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REGIONALIDADE e Discurso Midiático: Mapeamento e Análise em Mato Grosso Do Sul

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Conselho Editorial do livro

Profª. Drª. Beatriz Corrêa Pires Dornelles


(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)

Prof. Dr. Bruno Bernardo de Araújo


(Universidade Federal de Mato Grosso)

Prof. Dr. Helder Filipe Rocha Prior


(Universidade Beira Interior/Portugal;
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul)

Profª. Drª. Maria Cristina Gobbi


(Universidade Estadual Paulista)

Prof. Dr. Wilson Bueno


(Universidade do Estado de São Paulo)

Profª. Drª. Sônia Virgínia Moreira


(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Esta obra foi publicada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior (CAPES), Código de Financiamento 001
Reitor
Marcelo Augusto Santos Turine

Vice-Reitora
Camila Celeste Brandão Ferreira Ítavo

Obra aprovada pelo


CONSELHO EDITORIAL DA UFMS
Deliberação Nº 21, DE 18 DE JUNHO DE 2020

Conselho Editorial
Rose Mara Pinheiro (presidente)
Rose Mara Pinheiro (presidente)
Além-Mar Bernardes Gonçalves
Além-Mar Bernardes Gonçalves
Alessandra Borgo
Alessandra
Antonio Borgo
Conceição Paranhos Filho
Antonio Conceição
Antonio Paranhos
Hilario Aguilera Filho
Urquiza
Antonio Hilario
Elisângela Aguilera
de Souza Urquiza
Loureiro
DelasnieveAparecida
Elizabete Miranda Daspet de Souza
Marques
Marcelo
ElisângelaFernandes Pereira
de Souza Loureiro
Nalvo Franco
Elizabete de Almeida
Aparecida MarquesJr
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Geraldo Alves Damasceno Junior
Ruy Caetano Correa Filho
Marcelo Fernandes Pereira
Vladimir Oliveira da Silveira
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Vladimir Oliveira da Silveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Divisão da Editora UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

Educação em direitos humanos: contribuições para sua efetivação. [recurso


eletrônico] / Ynes da Silva Félix, Devanildo Braz da Silva, José Paulo Gutierrez,
organizadores. – Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2020.
1 arquivo 1.544 kb

Formato: digital
ISBN 978-65-86943-11-5

1. Diretos humanos – Brasil . 2. Direito à educação. 3. Direitos humanos – estudo


e ensino. I. Félix, Ynes da Silva. II. Silva, Devanildo Braz da. III. Gutierrez, José
Paulo.
CDD (23) 370.115
Elaborada pela Bibliotecária Lilian Aguilar Teixeira CRB 1/2448
Regionalidade e discursos midiáticos:
mapeamento e análise em
Mato Grosso do Sul

1ª edição
Campo Grande/MS

Organizadores:
Daniela Cristiane Ota
Mario Luiz Fernandes
Taís Tellaroli Fenelon
© dos autores: Autores
Ana Paula Martins Amaral
Aline de Oliveira
Andréa Flores Silva Marcelo Vicente Câncio Soares
Alline Ribeiro
Andréia de de
Laura GóisMoura Cristaldo Márcia Gomes Marques
Anna
Ana Theresa
Barbosa Santos de Arruda
de Souza Marcos Paulo da Silva
Antonio Hilário Aguilera Urquiza
Ângela Eveline
Catarina Werdemberg
Andrés dos Santos Mario Luiz Fernandes
Caram Guimarães
Cláudia
CássioRegina Ferreira
Francisco Machado Neto Maurício de Melo Raposo
Gisele Ota
Daniela Melo Sanches Naiane Gomes de Mesquita
Giselle Marques de Araújo
Gerson Luiz Martins
Irene Maria da Silva Oswaldo Ribeiro da Silva
Gesiel Rocha
Joselia de Araújo
Aparecida Pires Vicente Patrick Alif Fertrin Batista
Lia Câmara
Hélder SamuelFigueiredo Pedreira
do Santos Lima Rose Mara Pinheiro
Lívia Gaigher Bosio Campello
Hélio Augusto Godoy de Souza
Luciani Coimbra de Carvalho
Taís Marina Tellaroli Fenelon
Katarini
NatáliaGiroldo
AdriãoMiguel
Freitas da Silva PreviteraVictor Hugo Sanches Pereira
Patricia
Lynara Martinez
Ojeda de SouzaAlmeida
Samanta Felisberto Teixeira
Teylor Fuchs Cardoso dos Santos
Valnice Aparecida Gazola
1ªViviane
edição:Jesus
2020 de Souza
Welington Oliveira de Souza Costa
Ynes da Silva Félix
Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica
Life
1ª Editora
edição: 2020

Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica


TIS Publicidade e Propaganda

Revisão
A revisão linguística e ortográfica
é de responsabilidade dos autores

A grafia desta obra foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa, de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009.

Direitos exclusivos
para esta edição

Divisão da Editora UFMS - DIEDU/AGECOM/UFMS


Av. Costa e Silva, s/nº - Bairro Universitário, Campo Grande - MS, 79070-900
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Fone: (67) 3345-7203
e-mail: diedu.agecom@ufms.br

Editora associada à

ISBN:
ISBN: 978-65-86943-11-5
978-65-86943-25-2
Versão digital: junho de 2020
Agradecimentos

O Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade


Federal de Mato Grosso do Sul agradece a todos os alunos e professores que
fizeram a construção dessa trajetória; a todos os alunos e professores que,
de alguma forma, participaram na produção e organização desta obra. De
modo especial, homenageamos o professor Dercir Pedro de Oliveira (in
memoriam) que, quando pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação, desem-
penhou papel decisivo na criação deste Programa. Agradecemos também à
Capes pela oferta de bolsas de estudos aos mestrandos ao longo desses dez
anos, o que viabilizou parte das pesquisas desenvolvidas no Programa, bem
como pelos recursos destinados que possibilitaram a impressão deste livro.
Prefácio

Cicilia M. Krohling Peruzzo

A coletânea Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e aná-


lise em Mato Grosso do Sul é uma relevante iniciativa para comemorar os
dez anos de existência do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
(PPGCOM) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na
Região Centro-Oeste. Ao apresentar à sociedade uma pequena amostra da
pesquisa que já foi produzida pelos estudantes, o PPGCOM cumpre uma
de suas missões: difundir o conhecimento científico produzido. É certo que
os trabalhos completos estão disponíveis para acesso público, mas as sín-
teses destes produzidos para este livro aceleram o processo de divulgação
científica. Também é motivo de comemoração o feito de o Programa de
Pós-Graduação já ter formado quase uma centena de mestres, cujos percur-
sos na pesquisa possibilitaram a investigação de temas relevantes da Comu-
nicação Social ajudando a fortalecer a área acadêmica e o próprio campo
do conhecimento. A estratégia do PPGCOM de enfatizar como linhas de
pesquisa as problemáticas regionais relativas às identidades, linguagens e
processos midiáticos, sem deixar de olhar para as universalidades trazidas
pelas tecnologias de informação e comunicação, é de suma importância
porque viabiliza cobrir temas de pesquisa num espaço territorial geográfico
e simbólico que dificilmente seria abarcado de modo intenso por estudos de
pós-graduação de outras regiões do País.
O comunitário, o local e o regional, apesar de pouco estudados, pois
os interesses acabam sendo mais canalizados para onde miram os holofotes
da grande mídia convencional e os “movimentos” tecnológicos que alteram
as formas de informar, publicizar e comunicar, também merecem ser olha-
dos atentamente pela academia. É no local que assentamos nosso morar
e a vida cotidiana. É nele que se conseguem vislumbrar as coisas mais de
perto de modo a se perceber criticamente as contradições entre os aconteci-
mentos e as narrativas sobre eles. É nele que as diversidades se constituem,
inclusive, aquelas mediadas pelos meios de comunicação. É nele que os
arranjos políticos e políticos eleitorais se articulam até se espraiarem em
nível nacional. Apesar da abrangência, alcance e poder das grandes mídias
nacionais e globais, a comunicação comunitária, local e regional desempe-
nha papéis políticos, econômicos e culturais que também merecem ser es-
tudados. Uma amostra desse panorama pode ser percebida no conteúdo do
livro Regionalidade e discursos midiáticos, organizado por Daniela Cristiane
Ota, Mario Luiz Fernandes e Taís Tellaroli Fenelon. Por intermédio dos
vários textos que compõem a coletânea, podemos entender, por exemplo,
que os meios locais e regionais de comunicação e os ambientes comunica-
cionais digitais, no bojo de sua performance em torno do informar, entreter,
publicizar e “educar”, repercutem regionalmente os interesses econômicos,
políticos e ideológicos dos grupos regionais e nacionais empoderados do
poder midiático, mas também o econômico e o político-partidário, atual-
mente e na história. Por outro lado, alguns estudos evidenciam ainda que o
local e o regional não se constituem em algo isolado, mas sim inter-relacio-
nado. Não estão à margem do desenvolvimento tecnológico que marca as
sociedades em cada tempo histórico. As potencialidades que as tecnologias
digitais disponibilizam hoje estão tão presentes nas mídias regionais quan-
to nas nacionais. Contudo, não é demais frisar que, nas práticas sociais, o
local e o regional não permitem a definição rígida de fronteiras, pois estão
em constantes relações entre si e em âmbito nacional e internacional. Nas
especificidades do estado de Mato Grosso do Sul, ainda se agregam as es-
pecificidades das zonas de fronteira com o Paraguai e a Bolívia que perpas-
sam as identidades socioculturais e os conteúdos dos meios de comunicação
ali situados. Enfim, o regional é rico em fenômenos dignos da pesquisa
científica. A pesquisa sobre eles é também um ato político na intenção de
questionar determinados dogmas, inclusive, reproduzidos por revistas cien-
tíficas de referência internacionais que tentam prescrever os assuntos que
lhes interessam como aqueles a serem investigados no resto do mundo para
que ganhem repercussão nos seus indexadores.
O papel da ciência é servir às sociedades, o que torna imprescindível
sua contribuição para interpretar nossas realidades e, como tal, oferecer
subsídios para a formulação de políticas públicas e de leis, e no caso da
Comunicação, que possam melhorar seu desempenho e, ao mesmo tempo,
instituir mecanismos de responsabilização pública de modo a que se cum-
pra o papel social dos meios de comunicação e dos ambientes comunicacio-
nais digitais. O avanço tecnológico é uma conquista da humanidade e deve
servi-la no sentido de contribuir para fazer avançar o caráter civilizatório,
aquele capaz de realizar a plenitude de direitos e deveres universalmente.
Numa época em que a desinformação ganha tanta repercussão, a ciência
ajuda a entender as transformações, bem como os mecanismos de trans-
formação das transformações. Ou seja, cabe também transformar aquilo
que se alterou de forma a subtrair o sentido de interesse público-cívico da
atuação dos agentes – individuais, corporativos e governamentais – que do-
minam dos meios de comunicação, tanto os regionais quanto os nacionais
e internacionais.

São Paulo, 30 de setembro de 2020


Sumário

Prefácio.....................................................................................................09

Introdução.................................................................................................13

Parte I – Contextos midiáticos regionais e fronteira...............................19

O contexto radiofônico em Mato Grosso do Sul: cartografia, migração para


FM e presença na web
Aline de Oliveira Silva; Hélder Samuel do Santos Lima; Daniela Ota......21

A programação informativa no rádio fronteiriço em Ponta Porã e Pedro Juan


Caballero
Ana Barbosa de Souza; Daniela Ota..........................................................41

Imprensa fronteiriça on-line: fórum de debates ou espaço de superficialidade


factual?
Gesiel Rocha de Araújo; Marcelo Vicente Câncio Soares....................................67

Pantanal, Documentário e Semiótica


Victor Hugo Sanches Pereira; Hélio Augusto Godoy de Souza.....................89

Parte II – Discurso midiático político e social.......................................115

O Correio do Estado e o discurso udenista na ditadura militar


Alline Ribeiro de Góis; Mario Luiz Fernandes.........................................117

Conflitos entre indígenas e ruralistas nos editoriais de jornais sul-mato-gros-


senses: enquadramentos a partir da ideologia da cultura
Maurício de Melo Raposo; Marcos Paulo da Silva...................................145

As marcas do estigma nos enunciados sobre suicídio em portais de notícias


campo-grandenses
Patrick Alif Fertrin Batista; Márcia Gomes Marques..............................165

Direitos humanos no Campo Grande News: análise do discurso jornalístico a


partir da interseccionalidade gênero e infância
Lynara Ojeda de Souza; Katarini Giroldo Miguel.................................187
Os desafios para a continuidade da Educomunicação no ensino público de
Campo Grande
Naiane Gomes de Mesquita; Rose Mara Pinheiro......................................209

Parte III – Produção midiática, tecnologias digitais e interatividade....231

A participação do público pelo WhatsApp no telejornal MS Record


Cláudia Regina Ferreira; Taís Marina Tellaroli Fenelon........................233

Pouca interação e muita televisão no jornalismo ao vivo de Campo Grande


no Facebook
Oswaldo Ribeiro da Silva; Marcelo Vicente Câncio Soares......................255

Whatsapp: mensageiro instantâneo móvel utilizado na rotina de produção


em ciberjornais de Mato Grosso do Sul
Ângela Eveline Werdemberg dos Santos; Gerson Luiz Martins...............275
Introdução

O Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Uni-


versidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) era um sonho acalentado
desde o final da década de 90, após a formação das primeiras turmas graduadas
pelo curso de Comunicação Social/Jornalismo da UFMS, o primeiro de MS,
criado em 1989. Porém, sua concretização só ocorreu em agosto de 2011, e agora
completa dez anos de atividades. Nesse período titulou 92 mestres. Curso ainda
jovem, mas, considerando a realidade da pós-graduação brasileira, especifica-
mente da área das humanidades, e mais especificamente ainda por se situar fora
dos grandes centros do País, esta é uma conquista que merece ser comemorada.
O livro Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise
em Mato Grosso do Sul é uma das ações para marcar esses dez anos com-
pletados em 2021. Mais do que isso, contém uma síntese de parte da densa
produção científica do curso acumulada nessa década. É uma demonstra-
ção inequívoca do avanço da pesquisa científica na área da comunicação
em Mato Grosso do Sul e também uma forma de prestação de contas à
sociedade sobre as análises, pesquisas e reflexões sobre os meios de comuni-
cação, segmento que tem papel fundamental no desenvolvimento de uma
sociedade, em sua formação cultural, social, econômica política e identitá-
ria. Ou seja, estudar a mídia é buscar conhecer elementos constituintes da
sociedade e do comportamento social.
O PPGCOM da UFMS é o primeiro de Mato Grosso do Sul e o
quarto da Região Centro-Oeste, após o da Universidade de Brasília (UnB
– 1974), Universidade Federal de Goiás (UFG – 2007) e ao da Universida-
de Católica de Brasília (UCB – 2008). O Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso foi criado em 2020.
A expectativa em torno da criação do PPGCOM da UFMS se acen-
tuou em 2005 quando a instituição chegou a anunciar oficialmente sua
criação para o início de 2006, em parceria com a Universidade de Brasília.1
1 De acordo com Fernandes (2020, p. 75), “Em dezembro de 2005, com a manchete Reunião em
Brasília define Mestrado em Jornalismo para 2006, o site da UFMS estampava a notícia da criação
do curso na modalidade Minter (Mestrado Interinstitucional), resultante da parceria entre as duas
instituições. O site da UFMS (apud FERNANDES, 2020, p. 75) assim enfatizava a conquista:
“O resultado da reunião de trabalho no prédio da reitoria da Universidade de Brasília, no dia 20
de dezembro, não poderia ser mais auspicioso: representantes da UFMS e da UnB definiram que
será lançado em 2006, em Campo Grande, o pioneiro Mestrado em Jornalismo. A proposta que
será encaminhada à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do
Ministério da Educação, deve ter como área de concentração “Jornalismo e Cultura Regional”. Na
época, havia apenas 17 Programas de Pós-Graduação em Comunicação no País, dois de Ciências
da Comunicação e um em Multimeios.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 13


Porém, a proposta não se concretizou. Não por acaso, em razão desse tem-
po de espera, quando da implantação do curso em agosto de 2011, 47 can-
didatos inscreveram-se no primeiro processo seletivo. Dos dez selecionados,
nove obtiveram a titulação de mestre em 2013: Barbara Cunha Ferragini,
Cleidson de Lima Silva, Eduardo Pereira Romero, Fabrício Barbosa Cas-
siano, Janaína Ivo da Silva, Júlia Celi Torrecilha, Lucas Marinho Mourão,
Michelle Rossi e Sidnei Carlos Santos Bonfim Ferreira. Iniciava, assim, a
produção científica dos discentes do Programa.
Os docentes que iniciaram o curso foram: Álvaro Banducci Júnior,
Daniela Cristiane Ota, Dercir Pedro de Oliveira, Gerson Luiz Martins,
Greicy Mara França, Márcia Gomes Marques, Marcelo Vicente Câncio
Soares, Mario Ramires Marques, Mario Luiz Fernandes e Ruth Penha
Alves Vianna. Com algumas alterações naturais do tempo, o curso conta
atualmente com os professores Daniela Cristiane Ota, Gerson Luiz Mar-
tins, Júlio Bezerra, Katarini Giroldo Miguel, Márcia Gomes Marques,
Marcos Paulo da Silva, Mario Luiz Fernandes, Rose Mara Pinheiro e Taís
Fenelon. Desde março de 2020 é coordenado por Marcos Paulo da Silva
e já teve como coordenadores Mario Luiz Fernandes (08/2011 a 10/2014),
Marcelo Vicente Câncio Soares (10/2014 a 12/2018) e Gerson Luiz Mar-
tins (12/2018 a 03/2020).
Sua Área de Concentração é Mídia e Representação Social e tem
como Linhas de Pesquisa Mídia, Identidade e Regionalidade; Linguagens,
Processos e Produtos Midiáticos. Tem como objetivos: formar pesquisado-
res; desenvolver estudos e técnicas voltadas à qualificação profissional e para
o exercício da docência em comunicação; promover pesquisas científicas
que busquem investigar a complexidade da comunicação, notadamente no
que diz respeito ao seu caráter regional e às linguagens e processos midiáti-
cos, visando contribuir para o conhecimento científico.
A Área de Concentração, entre outros aspectos, “investiga os meios
de comunicação social como instrumentos culturais nas mediações do pro-
cesso de construção da identidade, da sociabilidade, da memória social e
das práticas sociais, políticas e culturais” (PPGCOM UFMS), estabelecen-
do, desse modo, o vínculo do Programa com o contexto social e midiático
sul-mato-grossense.
Nesses dez anos, foram inúmeras ações visando à qualificação do
curso. Entre elas, vale citar a edição da Esferas – Revista Interprogramas
de Pós-Graduação em Comunicação do Centro-Oeste, desde novembro de
2012. A publicação é resultado da cooperação acadêmica entre os Progra-
mas de Pós-Graduação em Comunicação da UNB, UCB, UFG e UFMS.
Entre 2014 e 2020, o PPGCOM da UFMS também celebrou parceria com
o PPGCOM da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte (UFRN) e desenvolveu o projeto de pesqui-
sa Comunicação e mediações em contextos regionais: usos midiáticos, cul-
14 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
turais e linguagens, financiado pela Capes através do edital Procad. Além
da publicação de dois livros em parcerias com esses Programas, realização
de seminários com a participação de alunos e professores e de cursos de
pós-doutorado, o projeto propiciou que 11 (20,7%) dos 53 mestrandos que
ingressaram no PPGCOM entre 2014 e 2018 cursassem um semestre de
disciplinas na USP e na UFRN.
Uma ação que fortaleceu sobremaneira a criação do curso foi a co-
operação acadêmica internacional firmada entre o Departamento de Jor-
nalismo da UFMS e o Laboratório de Audiovisual e Comunicação (LAI-
COM) da Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), articulada entre
2007 e 2008 pela professora Ruth Penha Alves Vianna quando da realização
do seu pós-doutorado naquela instituição. O Projeto Cooperación científica
entre España e Brasil para el desarrollo de un protocolo de control de cali-
dad de los contenidos audiovisuales (QC), com o apoio da Capes e DGU
(Espanha), além de amplo intercâmbio de pesquisa, missões de estudos de
docentes e dois seminários internacionais, também viabilizou a realização
do pós-doutorado dos professores Gerson Luiz Martins e Márcia Gomes
Marques na UAB.
O Congresso Internacional de Ciberjornalismo, criado em 2007
pelo grupo de pesquisa “Estudos de Ciberjornalismo”, coordenado pelo
professor Gerson Luiz Martins, também deixou sua marca no curso quando
da sua realização até 2017.
Neste percurso, a produção científica do Programa já acumula con-
siderável nível de conhecimento sobre a mídia de Mato Grosso do Sul.
Camy e Pinheiro realizaram um estudo sobre as dissertações defendidas
entre 2013 e 2018 para analisar os principais elementos constitutivos dessas
pesquisas. Primeiros indicadores: no período foram 58 dissertações orienta-
das por 12 docentes, sendo 30 na Linha de Pesquisa de Regionalidade e 28
na Linha de Linguagens. Dos mestres titulados (30 mulheres e 28 homens),
81% desenvolveram suas pesquisas na área do jornalismo; 40% haviam re-
alizado sua graduação na própria UFMS. Desses 58 mestres, 82% atuam
na área da comunicação na região ou em outros estados, sendo que desses,
31% seguiram a carreira acadêmica.
Avançando em relação às pesquisas propriamente ditas, quanto ao
tipo de mídia, 16 tiveram como objeto de estudo a internet, 13 a televisão,
11 o jornal impresso, o cinema e rádio foram quatro cada. Na avaliação das
pesquisadoras, este perfil revela “um crescimento de interesse na influência
das tecnologias digitais, no modo de produção jornalística e na relação com
o usuário (CAMY; PINHEIRO, 2020, p. 93). Nesse contexto, os veículos
mais estudados foram, respectivamente: Campo Grande News, Correio do
Estado, O Estado MS, MídiaMax, O Progresso, Rádio Educativa 104, Blink
FM, TV Morena, SBT TV e Record MS.
Como o exposto nesta breve síntese histórica e sobre o perfil das pes-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 15
quisas desenvolvidas, este livro é uma extensão de parte dessa produção. Os
capítulos nas páginas a seguir trazem adaptações de 12 dissertações defen-
didas entre 2017 e 2020 e da pesquisa de pós-doutorado realizada pelo pro-
fessor Oswaldo Ribeiro (UCDB) no PPGCOM da UFMS, sob a orientação
do professor Marcelo Câncio. As dissertações foram selecionadas pelos res-
pectivos orientadores. Como se observará, estes trabalhos estão articulados
com a Área de Concentração, bem como com as Linhas de Pesquisa do
Programa. São estudos e análises que têm a mídia sul-mato-grossense como
principal objeto de pesquisa, constituindo-se, assim, em uma nova fonte de
conhecimento para pesquisadores, estudantes e interessados em geral sobre
esse segmento tão presente no cotidiano das pessoas.
O livro está dividido em três eixos estruturantes. A primeira parte –
Contextos midiáticos regionais e de fronteira – reúne pesquisas específicas
sobre a mídia na região de fronteira e mapeamento do rádio em todo o Mato
Grosso do Sul. O primeiro capítulo, desenvolvido por Aline de Oliveira
Silva e Hélder Samuel dos Santos Lima, sob orientação da professora
Daniela Ota, traz a cartografia da migração das rádios AMs para as FMs
em todo o estado. A pesquisa de Ana Barbosa de Souza, também orientada
pela professora Daniela, analisa a programação informativa de emissoras de
rádio em Ponta Porã e Pedro Juan Cabalero. No terceiro capítulo, Gesiel
Rocha de Araújo e o professor Marcelo Vicente Câncio Soares investigam
a dicotomia na imprensa online de fronteira como um fórum de debates ou
espaço de superficialidade. A análise do documentário Planuras, sobre o
Pantanal, é o enfoque da pesquisa desenvolvida por Victor Hugo Sanches
Pereira, orientada pelo professor Hélio Godoy.
Na segunda seção – Discurso midiático político e social – estão tra-
balhos sobre análises discursivas da mídia envolvendo temas políticos e so-
ciais. A pesquisa de Alline Ribeiro de Góis, orientada pelo professor Mario
Luiz Fernandes, analisa o discurso do jornal Correio do Estado em apoio à
instalação do governo ditatorial no Brasil em 1964. A cobertura da impren-
sa local sobre conflitos entre indígenas e ruralistas é o objeto da pesquisa
de Maurício de Melo Raposo, orientado pelo professor Marcos Paulos da
Silva. O discurso sobre o suicídio por portais de notícias de Campo Grande,
outro tema de relevante alcance social, é o enfoque de estudo de Patrick
Alif Fertrin Batista, orientado pela professora Márcia Gomes. O portal de
notícias Campo Grande News também foi objeto de estudos relativo à sua
cobertura sobre os direitos humanos, pesquisa de Lynara Ojeda de Sou-
za sob orientação da professora Katarini Miguel. O capítulo de autoria de
Naiane Gomes de Mesquita e da professora Rose Mara Pinheiro investiga a
trajetória da educomunicação em Mato Grosso do Sul, tendo como ponto
de partida a promoção do projeto Educomrádio.Centro-Oeste.
Por fim, a terceira parte – Produção midiática, tecnologias digitais e
interatividade – apresenta estudos sobre o uso das mídias digitais/redes so-
16 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
ciais na produção da notícia ou na interação dos veículos de comunicação
com seu público. Cláudia Regina Ferreira Anelo, orientada pela professora
Taís Fenelon, estudou o uso do WhatsApp na interação do Telejornal da
MS Record com os telespectadores. Em sua pesquisa de estágio pós-douto-
ral desenvolvido no PPGCOM da UFMS, Oswaldo Ribeiro, sob orientação
do professor Marcelo Câncio, analisou as transmissões de conteúdos jorna-
lísticos ao vivo no Facebook por diferentes veículos de Campo Grande. O
uso do WhatsApp no processo de produção da notícia no ciberjornalismo
de Mato Grosso do Sul foi o foco do estudo de Ângela Eveline Werdemberg
dos Santos, orientada pelo professor Gerson Luiz Martins.

Referências

FERNANDES, Mario Luiz. Mestrado com foco na regionalidade e linguagens


jornalísticas. In FERNANDES; PERES. Entre tempos: 30 anos do curso de
Jornalismo da UFMS. Campo Grande: Editora UFMS, 2020. Disponível em
https://jornalismo.ufms.br/entre-tempos/ Acessado em 04/10/2020.
CAMY, Marcele Aroca; PINHEIRO, Rose Mara. Análise das dissertações de-
fendidas no Mestrado. In FERNANDES; PERES. Entre tempos: 30 anos do
curso de Jornalismo da UFMS. Campo Grande: Editora UFMS, 2020. Dispo-
nível em https://jornalismo.ufms.br/entre-tempos/ Acesso em 04/10/2020.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UFMS.
www.ppgcom.ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 17


Parte I

Contextos midiáticos regionais e fronteira


O contexto radiofônico em Mato Grosso do Sul:
cartografia, migração para FM e presença na web1
Aline de Oliveira SILVA2
Hélder Samuel dos Santos LIMA3
Daniela Cristiane OTA 4

Introdução

Um dos meios de comunicação mais resistentes ao avanço das trans-


formações tecnológicas, o rádio completou em 2019 seu centenário de exis-
tência no Brasil. Desde a inauguração da Rádio Clube de Pernambuco em
6 de abril de 1919 por Oscar Moreira (BARBOSA FILHO, 2009, p. 39), o
meio tem-se adaptado e convergido em novas plataformas no intuito de se
manter atrativo sem perder sua essência principal: o áudio.
No então estado Mato Grosso uno5, o rádio fora implementado na
década de 1930 de forma artesanal e amadora, semelhante ao que aconte-
ceu na Rádio Clube de Pernambuco. Coube ao município de Corumbá o
pioneirismo da primeira estação a partir da transmissão de A voz de Corum-
bá, instalada pelo engenheiro Carlos Miguel Mônaco e inaugurada oficial-
mente em 13 de junho de 1935 (BÁEZ apud, MOREIRA, 2010, p. 7).
Após o impulso corumbaense, outras emissoras foram sendo constituí-
das em diversos municípios da porção sul de Mato Grosso operando em Ampli-
1 Este capítulo resulta de dados de duas dissertações. A primeira: A migração do Rádio AM para
FM em Mato Grosso do Sul: um estudo comparado das Rádios Caçula e Difusora Pantanal, desen-
volvida por Helder Samuel dos Santos Lima, foi defendida no dia 24 de abril de 2018 no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCOM/
UFMS). A banca foi composta pela orientadora Profa. Dra. Daniela Cristiane Ota (UFMS), Prof.
Dr. Mário Luiz Fernandes (UFMS) e Prof. Dr. Oswaldo Ribeiro da Silva (UCDB). A segunda:
Programa Grande FM Rural: Um estudo de caso sobre jornalismo rural em Dourados (MS), desen-
volvida por Aline de Oliveira Silva, foi defendida em 30 de abril de 2020, tendo como membros da
banca a orientadora Profa. Dra. Daniela Cristiane Ota (UFMS), Prof. Dr. Mário Luiz Fernandes
(UFMS) e Prof. Dr. Wilson da Costa Bueno (USP).
2 Mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Especia-
lista em Assessoria de Comunicação pela Faculdade Estácio de Sá, graduada em Comunicação
Social – Jornalismo pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal
(Uniderp). E-mail: alineolsilva@hotmail.com.
3 Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (FIC/UFG). Mestre em Co-
municação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FAALC/UFMS). Graduação em
Jornalismo e Administração pela mesma universidade e especialização em Gestão Pública Muni-
cipal pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). E-mail: helder.lima@ufms.br.
4 Professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo. Doutora em Comunicação pela
Universidade de São Paulo (ECA/USP). Pós-doutora pela ECA/USP. E-mail: daniela.ota@ufms.br.
5 O território onde hoje está situada o município de Corumbá pertence ao estado de Mato Grosso
do Sul criado a partir da Lei Complementar Nº 31 de 11 de outubro de 1977, após o desmembra-
mento do Mato Grosso Uno.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 21


tude Modulada (AM). Em levantamento atualizado de julho de 2020, o atual
estado de Mato Grosso do Sul registra 230 emissoras cadastradas com outorga
no Sistema de Radiodifusão (SRD) da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel), sendo 89 emissoras em Frequência Modulada (FM) de baixa potên-
cia de caráter comunitário; 124 emissoras em FM nas modalidades educativa,
comercial; e 13 AM em Ondas Médias e quatro Ondas Tropicais6.
Este capítulo é resultado de duas pesquisas desenvolvidas no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da UFMS. A primeira reali-
zada entre 2016 e 2018, que resultou na dissertação A migração do Rádio AM
para FM: um estudo comparado das Rádios Caçulas e Difusora Pantanal, um
dos autores desse capítulo realizou o estudo cartográfico das estações sonoras
sul-mato-grossenses tendo como suporte dados da Geografia tais como tama-
nho populacional das cidades, extensão territorial e a importância econômica
que elas representam para a microrregião na qual estão inseridas.
A segunda pesquisa, desenvolvida a partir de 2018, resultou na disser-
tação Programa Grande FM Rural: Um estudo de caso sobre jornalismo rural
em Dourados (MS), defendida no ano de 2020 por uma das autoras na qual se
abordou o único programa de radiojornalismo rural no estado, veiculado no
município de Dourados. Soma-se às pesquisas; também, um levantamento
referente ao número de web rádios existentes no estado, no mês de abril de
2020, por intermédio do portal Rádios.com. Com um total de 385 emissoras,
observou-se a predominância de conteúdo musical e religioso. A título de
esclarecimento, na capital Campo Grande, existem 112 rádios virtuais das
quais três priorizam o conteúdo jornalístico.

A Geografia e a distribuição espacial das rádios em Mato Grosso do Sul

Com a sexta maior área territorial do Brasil, equivalente a 357.145,531


km2 correspondendo a 4,19% do total do País e 22,23% da área do Centro-
-Oeste, o estado de Mato Grosso do Sul possui 79 municípios concentrados
em seus centros urbanos administrativos e 86 distritos (BRASIL, 2015).
De acordo com dados de 2016 do IBGE, o estado possui uma popu-
lação estimada em 2.682.386 habitantes, sendo a sétima menor do Brasil.
Com a segunda menor densidade demográfica do Centro-Oeste de 7,51
habitantes/km2 (IBGE, 2016), a maior parte da população se encontra na
região urbana dos municípios correspondendo a 85,64% da população es-
tadual (IBGE, 2014).
6 As quatro outorgas para emissoras em Ondas Tropicais são: Rádio Novo Tempo de Campo Gran-
de que já migrou e opera apenas em FM; Rádio Difusora de Aquidauana que também já opera
em FM e desde 2000 não transmite em OT; Rádio Imaculada Conceição de Campo Grande que
aguarda os trâmites do Ministério das Comunicações para concluir a migração; e a Rádio Alvorada
de Dourados que não possui registro de funcionamento, embora a concessão esteja cadastrada no
Sistema de Radiodifusão da Anatel.

22 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Com o intuito de traçar metas de planejamento, subsidiar estudos
regionalizados e locais e promover políticas públicas para o desenvolvimen-
to, o IBGE divide o estado de Mato Grosso do Sul em quatro mesorregiões
(Pantanal Sul-Mato-Grossense, Leste, Sudoeste e Centro-Norte) levando-se
em consideração as realidades geográficas, econômicas, sociais e política
dos 79 municípios (BRASIL, 2015, p. 18).
As quatro mesorregiões, por sua vez, são subdivididas em 11 micror-
regiões, conforme Tabela 1: duas na mesorregião do Pantanal sul-mato-gros-
sense (Aquidauana e Baixo Pantanal) e no Centro-Norte de Mato Grosso
do Sul (Alto Taquari e Campo Grande), quatro na mesorregião Leste (Cas-
silândia, Nova Andradina, Paranaíba e Três Lagoas) e três na Sudoeste (Bo-
doquena, Dourados e Iguatemi).
Tabela 1- Mesorregiões geográficas, Microrregiões e respectivos municípios

Fonte: BRASIL, 2015.


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 23
Os dados da Tabela 1 revelam que as microrregiões lideradas por
Campo Grande, Dourados e Três Lagoas apresentam os maiores índices de
desenvolvimento econômico. As três são responsáveis por 66,17% da rique-
za gerada em Mato Grosso do Sul, segundo os resultados do PIB de 2013.
Enquanto na microrregião de Campo Grande o desenvolvimento
advém do setor de comércio, serviços e da atividade industrial, a microrre-
gião de Dourados é impulsionada pelo setor agropecuário com a produção
de grãos e cana-de-açúcar e principalmente pela agroindústria.
Com posição estratégica privilegiada na divisa com o estado de São
Paulo, a microrregião de Três Lagoas se desenvolve graças ao fortalecimento
da atividade industrial no município. A economia dessa região é reforçada
também pela pecuária de corte e atividade florestal (BRASIL, 2015, p. 10).
As outras oito microrregiões juntas representaram 33,82% do PIB estadual
em 2013, cuja economia gira em torno da pecuária de corte, produção de
leite, lavouras e a agroindústria.
A partir da catalogação desses dados fornecidos pela Geografia tais
como estimativa populacional tendo como referência o ano de 2016 pelo Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Produto Interno Bruto
(PIB) per capita de 2013, e o total de municípios por microrregião, realiza-
mos a cartografia das estações radiofônicas sul-mato-grossense. Por meio desse
levantamento, observamos que o rádio é sem dúvida o meio de maior abran-
gência estando presente em 76 dos 79 municípios, ou seja, praticamente 96%
do território estadual, conforme será detalhado a seguir.

Tabela 2 - Distribuição das Emissoras Radiofônicas por Microrregião

Fonte: Do autor com informações do IBGE, SRD

De acordo com a Tabela 2, podemos observar que as emissoras co-


24 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
merciais e comunitárias estão predominantemente situadas nas microrre-
giões de Campo Grande e Dourados, que, além de apresentarem o maior
contingente populacional do estado, respondem pela maior fatia do PIB per
capita estadual. Embora Campo Grande lidere os índices PIB e população,
Dourados sai à frente no número de emissoras comunitárias por possuir
maior extensão territorial representada por quinze municípios, ante os oito
que compõem a micro de Campo Grande.
Outro destaque que a Tabela 2 aponta é a predominância de emisso-
ras na microrregião de Iguatemi. Destaca-se que esta é formada pelo maior
número de municípios do estado e apresenta o terceiro maior contingente
populacional, o que justifica a quantidade considerável de estações outor-
gadas. Por outro lado, a micro de Cassilândia, além de apresentar o menor
número de emissoras, possui também a menor população do estado, con-
forme indica a Tabela 2.
Embora não haja emissoras constituídas em todos os municípios de
Mato Grosso do Sul, a pesquisa traz dados que levam a pressupor que a
transmissão radiofônica das estações sonoras consiga cobrir praticamente
100% do território do estado. Dentre os municípios do estado que não pos-
suem estações de rádio estão Figueirão na microrregião do Alto Taquari; Ja-
teí na microrregião de Iguatemi e Douradina na microrregião de Dourados,
ambos no Cone-Sul do estado.
O município de Figueirão foi fundado em 2005, oriundo do des-
membramento dos territórios de Camapuã e Costa Rica e está a um raio de
55 km de Alcinópolis, onde há cobertura de emissora FM. Já o município
de Jateí está numa distância de 15 km de Glória de Dourados e 32 km de
Deodápolis. Assim, partimos da suposição de que o município capte o sinal
das cidades vizinhas. Situação semelhante é também vivenciada por Dou-
radina que fica a aproximadamente 38 km de distância do município de
Dourados e 32 km de Itaporã.

Migração para FM

O fenômeno da migração das rádios em Amplitude Modulada (AM)


representou um divisor de águas para o setor de radiodifusão brasileiro. Dian-
te da concorrência acirrada dos demais meios de comunicação de massa, ini-
cialmente com o surgimento da televisão na década de 1950 e posteriormen-
te com a criação das estações em Frequência Modulada (FM), as rádios AM
já não possuíam mais fôlego para driblar a concorrência, agora digital através
da internet.
Para se reposicionar no mercado e superar este cenário de concorrência
estabelecido pela Internet e sobretudo pelas próprias FM, que por sua natureza
possuem qualidade de áudio superior as AM, diversas alternativas foram discuti-
das pelo Governo Federal e pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 25
Televisão (Abert) a partir de 2010. Em maio daquele ano, a Anatel publicou um
estudo de viabilidade técnica da migração do rádio AM para a faixa de FM que
foi apresentado ao Conselho de Rádio da Abert e aos presidentes das associações
estaduais de radiodifusão pelo Ministério das Comunicações.
Após a aprovação da proposta pela Abert, um novo documento foi en-
tregue ao ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, para análise técnica da
Casa Civil. Finalizadas as negociações e confirmada a viabilidade do processo,
no dia 7 de novembro de 2013, data em que se comemora o dia do radialista, a
então presidente Dilma Rousseff (PT) assinou o decreto 8.139 permitindo a mi-
gração das emissoras AM para FM. A data anunciava o fim da transmissão sonora
em Ondas Médias (OM) de caráter local, modelo de rádio pioneiro no país.
Em todo o Brasil, radiodifusores celebraram a medida antevendo a
abertura de novas possibilidades para as emissoras AM no intuito de conter
o cenário de crise. De acordo com dados do Ministério da Ciência, Tecno-
logia, Inovações e Comunicações (MCTIC) de um total de 1.781 emissoras
AM em OM, 1.421 solicitaram a mudança de faixa para FM. Em Mato
Grosso do Sul, das 55 aptas a migrarem para o novo dial, 53 solicitaram a
mudança, ou seja, 96% do total de estações em Ondas Médias do estado.
Em relação atualizada em julho de 2020, o Ministério das Comunica-
ções revela que 40 estações que solicitaram a migração já foram autorizadas a
operar no novo dial, conforme relação abaixo:
Tabela 3 - Emissoras em Ondas Médias que migraram para FM em MS

26 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Fonte: SRD Anatel, 2020.

Dentre 13 as entidades que ainda não receberam autorização do Mi-


nistério das Comunicações para operar em FM estão: Bonito Comunicação
de Bonito; Camy Telecomunicações Ltda e Rádio Imaculada Conceição de
Campo Grande; Xaraés Comunicações Ltda de Chapadão do Sul; Rádio
Clube de Corumbá; Rádio Dourados do Sul, Rádio Clube de Dourados e
Empresa de Radiodifusão Tupinambás Ltda (as três de Dourados); Rádio
Regional de Fátima do Sul; Sociedade Rádio Itaporã; Sistema de Rádio e
Televisão Vale do Sucuriú de Nioaque e de Ribas do Rio Pardo; e Socie-
dade Rádio Ponta Porã. Como já mencionado em trabalhos anteriores, a
Rádio Atalaia de Sete Quedas não consta como requisitante de migração no
Ministério das Comunicações.
A Rádio Caçula de Três Lagoas foi a primeira a migrar e opera em
FM desde o dia 9 de janeiro de 2017, seguida da Rádio Portal de Bataguas-
su, que migrou para FM no dia 28 de março de 2017. Na capital do estado,
a Rádio Difusora Pantanal foi a pioneira iniciando as transmissões em FM
no dia 1º de junho de 2017.
Em pesquisa realizada entre 2016 e 2018, pudemos identificar que a
migração ocasionou impactos diferenciados nas emissoras pesquisadas. Na
capital, por exemplo, a migração apresentou mudanças significativas nas
emissoras e passaram a apostar numa programação segmentada. Conforme
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 27
Ferraretto (2014, p.48-49), a segmentação pode englobar programas especí-
ficos ou a grade geral da emissora, correspondendo a um “processo em que,
a partir da conciliação entre os anseios, interesses, necessidades e/ou objeti-
vos do emissor e do receptor, além da identidade construída pelo primeiro,
foca-se o rádio, em qualquer uma de suas manifestações comunicacionais,
em dada parcela do público”.
Ortriwano (1985, p.28) ressalta que, além de oferecer uma progra-
mação para faixas de público específicos, a “especialização” ou “segmen-
tação” conforme definição de Ferraretto (2014) possibilita aos anunciantes
divulgarem produtos voltados para aquele determinado público. Segundo
ela, a especialização ou segmentação ocorreu pela “necessidade de atender
ao mercado, onde existem diversas faixas socioeconômicas que precisam ser
exploradas adequadamente” (ORTRIWANO, 1985, p.29).
Na capital, a Rádio Difusora Pantanal em AM, objeto de estudo de
um dos pesquisadores, possuía uma programação que priorizava os gêneros
entretenimento com formato musical, jornalístico e policial, jornalístico e
opinativo, e programas esportivos. Boa parte dos programas tradicionais de
AM com enfoque em notícia policial e jornada esportiva foram retirados da
grade para priorizar conteúdos mais homogêneos.
O processo de migração na Difusora Pantanal resultou numa progra-
mação que prioriza o formato musical sertanejo, visando atingir um públi-
co definido e se diferenciar das demais emissoras FM comerciais e educati-
vas que já operam em Campo Grande. Com a identidade em construção,
a emissora se orgulha de ser uma rádio voltada para o público que aprecia
a música sertaneja. Tanto é assim que o slogan da emissora passou a ser “A
rádio que toca modão”, em alusão ao gênero musical predominante.
Fenômeno semelhante de segmentação ocorreu na Rádio Concórdia
AM que passou a ser denominada CBN Campo Grande7 cuja programação
é totalmente destinada ao gênero jornalístico. A mudança na programação
foi significativa, pois a emissora durante anos esteve arrendada para igrejas.
Assim, a emissora substituiu o formato religioso pelo jornalístico.
Movimento inverso ocorreu numas das emissoras AM pioneiras e tra-
dicionais de Campo Grande, a Rádio Cultura. Ao migrar para FM, passou
a ser denominada Rádio H’ora8 com programação gospel voltada exclusiva-
mente para o segmento evangélico. O slogan, inclusive, reforça a identida-
de religiosa “A rádio que você ora e adora toda hora”.
7 A CBN Campo Grande integra o sistema all News e faz parte do Sistema Globo de Rádio com mais
de trinta afiliadas em todo o País. Em Mato Grosso do Sul, a CBN Campo Grande faz parte do grupo
RCN de Comunicação com sede em Três Lagoas. O grupo soma 9 veículos entre jornal impresso,
TV, site e estações de rádio no estado (JP NEWS, 2017). Disponível em: < https://www.jpnews.com.
br/campo-grande/cbn-fm-lanca-modelo-inovador-de-jornalismo-em-campo-grande/104772/>.
Acesso em: 18 ago. 2020.
8 Disponível em: <http://www.ojacare.com.br/2017/08/01/cultura-some-apos-68-anos-e-cede-lugar-
-para-3a-radio-evangelica-24-horas-de-campo-grande/>. Acesso em: 25 jan. de 2018.

28 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


A Rádio Ativa inicialmente, ao migrar, esteve vinculada à Rádio
Deus é Amor, e transmitia em rede a programação religiosa da Igreja Peten-
costal Deus é Amor. Desde agosto de 2019 se tornou Rádio Morena Easy
adotando formato de programação adulto-contemporâneo e integra a Rede
Matogrossense de Comunicação (TUDO RÁDIO, 2019).
Em dezembro de 2017, a AM Capital iniciou as transmissões em
FM e passou a ser denominada Rádio Globo. A emissora integrava o Siste-
ma Globo de Rádio e retransmitia a maior parte da programação na frequ-
ência 95,3. Em 1º de junho de 2020, afiliou-se à Rede Jovem Pan paulista
conhecida nacionalmente pelo programa Pânico (A CRÍTICA, 2020).
No interior do estado, na Rádio Caçula, que foi objeto de estudo de
um dos autores, o processo de migração representou mudanças pontuais na
programação. Isso se deve à realidade local do município no qual está inseri-
da, relacionado sobretudo à posição geográfica, aspectos econômicos, cultu-
rais e históricos que resultam em públicos distintos. Na emissora, a migração
para FM representou apenas uma adaptação à tecnologia, ou seja, uma al-
teração de dial, uma vez que a emissora manteve em FM características de
sua programação em AM com a replicação de maior parte dos programas. Ao
contrário das emissoras da capital, é comum no interior que a segmentação
ocorra por horários e não na grade da emissora como um todo.
Outro aspecto identificado em nosso mapeamento da mídia radio-
fônica de Mato Grosso do Sul, que tem sido uma tendência em nível na-
cional, é a aquisição de programas gravados de agências de produção para
complementar parte da programação, ou ainda a adesão as redes de rádio
numa reprodução completa da cabeça de rede desprezando neste caso o
contexto local.
Se, por um lado, os custos são menores para os radiodifusores, o que
acaba se tornando uma vantagem para a direção da emissora, a reprodução
de programas gravados ou a transmissão em rede, como tem acontecido em
outras rádios migradas como a CBN Campo Grande (extinta AM Concór-
dia) e Rádio Jovem Pan (extinta AM Capital), torna as emissoras reféns de
uma programação engessada e sem vínculos com a realidade local. Esta
tem sido uma das preocupações levantadas por diversos pesquisadores do
rádio no Brasil.
Em 1985, Ortriwano já repercutia essa problemática ao destacar que
a formação de redes impactava nas características culturais, restringia o
mercado de trabalho aos profissionais de rádio e impedia a manifestação da
criatividade local. “[...] o rádio corre o risco de apresentar programas des-
vinculados da realidade local, perdendo com isso a força da proximidade,
da programação feita com base em hábitos e costumes específicos com o
linguajar da região” (ORTRIWANO, 1986, p.33-34).
Além de trazer ao local aspectos de outra realidade espacial, os pro-
gramas gravados excluem as características principais do meio tais como o
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 29
imediatismo, a instantaneidade e a interatividade. O ouvinte quer falar com
o locutor. Ele sente a necessidade de ter o seu pedido musical atendido. Ele
gosta do afago, do alô, muito comum nas tradicionais rádios AM, algo que
se tem perdido em estações que apostam nesse modelo de programação.

Aspectos regionais dos gêneros radiofônicos em Mato Grosso do Sul

O histórico do rádio em Mato Grosso do Sul demonstra que o meio


sempre esteve presente no cotidiano da população, mesmo antes da eman-
cipação política, consolidada há pouco mais de quatro décadas. Quando
se analisa o modelo de programação das emissoras (BARBOSA FILHO,
2003), observa-se ainda que os gêneros radiofônicos predominantes no ce-
nário regional são: entretenimento, publicitário, propagandístico, de servi-
ço e jornalístico.
Contudo, faz-se necessário estabelecer a diferença entre gênero ra-
diofônico e radiojornalístico, conforme conceituado por Lucht (2009, p.36).
“Enquanto, o primeiro refere-se a todos os gêneros praticados no rádio, o
segundo contempla os preceitos jornalísticos de imediatismo, proximidade,
mobilidade e universalidade”.
Para McQuail (2012, p.336), um gênero midiático é definido por seu
enquadramento enquanto “categoria de conteúdo” e deve conter algumas
características básicas: “identidade coletiva que possa ser reconhecida tanto
pelos produtores e consumidores, compatibilizar forma e conteúdo, preser-
var padrões culturais e possuir uma estrutura narrativa que comporte um
repertório de variantes dos temas básicos”.
A explicação se faz necessária para justificar o perfil observado em
dois temas de pesquisa elaborados pelos pesquisadores, no que se refere à
preferência do público pelo entretenimento, em detrimento das informa-
ções jornalísticas nos programas radiofônicos regionais.
O primeiro estudo foi tema de uma dissertação de mestrado em co-
municação, que apresentou um estudo de caso sobre o único programa de
radiojornalismo rural no estado, veiculado no município de Dourados. Em
seguida são apresentados resultados de pesquisas desenvolvidas com foco nas
web rádios em atividade no estado, a fim de traçar um perfil dos gêneros ra-
diofônicos em funcionamento, bem como o espaço dedicado ao jornalismo
regional.

Radiojornalismo Rural

As emissoras pioneiras na criação de programas com foco no conteú-


do e público rural foram a Rádio Difusora AM de Corumbá, que em 1956,
deu início à veiculação do programa Alô Pantanal e a Rádio Educação Ru-
ral de Campo Grande que, em meados da década de 1960, criou A Hora
30 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
do Fazendeiro. Oferecendo uma programação direcionada às comunidades
rurais dos dois municípios, destacaram-se pela adoção do formato utilidade
pública, o qual, na conceituação de Klöckner (2000), atende a uma neces-
sidade imediata dos ouvintes ao prestar orientação para as pessoas sobre
assuntos que podem variar de documentos perdidos até orientações sobre
o trânsito. “A utilidade pública é serviço, mas não podemos reduzir serviço
à utilidade pública, o que tradicionalmente ocorre nas emissoras” (KLÖ-
CKNER, 2000, p. 12).
No caso corumbaense, o programa Alô Pantanal está no ar há 50
anos e é responsável por expressiva parcela de audiência da Rádio Difusora
AM de Corumbá. Veiculado de segunda-feira a sábado, das 12 às 14 horas,
funciona como o principal meio de comunicação entre os moradores das
propriedades rurais, localizadas na região do Pantanal (Nhecolândia e Paia-
guás). De acordo com um dos proprietários, Uriel Raghiant, a média diária
de anúncios alcança 40 solicitações, no entanto, há algumas décadas, o
número chegou a 200 avisos.
Em Campo Grande, o programa que se consagrou na prestação de
serviços e por oferecer conteúdo noticioso focado no meio rural foi A Hora
do Fazendeiro, na Rádio Educação Rural, eternizado na memória dos ou-
vintes, da área urbana e rural, pelo radialista Carlos Sebastian Achucarro, o
Juca Ganso, autor do bordão conhecido até os dias atuais “Quem ouvir, favor
avisar” (CORRÊA, 2014). O profissional de rádio comandou o programa por
mais de quarenta anos, quando teve que se afastar por problemas de saúde.
Entretanto, a emissora analisada no projeto de dissertação de mestrado
de Silva (2020) foi a rádio Grande FM 92,1 pelo fato de contar com o único
programa de radiojornalismo rural em funcionamento diário desde 2003, o
Grande FM Rural. A produção e a apresentação são realizadas pelo jornalista,
Cícero Faria, idealizador da iniciativa. Em entrevista realizada pela autora, o
entrevistado alega que, ao chegar a Dourados, percebeu que os produtores
e trabalhadores rurais necessitavam de conteúdo informativo sobre o setor
agropecuário, por isso apresentou a proposta do programa, que foi aceita pelo
proprietário da emissora, Antônio Tonanni.
A veiculação do Grande Rural FM é diária e transmitida das 6 às
6h30, de segunda-feira a sábado. A estrutura do programa é construída na
seguinte sequência: jingle do programa, destaques, meteorologia, cotações
agropecuárias, notícias do campo, sala de visita e fechamento. Além disso,
conteúdo é transmitido em tempo real pelo Facebook e gravado e armaze-
nado no canal do YouTube da emissora.
No entanto, o problema que norteou a pesquisa está subsidiado nos re-
sultados obtidos pela atividade agropecuária regional. O levantamento divul-
gado pela Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Siste-
ma Famasul, 2018), subsidiado com informações do Ministério da Indústria,
Comércio Exterior e Serviços (MDIC) comprovam o destaque nacional da
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 31
produção: 2º produtor nacional de carne bovina e produtos florestais, 4ª co-
locação na produção de cana-de-açúcar e milho e 5º na produção de soja.
Outra informação relevante diz respeito aos dados do último Censo
Agropecuário realizado no país pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE), em 2017. Mato Grosso do Sul registra 71.164 mil proprie-
dades rurais economicamente ativas, das quais 43.223 (61%) são de famílias
integrantes da agricultura familiar. Ainda que os números comprovem que
a principal atividade econômica do estado é a produção rural, os meios de
comunicação locais dedicam pouco espaço à produção de conteúdo noti-
cioso especializado.
A trajetória da imprensa rural aponta que o setor agropecuário sem-
pre sofreu resistência com espaço nos veículos de comunicação brasileiros,
salvo as produções especializadas, categorizadas como jornalismo especia-
lizado ou científico. O pesquisador Wilson da Costa Bueno foi responsável
pela organização de um livro sobre o assunto (2015) e relatou que, apesar
de a cobertura jornalística de temas ou áreas específicas não ser considerada
um fenômeno recente, demonstrou mais efetividade a partir da segunda
metade do século XX.
No caso regional, a primeira publicação rural foi o Jornal do Comér-
cio que circulou no período de 1921 a 1971 (PEREIRA, 2005), antes da
divisão territorial com Mato Grosso. Após a emancipação, o primeiro jornal
sul-mato-grossense com produção jornalística especializada em rural foi o
Terra e Safra, lançado em 1985 e permanecendo em atividade até 1988.
O panorama dos veículos que produzem conteúdo focado em jorna-
lismo rural na cidade de Campo Grande foi atualizado em maio de 2019 e
chegou aos seguintes resultados: um jornal impresso com conteúdo sema-
nal em jornalismo rural (Correio do Estado), dois jornais semanários im-
pressos, sendo um produzido especificamente com conteúdo rural (Jornal
Agroin) e o Correio de Corumbá, que conta com a editoria de agronegócio.
Quanto aos sites de notícias, 20 apresentam a editoria, no audiovisual, o MS
Rural, da TV Morena (retransmissora da Rede Globo) transmite um progra-
ma semanal (domingo) e a Rádio CBN 93,7, do grupo RCN (em Campo
Grande) registra a veiculação semanal (sábado) do programa CBN Agro.
A conclusão da pesquisa demonstrou que o público rural de Mato
Grosso do Sul, especificamente os agricultores familiares, não são represen-
tados nos programas de rádio regionais, visto que o material veiculado prio-
riza os interesses dos empresários rurais e grandes produtores de commodi-
ties como soja, milho, cana-de-açúcar e pecuária de corte. Nesse sentido,
entende-se que as transformações da sociedade contemporânea apontam
para a construção de uma realidade social, na qual os grupos e comunida-
des desejam ser representados. Culturas, hábitos, costumes, modernidade e
tradição se reconfiguram para atender às novas possibilidades de consumo
tecnológico.
32 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Web Rádio: pesquisa em construção

As primeiras experiências em web rádio datam do começo da década


de 1990, nos Estados Unidos, com a possibilidade de as emissoras amplia-
rem a transmissão radiofônica via satélite, por meio do sistema Digital Au-
dio Broadcasting (KUHN, 2000). A partir dos resultados positivos, em 1995
teve início o funcionamento da primeira emissora comercial, a rádio KLIF
de Dallas, transmitindo a programação ao vivo pela internet.
No cenário nacional, a Rádio Totem foi a primeira emissora a operar
exclusivamente no ambiente virtual, em 1998. No entanto, pesquisadores
apontam que, no mesmo período, foram identificadas iniciativas como o
programa Manguetronic (ITINOSI, 1997) e a Rádio Itatiaia de Minas Ge-
rais, que defende o pioneirismo de ser a primeira a veicular o sinal pela
internet (TRIGO-DE-SOUZA, 2003).
Ainda que tenham registrado um crescimento exponencial, dificul-
tando inclusive o monitoramento, faz-se necessário esclarecer a categoriza-
ção dos novos meios digitais em áudio. A pesquisadora Rachel Neuberger
argumenta que existem duas nomenclaturas distintas, as “rádios na web” e
as “web rádios”. O primeiro caso se refere às rádios tradicionais com ofer-
tamento de serviços radiofônicos ao vivo, em podcast, além de elementos
hipermidiáticos como som, imagens e textos na internet. Já as webs rádios
são consideradas um novo formato sonoro, tendo em vista que funcionam
exclusivamente no ambiente virtual. “Nesse caso, a rádio pode estar dispo-
nível somente em streaming ou utilizando recursos como gráficos, fotogra-
fias, textos, vídeos e outros elementos” (NEUBERGER, 2012, p. 125).
As mudanças estruturais e de conteúdo em web rádio ainda estão em
desenvolvimento, considerando que, no Brasil, registra 22 anos de ativida-
de. Ainda assim, pesquisadores apontam que a essência do rádio se mantém
no que se refere à proposta de interatividade com o público, à imediaticida-
de da informação e ao alcance ainda mais abrangente proporcionado pela
internet. Segundo Marcelo Kischinhevsky, alguns elementos confirmam
essa condição:

No âmbito dos conteúdos, surpreendentemente, persistem for-


matos e gêneros consolidados na programação das emissoras
desde os anos 1980 ou mesmo antes, tais como informativos, es-
portivos e shows de variedades, apesar do avanço das plataformas
digitais e de suas novas possibilidades. Percebe-se, no entanto, o
surgimento de novas formas de interação entre ouvintes e emisso-
ras, bem como dos ouvintes entre si, sobretudo via mídias sociais
e microblogs, extensões dos fóruns e chats nos primórdios da in-
ternet (KISCHINHEVSKY, 2016, p.55).

Em Mato Grosso do Sul, pesquisa realizada no mês de abril de 2020


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 33
identificou a existência de 385 web rádios em funcionamento, das quais 112
estão localizadas na capital, Campo Grande. O material foi coletado em le-
vantamento realizado no portal Rádios.com9, especializado na hospedagem
de rádios virtuais de todas unidades da federação. Na busca de informações
referentes às emissoras estão classificados os gêneros radiofônicos, número
de acessos totais mensais e os links para acesso.
Em Campo Grande, do total de emissoras com presença virtual, a
maioria apresenta programação musical e religiosa, sendo que somente três
se intitulam jornalísticas: Rádio CBN 93.7 FM, Rádio Jovem Pan 95.3 FM
e Rádio Web MS. Outras 44 emissoras informam ter conteúdo eclético, por
mesclarem boletins informativos, quadro de entrevistas e músicas.
As pesquisas realizadas pelas autoras em web rádio iniciaram em 2018,
com a análise da Rádio Web MS, considerada a primeira emissora privada,
no formato digital. O canal surgiu em 2005 com objetivo de ser um negócio
jornalístico com foco em notícias para capital, Campo Grande e cidades do
interior do Estado. O proprietário João Flores Júnior explicou que a ideia
foi inspirada no formato apresentado pelo programa institucional do governo
do Estado, o “MS no Rádio” que disponibilizava conteúdo informativo em
arquivos de podcast e posteriormente passou a ter uma web rádio.
De acordo com Flores, a intenção inicial era criar uma agência de
notícias, porém o jornalista percebeu que a rádio digital atraia muito mais
pessoas, tanto anunciantes quanto ouvintes e rádios comunitárias que reali-
zavam downloads dos arquivos de áudio para disponibilizar na programação
do interior do Estado. “Existe uma dificuldade muito grande nas cidades
mais distantes, pois existe pouca mão de obra especializada (jornalistas pro-
fissionais) e os pequenos negócios não têm condições de pagar um salário
condizente. Então, alcançamos um índice de penetração em 40 municí-
pios, porém, conforme íamos aperfeiçoando o conteúdo das reportagens e
entrevistas, passamos a cobrar pelo download e muitos parceiros alegaram
que não tinham condições de pagar pelo serviço”, observou. Atualmente o
conteúdo da página é acessado por dez municípios sul-mato-grossenses e
periodicamente de outros estados brasileiros, informou o proprietário.
O segundo objeto de estudo envolvendo rádios virtuais foi realizado
com relação ao programa MS no Campo, veiculado pela web rádio institu-
cional do governo estadual, por apresentar conteúdo focado em jornalismo
rural. Idealizado por uma equipe de jornalistas que compõem a assessoria de
comunicação, a emissora iniciou a transmissão pela internet em 8 de outubro
de 2017. O objetivo foi reunir informações sobre a administração pública,
serviços de utilidade pública, educação, cultura e agronegócio e disponibili-
zar gratuitamente o conteúdo para as emissoras de rádio existentes nas locali-
dades mais afastadas da capital.
9 Portal Rádios.com. Disponível em: https://www.radios.com.br/busca/?qMato+Grosso+do+Sul&-
qfilter-=completo . Acesso em 01 de abril de 2020).

