Aventuras Na História - Martinho Lutero - Janeiro.2021
Aventuras Na História - Martinho Lutero - Janeiro.2021
Aventuras Na História - Martinho Lutero - Janeiro.2021
A SAGA DO NAVIO
ALEMÃO QUE TENTOU
SALVAR 937 JUDEUS
NO ACRE, O SURTO
DA BORRACHA QUASE
NOS LEVOU À GUERRA
BANHOS: UMA
TRADIÇÃO POLÊMICA,
CURIOSA E MILENAR
MARTINHO LUTERO
HÁ 500 ANOS, O TEÓLOGO ALEMÃO ERA
EXCOMUNGADO PELA IGREJA CATÓLICA, UMA ORDEM
QUE PODE SER REVOGADA AINDA NESTE MÊS
PRESIDENTE
Luis Fernando Maluf
DIRETOR EDITORIAL:
Pablo de la Fuente
EDIÇÃO:
Izabel Duva Rapoport
EDIÇÃO DE ARTE:
Marli Miler
REVISÃO:
Hellen Ribeiro
MARTINHO LUTERO
HÁ 500 ANOS, O TEÓLOGO ALEMÃO ERA
EXCOMUNGADO PELA IGREJA CATÓLICA, UMA ORDEM
QUE PODE SER REVOGADA NESTE MÊS
EDIÇÃO 212
SÃO PAULO
EDITORA CARAS
2021
EDITORIAL
GESTO DE UNIÃO
U
m grupo de teólogos alemães tem se melhor, vêm de todas as partes do planeta,
dedicado a pedir ao Vaticano e à Fe- tanto de católicos quanto de luteranos, com
deração Luterana Mundial que for- apoio até de ateus – prova de que o gesto
taleçam o diálogo entre as Igrejas Católica simbólico tem valor não só para o ecume-
e Protestante para possibilitar ao atual papa nismo, mas também para a humanidade.
que revogue a excomunhão de Martinho Contar os fatos que levaram à excomu-
Lutero, ordenada há exatos 500 anos pelo nhão de Lutero no dia 3 de janeiro de 1521
papa Leão X. O ato da possível revogação é a proposta da primeira capa do ano. Um
(que não ocorreu até o fechamento desta tema que vai além da efemeridade da data,
edição de AVENTURAS NA HISTÓRIA), trazendo à tona um esperançoso laço his-
embora simbólico, se destaca, pois pode tórico entre doutrinas – que, mesmo com
representar o fim de conflitos e desconfor- as diferenças, só têm a ganhar.
tos que existem e persistem, há cinco sécu- Feliz Ano Novo!
los, entre fiéis do mesmo Cristo.
Esta não é a primeira vez que estudiosos
apelam para a anulação do episódio que
condenou o ex-monge alemão. No entanto, Izabel Duva Rapoport
os pedidos de revogação só aumentam e, o Editora
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SUMÁRIO
30
CAPA: HÁ 500 ANOS,
MARTINHO LUTERO
ERA EXCOMUNGADO
PELO PAPA LEÃO X.
HOJE, TEÓLOGOS
BATALHAM PELA
REVOGAÇÃO DO ATO
6 GALERIA
Arte finlandesa 18 LINHA DO TEMPO
Os samurais 24 BRASIL 54
PERSONAGEM
IMAGENS CAPA GETTY IMAGES; SUMÁRIO CARL SIMON/UNITED ARCHIVES/UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY IMAGES
12
o Acre a uma série de conflitos WALDMAN
HOJE NA por sete séculos
HISTÓRIA entre o Brasil e a Bolívia
Aconteceu em janeiro
20 ILUSTRADA 56
14 COMO FAZÍAMOS
A construção do
Cristo Redentor no 40 GUERRA COLUNA
RICARDO
SEM Rio de Janeiro A saga do navio que tentava
Anestesia salvar judeus dos nazistas, mas LOBATO
17 58
DÚVIDA CRUEL MEMÓRIA Públicos ou privados, sagrados CARVALHO
Onde foram Os jardins do Vale ou profanos, os banhos são
parar os negros do Anhangabaú no uma tradição milenar
da Argentina? centro de São Paulo
GALERIA
ARTE FINESA
8 AVENTURAS NA HISTÓRIA
SAFÁRI AFRICANO
A jornada do pintor finlandês
Gallen-Kallela pela África
Oriental britânica, em Nairóbi
(atual Quênia), começou em
1888, quando ainda era um
jovem artista. Mas foi só duas
décadas depois, em 1909, que
ele registrou uma série de obras
consideradas de “renovação”.
Isso porque sua ida ao lugar pela
segunda vez foi vista como a
fuga de um artista de meia-idade
do seu próprio meio, cuja arte –
já modernista e contemporânea
– não lhe agradava. No fim, a
viagem transformou seu lado
conservador em paisagens
vívidas e quase abstratas, bem
diferentes do seu passado.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 9
GALERIA
COLÔNIA
DE ARTISTAS
Anos depois, já com quase 50
anos de idade, Gallen-Kallela
foi para os Estados Unidos em
busca de novas inspirações. De
lá, em 1924, foi para uma colônia
de artistas em Taos, no Novo
México, fundada pela americana
Mabel Dodge Luhan (1879-1962),
uma rica patrona das artes. Ao
lado da esposa e filha, o finlan-
dês passou sete meses numa
casa bem na fronteira de uma
reserva indígena, onde pintou
paisagens montanhosas e cheias
de neve, além de retratar o povo
local e detalhes da vida cotidiana
– sempre em tons vibrantes,
refletindo a luz da região.
10 AVENTURAS NA HISTÓRIA
IMAGENS EUROPEANA
AVENTURAS NA HISTÓRIA 11
HOJE NA HISTÓRIA
ACONTECEU 1 Rebeldes
comandados
1959 por Fidel
EM JANEIRO
Castro tomam Havana,
e o ditador Fulgêncio
Batista deixa o país.
A revolução marcou
o início da hegemonia
de Fidel no poder.
6 Alexandre I, rei do
Reino dos Sérvios,
1929 Croatas e Eslovenos,
7 Registrada
a patente de
1714 um aparelho
8 No dia em que
completava 19
1954 anos, o jovem
9 Juízes começam
a investigar
1431 as acusações
instaura a Ditadura capaz de imprimir letras Elvis Presley pagava no julgamento de Joana
de 6 de Janeiro. Ele diretamente no papel, 4 dólares para gravar d'Arc, em Rouen, posto
suspendeu a Constituição, uma após a outra. duas canções num estúdio de ocupação do governo
dissolveu o Parlamento Assim, o inventor britânico de Memphis. Isso daria inglês na França.
e alterou o nome do país Henry Mill dava origem origem à sua carreira.
para Reino da Iugoslávia. à máquina de escrever.
10 O metrô de
Londres, o
1863 primeiro do
11
532
Torcedores dos
jogos romanos
começam a
12 A Royal
Aeronautical
1866 Society, a
13 Émile Zola
publica J’Accuse,
1898 atacando
mundo, começa a Revolta de Nika, para primeira instituição científica o governo francês
funcionar. Os trens eram derrubar o imperador aeroespacial do mundo, por antissemitismo,
movidos a vapor e foram Justiniano I. O protesto é fundada em Londres. por condenar um oficial
criados para tentar diminuir durou sete dias e foi Seriam necessários do Exército acusado de
o tráfego dos veículos contido depois da morte mais quase 40 anos traição, o caso Dreyfuss.
puxados por cavalos. de 30 mil pessoas. até os primeiros aviões.
14378
O general maia
Siyaj K’Ak’
conquista a
15 Quase 400
anos depois
1976 da abertura
16 A família
Médici se torna
1412 a responsável
17 Nasce o
boxeador
1942 americano Cassius
importante cidade de do primeiro terreiro, o pelas finanças da Igreja Clay, mais conhecido
Tikal, na atual Guatemala, candomblé é reconhecido Católica. Ao longo como Muhammad Ali.
e começa a substituir na Bahia como religião. das décadas seguintes, Campeão dos pesos-
os líderes das cidades- Com isso, coloca-se três membros da dinastia pesados, ele também
estado do território. um fim às perseguições se tornariam papas. foi ativista pelos direitos
policiais aos fiéis. civis. Morreu em 2016.
12 AVENTURAS NA HISTÓRIA
18 Agindo em nome
de seu país,
1670 o corsário inglês
19 Bombardeios
de Zepelins
1915 alemães
20 Os Estados
Unidos anunciam
1980 boicote às
21 É publicada
a primeira
1846 edição do jornal
Henry Morgan captura a pequenas vilas Olimpíadas de Moscou, Daily News, em
a cidade do Panamá, da inglesas, causando em retaliação à invasão Londres, na Inglaterra.
Espanha. Acabaria indo quatro mortes e 16 dos soviéticos no O editor era o escritor
parar na cadeia, porque, feridos. É o primeiro Afeganistão. Outros 69 Charles Dickens.
sem saber, um acordo de ataque aéreo de países também não
paz tinha sido firmado. civis na História. participaram dos jogos.
22 O aborto é
legalizado nos
1973 Estados Unidos
depois de uma decisão
da Suprema Corte –
o Judiciário estabeleceu
que a 14ª emenda da
Constituição do país dá
esse direito às mulheres.
23
971
A Dinastia Sung
vence uma
batalha contra
as Tropas de Elefantes
de guerra da Dinastia
Han, na China. Foi a
estreia dos paquidermes
no Exército oriental.
24 O soldado
japonês Shoichi
1972 Yokoi é
25 A sífilis acaba
com a vida
1947 do gangster Al
26 Após o Cerco
de Recife,
1654 os holandeses
27 Simulação
de lançamento
1967 da Apollo 1,
encontrado em Guam, Capone, um dos maiores rendem-se aos na Flórida, dá início a um
no Oceano Pacífico. mafiosos da história portugueses e retiram-se incêndio que mata três
Ele passou 28 anos dos Estados Unidos. de Pernambuco, astronautas americanos:
perdido numa ilha e não Ele controlou o crime pondo fim a uma Edward White, Virgil
sabia que a Segunda organizado de Chicago ocupação de 24 anos. Grissom e Roger Chaffee.
Guerra já havia acabado. na década de 1920.
28 O livro Orgulho
e Preconceito,
1813 de Jane Austen,
29 Após um
duelo, morre
1837 baleado
30 O rei Carlos I
da Inglaterra é
1649 decapitado após
31 Durante uma
noite escura
1918 e coberta por
é publicado pela primeira o poeta e romancista falhar em sufocar a Guerra névoa na Escócia, oito
vez no Reino Unido. Austen russo Aleksandr Civil no país e se refugiar embarcações de guerra
IMAGEM GETTY IMAGES
recebeu apenas £ 110 Pushkin, em São na Espanha. Foi a primeira britânicas batem umas
pelo manuscrito, que, Petersburgo. Ele havia vez que um monarca contra as outras. Dois
hoje, é uma das maiores acusado o oponente europeu foi executado a submarinos afundam.
obras da literatura inglesa. de seduzir sua mulher. mando de um Parlamento.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 13
COMO FAZÍAMOS SEM
E
stá na Bíblia, logo no comecinho, que, – uma mistura de ópio e álcool (este último, um
quando Deus resolveu criar a mulher a soporífero tão antigo quanto Baco e o vinho).
partir da costela de Adão, induziu o pobre Na América pré-colombiana já se conhecia e
homem a um sono profundo. Essa pode se utilizava a propriedade anestésica de certas
ter sido a primeira anestesia. Porém, Ele dá, Ele plantas, por exemplo, com a mastigação das fo-
tira... Quando Eva comeu o fruto proibido, o lhas de coca, que era conhecida no idioma
mesmo Deus que poupou Adão condenou a pe- quéchua como kunka sukunka (goela adormeci-
cadora “a dar à luz em meio a dores” (Gênesis, da). Os jesuítas aprenderam a usar a coca para o
capítulo 3, versículo 16). A partir de então, a dor tratamento da dor de dentes (isso muito antes
passou a ser parte da condição humana, algo que que a substância fosse transformada, pela quími-
deve ser suportado e que pode ser até credencial ca, num poderoso narcótico). Com os índios, os
para recompensas na outra vida. Entre os que europeus aprenderam o uso de uma outra subs-
não pensavam assim estavam não apenas os que tância anestésica: o curare, do qual falava o ex-
sofriam na carne dores atrozes, mas também os plorador sir Walter Raleigh já no começo do sé-
primeiros médicos. Com eles nasceu a cirurgia culo 16. Essa substância, extraída da raiz da
e, com esta, a necessidade de aliviar as dores Strychnos toxifera, tem efeito paralisante e rela-
provocadas pelas rudimentares intervenções ci- xante sobre a musculatura, bem útil em cirurgias.
rúrgicas. Começa assim a história da anestesia.
