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NORMALIZANDO AS ESCRITAS INFANTIS:


A CALIGRAFIA DO ALFA E BETO

NORMALIZING CHILDREN WRITINGS: HANDWRITING


TEACHING IN THE ALFA E BETO EXERCISE BOOKS

Patrícia Camini1

RESUMO: Utilizando contribuições dos estudos de Michel Foucault, o artigo analisa a


coleção “Letras e formas”, produzida pelo Instituto Alfa e Beto, para o ensino da caligrafia
para crianças alfabetizandas. São discutidas e determinadas regularidades discursivas
pinçadas na análise do material, procurando conexões que permitam visibilizar a
possibilidade de emergência de tais regularidades na escola de hoje, assim como suas
funcionalidades. Ao final, o material analisado é discutido como parte de um maquinário de
tecnologias produzido especialmente pela escola para normalizar as escritas infantis.
Palavras-chave: Caligrafia; Escrita; Alfa e Beto; Normalização.

ABSTRACT: Using contributions of the studies of Michel Foucault, the article analyses
the collection “Letters and forms”, produced by the Institute Alfa e Beto, for the teaching
of the handwriting for children in the process of literacy. There are discussed determined
discursive regularities picked up in the analysis of the material, looking for connections that
allow to show the possibility of emergence of such regularities in today’s school, as well as
its functions. To the end, the analyzed material is discussed as part of a machinery of
technologies produced specially by the school to bring the childlike writings to normal.
Key words: Handwriting; Writing; Alfa e Beto; Normalization.

1. INTRODUÇÃO: ALFA E BETO NO RS E SUA PROPOSTA PARA O


ENSINO DA CALIGRAFIA

Com o ingresso de crianças aos seis anos no Ensino Fundamental, a partir da


ampliação desse nível de ensino de oito para nove anos na rede pública estadual do Rio
Grande do Sul em 2007, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) implementou um
programa de testagem de três propostas de alfabetização formuladas por organizações não
governamentais2. O programa, intitulado “Projeto piloto para alfabetização de crianças aos
seis anos”, foi aplicado em seiscentas turmas de 1º ano durante o ano de 2007. A testagem
comparou o desempenho dos alunos alfabetizados com o uso do material didático de cada
ONG com o desempenho de alunos participantes de turmas de controle, alfabetizados sem

Patrícia Camini
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intervenção do programa, com o objetivo inicialmente divulgado de formular uma matriz


de habilidades e competências que orientasse o trabalho esperado em turmas de 1º ano.
______
1 Pedagoga e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), sob orientação da Profª. Drª. Iole Maria Faviero Trindade. Membro do Núcleo de
Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO). E-mail: patrícia_camini@globo.com
2 Além do Instituto Alfa e Beto, as outras duas ONGs participantes do Projeto piloto são o Instituto Ayrton

Senna e o Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia de Ensino e Ação (GEEMPA).