34 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


A programação é desenvolvida em Campo Grande e disponibilizada
para 107 veículos, distribuídos nos 79 municípios sul-mato-grossenses. A
partir desse contexto e recortando um período de análise com duração de
um mês, em programa segmentado para o público rural - o MS no Campo -
observou-se que o conteúdo, ainda que seja de cunho institucional, atende
às prerrogativas do fato jornalístico, segundo consultado no Dicionário de
Comunicação, de Ciro Marcondes Filho. “O que é apreendido em rela-
ção aos acontecimentos da realidade objetiva e possível de produção de
informação nele baseada, ou ainda, o substrato para produção e difusão de
conteúdo de interesse coletivo” (MARCONDES FILHO, 2014, p. 194).
A análise do programa rural foi determinada pela falta de programas
que privilegiassem as informações para o homem do campo. O intuito foi
pontuar a realidade econômica do estado, considerado um dos maiores pro-
dutores de alimento e matéria-prima do Brasil. E em seguida provocar a re-
flexão acadêmica sobre o alcance de programação que privilegie produtores
e trabalhadores rurais, além de todos os personagens envolvidos na cadeia
produtiva do agronegócio.
O terceiro momento da pesquisa sobre web rádios regionais demons-
trou outro cenário peculiar, desta vez, na região sul de MS. O município es-
colhido foi Dourados, distante 224 quilômetros de Campo Grande e próximo
a fronteira com o Paraguai, especificamente a 124 quilômetros de Pedro Juan
Caballero. Conforme levantamento realizado pelo IBGE (2018), a cidade
soma 220.949 habitantes, considerada a segunda maior do estado em núme-
ros populacionais e a terceira em Produto Interno Bruto (PIB).
Com uma rica complexidade cultural, o município se destaca no
âmbito regional pelo desenvolvimento econômico proporcionado pela pro-
dução agrícola tecnificada e a existência de quatro instituições de ensino
superior, das quais duas são públicas. O fluxo de pessoas que transitam em
Dourados, advindas de diferentes regiões do país e do mundo contribuiu
para que a localidade registre números expressivos em veículos de comu-
nicação.
Levantamento realizado em 2019 confirma o seguinte panorama
de empresas de comunicação: três publicações impressas (jornais diários),
24 portais de notícias, cinco emissoras de televisão (retransmissoras) e 31
rádios, das quais 11 são irradiadas na frequência AM, FM e Comunitária.
Os 20 veículos restantes operam no sistema digital (web rádio), conforme
relatório consultado no período, pelo portal Rádio.com, responsável pela
hospedagem das emissoras em atividade no Brasil.
A perspectiva que norteia a pesquisa é a diversidade de veículos mi-
diáticos e a preferência dos ouvintes pelo ambiente virtual. Nesse sentido,
é oportuno lembrar uma das considerações feitas pelo filósofo Pierre Levy,
em sua obra “Cibercultura”:

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 35


A verdadeira democracia eletrônica consiste em encorajar, tan-
to quanto possível - graças às possibilidades de comunicação in-
terativa e coletiva oferecidas pelo ciberespaço -, a expressão e a
elaboração dos problemas da cidade pelos próprios cidadãos, a
auto-organização das comunidades locais, a participação nas de-
liberações por parte dos grupos diretamente afetados pelas deci-
sões, a transparência das políticas públicas e sua avaliação pelos
cidadãos (LEVY, 2010, p. 190).

Temos ainda, nas contribuições da Geografias da Comunicação,


uma gama de possibilidades para analisar como acontecem essas transfor-
mações nos processos de comunicação, seja na preferência do público por
determinados veículos, programas ou opções de entretenimento.
A contribuição de Milton Santos é fundamental para compreender e
esclarecer o acelerado processo de transformações registradas em diferentes
regiões do globo. No caso local, defende-se a conceituação feita pelo pes-
quisador: “O mundo está marcado por novos signos globalizadores, os quais
resultam em novos papéis do Estado, além de uma sociedade e economia
mundializadas” (SANTOS, 2013, p. 61).
Contudo, as mudanças se estendem para construção de uma reali-
dade social, na qual os grupos e comunidades desejam estar representados.
Cultura, hábitos, costumes, modernidade e tradição se reconfiguram para
atender às novas possibilidades de consumo tecnológico. O cidadão busca
a personalização da informação, da leitura, da música e dos meios de co-
municação que consome. Nesse sentido, cabe à academia aprofundar os
estudos regionais que apontem as lacunas e êxitos dos processos comunica-
cionais localizados em diferentes regiões.
A pesquisadora e docente Sônia Virgínia Moreira destaca que as
principais características das cidades midiáticas globais são verificadas nos
índices de produção, ofertas de serviços e no desenvolvimento de projetos
de mídia para distribuição internacional. Por isso é oportuno perceber que
fenômenos midiáticos, aparentemente isolados, podem ser identificados
em diferentes estruturas de comunicação. “Assim, a escala de mercado da
comunicação (a distância) em rede é local e global - e a participação de
países ou continentes nessas redes varia de acordo com o grau de acesso e
de consumo nacional” (MOREIRA, 2011, p. 16).

Considerações finais

As pesquisas realizadas sobre rádio em Mato Grosso do Sul demons-


tram a participação do meio na vida da população e os reflexos da identida-
de cultural da região. Uma gama de elementos econômicos e sociais mol-
dou a formatação da programação, passando pelo conteúdo informativo até
36 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
o entretenimento. Os recortes apresentados em todos os capítulos apontam
para um material valioso a ser explorado posteriormente.
Identificar o processo de produção radiofônica, a escolha da pro-
gramação, a recepção do público e as transformações advindas da chega-
da da internet são apenas alguns dos temas que permeiam as narrativas
sonoras. Ainda há muito a se pesquisar a fim de construir uma identida-
de regional para o rádio. No entanto, o meio demonstra sua resistência,
seja pelos produtores de conteúdo seja pelos ouvintes que permanecem
fiéis à programação.
Uma das alternativas para avançar na qualidade e profundidade dos
estudos é a interdisciplinaridade com outras áreas de conhecimento como
a Sociologia, Antropologia, Geografia e História. A junção desses saberes
possibilitará o registro de uma cultura rica, diversa e que se transformou em
velocidade, acompanhando a agilidade das plataformas digitais.

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Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 39


A programação informativa no rádio fronteiriço
em Ponta Porã e Pedro Juan Caballero1
Ana Barbosa de SOUZA2
Daniela Cristiane OTA3

Introdução

O tema da fronteira é singular e suscita muitas reflexões, está sem-


pre imerso numa problemática teórico-conceitual, uma vez que, para com-
preender todas as dimensões inerentes ao conceito, faz-se necessária uma
amplitude inter, multi e transdisciplinar. Contribuições de várias áreas do
conhecimento contemplam o estudo das fronteiras e diversos pesquisadores
têm-se debruçado sobre esse campo de estudo nas últimas décadas, consi-
derando as várias possibilidades que o tema permite.
No entanto, as referências bibliográficas são consideradas escassas e
ainda há muita investigação a ser explorada em torno do assunto. Nota-se
que as discussões sob a perspectiva da comunicação são importantes porque
permitem desvelar uma heterogeneidade particular, marcada pelas vivên-
cias, relações sociais, cotidiano e dinamicidade das comunidades fronteiri-
ças, que são espaços de integração e intercâmbio.
Nos espaços de integração entre os povos estão envolvidas questões
históricas, culturais e sociais que normalmente são incentivadas e até, de
certa forma, possibilitadas pela influência dos meios de comunicação que
disseminam conteúdos abordando o contexto fronteiriço. Como exemplo,
podemos citar o estado de Mato Grosso do Sul, que possui extensa linha
divisória com dois países, Paraguai e Bolívia, totalizando 1.517 quilômetros
de fronteira, e compreende as regiões Sul, Sudeste e Oeste do estado, dos
quais 1.131 quilômetros são com o Paraguai e 386 quilômetros com a Bolí-
via. Desse espaço, 730,8 quilômetros constituem uma faixa de fronteira seca
com esses dois países (IBGEa, 2018).
Nessa faixa de fronteira seca, as cidades de Ponta Porã, no Brasil
(BR), limítrofe com Pedro Juan Caballero, no Paraguai (PY), capital do
1 Capítulo baseado na dissertação A programação informativa no rádio fronteiriço: um estudo das
emissoras Nova 96,9 FM de Ponta Porã e Mburucuyá 980 AM de Pedro Juan Caballero, defendida
em 26 de maio de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (PPGCOM/UFMS). A banca foi composta pela orientadora Profa. Dra.
Daniela Cristiane Ota (UFMS), Prof. Dr. Mário Luiz Fernandes (UFMS) e Prof. Dr. Luãn José
Vaz Chagas (UFMT).
2 Mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail:
anabarbosapro@gmail.com
3 Professora associada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação e do curso de Jornalismo. Doutora em Comunicação pela
Universidade de São Paulo (ECA/USP). Pós-doutora pela ECA/USP. E-mail: daniela.ota@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 41


departamento de Amambay, destacam-se por possuírem características pró-
prias, tipo de integração regional e importância histórica. De acordo com
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Ponta Porã está distante
310 quilômetros da capital Campo Grande e tem população estimada de
91.082 mil habitantes (IBGEb, 2018). Pedro Juan Caballero encontra-se
distante 448 quilômetros da capital Assunção e, de acordo com Dirección
General de Estadística, Encuestas y Censos (DGEEC, 2018), a cidade pos-
sui 118.939 mil habitantes. Juntas, essas cidades reúnem mais de 210 mil
moradores.
Em tal espaço social, a atividade jornalística contribui para retratar
a região, ora integrando, ora retratando conflitos e tensões entre as duas
nações. Seja no meio impresso, digital, televisivo ou radiofônico, a práti-
ca jornalística na fronteira apresenta características particulares. Dentre os
destaques noticiosos, é rotineiro observar temas que tratam de contrabando,
tráfico de drogas, crime organizado, pistolagem e outras práticas ilícitas.
Mas também, nas pautas transcorrem assuntos como política, saúde, educa-
ção, segurança pública, meio ambiente, economia, trabalho, entre outros.
No que refere especificamente ao rádio, considerando uma pesquisa
exploratória realizada no primeiro semestre de 2019 e atualizada em 2020,
constatou-se que, na cidade de Ponta Porã, estão instaladas quatro emis-
soras radiofônicas: Nova e Mais, ambas operam em frequência modulada
(FM) e são de modelo comercial; Líder e Educadora, que também operam
em FM, mas são comunitárias. Já em Pedro Juan Caballero, a presença de
emissoras é bem maior, totalizando 11: Mburucuyá e Amambay, que ope-
ram em Amplitude Modulada (AM) e são de modelo comercial; as demais
Amambay, Cerro Corá, Sin Fronteras, Oásis, Império, Favorita, Futura, Es-
tación 40 e América operam em FM e também têm caráter comercial; ou-
tras duas, Jesús es el Salvador, e Ministério Cristiano, também operam em
FM, mas são gospels, isto é, com programação inteiramente voltada para
temas religiosos.

Território e espaço: os elos de integração da fronteira

Na área da comunicação, as pesquisas que envolvem regiões onde


aglutinam povos distintos, como é o exemplo das cidades fronteiriças de
Ponta Porã (BR) e Pedro Juan Caballero (PY), implicam a noção de terri-
tório. As cidades mencionadas possuem peculiaridades não somente pelas
múltiplas identidades formadas a partir das crenças, costumes, tradições ou
leis de cada povo, mas também pelo convívio, pela diferença, tensões e
conflitos gerados nesse espaço, que vão além da demarcação geográfica.
Por exigirem tantas interpretações, começa-se pela definição de território.
Milton Santos, um dos principais geógrafos brasileiros, entende que
o território revela os movimentos de fundo da sociedade e ajuda a entender
42 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
o mundo. Para esse autor, “o território deve ser considerado em suas divisões
jurídico-políticas, suas heranças históricas e seu atual conteúdo econômi-
co, financeiro, fiscal e normativo” (SANTOS, 2002, p. 84). No entanto, é
comum observar o termo banalizado, empregado, muitas vezes, por pura
comodidade de linguagem e também confundido com espaço ou região.
De acordo com Almeida (2005), território permite um sentido alusivo ao
espaço efêmero de grupos sociais em deslocamento, como é o exemplo dos
ciganos ou sem-terra, e é empregado também como espaço político, limita-
do pelas fronteiras do poder. O autor destaca que, dentre as ideias utilizadas
habitualmente pelos geógrafos está a de limite face às fronteiras.
Sobre o termo território ser muitas vezes confundido com a ideia de
espaço, Raffestin (1993) esclarece que ambos não são equivalentes, tampou-
co sinônimos. Explica que o espaço está em posição que antecede ao territó-
rio, constituindo o resultado de uma ação conduzida por um ator social. Ha-
esbaert (2013) considera que, na ação conduzida pelo ator social, existe uma
relação de poder que está sempre presente em todo processo de construção
do espaço. Para Saquet e Silva (2008), o espaço é organizado socialmente,
com formas e funções definidas historicamente, pois se trata da morada do
homem e do lugar de vida que precisa ser constantemente reorganizado.
Cancio (2011) observa que o sentido etimológico do termo “fron-
teira” abrange o universo geográfico, histórico, econômico, social, cultu-
ral, jurídico, ambiental, político e urbanístico, nos espaços habitados da
terra. Não obstante, além de representar um espaço demarcado, divisório,
limítrofe de uma área, região ou país, implica questões políticas, sociais e
econômicas que se misturam à comunicação. Dessa maneira, as fronteiras
surgem a partir de um processo de fixação do homem em determinados
locais, envolvendo também um processo comunicacional.
É comum observar que as Ciências Sociais importam noções de ou-
tras áreas - desde que não estejam invalidadas - para criar seus conceitos. Um
exemplo é o do antropólogo argentino Néstor García Canclini (2009), que
parte do conceito de hibridação4 para tratar a fronteira, considerando os as-
pectos de identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo e
outros conflitos. Canclini observa que a fronteira abriga, simultaneamente,
mistura racial e étnica, é um ambiente de inclusão e exclusão, uma área
rica, complexa e, ao mesmo tempo, contraditória. “Destaco as fronteiras entre
países e as grandes cidades como contextos que condicionam os formatos, os
estilos e as contradições específicos da hibridação. As fronteiras rígidas estabe-
lecidas pelos Estados modernos se tornaram porosas” (GARCÍA CANCLINI,
2006, p. 29).
4 De acordo com definição do próprio investigador “hibridação [são] processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos e práticas. [...] A hibridação ocorre em condições históricas e sociais espe-
cíficas, em meio a sistemas de produção e consumo que às vezes operam como coações, segundo
se estima na vida de muitos migrantes” (CANCLINI, 2006, p. 19).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 43


As fronteiras constituem-se como um instrumento de separação en-
tre unidades políticas soberanas e, em outro sentido, a fronteira é um lugar
de comunicação e troca, onde ocorrem transições permanentes e interpe-
netrações das comunidades com relação à língua, à religião, aos costumes
e ao comércio. Enquanto unidade política refere-se a um limite jurídico do
território, sustentado pela ação institucional no sentido de controle efetivo
do Estado territorial. Se consideradas um lugar de comunicação e troca, as
fronteiras pertencem ao domínio dos povos, que, por sua vez, podem se ex-
pandir para além do limite jurídico do Estado. Contudo, não é surpresa que
as fronteiras, historicamente, têm sido objeto permanente de preocupação
dos Estados, no sentido de controle e vínculo (Machado, 2000).
Para Grimson (2011, p. 113), as áreas fronteiriças da América do Sul
são espaços de referências empíricas, nos quais podem ser investigados diversos
processos sociais. Na percepção do autor, muitas vezes o debate é confuso em
razão de que o tema permite múltiplos olhares e os diversos tipos de fronteiras
não são considerados. O pesquisador avalia como distintas as fronteiras culturais
das identitárias e as fronteiras de significados das de sentimentos de pertença.
A fronteira de Mato Grosso do Sul considerada neste estudo, entre
Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, apresenta a característica de fronteira
viva. Entende-se, dessa maneira, a partir da ampliação do conceito de Pa-
drós (1994, p. 69), no qual explica que tais regiões são

permeáveis, caracterizadas por zonas isoladas e afastadas dos cen-


tros dinâmicos nacionais, com escasso e desigual desenvolvimen-
to econômico com relação ao país, sem autonomia para tomar
decisões locais, mas que têm recursos naturais pouco explorados
e pouco conhecidos. Possuem deficientes vias de comunicação e
acesso e estão próximas de áreas de países vizinhos de conforma-
ção humana e geográfica semelhantes.

Müller (2002, p. 230-231) corrobora e acrescenta que, nas fronteiras


vivas, “as relações entre os povos são dinâmicas, as interações são constantes,
muito embora pareça não existir uma integração completa, mas várias formas
de cooperação e entrelaçamento entre os campos sociais presentes”. A autora
ainda explica que essa característica é própria desse tipo de fronteira e as intera-
ções acontecem de maneira que as ações de uma comunidade complementam
a outra em suas necessidades, criando, assim, um ambiente diferenciado.

Entre fronteiras: as cidades gêmeas de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero

A fronteira gêmea de Mato Grosso do Sul, representada por Ponta


Porã e Pedro Juan Caballero, Brasil e Paraguai respectivamente, possui uma
representatividade importante no cenário regional ao qual as cidades perten-
44 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
cem. Segundo dados do IBGE (2019b), Ponta Porã é a quinta maior cidade
de Mato Grosso do Sul e está localizada no extremo Sul do estado. Pedro
Juan Caballero é a capital do Departamento de Amambay, localizada na re-
gião nordeste do país e está entre as maiores cidades de todo o Paraguai.
Inicialmente, a região era habitada por indígenas das etnias Kaiowá
e Nhandeva, descendentes do povo Guarani. Atualmente, outras culturas
como coreana, japonesa, chinesa, libanesa, indiana e descendentes de eu-
ropeus dão uma identidade muito peculiar para a região. Nessa localidade,
falam-se três idiomas: português, castelhano e guarani, língua dos povos
indígenas, e isso dá a fusão linguística, chamada popularmente pelos mora-
dores de “portuguaranhol”.
Embora hoje o espaço territorial seja ocupado por cidades distintas e
em países diferentes, a região surgiu por volta de 1893, território paraguaio,
num local deserto onde havia uma lagoa, Punta Porã, que, no idioma guara-
ni, significa Ponta Bonita. No começo, a principal atividade econômica era
a exploração e industrialização da erva-mate pela Companhia Erva-Mate
Laranjeiras, de Tomás Laranjeiras, que exportava o produto para a Argenti-
na. Convém ressaltar que o município de Ponta Porã foi anexado ao terri-
tório brasileiro depois da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), travada
entre o Paraguai e outros três países, sendo Brasil, Argentina e Uruguai.
Oficialmente, Pedro Juan Caballero foi fundada em 30 de agosto
de 1901 e leva o nome e sobrenome do capitão militar, considerado herói
da luta pela independência do país. Inicialmente, quatro atividades eco-
nômicas contribuíram para o desenvolvimento econômico da região: a ex-
ploração da erva-mate, o café, o cultivo da cana-de-açúcar e a exploração
madeireira. Na década de 1930, o comércio de produtos importados trouxe
crescimento singular para a região, tendo como destaque a instalação da
Casa China, atual Shopping China Importados, pelo imigrante italiano
Felipe Cogorno. Esse tipo de comércio, juntamente com dezenas de ou-
tras lojas e mercados atacadistas, fomentam o turismo de compras, mantém
diversos hotéis e restaurantes e outros tipos de comércios dos dois lados
da fronteira e, dessa maneira, contribui para o desenvolvimento das duas
cidades.
Como capital departamental, Pedro Juan Caballero possui represen-
tatividade e estrutura política diferentes da sua cidade irmã. Conta com
sede governamental, Junta Departamental, Assembleia Legislativa e Inten-
dência Municipal, que equivale à prefeitura. Sobre esse aspecto, Cancio
(2011) considera que Pedro Juan Caballero possui uma importância políti-
ca maior em relação ao Paraguai do que Ponta Porã em relação ao Brasil. A
representatividade de Ponta Porã limita-se à esfera pública municipal com
prefeitura e câmara de vereadores.
Ambas as cidades são chamadas gêmeas ou irmãs porque se conec-
tam por uma linha imaginária de aproximadamente 13 quilômetros de
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 45
extensão de área urbana e os limites são estabelecidos apenas por ruas,
avenidas ou marcos divisórios. Não existe aduana e nenhum controle para
entrada e saída de um país para o outro. A peculiaridade dessa fronteira é
que a linha divisória une e, ao mesmo tempo, divide um território comum
em que o fluxo de pessoas, mercadorias e veículos é livre, intenso e diário.
Nesse espaço social fronteiriço, a proximidade é marcada pelo conví-
vio mútuo dos dois povos, permitindo que brasileiros trabalhem, adquiram
bens de consumo, contraiam matrimônio, estudem e se beneficiem de vá-
rios serviços do país vizinho e, da mesma maneira, os paraguaios em relação
ao Brasil. Sherma (2018, p. 11) observa que as duas cidades estão em um
nível de desenvolvimento semelhantes, se comparadas a outras cidades-gê-
meas do Estado. “Como as assimetrias ali são menores, existe, ao menos no
plano teórico, um potencial maior para a integração, já que ambos os lados
têm condições de ofertar recursos de toda sorte”.
A criminalidade é uma forte característica da região, que carrega o
estigma de ser propensa para práticas criminosas, especialmente as lidera-
das por facções brasileiras como Primeiro Comando da Capital (PCC), de
São Paulo, e Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, que atuam for-
temente nessa fronteira, disputando o controle do tráfico de drogas e armas
não só para o Brasil, mas para vários países. Pouco se veem na imprensa
local e nacional notícias positivas ou por motivos que não associados à cri-
minalidade. Em janeiro de 2020, foi destaque na imprensa internacional
uma controversa fuga em massa de 75 presos ligados ao PCC do presídio
de Pedro Juan Caballero. E, no mês seguinte, o destaque foi para o assassi-
nato do jornalista Lourenço Vera, conhecido com Léo Veras, em razão das
investigações e denúncias que o jornalista fazia sobre práticas criminosas
das facções e a relação de autoridades paraguaias com o crime organizado.

Aspectos e características do gênero radiojornalístico

Intenta-se, neste tópico, observar alguns aspectos mais relacionados


à estrutura dos conteúdos informativos no rádio, ou seja, radiojornalismo,
a partir do padrão de apresentação de um programa noticioso. Nesse per-
curso, leva-se em consideração o gênero informativo e seus formatos, sem
abranger, no entanto, os demais gêneros radiojornalísticos (opinativo, in-
terpretativo, utilitário e diversional), tampouco alcança os gêneros radiofô-
nicos (publicitário, educativo, religioso ou científico, por exemplo) já que
esta pesquisa se limita à programação informativa.
Dessa maneira, destaca-se a pesquisa pioneira de Janine Lucht (2009),
que propôs uma nova classificação dos gêneros no radiojornalismo brasileiro
a partir das bibliografias já existentes, dentre elas as de Luiz Beltrão, na déca-
da de 1960, Marques de Melo (1994), Barbosa Filho (2003), como exemplos,
mas que, até então, não distinguiram entre gêneros jornalísticos, radiofônicos

46 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


e radiojornalísticos. A autora observa que é uma dificuldade prevalecente
dada à falta de interesse pelo assunto, fazendo com que “ainda existam tantos
conflitos na literatura corrente quanto à conceituação do que são gêneros e
formatos afinal” (LUCHT, 2009, p. 17).
Para compreender o radiojornalismo, é preciso levar em consideração
o seu contexto peculiar, isto é, estilo, conteúdo e estrutura dos gêneros e for-
matos que são a base da organização e construção de um programa noticioso
no rádio. Daí a necessidade de entender o conceito de gênero informativo.
Na definição de Lucht (2010, p. 274), é “aquele que se limita a narrar os
acontecimentos, sem emitir qualquer juízo de valor, opinião ou interpreta-
ção”. Esse é, no entender de Ferraretto (2000, p. 201), o gênero preponde-
rante no radiojornalismo porque “retrata o fato com o mínimo de detalhes
necessários à sua compreensão como notícia”.
A seguir, procurou-se ilustrar, no quadro, os formatos do gênero in-
formativo no radiojornalismo, de acordo com a duração ideal de cada um:
Tabela 1 - Gênero Informativo

Fonte: Desenvolvido pelas autoras (2020). *Tempo apresentado por Lucht (2015).

Outro aspecto importante na construção noticiosa de radiojornalismo


são as especializações temáticas. Jorge (2008) comenta que não existe uma
quantidade específica, podendo criar quantas quiser, desde que sirvam às es-
pecificidades dos assuntos que se propõe a cobrir. A autora expõe e descreve
as principais especializações, que estão descritas a seguir, em forma de quadro:
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 47
Tabela 2 – Especializações temáticas

Fonte: Desenvolvido pelas autoras (2020).

O rádio na fronteira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero

A rádio começa sua história no lado paraguaio no dia 12 de outubro


de 1959 com a Amambay 570 AM. A emissora não só foi a primeira de
Pedro Juan Caballero, mas também a primeira da região Norte e Nordeste
do país e foi fundada por três amigos: Antônio Delgado, Oscar Charbel,
que era radiotécnico e Epifanio Rolón. Para montá-la, os sócios fundadores
tinham bem poucos recursos e utilizaram equipamentos velhos e até obso-
letos, inclusive, o primeiro transmissor passou por uma série de consertos e
modificações, feitos pelo próprio Charbel, para que conseguisse cumprir o
seu papel, o de propagar os sinais eletromagnéticos, e tinha potência para
cobrir, no máximo, dez quilômetros no entorno. Naquela época, não havia
energia elétrica na cidade e poucas pessoas tinham um aparelho de rádio
para ouvir as transmissões.
Anos depois, em dezembro de 1975, iniciaram-se as transmissões da
Mburucuyá 980 AM, fundada por Santiago Máximo Leguizamón, que de-
nunciava corrupção política e as atividades do crime organizado e acabou
sendo o primeiro jornalista executado naquela fronteira, no ano de 1991.
Por essa razão, Leguizamón foi homenageado em um busto, numa das pra-
ças públicas de Pedro Juan Caballero, localizada bem na linha de fronteira
com o Brasil. Até fevereiro de 2020, já se somam vinte5 jornalistas assassina-
5 Com relação ao número de jornalistas mortos, cabe uma ressalva: a listagem oferecida por Stabile
apontou 19 assassinatos e não considerou a execução do brasileiro Paulo Rocaro, morto em Ponta
Porã em fevereiro de 2012.

48 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


dos no lado paraguaio e também em Ponta Porã (Stabile, 2020).
Em 1977, a Cerro Corá 97,5 iniciou suas atividades, transmitindo
em Frequência Modulada, tornando-se a primeira nesse modelo. Em 1979,
foi inaugurada a Amambay FM, com uma proposta voltada mais para o
conteúdo musical e de entretenimento.
Do lado brasileiro, ainda em 1977, iniciava a difusão da Ponta Porã
1110 AM, que, desde o ano de 2002, transmite a programação da Rádio
Globo e não possui nenhuma produção local. Em 1988, o Sistema Sul-Ma-
togrossense de Radiodifusão, sob o nome comercial Super Rádio Fronteira
AM, hoje Mais FM 93,5, começava suas transmissões e, no ano seguinte,
em 1989, foi a vez da Rádio Transamérica FM LTDA 96,9, atual rádio Nova
FM 96,9.
Atualmente, em Pedro Juan Caballero, estão em operação treze rá-
dios e, em Ponta Porã, quatro.

Tabela 3 - Emissoras de rádio em Pedro Juan Caballero

Fonte: Desenvolvido pelas autoras (2020).

Tabela 4 - Emissoras de rádio em Ponta Porã

Fonte: Desenvolvido pelas autoras (2020).

Foi verificado que, nas rádios do lado brasileiro, o conteúdo da


programação é transmitido em português e com algumas palavras em es-
panhol. Durante os programas informativos, os apresentadores leem man-
chetes ou trechos de matérias produzidas por sites e jornais paraguaios.
“Procuramos falar um pouco de espanhol, tipo portunhol, e o diálogo
funciona bem. A audiência no lado paraguaio é grande, os hermanos gos-
tam de participar por isso” afirma Paulo Cézar, que apresenta o programa
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 49
musical e de entretenimento matutino Conexão Máxima na Nova FM.
Do lado paraguaio, a programação é transmitida em espanhol e gua-
rani e, eventualmente, os locutores também falam algumas expressões em
português. Uma particularidade pôde ser observada no programa FM No-
tícias, da emissora Cerro Corá 95,5 FM, que tem duração diária de uma
hora, em que todo o noticiário é transmitido em português em razão de o
apresentador ser o brasileiro Sebastião Neri Prado, conhecido como Tião
Prado. Essa peculiaridade acontece como forma de marcar a identidade
local, típica no rádio fronteiriço, e de se aproximar do ouvinte da outra
nacionalidade.
O cenário radiofônico para o lado de Ponta Porã é de incertezas,
pois os radialistas vivem inseguros com futuro por não saberem até quan-
do as emissoras vão seguir no ar. A infraestrutura das rádios é precária.
Em dias de chuva forte, por exemplo, é comum as transmissões caírem
e as emissoras ficarem fora do ar por muitas horas. O salário é baixo e os
apresentadores são quase obrigados a conseguir parceiros comerciais para
aumentar a renda. “É a gente que tem que fechar os comerciais e somos
muito cobrados por isso”, revela Paulo Cézar, que está na Nova FM há
três anos. Ainda de acordo com o locutor, a situação das comunitárias é
um pouco melhor. “Nas comunitárias existe negociação para anunciar
que é o apoio cultural. A nossa, comercial, não tem conversa ou paga o
preço que ela quer ou não anuncia. E não é barato”, diz. Tal condição
desmotiva os locutores que, muitas vezes, sentem-se limitados e inseguros
para desenvolverem as atividades.

Metodologia da pesquisa

No sentido de explorar o campo e como parte dos procedimentos


metodológicos, foram realizadas visitas às estações de rádio da fronteira e,
para esse fim, elaborou-se um roteiro de visitação, com o propósito de atu-
alizar o mapeamento das emissoras fronteiriças. O mapeamento aconteceu
nos dias 13, 14 e 15 de fevereiro de 2019, atualizado na mesma época de
2020, nas cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, cidades gêmeas, na
fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Na cidade de Ponta Porã,
foram visitadas quatro emissoras radiofônicas. Em seguida, do outro lado
da fronteira, em Pedro Juan Caballero, foram visitadas onze rádios, nove
comerciais e duas religiosas; sendo catalogadas, ao todo, quinze emissoras.
Quanto à coleta de dados, pontua-se que foi empregada a técnica da
entrevista em profundidade e gravações dos programas, no período de 15 a
19 e julho de 2019, através de software especializado. O período representa
uma amostra temporal baseada na rotina das veiculações que aconteceram
na fronteira. Da rádio Nova FM, foram cinco horas totais (uma hora de
programação por dia, considerando os dias de segunda à sexta-feira) e da
50 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Mburucuyá AM, vinte e cinco, o programa tem cinco horas diárias; totali-
zando das duas emissoras 1.800 minutos, o que representa 30 horas. Todo
esse material foi decupado, observando, dentro do gênero informativo, os
respectivos formatos, temas abordados com foco nos temas locais.
A análise de conteúdo, proposta por Laurence Bardin (1977), foi
utilizada nesta pesquisa para organizar os elementos do gênero informati-
vo que compõem a programação gravada das duas emissoras deste estudo.
Tais elementos foram organizados em categorias, considerando os diferen-
tes formatos e temas, colocando ênfase no conteúdo das mensagens, para,
posteriormente, descobrir se os temas locais apresentados na programação
atendem às duas comunidades.
Contudo, as categorias são constituídas de um grupo de subcatego-
rias que auxiliaram no entendimento do gênero informativo, denominadas
temas. As subcategorias foram importantes para explorar o material das gra-
vações dos programas e esses temas possibilitaram uma resposta à questão
de pesquisa apresentada. As principais especializações temáticas estão aqui
apresentadas como subcategorias da pesquisa: Cotidiano, Cultura, Econo-
mia, Educação, Esporte, Geral, Internacional, Polícia, Política e Saúde.

Rádio Nova FM de Ponta Porã

Das quatro emissoras radiofônicas em operação atualmente em Pon-


ta Porã, a Nova 96,9 FM é a mais antiga e foi fundada em 1989, com o
nome de Rádio Transamérica FM LTDA 96,9, no entanto teve que atender
a uma ordem judicial e mudar de nome porque a Rede Transamérica de
São Paulo moveu uma ação judicial contra a rádio, exigindo a mudança de
nome. Passou-se então a chamar Nova FM. A rádio pertence ao Grupo Zo-
colaro Salomão de Comunicação e teve várias fases. Inicialmente, tinha o
propósito de investir em programação local, mas, por um período, no início
dos anos 2000, operou por um tempo pela Rede Jovem Pan. Atualmente
está sob a direção da empresária Danilda Zocolaro Salomão e a programa-
ção voltou a ser local.
A emissora está localizada na região central da cidade, opera no mo-
delo comercial e suas transmissões alcançam um raio de 100 quilômetros.
Hoje conta com um quadro de doze funcionários entre radialistas, recep-
ção, departamento comercial, administrativo e serviços gerais. A programa-
ção musical é eclética, estendendo-se do sertanejo raiz aos últimos sucessos
internacionais; mas há também programas religiosos (católico e evangélico)
e informação. A emissora fica no ar de segunda-feira a sábado, das 5h30 às
22 horas, e aos domingos, das 6 às 18 horas.
Embora a emissora conte com funcionários em vários departamen-
tos, são os locutores que fazem todo o trabalho no estúdio para colocar o
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 51
programa no ar. “Aqui a gente faz tudo; a gente é sonoplasta, é o locutor
e de repente até o atendente de telefone, o pautador da programação, en-
fim”, comentou Giovani Cézar (EM ENTREVISTA, 2020). As instalações
são bem amplas, o estúdio da Nova FM possui uma parte anexa integrada,
porém dividida por um aquário, que é uma separação de vidro onde são
recebidos os convidados que vão realizar entrevistas. No entanto, por não
ter isolamento acústico, o som que o ouvinte recebe pelas ondas do rádio ou
por transmissão na internet é, geralmente, alto e agudo.
A emissora disponibiliza todo o seu conteúdo em áudio ao vivo, atra-
vés da sua página na internet, no endereço https://radionovafm96.com/.
Mas alguns apresentadores transmitem seus programas em vídeo, em suas
páginas pessoais no Facebook.
Especificamente, a pesquisa compreendeu o Informativo do Meio
Dia, o único programa 100% voltado para o conteúdo informativo. Vai ao
ar de segunda-feira a sábado, das 12 às 13 horas, apresentado por Giovani
Cézar. De acordo com o apresentador, é um dos programas mais antigos
da emissora e está na grade no mesmo horário há cerca de 30 anos, mas,
até oito anos atrás, tinha outro nome, era Rádio Cidade, apresentado por
Otaviano Cardoso, atualmente vereador, já no terceiro mandato.
O Informativo do Meio Dia é apresentado em três blocos de 15
minutos, com intervalo comercial entre eles, sem música. O conteúdo
é genérico, e quase não aparecem produções locais, salvo as entrevistas,
que acontecem esporadicamente no transcorrer do programa, para as
quais são recebidas autoridades, empresários, políticos prestando escla-
recimentos ou então pessoas que desejam divulgar algum evento. Os
temas rotineiros abordam, especialmente, política, polícia, saúde, edu-
cação e economia. A emissora não produz materiais como reportagens,
notas, notícias, boletins e utilitários, os conteúdos são retirados de agên-
cias que produzem materiais para rádio, por exemplo, a estatal Empresa
Brasil de Comunicação (EBC), Agência Rádio Web, Rádio Mais, Rádio
França Internacional, jornal da CUT. Sites do estado como o Campo
Grande News ou Dourados News também são utilizados como fonte
para as notícias regionais.
Das nove emissoras radiofônicas comerciais em operação atualmente
em Pedro Juan Caballero, foi escolhida para compor esta pesquisa a Mburu-
cuyá 980 AM por ser a que tem mais tempo dedicado à programação infor-
mativa. Inicialmente, a emissora operou por dois meses em caráter experi-
mental, firmando as transmissões em 15 de dezembro de 1975 e completará
45 anos no final de 2020. Foi fundada por Santiago Máximo Leguizamón, o
primeiro jornalista assassinado na fronteira, no ano de 1991, por denunciar
corrupção política e atividades do crime organizado. Atualmente o proprietá-
52 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
rio é o jornalista Humberto Rubim, que vive em Assunção e é dono de outras
três emissoras: Ñandutí 1020 AM, Rock and Pop 95,5 FM, e Rádio Concert
107,7 FM. Juntas, essas quatro rádios formam um holding cuja controladora
é a Ñandutí.
Localizada no Maria Victória, bairro periférico de Pedro Juan Ca-
ballero, o conteúdo informativo é predominante, mas também tem esporte
e cultura paraguaia, expressas nas músicas folclóricas e na língua guarani.
De segunda a sexta-feira, os trabalhos iniciam-se às 5 horas, horário local,
e segue até às 21 horas, mesclando programas da rede com produções lo-
cais. A antena transmissora da Mburucuyá AM tem potência para alcançar
cerca de 60 quilômetros no entorno, favorecendo as pessoas sem acesso à
internet e as comunidades distantes que têm o rádio como único meio de
informação.
A rádio possui como slogan “La voz de los sin voces”, por ter sido a
primeira emissora na fronteira a abrir os microfones para a participação da
comunidade. Com um quadro de doze jornalistas, a programação é focada
na produção de conteúdo local informativo, esportivo e musical folclórico,
além dos programas da rede que transmitem informações de várias regiões
do Paraguai. Todos os colaboradores possuem vínculo empregatício, segu-
ro médico e social. No entanto, nem todos se dedicam exclusivamente à
emissora, alguns, como o apresentador Éder Rivas, o sonoplasta Marciano
Sanchez e o repórter Adalberto Caballero têm empregos em outras empre-
sas de comunicação local.
O principal informativo da Mburucuyá 980 AM é o Puerta Abierta,
um programa produzido localmente, com a colaboração de uma equipe de
cinco profissionais, sendo dois apresentadores, dois repórteres e um sonoplas-
ta e começa às 6h30. Tem a duração de cinco horas e conta com inserções de
duas produções transmitidas pela rede Ñanduti: Rotativo Nacional e o Giro
de Notícias. Nesses dois quadros, os repórteres de Pedro Juan Caballero con-
tribuem com notícias locais. Uma singularidade desse programa é o roteiro,
o Puerta Abierta tem um estilo, como prefere descrever o apresentador, de
transmitir os eventos à medida que estão acontecendo.
“Estamos baseados nos fatos do momento. Assim que vão aconte-
cendo as coisas, vamos fazendo, digamos, na sua ordem do dia”, explica
Éder Rivas. Num dia normal, em que não aconteceu algo diferente, logo
no início do programa, cada repórter externo já se posiciona em lugares es-
tratégicos de cobertura e aguarda a entrada no ar. O repórter Genaro Rivas,
por exemplo, recebe os informes com antecedência das assessorias sobre
a agenda do dia e se organiza para transmitir. De acordo com os dias da
semana, o programa segue uma tendência de cobertura.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 53


Na segunda-feira, são os temas do Legislativo, da Câmara Muni-
cipal de vereadores, já sabemos toda a ordem do dia o que vamos
enfocar e o trabalho facilita para nós [ele mostra no celular o con-
tato da assessoria da Câmara que envia as informações e agenda
do legislativo]; aí já sabemos o que vai acontecer. E na terça-feira
temos a mesma coisa, mas a nível do governo, na Câmara da
Junta Departamental, [...] Aí eu olho isso aqui [o informe da
assessoria] e digo isso aqui vai ser para as 9h30, 8h30, 10h30 aí eu
vou fazer outra coisa e depois volto, é assim que coordeno o meu
trabalho. [...] Não é que vou sem saber de nada pra ver se pego
essas informações lá na hora. O jornalismo tem que ser contun-
dente (GENARO RIVAS EM ENTREVISTA).

O Puerta Abierta segue até as 11h25. Logo após, até as 11h40, é trans-
mitido o Rotativo Nacional, um boletim com os destaques das principais
notícias de onde a rede tem emissoras.

Programação informativa no rádio fronteiriço

Neste tópico serão feitas observações a partir do conteúdo informati-


vo transmitido pelas emissoras Nova FM e Mburucuyá AM, nos programas
Informativo do Meio Dia e Puerta Abierta, respectivamente.
Do período em que foram feitas as gravações, observou-se que o pro-
grama Informativo do Meio Dia veiculou 78 matérias relacionadas ao gênero
informativo e o Puerta Abierta 355. Conforme observado anteriormente, o
programa Nova FM tem duração de uma hora diária e o da Mburucuyá AM,
cinco horas; essa grande diferença de tempo entre os programas influenciou
no total de conteúdos veiculados no período por cada emissora. No entanto,
observa-se que, em média, por hora, possuem um total de conteúdos vei-
culados aproximados; isso se revela, por exemplo, dividindo-se 355 matérias
referentes aos gêneros informativos da emissora paraguaia pelas horas corres-
pondentes, tem-se um total de 71 matérias diárias. A aproximação total dos
conteúdos acontece caso se compare uma hora diária da rádio brasileira com
uma hora diária da rádio paraguaia; sob essa ótica, nota-se um equilíbrio do
gênero informativo para as duas emissoras (355/5h = 71 - Mburucuyá AM
versus 1h = 78 Nova FM, conforme Tabela 1, apresentada logo à frente).
Destaca-se que o conteúdo das programações foi distribuído nos for-
matos conforme o modelo de Lucht (2009), exposto anteriormente, sendo:
nota, notícia, reportagem, entrevista, manchete e boletim.

Análise da programação da Rádio Nova FM

A seguir, apresenta-se a Tabela nº 5, na qual se apresentam os forma-


tos e a respectiva quantidade diária:
54 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Tabela 5: Formatos do gênero informativo da rádio Nova FM

Fonte: Resultado da pesquisa (2019)


Observação: Uma hora de programação por dia

Considerando a Tabela 5 em que se apresentam os formatos do gêne-


ro informativo da rádio Nova FM, as categorias nota, notícia e reportagem
são as que predominaram no programa. Por sua vez, a entrevista e o boletim
não são representativos, sendo utilizados apenas uma vez cada um. A man-
chete não foi utilizada.
A seguir, a Tabela nº 6 apresenta os formatos e a respectiva quantida-
de diária de temas:

Tabela 6 - Todos os formatos distribuídos em temas

Fonte: Resultado da pesquisa (2019).

Os quatro principais temas evidenciados no quadro geral acima fo-


ram política, polícia, educação e economia que representam 70% do total
de temas tratados nos diversos formatos, durante a programação do período.
Isto é, do total de 78 temas, 54 estão distribuídos dentre os quatro principais
mencionados.

Análise da programação da Rádio Mburucuyá AM

A seguir, apresentam-se as observações a partir dos resultados que


surgiram da coleta dos dados da emissora paraguaia Mburucuyá AM, no
programa Puerta Abierta, no período de 15 a 19 de julho de 2019. Neste
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 55
momento, serão expostos os totais de conteúdos, distribuídos nos formatos
do gênero informativo, conforme o estudo de Lucht (2009).

Tabela 7: Formatos do Programa Puerta Abierta rádio Mburucuyá AM

Fonte: Resultado da pesquisa (2019)


Observação: Cinco horas de programação por dia

Diferentemente da emissora do lado brasileiro, em que as notícias


e as reportagens predominaram toda a programação, na Mburucuyá AM,
os formatos que prevaleceram durante o período da coleta de dados foram
as notas e as notícias, sendo os mais expressivos. Esses dois formatos en-
contram-se equilibrados entre si; ambos apresentaram 160 inserções, re-
presentando, juntos, um total de 90% de toda programação da semana. A
entrevista fez-se presente em vinte e seis entradas e a manchete, em nove.
Esses dois formatos, somados, significam apenas 10% do total dos conteú-
dos representados pela Tabela 7.

Tabela 8: Todos os formatos distribuídos em temas

Fonte: Resultado da pesquisa (2019).

Destaca-se a importância dos temas política e polícia para a rádio


Mburucuyá AM. Juntos, os dois temas representam, aproximadamente,
55% do total das informações veiculadas durante uma semana de progra-
mação. O primeiro, pela grande quantidade de crimes que acontecem na
região e, o segundo, pelas relações do poder público dos dois países que,
comumente, traçam ações a fim de beneficiar as duas comunidades.
56 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Análise conjunta

Após a descrição e análise dos formatos e temas das programações


informativas das rádios fronteiriças que compõem este estudo, serão feitas
considerações sobre a abordagem dos temas locais veiculados na Nova FM
e na Mburucuyá AM. O direcionamento inicial surgiu a partir do questiona-
mento feito aos apresentadores Giovani Cézar e Éder Rivas sobre os temas
mais recorrentes em seus respectivos programas sobre assuntos locais que
atendem às duas comunidades. Ao serem indagados, ambos os apresenta-
dores afirmaram, durante entrevista, que, geralmente, são política, saúde,
educação, polícia e economia.

Ponta Porã é só quando acontece coisa feia mesmo [...] quando al-
guém é assassinado a tiros, isso chama a atenção [...]. Então quan-
do acontece uma coisa dessas no Brasil a gente fica mais atento.
Mas tem um monte de coisas que podem ser também abordadas
que formam a realidade do Brasil, mas que a gente, lamentavel-
mente até agora, não conseguimos cobrir. Essa é uma matéria pen-
dente para nós. [...] Mas sem nos esquecermos de outros aspectos
da fronteira como o movimento comercial e a deserção escolar que
acontece aqui (ÉDER RIVAS EM ENTREVISTA, 2020).

Como estamos na fronteira, o que afeta Ponta Porã acaba afe-


tando também os pedrojuaninos. Hoje por exemplo, nós esta-
mos com o dólar a R$ 4,50 e isso, se é ruim para os brasileiros,
é bem pior para eles, porque os maiores clientes deles são os
brasileiros. [...] Há pouco tempo o Ministério da Economia
aumentou a cota para gastar no Paraguai, é uma boa notícia,
evidentemente, para quem vende e pra quem vem comprar,
então ao mesmo tempo que a informação é legal daí já vem
o preço do dólar lá em cima que se torna ruim. Hoje, por
exemplo, temos muitas universidades de medicina aqui que
são pautas que a gente procura trazer (GIOVANI CÉZAR EM
ENTREVISTA, 2020).

A partir da fala dos entrevistados, observou-se que, nas duas emissoras,


o conteúdo produzido para a comunidade do outro lado da linha é esporádi-
co e bem específico quanto aos temas (polícia, economia e educação para a
Mburucuyá AM e economia e educação para a Nova FM). Sendo assim, de
maneira geral, quando trazem temas na programação para a comunidade do
país vizinho, estão mais relacionados à área policial, educação ou economia.
Para verificar quais temas locais atendem às duas comunidades fron-
teiriças, criou-se um quadro, detalhando o conteúdo informativo e os dias
em que foram veiculados nos programas Puerta Abierta e Informativo do
Meio Dia, explicitados a seguir:
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 57
Tabela 9: Conteúdo local para as duas comunidades - Informativo do Meio Dia

Fonte: Resultado da pesquisa (2020).

Tabela10: Conteúdo local para as duas comunidades - Puerta Abierta

Fonte: Resultado da pesquisa (2020).


58 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Com base no detalhamento exposto acima, é possível notar que o
programa Informativo do Meio Dia veiculou, no período de 15 a 19 de julho
de 2019, quatro matérias com abordagem de interesse da comunidade de
Pedro Juan Caballero, com temas relacionados especificamente à política
e polícia. Cada tema apareceu com duas inserções, representando 6% do
total dos 78 conteúdos disseminados no período. Os formatos em que foram
apresentados dividiram-se em duas notícias, uma nota e uma reportagem.
Os demais conteúdos são específicos para a comunidade brasileira.
Desse conteúdo, na segunda-feira, dia 15, foram veiculadas duas no-
tícias, uma de política e outra de polícia. A primeira tratou de um financia-
mento de R$ 20 milhões que a prefeitura de Ponta Porã obteve da Caixa
Econômica Federal a fim de revitalizar a Linha Internacional. Sendo esse
um espaço compartilhado e de integração entre os dois países, uma obra de
revitalização dessa zona pública, envolvendo pavimentação de ruas e cal-
çadas, medidas de saneamento como esgoto e lixo, são ações que, mesmo
acontecendo apenas do lado brasileiro, sem a participação dos dois países,
atendem e beneficiam as duas populações.
Outro tema em formato de notícia, veiculado no mesmo dia, tratou
de uma brasileira e do seu companheiro, um paraguaio, que foram baleados
em uma boate em Pedro Juan Caballero, na noite anterior. Tendo em vista
que o cotidiano da fronteira é marcado por relações sociais que envolvem
amizades, relações afetivas, casamentos e outros elementos condicionantes
de aproximação, notícias com essa abordagem despertam o interesse da co-
munidade do outro lado da linha internacional.
A reportagem produzida pela Rádio Agência Nacional, ligada à Em-
presa Brasil de Comunicação (EBC), também foi de interesse da comu-
nidade e tratada no programa Informativo do Meio Dia. O conteúdo foi
sobre a viagem do presidente Jair Bolsonaro para a cidade de Santa Fé, na
Argentina, para participar do Encontro de Presidentes do Mercosul, em que
também esteve presente o presidente do Paraguai, Mário Abdo Benítez. A
reportagem destacou três acordos assinados, sendo um deles o fim imediato
da cobrança de roaming internacional em serviços de telecomunicações
entre os países do Bloco e a transferência da presidência do Mercosul para
o Paraguai, em dezembro de 2019.
Esse conteúdo veiculado na emissora brasileira atende a ambos os
lados da fronteira porque a comunidade pôde, finalmente, utilizar as opera-
doras de seus países para realizarem ligações, mandar SMS e utilizar outros
serviços, sem cobrança adicional. Até então, a comunicação via celular de
um país para o outro era difícil, utilizar celular na fronteira era limitado a
uma certa distância além da Linha Internacional. Além disso, a transferên-
cia rotativa da presidência do Mercosul para o Paraguai é de interesse da
comunidade paraguaia.
Outro conteúdo veiculado na sexta-feira, dia 19, na emissora brasilei-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 59
ra, foi uma nota com tema policial sobre um fazendeiro brasileiro executa-
do na cidade paraguaia de Capitán Bado, com a prisão dos pistoleiros logo
em seguida. Na ocasião, a motivação do crime não foi revelada, por ser um
crime ainda a investigar. Considerando o local do crime, a prisão de pisto-
leiros (rara na fronteira6) e a questão do envolvimento de terras paraguaias,
o conteúdo busca atender às duas comunidades.
No que refere ao Puerta Abierta, notou-se que o programa veiculou um
total de dez conteúdos com direcionamento à comunidade brasileira, tratando
de temas sobre polícia, política, internacional, economia e saúde, distribuídos
em formatos de notas (sete), entrevistas (duas) e manchete (uma). Tal conte-
údo representou, aproximadamente, 3% do total de 355 conteúdos difundidos
no período. O tema com mais destaque foi polícia, com seis inserções.
Na segunda-feira, dia 15, também foram destaques no programa da
Mburucuyá AM dois conteúdos tratados na Nova FM. O primeiro, em for-
mato de notícia policial: episódio do casal (brasileira e paraguaio) baleado
em uma boate em Pedro Juan Caballero, em que o rapaz morreu. Em outro
momento, na programação do mesmo dia, saiu uma nota informando que
o segurança que atirou contra o rapaz era brasileiro e estava foragido. Esse
assunto foi abordado duas vezes, com o objetivo de dar mais detalhes do
caso, que ainda estava sendo apurado pelas autoridades responsáveis por
solucionar o crime.
Ainda na segunda-feira, dia 15, outro conteúdo também tema na
Nova FM foi a nota sobre a viagem do presidente Jair Bolsonaro à Argen-
tina para conseguir mais acordos com o Mercosul. Vale destacar que, na
Mburucuyá AM, o assunto saiu em formato de nota dois dias antes de ser
veiculado na emissora brasileira. Até então, o evento não tinha acontecido
e estava em processo de configuração, formato conceituado por Marques
de Melo (2003).
Outra nota da área policial do mesmo dia foi sobre um brasileiro
preso no Paraguai, dirigindo carro roubado com uma grande quantidade de
drogas. Conteúdo dessa natureza é rotineiro na fronteira; a cidade de Pedro
Juan Caballero é muito conhecida pelas gigantescas plantações de maco-
nha, que é distribuída no próprio Paraguai, no Brasil e em outros países
(AGÊNCIA PÚBLICA, 2017).
A questão da violência contra mulher também teve espaço no pro-
grama do dia 15, com uma nota policial de um fato já consumado, em que
uma brasileira foi morta pelo esposo paraguaio, e uma entrevista com tema
de políticas públicas para combater a violência contra a mulher em regi-
6 Na maioria das situações, os crimes de execução são cometidos por dois criminosos a bordo de
motocicleta sem placa e/ou roubada (um pilota e o outro dispara) e tudo acontece muito rápido.
Geralmente, quando ocorre em solo paraguaio, rapidamente fogem para o Brasil e vice-versa; o que
dificulta a identificação e prisão em flagrante. Além disso, as investigações levam muito tempo para
serem concluídas ou nem são concluídas e, quando incidem em prisões, os casos demoram para
serem julgados ou prescrevem.

60 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


ões fronteiriças. Esses dois assuntos correlacionados são de interesse para a
comunidade de Ponta Porã não apenas porque, como dito anteriormente,
na fronteira, são comuns casamentos entre pessoas dos dois países, mas tam-
bém devido ao interesse do poder público de criar propostas de combate a
esse tipo de crime.
Já na terça-feira, dia 16 de julho, foi veiculada uma nota de econo-
mia com a abordagem sobre a expectativa de que a queda do dólar pode-
ria impulsionar o consumo da fronteira. Uma das características fortes de
Pedro Juan Caballero, conforme comentado anteriormente, é o comércio
de importados, que atrai milhares de turistas brasileiros anualmente e movi-
menta a economia local. Nos últimos anos, o preço do dólar tem subido e,
com isso, o fluxo de visitantes na fronteira diminuiram bastante.
Ainda no mesmo dia, uma manchete do jornal ABC Color teve espa-
ço no programa Puerta Abierta, ao afirmar que a população fronteiriça tinha
sido atingida por uma onda de insegurança. Esse assunto não foi explorado
no programa, apenas veiculou-se a manchete e informada a fonte do conte-
údo, o jornal ABC Color.
Na quinta-feira, dia 17 de julho, outra nota com tema policial tratou
sobre um veículo roubado no Brasil e que fora apreendido em posse de
menores no Paraguai. Da mesma maneira que outros temas policiais dessa
natureza, o roubo de carros em várias regiões no Brasil que são levados para
o Paraguai é corriqueiro, a maioria dos veículos é usada para o tráfico de
drogas e outras práticas, como crimes de pistolagem, por exemplo.
Por fim, no mesmo dia, o destaque foi para uma entrevista através de
link ao vivo em que o repórter Genaro Rivas conversou com um residente
de medicina brasileiro, do Hospital Regional, que contava sobre um projeto
no qual outros alunos brasileiros estavam aprendendo a língua guarani para
melhorar o atendimento de pacientes da região. A procura de brasileiros pe-
los cursos de medicina em Pedro Juan Caballero tem sido crescente a cada
ano. Atraídos por mensalidades que chegam a custar menos de um terço do
valor das faculdades particulares brasileiras, além da facilidade de ingressar
nos cursos porque as instituições não realizam vestibular, os estudantes aca-
bam se deparando com a barreira dos dois idiomas oficiais do Paraguai, o
espanhol e o guarani.
Se considerarmos todos os formatos distribuídos em temas para a rá-
dio Nova FM, de acordo com a Tabela 6, e se considerarmos, também,
todos os formatos distribuídos em temas para a Mburucuyá AM, na Tabela
8, percebe-se que o conteúdo informativo, de acordo com esta pesquisa,
que atende às duas comunidades, está distribuído nos seguintes temas: eco-
nomia, internacional, polícia, política e saúde. No entanto, para a Nova
FM, apenas a polícia e a política foram veiculadas de maneira a atender os
dois lados da fronteira. Já do lado paraguaio, cinco temas foram destacados:
economia, internacional, polícia, política e saúde.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 61
Percebe-se que a emissora paraguaia abordou um número maior de
temas em relação à brasileira, porém, se considerarmos a quantidade de
horas das duas rádios, é perceptível que poucos conteúdos atendem às duas
comunidades, o que pode evidenciar que o foco da programação jornalís-
tica está direcionado apenas para o seu lado da fronteira e, assim, deixa de
atender de maneira mais ampla às necessidades de informações por parte
das duas comunidades.

Considerações Finais

Embora o tema escolhido - o rádio fronteiriço - não seja inédito da


perspectiva do meio informativo, este trabalho fez um recorte, procurando
responder a questões ligadas às temáticas locais propagadas nas emissoras
que mais dedicam tempo de notícias, nas cidades de Ponta Porã e Pedro
Juan Caballero. Nessa fronteira, o rádio tem expressividade singular, uma
vez que é um meio acessível e alcança pessoas das duas comunidades, che-
ga a lugares em que o sinal de internet é ruim e onde a produção e a circu-
lação de jornal impresso é cada vez menor.
Quanto à definição de perfil de programação e de cobertura dos te-
mas locais pelas estações de rádio, as emissoras brasileiras, que têm pouca
produção local, definem a sua programação focada no conteúdo musical,
de entretenimento, e são dependentes da produção de outros veículos e
agências para trazerem informações ao longo da programação. Um exem-
plo disso são as reportagens veiculadas, que, na semana estudada, repre-
sentaram 46% dos formatos apresentados. Os temas mais abordados desse
formato foram política, com 15 inserções; economia, com sete e esporte,
com seis. No entanto, sendo a reportagem considerada um grande formato
que demanda maior trabalho jornalístico e tempo de produção, nenhuma
veiculada no período foi produzida localmente, todas foram trazidas a partir
das agências de rádio, das quais a emissora possui cadastro e autorização
para reproduzir.
As emissoras paraguaias, por sua vez, investem muito mais em produ-
ção local, mas concentram suas coberturas no lado do seu país e a fronteira,
como espaço geminado e compartilhado por dois povos, pouco aparece. A
maior incidência temática observada é para polícia, que, em certa medida,
chegam a atender as duas comunidades, e política, que ocupam, para os
formatos de nota e notícia, 45% de cada tema do total do conteúdo.
Do lado brasileiro, embora as emissoras possuam boa estrutura admi-
nistrativa, os apresentadores precisam lidar diariamente com múltiplas fun-
ções (locução, sonoplastia, direção, captação de anunciantes e parceiros),
o que limita uma programação diferenciada, com produção de conteúdo
e foco na comunidade local. Os profissionais também ficam dependentes
do conteúdo da internet para replicar. Já do lado paraguaio, as rádios têm a
62 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
figuras do diretor, do sonoplasta, dos apresentadores e repórteres, investem
mais em programação local e, embora os temas policiais e políticos ocupem
grande parte da programação, outros assuntos também são explorados.
A partir da análise dos temas locais que estão presentes na programa-
ção informativa do rádio fronteiriço, percebeu-se que a notícia local refor-
ça os aspectos negativos da fronteira. No Informativo do Meio Dia, ainda
que, durante a entrevista, o apresentador Giovani Cézar tenha afirmado
que os temas policiais não são os de maior ocupação no programa, “nós não
fazemos sensacionalismo e também não trazemos em primeiro plano as
informações policiais, sempre é em terceiro plano só pra concluir mesmo o
horário”, a análise permitiu observar que essa temática ocupou metade dos
temas locais, reforçando os acontecimentos negativos da fronteira. O Puerta
Abierta, por sua vez, das dez inserções de temas locais no transcorrer da
semana, seis foram sobre polícia.
Nem de um lado, nem do outro a programação informativa aten-
de às duas comunidades de maneira ampla e com múltiplas temáticas. Na
Nova FM, a maior parte das notícias são nacionais, com foco, sobretudo,
em política, e a maior parte das notícias locais são de polícia, o que fortalece
a visão pejorativa da fronteira. Na Mburucuyá AM, parte da programação
é compartilhada com a rede Ñanduti, que transmite acontecimentos na-
cionais e regionais e o conteúdo local também tem o maior enfoque em
polícia e política.
Em ambas as emissoras, os apresentadores reconhecem a carência
de mais informações que favoreçam as duas comunidades. O destaque para
os acontecimentos locais poderia fortalecer os laços entre os dois países e
oportunizar a imagem positiva da fronteira. Assim, o cotidiano fronteiriço,
raramente, é retratado no rádio, especialmente no lado brasileiro, que vei-
cula muitas notícias nacionais. As trocas, as interações, as relações comer-
ciais, de trabalho e a cultura local são quase nulas. A importância de ter,
na programação radiofônica, temas como esses é que o fronteiriço teria a
oportunidade de ter seus interesses representados e, consequentemente,
suas necessidades informativas supridas.

