Escrita Importancia
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Patrícia Camini1
ABSTRACT: Using contributions of the studies of Michel Foucault, the article analyses
the collection “Letters and forms”, produced by the Institute Alfa e Beto, for the teaching
of the handwriting for children in the process of literacy. There are discussed determined
discursive regularities picked up in the analysis of the material, looking for connections that
allow to show the possibility of emergence of such regularities in today’s school, as well as
its functions. To the end, the analyzed material is discussed as part of a machinery of
technologies produced specially by the school to bring the childlike writings to normal.
Key words: Handwriting; Writing; Alfa e Beto; Normalization.
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Uma das três ONGs contratadas pela Seduc foi o Instituto Alfa e Beto (IAB), com
sede em Brasília, criado em 2006 pelo psicólogo e estudioso em questões educacionais
referentes à alfabetização João Batista Araújo e Oliveira. Em 2008, com a divulgação dos
resultados das testagens aplicadas às turmas participantes do Projeto-Piloto, o Instituto
destacou-se por ter alcançado o maior índice de acertos na prova envolvendo
conhecimentos de leitura e escrita. Tal índice, tão alarmado por colunistas de jornais e
revistas de grande circulação3, é mostrado no estudo de Schineider (2009) como uma
diferença de apenas 1,3 questão, de um total de 20, em relação ao desempenho dos alunos
alfabetizados pela metodologia do Instituto Ayrton Senna, que ficou em 2º lugar.
Schineider (id.) também apontou o amplo complexo didático produzido pelo
Instituto Alfa e Beto com vistas à alfabetização, o qual é distribuído às escolas participantes
do Projeto. Ao consultar o portal virtual do Instituto4, percebo a ampliação do complexo
de materiais analisados por Schineider. Faço tal afirmação tendo em vista que materiais já
existentes antes de 2009 foram organizados em novas coleções, às quais foram agregados
novos materiais. Entre esses materiais, encontra-se uma coleção intitulada “Grafismo e
caligrafia”, reeditada com esse nome a partir de 2009. No entanto, os materiais para
caligrafia distribuídos pelo Instituto às escolas gaúchas até o ano de 2009 foram os editados
até 2008, chamados de “Livro 1: letras e formas” e divididos em dois volumes: o primeiro
visando o ensino das letras de fôrma e o segundo, das letras cursivas. Nas escolas gaúchas,
os dois primeiros volumes foram disponibilizados às turmas de 1º ano e sua utilização ficou
a critério dos professores, já que tenho notícias de escolas que utilizaram os dois volumes
com turmas de 1º ano e de escolas que optaram por utilizar o primeiro volume com turmas
de 1º ano, deixando o ensino da letra cursiva para o 2º ano. E é por sua intensa circulação
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em escolas do Rio Grande do Sul, não apenas as pertencentes à rede pública de ensino, já
que há notícias de que muitas escolas particulares também compraram materiais didáticos
do IAB, que analiso nas seções seguintes as tecnologias colocadas em funcionamento pelos
materiais em questão com vistas a ensinar os alunos a caligrafar.
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3 Confira, por exemplo: http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_240408.shtml/ Acesso em: janeiro
de 2010
4 Cf.: http://www.alfaebeto.org.br/
Fig. 1 e 2: Capas dos livros “Letras e formas”, do Instituto Alfa e Beto (2008)
Até quando o aluno deve “escrever do seu jeito”, como vemos muitos professores
orientarem os alunos em processo de alfabetização? É importante ensinar a escrever de
forma cursiva? Quando? Perguntas como as que escolhi para iniciar esta discussão são
correntes entre professores que atuam nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Para
dar conta dessa problemática nas escolas, múltiplas são as táticas que poderiam figurar
como exemplo nessa introdução: há os que iniciam os alunos na arte da escrita utilizando
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os chamados “blocões” para desenho, que permitiriam uma expressão mais livre, menos
regrada, por parte da criança; progressivamente, vão sendo introduzidas linhas com grosso
espaço entre si, até chegar ao caderno dito “universitário”, com as linhas no tamanho
padrão que hoje conhecemos. Também há escolas que entendem ser mais pertinente
alfabetizar as crianças utilizando a letra cursiva, mais rápida e mais legível. Para isso, o
ensino da caligrafia quanto mais cedo fosse iniciado, menos problemas a criança teria para
lidar com o caderno. Tal prática não se dá sem uma certa dose de críticas por parte dos que
se filiam aos discursos psicogenéticos que postulam como essencial o uso de letras soltas
(de fôrma ou script) na alfabetização, tendo em vista que a criança utilizaria entre seus
critérios de raciocínio sobre a escrita a quantidade e a variedade de caracteres grafados ao
escrever. Com o uso da escrita cursiva, o raciocínio sobre a quantidade de caracteres
escritos poderia ficar comprometido pela emenda entre as letras, como aconselha a
especialista Cristiane Pelissari, ouvida pela Revista Nova Escola em novembro de 2008, a
partir da pergunta “Por que as crianças devem escrever com letra de fôrma para depois
passar para a letra cursiva?”:
Esta escolha está relacionada ao processo de construção das hipóteses da escrita.
