

178
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

AULA 3
Graus e função de bilinguismo
Será que todo falante que utiliza duas línguas as utiliza da mesma maneira? Somente pelas
diferentes definições de Bilinguismo, vistas na aula anterior, que nos mostram que esse con-
ceito é relativo, podemos prever que não. Por isso, estudiosos propuseram que existem graus
de bilinguismo, ou seja, o bilinguismo pode se dar em maior ou menor intensidade, a depen-
der do falante e da situação de uso e aquisição. Além da questão do Grau, vamos destacar, na
próxima aula, a função das línguas na vida do indivíduo. Vamos abordar, então, a partir do
texto de Mackey (2005) a primeira questão.

GRAU DE BILINGUISMO

Quão bem o indivíduo conhece as línguas que usa? Quão bilíngue ele é?

Quando um falante usa uma língua, seja ela materna ou uma segunda língua, ele pode acessar
quatro habilidades básicas, descritas a seguir:

Compreensão: habilidade para ouvir e entender uma língua

Fala: habilidade para produzir linguagem oral

Leitura: habilidade para ler e compreender textos escritos

Escrita: habilidade para produzir textos escritos

É fato que o falante pode não ter o mesmo grau de competência no uso de cada uma dessas
quatro habilidades na sua própria língua materna, e o mesmo se dá no que se refere ao uso
de uma segunda língua. Alguns falantes bilíngues podem entender igualmente bem as duas
línguas, mas não ser capaz de falar tão bem em uma delas, ou podem, ainda, ser capazes de
ler e escrever em ambas as línguas, mas não tão bem em uma delas.

Além disso, para cada uma dessas habilidades, o falante pode ter um desempenho diferente
em cada um dos níveis linguísticos: fonológico-gráfico, gramatical, lexical e estilístico. Por
exemplo, um falante pode ter um vasto vocabulário, conhecer muitas palavras da língua, mas
não ter uma habilidade avançada para pronunciar essas palavras. Ainda, pode ter uma habili-
dade para se expressar oralmente em diferentes situações, mas ter dificuldade em escrever de
acordo com as regras da ortografia.

179
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Níveis Linguísticos
Fonologia-grafia
Se refere à pronúncia dos sons e ao uso das regras de ortografia da língua

Gramática
Se refere ao domínio das regras gramaticais da língua

Léxico
Se refere ao vocabulário que o falante possui da língua

Semântica
Se refere ao conhecimento dos significados da língua

Estilo
Se refere ao desempenho em relação ao uso da língua

Vale ressaltar aqui que classificação proposta por Mackey (2005), a qual considera que o
falante bilíngue acessa as quatro habilidades; compreensão, fala, leitura e escrita, se baseia
no uso de línguas que possuem sistemas de escrita. No entanto, como sabemos, há no mundo
todos muitos falantes bilíngues, e mesmo monolíngues, que desenvolvem habilidades em lín-
guas ágrafas, ou seja, línguas que não possuem sistema de escrita e que tem como forma de
transmissão a oralidade somente.

Tendo em vista que a proposta de Mackey leva em conta esses falantes específicos, se consi-
derarmos estas possíveis habilidades, podem existir diversos tipos de falantes bilíngues, com
desempenhos diferentes ou semelhantes nas duas línguas que utiliza. Por isso, Mackey propõe
a seguinte tabela para descrever as propriedades da bilinguidade. (Na tabela, L1 = Língua 1
e L2 = Língua 2. L1 e L2 são línguas hipotéticas).

Tabela 1 - Graus de bilinguismo

Níveis linguísticos
Fonológico-
Gramatical Lexical Semântico Estilístico
-gráfico
Habilidades L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2 L1 L2

Compreensão

Fala

Leitura

Escrita

180
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Existem muitos testes de produção e testes de compreensão e percepção utilizados para medir
a habilidade de um falante no uso da língua, bem como seu desempenho em cada um dos
níveis linguísticos. Esses testes vão avaliar o desempenho dos falantes e o pesquisador pode
atribuir notas para cada uma das línguas separadamente.

Para entender essa tabela, vamos imaginar alguns falantes bilíngues que podemos encontrar
na realidade. Imagine que são atribuídas notas de 0 a 10 por meio dos testes utilizados para
medir a competência de cada falante nas duas (ou mais) línguas em cada tipo de habilidade e
para cada uma delas, considera-se o nível linguístico que está sendo acessado.

Falante 1: O falante 1 utiliza a língua 1 em ambiente familiar e a língua 2 no trabalho. Quan-


do está falando sobre um assunto da sua área de especialidade de trabalho, esse falante tem
um desempenho melhor no quesito vocabulário (Léxico) na língua 2, seus testes resultam na
nota 8,0. No entanto, esse falante pode ter um melhor desempenho estilístico na habilidade
de fala em ambiente familiar, seus testes resultam na nota 9,0.

Falante hipotético 1
Níveis
Lexical Estilístico
Habilidades L1 L2 L1 L2

Fala 6,0 8,0 9,0 5,0

Falante 2: O falante 2 tem uma compreensão semântica (do significado) das duas línguas em
nível praticamente igual. No entanto, a sua língua 1 foi aprendida em casa e nunca estudada
na escola, ou seja, ele nunca foi alfabetizado nessa língua; e a língua 2 foi também estudada
em ambiente escolar. Nesse cenário, o falante 2 tem um desempenho muito melhor no quesito
gráfico na língua 2, uma nota 8,0 em comparação ao 0,0 tirado na língua 1.

Falante hipotético 2
Níveis
Gráfico Semântico
Habilidades L1 L2 L1 L2

Compreensão 9,0 9,0

Escrita 0,0 8,0

181
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Falante 3: O falante 3 consegue formar estruturas gramaticais na língua 1 tão bem quanto
consegue compreendê-las. Por isso, nos resultados dos testes, conseguiu a mesma nota para a
compreensão (ouvir e compreender) e produção oral (falar) de estruturas gramaticais na lín-
gua 1, nota 9,0. No entanto, quando testado para a língua 2, o falante 3 revela que compreen-
de melhor (nota 8,0) as estruturas gramaticais do que consegue produzi-las oralmente (5,0).

Falante hipotético 3
Níveis
Gramatical
Habilidades L1 L2

Compreensão 9,0 8,0

Fala 9,0 5,0

Não é de nosso interesse neste curso abordar os tipos de testes que podem ser formulados
para medir o grau de bilinguismo, estes exemplos são ilustrações que nos fazem perceber que
saber uma língua é saber, conhecer, utilizar múltiplas esferas que formam o que chamamos
de língua.

Estes dois exemplos também mostram que a função da língua na vida do indivíduo pode afetar
o seu desempenho em determinadas habilidades e, dentro de cada habilidade, em diferentes
níveis linguísticos. Agora, buscaremos responder às seguintes perguntas:

FUNÇÃO

Para que o falante usa as suas línguas?

Que papel essas línguas têm em seu padrão de comportamento?

O grau de bilinguismo de um indivíduo depende muito da função que as línguas em questão


têm em sua vida. No exemplo do falante 1, acima, a função da língua no que se refere ao
uso familiar ou profissional pode fazer diferença no desempenho do uso de vocabulário. As
funções da língua em uso são de ordem externa e interna. Observe a divisão do organograma
abaixo, que vamos discutir em seguida:

182
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Funções da Língua
na vida do indivíduo

Tipo de contatos
Uso
Língua da família
Interna Externa
Língua da comunidade
Aptidão
Língua da mídia

Língua usada para


correspondência

Língua da escola

No restante dessa aula, vamos discutir com mais detalhes as funções externas e internas da
língua na vida do indivíduo bilíngue.

Função Externa da língua


A influência de uso de cada uma das duas línguas na vida do falante bilíngue tem muita rela-
ção com a função que desempenham no convívio social. A língua pode ter sido adquirida ou
somente ser usada em diferentes situações: ambiente familiar, com a comunidade de convívio
social ou de trabalho, na escola, na grande mídia (televisão, rádio, jornais impressos, inter-
net), ou pode ser usada somente para a troca de correspondências oficiais (cartas).

A língua familiar: no caso do uso de uma segunda língua no ambiente familiar, em casa,
são encontrados muitos cenários no mundo. Em certas famílias, os pais encorajam o uso de
suas línguas maternas pelos filhos, língua que é diferente daquela que as crianças aprendem
na escola. Em outros casos, os filhos não conseguem se expressar na língua materna dos pais,
mas conseguem compreender quando os pais falam naquela língua. Esse é o caso de muitas
comunidades indígenas do Canadá, em que os pais falam na língua nativa e os filhos respon-
dem em inglês.

A língua da comunidade: esse caso se dá no contexto de comunidades bilíngues. Por exem-


plo, em uma comunidade, pode haver a língua que é falada na vizinhança, a que é falada por
um grupo étnico com o qual o falante mantém uma relação de identidade, falada na igreja ou
em cerimônias e rituais religiosos, a língua que é falada no trabalho ou no lazer e recreação
(esportes, música).

A (s) língua (s) na mídia: muitas vezes o indivíduo só tem contato com sua segunda língua
através de jornais, programas de televisão, cinema, livros, revistas, rádio. Essa é uma forma
de acesso tanto à parte oral quanto escrita da segunda língua.

183
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

A língua de correspondência: muitas vezes o indivíduo tem contato no trabalho com uma
segunda língua porque precisa se corresponder com outros países. Ao manter contato por car-
ta com os familiares deixados na Europa, a correspondência também foi fator de manutenção
das línguas europeias para os imigrantes europeus que se instalaram nas Américas. Como
vimos em aulas anteriores, muitos homens europeus constituíram famílias com as índias no
Brasil e a língua dos filhos era a indígena ou a língua geral.

A língua da escola: o contato do aluno com a língua na escola pode se dar de dois modos:
tendo a língua como uma matéria do currículo, como é o caso da disciplina de inglês e espa-
nhol nas escolas de ensino fundamental e médio no Brasil, ou tendo a língua como o meio
pelo qual o aluno aprende todos os conhecimentos, todas as disciplinas do currículo. Esse é o
caso geral do português no Brasil, por exemplo. Há também as escolas bilíngues, em que mais
de uma língua é usada como meio de transmissão de conhecimentos em todas as disciplinas
do currículo.

Nas áreas bilíngues, são empregadas políticas linguísticas a fim de justificar ou decidir qual
língua deve ser utilizada como meio de instrução na escola. Essas políticas respeitam critérios
de nacionalidade, territorialidade, filiação religiosa e origem étnica. Vamos a eles:

Políticas para escolha da língua usada na escola


Critérios de:
• Nacionalidade: propõe que a língua a ser utilizada e ensinada na escola deve ser a língua
oficial ou língua nacional do país independentemente da origem étnica, religião ou da língua
materna utilizada em casa pelo aluno. Essa é a política do sistema de escolas públicas dos
Estados Unidos, e também foi o sistema instituído no Brasil para o ensino de português para
comunidades indígenas desde o período de colonização até a Constituição de 1988, confor-
me vimos nas aulas 6 da Disciplina Os aspectos linguísticos da cultura indígena (Módulo 2);
• Territorialidade: nesse sistema, a política diz que a criança deve aprender na escola a
língua utilizada pela comunidade local, do território em que vive. Esse sistema vigora na
Suíça, um país que tem três línguas nacionais oficiais: francês, alemão e italiano;
• Religião: esse tipo de critério é considerado em países em que as fronteiras linguísticas
coincidem com filiações religiosas. Na cidade de Quebec no Canadá, por exemplo, há
cidades com Escolas Católicas Francesas, cuja língua usada é o francês, Escolas Protestan-
tes Inglesas e Escolas Católicas Inglesas, cuja língua usada é o inglês, mas não há escolas
protestantes francesas porque não há um grande número de protestantes franceses para se
justificar a abertura de uma escola;
• Origem étnica: esse critério leva em conta a língua falada em casa pelo aluno, ou seja.
Esse tipo de sistema passou a ser o de muitas comunidades indígenas brasileiras a partir
da abertura, na Constituição de 1988, para o ensino das línguas nativas na escola. Hoje em
dia, existem Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação
Básica, como visto no Módulo 1, que garantem o direito ao ensino em língua materna para
as comunidades indígenas. Esse tipo de sistema também vigora em regiões da África do
Sul, em que há diversas comunidades bilíngues e multilíngues.

184
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Os casos acima se referem a cenários em que só uma língua é usada no ambiente escolar, mas
há diversos cenários em que as duas línguas são usadas na escola. Ás vezes, as duas línguas
têm papéis diferenciados, por exemplo, uma língua é usada para ensinar determinadas maté-
rias e a outra para as demais, ou uma língua é usada para abordar tópicos de cultura, história
e religião e a outra para ciências. Há também as escolas que tentam usar as duas línguas para
as mesmas tarefas e na mesma medida, por exemplo, durante a manhã os alunos aprendem na
língua 1 e à tarde na língua 2.

Função Interna da língua


Os fatores internos da língua relacionados à situação de bilinguismo são de dois tipos: 1. Usos
internos, que não têm como objetivo final a comunicação externa; 2. Fatores que influenciam
a aptidão do falante bilíngue.

No que se refere a usos internos, temos manifestações de fala internalizada, usada para con-
tar, fazer cálculos, rezar, xingar, sonhar, escrever em diários ou fazer anotações em geral, por
exemplo. O tipo de uso, neste caso interno, pode influenciar a escolha da língua a ser utilizada
pelo falante. Na maioria dos casos, a língua dominante do falante bilíngue é usada para esse
tipo de situação, mas essa não é uma regra geral. Alguns falantes podem sonhar frequente-
mente em uma língua e contar em outra, ou podem saber contar em ambas as línguas, mas
usar somente uma delas para fazer cálculos mais complexos, e assim por diante.

No que se refere aos fatores que definem ou influenciam a aptidão do falante para o uso de
mais de uma língua, estão: gênero, idade, inteligência, memória, atitude, motivação. Vejamos
muito rapidamente cada um deles:
• Gênero: as pesquisas mostram que o gênero (masculino e feminino) do indivíduo é um
fator relevante para desenvolvimento da linguagem e, por consequência, deve ser também
para o bilinguismo;
• Idade: falantes que se tornaram bilíngues quando criança demonstram competência e uso
distintos daqueles que somente adquiriram uma segunda língua quando adultos. As crian-
ças apresentam imensa capacidade de adaptação para a aquisição da linguagem, o que tem
sido relacionado à fisiologia (maior plasticidade) do cérebro humano na infância;
• Inteligência: a inteligência do indivíduo, entendida no texto do autor como capacidade
de raciocínio e conhecimentos gerais, é um fator que influencia, muito provavelmente, a
capacidade de compreensão e interpretação, pois o indivíduo bilíngue pode lançar mão
de seu raciocínio e conhecimento geral para abstrair os significados a partir de contextos;
• Memória: sabe-se que a memória auditiva está relacionada com a capacidade de aprender
línguas, mas a relação da memória em geral com a competência do bilíngue ainda é um
tópico em discussão entre os pesquisadores;
• Atitude: a atitude do falante bilíngue em relação às línguas e aos membros da comunidade
de falantes dessas línguas irá influenciar seu comportamento em diferentes situações de
contato. Atitude é entendida no texto como a escolha do falante em usar ou não sua pri-
meira ou segunda língua em determinado contexto ou ambiente. Por exemplo, alguns fa-
lantes bilíngues evitam o uso de sua língua materna, e tem por ela uma atitude de desdém,
por considerá-la língua de uma minoria e demonstra admiração por sua segunda língua,
politicamente mais privilegiada. Outros, ainda, evitam falar em público em sua segunda
língua por vergonha de demonstrar sotaque proveniente da língua materna.

185
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

• Motivação: a motivação para a aquisição da língua materna é o da comunicação para


sobrevivência, já a motivação para a aquisição de uma segunda língua é, em geral, menos
essencial. O falante que quer se tornar bilíngue em idade adulta, por exemplo, deve estar
fortemente motivado para dedicar o tempo e a energia necessários para tal.

Nesta aula, vimos que as funções das línguas na vida do indivíduo bilíngue são de natureza
interna e externa. Na nossa próxima aula, vamos abordar a questão do bilinguismo nas co-
munidades indígenas brasileiras. Agora que você já está munido de conceitos teóricos sobre o
bilinguismo, podemos observar essas realidades com mais propriedade.

Referências
MACKEY, William F. The description of Bilingualism. In: Wei, Li. The Bilingualism Reader.
Taylor & Francis e-library, 2005, p. 22-50.

186
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

AULA 4
Retratos de bilinguismo e multilinguismo
nas comunidades indígenas brasileiras
A esta altura de nosso curso, após estudar no Módulo 1 (Conhecendo os Povos Indígenas no
Brasil Contemporâneo – desconstruindo preconceitos) as informações históricas e demográficas
sobre a riqueza linguística presente nas comunidades indígenas brasileiras, já deve estar mui-
to claro que o Brasil não é um país monolíngue e que em algumas dessas comunidades ocorre
situação de bilinguismo e/ou multilinguismo. Nesta aula, iremos trazer para estudo um caso
de uma cidade multilíngue do estado do Amazonas, relatado por Oliveira (2009), a cidade de
São Gabriel da Cachoeira. Lembre-se que na aula 2 da disciplina Breve História das Línguas no
Brasil vimos que foi nessa cidade em que o Nheengatu se tornou a primeira língua indígena
cooficializada em território brasileiro, juntamente com o Tukano e o Baniwa.

São Gabriel da Cachoeira é um município que se localiza no centro da região do Alto Rio Ne-
gro no norte do Amazonas, em fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Em 2014, a população
estimada era de 42.342 habitantes.

Figura 1. Localização de São Gabriel da Cachoeira Foto de São Gabriel da Cachoeira


Fonte: Google Maps, 20152 . Fonte: Portal Amazonia, 20153 .