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Entrevistas
CÉZAR, Paulo. Entrevista pessoal realizada com o apresentador do programa
Conexão Máxima da rádio Nova 96,9 FM durante visita às emissoras em Ponta
Porã em fevereiro de 2019. RIVAS, Eder. Entrevista pessoal realizada com o
apresentador do programa Puerta Abierta e Ecos del Amambay da rádio Mbu-
rucuyá 980 AM, gravada em dezembro de 2019, em Pedro Juan Caballero. RI-
VAS, Genaro. Entrevista pessoal realizada com o repórter do programa Puerta
Abierta da rádio Mburucuyá 980 AM, gravada em dezembro de 2019, em Pedro
Juan Caballero.
SANTOS, Giovani Cesar. Entrevista pessoal realizada com o apresentador do
programa Informativo do Meio Dia, gravada em fevereiro de 2020, em Ponta
Porã.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 65


Imprensa fronteiriça on-line: fórum de debates ou
espaço de superficialidade factual?1
Gesiel Rocha de ARAÚJO2
Marcelo Vicente Câncio SOARES3

Apresentação

As barreiras que separam nações, povos e culturas têm-se acirrado


cada vez mais, mesmo no contexto de uma sociedade global e interconec-
tada, fato que seria no mínimo paradoxal se a contradição e a ambivalência
não fossem marcas profundas das fronteiras territoriais ao longo da história.
A mobilidade material e simbólica é um dos fenômenos centrais da socie-
dade contemporânea, não sendo mais possível pensar o mundo pela velha
lógica centro e periferia. Mesmo assim, não só os muros que restringem a
circulação de pessoas desterritorializadas persistem, mas também quase 50
mil quilômetros de fronteiras foram traçados ou acordados internacional-
mente em menos de 20 anos (1991 a 2009), conforme levantamento de
Foucher (2009).
Considerando as dinâmicas das fronteiras à luz da história − ora limi-
te e controle, ora aproximação e continuidade, e quase sempre ambos (WE-
BER, 2014) –, é sensato concordar com Foucher (2009, p. 27), para quem
“o mundo, para ser habitável, precisa de fronteiras, esse terceiro elemento
entre as culturas e a humanidade”. Ao descrever essa aparente contradição,
Pesavento (2006, p. 11) compara as fronteiras a portas e janelas que, se
permitem a passagem, também impedem a entrada: “Fronteiras limitam,
encerram e fecham, negam o diálogo e o contato, tal como podem abrir,
comunicando e aproximando as partes, criando laços, correspondências,
percursos de vida em paralelo, convergências, oposições e competição”.
Essa multiplicidade da condição fronteiriça fica evidente na distin-
ção apontada por Machado (2000), para quem a definição e proteção dos
limites territoriais de um Estado são prerrogativa dos poderes político, di-
1 Síntese da dissertação de mestrado intitulada A fronteira ignorada: cooperação e conflito na im-
prensa fronteiriça on-line, defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCOM/UFMS). A banca foi composta pelo
orientador Prof. Dr. Marcelo Câncio Soares, Profa Dra. Daniela Cristiane Ota (UFMS) e Prof. Dr.
Edgar Aparecido da Costa (UFMS). Disponível em: https://posgraduacao.ufms.br/portal/trabalho-
-arquivos/download/5736.
2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PPGCOM-UFRGS); jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: gesiel.pro@gmail.com.
3 Professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS); doutor em Ci-
ências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com
pós-doutorado em Ciências da Comunicação na Universidade Autônoma de Barcelona. E-mail:
marcelo.cancio@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 67


plomático e bélico, mas a ocupação e o avivamento das fronteiras perten-
cem ao povo, às comunidades, às pessoas. “Enquanto o limite jurídico do
território é uma abstração, gerada e sustentada pela ação institucional no
sentido de controle efetivo do Estado territorial, [...] a fronteira é lugar de
comunicação e troca”, argumenta a autora (2000, p. 9-10). E é justamente
por pertencer às pessoas que cada região fronteiriça busca as próprias solu-
ções para lidar com as demandas que não podem esperar pela atenção do
Estado nacional.
Além das trocas culturais entre quem vive dos dois lados da linha di-
visória, inúmeras relações políticas e institucionais estabelecem-se no plano
subnacional e assumem caráter ao mesmo tempo locais e transnacionais
(SOARES, 2011). E num emaranhado de burocracias e informalidades,
atores subnacionais envolvem-se nas relações internacionais, estabelecendo
“contatos formais e informais, permanentes ou provisórios com entidades
estrangeiras públicas ou privadas, objetivando promover resultados socioe-
conômicos ou políticos” (PRIETO, 2004, p. 251). As transações político-
-institucionais que cruzam as fronteiras resultam em cooperação e integra-
ção, mas também em tensão e conflito.
Nesse cenário, partimos da premissa de que os meios de comunica-
ção exercem um relevante papel ao oferecer o espaço no qual as frontei-
ras se manifestam e discutem publicamente os temas de interesse comum.
Como aponta Soares (2011, p. 12), “a circulação de informações possibilita
trocas sociais importantes e essenciais nas cidades localizadas em regiões de
fronteira. É o caso, por exemplo, das televisões e dos telejornais existentes
em cidades-gêmeas fronteiriças”. No mesmo sentido, conforme Ota (2015,
p. 198), “o espírito de integração, próprio da comunidade fronteiriça e pre-
sente nas práticas sociais [...] é reproduzido também pela mídia radiofônica,
demonstrando que os programas emitidos pelas rádios binacionais passam a
compor a vida cotidiana das comunidades”.
As iniciativas institucionais que buscam suprir as demandas locais
fazem parte de uma complexa teia de relações políticas e sociais entre as
comunidades fronteiriças. Com o intuito de compreender o papel da im-
prensa nesse contexto, buscamos identificar e mensurar o espaço editorial
dedicado por veículos fronteiriços aos assuntos institucionais relacionados
às fronteiras, que abordavam ou apresentavam potencial para a cooperação
ou o conflito. Entre 1º de janeiro e 30 de abril de 2017, monitoramos mais
de 19,5 mil matérias jornalísticas veiculadas em sites de notícias estabeleci-
dos e/ou atuantes em quatro cidades localizadas nas fronteiras do Brasil com
o Paraguai e a Bolívia. Dentre elas, selecionamos 77 textos para análise,
entre reportagens, notícias, notas e entrevistas que abordavam temas e fatos
direta e exclusivamente relacionados às regiões em questão.
No trabalho, refutamos conotações dualistas para os conceitos de co-
operação e conflito. Escolhemos esses termos não pela oposição que podem
68 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
sugerir, mas pela correlação que ensejam, num ambiente de confluência de
nacionalidades, disputas identitárias e por bens materiais e simbólicos (NAS-
CIMENTO, 2012). Adotamos a perspectiva na qual as fronteiras, guardadas
suas diferenças e peculiaridades, podem ser analisadas como espaços de
contradições, conflitos e ambivalências, com situações pontuais de coope-
ração política, econômica e cultural que resultam numa integração incom-
pleta e controversa. Buscamos, assim, escapar da armadilha de interpretar
a “fronteira híbrida” mencionada por Canclini (2008) como um ambiente
definido por práticas de irmandade e integração, o que, a nosso ver, só en-
contraria respaldo no senso comum.
Abordamos os conceitos de cooperação e conflito acreditando a priori
que os meios de comunicação, no sentido amplo, e a atividade jornalística em
particular, podem contribuir para a construção de pontes entre os povos dos
dois lados. Considerando as particularidades das localidades, investigamos se
o jornalismo integra os povos e atua como uma espécie de mediador entre
as culturas fronteiriças, “porque tem facilidade de circulação em quaisquer
dos ambientes [...] e pode contribuir para uma articulação das questões que
dizem respeito ao seu campo de atuação porque é um conhecedor da reali-
dade e de seus melindres” (RADDATZ, 2015, p. 212). Tentamos responder,
por fim, se a veiculação de textos jornalísticos sobre situações de cooperação e
conflitos institucionais locais favorece ou não a integração das comunidades
abordadas.

Múltiplos olhares sobre as fronteiras

Limites e fronteiras entre povos e nações têm sido discutidos e con-


ceituados desde os primórdios da Idade Antiga, a partir de diferentes con-
cepções próprias de cada região e período histórico. Em 1898, no auge da
corrida imperialista entre as potências da Europa, o geógrafo e etnólogo ale-
mão Friedrich Ratzel, considerado o fundador da Geopolítica, afirmou que
“a tarefa do Estado, no que concerne ao solo, permanece sempre a mesma
em princípio: o estado protege o território contra os ataques externos que
tendem a diminuí-lo” (RATZEL, 2011, p. 96). Com isso, ele definiu a prio-
ridade do Estado-Nação moderno: proteger suas fronteiras e expandi-las, se
possível, ou ser pressionado no sentido oposto.
Quase um século mais tarde, Raffestin (1993) apontou as fronteiras
como um fato social e não apenas geográfico, embora também passível de
manipulação por parte dos Estados-Nações, que as transformaram num
símbolo comunicante de uma ideologia. Neste sentido, o ator político
territorializa o espaço na medida em que dele se apropria concreta ou
abstratamente. Limite e fronteira seriam, portanto, além de expressões de
uma “interface biossocial” sujeita às modificações e transposições confor-
me o curso da historicidade, “um sinal ou, mais exatamente, um sistema
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 69
sêmico utilizado pelas coletividades para marcar o território: o da ação
imediata ou o da ação diferenciada” (RAFFESTIN, 1993, p. 165).
Contemporâneo de Raffestin, Foucher (2009) concebe as fronteiras
como arcabouços estruturais e elementares dentro de um espaço delimi-
tado, com a função de incerteza e descontinuidade de cunho geopolítico,
delimitando os registros socioespaciais, simbólicos e socioculturais das re-
giões. As fronteiras são, portanto, “membranas assimétricas” que autorizam
a saída ao mesmo tempo em que protegem a entrada (FOUCHER, 2009,
p. 19). Para o Estado, são “um teatro onde a legitimidade de seu poder
é observada com atenção. Nada de mais desastroso para uma autoridade
soberana do que ser acusada de ter perdido o controle de sua fronteira”,
afirma o autor (2009, p. 25).
Concentrando seus estudos nas fronteiras do Cone Sul latino-ame-
ricano, Grimson (2000) define a fronteira como um “objeto/conceito e
um conceito/metáfora” que transita entre elementos físicos e territoriais e
culturais e simbólicos. Sua proposta implica conhecer de dentro a dinâ-
mica das fronteiras para compreender e mostrar não apenas a porosidade
de seus cruzamentos, mas sua historicidade, seus estigmas e disputas de
poder.

A fronteira é um local de encontro de relatos geopolíticos e lite-


rários, historiográficos e antropológicos. [...] Na fronteira, há vá-
rias histórias mescladas. Uma diz respeito aos territórios estatais,
espaços imaginados e desenhados como potencialmente bélicos;
espaços de contato prévio da expansão e da soberania tanto como
da cidadania, limites da repressão e dos direitos. (GRIMSON,
2003, p. 13, tradução nossa).

Tais conceitos favorecem a constatação de que, nas perspectivas geo-


política, simbólica, histórica e cultural, as fronteiras são por excelência am-
bientes de uma complexidade que se materializa nas relações e interações
de diferenças em vários níveis. Seguindo este raciocínio, Raddatz (2015, p.
204-205) reforça que, além de uma nunca ser igual à outra, a “fronteira está
em permanente construção”, alimentando-se de “si mesma e do conteúdo
de quem a atravessa”. Diante dessas complexas relações, marcadas por pro-
cessos simultâneos de fluxo, trânsito e interdição, elementos como território
e identidade ganham dimensões muito evidentes.
O território, na visão de Haesbaert (2004), é um dos muitos instru-
mentos utilizados no interior de uma nação com o intuito de promover
padronizações e classificações na relação com outros territórios, tomando
por iguais ou semelhantes aqueles que compartilham um mesmo espaço
geopoliticamente definido. Ademais, Santos (2006) salienta que a constru-
70 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
ção do território é um processo econômico, político e cultural, resultado
da ação de apropriação e produção de um dado espaço. Para esse autor
(2006), portanto, longe de ser aleatório, o território é fruto de intencionali-
dades sociais, historicamente produzido e diariamente reproduzido a partir
do trabalho e de outras atividades humanas, revelando as contradições e
desigualdades sociais.
A questão da identidade é outro elemento de destaque no âmbito das
fronteiras. Nesse contexto, podemos considerar a perspectiva contrastiva de
Barth (2000), que se refere a nós diante dos outros e entende a identidade a
partir do ordenamento das relações estabelecidas entre os distintos grupos
sociais, afirmando assim que uma cultura não pode elaborar isoladamente
uma identidade para si e por si só. Já Raddatz (2015) aponta que, no am-
biente de fronteira, a identidade é um elemento híbrido mais associado
ao sentimento de pertença a determinados ambientes culturais do que às
relações de cidadania formal dos indivíduos fronteiriços. A identidade, por-
tanto, não estaria exclusivamente vinculada ao documento que comprova a
origem dos indivíduos, mas à sua bagagem cultural.
Seguindo essa lógica, Müller (2000, p. 8) observa que os espaços
fronteiriços, ricos em elementos produzidos a partir do contato constante
entre sujeitos de diversas nacionalidades, “constituem-se como um espaço
regional, cuja cultura é forjada por elementos específicos, comuns a deter-
minados grupos, estabelecendo assim a ‘diferença’, as peculiaridades locais,
eliminando ou borrando os limites oficiais, geopolíticos”. Dessa forma, não
se poderia falar de fronteira geopolítica sem considerar as fronteiras cultu-
rais, que, de acordo com Raddatz (2015, p. 207), são a manifestação con-
creta da primeira, “com todas as ambiguidades oriundas de suas práticas
no tempo e no espaço”. As fronteiras culturais devem ser pensadas em sua
dimensão ambivalente e ambígua porque, como defende Pesavento (2002,
p. 36), elas

remetem à vivência, às socialidades, às formas de pensar inter-


cambiáveis, ao ethos, valores, significados contidos nas coisas,
palavras, gestos, ritos, comportamentos e ideias. Basicamente, a
fronteira cultural aponta para a forma pela qual os homens inves-
tem no mundo, conferindo sentidos de reconhecimento.

O fato de serem regiões que aglutinam uma imensa diversidade de


aspectos políticos e valores morais, simbólicos, religiosos e culturais não
atribui às fronteiras a condição de “populações unidas fraternalmente, ain-
da que separadas por uma linha divisória que lhes é exteriormente imposta”
(NASCIMENTO, 2012, p. 19). Para Martins (2014, p. 11), esses ambientes
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 71
representam a fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se
oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira
de etnias, fronteira da história e da historicidade do homem”. São, portanto,
um dinâmico espaço de tensão e contradição entre quem as cruza e quem
as reforça.

O fazer jornalístico na zona de impacto

Nesses complexos ambientes de interações e ambiguidades, a mí-


dia tem papel fundamental porque, como destacam Müller et al. (2010,
p. 122), “participa ativamente dos acontecimentos, relatando os fatos, sele-
cionando os atores que irão conduzir as cenas, definindo quais as práticas
socioculturais que serão abordadas como notícia, entretenimento ou anún-
cios publicitários”. Ao contribuir para delinear os elementos que compõem
a pauta social e a opinião pública local, a mídia fronteiriça “funciona como
a representação concreta das relações que se estabelecem na sociedade,
a partir dos interesses e desejos desta, decorrentes das crises, conflitos e
necessidades que se criam no dia a dia de vizinhança” (MÜLLER et al.,
2010, p. 124).
Por meio da mídia on-line, em qualquer um dos suportes ou formatos,
o morador da fronteira - leitor, ouvinte ou telespectador - busca manter-se
informado, de forma imediata, acerca dos fatos ocorridos no ambiente no
qual está inserido, que não raro envolve pessoas do seu círculo de convivên-
cia ou conhecimento. Como apontam Müller, Raddatz e Bomfim (2013,
p. 70), tais fatos podem variar de eventos políticos e culturais até quem
esteve envolvido num acidente ou incidente policial no centro da cidade,
por exemplo. Por outro lado, as plataformas do ambiente on-line são a al-
ternativa para os veículos tradicionais manterem-se presentes no cotidiano
do público e se viabilizarem comercialmente. Forma-se assim um círculo
em que

a mídia de fronteira online interage com os cidadãos locais e com


os cidadãos do mundo, o que leva a supor uma reorganização
desse espaço, no sentido de pensar a sua programação tendo
em vista este ouvinte, leitor, espectador internauta, procurando
transformar e adequar as informações e os saberes de modo a re-
fletir sobre suas práticas e seus fazeres. (MÜLLER; RADDATZ;
BOMFIM, 2013, p. 70).

Além do aspecto local/internacional simultâneo das pautas aborda-


das pela mídia fronteiriça, Raddatz (2015, p. 211) entende que, diferente-
72 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
mente de outras regiões, há um caráter de tridimensionalidade: “o local do
lado de cá, o local do lado de lá e o local que aborda interesses da fronteira
como unidade, ou seja, que diz respeito aos interesses comuns dos dois lados
do marco da fronteira”. Ao analisar como o jornalismo televisivo fronteiriço
mescla interesses e convívios binacionais, Soares (2011, p. 51) chega a uma
conclusão semelhante: “Nas necessidades fronteiriças há uma dualidade
que não se dá em outros lugares. Na fronteira, o interesse informativo de
um lado e de outro pode se chocar”.
Tal qual uma “zona de impacto” e “ao mesmo tempo lugar de in-
tegração e espaço de tensão” (RADDATZ, 2009), a fronteira se revela no
fazer jornalístico e nos veículos de imprensa, que expressam a integração e
o conflito entre as comunidades das cidades fronteiriças e, por conseguinte,
os países. A partir dessa concepção, é possível cogitar que o jornalismo aju-
de a integrar os povos enquanto elemento mediador entre as culturas, por
sua “facilidade de circulação em quaisquer dos ambientes [...] e pode con-
tribuir para uma articulação das questões que dizem respeito ao seu campo
de atuação porque é um conhecedor da realidade e de seus melindres”
(RADDATZ, 2015, p. 212).
Há que se considerar ainda, de acordo com Soares (2011, p. 154-
156), que o jornalismo fronteiriço “promove ações de proximidade e de
conectividade entre as duas sociedades fronteiriças e realça valores identi-
tários locais, criando possibilidades de diálogo entre as duas comunidades,
porque é dirigido às populações das duas cidades”. E assim, num contínuo
processo de retroalimentação, por um lado, a imprensa extrai da fronteira
uma rica matéria-prima para o fazer jornalístico: conflitos, intrincadas in-
terações e trocas de bens materiais e simbólicos; por outro, os moradores
das fronteiras recorrem a ela como um dos principais mecanismos de arti-
culação das ideias do lugar e reflexo de vivências dos sujeitos fronteiriços”
(MÜLLER, 2015, p. 135).

Ambientes de cooperação e conflito

Com a compreensão de que as fronteiras são marcadas pela com-


plexidade e ambivalência dos cruzamentos, entrelaçamentos e choques de
culturas e identidades, é razoável entender que elas são ambientes férteis
para o conflito social de toda espécie. Na opinião de Costa (2013, p. 144),
os conflitos que emergem nessas regiões, muitas vezes, revelam processos
de exclusão e de construção de “estigmas sociais, que são reforçados pela
imagem negativa do senso comum, referida à fronteira como área de tráfico
de drogas e de armas, de contrabando e falsificação de produtos”.
Se as fronteiras devem ser entendidas no contexto de intensos con-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 73
flitos, onde “identidades nacionais são erguidas e reforçadas por meio de
diferentes formas de autoclassificação e de classificação dos outros” (ALBU-
QUERQUE, 2008, p. 55), também são uma “periferia de tensão cultural,
quase sempre criadora e não necessariamente bélica e agressiva”, como sa-
lientam Ferraro Júnior e Buitoni (2011, p. 3). Mais do que isso, as fronteiras
se configuram como espaço onde a todo momento ocorrem processos de
integração comercial e econômica, mas sobretudo cultural e simbólica, a
partir de intrincados movimentos de cooperação política e social e de trocas
culturais.
Em cidades fronteiriças conurbadas, como Pedro Juan Caballero
(Paraguai) e Ponta Porã (Brasil), Bento (2013, p. 15) lembra que “a linha-
-limite é atravessada cotidianamente pelos cidadãos dos dois Estados que
ali vivem, sendo de fato cidades-laboratório de integração por esses desloca-
mentos binacionais recíprocos, diários, de ida e volta”. A integração entre
essas comunidades ocorre nas relações práticas e cotidianas, à margem dos
circuitos oficiais e, principalmente, dos centros de poder dos países. É isso
que argumentam Souza e Oliveira (2014, p. 76) ao descrever a fronteira
Brasil-Paraguai como “um espaço também de ambiguidade por existirem
conflitos gerados pelas diferenças culturais, mas também por possuírem
uma conexão cultural, como por exemplo, o espaço ‘brasiguaio’”.
Esse complexo cenário fronteiriço marcado por ensaios de integra-
ção pode ganhar contornos paradoxalmente conflituosos, já que um ele-
mento vincula-se intrinsecamente ao outro, como aponta Machado (2002,
p. 8): “No sentido mais geral, a noção de fronteira internacional como lu-
gar de integração, de comunicação, de encontro, de conflito, advém do a
priori, de que estamos na presença de sistemas territoriais diferentes e de
nacionalidades distintas.” Ao tratar da interseção entre os conceitos conflito
e integração, Albuquerque (2010, p. 583) defende não ser adequado buscar
a contraposição dos discursos e práticas, mas sim perceber suas relações in-
trínsecas, “sem cair na dicotomia valorativa entre a negatividade do conflito
e a positividade da integração”. Para esse autor (2010, p. 583), portanto,

os conflitos geram formas de integração [...] e explicitam tensões


contemporâneas e passadas nas relações entre brasileiros e para-
guaios. Por outro lado, a integração é um campo de forças, um
movimento diferenciador de aproximação e distância entre os di-
versos agentes e instituições envolvidas nas relações diplomáticas,
militares, econômicas, políticas, sociais e culturais entre os dois
países.

Fronteiras são espaços físicos e sociais peculiares pela confluência dos


mais variados elementos políticos e culturais que criam ambientes propícios
aos conflitos. Se os conflitos geram integração, é lógico considerar que as
74 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
fronteiras também favorecem a manifestação de ações de cooperação. Em-
bora essas ações se desenvolvam no âmbito local, geralmente restritas às co-
munidades que as empreendem, são também internacionais, pois envolvem
os habitantes de pelo menos dois países. Tais iniciativas compõem um quadro
de cooperação descentralizada, termo que descreve as “ações bilaterais ou
multilaterais envolvendo atores subnacionais (municípios, províncias, estados
ou departamentos) de dois ou mais Estados nacionais distintos” (BANZAT-
TO; PRADO, 2014, p. 19).

Cooperação, conflito, neutralidade ou ambivalência?

O conteúdo jornalístico que compõe o corpus do estudo mencionado


foi coletado de quatro sites de notícias, sendo dois da fronteira Brasil-Para-
guai: Ponta Porã Informa, de Ponta Porã-BR (http://www.pontaporainforma.
com.br) e Amambay 570, de Pedro Juan Caballero-PY (http://amambay570.
com.py); e dois da fronteira Brasil-Bolívia: Diário Corumbaense, de Corum-
bá-BR (https://diarionline.com.br) e El Deber, estabelecido em Santa Cruz
de la Sierra-BO, com correspondentes em Puerto Quijarro e Puerto Suá-
rez-BO (https://eldeber.com.bo). Como método da pesquisa, adotamos a
Análise de Conteúdo, definida por Bardin (2011, p. 48) como

um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando ob-


ter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do
conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que
permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.

A escolha dos veículos baseou-se na combinação de dois critérios: o


primeiro (objetivo) levou em conta a relevância local medida pelo número
de acessos e tempo médio despendido pelos usuários na leitura das notí-
cias, a partir dos resultados de ferramentas de métricas digitais; o segundo
(subjetivo) considerou o tempo de atividade e a consolidação do veículo no
mercado jornalístico. Após a escolha dos veículos - cujo crivo metodológico
foi o do suporte midiático: sites de notícias e, portanto, veículos on-line -,
limitamos o conteúdo coletado a textos escritos (excluindo todos os demais
formatos de conteúdo, tais como áudio, vídeo, fotografia, infográfico e ani-
mação).
A partir do monitoramento de mais de 19,5 mil matérias jornalísticas
ao longo de quatro meses (janeiro a abril de 2017), por meio da referencia-
ção de índices (aparição de um tema no texto) e elaboração de indicadores
(frequência de aparição do tema de maneira relativa ou absoluta) (BARDIN,
2011), foram selecionados inicialmente 172 textos para pré-análise. Para a
fase de análise propriamente dita, estes foram reduzidos a 77 textos (confor-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 75
me a Tabela 1, abaixo), diretamente enquadrados nos critérios definidos para
a pesquisa: conteúdos jornalísticos que faziam referência a assuntos político-
-institucionais relacionados às respectivas fronteiras, e que faziam menção
direta ou representavam potencial para promover a integração ou fomentar o
conflito entre as comunidades em questão. Em seguida, foram classificados
de acordo com formatos jornalísticos e editorias temáticas, compondo o cor-
pus definitivo extraído dos quatro veículos escolhidos.

Tabela 1 - Número final de textos selecionados para a análise nos quatro sites

Fonte: Do autor

Os textos foram novamente categorizados com foco na direção do


conteúdo, ou seja, na ponderação da frequência que traduz um caráter
quantitativo (intensidade) ou qualitativo, conforme expõe Bardin (2011, p.
141): “A direção pode ser favorável, desfavorável ou neutra (eventualmente
ambivalente), no caso de um estudo de favoritismo/desfavoritismo. Os polos
direcionais podem, no entanto, ser de natureza diversa: bonito/feio (critério
estético), pequeno/grande (tamanho), etc.”. No que diz respeito à direção,
buscamos entender quando e com que intensidade os textos favorecem a
cooperação ou o conflito, ou mesmo se são neutros ou ambivalentes.
Durante a etapa de pré-análise do material coletado e seleção dos 77
textos para a etapa de exploração, formulamos as hipóteses e objetivos da
análise, de acordo com o método proposto por Bardin (2011). Contraria-
mente às expectativas do início da pesquisa, a pré-análise indicou a neces-
sidade de hipóteses significativamente diferentes. Inicialmente, cogitamos
que a veiculação de conteúdos jornalísticos sobre ações de cooperação in-
ternacional local poderia contribuir para a integração das comunidades dos
dois lados das fronteiras. A partir da coleta e pré-análise dos textos, reformu-
lamos esse pensamento para: o espaço e o tratamento editoriais dedicados
pela imprensa fronteiriça on-line à temática institucional local são reduzi-
dos, superficiais, esporádicos e incompletos.
Com o apoio de índices, indicadores, unidades de registro e de
contexto, de intensidade e direção, verificamos que os veículos escolhidos
publicaram ao longo dos quatro meses um certo número de matérias jor-
nalísticas em cada uma das categorias de direção: favoráveis à cooperação
ou ao conflito entre as comunidades de fronteira, neutras ou ambivalentes –
76 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
sendo neutras as matérias que mencionavam elementos de cooperação e/ou
conflito, mas sem uma problematização mais aprofundada; e ambivalentes
as que apresentavam simultaneamente os dois componentes ou valores de
sentidos opostos. Assim, quantificamos o espaço e relevância editorial com
que cada veículo abordou os temas institucionais locais relacionados às
fronteiras e à interação entre as comunidades dos dois lados.
Embora inúmeros aspectos tenham sido considerados, saltamos para
a categorização final do conteúdo analisado, classificando os textos confor-
me a direção que a eles atribuímos: favoráveis à cooperação ou ao conflito
entre as comunidades de fronteira, neutros ou ambivalentes. Neste quesito,
conforme a Tabela 2 (abaixo), individualizamos os resultados por veículo, o
que permitiu algumas inferências particulares:
Tabela 2 - Categorização dos textos conforme a direção nos quatro sites

Fonte: Do autor

Ponta Porã Informa - Avaliando o resultado isoladamente (14 maté-


rias favoráveis à cooperação), o veículo demonstrou uma postura amistosa
e incentivadora das iniciativas de integração das comunidades fronteiriças,
dedicando espaço às citações e manifestações cooperativas entre os dois la-
dos. No entanto, das 17 matérias analisadas, somente duas eram de autoria
própria, sendo as outras 15 oriundas de assessorias de imprensa, cuja ten-
dência é que tratem exclusivamente de iniciativas positivas. Não se pode
afirmar, assim, que este veículo adota uma postura proativa para pautar e
retratar as iniciativas institucionais locais que visem à cooperação entre as
comunidades ou, ainda, para discutir e problematizar as questões sensíveis,
polêmicas e conflituosas da região.
Amambay 570 - Com apenas 11 matérias que atenderam aos crité-
rios definidos para a pesquisa, selecionadas ao longo de quatro meses, foi
difícil traçar uma linha de raciocínio quanto ao conteúdo deste veículo, que
pode ser classificada como levemente favorável à cooperação. Por outro
lado, como seis dos 11 textos analisados foram de autoria do próprio veículo
na maioria, transcrições de entrevistas e assuntos debatidos cotidianamente
nos programas da emissora de rádio do mesmo grupo empresarial, é possível
que exista alguma iniciativa própria ao abordar tanto temas integradores
quanto conflituosos, embora também limitada. As duas matérias classifica-
das como favoráveis ao conflito retratam situações potencialmente conflitu-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 77
osas, mas não trazem em si elementos que incitem o confronto.
Diário Corumbaense – Este veículo apresentou equilíbrio entre os
textos favoráveis à cooperação e ao conflito. A combinação numérica de 17
matérias de autoria própria, três reportagens, 10 da editoria de Política, 12
transnacionais e cinco fronteiriças, além de nove com desdobramento (suíte),
indicou que o veículo demonstrou considerável envolvimento com as ques-
tões mais complexas e polêmicas da fronteira. Do ponto de vista da coopera-
ção, destacaram-se as matérias da editoria de Política, principalmente aquelas
relacionadas à visita de um ministro boliviano a Corumbá e ao corredor fer-
roviário bioceânico. Também identificamos uma correlação entre as cinco
matérias da editoria de Segurança Pública, área importante na linha editorial
do veículo, e os textos classificados como favoráveis ao conflito.
El Deber – Mais do que a favorabilidade para a cooperação ou o
conflito (com prevalência da primeira), chamaram a atenção no veículo
boliviano as categorias neutra, na qual foram classificadas 10 matérias, e
ambivalente, com quatro textos. Uma das prováveis correlações é o fato de
10 matérias se enquadrarem na editoria de Economia que, grosso modo,
pode dedicar menos espaço à problematização, na comparação com as áre-
as de política ou segurança. Outra explicação viável é que algumas matérias
tratavam de questões de infraestrutura local, relacionadas à fronteira e clas-
sificadas na editoria de Geral, mas que não apresentavam elementos fortes
o suficiente para indicarem favorabilidade.
Sendo o maior dentre os quatro veículos estudados, o El Deber abor-
dou as questões integradoras com maior abrangência e menos localidade,
como na matéria “Perfilan un giro del comercio por el Atlántico”4 (13 de março
de 2017). Com profundidade jornalística maior do que a média dos veículos
analisados, matérias que apontaram favorabilidade ao conflito ou ambivalên-
cia não foram insignificantes, em especial aquelas que trataram de segurança
e polícia. Foram comuns textos que, ao mesmo tempo, abordaram iniciativas
de cooperação entre as polícias dos dois países e atribuíram responsabilidades
ao Brasil por atos criminosos, como “Gobierno vincula atracos a cárteles de
Brasil”5 (27 de abril de 2017), por exemplo.
Mais do que as inferências individualizadas sobre as razões que le-
varam cada veículo a publicar mais ou menos matérias sobre um ou outro
tema, um dado permitiu certamente a interpretação mais relevante de todo
o estudo. Trata-se da comparação entre o número de matérias selecionadas
para análise - e que, portanto, enquadraram-se nos critérios definidos para a
pesquisa - e o volume total de matérias publicadas no período analisado (1º
de janeiro a 30 de abril de 2017, exatos 120 dias). Desse modo, foi possível
4 Disponível em: https://www.eldeber.com.bo/economia/Perfilan-un-giro--del-comercio-por-el-
-Atlantico-20170312-0045.html. Acesso em: 13 mar. 2017.
5 Disponível em: https://www.eldeber.com.bo/bolivia/Gobierno-vincula-atracos-a-carteles-de-Bra-
sil-20170426-0109.html. Acesso em: 27 abr. 2017.

78 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


saber o percentual de textos sobre temas político-institucionais relativos às
fronteiras com relação à totalidade do conteúdo publicado pelos veículos,
conforme a Tabela 3 (abaixo):

Tabela 3 - Total de matérias publicadas / percentual de textos selecionados nos sites

Nenhum dos quatro veículos analisados alcançou 1% de matérias


que versavam sobre temas político-institucionais relativos às fronteiras do
total de matérias publicadas em quatro meses. Podemos afirmar mate-
maticamente que o espaço editorial dedicado pela imprensa fronteiriça
on-line aos assuntos político-institucionais que envolvem as fronteiras e
que abordam ou apresentam potencial para a cooperação ou o conflito
equivaleu, no máximo, a 0,8% do conteúdo publicado no período - Diá-
rio Corumbaense, maior percentual encontrado. E mesmo com a maior
estrutura entre os veículos pesquisados, esse espaço foi inferior a 0,3% no
El Deber – menor percentual identificado.
Seguindo a mesma lógica, quantificamos a frequência de publicação
de matérias com as características descritas, conforme a Tabela 4 (abaixo),
dividindo o número de dias analisados pelo número final de textos seleciona-
dos. Verificamos assim que, no período analisado, o site Ponta Porã Informa
publicou, em média, um único texto por semana que fazia referência aos te-
mas que eram foco da pesquisa, mesmo tendo publicado no total mais de 45
textos por dia ou 320 por semana, em média. Da mesma forma procederam
os demais veículos, sendo o Amambay 570 o site que apresentou o período
mais esparso (um texto a cada 11 dias) e o El Deber o período mais curto (um
texto a cada quase cinco dias), apesar de publicar, em média, quase 70 textos
por dia e quase 500 por semana.

Tabela 4 - Média de publicação nos sites / frequência de textos no período analisado

Evitamos generalizações precipitadas e evidentemente limitamos essa


constatação aos veículos estudados, que representam apenas uma minúscula
fração da imprensa fronteiriça da América do Sul e do mundo. Mas, certa-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 79
mente, mesmo essa pequena amostra é um importante indicativo de como os
veículos de imprensa (sites de notícias, em particular) sediados e atuantes em
regiões fronteiriças olham, pautam e cobrem a própria fronteira quanto aos mo-
vimentos político-institucionais que têm potencial para aproximar ou afastar as
comunidades dos dois lados das linhas divisórias entre os países.

Imprensa fronteiriça e (ausência de) debate público

Foi neste contexto de complexidade e ambivalência, movimentos


contraditórios de abertura e fechamento, divisão e aproximação, contato
e impacto (RADDATZ, 2015), mas principalmente de mobilidade e flu-
xo, que situamos o estudo sobre um dos elementos inerentes à dinâmica
das fronteiras: o jornalismo fronteiriço. Essa atividade vital para promover
o fluxo de informações exerce, ou deveria exercer, função primordial na
organização social e política das comunidades fronteiriças, servindo como
a ferramenta, o fórum de debates por excelência das questões culturais,
econômicas, sociais, políticas, históricas, ambientais, urbanísticas e comu-
nicacionais locais e regionais, bem como o canal para o trânsito de ideias
que contribuem para aproximar ou afastar os povos em contato.
Com essa concepção, a pesquisa realizada constituiu-se de diversas
entrevistas em profundidade, vivências in loco nas cidades de Ponta Porã,
Pedro Juan Caballero, Corumbá, Puerto Quijarro e Puerto Suárez, moni-
toramento de mais de 19,5 mil matérias jornalísticas, das quais 172 foram
analisadas parcialmente e 77 em profundidade. O trabalho foi inicialmente
pautado pela ideia de que o jornalismo é um instrumento a serviço da inte-
gração das comunidades das regiões de fronteira, ou seja, que a veiculação
de conteúdos jornalísticos sobre ações de cooperação internacional local
pode contribuir efetivamente para a aproximação das comunidades dos
dois lados. Para investigar a veracidade dessa premissa, julgamos necessário
compreender como e com que empenho a imprensa fronteiriça on-line
aborda a temática político-institucional local.
Mas por que a temática político-institucional e não cultural, econô-
mica ou mesmo policial? Todas essas áreas temáticas do jornalismo foram
consideradas, desde que contivessem elementos textuais e contextuais que
caracterizassem algum nível de relação institucional entre os dois lados das
fronteiras, bem como algum potencial para a cooperação ou o conflito. Esco-
lhemos esse caminho porque está na esfera político-institucional o poder para
atuar sobre as demandas sociais e infraestruturais da população e, principal-
mente, de formular e executar as políticas públicas e as regulamentações que
regem o convívio social, seja na esfera local, regional ou nacional. A impren-
sa fronteiriça seria, assim, o espaço de reverberação dos questionamentos da
sociedade regida por tais políticas.
Sempre que o objeto da pesquisa era compartilhado, era comum al-
80 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
guém perguntar se há um número significativo de iniciativas locais de coo-
peração entre as comunidades fronteiriças. De fato, os exemplos encontra-
dos de tais iniciativas foram escassos, muito aquém da expectativa, mesmo
fora do período de análise. Também ficou evidente que o objeto da análise
(o recorte de conteúdo) foi bastante específico, não abrangendo a totalida-
de das notícias sobre as fronteiras (análise inviável). No entanto, isso não
invalida o problema central do estudo, pois, havendo ou não um número
relevante de iniciativas com essas características, é fato que há problemas e
necessidades vivenciados pelas comunidades, temas locais e questões aber-
tas a serem discutidos exaustivamente, e também estes não são amplamente
abordados pela imprensa fronteiriça on-line.
Quanto à escolha de veículos de imprensa situados nas fronteiras do
Brasil com o Paraguai e com a Bolívia, foi essencial a compreensão de que es-
sas são regiões com características e complexidades muito particulares, dada
a singularidade de cada zona fronteiriça. Ambas têm o português e o caste-
lhano como principais línguas faladas (além das línguas indígenas, também
oficiais), fazem divisa com o território do Mato Grosso do Sul, são consi-
deradas fronteiras secas e cidades-gêmeas conurbadas ou semiconurbadas e
contam com contingentes populacionais não muito diferentes, entre outras
semelhanças. Mesmo assim, são mais expressivas as diferenças geográficas,
históricas, culturais e identitárias do que as similaridades nessas regiões.
Não se trata apenas do fato de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero
serem divididas (o termo correto seria “unidas” por uma linha imaginária,
enquanto Corumbá e Puerto Quijarro são separadas por elementos físicos
(um canal, um pântano, um riacho, uma faixa de terra de quase cinco qui-
lômetros e até um aeroporto, além de uma aduana). Trata-se da formação
histórica das duas regiões, sendo Corumbá resultado de esforços militares
para proteger o território brasileiro, e Ponta Porã fruto de um povoamento
oriundo de uma rota comercial, de troca, de fluxo. Trata-se de significativas
diferenças étnicas e culturais entre as populações paraguaia (predominante-
mente hispânica) e boliviana (quase totalmente indígena na fronteira, prin-
cipalmente quéchua e aimará), entre outros inúmeros aspectos.
Assim como as regiões, os veículos analisados trazem destacadas
singularidades nos aspectos estruturais, empresariais e editoriais, tornando
desafiadora a tarefa de encontrar entre eles elementos comuns que permi-
tissem a análise sob os mesmos parâmetros científicos, do ponto de vista das
ciências sociais. O Ponta Porã Informa é um veículo que nasceu na e para
a internet, diferentemente do Amambay 570, oriundo de uma emissora de
rádio, e do Diário Corumbaense e El Deber, que nasceram de jornais im-
pressos; este último é de longe o maior veículo, com décadas de existência
(o jornal impresso) e sediado em Santa Cruz de la Sierra, uma capital de-
partamental, com correspondentes na fronteira, enquanto o Amambay 570
é de propriedade de um grupo político de Pedro Juan Caballero.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 81
Apesar das diferenças, o principal fio que perpassou os quatro veícu-
los esteve no fato de todos serem sites de notícia que atuam nas fronteiras,
que têm o aspecto fronteiriço como parte de seu cotidiano jornalístico, em
maior ou menor escala. Além disso, trazem como principal matéria-prima
o gênero informativo e o formato notícia (hard news, no jargão jornalístico)
e organizam seus conteúdos em editorias temáticas. Apesar dos diferentes
estágios de interatividade, multimidialidade, convergência e do uso de fer-
ramentas tecnológicas, todos atenderam ao principal critério para a cons-
tituição do corpus da pesquisa: o texto escrito. Assim, acreditamos que os
elementos comuns entre os veículos foram superiores aos contrastes, como
apontaram os resultados da análise.
Tal combinação de aspectos permitiu compreender o espaço e o tra-
tamento editoriais dedicados pela imprensa fronteiriça on-line à temática
político-institucional local e, sobretudo, avaliar se a veiculação de conte-
údos jornalísticos sobre iniciativas de cooperação internacional local ou
temas conflituosos contribui para a integração das comunidades. Os resul-
tados apontaram que esse espaço editorial foi inferior a 0,5% (meio por cen-
to) da produção jornalística total dos quatro veículos analisados no período
analisado. O número demonstra que a atenção dedicada pelos veículos às
pautas que abordam as discussões políticas e institucionais sobre a própria
fronteira é quase insignificante quando comparado à totalidade do conteú-
do veiculado.
Considerando que, dentre mais de 19,5 mil matérias jornalísticas
monitoradas ao longo de quatro meses, somente 77 textos atenderam aos
critérios da pesquisa, concluímos que apenas 0,39% delas abordavam as
questões relacionadas às fronteiras do ponto de vista das interações polí-
tico-institucionais. Posto de outra forma, identificamos um texto com tais
características a cada 254 matérias. A conclusão possível foi refutar a hipó-
tese original e confirmar a hipótese formulada após o monitoramento e co-
leta do corpus: o espaço e o tratamento editoriais dedicados pela imprensa
fronteiriça on-line à temática institucional local são reduzidos, superficiais,
esporádicos e incompletos.
Contribuiu para essa conclusão a constatação de que 64 (83,1%) das
77 matérias analisadas eram notícias ou notas, mostrando que quase não
há produção de conteúdos jornalísticos aprofundados, interpretativos, que
abordavam diferentes angulações de um assunto. Notícias e notas são por
essência formatos rápidos, instantâneos, que normalmente resumem-se a
uma narrativa factual, rasa, descontextualizada e não problematizada dos
acontecimentos. Além disso, somente 14 (18,1%) das 77 matérias analisadas
trouxeram fontes dos dois lados das fronteiras, o que demonstrou um espaço
ainda mais reduzido à pluralidade de posicionamentos dos agentes políticos
e sociais atuantes nas fronteiras.
Não foi possível generalizar quem predominantemente pauta a im-
82 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
prensa fronteiriça on-line sobre os temas político-institucionais - se a ini-
ciativa própria ou as assessorias de imprensa. Consideramos, portanto, as
particularidades dos veículos: entre 11,7% (Ponta Porã Informa) e 96,1%
(El Deber) de iniciativa própria, observando um alto índice de reprodução
integral de textos de assessorias de imprensa ou de outros veículos não si-
tuados nas fronteiras, inclusive sobre assuntos relevantes para as comunida-
des fronteiriças. Ou seja, raramente os assuntos são abordados conforme o
contexto local e repercutidos pelas comunidades, limitando-se à visão dos
agentes externos à dinâmica fronteiriça.
Esse aspecto também se conecta ao fato de apenas 37,6% das ma-
térias analisadas terem sido desdobradas em novos textos, com exceção do
El Deber, em que 14 (53,8%) dos 26 textos tiveram desdobramento (suíte).
Raramente verificamos situações em que um texto noticioso, instantâneo,
motivou a produção de uma reportagem mais elaborada, com profundida-
de interpretativa e variedade de pontos de vista. A interpretação possível
para a soma desses fatores é a composição de um cenário jornalístico em
que as questões essenciais da vida política e social fronteiriça se perdem na
instantaneidade e frivolidade das notícias factuais, na acelerada repetição
de fragmentos da miséria humana nas notas sobre crimes, acidentes, con-
frontos policiais, agressões familiares, e nas reproduções de textos intactos
produzidos por assessorias de imprensa de instituições e por outros veículos.
Avaliando os quatro exemplos, a constatação foi contundente: a vei-
culação de conteúdos jornalísticos por sites de notícias fronteiriços sobre
iniciativas de cooperação ou de conflitos institucionais locais não contribui
para a integração das comunidades dos dois lados de uma fronteira. Não
contribui porque é mínima, quase insignificante. A imprensa fronteiriça
on-line perde, dessa forma, a oportunidade de se posicionar como um fó-
rum de destaque, um importante catalisador do debate público acerca das
potencialidades, das necessidades, das ações integradoras e conflituosas nas
fronteiras, como tem potencial para fazê-lo, conforme também acreditam
Müller et al. (2012, p. 229-230):

O jornalismo online pode demarcar outras fronteiras, abrindo


os espaços para a história e as vivências do homem do lugar, a
partir da narração dos fatos e dos movimentos dos fronteiriços no
contexto da fronteira. Mas para isso, precisa gerir as suas formas
de posicionar estrategicamente o seu conteúdo nas redes e man-
ter-se próximo dos seus leitores-internautas dialogando com eles
quotidianamente.

Neste ponto, cabe uma importante reflexão: os veículos de comunica-


ção atuantes nas fronteiras têm cumprido uma função social importante de
interação com as populações fronteiriças? A resposta não é simples e não pode
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 83
ser generalizada, nem mesmo no âmbito dos veículos analisados. Podemos,
no entanto, recorrer ao apoio de outras pesquisas que chegaram a resultados
similares. Ao estudar a produção jornalística de emissoras de TV localizadas em
Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, Soares (2011) identificou que, somente em
situações pontuais, os jornalistas fronteiriços cobrem ações na cidade vizinha e
que, das 5h51m08s de programação jornalística televisiva analisada na pesqui-
sa, apenas 10,4% foram classificados como notícias transnacionais, ou seja, que
incluíram o país vizinho na pauta.
Outra constatação nessa direção foi o resultado da pesquisa realizada
por Camargo (2015) que, entre 2.724 matérias jornalísticas veiculadas pela
TV Morena de Corumbá ao longo de dois anos, encontrou apenas 26 ma-
térias que puderam ser classificadas como transnacionais (menos de 1% do
total analisado), o que a levou a concluir:

Apesar de as cidades de Corumbá, Puerto Quijarro e Puerto Su-


árez estarem próximas, a emissora brasileira se propôs a cruzar a
fronteira para produção de matérias especificamente sobre a Bo-
lívia 26 vezes em dois anos. [...] Esses números refletem uma pos-
tura quase que de menosprezo em relação ao país vizinho, consi-
derando sua proximidade e o nível de integração entre as cidades.
(CAMARGO, 2015, p. 112-113).

Ao analisar o conteúdo de jornais impressos publicados na fron-


teira Corumbá-Puerto Quijarro-Puerto Suárez, Gaertner (2010, p. 73)
também já havia constatado que “há uma tendência dos jornais locais de
Corumbá a seguirem um discurso nacional, de que a fronteira é um lugar
de permissividade a ilícitos e à criminalidade em geral”, o que a “Análise
do Conteúdo mostrou-se eficiente em comprová-la”. Trata-se de conclu-
são semelhante à que Müller (2000, p. 13) já havia afirmado: “O jornal
local tem papel fundamental que nem sempre é explorado [...], deixando
de trazer temas que [...] cabem ser agendados e discutidos para que os
indivíduos possam assumir seus lugares de atores, posicionando-se frente
a questões diversas”.
Considerado por Raddatz (2009, p. 80) um “mediador da construção
de identidades da fronteira”, é possível que o rádio seja, em alguns aspectos,
uma exceção parcial a este cenário, pela maior participação e interação dos
ouvintes fronteiriços, que podem contribuir mais com suas vivências, gos-
tos, linguagem, opiniões e experiências de vida. Como verificou Ota (2006,
p. 153), “pelas carências sociais e falta de acesso a bens básicos, o rádio na
fronteira representa um porta-voz da comunidade [...]. Para a comunidade
paraguaia e boliviana, os programas [...] representam a possibilidade de diá-
logo entre o povo e as esferas governamentais”. Ainda assim, Raddatz (2015,
p. 216) reconhece:

84 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


A maior parte das notícias sobre a fronteira na mídia que está fora
dela apresenta uma carga pejorativa, pois menciona principalmen-
te dois aspectos: o tráfico e a violência. Estes termos não definem
a fronteira, ao contrário, empobrecem-na. A mídia radiofônica de
fronteira [...] poderia funcionar como um forte contraponto a essa
visão, formando uma barreira argumentativa contra os precon-
ceitos a respeito deste território. Muitas vezes, entretanto, vimos
que esta visão é reforçada, posto que a maior parte das notícias nas
emissoras fronteiriças é sobre o gênero policial.

Ao focar no cotidiano da criminalidade, dos temas policiais e das


tragédias humanas individuais, os veículos locais fronteiriços acabam por
reforçar o estigma, os preconceitos propagados pela mídia nacional sobre
as fronteiras. Uma reclamação recorrente nos debates realizados nas e pelas
comunidades fronteiriças é exatamente a de que a mídia nacional estigma-
tiza a fronteira “como se esta fosse exclusivamente um lugar da ilegalidade
e da contravenção” (SOARES, 2011, p. 154), o que de fato ocorre. As fron-
teiras são muito mais do que isso, são ambientes de efervescência cultural e
de intensos fluxos de bens, ideias, costumes e identidades, mas a imprensa
fronteiriça parece limitar-se a mostrar o contrário.

Considerações finais

Diante dos resultados obtidos e do diálogo com outras pesquisas, consta-


tamos que a imprensa fronteiriça não faz jus ao seu potencial integrador. Não
que os veículos ou profissionais tenham a obrigação de enaltecer a integração
das comunidades, atuando como militantes ou defensores das iniciativas insti-
tucionais. Pelo contrário, seu papel essencial é o de expor e discutir os conflitos
comuns à vida nas fronteiras. Seria possível inferir sobre as razões que tornam
essa imprensa tão pouco transnacional e pouco engajada na tarefa de desmis-
tificar a ideia de fronteira como ambiente do crime e da tragédia? Para Soares
(2011, p. 155), visão da qual compartilhamos, “existe um conjunto de fatores
para explicar tal situação. São questões estruturais [dos veículos] e comporta-
mentais dos jornalistas”.
Além disso, limitações estruturais e financeiras típicas de cidades do
interior e de mercados comunicacionais insipientes mantêm a imprensa
on-line num estágio próximo do modelo tradicional de jornalismo impres-
so. Ou seja, longe das características da quinta fase (MIELNICZUK, 2003)
e da web semântica em que atualmente se encontram os grandes veículos
de abrangência nacional ou global (produção multiplataforma, hiperloca-
lismo e informações de proximidade, produtos autóctones, entre outros).
Do ponto de vista da utilização de recursos tecnológicos e informacionais,
com poucas exceções, o jornalismo on-line produzido nas localidades fron-
teiriças ainda está no início dos anos 2000.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 85
É plausível que se pergunte se não há fatores assertivos nos sites de no-
tícias e no jornalismo on-line praticado nas fronteiras. Há muitos e, certamen-
te, enumerá-los e discuti-los a contento renderiam um novo trabalho. Primei-
ramente, podemos destacar o esforço contínuo dos proprietários de veículos
fronteiriços para se manter atuantes, produzindo e divulgando informações de
interesse das comunidades, das instituições e dos indivíduos, ainda que o valor-
-notícia seja passível de discussão. As entrevistas realizadas com esses profissio-
nais, que, em alguns casos, são também os jornalistas dos veículos, mostraram
que manter as portas abertas num ambiente acostumado à efemeridade infor-
macional e de precariedade publicitária é uma missão árdua, desgastante.
Em segundo lugar, precisamos reconhecer o valor do trabalho dos jorna-
listas fronteiriços, que enfrentam as mais variadas adversidades - limitação estrutu-
ral dos veículos, remuneração drasticamente achatada, periculosidade para apu-
ração de informações mais sensíveis, entre outras - para informar a comunidade.
Nessa tarefa, esses profissionais superam a precariedade das condições de traba-
lho e recorrem ao improviso e à criatividade para construir um recorte plausível
do cotidiano fronteiriço, cobrindo o maior número possível de acontecimentos,
ainda que a quantidade se confronte com a qualidade. Seu trabalho mostrou-se
crucial na prestação de serviços e na apuração de informações de interesse indivi-
dualizado (famílias de presos ou de acidentados, por exemplo).
Concluímos por fim que, se a imprensa fronteiriça on-line relega
os temas político-institucionais locais a uma escala inferior a 0,5% - e não
ocupa o espaço que poderia na discussão da condição fronteiriça, das nego-
ciações identitárias e culturais e da formulação de políticas públicas locais
-, não é por falta de disposição para o trabalho. Também não é por desin-
teresse pela notícia. Pelo contrário, talvez seja por um excessivo interesse
pela notícia que promove cliques, mas pouco interesse pelo conteúdo que
faz pensar, questionar. Discutir as razões pelas quais isso ocorre seria uma
tarefa difícil e custosa. Ainda assim, acreditamos que o jornalismo alimenta
a vida nas fronteiras e constitui-se numa ferramenta crucial para a articula-
ção das forças locais e a transformação da realidade social das comunidades.

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88 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Pantanal, Documentário e Semiótica1
Victor Hugo Sanches PEREIRA2
Hélio Augusto Godoy de SOUZA3

Introdução

A tradição do documentário tem praticamente a mesma idade da


invenção do cinema e desde aquela época o documentário se reinventa a
cada pressão tecnológica, estética ou antropológica, todavia, mesmo com
suas diferentes facetas, o aspecto de representação da realidade permanece
praticamente inalterado, não que ele busque alguma fidedignidade com o
real, mas sim uma coerência com o real. Assim, para uma análise ou mes-
mo para a produção de documentários, a Realidade, que é o seu objeto,
deve ser definida da forma mais coerente possível, baseando-se principal-
mente no conhecimento científico acumulado a seu respeito.
Neste capítulo, a Realidade circunscreve-se espacial e temporal-
mente ao Pantanal, região silvestre, alagável e conhecida da humanidade
desde os povos pretéritos que por lá se detiveram. Quando nos referimos
à representação da Realidade, devemos esclarecer seu sentido a partir das
ideias de C. S. Peirce, que nos diz que é aquilo que continua sendo o que
é independentemente do que venhamos a pensar a seu respeito. Junte-se a
isso uma concepção de Realidade de cunho Metafísico que remonta ao ide-
al Aristotélico. É frente a essa Realidade que a Linguagem Audiovisual se
mobiliza para nos trazer uma representação documentária coerente. Desse
modo, este capítulo nos apresenta o objeto real, sua realidade semiótica e
a linguagem que nos remeterá de volta ao objeto através do viés analítico
audiovisual. Perfazendo este percurso, pretendemos demonstrar o próprio
processo semiótico de representação coerente da realidade executado por
um determinado documentário sobre o Pantanal.

1 Este capítulo é baseado na dissertação de Mestrado de autoria de Victor Hugo Sanches Pereira,
intitulada Pantanal, Realidade e Documentário: análise semiótica do filme Planuras (2014), que
pode ser acessada no repositório da UFMS em: https://posgraduacao.ufms.br/portal/trabalho-ar-
quivos/download/6967 Foi defendida em banca pública em 11 de agosto de 2020, tendo como
membros da banca o orientador Prof. Dr. Hélio Godoy de Souza, Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva
(UFMS) e Prof. Dr. Marcio Luiz Costa (UCDB).
2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), jornalista,
Fotógrafo. E-mail: victorhugosanches9@gmail.com
3 Professor Titular pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), com atuação
no Curso de Mestrado em Comunicação. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
E-mail: professor.heliogodoy@gmail.com

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 89


Geologia, Ecologia e História do Pantanal

O Pantanal é uma grande depressão localizada no centro da América


do Sul, uma extensa planície sedimentar resultante do acúmulo de areia e
outros materiais e está distribuída em território brasileiro, nos estados de Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, e parte na Bolívia e no Paraguai (PROENÇA,
1997). Sua origem data o Pleistoceno, época do período Quaternário, com-
preendida pela Geologia entre 2,58 milhões e 11,7 mil anos atrás (ICS, 2018).
As características particulares do Pantanal são objeto de pesquisas
científicas e de teorias que buscam explicar sobre sua formação e tama-
nha diversidade biológica. Durante muito tempo acreditou-se que a forma-
ção do Pantanal foi precedida por um grande mar, descrito nas expedições
ibéricas do século XVI como Mar de Xaraés, devido às variadas formas e
tamanhos de conchas, a existência de caramujos e, principalmente, pela
morfologia do terreno arenoso (PROENÇA, 1997).
Somente em 1952, por meio do estudo intitulado O Escudo Brasileiro
e os Dobramentos de Fundo, do geógrafo francês Francis Ruellan, foi possível
obter uma primeira análise sobre a formação do Pantanal Mato-Grossense,
como assim era chamada a região dentro do território brasileiro. Nesse estu-
do, Ruellan (1952) buscou compreender as causas profundas das mudanças,
no aspecto temporal, ocorridas no desenvolvimento da região (AB’SÁBER,
2011). Tal análise incluía a hipótese de que aquela depressão, em determina-
do período do passado, foi uma estrutura elevada de característica curvada4,
responsável por fornecer sedimentos a outras bacias, como a dos Parecis5.
A investigação permitiu a Ruellan (1952) classificar o rebaixamento
da região pantaneira, situada à margem noroeste da bacia do Paraná, como
um fato relacionado a uma grande boutonnière que, na geomorfologia fran-
cesa, é o conceito aplicado para caracterizar estruturas dômicas de grandes
proporções, que ao longo do seu desenvolvimento sofrem processos erosivos
em seu eixo maior e, por consequência, tornam-se vazias (ocas).
Outro estudo, talvez o principal sobre a formação geológica do Pan-
tanal, é o intitulado “Dos refúgios e Redutos (1988)”, do então geógrafo
brasileiro Aziz Nacib Ab’Sáber.
A partir do fenômeno descrito por Ruellan, o processo erosivo se fez
lentamente responsável pelo desmoronamento da elevada estrutura em di-
reção ao Sul, transformando a Abóbada em uma funda planície. Um re-
ceptáculo de rios, que foi conduzindo cascalhos e grande quantidade de
sedimentos para o interior da depressão. Com o tempo, camadas sedimen-
tares de 500 metros de espessura formariam os leques aluviais, processo
4 O soerguimento massivo dessa plataforma aconteceu entre o período Cretáceo e o Plioceno, que
corresponde respectivamente a 135 e 1,8 milhões de anos atrás.
5 “A Bacia dos Parecis é uma das maiores bacias intracratônicas brasileiras. Localiza-se nas regiões
Amazônica e Centro-Oeste do Brasil [...]” (BAHIA, et al., 2007).