Uma das três ONGs contratadas pela Seduc foi o Instituto Alfa e Beto (IAB), com
sede em Brasília, criado em 2006 pelo psicólogo e estudioso em questões educacionais
referentes à alfabetização João Batista Araújo e Oliveira. Em 2008, com a divulgação dos
resultados das testagens aplicadas às turmas participantes do Projeto-Piloto, o Instituto
destacou-se por ter alcançado o maior índice de acertos na prova envolvendo
conhecimentos de leitura e escrita. Tal índice, tão alarmado por colunistas de jornais e
revistas de grande circulação3, é mostrado no estudo de Schineider (2009) como uma
diferença de apenas 1,3 questão, de um total de 20, em relação ao desempenho dos alunos
alfabetizados pela metodologia do Instituto Ayrton Senna, que ficou em 2º lugar.
Schineider (id.) também apontou o amplo complexo didático produzido pelo
Instituto Alfa e Beto com vistas à alfabetização, o qual é distribuído às escolas participantes
do Projeto. Ao consultar o portal virtual do Instituto4, percebo a ampliação do complexo
de materiais analisados por Schineider. Faço tal afirmação tendo em vista que materiais já
existentes antes de 2009 foram organizados em novas coleções, às quais foram agregados
novos materiais. Entre esses materiais, encontra-se uma coleção intitulada “Grafismo e
caligrafia”, reeditada com esse nome a partir de 2009. No entanto, os materiais para
caligrafia distribuídos pelo Instituto às escolas gaúchas até o ano de 2009 foram os editados
até 2008, chamados de “Livro 1: letras e formas” e divididos em dois volumes: o primeiro
visando o ensino das letras de fôrma e o segundo, das letras cursivas. Nas escolas gaúchas,
os dois primeiros volumes foram disponibilizados às turmas de 1º ano e sua utilização ficou
a critério dos professores, já que tenho notícias de escolas que utilizaram os dois volumes
com turmas de 1º ano e de escolas que optaram por utilizar o primeiro volume com turmas
de 1º ano, deixando o ensino da letra cursiva para o 2º ano. E é por sua intensa circulação
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em escolas do Rio Grande do Sul, não apenas as pertencentes à rede pública de ensino, já
que há notícias de que muitas escolas particulares também compraram materiais didáticos
do IAB, que analiso nas seções seguintes as tecnologias colocadas em funcionamento pelos
materiais em questão com vistas a ensinar os alunos a caligrafar.

______
3 Confira, por exemplo: http://veja.abril.com.br/gustavo_ioschpe/index_240408.shtml/ Acesso em: janeiro
de 2010
4 Cf.: http://www.alfaebeto.org.br/

Fig. 1 e 2: Capas dos livros “Letras e formas”, do Instituto Alfa e Beto (2008)

2. EDUCANDO OS GESTOS: PRIMEIRO COM LETRA DE FÔRMA E DEPOIS


COM LETRA CURSIVA

Até quando o aluno deve “escrever do seu jeito”, como vemos muitos professores
orientarem os alunos em processo de alfabetização? É importante ensinar a escrever de
forma cursiva? Quando? Perguntas como as que escolhi para iniciar esta discussão são
correntes entre professores que atuam nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Para
dar conta dessa problemática nas escolas, múltiplas são as táticas que poderiam figurar
como exemplo nessa introdução: há os que iniciam os alunos na arte da escrita utilizando
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os chamados “blocões” para desenho, que permitiriam uma expressão mais livre, menos
regrada, por parte da criança; progressivamente, vão sendo introduzidas linhas com grosso
espaço entre si, até chegar ao caderno dito “universitário”, com as linhas no tamanho
padrão que hoje conhecemos. Também há escolas que entendem ser mais pertinente
alfabetizar as crianças utilizando a letra cursiva, mais rápida e mais legível. Para isso, o
ensino da caligrafia quanto mais cedo fosse iniciado, menos problemas a criança teria para
lidar com o caderno. Tal prática não se dá sem uma certa dose de críticas por parte dos que
se filiam aos discursos psicogenéticos que postulam como essencial o uso de letras soltas
(de fôrma ou script) na alfabetização, tendo em vista que a criança utilizaria entre seus
critérios de raciocínio sobre a escrita a quantidade e a variedade de caracteres grafados ao
escrever. Com o uso da escrita cursiva, o raciocínio sobre a quantidade de caracteres
escritos poderia ficar comprometido pela emenda entre as letras, como aconselha a
especialista Cristiane Pelissari, ouvida pela Revista Nova Escola em novembro de 2008, a
partir da pergunta “Por que as crianças devem escrever com letra de fôrma para depois
passar para a letra cursiva?”:
Esta escolha está relacionada ao processo de construção das hipóteses da escrita.
Durante a alfabetização inicial, os pequenos trabalham pensando quais e quantas
letras são necessárias para escrever as palavras. As letras de fôrma maiúsculas
são as ideais para essa tarefa, já que são caracteres isolados e com traçado
simples - diferentemente das cursivas, emendadas umas às outras. O
aprendizado das chamadas "letras de mão" deve ser trabalhado com crianças
alfabéticas, que já têm a lógica do sistema de escrita organizada (p. 24).