2 Disponível em cidades.ibge.gov.br e Google Maps.


3 Disponível em http://www.portalamazonia.com.br.

187
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Oliveira (2009) afirma que o núcleo urbano da cidade se estendia por uma região de 112.000
km2 e abrigava cerca de dez mil habitantes. Nessa região, estavam abrigadas 409 aldeias nas
quais funcionavam 165 escolas indígenas bilíngues de ensino fundamental (1a a 4a séries).
Uma das marcas da cidade, e o que nos interessa destacar nesta aula, é a grande riqueza lin-
guística do município:

Com 95% da população sendo de origem indígena, São Gabriel da Cachoeira é possi-
velmente o lugar mais plurilíngüe das Américas: um município de 112 mil km² (maior
que Portugal ou Santa Catarina) onde se falam 22 línguas indígenas, de quatro troncos
lingüísticos diferentes (Tupi-Guarani, Tukano Oriental, Maku e Aruak). Além disso, é
possivelmente o único lugar no mundo em que o critério de casamento tradicional (no
caso dos povos Tukano) é lingüístico (exogamia lingüística: um homem não pode se
casar com uma mulher falante da mesma língua que ele). Já o Nheengatu (língua geral
de base Tupi) foi introduzido pelos missionários e é falado pelos povos Baré, Werekena
e algumas comunidades Baniwa4.

O munícipio é reconhecido como município indígena, pois tem 95% de sua população for-
mada por indígenas. Um dos fatores causadores da grande diversidade linguística é o intenso
fluxo de migrantes, que deixam suas aldeias devido a conflitos internos ou porque buscam
serviços básicos, como mais escolarização ou atendimento de saúde. Outro fator que contribui
para o multilinguismo é a distribuição aleatória de terrenos, especialmente em três bairros
considerados essencialmente indígenas - Dabaru, Areial e Tirirical -, ou seja, a distribuição
de terrenos não se dá por critérios étnicos ou de procedência, o que cria vizinhanças mistas,
multiculturais e multilíngues.

Oliveira ilustra o que chama de pluralidade linguística a partir de entrevistas com duas famí-
lias moradoras do bairro Areial, no ano de 2009. Nos relatos, são descritas algumas práticas
linguísticas do dia a dia de famílias bilíngues que chegaram às comunidades há não mais que
dois anos e, portanto, preservam o uso de suas línguas maternas. Vamos a eles!

4 (Givan Müller de Oliveira em entrevista ao Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política


Linguística, http://www.ipol.org.br/imprimir.php?cod=83, acessado em 03 de fevereiro de 2015.)

188
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Relatos familiares do bairro Areial


Relato 1: no primeiro caso, o autor relata a entrevista com um morador tukano e expõe a proximidade com
outras cinco famílias da vizinhança. O desenho abaixo ilustra a distribuição das seis casas das seis famílias
citadas na entrevista. A seguir, descrevemos sistematicamente a situação linguística de cada lar:

castelhano
tukano tukano

baniwa
tukano português

Casa 1. O entrevistado é um tukano falante da língua tukano. Ele tem oito filhos, seis dos
quais vivem na mesma casa que ele, e cinco netos com idades entre 2 e 11 anos. A família
residia em São Grabriel da Cachoeira há um ano e meio e todos falam a língua tukano: essa
é a língua utilizada no ambiente familiar.

Casa 2. Trata-se do vizinho baniwa do morador da Casa 1. Ele usa a língua baniwa em casa
com a família.

Casa 3. O morador da casa 3 é um tuyuka, falante da língua baniwa, casado com uma mulher
tukano. Ele usa a língua tukano como língua veicular para sua comunicação doméstica.

Casa 4. O morador da casa 4 é um desano também casado com uma mulher tukano, que se
utiliza da língua tukano para comunicação.

Casa 5. Na casa 5, do outro lado da rua, um vizinho descrito pelo morador da casa 1 como
“caboclo” se utiliza do português para comunicação com sua família.

Casa 6. Na casa 6, um indígena da etnia carapanã se utiliza do castelhano para comunicação


com a família.

Três destas seis casas utilizam também o Nheengatu.

189
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Relato 2: o autor relata a entrevista com um homem bará e expõe a proximidade com outras cinco famílias da
vizinhança. O desenho abaixo ilustra a distribuição das seis casas das seis famílias envolvidas. A seguir,
descrevemos sistematicamente a situação linguística de cada lar:

nheengatu
português
tukano

baniwa

tukano
tukano
tukano
nheengatu
português

Casa 1. O entrevistado é um baré casado com uma mulher tukano. Eles têm seis filhos com
idades entre 4 e 20 anos e estão no município de São Gabriel da Cachoeira há menos de um
ano. Todos em casa falam a língua tukano em ambiente familiar e também são falantes de
português.

Casas 2 e 3. São também entrevistados homens baré casados com mulheres tukano. Utilizam
a língua tukano para comunicação com a família.

Casa 4. Nesta casa, há moradores tukanos que falam a língua tukano.

Casa 5. Na casa 5, há uma família baniwa que utiliza o nheengatu e o português em casa.

Casa 6. Na casa 6, há uma família baniwa que utiliza a língua baniwa.

Casa 7. Na casa 7, reside uma família descrita como “cabocla” (baré) pelo entrevistado, que
utiliza o nheengatu e o português em casa.

190
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Apesar das duas vizinhanças exemplificadas acima, em que há uso de língua indígena para
comunicação diária na maioria das casas, a continuidade de uso e transmissão da língua in-
dígena é sempre um desafio, e isso se dá em grande medida por causa do aumento do uso
do português nas diversas esferas da vida daquela população. Praticamente todas as crianças
falam o português e, em muitos casos, como primeira língua fora do ambiente familiar. Ade-
mais, muitos pais optam conscientemente por usar o português com seus filhos porque acredi-
tam que isso os integrará à sociedade nacional e, assim, pode livrá-los da discriminação étnica
e promover maiores oportunidades. Essa atitude acaba por desfavorecer a sobrevivência e
desenvolvimento das línguas nativas.

Por isso, a escola tem um papel fundamental no que se refere ao reconhecimento, à valorização
e à manutenção do bilinguismo e multilinguismo, bem como da multiculturalidade do local.

Os diversos avanços alcançados pelos movimentos indígenas na região desde a década de 90


levaram a possibilidades de continuidade e reconhecimento das línguas indígenas. Hoje, é
instituído por lei que o município tem a tarefa de incentivar e conservar as línguas nativas
através do ensino bilíngue.

CAPÍTULO IV. “
DA POLÍTICA CULTURAL E EDUCACIONAL DO DESPOSTO E DO


LAZER”. Seção II, “Da Educação”. Art. 2665.

IX – a língua portuguesa será veículo de ensino nas escolas de educação fundamental,


assegurada às comunidades indígenas a utilização de sua língua materna e processos
próprios de aprendizagem. Caberá ao município incentivar a conservação de língua
nativa com ensino bilíngue; (grifo nosso)

Assim, o ensino bilíngue de qualidade oferecido pelos municípios se torna uma das principais
formas de preservação dessas línguas, sendo a produção de material didático bilíngue e a for-
mação de professores indígenas ferramentas fundamentais e valiosas. Na nossa próxima aula,
última desta disciplina, vamos voltar nosso olhar para a questão da educação bilíngue e sua
relação com a preservação das línguas indígenas. Também apresentaremos algumas observa-
ções de Franchetto (2002), que nos levam a reflexões e questionamentos acerca de algumas
práticas na educação escolar indígena.

5 Fonte: Câmara Municipa de São Gabriel da Cachoeira. http://www.camarasgc.am.gov.br/leis/


legislacao-municipal/Lei%20Organica%20APROVADA.pdf/view

191
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Referências
FRANCHETTO, Bruna. Sobre discursos e práticas na educação escolar indígena. In: Antonio Car-
los de Souza Lima, Antonio e Barroso-Hoffmann, Maria. Estado e Povos Indígenas no Brasil
– Bases para um nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED,
2002, p.95-99.

OLIVEIRA, Gilvan Müller. Índios urbanos no Brasil. Disponível em < http://www.ipol.org.


br/ler.php?cod=510#_ftn1> [portal do Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Po-
lítica Linguística (IPOL)]. Acessado em: 04/02/2015.

192
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

AULA 5
Reflexões sobre a educação escolar
indígena bilíngue e multilíngue no Brasil
Como dissemos em aula anterior, a escola deve ser um lugar de efetivação real das políticas
linguísticas reivindicadas pelas comunidades e estabelecidas pelos governos. No Brasil atual,
é possível observar a formação e expansão de iniciativas importantes da chamada “educação
bilíngue intercultural, específica e diferenciada”, mas se tais iniciativas são de fato implemen-
tadas com os resultados esperados - manutenção das línguas e culturas dos diversos povos
indígenas - ainda é tema de discussão.

Para relembrar as políticas linguísticas que se referem ao ensino bilingue no Brasil,


reveja a aula 6 Módulo 2: “Direitos Linguísticos para os povos indígenas no Brasil
e a educação escolar”.

Muitas escolas bilíngues de educação indígena propõem que as crianças possam ter sua esco-
larização em sua (s) língua (s) materna (s), e que o português seja aprendido com vistas a de-
senvolver um Bilinguismo Aditivo, ou seja, quando a segunda língua é adquirida e a primeira
língua é mantida.

Em entrevista ao programa Salto para o Futuro, da TV Escola (ano), a linguista Bruna Fran-
chetto ressalta a importância da alfabetização na (s) língua (s) materna (s) bem como a manu-
tenção da mesma durante e após o processo de aprendizado da segunda língua, o português:

193
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Salto – Por que a escola indígena deve ou precisa ser bilíngue?


Bruna Franchetto – A escola indígena deveria ser, e em muitas situações já é, em
muitas outras não é ainda, o lugar onde a alfabetização seja feita na língua materna,
e a língua materna é indígena. Essa alfabetização deve ser feita na língua indígena, e
não alfabetizar crianças que não falam o português em português, isso é uma aberra-
ção. Numa sociedade em que a escola está inserida, em que língua dominante, a língua
da socialização primária é a língua indígena, é essencial que essa língua seja a língua
usada no processo de ensino-aprendizagem na escola.
Quando a gente fala de bilíngue, é porque a escola também é o lugar onde vai ter que
ser aprendida a Língua Portuguesa. Na maior parte dos casos, essa língua é uma se-
gunda língua, não é a primeira língua. A escola, mais cedo ou mais tarde, vai ter que
introduzir o Português, além da língua indígena. Mas, de uma maneira equilibrada. E
jamais fazendo com que o Português assuma o lugar da língua indígena. A língua indí-
gena não é a ponte transitória para passar da alfabetização para o Português. O ideal é
manter a língua materna e a Língua Portuguesa, em pé de igualdade, ao longo de todo
o processo de educação escolar. Esse é o desafio. É um desafio porque raramente isso
acontece, assim como deveria acontecer. E quando a gente fala bilíngue, também não
estamos muito corretos, na medida em que há situações em que a escola deveria ser
trilíngue, quadrilingue, porque há situações em que, numa mesma aldeia, numa mesma
área indígena, tem várias línguas nativas, faladas, não apenas uma. Então, a questão
não é Língua Indígena e Português, mas às vezes Línguas Indígenas – olha o plural – e
Português. Mas é fundamental. A educação escolar tem destruído as línguas indígenas.
Tem sido um fator fundamental de aniquilamento das línguas indígenas. Desde a época
em que os portugueses chegaram no Brasil. A tentativa que se acaba fazendo é que a
escola não seja mais instrumento de destruição das línguas indígenas, nem das culturas
desses povos.”

Vemos que, quando questionada sobre a importância do bilinguismo na educação escolar in-
dígena, a linguista recusa um modelo em que a língua indígena é apenas usada como “ponte
transitória para passar da alfabetização para o Português”. Esse tipo de modelo foi amplamente
utilizado pelas missões católicas e foi ainda difundido após o fim desse período. Assim, é im-
portante entender que não é somente o rótulo de “ensino bilíngue” que garantirá a preserva-
ção da identidade cultural e linguística de diversos povos indígenas, pois mesmo em um mo-
delo bilíngue, os jesuítas procederam ao extermínio cultural e linguístico de diversos povos,
em um modelo escolar de integração à sociedade dos brancos.

Assim, historicamente, a educação bilíngue indígena foi uma criação das missões com o obje-
tivo de usar a própria língua indígena como modo de acesso aos povos para fins de integração
e, hoje, é tida como modo de preservação de línguas e culturas. Por isso, Franchetto no texto
Sobre discursos e práticas na educação escolar indígena chama atenção para a tênue
fronteira entre essas duas abordagens e o desafio em transformar em uma educação bilíngue
verdadeiramente libertadora a educação bilíngue que mantêm o “fantasma” das missões, ou
seja, uma educação com vistas a integrar e com prejuízos para identidades e culturas.

194
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

“Qual é a “mágica” que permitiria adotar um modelo criado para integrar ou até ani-
quilar línguas e culturas, exatamente pela digestão escolar da diversidade lingüística
por meio da escrita, invertendo suas finalidades para que se transformem nas da pre-
servação da diversidade?” (FRANCHETTO, 2002, p. 96).

Até aqui, estamos pensando na educação bilíngue como a introdução do português durante
a educação escolar para indivíduos que têm a língua indígena como língua materna, viva e
utilizada em ambiente familiar e em todas as outras instâncias da vida social. A necessida-
de dessa introdução da língua portuguesa como segunda língua para tais comunidades vem
acompanhada da necessidade de decifrar o mundo não-indígena, ou seja, o contexto maior, do
país, em que essas sociedades indígenas estão inseridas. Sobre isso, Frachetto afirma:

“O que deveríamos, na verdade, conhecer é o que para cada povo, para cada socie-
dade indígena, a escola representa. Descobriremos, dessa maneira, que há variadas
e diversas representações sobre a escola indígena. Mas se nós quisermos ficar numa
consideração geral, genérica, a escola significa o ingresso na sociedade envolvente,
na sociedade dominante, na sociedade dos não-indígenas, ou dos brancos, como qui-
sermos chamá-la. O ingresso para a aquisição de conhecimentos, para a aquisição de
instrumentos de análise deste outro mundo, do mundo que está ao redor aí fora das
aldeias, das áreas indígenas. Ou às vezes, até dentro das aldeias, dentro das áreas
indígenas. E que é um mundo que precisa ser decifrado, para poder ser apropriado,
para podermos responder a ele de uma maneira adequada. Quando eu digo adequa-
da, significa a partir de uma relação menos assimétrica, menos hierarquizada, menos
subordinada e superordenada, ou de superior e inferior, numa relação possivelmente
mais equilibrada, mais igualitária. Para os povos indígenas, hoje, a escola é vista como
um espaço e um tempo para adquirir conhecimentos necessários sobre o mundo dos
brancos, e instrumentos necessários para com ele lidar.” (Frachetto em entrevista ao
programa Salto para o futuro da TV Escola).

No entanto, a história de extermínio das línguas e culturas de muitos povos culminou na exis-
tência de outro cenário: aquele em que a educação bilíngue atua como sistema de introdução
da língua indígena para povos que a perderam no processo de integração, e tem hoje o portu-
guês como primeira língua. Em outras palavras, o ensino bilíngue pode servir à recuperação
das línguas de determinados povos.

A ideia da escola como instrumento de recuperação das línguas indígenas está prevista na
Proposta político-pedagógica do Centro de Educação e Cultura Indígena da Secretaria
Municipal de Educação da Prefeitura do Município de São Paulo, cuja justificativa transcreve-
mos a seguir a fim de relacioná-la às nossas reflexões acerca do Ensino Bilíngue:

195
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

Justificativa (Proposta político-pedagógia do CECI)

“O Projeto do Centro de Educação e Cultura Indígena - CECI nasceu a partir da


necessidade de se fazer frente à influência crescente da cultura não indígena, nas aldeias
Guarani existentes na cidade de São Paulo, pois o centro urbano chegou muito próximo
das aldeias.

O contato de crianças e adolescentes indígenas com a cultura não indígena está cada vez
mais intenso, ocorrem principalmente através dos meios de comunicação, como: rádio,
TV, etc. e também por meio do assédio de outras religiões com objetivos catequéticos.
O uso crescente da língua portuguesa, a adoção de hábitos diferentes aos costumes
Guarani, o enfraquecimento de seu modo de ser revelaram-se como dificultadores para a
manutenção da identidade, segundo as lideranças indígenas Guarani.

O fato das aldeias estarem cercadas pelos centros urbanos, tendo seu espaço físico reduzido,
faz com que os indígenas se deparem com a possibilidade de perda das suas tradições e de
seus meios de sobrevivência no espaço natural, como a caça, a pesca e a agricultura. Isto
degrada a qualidade de vida e ameaça a segurança alimentar desta população.

Assim, concebeu-se o Centro de Educação e Cultura Indígena, com vistas a promover


atividades adequadas para o reavivamento dos costumes e valores de seus antepassados,
fazendo com que a tradição e cultura Guarani seja fortalecida e valorizada, reafirmando
a identidade étnica. Nesta perspectiva, criou-se o Centro de Educação Infantil Indígena –
CEII, vinculado ao CECI com princípios que podem ser observados nos depoimentos dos
indígenas, em relação à educação escolar:

“Nossas crianças não estão acostumadas com a escola... nosso povo não tem o costume
de escrever... mas agora é preciso saber, é muita coisa chegando na aldeia, é a televisão,
é gente que vem visitar... a gente não tem como receber...” Marcos Tupã

“Agora não está mais sendo ensinado para os jovens esta tradição. E agora vou perguntar:
- como é estar vivo sem esta tradição? Agora estamos perdendo a nossa língua, estamos
falando o português e tudo fica mais difícil. O cacique e o pajé está preocupado com
isto...” Xeramõi Pedro Vicente

“... não podemos abandonar nossa língua. Só através dela é que nossa vida tem sentido...”
Rosano Karaí Jekupé

Os depoimentos acima revelam a necessidade e o desejo de manter viva a tradição cultural


Guarani. Isto nos impulsiona a desenvolver ações voltadas para reverter o quadro de
abandono e exclusão em que se encontram as sociedades indígenas.