90 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


derradeiro na evolução fisiográfica e geoecológica das diferentes áreas, ora
submersas, ora firmes, das regiões do Pantanal (PROENÇA, 1997).
Os rios que se formaram a partir desses leques aluviais exerceram a
importante função de transportar grandes quantidades de areia em alguns
períodos do ano, contribuindo para o processo de sedimentação da bacia do
Pantanal. As mudanças climáticas e hidrológicas de condições subtropicais
semiáridas para tropicais úmidas também foram determinantes, pois altera-
ram o sistema de distribuição das matérias orgânicas e não orgânicas pelo
fluxo das águas, além de reduzir gradativamente toda a espessura destes
materiais. Assim, “[...] os principais contornos e ecossistemas aquáticos, su-
baquáticos e terrestres do Pantanal Mato-Grossense teriam sido elaborados
nos últimos cinco ou seis milênios” (AB’SÁBER, 2011, p. 41).
O Pantanal é considerado um conjunto de ecossistemas por ser uma
região de conexão entre diferentes biomas (Cerrado, Mata Atlântica, Cha-
co, Bosque Seco Chiquitano e Amazônia) e abrigar alguns deles. As diferen-
tes paisagens, nas quais se somam esses conjuntos de elementos que com-
preendem características próprias de solo, vegetação e clima contribuíram
para a delimitação e quantificação das 11 sub-regiões do Pantanal: Cáce-
res; Poconé; Barão de Melgaço; Paraguai; Paiaguás; Nhecolândia; Abobral;
Aquidauana; Miranda; Nabileque; e Porto Murtinho (SILVA; ABDON,
1998). Um mapa ilustrativo dessas regiões pode ser consultado em Barbosa
(2011, p. 89).
Apesar dessas subdivisões, o Pantanal permite conexões entre os di-
versos agentes (natureza e os povos) a exemplo da grande conexão entre
a dinâmica das águas que abarcam as sub-regiões, exercendo influências
morfoclimáticas que refletem naqueles que têm seus meios de subsistência
dependentes do meio ambiente.
Situado na Bacia do Alto Paraguai (BAP), o Pantanal abrange cerca
de 4,3% do território nacional, e junto aos rios Paraná e Uruguai formam a
Bacia do Prata, a qual drena quase 20% do continente sul-americano (ANA
et al., 2004). Na parte designada planalto estão as nascentes dos rios que
abastecem e exercem influência sobre a planície. São responsáveis pela
manutenção das espécies e determinantes para sobrevivência daqueles que
habitam o Pantanal, as gentes pantaneiras, em especial as comunidades
ribeirinhas.
O Pantanal possui regime sazonal, sendo que, durante alguns meses,
boa parte de sua planície permanece alagada. O pulso de inundação, ou a
chamada onda de cheia, faz com que diferentes áreas apresentem picos de
submersão em épocas diferentes do ano (ECOA, 2017). Este fator contribui
diretamente para a manutenção da biodiversidade e renovação das espécies
no Pantanal, bem como à dinâmica da vida ribeirinha.
No entanto, ações antrópicas no planalto e na planície têm colabo-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 91
rado para intensificar os efeitos das mudanças climáticas na região. Des-
matamento, queimadas e obras de infraestrutura como hidrelétricas nos
principais rios afluentes do grande rio Paraguai, são algumas dessas altera-
ções provocadas pelo ser humano no ambiente, que afetam diretamente a
subsistência e condições de sobrevivência dos povos que vivem na região.
Têm sido observados eventos climáticos extremos (ECOA, 2011), como
cheias extraordinárias, aquelas que superam os seis metros (GALDINO et.
al, 2002), ou longos períodos de estiagem, propícios para queimadas e in-
cêndios no Pantanal.
Essa contextualização sobre o Pantanal mostra a complexidade do
território e dos fenômenos que exerceram e exercem influências sobre os
modos de vida dessas populações, e como, ao longo dos anos, colaborou
para a formação de medidas adaptativas que fazem parte de sua cultura há
gerações. Em meio à carência de políticas públicas na região, as gentes do
Pantanal precisam se adaptar aos efeitos e características da planície, o que
gera uma relação permanente com as questões ambientais em seu entorno.
Tal relação data dos povos pretéritos, as verdadeiras raízes culturais e tradi-
cionais do Pantanal.
Para compreendermos as influências culturais das gentes pantaneiras
é fundamental um olhar sobre a história, do descobrimento à colonização
do território. Situar um contexto étnico sobre a origem de alguns povos que
ocuparam determinadas regiões do Pantanal.
Sobre o aparecimento do homem no Pantanal, há a hipótese que os
povos polinésios teriam migrado de suas terras, cruzando o Oceano Pacífico
até chegar à América do Sul (SOUZA, 1973). Esses grupos de humanos
teriam atravessado as montanhas dos Andes seguindo caminho em direção
ao leste, até alcançar territórios ao sul dos pampas e também da região pan-
taneira.

Apesar de existirem controvérsias sobre o aparecimento humano


nas terras do Pantanal, é indiscutível que desde priscas eras povos
pré-históricos vincularam-se à bacia do Paraguai, atraídos pelas
condições mesológicas favoráveis. (SOUZA, 1973, p. 89).

Segundo Martins (2008), os povos pretéritos que ocuparam o Pan-


tanal de Mato Grosso do Sul conseguiram desenvolver uma cultura de
sobrevivência a partir da adaptação sazonal. Devido às condições naturais
do meio ambiente, “as populações pantaneiras, como fazem ainda hoje,
tinham no fenômeno das cheias o seu principal determinante do seu modo
de vida” (MARTINS, 2008).
A partir da análise laboratorial de evidências encontradas em escava-
ções na região nordeste do estado, próxima à bacia do rio Paraná, foi pos-
sível identificar a existência (em unidades temporais distintas) de dois gru-
92 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
pos pretéritos: (1) caçadores/coletores/pescadores; (2) indígenas/ceramistas/
agricultores; (MARTINS, 2002). Os vestígios mais antigos indicam grupos
nômades de 20 ou até 30 pessoas, que não cultivavam o alimento necessário
para sua subsistência. Atuavam como predadores da natureza, utilizando
ferramentas simples de pedra lascada para sua proteção e procura de recur-
sos. Acredita-se que esses grupos pré-históricos encontraram na região do
Pantanal um abundante ecossistema tropical que proporcionou “condições
plenas para o desenvolvimento das culturas humanas” (MARTINS, 2002,
p. 11). Os caçadores/coletores/pescadores foram sendo substituídos pelos ín-
dios ceramistas/agricultores, tendo desaparecido com a chegada do coloni-
zador europeu.
No início do século XVI, o atual território de Mato Grosso do Sul
era intensamente povoado por diversas sociedades indígenas, que em sua
maioria compartilhavam do mesmo idioma, o Guarani. Comunidades que
teriam migrado das florestas tropicais, da região sudeste da Amazônia, em
busca de melhores condições e espalharam-se pelas terras da Bacia Platina
(MARTINS, 2008). Estima-se que a demografia dessas sociedades nos terri-
tórios do centro-sul do Brasil, da Argentina, Uruguai e Paraguai, ultrapassa-
va um milhão de indivíduos.
As primeiras interações culturais entre europeus e indígenas ocor-
reram durante as expedições ibéricas do século XVI, que buscavam pelas
riquezas de Potosí, nas lendárias montanhas de prata do Peru (MAGA-
LHÃES, 1978). Jornadas de muitos conflitos e desfechos dramáticos, en-
volvendo, principalmente, duas tribos indígenas: os Paiaguás, atacando
pelos rios; e os Guaicurus, emboscando pelas terras “[...] resistiram contra
os intrusos, lutando por mais de três séculos e desenvolvendo técnicas de
guerrilha [...]” (PROENÇA, 1997, p. 27).
Durante o século XVII, com a expansão das fronteiras, esses grupos
indígenas sofreram os primeiros efeitos da colonização. A crescente neces-
sidade de mão de obra para os empreendimentos econômicos (agrícolas)
das colônias luso-paulistas, resultaram nos regimes de trabalho escravo nas
lavouras do litoral brasileiro; além disso, os primeiros jesuítas, que chega-
ram ao atual território sul-mato-grossense com o propósito da catequização,
promoveram a inculturação missionária.
Após décadas de investidas ibéricas no território, a demografia des-
sas sociedades indígenas (Guarani) seria drasticamente reduzida. Contexto
que resultou na ocupação de outras tribos, que viviam em áreas periféricas
do rio Paraguai. Em meados do século XVII, novos grupos étnicos, princi-
palmente de origem Chaquenha (Paraguai), preencheram os espaços da
região sul do Pantanal.
Podemos afirmar que a origem identitária das gentes pantaneiras é
uma rica diversidade cultural entre povos indígenas, antes e durante as inva-
sões de ocupação europeia. Dentre tantas etnias, destacam-se: os Kadiwéu,
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 93
índios cavaleiros, exímios caçadores e extremamente bélicos, eram locali-
zados na região oeste; os Payaguá, índios canoeiros, considerados senhores
absolutos no médio curso do rio Paraguai, também ofereciam resistência
bélica e eram localizados na região noroeste; os Terena, sociedades tradi-
cionalmente estratificadas, hábeis em técnicas agrícolas e artesanais, eram
localizados na região sudoeste; e os Guató, possivelmente a sociedade que
melhor se adaptou a sazonalidade da região pantaneira, pois não constituí-
am aldeias terrestres, eram grupos numerosos que viviam a maior parte do
tempo sobre canoas, ocupando as margens dos rios do Pantanal, localizados
na região noroeste6.
O elo de solidariedade existente entre os povos pantaneiros e o seu
ecossistema é um aspecto determinante para a subsistência local. No en-
tanto, o indivíduo forasteiro sempre se viu ofuscado pelas exuberâncias na-
turais, por concepções de uma realidade pantaneira paradisíaca, símbolo
do belo, do extraordinário, mas suprimindo as problemáticas sociais, como
qualidade de vida, saúde, educação, etc. Desse modo, acabam por diluir as
diferentes etnias e identidades, bem como o complexo ciclo hidrológico da
região, reduzindo o Pantanal a um ambiente edênico; de um povo tradicio-
nal primitivo.

Hoje, após séculos de ocupação do Pantanal pelo homem, pode-


-se dizer que pouco ou quase nada se conhece dele, ou seja, de
suas origens, hábitos, costumes, crenças, tradições, enfim, de seu
modo de ser e de encarar o mundo (NOGUEIRA, 2002, p. 30).

Segundo Ribeiro (2014), as gentes pantaneiras são moradores, pro-


dutores do Pantanal, grupos multiculturais e de diferentes classes sociais.
“São homens, mulheres e crianças envolvidos diariamente na construção,
reconstrução e ressignificação da Geografia do Pantanal” (RIBEIRO, 2014,
p. 7). Isto é, um enlace de pessoas com a natureza, sem estar em equilíbrio
perfeito, mas interdependentes.
Os povos que vivem no Pantanal adquiriram formas e técnicas para
sobreviver do ambiente, utilizar dos recursos naturais, sem alterar o ciclo de
renovação das espécies. De acordo com Nogueira (2002), o conhecimento
de vida a partir da interação com os fenômenos naturais (não tão regu-
lares) permite que as gentes pantaneiras realizem suas próprias previsões,
interpretações dinâmicas do meio, apesar de utilizarem métodos diferentes,
“[...] pode-se dizer que o pantaneiro é, ao mesmo tempo, um botânico,
um zoólogo, um astrônomo, um geógrafo acostumado à leitura semiótica
da natureza, com a qual aprendeu a conviver, no dia-a-dia” (NOGUEIRA,
2002, p. 31).
Estes mantêm hábitos tradicionais, mas também passaram por trans-
6 Para mais informações a esse respeito, verificar Pereira (2019).

94 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


formações importantes ao longo das décadas. A construção de estradas, a
chegada das antenas parabólicas e energia elétrica foram alguns dos servi-
ços que receberam as populações locais por meio das aspirações do merca-
do de turismo. As gentes pantaneiras passaram a receber mais turistas (fato
positivo para a economia local), mas a exploração do ambiente e da mão de
obra como produto do capital também se intensificou.
Segundo Ribeiro e Moretti (2014), a partir da década de 1970, por
meio do processo conhecido como globalização, as práticas sociais das gen-
tes pantaneiras foram moldadas à ordem econômica social vigente, a servi-
ço do capital, sob pena de ficarem à parte do processo de transformação.
A modernização do Pantanal trouxe como consequência a explora-
ção da natureza pelo mercado turístico, a renovação da pecuária extensiva e
um reordenamento do modo de vida dos pantaneiros devido à urbanização
das relações sociais e a própria dependência do turismo de pesca, para o
qual os pescadores e pescadoras vendem pescado e iscas-vivas.
As tradições e costumes, e até mesmo toda a bagagem de conheci-
mento que possuem as gentes do Pantanal sobre o meio ambiente, existem
hoje alinhadas com novos hábitos no trabalho e lazer, em razão dos proces-
sos de modernização supracitados, ainda que não seja uma condição total
na região. Muitas famílias ribeirinhas, por exemplo, ainda não têm acesso
à energia elétrica, água potável e outros bens básicos que são de direito da
população. Neste contexto mais atual, com referências e relações históricas
aqui colocadas, é que se propõe uma discussão teórica e, por fim, uma aná-
lise semiótica, acerca da representação da realidade das gentes pantaneiras
pelo documentário brasileiro Planuras (2014).

Realidade e Semiótica

O documentário, como gênero cinematográfico, estabelece uma re-


lação com a Realidade que o diferencia do gênero ficcional. Isso o aproxima
do pensamento filosófico a respeito do cognoscível, daquilo que se pode
conhecer, conhecido pelo nome de Gnosiologia ou Teoria do Conheci-
mento. Com a finalidade de esclarecer alguns fundamentos dessa Ciência,
bem como embasar parâmetros para o entendimento do documentário,
passamos a desenvolver algumas considerações sobre esse tema.
Para Hessen (1980), o problema do conhecimento surge da diferen-
ciação entre o sujeito e o objeto. A partir desse ponto de vista desenvolve as
concepções filosóficas existentes sobre esse tema. Numa primeira dicoto-
mia considera concepções metafísicas e pré-metafísicas, que poderiam ser
traduzidas respectivamente como ontológicas e não ontológicas.
A abordagem não ontológica centra suas análises na consciência
cognoscente, do que decorre duas possibilidades: o objetivismo e o sub-
jetivismo. A primeira considera o objeto colocando-se diante da consciên-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 95
cia, determinado em si mesmo, que será consequentemente incorporado
ao cognoscente. A segunda, “[...] coloca o mundo das ideias, o conjunto
dos princípios do conhecimento, no sujeito” (HESSEN, 1980, p. 91). Ne-
nhuma dessas abordagens poderia verdadeiramente interessar à Teoria do
Documentário.
A outra abordagem, a ontológica, de caráter metafísico, é a que con-
sidera a essência da Realidade; ela nos aponta a ocorrência de algo fora
da consciência cognoscente. Nesse caso Hessen (1980) também nos indica
duas vertentes: o Idealismo e o Realismo. A posição do Idealismo admite
que todos os objetos do mundo contêm um ser ideal, presentes no pen-
samento. A diferenciação entre o subjetivismo e o idealismo possui suti-
lezas cuja explicação não cabe nesta discussão. Já a posição do Realismo
Ontológico reconhece que, além dos objetos ideais, existem objetos reais,
independentes do pensamento humano. É nesta vertente, a do Realismo
Ontológico, que observamos maior interesse para nossa proposição sobre o
documentário.
Existem críticas ao Realismo Ontológico que se deve ao desconhe-
cimento das diferenças existentes entre as três categorias de Realismo: o
Realismo Ingênuo, o Realismo Natural e o Realismo Crítico.
O Realismo Ingênuo não é capaz de distinguir a percepção de um
conteúdo da consciência de um objeto percebido. Portanto, a concepção
ingênua do realismo identifica os conteúdos de consciência tal como um
conteúdo do objeto e, desse modo, atribui aos objetos todas as qualidades
que estão incluídas na consciência.
O Realismo Natural mostra-se influenciado por reflexões críticas e
epistêmicas sobre o conhecimento, ou seja, é capaz de distinguir entre os
conteúdos da percepção e do objeto percebido.
O Realismo Crítico sugere que o conhecimento verdadeiro não
está, propriamente, no conteúdo das coisas, pois acredita que, nem todas
as qualidades apreendidas pela consciência humana advenham dos obje-
tos, considera, portanto, que o conhecimento verdadeiro existe em nossas
consciências.
As três vertentes realistas têm abordagens específicas sobre o conhe-
cimento, mas elas compartilham um pressuposto comum: há objetos inde-
pendentes da consciência. Já a concepção idealista parece afirmar que os
objetos do conhecimento não são reais, mas sim ideais.
Pode-se notar que, embora o Realismo Crítico assegure o conheci-
mento da realidade por meio da racionalidade, é na percepção que se evi-
dencia a existência dos objetos da Realidade, possuidores de um ser real,
localizado para mais além dos nossos sentidos e pensamentos. Por esse mo-
tivo é o Realismo Natural que mais nos interessa no desenvolvimento da
abordagem documentarista neste capítulo e nos remete à origem da filoso-
fia ocidental.
96 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
De acordo com Realle (2012), Aristóteles (384-233 a.C.) defendia a
posição do Realismo Natural. Para Aristóteles, o conhecimento encontrava-
-se nas coisas, em qualidades percebidas pelo ser que efluíam independente
da consciência humana. O realismo aristotélico, predominou até meados
da Idade Moderna ocidental (1453-1789 d.C.), quando o pensamento crí-
tico ressurgiu das luzes das ciências da natureza, o conjunto de disciplinas
(Física, Química, Biologia, Matemática, Astronomia, etc.) que investiga a
natureza e seus fenômenos.
O que mais diferencia o pensamento do Estagirita é sua formulação
Metafísica, a qual foi denominada de Filosofia Primeira. Nesta concepção,
a Metafísica é uma parte da Filosofia que compreende e fundamenta to-
dos os saberes particulares. Ela trata da Essência (Ser) de todas as coisas,
de uma estrutura real ordenada de significado. Assim, seria no Ser (Essên-
cia) do respectivo objeto que se obteria o conhecimento sobre a Realidade.
Logo, a Realidade não é tão somente sua aparência Física, mas contém
uma potência Transfísica. É nessa potência Transfísica, no Ser (Essência),
que Aristóteles localiza a conceituação de Forma (a fórmula) e Substância
(o suporte dos atributos e qualidades). Esse pensamento veio a ser uma reve-
lação que muitos filósofos posteriores reencontraram em suas formulações
mais desenvolvidas, como as observadas em Leibniz (1646-1716), Schelling
(1775-1854) ou Peirce (1839-1914).
De modo a priorizar o cerne analítico deste capítulo (a representa-
ção da realidade pantaneira por documentários) admitimos ser suficiente a
doutrina aristotélica apresentada. A concepção Metafísica, especialmente
acerca das substâncias sensíveis, é dotada de razão e, demonstra sentido
lógico sobre a existência verossímil das coisas (Ser) na Realidade. Logo, é
possível compreender as relações sígnicas no mundo, a partir de manifesta-
ções (imanências) das potências de natureza ontológica.
Mas, para se verificar o caráter representativo da realidade, de modo
coerente, no âmbito da Linguagem Audiovisual (ou Cinematográfica) é
essencial considerar, os conceitos semióticos de Charles Sanders Peirce
(IBRI, 2015; PEIRCE, 1958, 2010; NÖTH, 1995; SANTAELLA, 1983,
1992, 2002; SANTAELLA & NÖTH, 1999; SEBEOK, 1987), um conheci-
mento de natureza lógica, capaz de compreender o mundo enquanto com-
posição universal de signos.
Peirce desenvolve suas ideias a partir de um método sui generis.
Toma como início da reflexão o pressuposto fenomenológico de que aquilo
que ocorre na mente humana não pode ser diferente do que ocorre no Uni-
verso; para depois extrapolar suas conclusões para a estrutura Metafísica da
própria Realidade. Assume assim uma perspectiva evolucionista de que o
ser humano é resultado do que o Cosmos também é. Assim, na perspectiva
fenomenológica, ele encontra formas de pensamento e reações mentais as
quais ele classifica simplesmente como primeiro, segundo e terceiro. O pri-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 97
meiro estado mental é o mero espanto, surpresa, encanto frente ao fenôme-
no ou evento, natural ou artificial, uma expressão de qualidade, em termos
filosóficos uma talidade7. O segundo, mais complexo, é o campo mental
da reação, a consciência da existência do outro, coisa que na categoria do
primeiro estado mental não há. O terceiro estado mental é o do hábito da
conduta, da argumentação, da explicação, do raciocínio, da representação,
da passagem do tempo, coisas que não ocorrem no campo do segundo es-
tado mental.
Então, a partir dessas observações, deduz que a realidade do Cos-
mos, do Universo, é organizada da mesma forma que esses estados mentais.
Há no Universo, na Realidade, estados mentais idênticos. A consequência
é extraordinariamente implacável: o Universo tem uma natureza mental!
Assim no âmbito Ontológico (ou Metafísico) Peirce encontra as mesmas
categorias do pensamento, agora em sua vertente Ontológica: o primeiro
- aquilo que é criativo, que contém todas as qualidades, a origem do acaso
(Primeiridade); o segundo - aquilo que reage, que efetivamente existe, que
se impõe pela força natural, que opõe resistência (Secundidade ou Existên-
cia); e o terceiro - aquilo que é determinado pela força do hábito, da regra,
da lei, da fórmula (Terceiridade).
Portanto, todas as coisas do mundo estão imersas nessa tríade de ati-
vidade mental, incluindo o complexo fluxo informacional que ocorre entre
essas coisas, o que Peirce denomina de Semiose. E, o que exerce ou executa
a Semiose? Chegamos aqui ao conceito de Signo, que é o objeto de estudo
da Semiótica, que para Peirce era apenas outro nome para Lógica.
Os Signos são coisas que carregam a informação da Realidade para a
Mente que Interpreta, processo infindável, no qual a interpretação pode se
transformar em outro signo, depois em outro, e outro, e outro... Os Signos,
como partes integrantes da Estrutura da Realidade também estão imersos
na organização tripartite, ou triádica. De acordo com Peirce, o signo é com-
posto por um Objeto, um Representamen e um Interpretante, que dá senti-
do para a Semiose. O Objeto é a conexão do Signo com a Estrutura da Rea-
lidade, o Representamen, o suporte da informação (o signo em si mesmo) e
o Interpretante é o resultado provocado na mente que recebe a informação.
Para as finalidades deste capítulo interessa lembrar que cada um dos
componentes do signo (Objeto, Representamen, Interpretante) podem ser
categorizados em três aspectos a partir da organização primordial das cate-
gorias de primeiro, segundo e terceiro. No caso do Objeto, na primeira cate-
goria teremos um Signo com qualidades semelhantes à coisa representada,
sendo denominado Ícone; na segunda categoria teremos um Signo natu-
7 Do inglês suchness: as coisas tal e qual elas são, o termo é utilizado por Peirce: “That mere quality,
or suchness, is not in itself an occurrence, as seeing a red object is; it is a mere may-be” (CP 1.304).
Em uma tradução livre: “Essa mera qualidade, ou talidade, não é em si mesma uma ocorrência,
como ver um objeto vermelho; é tão somente um poder ser.”

98 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


ralmente determinado pela força bruta da coisa representada, denominado
Índice, e na terceira categoria teremos um Signo que é determinado por um
hábito de conduta, uma fórmula, uma regra que é obedecida pela coisa re-
presentada, neste caso denominado de Símbolo. Um desenho é semelhante
à coisa representada (ícone), uma pegada no barro mole é formada pela coi-
sa que a pegada representa (índice) e uma fórmula física “F = m x a”, isto é,
a Força que age sobre um objeto é igual à massa do objeto multiplicada pela
sua Aceleração, representa um hábito da coisa representada (símbolo). Os
outros dois componentes do Signo (Representamen e Interpretante) tam-
bém podem ser organizados em três categorias, mas não temos condições
de fazê-lo neste capítulo. Devemos avançar o raciocínio para os funda-
mentos da Linguagem Audiovisual, não antes de fazermos considerações
necessárias sobre a origem do cinema e do filme documentário.

Documentário e Linguagem Audiovisual



A história do Cinema (SADOUL, 1963; MANNONI, 2003; MA-
CHADO, 1997; COSTA, 2012; MOURA, 1987) pode se resumida em três
fases, antes do ano de 1895; entre os anos de 1895 e 1915; e após o ano
de 1915. Embora seja necessário considerarmos desdobramentos técnicos
posteriores a 1915, tal como o surgimento do cinema falado em 1930, a
televisão em 1950, o cinema direto em 1960 e, ainda, o cinema digital a
partir dos anos 2000, é de ressaltada importância o parâmetro de nature-
za comunicacional-expressiva, vale dizer o desenvolvimento da linguagem
que organiza aquelas três fases. A lógica é a seguinte, antes do ano de 1895
há uma grande experimentação técnica e aplicação comunicacional que
precede a máquina cinematográfica, mas que lança alguns pressupostos do
entretenimento, de pesquisa e desenvolvimento das imagens em movimen-
to, esse período pode ser denominado de pré-cinema.
O ano de 1895 marca o lançamento do cinematógrafo dos irmãos
Lumière, que podia registrar imagens em movimento sobre uma pelícu-
la fotográfica e também reproduzir o aparente movimento através de uma
projeção em sala escura para um grupo de espectadores. No período de 15
anos que seguem, são desenvolvidas formas comerciais do novo sistema de
entretenimento, bem como organizadas as formas comunicacionais (semió-
ticas) que melhor se adaptariam à experiência visual das plateias.
A partir de 1915, consolidam-se as características próprias de narra-
ção, desenvolvem-se outras formas estéticas de expressão, bem como varia-
das categorias referentes ao conteúdo veiculado por essas formas. Assim,
revela-se depois de 15 anos, desde o surgimento do cinematógrafo, uma
estrutura semiótica própria de expressão comunicacional, com possibilida-
des para o desenvolvimento de narrativas plenamente compreensíveis pelo
público.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 99
Embora seja conhecido o desenvolvimento de uma taxonomia do
cinema, organizada em gêneros, subgêneros, estilos, etc., neste capítulo, é
pertinente esclarecer que a origem taxonômica da produção cinematográfi-
ca se dá a partir de duas categorias elementares: o filme ficcional e o filme
não ficcional ou documental.
A invenção dos irmãos Lumière, na França, nasce principalmente
documental, não ficcional, enquanto que os filmes de Thomas Alva Edson,
nos EUA, foram principalmente ficcionais. Os dois modos se desenvolve-
ram nos 15 anos, decorrentes a partir de 1895, porém foi o filme ficcional
o que mais se popularizou entre o público interessado em entretenimento.
Bill Nichols (2016) considera que haja uma espécie de continuidade en-
tre os modos ficcionais e não ficcionais do cinema, entre a pura narrativa
de ficção, movida por uma história inventada, e a pura narrativa de fatos
realmente ocorridos. Existiria um espectro de possibilidades narrativas flu-
tuantes que construiriam uma ponte entre os dois modos cinematográficos.
A ideia de continuum é compartilhada por Peirce, em consideração
à mesma ideia expressa por Aristóteles em sua Filosofia Primeira, ou Meta-
física. De modo que a ideia de Nichols encontra coerência epistemológica
neste capítulo. Embora observemos modos narrativos compartimentaliza-
dos, devemos recordar que estamos tratando do âmbito da Existência, a Se-
cundidade Ontológica. De acordo com a Metafísica peirceana, na Secun-
didade, é natural que encontremos a discretude (IBRI, 2015). Todavia ela é
um reflexo da continuidade pura que ocorre no Eidos, locus da Primeirida-
de e da Terceiridade. Essa concepção a respeito da Estrutura Ontológica da
Realidade pode ser observada na Figura 01.

Assim, o documentário como um objeto existente, vasculha a Rea-


lidade na busca por encontrar suas regularidades e qualidades. Enquanto
forma de investigação e de narração cinematográfica aponta para o conte-
údo da Realidade, que se torna seu próprio conteúdo como representação,
como signo.
100 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
A origem dessa ênfase no conteúdo da Realidade pelo Documentá-
rio possui exemplos históricos citados por autores especializados (WINS-
TON, 1995; TEIXEIRA, 2012; NICHOLS, 2016). Em 1895, registra-se
uma filmagem feita durante a Exposição Colonial de Paris com o conteúdo
intitulado Poterie Crue et origine du tour, onde se via uma mulher africana
fabricando um pote de barro. Mas o filme que inaugura a saga histórica
do documentário foi feito em 1922, pelo cineasta Robert Flaherty (1884-
1951). O filme Nanook, o esquimó mostra aspectos da vida de esquimós
canadenses durante as agruras do inverno.
Entre 1922 e 1930, foram produzidas várias formas de documentá-
rios, até que na década de 1930, o movimento documentarista inglês ganha
destaque com a figura de John Grierson (1898-1972). que reconheceu a
possibilidade de utilizar o cinema como uma ferramenta alternativa para
a educação; principalmente para orientar a sociedade de massa emergente
sobre as mudanças complexas do mundo industrial. Os filmes produzidos
a partir desse período são responsáveis por representar, pela primeira vez
nas telas, a imagem dos trabalhadores ingleses, e, além disso, tornaram-se
a base para o movimento realista do cinema no país. Grierson cria o termo
documentário e define a atividade como um tratamento criativo da realida-
de. Assim, o tratamento criativo da realidade não deve ser confundido com
a mera reprodução de acontecimentos relativos à realidade. As possibilida-
des criativas do documentário, ao longo de mais de 100 anos de história
do cinema, permitiram realizações com diferentes tratamentos estéticos,
classificados em Modos, tais como: poético, expositivo, observativo, partici-
pativo, reflexivo e performático (NICHOLS, 2016). Tais Modos podem ser
observados de forma complementar, muitas vezes se misturando, inclusive
em um mesmo documentário, que pode enfatizar mais ou menos, um ou
outro dos seis Modos.
De acordo com Nichols (2016), uma definição concisa de documen-
tário englobaria três concepções lógicas: (1) tratam da realidade, de algo
que realmente aconteceu; (2) tratam de pessoas reais; e (3) contam histó-
rias sobre o que acontece no mundo real. Para executarem essas tarefas, os
documentaristas, além da técnica cinematográfica, contam com a própria
Linguagem do Cinema, ou dita de uma forma mais abrangente, com a
Linguagem Audiovisual.
O termo Linguagem Cinematográfica já se encontrava em uso entre
os primeiros teóricos do cinema, em relatos do italiano Ricciotto Canudo
(1877-1923), do francês Louis Delluc (1890-1924), e, também, dentre os
pensadores do formalismo russo (1910-1930). A priori, os estetas e escrito-
res, principalmente franceses, valiam-se deste termo com a ideia de “[...]
opor o cinema à linguagem verbal, defini-lo como um novo meio de expres-
são” (AUMONT et al. 2012a, p. 158). Christian Metz (2014, p. 60), por sua
vez, conclui que o cinema é “uma linguagem sem língua”, pois não possui
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 101
uma gramática estável. No entanto, sua forma de organização é similar à
de outras classes de signos, tais como os pertencentes à esfera da expressão
artística como o desenho, a pintura, a escultura, etc. Por fim, Aumont et
al. (2012a) considera que, “a característica essencial dessa nova linguagem
é a sua universalidade; ela permite contornar o obstáculo da diversidade
das línguas nacionais” (AUMONT et al. 2012, p. 159). Podemos utilizar
as considerações do biólogo austríaco Karl Ludwig Von Bertalanffy (2010),
a respeito da Teoria dos Sistemas para localizar a Linguagem do Cinema
como um Sistema Sígnico Audiovisual Aberto, que regido por normas uni-
versalizadas (psicoculturais) possibilita o desenvolvimento de uma grande
variedade de significados através das imagens em movimento e dos sons.
A Linguagem Cinematográfica é constituída por fragmentos sígnicos, ele-
mentos audiovisuais que, a posteriori, desenvolvem uma inter-relação ou in-
terconexão de funcionalidade, adquirindo um valor próprio de linguagem
(AUMONT, 2012a, 2012b; MARTIN, 2013; METZ, 1980, 2014).
A Linguagem Cinematográfica realiza uma semiose e se organiza
numa estrutura de signos audiovisuais, à qual se associam em uma rela-
ção de complexidade. Estes signos, ou códigos (para usar a terminologia de
Metz), surgem a partir de duas categorias elementares: imagem (fotografia)
e som (áudio); que combinadas aos recursos do cinema (movimento e mon-
tagem) formam uma estrutura narrativa que, por sua vez, determina a ori-
gem (organização) da estrutura sígnica. Essa forma de organização também
é conhecida pelo conceito de Níveis Integrativos, apresentado na teoria de
Feibleman (1954). A Teoria dos Níveis Integrativos afirma que níveis mais
inferiores de uma estrutura, adquirem qualidades emergentes à medida que
subimos nos níveis de complexidade. Para tanto, consideramos que os sig-
nos elementares (imagem e som) possuem propriedades independentes de
uma estrutura narrativa cinematográfica (ver Figura 02). O som engloba
ruídos, fala e música, antes de desempenhar, propriamente, uma função
sígnica sonora no cinema; assim como a imagem, embora substancialmen-
te fotográfica, manifesta- se também em outras formas de expressão, como o
desenho e a pintura. De modo geral, os signos fotográficos (enquadramen-
tos), combinados com os signos cinematográficos (movimentos), permitem
o acréscimo de atributos sonoros na montagem, resultando em uma estru-
tura narrativa, que por sua vez preexiste como um rascunho, no início e
na organização do processo de produção audiovisual (pesquisa, argumento,
roteiro, planejamento de produção, etc).
A partir dessas considerações, é possível estabelecer processos de
funcionamento que caracterizam o cinema enquanto uma forma de ex-
pressão própria. Para isso, este capítulo se apoia, essencialmente, nos prin-
cípios descritos por Martin (1955), Gage e Meyer (1985), Marner (1980) e
Metz8 (1980). No entanto, optamos pela substituição (provisória) de duas
8 Christian Metz (1980) encontrou na Linguagem Audiovisual a seguinte subdivisão: signos cine-

102 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


terminologias teóricas, sem qualquer alteração de significado conceitual.
Utilizamos o termo Linguagem Audiovisual enquanto Linguagem Cinema-
tográfica; e o termo signo(s) enquanto código(s).

Embora a análise do significado existente em um filme considere


todos os aspectos sígnicos, para as finalidades deste capítulo, desenvolve-
remos algumas considerações a respeito dos signos audiovisuais específicos,
ou seja, dos principais signos, tais como os fotográficos, cinematográficos,
sonoros, estruturais da montagem e estruturais narrativos; enfim, processos
responsáveis pela forma de um filme. Um breve detalhamento de todos os
aspectos sígnicos referentes à Linguagem Audiovisual poderá ser encontra-
do na dissertação de Mestrado de Pereira (2019), já citada mais acima.
Tomemos a proposição da estrutura de Níveis Integrativos (ou Níveis
de Complexidade) apresentada acima: fotografia, som, cinematografia (mo-
vimentos), montagem (instância integradora) e estrutura narrativa (instân-
cia final e estruturante). São temas normalmente tratados na maioria dos
livros dedicados ao audiovisual, enquanto sistema significante. Verificamos
que a organização desses temas não segue a ordem de complexidade como
propomos. Consideremos dois livros tradicionais utilizados como referência
para o estudo da Linguagem Audiovisual:
O primeiro deles é de Marcel Martin, A Linguagem Cinematográ-
fica9 (2013). Consta de seu sumário uma relação de temas aleatoriamente
organizados. Uma análise taxonômica desses temas, respeitando os critérios
dos Níveis de Complexidade, resulta na Tabela 01:

matográficos e signos extracinematográficos; Metz propõe ainda mais uma subdivisão dos signos
audiovisuais em: signos audiovisuais específicos e signos audiovisuais não-específicos. Os signos au-
diovisuais específicos são signos próprios do cinema (do audiovisual).
9 Originalmente publicado em 1955.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 103


Como é possível observar, os Níveis de Complexidade (Integrativos)
da Linguagem Audiovisual não foram considerados como um critério plau-
sível para a organização temática do texto.
O segundo livro é de Terence St. John Marner: A Direção Cinema-
tográfica10 (1980). Neste texto observamos maior abrangência temática, já
que o autor descreve processos de realização audiovisual e não somente
aspectos da Linguagem Audiovisual. Submetendo o sumário ao mesmo tipo
de análise (Tabela 02) realizada acima obtemos o seguinte resultado:]

Fica evidenciado que, apesar de a taxonomia dos Níveis de Comple-


xidade (Integrativos) não ter sido utilizada em nenhum desses textos, não
configura uma negação da hipótese dos Níveis de Complexidade, pois, a
rigor, todos os aspectos da Linguagem Audiovisual encontram-se presen-
tes, em maior ou menor grau, em ambos os textos, tornando a hipótese
compatível com as referências bibliográficas consideradas. Resumidamente
podemos considerar os seguintes aspectos (Tabela 03) promotores da signi-
ficação na Linguagem Audiovisual.

10 Originalmente escrito em 1972.

104 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Tomaremos por base os aspectos da Linguagem Audiovisual, aci-
ma descritos para a análise de significação de uma sequência de Planuras
(2014).

Uma breve representação do Pantanal em Planuras

O documentário Planuras (2014) foi um dos últimos projetos audio-


visuais contemplados pelo FIC/MS11, e aborda o tema Pantanal. É possível
encontrarmos nesse filme sinais da liberdade criativa, acreditamos que isso
seja possível graças à inexistência de cerceamento de expressão que deve
caracterizar processos públicos de incentivo à cultura.
A imagem feita por documentários está atrelada a uma série de esco-
lhas técnicas, estéticas e ideológicas, definidas pelo cineasta. De um modo
geral, a representação do Pantanal em documentários está ancorada em
imagens das belezas naturais, utilizadas como mercadoria de consumo tu-
rístico, como, por exemplo, Pantanal no Ar (2009) e Pantanais do Pantanal
(2017)12. Esses dois filmes são resultado de uma visão romantizada a respei-
to das regiões pantaneiras, tratando-as como um conjunto de ecossistemas
em perfeito equilíbrio.
Planuras, média-metragem (48 min.) do cineasta gaúcho, radicado
em Campo Grande/MS, Maurício Copetti, traz uma perspectiva poética
sobre as regiões do Pantanal e suas gentes. Trata-se de um filme-ensaio, que
de acordo com Nichols (2010), está vinculado ao modo poético, uma forma
de expressão que possibilita maior liberdade nas representações de maior
complexidade da realidade.
A estrutura narrativa em Planuras não obedece às convenções da
montagem narrativa linear. O filme transmite ao espectador um mosaico
cultural, cuja localização de tempo e espaço muitas vezes é inconstante.
No entanto, é provocativo, explorando quase todas as percepções sensoriais,
ora pelos detalhes da realidade complexa, ora pelo estado de ânimo dos
personagens.
11 BRASIL. Lei n. 2645 de 11 de julho de 2003. Reorganiza o Fundo de Investimentos Culturais
do Estado de Mato Grosso do Sul e dá outras providências. Diário Oficial nº 6.037, de 14 de julho
de 2003. Disponível em:  <http://www.fundacaodecultura.ms.gov.br/wp-content/uploads/2015/12/
LEI-N%C2%BA-2.645-DE-11-DE-JULHO-DE-2003.pdf> Acesso em: 25 de ago. 2020.
12 Pantanal no ar. Direção de Marcelo de Paula. Rio de Janeiro: Código Solar Produções, 2009.
1 DVD (87 min.). Pantanais do pantanal. Direção de Marcelo de Paula. Rio de Janeiro: Código
Solar Produções, 2017. 1 DVD (131 min.).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 105


Foi selecionada uma sequência fílmica em Planuras (2014), com o
objetivo de compreender alguns aspectos fundamentais sobre essa região,
e contemplar uma indagação essencial: Quem vive no Pantanal? A sequ-
ência selecionada para esta análise respeita a estrutura narrativa do filme,
e intenta uma interpretação semiótica dos signos audiovisuais como uma
manifestação da realidade, considerando suas naturezas ontológicas. Para
ter acesso à sequência fílmica de análise, utilize um leitor de QR Code
sobre a Figura 03:

A Sequência é contínua e mostra uma representação poética com-


plexa do Pantanal e suas gentes. No início, um plano mostra uma imagem
desfocada, que sugere uma ideia de mar, rio ou piscina por meio de borrões
luminosos; a intelecção lógica se estabelece por meio de alguns ruídos na-
turais (canto de pássaros, zunido de insetos e o som de água), que gradativa-
mente sugerem um ambiente externo natural, inalterado, puro. De acordo
com os conceitos semióticos de Peirce, este plano manifesta aspectos da
realidade percebidos de forma sensorial, por noções espontâneas, intuitivas,
de certo modo imediatas. O fato é que existe uma mensagem visual e sono-
ra, que no aspecto científico indicam elementos da realidade, luz natural,
seres, líquido.
Em seguida, um plano geral mostra uma canoa levando dois meni-
nos por um rio; um na proa, outro na remando na popa. Existe um diálogo13
entre eles, que ocorre enquanto o movimento de câmera plongée (ângulo
acima do nível dos olhos) acompanha o deslocamento do barco pelo rio.
A imagem do plano revela a paisagem pantaneira, um extenso rio e vasta
vegetação no horizonte. Ocorre o diálogo entre os personagens (Tabela 04):

13 A descrição do diálogo preserva os aspectos coloquiais da fala, ou seja, a forma literal da expres-
são sonora.

106 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


A câmera passa enquadrar o menino na popa, em primeiro plano,
que continua a remar em diálogo com o outro menino, fora do quadro; é
um plano de conjunto, o ângulo da câmera é normal; a profundidade de
campo evidencia a extensa dimensão do rio, um horizonte de vegetações e
serras. O diálogo continua (Tabela 05):

Até então, temos a variação entre dois enquadramentos do geral para


o próximo; os signos extra-audiovisuais revelam características do ambiente
e dos personagens, como o rio turvo; vegetação diversificada; plantas ter-
restres e aquáticas; barco e remo de madeira14; a roupa dos personagens;
expressão facial do menino que rema, alegria, felicidade, intuição; peculia-
ridade no dialeto da língua falada, expressões coloquiais.
Um novo plano geral mostra uma paisagem completamente alagada,
uma casa rodeada por árvores; a câmera em movimento conduz o especta-
dor pelo fluxo do rio, uma música instrumental sugere certa tradicionali-
dade indígena.
A sequência mostra vários planos (Figura 04), numa sucessão de ima-
gens que contextualizam o modo de vida na região. A eufonia permanece,
arranjos instrumentais e ruídos naturais mantêm o equilíbrio. Um plano
geral mostra uma mulher na varanda de uma casa, imóvel, observando o
chão completamente alagado, há presença de peixes no local, que ocupam
um espaço quiçá residencial.
Noutro plano uma mulher na cozinha de sua casa, imóvel, preparan-
do alguma refeição; a profundidade de campo mostra roupas e acessórios,
objetos simples, um modo de vida simples, sob condições insalubres de
moradia. Retoma-se o diálogo (Tabela 06) entre os meninos no barco:

Surge a imagem de uma menina caminhando sobre a palafita em


direção à câmera. O plano médio explora a pouca profundidade de campo,
signos extra-audiovisuais mostram uma expressão de espanto, curiosidade,
vestimentas simples indicam certo capricho materno. Elemento peculiar
deste plano são as telas de proteção, que representam o convívio incessante
14 Remo típico da tradição Guató.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 107


com pernilongos e outros insetos.
Volta imagem do menino na popa do barco, em plano médio; o diálo-
go estabelece uma ligação visual com a cheia (Tabela 07), os signos sonoros
persistem e dão coerência aos planos seguintes.

Durante o diálogo surgem outras metáforas visuais, aparecem dois


cachorros, imóveis, com patas submersas; outra moradia, um ambiente to-
mado pela cheia, algumas roupas estendidas em um varal, brinquedos e
duas galinhas num tronco de madeira. Outro plano mostra uma bota no
fundo do rio. Por fim, surge a imagem de um lagarto no encosto de uma
cadeira. A complexa representação aparece na combinação dos signos da
Linguagem Audiovisual. No momento da fala, “cê acorda de manhã e pisa
na água de manhã cedo... hum!!! -, surge a imagem dos cachorros, com suas
patas submersas; na fala emite-se um gemido, uma lamúria; a imagem do
lagarto na cadeira corrobora o sentido, representa a condição de sobrevivên-
cia comum ao animal e ao ser humano.
Aparece a imagem do menino na proa do barco observando o hori-
zonte. Este personagem aparenta ser mais jovem, evidenciado pelo tom de
voz e ingenuidade expressiva. Nesse plano, a música é interrompida, a ênfa-
se é somente sobre os ruídos naturais. O diálogo (Tabela 08) se restabelece
em outra perspectiva, quando o menino da popa comenta um fato:

O diálogo final entre os meninos traz uma provocação, os comentários


que fazem menção aos dias 35 e 36 inexistentes no modelo de calendário
gregoriano, mas deve ser entendido pela lógica local, pois revelam um pouco
dos conhecimentos tradicionais.

108 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


O último plano da sequência mostra a imagem de um suposto piso
de cozinha, um ambiente interno com mesas e cadeiras, porém comple-
tamente alagado. Nesse plano, o som instrumental retorna em sincronia
com os ruídos naturais e mostra o deslocamento de um bule azul, que flu-
tua pelas águas. A metáfora do bule é um signo complexo. Representa o
fenômeno das cheias em sua essência. Durante o período das cheias no
Pantanal, tudo se movimenta, ganha movimento; o fluxo das águas leva e
traz, aparece ou desaparece. A imagem desempenha uma função poética,
metafórica do Devir.

Conclusão

A sequência fílmica mostra imagens que representam a realidade ob-


jetiva do Pantanal, algumas características da região, bem como das pessoas
que a habitam. Para tanto, os signos revelam aspectos de maior complexida-
de da região pantaneira e suas gentes, que comumente não são observados;
normalmente em outros filmes estes acabam solapados por diferentes ideias
narrativas ou subutilizados durante o processo da montagem cinematográfi-
ca, que busca apenas suprir uma representação de uma natureza idealizada.
Os signos da sequência mostram aspectos da realidade concreta (dis-
cretude) do Pantanal, onde a representação ocorre de modo objetivo através
das imagens do ambiente, dos personagens e seus objetos. Ainda, o diálogo
entre os meninos se dá em tom metafórico, produzindo signos que indireta-
mente expressam uma condição de vida calcada, sobretudo, pelas dinâmicas
do rio, as cheias do Pantanal. Apresentam aspectos complexos da realidade
das gentes pantaneiras, nota-se a falta de água potável, de tratamento de esgo-
to, de políticas públicas, observa-se a invisibilidade social.
A representação do Pantanal em Planuras é intensa, o filme desen-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 109
volve um discurso estético próprio, estabelecendo um caráter autoral à
produção cinematográfica, ainda que apresente visões gerais sobre algumas
características da região, trata-se de uma narrativa documental de expressão
poética, que nos permitiu uma reflexão em profundidade da realidade do
Pantanal e suas gentes.
A semiótica de C.S. Peirce entende o mundo enquanto composição
universal de signos, ela nos permitiu encontrar traços da realidade em todo
elemento visual, sonoro, verbal, para além do campo linguístico, como a
fala e a escrita. É uma concepção metafísica do conhecimento que permite
expandir os aspectos da representação documental, permite-nos considerar
pressupostos invariáveis e fenômenos variáveis nas representações que nos
apontam seu caráter Ontológico.

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Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 113


Parte II

Discurso midiático político e social


O Correio do Estado e o discurso udenista na
ditadura militar1
Alline Ribeiro de GÓIS2
Mario Luiz FERNANDES3

Introdução

Os arquivos do Correio do Estado confirmam as palavras do Che-


fe da Nação [Costa e Silva], no que diz respeito a Mato Grosso.
As nossas edições são testemunhas do muito que este diário lutou
pregando a reforma que a Revolução acabou realizando no Bra-
sil. Nós também contribuímos com a nossa parcela (CORREIO
DO ESTADO, 13/04/1969).4

A afirmação em epígrafe é do Correio do Estado inserida na notícia


Costa e Silva: “A Revolução foi obra também da imprensa” (13/04/1969),
relativa ao pronunciamento do presidente Costa e Silva em cadeia de rá-
dio e televisão, comemorativo ao segundo ano de seu governo e exaltando
conquistas da “revolução”. A declaração é inequívoca quanto ao posicio-
namento editorial do jornal na sua tarefa de construção, em Mato Grosso,
do consenso social acerca da necessidade de intervenção militar em 1964.
Fundado em Campo Grande, em 7 de fevereiro de 1954, por lideranças
da UDN (União Democrática Nacional) do sul do estado, sua função era
difundir a ideologia do partido. De acordo com Arakaki (2015, p. 132), o
deputado udenista Wilson Barbosa costumava afirmar que o Correio do
Estado foi criado para “ser um jornal do partido, da UDN, pela UDN e
para a UDN”. Após o golpe, a UDN foi uma das bases para a fundação da
Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação do governo
ditatorial que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Em 11 de abril de 1964,
publicou a íntegra do Ato Institucional nº 1 (AI-1), com o sugestivo título
de Armas para a democracia.
1 Este capítulo é uma adaptação resumida da dissertação Correio do Estado: porta-voz da ideologia
udenista na ditadura militar, de autoria de Alline Ribeiro de Góis e foi defendida em banca públi-
ca em 11 de agosto de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCom/UFMS). A banca foi composta pelo orientador Prof.
Dr. Mario Luiz Fernandes (UFMS), Prof. Dr. Hélder Filipe Rocha Prior (Universidade de Beira
Interior - Portugal) e Prof. Dr. Jorge Christian Fernandez (UFMS).
2 Mestre em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: goisalline@gmail.com.
3 Professor Associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutor em Comunicação
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: mario.fernandes@ufms.br.
4 Correio do Estado. 13 abril 1969, p. 3. Costa e Silva: A Revolução foi obra também da imprensa.
Arquivo: Correio do Estado.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 117


Ainda na sua fala à imprensa, Costa e Silva refere-se à “revolução”
como “nossa” para incluir e enaltecer a participação da imprensa neste pro-
cesso, e justifica:

[...] digo “nossa Revolução” neste instante, sobretudo, porque ela


foi obra também da imprensa que nos ajudou decisivamente na
tarefa preliminar e importantíssima de esclarecer a opinião pú-
blica e despertá-la para os equívocos que muitas vezes a levaram
a confundir anarquia com liberdade, e a tomar, em muitos casos,
o estridor da demagogia irresponsável com a expressão de servir e
realizar (CORREIO DO ESTADO, 13/04/1969).

O discurso afinado da grande imprensa com os golpistas levou Jure-


mir da Silva a definir o golpe como sendo “midiático-civil-militar”, e não
apenas “militar” ou “civil-militar” como o consagrado pela historiografia.
Para o autor, “sem o trabalho da imprensa não haveria legitimidade para a
derrubada do presidente João Goulart. Os grandes jornais de cada capital
atuaram como incentivadores e árbitros” (SILVA, 2017, p. 33). Seguindo
esta linha de raciocínio, esta pesquisa também adotou a terminologia golpe
“midiático-civil-militar”.
Expressiva parcela da grande imprensa nacional teve papel determi-
nante na preparação do golpe e na manutenção do governo ditatorial e
o Correio do Estado seguiu a mesma cartilha política e ideológica. Ante
explícita convicção, torna-se óbvia sua postura editorial na preparação do
golpe e na sustentação do governo ditatorial após 1964. Portanto, o cami-
nho percorrido na dissertação de Alline Ribeiro de Góis, intitulada Correio
do Estado: porta-voz da ideologia udenista na ditadura militar, não objetiva
identificar/analisar a postura editorial do jornal em relação ao governo dita-
torial, mas analisar as estratégias discursivas utilizadas por ele para persuadir
seus leitores em defesa da causa. É uma pesquisa de análise discursiva que
articula história do Brasil, história da imprensa e discurso jornalístico.
A dissertação, defendida em 2020 junto ao Programa de Pós-Gradua-
ção em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, está
estruturada em 165 páginas e quatro capítulos. O primeiro analisa a instau-
ração do golpe midiático-civil-militar e a ditadura militar no contexto nacio-
nal e em Mato Grosso; o papel da imprensa como colaboradora no sentido
de criar o consenso junto à opinião pública para a necessidade do golpe;
a censura e modernização no governo Médici. No segundo, são apresenta-
dos os referenciais teórico-metodológicos aplicados no desenvolvimento da
pesquisa como a articulação entre Hermenêutica de Profundidade (HP),
elaborada por John Thompson (2011), e a Análise de Conteúdo (AC) fun-
damentada principalmente em Bardin (1977), bem como os conceitos de
ideologia e gêneros jornalísticos explorados na dissertação. Nos capítulos
118 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
três e quatro foram desenvolvidas as análises discursivas sobre a cobertura
do Correio do Estado em relação ao golpe e à ditatura, especificamente nos
anos de 1964 e 1969. Em 64, porque foi o ano de deflagração do golpe; e
69, em razão do início da sua fase mais aguda com a decretação do Ato
Institucional nº 5 (AI-5) em dezembro de 1968.
A HP é um conjunto teórico-metodológico elaborado para analisar o
modus operandi e as estratégias discursivas utilizadas pelos meios de comu-
nicação para disseminar a ideologia dominante. Seu método de aplicação
compreende três etapas: 1) Análise Sócio-Histórica, que tem por objetivo
estudar o contexto em que as mensagens são produzidas e recebidas pelo
público-alvo, ou seja, envolve as questões espaço-temporais, campos de in-
teração, instituições sociais, estrutura social e meios técnicos de transmis-
são; 2) Na Análise Formal ou Discursiva, a qual foi articulada com a Análise
de Conteúdo, foram selecionadas as notícias mais significativas do período
e posteriormente extraídos fragmentos de textos – unidades de registro - para
a respectiva análise; 3) Na fase de Interpretação/Reinterpretação dos textos
foi realizada a análise das notícias considerando-se principalmente os mo-
dos de operação e as estratégias discursivas utilizadas pelo jornal em sua
elaboração, assim como o uso de pesquisa bibliográfica e documental sobre
o golpe em Mato Grosso.
A análise discursiva proposta por Thompson (2011), por meio da
Hermenêutica de Profundidade, é estratificada em cinco modus operandi
ou categorias: fragmentação, unificação, dissimulação, legitimação e reifica-
ção. Esta última não foi identificada nos textos analisados de 1964, por isso
segue a síntese de sua definição em nota de rodapé.5 As demais foram in-
seridas no início de cada categoria de análise para facilitar o entendimento
do leitor. A adaptação para o capítulo deste livro está centrada no capítulo
três da dissertação no qual foi realizada a análise hermenêutica do discurso
jornalístico do Correio do Estado em 1964.
No capítulo quatro da dissertação foram consultadas 2.827 páginas
de 322 edições publicadas entre dezembro de 1968 e dezembro de 1969, de
onde foram selecionadas dez notícias e notas sobre o governo ditatorial, das
quais resultaram 24 unidades de registros. Como em 1969 o jornal manteve
praticamente a mesma postura editorial que em 64, a análise daquele ano
não foi incluída nesta síntese, recebendo apenas alguns apontamentos nas
considerações finais deste capítulo.
5 Reificação: os acontecimentos são retratados como naturais, permanentes e atemporais, de tal
modo que o seu caráter social e histórico é eclipsado. Ou seja, há o ofuscamento do caráter só-
cio-histórico dos fenômenos. Estratégias: naturalização - fenômenos resultantes de um processo
social e históricos são retratados como acontecimentos naturais -; eternalização - acontecimentos
sócio-históricos são esvaziados de seu caráter histórico ao serem apresentados como permanentes,
imutáveis e recorrentes -; nominalização - sentenças, descrições da ação dos participantes são trans-
formadas em nomes -; passivação - a estrutura da sentença é colocada na voz passiva. Em síntese, a
nominalização e a passivização apagam os atores e a ação e tendem a representar processos como
coisas ou acontecimentos que ocorrem por si só (THOMPSON, 2011).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 119


O Correio do Estado e as estratégias discursivas que legitimaram o golpe

Antes, durante e após o golpe midiático-civil-militar de 1964, grande


parte da imprensa brasileira alinhavou um discurso visando deslegitimar o
governo de João Goulart e defender a intervenção militar para “salvar” o
Brasil do “perigo comunista”. O Correio do Estado adotou o mesmo posi-
cionamento imprimindo em suas páginas o que pode ser definido como um
catecismo pró-golpe. Seguindo o percurso teórico-metodológico proposto
pela Hermenêutica de Profundidade combinado à Análise de Conteúdo,
foram analisadas 1.570 páginas de 281 edições de janeiro a dezembro de
1964 do jornal. Desse universo, foram selecionadas dez notícias das quais
foram extraídas e analisadas 12 unidades de registro. As matérias mais signi-
ficativas para a análise foram publicadas entre janeiro e abril de 1964.
A seguir foi desenvolvida a partir dos modus operandi ou categorias
de fragmentação, unificação, dissimulação, legitimação, e as respectivas es-
tratégias discursivas.

Fragmentação

A fragmentação é um modus operandi que visa segmentar o grupo


dominante ou de oposição. Tem como estratégias: a diferenciação – enfatiza
as diferenças, as divisões que desunem os grupos de oposição -; o expurgo do
outro – constrói a imagem do outro como inimigo, perigoso e ameaçador,
no qual os grupos são chamados para resistir e expurgá-lo. Nas três unida-
des de registro a seguir, são analisados modos operandi de fragmentação e a
aplicação de suas estratégias pelo Correio do Estado na difusão da ideologia
dominante em busca da persuasão de seus leitores em favor do governo
ditatorial.

a) Título: Jornada democrática em meio a agitação


Embora o País viva momentos de agitação e os mais pessimistas
antevejam a derrocada do regime, o povo vai cerrando fileiras em
torno de Carlos Lacerda e realizando uma verdadeira jornada de-
mocrática de fortalecimento do regime ameaçado pelas esquer-
das (CORREIO DO ESTADO, 08/01/1964, p. 1).

Desde a aproximação do então presidente Jânio Quadros com o go-


verno cubano em 1961, a imprensa nacional passou a alardear o comunis-
mo como um perigo eminente para o Brasil. Com a renúncia de Jânio e o
tão questionado governo de João Goulart, o embate midiático se intensifi-
cou contra o novo presidente. Em meio a esse processo, também se inten-
sificaram os movimentos sociais rurais e urbanos e de trabalhadores da ci-
dade e do campo reivindicando principalmente melhores salários, reforma
120 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
agrária, fiscal, bancária, urbana, administrativa e universitária. Proliferaram
manifestações, greves, comícios e ocupações de grandes propriedades pro-
movidas por trabalhadores rurais.
Na definição de Delgado (2014, p. 73), pela primeira vez, um “su-
jeito histórico coletivo” entrou em cena na sociedade brasileira. Porém, nas
páginas dos jornais, os movimentos reivindicatórios tornaram-se tempos de
“agitação”, de “ameaça comunista” e de “subversão da ordem”. Este cená-
rio de “desordem”, de estagnação econômica e alta inflação fez “nascer” a
figura de Carlos Lacerda (UDN) como a solução para os problemas políti-
cos e sociais. Com sua retórica virulenta, o líder udenista passou a represen-
tar a alternativa à situação de “agitação” e desordem considerada intolerável
por segmentos da sociedade brasileira.
Em 1964, o Correio do Estado manteve este mesmo discurso afinado
com a imprensa nacional. A notícia Jornada democrática em meio a agitação
(8/01/1964) foi publicada em cinco colunas no alto da primeira página e
relata a visita de Carlos Lacerda à Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, para
paraninfar uma turma de formandos. O ritual acadêmico ganhou status polí-
tico pelo jornal ao definir Lacerda como a “única solução para a garantia das
instituições e para o progresso do país” para solucionar a “agitação” social que
o país enfrentava (CORREIO DO ESTADO, 8/01/1964, p.1).
A unidade de registro em destaque acima é construída com base em
três temas centrais que fundamentam o discurso: a agitação social (1), La-
cerda como solução à agitação (2) e o “movimento democrático” ensejado
pela população (3).
Para o Correio do Estado, a reforma agrária era pura “demagogia”
defendida pelo governo. Como evidencia a matéria “Câmara vai processar
presidente da SUPRA’ (2/03/1964), as terras devolutas do Estado ainda não
eram de conhecimento de João Pinheiro Neto, presidente da Superinten-
dência de Política Agrária (SUPRA), que, agora, poderia implementar a
“propalada e demagógica reforma agrária defendida pelo governo”6.
A questão agrária ganhou força nos anos 1940 e 60, pois era vista
como um fator que impactava no destino da nação. De acordo com a visão
da época, a situação agrária representava um freio no desenvolvimento do
país, pois, até os anos 40, 70% da população era rural. O projeto desenvol-
vimentista almejado era modernizar a produção no campo para elevar o
padrão de vida das populações rurais e integrá-las ao circuito de consumo
de bens manufaturados.
O movimento preocupava os latifundiários de Mato Grosso, que
viam com receio as ocupações de terras ocorridas no país e temiam ma-
nifestações no estado. Por este motivo, a Associação de Criadores do Sul
de Mato Grosso realizou diversas reuniões para “examinar a conjuntura
6 Jornal Correio do Estado. 2 mar.1964, p. 1. Câmara vai processar o presidente da Supra. Arquivo
Correio do Estado.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 121


nacional em face da agitação social surgida em diversos postos do país”7 e
estabelecer ‘providências a serem tomadas na salvaguarda do regime demo-
crático, do qual os direitos de propriedade e de liberdade humana” seriam
os principais fundamentos.
O medo do avanço comunista, a insegurança causada pelas manifes-
tações e ocupações de propriedades rurais fez Goulart enfrentar uma série
de pressões de militares, sociedade civil e empresários que exigiam paz para
tocar os negócios.
Ainda na unidade de registro em destaque, Lacerda é apresentado
como alternativa para reestabelecer a ordem no país. Além disso, era visto
pelos latifundiários como alguém que estaria apto para resolver a questão
agrária.
O jornal se vale do modus de operação de fragmentação, que visa
segmentar indivíduos e grupos que possam ser capazes de transformar num
desafio real aos grupos dominantes. Por meio da estratégia da diferenciação,
a narrativa dá ênfase à divisão entre dois grupos sociais: os “pessimistas” -
que representa pequena parte do povo que prevê a “derrocada do regime”
– e o “povo” unido para salvaguarda à democracia que estaria ameaçada
pelo avanço comunista.
Ao distinguir os grupos sociais, estratifica-os entre os apoiadores de
Lacerda – visto como “líder democrático” – e os contrários ao regime de-
mocrático, apoiadores da má administração de João Goulart. Do mesmo
modo, diferencia os brasileiros, considerados “verdadeiros democratas”, que
se uniram numa jornada democrática para fortalecer o regime ameaçado
pelas esquerdas, dos cidadãos que previam o colapso e degradação das ins-
tituições.
Dessa forma, difundiu-se a necessidade de união dos defensores da
democracia e da ordem para combater um governo incapaz de assegurar a
estabilidade econômica e política do país. Outro aspecto a ser ressaltado: na
oposição entre Lacerda e o governo de Goulart, busca legitimar a candida-
tura do udenista em 1965 à Presidência da República, ao mesmo tempo em
que deslegitima o governo vigente.

b) Título: A opinião pública e a decisão da Câmara Municipal


de Campo Grande
Segundo observamos ainda, a opinião pública acompanhou aos
debates como juiz, sentindo que a luta era ideológica e não em
torno, tão somente, de uma manifestação político partidária. Os
vereadores que votaram contra o requerimento do sr. Cícero de
Castro Faria estão sendo apontados pela opinião pública, bem en-
tendido, como comunistas ou inocentes úteis a serviço do regime
esquerdista. O vereador Euler de Azevedo, presidente do Legis-
7 Jornal Correio do Estado. 21 fev. 1964, p. 4. Tomada de posição pelas Associações de Classes na
Defesa dos princípios democráticos. Arquivo Correio do Estado.