O termo, que vem do grego (an, sem; esthesia, BIZARRO, MAS INDOLOR
sensibilidade), foi usado pela primeira vez por Mas nem só de plantas viveram os antigos anes-
volta do ano 50 pelo médico grego Dioscórides, tesistas. Um dos métodos mais exóticos era uti-
famoso por suas experiências com plantas. Ele lizado em 1 000 a.C. pelos médicos assírios. Eles
descobriu que a mandrágora (um tubérculo se- comprimiam a carótida (a artéria que leva sangue
melhante à batata) continha uma substância para o cérebro) do paciente, provocando um tran-
chamada hioscina, que possuía efeitos anestési- sitório – e perigoso – estado de coma, durante o
cos. Mas, mesmo antes dele, os gregos já conhe- qual realizavam procedimentos cirúrgicos. A
ciam o efeito anestésico de outras plantas, como compressão de um nervo também diminui a
o ópio, extraído da papoula; a maconha, extraída sensibilidade: é aquela sensação que temos quan-
da Cannabis, e o meimendro. No século 4 a.C., do, depois de muito tempo sentados, percebemos
o próprio “pai da medicina”, Hipócrates, usava a que a nossa perna “dormiu”. Esse adormecimen-
chamada esponja soporífera, que continha uma to era propositadamente provocado com o uso
mistura de ópio e mandrágora, para colocar seus de um garrote apertado.
pacientes a nocaute. Depois, para acordar o coi- O frio é igualmente anestésico e era usado, em
tado, recorria-se a uma esponja embebida em meados do século 16, por aquele que foi conside-
vinagre. A esponja soporífera continuou sendo rado o pai da cirurgia, o francês Ambroise Paré.
utilizada até o século 17 e o ópio foi usado até Ele usava gelo ou neve para congelar as partes do
recentemente, sob a forma de tintura ou láudano corpo do paciente antes de operá-lo. Ainda no
14 AVENTURAS NA HISTÓRIA
quesito bizarrices, um procedimento bem dife-
rente foi aplicado por Franz Anton Mesmer, mé- PARTO SEM DOR
dico austríaco que, em meados do século 18, O médico escocês James
introduziu o chamado “magnetismo animal” – na Young Simpson foi o primeiro a aplicar
verdade uma forma de hipnotismo – para tratar clinicamente o clorofórmio como
anestésico na obstetrícia. Em 1847,
doenças e como método de anestesia.
ele realizou o primeiro parto sem dor
Nada disso, é claro, funcionava muito bem.
da história, para o terror dos cristãos
Mas a verdade é que a cirurgia só era praticada
mais fervorosos, que acreditavam que as
em casos raros: amputação de membros, remoção dores do parto eram uma recomendação
de pedras na bexiga, retirada de tumores visíveis direta de Deus e que com isso não
e volumosos. Operar dentro do crânio, do tórax se deveria brincar. A mãe da menina,
ou mesmo do abdome era praticamente impos- no entanto, ficou para lá de agradecida
sível. Em todos os casos, a qualidade básica do e batizou a criança (veja só) de Anestesia.
cirurgião era a rapidez. Ele tinha de lutar com a O clorofórmio logo caiu nas graças das
agitação dos pacientes, muitos dos quais eram mulheres e a própria rainha Vitória solicitou
amarrados. Os mais sortudos desmaiavam. os préstimos de Simpson, que pôs no
A situação mudou no século 19. Graças ao mundo os príncipes Leopoldo e Beatriz,
os dois últimos filhos da soberana da
progresso da química, substâncias como óxido
Inglaterra. Ambos nasceram hemofílicos.
nitroso, éter, clorofórmio e morfina já estavam
Os adversários do “Doutor Clorofórmio”
disponíveis. As drogas então podiam ser injetadas
acusaram-no de causar o mal nas
graças à seringa, inventada quase ao mesmo
crianças, dizendo que um castigo
tempo pelo cirurgião francês Charles Gabriel de Deus se abatera sobre elas. Hoje
Pravaz e pelo escocês Alexander Wood. As pri- se sabe que a acusação era bobagem. O
meiras anestesias, no entanto, foram feitas nos clorofórmio é, sim, um gás bastante
Estados Unidos. Em 1842, Crawford W. Long tóxico, mas a hemofilia é uma
usou éter num paciente cirúrgico. Em 1844, o doença hereditária e não
dentista Horace Wells extraiu de si próprio um há relação com a exposição
molar depois de inalar óxido nitroso. Esses ao gás. Na época, porém,
eventos não foram bem divulgados e, assim, foi um baita revés para
considera-se a data da introdução “oficial” da o doutor. Anos mais
tarde, o clorofórmio
anestesia o dia 16 de outubro de 1846, quando,
DE J BURTON /IMAGENS GETTY IMAGES
AVENTURAS NA HISTÓRIA 15
À MESA
PALADAR
DIFERENTE
O PRIMEIRO INTERCÂMBIO GASTRONÔMICO
DO BRASIL FOI UMA CATÁSTROFE
POR FLÁVIA PINHO
A
o chegar ao Brasil, em 1500, os portu- A tripulação tratou de oferecer o que havia de
gueses da frota de Pedro Álvares Cabral mais sofisticado na despensa das embarcações.
tentaram conquistar os índios pelo es- Mas o resultado foi desastroso: os índios nem
tômago. Dois dias depois de chegar, eles ligaram para o carneiro, tiveram medo das gali-
convidaram dois tupiniquins a subir a bordo. nhas e odiaram tudo o que comeram.
Segundo o escrivão Pero Vaz de Caminha narrou O desfecho desse incidente diplomático, nas
em carta ao rei dom Manuel, foram recebidos com palavras do próprio Caminha, não podia ser
muito prazer e festa. A intenção era das melhores. diferente: “Deram-lhe ali de comer: pão e peixe
“O Capitão, quando eles vieram, estava sen- cozido, confeitos, fartéis [doces], mel e figos pas-
tado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa sados. Não quiseram comer quase nada; e, se
[grande tapete] por estrado; e bem vestido, com alguma coisa provaram, logo a lançavam fora.
um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Trouxeram-lhe vinho numa taça; mal lhe puse-
IMAGENS GETTY IMAGES
Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau ram a boca; não gostaram de nada, nem quiseram
Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui mais. Trouxeram-lhe a água em uma albarrada.
na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa Não beberam. Mal a tomaram na boca, que la-
alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram.” varam e logo a lançaram fora”.
16 AVENTURAS NA HISTÓRIA
DÚVIDA CRUEL
A
Argentina hoje registra 90% de brancos TRABALHO E RACISMO
em sua população, o número mais alto O sistema econômico argentino começou a subs-
entre todos os países da América Latina. tituir a mão de obra escrava já por volta de 1840.
Mas nem sempre foi assim: em 1778, épo- “Em Buenos Aires, a força de trabalho foi basi-
ca em que o comércio negreiro estava ativo (durou camente de imigrantes russos, italianos, espa-
do século 15 ao 19, ocorrendo a abolição em 1853), nhóis e judeus novos”, conta o professor. E no
um censo populacional registrou 54% de negros nordeste do país era, na maior parte, indígena.
em algumas regiões argentinas. Em 1887, o núme- Já o racismo é forte desde o século 19. “Até os
ro caiu para 1,8% e, depois, para 1%. “A dizimação anos 1930, a moda entre os negros era vestir-se,
está ligada às guerras dos espanhóis contra ingle- agir e falar como branco”, diz. O século 20, porém,
ses no fim do século 18, quando boa parte dos presenciou uma nova leva de imigrantes africanos
negros morreu, engajados como soldados”, afirma na Argentina. “Temos aqui no país uma comuni-
o historiador Álvaro de Souza Gomes Neto. dade organizada de cabo-verdianos que chegaram
Mais tarde, no processo de independência, em principalmente entre as duas guerras mundiais
1816, foram formados os Batalhões de Libertos. em busca de melhores possibilidades de trabalho”,
Com a promessa de liberdade, os negros ocuparam descreve a filósofa argentina Dina Picotti.
as posições mais perigosas. Morreram quase todos. Segundo ela, a imigração africana vem crescen-
Outro motivo para o sumiço foi a epidemia de do novamente. De fato, os últimos censos popu-
febre amarela, em 1871. Os negros libertos, viven- lacionais mostram que os negros voltaram a re-
do em condições de extrema miséria em guetos, presentar entre 3 e 4% dos argentinos.
foram os mais afetados. Soldados argentinos im-
pediam a saída deles dos bairros em que moravam,
com medo de a febre se alastrar entre os brancos.
Assim, eles morriam sem atendimento médico.
Além disso, a Argentina passou a registrar to-
dos os descendentes de escravos como brancos. A
política de branqueamento oficial foi praticada no
início do século 19. Para o governo, o progresso
do país estava atrelado à cor de pele da população.
Muitas mulheres negras casaram-se e tiveram
filhos com brancos, inclusive com imigrantes eu-
ropeus que chegavam ao país. Seus filhos, embora
tivessem traços negros, eram registrados como
brancos. “As estatísticas, assim, acabaram regis-
IMAGENS GETTY IMAGES
DOS SAMURAIS
ASCENSÃO E QUEDA
18 AVENTURAS NA HISTÓRIA
1274 A 1281
1467 a 1477
1180 a 1185
OS GUERREIROS GUERRA INVASÃO GUERRA
DE GEMPEI MONGOL DE ONIN
SAMURAIS O clã Minamoto (também Liderados por Kublai Com a ascensão dos
SERVIRAM AOS chamado Genji) vence Khan, mongóis daimiôs, o xogum perde
LÍDERES QUE o clã Taira (ou Heike) instalados no poder da a força. A disputa pelo
e assume o poder China tentam por duas poder põe as famílias
DOMINARAM no Japão. Em 1192, vezes invadir o Japão, Hosokawa e Yamana em
O JAPÃO POR Minamoto Yoritomo mas sua esquadra foi oposição, na Guerra de
SETE SÉCULOS declara-se xogum (líder arrasada por tufões. Os Onin – e destrói o que
supremo) e instala um que conseguem chegar restava de autoridade do
E MUDARAM governo militar. Os clãs à ilha são trucidados governo central. Outros
A HISTÓRIA locais formam suas pelos samurais, que clãs tentam ampliar seus
DE SEU PAÍS próprias milícias para ganham fama de serem domínios, levando o país
assegurar a coleta de invulneráveis. Surge a um século de guerra
impostos e proteger seus o termo kamikase civil (período conhecido
domínios, os samurais (vento divino), que seria como Sengoku Jidai).
ganham importância e ressuscitado durante a Nunca os samurais
viram uma elite guerreira. Segunda Guerra Mundial. trabalharam tanto.
1853 A 1854
1600
1868
1542
AVENTURAS NA HISTÓRIA 19
ILUSTRADA
A CONSTRUÇÃO
DO CRISTO
SANTUÁRIO SE PREPARA PARA OS 90 ANOS FÁBIO VARSANO
S
ímbolo do Rio de Janeiro e uma das Sete o Corcovado derrotou montanhas como o Pão
Maravilhas do Mundo Moderno, a está- de Açúcar, na Urca, e o Morro de Santo Antô-
tua do Cristo Redentor começa a ser res- nio, no Centro. Em 1922, após receber 20 mil
taurada para o seu aniversário de 90 anos, em assinaturas solicitando a construção, o presi-
12 de outubro deste ano. dente Epitácio Pessoa autorizou a obra.