Durante a alfabetização inicial, os pequenos trabalham pensando quais e quantas
letras são necessárias para escrever as palavras. As letras de fôrma maiúsculas
são as ideais para essa tarefa, já que são caracteres isolados e com traçado
simples - diferentemente das cursivas, emendadas umas às outras. O
aprendizado das chamadas "letras de mão" deve ser trabalhado com crianças
alfabéticas, que já têm a lógica do sistema de escrita organizada (p. 24).
Para o IAB, o percurso de aprendizagem da grafia das letras também deve ser o
mesmo: das letras de fôrma às letras cursivas, mas por uma questão de gradação da
complexidade dos movimentos exigidos. A presença de exercícios que exploram
movimentos básicos envolvidos no traçado das letras de fôrma, apresentando
primeiramente exercícios que exigem movimentos em várias direções para, depois, aplicar
esses movimentos ao traçado das letras, encontra conexões com os postulados de estudos
de psicomotricidade. A psicomotricidade transita entre as áreas da educação e da saúde e,
de acordo com a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade5, trata-se da
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ciência que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo
em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo. Está
relacionada ao processo de maturação, onde o corpo é a origem das
aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. É sustentada por três
conhecimentos básicos: o movimento, o intelecto e o afeto.
Psicomotricidade, portanto, é um termo empregado para uma concepção
de movimento organizado e integrado, em função das experiências
vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua
linguagem e sua socialização.
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5 Cf.: http://www.psicomotricidade.com.br/apsicomotricidade.htm Acesso em 14 de jan. de 2010
Imagine uma escola profissional de eletricistas ou cozinheiros. As
primeiras aulas dessas escolas são sempre iguais: o uso dos instrumentos
de trabalho. Imagine um agricultor que não aprendeu a usar a enxada
corretamente. Ou um atleta que não sabe como cuidar de seus músculos.
Não é diferente nas questões de postura e de pegar no lápis. Um aluno
típico deverá ficar na escola durante 15 anos ou mais. Ensinar a postura
correta para sentar e escrever e a usar o instrumento central do trabalho
escolar, o lápis, deve ser função primordial do professor. Trata-se de um
princípio básico de ergonomia e saúde física.
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Não é exagero pensarmos que, ao mesmo tempo em que um teste aplicado sobre qualquer
nicho populacional procura aferir em linguagem matemática o potencial de cada indivíduo,
ele também coloca em funcionamento o que é tido como referência ou, em outras palavras,
como normal para os conhecimentos aferidos. Assim, nas cartilhas contemporâneas aos
Testes ABC, veremos uma crescente incorporação de atividades de discriminação visual. É
possível localizar efeitos desses discursos também em manuais direcionados à pré-escola,
como o de autoria de Lia Dalva Grosso e de Telma Bellotti, de grande vendagem na década
de 1970. Abaixo, a imagem ilustra algumas das orientações dessas autoras para preparar a
criança pré-escolar para a escrita.
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Fig. 6: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 1 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 21)
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Fig. 8: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 9)
Fig. 9: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 93)
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interessante destacar também que, até a metade desse volume, cada lição é intercalada por
um exercício como o que a imagem abaixo mostra.
Fig. 10: Exemplo de atividade presente frequentemente no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 14)
Ao olhar os materiais do IAB voltados ao ensino da caligrafia, cabem algumas
palavras quanto à radical diferença de sua proposta em relação aos demais materiais para o
mesmo fim disponíveis no mercado editorial brasileiro6. Enquanto as coleções
comercializadas por editoras de grande expressão como FTD, Ática e Scipione7 apostam
em materiais coloridos, recheados de exercícios diferenciados de uma lição para a outra,
focando também no ensino da ortografia, além do traçado das letras, chama a atenção o
monocromatismo e a repetição das propostas do material produzido pelo IAB.
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Fig. 11 e 12: Da esquerda para a direita, exemplo de atividades, respectivamente, dos livros “Assim se
aprende caligrafia” (RANDO e SANTOS, 2006, p. 18) e “No capricho” (CARPANEDA e BRAGANÇA,
2005, p. 17)
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6 Analiso outras coleções em minha dissertação de mestrado, em fase de conclusão no presente momento.
Cf.: CAMINI, Patrícia. Terapia da linhas: um estudo sobre modos de disciplinamento da escrita. Porto Alegre:
UFRGS/PPGEDU, 2009. (Proposta de Dissertação de Mestrado)
7 Comparo as coleções para efeitos de análise acerca dos discursos que atravessam e constituem os materiais
didáticos aqui apresentados, sem olhá-los por uma perspectiva que situe um como mais apropriado que o
outro. Também é importante salientar que as coleções das editoras Ática, FTD e Scipione que são
apresentadas aqui referem-se aos volumes destinados ao 1º ano do Ensino Fundamental.