122 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


lativo, tem sido o mais censurado, pelos campo-grandenses, pela
sua inesperada tomada de decisão. O vereador Willian Mackoud,
dentro de sua já conhecida posição, foi o mais combativo, defen-
dendo a legalidade do PCB, apesar da vulnerabilidade de muitos
de seus argumentos. O pensamento geral, por nós registrado, é o
de que os debates tiveram grande efeito esclarecedor no seio da
massa que ainda permanecia indecisa na sua atitude ideológica.
Com algumas exceções, os senhores vereadores campo-grandenses
estiveram à altura da momentosa decisão (CORREIO DO ESTA-
DO, 12/04/1964).

O recorte acima é destacado da notícia que relata a sessão na Câ-


mara de Vereadores de Campo Grande para votar pela legalização ou não
do Partido Comunista Brasileiro (PCB)8 no município, realizada em 11 de
março, a vinte dias da instalação do golpe militar. Em cinco colunas, ocupa
a parte superior da segunda página. Tanto no título quanto no corpo da
matéria pronuncia repetidamente juízos de valor atribuindo-os à opinião
pública, mas sem apresentar opiniões de entrevistados sobre o fato, apenas
as posições do jornalista. O requerimento contra a legalização do partido foi
feito pelo médico e vereador Cícero de Castro Faria (UDN), o qual o jornal
classificou como “autêntico líder democrata” por ter tomado tal inciativa.
Conforme o jornal, “milhares de campo-grandenses” se conecta-
ram ao rádio para ouvir os debates e após a decisão dos vereadores, Cam-
po Grande presenciou a uma “verdadeira ‘divisão de águas’, em relação
ao posicionamento ideológico do setor político e da população. Entre os
contrários à legalização estão os vereadores Cícero de Castro Faria, Euler
de Azevedo e Willian Macksoud. O jornal buscou contrapor os cidadãos:
os “bons brasileiros” querem preservar a democracia brasileira e os “maus
brasileiros” que querem “comunizar” o Brasil.
A unidade de registro selecionada acima expõe essa narrativa explo-
rada pelo jornal ao longo de 1964. Opera o modo de fragmentação, pela
estratégia de diferenciação, no qual busca-se dar ênfase às distinções entre
as pessoas e grupos, apoiando as características que o desunem. Nessa con-
traposição há uma mensagem clara: a luta ideológica travada no campo
político. Isso é enfatizado ao sentenciar que: “o pensamento geral, por nós
registrado, é o de que os debates tiveram grande efeito esclarecedor no seio
da massa que ainda permanecia indecisa na sua atitude ideológica”.
A atitude ideológica à qual se refere é a disputa no campo políti-
co: comunismo versus democracia. Nessa disputa, os vereadores Euler de
8 O PCB, organização partidária mais antiga do Brasil, fundada em 1922, passou parte da sua exis-
tência na clandestinidade, por ser caracterizada como um partido antissistema que pregava radical
transformação da sociedade a partir da perspectiva marxista. O partido, no entanto, teve breves
períodos de legalidade, como, por exemplo, entre 1945-1947, no governo Dutra; e de 1958 até
1964, quando viveu uma semilegalidade consentida; sem conseguir, no entanto, a sua legalização.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 123


Azevedo e William Macksoud (PTB) - este último cassado pelo Comando
Supremo da Revolução logo após o golpe midiático-civil-militar de 1964 e
enquadrado na Lei de Segurança do Estado, acusado de ser “ativo esquer-
dista” na Câmara Municipal e por ter se posicionado “favorável ao registro
do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Além disso, pesava sobre ele a acu-
sação de ser um político “antiamericanista”, e “ardoroso defensor das refor-
mas de base, especialmente a agrária, nos moldes preconizados por Leonel
Brizola e João Goulart”.
O texto enaltece o posicionamento do vereador Macksoud como
o “mais combativo”, em defesa da legalização do PCB, mas, ao mesmo
tempo, classifica muitos de seus argumentos como vulneráveis. A narrativa
busca, por meio da estratégia de diferenciação, acentuar as divisões entre os
vereadores, enquadrando-os entre aqueles vinculados às ideias comunistas e
os defensores da democracia brasileira. Essa diferenciação fica evidenciada
ao definir a posição do vereador Plínio Barbosa Martins (UDN), contrária à
legalização, como “magnífica e insuperável nos seus aportes”. Coerente em
sua linha editorial como um jornal nascido nas fileiras udenistas, o Correio
não apenas valoriza o posicionamento do vereador Plínio Martins, como re-
força que o jornal é endossado pela opinião pública, embora não apresente
fontes que manifestem esse respaldo.
O modus de fragmentação também se impõe ao assinalar que os
vereadores favoráveis à legalização são vistos pela opinião pública como
“comunistas ou inocentes úteis a serviço do regime esquerdista”. Ao enun-
ciar esta sentença, o jornalista intercala a expressão “bem entendido” como
forma de se eximir de que aquela não era uma avaliação sua, mas da opi-
nião pública. Mais uma vez, busca-se deslegitimar as opiniões contrárias à
ideologia dominante que era associar o comunismo à derrocada do regime
democrático.

c) Título: UDN apoia as denúncias de Bilac Pinto


O Diretório Nacional e as bancadas da UDN na Câmara e no
Senado, reunidos hoje resolveram manifestar publicamente seu
aplauso e solidariedade à entrevista em que a participação do Pre-
sidente da República, por ação o sr. Bilac Pinto, pres. do Partido,
denunciou e comprovou a omissão na guerra revolucionária em
curso no país, e já na sua terceira etapa.
Decidiu “manter a opinião pública alertada quanto à ação gover-
namental que sob a alegação de mudança na estrutura econômi-
ca, social e política do país, fere, continuadamente, a ordem e a
lei” (CORREIO DO ESTADO, 23/01/1964).

A notícia da qual foi destacada a unidade de registro acima está dividi-


da em duas partes: a primeira é proveniente de Brasília e tem como foco as
denúncias do presidente da UDN, deputado Bilac Pinto, de que o presidente
124 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
João Goulart é omisso em relação à guerra revolucionária promovida pelos co-
munistas no país; a segunda parte é proveniente do Rio de Janeiro – subtítulo
Ministro da Guerra acha que há exagero – e relata a posição do ministro da
Guerra, Jair Dantas Ribeiro, sobre as denúncias feitas por Bilac Pinto.
A unidade destacada sentencia que o deputado “denunciou” e “com-
provou” a omissão do presidente quanto à “guerra revolucionária” - a amea-
ça comunista com apoio estrangeiro - que já estava em curso em sua terceira
etapa, ou seja, como se fosse algo já concretizado, em andamento, tanto a
guerra quanto a omissão do governo. Essa foi uma estratégia utilizada para
deslegitimar o governo de Goulart e serviu como pressuposto para a inter-
venção militar.
Este modelo de narrativa foi constante durante aquela semana de
janeiro. Na edição anterior, por exemplo, a notícia “Presidente da UDN
acusa Jango” (23/01/1964) enumera diversas acusações de Bilac Pinto con-
tra o presidente, entre elas: 1) permitir que Leonel Brizola, por meio do
serviço público de radiodifusão, realizasse pregação ideológica de guerra
revolucionária e de organização de guerrilheiros; 2) estimular e prestigiar
a influência comunista na Petrobrás; 3) permitir a “criação de órgãos sindi-
cais ilegais, como o CGT e o PUA, controlados por comunistas aos quais
dispensa o apoio do governo”; 4) prestigiar e estimular greves políticas e,
por fim, “solapar a disciplina no seio da Forças Armadas”; 5) permitir ampla
infiltração de comunistas em todos os escalões do governo9.
Na construção desse raciocínio, o jornal se vale do modus de opera-
ção de fragmentação, por meio da estratégia do expurgo do outro. Ou seja,
busca construir um inimigo que é retratado como mau, perigoso e ameaça-
dor e do qual os indivíduos são convocados a resistir e expurgá-lo (THOMP-
SON, 2011, p.87). Na unidade em destaque, é construída a concatenação
de elementos acusatórios que envolve Goulart e o plano de tomada de po-
der pelos comunistas. A campanha acusatória deflagrada por Bilac Pinto
é definida por Bandeira (1978, p. 153) como guerra psicológica, ou seja,
estimular a população a empenhar-se na oposição direta, incitar a revolta
contra as autoridades instituídas, o governo de Goulart.
Em uma citação entre aspas cuja fonte não é citada, mas por encade-
amento de raciocínio pode ser atribuída a Bilac, este declara que a denún-
cia visava “manter a opinião pública alertada quanto à ação governamental
que sob a alegação de mudança na estrutura econômica, social e política do
país, fere, continuadamente, a ordem e a lei”. Ou seja, as Reformas de Base
são ilegais e alteram a ordem social.
Na segunda parte da matéria, há um contraponto às acusações. No
texto, o deputado denuncia o desvio de armas do Exército e distribuídas a
alguns sindicatos e trabalhadores da orla marítima, e com a articulação do
9 Jornal Correio do Estado. 23 de jan. 1964, p. 1. Presidente da UDN acusa Jango. Arquivo Correio
do Estado.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 125


presidente. Afirma ainda que Goulart “não dá o golpe porque não tem o
apoio das Forças Armadas”. Goulart envia um emissário ao ministro para
saber sua avaliação sobre as denúncias do parlamentar udenista e o minis-
tro responde que elas “estão um pouco exageradas”. Bandeira avalia que o
objetivo de Bilac Pinto ao fazer a denúncia era “sensibilizar a oficialidade
legalista das Forças Armadas e empurrar setores das classes médias para o
movimento de reação ao Governo, que o empresariado e os latifundiários
lideravam” e que “[...] a possível intervenção armada dos Estados Unidos
no conflito brasileiro não passava de pretexto para legitimar as atividades
antidemocráticas da UDN civil e militar e impelir a conspiração contra o
Governo (BANDEIRA, 1978, p. 153-154).
O Correio do Estado faz uma “suíte” com as notícias relativas à de-
núncia de Bilac, sempre expondo Goulart como negligente. Um exemplo
é a notícia Sindicatos recebiam armas do Governo Federal (28/01/1964), na
qual o deputado Adauto Lúcio Cardoso (UDN) “confirmou estar de posse
da lista de sindicatos que vinham recebendo armas do governo federal, se-
gundo a acusação do presidente de seu partido, deputado Bilac Pinto”. A
narrativa expõe que o presidente fazia “pouco caso” da denúncia do depu-
tado e presidente da UDN.

Unificação

Ao contrário da fragmentação, o modus operandi de unificação visa à


construção de uma identidade coletiva por meio de formas simbólicas. São
estratégias dessa categoria: padronização – as formas simbólicas são adapta-
das a um referencial padrão, que é proposto como um fundamento partilha-
do e aceitável de troca simbólica – ; simbolização de unidade – construção
de símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletiva que são
difundidas por grupos.

a) Título: Tomada de posição pelas associações de classe na


defesa dos princípios democráticos
Em reunião realizada na Associação dos Criadores do Sul de Mato
Grosso, na noite de 18 do corrente, os presidentes das diversas en-
tidades de classe estiveram reunidos para examinar a conjuntura
nacional em face da agitação surgida em diversos postos do país
- sempre envolvendo responsabilidade de funcionários graduados
da administração federal.
Depois de longos debates, todos concluintes destas responsabi-
lidades e participação do Governo nessas agitações, resolveram
convocar uma outra reunião, a fim de estabelecerem as provi-
dências a serem tomadas na salvaguarda do regime democrático,
do qual os direitos de propriedade e de liberdade humana são
dos seus principais fundamentos. Os representantes de classes
126 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
são unânimes no esforço pelo progresso do país em reconhecer a
necessidade da permanente evolução social, a fim de dar ao povo
brasileiro o bom nível de vida que caracteriza as nações civiliza-
das do mundo ocidental, já que as nações comunistas não se pre-
ocupam com o conforto do cidadão e da família. Em princípio
ficou assentada a concentração popular no Cine Santa Helena,
onde elementos representantes comparecerão para definir os al-
tos propósitos dos campo-grandenses pela paz e pelo progresso de
Mato Grosso (CORREIO DO ESTADO, 21/02/1964)10.

Na unidade de registro acima, é identificado um denso conjunto de


enunciados que se contrapõem. De um lado: “agitação” (duas vezes), “na-
ções comunistas não se preocupam com o conforto dos cidadãos e das famí-
lias”; e do outro: “salvaguarda do regime democrático”, “direitos de proprie-
dade e de liberdade humana”, “esforço pelo progresso do país”, “evolução
social”, “bom nível de vida”, “nações civilizadas”, “paz”, “progresso”. No
centro dessa polaridade, presidentes de diversas entidades de classe se re-
únem para examinar a “conjuntura nacional” em meio a essa “agitação”
corrente no país, provocada pelo governo e “funcionários graduados da ad-
ministração federal”.
A estratégia discursiva se vale da unificação, à medida que procu-
ra agregar os campo-grandenses com ideais de “altos propósitos” (segundo
grupo). Ao mesmo tempo, faz uso da fragmentação ao dividir a sociedade
local e o país em dois grupos: os agitadores e os que buscam salvaguardar a
democracia.
Progresso, democracia e paz foram os três pressupostos que norte-
aram a maior parte das construções simbólicas de 1964 e serviu como ar-
gumento para a construção de consenso em torno da necessidade de um
governo que tivesse um projeto político em que o direito de propriedade e
liberdade humana eram primordiais e considerados defesa dos princípios
democráticos. Esses valores - responsáveis por unificar a população e mobi-
lizá-la para um bem comum - são utilizados para mobilizar a população em
volta de um projeto político. Um dos grupos responsáveis pela mobilização
era o de pecuaristas do sul do Estado.
Esses pecuaristas associavam o progresso à pecuária e se considera-
vam representantes do pensamento da elite do sul do Estado, cabendo-lhes
a missão de identificar e reconhecer os valores pelos quais se convergiam
as aspirações do grupo e, sobretudo, dirigir e administrar as mudanças so-
ciais e culturais no sentido desses interesses coletivos. Assim, esses interesses
10 A notícia, publicada na parte superior da quarta página, é composta por sete colunas de texto
e, em síntese, convoca os campo-grandenses para reunião na Associação dos Criadores do Sul de
Mato Grosso, para defender os princípios democráticos. Aponta ainda que o governo federal era
responsável e partícipe das agitações sociais que ocorriam no país. A reunião tinha como objetivo
estabelecer providências para salvaguardar o regime democrático, do qual dois pressupostos são
ressaltados: o direito de propriedade e liberdade humana.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 127


são apresentados como pertencentes à população campo-grandense como
um todo, e não somente às classes pecuaristas, que defendia a propriedade
privada, que estava ameaçada pela Reforma Agrária proposta pelo governo
de Goulart. Portanto, a mobilização de outros valores comuns, como a sal-
vaguarda do regime democrático (ameaçado pelo comunismo), a defesa da
liberdade humana, da família e da paz são utilizados para mobilizar a po-
pulação. O governo de João Goulart é referenciado como responsável pela
“agitação social” e, portanto, é uma ameaça ao regime democrático e ao
bem-estar social. Ao reproduzir a ideologia dessa classe dominante (muitos
de seus integrantes faziam parte dos quadros da UDN), o Correio do Estado
serve como porta-voz da ideologia udenista no sul do Estado.
O texto se utiliza ainda do modus operandi de fragmentação ao dife-
renciar o mundo entre nações civilizadas com “bom nível de vida” o qual
o brasileiro deveria almejar e as nações comunistas que “não se preocupam
com o conforto do cidadão e da família”. Nesta diferenciação incisiva, utili-
za-se da estratégia do expurgo do outro, uma vez que o comunismo é ligado
à ideia de sofrimento, de miséria, e, portanto, algo a ser excluído, execrado.
O comunismo é apresentado como um desafio à sobrevivência da própria
sociedade civilizada, “ameaçada em seus fundamentos por estes bárbaros
do mundo contemporâneo” (MOTTA, 2000, p. 90-91). Por outro lado, con-
voca os cidadãos a se unirem em defesa dos princípios democráticos, utili-
zando-se da estratégia de simbolização de unidade, na qual insere a defesa
de valores como a liberdade humana, defesa da família e direito de proprie-
dade como símbolos que une a todos e devem ser defendidos por todos.

b) Título: Impressionante a “Marcha da Família”


A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, anunciada
como repúdio ao comunismo e reafirmação do sentimento de
liberdade do nosso povo, transformou-se, por força mesmo dos
acontecimentos que culminaram com a renúncia do presidente
da República e a fragosa derrota do comunismo que já dominava
o nosso país, transformou-se em grande festa comemorativa da vi-
tória do Brasil sobre o seu nefasto inimigo representado pelo mar-
xismo sempre combatido pela família brasileira. A Marcha foi algo
impressionante. Movimento cívico jamais registrado nos anais do
nosso Município, ligando-se a ele representantes das cidades vizi-
nhas e municípios do Sul. (CORREIO DO ESTADO, 3/04/1964).

Os militares já haviam tomado o poder quando o Correio do Estado


publicou, no dia 3, a notícia da qual foi extraído o trecho acima. As Mar-
chas da Família foram atos públicos organizados pela classe média urbana
e impulsionadas por políticos conservadores, pela elite empresarial e movi-
mentos femininos, que reuniram milhares de pessoas às vésperas do golpe
midiático-civil-militar nas principais cidades brasileiras. Em Campo Gran-
128 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
de, a Marcha ocorreu no dia 2, promovida por um grupo de senhoras que
percorreu bairros da cidade convidando a população para “demonstração
de civismo em favor da liberdade”11.
Em outra matéria do dia 4, o Correio também informa que partici-
param “pequenos, médios e grandes fazendeiros” que chegaram com “en-
tusiasmo cívico, para festejar o desaparecimento do fantasma da desapro-
priação, que tanto poderiam ser feitas com certa coerência quanto por meio
violento, uma vez que o governo defunto não se mostrava muito respeitador
da Constituição da República e dos direitos de propriedade”12.
O recorte do dia 3, aqui analisado, foi composto em sete colunas
e disposto na parte superior da capa. Predominam em sua estrutura, dois
modus operandi: a unificação e a fragmentação. Na segunda parte da uni-
dade de registro destacada acima, o jornal faz uso, pela primeira vez entre
as matérias analisadas, do termo “patriotismo”. Ao utilizá-lo no modus de
unificação, o jornal se vale da estratégia de simbolização de unidade, ou
seja, o patriotismo é apresentado como forte componente persuasivo, como
fator de unicidade para o leitor defender a democracia e combater o inimi-
go representado pelo comunismo. Portanto, o objetivo é unir a população
em torno de valores, como o sentimento patriótico, e utilizá-los como fator
mobilizador para o combate ao comunismo.
A fragmentação e sua estratégia de expurgo do outro – ficam eviden-
ciadas em enunciados como “repúdio”, “nefasto inimigo representado pelo
marxismo”, “fragosa derrota do comunismo”, “renúncia do presidente” para
representar o comunismo e o presidente João Goulart. Nefasto é algo funes-
to, ou seja, que causa a morte (HOUAISS, 2009, p. 1347). O comunismo é
identificado à imagem do mal e que precisa ser “repudiado”, expurgado para
a salvaguarda da democracia, das instituições. Esse discurso foi adotado por
parte da imprensa brasileira como forma de construir consenso em relação
à necessidade de uma intervenção militar para conter o avanço comunista,
reestabelecer a ordem e a disciplina.
Mas por qual razão a família brasileira tentava combater o comunis-
mo? De acordo com Motta (2000, p. 73-74), os comunistas foram represen-
tados, ao longo da história, por meio de amplo repertório de pejorativos, no
qual são apresentados como uma ameaça à moral e à família. Na definição
do autor, o comunismo foi identificado “à imagem do “mal”, tal qual as
sociedades humanas normalmente entendem e significam o fenômeno,
ligando-o à ideia de sofrimento, pecado e morte”. Ele sentencia que “no
limite, chegou-se a operar a associação comunismo=demônio, na medida
em que a revolução foi vituperada como encarnação do “mal absoluto”
(MOTTA, 2000, p.72).
11 Jornal Correio do Estado. 2 abril de 1964, p.1. Hoje: Marcha da família Campograndense (sic).
Arquivo Correio do Estado.
12 Jornal Correio do Estado. 4 abril de 1964, p.4. O Renascer da Confiança. Arquivo Correio do Estado.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 129


A imprensa brasileira, assim como o Correio, utilizou-se dessa repre-
sentação negativa e mobilizou grande parte da população para combater
o comunismo e preservar a família. Em 17 de abril, o Correio publicou
matéria intitulada Comunistas iam cortar os pés e pendurar em árvores, na
qual apresentava o comunismo como um “plano diabólico” (subtítulo da
matéria) e identifica o movimento com a ideia de mal. Dias antes, em 3 de
abril, publicou a nota “Comunismo Ateu”, na qual diz que pessoas telefo-
naram ao jornal para pedir explicações sobre o que era comunismo ateu. A
resposta do periódico foi a seguinte:

Comunismo ateu deve ser uma expressão encontrada por elemen-


tos que procuravam acender duas velas, isto é, estar bem com o sr.
João Goulart e com a Democracia. O comunismo propriamente
dito é o mesmo tanto no Brasil, como em Cuba, na China, na
França, na Itália e em toda a parte. Quem não estiver com a De-
mocracia está contra ela. Não há meio termo (CORREIO DO ES-
TADO, 03/04/1964, p. 1)13

Amedrontar as pessoas e levá-las a considerar o comunismo como


um inimigo ameaçador e violador dos bons costumes foi uma prática re-
corrente da imprensa e o Correio também estava alinhado a esse discurso.

Dissimulação

Por meio da dissimulação, as relações de dominação podem ser esta-


belecidas e sustentadas pelo fato de ocultadas, negadas ou obscurecidas, ou
por serem apresentadas de uma maneira que desvia a atenção do público da
questão central. Estratégias: deslocamento – conotações positivas ou nega-
tivas são transferidas de um indivíduo para outro –; eufemização – quando é
dado destaque aos aspectos positivos de uma situação, pessoa ou instituição
–; tropo – metonímia, sinédoque e a metáfora são usadas para dissimular as
relações de dominação.

a)Título: Custo de vida é o problema


As classes conservadoras prometeram a S. Exa. que tudo farão
para aliviar-lhe a grande tarefa que tem a executar em benefício
do País e da comunidade, e esse é o apoio mais valioso, eis que
elas representam a junção do capital e do trabalho a serviço do
Brasil. No entanto, não basta que apenas se prometa apoiar o
governo. É preciso que tal apoio se efetive no dia-a-dia de cada
cidadão, na luta de cada empresa e na boa intenção de cada pa-
triota. É justo que o chefe da Nação irá dar o melhor dos seus
esforços para forçar a baixa do custo de vida, que tanto aflige
13 Jornal Correio do Estado. 3 abril de 1964, p. 1. Comunismo ateu. Arquivo Correio do Estado.

130 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


as camadas mais humildes da população nacional. Para que o
governo logre êxito no combate ao custo de vida, é preciso que to-
dos os industriais, comerciantes, labradores, pecuaristas e demais
homens de negócio se predisponham a ganhar um pouco menos,
oferecendo suas mercadorias por preços que lhes propicie lucros
não extraordinários, pois só assim estarão de fato dando a colabo-
ração prometida ao presidente Castelo Branco na solenidade de
sua posse, e em pronunciamento que antecederam o ato. Com
o governo deposto com as vistas voltadas apenas para a agitação
e a baderna, o custo de vida ganhou alturas astronômicas (COR-
REIO DO ESTADO, 18/04/1964).

A questão econômica era um dos principais desafios do governo Cas-


telo Branco e o alto custo de vida é o foco do destaque acima. Composta
em cinco colunas na página quatro, a narrativa trabalha com três núcleos
argumentativos: 1) apoio das classes conservadoras ao chefe da Nação em
benefício do País; 2) o chefe da Nação – General Castelo Branco, que não
mediria esforços para forçar a baixa do custo de vida; 3) governo deposto
estava voltado apenas para a agitação e baderna, com isso o custo de vida
ganhou alturas astronômicas.
Texto usa o modus de dissimulação e a estratégia de eufemização. É
por meio da dissimulação que “relações de dominação podem ser estabele-
cidas e sustentadas pelo fato de serem ocultadas, negadas ou obscurecidas,
ou pelo fato de serem representadas de uma maneira que desvia nossa aten-
ção, ou passa por cima das relações e processos existentes” (THOMPSON,
2011, p. 83). A tática é utilizada pelo Correio ao elencar motivos pelos quais
a população deveria apoiar as ações governamentais para que a vida retor-
nasse à normalidade.
Uma das proposições que evidencia o modus de operação da ideolo-
gia por meio da dissimulação é a promessa da classe conservadora ao Gover-
no de “aliviar-lhe a grande tarefa que tem a executar em benefício do País e
da comunidade [...]”. Neste caso, dissimula-se a convergência de interesses
entre as classes conservadoras e o governo. Afinal, os conservadores não
ofereceram apoio por simples simpatia, mas porque o governo que chegara
ao poder poderia ser um aliado para defender seus interesses. Dessa forma,
como ressalta Thompson (2011, p. 83), estabeleceram-se, assim, relações
de dominação pelo fato de ocultar, obscurecer ou desviar a atenção das re-
lações e processos existentes. O texto oculta o complexo processo histórico
travado em 1964, no qual as classes conservadoras participaram ativamente
com objetivo de deslegitimar o governo de Goulart, pois este tinha medidas
econômicas que não atendiam aos seus interesses.
O jornal adverte: “não basta que apenas se prometa apoiar o governo,
é preciso que tal apoio se efetive no dia-a-dia de cada cidadão, na luta de
cada empresa e na boa intenção de cada patriota”. Nesta unidade ocorre
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 131
novamente a unificação e sua estratégia de padronização, ao evocar o apoio
das classes conservadoras e da população, apelando para o nacionalismo.
Assim, além de dissimular os interesses pelos quais os conservadores apoiam
o novo governo, utiliza de outra estratégia para persuadir os leitores em prol
da causa.
O segundo argumento da unidade é a exaltação de que Castelo Bran-
co daria o “melhor de seus esforços para forçar a baixa do custo de vida, que
tanto aflige as camadas mais humildes da população nacional”. A sentença
tem sentido ufanista, quase heroica, no qual o presidente daria o seu melhor
para o bem da nação, mas seria necessário que todos os brasileiros se dispu-
sessem a ganhar menos.
Ainda por meio da eufemização, há uma valoração positiva das medi-
das do Governo em relação à economia e conclama a população a colabo-
rar com o projeto de estabilização econômica, apelando para o sentimento
nacionalista de seus leitores, e oculta as medidas de uma administração
voltada para os interesses estrangeiros e para a elite empresarial – que iriam
se beneficiar de diversas medidas econômicas adotadas.
O Programa de Ação Econômica do Governo (1964-1966) tinha
como uma de suas principais prioridades a luta contra a inflação. Para isso,
foram estabelecidas três estratégias: 1) imposição de severa política de cré-
dito ao setor privado; 2) redução do déficit governamental; 3) política de
controle salarial. Além disso, a equipe Bulhões-Campos associou o enérgico
programa de estabilização a uma série de decisões destinadas a estimular
o investimento estrangeiro (ALVES, 1989, p74). Atendendo aos interesses
imperialistas do EUA, Campos e Bulhões buscaram eliminar as causas de
tensão entre o governo brasileiro e o estadunidense a respeito da regula-
mentação do investimento estrangeiro. Uma das principais medidas nesse
quesito foi a revogação da Lei de Remessa de Lucros, aprovada pelo Con-
gresso Nacional em 1962. De acordo com Alves (1989, p. 75), “cinco meses
após o golpe, uma nova lei regulamentando a remessa de lucros e o registro
do capital, dos investimentos e reinvestimentos estrangeiros, assim como os
juros”, foi imposta ao Congresso Nacional.
Para atrair esses investimentos, foi necessário controlar as greves e re-
gulamentar os reajustes salariais. Dessa forma, o governo ditatorial buscou
reprimir greves por meio da Lei de Greve (Lei Nº 4.330). A política eco-
nômica implementada, portanto, buscava atrair capitais multinacionais e
estabelecer uma política de controle salarial que maximizasse a exploração
e com isso o aumento dos lucros.
Por último, como forma de apontar os motivos pelos quais o custo de
vida da população era alto, o enunciado sentencia que era devido ao “gover-
no deposto”, que estava com as vistas voltadas apenas para a “agitação” e a
“baderna. Por isso, “o custo de vida ganhou altura astronômica”. O jornal,
novamente, busca apresentar Goulart como um mau gestor. Ao fazer isso,
132 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
oculta os diversos processos socioeconômicos existentes no período Gou-
lart, apontando o suposto envolvimento do presidente com a “agitação”
como único motivo para o alto de custo de vida.

b) Título: Assentada a eleição do General Castelo Branco


Em Reuniões sucessivas no Ministério da Guerra, os Governa-
dores que lideravam o movimento revolucionário de descomuni-
zação do País, combinaram com os chefes militares a eleição do
general Castelo Branco para completar o período presidencial
começado pelo renunciante Jânio Quadros e agora, interrompida
ingloriamente pelo comprometido e fujão João Goulart. [...] Na
ambição impatriótica de Juscelino residia a maior dificuldade na
aceitação da formula encontrada. Somente depois de longas e
penosa de marchas o irrequieto candidato concordou em que o
Congresso elegesse o ilustre democrata general Castelo Branco
(CORREIO DO ESTADO, 8/04/1964).

A notícia, publicada na parte inferior da primeira página, informa


sobre as articulações ocorridas no Ministério da Guerra para eleger o ge-
neral Castelo Branco como presidente do Brasil. Destas reuniões também
participaram os governadores Fernando Correa da Costa (Mato Grosso) e
Mauro Borges (Goiás).
Na unidade de registro é identificado o modus de dissimulação (eu-
femização) que leva ao de fragmentação (diferenciação). O primeiro se dá
em razão de os problemas políticos estarem descontextualizados, de serem
ocultados, negados ou obscurecidos, ou pelo fato de serem representados
de uma maneira que desvia a atenção.
Há dois elementos nos quais a narrativa se concentra: 1) em apresen-
tar a deposição de Goulart como “interrompida ingloriamente” e 2) definir
a eleição do General Castelo Branco como um “combinado” entre chefes
militares.
Ao apontar Goulart como “comprometido e fujão”, são ocultados os
processos que o levaram a deixar o Palácio do Laranjeiras (RJ), deslocar-se
até Brasília e, depois, até Porto Alegre (RS), de onde seguiria para o exílio
no Uruguai. Goulart não fugiu, como apresenta a narrativa, mas foi forçado
a deixar o palácio devido à sublevação de tropas de Minas Gerais, coman-
dada pelo general Olympio Mourão Filho, que deu início ao movimento
golpista. Nos dias 31 de março e 1º de abril, outras tropas se sublevaram e
personagens ligados ao presidente, como o seu comandante do II Exército,
Amauri Kruel, foram aderindo ao golpe.
O movimento contava com apoio do governo norte-americano, que
tinha colocado à disposição o porta-aviões Forrestal, destroieres com mísseis
teleguiados, navios com armas, munições e mantimentos, caso houvesse
resistência de Goulart. A ofensiva não ocorreu, pois o presidente preferiu
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 133
evitar uma guerra civil e internacionalização do conflito.
Para evitar a deposição, Amauri Kruel e Juscelino Kubitschek procu-
raram Goulart para propor-lhe uma solução política para a crise. Pediram,
entre outras coisas, que o presidente se comprometesse a proibir a greve
geral anunciada pelos trabalhadores, interviesse nos sindicatos, governasse
com os partidos políticos e não com o Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), apoiando-se nas Forças Armadas, fechasse o CGT, UNE e outras
organizações populares, e se afastasse de seus auxiliares apontados como
comunistas. O pedido era, em outras palavras, que Goulart deixasse de lado
sua política trabalhista e reformista para se alinhar a uma política conserva-
dora. Não houve acordo e Goulart encontrou-se sem opções.
Encurralado, o presidente fora orientado a deixar o Palácio Laranjeira
por questão de segurança. O ato, entretanto, fora interpretado como fuga,
como renúncia. Interpretação essa repercutida no Correio do Estado que, pe-
jorativamente, chamou Goulart de “fujão”. Além, de mais uma vez, apresen-
tá-lo como “comprometido” com a “comunização” do país. Ao realizar essa
construção simbólica, o jornal recorre ao modus operandi de fragmentação.
O Ato Institucional nº1, instituído em 9 de abril de 1964, legalizou o
golpe. Fixou o conceito de “revolução” e definiu que o ato de 31 de março
“se distinguia de outros movimentos armados pelo fato de que nela se tra-
duz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da
Nação”. Assinala que a “revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se
legitima por si mesma” e que “[...] os Chefes da revolução vitoriosa, graças
à ação das Forças Armadas e o apoio inequívoco da Nação, representam
o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o
único titular”.14
Em 11 de abril, o Congresso Nacional convoca as eleições indiretas
e que têm como candidatos Humberto de Alencar Castelo Branco, Juarez
Távora e Gaspar Dutra. Com o apoio de nove partidos,15 Castelo Branco ven-
ceu com 361 votos. De acordo com Bandeira (1978, p.186), Castelo Branco
emergiu das sombras como o candidato do governo invisível à Presidência da
República, levando ao poder a UDN e os oficiais da Cruzada Democrática.
Conforme a notícia da 8 de abril, a eleição havia sido acordada pre-
viamente, em sucessivas reuniões realizadas no Ministérios da Guerra, en-
tre os “Governadores que lideravam o movimento revolucionário de des-
comunização do País” e os chefes militares que “combinaram” a eleição
de Castelo Branco. O principal opositor a essa articulação era Juscelino
Kubitschek, mas que acabou concordando.
14 Ato Institucional nº 1. Acesso em: 11 abril 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm>
15 Os partidos que apoiaram Castelo Branco foram: União Democrática Nacional (UDN), Partido
Social Democrático (PSD), Partido Social Progressista (PSP), Partido Democrata Cristão (PDC),
Partido Republicano (PR), Partido Libertador (PL), Partido Trabalhista Nacional (PTN), Partido da
Representação Popular (PRP) e Movimento Trabalhista Renovador (MTR).

134 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Ainda neste texto, a contraposição em que João Goulart é definido
como fujão e comprometido (com o movimento comunista), e Castelo
Branco como “ilustre democrata”, o jornal recorre ao modus de fragmen-
tação e sua estratégia de diferenciação, dando especial ênfase aos aspectos
negativos do ex-presidente deposto.

Legitimação

Para Max Weber (apud, Thompson, 2011), as relações de domina-


ção podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem representadas
como legítimas, ou seja, “justas e dignas de apoio”. Estratégias propostas
por Thompson: racionalização – a linha de raciocínio procura defender ou
justificar um conjunto de relações ou instituições sociais, e com isso persu-
adir o público de que isso é digno de apoio –; universalização – interesses
de alguns indivíduos são apresentados como sendo de interesses de todos –;
narrativização – histórias que contam o passado e abordam o presente com
parte de uma tradição eterna e aceitável.

a) Título: General Barbosa Pinto: O Exército cumpriu a sua


missão histórica
Na tarde de ontem mantivemos, em seu Quartel general, encon-
tro informal com o Exmo. Sr. General de Divisão Mário Ferreira
Barbosa Pinto, comandante da 9º Região Militar, que logo após
a decisão do comando do II Exército de defender a democracia,
movimentou com precisão as suas tropas em todo o território de
sua jurisdição, impedindo a ação dos inimigos da democracia.
[...] Em Campo Grande toda a população sentiu de perto a efi-
ciente movimentação de tropas sem incidentes, de tal forma que
somente com o amanhecer do dia a população tomou conheci-
mento da mudança havida no país. Elementos comunistas foram
anulados imediatamente e colocados sob custódia. (CORREIO
DO ESTADO, 4/04/ 196416

A movimentação das tropas militares em Campo Grande é o foco da


matéria da qual foi extraída a unidade acima, e que ocupou sete colunas da
capa do dia 4 de abril. A fonte é o general de Divisão da 9º Região Militar de
Campo Grande, Mário Ferreira Barbosa, que comandou o II Exército para o
Distrito Federal para “defender a democracia” numa “rápida e eficiente” mo-
vimentação do Exército sem incidentes e que “reinava a ordem e a vigilância
absoluta” na cidade para “assegurar a segurança da família brasileira”.
16 A notícia informa sobre a entrevista realizada com o general da 9º Região Militar de Campo
Grande, Mário Ferreira Barbosa, que mandou o comando do II Exército para o Distrito Federal
para “defender a democracia”. Além disso, diz que a “rápida e eficiente” movimentação do exército
foi realizada sem incidentes e “reinava a ordem e vigilância absoluta” na cidade, para “assegurar a
segurança da família brasileira.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 135


A legitimação e suas estratégias de racionalização e narrativização
estão articuladas no texto. A narrativização visa mobilizar o sentido através
da construção de uma história, ou seja, construir uma narrativa que conta
o passado e trata o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável.
Neste caso, as Forças Armadas são apresentadas como uma instituição guar-
diã da democracia. Essa narrativização é utilizada no título da notícia que
sentencia: “o exército cumpriu sua missão histórica”.
Thompson (2011, p.83) explica que essa estratégia insere histórias
sobre o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e
aceitável. Essas tradições são, muitas vezes inventadas a fim de criar um
sentido de pertença a uma comunidade e a uma história que transcende
a experiência do conflito, da diferença e da divisão. Histórias são contadas
para justificar o exercício de poder por aqueles que o possuem e servindo,
também, para justificar, diante dos outros, o fato de que eles não têm poder.
O jornal constrói uma linha discursiva que apresenta as Forças Arma-
das como uma instituição que, historicamente, agiu no país para resguar-
dar a democracia. Esse pressuposto é utilizado também na notícia Tomada
de posição pelas associações de classe na defesa dos princípios democráticos
(21/02/1964), na qual as Forças Armadas são apresentadas como “guardiãs
dos princípios e da unidade nacional”, e cuja função é “sagrada”. Apesar
dessa construção simbólica não fazer parte do conjunto enunciativo selecio-
nado para esta análise, faz-se necessário demonstrar o discurso construído
pelo jornal acerca do papel das Forças Armadas para legitimar a intervenção
militar que depôs o presidente João Goulart.
Como explica Prior (2015, p.5), “a comunicação narrativa estrutura-
-se em função de contextos pragmáticos que produzem, consciente ou in-
conscientemente, determinados efeitos no alocutário”. O narrador, portan-
to, com base numa determinada pretensão, organiza e estrutura o discurso
para que este seja interpretado da forma desejada, “tendo em conta as suas
intenções e os seus objetivos”. Nesse sentido, “as narrativas são mais do que
meras representações da realidade. Elas são, sobretudo, dispositivos discur-
sivos de configuração e instituição da realidade em contextos pragmáticos e
sempre em função de um determinado ponto de vista (Ibidem).
A unidade selecionada ressalta aspectos positivos da intervenção mi-
litar, ao caracterizar a ação como “eficiente’. Tão eficiente que a movimen-
tação das tropas que marcharam para o Distrito Federal, com o objetivo de
depor o presidente João Goulart, não fora sentida pela população, que só
tomou conhecimento da mudança política ocorrida no país no dia seguinte.
O intervencionismo militar no cenário político brasileiro é dividido
por Borges (2014, p.16) em duas fases: “a primeira, antes de 1964, quando
os militares intervinham na política, restabeleciam a ordem institucional,
passavam a condução do Estado aos civis e retornavam aos quartéis, exer-
cendo a função arbitral-tutelar”. E a segunda, após 1964 – já sob a égide da
136 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Doutrina de Segurança Nacional, quando os militares “assumem o papel
de condutores dos negócios do Estado, afastando os civis dos núcleos de par-
ticipação e decisão política, transformando-se em verdadeiros coadjuvantes
no sentido de dar ao regime uma fachada de democracia e legitimidade”.
Essa “missão histórica”, portanto, desempenhada pelas Forças Arma-
das, é longa (desde a Proclamação da República em 1889) e é importante
revê-la para melhor compreensão da construção simbólica realizada pelo
Correio do Estado. Afinal, por meio desse discurso, o jornal relembra aos
seus leitores o “importante” papel da instituição para o restabelecimento da
ordem e da salvaguarda da democracia.
Esse discurso aparece em diversos momentos no noticiário. Outro
exemplo é a notícia Impressionante a Marcha da Família (3/04/1964), em
que o jornal descreve a intervenção militar como “gloriosa”. Essa devoção à
ação das Forças Militares é ensejada ainda ao relatar a homenagem que os
participantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizaram.
De acordo com a notícia, todos os oradores no evento foram ovacionados
calorosamente, quando citavam as Forças Armadas do Brasil.
Para legitimar a intervenção militar, o texto trabalhou com duas jus-
tificações: 1) defender a democracia e 2) impedir a ação dos inimigos da
democracia – que foram “anulados e imediatamente colocados sob custódia
– ou seja, foram detidos e mantidos presos. Diversos políticos, entre eles o
vice-prefeito de Campo Grande, Nelson Trad, e os vereadores Abel Freire
de Aragão, Roger Buainain e William Macksoud foram presos e tiveram o
mandato cassado. Essa “caça aos comunistas” fez parte da “Operação Lim-
peza” que tinha aparato legal no AI-1.
Com tais justificações para legitimar a intervenção militar, o Correio
do Estado utiliza a estratégia de racionalização, ao construir uma “cadeia de
raciocínio que procura defender, ou justificar um conjunto de relações, ou
instituições sociais e, com isso, persuadir uma audiência de que isso é digno
de apoio” (THOMPSON, 2011, p.82). Deter a “comunização” e salvaguar-
dar a democracia são os principais argumentos utilizados para legitimar o
movimento golpista, as ações das Forças Armadas e as medidas de exceção.

b) Militares querem expurgo total


Com a presença de cerca de 1.200 oficiais das Forças Armadas,
realizou-se dia 3 último, das 18 às 21h30, o encerramento da as-
sembleia do Clube Militar, ato a que não faltou a diretoria do
Clube Naval, tendo à frente o presidente, Comandante Marcos
Dias. Deliberaram os membros da assembleia, por unanimidade,
indicar as providências que deverão ser tomadas de imediato para
que a vitória sobre o comunismo não se torne uma vitória pela
metade e perca totalmente a sua expressão. Assim, acordaram-se
em definir-se, em nome das três Forças Armadas pelos seguintes
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 137
pontos julgados essencial: 1 - cassação imediata de mandato de
deputados, senadores, governadores, prefeitos e vereadores co-
munistas e agitadores ou comprometidos com os desmandos que
deram motivo à rebelião dos democratas [...] (CORREIO DO
ESTADO, 8/04/1964).

Pedido de cassação dos direitos políticos e dos mandatos de senadores,


deputados, governadores, prefeitos e vereadores; aposentadoria para funcioná-
rios civis e reforma imediata dos militares que se tenham revelado comunistas;
realização da operação limpeza dos quadros administrativos, políticos, sindicais
e militares em todo país. Esta é síntese da notícia publicada em 8 de abril,
em sete colunas na quarta página do jornal. Trata-se da assembleia com 1.200
oficiais das três Forças Armadas que deliberam por tais medidas como forma
concretizar a “Revolução” e que “a vitória sobre o comunismo não se torne
uma vitória pela metade e perca totalmente a sua expressão”.
Utilizando-se do modus de legitimação e sua estratégia de racionali-
zação, a narrativa utiliza uma cadeia de raciocínio para legitimar as medidas
adotadas pelo governo. Um dos pressupostos utilizado é de que a vitória
sobre o comunismo só seria inteiramente efetivada através da cassação dos
políticos envolvidos com o comunismo e de “agitadores ou comprometidos
com os desmandos que deram motivo à rebelião dos democratas”. Através
desse argumento o jornal buscar persuadir o leitor de que a medida é digna
de apoio e necessária para a concretização da “Revolução”.
Mais uma vez, a ameaça comunista é utilizada para justificar o mo-
vimento golpista e as medidas ditatoriais que seriam implementadas com a
promulgação do Ato Institucional nº1, em 9 de abril de 1964. O AI-1 fora
editado pelo Comando Supremo da Revolução, representado pelos chefes
das três Armas, que, de acordo com o documento, “respondiam pela re-
alização dos objetivos revolucionários, cujas frustrações estão decididas a
impedir”17.

c) Título: Até chineses ajudavam a preparar o golpe comunista


no Brasil
Com a vitória da Democracia sobre o comunismo em nosso País,
as autoridades vão mostrando ao povo até onde havia chegado a
maquinação vermelha contra as instituições. E revelando, tam-
bém, que o ex-presidente estava de corpo e alma comprometi-
do no processo de comunização, pois o Brasil não tem relações
diplomáticas com a China Comunista, mas o sr. João Goulart
trouxe de lá uma tal de “Missão Comercial”, cujos membros en-
traram logo a trabalhar em favor da revolução vermelha. A mis-
são era chefiada por Wang Yao Ting, representante de Mao Tse
17 Ato Institucional nº1, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64htm>.
Acesso em: 21 abril 2020.

138 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Tung. Subordinando líderes sindicais, governadores, parlamenta-
res, jornalistas e outros traidores, a Missão agia livremente. Wang
Yao Ting certamente pensava que já havia chegado a hora do gol-
pe final da sua missão, já tinha organizado até uma lista de per-
sonalidades brasileiras que seriam fuziladas depois da vitória do
comunismo, figurando em primeiro lugar o Governador Carlos
Lacerda, visando a seguir o General Amaury Kruel (CORREIO
DO ESTADO, 8/04/1964).

A notícia, publicada na terceira página, informa sobre a prisão de


chineses que tramavam instalar o comunismo no Brasil. Ao longo da ma-
téria, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, era apontado como
um dos integrantes do movimento que havia recebido entre 6 e 15 mil
dólares da organização para “revolucionar seu Estado”. De acordo com o
jornal, as autoridades da revolução estavam “mostrando ao povo até onde
havia chegado a maquinação vermelha contra as instituições”. O trecho
selecionado acima faz uso do modus de legitimação e sua estratégia de racio-
nalização, para justificar a prisão da missão comercial chinesa alegando que
seus integrantes eram agentes infiltrados com o objetivo de dar um golpe
comunista. Ou seja, do ponto de vista racional, legal e moral, era inadmis-
sível a presença de estrangeiros que trariam sérias ameaças à democracia e
à liberdade do país.
Ainda nesta unidade, ocorre a fragmentação e a estratégia de expurgo
do outro, ao retratar os chineses como o mau, perigoso e ameaçador, e que
precisa ser detido e eliminado seu projeto comunista. O expurgo da ameaça
externa (os chineses) também é válido para a ameaças internas – líderes sin-
dicais, governadores, parlamentares, jornalistas – definidos como traidores.
Goulart também é uma ameaça a ser expurgada, pois está de “corpo e alma
comprometido no processo de comunização” do Brasil.
O argumento utilizado para justificar o envolvimento do ex-presidente
com o comunismo foi o fato de este haver estabelecido negociações comer-
ciais com a China. No entanto, a “Missão Comercial” referida pelo jornal
foi iniciada no governo de Jânio Quadros, em 1961, quando o ex-presidente
buscava lançar uma política econômica externa que objetivava transformar o
Brasil em potência mundial, visando ampliar os mercados para os produtos
brasileiros, especificamente o da nascente indústria automobilística. Trata-
va-se da Política Externa Independente (PEI). Guedes e Melo (2014, p.25)
explicam que era “uma tentativa de ampliar o comércio do Brasil com todas
as nações – em especial, as socialistas. Premido pela inflação galopante, Jânio
tentava reduzir a enorme dívida criada no governo de Juscelino Kubitschek,
“buscando novos mercados para as commodities brasileiras e para os casos
produzidos pela nascente indústria automobilística”.
Jânio Quadros estabeleceu negociações com a República Popular da
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 139
China e no primeiro semestre de 1961, uma comissão comercial daquele
país, chefiada pelo presidente do Conselho Chinês para o Fomento do Co-
mércio Internacional, Nan-Han Chen, chegou ao Brasil para visitar estados
e manter contato com políticos e empresários de diversos setores. Em 10 de
maio, a comissão se reuniu com Jânio no Palácio do Planalto e, em agosto,
uma comissão de empresários e políticos brasileiros, chefiada pela então
vice-presidente João Goulart, foi à China.
De acordo com Guedes e Melo (2014), a viagem de Goulart à China
estava incluída na estratégia de renúncia de Jânio Quadros à Presidência
da República. É fato que a sua viagem ao Oriente contribuiu para trans-
formar Goulart, “na avaliação dos militares e dos anticomunistas como o
governador da Guanabara, Carlos Lacerda, no líder que iria implantar o
comunismo no Brasil”. Decorre dessa linha de raciocínio a afirmação de
que o “ex-presidente estava de corpo e alma comprometido no processo
de comunização” e de que este havia trazido da China, país com o qual
o Brasil não tinha “relações diplomáticas”, “uma tal “Missão Comercial”,
cujos membros entraram logo a trabalhar em favor da revolução vermelha”.
Para o jornal, Wang Yao Ting, chefe da missão, representava Mao
Tse Tung e o grupo estava subornando líderes sindicais, governadores e
parlamentares para implementar a “revolução vermelha”. Yao Ting, vice-
-diretor da Companhia Nacional Chinesa para Exportação e Importação
de Têxteis (China Tex), negociava com empresários brasileiros desde 1961,
mas veio ao Brasil somente em 1964, como chefe da Missão Comercial,
acompanhado de Ma Waozeng e Song Guibao, com o objetivo de comprar
algodão. Foi preso juntamente com mais outros oito chineses acusados de
subversão.18
Os nove chineses foram presos em 3 de abril de 1964 pelos agen-
tes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) da Guanabara e
entregues aos “capangas do secretário de Segurança da Guanabara, coro-
nel-aviador Gustavo Borges, homem vinculado à chamada “linha-dura” do
regime ditatorial recém-instaurado” (GUEDES; MELO, 2014, p. 21). De
acordo com os autores (2014, p.25), os chineses foram identificados pelo
Dops “como perigosos agentes internacionais a serviço da República Popu-
lar da China, para disseminar a revolução comunista no Brasil, ao lado das
principais lideranças do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)”.
Essas prisões protagonizaram o primeiro escândalo internacional do
governo ditatorial e foram usadas, de acordo com Guedes e Melo (2014),
como exemplo para justificar o Ato Institucional nº 1, “a base legal usada
pelo regime para cassar e prender – e, em muitos casos, torturar – milhares
18 Os chineses presos foram: Wang Weizhen e Ju Qingdong (jornalistas da agência de notícias de
Xinhua), que chegaram ao Brasil em dezembro de 1961; Su Zipinh, Hou Fazeng, Wang Zhi e
Zhang Baosheng (expositores comerciais), segundo grupo que desembarcou no Rio de Janeiro, em
1963, para montar uma exposição comercial de produtos da China.

140 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


de brasileiros”. Para o jornal, foram usadas como forma de persuadir o leitor
sobre a importância do “movimento revolucionário”, e que este fora feito
para conter o “ameaça comunista”.

A título de considerações finais

Desde os primeiros dias de 1964, o Correio do Estado esteve alinha-


do à ideologia dominante da época que buscou deslegitimar o governo de
João Goulart e enfatizar a necessidade de intervenção militar. O noticiário
buscou legitimar o golpe midiático-civil-militar mobilizando um suposto
sistema de ideias e valores, como o de revigoramento da ordem, do progres-
so, e da salvaguarda da democracia. Para isso, deslegitimar o governo de
João Goulart, em várias frentes (pessoal, econômico e político), tornou-se
essencial.
O fantasma do comunismo foi uma arma importante nesse sentido,
sendo usado para propalar a existência de um caos administrativo e como
ameaça à democracia e às instituições. De acordo com o jornal, os comunis-
tas pretendiam dar um golpe no Brasil e instalar uma república sindicalista.
O jornal agitou a bandeira do “perigo vermelho” como uma ameaça
capaz de assustar a população e gerar um clima favorável à intervenção mi-
litar. Para isso, fez uso de uma cadeia de raciocínio que buscou apresentar
o presidente João Goulart como incompetente na administração do país e
envolvido com “elementos de esquerda”.
Ao trabalhar na linha de deslegitimação do governo de João Goulart,
o jornal fez uso, em diversos momentos, dos modos de operação de frag-
mentação e sua estratégia de expurgo do outro, para expor o envolvimento
do ex-presidente na “guerra revolucionária” e sua incapacidade de admi-
nistrar o país. Concomitantemente, cria uma narrativa da necessidade da
intervenção militar para salvaguarda da democracia e das instituições.
O governo de exceção e as medidas autoritárias adotadas posterior-
mente foram justificados pelo jornal como forma de restabelecer a ordem e
impedir a atuação dos “inimigos da democracia”. Nesse segundo momento,
o uso dos valores democráticos, do patriotismo, de preservação da moral
e direitos de propriedade, etc., são utilizados para unificar a população e
construir consenso favorável ao governo ditatorial.
A partir de dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional nº
5, a ditadura militar deu início à sua fase mais violenta, com cassações de
mandatos e de direitos políticos, prisões, perseguições, assassinatos e exílios,
além do fechamento do Congresso Nacional e extinção de partidos políti-
cos. Expressiva parcela da grande imprensa passa então a fazer oposição ao
regime e é censurada. Carlos Lacerda, com a sua Tribuna da Imprensa, foi
o primeiro a contestar o regime já a partir de 1966.
Smith (2000) relaciona sete publicações que fizeram oposição e que
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 141
mais sofreram censura prévia: Pasquim (censurado entre novembro de 1970
a 1975); O Estado de S. Paulo (setembro de 1972 a janeiro de 1975); O São
Paulo (junho de 1973 a junho de 1978); Opinião (janeiro de 1973 a abril
de 1977); Veja (1974 a junho de 1976); Movimento (abril de 1975 a junho
de 1978); Tribuna da Imprensa (censurada ocasionalmente entre 1968 e
1978).
Na contramão da nova postura da grande mídia nacional, o Correio
do Estado pouco alterou seu discurso iniciado em 1964. Em 1969, fez uso
de uma série de argumentos com a pretensão de legitimar o governo ditato-
rial e suas ações repressivas. O combate à subversão, à corrupção e a defesa
dos princípios democráticos foram os pressupostos centrais dessa narrativa,
que fez uso do sistema de ideias e valores sobre a democracia criados pelo
grupo de poder.
Os modos de operação da ideologia mais presentes na cobertura
foram os de legitimação e fragmentação, utilizados para reforçar uma
narrativa iniciada em 1964, que visou legitimar o governo de exceção e
expurgar qualquer indivíduo ou ideia que divergia da ditadura. À guisa
de exemplo, a notícia “Revolução em Marcha”, que informa sobre as me-
didas tomadas para a preservação dos “princípios defendidos pela Revo-
lução”, utiliza uma cadeia de raciocínio a fim de persuadir o leitor da
legitimidade da medida.
O apelo ao patriotismo, à defesa da família, à propriedade privada e
manutenção da ordem também foram argumentos utilizados para unificar
a população e ensejar apoio. Da mesma forma, a ideologia progressista da
elite do sul de Mato Grosso foi usada para ressaltar aspectos positivos do
governo e difundir o conceito de desenvolvimento econômico e segurança
interna.