196
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

Em resumo, podemos reconhecer minimamente três modelos gerais de educação bilíngue/


multilíngue no contexto escolar indígena:
1. O ensino bilíngue como herança histórica das missões jesuítas, com vistas ao uso da língua
indígena para aprendizado do português como parte do processo de integração ao mundo
não-indígena;
2. O ensino bilíngue em comunidades cuja primeira língua é a língua indígena, com alfabeti-
zação na língua materna e introdução do português como segunda língua com objetivo de
uma apropriação adequada do mundo não-indígena. Entende-se por apropriação adequada
uma relação equilibrada entre indígenas e não-indígenas, uma relação menos hierarquizada;
3. O ensino bilíngue para comunidades indígenas com histórico de perda de costumes, valo-
res e línguas pelo contato intenso com o mundo não indígena. Esse tipo de iniciativa visa
principalmente ao ensino da língua indígena para as crianças, que muitas vezes são falan-
tes de português como primeira língua. A introdução da língua indígena tem objetivo de
recuperação linguística, de identidade e cultura neste contexto.

Observe que os dois primeiros modelos têm o mesmo intuito de introduzir o português como
segunda língua nas comunidades indígenas, mas por motivos diferentes. Por isso, é preciso
atenção para que não se acabe por efetuar o primeiro modelo quando a intenção é efetuar o
segundo. Para tanto, é preciso que educadores permaneçam atentos aos objetivos muito dife-
rentes das duas propostas.

Referências
FRANCHETTO, Bruna. Sobre discursos e práticas na educação escolar indígena. In: Antonio
Carlos de Souza Lima, Antonio e Barroso-Hoffmann, Maria. Estado e Povos Indígenas no Brasil
– Bases para um nova política indigenista II. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2002,
p.95-99.

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal de Educação. Centro de Educação e cultura


indígena. Proposta político-pedagógica. São Paulo, SP, 2013. 12 p.

197
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

AULA 6
Formação de professores, autoria e
produção de materiais didáticos para
o ensino bilíngue
Nesta aula, vamos falar sobre duas iniciativas que podem ajudar a tirar o bilinguismo na educa-
ção indígena da esfera dos discursos legais e institucionais e trazê-lo para a esfera da realidade,
são elas: a formação de professores indígenas e a produção de materiais didáticos bilíngues.

Segundo o relatório Referenciais para a formação de Professores Indígenas (2002), produ-


zido pela Coordenação-geral de Apoio às escolas indígenas (MEC), muitas das línguas faladas
pelos povos indígenas ocupam lugar marginal e eventual no currículo dos cursos de formação
de professores e também durante as interações nesses cursos: “São pouco contempladas como
objeto de estudo, e também pouco utilizadas como língua veicular nas situações de comunicação
oral e escrita”.

Observa-se, também, neste documento, que as línguas indígenas são raramente usadas duran-
te as interações formais entre professores e formadores, estando restritas a contextos informais
de interação quando os professores são falantes da mesma língua. Nesse contexto, o português
ganha força como língua de comunicação entre falantes de diferentes línguas indígenas (em
contexto multilíngue) e entre professores e formadores, sendo o formador falante de portu-
guês como primeira língua e os professores falantes de português como segunda língua. Outro
aspecto muito importante é o fato de que o português é utilizado para transmitir e construir
conhecimentos durante os cursos de formação.

Desse modo, o uso do português tanto entre professores indígenas quanto pelos formadores
na transmissão de conhecimentos e conteúdo dos currículos dos cursos de formação reforça a
tendência de enfraquecimento das línguas indígenas e de fortalecimento da língua portugue-
sa. Ora, tal fato é o oposto do que se espera com a tão almejada educação escolar indígena
bilíngue e multilíngue. Em suma, a formação de professores que não privilegia o uso das lín-
guas indígenas enfrenta o seguinte problema:

198
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

“Ao longo do desenvolvimento dos cursos e no cotidiano das relações sociais e comuni-
cativas interétnicas, pode-se reforçar a tendência já conhecida de enfraquecimento das
línguas indígenas e de concomitante fortalecimento da língua portuguesa, tendo como
palco os processos escolares de formação. Ou seja, conceitualiza-se e objetiva-se a edu-
cação bilíngue ou multilíngue, mas no desenho curricular e na sua prática se obedece a
uma proposta em que a língua indígena está restrita a estudos esporádicos em períodos
condensados numa só disciplina, ocupando uma fração insuficiente da carga horária
total, com pouca produção de conhecimentos nas demais áreas de estudo para suprir
as necessidades da formação do professor e da escola. Para enfrentar essa tendância,
é necessário e imprescindível dar-se atenção especial às línguas indígenas.” (p. 49)

Desse modo, o professor indígena precisa receber formação adequada para trabalhar os con-
teúdos previstos nas propostas curriculares em língua indígena. Nesse contexto, a produção
de materiais didáticos para o ensino em língua indígena sobre os mais diversos conteúdos
escolares é essencial para que esse trabalho seja realizado com sucesso.

O material “Educação Escolar Indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a


escola”, que é parte dos Cadernos Secad, também aponta a formação de professores e a pro-
dução e publicação de materiais didáticos bilíngues e multilíngues como eixos de susten-
tação das políticas de educação escolar indígena. Destaca a autoria de professores indígenas e
participação das comunidades na produção desses materiais como fundamentais:

“A riqueza do patrimônio cultural e lingüístico dos povos indígenas e sua apropriação dos
conhecimentos relevantes para a interação cidadã com a sociedade nacional devem ser
expressas em formulações que reflitam os projetos societários e identitários de cada co-
munidade. Marca diferencial dessa política é a autoria de professores indígenas e a par-
ticipação de suas comunidades em atividades de pesquisa e elaboração desses materiais
que, em sua grande maioria, ocorrem nos contextos dos cursos de formação docente ini-
cial e continuada, com assessoria antropológica, lingüística e de especialistas nas demais
áreas de conhecimento. Além de recurso didático, muitas obras têm usos diversificados,
servindo também como literatura de registro e fruição de expressões culturais.

No ano de 2005, por meio da portaria MEC/Secad n. 13, de 21 de julho, foi criada a Comissão
Nacional de Apoio e Produção de Material Didático Indígena - CAPEMA, cujas tarefas são:

promover o diálogo com outros órgãos governamentais e não-governamentais e mo-


vimentos sociais para as ações de apoio à produção de materiais didáticos indígenas,
valorizar, ampliar e/ou revitalizar o uso das línguas indígenas e da variedade do por-
tuguês falado nas comunidades, criar mecanismos para orientação metodológica para
a produção de material didático indígena, propiciar meios para que as comunidades
indígenas produzam seus materiais didáticos, selecionar os projetos encaminhados,
entre outras.

199
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

No que se refere às línguas, a produção desses materiais são modos de revitalizar, incentivar
e dinamizar o uso das línguas indígenas pelos mais jovens, minimizando, assim, o risco de
extinção para diversas delas. Esse mesmo relatório aponta que foram produzidos 51 títulos
que beneficiaram 83 povos e suas escolas, entre os anos de 1995 e 2002. E, posteriormente,
no período entre 2004 e novembro de 2006, a Secad publicou e distribui 50 títulos.

A seguir apresentamos alguns deles separados por objetivo da publicação, mas você pode en-
contrar a totalidade dos materiais produzidos neste período acessando o caderno temático do
Secad n. 3 - Educação escolar indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola
(2007) – no seguinte link:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=13605&Itemid=913

Publicações que revitalizam o uso da língua


indígena
• Espírito Santo (Secretaria de Estado da Educação)

Arãdu Porã Rape – Tekoa Porã Nhãdéwa

Livro produzido pelos professores Guarani da aldeia Te-


koa Porã, em Aracruz, estado do Espírito Santo. O ma-
terial revitaliza o uso da língua materna, reconhecendo
a autoria coletiva, os saberes e as formas de transmis-
são de conhecimento, considerando esses saberes como
ciência.

200
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

• Acre (Secretaria de Estado da Educação)

Aprender Nukini

O livro tem como propósito auxiliar os Nukini na revi-


talização de sua língua, falada por apenas seis pessoas,
de uma população estimada em 425 pessoas. Por meio
de metodologia de estudo de segunda língua, os Nu-
kini estão se apropriando da escrita como instrumento
de valorização e ampliação dos usos sociais da língua
materna. Este povo habita a região do Vale do Juruá,
município de Mâncio Lima, na margem esquerda do rio
Moa, no estado do Acre.

Publicações sobre conhecimentos específicos


• Amazonas (Centro de Trabalho Indigenista)

Yorã Vana Wicha – Ni Pei Rao – Remédios do Mato

Material produzido pelos Marubo, que vivem no médio


e alto curso dos rios Curuçá e Ituí, dentro dos limites da
Terra Indígena Vale do Javari, no sudeste do estado do
Amazonas. Somam cerca de 1.200 pessoas e a língua
falada pertence à família Pano. No começo de 2003,
com incentivo do professor Võpa, foi orga- nizado um
pequeno livro sobre os remédios tradicionais do povo
Marubo. O objetivo era não só desenvolver atividades
de pesquisa dos professores da aldeia, mas também ela-
borar materiais didáticos.

201
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

• Acre (Secretaria de Estado da Educação)

Nixi Pae – o espírito da floresta

Livro produzido pelo professor Isaias Sales Ibã, trata das


cantigas relacionadas à bebida do cipó, a mais conheci-
da e usada pelo povo Huni Kui na festa do pajé ou em
trabalhos de cura. Neste trabalho o professor indígena
apresenta sua pesquisa sobre o encanto do cipó, com
três anciões Kaxinawá. A pesquisa foi aprovada pela co-
munidade, pois perceberam que esse trabalho seria um
importante estudo e aprendizado relacionados às suas
crenças e tradições.

Publicações sobre conteúdos escolares


• Maranhão e Tocantins (Centro de Trabalho Indigenista – CTI)

Matemática 1. Este livro compõe uma coleção de mate-


riais produzidos para uso dos estudantes Timbira, que
têm seu território tradicional na região entre o sul do
Maranhão e norte do Tocantins. Trata-se de um livro
para alfabetização em matemática, organizado em dois
capítulos, Fazendo Relações e Números e Algarismos.

Matemática 2. Este volume contém atividades para a


aprendizagem de adição, subtração, multiplicação e
divisão.

202
Disciplina: Fundamentos linguísticos: bilinguismo e multilinguismo

• Acre (secretaria do Estado da educação)

Alfabetização Kaxinawá – Geografia e História.

Este livro foi elaborado por professores indígenas do


povo Huni Kui, durante o XXIV Curso de Formação Ini-
cial para Professores Indígenas do Acre e Sul do Amazo-
nas, promovido pela Comissão Pró-índio do Acre CPI/
AC. O trabalho servirá como mais um instrumento de
transmissão de conhecimentos tradicionais reelabora-
dos nas escolas indígenas. O livro foi produzido a partir
do cotidiano das aldeias, suas vidas, sua história e os
caminhos de sua floresta. Huni Kui é o povo indígena
mais populoso do Acre, habitam 12 terras indígenas,
somando mais de 4.000 pessoas.

Publicações para revitalização e transmissão de


cultura dos povos
• Espírito Santo (Secretaria do estado da educação)

Os Tupinikim e Guarani contam (reedição)

Essa coletânea reúne um conjunto de textos revelado-


res do cotidiano das aldeias dos povos Tupiniquim e
Guarani. Foram escritos pelos educadores Tupiniquim e
Guarani e registram aspectos de suas culturas que foram
confrontadas com a cultura, dita, ocidental. Por isso tem
o objetivo de contribuir para o processo de revitalização
cultural.

203
Módulo 3 - Marcos conceituais referentes à variação linguística

• Minas Gerais (Faculdade de letras/ Universidade federal de minas gerais)

Penãhã – Pradinho e Água Boa 


Este livro traz histórias contadas e recontadas, e assim


preservadas, tradicionalmente na oralidade, de geração
a geração. As narrativas são expressão literária de uma
cultura milenar do povo Maxacali, que habita o vale
do Mucuri atualmente, em Minas Gerais. Foi produzido
pelos professores Maxacali na sua língua materna. 


Referências
BRASIL. Ministério da Educação.
Secretaria de Educação Fundamental. Departamento de
Política da Educação Fundamental. Coordenação-geral de apoio às Escolas Indígenas. Refe-
renciais para a formação de professores indígenas. Brasília, DF, 2002. 84 p.

204
MÓDULO 4
MÉTODOS DE ENSINO E
APRENDIZAGEM
DE LÍNGUAS
DISCIPLINA
LETRAMENTO E FORMAÇAO
SOCIAL
Autor: Álvaro Antônio Caretta
Disciplina: Letramento e formação social

Apresentação
Bem-vindo(a) à disciplina Letramento e formação social, integrante do módulo Métodos
de ensino e aprendizagem de línguas. Apresentamos nesta introdução um panorama dos
conteúdos que serão desenvolvidos nessa disciplina.

Inicialmente abordaremos o conceito de letramento, procurando enfatizar a sua importância


no processo de formação social de um cidadão. É preciso que os professores deem atenção
para os letramentos cotidianos, principalmente aqueles das esferas públicas e profissionais.
Tendo em vista que a sociedade atual se encontra em um momento de grande evolução tec-
nológica é necessário que formemos nossos alunos objetivando os multiletramentos digitais.
Por isso, apresentaremos um tópico sobre o(s) Letramento(s) em gêneros multimodais e mul-
timídias.

A fim de alcançar o nosso propósito com este curso - o conhecimento dos métodos de le-
tramento para a formação social - tomaremos como elemento orientador de nossas aulas os
gêneros discursivos, pois em verdade é por meio dos diversos gêneros de nosso cotidiano que
aprendemos e utilizamos a língua.

Em todas as sociedades, a língua se manifesta por meio dos diversos gêneros orais, escritos e
também multimodais, apresentando uma diversidade enorme relacionada às diversas condi-
ções de produção e circulação dos enunciados.

Sabemos que a língua se molda aos diversos usos que os cidadãos fazem dela na sociedade.
Dessa forma, compreendemos que não se pode pensar no mito de uma língua uniforme e,
muito pelo contrário, é preciso observá-la em todas as variedades que compõem o multi-
linguismo, pois nele está guardada a multiculturalidade e também a própria identidade das
distintas sociedades.

Nesse contexto não podemos perder a oportunidade de refletir sobre a questão do preconceito
linguístico, um grande empecilho no processo de construção de uma sociedade mais iguali-
tária, diversificada e democrática, e também sobre o verdadeiro papel do ensino da norma
padrão nas escolas.

A fim de aprofundar o nosso debate, trabalharemos com os conteúdos referentes às relações


entre a oralidade e a escrita no ensino de língua. A partir da observação dessas modalidades
da língua, poderemos compreender a importância das variadas formas de expressão linguís-
tica na constituição do plurilinguismo social, pressuposto para uma sociedade que pretende
valorizar as múltiplas faces de sua multiculturalidade.

Tendo em vista o caráter fundamentalmente ideológico da expressão linguística, assim como


de seu ensino, pretendemos alcançar em nosso curso a compreensão dialógica da linguagem.
Para isso, vamos compreender a formação do conhecimento linguístico nas relações sociais,
onde se desenvolvem os mecanismos ideológicos que determinam nosso posicionamento, a
nossa voz, no processo sócio-histórico.

Com base no conteúdo até aqui assimilado, passaremos então a discorrer sobre os métodos
de ensino de língua indígena como primeira língua, os métodos de ensino de língua indíge-

207
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

na como segunda língua, assim como sobre os métodos de ensino e aprendizagem de língua
portuguesa como segunda língua. O debate acerca desses temas ganha uma dimensão social
de suma importância, visto que é por meio do aprendizado linguístico que as comunidades
indígenas assumem a sua identidade e também inserem a sua voz no discurso da sociedade
dominante.

Um princípio fundamental de nossa disciplina é compreender a língua como uma prática so-
cial e não apenas como um código linguístico. Sendo assim, uma língua não pode ser ensinada
apenas por meio do conhecimento gramatical, mas sobretudo por suas funções comunicativas;
para isso, propomos como principal instrumento didático para o ensino e aprendizagem das
línguas a realização de projetos didáticos.

Caro(a) colega, esperamos que esta disciplina contribua para o seu desenvolvimento como
professor(a). Agradecemos o interesse e, sobretudo, o cumprimentamos pelo empenho na
busca de aperfeiçoamento, atividade fundamental na formação de professores comprometi-
dos com a sua função social: educar cada vez melhor a fim de contribuir para uma sociedade
melhor.

Um grande abraço e bom curso!

Sobre o autor
Álvaro Antônio Caretta é doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo e atua como
professor de Língua Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo.

208
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 1
Letramento

Letramento pode ser compreendido como o processo de aprendizado da língua através da


convivência com materiais escritos diversos em práticas de leitura e escrita.

Rojo (2009, p. 98) define desta forma letramento:

... usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra
maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo
contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola, etc.), numa
perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural.

Os processos de letramento devem envolver a vivência de várias situações interacionais, a


produção de diversos gêneros orais e escritos e o diálogo com distintos interlocutores.

É importante que compreendamos o letramento em relação com outras práticas de ensino da


língua, como a alfabetização, que é o aprendizado mediante ensino - institucional ou não -
domínio ativo e sistemático das habilidades de ler e escrever, enquanto o letramento é um
processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais
para usos utilitários estabelecidos por meio de um conjunto de práticas. A escolarização,
por seu turno, é uma prática formal e institucional de ensino que visa à formação integral do
indivíduo, um de seus aspectos é a alfabetização.

A alfabetização é um processo de aquisição de habilidades para a leitura e a escrita, enquanto


o letramento usa essas habilidades para alcançar diferentes objetivos. Dessa forma, pode-se
compreender que o letramento permite uma conexão mais profunda com o contexto sociocul-
tural e com o uso da linguagem no cotidiano. A alfabetização e o letramento devem ser com-
preendidos como processos complementares, pois a alfabetização deve incluir o letramento
na sua dinâmica.

“Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escre-


ver: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita. ” (SOARES, 2006, p. 18)

209
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Apropriar-se da escrita não pode ser compreendido apenas como aprender a ler e escrever, ou
simplesmente codificar e decodificar a língua. A verdadeira apropriação da escrita tem como
finalidade desenvolver as condições de sociabilidade do indivíduo em seus aspectos linguísti-
cos, cognitivos, culturais, políticos e econômicos.

Letramento: o papel do educador


O processo de letramento pode ser facilitado pelo professor se leituras diversas forem realiza-
das e conversas sobre elas estimuladas, promovendo um modelo cultural letrado.