Para o IAB, o percurso de aprendizagem da grafia das letras também deve ser o
mesmo: das letras de fôrma às letras cursivas, mas por uma questão de gradação da
complexidade dos movimentos exigidos. A presença de exercícios que exploram
movimentos básicos envolvidos no traçado das letras de fôrma, apresentando
primeiramente exercícios que exigem movimentos em várias direções para, depois, aplicar
esses movimentos ao traçado das letras, encontra conexões com os postulados de estudos
de psicomotricidade. A psicomotricidade transita entre as áreas da educação e da saúde e,
de acordo com a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade5, trata-se da

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ciência que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo
em movimento e em relação ao seu mundo interno e externo. Está
relacionada ao processo de maturação, onde o corpo é a origem das
aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. É sustentada por três
conhecimentos básicos: o movimento, o intelecto e o afeto.
Psicomotricidade, portanto, é um termo empregado para uma concepção
de movimento organizado e integrado, em função das experiências
vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua
linguagem e sua socialização.

Há largos anos a pedagogia vem se servindo desses estudos para constituir


propostas de ensino da escrita. Stephanou (2000, p. 4) mostra que no início do século XX,
no Brasil, houve uma “extensão dos saberes médico-fisiológicos para o campo
pedagógico”, o que resultou em críticas aos métodos empregados nas escolas e em
prescrições sanitárias por parte dos médicos às práticas escolares. No caso da escrita, que
recentemente era alvo de maiores atenções nas escolas brasileiras, que até então
privilegiavam o ensino da arte da leitura, o tipo de letra foi alvo de prescrições tendo em
vista a prevenção de moléstias advindas de posturas incorretas. Como pegar o lápis e como
sentar-se à cadeira cada vez mais passou a ser alvo de cuidados por parte da escola, agora
com o amparo de um discurso fisiologista.
Em texto disponível no portal na internet do IAB, Oliveira (2009) aponta como
fundamental o ensino do modo de pegar o lápis:

______
5 Cf.: http://www.psicomotricidade.com.br/apsicomotricidade.htm Acesso em 14 de jan. de 2010
Imagine uma escola profissional de eletricistas ou cozinheiros. As
primeiras aulas dessas escolas são sempre iguais: o uso dos instrumentos
de trabalho. Imagine um agricultor que não aprendeu a usar a enxada
corretamente. Ou um atleta que não sabe como cuidar de seus músculos.
Não é diferente nas questões de postura e de pegar no lápis. Um aluno
típico deverá ficar na escola durante 15 anos ou mais. Ensinar a postura
correta para sentar e escrever e a usar o instrumento central do trabalho
escolar, o lápis, deve ser função primordial do professor. Trata-se de um
princípio básico de ergonomia e saúde física.

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A premissa de que há a necessidade de ensinar a criança a usar o instrumento de escrita a


partir do refinamento de seus gestos ganha visibilidade em exercícios como os que
propõem o traçado em diversas direções, chamados de psicomotores:

Fig. 3: Atividade do volume 1 do livro “Letras e formas” (2008, p.2)

No Brasil, atividades escolares de treino de habilidades gráficas para o ensino da


escrita, com ênfase em atividades que promovam a discriminação de semelhanças e
diferenças entre figuras, a orientação espacial, a formação da progressão esquerda-direita,
entre outras, emergiram fortemente a partir da implementação dos Testes ABC, formulado
por Lourenço Filho na década de 1930, em intenso trabalho de costura de contribuições da
psicologia ao campo da pedagogia. Preocupado com o alto índice de reprovação de alunos
na 1ª série da escolarização, Lourenço Filho organizou uma série de testes que procuravam
verificar o nível de habilidades das crianças em diferentes áreas, como visomotora e
auditivomotora, de forma que fosse possível organizar os alunos em turmas homogêneas
em suas habilidades, visando possivelmente favorecer a alfabetização. A grande circulação
dos Testes ABC entre os educadores, não só brasileiros mas também estrangeiros, sugere
uma organização da prática pedagógica para preparar as crianças para esse tipo de teste.