Referências

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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na
era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 143


Conflitos entre indígenas e ruralistas nos editoriais de
jornais sul-mato-grossenses: enquadramentos a partir
da ideologia da cultura1
Maurício de Melo RAPOSO2
Marcos Paulo da SILVA3

Introdução

Os conflitos entre fazendeiros e indígenas arrastam-se há décadas em


Mato Grosso do Sul. Entre os anos de 1985 e 2014 foram registrados 947
homicídios de indígenas no Brasil, sendo 420 destas ocorrências no Estado.
Pelo menos um em cada dois casos de assassinatos de indígenas registrados
no país entre 2003 e 2014 aconteceu no território sul-mato-grossense, indi-
cando que a região concentrou no período 54,8% das mortes de indígenas
brasileiros (CIMI, 2016). No dia 29 de agosto de 2015, mais um caso signifi-
cativo engrossou as estatísticas: foi assassinado Semião Fernandes Vilhalva,
de 24 anos, membro das etnias Guarani e Kaiowa, no município de Antônio
João, localizado a 283 quilômetros ao sul da capital Campo Grande. A mor-
te ocorreu após os produtores rurais da região se reunirem na sede do sindi-
cato rural e decidirem retomar, utilizando-se de seus próprios meios, uma
fazenda ocupada pelos indígenas, acarretando-se uma situação de conflito
representativa para os parâmetros regionais – o que foi expressado por meio
de “narrações jornalísticas” (SODRÉ, 2009).
O episódio relatado pode ser tratado como um “acontecimento” no
sentido sociológico do conceito. Segundo Souza Martins (2010), o aconte-
cimento é “um adensamento problemático” de contradições socioculturais
e históricas. Constitui, ainda, um “ponto de reparo metodológico” a partir
do qual o pesquisador arguto pode compreender a dinâmica da sociedade.
Ademais, se os assassinatos podem ser entendidos como acontecimentos
1 Capítulo baseado na dissertação Enquadramento jornalístico dos conflitos entre indígenas e pro-
dutores rurais em Mato Grosso do Sul: discursos identitários como quadros de referência primários. A
banca foi realizada no dia 19 de abril de 2018 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCom/UFMS). A banca foi composta pelo
orientador Prof. Dr. Marcos Paulo da Silva (UFMS), Prof. Dr. Levi Marques Pereira (UFGD) e
Profa. Dra. Marcia Gomes Marques (UFMS).
2 Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PU-
C-MG). Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Cientista Social graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: maura-
poso@hotmail.com.
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Pau-
lo (UMESP), com estágio de doutorado sanduíche pela Syracuse University (Nova Iorque, Estados
Unidos). E-mail: marcos.paulo@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 145


na acepção sociológica, do ponto de vista comunicacional trata-se também
– no caso em crivo – de um episódio de “acontecimento jornalístico” (GO-
MES, 2009; SODRÉ, 2009) que tomou as páginas dos veículos midiáticos.
No plano contextual, os conflitos entre produtores rurais e etnias in-
dígenas no Estado de Mato Grosso do Sul gerou nas últimas décadas uma
série de repercussões sociais, políticas e jurídicas. Diversos grupos têm se
mobilizado em torno da definição e da compreensão da natureza, das cau-
sas e dos sujeitos envolvidos, assim como da proposição de soluções para a
contenda4. Tal disputa de posições também se revela um conflito simbóli-
co pela conquista de legitimidade social. Parte dessas manifestações se dá
nos meios de comunicação não apenas por intermédio das notícias, mas
ainda a partir da “opinião publicada” por meio de editoriais que explici-
tam as opiniões dos veículos. Nesse cenário, este estudo investiga a relação
entre elementos culturais e ideológicos e o conteúdo opinativo veiculado
em dois dos principais jornais impressos de Mato Grosso do Sul: o Cor-
reio do Estado5, que, no período referente ao recorte empírico da pesquisa,
apresentara um enfático tratamento jornalístico voltado aos conflitos entre
4 No campo político, duas CPIs (Comissões Parlamentar de Inquérito) na Assembleia Legislativa
do Estado de Mato Grosso do Sul refletiram em 2016 a disputa de posições: uma sobre o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), entidade ligada à Igreja Católica, e outra sobre o Genocídio Indí-
gena. Em âmbito nacional, a CPI da Funai-Incra, dominada por parlamentares da bancada ruralis-
ta, gerou relatório de 3385 páginas, apresentado em junho de 2017, onde se sugere o indiciamento
de diretores de entidades que defendem a causa indígena, de antropólogos e de integrantes do
Ministério Público Federal, além de pessoas que são denominadas de “falsos indígenas”. No campo
jurídico, tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 71 que permite a indenização de
possuidores de títulos relativos a terras declaradas como indígenas expedidos até o dia 5 de outubro
de 1988. Além disso, até o final de 2018 tramitava a PEC 215, que transferiria ao Congresso o poder
das demarcações de terra que era da Fundação Nacional do Índio (Funai). Todavia, a primeira
medida provisória (MP 870/19) editada pelo governo de Jair Bolsonaro após assumir o Governo
Federal em 1 de janeiro de 2019 passou para o Ministério da Agricultura a atribuição de identificar,
delimitar e demarcar terras indígenas e quilombolas.
5 O jornal Correio do Estado foi fundado em fevereiro de 1954 com o intuito político de defender
e eleger para governador de Mato Grosso o candidato Fernando Corrêa da Costa (UDN), seu fun-
dador inicial, que se contrapunha politicamente a Filinto Müller, do PSD. O veículo nasceu, por
conseguinte, com forte orientação política vinculado à União Democrática Nacional, agremiação
de ênfase conservadora. Mesmo com a mudança de propriedade do jornal, que posteriormente
passou a ser administrado por José Barbosa Rodrigues, a pauta política nunca saiu do horizonte do
periódico. No âmbito nacional, por exemplo, o veículo foi favorável à presença dos militares no
poder após abril de 1964, acontecimento noticiado como “A revolução moralizadora que salvou
esse país”. Anos mais tarde, o Correio do Estado militou em favor da divisão de Mato Grosso e a
criação de Mato Grosso do Sul (DAL MORO, 2012, p. 23-24). Ativo desde sua fundação, o jornal
é um dos três mais antigos ainda em circulação em Mato Grosso do Sul. Pertencente atualmente
ao empresário Antonio João Hugo Rodrigues, com ativa atuação política no Estado (foi candidato
a Deputado Estadual pelo Partido Trabalhista Cristão, em 2018, e a senador pelo Partido da Social
Democrata, em 2014), o jornal integra o grupo Correio do Estado de Comunicação, do qual fazem
também parte a TV Campo Grande (atualmente denominada SBT-MS, como afiliada ao Sistema
Brasileiro de Televisão), a rádio FM Mega 94, o site de notícias Correio do Estado e a Fundação
Barbosa Rodrigues. O jornal impresso é estruturado em editorias fixas, como Política, Economia,
Cidades, Esportes, Brasil, Mundo e Correio B, e editorias esporádicas, que aparecem somente em
algumas edições. De acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC), o veículo tem tira-
gem média de 12 mil exemplares e atinge todas as regiões do Estado.

146 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


etnias indígenas e produtores rurais; e O Progresso6, jornal com publicação
em Dourados, região dos principais conflitos entre indígenas e ruralistas
no Estado. O ponto nevrálgico da pesquisa ancora-se na hipótese de fundo
de que o conteúdo opinativo veiculado nos editoriais dos periódicos aciona
referenciais simbólicos e culturais afeitos à “ideologia da cultura sul-mato-
-grossense” (BANDUCCI JR., 2009), concepção forjada historicamente em
manifestações que remetem desde a década de 1930, dezenas de anos antes
do processo oficial de desmembramento e criação do Estado.

Metodologia

Propõe-se na pesquisa investigar manifestações que definem o en-


quadramento das representações, dos valores, das ambiguidades, das contra-
dições e das tendências, assim como dos personagens presentes na narrativa
de natureza opinativa, a respeito do que se convencionou a chamar no meio
jornalístico de “conflitos indígenas”. Em função do tipo de investigação,
opta-se pela técnica de amostragem entendida como a seleção de dados de
dimensão e de composição representativa de acordo com o objeto da pes-
quisa – a “amostragem sistemática não-probabilística de representatividade
social” (LOPES, 2005), que culmina na seleção de conteúdo jornalístico
durante os meses de agosto, setembro e outubro de 2015 a partir do tema
supramencionado.
Adota-se como ponto central de observação das publicações o cita-
do caso do assassinato do indígena Semião Fernandes Vilhalva, dos povos
Guarani e Kaiowa, em Antônio João (MS), no dia 29 de agosto de 2015.
Do ponto de vista metodológico, o evento é a objetivação de um ponto de
reparo em que se manifesta a culminância das contradições sociais que se
revelam enquanto problema comunicacional, uma vez que enseja a pro-
dução de uma variedade de expressões midiáticas: notícias, editoriais, co-
mentários, charges e artigos de opinião. Do ponto de reparo, procedeu-se
a leitura retrospectiva dos exemplares publicados de modo a identificar o
6 A primeira edição de O Progresso publicada em Dourados data de 21 de abril de 1951. Anterior-
mente, a produção do jornal teve como sede o município de Ponta Porã, distante 120 quilômetros.
A refundação douradense do jornal foi empreendida pelo advogado Weimar Gonçalves Torres,
filho do advogado paraibano José dos Passos Rangel Torres, então fundador da primeira versão do
periódico na fronteira entre Brasil e Paraguai. Advogado e dono do jornal, Weimar não tardou a
ingressar na política, sendo eleito vereador em 1950 pelo Partido Social Democrático (PSD), no
qual se filiara em 1945. Em 1966, elegeu-se deputado federal por Mato Grosso; antes, já havia sido
eleito deputado estadual (ROCHA, 2020). Em sua tese de doutorado, Rocha (2020, p. 90) destaca,
por intermédio de revisão bibliográfica, a vinculação do jornal O Progresso com questões políticas
locais e regionais, tornando-se instrumento político do fundador Weimar Torres. Além disso, o pe-
riódico também pode ser interpretado como um legitimador simbólico das mudanças ocorridas na
região de Dourados na segunda metade do século XX, em especial a expansão da fronteira agrícola
e a instituição do modelo do agronegócio. Veículo impresso de mais longa história em Mato Gros-
so do Sul, O Progresso deixou veicular neste formato no dia 27 de setembro de 2019 após 13.595
edições, passando a existir apenas na versão digital (ROCHA, 2020).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 147


início da cobertura jornalística da série de eventos que levou ao desfecho
trágico do dia 29 de agosto de 2015. Em seguida, foram acompanhadas as
publicações realizadas após o ponto central até quando os fatos e eventos
correlacionados deixaram de figurar nos jornais analisados.
No período selecionado pela pesquisa, durante os meses de agosto,
setembro e outubro de 2015, circularam 57 exemplares do jornal O Progres-
so e 76 do Correio do Estado. Dos 57 exemplares de O Progresso, 41 con-
têm itens informativos e 9 contêm itens opinativos cuja temática refere-se
a indígenas ou conflitos entre indígenas e proprietários rurais. Isso significa
que 72% dos exemplares publicados contêm itens informativos e 16% con-
têm itens opinativos pertinentes. Ou seja, para cada exemplar com item
opinativo, mais de 4 exemplares com itens informativos foram publicados.
No tocante ao Correio do Estado, dos 76 exemplares que circularam no pe-
ríodo, 35 contêm itens informativos, ou 47%, e 20 contêm itens opinativos,
ou 27%, de relevância para a pesquisa. Isso significa que, aproximadamente,
para cada dois exemplares que vincularam itens informativos um vincu-
lou item opinativo. Para efeitos deste capítulo, todavia, o corpus de análise
qualitativa é composto por 8 editoriais identificados no período em crivo;
a saber: 5 editoriais publicados no Correio do Estado e 3 publicados no O
Progresso. Como critério de identificação e seleção do material da pesqui-
sa, embora se reconheça a artificialidade epistêmica da divisão entre infor-
mação e opinião (CHAPARRO, 2008), adota-se para fins metodológicos a
classificação de gêneros e de formatos jornalísticos elaborada por Marques
de Melo e Assis (2010).
De outra parte, a abordagem metodológica ampara-se na concep-
ção de enquadramento jornalístico – ou framing –, conforme as aborda-
gens de Enteman (1991, 1993), Gitlin (2003) e Kuypers (2009) a partir
do conceito original de Goffman (2012). De acordo com Entman (1993),
o enquadramento jornalístico acontece em pelo menos quatro locais no
processo de comunicação: no comunicador, no texto, no receptor e na cul-
tura. Centra-se aqui nos aspectos do texto, nas ausências e nas presenças
de palavras-chave, frases, imagens estereotipadas e fontes de informação,
em sua relação com a cultura, enquanto instância na qual se encontra o
estoque de quadros primários acionados (GOFFMAN, 2012; CARVALHO,
2009). Entende-se que os referentes primários têm sua origem, significação
e ressignificação em articulações simbólicas que disputam os sentidos do
mundo e são expressões das diferenças e das desigualdades da realidade so-
ciocultural: tal como a questão da “ideologia da cultura sul-mato-grossense”
abordada neste estudo.
Operacionalmente, busca-se nas publicações que compõem o recor-
te empírico a atenção nos elementos-chave da construção dos argumentos,
isto é: a) definição do problema; b) diagnóstico de causas; c) julgamen-
tos morais; d) proposições de soluções (ENTMAN, 1991). A abordagem
148 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
se aproxima, portanto, da percepção de Kuypers (2009, p. 182, tradução
nossa), segundo a qual “a análise de enquadramento pode ser usada para
melhor entender os artifícios retóricos” da construção midiática. Parte-se,
então, para o desvelamento da hipótese que ancora a análise.

A ideologia da cultura sul-mato-grossense

No dia 11 de outubro de 1977, o então Presidente da República, ge-


neral Ernesto Geisel, assinou o decreto que criava o estado de Mato Grosso
do Sul. Antes de significar a apoteose da trajetória dos desejos dos habitantes
da porção meridional do grande estado de Mato Grosso, a secessão foi conse-
quência do pragmatismo político exógeno, mais uma estratégia que visava à
manutenção dos militares no poder central em Brasília (AMARILHA, 2006,
p. 176). Até 1979, os elementos tangíveis de definição do novo Estado da fe-
deração estavam colocados: território, sede administrativa, poderes legislativo,
judiciário e executivo. No entanto, os elementos simbólicos em torno dos
quais a população pudesse se identificar ainda estavam por se definir. Criar
um hino, um brasão e uma bandeira eram tarefas relativamente mais simples,
mas ainda faltava algo essencial: uma identidade histórico-cultural que singu-
larizasse o Mato Grosso do Sul entre os demais estados da federação.
Entraram em cena, assim, os homens de letras. Na consolidação da
nova unidade federativa, ensejou-se o projeto de sistematizar, de selecionar
e de divulgar uma história própria de Mato Grosso do Sul. Nesse cenário, os
membros da Academia de Letras e História de Campo Grande (ALH-CG,
fundada em 1972), investidos de seus poderes simbólicos, fundaram, em
1978, o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHG-MS)
e a Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), entidades coirmãs.
Uma série de esforços foi empenhada nessas agremiações na construção de
“uma história que contemple e contenha o estado de Mato Grosso do Sul
como um todo” (AMARILHA, 2006, p. 177) e de uma identidade sul-mato-
-grossense que justificasse a existência de um “ser do sul”, suficientemente
diferente dos povos do “norte”. Todo esse trabalho, de acordo com Banduc-
ci Jr. (2009, p. 107-108):

Visava ao mesmo tempo encontrar referências genuínas e cons-


truir um núcleo de significados que desse consistência simbólica
ao novo contexto cultural que, se a partir daquele momento come-
çava a ganhar forma, mantinha-se vinculado ao antigo conteúdo.

Sob a ótica da antropologia cultural, Banducci Jr. (2009) defende


que a construção simbólica que se seguiu à secessão de Mato Grosso erigiu-
-se sobre uma revisão ou seleção histórica de elementos singularizantes da
trajetória da porção meridional do grande estado mato-grossense. Soma-se
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 149
a isso um novo discurso identitário, construído nos anos que se seguiram à
criação de Mato Grosso do Sul, ligados à temática ambiental, de revaloriza-
ção do Pantanal e dos personagens pantaneiros. Amarilla (2006) e Queiroz
(2006), por sua vez, seguem pormenorizadamente a trilha do que Banduc-
ci Jr. (2009) denomina de “antigo conteúdo” da elaboração identitária do
sul-mato-grossense. Tratam-se de formulações sistemáticas de intelectuais,
ligados ou oriundos da elite política e econômica do sul do antigo Mato
Grosso, principalmente da chamada “geração de 1930”.
Para os efeitos deste estudo, não se pretende problematizar a discus-
são sobre a identidade sul-mato-grossense em si7, mas servir-se de seu esco-
po para a reflexão posterior sobre a relação das opiniões publicadas em dois
dos principais jornais regionais e suas ligações hipotéticas com tais discursos
identitários, estabelecendo os enquadramentos sobre os conflitos entre in-
dígenas e produtores rurais. Para tanto, partilha-se com Banducci Jr (2009,
p. 108) o pressuposto de que “a construção da identidade de um povo é um
processo não apenas dinâmico e segmentado, mas contraditório e ideológi-
co, na medida em que se constitui num esforço por justificar, racionalizar e
legitimar diferenças internas”.
O denominado “antigo conteúdo” é bem exemplificado nas constru-
ções dos grupos divisionistas da década de 1930. Somente naquele período
emergiu-se um pensamento sistemático e militante que defendia claramen-
te a divisão de Mato Grosso (BITTAR, 2009). As primeiras sistematizações
sobre uma identidade sul-mato-grossense se estabeleceram em oposição ao
discurso dos intelectuais cuiabanos que projetaram, nas duas primeiras dé-
cadas do século XX, uma reelaboração positiva das representações do povo
mato-grossense. Segundo Queiroz (2006), pode-se dividir os elementos his-
tóricos da constituição do discurso identitário em dois blocos de representa-
ções: o primeiro, formado por uma redistribuição interna dos estigmas atri-
buídos ao povo de Mato Grosso, o que significa atribuir aos povos do centro
e do norte do Estado as velhas representações negativas; e o segundo, que se
constitui de apropriações e de transformações da identidade mato-grossense
formulada, principalmente, no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso, a partir de 1919. Com essas operações de deslocamento
e de ressignificação retórica, as formulações engendradas pelos intelectuais
do sul do Estado estabeleceram uma identidade de contraste que almejava
demarcar limites entre o “nós” e o “eles”, aqui significando, respectivamen-
te, os mato-grossenses do sul e os mato-grossenses do centro e do norte.
A partir da ascensão econômica do sul de Mato Grosso surgiram as
reivindicações separatistas mais contundentes das elites locais. Com o fim
7 Não há neste trabalho a intenção precípua fazer uma abordagem específica das construções
identitárias, oferecendo um contraponto discursivo e crítico, mas, tão somente, apresentá-las como
hipotéticos marcos de referência primários que alimentam as construções midiáticas, observando
os passos teórico-metodológicos adotados.

150 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


da Guerra do Paraguai, em 1870, três aspectos relevantes passaram a expli-
car o empoderamento da porção sul. Primeiramente, Corumbá – à margem
do rio Paraguai na fronteira com a Bolívia – passou a receber embarcações
que faziam a ligação até a foz do rio da Prata, o que alavancava o comércio
local, principalmente com a consolidação da indústria da erva mate. Como
segundo aspecto, tem-se o grande influxo migratório de população oriunda
de São Paulo, de Minas Gerias, do Paraná e do Rio Grande do Sul, além da
chegada de estrangeiros, cujo maior contingente era de origem paraguaia.
Por fim, há a finalização da construção da ferrovia ligando o interior de São
Paulo ao rio Paraguai, mais especificamente, Bauru (SP) a Porto Esperança
(MS), posteriormente conhecida como ferrovia Noroeste do Brasil (NOB),
em 1914, o que proporcionou a ligação de Corumbá com os grandes cen-
tros do país e, por outro lado, ensejou o crescimento da importância de
Campo Grande, que posteriormente superaria cidade fronteiriça como cen-
tro mais dinâmico da economia do sul de Mato Grosso, transformando-se
na principal rival de Cuiabá na condução dos rumos do Estado.
Os três aspectos históricos assinalados aumentaram a desigualdade
econômica da porção meridional em relação às terras setentrionais do es-
tado de Mato Grosso e forneceram, por conseguinte, os elementos desen-
cadeadores de divergências políticas entre as elites sediadas em Cuiabá,
capital do Estado, e as novas elites sulinas. O resultado da exploração dos
componentes-chave da identidade é o que se verifica como primeiro bloco
de representações herdadas da intelectualidade cuiabana e ressignificadas
pelos representantes do sul de Mato Grosso. Durante as décadas de 1920 e
1930 passou a ser gestada a chamada geração de 1930 (BITTAR, 2009), que
apresentou as primeiras sistematizações das reivindicações de secessão de
Mato Grosso nos documentos produzidos pela “Liga Sul-mato-grossense”,
fundada por jovens que estudavam no Rio de Janeiro, filhos das elites do sul
do Estado. Três documentos principais foram lançados: um Manifesto aos
habitantes do sul de Mato Grosso, de outubro de 1933; um Manifesto da
mocidade do sul de Mato Grosso ao Chefe do governo provisório, de janeiro
de 1934; e uma Representação dos sulistas ao Congresso Nacional Consti-
tuinte, de março de 1934. Por fim, lançou-se outro documento em resposta
a críticas atribuídas ao então general Rondon, A divisão do estado: resposta
ao General Rondon, também de março de 1934, que apresentava o mesmo
teor dos anteriores.
Erigiram-se, assim, os alicerces de uma identidade contrastiva pela
qual se buscava saber “o que se é” a partir da negação daquilo que pertence
ao outro. Concernente ao primeiro bloco, o que se revela é uma verdadei-
ra campanha iconoclasta contra tudo que se referia à Cuiabá e aos povos
do norte e centro do estado. A pecha de “atrasado” e “decadente” torna-se
atributo dos “nortistas”. Desde as técnicas de criação de gado até a falta
de ímpeto industrial, passando pela desqualificação da cidade de Cuiabá,
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 151
constituem-se os elementos inferiorizantes atribuídos ao norte em relação
ao sul. Chega-se a “ridicularizar” Rondon, por este acreditar que, segundo
os separatistas:

Amar verdadeiramente o Estado é considerar Cuiabá a melhor


cidade do mundo, o rio Cuiabá um paraíso, embasbacar-se na
grandiosidade das florestas nortistas, deliciar-se com danças ino-
centes de Nhambiquaras e caçadas valentes de Bororós, gozar
histórias de montanhas de ouro e diamantes. (A DIVISÃO DE
MATO GROSSO…,1934, apud QUEIROZ, 2006, p. 162).

Deste trecho, destaca-se a referência depreciadora às matrizes e prá-
ticas culturais indígenas, marcando, de forma enfática, a dicotomia entre
uma suposta cultura nativa inferior e, como ficará claro mais adiante, a
cultura sobreposta modernizante e civilizada. A um só tempo estabelecem,
portanto, uma alteridade em que o elemento indígena define o que o “nós”,
os sul-mato-grossenses, não se constitui. Por outro lado, também tenta-se
desvincular a “civilização sulista” de qualquer influência de Cuiabá e enfa-
tizar a presença de um contingente populacional oriundo de outros estados
da federação. O sul teria sido ocupado por grupos populacionais vindos de
Minas Gerais, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, além de imigrantes
estrangeiros, sejam paraguaios ou de outros continentes. A essa origem são
atribuídas diferenças marcantes, como a disposição para o trabalho e a asso-
ciação atávica à modernização.
Após estabelecer um contraste com os povos do centro e do norte de
Mato Grosso a partir da negação do que “eles” representam, no segundo
bloco são explicitadas as características constitutivas dos “povos do sul”. Po-
de-se perceber que “é desde logo notável a negação do papel do indígena
na formação histórica da região” (QUEIROZ, 2006, p. 163). De fato, além
de não aparecer explicitamente no discurso da “geração de 1930”, os povos
nativos da região são deliberadamente excluídos do imaginário histórico:
nos documentos da década de 1930 o que se lê é que “os atuais descen-
dentes dos primeiros invasores ocuparam terras virgens, que os espanhóis
abandonaram ante a batida paulista, dois séculos antes” (QUEIROZ, 2006,
p. 163). Além disso, há a afirmação de que os migrantes mineiros fundaram
a cidade de Santana do Paranaíba “no deserto”.
Se as terras estavam vazias, a consequência lógica esperada é a va-
lorização do “pioneirismo”. O espírito pioneiro e protetor das fronteiras
nacionais é ressignificado como elemento constitutivo dos povos do sul. O
pioneiro é valorizado como aquele que encontrou um deserto vasto nas ter-
ras sulistas e as transformou numa opulenta manifestação de modernidade,
de civilização e de desenvolvimento. A estes atribuem, inclusive, o modo
de se fazer política pelas armas como um “dever cívico”. Nesse sentido, ao
152 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
pioneirismo junta-se a política por meio das armas como critérios de mando
nos argumentos dos divisionistas da década de 1930.
Afinados, portanto, às ideias modernistas que pululavam entre inte-
lectualidade brasileira (SCHWARCZ, 1993; ORTIZ, 1988), passam a pro-
nunciar-se, não raro em viés racista; “chega-se mesmo a mencionar com or-
gulho a eugênica mocidade do sul” (QUEIROZ, 2006, p. 165). Além disso,

No tocante a essa apropriação de elementos da identidade já


construída, o que mais se destaca são os esforços dos sulistas no
sentido de rechaçarem qualquer pecha de barbárie e se afirma-
rem a si próprios como civilizados, modernos e economicamente
desenvolvidos (QUEIROZ, 2006, p. 164, grifos do original).

Isso fica claro no jogo de oposições em que colocam o sul como dinâ-
mico e civilizado e o centro/norte como estatista e decadente. São, portanto,
destes documentos elaborados pela “Liga Sul-Mato-Grossense” que se depre-
ende o núcleo histórico das representações que os homens de letras de Mato
Grosso do Sul trarão à tona na conformação da identidade sul-mato-grossense
após a criação do Estado. Como consequência, as visões de um indígena
como reminiscência anacrônica e avessa à civilização se espraia nos discursos,
encontrando pontes com a retórica contemporânea. Ademais, os nativos, his-
toricamente, são vistos como inimigos do “homem sul-mato-grossense” que,
em verdade, estiveram “sujeitos aos constantes assédios dos índios e aos ata-
ques de bandoleiros” – um dos cernes do que Banducci Jr. (2009) caracteriza
como a “ideologia da cultura sul-mato-grossense”.
Por outro lado, os indígenas são erguidos como símbolos do povo de
Mato Grosso do Sul8. Pode parecer uma contradição, mas, em uma análise
mais detida, percebe-se que o indígena é retomado de forma idealizada e
relegada a um passado idílico, inexistindo como cidadão – isto é, destituído
de seus direitos de cidadania – na contemporaneidade (BANDUCCI JR.,
2009). Recupera-se, nesse contexto, a hipótese de que os conteúdos opi-
nativos dos editoriais veiculados na imprensa sul-mato-grossense, em espe-
cial em dois de seus principais periódicos, Correio do Estado e O Progresso,
acionam como quadro de referência primário os referenciais simbólicos e
culturais afeitos à “ideologia da cultura sul-mato-grossense” (BANDUCCI
JR., 2009) quando em pauta estão os chamados “conflitos indígenas”.

Os editoriais do Correio do Estado

Os editoriais publicados no Correio do Estado no período que com-


põe o recorte empírico desta investigação acompanham o decorrer da co-
8 O principal parque do Estado e ponto turístico de Campo Grande, fundado em 1993, por exem-
plo, é denominado “Parque das Nações Indígenas” e exibe uma imponente estátua de um guerreiro
Guaicuru.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 153


bertura dos fatos apresentados nos itens informativos – ou seja, nas notícias
e nos relatos factuais do conflito eclodido no final de agosto de 2015 na
porção sul de Mato Grosso do Sul. No início, logo no dia 28 de agosto, vés-
pera do assassinato do indígena Semião Vilhalva, identifica-se um editorial
– Sem luz no fim do túnel – cuja intenção principal é prevenir sobre uma
possível consequência catastrófica. O título evidencia um tom fatalista e
alarmante, sugerindo que não se vislumbra solução para o conflito entre fa-
zendeiros e indígenas. Nesse primeiro momento, salienta-se que o posicio-
namento editorial assume as vozes dos proprietários rurais explicitamente
como fonte veraz de informações, suficiente para a caracterização dos fatos.

No conflito mais recente, que teve início no último fim de semana,


no município de Antônio João, distante 282 quilômetros da capi-
tal, na fronteira com o Paraguai, cinco fazendas foram invadidas
por índios da etnia guarani kaiowa. Ao todo, segundo os proprie-
tários, são aproximadamente 10 mil hectares de áreas ocupadas e
reivindicadas (CORREIO DO ESTADO, p.2, 28 ago. 2015).

Mais à frente, a voz dos produtores rurais é novamente evocada na


caracterização e julgamento moral (c) de personagens envolvidos.

“Terceiros interessados” no conflito, como é o caso, por exemplo,


do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à igreja
católica, em vez de apagar o incêndio que já dura décadas, jogam
ainda mais gasolina nas chamas. Os produtores rurais de Antô-
nio João, conforme informação publicada na edição de ontem
do Correio do Estado, são categóricos em afirmar que o grupo
católico atua diretamente nas invasões, criando condições para
que elas ocorram. Logo a igreja, que em outros séculos chegou
a ser lembrada justamente pela exploração de povos indígenas.
(CORREIO DO ESTADO, p. 2, 28 ago. 2015).

Em nenhum momento, outra voz, senão a dos produtores rurais,


é acionada a fim de oferecer um contraditório ou relativizar as posições.
Logo, portanto, nesse primeiro texto observa-se a política editorial do ve-
ículo refletindo a política de opinião dos produtores rurais, sistematizada,
principalmente, por entidades que os representam, a exemplo da Federação
da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (FAMASUL).
Sobre o primeiro editorial, pode-se ainda afirmar que se destaca por
introduzir os personagens e as funções de enquadramento que persistirão
e se confirmarão nos demais textos. Os indígenas, os proprietários rurais,
o Governo Federal e “terceiros interessados” (CIMI, Igreja Católica) são
os personagens integrantes da narrativa. Os termos que os (des)qualificam
são, respectivamente, “invasores”, “invadidos”, “incompetente e ausente”
154 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
e “jogam gasolina na chama” (incentivadores de invasão). O problema (a)
apresentado no texto são os conflitos entre fazendeiros e indígenas, cau-
sados (b) pelas invasões de terra executadas pelos indígenas e fomentadas
pelos “terceiros interessados”. Outro problema (a) é a não intervenção do
Governo Federal no conflito, que seria responsável pelo tom fatalista e de-
sesperançoso do título do editorial.
Nos três editoriais seguintes, do dia 30 de agosto, 04 e 20 de setembro
de 2015, a intenção é reforçar o entendimento de que o Governo Federal
é o grande responsável pelos conflitos: “A ausência sentida nesse conflito
é justamente de quem mais poderia agir para que ele cessasse: o Governo
Federal” (CORREIO DO ESTADO, 30 ago. 2015); “Enquanto isso, até
agora, não há nenhum indício de que o Governo Federal cumpra a pro-
messa de solucionar o impasse das ocupações de terras por indígenas em
Mato Grosso do Sul” (CORREIO DO ESTADO, p. 2, 20 set. 2015). Dessa
forma, os argumentos buscam estreitar a relação causal (b) entre o conflito
de terra e a incompetência administrativa do Governo Federal.

O índio, tutelado pela União, e os proprietários de terra, que


usam como principal argumento no embate o direito à proprie-
dade, estão abandonados pelo seu principal mediador. Este con-
flito no interior de Mato Grosso do Sul é mais um exemplo da
desorganização do Governo Federal, que lida com as demandas
de seus cidadãos na fronteira da mesma maneira desastrosa que
atua na economia: ampliando uma crise em vez de atuar para
mitigá-la (CORREIO DO ESTADO, p. 2, 30 ago. 2015).

No excerto acima, assim como em outras passagens dos textos, no-


ta-se uma ampliação das definições e o estabelecimento de relações entre
personagens. O indígena agora é também tutelado pela União e, portanto,
mantém uma relação com o Governo Federal. Este, por sua vez, é concre-
tizado no discurso também pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
sugerindo uma cumplicidade entre esses dois personagens. O CIMI e a
FAMASUL são estabelecidos como representantes legítimos dos dois lados
envolvidos no conflito. Por conseguinte, a posição editorial afasta-se, no
plano retórico, da política de opinião da FAMASUL. A estreita sintonia en-
tre política editorial e política de opinião dos proprietários rurais, evidente
no primeiro editorial, agora não se pronuncia, mas ainda está presente de
forma implícita: ao estabelecer os polos da disputa, de um lado, os proprie-
tários rurais, com direito à propriedade, e a FAMASUL; e, de outro lado, os
indígenas, o Governo Federal e o CIMI; em seguida, ao atribuir a respon-
sabilidade pelos conflitos ao Governo Federal. A posição editorial, destarte,
indica o primeiro lado como vítima, sujeito passivo da ação do segundo
bloco de personagens, o qual seria responsável pelas contendas e pela falta
de solução.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 155
Nesses três editoriais percebe-se, ainda, a ampliação das funções de
enquadramento. A proposição de soluções (d) aparece de forma clara: a
solução é a intervenção federal através de “atitudes mais enérgicas e reso-
lutivas” (CORREIO DO ESTADO, p. 2, 04 set. 2015), o cumprimento da
reintegração de posse e a “aprovação da PEC 71, que fixa indenização aos
donos das terras que foram demarcadas como reservas indígenas a partir do
dia 05 de outubro de 2013” (CORREIO DO ESTADO, p. 2, 20 set. 2015).
À definição do problema (a) são acrescentados termos-chave que confor-
mam o enquadramento: “batalhas de uma guerra que já dura décadas” e
“bomba que está prestes a explodir”; assim como às causas (b):

Grande parte do conflito agrário entre índios e produtores nasceu


da política do governo federal; na época, personalizado pelo Ser-
viço de Proteção ao Índio (SPI) com demarcação de terras indí-
genas, verdadeiras colônias agrárias, que delimitaram os espaços
das comunidades. De outro lado, muitas áreas foram vendidas à
produtores de boa-fé, passando para outras gerações que, agora,
enfrentam o problema criado há décadas (CORREIO DO ES-
TADO, p. 2, 04 set. 2015).

No dia 14 de outubro de 2015, é publicado o editorial Duas CPIs,


pouca ação, cuja intenção central é estabelecer uma crítica à criação de
duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) na Assembleia Legis-
lativa de Mato Grosso do Sul. Tal publicação é uma tentativa de defender
um ponto-chave do enquadramento apresentado pelo Correio do Estado
que, naquele momento, enfrentava um contra-argumento factual. Desde
o início da cobertura jornalística, os editoriais se erigiram insistindo que a
causa central do conflito é o Governo Federal, seja por incompetência, por
inércia ou por descumprimento de promessas. No entanto, a criação de
uma CPI para investigar o envolvimento do CIMI – inciativa de deputados
representantes dos proprietários rurais – e outra para apurar a responsabili-
dade do Governo Estadual no genocídio de indígenas entre os anos de 2000
e 2015 – esta como resultado da mobilização de deputados que represen-
tam grupos indígenas – atinge em cheio o ponto central do enquadramento
proposto pelos editoriais até então.
A criação das CPIs desloca a responsabilidade pelos conflitos do pla-
no federal para o plano estadual. Em outros termos, o que até esse ponto
da cobertura era atribuído ao Governo Federal – o acirramento do conflito
entre fazendeiros e indígenas – passa a ser corresponsabilidade dos “tercei-
ros interessados” e do Governo Estadual. Em termos retóricos, a criação
das CPIs na Assembleia constrói-se como uma espécie de “confissão de
culpa” dos grupos diretamente envolvidos no conflito. A intenção do edito-
rial, diante dessa circunstância, consiste em desqualificar as duas CPIs, in-
sistindo que elas estariam desviando os esforços e gerando ações inócuas; e,
156 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
consequentemente, tentar preservar o núcleo de sua interpretação causal.
O enquadramento exibido nos editoriais oferece uma narrativa bási-
ca em que a posição da empresa jornalística se evidencia logo no primeiro
texto. Os personagens envolvidos e os julgamentos que os caracterizam,
a definição do problema e a sinalização das explicações causais são apre-
sentados. Nos demais textos publicados, observa-se um refinamento da ca-
racterização dos personagens (muitas vezes oscilando julgamentos) e das
explicações causais, além da proposição de soluções. De maneira geral, o
enquadramento propõe que o conflito se estabelece entre produtores rurais
– caracterizados sempre com termos neutros, positivos ou vitimizadores – e
os demais personagens – qualificados, pelo menos uma vez, negativamente.
Como demonstrado acima, chega-se a estabelecer, implicitamente, uma
relação de cumplicidade entre Governo Federal, CIMI e indígenas. No
entanto, estes últimos sempre são colocados numa posição de inferioridade,
pois são supostamente manipulados, tutelados e induzidos a agir.
No apontamento das causas do conflito, nota-se um deslocamento
da responsabilidade dos personagens diretamente envolvidos para um ente
longínquo, no caso, o Governo Federal. Tal movimento esvazia a discussão
sobre os atos de fazendeiros e indígenas. Num vértice retórico, o assassinato
de Semião Vilhalva é apenas um dado, uma consequência lógica. A reunião e
deliberação de fazendeiros, que decidem usar os próprios meios para retomar
uma fazenda, são vistos como uma ação natural e esperada. Esse ponto de
vista é constantemente reforçado pela enumeração de conflitos anteriores,
asseverando, pela repetição, a naturalização de atos violentos. Para efeitos de
contextualização, em meados de 2015 o Governo Federal enfrentava uma
crise econômica e política pronunciadas. A presidente Dilma Rousseff era
alvo de uma série de críticas sobre a condução da economia, além de uma
oposição contundente no parlamento, alimentada, principalmente, pelos
desdobramentos dos escândalos de corrupção divulgados nos meios de co-
municação em todo o Brasil. Em Mato Grosso do Sul, o jornal Correio do
Estado assumia o mesmo tom de críticas ao Governo Federal. Esse contexto
fornece os elementos principais constituintes do enquadramento construído
para a compreensão dos conflitos que eclodem no longínquo município de
Antônio João.
Na construção do argumento central do enquadramento proposto
pelos editoriais, observa-se, portanto, uma estratégia retórica que tem por
objetivo restringir as possibilidades causais e explicativas. O texto parte de
uma assertiva que poderia ser válida, ao menos conjunturalmente, em outro
contexto, para tornar aceitável uma explicação causal que não teria força
explicativa sem a aceitação da primeira assertiva. Em termos retóricos, a
assertiva válida: “o Governo Federal é incompetente na gestão da economia
do país”; assertiva restritiva: “o Governo Federal é incompetente para solu-
cionar o conflito entre indígenas e proprietários rurais”. A repetição dessa
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 157
associação nos vários editoriais publicados no período completa a constru-
ção de um jogo de forças, tendo em vista que funciona com base no esque-
cimento de que não se explicou aquilo de que se fala: os motivos dos confli-
tos9. Ou seja, do ponto de vista retórico, a vinculação entre incompetência
econômica e incompetência na solução dos conflitos fundiários encerra a
discussão num quadro de referência compartilhado: gestão/administração.
Todo e qualquer problema na economia é posto como uma questão de equa-
lização eficiente e eficaz por meio da racionalização das ações dos agentes,
conscientes dos meios disponíveis e dos fins almejados. Da mesma forma, os
conflitos entre fazendeiros e indígenas seriam supostamente solucionados
pela administração dos interesses em jogo. O enquadramento construído
negligencia fatores da disputa simbólica que encontram suas fundamenta-
ções no campo dos valores e das tradições para cuja solução nada, ou muito
pouco, concorrem medidas de gestão, puramente administrativas.
O quadro de referência tem sua origem, significado e articulação
simbólica (GOFFMAN, 2012; CARVALHO, 2009) afeitos a um plano po-
lítico-administrativo mais amplo e encontra sua legitimidade numa polari-
zação político-partidária que não se relaciona diretamente com os conflitos
entre indígenas e proprietários rurais. Nesse plano, os interesses, crenças
e a visão de mundo de um dos lados em conflito, no caso, os proprietários
rurais, encontra maior ressonância na posição assumida pelo jornal estu-
dado. O enquadramento construído a partir do quadro primário de refe-
rência alicerçado na dicotomia político-administrativa permite um acordo
entre o sujeito midiático – a empresa jornalística Correio do Estado – e os
atores extramidiáticos – predominantemente, os proprietários rurais – no
estabelecimento de um enredo verossimilhante (SODRÉ, 2009). Entende-
-se como um “enquadramento restritivo” porque ofusca as complexidades
envolvidas nos conflitos entre fazendeiros e indígenas em Mato Grosso do
Sul. No entanto, o argumento não resiste ao imperativo dos fatos. Quando
duas CPIs regionais são instituídas para investigar as responsabilidades dos
personagens locais, a fragilidade do enquadramento se manifesta e uma
contradição se estabelece. A verossimilhança esvai-se na parcialidade, na
insuficiência e na restrição ao posicionamento de uma das partes envolvidas
no conflito.

Os editoriais de O Progresso

O jornal O progresso publicou três editoriais no período de abrangência


da pesquisa. São de conteúdo predominantemente informativo e redigido em
estilo intelectual, com a apreciação de dados estatísticos e abordagens jurídicas na
fundamentação dos argumentos (BELTRÃO, 1980). Em termos retóricos, acom-
9 Etnograficamente falando, faz-se preciso registrar que o acirramento do conflito decorre de expe-
riências concretas vivenciadas em Mato Grosso do Sul nos últimos 30 anos.

158 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


panham as ocorrências dos fatos apresentados no gênero informativo e objetivam
analisar causas.
O primeiro editorial foi publicado no dia 01 de setembro de 2015,
quando já haviam passado três dias desde a morte de Semião Vilhalva, em
Antônio João. O título vai direto ao assunto: Invasões de Propriedade. Entre os
problemas (a) apresentados está a “violência instalada em Antônio João cau-
sada (b) por ONG’s que instigam e fomentam o conflito. Consequentemen-
te, também é um problema (a) “a manipulação dos indígenas por ONG’s e
pessoas que vivem da causa” e a crescente legitimidade que as ocupações ga-
nham entre as autoridades. Tudo isso, segundo o jornal, é decorrência (b) dos
“ouvidos moucos das autoridades” e da lentidão do judiciário na execução da
reintegração de posse aos fazendeiros. Os julgamentos morais (c) aparecem
na construção dos argumentos. As “invasões de terra” promovidas pelos indí-
genas são equiparadas à exploração de madeira e ao garimpo ilegal em terras
já demarcadas, declaradas e homologadas como indígenas. Da mesma forma,
dá a entender que o direito à terra reivindicado pelos indígenas se equivaleria
ao direito de propriedade dos produtores rurais. A partir do momento, portan-
to, em que o judiciário desconsidera tais equivalências, conclui o jornal, os
julgamentos seriam parciais e favoreceriam os indígenas. A conclusão a que
chega o periódico parte de um pressuposto valorativo em relação aos direitos
dos indígenas e dos não indígenas particular, relativa, mas, na construção do
discurso, apresentada como universal e absoluta.
Os personagens apresentados são os produtores rurais, os indígenas,
ONG’s (defensores da causa indígena), o Governo Federal e o poder judi-
ciário. No entanto, o elenco de termos qualificadores associados aos dois
primeiros é mínimo, a ponto de ser imperceptível um posicionamento en-
tre os polos do conflito na caracterização dos personagens envolvidos direta-
mente. Quanto às ONG’s, não hesita em atribui-lhes o ônus pelo estado de
violência: seriam os verdadeiros manipuladores, aproveitadores, que fazem
do conflito um meio de subsistência. Da mesma forma, o Governo Federal
e o poder judiciário são vistos, o primeiro, como negligente e inoperante e,
o segundo, parcial, hesitante e moroso.
O segundo editorial é publicado no dia seguinte, 02 de setembro de
2015. Mais uma vez o tema é a violência que se abate sobre a região de An-
tônio João, município localizado na fronteira com o Paraguai; daí o nome:
Pacificando a Fronteira. Inicia o texto relembrando o episódio de resistência à
invasão do exército paraguaio, em 1864, quando o tenente Antônio João e 16
homens enfrentaram, até a morte, 300 soldados das forças de Solano Lopes.
O problema (b) continua sendo, além da violência, a falta de iniciativa do
Governo Federal. Diferentemente do texto anterior, constrói seu argumento
sobre dados estatísticos revelados pelo próprio Governo Federal e, também,
trabalhados e projetados nos argumentos e demandas dos movimentos indí-
genas organizados, mais especificamente, a Articulação dos Povos Indígenas
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 159
do Brasil (APIB)10. A informação central que fundamenta a opinião é que
a execução orçamentária dos recursos previstos para investimento na ação
denominada Fiscalização e Demarcação de Terras Indígenas, Localização
e Proteção de Índios Isolados e de Recente Contato foi muito baixa. No pri-
meiro mandato da presidente Dilma Rousseff apenas 40% do orçamento foi
executado. Destaca-se que nesse editorial a fonte de informações e de deman-
das são os movimentos indígenas. A conformação dos personagens centrais
não muda substancialmente. O governo continua parcial e inoperante, mas
o exército é enaltecido como único representante imparcial do Estado. Os
índios e fazendeiros são vistos ainda como vítimas. Mas os indígenas saem da
condição de passividade inocente para se lançarem como sujeitos políticos
organizados e conscientes de seus direitos.
O terceiro editorial foi publicado no dia 27 de outubro. Trata-se de
uma ponderação acerca de um tema de momento, em estilo acadêmico,
com discussão de dados estatísticos e defesa de uma tese: não há genocídio
de indígenas em Mato Grosso do Sul. O contexto era o surgimento das duas
Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI’s) na Assembleia do Estado de
Mato Grosso do Sul. Uma que intenciona investigar o envolvimento do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) nas ocupações de terra e a outra
para questionar a responsabilidade de órgãos estaduais no genocídio de indí-
genas. O texto, portanto, discute a noção de “genocídio”. Apresenta, inicial-
mente, um conceito geral e histórico se remetendo às experiências nazistas
da Segunda Guerra Mundial. A seguir, discute dados da Superintendência
de Inteligência de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso do Sul
para refutar a afirmação, atribuída a “ONG’s e grupo de intelectuais”, de
que os indígenas estariam sendo vítimas de genocídio no estado. Pode-se
dizer que é um editorial circunstancial (BELTRÃO, 1980), pois se restringe
à apreciação de um certo tema objetivando atingir um resultado político da
defesa de um ponto de vista. O problema (a) central é o “desvirtuamento
do sentido de genocídio e, mais uma vez, a causa (b) é a manipulação de
ONG’s e grupos de intelectuais envolvidos na causa indígena.

Dois jornais, duas formas de se relacionar com a questão

Retoma-se neste ponto a discussão sobre a relação entre opinião


pública, opinião publicada e política de opinião a partir das análises dos
editoriais publicados nos jornais Correio do Estado e O Progresso. Ponde-
10 A APIB surgiu no Fórum Indígena Nacional de Lideranças Indígenas, durante o Acampamento
Terra Livre, um grande encontro e manifestação de lideranças indígenas ocorrida na Esplanada
dos Ministérios, em Brasília – DF, em 2005. Congrega as seguintes entidades: Articulação dos
Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME; Articulação dos Povos
Indígenas do Sul – ARPINSUL; Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal – ARPIPAN; Grande
Assembleia dos Povos Guarani Kaiowá – Aty Guasu; Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste –
ARPINSUDESTE; Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB.

160 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


ra-se, para iniciar, que se tratam de abordagens que apresentam ao mesmo
passo linhas de intersecção e divergências. Faz-se necessária a reflexão sobre
o significado dos enquadramentos propostos nos textos em sua dinâmica de
articulação da opinião pública com as opiniões publicadas e as políticas de
opinião em disputa quando a temática circunscreve os povos indígenas e os
seus conflitos com proprietários rurais em Mato Grosso do Sul.
No jornal Correio do Estado, faz-se possível observar o alinhamento
discursivo entre a política editorial e a política de opinião defendida, prin-
cipalmente, pelos grupos que representam os interesses dos produtores ru-
rais desde o início da cobertura dos fatos. O primeiro editorial apresentado
nesta análise é explícito na tomada de posição ao “filiar-se”, acriticamente,
às percepções e opiniões de proprietários rurais. Destes, toma para si as re-
presentações sobre os personagens envolvidos, principalmente indígenas e
os movimentos sociais organizados. O enquadramento proposto estabelece
uma ponte entre opinião publicada e senso comum, estabilizando a reali-
dade social (SODRÉ, 2009), à medida que aciona elementos afeitos a uma
ideologia da cultura sul-mato-grossense, nesse caso comparecendo como
quadro de referência primário compartilhado não apenas pelo grupo de
interesse, mas sobretudo (por isso a importância) difundido entre a comuni-
dade de sentido, à qual se dirige o jornal.
Este quadro de referência primário, que penetra e molda os discur-
sos veiculados no jornal, seleciona, silencia e exacerba características da
realidade social e, sobretudo, indica o sentido e a forma como deve ser
decodificada a realidade, porque é compartilhado e estrutura a experiên-
cia dos sujeitos envolvidos na ação (GOFFMAN, 2012). Concernente à
hipótese central da pesquisa, a conformação de enquadramentos midiáti-
cos relacionados ao que Banducci Jr. (2009) caracteriza como “ideologia
da cultura sul-mato-grossense”, a construção apresentada nos editoriais do
jornal Correio do Estado não se forma propriamente a partir de uma iden-
tidade contrastiva em que a legitimidade de um “nós” contra um “eles” se
baseia em elementos diacríticos que definem o “ser” sul-mato-grossense. O
plano semântico em que se insere o enquadramento diz respeito, antes, à
dicotomia política, administrativa e partidária representada, grosso modo,
pela polarização situação-Governo Federal/oposição-governo regional, em
que o “nós” localiza-se no segundo polo e o “eles” no primeiro. Porém, a
ocultação da cidadania das etnias indígenas, marca decalcada na identi-
dade forjada desde a “geração de 1930”, encontra uma vez mais vazão no
silenciamento da política de opinião estudada. É, portanto à medida que a
ideologia da cultura sul-mato-grossense estrutura a experiência da vida coti-
diana em Mato Grosso do Sul, que ela conforma eficientemente o discurso
midiático local.
Por outro lado, ao observarem-se as construções veiculadas no jornal
O Progresso, encontra-se outra forma de estruturação discursiva dos edito-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 161
riais publicados. O debate se dá em torno de ideias acerca dos direitos de
proprietários rurais e indígenas, de políticas públicas concernentes aos gru-
pos envolvidos, de repercussões dos conflitos para o equilíbrio econômico,
político e social da região, mas, diferentemente das construções apresenta-
das no jornal da capital do Estado, não há explicitação de atributos morais
qualificadores que estabelecem diferenças de status social, ou estamental,
entre as partes envolvidas. Os discursos, nesse sentido, aproximam-se mais,
tomando como ponto de comparação os textos publicados no Correio do
Estado, de uma mediação entre política e moral que busca sua legitimidade
no exercício da razão e na possibilidade do equilíbrio de posições inicial-
mente conflitantes (ESTEVES, 2003). Não se defende aqui, no entanto,
que o jornal douradense seja uma completa esfera democrática e pluralista.
Entre a maioria dos editoriais verifica-se certa sintonia de posições, mas não
só há presença, mesmo que minoritariamente, de posição conflitante, como
os termos do debate pressupõem mais equilíbrio de status dos debatedores.
Todavia, não se pode deixar de levar em consideração que a compa-
ração se estabelece entre um jornal impresso e distribuído, principalmente,
na capital do estado, Campo Grande, e outro que alcança, fundamental-
mente, a região de Dourados. O primeiro está próximo à sede do poder
instituído e das entidades que representam os grupos em disputa em âm-
bito estadual e, por outro lado, distante geograficamente da região onde os
conflitos acontecem e conformam acentuadamente a vida cotidiana. Já o
segundo está inserido no desenrolar político e social da realidade local, ex-
cessivamente marcada pela presença indígena imediata e disputas de terra.
Neste caso, a presença indígena no jornal é constante: notícias sobre os po-
vos tradicionais que vivem e configuram a paisagem e as relações cotidianas
nos municípios da região sul de Mato Grosso do Sul povoam as páginas de
O Progresso porque sua presença é uma realidade demográfica imperativa,
mas não só isso. Há uma afirmação política e social reconhecida que se im-
põe, seja nas inúmeras manifestações e bloqueios de estrada reivindicando
melhorias nas reservas onde estão confinados, seja nos bancos de escolas, de
câmaras municipais e universidades locais (com a presença de intelectuais
indígenas). A despeito da política editorial adotada pelo jornal de Doura-
dos, a insistência e resistência dos povos indígenas, se não são suficientes
para estabelecer uma esfera pública democrática, polifônica e polissêmica,
exerce, por outro lado, fundamental pressão para que sejam considerados,
nas construções discursivas publicadas em O Progresso, sujeitos de direito, e
que não tenham sua condição de cidadãos brasileiros e sul-mato-grossenses
colocada em dúvida por estereótipos e visões de mundo anacrônicas que
obstruem a compreensão complexa dos fatos. De um vértice retórico, trata-
-se minimamente de um conjunto de forças mais equilibrado.
O jornal Correio do Estado, por sua vez, não só tem sua sede e a
maioria de seus leitores distantes, aproximadamente, 320 km da região do
162 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
conflito, mas um afastamento simbólico ainda maior da realidade vivida
por indígenas no sul do estado. Consequentemente, o enquadramento dos
fatos atravessados por mediações culturais é, em parte, diverso daqueles
acionados nos contextos locais. Dessa forma, procura-se demonstrar o papel
da ideologia da cultura sul-mato-grossense: é uma matriz cultural que fun-
ciona como quadro de referência primário de uma comunidade de senti-
do, que estabelece uma distinção simbólica entre indígenas e proprietários
rurais que se pretende hegemônica e suficiente para justificar quem é o
legítimo detentor das terras em Mato Grosso do Sul. Num simples trans-
bordamento do discurso identitário que define, a um só tempo, quem são
os “verdadeiros” sul-mato-grossenses e quem tem o direito de mando na
região, para um contexto de disputas em torno do direito à terra, cujos ter-
mos em disputa remetem aos preceitos constitucionais firmados na carta de
1988. Neste sentido, as construções discursivas veiculadas no jornal Correio
do Estado não favorecem o debate, o esclarecimento e a defesa de posições,
mas, antes, a demarcação de uma opinião previamente tomada como ver-
dadeira e certa.
Infere-se que a diferença entre os dois jornais projeta-se como conse-
quência da forma como dialogam com as sociedades em que se inserem. No
jornal O Progresso, a despeito do jogo de forças estabelecido na política lo-
cal, denota-se uma relação mais pressionada tanto por indígenas quanto por
proprietários rurais que redunda na busca pelo estabelecimento do debate.
No Correio do Estado, nota-se um espaço cerceado e dominado por um dos
lados em disputa, articulando sua posição a partir de estereótipos compar-
tilhados, principalmente, por uma elite tradicional e ruralista no estado.

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164 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


As marcas do estigma nos enunciados
sobre suicídio em portais de notícias
campo-grandenses1
Patrick Alif Fertrin BATISTA2
Márcia Gomes MARQUES3

Introdução

A cobertura jornalística contemporânea classifica a morte como o


valor-notícia de relevância mais elevada (TRAQUINA, 2005) ao se produzir
o conteúdo jornalístico – especialmente quando envolve violência e pes-
soas da periferia. A partir desse prisma de seleção do noticiável, Ramos e
Paiva (2007) analisam a estigmatização de comunidades pobres no discurso
noticioso, propondo como fatores que contribuem para isso o desconheci-
mento da realidade local pelos jornalistas, a falta de fontes locais legítimas
e independentes, a insegurança e o preconceito desses profissionais, que
evitam entrar em periferias sem o acompanhamento policial. Contudo, a
abordagem simplificada desse tipo de assunto atrai expressiva audiência e os
veículos jornalísticos não hesitam em publicar exaustivamente conteúdos
com este viés.
Ao propagar estigmas, a mídia constrói discursos engessados, con-
servadores e preconceituosos, potencializando efeitos antiemancipatórios
em sua audiência, afirma Habermas (1984). Nessas situações, valores do-
minantes são reproduzidos, a mídia e o jornalismo abusam de estereótipos,
concedem mais espaço a uns e menos a outros, além de propagar constru-
ções negativas em relação a grupos marginalizados, visto que a imprensa
enfatiza entre os principais critérios de noticiabilidade os aspectos negativos
da sociedade, acentuando a desacreditação de certos grupos. Esse tipo de
abordagem impele os indivíduos à busca desenfreada para o não enquadra-
mento à rotulação de estigmatizado, por um lado, e à inclusão em modelos
e atitudes que a mídia reproduz e estabelece como ideal, por outro.
1 Capítulo baseado na dissertação Agendamento midiático e o tratamento de temas estigmatizados:
o fenômeno suicídio nos enunciados jornalísticos de sites de notícia em Campo Grande, de autoria de
Patrick Alif Fertrin Batista e sob orientação da professora Márcia Gomes Marques. Defendida em
banca pública em 30 de agosto de 2019. Além da professora orientadora, participaram da banca o
Prof. Dr. Mario Luiz Fernandes (UFMS) e a Profª. Drª. Roseli Fígaro Paulino (USP).
2 Mestre em Comunicação e jornalista graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS). E-mail: patrickalif@hotmail.com
3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Doutora em Ciência Sociais pela Università Gregoriana – Roma, e mestre
em Comunicación pela Pontificia Universidad Javeriana – Bogotá, com estágio de mestrado sandu-
íche pela Universidad Iberoamericana – México. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6990-648X.
E-mail: marcia.gomes@ufms.br

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 165


O suicídio, ou autoextermínio, faz parte do rol de atributos ou com-
portamentos sujeitos a estigma, seja para aquele que tentou o ato e não con-
cretizou, seja para os familiares do suicida que compartilham desta condição
com o indivíduo, ou que sofrem desse tipo de perda de familiar ou ente que-
rido. Nessas situações, os veículos de imprensa de todo o mundo, em dife-
rentes contextos históricos, mudam suas rotas de abordagem do tema cons-
tantemente, mesmo tendo a morte como um forte valor apelativo segundo os
critérios de noticiabilidade. Em 2017, quando o suicídio foi agendado prin-
cipalmente em dois períodos (Setembro Amarelo e Baleia Azul) nos portais
de notícias Campo Grande News e Midiamax, houve 164 publicações sobre
suicídio contra 609 sobre assassinatos.
Essa diferença de recorrência desses dois tipos de morte violenta é
aqui entendida como resultado dos limites editoriais preestabelecidos que
podem gerar padrões comportamentais nos profissionais do setor. Deadlines
e agendas norteiam os procedimentos que os jornalistas devem seguir para
coleta de informações e, assim, as notícias acabam muitas vezes, segundo
Sousa (1999), sendo dissonantes da realidade. Especificamente sobre o sui-
cídio, há escassez de guias operacionais para a mídia nacional que orientem
o tratamento considerado adequado para lidar com o tema. O Código de
Ética dos Jornalistas Brasileiros, por exemplo, não menciona o assunto.
A cobertura jornalística muitas vezes trata alguns temas estigmatizados
de forma simplista, com linguagem coloquial ou mesmo pejorativa. É co-
mum, nessas situações, o material jornalístico manifestar pouca familiaridade
do profissional com o tema ou a não compreensão da complexidade do as-
sunto para as pessoas envolvidas. Essa situação se aplica também ao suicídio,
devido ao fato de que, atualmente, para parte da imprensa, “chegar na frente”
tornou-se mais importante do que “buscar a verdade”. Temas complexos po-
dem ser divulgados de forma inadequada e insuficiente, segundo os preceitos
éticos ou até mesmo não serem noticiados. Em determinados cenários, veícu-
los jornalísticos preferem omitir a problemática, em outros falam em dema-
sia, em outros momentos, prezam pela prevenção. Devido a esse quadro, não
é incomum o jornalista ter dúvidas sobre quais procedimentos tomar durante,
nesses casos, o processo de apuração e produção da informação.
Para compreender melhor o discurso utilizado pela imprensa nesse
tipo de situação, foram analisados dois períodos de agendamento realizados
da temática suicídio, no ano de 2017: em setembro, mês institucionalmente
dedicado à prevenção ao suicídio, com a campanha em âmbito nacional Se-
tembro Amarelo e a cobertura de imprensa referente ao desafio Baleia Azul,
jogo virtual cujo objetivo é induzir crianças e adolescentes ao suicídio. Para
a investigação, foram selecionados para análise os conteúdos noticiosos dos
sites Campo Grande News e Midiamax, visto que, nos últimos anos, dos veí-
culos on-line de Mato Grosso do Sul, têm sido os que mais publicaram con-
teúdos relacionados ao tema investigado.
166 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
O Campo Grande News foi fundado em março de 1999 e desde en-
tão se expandiu e ganhou notoriedade, passando a constar entre os veículos
de comunicação de maior destaque em Mato Grosso do Sul. A média de
acessos no site do Campo Grande News é de 3,4 milhões de pagerwiews4 diá-
rios, segundo números divulgados pela plataforma SimilarWeb5. Já o Midia-
max, fundado em maio de 2002, é o segundo portal de notícias com mais
visitas diárias no estado, tendo 2,8 milhões de pageviews, segundo a Similar
Web. Como recorte temporal da análise, considerou-se, em primeiro lugar,
os conteúdos publicados pelos portais Campo Grande News e Midiamax
no mês de setembro dos anos de 2014 a 2018. Foram coletadas todas as
publicações que faziam algum tipo de referência ao tema suicídio nesses
meses de setembro. Foi realizado, em segundo lugar, um levantamento de
publicações do ano de 2017 desses mesmos portais, no período referente ao
agendamento do Baleia Azul (entre os meses de março e julho), a fim de
auxiliar na verificação do efeito de tematização desse fenômeno. Servem
como suporte para a análise desses conteúdos, algumas entrevistas em pro-
fundidade com jornalistas envolvidos no processo produtivo dos dois sites
estudados neste trabalho. Os profissionais entrevistados são identificados
com as iniciais das empresas, a fim de terem as identidades preservadas.
Exemplo: M2 para identificar o Midiamax.
Em um primeiro momento se discute nesse artigo a complexidade
do tema suicídio e a lógica inversa que o critério de noticiabilidade mor-
te apresenta quando ligado a esse tema. Na segunda parte do trabalho, o
conceito de heterogeneidade enunciativa, de Authier-Revuz (1990; 2004),
será abordado, vinculando-o, em seguida, aos atributos do agendamento
dos enunciados na cobertura midiática do Baleia Azul e do Setembro Ama-
relo, e logo com os critérios de noticiabilidade que levaram tais assuntos
a conquistarem expressiva repercussão midiática durante determinado pe-
ríodo. Essas análises verificam se os estigmas se materializam ou não nos
enunciados jornalísticos.