A obra monumental, que mobilizou a então Para custear, uma campanha de arrecada-
capital por uma década, já era sonho em me- ção que uniu desde os mais ricos até os índios
ados do século 19. Em 1859, um padre francês, bororós angariou o equivalente, hoje, a
Pierre-Marie Bos, sugeriu para a princesa Isabel R$ 9 milhões. Então chefe do Governo Provi-
a construção da imagem no alto do Corcovado, sório, Getúlio Vargas comandou a inauguração,
a 710 metros de altura, no Parque Nacional da em 1931. A iluminação seria acionada da Itália,
Tijuca. A ideia ressurgiu em 1921 como parte pelo cientista Guglielmo Marconi, inventor do
das celebrações do centenário da Independên- telégrafo sem fio, mas o mau tempo impediu a
cia do país, no ano seguinte. Numa assembleia, façanha e o sistema foi ligado no local.
30 M
3,75 M
30 M
38 M
MOSAICO VOLUNTÁRIO
O Cristo é feito de concreto sobre uma tela de
8M
20 AVENTURAS NA HISTÓRIA
OLHOS BEM ABERTOS
Antes da execução do modelo final da
estátua, o escultor francês Maximilien Paul
Landowski, a quem foi encomendado o
trabalho, fez diversos moldes, todos na
França. Já em tamanho definitivo, as peças
feitas de gesso foram divididas em dezenas
de partes numeradas e transportadas de
Paris ao Rio – só a cabeça tinha 50 partes.
ESTRADA DE FERRO
As peças do Cristo Redentor foram reunidas na
Igreja Nossa Senhora da Glória, no Largo do
Machado, e levadas aos pedaços para o alto
do Corcovado, onde a camada de concreto foi
aplicada. Elas, junto com cimento, areia e até
água, foram transportadas pelos trens da
Estrada de Ferro do Corcovado, a primeira
eletrificada do país, construída em 1884.
ESFORÇO MILAGROSO
Não há registro da
quantidade de operários
que trabalharam nas
obras do Cristo Redentor
durante os cinco anos
BATE, CORAÇÃO que elas duraram.
O pedestal da imagem, com Apesar da altura e dos
8 metros de altura, abriga ventos fortes, não houve
uma capela dedicada a nenhum acidente grave
Nossa Senhora Aparecida, durante a construção –
com capacidade para 20 quase um milagre, já que
pessoas sentadas. O interior os empregados ficavam
da estátua tem escadas pendurados em andaimes
em ziguezague. À medida sem qualquer segurança.
que se sobe, a altura dos
corredores diminui. Para se
chegar aos braços, é preciso
andar agachado. O Cristo © INFOGRÁFICO ANTÔNIO ANDRADE,
tem um coração, instalado, CLÁUDIA DE CASTRO LIMA, DÉBORA
claro, na altura do peito. BIANCHI, LUIZ IRIA E FABIO OTUBO
ARTE
VINGANÇA NA TELA
ALÉM DE SER VIOLENTADA, PINTORA ITALIANA PRECISOU CONVIVER COM O
ESTUPRADOR LIVRE E SUA DENÚNCIA QUESTIONADA POR IZABEL DUVA RAPOPORT
E
stuprada aos 17 anos pelo professor de A cena bíblica desta obra
arte e amigo do pai, Artemisia Genti-
1 foi retratada por diversos
leschi (1593-1656) demorou um ano artistas da época, incluindo
para ter coragem de denunciar o agres- Caravaggio, mas nenhuma
sor. Quando fez, teve o apoio do pai, Orazio versão foi tão vívida e sangrenta
Gentileschi (1563-1639), mas não da opinião como a de Artemisia, em
que a força física e emocional
pública – que, pela demora na denúncia, con-
das mulheres é evidente.
cluiu que o episódio tivesse sido consensual.
Ainda assim, Agostino Tassi (1580-1644) foi Especialistas interpretam
condenado. A pena era deixar Roma, onde mo- 2 esta cena, que recebeu
ravam, por cinco anos – o que não aconteceu duas versões de Artemisia,
na prática. Em três meses, a jovem pintora, além sendo a mais impactante
de ter sido violentada (e protagonista do, talvez, feita pouco depois do árduo
primeiro caso de estupro público), teve de su- julgamento, como um desejo de
portar conviver com o agressor livre. vingança pela agressão sofrida.
Ela também sofreu com o preconceito no
No livro Mulheres
mundo artístico por ser mulher – algo comum 3 Artistas da História,
na época. Muitos de seus quadros foram atribu- Wendy Slaktin aponta
ídos ao pai, também pintor e amigo de Carava- a anatomia feminina mais
ggio, e outros artistas masculinos. No entanto, sofisticada que a masculina,
seu talento foi visto e a tornou a primeira mulher nesta e em outras obras da artista.
aceita na Academia de Belas Artes de Florença Isso se deve às oportunidades
– a mesma por que passou Michelangelo. que ela teve de estudar e pintar
Suas pinturas mais características são inspi- mulheres nuas em privado.
radas em heroínas bíblicas, como Lucrécia e
Durante a vida, Artemisia
Judite, temas populares na arte e no período 4 teve certa fama, porém,
barroco. Nelas, Artemisia costumava se retratar,
foi esquecida após sua morte –
incorporando a própria fúria feminina. Sua obra sendo reconhecida apenas
mais famosa, Judite decapitando Holofernes, JUDITE DECAPITANDO séculos depois, na década de
mostra o momento em que a viúva, com a ajuda HOLOFERNES, 1615
Autora: Artemisia Gentileschi
1970, quando se tornou símbolo
de Abra, sua serva, corta, determinada, a gar- Técnica: óleo sobre tela do movimento feminista, que
Dimensões: 158,8 cm x 125,5 cm
ganta de um general assírio. Uma violência que, Local: Museu de Capodimonte
luta pela igualdade de direitos
para muitos, representa também uma vingança. (Nápoles, Itália) entre homens e mulheres.
22 AVENTURAS NA HISTÓRIA
BRASIL
REPÚBLICA
DO
24
ACRE
AVENTURAS NA HISTÓRIA
ATÉ O FINAL DO SÉCULO 19, A REGIÃO ERA UM CANTO
ESQUECIDO DA AMAZÔNIA QUE NÃO INTERESSAVA A NINGUÉM. MAS,
COM O SURTO DA BORRACHA, SE TRANSFORMOU NUM PARAÍSO
QUE, EM MENOS DE DEZ ANOS, FOI PALCO DE UMA SÉRIE DE
CONFLITOS QUE QUASE LEVARAM BRASIL E BOLÍVIA À GUERRA
POR FERNANDO GRANATO
S
egunda metade do século 19. O Brasil tou os seringueiros e provocou atritos entre as
tornara-se um Império independente autoridades e os moradores da floresta.
de Portugal. O país crescia com a agri- Nesse clima, o jornalista espanhol Luiz Gal-
cultura para exportação, com os imi- vez Rodrigues de Arias, redator do jornal Pro-
grantes que vinham para substituir os escravos víncia do Pará e funcionário do consulado
e caminhava, a passos trôpegos, é verdade, em boliviano em Belém, ficou sabendo que o go-
direção à República. Mas esse era o retrato do verno da Bolívia tinha na gaveta um projeto
Brasil atlântico, o Brasil com vista para o mar. para arrendar o controle da região para uma
A 5 mil quilômetros dali, um outro país exis- empresa americana. De posse dessa informa-
tia, um país que, de tão esquecido, estava para ção, Galvez passou a insuflar os proprietários
ser abandonado. Em 1867, dom Pedro II assi- de seringais a se rebelarem. O grau de insatis-
nou o Tratado de Ayacucho e cedeu o terri- fação era tamanho que o movimento conseguiu
tório do atual estado do Acre à Bolívia. Um contagiar quase toda a população local. Apoia-
naco de floresta de 150 mil km habitados
2
dos pelo governador do Amazonas, Ramalho
por tribos indígenas e sertanejos que viviam Júnior – que forneceu armas, munições e um
malemal de explorar castanha, madeira e látex. barco especialmente equipado com um canhão,
Na virada do século, no entanto, a coisa além de uma guarnição de 20 homens –, os
mudou. A nascente indústria automobilística seringueiros capturaram os poucos soldados
americana elevou a demanda por borracha a bolivianos em Puerto Alonso e, em 14 de julho
índices estratosféricos, fazendo da exploração de 1899, proclamaram a República do Acre.
de látex um negócio muito atrativo. Em 1899, A nova nação formada por apenas uma ci-
o governo boliviano lembrou-se de seu pedaço dade (Puerto Alonso, que mudou de nome para
de floresta e resolveu abrir um posto alfande- Porto Acre) tinha Luiz Galvez como presiden-
gário na vila de Puerto Alonso (a maior da te. Ele criou uma bandeira e até cunhou moe-
região, onde hoje fica a capital do estado, Rio da própria. Galvez escolheu ministros e fez do
Branco) – e passou a cobrar taxas de extração seu bando um exército, nomeando coronéis e
e transporte dos seringueiros. A medida irri- generais. Cuidou de rascunhar uma consti-
AVENTURAS NA HISTÓRIA 25
BRASIL
A EXTRAÇÃO DO
Castro relatou a gestação do movimento: “O con-
trato com a Bolivian Syndicate era uma comple-
LÁTEX ATRAIU ta espoliação contra os acreanos. Passei então a
falar com vários proprietários de seringais da
GENTE PARA O ACRE, possibilidade de resistência”.
As anotações de Plácido de Castro contam a
AUMENTANDO OS ATRITOS tomada de Xapuri, em 6 de agosto de 1902. O
lugarejo escondido na selva estava praticamente
ENTRE BRASILEIROS E deserto, pois naquele dia se comemorava a Inde-
26 AVENTURAS NA HISTÓRIA
FANTASMA
TREM
tura e de lá retirou armas e munição. O sujeito mais uma coluna boliviana na vila de Iquiry. O
que administrava o local desconfiou que o mo- combate durou cinco horas e terminou com um
vimento tinha alguma relação com os festejos na incêndio nas casas dos inimigos. Às 9 horas do
cidade. Castro, ao dar voz de prisão aos bolivia- dia 15 de janeiro de 1903 os rebeldes chegaram a
nos, disse: “Isso não é festa. É a revolução”. Porto Acre e à tarde já ocupavam posições a 120
As tropas bolivianas demoraram mais de um metros das trincheiras inimigas. "Nossas perdas
mês para reagir. Com apenas 70 homens e poucas nesse dia subiram a 50, entre mortos e feridos",
armas, os revolucionários enfrentaram um bata- escreveu. Apesar das dificuldades, revoltosos
lhão com mais de 200 soldados bolivianos, em adentraram a área inimiga, por rio, a bordo do
18 de setembro. E os homens de Plácido de Cas- navio Independência, sob uma saraivada de balas.
tro levaram a pior. “Vinte e dois mortos deixamos Depois de dez dias de cerco, Porto Acre ren-
no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fu- deu-se. “No dia 26, por ocasião de uma revista
giram. Essa foi nossa estreia”, escreveu. geral passada às nossas tropas, no planalto de
A derrota apavorou os seringueiros e provocou Porto Acre, um líder seringueiro, em nome de
muitas deserções. Mas Castro não desanimou: todos os oficiais combatentes da revolução e dos
mandou circular entre os seringais um comuni- civis presentes, aclamou-me governador do Acre
cado minimizando os efeitos do desastroso com- e comandante-em-chefe das forças”, relatou.
bate e prosseguiu a marcha. Em 5 de outubro, A notícia revoltou a população boliviana, que
reiniciou os ataques às forças inimigas, próximo exigiu uma resposta do governo. O presidente
à vila de Panorama. “Empenhou-se o combate, Manuel Pando assumiu pessoalmente o coman-
sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras do do Exército e marchou ao Acre. A um passo
inimigas”, anotou. A batalha durou 11 dias e os da guerra, o Brasil agiu com diplomacia e man-
rebeldes abriram valas sob a terra e conseguiram dou o ministro das Relações Exteriores, o barão
chegar do lado dos adversários. Obrigaram o de Rio Branco, falar com os vizinhos ofendidos.
comandante das forças bolivianas, coronel Rojas, A primeira medida tomada pelo barão foi bre-
a se entregar junto com seus 150 soldados. “Os car a revolução dos seringueiros, que ainda esta-
outros, em número de 30, haviam morrido.” va em curso. Foi enviada ao Acre uma expedição
O movimento ganhou força e adesões e, em militar que obrigou Castro a abandonar o poder.