O conceito de letramento é bastante abrangente e não permite uma definição simplista. Não
podemos pensar em um nível zero de letramento. Sabemos que ele não é fixado pelo grau de
alfabetização, pois mesmo um analfabeto pode apresentar níveis significativos de letramento,
enquanto alguém alfabetizado pode ter dificuldades em exercer o letramento. Um indivíduo
letrado desenvolve maior competência na relação com a sociedade em que vive, logo, tendo
em vista a importância da participação social do cidadão, o educador deve atentar para que
esse processo ocorra durante o próprio processo de alfabetização do aluno.

Como? Paralelamente ao ensino do código linguístico, o aluno deve vivenciar situações do


cotidiano em que a língua seja o principal instrumento de atuação. Dessa forma, haverá uma
harmonização entre aprender a língua e atuar na sociedade regida pelo pressuposto de que a
língua é uma prática social.

Segundo Marcos Bagno (2012), o conceito de letramento pressupõe a compreensão e o apren-


dizado da língua tendo em vista a atuação social do cidadão, o sujeito que participa e inter-
vém em seu meio social de forma eficiente utilizando os recursos que a língua lhe oferece. O
simples domínio dos recursos gramaticais não lhe daria essa habilidade que só pode ser exerci-
da com o conhecimento dos variados gêneros discursivos utilizados nas relações interpessoais
de uma sociedade.

O letramento pressupõe o desenvolvimento ininterrupto das habilidades de ler, escrever, falar


e escutar, a fim de desenvolver o conhecimento e o reconhecimento da realidade múltipla,
variável e heterogênea da língua, principalmente quando sujeita aos juízos de valor das dife-
rentes ideologias.

Para ensinar tanto a língua oral quanto a escrita, é necessário observar os seus usos na prática
social por meio dos enunciados, assim a língua passa a ser concebida como prática social. Essa
prática viabilizará o ensino dos variados gêneros, pois o seu conhecimento permite ao indiví-
duo participar dos eventos de diversas instituições sociais.

Ao adotar a prática social como princípio organizador do ensino de língua, o professor terá
a tarefa de primeiramente determinar quais são as práticas sociais significativas para a sua
comunidade e, a seguir, quais são os gêneros e textos significativos para a realização dessas
práticas. O professor deve sempre fazer as suas escolhas com base na observação, análise e
diagnóstico da comunidade.

210
Disciplina: Letramento e formação social

Quando o professor opta por determinado projeto, ele passa a decidir sobre a seleção dos
saberes e práticas que se situam entre aqueles que são importantes para a vida na comunida-
de imediata dos alunos e os que são relevantes para a participação na vida social de outras
comunidades e que, um dia, poderão ser utilizadas para a mudança e a melhoria do futuro do
próprio aluno e seu grupo.

O professor deve ter autonomia para decidir, por um lado, sobre a inclusão do que pode fazer
parte do cotidiano da escola, porque considera necessário, e, por outro lado, sobre a exclusão
dos conteúdos desnecessários e irrelevantes para a inserção do aluno nas práticas letradas.
Além disso, deve decidir também sobre aquilo que pode não interessar momentaneamente ou
servir imediatamente ao aluno, mas que precisa ser ensinado pela sua real relevância em sua
futura participação social.

As escolhas didáticas do professor devem compreender o ensino de língua como uma orga-
nização dinâmica de conteúdos que valem a pena ensinar, que levam em conta a realidade
da comunidade e que se constituem como uma prática linguística que favoreça a atuação do
indivíduo em sua sociedade.

Considerações Finais
Caro professor, nesta aula introdutória tivemos a oportunidade de apresentar o conceito de
letramento e relacioná-lo com o conceito de alfabetização. Aprendemos sobre o processo de
aquisição da língua como prática social procurando conscientizá-lo da importância do ensino
de língua por meio de projetos de letramento.

Você deve ter percebido que apenas esta aula não foi suficiente para abordarmos um tema
complexo como letramento. Se formos pensar na sociedade tecnológica em que vivemos atual-
mente, veremos um imenso campo de possibilidades para trabalhar com diversas atividades
de letramento em suas formas digitais. Na aula seguinte, vamos conhecer algumas dessas pos-
sibilidades e refletir sobre a sua influência nos processos de ensino-aprendizagem.

SAIBA MAIS
Leitura do artigo de Silvia M. Gasparian Colello, Alfabetização
e Letramento: Repensando o Ensino da Língua Escrita. [2006].
Disponível em: <http://www.hottopos.com/videtur29/silvia.htm>
Acesso em: 16 jun. 2006.

PARA REFLETIR
Quais as possibilidades e dificuldades de trabalhar com os alunos na
comunidade em que você leciona?

211
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Referências
BAGNO, Marcos; STUBBS, Michael e GAGNÉ, Gilles. Língua materna - letramento, variação
& ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

COLELLO, Silvia M. Gasparian. Alfabetização e Letramento: Repensando o Ensino da Língua


Escrita. [2006]. Disponível em: <http://www.hottopos.com/videtur29/silvia.htm>

KLEIMAN, Angela B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna.


Disponível em https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/download/242/196.

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Edi-
torial, 2009. 128 p

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2001.

212
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 2
Multiletramentos
Caro(a) aluno(a), abrimos esta aula enfatizando a importância do trabalho com os multiletra-
mentos. Como vivemos em uma sociedade bastante complexa e diversificada nas formas de
expressão linguística, o professor deve procurar abordá-las em suas aulas.

Quando falamos em multiletramentos, estamos nos referindo aos múltiplos letramentos que
abrangem atividades de leitura crítica, análise e produção de textos multimodais observados
sob um enfoque multicultural.

Destacamos a seguir alguns conceitos fundamentais para a nossa aula:

Multiletramentos – é prática de letramento que abrange a multiculturalidade e a multimo-


dalidade.

Multiculturalidade – é a multiplicidade e variedade cultural presente em nossas sociedades.

Multimodalidade – é a multiplicidade e variedade de linguagens na constituição dos textos


por meio dos quais a multiculturalidade se comunica e informa.

Multiletramentos
Tendo em vista a necessidade de incluir nos currículos escolares as questões que envolvem as
variedades culturais, em sua Pedagogia dos Multiletramentos, Roxane Rojo (2012) apresen-
ta propostas bastante interessantes para o ensino de língua por meio dos multiletramentos. A
autora ainda discorre sobre a diversidade cultural e de linguagens na escola, destacando que
o trabalho do professor deve partir do universo de referência dos alunos e alcançar outros
universos sempre com um enfoque pluralista, ético e democrático.

Mas podemos nos perguntar: Por que propor uma pedagogia dos multiletramentos?

A escola deve assumir a responsabilidade de aproximar seus alunos dos novos letramentos
emergentes na sociedade contemporânea, incluindo nos currículos a grande variedade de
culturas já presente nas salas de aula e no mundo globalizado, incentivando a tolerância na
convivência com a diversidade cultural e com o outro.

213
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Vemos à nossa volta, diversas produções culturais letradas circulando na sociedade, textos hí-
bridos de diferentes letramentos em diferentes campos. Vivemos, pelo menos desde o início do
século XX, em sociedades em que as fronteiras estão sendo extintas e a miscigenação cultural
acentua-se. As simples oposições como cultura erudita x popular, central x marginal, canônica
x de massa já estão ultrapassadas. As misturas são cada vez mais comuns. A produção cultural
atual se caracteriza por um processo de hibridação principalmente tendo como ferramenta
de comunicação a tecnologia que permite estar em constante interação com novos universos
utilizando as mais diversas linguagens.

Nesse contexto, o professor deve atentar para a introdução de novos gêneros de discurso, no-
vas mídias, novas tecnologias, inundando o universo de nossos alunos com uma variedade de
linguagens.

Multiletramentos críticos
Vimos, então, que o conceito de multiletramentos guarda basicamente dois sentidos: diversi-
dade cultural de produção/circulação dos textos, diversidade de linguagens que constituem
os enunciados.

Outra característica importante dos multiletramentos é que eles são interativos e colabora-
tivos dependendo de nossas ações como usuários e não apenas receptores ou espectadores.
Nesse contexto, o professor precisa pensar em como as novas tecnologias de informação po-
dem transformar nossos hábitos institucionais de ensinar e aprender para acompanhar. Os
multiletramentos são fundamentais para que ensino proposto pelo professor esteja em acordo
com a evolução da nossa sociedade não apenas no aspecto tecnológico, mas principalmente
tendo em vista a multiculturalidade das sociedades contemporâneas. Dessa forma, o professor
estará praticando o multiletramento crítico.

Considerações finais
Caro professor, vimos quanto é importante o conhecimento e a aplicação das propostas de
multiletramentos no ensino de língua. Frente à complexificação da sociedade, principalmente
devido aos avanços tecnológicos, nossos alunos estão em constante contato com novos gêne-
ros discursivos por meio dos quais interagem com novas culturas e aprendem novas formas de
utilização da língua em textos multimodais e interativos.

A fim de aprofundarmos essa discussão, faremos agora um mergulho em um tema fundamen-


tal para a nossa proposta de letramento e formação social. Passaremos, então, a estudar na
próxima aula os gêneros discursivos.

214
Disciplina: Letramento e formação social

SAIBA MAIS
Leitura da apresentação da obra Multiletramentos na Escola,
disponível em http://www.youblisher.com/p/333133-
MULTILETRAMENTOS-NA-ESCOLA/

Referências
BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: Estética da criação verbal. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1951-1953], p. 261-306. Garcia Canclini
(2008[1989]: 302-309),

BEZERRA, Maria Auxiliadora, DIONISIO, Angela Paiva, MACHADO, Anna Rachel. Gêneros
Textuais & Ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010

ROJO, Roxane; ALMEIDA, Eduardo de Moura. Multiletramentos na Escola. São Paulo: Pa-
rábola Editora, 2012.

215
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

AULA 3
Gêneros Discursivos

Caro(a)s aluno(a)s, os gêneros discursivos exercem uma função muito importante na produ-
ção e circulação linguística e, consequentemente, será um instrumento valioso para o profes-
sor no ensino da língua.

Os gêneros discursivos são produções da atividade humana no uso social da língua. São mode-
los de produção materializados nos diversos enunciados que realizamos no dia a dia em nossas
interações verbais e multimodais.

Cada organização social possui um conjunto específico de gêneros discursivos. Vejamos al-
guns exemplos:

Cotidiano – pedido, apelo, saudação etc;


Literária – conto, crônica, poema etc;
Acadêmica – artigo, resumo, currículo etc;
Científica – artigo, palestra, relatório etc.

Características dos gêneros


Todo gênero possui uma função social. Ele foi criado por uma determinada comunidade para
um determinado fim. O gênero poema, por exemplo, tem a função de expressar os sentimentos
de um poeta. Cada gênero possui a sua própria forma composicional, que é a sua identidade,
como o próprio poema, que é escrito em versos. Os gêneros também possuem estilos diferentes
e próprios. No poema o estilo é literário, criativo e livre, com ritmo, rimas e metáforas, bem
diferente de uma receita médica, na qual o estilo é bem padronizado e objetivo.

As formas e entonações dos gêneros para o falante são instrumentos de produção de enuncia-
do e para os ouvintes são índices de compreensão, ou seja, por seu lado o emissor ao falar ou
escrever escolhe um gênero adequado às suas intenções e condições de produção; o ouvinte,
a partir das primeiras impressões sobre a fala do outro se posiciona para receber determinado
gênero em determinada forma, entonação e assunto. Um bom exemplo é a conversa telefôni-
ca. Ao ouvirmos um alô, já nos posicionamos para o diálogo.

216
Disciplina: Letramento e formação social

Assim, para observarmos um gênero devemos atentar para a sua finalidade, para sua forma e
estilo, compreendendo as suas condições de produção.

Constituição dialógica da linguagem


Passamos agora a compreender o princípio da constituição dialógica da linguagem. Nessa con-
cepção, a língua não é apenas um sistema, mas uma enunciação, ou seja, não é apenas um
código, mas a produção de um enunciado. Esse enunciado é sempre uma resposta a um outro
enunciado, formando assim uma corrente comunicativa na sociedade, pois essa resposta irá
exigir um outro enunciado como resposta. Vemos isso não apenas nos diálogos do cotidiano em
que uma fala puxa a outra, mas também nos e-mails em que um exige uma resposta do outro.

Apresentamos agora os aspectos que devem ser observados nos gêneros para podermos estu-
dá-los, compreendê-los e trabalhar com eles em sala de aula.

a) Composição dos gêneros

b) Estilo do gênero e do enunciado

c) Posicionamento do enunciado(r)

d) Elementos linguísticos do enunciado

Desenvolvemos agora cada um desses aspectos:

a) Composição dos gêneros


• Esfera social de atuação
• Condições de produção e circulação
• Finalidades na comunicação social
• É multimodal ou não?

b) Estilo
• Adequação linguística (formal/informal)
• Tom
• Sentido real ou figurado
• Estilo literário

c) Elementos linguístico-textuais
• Forma composicional
• Coesão e coerência
• Recursos linguísticos

217
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

d) Posicionamento discursivo
• Dialoga com outros textos?
• Avaliação do tema
• Autoria
• Atuação social

Considerações finais
Caro(a) colega, nesta aula aprendemos que os gêneros são formas estáveis de enunciados res-
ponsáveis pela produção e circulação linguística na sociedade. Compreendemos, então, que a
língua não pode ser estudada apenas como uma estrutura à parte de suas condições comunica-
tivas. Para estudá-la em seu processo social é necessário observar os seus usos na prática social
por meio dos gêneros. Assim, a língua e os gêneros passam a ser concebidos como práticas
sociais. Na próxima aula, veremos o papel dos gêneros na formulação do conhecimento por
meio da linguagem.

PARA REFLETIR
Fundamentado na teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos, escolha
três textos - oral, escrito e multimodal - e observe as características
de cada aspecto abaixo:
a) Qual é o gênero desses enunciados?
b) Qual a sua função na comunicação social?
c) A que comunidade linguística, esfera social, ele pertence?
d) Como é a sua forma composicional?
e) Observe o estilo do enunciado.
f) Qual é a posição do enunciador sobre o tema?
g) Você acha que a escolha do gênero pelo enunciador foi adequada?
E a sua forma de enunciar está de acordo com as suas intenções?
Justifique

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de
Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1951-1953], p. 261-306. Garcia Canclini
(2008[1989]: 302-309).

218
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 4
Formulação do Conhecimento

Formulação do conhecimento
A língua precisa ser aprendida tendo em vista o contexto sociocognitivo a fim de que o aluno
aprenda a lidar com os recursos expressivos utilizados pelos interlocutores, associando-os com
os elementos da situação comunicativa para a produção de um enunciado que corresponda a
suas intenções.

Esse processo de formulação das ideias, dos sentidos, do conhecimento é interativo, ou seja,
ele se realiza somente com a participação dos interlocutores envolvidos. Isso implica, por
parte dos sujeitos na interação, a ativação e o compartilhamento de alguns conhecimentos:
• O conhecimento linguístico, determinado pelas especificidades da língua;
• O conhecimento enciclopédico ou de mundo, responsável pela ativação dos saberes
assimilados;
• O conhecimento interacional, responsável pela adequação das práticas cotidianas de
interação.

A formulação do conhecimento é um fenômeno situado e social. Nele são necessários conhe-


cimentos cognitivos e sociais, envolvidos na organização, produção, compreensão e funciona-
mento dos enunciados.

No ato de leitura e escrita ativamos modelos de situação, de compreensão, expectativas e co-


nhecimentos de mundo que orientam e guiam a nossa compreensão e produção dos enunciados.

Gêneros discursivos e formulação do


conhecimento
Os gêneros discursivos promovem a interação desses conhecimentos. Por exemplo, o conhe-
cimento interacional e o linguístico articulando-se no gênero artigo de opinião, em que são
usados recursos linguísticos específicos, como a norma culta, o sentido literal, a argumenta-
ção, o que subentende também um conhecimento enciclopédico, além do domínio do gênero

219
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

com suas coerções na forma, no estilo e na entonação. Só e somente só se o indivíduo dominar


esses aspectos ele poderá ter sucesso com o seu enunciado e ser reconhecido como um enun-
ciador competente em seu meio social.

Vemos atualmente que as necessidades impostas pela sociedade e pela tecnologia criam novas
situações comunicativas. Essa nova realidade exige o domínio de novos conhecimentos por
parte dos sujeitos do processo ensino-aprendizagem de língua materna, e por parte do profes-
sor a inclusão de um novo objeto de estudo em seu curso: os gêneros discursivos.

O professor deve buscar enriquecer o repertório textual dos alunos favorecendo o acesso aos
bens culturais e sociais por meio da linguagem. Compreender a formulação do conhecimento
por meio dos gêneros discursivos leva os alunos a perceberem que os enunciados que estão à
nossa volta, no nosso cotidiano, são definidos pelas situações sociocomunicativas em que se
imbricam os assuntos, a funcionalidade, a variedade linguística, o estilo e a sua organização
estrutural estabelecidos pelos gêneros.

O gênero discursivo estabelece uma relação entre as condições de produção do enunciado,


que diz respeito ao autor, e de recepção, concernente ao universo do leitor. Isso significa que
as semelhanças entre os conhecimentos assimilados pelos sujeitos participantes da interação
propiciam um melhor entendimento entre eles.

Leitura e escrita no processo de formulação do


conhecimento
A leitura de textos é uma atividade de produção de sentido que exige a participação ativa do
leitor. Ele aciona os vários tipos de conhecimentos que citamos anteriormente.

A produção de textos, a escrita, é uma prática que se realiza por meio da interação entre su-
jeitos, o autor e o leitor. O leitor também desempenha um papel fundamental na escrita, pois
é em função dele que o autor elabora seu enunciado.

Tanto as atividades de leitura quanto de produção textual exigem a participação ativa no pro-
cesso comunicativo. A formulação do conhecimento, seja na leitura, seja na escrita, ocorre em
função das condições de produção e recepção dos enunciados e pela forma como os interlocu-
tores mobilizam seus conhecimentos. Os conhecimentos dos interlocutores se reconstroem nas
práticas de interação verbal por meio de uma atividade responsiva e dialógica da linguagem,
na qual ele adquire conhecimento e os retribui.