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Não é exagero pensarmos que, ao mesmo tempo em que um teste aplicado sobre qualquer
nicho populacional procura aferir em linguagem matemática o potencial de cada indivíduo,
ele também coloca em funcionamento o que é tido como referência ou, em outras palavras,
como normal para os conhecimentos aferidos. Assim, nas cartilhas contemporâneas aos
Testes ABC, veremos uma crescente incorporação de atividades de discriminação visual. É
possível localizar efeitos desses discursos também em manuais direcionados à pré-escola,
como o de autoria de Lia Dalva Grosso e de Telma Bellotti, de grande vendagem na década
de 1970. Abaixo, a imagem ilustra algumas das orientações dessas autoras para preparar a
criança pré-escolar para a escrita.

Fig. 4 e 5: Capa e exemplo de lição do manual de Grosso e Bellotti (1978)

É interessante reparar na disposição das atividades ao longo dos dois livros de


caligrafia do IAB. É pressuposto comum, desde a época comeniana, a colocação das
atividades em séries crescentes de dificuldade. Tal composição procura ir delineando os
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gestos da escrita gradualmente: quando supostamente determinado gesto já foi bem


treinado, é inserido um novo movimento. Esse é um fator interessante a ser destacado:
diferentemente da escola do século XIX no Brasil, que muitos registros retratam o ensino
da caligrafia conforme as parecenças no traçado das letras, como era comum na iniciação
ao ofício de calígrafo, no século XX veremos uma homogeneidade das propostas para
caligrafia partindo da letra A à letra Z. Os materiais do IAB seguem essa tendência, nas
palavras de Oliveira (2009), porque haveria “vantagens de ensinar as letras na ordem
alfabética do ponto de vista da motivação, [já que] o aluno vai verificando o domínio
progressivo da sequência alfabética” (s/p).O enquadramento das letras em linhas também é
progressivo. No volume 1, primeiramente são propostas atividades de cobrir o pontilhado
das letras sem o enquadramento por linhas; em seguida, começam a aparecer atividades que
propõem cobrir o pontilhado das letras e, em seguida, imitar a mesma grafia em uma linha
abaixo. O enquadramento passa a ser feito com linhas que procuram delimitar um limite
inferior e um limite superior para as letras de forma; e, por fim, aparecem os exercícios que
vão gradualmente inserindo uma linha intermediaria que recorta os limites superior e
inferior, indicando um novo ponto de referência que também deve ser levado em
consideração para a distribuição do traçado da letra.

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Fig. 6: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 1 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 21)

Fig. 7: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 1 do livro


“Letras e formas” (2008, p. 22)

Já no volume 2, as linhas para o ensino das letras cursivas seguem um mesmo


padrão do início ao final do livro. Em relação às últimas lições do volume 1, há o acréscimo
de mais uma linha intermediária entre os limites superior e inferior dos traçados, destinadas
a separar simetricamente o espaço de cada parte das letras. As imagens abaixo ilustram a
progressão dessa tecnologia montada para disciplinar o grafismo infantil através das linhas.

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Fig. 8: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 9)

Fig. 9: Exemplo de progressão das atividades com linhas no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 93)

Como novidade em relação ao volume 1, que investia em traçados com


movimentos aleatórios e nos traçados das letras, o volume 2 propõe exercícios com letras e
famílias silábicas inicialmente e, aos poucos, palavras e frases vão sendo introduzidas
concomitantemente à apresentação das letras cursivas minúsculas e maiúsculas. É

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interessante destacar também que, até a metade desse volume, cada lição é intercalada por
um exercício como o que a imagem abaixo mostra.