18 de novembro, as tropas de Castro dizimaram Nas suas notas, o líder guerrilheiro falou com
mágoa desse momento: “Publiquei uma ordem
dissolvendo o Exército acreano, visto o general
brasileiro ter invadido o Acre meridional”.
COM CHICO MENDES, Contida a revolta, a diplomacia brasileira
transferiu o conflito da selva para uma mesa de
O BRASIL (E O MUNDO) negociações. O local escolhido para selar a paz
entre os dois países foi Petrópolis, no Rio de Ja-
ACORDOU PARA neiro. Ficou combinado que o Brasil ficaria com
o Acre, rico em florestas e reservas de seringais,
OS PROBLEMAS DE pelo qual pagaria à Bolívia 2 milhões de libras
28 AVENTURAS NA HISTÓRIA
CHICO MENDES:
UM BRASILEIRO
LUTERO,
500 ANOS DEPOIS
DA HERESIA
EM UM ATO MODESTO, TEÓLOGO E EX-MONGE ALEMÃO
CRIOU UMA CISÃO IRREVERSÍVEL NO CRISTIANISMO, GERANDO
SUA EXCOMUNHÃO PELO PAPA LEÃO X – UMA ORDEM QUE
PODE SER REVOGADA NESTE MÊS PELO VATICANO
POR DIEGO ANTONELLI
A
o transpor os muros do Mosteiro de leciona Teologia na Universidade Presbiteriana
Santo Agostinho em 17 de julho de Mackenzie, ele foi um filho de seu tempo. O
1505, na cidade alemã de Erfurt, Mar- período, marcado pelo fim da Idade Média e o
tinho Lutero não imaginava que mu- início da Idade Moderna, trouxe a Martinho
daria para sempre o futuro do cristianismo. uma criação de visão fortemente teocêntrica.
Aquele jovem de 22 anos buscava uma vida “Os pais eram bastante rudes com os filhos. A
consagrada para acalmar a ira de um Deus que mãe estava aniquilada pelo trabalho diário de
ele acreditava ser vingativo e implacável. Era a dona de casa, com uma vida precária, e foi co-
trajetória de alguém que se sentia em débito locando na cabeça das crianças uma série de
com a força divina e que, 16 anos depois – há preconceitos e superstições religiosas”, diz Ger-
exatos 500 anos –, seria considerado um herege son. Assim, o mundo interior de Lutero passou
e excomungado pela Igreja Católica. a ser cada vez mais complexo e confuso.
Nascido em 10 de novembro de 1483 na ci- Na infância, ele aprendeu a ler e a escrever e
dade germânica de Eisleben, Martinho Lutero teve noções de latim. Aos 14 anos, foi enviado
foi filho de um camponês chamado Hans, que para prosseguir os estudos em Magdeburgo e,
atuava como pequeno empresário na área de no ano seguinte, em Eisenach, onde passou a
mineração, e de Margarete, uma dona de casa estudar em escolas mais preparadas – seus pais,
responsável por cuidar dos nove filhos. Ambos como tantos outros, queriam que o filho tives-
com o sonho de ver Martinho formado em se uma vida menos sofrida que a deles.
Direito. Um ano após seu nascimento, levaram Até que, em 1501, com a ajuda da Igreja
a família para morar na próspera Mansfeld, Católica, Martinho começou a estudar na
onde Hans trabalhava em minas de cobre. Universidade de Erfurt. “Geralmente, as fa-
“Martinho (cujo nome é o do santo do dia mílias mais pobres se apoiavam em ordens
do seu batismo), foi católico de berço como religiosas e os pais de Lutero fizeram isso com
quase todo mundo na Alemanha da época. Sua ele. No fim, conseguiram uma vaga em uma
família era devota – embora não em demasia”, universidade para ele estudar”, explica o teó-
conta Rudolf von Sinner, pesquisador e coor- logo. No ano seguinte, o jovem graduou-se em
denador de pós-graduação em Teologia na Pon- Artes e, em 1505, tornou-se mestre. “Martinho
tifícia Universidade Católica do Paraná (PUC- fez os estudos universitários básicos e, depois,
PR). Para o pesquisador Gerson de Moraes, que seguiu para uma das faculdades superiores
AVENTURAS NA HISTÓRIA 31
CAPA
da época (Teologia, Direito e Medicina). Como ras decepções oriundas da Igreja Católica. Em
o pai queria que fosse advogado, o filho iniciou 1510, Martinho Lutero foi designado pela Ordem
os estudos de Direito”, conta Rudolf. dos Agostinianos para tratar de alguns proble-
mas da Ordem em Roma. “Quando chegou, se
O PODER DE UM RAIO deparou com um papado que correspondia a um
No entanto, os fantasmas da infância ainda per- cargo político-religioso e que estava nas mãos
seguiam Lutero. Aquela imagem de um Deus de determinadas famílias, como os Bórgias. Os
punitivo e castigador, decorrente do ambiente escândalos eram tão grandiosos, que as atroci-
em que fora criado, permanecia viva. “Nessa dades que ele viu em Roma, como, por exemplo,
perspectiva, ele começou a ter experiências mís- a vida devassa de padres, monges e bispos, fi-
ticas”, comenta Gerson. Uma delas foi determi- zeram com que perdesse o encanto e o respeito
nante para que ele escolhesse a vida religiosa que tinha por uma instituição que havia se des-
como missão de vida: ele caminhava com um viado da rota”, revela o professor Gerson. Aque-
amigo pelas ruas de Erfurt quando uma tem- le Lutero que daria as caras em 1517, chocando
pestade castigou o céu. Diante de tantos raios o papa, já estava sendo gestado em 1510.
que os amedrontava, Martinho fez uma promes-
sa para Santa Ana. Se ele fosse poupado, entra-
ria para o mundo religioso.
Essa decisão, segundo Rudolf von Sinner,
“criou um profundo mal-estar na relação com
seu pai. Martinho estudou Teologia, foi orde- Já excomungado pela Igreja
A DIETA DE WORMS
nado padre em 1507 e tornou-se doutor em Te- Católica, Lutero teria que se apresentar
ologia pela Universidade de Wittenberg em diante do imperador Carlos V para
1512, com ênfase na Bíblia. Nunca deixou de ser se retratar e debater as suas 95 Teses.
pastor, mas foi como professor, nessa mesma Na época, o cidadão considerado
instituição, que ele adquiriu notoriedade”. De herege teria de ser executado. Mas, como
acordo com os pesquisadores, Lutero, mesmo a nobreza germânica interferiu e o defendeu,
adulto, parecia incapaz de abandonar por com- a pena máxima de ser queimado vivo pela
pleto os ensinamentos da infância e, na ânsia de Inquisição foi evitada. Ainda assim, porém,
pagar os seus pecados ao longo da vida, acabava Lutero teria de ser julgado pelo imperador
sendo severo consigo mesmo. romano e pelos príncipes eleitores – a
Lia fervorosamente a Bíblia e procurava de chamada Dieta (uma espécie de Congresso
toda forma agradar a Deus. Nessa época, per- do Império), na cidade de Worms.
cebendo como aquele rapaz se relacionava com A caminho da Dieta, Lutero se
o plano divino, “o seu confessor, Johann von surpreendeu ao ver o povo aclamando
Staupitz, passou a ensiná-lo também sobre a seu nome e chamando seus seguidores,
misericórdia e a compaixão de Deus, temas que eram “martinianos”, “luteranos”
depois se tornariam centrais para ele”, relata o
teólogo da PUC-PR. Soma-se a isso, as primei-
32 AVENTURAS NA HISTÓRIA
ou “evangélicos”. Era abril de 1521. “Mas Lutero foi ‘sequestrado’ por amigos
Lutero, questionado pelo imperador, não e conduzido ao Castelo de Wartburg para
titubeou: disse que não poderia revogar garantir a sua segurança. Lá, ele traduziu
o que havia afirmado sobre a instituição Igreja o Novo Testamento para o alemão”, explica
Católica. “Não poderei revogar se não for o coordenador de pós-graduação em
convencido por testemunhos da Sagrada Teologia na PUC-PR, Rudolf von Sinner.
Escritura ou por motivos racionais evidentes – Em maio daquele 1521, o imperador assinou
pois não creio nem no papa tampouco nos o Edito de Worms e proclamou que Lutero
concílios, e é evidente que erraram muitas e seus seguidores seriam banidos do
vezes e se contradisseram. Minha consciência Império. Também proibiu a divulgação
está presa à palavra de Deus e não posso dos seus escritos e confirmou o julgamento
e nem quero revogar qualquer coisa, pois papal que declarara Martinho um herege.
não é sem perigo e nem salutar agir contra Após passar quase um ano escondido, o
a consciência”, teria afirmado Lutero diante ex-monge voltou a dar aulas em Wittenberg,
dos poderosos da Corte do Império Romano. protegido pela nobreza alemã. Em 1523,
Um salvo-conduto foi-lhe concedido para ele escreveu Sobre a Autoridade Temporal
retornar à sua casa sem o risco de ser preso. e publicou o Novo Testamento em alemão.
CAPA
REFORMA NO MUNDO
A luta por uma reforma dentro da Igreja Espanha, Portugal, mas também a França
Católica já existia antes de Martinho – se manteve firmemente católico, e o Leste,
Lutero. Os religiosos Pedro Valdo, ortodoxo. “Havia elementos políticos nisso,
João Hus e João Wycliffe, por exemplo, mas também de convicção de fé e filosofia,
foram alguns dos nomes que ousaram valorizando cada vez mais o indivíduo
propor novas feições ao catolicismo, crente sobre a instituição e sua tutela”,
questionando a autoridade papal. explica o pesquisador Rudolf von Sinner.
Valdo foi excomungado e Hus A conquista da América, especialmente
morto na fogueira da Inquisição. da América do Norte, ajudou a disseminar
Com a Reforma em andamento devido o protestantismo mundo afora – permitindo
à atuação de Lutero, as novidades no uma Igreja aos cristãos, além da católica.
seio cristão começaram a se espalhar “Uma grande lição deixada por Lutero
gradativamente pela Europa. Os reflexos é a de não se dobrar diante de um poder
da Reforma inicialmente se concentraram religioso despótico, como era naquela
no território alemão, mas logo se época, em que a maldade era feita em
espalhou por toda a Europa Central, nome de Deus”, ressalta o pesquisador
seguindo para o Norte e o Oeste. O Sul – Gerson de Moraes, professor de Teologia
que compreende países como Itália, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
INDIGNADO COM AS INDULGÊNCIAS
DO PAPA EM TROCA DE DINHEIRO, LUTERO
PUBLICOU SUA CRÍTICA EM 95 TESES
AVENTURAS NA HISTÓRIA 35
CAPA
No entanto, ao divulgar publicamente suas fatos tomaram –, Lutero foi excomungado como
críticas às atitudes adotadas pela Igreja Católica, um herege no dia 3 de janeiro, por meio da bula
Lutero mexeu com o poder da Cúria, represen- papal Decet Romanum Pontificem.
tada pelo papa e pelos bispos, que à época eram
donos de grandes propriedades e arrecadavam ESCAPOU DA FOGUEIRA
muito dinheiro. Ou seja, pertenciam a uma das O alemão, ao ser excomungado, escapou por
castas sociais mais poderosas daqueles tempos. pouco da fogueira como forma de punição. En-
“Também pareceu como insubmisso ao criticar tre os tantos devotos que queriam ver Lutero
o papa”, completa Rudolf von Sinner. queimando vivo, estava o monge dominicano
No início, essas críticas chegaram a ser tra- Johann Tetzel, um dos responsáveis por cobrar,
tadas de maneira até despretensiosas pela cúpu- graciosamente, as indulgências da Igreja. Para
la da Igreja, mas, a partir do momento em que os fiéis, ele dizia: “quando o dinheiro cair na
as pessoas se interessaram pelo que Lutero pro- caixinha, o Céu estará recebendo a sua alminha”.
punha e a veiculação dessas teses se multiplica- Porém, a proteção da nobreza germânica e o
vam, a Igreja de Roma precisou tomar alguma amplo apoio do povo alemão a Lutero foram
iniciativa. Em 1518, a instituição abriu um pro-
cesso por heresia contra Lutero e, dois anos
depois, exigiu que ele se retratasse sem admitir
fazer qualquer diálogo – como o próprio reli-
A VIDA DE LUTERO
36 AVENTURAS NA HISTÓRIA
1512 1521 1524 1529
Torna-se doutor em É excomungado Explode a Revolta Nasce a filha Madalena.