A imersão do estigma no jornalismo

Os indivíduos estigmatizados geralmente são excluídos, subjugados e


ficam à margem de universos simbólicos legitimados, em virtude de abomi-
nações atribuídas a seus corpos, culpas de caráter, além de questões relacio-
nadas à raça, à nação e à religião. Quando o estigma é exposto, o indivíduo
passa a carregar um sentimento de vergonha e constrangimento perante a
4 Pageview é a quantidade de páginas que o visitante visualiza, e tem como função medir a quali-
dade de um site: o quanto ele atrai de visitas por página. A cada clique em um link de um site,
a página que abrir será contabilizada como uma nova visualização; por isso, um único
usuário pode gerar mais de um número de visualizações.
5 SimilarWeb é uma companhia de tecnologias de informação que fornece serviços em Web analy-
tics, mineração de dados e inteligência empresarial para corporações internacionais.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 167


condição negativa que sustenta no âmbito social. Os estigmas, nesse sentido,
estão inclusos nas instâncias institucionais paradigmáticas (THOMPSON,
1998), como a escola e a mídia, de forte apelo social, que podem vir a refor-
çá-los a partir de seus atributos correlatos.
Em alguns casos, a identidade social real daqueles que acompanham
ou se vinculam àqueles considerados estigmatizados podem se transformar
em uma identidade social virtual6, como afirma Goffman (2004), supondo-
-se que esse sujeito também seja portador de um estigma. Diante dessa si-
tuação, o caráter que a pessoa apresenta na vida diária diante daqueles com
quem tem relações habituais é modificado, reduzido ou deformado devido
a essas demandas virtuais (favoráveis ou desfavoráveis).
De acordo com o Manual de Prevenção ao Suicídio destinado aos
profissionais da mídia da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2000), os
veículos de comunicação podem representar uma ameaça a essa fachada
(GOFFMAN, 2004) construída pelo grupo de estigmatizados e por seus
entes próximos ou queridos, dependendo da forma como divulgam os con-
teúdos referentes a essas pessoas. O manual destinado aos profissionais da
mídia adverte que “as reportagens devem levar em consideração o impac-
to do suicídio nos familiares da vítima, e nos sobreviventes, em termos de
estigma e sofrimento familiar” (OMS, 2000, p. 8). Para Bertrand (1999),
no entanto, a maior parte dos meios de comunicação não leva em conta
a complexidade do real nessas situações, e a informação acaba sendo pro-
duzida mais depressa e de forma simplificada do que o necessário nessas
circunstâncias. Daí, então, o abuso de estereótipos, a divisão entre bons e
maus, a redução dos fenômenos ao pitoresco; tabus e antigos preconceitos
são sustentados e não são tensionados em virtude do comportamento de
atores distintos, sejam patrões, anunciantes ou jornalistas.
De qualquer forma, a produção desses conteúdos e a disseminação
dos estigmas sociais, inclusive do suicídio, constroem-se em realidades da
vida cotidiana por meio de uma zona clara na qual há um fundo de obscu-
ridade. Como afirmam Berger e Luckmann (1985, p. 66), “assim como cer-
tas zonas de realidade são iluminadas, outras permanecem na sombra. Não
posso conhecer tudo o que há para conhecer a respeito desta realidade”.
O vínculo entre estigma e suicídio pode ser percebido por meio de
realidades virtualmente construídas (GOFFMAN, 2004) no meio social,
como a relação estabelecida entre suicídio e loucura. O relato de um acon-
tecimento suicida ou de suicídio está cercado pela crença de crise coleti-
va, o que confere ao assunto um discurso de alta complexidade. Mesmo
que apresente em seu bojo critérios comumente utilizados na produção
noticiosa, como a morte e a negatividade, o suicídio não se enquadra com
facilidade na agenda midiática, como outros assuntos não estigmatizados e
6 Goffman (2004) classifica identidade social virtual como uma identidade imputada ao indivíduo,
que não necessariamente corresponde à característica real dessa pessoa.

168 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


considerados menos complexos. Além disso, ao trabalhar com esse tema, é
comum o jornalista lidar com fontes pouco dispostas a falar e até mesmo
com dificuldades para publicar, dependendo das políticas editoriais da em-
presa para a qual presta serviços.
Nas redações, costuma-se ter o temor de que a publicação de uma
notícia sobre o suicídio, ou a menção à possibilidade de um indivíduo findar
com a própria vida, estimule a mesma ideia em um suicida em potencial, sen-
do essa situação tratada de forma análoga ao “portador sadio” de uma doença
latente (DAPIEVE, 2006). A partir dessa ideia, os veículos jornalísticos pro-
curam evitar a repetição do ocorrido após a divulgação da obra Os sofrimentos
do Jovem Werther, de Goethe (2005), publicado originalmente em 1774, cujo
protagonista atira contra a própria cabeça após um amor não correspondido.
Após a publicação, uma onda de suicídios teria se disseminado no continente
europeu, com relatos de jovens que cometeram o autoextermínio do mesmo
modo, o que resultou na proibição do livro em diversos lugares. Aludindo a
esse fato, o termo Efeito Werther, proposto por David Phillips (1974), denomi-
na a imitação de suicídios a partir do contato com uma publicação que fale
do tema, e é também utilizado na imprensa até os dias atuais.
Mesmo se tratando de morte, o suicídio não usufrui dos critérios de
noticiabilidade como fator que alavanca o seu agendamento. Além da mor-
te, outro elemento que gera cliques e atrai audiência é a violência, como
nos casos de assassinatos; mas os suicídios diferem dos acontecimentos vio-
lentos, seguidos ou não de morte, em pelo menos dois fatores: o primeiro
deles, pela complexidade do tema; o segundo, pela desvalorização e descré-
dito atribuído aos envolvidos nesses casos, seja direta ou indiretamente. O
primeiro fator pode ser vinculado, no jornalismo, ao Efeito Werther, no qual
se teme produzir o contágio ao não tratar o tema com prudência; no segun-
do caso, pelo contrário, a diferença se deve ao que Goffman (2004) define
como um segmento ou agente estigmatizado, isto é, aqueles cujos traços
de comportamento ou atributos são considerados manchas que desacredi-
tam os envolvidos em determinado contexto social. O não agendamento do
suicídio pode, a partir desta perspectiva, ser mais bem compreendido, pois,
apesar de ser um tipo de violência - autoinfringida - que leva a óbito, ele não
é associado ao valor-notícia morte.
Além dos critérios de noticiabilidade, outro fator implicante nos es-
tudos da interface suicídio/jornalismo é o que Boorstin (1992) denomina
pseudoevento. De acordo com essa noção, a previsibilidade das ocorrências
e a planificação norteiam costumeiramente os procedimentos de recolha
da informação (BOORSTIN, 1992; TRAQUINA, 2005), mesmo quando as
dinâmicas produtivas da informação se aceleram. Nesse contexto, os pseu-
doeventos não são espontâneos, mas induzidos; não se associam a um desa-
bamento ou chuva torrencial, mas sim à coletiva de imprensa que anuncia
um novo empreendimento. Ao serem plantados, pretende-se que sejam re-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 169
produzidos como informação, nos moldes convenientes aos interesses que
correspondem.
Ademais, de modo geral, a notícia é apresentada como sendo o real
e, mesmo se percebendo que se trata apenas de uma versão da realidade,
o receptor “dificilmente terá acesso aos critérios de decisão que orientaram
a equipe de jornalistas para construí-la, e muito menos ao que foi relegado
e omitido por estes critérios, profissionais ou não” (MEDITSCH, 2004, p.
285). Dessa forma, deixa-se de iluminar certas zonas da realidade, que per-
manecem ocultas ao receptor, pois, segundo Boorstin (1992), há agentes
interessados no direcionamento das publicações.
De modo geral, as literaturas da comunicação costumam afirmar que
os acontecimentos imprevistos e notórios acabam prevalecendo na cobertu-
ra midiática (SOUSA, 1999), que se tornam notícia, pois contemplam parte
significativa dos critérios de noticiabilidade e/ou valores-notícia. Entre os
critérios de noticiabilidade, Wolf (1987) destaca a negatividade e o insólito
vinculados diretamente à situações imprevistas; Traquina (2005) classifica
a morte como o valor mais elevado de qualquer sistema de relevância ao se
produzir conteúdo jornalístico, além de apontar a novidade, o inesperado e
o escândalo como importantes valores.
Mesmo sendo programados, os pseudoeventos podem atender aos
critérios de noticiabilidade, como é o caso da brevidade e do caráter exaus-
tivo que Wolf (1987) aponta. Para Traquina (2005), fica evidente a relação
dessa classe de eventos com a notoriedade; a relevância; a notabilidade; a
disponibilidade, ou seja, “a facilidade com que é possível fazer a cobertu-
ra do acontecimento” (TRAQUINA, 2005, p. 115); e a personalização e a
adequação às rotinas temporais das organizações noticiosas. Ainda quando
possam ser enquadrados nesses critérios, o agendamento não é feito neces-
sariamente em função dos critérios de noticiabilidade, mesmo que sejam
usados para justificar a atenção ao evento e o espaço ocupado por ele na
cobertura noticiosa.
Somando-se a circunstância de previsibilidade dos eventos, todas as
vezes que um jornalista acompanha um fato, necessariamente uma proposta
de interpretação o acompanha, levando-o a procurar por novos dados para
demonstrá-la. É o que Alsina (2009), na perspectiva de Schutz (2003), en-
tende por mundos de referência, ou seja, em que “podemos enquadrar o
acontecimento do mundo real. É imprescindível, para a compreensão de um
acontecimento, o seu enquadramento no modelo de um mundo referencial”
(ALSINA, 2009, p. 307). Se começarmos por um mundo de referência, deve-
mos levar em conta alguns fatos e descartar outros. Assim, ele será o cerne de
um mundo possível narrado.
Partindo de um mundo de referência, o jornalista pode contribuir
com a hipótese da construção do temerário ou agenda-setting, que se fun-
damenta na pesquisa de relação entre os temas que foram destacados pela
170 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
mídia e os que são importantes para o público. Há uma relação direta e de
causa entre o conteúdo dos meios e a percepção do público do que seria o
assunto mais importante do dia. A hipótese do agendamento ganha força
devido à capacidade de redundância midiática, quando a mídia está deter-
minada a trabalhar algum assunto.
A cobertura sobre o tema suicídio no ano de 2017, pelos portais Cam-
po Grande News e Midiamax, corrobora essa situação. Em março daquele
ano, o Campo Grande News havia feito quatro publicações sobre suicídio.
No mês de abril, quando o fenômeno do desafio Baleia Azul passou a fazer
parte do noticiário, o número de divulgações subiu para 24 conteúdos pro-
duzidos relacionados ao autoextermínio, sendo 13 publicações relacionadas
ao desafio naquele mês. O mesmo fenômeno ocorre com Setembro Ama-
relo, mês institucionalmente dedicado à prevenção do suicídio em âmbito
nacional; enquanto que em agosto houve oito publicações relacionadas ao
assunto, no mês da campanha foram 26 conteúdos postados, o triplo do mês
anterior. Situação semelhante foi notada no portal Midiamax: em março de
2017, foram duas publicações sobre suicídio, enquanto que no mês de abril,
assim como ocorreu no Campo Grande News, apresentou 12 postagens,
sendo 11 relacionadas ao Baleia Azul. Já no Setembro Amarelo de 2017, o
Midiamax realizou sete postagens relacionadas ao autoextermínio, sendo
que seis eram referentes ao evento institucional, enquanto que em agosto
daquele ano, ocorreram apenas três publicações sobre suicídio.
O agendamento também apresenta seu lado reverso: a deteriora-
ção da informação e o esquecimento que ocorre em qualquer padrão de
aprendizagem. De acordo com McCombs e Shaw (2000), varia de oito a
26 semanas o ponto no tempo em que as correlações significativas entre a
agenda da mídia e a agenda pública desaparecem completamente. A rápida
deterioração, que nesse caso tendeu mais para oito do que para 26 semanas,
foi verificada nas abordagens dos dois veículos estudados em 2017. Em abril
de 2017, quando ocorreu o agendamento do tema Baleia Azul, houve 24
publicações sobre suicídio por parte do Campo Grande News, em maio e
junho, houve 12 e sete postagens, respectivamente. Os meses posteriores ao
Setembro Amarelo apresentaram o mesmo padrão: enquanto no mês institu-
cional foram 26 publicações sobre suicídio, em outubro e novembro foram
realizadas apenas 12 e cinco, respectivamente.
No portal Midiamax, o mês de abril de 2017 apresentou 12 publica-
ções sobre suicídio e em maio e junho, foram quatro e três conteúdos pos-
tados sobre o tema, respectivamente. Das 12 publicações de abril, 11 eram
sobre o Baleia Azul, enquanto que, das postadas em maio, três se referiam
ao desafio e em junho nenhum conteúdo estava relacionado ao desafio: a
deterioração, nesse caso, foi inferior a oito semanas. Os meses seguintes ao
Setembro Amarelo, em 2017, também manifestam um declínio relacionado
ao tema agendado. Setembro apresentou sete publicações sobre o tema,
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 171
sendo seis delas relacionadas à campanha. Outubro, por sua vez, apresen-
tou oito conteúdos sobre autoextermínio, embora apenas um deles tratasse
do evento institucional do mês anterior. Já durante novembro, o veículo
não publicou matérias sobre suicídio; manteve o padrão anterior, com uma
deterioração inferior a oito semanas. Importante destacar que, nesse caso,
analisa-se o agendamento do suicídio durante o mês institucional Setembro
Amarelo e como esse agendamento continua repercutindo ou não nas se-
manas e/ou meses seguintes.
Observa-se, por meio do número de divulgações dos portais estuda-
dos neste trabalho, referentes aos períodos de agendamento do Baleia Azul
e do Setembro Amarelo no ano de 2017, que o período de deterioração da
informação, quando se trata da temática suicídio, é mais rápido do que o
sugerido por McCombs e Shaw (de oito a 26 semanas). Nas duas situações
de agendamento analisadas, a deterioração da informação na mídia deu-se
antes das oito semanas. No Baleia Azul, as publicações se concentraram
majoritariamente no mês de abril (vindo a reduzir bruscamente as publica-
ções sobre o tema em maio) e no Setembro Amarelo, tendo como parâmetro
o ano de 2017, as divulgações relacionadas ao tema se concentraram, em
sua maioria, no mês de setembro.

As marcas de estigmas no fio discursivo

Neste tópico, as informações de periodicidade dessas publicações


serão tensionadas com o estudo de heterogeneidade enunciativa de Au-
thier-Revuz (1990; 2004), o qual auxiliará na identificação de marcas no
discurso jornalístico de Campo Grande News e Midiamax, indicando For-
mações Discursivas (FDs) e Formações Ideológicas (FIs) provenientes do
histórico individual e coletivo aos quais esses profissionais fazem ou fizeram
parte. Esses indicativos serão trabalhados juntamente com os atributos do
agendamento dos enunciados ao longo da cobertura midiática do Baleia
Azul e do Setembro Amarelo e os critérios de noticiabilidade que levaram
esses assuntos a atingirem expressiva repercussão midiática, especialmente
no ano de 2017.
O vínculo exercido entre as heterogeneidades enunciativas mostra-
das (AUTHIER-REVUZ, 2004) expressas no fio discursivo do enunciado
e o agendamento (McCOMBS; SHAW, 2000) ocorre devido ao fato de a
hipótese do agenda-setting trabalhar com a noção de redundância midiática
em determinado assunto. Para que a redundância ocorra, estabeleça-se e
continue atraindo a atenção do público, a imprensa necessita modificar os
atributos do agendamento ao longo do tempo. Nesse cenário de mobilida-
de de atributos, entra o conceito de heterogeneidade enunciativa, especial-
mente, a subcategoria mostrada, a qual fornecerá pistas sobre as múltiplas
formações ideológicas e discursivas que são materializadas no enunciado.
172 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Em constante negociação com a mostrada, está a subcategoria constitutiva,
que não se materializa no enunciado, mas é responsável pela formação da
identidade constitutiva do enunciador (ou jornalista) da matéria, identida-
de esta que pode ser proveniente de aspectos pessoais, culturais, sociais e
organizacionais, como afirma Schudson (1988).
Essa mobilidade de atributos permite identificar, também, se os jor-
nalistas argumentam para transformar a identidade do estigmatizado de
desacreditável para desacreditado (GOFFMAN, 2004) em seus textos, ou
se procuram trabalhar este aspecto no intuito de prevenir que o estigma se
prolifere influenciado pelos conteúdos. Outro conceito desenvolvido por
Goffman (2004) e analisado por meio de elementos de heterogeneidade
enunciativa mostrada e dos atributos do agendamento é a verificação se
os jornalistas se dirigem aos estigmatizados nos enunciados, contribuindo
para a construção de identidades sociais virtuais ou identidades sociais reais
das pessoas que cometeram e/ou tentaram suicídio. Será possível observar,
dessa forma, se há atribuições de julgamentos de valor nos textos a partir do
uso desses elementos.
O tipo de identidade conferida aos personagens das notícias somente
poderá ser constatado mediante a análise do modo como os jornalistas re-
produzem as tipificações dessas pessoas em seus enunciados. O processo de
constituição dos atributos de identidade ocorre por meio dos universos sim-
bólicos objetivados ao redor desses profissionais da imprensa, considerando
que, além de influências pessoais e culturais, os aspectos institucionais de
políticas editoriais das empresas jornalísticas também interferem na escolha
de seus funcionários durante a produção dos conteúdos, constituindo mun-
dos de referência desses enunciadores. Dessa forma, durante as análises,
os critérios de noticiabilidade utilizados pelos redatores do Campo Grande
News e do Midiamax, além da configuração do assunto suicídio em pseudo-
evento, fornecem indicadores a respeito dos enquadramentos referenciais
selecionados para produção dos conteúdos.
A formação dos mundos de referência provém de um Eu dialógico e
heterogêneo, que sofre múltiplas influências na sociedade. O jornalista que
desenvolve o enunciado nem sempre tem consciência de todos os fatores
que incidem nas suas escolhas ao produzir os conteúdos, visto que se trata
de um sujeito dividido e clivado.
Mesmo que não tenha consciência de todo esse processo, para So-
ares (2015, p. 119), o discurso é criado por meio da mensagem, “no mo-
mento em que algo escapa do instituído e deixa um rastro, surgindo como
inesperado, realizando uma peripécia, um lance que muda a face das coi-
sas”. A sociedade transmite aos indivíduos – com a linguagem e graças a
ela – estereótipos, que determinam certos comportamentos e valores ideoló-
gicos (FIORIN, 1988). A linguagem auxilia nos modos de ver a sociedade,
modos pelos quais o homem vê a si e aos outros (ALTHUSSER, 1974). Os
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 173
comportamentos são influenciados pela linguagem e é por meio desta que
a ideologia se materializa. O discurso tem em si estereótipos dos comporta-
mentos dos indivíduos que são vistos de forma positiva ou negativa. Os tabus
comportamentais, tal como o suicídio, são divulgados.
A partir do fenômeno ideológico aplicado na linguagem, instaura-se
a subjetividade do sujeito que, segundo Baccega (1995), é o resultado da
polifonia, ou seja, das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe e tem
a condição de reproduzir e/ou reelaborar. Para que tal ação ocorra, o sujeito
necessita participar de um ato de fala. De acordo com a autora, mediante
esse processo, “o indivíduo estabelece concretamente a redescoberta de um
conteúdo, a invenção” (BACCEGA, 1995, p. 39). E, como afirma Bakhtin/
Voloshinov (1988, p. 113), esse ato é “uma espécie de ponte lançada entre
mim e os outros”.
No entanto, a palavra é neutra em relação a qualquer função ideo-
lógica específica, embora acompanhe e comente todo ato de tal natureza.
Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica,
moral, religiosa. Para Bakhtin/Voloshinov (1988, p. 41), a fim de preencher
tais funções, “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideo-
lógicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”.
Com isso, o processo da fala, compreendida como processo de linguagem
tanto exterior como interior, é ininterrupto, não tem começo nem fim. De
acordo com Authier-Revuz (2004, p. 26), o sentido de um texto é inconclu-
so, “uma vez que ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que cons-
tituem suas leituras possíveis: pensa-se, evidentemente, na leitura plural”.
Nesse cenário, está a Análise do Discurso (AD) da linha francesa,
que compreende o discurso como uma manifestação, uma materialização
da ideologia da produção social. Mussalim (2000, p. 110) afirma que o su-
jeito não é o definidor dos sentidos e das possibilidades enunciativas do
próprio discurso, mas pode ser compreendido “como aquele que ocupa um
lugar social e a partir dele anuncia, sempre inserido no processo histórico
que lhe permite determinadas inserções e não outras”. O sentido do con-
texto histórico-social é considerado como parte constitutiva da AD, sendo
dividida em três frases: AD-1, AD-2 e AD-3. Na primeira fase (AD-1), segun-
do Pêcheux (1990), o indivíduo é assujeitado a uma maquinaria discursiva,
visto que o discurso que enuncia está limitado e submetido à determinada
regras específicas do contexto no qual vive.
A segunda fase (AD-2) é compreendida no interior da noção de for-
mação discursiva de Foucault (19967), marcada pela queda da noção de uni-
cidade do sujeito (pertencente à AD-1) e, consequentemente, caracterizada
pela dispersão, no sentido de não ser formado por elementos ligados entre si
(como era na primeira fase). O sujeito é marcado como aquele que desempe-
nha diferentes papéis de acordo com as várias posições que ocupa no espaço
7 A primeira edição deste livro foi publicada em Paris, na França, em 1971.

174 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


discursivo, por isso o sujeito pode estar em mais de uma formação discursi-
va. Porém, mesmo com essas características, não significa que o sujeito que
enuncia é totalmente livre, pois “sofre as coerções da formação discursiva
(FD) do interior da qual enuncia, já que esta é regulada por uma formação
ideológica (FI)” (MUSSALIM, 2000, p. 133).
Todavia, a desconstrução da maquinaria discursiva da AD-1 ocorre,
segundo Mussalim (2000), somente na AD-3, quando há um deslocamento
no que se refere à relação de uma FD com outras. Na AD-2, mesmo sendo
atravessado por outras formações discursivas, o sujeito mantém uma iden-
tidade fixa. Na AD-3, diferentemente da AD-2, os discursos que atravessam
uma FD não se constituem independente uns aos outros, mas se formam
no interior de um determinado interdiscurso. A relação interdiscursiva, ca-
racterizada por um sujeito heterogêneo, clivado e dividido (entre o cons-
ciente e o inconsciente) é, portanto, o pilar dessa terceira fase, a qual é o
foco do presente trabalho.
É nesse período que os estudos de Authier-Revuz (1990) em torno
da enunciação, ganham terreno. A teórica não se coloca como Analista
do Discurso da linha francesa (mas sim como Linguista da Enunciação),
embora sua afinidade com a AD seja inevitável, segundo Brandão (2012).
Authier-Revuz (2004) defende a ideia que a heterogeneidade é propriedade
constitutiva da linguagem, que pode ser apreendida no fio do discurso, na
superfície, na materialidade linguística do enunciado, por meio de marcas
que mostram e/ou sinalizam o outro. O discurso, para a pesquisadora, está a
todo tempo realizando o exercício dialógico e interdiscursivo, descartando
a possibilidade de ser fechado em si mesmo. Este procedimento coloca em
evidência as rupturas enunciativas do “fio do discurso”, surgindo assim um
discurso outro na própria formação discursiva (FD). Dessa forma, o estudo
da heterogeneidade enunciativa (especialmente a mostrada, analisada neste
artigo) apresenta importantes elementos à AD e, por meio desse viés, a aná-
lise do material noticioso é aqui realizada.
A heterogeneidade mostrada, que se encontra perceptível no fio do
discurso noticioso, é subdividida em: mostrada marcada e mostrada não
marcada. A mostrada marcada pode ser dividida em outros dois tipos:
1 - as que apresentam rupturas sintáticas e que marcam a procedência
da fala, por meio de índices formais como as que aparecem no discurso direto
(verbo de dizer + dois pontos), no discurso indireto (os conectivos que ou se +
mudança nos tempos verbais e formas pronominais), nas expressões que indi-
cam a procedência da voz (como: segundo, conforme, do ponto de vista de,
etc.). A esse primeiro tipo de heterogeneidade mostrada marcada, Authier-Re-
vuz (2004) denomina “autonímia simples”, na qual a heterogeneidade constitui
um fragmento mencionado entre os elementos linguísticos do discurso, haven-
do ruptura sintática, caso de dupla enunciação.
2 - as que não apresentam ruptura sintática, nem expressões que mar-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 175
cam a procedência da fala e que são sinalizadas de forma mais sutil, com
algum sinal que denuncie a presença do Outro. Marcas gráficas, como os
parênteses, as aspas, o itálico, negrito, sublinhado, servem como exemplos.
O emprego de um registro familiar em um discurso formal, o uso de gírias,
jargões técnicos em discursos em que essas expressões entram como corpo
estranho, as diferentes formas de metalinguagem, de ajuste da palavra ao
contexto (isto é, no melhor sentido), etc. A essa segunda categoria, Authie-
r-Revuz (2004) denomina “conotação autonímica”, na qual o fragmento
designado como Outro é integrado ao fio do discurso sem ruptura sintática:
“de estatuto complexo, o elemento mencionado é inscrito na continuidade
sintática do discurso ao mesmo tempo que remete a um exterior” (CAR-
DOSO, 2005, p. 75). Ou seja, nessas situações, a expressão com aspas ou
itálico, por exemplo, é ao mesmo tempo usada e mencionada.
A partir das heterogeneidades enunciativas de característica mostra-
da, especialmente as marcadas, que são majoritárias nos textos noticiosos,
(materializadas por meio de citação direta, indireta, aspas, negrito, itálico),
é possível analisar como os atributos referentes ao agendamento do desafio
Baleia Azul e da campanha Setembro Amarelo são aplicados em enunciados
dos portais Campo Grande News e do Midiamax, fornecendo indicadores
a respeito dos mundos de referência pelos quais os jornalistas desses sites se
norteiam para a composição dos pseudoeventos.
Verifica-se na análise deste trabalho se, no decorrer do agendamen-
to e na mobilidade de seus atributos, os jornalistas desses veículos atribuem
identidades sociais reais ou virtuais aos estigmatizados, sendo que, no caso da
segunda opção, o jornalista estaria auxiliando no desfavorecimento dos per-
sonagens relatados, contribuindo para que os indivíduos e/ou os que compar-
tilham esta condição – especificamente em casos de suicídios e/ou tentativas
– passem a figurar como desacreditados, segundo a concepção de Goffman
(2004). Por meio desses elementos manifestados nos textos, é possível decifrar
quais os outros discursos que perpassam pelas formações discursivas (FD) dos
profissionais de imprensa que têm seus textos analisados neste trabalho.
A seguir, será executada a análise de conteúdos dos portais Campo
Grande News e Midiamax no ano de 2017, referente aos períodos de reper-
cussão midiática do Baleia Azul e do Setembro Amarelo, a fim de verificar
os atributos e os critérios de noticiabilidade que indiquem os diferentes pe-
ríodos de agendamento, as produções de pseudoeventos e a presença de
elementos que mostrem a tendência voltada ao fortalecimento ou à manu-
tenção de estigmas por meio desses dois veículos.

Elucidações sobre o estigma na notícia

No âmbito do jornalismo, a decifração das marcas de heterogenei-


dades enunciativas mostradas auxiliam na identificação dos atributos utili-
176 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
zados durante o período de agendamento e dos critérios de noticiabilidade
utilizados pelo enunciador. Resta saber, com o auxílio desses elementos e
por meio das análises que serão expostas a seguir, qual o tipo de tratamen-
to que os portais noticiosos Campo Grande News e Midiamax concedem
a temas estigmatizados, especialmente em relação ao estigma que envol-
ve o assunto suicídio. As análises referem-se ao agendamento aplicado aos
enunciados de publicações noticiosas divulgadas nesses dois portais sobre o
desafio Baleia Azul e a campanha Setembro Amarelo, ambas veiculadas em
2017.
Tratando-se especificamente do Setembro Amarelo, a matéria Três
casos no dia de alerta confirmam: MS precisa falar de suicídio (assinada pelo
jornalista Carlos Freitas, 2017), relata três suicídios ocorridos no mesmo
dia, dentro do mês institucional de prevenção ao autoextermínio e no Dia
Mundial de Prevenção ao Suicídio, ocorrido em 10 de setembro. O título
mostra, em um primeiro momento, um enunciador supostamente preo-
cupado com o estigma e com o problema de saúde pública que envolve
o suicídio, principalmente no trecho do título que diz: “[...] MS precisa
falar de suicídio”. Em seguida, no enunciado do lead, o narrador alerta que
aquela é a data criada para as “pessoas refletirem sobre o problema”, con-
firmando sua preocupação. Percebe-se aqui a marca do agendamento do
tema e a presença do pseudoevento. O assunto torna-se pauta devido a uma
campanha governamental programada, caracterizando um pseudoevento
institucional.
No quarto parágrafo, o jornalista se coloca perplexo em torno de uma
das ocorrências, ao descrever em citação indireta: “[...] Ana não apresentava
nenhum indício de que poderia cometer tal ato, até mesmo porque, horas
antes, ela animara uma festa em família tocando violão. E não apresentava
sinais de depressão”. Nesse caso, por estar se tratando de uma informação
recebida pelos familiares da vítima em relação a um boletim de ocorrência,
trata-se de heterogeneidade enunciativa mostrada marcada, de autonímia
simples.
No quinto parágrafo, agora por meio de uso de heterogeneidade
enunciativa mostrada marcada de autonímia simples, o autor insere a fala
também de perplexidade de uma vizinha da vítima em relação ao ato. “Não
consigo colocar na minha cabeça que isso aconteceu`, diz a vizinha incré-
dula, que chegou a falar com Ana há alguns dias”. Esse tipo de inserção
na matéria, descrevendo o ato como inexplicável, acaba reproduzindo o
estigma, visto que reforça a ideia de que a vítima não tinha motivos para
se matar, isentando de responsabilidade a comunidade. Nesta matéria, as
vítimas são identificadas pelo nome, rompendo com o Artigo 7º e item IV,
do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que afirma ser proibida a ex-
posição de “[...] pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo
vedada a sua identificação [...]” (FENAJ, 2007). Esta publicação se enqua-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 177
dra também nos critérios de noticiabilidade de negatividade; de morte; de
proximidade, por tratar de casos ocorridos regionalmente; e inesperado, em
virtude da perplexidade dos entes queridos.
Os jornalistas podem também compartilhar sentimentos com os per-
sonagens e deixarem marcas durante o texto que caracterizam essa situação.
É o caso da notícia intitulada No Setembro Amarelo, mulher tenta suicídio,
mas sequer vê psiquiatra, publicada pelo Campo Grande News no dia 19 de
setembro de 2017. A presença da oração “sequer vê psiquiatra”, depois de si-
tuar o leitor na campanha Setembro Amarelo, demonstra indignação pessoal
por parte do autor, em relação a um problema em determinada unidade de
saúde. Essa insatisfação se torna ainda mais clara, por meio do subtítulo da
matéria que diz “O suicídio é o último ato contra o bem maior. E sai de lá
sem amparo, sem medicação, sem remédio” (assinada pela jornalista San-
tos, 2017). Mais uma vez o enunciador faz uso da contestação como desta-
que em seu texto (em mais uma situação de heterogeneidade enunciativa
mostrada marcada) para expressar sua desaprovação com a situação.
O terceiro parágrafo da mesma notícia apresenta na íntegra a cita-
ção presente no subtítulo da matéria, demostrando a insatisfação do entre-
vistado com as ações práticas realizadas durante o Setembro Amarelo pela
unidade de saúde, conforme diz a frase: “Fico chateada e muito indignada.
Coloca lá bonitinho “Setembro Amarelo”, mas não existe atendimento. O
suicídio é o último ato contra o bem maior. E sai de lá sem amparo, sem
medicação, sem remédio”. A ironia por meio do uso do diminutivo reforça
ainda mais a crítica em relação à forma como os gestores estão lidando com
a situação da carência de psiquiatras para atender no local. A indignação é
reforçada posteriormente pela acompanhante da paciente, no sexto parágra-
fo, que também está marcado por uma citação direta, com ruptura sintática
(autonímia simples) e heterogeneidade enunciativa mostrada marcada.
Ao expressar a indignação de um dos entrevistados e destacá-la, in-
clusive no subtítulo do texto, o autor da matéria mostra a própria indigna-
ção, decorrente de sua formação discursiva (FD) e ideológica (FI). Devido
à explicitação da preocupação em relação às condições de saúde pública
do local, a matéria mostra no seu fio discursivo o intuito de contraposição
ao estigma trazendo, inclusive no decorrer do texto, em tom de denúncia,
a opinião de um especialista em relação à ausência de profissionais para
os atendimentos psiquiátricos e o consequente prejuízo para a população.
De toda forma, a matéria não deixa de ser um pseudoevento, por ser pro-
gramada e ter forte apelo em função de uma campanha institucional. A
notícia se enquadra nos seguintes critérios de noticiabilidade: negatividade;
atualidade; caráter exaustivo; a morte; a proximidade (por estar enquadrada
na editoria Capital e tratar de um fato ocorrido em Campo Grande); o
conflito; a amplificação e a relevância.
No mesmo mês, no dia 22 de setembro de 2017, o Midiamax publi-
178 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
cou a matéria Mais de 11 mil pessoas se suicidam por ano no Brasil, aponta
estudo, evidenciando outro estigma agrupado ao do suicídio: o do indígena.
Tendo o enfoque na alta taxa de suicídios no Brasil por meio do título, a
matéria coloca como informação de segundo plano, no subtítulo que “Bo-
letim mostra que indígenas são os que mais se matam”. Nesses casos, título,
subtítulo e lead apresentam heterogeneidades enunciativas mostradas mar-
cadas de autonímia simples, pois, por meio do discurso indireto, o jornalista
insere suas informações baseado em um levantamento do Ministério da
Saúde. No entanto, os dados em relação aos indígenas que estão descritos
no subtítulo não aparecem no lead, nem no parágrafo seguinte.
A notícia não insere opiniões de lideranças indígenas, silenciando
a voz desse grupo e estigmatizando-os duplamente (em decorrência da et-
nia e do suicídio). De acordo com o jornalista identificado como M2, esse
fator faz parte da política editorial do Midiamax, pois “matérias que falam
de índios não têm leitura” (M2, 2019). O profissional afirma que, nesses
casos, “opta-se no por não colocar no título que a matéria se refere a índios
ou indígenas, a não ser que não tenha jeito”. Entre os critérios de noticia-
bilidade estão negatividade, proximidade (por tratar de um dado nacional)
e relevância. A temática dos indígenas só vem à tona em decorrência do
agendamento e do pseudoevento em torna do Setembro Amarelo.
Em relação ao desafio Baleia Azul, o Campo Grande News publicou
no dia 19 de abril de 2017, a notícia Carta sobre “jogo do suicídio” será en-
viada a pais e professores de MS (assinada pela jornalista Gurgel, 2017). Ob-
serva-se que existem aspas para marcar “jogo do suicídio”, caracterizando
heterogeneidade enunciativa mostrada marcada, de conotação autonímica,
na qual não há ruptura sintática no enunciado. As aspas são usadas para
atribuir juízos de valor referentes ao jogo, como forma de contestação da
própria opinião do autor em torno do desafio.
A atribuição “jogo do suicídio” pode acarretar uma situação de pâni-
co e insegurança, própria da negatividade presente nos critérios de noticia-
bilidade trabalhados por Sousa (1999), Shoemaker (2006) e Wolf (1987).
Este foi o início para o agendamento (McCOMBS; SHAW, 2000) em torno
do tema pelo portal. Verifica-se, por meio dessa publicação, o enquadra-
mento do critério de noticiabilidade insólito, em decorrência de um supos-
to jogo que poderia levar jovens e crianças à morte.
A notícia apresenta 11 parágrafos e o jornalista responsável destaca,
assim como no lead, a carta que está sendo elaborada pela Secretaria Es-
tadual, na qual relata, por meio de discurso indireto de heterogeneidade
enunciativa mostrada marcada (conotação autonímica), que “o objetivo é
que o texto, com alertas e esclarecimentos sobre o “jogo mortal”, seja enca-
minhado a professores, pais e responsáveis de alunos de todas as escolas da
rede estadual de ensino”. Assim como no título, insere-se uma adjetivação
para se referir ao jogo, dessa vez como “jogo mortal”. O jornalista procura
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 179
construir uma situação de negatividade e vigilância sobre o tema. Apenas
no último parágrafo do texto, o autor da matéria insere – por meio de um
discurso direto de heterogeneidade enunciativa mostrada marcada (auto-
nímia simples) – parte da nota da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, na
qual é afirmado que “Muitas pessoas aproveitam o calor dos assuntos que
preocupam a sociedade para fazer brincadeiras de mau gosto e emplacar
boatos”. Se esta parte da nota, de caráter cautelar, fosse inserida no título,
subtítulo ou no lead, o desenvolvimento do texto poderia ter sido diferente.
Porém, opta-se pelo critério da negatividade como prioritário, além de apre-
sentar também os seguintes critérios de noticiabilidade; brevidade; negati-
vidade; atualidade; proximidade (por se referir a uma notícia sobre o estado
de Mato Grosso do Sul) e dramatização.
Tratando do mesmo tema, no dia 20 de abril de 2017, o Midiamax
publica a notícia Para vereadores, “Baleia Azul” é reflexo de internet demais
e amor de menos (assinada pelo jornalista Moura, 2017). Por influência do
agendamento que o tema provocava na mídia naquele momento, o assunto
foi debatido entre os vereadores de Campo Grande, na sessão da Câmara
Municipal no dia da publicação da matéria. No título e durante o texto, é
possível identificar a presença de formações discursivas (FD) e ideológicas
(FI) dos parlamentares citados. Os parágrafos terceiro e quarto, por exem-
plo, relatam a opinião de um vereador do PSB (Partido Socialista Brasilei-
ra), trazendo à tona a sua formação ideológica (FI) embasada na sustenta-
ção da família e na criação tradicional à qual foi supostamente submetido.
O parlamentar compara a Vara da Infância (segmento criado para proteção
da criança) à vara da goiabeira (utilizada pelos adultos para agredir as crian-
ças). O jornalista autor da matéria, nesse caso, insere a fala do vereador por
citação direta (heterogeneidade enunciativa mostrada marcada de autoní-
mia simples) quando é dito: “[...] é a falta da religiosidade, falta de Deus.
A escola ajuda, mas não resolve de verdade. Na minha época a Vara da In-
fância era a vara da goiabeira. Não tinham psicólogo”, afirmou o vereador.
A formação ideológica (FI), relacionada a um aspecto tradicional fa-
miliar, é reforçada no texto também por outros dois vereadores, do PDT
(Partido Democrátrico Brasileiro) e do SD (Solidariedade). Ambos os pro-
nunciamentos também são introduzidos pelo autor da matéria por meio
de citação direta. O primeiro citado afirma que o jogo “é um sintoma da
falência da instituição família”, enquanto o segundo diz que o parlamento
precisa “estar atento para consolidar o ambiente familiar”. No quinto pará-
grafo, o redator da matéria também demonstra aversão à internet exposta
por um vereador do PT (Partido dos Trabalhadores). Primeiramente, por
meio de uma citação indireta (caracterizada por heterogeneidade enuncia-
tiva mostrada marcada de autonímia simples), o jornalista relata a fala do
vereador, dizendo que os pais precisam proibir os filhos de acessar o Face-
book. Em seguida, insere uma citação direta (novamente heterogeneidade
180 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
enunciativa mostrada marcada de autonímia simples) desse vereador do PT,
demonstrando insatisfação em relação à política de proteção às crianças: a
matéria menciona que esse vereador disse ter começado a trabalhar aos dez
anos de idade, ajudando o pai: “os pais precisam proibir os filhos de acessar
o Facebook. [...] Isso é por causa da globalização, falta de amor e carinho”.
Percebe-se, pela forma como foi construído o texto, a recorrência da
heterogeneidade enunciativa mostrada marcada de autonímia simples, que
se manifesta nove vezes, incluindo o subtítulo e os parágrafos 2, 4, 5, 6, 8 e
9, nos pronunciamentos de vereadores dos seguintes partidos: um do PSDB
(Partido da Social Democracia Brasileira), um do PT, um do PP ( Partido
Progressista), dois do PDT, um do Avante e um do SD.
O jornalista inclui integrantes de partidos distintos para se travestir
do preceito jornalístico da imparcialidade e direcionar uma interpretação
religiosa e conservadora em torno do desafio Baleia Azul. Essas demonstra-
ções manifestam formações ideológicas (FI) majoritariamente provindas de
FDs cristãs e conservadoras, preocupadas com a manutenção da estrutura
familiar e com aversão à internet. Além do mais, a seleção dessas várias ci-
tações no mesmo texto podem significar uma negociação entre a heteroge-
neidade mostrada e constitutiva do autor da matéria, podendo vir de FDs e
FIs voltadas ao tradicionalismo familiar e aos preceitos cristãos, assim como
seus entrevistados. Devido às situações relatadas e do caráter alarmante ca-
racterizado pelo viés religioso do conteúdo, essa matéria enquadra-se nos
critérios de noticiabilidade: de negatividade; de atualidade (por estar no
auge do agendamento do tema); e de proximidade (por dar espaço discursi-
vo no texto a vereadores de Campo Grande).
Essas matérias foram publicadas menos de um mês depois do lança-
mento da série 13 Reasons Why, da produtora norte-americana Netflix, (lan-
çada em 31 de março de 2017), que suscita debates em torno do suicídio
como tema principal e outras problemáticas da sociedade contemporânea,
tais como a depressão e o bullying. A série e o desafio Baleia Azul alcançaram
expressiva repercussão na imprensa brasileira entre abril e julho de 2017,
gerando pânico e amedrontando familiares de crianças e adolescentes brasi-
leiros. Verifica-se, por meio desse fato, um tipo de pseudoevento comercial.
Em ambos os períodos de agendamento, verificam-se marcas no de-
correr do texto e opções por determinados critérios de noticiabilidade, que
expõem a presença de heterogeneidades enunciativas mostradas, descorti-
nando situações de pseudoeventos nos dois casos: no Baleia Azul, de caráter
comercial, devido à série 13 Reasons Why; no Setembro Amarelo, de cará-
ter institucional, em virtude da campanha governamental. Os dois eventos
apresentam caráter programático e exibem a manutenção do estigma no fio
discursivo.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 181


Considerações finais

Sendo um tema estigmatizado e de alta complexidade, o suicídio


é um assunto que exige dos jornalistas cuidados específicos, perpassando
por aspectos éticos e deontológicos da esfera comunicacional e jornalística.
Entretanto, os profissionais das redações não são os únicos responsáveis pela
proliferação ou combate a este tipo de estigma. É importante frisar que o
processo de produção da notícia abarca nuances que abrangem aspectos
pessoais, culturais e sociais, como afirma Schudson (1988), e também in-
fluenciam diretamente no conteúdo midiático. De qualquer forma, é pru-
dente ter cuidado no tratamento desse tipo de conteúdo, que pode acarretar
o reforço da carga negativa atribuída às pessoas envolvidas direta ou indire-
tamente com a situação do suicídio (consumado ou não).
As análises realizadas neste trabalho mostraram que a pessoa que está
na condição de estigmatizado é posta à margem de universos simbólicos
socialmente estabelecidos, devido a situações de culpa e desacreditação que
envolvem seu caráter, além de questões polêmicas relacionadas à raça e à
religião. Quando o estigma é exposto (por meio do conteúdo noticioso, nos
casos analisados neste artigo), é comum o indivíduo e seus entes queridos
serem submetidos a constrangimentos e à atribuição do sentimento de ver-
gonha decorrente da condição negativa que sustentam no âmbito social.
A fim de entender como o autoextermínio é abordado no material
noticioso, a hipótese do agendamento é aplicada neste trabalho, sendo re-
sultado da dissertação de mestrado Agendamento midiático e o tratamento
de temas estigmatizados: o fenômeno suicídio nos enunciados jornalísticos de
sites de notícia em Campo Grande, da qual podem resultar mais artigos em
relação a essa abordagem.
A hipótese do agendamento tem como princípio a apreciação dos
assuntos que são incluídos ou excluídos das programações, de acordo com
o nível de impacto e o grau hierárquico dos indivíduos envolvidos no acon-
tecimento, baseando-se na técnica de redundância midiática. Para os pre-
cursores do agendamento, McCombs e Shaw (2000), a deterioração da
informação ocorre em um período de oito a 26 semanas, mas no caso das
coberturas do Setembro Amarelo e do Baleia Azul, a deterioração ocorreu
em um período inferior a oito semanas nos portais Campo Grande News e
Midiamax, o que confere certa atipicidade ao tratamento dado ao suicídio,
como tema de alta complexidade, pouco agendado e que apresenta certa
relutância dos veículos de comunicação em sua abordagem.
Neste trabalho verificou-se ainda que a previsibilidade da informa-
ção é um dos pilares para a alta demanda de conteúdos produzidos pela
imprensa durante todo o ano e que, nesse contexto, a produção de pseudo-
eventos, arquitetada por agentes sociais extraorganizacionais ocultos, pos-
sibilita que determinados fatos e/ou assuntos se destaquem em detrimento
182 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
de outros. Durante a campanha Setembro Amarelo, por exemplo, os sites
analisados utilizaram de forma majoritária informações trazidas por esses
interessados para construírem seus discursos (como os dados fornecidos
pelo governo). Movimento semelhante ocorreu durante o desafio da Baleia
Azul, assunto este que ganhou ênfase de forma paralela ao surgimento da
série 13 Reasons Why.
Logo, esses pseudoeventos (um de natureza institucional e o ou-
tro comercial, respectivamente) apresentam construções que tendem a
reforçar – pela periodicidade de agendamento, pela efemeridade de sua
permanência em pauta e pelo tratamento dado ao tema –, em parte dos
conteúdos, estigmas, preconceitos e estereótipos presentes na sociedade em
relação a este tema de alta complexidade. Além disso, percebeu-se que o
critério de noticiabilidade/negatividade prevaleceu, tanto no Campo Gran-
de News como no Midiamax, nos dois períodos analisados, o que contribui
para reforçar o estigma.
De todo modo, embora possa atrair cliques por meio de uma aborda-
gem negativa e/ou policialesca, em poucos casos existem “ganhadores” du-
rante o tratamento desse tema, pois o setor privado dificilmente lucra com
esse assunto e não gera expressivo interesse ao setor público. Os implicados
geralmente preferem não ser reconhecidos (para não se enquadrarem na
categoria de estigmatizados).
As elucidações desses agendamentos e pseudoeventos ficaram ainda
mais perceptíveis com o apoio da teoria de heterogeneidade enunciativa,
sendo possível verificar as situações em que o estigma se materializou nos
enunciados e em quais casos houve o viés de contraposição ao tabu. Na
maioria dos casos analisados, as matérias se enquadram como heterogenei-
dade enunciativa mostrada marcada, visto que foi necessária a inserção do
Outro (no caso dos entrevistados), seja por citação direta ou indireta. Por
meio desses elementos aplicados às notícias, perceberam-se vestígios que
estereotipam os indivíduos com identidades sociais virtuais e os colocam
em contraposição a suas identidades reais, vindo a deslocá-los das condições
de desacreditáveis para desacreditados.
Verificou-se que a heterogeneidade enunciativa constitutiva também
tem importância substancial nesse caso. Embora não esteja materializada
no enunciado, esse tipo de heterogeneidade é responsável pela identidade
constitutiva do jornalista, abarcando consequentemente aspectos pessoais,
culturais, sociais e organizacionais. Este último aspecto é essencial, pois o
profissional enfrenta situações decisivas para a composição dos enunciados
durante a rotina de produção na redação, como obedecer às políticas edi-
torias em relação a temas tabus e de tratamento complexo. Essas facetas
constitutivas do profissional não estão expressas nos enunciados, mas são
indispensáveis na compreensão do tratamento de temas estigmatizados e de
alta complexidade.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 183
Como balanço do mapeamento quantitativo e da análise qualitativa
sustentada pelo estudo de heterogeneidades enunciativas, notou-se o predo-
mínio do sentido comum em relação ao fenômeno suicídio como caracte-
rístico, manifesto algumas vezes no enunciado das matérias, até mesmo nas
citações de seus entrevistados. Frequentes citações incluídas nas matérias
mostram que os indivíduos que cometeram suicídio ou tentaram, eram/são
pessoas bem humoradas, trabalhadoras, com filhos, como se essas caracte-
rísticas significassem imunidade contra o autoextermínio.
Observa-se ainda que, por meio das análises expostas, em alguns casos,
estereótipos e preconceitos sociais são explanados. Essas situações aparecem
nos enunciados quando os jornalistas insistem, por recorrência, na inserção
de opiniões de agentes sociais que apresentam vieses conservadores, penden-
do, por exemplo, para a manutenção da família tradicional e para uma forma-
ção ideológica religiosa, apontando serem essas as soluções para a prevenção
ao autoextermínio. Atores sociais esses, que, em parte das análises, são políti-
cos locais, que substituem nas matérias, como pessoa informada no assunto,
os especialistas de saúde mental e buscam, nessas ocasiões, beneficiarem-se
dos acontecimentos por meio de discursos acalorados.
A fugacidade na deterioração do agendamento de assuntos que
envolvem o tema suicídio reflete uma queda da audiência pela continui-
dade do debate, em virtude do fato de que se trata de um tema de alta
complexidade e estigmatizado. Esse fenômeno fugaz demonstra também
o desconhecimento da população em relação ao assunto, concedendo a
percepção de que, em torno da morte, ainda circulam muitos mistérios.
O pouco conhecimento do jornalista em relação ao fenômeno o induz a
construir enunciados que, por vezes, corroboram a alimentar estigmas em
torno do fenômeno suicídio, em ocasiões em que culpas são atribuídas aos
estigmatizados.
Os fatores demonstrados e problematizados neste trabalho indicam
que a cobertura do assunto suicídio pela imprensa local perpassa por dife-
rentes aspectos (pessoal, cultural, social e organizacional). No entanto, o
jornalista aparece como sendo mais influenciado pelo estigma em torno
do suicídio do que propriamente influenciador desse fenômeno. Embora
os portais noticiosos estudados nesta pesquisa não produzam estigmas, eles
reproduzem signos, universos simbólicos, mundos referenciais e dinâmicas
sociais que envolvem e reforçam a visão predominante sobre este tema de
alta complexidade.

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186 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Direitos humanos no Campo Grande News: análise
do discurso jornalístico a partir da
interseccionalidade gênero e infância1
Lynara Ojeda de SOUZA2
Katarini Giroldo MIGUEL3

Introdução

Os direitos humanos e sua efetivação constituem uma temática social


recorrente, principalmente quando nos deparamos com acontecimentos vio-
ladores da dignidade do indivíduo. Ao se pensar na luta histórica por direitos
humanos, é possível defini-la como uma busca pela alteridade e pelo com-
promisso com a inviolabilidade do outro (COMPARATO, 2010). Ao longo
da história, existiu uma necessidade humana em identificar instrumentos ou
mecanismos que garantissem a liberdade individual, o ir e vir, o livre pensar,
a livre manifestação de ideias, enfim, assegurar ao indivíduo a possibilidade
de ser ele mesmo e de manifestar sua presença no mundo. A partir dessa con-
cepção, desenvolvem-se os princípios e normativas para assegurar a dignidade
e liberdade dos sujeitos. Para Luño (1990, p. 48), os direitos humanos podem
ser reconhecidos como:

Um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momen-


to histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liber-
dade e da igualdade humana, as quais devem ser reconhecidas
positivamente pelos ordenamentos jurídicos a nível nacional e
internacional.

Desde o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem


de 1948 e a reiteração na Declaração de Direitos Humanos de Viena de
1993, a sociedade ocidental tem-se organizado para compreender o con-
junto mínimo de direitos que cada ser humano possui, baseado no respeito
e garantia de sua dignidade. Daí decorre a importância dos direitos huma-
1 Este capítulo resulta de dados da dissertação de Mestrado Direitos humanos no ciberjornal Campo
Grande News: a construção de sentido na abordagem sobre mulheres, povos indígenas, crianças e ado-
lescentes, defendida em 02 de julho de 2018, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCom/UFMS). A banca teve como membros a
orientadora Profa. Dra. Katarini Giroldo Miguel (UFMS), Profa. Dra. Maria Luceli Faria Batistote
(UFMS) e Prof. Dr. Jorge Kanehide Ijuim (UFSC).
2 Doutoranda em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em
Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMS. E-mail: lynaraoje-
da@gmail.com.
3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS) e do curso de Jornalismo da mesma instituição. Doutora em Comunicação
pela Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: katarini.miguel@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 187


nos no mundo contemporâneo, bem como a incorporação do tema nos
discursos e atividades por parte de diversos segmentos da sociedade, prin-
cipalmente governos, movimentos sociais e veículos de comunicação que
consideramos determinantes para pautar os temas sociais e contribuir com
o debate público.
A imprensa é tida como estratégica e fundamental para a fiscaliza-
ção, promoção e divulgação dos preceitos legais, sendo em boa parte das ve-
zes o único meio de divulgação de direitos básicos e informações de serviços
de relevância pública. É no entendimento de que o trabalho jornalístico é
capaz de visibilizar diferentes temáticas e revelar as complexidades sociais
que envolvem as mudanças de paradigmas nos direitos fundamentais que
este trabalho está ancorado.
Medina (2000) ressalta a importância da postura e atuação do jorna-
lista na construção da notícia, indicando a sensibilidade e o diálogo como
elementos fundamentais. Ao se pensar em temáticas sensíveis, que exigem do
profissional uma abordagem cuidadosa e comprometida com a profundidade
dos fenômenos para que não haja revitimização de direitos ou novas viola-
ções, o pensamento de Medina se mostra ainda mais pertinente. A autora
também reforça a relevância da apropriação das práticas éticas e técnicas da
profissão, e o reconhecimento das limitações no fazer jornalístico.
Para observar como isso se dá empiricamente, este trabalho recupera
os resultados da dissertação de Mestrado em Comunicação: Direitos humanos
no ciberjornal Campo Grande News: a construção de sentido na abordagem
sobre mulheres, povos indígenas, crianças e adolescentes, defendida na Univer-
sidade Federal de Mato Grosso do Sul, em 2018. Investigamos a cobertu-
ra jornalística realizada pelo Campo Grande News4, durante o ano de 2016, a
partir dos três subtemas: mulheres, povos indígenas e crianças e adolescentes.
Com base em um levantamento quantitativo, selecionamos um corpus, base-
ado num trajeto temático que cruza os subtemas supracitados, para aplicação
de um protocolo de análise de discurso que observou a construção textual das
notícias a partir dos itens lexicais, técnicas argumentativas, heterogeneidade e
silenciamento. Os procedimentos metodológicos serão detalhados quando na
apresentação das análises dos três textos que interseccionam as categorias gê-
nero e infância. Antes disso, propomos um debate sobre o conceito de direitos
humanos, suas especificidades e ressignificações, seguido pelo entendimento
do lugar da prática jornalística neste debate.

Incompletudes e limitações na ideia de universalidade dos direitos humanos

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 representa


4 Fundado em março de 1999, atualmente é o ciberjornal mais acessado do Estado, com média de
quatro milhões de visitas mensais. Dados do site https://www.similarweb.com tendo como referên-
cia o mês de julho de 2020. Acesso em 12 de ago. de 2020.

188 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


a concepção contemporânea dos direitos humanos, uma vez que, a partir
dela, é fixada a ideia de que esses direitos são universais, incorporando ainda
em seu conjunto, além dos direitos civis e políticos, os sociais, econômicos
e culturais (PIOVESAN, 2014). Entretanto, o reconhecimento formal de
direitos, por si, não dá garantia às pessoas de que esses direitos serão respei-
tados ou colocados em prática.
Santos (2009) justifica que a complexidade dos direitos humanos
está justamente na ideia de universalidade, desconsiderando as especifici-
dades de cada localidade. O autor defende que não é possível falar de direi-
tos humanos sem, simultaneamente, criticá-los. Isso não significa que eles
não gozam de legitimidade ou eficácia, mas como indica Arendt (2012),
são construídos e reconstruídos, conhecidos e reconhecidos, modelados e
remodelados em um espaço de produção e reprodução inesgotável de con-
tradições sociais, sendo, portanto, inevitavelmente, um campo de conflitos.
Santos (2013) denuncia que alguns grupos sociais, a partir dessa lógica glo-
balizada de direitos, acabam tornando-se apenas objetos do discurso hege-
mônico e não sujeitos de direitos humanos.
Para o autor, é preciso romper com um conceito que não considera
as especificidades de uma sociedade plural e, por essa razão, em muitos
momentos, não garante a efetividade de direitos preconizados no âmbito
legislativo. Aponta a necessidade de compreender como se dá esse pro-
cesso, sobretudo, discursivo dos direitos humanos, que invisibiliza grupos
sociais.

Comecemos por reconhecer que os direitos e o direito têm uma


genealogia dupla na modernidade ocidental. Por um lado, uma
genealogia abissal. Concebo as versões dominantes da moderni-
dade ocidental construída a partir de um pensamento abissal, um
pensamento que dividiu abissalmente o mundo entre sociedades
metropolitanas e coloniais. Dividiu-o de tal modo que as realida-
des e práticas existentes do lado de lá da linha, nas colônias, não
podiam por em causa a universalidade das teorias e das práticas
que vigoravam na metrópole, do lado de cá da linha. E, nesse
sentido, eram invisíveis. Ora enquanto discurso de emancipação,
os direitos humanos foram historicamente concebidos para vigo-
rar apenas do lado de cá da linha abissal, nas sociedades metro-
politanas (SANTOS, 2013, p.44).

Para ele, a linha abissal continua dividindo a sociedade, tendo o con-


ceito de emancipação e liberdade como escudo:

Tenho vindo a defender que esta linha abissal, que produz ex-
clusões radicais, longe de ter sido eliminada com o fim do co-
lonialismo histórico, continua sob outras formas [...]. O direito
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 189
internacional e as doutrinas convencionais dos direitos humanos
têm sido usados como garantias dessa continuidade (SANTOS,
2013, p. 44).

Santos (2013) ainda problematiza não a existência do universal e do


particular, mas sim a forma como eles dialogam, ou seja, o desafio, para au-
tor, está em como o lado de cá da linha tem negado a existência do lado de
lá. O discurso de legitimação dos direitos humanos só se dá de um lado nas
sociedades metropolitanas.
Portanto, a construção e aprovação de mecanismos legais para preco-
nizar o respeito e a defesa da dignidade humana não são capazes de alterar
a realidade se não contarem com um contexto social e histórico que dê
suporte à efetivação. Desse modo, ao longo da história, a finalidade dos
direitos humanos foi variando para se adaptar às concepções de viver e en-
xergar o mundo de cada momento. Como explica Vieira (2011, p. 79), eles
“já serviram desde um símbolo de luta contra abusos de poder até suportes
formais de proteção teórica, passando, inclusive, por moedas simbólicas de
troca na esfera internacional”.
No Brasil, a Constituição Federal foi promulgada em 5 de outubro
de 1988 e em seu artigo 1° traz que “a República Federativa, formada pela
união indissociável dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, consti-
tui-se em Estado Democrático de Direito em tem como fundamentos: II – a
cidadania; III – a dignidade da pessoa humana”.
A partir dela, observa-se que a dignidade humana pode ser consi-
derada o fundamento do Estado brasileiro. Embora existam legislações e
acordos internacionais que indicam os direitos humanos como um concei-
to central para a manutenção da dignidade do indivíduo, as violações são
constantes e centradas em segmentos já vulneráveis como os focalizados na
nossa pesquisa: mulheres, crianças, povos tradicionais.
Assim como acontece em âmbito internacional e nacional, onde os
direitos humanos e cidadania estão inseridos em um contexto de construção
e disputa simbólica que dificultam sua efetivação, no estado de Mato Grosso
do Sul essa lógica se repete. E mesmo não sendo possível criar níveis e crité-
rios de direitos humanos mais ou menos violados, uma vez que, como explica
Amorim (2012), a violência é um fenômeno complexo e com múltiplas de-
terminações, cada violação possui suas características e se consolida de forma
única para o indivíduo que sofre, pode-se afirmar que, dentro da realidade
brasileira, alguns segmentos têm mais urgência em suas demandas.
Dando enfoque às categorias gênero e infância, números do Conse-
lho Nacional de Justiça (CNJ/2017)5 indicam Mato Grosso do Sul como o
5 Dados divulgados no relatório O poder judiciário na aplicação da lei Maria da Penha. Disponível
em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/10/ba9a59b474f22bbdbf7cd4f7e3829aa6.
pdf. Acesso em: 18 nov.2019.