Fig. 10: Exemplo de atividade presente frequentemente no volume 2 do livro “Letras e formas”
(2008, p. 14)
Ao olhar os materiais do IAB voltados ao ensino da caligrafia, cabem algumas
palavras quanto à radical diferença de sua proposta em relação aos demais materiais para o
mesmo fim disponíveis no mercado editorial brasileiro6. Enquanto as coleções
comercializadas por editoras de grande expressão como FTD, Ática e Scipione7 apostam
em materiais coloridos, recheados de exercícios diferenciados de uma lição para a outra,
focando também no ensino da ortografia, além do traçado das letras, chama a atenção o
monocromatismo e a repetição das propostas do material produzido pelo IAB.

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Fig. 11 e 12: Da esquerda para a direita, exemplo de atividades, respectivamente, dos livros “Assim se
aprende caligrafia” (RANDO e SANTOS, 2006, p. 18) e “No capricho” (CARPANEDA e BRAGANÇA,
2005, p. 17)

______
6 Analiso outras coleções em minha dissertação de mestrado, em fase de conclusão no presente momento.
Cf.: CAMINI, Patrícia. Terapia da linhas: um estudo sobre modos de disciplinamento da escrita. Porto Alegre:
UFRGS/PPGEDU, 2009. (Proposta de Dissertação de Mestrado)
7 Comparo as coleções para efeitos de análise acerca dos discursos que atravessam e constituem os materiais

didáticos aqui apresentados, sem olhá-los por uma perspectiva que situe um como mais apropriado que o
outro. Também é importante salientar que as coleções das editoras Ática, FTD e Scipione que são
apresentadas aqui referem-se aos volumes destinados ao 1º ano do Ensino Fundamental.

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Fig. 13: Exemplo de atividade do livro “Marcha criança”


(MARSICO e NETO, 2004, p. 15 )

A partir das considerações destacadas acima, cabe salientar que, pensando nos
estudos de Michel Foucault sobre o discurso (1999, 2008a, 2008b), ninguém é um falante
autônomo, dono de intenções comunicativas, mas é “a partir de uma ordem, a partir de um
sistema de produção do discurso, a partir de princípios de controle, seleção e exclusão que
atuam sobre [as] (re)produções de significados” que se entra no jogo das práticas
discursivas (DÍAZ, 1998, p. 15). Dessa forma, é possível apontarmos para a
filiação das discursividades sobre o ensino da escrita movimentadas pelo IAB como
pertencentes a outra ordem discursiva que não a que hegemonicamente vem ocupando
espaço para dizer como a escola deve se ocupar da caligrafia no Brasil. Em alguns países
europeus ou nos Estados Unidos, a preparação para a escrita através de exercícios
grafomotores nos moldes do que vem sendo proposto pelo IAB é comum e pouco
contestável. Em muitos artigos escritos por João Batista de Araújo e Oliveira8, idealizador
do Instituto, as “lições da experiência internacional” são bastante enfatizadas a partir da
confiança no mais alto desempenho desses países em testes como o PISA9, no qual o Brasil
vem obtendo índices que o colocam nas últimas colocações desse ranking.
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______
8 Entre outras publicações, cf.: OLIVEIRA, João Batista Araújo e. Reformas educativas: lições da experiência
internacional. Brasília: Câmara dos Deputados e Instituto Alfa e Beto, 2007, p. 145-172.
9 Programme for International Student Assessment.

Pelo que foi exposto até aqui, fica a sensação de certa atualidade da crítica que o
educador português Bernardino Lage fez em 1924 às propostas para o ensino da caligrafia,
majoritariamente realizadas em cadernos ou folhas soltas à época:

De papel completamente pautado, inclusivamente com linhas indicativas


da direcção e das proporções das letras, quási todos, senão todos,
adoptam, a princípio, o processo de cobrir. Vão depois substituindo êsse
processo pelo de imitação, não chegando, porém, nunca a efectivar-se
completamente essa substituição. Conservam sempre, pelo menos o
pautado e as linhas a que acima nos referimos, não deixando nunca aos
alunos a iniciativa e o esforço necessários ao seu completo
desenvolvimento. E como se isto não fôra motivo suficiente para
condenar o largo uso que se faz de tais cadernos, têm também a
condená-los a monotonia que trazem ao ensino e ao isolamento a que
geralmente arrastam o aluno (LAGE, 1924, p. 71-72).