Teologia e no ano pela bula Decet dos Camponeses. Dois anos depois,
seguinte começa a Romanum Pontificem, Condena o movimento nasce o filho Martin.
lecionar na Universidade de Leão X. Em abril, e apoia os príncipes
de Wittenberg. na Dieta de Worms,
recusa renegar os seus
e nobres. 1533
Nasce o filho Paulo.
1517 escritos, se escinde
e começa a traduzir
1525 No ano seguinte,
Afixa as 95 Teses Casa-se com Katharina publica a Bíblia Alemã
sobre as indulgências. o Novo Testamento von Bora, ex-freira. completa e nasce
para o alemão. sua filha Margarete.
1520 1522 1526
A bula papal
Em março, deixa
Nasce o seu filho Hans. 1542
Exsurge Domine Redige o seu
o seu esconderijo
lhe dá 60 dias para
retratar-se ou ser e retorna a Wittenberg. 1527 testamento e morre
sua filha Madalena.
Luta contra
excomungado. enfermidades e
Queima a bula
papal e um exemplar
intensa depressão. 1546
Nasce a sua filha Morre no dia 18 de
da lei canônica. Elizabete. fevereiro em Eisleben.
E sua esposa em 1552.
CAPA
GUERRAS ENTRE
CATÓLICOS E LUTERANOS
A Reforma iniciada por Lutero não teve seus próprios negócios comerciais. E,
controle algum (o próprio Lutero foi incapaz enquanto a nobreza alemã almejava tirar
de prever as consequências de seus atos). o poder dos papas, cardeais e arcebispos,
Nessa época, a nobreza germânica queria uma boa parcela de camponeses, por
romper com a Igreja Romana e tomar suas exemplo, via a reforma como uma chance
terras e riquezas. Era um período de transição de corrigir injustiças do sistema feudal. Dessa
entre a Idade Média e a Idade Moderna. forma, a Reforma de Lutero uniu diversos
Segundo o professor Gerson de Moraes, interesses que permeavam a sociedade
vários fatores sociais e políticos tiveram europeia do século 16 e, neste contexto,
influência para que a Reforma tivesse êxito. como consequência ao luteranismo,
“Havia a ascensão de uma burguesia aconteceu nos anos 1520 a “Reforma
comercial que precisava se aliar com o poder Radical”, um movimento que buscava criar
que mais se fortalecia naquela época: os uma sociedade mais justa e que deu origem a
monarcas. Essa era uma forma de enterrar, vários grupos protestantes pela Europa.
aos poucos, a velha ordem feudal”, conta. Engana-se, no entanto, quem pensa que a
Também já começava a surgir um mercado disseminação do protestantismo foi pacífica.
europeu que envolvia banqueiros, artesãos e Diversas guerras e batalhas entre católicos e
comerciantes que queriam se livrar das luteranos tomaram conta do continente. Em
amarras políticas e religiosas para realizar 1526, chegou a ser aprovada pelo regime
A NOBREZA ALEMÃ PERCEBEU QUE LUTERO
PODERIA LIMITAR O PODER POLÍTICO DA IGREJA
CATÓLICA E RESOLVEU APOIÁ-LO
determinantes para que ele não fosse vítima da tencia ao Sacro Império Romano-Germânico –
Inquisição – termo usado para designar um con- uma tentativa de recriar o Império Romano do
junto de práticas de torturas e punições adotado Ocidente que havia deixado de existir em 476.
pela Igreja Católica entre os séculos 13 e 19 para Lutero contava, por exemplo, com o apoio de
punir os hereges (uma das penas mais praticadas Frederico III, o Sábio, príncipe-eleitor da Saxônia.
era ser queimado vivo na fogueira). Criada em
1233 pelo papa Gregório IX, o objetivo das prá- NOVA IGREJA
ticas era reprimir a heresia. Anos depois, em A excomunhão de Lutero fez brotar o início de
IMAGENS GETTY IMAGES E WIKIMEDIA COMMONS
1542, o papa Paulo III reorganizou a Inquisição, uma nova Igreja. Em pouco tempo, o protestan-
que passou a se chamar Santo Ofício. tismo liderado pelo jovem alemão conseguiu a
“A nobreza alemã foi a primeira a perceber que façanha de acabar com o monopólio de disse-
Lutero tinha em mãos um material do qual po- minação da fé cristã, que pertencia à Igreja Ca-
deria se aproveitar para limitar o poder político tólica. Lutero traduziu a Bíblia dos originais
de Roma e da Igreja Católica. Sem esse apoio, hebraico e grego para o vernacular alemão,
dificilmente a Reforma teria tido êxito”, explica permitindo ao povo acessar as Sagradas E scri-
Gerson. Nesse período, o território alemão per- turas. “Tudo na Igreja Católica acontecia em
latim, o que era falado por apenas 8% da popu-
lação na época”, comenta Rudolf von Sinner.
Martinho ainda lutou por uma escola públi-
ca e universal, para meninos e meninas – uma
imperial uma política de tolerância com revolução para o período. E procurou também,
os luteranos, mas, em 1529, esse artifício diante da nova igreja, democratizar o processo
conciliatório foi anulado. Com isso, os líderes de fé. Até então, os monges católicos eram con-
luteranos fizeram um protesto contra a siderados cidadãos de primeira classe do Reino
decisão – fato que, apontam historiadores, de Deus, enquanto os demais eram de segunda
deu origem ao nome “protestantes”. Em classe. “Lutero mudou isso radicalmente, insis-
1546, o imperador Carlos V, por exemplo, foi tindo na vocação de cada uma e cada um em
à guerra contra os territórios que apoiavam qualquer profissão que seja”, afirma. Nada mais
Lutero. O conflito continuou até 1555, do que o “sacerdócio de todos os crentes”, prin-
quando uma assembleia especial do Império cípio bíblico incorporado pela Igreja Católica
se reuniu e fez um acordo chamado Paz de 450 anos depois, no II Concílio Vaticano.
Augsburgo – segundo o qual a nova igreja Apesar dos avanços, a reforma luterana dei-
seria permitida. Apesar dessa medida, xou uma cicatriz no mundo religioso que teima
nos 100 anos seguintes a Europa continuou seguir com o tempo. Há chance, porém, de ela
sendo palco de muitas guerras religiosas. finalmente ser retratada depois de cinco séculos.
Lutero, contudo, não viveu para assistir a toda Teólogos cogitam que, num gesto ecumênico e
consequência de suas façanhas. Casado com de união, a Igreja Católica possa revogar a ex-
a ex-freira Katharina von Bora, ele morreu em comunhão de Martinho Lutero, reforçando os
Eisleben, sua terra natal, em 1546. laços que unem a fé cristã e, de certo modo,
assumindo os erros do passado.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 39
GUERRA
ÊXODO EM
ALTO-MAR
ÀS VÉSPERAS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, O NAVIO ALEMÃO
ST. LOUIS PARTIA DE HAMBURGO RUMO ÀS AMÉRICAS PARA SALVAR 937 JUDEUS
DO NAZISMO. MAS A JORNADA NÃO SAIU COMO O PLANEJADO
POR ALEXANDRE CARVALHO
GUERRA
A
menina de 10 anos veste uma saia xa-
drez, sandália do tipo melissa e sorri
para a câmera, em preto e branco,
acompanhada de oito familiares – in-
cluindo uma garotinha mais nova, que talvez
tenha a metade da sua idade, talvez seja sua
irmã. A alegria não está só no seu rosto, aliás:
todos na foto aparentam sentimentos que ultra-
passam o protocolar sorriso de retrato. Adivi-
nham-se ali otimismo, tranquilidade e um cer-
to alívio. O cenário é o convés de um navio, à
frente de um barco salva-vidas. Os homens
vestem ternos brancos, a família parece ter di-
Lore Dublon (no centro,
com saia xadrez) e sua nheiro. O vento marítimo descabela uma mu-
família no convés do lher jovem, mais ao fundo.
MS St. Louis, em 1939
Tudo indicaria uma viagem a passeio, um
cruzeiro em família, não fosse a legenda que nos
informa a identidade da nossa menina de 10
anos: “Meu nome é Lore Dublon. Em 1939, eu
fugi do meu país à procura de segurança nos
Estados Unidos. Mas não me deixaram entrar.
Então fui assassinada em Golleschau”.
Outra foto em P&B mostra um menininho
de 2 anos, bem protegido do frio, com casaco,
gorro e cachecol. Ele pilota seu triciclo, obser-
vado pelos pais, num conjunto que tem sua har-
monia quebrada pela legenda quase idêntica à
anterior: “Meu nome é Werner Stein. Em 1939,
eu fugi do meu país à procura de segurança nos
Estados Unidos. Mas não me deixaram entrar.
Então fui assassinado em Auschwitz”.
Golleschau pode não ser um nome tão co-
nhecido, mas Auschwitz não deixa dúvidas: é
de campos de concentração nazistas que esta-
mos falando. Essas e outras fotos – emprestadas
do Museu do Memorial do Holocausto, dos EUA
– estão publicadas no perfil “St. Louis Manifest”,
que nasceu no Twitter em janeiro de 2017, no
dia seguinte ao decreto do presidente Trump
que barrava a entrada nos EUA de imigrantes
vindos de alguns países muçulmanos: Irã, Ira-
que, Líbia, Somália, Sudão, Síria e Iêmen.
Werner Stein, com os pais,
antes de ser rejeitado em Cuba,
Para criticar, por analogia, o veto migratório
Estados Unidos e Canadá - e que recusa abrigo a gente que foge de guerras,
consequentemente assassinado
Estados homicidas e intolerância, o educador e
ativista judeu Russel Neiss dedicou esse perfil
a outro evento histórico com o mesmo ponto de
O ANTISSEMITISMO NA
partida – e as mesmas consequências: a infeliz
jornada do transatlântico MS St. Louis, que
ALEMANHA VINHA DO
partiu de Hamburgo às vésperas da Segunda GOVERNO, MAS COM
MUITO APOIO DO POVO
Guerra Mundial, rumo às Américas, levando a
criança Lore Dublon, o bebê Werner Stein e
mais 935 passageiros judeus, que fugiam do
racismo e da truculência nazista.
contra uma minoria. O linchamento em massa
EXPULSOS DE CASA foi instigado por membros do Partido Nazista
O genocídio conhecido como Holocausto, em e pela milícia paramilitar que apoiava o gover-
que o governo alemão assassinou cerca de 6 no (a SA). As lojas dos judeus foram destruídas,
milhões de judeus, só começou mesmo em 1941, não antes que suas mercadorias fossem saque-
quando as câmaras de gás entraram em ação. adas. Centenas de sinagogas foram incendiadas
Mas isso não significa que judeus já não viessem – os bombeiros foram instruídos a apenas im-
sendo mortos e perseguidos na Alemanha na- pedir que o fogo se alastrasse para edificações
zista. Com a ascensão de Hitler ao poder, em vizinhas. Mais de 90 judeus foram assassinados
1933, seu ódio pela comunidade judaica foi aos covardemente nesses dois dias.
poucos virando política de Estado, com uma “Depois da Kristallnacht, não havia um judeu
sequência de leis que cancelavam os direitos dos na Alemanha que não quisesse fugir do país”,
judeus e, na prática, tornavam sua existência lembrou, numa palestra em 2013, a mesma Re-
inviável sob qualquer perspectiva. nate Breslow, agora uma senhorinha, vivendo
Em sua autobiografia, a judia alemã Renate confortavelmente na Pensilvânia, EUA. Se ela
Breslow conta como sua infância foi afetada pelo sobreviveu ao nazismo para contar sua história
crescente antissemitismo no país – que vinha do ao mundo, foi porque seus pais decidiram fazer
governo, mas que obteve uma adesão eufórica de o que o bom senso mandava: ir para longe de
grande parte da população. Em 1935, o Parla- Hitler. Ela só não imaginava que a estratégia de
mento aprovou uma lei segundo a qual os não sua família, e de centenas de outras que embar-
judeus estavam proibidos de fazer qualquer com- caram no transatlântico St. Louis, no dia 13 de
pra em lojas de judeus – uma restrição que ar- maio de 1939, fosse virar uma aventura marca-
ruinou a vida financeira de Renate. Outra lei da pelo fracasso da solidariedade.