A formulação do conhecimento está relacionada a sistemas de compreensão submetidos ao


nosso sistema sociocultural. Assim, as formulações coletivas e sociais antecedem às indivi-
duais e lhe servem de base, ou seja, o conhecimento, apesar de individualizado é produzido
socialmente. A formulação do conhecimento é um ato social e não uma ação do individual.
A língua, observada dessa forma, passa a ser compreendida como um conjunto de atividades
sociais e históricas por meio do qual formulamos o conhecimento e construímos as ideologias.

220
Disciplina: Letramento e formação social

Nesse processo, os gêneros discursivos atuam como formas discursivas para a produção e cir-
culação de conhecimentos.

Formular conhecimentos, seja por meio da leitura ou da escrita, não é apenas uma atividade
linguística ou cognitiva, é principalmente uma prática social para a interação com outras vi-
sões de mundo dentro de uma sociedade.

Considerações finais
Caro(a)s colegas, vimos nessa aula como se processa a formulação do conhecimento na rela-
ção entre os interlocutores no processo de comunicação. Salientamos nesse aprendizado que
a língua não é um sistema a simplesmente ser codificado, mas um elemento interacional su-
jeito às condições de produção e circulação do enunciado. Nesse processo, a leitura e a escrita
dos diversos gêneros discursivos adquirem um valor enorme, pois é por meio dessas práticas
sociais que o conhecimento é elaborado e difundido. O conhecimento produzido pela lingua-
gem irá depender em grande parte do universo cognitivo dos interlocutores, o que caracteriza
a sua própria linguagem. As distintas formas de compreensão e representação da realidade
produzem distintas formas de linguagem, promovendo o que se chama de plurilinguismo,
assunto de nossa próxima aula.

A seguir apresentamos alguns textos multimodais do gênero quadrinhos.

Esse gênero trabalha com as linguagens verbal e visual. Verifique como o autor trabalha essas
linguagens nos enunciados abaixo a fim de formular um conhecimento na relação interativa
com o leitor.

Fonte: Jornal Folha de São Paulo

221
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Referências
GERALDI, J. W. Da redação à produção de textos. In: GERALDI, J. W.; CITELLI, B. (Coord.).
Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1997.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9ª ed. São Paulo:
Contexto, 2007.

222
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 5
Plurilinguismo
Há uma grande diferença se fala um deus ou um herói;
se um velho amadurecido ou um jovem impetuoso na flor da idade;
se uma matrona autoritária ou uma ama delicada;
se um mercador errante ou um lavrador de pequeno campo fértil;
se um colco ou um assírio;
se um homem educado em Tebas ou em Argos.
HORÁCIO, Ars Poetica.

Caro(a)s aluno(a)s,

Sabemos que a língua é um sistema de comunicação social, logo está sujeita à diversidade
social e às transformações da sociedade. Como vimos no módulo 3, a língua é dinâmica e
multifacetada exatamente por isso, por revelar diversos conhecimentos e formas de expressão,
contrariando o mito do monolinguismo, ou seja, nós não falamos apenas uma língua, mas tan-
tas quanto as interações sociais nos exigem. Também se engana aquele que pensa que a língua
é apenas um simples condutor de significados por meio de significantes, pois na verdade a
língua sempre foi e continua sendo um poderoso instrumento de poder.

No caso da língua portuguesa no Brasil, podemos criticar a valorização de uma norma culta
e a desvalorização das normas populares como exemplo da supremacia ideológica das elites
letradas do século XIX. Nas salas de aula a norma culta escrita ainda goza de um prestígio nos
currículos escolares, que muitas vezes ignora outras variantes e modalidades da língua, como
a oralidade.

A centralização dos estudos de Língua Portuguesa apenas na norma padrão limita o conheci-
mento da língua na sua forma viva, a interação social. Infelizmente muitos professores fazem
do domínio da norma culta o objetivo de suas aulas. Na maioria das vezes, os alunos acabam
acreditando que conhecer a língua é decorar regras e classificar elementos, e pior, abdicar de
sua própria linguagem.

223
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

A concepção de língua
O professor precisa estar atento ao seu posicionamento com relação à concepção de língua
que deve ser adotada em suas aulas. De um lado temos uma concepção ultrapassada de que
língua portuguesa é a norma culta. Essa visão promove um ensino prescritivo-normativo,
corretivo, uma concepção abstrata, sistêmica, em que o aprendizado da metalinguagem gra-
matical torna-se o objetivo das aulas. De outro lado, propomos uma concepção interacionista,
plurilinguista e dialógica da língua concreta na atividade social, produzindo conhecimentos e
posicionamentos sobre a realidade.

Aspectos sociais do plurilinguismo


A língua, como já observamos no módulo anterior, se constitui por diversas maneiras de falar
e de escrever, porque ela é determinada pelas diversas classes sociais, subdivididas pelos as-
pectos econômicos, culturais, etários, sexuais etc. No uso cotidiano, a língua na maioria das
vezes não segue o modelo de uma norma padrão, mas molda-se segundo a situação, o gênero,
as intenções.

O aluno tem o direito de se tornar competente nos variados usos da língua que o convívio
social e profissional lhe exigirá, inclusive o domínio da norma culta.

Vejamos os elementos que determinam o uso das diversas formas da língua, as suas variantes:
• Natureza da informação – Características do tema que discutimos: sério, solene, cômico etc
• Nível de linguagem – formal, informal, literário etc
• Tipo de situação – particular, coletiva, profissional etc
• Relação entre os participantes – intimidade, hierarquia, respeito etc
• Intenção - criticar, agradar, ordenar etc

Acredita-se que na língua escrita predomina a formalidade e na língua oral a informalidade.


Isto é verdade, porém não absoluta. Mais à frente, (na aula sobre as relações entre oralidade
e escrita) compreenderemos melhor essa relação. Por enquanto precisamos relativizá-la: um
artigo para uma revista científica, um gênero escrito, possui um estilo absolutamente formal.
Já um SMS, também um gênero escrito, possui um estilo informal, com muitas marcas da
oralidade. Um bate-papo com um amigo é um gênero oral e informal, aliás a conversação
representa a oralidade pura. Uma entrevista de emprego, um gênero oral, já possui um estilo
mais formal, pois a situação de comunicação tornou-se profissional. Esses gêneros comentados
já anunciam como é grande a variedade de usos da língua em uma sociedade como a nossa.

As distintas características de um falante também promovem diferentes formas de dizer na


própria língua, fazendo com que ela se desdobre e se molde de acordo com a posição social do
falante. Os elementos que determinam língua de um falante são:

224
Disciplina: Letramento e formação social

• A idade – sabemos que um adolescente fala de forma bem distinta de um adulto, e uma
criança também.
• Sexo – Homem e mulher possuem linguagens distintas, particularmente na língua oral in-
formal, assim como os homossexuais possuem um conjunto de gírias próprio.
• Raça (cultura) – Muito além da cor da pele, os elementos culturais da raça estão bastante
presentes na língua de cada comunidade.
• Profissão – Os ambientes profissionais possuem jargões e entonações próprios.
• Grau de escolaridade – Quanto mais elevado o grau de escolaridade de um indivíduo,
maior a sua capacidade de transitar pelos diversos níveis de formalidade da língua, inclu-
sive dominar a norma culta.
• Os elementos do contexto também determinam as características da língua:
• Lugar: profissional, religioso, descontraído
• Ambiente: calmo, divertido, conturbado
• Tempo: encontro na correria da cidade, bate-papo na internet
• Ocasião: almoço com amigos ou de negócio
• Destinatário: íntimo ou desconhecido
• Hierarquia: professor, chefe, pai
• Elementos emocionais: apaixonado, irritado, agressivo
• Entre muitas outras variáveis que categorizam os sujeitos e seus usos linguísticos.

Considerações finais
Caro(a)s colegas, nesta aula percebemos a imensa tarefa que compete ao professor de língua.
Não só imensa na extensão, pois trabalhar com as variadas formas da língua nos diversos
gêneros, mídias e situações sociais já é um desafio, mas imensa também porque para realizar-
mos essa tarefa temos que superar a ditadura da norma culta nos currículos pedagógicos. É
tarefa da escola, logo do professor, capacitar o aluno no uso da norma culta, entretanto isso
não pode ser o seu objetivo final. A escola deve também formar cidadãos que respeitem seus
semelhantes com todas as diferenças sociais que lhes determinar, inclusive a sua forma de usar
a língua. Para isso, nas aulas de língua portuguesa, a norma culta precisa ser compreendida
como uma forma de usar a língua, mas não a única, nem a melhor.

Nas palavras de Horácio que abrem esta aula, encontramos respaldo para nossa proposta de
que o multilinguismo é uma característica da língua. Você concorda com a ideia de Horácio?

O poeta grego faz referência a alguns tipos de variantes linguísticas. Identifique-as.

225
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Há uma grande diferença se fala um deus ou um herói;


se um velho amadurecido ou um jovem impetuoso na flor da idade;
se uma matrona autoritária ou uma ama delicada;
se um mercador errante ou um lavrador de pequeno campo fértil;
se um colco ou um assírio;
se um homem educado em Tebas ou em Argos.
HORÁCIO, Ars Poetica.

SAIBA MAIS
Sugestão para leitura ou pesquisa:
BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico – o que é, como se faz.
Loyola: São Paulo, 2011.

Referência
BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico – o que é, como se faz. Loyola: São Paulo, 2011.

226
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 6
Norma Padrão e Preconceito Linguístico

Caro(a)s aluno(a)s,

Trazemos como conhecimento da aula anterior que o reconhecimento do plurilinguismo é


fundamental para acabar com o mito do monolinguismo. Para isso, é preciso considerar a
heterogeneidade linguística e valorizar a riqueza cultural da língua. Estamos cientes também
de que a escola e o professor de língua portuguesa têm um papel importante no combate ao
preconceito linguístico e social.

O papel da escola e preparar o aluno para sua inserção na sociedade, o do professor de lín-
gua portuguesa é capacitá-lo para utilizar ou para aprender a utilizar as diversas formas da
língua na sua participação como cidadão na sociedade. Para isso ela deve preparar o aluno
para compreender a língua como instrumento de comunicação, de constituição da identidade
individual e coletiva e também de poder.

Para desenvolver um trabalho de transformação do monolinguismo para o multilinguismo,


o professor deve abordar o tema das variações linguísticas demonstrando a pluralidade de
línguas faladas no Brasil, explorar a variação entre fala e escrita sem deixar de enfatizar que
a língua é variável, pois apresenta diversas visões mundo.

Língua e interação social


Compreender a língua como interativa não é apenas observar que por meio dela os indivíduos
se comunicam, mas que também expressam suas ideias e, principalmente atuam sobre o outro
produzindo interacionalmente os conhecimentos por meio de enunciados.

A língua se realiza por meio de enunciados submetidos às condições sócio-históricas da sua


produção e recepção. Por isso, a língua precisa ser estudada em seu uso e não apenas em es-
truturas gramaticais.

Atualmente, adota-se para o estudo da língua a concepção sociointeracionista que parte do


pressuposto de que a língua é uma prática social exercida em uma sociedade ou comunidade
com uma cultura que deve ser valorizada a fim de preservar o exercício da cidadania por meio
da própria língua.

227
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Norma culta e norma padrão


Muitos professores confundem esses dois conceitos, vamos agora esclarecer as relações entre
norma padrão e norma culta. Norma é um sistema de instruções que define o que deve ser
escolhido entre os usos de uma dada língua. A norma padrão é, em verdade, um modelo de
língua que não existe na realidade, é uma língua idealizada pela gramática normativa.

A expressão norma culta não é sinônimo de norma padrão. A variedade culta deve ser com-
preendida como a linguagem dos falantes na área urbana, com escolaridade superior completa.
Essa variedade culta não é a norma padrão. Por exemplo, a norma padrão determinada que
os verbos ir, chegar e levar pedem a preposição “a”, como em “Vou ao clube neste domingo”,
mas a maioria dos falantes da norma culta utiliza com a preposição “em”: “Vou no clube neste
domingo”. Notamos assim que a norma língua ou variedade culta é diferente da norma-padrão.

O ensino dialógico da língua


O professor não pode pensar o ensino de língua apenas como uma transmissão de conteúdos,
mas como a construção de conhecimentos por parte dos alunos. Nesse processo, o professor
deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções. Nessa perspecti-
va, a variedade linguística advinda dos alunos é valorizada, participando conjuntamente com
a linguagem do professor, “conhecedor da norma padrão”, no processo de ensino-aprendiza-
gem da língua.

Ao planejar o seu curso, o professor deve se perguntar o que se pretende com o ensino da
gramática: “Que papel pode ter a gramática no desenvolvimento do linguístico oral e escrito
do aluno?”.

É verdade que a boa elaboração dos textos passa pela gramática, entretanto, a gramática deve
ser trabalhada de forma funcional no contexto comunicativo, levando-se em conta os elemen-
tos discursivos como a situação e os objetivos de comunicação.

Outro aspecto é o reconhecimento do valor não só da gramática de língua escrita, mas tam-
bém da falada. O professor não deve apenas enfatizar as diferenças entre as duas, mas mostrar
que ambas são importantes para se comunicar em diversas situações com a modalidade oral
ou escrita.

O eficiente desempenho linguístico do aluno é medido pela capacidade de adequação à fina-


lidade da comunicação e também a padrões linguísticos valorizados na sociedade, no caso a
norma culta. Esses dois objetivos são tarefas do professor. A gramática normativa é bastante
eficaz para o segundo objetivo, enquanto o ensino dialógico é fundamental para o primeiro,
que visa à expansão das possibilidades do uso da língua.

O ensino dialógico da língua trabalha fundamentalmente com os gêneros discursivos, porque


dessa forma se pode analisar mais do que apenas o funcionamento da língua, pode-se chegar
ao funcionamento da própria sociedade mediado pelas atividades linguísticas.

228
Disciplina: Letramento e formação social

Os gêneros são instrumentos da ação social, por isso o professor deve investir no seu estudo,
propiciando ao aluno um contato mais próximo da ação linguística em sociedade. Já aprende-
mos que a comunicação verbal só se processa por meio de um gênero discursivo.

Diversidade linguística e letramentos


Retomando a noção de “letramentos”, compreendemos que além de aprender a ler e escrever,
existe neste conceito a ideia de promover transformações sociais, culturais, políticas, econô-
micas, cognitivas para o indivíduo.

A competência para ler e produzir enunciados dos mais variados gêneros é o verdadeiro indi-
cador de um bom desempenho linguístico. O aluno precisa aprender a decidir qual o melhor
gênero a produzir, considerando a situação comunicativa, o público alvo, o suporte e a mídia
Por isso, o professor deve propor situações que considerem um público ouvinte ou um leitor a
quem se destina o enunciado, qual a situação de produção em que se encontram os interlocu-
tores; quais as suas intenções ao produzir o enunciado, seja na língua oral ou escrita.

Além disso, o professor deve atentar para o trabalho com os gêneros multimodais que envol-
vem o uso de linguagens não-verbais, dialogando com a verbal como a canção popular, os
quadrinhos, o cinema, o teatro, a televisão, entre outras.

O trabalho com gêneros discursivos é uma oportunidade que o professor e o aluno têm de
trabalhar com a língua em seus diversos usos no dia-a-dia, logo de estar apto a usar a língua
nas mais diversas situações sociais. Dessa forma, o ensino de Língua Portuguesa por meio dos
gêneros é uma importante ferramenta para a formulação de conhecimentos por meio da ativi-
dade linguística nas relações sociais.

Considerações finais
Caro(a) aluno(a), nessa aula desenvolvemos o conteúdo sobre o plurilinguismo a fim de va-
lorizá-lo no ensino de língua. Compreendemos, então, que para vencermos a ditadura do
monolinguismo é necessário trabalhar com as variantes linguísticas, conhecer a diferença
entre variedade culta e a padrão, além de adotar uma abordagem dos enunciados por meio
dos gêneros discursivos que relacionam os usos linguísticos com a dinâmica social. O objetivo
dessas duas aulas foi conscientizá-lo de que a língua é diversificada, pois representa a cultura
de diversas comunidades e indivíduos na sociedade. A pior consequência da negação desse
fato não é apenas a ignorância, mas principalmente o preconceito social.

229
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Referências
BAGNO, Marcos. O preconceito linguístico – o que é, como se faz. Loyola: São Paulo, 2011.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: configuração, dinamicidade e circulação. In:


_______

POSSENTI, S. Por que (não) Ensinar Gramática na Escola. Campinas, SP: ALB: Mercado de
Letras, 1996.

230
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 7
Interfaces Oralidade e Escrita (I)

Oralidade e escrita
Caro(a)s aluno(a)s, nessas duas próximas aulas vamos estudar um tema bastante interessante:
as relações entre oralidade e escrita. Nesta primeira parte vamos começar apresentando as
diferenças materiais entre o oral e o escrito e a seguir mostrar o desenvolvimento da oralidade
e da escrita nas diversas sociedades no decorrer dos séculos. Após essa explanação, trataremos
das características textuais dos enunciados orais e escritos para ingressar na questão da impor-
tância dessas duas modalidades no ensino de língua.

Inicialmente é preciso enfatizar que é fundamental conceber oralidade e escrita como práti-
cas sociais por meio das quais os indivíduos participam cotidianamente da dinâmica de uma
sociedade.

Vamos agora observar definições de oralidade e escrita para depois darmos sequência ao nos-
so propósito de explorar as relações entre essas modalidades.

ORALIDADE pode ser definida como a prática social interativa para fins comunicativos realiza-
da por meio de enunciados orais. A oralidade é uma das modalidades de usos da língua. Outra
modalidade é a ESCRITA, uma forma de produção de enunciados por meio de sinais gráficos.

A oralidade e a escrita são práticas e usos da língua com características específicas, pois apre-
sentam condições de produção distintas, porém essas duas modalidades não devem ser pen-
sadas de forma dicotômica, em oposição. O nosso objetivo nesta aula é relativizar as relações
entre oralidade escrita.