É evidente a continuidade maciça dos procedimentos de cobrir e imitar no ensino


da caligrafia. Quanto ao que poderia ser entendido como “novidades” no ensino da
caligrafia, trata-se mesmo de considerar a agora hegemônica presença das editoras nesse
nicho das práticas pedagógicas. O caderno de caligrafia cada vez menos é visto à venda nas
papelarias e outras lojas de comércio de material escolar. Em compensação, há vasta
quantidade de livros de caligrafia à venda, assim como revistas para a atividade caligráfica
infantil em caráter mais doméstico do que escolar à venda em bancas de jornais e revistas.
Essa constatação nos sugere uma espécie de “encartilhamento tardio” da prática da
caligrafia, já que, ao final do século XIX e início do século XX, como mostra o estudo de
Trindade (2004), as cartilhas focavam no ensino da arte da leitura e somente aos poucos
iniciaram a incorporação de atividades de escrita, especialmente pela cópia de letras,
palavras e frases.

3. NORMALIZANDO AS ESCRITAS INFANTIS: FINALIZANDO A ANÁLISE

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Uma série de procedimentos articulados tendo em vista o sujeito que escreve: isso foi
o que vimos até aqui, olhando para o aparato didático do IAB para caligrafia. Como
tecnologias10, vimos que tais procedimentos são constituídos por uma rede de saberes que
procuram fazer o sujeito pensar sobre a sua própria escrita e a si mesmo enquanto sujeito
escritor, pois, ao mesmo tempo em que se mostra como devem ser grafadas as letras, em

______
10 Utilizo
o termo tecnologia inspirada no trabalho de Nikolas Rose (2001, p. 38), que o define como “qualquer
agenciamento ou qualquer conjunto estruturado por uma racionalidade prática e governado por um objetivo
mais ou menos consciente”.

tempo e espaço adequados, mostra-se como não se deve grafá-las. Para isso, vislumbramos
aqui um pequeno recorte dos dispositivos organizados pelo maquinário escolar que produz
e ao mesmo tempo responde a uma exigência cultural de enquadrar determinadas escritas
em um jogo de verdade entre o que pode ser considerado normal ou patológico ao iniciar-
se na escrita. Mede-se o modo de segurar os instrumentos da escrita, a pressão empregada
sobre eles, a postura daquele que escreve e, prioritariamente, prescreve-se um trabalho
contínuo sobre si mesmo em comparação com as escritas-referência oferecidas pelos livros.
Insucessos nesse percurso de A a Z estão previstos: disgrafia, disortografia, dislexia e
outros conjuntos de características avessas a tais proposições escolares já foram
catalogadas por um conjunto de saberes psico-médicos e vigiam constantemente as
fronteiras que separam as escritas normais das escritas ameaçadoras.
E não se trata apenas das escritas infantis. Nesse caso, as receitas médicas servem
como exemplo: quem já não se deparou com uma receita indecifrável até para os olhares
treinados dos balconistas das farmácias? O perigo que separa um remédio de um veneno,
oferecido pelas escritas ilegíveis dos receituários médicos, nos mostra que, mesmo havendo
margens para a invenção pessoal sobre as próprias escritas, elas necessitam ter sempre à
vista a norma. Como exemplo, cito a lei nº 5.911, de 1973, em seu artigo 35, que dispunha
o seguinte sobre o receituário médico:
Art. 35 - Somente será aviada a receita:

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a) que estiver escrita a tinta, em vernáculo, por extenso e de modo


legível, observados a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas
oficiais;
b) que contiver o nome e o endereço residencial do paciente e,
expressamente, o modo de usar a medicação;
c) que contiver a data e a assinatura do profissional, endereço do
consultório ou da residência, e o número de inscrição no respectivo
Conselho profissional.