racista proibiu que crianças judias frequentassem
escolas públicas – o que fez com que a pequena, QUANTO MAIS LONGE, MELHOR
que estava na primeira série, se visse privada de Com o avanço frenético da violência contra a
educação formal e de todas as amizades de in- comunidade judaica na Alemanha, o início de
fância. Mas nada traumatizaria tanto a sua famí- 1939 viu uma procura desesperada de judeus
lia quanto a onda de violência antissemita nos por novos lares. Um destino que parecia convi-
dias 9 e 10 de novembro de 1938: a Kristallnacht. dativo eram os Estados Unidos, que tinha o
A “Noite dos Cristais” recebeu esse nome Oceano Atlântico separando sua população dos
como uma referência aos cacos de vidro – das nazistas – e onde havia comunidades de judeus
vidraças dos estabelecimentos comerciais de desde os tempos em que o país ainda era colônia
judeus – que cobriram as ruas da Alemanha dos ingleses. Nos anos 1930, eles tinham impor-
após esse pogrom – termo iídiche que significa tância política na cidade de Nova York e apoia-
uma série de pilhagens, agressões e assassinatos vam o New Deal, a série de reformas estrutu-
AVENTURAS NA HISTÓRIA 43
GUERRA
rais do presidente Franklin D. Roosevelt. Em o êxodo sair barato. Autorizações de partida eram
1939, os EUA tinham até um judeu na Suprema vendidas por fortunas. Sem expectativa de voltar
Corte. Parecia, sim, um lugar seguro. à companhia do Führer, não foram poucos os
Para entrar nos EUA, no entanto, não era tão judeus que venderam tudo o que tinham. Esses
fácil. Havia cotas de imigração, e a fila para se eram os “sortudos” – os que possuíam algo para
estabelecer no país podia levar de um a cinco negociar. Os que não podiam comprar sua ida
anos. Os judeus alemães, com os nazistas nos tiveram de lidar diariamente com a fúria nazista
calcanhares, não tinham esse tempo todo. Então – o que quase sempre significava a morte.
muitos concluíram que uma temporada na vi- A bordo do St. Louis, no entanto, estavam os
zinha Cuba seria ideal para refazer a vida en- que podiam. A maioria dos passageiros era de
quanto lidavam com a burocracia americana. judeus de posses. Tanto que a embarcação era um
No fim do século 19, negociantes judeus vindos luxuoso transatlântico, com oito deques, piscina
dos EUA começaram a residir na ilha caribenha, para adultos e crianças. No navio, judeus que
atraídos pelas oportunidades ligadas à importação haviam perdido todos os seus direitos na Alema-
e exportação de açúcar e tabaco. Já os imigrantes nha tiveram semanas de renascimento. “Eles nem
europeus passaram a chegar nos anos 1920, for- podiam comprar jornais, não podiam se sentar
mando uma comunidade de 24 mil judeus, mui- nos bancos das praças... tinham uma vida muito
tos deles trabalhando na indústria de tecido. Par- limitada em seu país, mesmo que alguns deles
te significativa dessas pessoas estava usando a fossem ricos”, explica o jornalista cubano Ar-
terra dos charutos como trampolim para uma mando Lucas Correa, autor de A Garota Alemã,
estadia definitiva nos EUA, mas o Ato de Imigra- romance histórico baseado na viagem do St. Lou-
ção americano, de 1924, criando cotas que res- is. “Dentro do navio, eles tiveram suas vidas de
tringiam a entrada de refugiados europeus e asi- volta.” O dia a dia em alto-mar era de jantares
áticos, acabou mudando os planos dessas famílias, refinados, música e atendimento cordial.
que se resignaram a fixar residência em Cuba Foi nesse clima de paz e grandes expectativas
mesmo. Considerada a questão logística e buro- que a menina Lore Dublon foi fotografada, sor-
crática, seria para Havana, então, que os passagei- rindo, com sua família. E foi no deque do St.
ros do St. Louis rumariam, partindo de Hambur- Louis que Renate Breslow contava os dias para
go. Alguns tinham até familiares que já moravam reencontrar seu pai, que já estava em Havana.
em Cuba há anos. Só podia ser um lugar seguro. Mas o idílio estava prestes a terminar.
O “NÃO” DE ROOSEVELT
Em 1939, a cota de imigrantes nos EUA prove-
A embarcação era um luxuoso
nientes da Alemanha e Áustria era de 27.370 pes- transatlântico, com oito deques,
soas – e já estava preenchida. Então, quando o piscina para adultos e crianças,
música e atendimento cordial
transatlântico St. Louis se aproximou de Mia-
AVENTURAS NA HISTÓRIA 45
GUERRA
QUATRO DESTINOS
A iminente chegada de quase mil
judeus enfureceu a opinião pública Sem porto seguro em Cuba nem na América do
de Cuba e o governo desfez o Norte, só restava aos judeus retornar para a Eu-
acordo de acolhimento
ropa. Mas para onde? A Alemanha não era opção.
Organizações judaicas intervieram e passaram
a negociar com alguns países. Conseguiram vis-
UM JUSTO
tos para que os passageiros se estabelecessem em
ENTRE
quatro: Bélgica, Holanda, França e Inglaterra. O
AS NAÇÕES
navio enfim atracou em Antuérpia, no começo
de junho, de onde os judeus foram encaminhados
para seus diferentes destinos – com todo o sig- Se há um herói na triste jornada do St. Louis,
nificado que a palavra “destino” pode ter. ele é, ironicamente, um oficial nazista. Como
Grande parte dos passageiros preferia a Fran- comandante do navio, o capitão Gustav
ça, por uma questão de admirar a cultura fran- Schroeder era obrigatoriamente um membro
cesa. Os que falavam inglês acharam que teriam do partido de Hitler. Afinal, aqueles 937
maior facilidade na Inglaterra. Mas, de manei- judeus não fugiram da Alemanha num barco
ra geral, a divisão foi equilibrada. improvisado. Tiveram autorização para partir,
Esta, entretanto, é uma história sem final e se foram num navio alemão. Sensibilizado
feliz para muitos desses viajantes – como as com a condição daqueles refugiados,
legendas daquelas fotos de Twitter já davam a Schroeder comportou-se com a humanidade
entender. A Segunda Guerra Mundial começou e a coragem que os governos dos EUA
três meses após o desembarque do St. Louis e, e de Cuba não demonstraram. Repreendeu
entre os dias 10 e 28 de maio do ano seguinte, os marinheiros que se mostraram hostis
os nazistas ocuparam a França, a Holanda e a aos judeus e fez de tudo para que os
Bélgica. Dos passageiros do navio que haviam passageiros tivessem uma experiência tão
sido encaminhados para esses países, 255 mor- agradável quanto possível. Colocou panos
reram – a maioria em campos de concentração. sobre um busto e um retrato de Hitler no
Mais feliz foi o destino da bebê Eva Safler, a salão principal do navio, para que os judeus
figura de uma outra imagem (pág. 46, foto acima), celebrassem suas cerimônias religiosas. Ao
registrada no deque do transatlântico. A criança, chegar às Américas, participou ativamente
então aos 9 meses de vida, está no colo da mãe, das negociações com as autoridades locais,
que olha para baixo, relutante em posar para a insistindo para que recebessem os
foto. Uma postura que contrasta com a do marido, imigrantes. Quando voltou para a Alemanha,
sorridente ao lado de uma boia em que se lê “St. foi punido por ajudar os judeus. Nunca mais
Louis – Hamburg”. Além do desembaraço diante comandaria um navio alemão. Então, quando
IMAGENS GETTY IMAGES E WIKIMEDIA COMMONS E REPRODUÇÃO
da câmera, dele sabemos que teve uma decisão a guerra acabou, ele foi julgado por ser um
que salvaria sua família. Ao ser questionado sobre oficial nazista. Assim que souberam disso,
o país para o qual preferia ir, das quatro possibi- os sobreviventes do St. Louis enviaram
lidades europeias, o homem escolheu a Inglaterra. cartas para o tribunal, explicando o quanto
Disse que queria viver num país onde houvesse aquele homem os havia apoiado e protegido.
água separando-o da Alemanha nazista. Em 1993, Gustav Schroeder foi reconhecido,
Dos 288 passageiros do St. Louis admitidos postumamente, como “Justo entre as
na Inglaterra, quase todos – 287 – sobreviveram Nações” pelo Yad Vashem, o memorial oficial
à Segunda Guerra. Os nazistas nunca ocuparam de Israel para lembrar as vítimas judaicas
o território inglês. E Eva Safler está viva até hoje, do Holocausto. A expressão é usada
dando a volta ao mundo para contar a história no judaísmo para se referir a gentios (não
dessa odisseia marítima – uma lição sobre o judeus) que, por salvarem vidas de judeus
individualismo que marca as políticas das na- na Segunda Guerra, merecem o paraíso.
ções mais poderosas do planeta.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 47
COMPORTAMENTO
48 AVENTURAS NA HISTÓRIA
A
humanidade melhora com o passar dos
séculos, certo? Nem sempre. Prova dis-
so é o que ocorreu com um de nossos
hábitos mais comuns, o banho. Duran-
te a Idade Média, os ocidentais abandonaram
os sofisticados rituais de limpeza da Antiguida-
de e mergulharam numa profunda sujeira. Prin-
cipalmente por causa da religião, o homem me-
dieval comum achava suficiente tomar um banho
por ano. Foi preciso muito tempo – e alguns bons
exemplos dos povos orientais e indígenas – para
que voltássemos às nossas asseadas origens.
Pesquisadores acreditam que todos os povos,
desde tempos imemoriais, tenham praticado
alguma forma de higiene pessoal. Os primeiros
registros do ato de se banhar individualmente
pertencem ao Antigo Egito, por volta de 3 mil
a.C. Os egípcios realizavam rituais sagrados na
água e tomavam três banhos por dia, dedicados
a divindades como Thot, deus do conhecimento,
e Bes, deus da fertilidade. “Mais do que limpar o
corpo, eles presumiam que a água purificava a
alma”, disse o egiptólogo francês Christian Jacq,
fundador do Instituto Ramsés, em Paris. “A cren-
ça valia tanto para a realeza, cortejada com óleos
aromáticos e massagens aplicadas pelos escravos,
quanto para as populações mais pobres, que re-
corriam inclusive a profissionais de rua quando
não conseguiam tratar da própria beleza.” O
apreço pela higiene é o motivo ao qual arqueólo-
gos atribuem a sobrevivência dos egípcios às
pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.
A Grécia foi outro local em que os banhos
prosperaram. Em Cnossos e Faístos, na Ilha de
Creta, é possível ver bem preservados palácios de
1700 a.C. a 1200 a.C. que, até hoje, surpreendem
por suas avançadas técnicas de distribuição da
água. “Todo banquete que precisava ser luxuoso
incluía uma sessão de banho para os convidados”,
explicou Georges Vigarello, professor de Ciências
da Educação da Universidade de Paris-5.