Diferenças materiais entre o oral e o escrito


A palavra oralidade deriva do latim Os, oris, aquilo que se refere à boca. A voz é o suporte
acústico da oralidade e participam dessa modalidade todos os sons orais, o canto e, princi-
palmente para o estudo da língua, a fala. Na oralidade, a comunicação é feita com base na
percepção auditiva da mensagem.

231
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

A oralidade possui uma dimensão sócio-histórica muito importante, pois ela tem uma partici-
pação na memória coletiva das sociedades, e uma dimensão psicocognitiva, pois por meio dela
que compreendemos a realidade exterior e formulamos o conhecimento.

Escrita vem do latim scripta que significa a gravação de  sinais em um suporte material. Na
escrita, a comunicação feita com base na percepção visual da mensagem.

As diferenças entre a fala e a escrita não se limitam aos aspectos materiais e físicos de sua pro-
dução, mas também aos temas tratados em ambas. Elas são formas distintas de abordagem da
realidade e possuem as suas próprias estratégias de perpetuação de enunciados. É importante
saber que A ESCRITA NÃO É UMA REPRESENTAÇÃO DA FALA.

Elas são duas modalidades distintas da língua portuguesa com suas próprias possibilidades e
limites de expressão na vida social.

Desenvolvimento da oralidade e da escrita


A linguagem humana teve a sua origem na oralidade, associada ao gestual, ao musical e ao
pictórico. As sociedades formaram-se primeiramente por meio da língua oral e só depois pela
escrita.

A oralidade possui um papel muito importante na formação da memória social – principal-


mente nas sociedades ágrafas que não possuem a escrita para contribuir na tarefa de preserva-
ção da memória - pois ela constituiu um conjunto de memórias individuais que formam nossa
memória coletiva. As narrativas orais são o melhor exemplo disso. Há um ditado africano que
diz: “Na África, quando um velho morre, é uma biblioteca que queima”.

A escrita foi criada devido à necessidade de comunicação em sociedades que praticavam


comércio e evoluíram, logo surgiu com finalidades práticas: preservação de um texto para a
veiculação da informação por muito tempo. Como a escrita estava diretamente vinculada ao
desenvolvimento do comércio entre as cidades ela também estava envolvida na manutenção
do poder das classes sociais letradas, ou seja, quem fosse letrado, soubesse ler e escrever, era
membro da elite social.

Para que você tenha uma ideia do prestígio social de uma pessoa que fosse letrada, observe a
escultura abaixo de um escriba que no antigo Egito estava a serviço dos faraós.

232
Disciplina: Letramento e formação social

Figura – Escriba.
Fonte: Scribes, 20151.

Sistemas de escrita
A escrita Pictográfica consiste em transmitir uma ideia, um conceito ou um objeto através de
um desenho (símbolo) figurativo e estilizado. Ela é a origem de todas as formas de escrita e
até hoje a pictografia é utilizada, por exemplo, na sinalização do trânsito, de locais públicos
e na infografia.

A Escrita Cuneiforme (do latim cuneus = cunha) é o mais antigo sistema de escrita. O primei-
ro escrito conhecido é anterior a 4.000 a. C e atribuído aos sumérios da Mesopotâmia, onde
milhares de tabletes de argila foram desenterrados contendo registros em escrita cuneiforme
de transações comerciais e impostos de cidades da Mesopotâmia. A escrita cuneiforme utiliza-
da até a era cristã por povos que habitavam o antigo Oriente Médio. Inicialmente era produ-
zida através de desenhos de objetos que significavam o próprio objeto. Com o uso ela evoluiu
através dos tempos e os sinais tornaram-se mais abstratos transformando-se em caracteres na
forma de cunhas que eram desenhados pelos escribas em tabletes de argila molhada, usando-
-se um estilete de bambu com a ponta na forma de cunha.

A escrita hieroglífica foi desenvolvida no antigo Egito e era constituída por sinais chamados
de hieróglifos.

A escrita Ideográfica é um sistema de escrita que se manifesta através de “ideogramas” que são
desenhos (signos pictóricos) formando caracteres separados e representando objetos, ideias ou
palavras completas. Exemplos de escrita ideográfica são os caracteres chineses e japoneses.

1 Disponível em: http://scribes.ipnetwork.eti.br/scribes_pt/scribes.html

233
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

A escrita Silábica baseia-se no sistema de sílabas. Cada símbolo é a combinação de sons de


consonantais e vogais representando uma sílaba. A escrita etíope é um exemplo de escrita
silábica.

A escrita alfabética e fonética é o nosso sistema de escrita. Consiste na representação dos sons
de determinada língua pelas letras do seu alfabeto. Como nem sempre a letra correspondente
exatamente ao som da língua, essa escrita não é exclusivamente fonética.

A escrita alfabética fonológica é o sistema de escrita em que a cada fonema (som) correspon-
deria uma letra. Esse sistema de escrita representa a língua falada, a língua oral, verdadeira
natureza da linguagem.

A predominância da escrita
Em 1450, com o advento da imprensa, inventada por Gutenberg ocorreu uma reprodução
em massa de textos escritos que impulsionou a língua escrita na sociedade como forma de
produção, recepção e circulação de conhecimentos. O livro impresso foi uma das ferramentas
mais importantes para a difusão da língua escrita que ganhou prestígio principalmente com a
literatura. Desde então houve uma primazia e influência da escrita sobre a fala.

Rousseau escreveu que a pintura era a linguagem dos povos selvagens e os caracteres dos po-
vos bárbaros, enquanto o alfabeto era dos povos civilizados.

Lévi-Strauss contestou-o afirmando que a distinção entre barbárie e civilização, ancorada na


tradição oral e escrita, não procede e enfatizou o valor da oralidade na formação cultural de
todas as sociedades. Segundo Strauss, a escrita não bastou para consolidar os conhecimentos,
mas talvez tenha sido indispensável para fortalecer as dominações.

PARA REFLETIR
Quando falávamos sobre a importância da oralidade para a
preservação da memória social e histórica das sociedades, citamos o
ditado africano “Na África, quando um velho morre, é uma biblioteca
que queima”. Reflita à luz dessas ideias o significado desse ditado.

SAIBA MAIS
Sugestão de leitura:
O MITO DE THEUTH: No diálogo Fedro, Platão reflete sobre a
função da escrita nas sociedades. Seria ela um Remédio ou veneno
para a memória? Leia este diálogo e exponha seu posicionamento
sobre essa questão. Veja uma resenha no endereço: bocc.ubi.
pt/~fidalgo/historiamedia/Fedro-escrita.pdf

234
Disciplina: Letramento e formação social

Referências
ANDRADE, M. L. C. V. de O. Língua: modalidade oral/escrita. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL
PAULISTA. Prograd. Caderno de formação: formação de professores didática geral. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 50-67, v. 11.

CALVET, Luis-Jean. La tradition orale. Paris: PUF, 1984. [trad. Waldemar Ferreira Netto A
tradição oral].

FERREIRA NETO, W. Tradição oral e produção de narrativas. São Paulo: Paulistana, 2008.

MARCUSCHI, L. Letramento e oralidade no contexto das práticas sociais e eventos comunica-


tivos. In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letra-
mento. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

SCHNEWLY, B. & DOLZ, J. e colaboradores. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas,


SP: Mercado de Letras, 2010.http://www.recantodasletras.com.br/gramatica/370335

235
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

AULA 8
Interfaces Oralidade e Escrita (II)

Caro(a)s aluno(a)s, dando continuidade às nossas aulas sobre as relações entre as modalida-
des oral e escrita da língua, trataremos agora da importância da oralidade nos processos de
letramento.

Oralidade e letramento como práticas sociais


Sabemos que a oralidade e a escrita são constituídas por um conjunto de práticas sociais
realizadas por meio de enunciados que pertencem a determinados gêneros discursivos orais,
escritos ou multimodais.

Atentando para os usos da língua e enfocando a presença da oralidade e da escrita na socieda-


de percebemos a preponderância da escrita.

Antes de prosseguirmos com a parte teórica, gostaríamos que você observasse o uso dos gêne-
ros orais e escritos nesses ambientes sociais: trabalho, escola, dia a dia, família, vida burocrá-
tica, atividade intelectual.

A fala e a escrita possuem as suas próprias estratégias de apresentação do enunciado, mas não
podem ser vistas como atividades opostas, pois muitas vezes falamos usando elementos da
escrita, por exemplo, em uma situação formal. A recíproca também é verdadeira, pois escre-
vemos em determinados contextos usando elementos da fala, por exemplo em um chat.

Relativizando as relações entre oralidade e escrita


Como dissemos acima, a oralidade e a escrita não podem ser vistas de forma dicotômica, em
oposição. A língua oral e a língua escrita devem ser concebidas de forma relativa segundo as
características dos gêneros discursivos utilizados na interação social.

O gráfico a seguir ilustra essa relativização da relação entre a fala e a escrita. Na parte esquer-
da baixa estão os gêneros próprios da fala, na parte direita alta os da escrita. Observe que à

236
Disciplina: Letramento e formação social

medida que dirigimos nosso olhar para o centro, as relações entre oralidade e escrita tendem
a ser mais próximas. Assim, um gênero como telejornal é oral, mas foi produzido de forma
escrita ou até multimodal, já que também usa imagens.

Percebemos, então, que existem gêneros puros da oralidade, como a conversação, e da escrita,
como um texto acadêmico. Entretanto, muitos gêneros mesclam elementos das duas modali-
dades, como as entrevistas e as postagens nas redes sociais.

Figura - Relação entre fala e escrita.


Fonte: MARCUSCHI, 2001.

Oralidade e escrita no contexto das novas mídias


Como percebemos, a visão dicotômica entre oralidade escrita está superada, pois ainda que
possamos reconhecer as características próprias de cada modalidade, vemos também que elas
podem ser usadas conjuntamente na produção de enunciados em vários gêneros discursivos.

237
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Com o avanço da tecnologia no século XX, foi necessário desenvolver outras formas de obser-
vação da oralidade e da escrita. As novas mídias, os novos contextos de produção e recepção
de enunciados, os novos gêneros orais e multimodais fizeram a oralidade ganhar mais espaço
na vida social.

Uma das características mais marcantes da fala era a dificuldade de registro, ou seja, não era
possível guardá-la, ela se perdia após o enunciado ser proferido. Já a escrita foi criada para
ser grafada em um suporte material. Entretanto, com os avanços tecnológicos, a fala pôde ser
registrada e reproduzida. As gravação de voz e de vídeos permitiram aos enunciados orais
serem registrados, catalogados, recuperados e analisados, o que promoveu um grande desen-
volvimento dos estudos da língua oral.

Outra limitação superada pela língua oral foi a independência do contexto, ou seja, para falar
com outra pessoa era necessário estar no mesmo lugar que ela. Hoje não. Com o advento do
telefone, principalmente do celular, e da internet já são possíveis inclusive videoconferências.

Esses avanços possibilitaram uma nova visão a respeito da oralidade e da fala. Cada vez mais
presente na sociedade, atualmente já se reconhece o imenso valor da oralidade e na constitui-
ção da língua. Por isso, essa modalidade da língua precisa ser valorizada também no ensino.

Considerações finais
Caro(a)s aluno(a)s, vimos como é importante para o professor relativizar as relações entre
a oralidade e a escrita por meio dos gêneros discursivos a fim de ampliar as capacidades de
produção e compreensão de textos orais e escritos. A escola não pode privilegiar a escrita em
detrimento da fala, pois estaria prejudicando o letramento do aluno, visto que a oralidade está
presente em muitos gêneros escritos, além do que o aprendizado da produção de enunciados
orais é fundamental na inserção do indivíduo em diversos setores sociais.

PARA REFLETIR
O ditado latino Verba volant, scripta manent diz que as palavras
voam e a escrita permanece. Você acha as ideias presentes neste
ditado são coerentes com as novas mídias na sociedade?

238
Disciplina: Letramento e formação social

Referências
CASTILHO, A. T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 1999. 

FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. C. V. O.; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas


para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 1999.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. SP: Cortez, 2001.

PRETI, D. (Org.) Oralidade em textos escritos. São Paulo: Humanitas, 2009.

SCHNEWLY, B. & DOLZ, J. e colaboradores. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Campinas,


SP: Mercado de Letras, 2010.

239
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

AULA 9
Interfaces Oralidade e Escrita (III)

Caro(a)s aluno(a)s, enfocaremos agora a importância da escrita no processo de ensino-apren-


dizagem, tendo em vista que o aprendizado da escrita tem como complemento o aprendizado
da leitura. Para darmos o primeiro passo em direção a esse tema tão importante para nosso
curso, lançamos a seguinte questão: o que é ler?

Muitas pessoas acreditam que ler seja decodificar os significados presentes em um texto. Pen-
sando dessa forma, escrever seria construir signos para serem decodificados. Entretanto, essa
ideia é falaciosa, pois o leitor não decodifica o que está escrito, mas interpreta, infere.

Sabemos que os sentidos em um enunciado são construídos na relação entre o autor, o texto e
o leitor. Dependendo das condições de leitura, as interpretações podem ser as mais distintas.

Vimos que a língua não pode ser tratada como um código, mas sim como um instrumento
de interação social que se manifestará por meio de seus usos nas mais diversas condições e
situações sociais. Ao ler um texto, um aluno não o decodifica, pois não lemos como agulhas
de uma vitrola, e também não produzimos textos totalmente transparentes, pois a leitura e a
produção de textos se constituem no processo de interação com o outro.

Dessa forma, é lançada a questão: Como deve ser o processo de aquisição da escrita?

Para que o aluno desenvolva a escrita de forma competente é preciso que haja uma valoriza-
ção do contexto de produção e recepção para a produção do enunciado.

O professor não pode simplesmente dizer para o aluno escrever um texto sobre determinado
tema. Ele precisa indicar a situação em que o texto será veiculado, qual o seu gênero, qual
a sua finalidade e intenção, além de estabelecer um destinatário plausível e coerente com a
situação de comunicação. Por exemplo, escrever uma carta para um jornal. Assim o aluno vê
a sua produção escrita com um objetivo e um destinatário efetivo além daquele de ser lido e
avaliado apenas pelo professor. Neste caso da carta do leitor, o aluno vislumbra a possibilida-
de de ver a sua carta ser publicada em um jornal ou site e ser lida por pessoas distintas. Esse
processo de aprendizagem da escrita prepara bem melhor o aluno para a sua atividade social
do que simplesmente ficar corrigindo os erros gramaticais no texto.

A produção escrita pensada dessa forma promove o protagonismo do aluno que precisa assu-
mir-se como sujeito de seu texto. Nessa condição, ele tem o que dizer, razões para dizer, para
quem dizer e estratégias para dizer.

240
Disciplina: Letramento e formação social

É preciso que haja uma valorização da autoria, da recepção e da interatividade no ensino-


-aprendizagem da produção escrita e um ensino-aprendizagem de língua portuguesa que de-
senvolva as capacidades linguístico-discursivas no uso da língua em diversos contextos

Sabemos que a comunicação linguística se dá por meio dos gêneros que são inventados, invo-
cados e reinventados como uma resposta à necessidade de comunicação nas diversas situações
sociais. Se aprender a escrever (e a falar) é resultado da interatividade com o outro utilizando
os gêneros discursivos, é preciso que o professor crie situações para que os alunos respondam
a elas por meio dos gêneros, somente assim ocorrerá uma valorização das atividades de leitura
e produção de texto tendo em vista a vida social.

A escrita de textos na escola precisa ter em vista os diversos gêneros dos usos extraescolares.
O professor precisa colocar seus alunos em contato com a maior variedade possível de textos
e situações de produção e circulação dos enunciados. É o que denominamos como “pedagogia
da diversidade”. Esse processo de ensino-aprendizagem da produção textual tem como objeti-
vo desenvolver o protagonismo linguístico e social do aluno.

Considerações finais
Caro(a)s aluno(a)s, nessas aulas tivemos a oportunidade de estudar as modalidades oral e es-
crita da língua. Observamos que ambas possuem características distintas, porém não podem
ser pensadas como opostas, dicotômicas, mas sim relativizadas nos usos do cotidiano. Impor-
tante frisar também que a total predominância da escrita sobre a oralidade nos currículos
escolares é um erro. Ambas as modalidades devem ser contempladas em conjunto para o pro-
gresso do aprendizado do aluno. Nas próximas aulas apresentaremos estratégias de trabalho
para se alcançar esse objetivo. A seguir vamos conversar um pouco sobre as questões relativas
ao ensino de língua nas comunidades indígenas.

PARA REFLETIR
Imagine três situações distintas para as quais os alunos deveriam
produzir enunciados em diferentes gêneros: formal, informal,
profissional, cotidiana etc.
Pense no contexto da situação, nas características do possível leitor.
Por exemplo: Escrever uma carta de reclamação para uma empresa,
fazer um comunicado para ser exposto em um condomínio etc.

241
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Referências
BUNZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no
ensino médio. IN: BUNZEN, C. e MENDONÇA, M. Português no ensino médio e formação
do professor. São Paulo: Parábola, 2006.

KATO, Mary A. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes. In: No mundo da escri-
ta. Uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1987.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 6. ed. Campinas, São Paulo: Fontes,
1997.

242
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 10
Métodos de Ensino e Línguas Indígenas

Caro(a)s aluno(a)s, para iniciarmos esta aula, vamos pensar um pouco como definiríamos o
conceito de política linguística. Bom, política seria uma maneira de se fazer as coisas, e lin-
guística, o que trata da língua.

O que seria, então, Política Linguística?

Políticas também seriam formas de relacionamento, sendo assim como se relacionar com a
língua. Se política for entendida então como uma escolha de ação, quem escolhe uma política
para uma língua? Se compreendermos que a língua significa poder dentro das sociedades,
quais seriam os interesses subjacentes a uma escolha linguística?

Política linguística
Essas questões demonstram o quão importante é o conhecimento sobre as políticas linguísticas
para o professor de língua que trabalha em comunidades indígenas.

Saber quais estratégias poderá utilizar na alfabetização de seus alunos, no ensino de língua
indígena e portuguesa em sua comunidade são conhecimentos fundamentais para o professor.
Tendo em vista a importância desses temas passaremos agora a discorrer sobre o ensino de
línguas em comunidades indígenas.