A leitura da legislação nos remete também à preocupação com o caráter localizável


do sujeito que possa prescrever um receituário com caligrafia ilegível. Registros como
nome, endereço e número de inscrição no órgão regulador da categoria profissional dão um
exemplo de que não se trata apenas da forma: dependendo do potencial de ação sobre a
vida dos outros, mais localizáveis devem ser os sujeitos, que devem estar autorizados a
exercer essa função por instituições que por largos anos irão atestar que eles estão
preparados para exercer tal poder sobre os outros. No caso de infrações nessa rota, como a
falsificação de receituário, a assinatura pode trazer indícios à perícia grafoscópica, tão
desenvolvida no século XX.
A escrita, assim, nos traz informações sobre os sujeitos. A intersecção cada vez
maior entre a grafologia, a psicologia, a psiquiatria e a neurologia vão produzindo uma rede
de saberes que envolvem a leitura da personalidade de cada indivíduo pelo modo de calcar
o lápis, pelo calibre, pela proporção, pelo espaçamento de seus caracteres escritos. Cada
traço pode enquadrá-lo em uma rede de referências que pretendem ler suas disposições
comportamentais. Empresas, com a operacionalização de departamentos para gerir
recursos humanos no início do século XX, cada vez mais lançaram mão da grafologia como
tática para recrutar profissionais apostando em um risco menor de desvio das disposições
comportamentais esperadas para cada vaga disponível.
A via é de mão dupla: há uma escola que produz e que é produzida por
necessidades como as que foram panoramicamente discutidas neste espaço. Escrever
legivelmente, o que inclui escrever proporcionalmente, higienicamente, da esquerda para a
direita, enfim, está na ordem do dia. Normalizar as escritas infantis por um aparato de
regulação escolar significa investir no controle dos riscos que as escritas fora de um nível de
normalidade possam gerar à sociedade.
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Escrever legivelmente é uma norma. Todos os materiais didáticos voltados para a


caligrafia investem nisso porque é produtivo: permite ao sujeito adentrar nessa curva de
normalidade que, para dar um exemplo corriqueiro, o levará a não ser reprovado em um
concurso, como o vestibular, por sua escrita não ser legível aos corretores, como expressa o
edital do concurso para vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2010,
em seu item 5.15.5: “O texto da Redação deverá ser elaborado com letra legível,
respeitando o número mínimo de linhas estabelecido no caderno de provas, e não deverá
ultrapassar o limite das linhas constantes na folha de respostas” (p. 6).
Materiais diferentes, com o mesmo objetivo. Os caminhos é que são diferentes. No
entanto, isso deve ser motivo de atenção, pois, tomando a reflexão de Marzola (2002, s/p)
para os métodos de alfabetização como inspiração para pensar as metodologias para o
ensino de caligrafia, o que está em jogo é a produção de “formas diferentes de pensar, que
tem a ver com os requisitos sociais num determinado momento histórico”. Regras e
princípios sobre a escrita como os que mostrei em funcionamento nos exercícios de
caligrafia propostos pelo Alfa e Beto nos permitem enxergar não só o que se espera da
escrita das crianças mas também nos permite investigar, a partir desse pequeno elemento
do cotidiano escolar, como a prática da caligrafia, conexões com linhas mais gerais que
funcionam em diferentes paisagens constituindo comportamentos escritores. Escritores
que cada vez mais farão uso de tecnologias digitais para se relacionar com a escrita. E esse é
mais um desafio da escrita manuscrita em um tempo em que lemos cada vez mais letras
soltas do eclético cardápio de fontes tipográficas oferecido pelas tecnologias: por quais
transformações passará o ensino da escrita cursiva nas escolas em meio à convivência com
as escritas digitais?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Patrícia Camini
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Patrícia Camini

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