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A partir das considerações destacadas acima, cabe salientar que, pensando nos
estudos de Michel Foucault sobre o discurso (1999, 2008a, 2008b), ninguém é um falante
autônomo, dono de intenções comunicativas, mas é “a partir de uma ordem, a partir de um
sistema de produção do discurso, a partir de princípios de controle, seleção e exclusão que
atuam sobre [as] (re)produções de significados” que se entra no jogo das práticas
discursivas (DÍAZ, 1998, p. 15). Dessa forma, é possível apontarmos para a
filiação das discursividades sobre o ensino da escrita movimentadas pelo IAB como
pertencentes a outra ordem discursiva que não a que hegemonicamente vem ocupando
espaço para dizer como a escola deve se ocupar da caligrafia no Brasil. Em alguns países
europeus ou nos Estados Unidos, a preparação para a escrita através de exercícios
grafomotores nos moldes do que vem sendo proposto pelo IAB é comum e pouco
contestável. Em muitos artigos escritos por João Batista de Araújo e Oliveira8, idealizador
do Instituto, as “lições da experiência internacional” são bastante enfatizadas a partir da
confiança no mais alto desempenho desses países em testes como o PISA9, no qual o Brasil
vem obtendo índices que o colocam nas últimas colocações desse ranking.
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8 Entre outras publicações, cf.: OLIVEIRA, João Batista Araújo e. Reformas educativas: lições da experiência
internacional. Brasília: Câmara dos Deputados e Instituto Alfa e Beto, 2007, p. 145-172.
9 Programme for International Student Assessment.
Pelo que foi exposto até aqui, fica a sensação de certa atualidade da crítica que o
educador português Bernardino Lage fez em 1924 às propostas para o ensino da caligrafia,
majoritariamente realizadas em cadernos ou folhas soltas à época:
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Uma série de procedimentos articulados tendo em vista o sujeito que escreve: isso foi
o que vimos até aqui, olhando para o aparato didático do IAB para caligrafia. Como
tecnologias10, vimos que tais procedimentos são constituídos por uma rede de saberes que
procuram fazer o sujeito pensar sobre a sua própria escrita e a si mesmo enquanto sujeito
escritor, pois, ao mesmo tempo em que se mostra como devem ser grafadas as letras, em
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10 Utilizo
o termo tecnologia inspirada no trabalho de Nikolas Rose (2001, p. 38), que o define como “qualquer
agenciamento ou qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo
mais ou menos consciente”.
tempo e espaço adequados, mostra-se como não se deve grafá-las. Para isso, vislumbramos
aqui um pequeno recorte dos dispositivos organizados pelo maquinário escolar que produz
e ao mesmo tempo responde a uma exigência cultural de enquadrar determinadas escritas
em um jogo de verdade entre o que pode ser considerado normal ou patológico ao iniciar-
se na escrita. Mede-se o modo de segurar os instrumentos da escrita, a pressão empregada
sobre eles, a postura daquele que escreve e, prioritariamente, prescreve-se um trabalho
contínuo sobre si mesmo em comparação com as escritas-referência oferecidas pelos livros.
Insucessos nesse percurso de A a Z estão previstos: disgrafia, disortografia, dislexia e
outros conjuntos de características avessas a tais proposições escolares já foram
catalogadas por um conjunto de saberes psico-médicos e vigiam constantemente as
fronteiras que separam as escritas normais das escritas ameaçadoras.
E não se trata apenas das escritas infantis. Nesse caso, as receitas médicas servem
como exemplo: quem já não se deparou com uma receita indecifrável até para os olhares
treinados dos balconistas das farmácias? O perigo que separa um remédio de um veneno,
oferecido pelas escritas ilegíveis dos receituários médicos, nos mostra que, mesmo havendo
margens para a invenção pessoal sobre as próprias escritas, elas necessitam ter sempre à
vista a norma. Como exemplo, cito a lei nº 5.911, de 1973, em seu artigo 35, que dispunha
o seguinte sobre o receituário médico:
Art. 35 - Somente será aviada a receita:
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DÍAZ, Mario. Foucault, docentes e discursos pedagógicos. In: SILVA, Tomaz Tadeu
(Org.) Liberdades reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 14-29.
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fôrma para depois passar para a cursiva. Revista Nova Escola, São Paulo, novembro,
2008, Na dúvida, p. 24.
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Acesso em: janeiro de 2010
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RANDO, Lizette Geny; SANTOS, Sonia Aparecida dos. Assim se aprende caligrafia.
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http://www.alfaebeto.org.br/
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