Aos conceitos que levantamos acima, vamos somar mais um, o de que política linguística é
uma proposta sobre a situação linguística de uma comunidade. As políticas linguísticas estão
muito presentes onde mais de uma língua é usada em uma comunidade. Quando, por exem-
plo, uma comunidade indígena decide abandonar sua língua, e passa a usar apenas a língua
portuguesa, ela está fazendo uma escolha e, com isso, determinando sua política linguística.

Sabemos que nas comunidades indígenas se aprende a língua portuguesa permitindo assim
que ela penetre no seio da sociedade através da escola, escritos, jornais e revistas, dos meios
de comunicação como o rádio e a televisão e também pela internet.

Vemos que a língua portuguesa chega às comunidades por vários canais de comunicação. Os
enunciados que chegam aos habitantes das comunidades estão sempre formatados em um

243
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

gênero discursivo, logo para possuir um letramento social, os alunos devem ser iniciados e
treinados nestes gêneros com os quais ele terá contato, somente assim ele poderá utilizá-los
na leitura na escrita e na fala de forma consciente.

Alfabetização e política linguística


Como já vimos no módulo anterior, a alfabetização é um elemento que define muito da políti-
ca linguística de um povo ou comunidade indígena, pois uma vez que a comunidade opta por
usar a leitura e a escrita, define a sua política de alfabetização. É importante sabermos que a
política linguística geral faz parte da política da comunidade, logo deve ser coerente com ela.

D’AngeIis apresenta algumas estratégias que não devem ser adotadas em alfabetização:
• Não dá para alfabetizar em duas línguas ao mesmo tempo, pois é muito mais fácil, efi-
ciente e produtivo alfabetizar somente na língua materna. A importância política disso é o
reforço da imagem positiva da língua na comunidade.
• Não se deve alfabetizar em uma determinada língua a pessoa que não fala aquela língua.
• A tradução de cartilhas de alfabetização não deve ser praticada.

Sobre a escolha entre alfabetizar em língua materna ou não, D’Angelis argumenta que:
1. As pesquisas linguísticas apontam que é recomendável alfabetizar na língua materna, ou
seja, a primeira língua que a criança falou quando pequena. Não importando se é ou não
a língua falada pelos parentes da mãe dela.
2. As pesquisas sociolinguísticas concluem que caso a política linguística da comunidade
seja de valorização e de vitalização de sua própria língua, é recomendável alfabetizar em
língua materna.
3. Em se tratando de psicologia, do ponto de vista da afetividade o melhor é alfabetizar em
língua materna, a fim de valorizar a autoestima e a autoconfiança da criança.
4. Para a linguística aplicada, alfabetizar na língua materna completa o desenvolvimento
da competência da criança na sua primeira língua. E isso não trará dificuldades para o
aprendizado de outra língua, muito pelo contrário, será útil para o aprendizado futuro da
criança em outras línguas.
5. Não se alfabetiza em língua materna os jovens e adultos bilíngues.
6. Não se alfabetiza em língua portuguesa crianças monolíngues em língua indígena ou bilín-
gues sem muito domínio pelo fato de serem uma minoria frente aos alunos falantes de
Português.

Caso a comunidade decida alfabetizar as crianças em língua indígena, é importante que realize
uma segunda escolha, o modelo de programa bilíngue.

244
Disciplina: Letramento e formação social

Destacamos a seguir algumas opções:

a) Programas bilíngues de substituição ou transição: se as crianças chegam à escola sem


domínio da língua portuguesa, a língua indígena é utilizada como instrumento de alfabe-
tização. Porém, essa não é uma política de valorização da língua materna, pois a língua
materna é substituída ao longo do processo.

b) Programas bilíngues de manutenção ou de vitalização linguística: são comprometidos com


a defesa da língua minoritária (a língua indígena), mas também com o ensino da segunda
língua. Procura desenvolver a competência da criança em duas línguas, a da comunidade
indígena e a da maioria ao redor, o Português. Nesse programa, a escola não pode simples-
mente alfabetizar na língua indígena, pois a língua indígena tem que ser, de fato, língua
de instrução, isto é, de ensino. Nesses programas a língua indígena ocupará estará presente
em todas as séries.

Norma padrão e ensino de línguas em


comunidades indígenas
Muitos professores indígenas acreditam que os projetos político-pedagógicos das escolas de-
senvolvam a proficiência no português padrão, pois entendem que os membros destas comu-
nidades têm uma necessidade cada vez maior de comunicar-se bem no português oral e escrito
padrão, para que possam atuar de maneira mais participativa e consciente das negociações po-
líticas, dos projetos, e dos negócios de sua comunidade. No entanto, sabemos que não só para
as comunidades indígenas, mas para qualquer falante de português brasileiro, o português fa-
lado nas relações do cotidiano é coloquial e informal, bastante diferente do português padrão
utilizado na escrita formal. Dessa forma, é importante que o professor invista no ensino dos
diversos gêneros orais e escritos, formais e informais e não apenas em um padrão de língua.

Os falantes de português nas comunidades indígenas são muitas vezes falantes de uma língua
indígena, adquirida por eles antes do português, como língua nativa. Dessa forma, é preciso
planejar o ensino do português padrão nestas comunidades sempre em relação com a língua
indígena como primeira língua, pois os problemas de aprendizado do português padrão refle-
tem interferências da língua indígena.

Por fim, destacamos que o problema da educação indígena no Brasil assemelha-se ao da


educação pública em geral no país: ensinar na escola uma variante do português diferente
daquela que o aluno usa coloquialmente. No entanto, a educação indígena possui um desafio
maior, pois se trata do aprendizado de uma segunda língua. Um aluno que fale uma língua
materna diferente daquela em que está sendo instruído sofre interferências da língua materna
no processo de aprendizagem da segunda língua.

245
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Considerações finais
Com as reflexões e propostas que trabalhamos nesta aula, pudemos conhecer políticas linguís-
ticas para o ensino de língua indígena, refletir sobre o papel das políticas linguísticas e obser-
var as funções que a alfabetização exerce nas políticas linguísticas em comunidades indígenas.
A partir desse conhecimento, passaremos a profundar o estudo sobre as relações entre língua
indígena e língua portuguesa nessas comunidades.

SAIBA MAIS
Sugestão de leitura do artigo “Alfabetizando em comunidade
indígena”, disponível no site http://www.portalkaingang.org/
alfabetizando.pdf

PARA REFLETIR
Reflita sobre o postulado abaixo e pense em uma justificativa para
o seu posicionamento.
“Não se alfabetiza em língua portuguesa crianças monolíngues em
língua indígena ou bilíngues sem muito domínio pelo fato de serem
uma minoria frente aos alunos falantes de Português”.
Que consequências isso traria para a comunidade?
Sugestão de leitura do artigo “Alfabetizando em comunidade
indígena”, disponível no site http://www.portalkaingang.org/
alfabetizando.pdf

Referência
D’ANGELIS, Wilmar R. Alfabetizando em comunidade indígena. Disponível em http://
www.portalkaingang.org/alfabetizando.pdf

246
Disciplina: Letramento e formação social

AULA 11
Bilinguismo

Caro(a)s aluno(a)s,

Em verdade, o professor de língua indígena e portuguesa sempre enfrentará um desafio, pois


terá de lidar com escolhas que sustentam a políticas linguística em sua comunidade. Com
essas escolhas o professor pode se voltar para o ensino da língua nacional como instrumento
para suprir as necessidades da comunicação cotidiana com populações não indígenas próxi-
mas e o domínio do português como estratégia de atuação social, porém não se pode esquecer
que é necessário também o ensino da língua indígena como ferramenta de preservação lin-
guística e cultural.

O bilinguismo
Retomando a discussão iniciada no módulo 3, Bilinguismo é o uso por um mesmo falante de
duas línguas em diferentes situações comunicativas. Bilíngue é o indivíduo que usa mais de
uma língua para atingir objetivos comunicativos em diferentes contextos sociolinguísticos.

Precisamos aqui também relativizar esse conhecimento, pois bilíngue seria qualquer falante
com competência comunicativa em mais de uma língua, independente de seu grau de fluên-
cia ou correção gramatical.

O bilinguismo pode ser definido por um contínuo entre dois extremos onde estariam o modo
monolíngue e o modo bilíngue. O modo monolíngue ocorre quando um bilíngue está intera-
gindo com um interlocutor que não domina uma das línguas faladas por ele. Já o modo bilín-
gue ocorre quando os dois interlocutores dominam ambas as línguas em questão.

  A alternância  de  código  pode  ser  responsabilizada pela avaliação incorreta da capacidade
linguística de falantes bilíngues, pois recorrer a estruturas e palavras de uma língua para
falar em outra é o resultado de estratégias comunicativas usadas pelos falantes bilíngues ao
interagirem entre si para expressar situações que não podem ser completamente descritas
com termos e estruturas de uma única língua. Dessa forma, o professor de falantes bilíngues
precisa observar com atenção para distinguir entre uma possível deficiência no conhecimento
linguístico e o uso de alternância de código para atingir os objetivos comunicativos durante
uma interação.

247
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Sabemos que a vida em sociedade apresenta diversas situações comunicativas. Para atuar
nessas distintas situações usamos os mais diferentes gêneros discursivos e as diferentes estru-
turas linguísticas. Para o falante monolíngue, todo o conhecimento linguístico necessário para
a interação se dá em uma única língua. No caso dos falantes bilíngues, esse conhecimento se
distribui entre as duas línguas segundo as estratégias comunicativas que cada uma pode ofe-
recer. A grande ideia desse princípio da complementariedade é que um uso complementa o
outro para que o falante bilíngue possa se comunicar em todos os contextos de interação social
como os mais diversos falantes monolíngues ou bilíngues.

Por exemplo, imigrantes que falam uma língua em casa e outra no trabalho, filhos de imigran-
tes que falam uma língua nos encontros de família e outra com os amigos, grupo de pessoas
que usam uma língua para falar de um esporte e outra para falar de outro, como descendentes
de hispânicos nos Estados Unidos que falam de futebol em espanhol e de beisebol em inglês.

Vantagens do bilinguismo
Sobre as vantagens do bilinguismo no processo de alfabetização, já comentadas anteriormen-
te, agora voltamos ao tema para aprofundar essa questão:

Segundo Bialystok (2001), crianças que crescem falando duas línguas desenvolvem habilida-
des superiores em pelo menos três áreas: comunicação, elaboração de conceitos linguísticos e
aprendizagem de múltiplas línguas. Os bilíngues desenvolvem uma atenção seletiva, ou seja,
em atividades com dois estímulos, conseguem selecionar a informação mais importante. Do
ponto de vista da interação social, os bilíngues têm maior facilidade de inserção em diferentes
contextos.

Letramento e bilinguismo
Sabemos que para garantir um desenvolvimento linguístico mais completo de seus alunos, o
professor precisa explorar a pluralidade de situações comunicativas nas duas línguas, ou no
mínimo possibilitar o uso da língua em um contexto em que ela será necessária.

Como professores, é importante compreendermos que o aluno chega à escola falando uma
língua, o professor será responsável, então, pelo processo de letramento, por meio do qual o
aluno aprenderá a representação gráfica dos sons da língua e regras de padrões estilísticos
selecionados socialmente para fazer parte da norma padrão.

O professor bilíngue precisa ter consciência de que aprender a ler e a escrever não é a mesma
coisa que aprender uma língua. O professor deve também estar atento a algumas estratégias para
o letramento de seus alunos. Um das maneiras pelas quais esse conhecimento sobre a aquisição
de segunda língua se traduz em práticas pedagógicas é através da Abordagem Comunicativa.
Seu nome já deixa explícito o seu objetivo principal. Alguns de seus princípios são:

248
Disciplina: Letramento e formação social

• aprender uma língua é aprender a se comunicar;


• a comunicação deve ser o objetivo principal desde a primeira aula;
• a melhora no domínio da gramática e do vocabulário vem da necessidade de se
comunicar;
• o professor deve motivar o aluno a se expressar;
• os alunos devem interagir com outros falantes para desenvolver suas habilidades
linguísticas;
• a sequência de atividades em uma aula deve ser determinada pelo conteúdo e
função comunicativa;
• a motivação vem do interesse em se comunicar

As atividades em sala devem estimular os alunos a desenvolverem suas habilidades ativas,


como fala e escrita, assim como as habilidades (ditas) passivas, como a compreensão oral e a
leitura.

SAIBA MAIS
Sugestão de leitura do artigo “Bilinguismo, aquisição, letramento
e o ensino de múltiplas línguas em escolas indígenas no Brasil”
disponível em http://indigena.unemat.br/publicacoes/cadernos9/
Publicacao9-1.pdf

Referências
AMARAL, Luiz. Bilinguismo, aquisição, letramento e o ensino de múltiplas línguas em es-
colas indígenas no brasil in Cadernos De Educação Escolar Indígena - Faculdade Indígena
Intercultural.Organizadores: Elias Januário e Fernando Selleri Silva. Cáceres: Editora UNE-
MAT, v.9,n.1, 201. Disponível em http://indigena.unemat.br/publicacoes/cadernos9/Publi-
cacao9-1.pdf

249
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

AULA 12
Métodos de Ensino e Aprendizagem de
Língua Portuguesa como segunda língua

Ensino de língua portuguesa nas escolas


indígenas
Caro(a)s aluno(a)s, tendo em vista as propostas que apresentamos até este momento, pode-
mos pensar agora um pouco mais sobre o ensino de língua portuguesa nas escolas indígenas,
visando ao aprendizado de estratégias para o ensino nas comunidades. Sabemos que o pro-
fessor precisa privilegiar questões ligadas às diferenças de estilos interacionais, por serem
fundamentais nos programas de ensino de língua portuguesa para as comunidades indígenas.

Para isso, dois conhecimentos devem orientar a produção do material didático: A quem ele se
destina? Quais os seus objetivos? Para isso, o professor precisa conhecer o grau de domínio
do português oral e, mais importante, a natureza das situações comunicativas às quais seus
alunos estão expostos e nas quais precisam interagir.

O letramento dos alunos e o consequente progresso na capacidade de entender e produzir textos


escritos em português é de grande importância, porém não se pode ignorar a necessidade de
capacitar os alunos para comunicar-se oralmente nesta língua em diferentes situações sociais.

O desenvolvimento de uma competência comunicativa na língua-alvo deve ser orientado pela


vivência de situações com contexto de enunciação e com uma finalidade comunicativa. O pro-
fessor não deve valorizar a metalinguagem e tampouco somente a norma padrão, além disso
o uso de linguagem descontextualizada deve ser evitado.

Os alunos indígenas precisam ser expostos às variadas formas da língua portuguesa em uso
para vivenciar o funcionamento da nova língua e dos seus gêneros orais e escritos, aprenden-
do assim a se comunicar na prática social.

O professor também pode utilizar textos escritos e multimodais em sala a fim de desenvolver
a reflexão e o posicionamento crítico de seus alunos, principalmente em questões voltadas
às políticas de sua comunidade. Entretanto o trabalho não se deve limitar à compreensão

250
Disciplina: Letramento e formação social

do texto, mas desenvolver no aluno outras habilidades a partir desse texto, como exercitar a
oralidade, por meio de um debate, uma apresentação oral etc. A proposta é que o aluno e o
professor utilizem a língua portuguesa para desenvolver um olhar crítico sobre a realidade à
sua volta, para isso, um olhar reflexivo sobre a(s) sua(s) língua(s) é fundamental, visto que é
por meio dela(s) que nossos alunos atuam em sociedade.

Projetos de letramento
Caro(a) aluno(a), no decorrer de nossas aulas procuramos conscientizá-lo(a) da importância
de se trabalhar os gêneros orais, escritos e multimodais nos seguintes eixos didáticos: leitura,
oralidade, produção textual, análise linguística e interação social.

Dessa forma, procuramos desenvolver um trabalho sócio-interativista da língua, pois a língua


é o lugar de interação de sujeitos, da negociação de visões de mundo e da participação ativa
na sociedade. O professor precisa enfocar o desenvolvimento de competências e habilidades
linguísticas, para conseguir ampliar o letramento de seus alunos.

O método pedagógico que propomos para atingir esses objetivos, segundo essas propostas, é o
Projeto de Letramento que se fundamenta no princípio de que o conhecimento é instrumento
de compreensão da intervenção na realidade. A partir da reflexão crítica sobre a realidade,
ocorre a produção coletiva do conhecimento, com a participação ativa dos alunos, visando a
um produto final.

O projeto de letramento deve permitir o contato com a diversidade de formas de interação


verbal, conhecimento de gêneros variados, buscando a inserção em diversos eventos de letra-
mento escolar e não-escolar. As atividades devem privilegiar o trabalho em situações efetivas
de interlocução, por meio da circulação (produção e recepção) de enunciados.

O projeto de letramento elaborado pelo professor propõe-se como um conjunto progressivo


de atividades que despertem o interesse real na vida dos alunos e cuja realização envolva a
leitura de textos que circulam na sociedade e a escrita de textos que serão realmente colocados
em circulação e lidos, seja em um blog, seja publicado, seja exposto.

As situações de interação precisam transcender o espaço escolar para que a linguagem possa
ser praticada da forma mais próxima da realidade social, na forma de uma intervenção social
na comunidade, como uma apresentação, uma campanha etc.

Os projetos de letramento e formação social devem também levar em conta o trabalho com
os multiletramentos - ou letramentos múltiplos - e os letramentos multissemióticos, visto que
é fundamental para a inserção social do indivíduo em uma sociedade tecnológica o domínio
dos gêneros que circulam nas mídias de massa e através da internet. Os letramentos críticos
e protagonistas devem ser valorizados a fim de promover a inserção social de indivíduos que
têm na língua um instrumento de posicionamento, mobilidade e convivência social.

251
Módulo 4 - Métodos de ensino e aprendizagem de línguas

Considerações finais
Os projetos de letramento favorecem o trabalho com os gêneros e promovem o protagonismo
social dos alunos, pois abarcam os vários letramentos presentes em uma sociedade. Sabemos
que para o aluno aprender a escrever somente escrever não é suficiente, ele tem que participar
de atividades diversas de leitura e escrita, com finalidades, interlocutores e modos de inte-
ração os mais diversos. Somente por meio dessa interação social a escola formará indivíduos
críticos, capazes de intervir em sua comunidade de acordo com a sua visão de mundo. Os
processos de letramento procuram oferecer ao aluno o convívio com práticas sociais de com-
preensão e produção de textos em gêneros orais, escritos e multimodais a fim de promover a
sua formação social.