Embora os gregos tenham iniciado a prática
dos banhos públicos no Ocidente, os pioneiros
nos balneários coletivos foram os babilônios. A
diferença é que, na Grécia, o banho não era mo-
tivado apenas pela higiene e espiritualidade. En-
tre 800 a.C. e 400 a.C., o esporte, particularmen-
AVENTURAS NA HISTÓRIA 49
COMPORTAMENTO
te a natação, era um dos três pilares da educação das termas era decorado com estatuetas e mosai-
juvenil – ao lado das letras e da música. Bom cos. Ao redor de um pátio central, havia uma
cidadão era aquele que sabia ler e nadar, como espécie de sauna, um vestiário e piscinas de água
comprovam imagens presentes em centenas de quente, morna, fria e ao ar livre. Os complexos de
vasos de cerâmica pintados naquela época. banho do Império Romano tinham ainda jardins,
Os romanos herdaram muito da cultura da bibliotecas e restaurantes (como se fossem ante-
Grécia, incluindo a adoração pelo banho. Mas, passados dos spas e resorts de hoje).
entre eles, esse hábito tomou proporções inéditas. As visitas diárias às termas tinham fundo re-
Enquanto construíam um dos maiores impérios ligioso, já que o banho público era um ato de
de todos os tempos, os romanos levavam a sun- adoração à deusa Minerva. E o costume não era
tuosidade de suas termas (enormes balneários restrito às classes mais abastadas. Boêmios, pros-
públicos) aos mais diversos lugares. Por causa titutas, imperadores, filósofos, políticos, velhos e
disso, algumas cidades europeias ganharam no- crianças, todos se banhavam no mesmo espaço,
mes que incluem, literalmente, a palavra “banho” sem constrangimento. Ponto de encontro e de
– é o caso de Bath, na Inglaterra, Baden Baden e troca de informações, era o lugar onde um aris-
Wiesbaden, na Alemanha, e Aix-le-Bains, na tocrata podia medir sua popularidade de acordo
França. Mas as maiores termas ficavam mesmo com a quantidade de cumprimentos que recebia.
na capital do império, Roma: eram as de Cara- “Em épocas de plebiscito, os plebeus nem preci-
cala, inauguradas em 217, e as de Diocleciano, do savam pagar a pequena taxa que era cobrada. Os
ano 305. Esses edifícios, cujos nomes homenage- custos da entrada eram cobertos pelos ricos e
avam imperadores, tinham capacidade para re- nobres”, escreveu o historiador francês Jérôme
ceber, respectivamente, 1600 e 3200 pessoas. Carcopino no livro Aspects Mystiques de la Rome
A engenharia romana teve que se desdobrar Païenne (Aspectos místicos da Roma pagã).
para acompanhar o frenesi dos banhos. Na onda
das termas surgiu o hipocausto, uma espécie de PRAZERES PERDIDOS
assoalho construído sobre câmaras de gás sub- A liberdade que os romanos tinham de se banhar
terrâneas. Esse sistema ajudava a esquentar os e ficar nus em público foi entrando em declínio à
cômodos e mantê-los climatizados. Cada salão medida que uma nova religião se tornava popular
A LIBERDADE E
O PRAZER QUE
OS ROMANOS
TINHAM DE SE
BANHAR FORAM
ENTRANDO EM
DECLÍNIO À
MEDIDA QUE O
CRISTIANISMO
SE TORNAVA
POPULAR
50 AVENTURAS NA HISTÓRIA
por todo o império. Era o cristianismo, que pre-
gava a castidade e se tornou a crença oficial de
Roma no ano 380. Menos de um século depois,
o império viria abaixo, junto com vários costu-
mes – enquanto a Igreja ficava cada vez mais
forte. Foi a gota d’água para que os prazeres do
banho fossem boicotados durante cinco séculos.
Começava a Idade Média, época em que a
DIFÍCIL
cristandade varreu da Europa as termas, o espor- HIGIENE
te e outras atividades em que as pessoas se expu-
sessem demais. Gregório I, o Grande, que foi papa
entre 590 e 604, chegou a qualificar o corpo de
“abominável vestimenta da alma” – ou seja, a
carne era o depósito de tudo o que era pecado.
Com tantos pudores, o prazer de tomar banho
de corpo inteiro passou a ser visto como um ato
FERRO NO COURO
Uma espátula de ferro de mais
de luxúria. Lavar as mãos e o rosto (às vezes nem ou menos 30 centímetros, o strigil
isso) bastava. Quando muito, era aceitável tomar era usado pelos antigos gregos
e romanos para esfregar
um banho por ano. Um único barril de água
vigorosamente a pele, untada com
servia para toda a família, sem que a água fosse um óleo verde-oliva. Entre os ricos,
trocada. “O privilégio do primeiro mergulho era essa limpeza era feita por escravos.
do homem da casa, enquanto as crianças ficavam
por último, na sopa suja que sobrava”, escreveram CASCATA CASEIRA
Sem rede encanada, os povos
as consultoras Renata Ashcar e Roberta Faria no
antigos tomavam banho com água
livro Banho – Histórias e Rituais. derramada de bacias e jarros. Às vezes,
Sem água corrente, as pessoas se viravam a pessoa ficava dentro de uma banheira
como podiam. A limpeza da pele era feita fric- rasa de pedra, mas o mais comum
era se inclinar num banco de pedra.
cionando-a com um pano úmido. Mas, mesmo
entre os nobres, o ritual era repetido só a cada LIMPEZA PESADA
dois dias. Os cabelos deviam ser escovados com Os babilônios ferviam gordura animal
um pó que supostamente mantinha os fios lim- com cinzas vegetais para passar
sobre a pele e os cabelos. Já no Egito,
pos. E, como não podia deixar de ser, era preciso uma mistura de bicarbonato de sódio,
muita maquiagem e perfume – nas roupas, cor- cinzas e argila fazia as vezes do sabão.
pos e cabelos – para amenizar o mau cheiro.
Toda essa falta de higiene abriu as portas para ARRANCA-CASCÃO
No Oriente, materiais ásperos
epidemias devastadoras, propagadas principal-
feitos de rocha ou cerâmica eram
mente por roedores. Foi o caso da peste, que ma- (e ainda são) usados para esfoliar a pele
tou cerca de 200 milhões de pessoas ao longo da e retirar a sujeira. O ritual se completava
Idade Média. Ao notar que muitos judeus não com o uso de água de flor de laranjeira,
pentes, pastas e perfumes.
pegavam a doença, a Inquisição chegou a julgá-los
e executá-los, acusados de bruxaria. Mas eles, na ASSEIO PREGUIÇOSO
verdade, não agiam de má-fé – muito pelo con- As banheiras portáteis se popularizaram
trário. O que fazia os judeus serem menos susce- no fim do século 19, primeiro entre
os ingleses. Quando um fidalgo ia
tíveis a doenças era uma recomendação religiosa tomar banho, camareiras carregavam
que seguiam: lavar as mãos antes das refeições a banheira para o quarto e a enchiam
e tomar banho ao menos uma vez por semana. à mão, com água aquecida.
Foi só durante as Cruzadas, as guerras re-
COMPORTAMENTO
ligiosas travadas entre os séculos 11 e 13, que dilatava os poros da pele, por onde a saúde esca-
muitos europeus puderam redescobrir as delícias paria e o mal penetraria, em formas como fria-
da água, na aproximação – ainda que violenta gem e germes. Todo mundo acreditou nisso, in-
– entre Oriente e Ocidente. É que, fora dos terri- cluindo os médicos. E, enquanto nações como
tórios dominados pela Igreja, onde ocorreram Portugal e Espanha descobriam, na América,
muitos combates, os banhos públicos da Anti- populações que amavam tomar banho, os euro-
guidade haviam sido mantidos, com seus rituais peus voltavam para o mundo da sujeira.
e instalações sofisticados. Nas hamans, casas de Existiam algumas medidas de higiene, é ver-
banho turco-árabes, os muçulmanos aproveita- dade. Mas elas não eram lá essas coisas. Antes ou
vam o prazer de alternar águas quentes e frias. depois de qualquer atividade física e após as re-
Sessões de banhos completos incluíam depilação, feições enxugava-se a pele com um pano e sim-
massagem, hidratação, branqueamento dos den- plesmente mudava-se de camisa. Supunha-se que
tes e maquiagem – ritual que, até hoje, é seguido a roupa branca agia como “esponja” e absorvia a
meticulosamente. Os cavaleiros cristãos que par- sujeira. Assim, trocar de roupa passou a ser sinô-
tiram para o Oriente com a missão de tomar a nimo de se lavar – e, para se sentir limpas, as
Terra Santa dos muçulmanos não se fizeram de pessoas usavam punhos e colarinhos impecáveis.
rogados. “Não só passaram a se banhar por lá A privação de água durou até o século 18,
mesmo como espalharam pela Europa a prática quando se provou definitivamente que as doen-
de jogar água pelo corpo quando retornavam dos ças se originavam não do banho, mas da falta
combates”, contam Renata Ashcar e Roberta Fa- dele. O Iluminismo, que celebrava a razão e de-
ria. A certa altura, a atitude contagiou o restante fendia a tese de que o mundo deveria ser esclare-
da população europeia medieval e alguns banhos cido pela ciência, ajudou a fazer do ato de se lavar
públicos chegaram a reabrir as portas. o símbolo da saúde. Banhos públicos para higie-
ne, esporte e terapia foram, aos poucos, sendo
NEM SÓ AOS SÁBADOS reabilitados. Mas, após anos de religiosos dizen-
Depois do fim da Idade Média, a religião voltou do o contrário, não foi todo mundo que voltou a
a suprimir os banhos no Ocidente. Nos séculos tomar banho, mesmo com insistentes conselhos
16 e 17, irredutíveis cristãos bradavam que a água médicos. Quando a célebre rainha Vitória subiu
A PRIVAÇÃO DE
ÁGUA DUROU
ATÉ O SÉCULO
18, QUANDO SE
PROVOU QUE
AS DOENÇAS
SE ORIGINAVAM
NÃO DO
BANHO, COMO
PENSAVAM, MAS
DA FALTA DELE
52 AVENTURAS NA HISTÓRIA
ao trono, em 1837, ainda não havia local para
banho no Palácio de Buckingham, sede da coroa
inglesa. Até os anos 1870, eram raras as casas
ocidentais que tinham um cômodo para os seus
habitantes se lavarem. Já cientes do bem que a
água podia fazer pela saúde, médicos banhavam
doentes à força em hospitais. “Não era difícil
encontrar um sujeito que, tendo de enfrentar a MANIA
experiência do primeiro banho, demonstrasse DE BRASILEIRO
verdadeiro terror, gritasse, tentasse escapar da
sensação de sufocamento e palpitação que a água A HIGIENE DOS ÍNDIOS
DEMOROU A SER ACEITA PELA
fria proporcionava”, diz um relato da época, ci-
ELITE PORTUGUESA
tado pelo historiador americano Lawrence Wri-
ght no livro Clean and Decent: The Fascinating Quando aportaram por aqui, em 1500,
History of the Bathroom (Limpo e decente: a fas- os portugueses se assustaram com a
cinante história do banheiro). limpeza dos índios, que mergulhavam
Os banhos rotineiros reapareceram definiti- em rios e no mar até 12 vezes ao
vamente nas grandes cidades ocidentais apenas dia. Pero Vaz de Caminha, escrivão
por volta dos anos 1930. Mas, no começo, eles da esquadra de Cabral, chegou a
não eram lá tão frequentes. Eram tomados aos escrever, surpreso: “São tão limpos
sábados, dia em que também eram trocadas as e tão gordos e tão formosos que não
roupas de baixo das crianças. Nessa época, navios podem ser mais”. Os portugueses
ofereciam cabines de banho e barcos delimitavam acabaram cedendo aos hábitos dos
áreas em rios que serviam como piscinas natu- nativos brasileiros, percebendo que
rais. Após o fim da Segunda Guerra, em 1945, eles eram muito mais saudáveis que
quando boa parte das casas europeias teve que os da Europa. Os membros da corte,
ser reconstruída, elas ganharam banheiros, abas- entretanto, resistiram aos deleites da
tecidos com a – cada vez mais comum – água água, pois estavam acostumados a
encanada. A França foi a pioneira nas inovações passar meses sem banho. Já os mais
sanitárias, seguida pela Inglaterra e Alemanha. humildes aceitaram mais facilmente –
Hoje, voltamos a expor nossos corpos sem começaram diariamente lavando os
pudor, como fazíamos na Antiguidade. Mas isso pés em bacias. “Com o tempo, o rio
não ocorre mais durante o ato de se lavar, e sim se tornou extensão da casa. Sem rede
depois dele. “Ao mesmo tempo em que os trajes encanada, era nele onde se lavavam
começam a valorizar o corpo e deixar adivinhar as roupas, as louças e o corpo”,
suas formas, realçando-as e, por vezes, revelando escrevem Renata Ashcar e Roberta
HERITAGE IMAGE; MUSEUM OF LONDON/HERITAGE IMAGES/GETTY
Privada: Da Primeira Guerra aos Dias Atuais. Quando a família real portuguesa
Tomar banho virou um método individual de chegou ao Brasil, em 1808, fez do
se preparar para a exposição pública. Não é à toa Rio de Janeiro o primeiro município
que quase todos os banheiros contemporâneos a contar com água encanada no
têm um espelho acima da pia – um objeto que, país, benefício que ainda está longe
há cerca de dois séculos, dificilmente seria visto de atingir todos os brasileiros.
num lugar como esse.
AVENTURAS NA HISTÓRIA 53
PERSONAGEM
A SAGA DE
UM SOBREVIVENTE
M
ovidos por ideologias, os regimes di- como, por exemplo, um incidente ocorrido pou-
tatoriais do século 20 desencadearam co antes na Polônia, quando manifestantes que
atrocidades ao redor do mundo. O exigiam eleições livres e a saída do Exército Ver-
governo nazista e regimes comunistas, melho do país acabaram sendo violentamente
mesmo que tenham travado uma guerra como atacados pelos militares soviéticos.
opostos, acabaram ambos por causar o sofrimen- Isso alimentou uma sede por mudanças na
to de famílias inteiras. Foi o caso de Gabriel Wal- Hungria, de modo que em 23 de outubro de 1956,
dman. Judeu nascido na Hungria, ele viveu os iniciou-se a Revolução Húngara. Por um momen-
horrores dos dois regimes quando criança. E, to, os rebeldes pareciam vitoriosos, já que, após
hoje, décadas depois, nos conta a sua história. vários dias de conflito, os soviéticos deixaram o
país. Porém, no mês seguinte, o Exército Verme-
O COMUNISMO NA HUNGRIA lho invadiu novamente a Hungria e destruiu a
A União Soviética saiu da Segunda Guerra Mun- capital, Budapeste, desmantelando a revolta. Du-
dial vitoriosa, uma vez que os aliados haviam rante o conflito, que teve fim no dia 10 de no-
derrotado o fascismo e o nazismo. Assim, o co- vembro, milhares de soldados, de ambos os lados,
munismo foi implantado em diversas localidades além de civis húngaros, perderam a vida.
do globo, inclusive na Hungria, que antes estava
sob domínio dos nazistas. Porém, a visão heroica A INFÂNCIA NO PAÍS DE ORIGEM
que muitos tinham da URSS logo foi desfeita. Gabriel ainda era uma criança quando viveu os
A implantação do comunismo no país fez com horrores na Hungria e naturalmente não possui
que a população húngara se rebelasse contra o memórias muito vívidas daquela época. No en-
regime, causando uma revolução que, nas pala- tanto, ele se recorda da fome, do frio, da sede e,
vras de Gabriel, representou a abertura de uma sobretudo, do medo e da saudade. Anos antes, o
brecha na “armadura de anjos salvadores” que os menino havia perdido grande parte de seus fa-
soviéticos possuíam. Além do controle de Mos- miliares durante a guerra, inclusive seu pai, que
cou, outros gatilhos eclodiram o movimento, morreu no campo de concentração de Bu-
Mulheres
judias
capturadas
durante
o regime
nazista,
em 1944
Estátua
de Stalin
destruída
durante
a Revolução
Húngara,
em 1956
DE FAMÍLIA JUDIA, GABRIEL
WALDMAN ENFRENTOU OS
HORRORES DO NAZISMO E
A OPRESSÃO COMUNISTA NA
“NUNCA
HUNGRIA. HOJE, VIVE NO BRASIL SUPEREI ESTES
POR GIOVANNA GOMES COM SUPERVISÃO
ACONTECIMENTOS,
DE THIAGO LINCOLINS
MAS NÃO SINTO
RAIVA PELO
QUE PASSOU.
chenwald, na Alemanha, enquanto vivia se es- “De repente tivemos segurança e uma existên-
ISSO JÁ FOI
condendo das tropas nazistas ao lado da mãe. cia digna desse nome. Ninguém queria saber de
ABSORVIDO PELO
Uma das poucas memórias do período em que nós. Éramos simplesmente o refugo da Terra, por
TEMPO E PELA
seu país estava sob o regime comunista é da es- assim dizer. Quando cheguei aqui, encontrei um
RACIONALIDADE”
cola. “Eu era muito bom estudante quando se ambiente seguro, estável, e consegui fazer amiza-
tratava de História, o resto era uma porcaria. Mas des, refiz minha vida, ou melhor: fiz minha vida,
História, História da Hungria, eu dominava! Até porque, antes dos 13 anos, quando cheguei aqui,
que um dia, minha mãe estranhou que de repen- minha vida era praticamente ligada à minha mãe
te comecei a trazer notas medíocres para casa.” e à minha família, metade exterminada”, disse ele.
E ela, então, foi até a escola para tentar entender Quando questionado sobre como superou esses
a razão das notas baixas. “Nada a ver com o seu acontecimentos, Gabriel não hesita: “Não superei
filho”, disseram-lhe. “O partido comunista deu nunca, tanto é que estou aqui, dando esta entre-
ordens de que ninguém de origem burguesa pos- vista, e escrevo e falo o tempo todo sobre a Segun-
sa ter nota maior do que 5”. Como a nota máxima da Guerra Mundial e o comunismo”. No entanto,
era 10, a mãe de Gabriel logo percebeu que in- ele afirma não ter raiva pelo que passou. “Isso já
gressar na faculdade seria algo impossível para foi absorvido pelo tempo e pela racionalidade.”
ele. “Acho que um ano depois – em 1949 – fugi- No Brasil, Gabriel manteve sua dedicação à
IMAGENS REPRODUÇÃO/DIVULGAÇÃO/ARQUIVO PESSOAL
mos da Hungria”, lembra Waldman. escrita, prática que realiza desde a infância – e que
eventualmente aparece por aqui, nas páginas de
DA VIDA NÔMADE AO BRASIL AVENTURAS NA HISTÓRIA. Seu mais recente
Até os 13 anos de idade, a vida de Gabriel foi livro A Estratégia do Escorpião, de 2018, é inspi-
marcada pelo nomadismo. Após fugir da Hun- rado na obra de Umberto Eco, O Nome da Rosa.
gria com a mãe, ele passou anos viajando para
diferentes países, período em que enfrentaram NEGACIONISMO E DITADURA
sérias dificuldades financeiras. Tudo mudou, Anos depois de sobreviver a duas guerras, a perda
porém, quando chegou ao Brasil em 1952. trágica de familiares e a fome, Gabriel diz que a
melhor maneira de combater os atuais movimen-
Gabriel,
tos negacionistas é não dando notoriedade a eles.
aos 13 anos “Não dá para mudar a opinião destes movimentos,
de idade,
quando pois eles não querem razão. Querem dar vazão
chegou aos seus desejos históricos e àquilo que gostariam
ao Brasil
que tivesse acontecido”.
“Quanto mais você reage, mais atenção você
dá para eles e isso é bom evitar. Então, eu prefiro
simplesmente ignorá-los”, prosseguiu. E, quanto
aos regimes ditatoriais ainda existentes, ele diz
sentir pena. “Eles pensam que vão mudar tudo,
mas não mudam nada, no fim das contas.”
AVENTURAS NA HISTÓRIA 55
COLUNA RICARDO LOBATO
se confirmada, escoltar os pesqueiros franceses para e acabaram retrocedendo. Várias são as razões
fora das águas brasileiras. apontadas para a guerra nunca ter de fato aconte-
Ao serem abordados por navios de guerra da cido. Para a França, que já se encontrava lutando
Marinha do Brasil – que pacificamente solicitaram uma longa guerra na Argélia, o preço de mais um
que eles cessassem suas atividades e se retirassem conflito seria caro; enquanto, no Brasil, assolado
– os pescadores franceses pediram ajuda à sua Ma- por uma instabilidade política e econômica, come-
rinha de Guerra. Este foi o estopim, o cenário esta- çava a tomar forma o movimento que culminaria
va armado. Alegando que estava defendendo seus com os eventos de 31 de março de 1964.
RICARDO LOBATO É SOCIÓLOGO E MESTRE EM ECONOMIA PELA UNB, OFICIAL DA RESERVA DO EXÉRCITO BRASILEIRO E
CONSULTOR-CHEFE DE POLÍTICA E ESTRATÉGIA DA EQUILIBRIUM – CONSULTORIA, ASSESSORIA E PESQUISA
56 AVENTURAS NA HISTÓRIA
COLUNA ALEXANDRE CARVALHO
Meu Nome É
Dolemite (2019)
Direção: Craig Brewer
Onde Ver: Netflix
decidiram assumir as câmeras. E assim inventaram gia mais improvável: ele mesmo, na época já bei-
um gênero original de filmes, de baixo orçamento e rando os 50 anos, barrigudo, no papel de um galã
grande apelo popular: a blaxploitation. Finalmente, marginal, um gigolô que quer recuperar sua casa
a realidade de comunidades pobres de negros chega- de striptease – colocando seu corpo fora dos pa-
va às telas, em enredos cheios de traficantes, ex-pre- drões em cenas de sexo e lutando kung fu (sem o
sidiários, peitos e bundas de fora. O sucesso comercial menor traquejo para essa arte marcial).
foi tanto que deu origem a subgêneros, como filmes Este filme dentro do filme havia sido pensado para
de horror (Blacula) e paródias. Foi nesse contexto os cânones da blaxploitation: um roteiro policial,
que surgiu uma das figuras mais exuberantes da sexy e violento. Acabou virando uma comédia invo-
cultura negra: Rudy Ray Moore (1927-2008). luntária, justamente pelo quanto é tosco. Mas lotou
Funcionário de uma loja de discos, Rudy já tinha tantos cinemas que transformou Rudy Ray Moore
mais de 40 quando teve a sacada de sua vida. Começou numa lenda dos filmes B – que merecia muito essa
a prestar atenção a poetas de rua (mendigos mesmo) simpática cinebiografia.
FOTO REPRODUÇÃO
ALEXANDRE CARVALHO É JORNALISTA E CRIOU, EM 2005, A REVISTA DE CINEMA PAISÀ. É AUTOR DOS LIVROS
INVEJA – COMO ELA MUDOU A HISTÓRIA DO MUNDO (2015) E FREUD – PARA ENTENDER DE UMA VEZ (2017)
57 AVENTURAS NA HISTÓRIA
MEMÓRIA
A VIDA
NO VALE NA DÉCADA DE 1920, JARDINS
FORAM FEITOS SOB O VIADUTO DO CHÁ
DO ENTÃO PARQUE ANHANGABAÚ –
ETERNO CARTÃO- POSTAL DE SÃO PAULO
POR IZABEL DUVA RAPOPORT
A
construção do Theatro Municipal de São
Paulo, no início do século 20, deixava os
habitantes da cidade mais populosa da
América (que neste mês completa 467 anos) eu-
fóricos. Afinal, o grande teatro poderia ser com-
parado às melhores e impactantes casas de es-
petáculo da Europa – com exceção da vista.
Naquela época, para chegar ao Morro do Chá,
numa das encostas do Vale do Anhangabaú,
onde o teatro foi construído, era preciso passar
pelos fundos de várias casas e por plantações de
chá e de agrião – uma paisagem de aspecto rural
que não combinava mais com os planos de mo-
dernização da administração paulistana.
Com isso, uma grande reforma foi feita, in-
cluindo a inauguração do Parque Anhangabaú
em 1917, ainda incompleto. Nos anos 1920, jar-
dins foram feitos sob o Viaduto do Chá, que viu
nascer arranha-céus a seus pés já nas décadas
seguintes, quando, a contragosto do projeto pai-
sagístico, a área verde foi cortada por três aveni-
das. Hoje, os carros passam por túneis, cujas Os jardins do
Anhangabaú e
superfícies são enormes calçadões – palco de o Viaduto do
espetáculos culturais, discórdias entre o povo, Chá vistos do
Theatro Municipal,
mudanças contínuas e muita história para contar. em 1927
58 AVENTURAS NA HISTÓRIA
IMAGEM REPRODUÇÃO
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