Referências
MAHER, Tereza Machado. O ensino de língua portuguesa nas escolas indígenas. Em Aber-
to, Brasília, ano 14, n.63, jul./set. 1994. Disponível em emaberto.inep.gov.br/index.php/
emaberto/article/view/946/851

MENDONÇA, Márcia R. de S. Integrando leitura, produção de texto e análise linguística


na formação para a cidadania. Disponível em http://www.construirnoticias.com.br/asp/
materia.asp?id=836.

ROJO, Roxane; ALMEIDA, Eduardo de Moura. Multiletramentos na Escola. São Paulo: Pa-
rábola Editora, 2012.

SANTOS, Carmi Ferraz; MENDONÇA, Márcia e CAVALCANTE, Marianne C. B. O trabalho com


gêneros por meio de projetos in Diversidade textual os gêneros na sala de aula. Autêntica:
Belo Horizonte, 2007 (p. 115 a 132). Disponível em: http://www.serdigital.com.br/gerencia-
dor/clientes/ceel/arquivos/11.pdf

252
MÓDULO 5
TRANSFORMANDO A
REALIDADE: PROJETO DE
COMPREENSAO E
ANÁLISE DA REALIDADE
SOCIOLINGUÍSTICA DE UMA
COMUNIDADE INDÍGENA
DISCIPLINA
PROJETO DE INTERVENÇAO
PEDAGÓGICA
Autor: Sandro Luis da Silva
Disciplina: Projeto de Intervenção Pedagógica

Apresentação
Este módulo se constitui na elaboração de um projeto de intervenção pedagógica em uma co-
munidade indígena a partir do conteúdo que você desenvolverá durante o curso.

Para a sua elaboração será necessário que você pense no conteúdo que vamos estudar, nas
reflexões que cada momento do estudo sobre as Políticas Linguísticas para a Educação Escolar
Indígena proporciona a você. É mais um momento em que você terá a oportunidade de esta-
belecer a relação entre a teoria e a prática.

A construção desse projeto ocorrerá ao longo de todo o curso. Então, em vários momentos
você recorrerá a este módulo. Numa primeira etapa,nossa sugestão é que você leia todo o con-
teúdo deste módulo, para que possa se familiarizar com o que propomos a você e tenha ideia
do que será pedido na elaboração do projeto.

Acreditamos que, para elaborar um projeto de intervenção significativo, é importante enten-


der a realidade da escola. Entendemos que o conhecimento da realidade escolar, em todas
nuances, é um aspecto essencial para o desenvolvimento de qualquer atividade escolar.

Faz-se necessário pensar que a escola atual está em sintonia com os sistemas de ensino, re-
constrói o currículo em resposta às necessidades materiais e resgata os valores e princípios
de valorização e afirmação da vida, necessários para a construção de uma nova sociedade,
caracterizando-se no tempo presente. A educação precisa ser um meio pelo qual os sujeitos
envolvidos neste processo estejam abertos para as mudanças por que passa a sociedade.

As ações desenvolvidas no âmbito da escola devem convergir para a potencialização do currí-


culo, que precisa ser dinâmico, atender às necessidade das diferentes comunidades, com ações
bem articuladas, a fim de promover uma Educação significativa e transformadora, capaz de
levar os educandos ao desenvolvimento de competências e habilidades mínimas requeridas
pelo processo de aprendizagem.

No sentido educacional reconhecemos a Intervenção Pedagógica como importante estratégia.


A intervenção é uma (re) orientação do trabalho pedagógico, a partir do desenvolvimento de
um currículo básico já existente. Nesse processo, os educadores são convidados a estabelecer
prioridades, rever concepções e criar novos meios de atuação com intencionalidade educativa
específica para um determinado contexto escolar, no nosso caso, o contexto escolar indígena,
projetando na prática a concretização do seu trabalho. Intervir tem como foco principal a ação
pedagógica com objetivo de garantir aos estudantes o direito de aprender. Essa aprendizagem,
embora seja um grande desafio, é um direito de todos conforme preconiza a Constituição Fe-
deral.

Nesse contexto, a intervenção pedagógica é uma ação de toda a comunidade escolar, que pac-
tua o compromisso de promover a melhoria da aprendizagem do estudante. É de fundamental
importância intervir para confirmar esse direito, considerando os resultados apresentados
pela avaliação da aprendizagem que acontece no cotidiano escolar.

A elaboração de um projeto de intervenção deve visar a propostas concisas e eficazes, capazes


de trazer modificações substanciais para o aprendizado dos estudantes.

255
Módulo 5 - Transformando a realidade: Projeto de compreensão e sociolinguística de uma
comunidade indígena

Neste módulo, haverá um constante diálogo entre o que você está estudando e as possibilida-
des de aplicação desta teoria em uma escola indígena. O importante é que em seu projeto seja
evidenciado esse diálogo e a aplicabilidade dele em uma realidade concreta.

Vamos então ao conteúdo!

Sobre o autor
Doutor em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
2008. Mestre em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (2001). Graduado
em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (1986), e graduação em Le-
tras - Português Bacharelado - pela Universidade de São Paulo (1997), e licenciatura em Letras
- Português - pela mesma Universidade (1997). Atualmente é Professor Adjunto concursado de
língua Portuguesa na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), curso de Letras. Coorde-
nador do Programa de Pós-Graduação em Letras na mesma Universidade.

256
Disciplina: Projeto de Intervenção Pedagógica

O que é o Projeto de Intervenção Pedagógica?


O significado de “projeto” encontrado comumente nos dicionários da Língua Portuguesa está
associado a plano de realizar, à intenção. A projeção, por ser uma ação humana, contém uma
intencionalidade marcada pela historicidade social, pela produção humana da vida material
e cultural. O Projeto de Intervenção Pedagógica está também relacionado a essa ideia, que
significa projetar para o futuro a intencionalidade da ação humana.

Ao pensar um Projeto de Intervenção, é necessário retomar a intrínseca relação entre homem,


trabalho e educação, pois é nessa relação que surge a intencionalidade. O homem, diferente-
mente de qualquer outro animal, que se adapta à natureza, faz o contrário, adapta a natureza
à sua necessidade. Pelo trabalho, o homem edifica a sua natureza, que não se restringe à
biológica. Portanto, desde o momento que a espécie humana passa a transformar o meio em
função da produção da sua subsistência, passa a se produzir enquanto homem e se diferenciar
dos demais animais. Nesta perspectiva, Saviani (1991, p.7) diz que:

“A natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base
da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de produ-
zir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.”

O homem se humaniza apropriando-se, pela educação, do trabalho – fruto de sua história


com outros homens frente à satisfação de suas necessidades. Portanto, existem muitos saberes
que os homens precisam aprender para se tornarem homens, e isso não é um processo natu-
ral e espontâneo. Este processo, de distanciamento à natureza biofísica, culmina com a etapa
histórica em que as relações sociais passaram a prevalecer sobre as naturais, estabelecendo o
primado do mundo da cultura, que significa o mundo produzido pelo homem.

Segundo Saviani, “Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva
natural, mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo pois, um produto do traba-
lho, isso significa que o homem não nasce homem” (1991, p.8).

Assim, o que diferencia os homens dos animais é o trabalho e este se instaura a partir do
momento em que seu agente antecipa mentalmente a finalidade da ação. Consequentemente,
o trabalho não é qualquer tipo de atividade, mas é uma ação adequada a finalidades. É, pois,
uma ação intencional (SAVIANI, 1991).

Vale esclarecer que, nesta perspectiva, a apreensão dos saberes historicamente elaborados
pela humanidade, pelo processo racional e intencional, é priorizado e, desse modo, se articu-
lam aos conhecimentos denominados científicos, que se distanciam dos conhecimentos espon-
tâneos e empiristas. Recorrendo mais uma vez a Saviani que diz:

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Módulo 5 - Transformando a realidade: Projeto de compreensão e sociolinguística de uma
comunidade indígena

Em consequência, o saber metódico, sistemático, científico, elaborado, passa a


predominar sobre o saber espontâneo, ‘natural’, assistemático, resultando que a
especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar” (SAVIA-
NI, 1991, p. 8).

Destas considerações apreendem-se questões fundamentais para a elaboração do Projeto de


Intervenção Pedagógica na Escola. Dentre elas destacamos a ênfase a ser dada na disciplina de
atuação do Professor, no caso de nosso curso, as questões relacionadas às Políticas Linguísticas
para a Educação Escolar Indígena. Isto significa que os fundamentos teórico-disciplinares de-
vem ser priorizados e trabalhados em todos os Projetos de Intervenção Pedagógica na escola.

A realidade da escola deve ser considerada pela permanente reflexão teórica. Haverá um
momento em nosso curso em que todos serão convidados a conhecer uma realidade escolar
indígena “in locus”.

O Projeto não deve ser percebido como algo estático, pronto e acabado, o que é compreensível
quando se adota a relação entre educação e trabalho. Ele tem como finalidade delinear a in-
tencionalidade das ações a serem implementadas na escola. Tem, todavia, uma relação direta
com as atividades curriculares previstas, bem como com as produções a serem realizadas e
com a implementação deste projeto na escola. É fundamental que este apresente uma relação
intrínseca entre o objeto de investigação do professor decorrente da realidade escolar e a pro-
posição de intervenção.

É importante que, para a elaboração de um Projeto de Intervenção, o professor leve em con-


sideração o fato de sempre partir de uma problemática da realidade vivida e percebida pelo
professor na escola, ou seja, ter a experiência como ponto inicial do movimento da pesquisa; e
o fato de ter o compromisso de a ela retornar para intervir, provido de maior fundamentação
teórica e novas alternativas para estratégias de ação.

Muitas das pesquisas na área da educação têm apresentado levantamento de dados e descrição
de prováveis comportamentos futuros, porém, a descrição das múltiplas faces do cotidiano da
escola, embora importantes, não é suficiente para que as pesquisas contribuam com a mudan-
ça da realidade desse cotidiano.

O objetivo – e o diferencial – em um Projeto de Intervenção é o exercício efetivo da práxis,


entendida aqui como um processo dialético entre a teoria e a prática. Por conseguinte, a pes-
quisa se configura em elemento elucidador da realidade pela tentativa de percepção da totali-
dade (parte/todo e todo/parte), mesmo que provisoriamente, e também elemento articulador
de novas práticas eleitas sob as perspectivas desveladas nesse esforço teórico.

Assim, o Projeto de Intervenção Pedagógica na Escola pressupõe a intervenção na realidade


proporcionada por essa pesquisa. Trata-se de uma elaboração que deve contemplar subsídios
teóricos para a discussão da problemática anunciada, apontar para uma possibilidade de produ-
ção didática e pedagógica a ser utilizada como uma das estratégias de implementação na escola.

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Disciplina: Projeto de Intervenção Pedagógica

Para a elaboração do Projeto você contará com a orientação de professor/tutor envolvidos no


processo. Ela deve ser realizada com cuidado, paciência e persistência, pois o projeto inicia o
movimento da pesquisa, movimento que exige rigor teórico e clareza epistemológica.

Elementos essenciais do Projeto de Intervenção


a. Dados de Identificação do Professor: área de atuação, escola em que será implementa-
do o Projeto, público objeto da intervenção:

b. Tema: dentre os vários conteúdos desenvolvidos no curso, o Professor deve selecionar


o tema que irá abordar em seu Projeto, bem como a linha de estudos selecionada (es-
colha o conteúdo de um dos módulos), e articular-se, principalmente, com a realidade
da escola em que desenvolverá o projeto. Evidentemente que você poderá partir de
algumas hipóteses, caso não conheça a realidade escolar indígena, ainda.

c. Título do Projeto: O título deve ser claro, conciso, explicativo, coerente com o objeto
e objetivos do Projeto, identificando com a devida pertinência a temática em relação
ao curso de Políticas Linguísticas para a Educação Escolar Indígena. O título de seu
projeto deve ser orientador, levando o leitor a conhecer, já pelo título, o trabalho que
será desenvolvido na realidade escolar.

d. Justificativa do tema de estudo: Consiste na apresentação clara e objetiva, das razões


teórico-metodológicas que justificam a realização do estudo. Deve indicar a relevância
do problema e as explicações que justificam o estudo do tema. Pensar que nosso curso
visa à educação pela diversidade. Acreditamos que este curso procura valorizar uma es-
cola de inclusão, respeitando e valorizando as diferenças culturais, linguísticas, sociais.

e. Problema/Problematização: Toda produção científica inicia-se com uma situação que


gera dúvida ou que intriga, a qual se denomina “situação problema”. Esta urge a partir
da análise da situação a ser discutida, investigada e solucionada. O problema pode ser
caracterizado e formulado, visando a sua melhor objetivação, através de uma “questão
norteadora”. Parta sempre de uma pergunta.

f. Objetivos: Geral e Específicos. O objetivo geral e os específicos indicam o intuito das


ações a serem desenvolvidas no Projeto, esclarecendo os fins que pretendem ser atin-
gidos. O objetivo geral possui uma dimensão ampla a ser atingida a partir de médio e
longo prazo. Os objetivos específicos assumem uma dimensão mais restrita, assumindo
uma temporalidade mais imediata (curto prazo) e delimitam ações complementares
para o alcance do objetivo geral.

g. Fundamentação Teórica: ao definir a temática, o Professor procede à revisão biblio-


gráfica relacionada à temática em questão para fundamentar o seu estudo. Para tanto,
deve procurar literatura relevante e atualizada, a fim de compreender a situação atual
e conhecer o que já foi produzido anteriormente na área a ser investigada. Você deve
se valer do conteúdo desenvolvido no curso.

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Módulo 5 - Transformando a realidade: Projeto de compreensão e sociolinguística de uma
comunidade indígena

O Projeto deve ser apresentado de acordo com a normalização oficial (ABNT), e obser-
vando com atenção a questão dos direitos autorais.

h. Estratégias de ação: este item deve explicitar os desdobramentos do trabalho de apro-


fundamento teórico-prático no que diz respeito as ações a serem implementadas na
escola. É preciso especificar a sua abrangência, os sujeitos envolvidos, o local etc., e
demais informações pertinentes ao desenvolvimento do Projeto. Consiste no passo a
passo das atividades que você desenvolverá com os alunos. Precisa haver uma descri-
ção minuciosa de cada uma delas.

»» Cronograma: deve estar definido o tempo necessário para execução das ações do
Projeto, estimando-se de modo viável o início e término de cada atividade e con-
siderando-se ainda os períodos/tempo estabelecidos pelo Programa. É importante
que o tempo seja hábil para a execução das atividades propostas. O importante é
você detalhar o tempo para cada atividade proposta. É interessante que o cronogra-
ma seja feito a partir de uma tabela. Segue uma sugestão:

Atividades/semana 1 2 3 4 5 6 7
Conversa inicial com os alunos sobre o
assunto

j. Referências: as referências devem atender as normas para elaboração de trabalhos


científicos (ABNT), o que permitirá verificar as fontes de informação e os autores con-
sultados para elaboração de toda fundamentação do Projeto. Você observou que em
cada módulo/disciplina há uma referência bibliográfica. Procure valer-se dela em seu
projeto.

O que esperamos de seu Projeto?


A equipe que trabalhou para a elaboração e a execução deste curso de aperfeiçoamento so-
bre Políticas Linguísticas para Educação Escolar Indígena procurou pensar uma proposta que
atendesse um diálogo que favorecesse reflexões não só sobre questões linguísticas, como tam-
bém em propostas com foco intercultural, que partisse da realidade indígena e que tivesse
como resultado de todo o processo de estudo uma possível intervenção pedagógica em uma
escola indígena. Não pensamos em intervenção no sentido de mostrar o que está certo ou
errado, mas “intervenção” no sentido de diálogo, de colaboração entre as diferentes culturas,
posicionamentos ideológicos, políticos, sociais. Pensamos na construção de uma proposta em

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Disciplina: Projeto de Intervenção Pedagógica

conjunto com a comunidade indígena. Você pode conhecer a realidade de uma delas em vá-
rios sites, como o Projeto Xingu ou da própria Secretaria da Educação da Prefeitura de São
Paulo e da FUNAI.

Estamos na expectativa de que, com os Projetos de Intervenção Pedagógica, as exigências


de cada um deles configuram o eixo de articulação dos diferentes campos de conhecimento
envolvidos na sua realização, possibilitando reflexões significativas sobre as Políticas Linguís-
ticas para a Educação Escolar Indígena.

Vale lembrar que a avaliação está pensada como um processo contínuo, dinâmico e investiga-
tivo, envolvendo alunos, professores e as comunidades indígenas.

Na apresentação dos projetos, momento em que socializaremos o trabalhos construídos duran-


te o curso, o grupo de professores reunido terá a oportunidade de não só avaliar, mas repensar
perspectivas para a Educação Escolar Indígena.

Esperamos sua contribuição para que tenhamos propostas de atividades que possam lidar
com a inclusão, com a diversidade de uma forma humana, solidária, respeitando os limites,
as culturas, enfim, o ser de cada um dentro de sua realidade, favorecendo a discussão sobre
os conteúdos e objetivos específicos no processos propostos pela Educação para as diferentes
etnias, as quais levem à identificação e integração dos sujeitos com sua própria comunidade
– povo e aldeia.

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Módulo 5 - Transformando a realidade: Projeto de compreensão e sociolinguística de uma
comunidade indígena

Referências
ECO, Humberto. Muito além da Internet. São Paulo: [s.n.], 2003. Disponível em: <www2.
fgv.br/biblioteca/geral/docs/Internet.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2011.

LAKATOS, Eva. Maria. & MARCONI, Mariana Andrade. Fundamentos de metodologia cien-
tífica. São Paulo: Atlas, 1991.

SAVIANI, Dermeval. Escola  e  Democracia. 8a. ed. São Paulo, Cortez/Autores Associados,
1985. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia históricocrítica: Primeiras aproximações. 2. ed. São
Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991.

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