190 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


segundo estado brasileiro com maior incidência de processos de violência
doméstica contra a mulher. Já na temática que envolve a população infan-
to-juvenil, de acordo com Disque Direitos Humanos - 100, serviço de aten-
dimento telefônico que recebe denúncias de violações de direitos, foram
realizadas 80,4 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes,
sendo que Campo Grande registrou 2.253 ocorrências na Delegacia Espe-
cial de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA). De janeiro até abril
de 2018, 381 casos de abusos e estupros cometidos contra crianças e adoles-
centes foram registrados em MS, de acordo com a Secretaria de Estado de
Justiça e Segurança Pública (SEJUSP).
O período escolhido também carrega particularidades que denotam
a urgência de pesquisas: 2016 foi o ano subsequente à criação da primei-
ra Casa da Mulher Brasileira do país no município de Campo Grande, o
que sugere maior incidência de notícias e dados relacionados à violência
de gênero nos jornais da capital sul-mato-grossense. Além disso, foi o ano
subsequente ao primeiro pleito unificado para escolha dos membros dos
Conselhos Tutelares no Brasil, o que potencializa as pautas relacionadas à
proteção infanto-juvenil na imprensa.
Os dados acima indicam que, mesmo havendo um esforço para a
ampla garantia da dignidade humana e pela inviolabilidade de direitos, na
prática, ainda existe um abismo que separa o que foi estabelecido em decla-
rações e convenções e a vivência plena desses direitos para muitos sujeitos.
Ao presente trabalho interessa esse questionamento no que diz respeito aos
jornalistas. De que lado estão? O discurso jornalístico tem buscado desvelar
as injustiças ou só reproduz o pensamento hegemônico, de modo a reforçar
o distanciamento entre os dois lados da linha abissal? É um discurso que dá
voz aos grupos minoritários6.

Do jornalismo que se sabe ao jornalismo que se faz

É reconhecida a relevância do papel da imprensa na luta contra re-


gimes violentos, bem como na denúncia de atrocidades cometidas. A ativi-
dade jornalística apresenta-se como importante sentinela e protagonista no
controle social de Estados para a não violação dos direitos humanos.

O cerceamento da atividade jornalística em regimes autoritários


é uma prova da importância da mídia no controle social do Esta-
do como potencial violador de direitos humanos. Nas democra-
cias, por sua vez, a imprensa, mais livre, é uma das instituições
centralmente envolvidas na promoção, proteção e apontamento
6 Entendemos minoria aqui, a partir de Sodré (2005), como grupos que não têm espaço social
consolidado ou mesmo voz ativa para intervirem nas instâncias decisórias, portanto lutam por visi-
bilidade e reconhecimento. Nesse sentido, debatemos na dissertação que as minorias são produto
dessa lógica de não existência da classificação social, problematizada por Boaventura Sousa Santos.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 191


de violação dos direitos humanos. Valendo-se do instrumental
que os jornalistas têm à sua disposição – a investigação, o texto,
a imagem e o áudio –, a mídia pode contribuir para um agenda-
mento contextualizado do debate público (ANDI, 2006, p. 29).

Como Gomes (2003) explica: é a ação política e a busca pela justiça


que dão sentido ao jornalismo.

O jornalismo tem, entre outras, uma origem panfletária que con-


clama à ação política, que congrega em torno de ideais e mobili-
za em direção à lutas. Se ele conserva esta veia, ainda que muitas
vezes só insinuada pela posição ideológica das empresas jorna-
lísticas, ela se revela no que aparece como evidente marca das
últimas décadas: a visada da crítica, da denúncia, da vigilância,
do apelo à justiça, que lhe é vital (GOMES, 2003, p. 15).

Desse modo, uma prática jornalística dedicada à contextualização


das notícias é capaz de fortalecer a cidadania, revigorar e ampliar o capital
social. Outro papel relevante dos veículos de imprensa diz respeito à sua
capacidade de influenciar a construção da agenda pública, auxiliando di-
retamente na tomada das decisões por parte dos agentes públicos, além de
atuar como vigilantes da construção e efetivação das políticas de direitos.
Em diversas situações, é a partir do momento em que a imprensa lança
luz sobre direitos humanos violados ou escassez de políticas públicas que a
população passa a cobrar do Estado a garantia da cidadania.

Frequentemente, as questões abordadas no noticiário constituem


focos prioritários do interesse dos decisores públicos – e dos ato-
res sociais e políticos de maneira geral –, influenciando sobre-
maneira a definição de suas linhas de atuação. Por outro lado, os
assuntos “esquecidos” pelos jornalistas dificilmente conseguirão
receber atenção da sociedade e, consequentemente, dos gover-
nos. Não é difícil imaginar, portanto, os impactos de uma cober-
tura abrangente e qualificada (ANDI, 2006, p. 15).

No entanto, o “jornalismo não responde às urgentes demandas de


informação para o desenvolvimento humano, nem representa, de forma
equilibrada, a pluralidade de interesses da sociedade brasileira” (MOTTA,
2008, p. 35). Tal fato vai contra a origem idealista do jornalismo, que é in-
corporar à sua atuação o interesse coletivo, de modo a promover o exercício
da cidadania.
Outra preocupação é como os profissionais do jornalismo compreen-
dem o tema e o reproduzem; se há uma apropriação ou não da complexida-
de e das especificidades que envolvem a abordagem de violações de direitos
192 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
e cidadania. Uma pesquisa realizada pela ANDI, entre 2004 e 2007, indica
que a imprensa brasileira não aponta diretamente a violação dos direitos
humanos como sendo responsável pelos elevados índices de violência no
país. Somente 0,3% dos textos pesquisados investiram nessa abordagem.
Ao pensar na atuação dos jornalistas, é preciso lembrar que as res-
ponsabilidades no exercício da profissão estão expressas no Código de Ética
dos Jornalistas Brasileiros, vigente desde 2007, que estabelece, em seu ar-
tigo 6º, como dever do jornalista: “defender os direitos do cidadão, contri-
buindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial
as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias” (FENAJ,
2007).
Mas, para compreender a atuação jornalística, é preciso considerar
ainda que ela é cercada de elementos que são determinantes para a cons-
trução da notícia e que não estão sob controle do profissional. Os tensio-
namentos das rotinas produtivas, o contexto organizacional (e social) em
que os jornalistas estão inseridos e até o aspecto formativo revelam-se como
elementos fundamentais para entendermos o discurso jornalístico.
Um relatório elaborado pela ANDI (2006) nos auxilia a visualizar
os desafios da prática jornalística na cobertura de direitos humanos que,
segundo o documento, são interpretados como direitos civis e políticos. A
importância dos direitos econômicos, sociais e culturais é quase ignorada
quando os meios de comunicação informam sobre assuntos econômicos,
principalmente quando se trata de economia mundial, pobreza, injustiças
ou discriminação social e econômica. “A mídia não explica nem contex-
tualiza a informação sobre direitos humanos como deveria. Em geral, não
estão faltando dados sobre as violações ou sobre as normas de direitos hu-
manos” (ANDI, 2006, p. 4).
O relatório ainda indica que, comumente, os profissionais da impren-
sa não possuem um conhecimento adequado acerca dos direitos humanos e
não veem quando são pertinentes ao assunto que estão cobrindo. Também
é frequente os meios de comunicação não alcançarem o contexto das notí-
cias em direitos humanos. Tais limitações, em muitos momentos, causam
a redução da qualidade profissional das reportagens e criam obstáculos à
comunicação da informação essencial para se chegar à compreensão.

Em parte, a dificuldade reside no fato que os direitos humanos


englobam questões jurídicas, morais e de filosofia política além
dos problemas práticos de aplicação e de cumprimento: o jorna-
lismo tende a concentrar-se mais nos “planos de fundo dos fatos”
e em “o que aconteceu e quando” (ANDI, 2006, p. 5).

Desse modo, convém entender como se estabelece essa relação entre


o ideal e as especificidades do campo jornalístico ao abordar fatos sobre a te-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 193
mática. Sodré (2009) explica a necessidade de reconhecer as dificuldades da
mídia em abordar temáticas complexas, mas reforça que ela desempenha um
importante papel quando dá visibilidade a grupos esquecidos e marginalizados.

Em princípio, é difícil associar essa argumentação ao jornalismo,


porque estamos habituados que estamos a consumir o discurso in-
formativo como uma objetivação dos fatos da atualidade cotidiana,
deixando de perceber que ali se constitui igualmente uma narra-
tiva das práticas humanas, cuja função maior é chamar a atenção
da coletividade para o modo como tais práticas se organizam ou
devem organizar-se dentro de uma delimitação temporal, de uma
periodização. Assim, pode muito bem acontecer que a midiatiza-
ção de aspectos críticos de uma determinada realidade social deixe
o público em geral pouco informado sobre o que realmente está
ocorrendo (e isto é cada vez mais freqüente em virtude das flutu-
ações da atenção e da memória coletivas sob o influxo da mídia),
mas ainda assim essa precária memória midiática é capaz de fazer
emergirem novos atores sociais no espaço público, sejam eles os
imigrantes ou os favelados nas periferias das megalópoles ociden-
tais. Ou seja, o que avulta como socialmente crítico não é conteú-
do racional e argumentativo dos textos sobre realidade em questão,
mas o “sensível” de vozes antes silenciadas (SODRÉ, 2009, p. 70).

Sabemos que as notícias são resultado de um processo negociado, no


qual os jornalistas não são, simplesmente, observadores passivos, mas parti-
cipantes ativos no processo de construção jornalística da realidade. Para So-
dré (2009, p. 26), “jornalismo não é reflexo, mas construção social de uma
realidade específica. Da cultura profissional dos jornalistas, da organização
geral do trabalho e dos processos produtivos”. Nesse sentido, Charaudeau
(2015, p. 20) complementa:

Se são espelho, as mídias não são mais do que um espelho defor-


mante, ou mais ainda, são vários espelhos deformantes ao mesmo
tempo, daqueles que se encontram nos parques de diversão e que,
mesmo deformado, mostram, cada um à sua maneira, um frag-
mento amplificado, simplificado, estereotipado do mundo.

Ao reconhecermos que a imprensa e seus profissionais constroem


uma realidade a partir de suas experiências e valores, admitimos, então, que
os aspectos culturais presentes na sociedade se impõem ao longo da rotina
produtiva. O que revela o quanto os jornalistas estão imersos e suscetíveis
a reproduzirem elementos do contexto social em que vivem, mesmo que
acreditem apoiados na técnica, numa possibilidade de anulação de suas
crenças. Fiorin (2016, p. 83) indica que “a seleção das palavras para identi-
ficar seres e denominar acontecimentos já revela um ponto de vista acerca
194 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
dos ‘fatos’. Não temos acesso direto à realidade, ele sempre vem mediado
pela linguagem, que não é neutra”.
Warren Breed (2016, p. 213), em artigo datado de 1950, alertava que
“idealmente, numa democracia plena, não existiria nenhum problema, quer
de controle quer de política do jornal. Os únicos controles seriam a natureza
do acontecimento e a habilidade do repórter para o descrever”. Porém, na
prática, fatores como o tempo, a linha editorial dos jornais e os constantes
conflitos ideológicos e econômicos estão na esteira da rotina profissional.
O jornalismo deseja ser referencial, como se o fato contasse a si mes-
mo, mas por trás de qualquer dizer há um sujeito – o repórter, o editor, o
dono do jornal – carregado de valores pessoais. E mesmo que a imprensa
tente neutralizar esse sujeito, numa estratégia discursiva de imparcialidade
e objetividade, que é pertinente à necessidade de legitimação profissional,
a neutralidade é algo impossível de ser alcançado.
Neste sentido, Fiorin (2016, p. 82-83) explica:

Muitos jornais dizem que buscam a objetividade, a imparciali-


dade e a neutralidade na transmissão de notícias. Afirmam que
expressam seus pontos de vista apenas nos editoriais. A maioria
dos manuais de jornalismo explica que as matérias jornalísticas
se dividem em informativas e opinativas. Estas apresentam a opi-
nião do jornal ou colaboradores. Aquelas relatam informações.
Tal distinção supõe que as notícias sejam narradas de maneira
imparcial, neutra e objetiva. Entretanto, em qualquer construção
lingüística, a objetividade, a neutralidade e a imparcialidade são
impossíveis, pois a linguagem está sempre carregada de pontos de
vista, da ideologia, das crenças de quem produz o texto.

Darnton (1990, p. 96) complementa ao afirmar que os valores cultu-


rais são incorporados pelos jornalistas em sua maneira de redigir a notícia.
“Os estilos de reportagem variam com o tempo, o lugar e o caráter de cada
jornal”, indicando, assim, a influência dos padrões culturais nesse processo.
O autor (1990, p.96) ainda acrescenta que “o contexto do trabalho modela
o conteúdo da notícia, e as matérias também adquirem forma sob a influ-
ência de técnicas herdadas de contar história”, o que demonstra a relação
direta desses valores na produção discursiva. Assim, reconhecemos a neces-
sidade de problematizar e refletir sobre como o discurso da imprensa repre-
senta as questões de direitos humanos, pois sugerem fortes indicativos de
como esses temas estão sendo interpretados e incorporados pela sociedade.

O que dizem os textos jornalísticos sobre direitos humanos no


.Campo Grande News

Por entendermos o jornalismo como um lugar de produção e circu-


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 195
lação de sentido e em busca de averiguar quais significados estão presentes
no processo de construção das notícias sobre direitos humanos no portal
Campo Grande News, nossa pesquisa se materializou no plano discursivo.
Os textos jornalísticos selecionados foram tratados na perspectiva da
Análise do Discurso (AD) de linha francesa, tendo como suporte teórico prin-
cipal os autores Dominique Maingueneau (1997, 2013) e Patrick Charaude-
au (2015), uma vez que empreender AD significa tentar entender e explicar
os efeitos de sentido dos textos. Mais que uma apreciação textual, a AD é uma
investigação contextual da estrutura discursiva em questão.

No que tange à comunicação midiática, isso significa que qual-


quer artigo no jornal, qualquer declaração num telejornal ou
num noticiário radiofônico, está carregada de efeitos possíveis,
dos quais apenas uma parte – e nem sempre a mesma – corres-
ponderá às intenções mais ou menos conscientes dos atores do
organismo de informação (CHARAUDEAU, 2015, p. 28).

Para Benetti (2010), os sentidos que são produzidos pelo jornalismo


sofrem interferência mútua e contínua, tornando-se um espaço de disputa
simbólica constante.

A notícia é uma construção social que depende basicamente de seis


condições de produção ou existência: a realidade, ou os aspectos
manifestos dos acontecimentos; os constrangimentos impostos aos
jornalistas no sistema organizacional; as narrativas que orientam o
que os jornalistas escrevem; as rotinas que determinam o trabalho;
os valores-notícia dos jornalistas; as identidades das fontes de infor-
mação utilizadas e seus interesses (BENETTI, 2010, p. 110-111).

Para entendermos como esse processo de sentido social construído


se dá na mídia local, em um primeiro momento, levantamos no portal
Campo Grande News 1299 matérias sobre os grupos de interesse, em um
período compreendido entre 01 de janeiro e 31 de dezembro de 2016.
Sendo 373 relacionadas à temática mulher, 504 sobre crianças e adoles-
centes e 422 sobre povos indígenas. Com base nesse diagnóstico, sele-
cionamos um corpus que atendia a um trajeto temático, cruzando os três
temas principais, que são caros ao contexto sul-mato-grossense; além de
mulheres e infância, também os povos indígenas, considerando que o Es-
tado abriga a segunda maior população indígena do país (IBGE, 2010)7.
No espaço deste capítulo, apresentamos três análises a partir da intersec-
ção dos temas infância e mulher, e nos concentramos em um protocolo
que considerou:

7 Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2.html. Acesso em 10 ago2020.

196 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


a. Itens lexicais: no sentido de se atentar à escolha dos vocabulá-
rios, ou seja, à seleção das palavras utilizadas e como atuam na
construção de sentido dos textos jornalísticos. Partimos do prin-
cípio de que é pela escolha vocabular que o enunciador busca
expressar seu ponto de vista em relação ao mundo que o cerca,
emitindo juízos de valor. Assim, na produção do texto, o objeto
vai sendo construído pela seleção lexical e por caracterizações
de ordem subjetiva que expressam uma avaliação positiva ou não
do objeto construído discursivamente e durante a interação (MI-
GUEL, 2014).
b. Técnicas argumentativas: analisamos aqui a forma como são
construídos os argumentos e parágrafos dos textos, bem como o
ordenamento estabelecido ao longo das argumentações e a hie-
rarquização constituída, que é muito cara à prática jornalística.
Para Charaudeau (2015, p. 42), “nenhuma informação pode
pretender, por definição, à transparência, à neutralidade ou à
factualidade”. Isso indica que o discurso informativo é carrega-
do de sentido e valores que despontam na análise do discurso.
c. Heterogeneidade: importante para a análise, pois reconhece-
mos que o texto jornalístico é atravessado por diferentes dis-
cursos, além do enunciador jornalista. Para Charaudeau e
Maingueneau (2012, p. 261), “um discurso quase nunca é ho-
mogêneo: ele mistura diversos tipos de sequências [...]. Entre
os fatores de heterogeneidade, atribui-se um papel privilegiado
à presença de discursos ‘outros’, isto é, atribuíveis a outra fonte
enunciativa”. Assim, acreditamos que a relação das vozes cons-
tantes na notícia auxilia na construção de sentido do texto.
d. Silenciamento: prática que determina a apreensão dos significa-
dos e, quando praticada, rompe com a pluralidade de visões e
versões esperada e defendida na atuação jornalística. Nesse caso,
para a presente pesquisa que aborda temáticas urgentes, torna-se
importante “depois mapear os sentidos presentes no discurso,
identificar aqueles sentidos que, embora significativos, estão si-
lenciados [...] ausentes daquele espaço discursivo” (BENETTI,
2010, p.115).

Com essa proposta, buscamos verificar como são feitas as abordagens


das temáticas, observar se existem também hierarquizações no tratamento,
principalmente por partimos da ideia de que cada uma dessas temáticas
pertence a um universo discursivo repleto de especificidades. Na sequên-
cia, apresentamos as análises do discurso empreendido pelo Campo Grande
News a partir dos três textos selecionados.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 197


Texto 1 - Menina de 16 anos diz que era estuprada pelo pai e
irmão no Itamaracá8
Publicado em 15 de agosto de 2016

Itens lexicais e técnicas argumentativas


Identificamos já no título da matéria a utilização do verbo “diz”, o
que atribui totalmente a informação à outra pessoa que não o enunciador
jornalista, no caso, a menina de 16 anos. Isso se dá pela própria natureza
da atividade, ancorada em técnicas que buscam garantir sua legitimidade,
como atribuir uma fala, denúncia ou acusação a algum personagem do tex-
to, mantendo, assim, a ideia de neutralidade na informação (TRAQUINA,
2001). A busca pela objetividade acaba colocando em suspeição a acusação
da adolescente, mesmo que, ao longo do texto, fontes reforcem o aconteci-
mento da violência sexual.
A notícia está centrada na descrição dos fatos: uma menina de 16
anos afirma sofrer abuso sexual no âmbito intrafamiliar, sendo o pai e o
irmão os agressores. O texto segue relatando o caso, revelando idade dos
suspeitos, que eles estão presos, o bairro em que vivem, o fato de a polícia
estar investigando o crime e que a adolescente foi internada na Santa Casa.
Segundo a fonte oficial entrevistada, o delegado que cuida do caso,
a menina só afirmou sofrer abuso sexual desde os 10 anos após ser questio-
nada em exames médicos. A versão dos suspeitos aparece somente na fala
do delegado:“os dois foram ouvidos e negaram tudo. O pai ainda alegou
que a menina tem raiva dele, pois ela o culpa pela morte de sua mãe”.
Percebemos nesse trecho certa justificativa para o crime ao colocar o que a
adolescente sentia pelo pai, como se isso colocasse em dúvida a denúncia
de violência sofrida. O que se repete na fala da tia da jovem que, segundo o
texto, “confirmou a história sobre a mãe da menina. Contudo, disse que seu
irmão tem problemas com drogas e é violento” (HENRI, 2016). O uso da
conjunção adversativa “contudo’ indica o contraste das ideias presentes na
frase da fonte, ou seja, embora ela confirme a informação de que a menina
sinta raiva do pai, o irmão, um dos agressores, é usuário de drogas e violen-
to, o que nos permite pensar que a violência é justificada, faz parte da rotina
de quem convive com ele, como é o caso da adolescente.
Notamos um texto que tenta seguir a ideia de objetividade jornalís-
tica e inteiramente construído a partir dos relatos da fonte oficial, o que dá
um caráter policial e superficial ao conteúdo.

Heterogeneidade e silenciamento
Apenas uma fonte foi entrevistada ao longo da matéria, o delegado,
8 Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/menina-de-16-anos-diz-
-que-era-estuprada-pelo-pai-e-irmao-no-itamaraca>. Acesso em: 02 fev. 2020.

198 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


sendo responsável por trazer todas as informações sobre o caso, inclusive
versões da adolescente, dos suspeitos, dos médicos e de um familiar (tia da
adolescente) que confirma o perfil violento do pai: “disse que seu irmão tem
problemas com drogas e é violento”. O discurso da matéria é todo construí-
do a partir da fonte oficial. Tanto que, mesmo a checagem das informações
dadas pela fonte oficial, como se espera na atividade jornalística, não é rea-
lizada. Verificamos isso no trecho da sequência: “Segundo ele, a menina foi
internada na Santa Casa com hemorragia na quarta-feira” (HENRI, 2016).
A informação é totalmente atribuída à fonte, mas poderia ser confirmada e
aprofundada com a unidade de saúde.
Diante da temática, percebemos que não é dada a importância e a
contextualização necessária para o entendimento dessa violência, cometida
contra uma menina de 16 anos dentro de sua casa. Não são apresentados
dados locais sobre abuso sexual, dando a impressão de que o fato possa
ser isolado, mesmo existindo informações públicas e oficiais que apontam
Mato Grosso do Sul como um dos estados com maior número de denún-
cias de estupro no país9; nem são entrevistados especialistas que possam dar
profundidade à problemática e auxiliar no debate público. “Não podemos
nos esquecer também que há temáticas diante das quais muitos jornalistas
se sentem despreparados - como ocorre frequentemente com a questão da
violência sexual contra crianças e adolescentes” (ANDI, 2006, p. 20). Ou
seja, a falta de contextualização em um tema tão complexo pode ser vista
como um possível despreparo por parte da imprensa em tratar tal fenôme-
no. Mas também pode indicar uma abordagem policial pouco preocupada
em se aprofundar nas temáticas e que não trata esses casos como violações
de direitos humanos. Reconhecemos que as motivações podem ser variadas,
porém é perceptível uma superficialidade e silenciamento ao abordar ques-
tões que exigem compromisso social.

Texto 2 - Amigas combinam viagem para praia e acabam em


casa de prostituição10
Publicado em 30 de novembro de 2016

Itens lexicais e técnicas argumentativas


O título da matéria começa com a informação de que “amigas com-
9 Segundo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2018), Mato Grosso do Sul apresentava o
maior número de ocorrência de estupros notificados, com 66 casos a cada 100 mil habitantes. Dis-
ponível em: http://www.campogrande.ms.gov.br/semu/wp-content/uploads/sites/26/2019/03/RE-
LATORIO_MAPA_DA_VIOL%C3%8ANCIA_2017_RELATORIO-REVISADO_14_JAN_2019.
pdf. Acesso em: 10 ago2020.
10 Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/amigas-combinam-via-
gem-para-praia-e-acabam-em-casa-de-prostituicao. Acesso em 02 de fev. de 2020.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 199


binam viagem” e acabam em “casa de prostituição”. A sequência das ex-
pressões sugere que o fato de as adolescentes serem vítimas de exploração
sexual pode ser uma consequência de decidirem viajar, o que de certa for-
ma faz recair sobre elas a responsabilidade pelo ocorrido, como se, ao viaja-
rem, estivessem assumindo o risco da violência sofrida. Diferente do título,
no interior do texto é explicado que as meninas foram aliciadas: “uma ali-
ciadora teria se passado por amiga e combinado uma viagem ao litoral com
as meninas, mas acabou levando as jovens para uma casa de prostituição”
(BOGO, RODRIGUES, 2016).
Assim como a maior parte das outras matérias analisadas, essa tam-
bém é centrada na informação e busca apenas descrever a ocorrência.
Reconhecemos o cuidado ao usar expressões como “exploração sexual” e
“exploradas sexualmente” ao invés do termo prostituição. O uso correto do
termo auxilia o leitor a compreender a não existência de consentimento,
uma vez que as meninas ainda são adolescentes. “A palavra prostituição
remete à ideia de consentimento, desviando o enfoque da exploração. Isto
é, tira a criança e o adolescente da condição de vitimados, transportando-os
para o papel de agentes da situação” (ANDI, 2013, p. 18). Porém, em outro
momento, identificamos o uso inadequado do vocábulo “menor”, avaliado
por entidades de defesa de crianças e adolescentes como pejorativo.

A expressão menor é considerada preconceituosa por se referir,


preferencialmente a crianças e adolescentes autores de atos in-
fracional ou em situação de risco. Criança e adolescente são os
termos utilizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e
pela Constituição do Brasil (UNICEF, 2002, p.72).

A matéria segue descrevendo o caso, a partir dos dados da investi-


gação, mantendo-se na versão policial, citando o envolvimento de outras
pessoas no caso, o que indica a formação de uma rede de tráfico e explo-
ração sexual atuante, como aparece no trecho: “a expectativa é de que, ao
desvendar este caso, outros adolescentes desaparecidos sejam encontrados”
(BOGO, RODRIGUES, 2016). Mas, apesar de relatar a possível existência
de uma rede de exploração sexual, a matéria trata, em alguns momentos,
com negligência a gravidade da informação, como no trecho: “pois partiu
dela o convite da viagem às meninas, além de ter organizado o passeio”; o
uso da palavra “passeio” diminui a dimensão e seriedade do caso narrado.

Heterogeneidade e silenciamento
A notícia possui somente duas fontes de informação, sendo uma oficial,
que fala em nome da equipe especializada em investigação, e a mãe de uma
das adolescentes, que aparece no último parágrafo do texto. A matéria trata de
uma temática complexa de forma leviana: o tráfico de adolescentes para fins de
200 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
exploração sexual; por essa razão, alertamos para a necessidade de pluralidade
de fontes pessoais e documentais para dar conta da dimensão do assunto. Ao
não fazer isso, o conteúdo jornalístico acaba por reproduzir apenas a versão da
investigação, mantendo um discurso policialesco e sem apresentar elementos
que auxiliem a compreender e refletir sobre esse tipo de violência, inclusive no
contexto dos direitos humanos.
Na fala da mãe, presente no texto, é salientada preocupação dela
com a adolescente – “foi uma angustia muito grande”– e os momentos de
desespero, mas em momento algum o texto questiona e problematiza o pa-
pel, previsto no artigo 4° do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente),
que a família deve ter no cuidado e proteção dessas meninas.
Observamos, em muitos pontos da matéria a afirmação de que a uma
mulher “teria convidado as meninas para irem até o Rio de Janeiro”, o que
configura tráfico de pessoas para fins de exploração sexual11, porém isso
não é citado e problematizado no texto, percebemos, assim, o quanto essa
temática ainda é invisibilizada e pouco reconhecida. Por fim, avaliamos
que a tratativa do caso é totalmente episódica e não localizamos nenhum
desdobramento do caso no levantamento quantitativo.

Texto 3 - Estuprada e morta, menina de 3 anos estaria sendo


agredida há 7 meses12
Publicado em 30 de julho de 2016

Itens lexicais e técnicas argumentativas


O texto analisado é factual e narra uma tragédia que abarca os três
eixos da pesquisa original: mulher, criança e indígena. O título da matéria
não revela que a criança do fato é indígena: “menina de 3 anos”. Observa-
mos também o uso do verbo “estar” no condicional (futuro do pretérito):
“estaria sendo agredida”, o que podemos reconhecer como uma das téc-
nicas jornalísticas de não afirmar de forma enfática a informação e sem
comprometer a pretensa neutralidade no processo de construção da notícia,
mesmo que, ao longo do texto, utilize fontes que confirmam as agressões.
A matéria inicia com a escolha de um vocabulário que busca chamar
a atenção para a gravidade da violência sofrida pela criança: “agredida”,
‘queimada”, “estuprada” e “até a morte” aparecem logo na primeira frase
do texto. Somente na segunda frase é informado que a menina de três anos
11 Este tipo de violência sexual caracteriza-se pela promoção ou facilitação da entrada de algum indi-
víduo em território nacional para que seja explorado. “De acordo com a legislação brasileira, o tráfico
de crianças e adolescentes pode ser: interno - quando crianças e adolescentes são traficados dentro do
território brasileiro, de um município para o outro ou de um estado para o outro” (ANDI, 2013, p. 19).
12 Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/cidades/interior/estuprada-e-morta-
-menina-de-3-anos-estaria-sendo-agredida-ha-7-meses>. Acesso em: 21 jan. 2020.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 201


é indígena da Aldeia Bororó, localizada na Reserva Indígena de Dourados.
O uso de palavras que reforçam a tentativa de destacar a violência apare-
ce ao longo de todo texto, como “brutalidade” e “horrível”, incluindo no
intertítulo o advérbio de modo “brutal”. O texto descreve com detalhes a
situação de violência em que a criança vivia: “encontraram a menina com
a mandíbula quebrada, com hematomas em todo o corpo e sinais de violên-
cia sexual” (RODRIGUES, 2016).
Apresenta uma construção argumentativa centrada na descrição dos
fatos. No primeiro parágrafo já observamos a informação de que a violência
teve início quando a criança foi morar com os tios, o que faz deles suspeitos.
Os dados apresentados são policiais e as expressões escolhidas estão pauta-
das nessa formatação, como: “decretou prisão preventiva”. A fonte oficial
entrevistada é a delegada responsável pelo caso e, mesmo com os suspei-
tos negando o crime e estando em fase investigação, afirma que, baseada
em testemunhas, os tios são os agressores. Isso indica que já existe uma
responsabilização do casal por parte das autoridades, reproduzida no texto
jornalístico a partir do uso das falas da fonte: “Uma testemunha está sen-
do fundamental para que tenhamos certeza do fato, mas ainda queremos
descobrir o motivo de tanta brutalidade”. Observamos que a entrevistada
também destaca a gravidade do fato: “é um crime brutal, horrível, que não
pode ficar impune e vamos apurar com prioridade”. Embora a fala oficial
afirme a intenção de priorizar a resolução desse caso, como observamos nos
dados apresentados anteriormente, a violência sexual ainda apresenta nú-
meros urgentes no Mato Grosso do Sul, sendo uma violação muitas vezes
invisível e negligenciada por parte das instituições que atuam na defesa e
responsabilização de ocorrências de abuso sexual cometido contra crianças.
A citação da delegada ainda aponta as responsabilidades de profissio-
nais que atuam na rede básica de atenção à saúde na identificação de situação
de violência. “No local não há vizinhos próximos, mas agentes de saúde e pes-
soas que costumam acompanhar os indígenas dizem que não viam a criança
[...]”, o que destaca a necessidade da intervenção das políticas públicas no
enfrentamento à violação de direitos. Verificamos o mesmo contexto quando
o texto informa que os policiais foram acompanhados pelo Conselho Tutelar
quando se dirigiram ao local em que a criança morava ou na frase: “a delega-
da disse que vai ouvir agentes de saúde, do CRAS (Centro de Referência de
Assistência Social), da aldeia, familiares [...]” (RODRIGUES, 2016).
Outros atores importantes presentes no texto são as lideranças indíge-
nas, que, segundo a notícia, auxiliaram na busca pelos agressores: “Rosiane
[...] e o marido fugiram antes da chegada da polícia, mas com ajuda de
lideranças da reserva indígena os dois foram localizados” (RODRIGUES,
2016). As lideranças que aparecem como indivíduos fundamentais para o
andamento do caso, já que localizaram os agressores, em momento algum
o texto especifica quem são esses líderes.
202 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
No último parágrafo, a matéria explica que os suspeitos foram presos
em “flagrante por estupro e lesão corporal seguida de morte”. Observamos
que as palavras estupro e violência sexual aparecem do título à última frase,
porém esse tipo de violação foi pouco explicado e aprofundado e os termos só
foram utilizados quando auxiliaram a destacar a gravidade do caso, deixando
de abordar melhor o tema.

Heterogeneidade e silenciamento
Apesar de a matéria tratar de um assunto complexo que envolve três
subtemas: mulher, indígena e criança, e cada um desses grupos possuir
aspectos singulares de ser e existir, sofrem violações de direitos de forma
também muito específica, apenas uma fonte é utilizada para dar entrevista
e, ainda assim, apenas para auxiliar na descrição do crime e dar a versão
oficial da polícia, uma vez que é justamente a delegada responsável pelo
caso. Desse modo, consideramos imprescindível mais fontes que possam
dar a dimensão conceitual do caso e não que torne sensacional a violência
que a criança sofreu, como encontramos no uso das palavras: “brutal” e
“horrível”, que acabam não auxiliando na problematização e reflexão sobre
violação de direitos.
Observamos ainda que a intenção da matéria, a partir de dados da
delegacia é identificar os agressores, que são os tios da criança, porém não
questiona os motivos que levaram a criança a ter saído da casa dos antigos
cuidadores, nem explica com quem a menina morava antes, se com os pais,
avós e se já vivia em uma situação de vulnerabilidade. A história e quem
era a criança não aparecem no texto, somente a violência que ela sofreu. O
texto tampouco considera as falhas na proteção à criança, pois, ao responsa-
bilizar somente os tios, deixa de problematizar o não cumprimento do ECA
no que diz respeito ao papel do Poder Público e da sociedade no zelo pela
garantia da integridade da menina, conforme artigo 5°. “Nenhuma criança
ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência [...] explora-
ção, violência, crueldade [...], punindo na forma da lei qualquer atentado,
por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. No texto é indicado
que testemunhas, inclusive atuantes na política pública de saúde, devem
ser capacitados para identificação de ocorrências de violações de direitos,
pois acredita-se que a criança sofria agressões há meses. Contudo, não foi
apurado o tempo exato levado para que as autoridades atuassem na ruptura
da violência, preferiu deixar subtendido que foi preciso encontrar a criança
em estado grave para que houvesse uma interferência, colocando em xeque
a estrutura de acolhimento.
O texto faz uma abordagem policial puramente descritiva, notificada
pela gravidade do caso, mas não se atenta para a abrangência das proble-
máticas. O tom sensacionalista ainda reforça a imagem do indígena como
selvagem, brutal, cruel, enviesando a interpretação.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 203
Considerações possíveis

Acreditamos que a imprensa exerce um papel estratégico e funda-


mental para a promoção e garantia dos direitos humanos, não apenas de-
nunciando violações a tais direitos, como fortalecendo o debate público
em torno das formas para defendê-los, garanti-los e promovê-los. Contudo,
constatamos pela análise de três textos que cruzam as categorias gênero e
infância publicados no Campo Grande News – tendo como suporte nossa
pesquisa com análises mais exaustivas – que a temática e todas as especifici-
dades que a envolvem não foram incorporadas pela imprensa sul-mato-gros-
sense, representada pelo seu ciberjornal de maior visualização.
No exercício de sua atividade, jornalistas atuam no esforço de tor-
narem inteligíveis os acontecimentos, buscando divulgar para o público os
diferentes níveis de acontecimentos. Para tanto, acabam, frequentemente,
ancorando-se na simplificação dos fatos, em uma narrativa imediatista, de
fácil assimilação. Ao fazerem isso, incorrem no déficit de complexidade,
especialmente aqui com os eventos que envolvem os direitos humanos e
a inviolabilidade do outro. Para Morin (2000), a complexidade deve ser
entendida como uma motivação para pensar, pois ela permite esclarecer
os fenômenos de modo não simplificador, reducionista. “Complexidade é
a que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos os
aspectos que envolvem algo, enquanto o pensamento simplificador separa
esses diferentes aspectos ou unifica-os por uma redução mutilante” (MO-
RIN, 2000, p. 176).
Observamos que, em sua maioria, as matérias que levantamos são
registros reproduzidos a partir das averiguações policiais. Desse modo, os
textos jornalísticos deixam de lado o aprofundamento dos aspectos que os
relacionam a contextos históricos, políticas públicas, responsabilidade dos
setores do governo e possibilidades de enfrentamento e superação/acolhi-
mento. Isso faz com que o conteúdo das notícias esteja focado em descri-
ções dos fatos, sem contextualizar, por suposto, as relações estruturais que
permeiam os casos de violação de direitos e resultam na violência sexual
cometida contra crianças e adolescentes.
Nenhuma das notícias apresenta dados de fontes documentais, tam-
pouco cita as legislações vigentes que protegem os grupos analisados, o que
sinaliza certo descuido editorial ou mesmo a falta de conhecimento por
parte dos jornalistas. Nesse mesmo sentido, constatamos a ausência de plu-
ralidade no conteúdo, já que os textos apresentam poucas fontes pessoais,
ou seja, testemunhas com autonomia para contar sua versão. Nenhum es-
pecialista da área de saúde ou direito, por exemplo, é consultado, mesmo
envolvendo acontecimentos complexos de violações de direitos humanos
que demandariam esclarecimentos especializados. Por serem informações
aparentemente pautadas em boletins de ocorrência, há a predominância
204 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
do uso de delegados e investigadores como fontes, prevalecendo somente
a versão da polícia, reforçando o tom policialesco e os aspectos meramente
descritivos, deixando de abordar a história das personagens, além de negli-
genciar os desdobramentos de cada caso, ou seja, tratam de forma episódica
e como acontecimentos isolados. Existe, sobretudo, real ausência de fontes,
por exemplo, que apresentem a perspectiva dos grupos violados, o que cor-
robora o silenciamento.
Atores importantes para a garantia de direitos, os profissionais do jor-
nalismo possuem função singular e estratégica na luta pela cidadania plena,
mas isso quando apresentam uma abordagem qualificada e problematiza-
dora, sem negligenciar as complexidades e especificidades que envolvem
a temática. “As narrativas jornalísticas não podem se restringir ao relato de
fatos e explicações de acontecimentos, mas necessitam de compreensão de
fenômenos sociais” (IJUIM, 2020, p.100). Ou seja, o trabalho jornalístico
deve tensionar a prática pautada em coberturas episódicas e buscar oferecer
os elementos necessários para que o público compreenda os acontecimen-
tos por meio de uma contextualização social, histórica e econômica.
Anteriormente, questionamos de que lado o discurso jornalístico tem
atuado: se de modo a reproduzir os valores hegemônicos que pouco proble-
matizam as violações de direitos humanos, ou tentando oferecer novas ma-
neiras de interpretar as experiências e transformar o mundo. De forma em-
pírica, verificamos que o ciberjornal Campo Grande News ainda reproduz
padrões ideológicos hegemônicos e não problematiza as especificidades
que envolvem a violência sexual cometida contra crianças e adolescentes.
Ao não questionar tais violações, em certa medida, naturaliza-as e reduz a
fatos isolados, ainda que os dados oficiais indiquem o alto número de casos
de violência cometida, no caso, contra mulheres, crianças e adolescentes.
Tais reproduções nos fazem constatar que, ao invés de oferecer aos leitores
informações que deem elementos necessários para compreender as especi-
ficidades do fenômeno da violência que acomete esses grupos, só reforçam
a lógica de não existência provocada pela ignorância e o não reconheci-
mento do outro como sujeito pleno de direitos.
Assim, embora os profissionais da imprensa possam ser reconhecidos
como capazes de interpretar e compartilhar com o público experiências
desconhecidas e, muitas vezes, invisibilizadas, o que Santos (2002) chama
de trabalho de tradução, identificamos ainda a predominância de discur-
sos que estigmatizam pessoas que têm seus direitos violados. Ou que ainda
enxergam direitos humanos de forma limitada, apenas como direitos civis
e políticos, deixando de relacionar questões como pobreza, falta de acesso
às políticas públicas e negligência por parte do Poder Público e sociedade
como diretamente relacionadas às violações contra a dignidade do indiví-
duo, consequentemente, um desrespeito aos direitos humanos.
Percebemos uma distância considerável entre o ideal e a prática na
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 205
abordagem de direitos humanos no Campo Grande News. Nesse sentido,
entendemos que as rotinas produtivas, a exigência de produções factuais,
cada vez mais constantes e que se ajustem a uma dinâmica mercadológica,
afetam diretamente na cobertura jornalística aprofundada e complexa que
o tema estudado exige, fruto de um modelo de produção jornalística que
privilegia fatos e negligencia pessoas e fenômenos sociais. Os fatores são
muitos e podem ir desde procedimentos editoriais, cerceamentos políticos
e econômicos, condições temporais e espaciais à falta de conhecimento e
distorções involuntárias (ou não) por parte dos jornalistas que atuam nas
redações.
Embora este trabalho apresente um recorte no tempo e espaço, a
partir dele é possível reconhecer a necessidade de debater sobre a relação
estabelecida entre imprensa e temáticas voltadas aos direitos humanos no
Mato Grosso do Sul, além de refletir exaustivamente acerca das responsabi-
lidades sociais do jornalista na promoção e defesa da cidadania, preceitos já
consolidados no Código de Ética da profissão.

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208 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Os desafios para a continuidade da
Educomunicação no ensino público de
Campo Grande1
Naiane Gomes MESQUITA2
Rose Mara PINHEIRO3

Introdução

Os estudos sobre a relação entre comunicação e educação são relati-


vamente recentes e datam do século 20, mas o aprendizado humano sem-
pre esteve intrínseco ao desejo de comunicar, seja por meio de desenhos do
cotidiano pré-histórico em cavernas pelo mundo ou dos primeiros alfabetos
em tábuas de barro (LEVY, 1993), o homem construiu a sua história nas
bases do conhecimento repassado de geração em geração através da comu-
nicação. Levy (1993) relembra que nossa invenção mais importante, a es-
crita, não foi exclusiva de um único homem, surgiu em diversas civilizações
agrícolas da Antiguidade, como parte importante da revolução da vida em
comunidade. Foi a partir desse marco (STEPHENS, 1993) que o homem
pôde revisitar ideias e acontecimentos em contextos diferentes, tornando o
processo de acumular o conhecimento ainda mais complexo.
Em caminhos paralelos, enquanto ao longo dos séculos a transmissão
do conhecimento se solidificou na escrita, tornando-se restrita a poucos,
como clérigos e nobres, a comunicação descobriu novas possibilidades por
meio de invenções, como a prensa de tipos móveis. Quando as primeiras
folhas informativas impressas circularam na Europa (HOHLFELDT,2014)
e, posteriormente, contribuíram para revoluções, a criança começou a ser
reconhecida como autônoma e a educação recebeu um caráter especial
para a sociedade, afrouxando os laços entre a escola e a religião. O modelo
antigo mais próximo do atual buscava, segundo Hohlfeldt (2014), a escola
leiga, gratuita e pública, em um processo que completaria seu ciclo de mu-
danças apenas no fim do século 19, no nascer na industrialização.
Do telefone ao rádio e, por fim, à internet, a comunicação encontrou
a expansão midiática na era pós-moderna (BAUMAN, 2004), momento em
1 Texto baseado na dissertação A Educomunicação nas escolas estaduais de Campo Grande: Um
recorte a partir do Educomrádio.Centro-Oeste, defendida em 2 de outubro de 2019, no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCom/
UFMS). A banca foi composta pela orientadora Profa. Dra. Rose Mara Pinheiro (UFMS), Prof. Dr.
Marcos Paulo da Silva (UFMS) e a Profa Dra. Patrícia Horta Alves (UFS).
2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Jornalista
pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). E-mail: naiane.tm@gmail.com.
3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo, com estágio
de pós-doutoramento pela Faculdade Cásper Líbero. E-mail: rose.pinheiro@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 209


que as máquinas criaram um terreno fértil para novos comportamentos,
relacionamentos mutáveis, adicionados e excluídos tecnologicamente. Um
movimento tecnocultural (SODRÉ, 2006) que mistura formas tradicionais
de representação da realidade com o virtual e telerreal. Um movimento
que, para Sayad (2011), traz novas diretrizes de comunicação interpessoal
e social.

Não há dúvida de que a informação precisa e útil é hoje sinôni-


mo de poder. No entanto, numa análise mais detalhada, veremos
que o computador; e mesmo a internet, já são revoluções perten-
centes a um passado recente; são ferramentas e estruturas que
abriram caminho para que a informação circulasse de uma outra
maneira, fazendo com que a comunicação, assim, se ampliasse.
Computadores já são quase peças de museu, e a informação ba-
nal está cada vez mais acessível a todas as camadas da sociedade
(SAYAD, 2011, p. 41).

Neste contexto de desenvolvimento, o tensionamento entre comuni-


cação e educação se tornou mais evidente com a presença massiva da mídia
no cotidiano, no universo escolar e na realidade de crianças e jovens de
todo o mundo. Para Braga e Calazans (2001), por mais diferentes que pos-
sam ser as aprendizagens midiáticas do ensino escolar, elas existem, surgem
por meio da interação com ou sobre os produtos midiáticos e contribuem
para o distanciamento da formalização do aprender, aproximando-se mais
do saber cultural, em que nem sempre o sujeito percebe o porquê ou como
foi incorporado o conhecimento.

O que muda, em verdade, com a crise do sujeito individual dian-


te da velocidade que impera nas redes de poder na construção
do conhecimento são as formas de comunicação de e para a edu-
cação. Chega ao fim o antigo sistema educacional erigido pela
modernidade, cujo símbolo tópico é a universidade, tendo como
objetivo a formação de um sujeito coletivo capaz de atender às
demandas do processo de industrialização, estruturando-se nas
bases do fordismo, do treinamento de habilidades técnicas e pro-
fissionais, de modelos seriados e adaptáveis à máquina, enfim,
preparando o indivíduo para o mundo do trabalho (SCHAUN,
2002, p. 75).

No Brasil, a presença das tecnologias da informação no universo es-


colar inspirou pesquisadores do Núcleo de Comunicação e Educação da
Universidade de São Paulo (NCE/USP) a investigar as iniciativas inseridas
no universo da inter-relação entre comunicação e educação em escolas da
América Latina. Como resultado da pesquisa, Soares (1999) publicou um
artigo apontando similaridades entre as ações desenvolvidas por educadores
210 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
na interface e cunhou o termo educomunicação para definir um novo pa-
radigma, discursivo, transverso, estruturado de modo processual, mediático,
transdisciplinar e interdiscursivo. Para o pesquisador, a educomunicação
surgiu como um campo de ação emergente na interface entre ambas as
áreas de estudo, capaz de renovar as práticas sociais e ampliar as condições
de expressão dos seres humanos, principalmente na infância e juventude
(SOARES, 2011).
Para Citelli (2011), a educomunicação busca ir além da função ins-
trumental da comunicação:

Em uma síntese, é possível conceber a Educomunicação como


uma área que busca pensar, pesquisar, trabalhar a educação for-
mal, informal e não formal no interior do ecossistema comuni-
cativo. Posto de outro modo a comunicação deixa de ser algo tão
somente midiático, com função instrumental, e passa a integrar
as dinâmicas formativas, com tudo que possa ser carreado para o
termo, envolvendo desde os planos de aprendizagem (como ver
televisão, cinema, ler o jornal, revista; a realização de programas
na área do audiovisual, da internet) (CITELLI, 2011, p.8).

Ao integrar novas dinâmicas formativas, a comunicação se torna uma


facilitadora na promoção da inclusão, do poder de fala e do diálogo no am-
biente escolar e entre os integrantes da comunidade. Para Schaun (2002), o
conceito é capaz de ressignificar a produção midiática, fomentando a cida-
dania, principalmente entre os jovens.

A questão da educomunicação busca ressignificar os movimentos


comunicativos inspirados na linguagem do mercado da produção
de bens culturais, mas que vão se resolver no âmbito de educação
como uma das formas de reprodução de organização de poder da
comunidade, como um lugar de cidadania, aquele índice do qual
emergem novas esteticidades e eticidades (modos de perceber e
estar no mundo) (SCHAUN, 2002, p. 15).

As investigações teóricas de Soares e do NCE/USP resultaram não só


na definição do conceito, mas posteriormente em iniciativas práticas imple-
mentadas em escolas públicas da capital paulista e da região Centro-Oeste
do país. O projeto Educomunicação pelas ondas do rádio - Construindo a
paz pela comunicação ou apenas Educom.rádio foi o pioneiro neste sentido
ao promover a criação de programas radiofônicos construídos pela comu-
nidade escolar, principalmente educadores e educandos. O projeto, que
contou com o apoio de pesquisadores do NCE/USP, permaneceu entre os
anos de 2001 e 2004, com capacitações presenciais e o envolvimento de 11
mil agentes educacionais de 455 escolas do ensino fundamental da rede
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 211
pública municipal (SOARES, 2011).
Durante os anos de implementação do Educom.rádio, o conceito
educomunicativo foi aplicado no cotidiano escolar da educação pública,
com o propósito de diminuir o tensionamento existente entre educação e
comunicação por meio da prática e compreensão do universo midiático.
Para isso foram realizadas leituras críticas de mídia, dinâmicas de estímulo
do trabalho corporativo, oficinas, workshops de produção radiofônica, entre
outras capacitações que auxiliaram no diálogo e na contribuição vertical
entre professores e alunos, superando os antigos formatos hierárquicos e
horizontais da educação moderna.
Como resultado do projeto, o conceito se transformou em base para
a criação da Lei Educom, uma política pública no município de São Paulo
que garantiu a continuidade da iniciativa ao longo dos anos na cidade (SO-
ARES, 2011), além de inspirar outra ação ambiciosa do ponto de vista geo-
gráfico e teórico que norteou esta pesquisa, o Educomrádio.Centro-Oeste.
Semelhante ao original, o Educomrádio.Centro-Oeste ocorreu entre
os anos de 2004 e 2005, nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso
e Goiás, por meio de um convênio firmado no final de 2003 entre o NCE/
USP, o Ministério da Educação (MEC) e as secretarias de estado de educa-
ção de cada localidade (ALVES; MACHADO, 2006). O projeto envolveu
2,5 mil integrantes da comunidade educativa, entre educandos e educa-
dores, de 70 escolas públicas da região, que participaram de capacitações
semipresenciais, criaram rádios escolares e produziram conteúdos educo-
municativos (SOARES, 2009).
Com base nas informações históricas dispostas sobre o conceito no
país, o artigo investiga a trajetória da educomunicação em Mato Grosso do
Sul ao longo dos anos, tendo como ponto de partida a promoção do projeto
Educomrádio.Centro-Oeste. Para obter os resultados apresentados, foram
realizados levantamentos bibliográficos, entrevistas, aplicação de questio-
nário em escolas que participaram do projeto e pesquisa de campo em ins-
tituições de ensino estaduais que promoveram atividades na inter-relação
entre comunicação e educação no ano de 2018, com destaque para inicia-
tivas vinculadas à Mediação Tecnológica na Educação, área de intervenção
da educomunicação que estuda a presença das tecnologias da informação
e seus múltiplos usos no ambiente escolar, promovendo a acessibilidade e
formas democráticas de gestão (SOARES, 2011).
Para o desenvolvimento da pesquisa, o locus da investigação se li-
mitou a cidade de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, por ser
a com mais escolas participantes no período de implementação do Edu-
comrádio.Centro-Oeste. Desta forma, além da reconstrução histórica do
projeto, o artigo traz uma Linha do Tempo da Educomunicação em Mato
Grosso do Sul, com um panorama das iniciativas que influenciaram o de-
senvolvimento de atividades práticas na inter-relação entre comunicação e
212 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
educação, além da reflexão sobre a importância do envolvimento individu-
al de profissionais para a continuidade de projetos na interface e da relevân-
cia das políticas públicas para a manutenção de iniciativas educacionais.

Educomrádio.Centro-Oeste em Mato Grosso do Sul

A trajetória da educomunicação como conceito e prática em Mato


Grosso do Sul está relacionada principalmente a projetos e programas que
surgiram no âmbito da iniciativa pública, em especial, o Educomunica-
ção pelo rádio em escolas de ensino médio da Região Centro-Oeste, mais
difundido pelo nome abreviado, o Educomrádio.Centro-Oeste. Conforme
mencionado anteriormente, a iniciativa ocorreu por meio de um convênio
entre o Governo Federal, estadual e a Universidade de São Paulo, sendo
considerado um curso de extensão universitária do projeto Rádio-Escola, da
Secretaria de Educação do MEC.
Durante o Educomrádio.Centro-Oeste, o conceito foi apresentado
como prática pedagógica em formação de professores e gestores no uso da
linguagem radiofônica. Ao todo 70 escolas da região participaram, sendo
30 no estado de Goiás e 20 nos estados de Mato Grosso do Sul e Mato
Grosso. Neste cenário, 140 professores, 2.100 alunos e 280 membros da co-
munidade foram beneficiados com o curso na modalidade semipresencial,
com carga horária de 180 horas para docentes e 264 horas para a equipe
de técnicos das secretarias de educação que auxiliaram no processo de im-
plementação ao longo do desenvolvimento do projeto (MOREIRA, 2007).
Como o curso ocorreu na modalidade semipresencial, uma parte das
atividades foi realizada em um ambiente virtual de aprendizagem (AVA),
onde foram disponibilizados textos e informações sobre a educomunica-
ção, com a possibilidade de interação entre professores e tutores (ALVES;
MACHADO, 2008). Quatro tópicos temáticos nortearam as discussões no
ambiente on-line, sendo eles, a Educomunicação e suas linguagens; Peda-
gogia da linguagem radiofônica; Planejamento da educomunicação em es-
paços educativos e Projetos de educomunicação com o uso da linguagem
radiofônica.
Posteriormente à capacitação, as escolas participantes receberam
equipamentos radiofônicos das respectivas secretarias de estado de Edu-
cação, sendo que os encontros presenciais ocorreram nas escolas a partir
de 2005, justamente após a chegada do material prático. Os cinco en-
contros presenciais denominados de Visitas Técnico-Pedagógicas foram
feitos em duas frentes, sendo a primeira o planejamento teórico de deba-
te com a comunidade educativa sobre temas relacionados à linguagem
radiofônica e a segunda, o planejamento da prática educomunicativa
na escola. Outro objetivo da visita foi o auxílio a possíveis ruídos na
proposta dialógica do projeto e na relação dos participantes com os equi-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 213
pamentos tecnológicos (ALVES; MACHADO, 2006).

As práticas – ou também chamadas vivências – partiram sempre,


da experiência para se chegar à teoria, formando o que no movi-
mento de educação popular denomina-se como espiral “prática-
-avaliação/teoria-prática”, tendo todo o grupo orientado a realizar
atividades práticas voltadas à vivência no rádio, avaliar o processo
de produção e sistematizar os resultados. Faz parte da metodolo-
gia de trabalho da Educomunicação o planejamento democráti-
co e a gestão participativa das ações comunicativas, envolvendo
todos os agentes do processo educativo (ALVES; MACHADO,
2006, p. 6).

Especificamente em Mato Grosso do Sul, documentos do NCE/


USP apontam que das 20 escolas que participaram do projeto, nove esta-
vam localizadas em Campo Grande, sendo este o maior número de adesão
entre os municípios. As atividades presenciais foram acompanhadas por
uma comunicadora selecionada pelo Núcleo para percorrer todas as unida-
des de ensino, auxiliando na implementação da rádio e nos possíveis ruídos
existentes entre educador e educando. Também foi possível, por meio des-
sa jornalista, a compreensão de como o projeto foi desenvolvido ao longo
do ano e do envolvimento dos participantes, assim como os temas mais
abordados durante as atividades práticas, como, por exemplo, a violência, a
gravidez na adolescência e o bulling (MESQUITA, 2019).
As informações apresentadas acima são o resultado de extensa pes-
quisa bibliográfica em dissertações, livros, documentos, notícias, artigos e
boletins disponibilizados pelo NCE/USP. Para compreender o desenvol-
vimento do projeto, foram realizadas entrevistas com membros da organi-
zação, educadores e entusiastas que se propuseram a promover ações edu-
comunicativas nos anos posteriores ao fim do convênio com o Governo
Federal. O contato com os profissionais que participaram da iniciativa mos-
trou a importância da educomunicação para o desenvolvimento de uma
aprendizagem mais democrática nas escolas que participaram do projeto,
justamente por meio do engajamento entre educadores e educandos, que
possibilitou a troca de conhecimento entre ambos e a quebra na hierarquia
herdada da educação moderna.
A investigação elucidou ainda o quanto a dedicação dos professores
foi essencial para a implementação das rádios na escola, inclusive, após o
encerramento do projeto. Em um dos casos, por exemplo, na Escola Esta-
dual Waldemir de Barros da Silva, localizada em um dos bairros mais popu-
losos de Campo Grande, o Moreninhas, a dedicação de uma educadora foi
essencial para que a rádio fosse aprimorada ao longo dos anos, adquirindo
um estúdio com isolamento acústico, novos equipamentos e uma progra-
mação permanente até 2010, cinco anos depois da finalização do convênio
214 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
responsável pelo Educomrádio.Centro-Oeste (MESQUITA, 2019).
Apesar de ter a participação da Secretaria de Estado de Educação de
Mato Grosso do Sul (SED/MS) na implementação do projeto, pouco foi
mantido nos arquivos da instituição sobre a iniciativa e outras ações inseri-
das na interface que poderiam contribuir para a reconstrução histórica do
conceito educomunicativo, por isso a necessidade de investir nas entrevistas
e na pesquisa de campo ao longo da investigação. Esse caminho possibili-
tou também a descoberta de outras iniciativas na interface que utilizaram
a educomunicação como base teórica e prática, como é o caso do Projeto
Estadual de Rádio na Escola (PERE/MS), desenvolvido pela Secretaria de
Estado de Educação de Mato Grosso do Sul em escolas estaduais, e os
programas Mídias na Educação4 e Mais Educação5, implementados pelo
Governo Federal (MESQUITA, 2019).
No primeiro caso, o PERE foi criado quatro anos após o encerramen-
to do Educomrádio.Centro-Oeste e se assemelhou em muitos aspectos ao
projeto do Governo Federal, com a prática midiática atuando como propul-
sora do protagonismo dos educandos e contribuindo para a construção de
um diálogo mais democrático entre os integrantes da comunidade educa-
tiva. Segundo documentos disponibilizados pela SED/MS e informações
coletadas durante as entrevistas, o projeto foi desenvolvido entre os anos
de 2009 e 2015, e abordou temas socioculturais, como o uso de drogas,
violência na escola, gravidez na adolescência, depredação de patrimônios
públicos e evasão escolar (MESQUITA, 2019).
A proposta foi adiante pela dedicação de uma educadora, desta vez, a
coordenadora do projeto, Solange Silva, que conheceu a educomunicação
durante uma pesquisa e decidiu agregar alguns pontos ao projeto. Como
as escolas não tinham equipamentos tecnológicos para a implementação
da rádio na escola ou os remanescentes da época do Educomrádio.Cen-
tro-Oeste estavam danificados, Solange optou por orientar a promoção da
prática do PERE apenas com uma caixa de som e microfone, sendo que
a programação era realizada ao vivo, pelos alunos, durante o intervalo das
aulas (MESQUITA, 2019). Em Campo Grande, o PERE ocorreu em 18
unidades de ensino e permaneceu nesta estrutura até a transferência para
a Prefeitura Municipal de Campo Grande, onde era originalmente lotada.
Na Secretaria Municipal de Educação, Solange desenvolve um trabalho
semelhante ao PERE e baseado no conceito da educomunicação, desta vez,
com a inclusão de novos meios de comunicação e o uso de smartphones.
Essas descobertas foram essenciais para a delimitação da Linha do
4 Criado pelo Governo Federal em 2005, o Mídias na Educação foi um programa de Educação a
Distância (EaD) que ofereceu a formação continuada para professores, principalmente do ensino bá-
sico e público do país, e com um módulo específico sobre a Educomunicação (MESQUITA, 2019).
5 O programa Mais Educação foi voltado para a implementação da educação integral nas escolas
fundamentais do país e sugeriu em sua proposta pedagógica a inclusão da disciplina eletiva de
educomunicação (MESQUITA, 2019).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 215


tempo da Educomunicação em Mato Grosso do Sul, construída justamente
para compreender como o conceito foi aplicado ao longo dos anos no Esta-
do, principalmente, em Campo Grande, locus da pesquisa. Portanto, com
exceção do Educom.rádio, incluído devido a sua influência para as demais
iniciativas, todos os programas descritos na figura abaixo ocorreram em es-
colas estaduais de Campo Grande e consequentemente de outros municí-
pios, sendo parte da trajetória da educomunicação em Mato Grosso do Sul.
Figura 1: Linha do tempo da Educomunicação em Mato Grosso do Sul

Fonte: MESQUITA, 2019.

É possível observar na Figura 1 (acima) que a trajetória da educomu-


nicação em Mato Grosso do Sul está atrelada ao ensino público, principal-
mente no que diz respeito às escolas estaduais. O conceito foi implementa-
do pela primeira vez com o Educomrádio.Centro-Oeste, sendo novamente
abordado nas capacitações do Mídias na Educação e na proposta de disci-
plina eletiva de educação integral do Mais Educação, possibilitando, desta
forma, uma maior abrangência entre educadores e educandos.
A linha do tempo continua com o PERE, um projeto essencialmente
sul-mato-grossense e simples do ponto de vista tecnológico, que buscou a in-
teração e o protagonismo de membros da comunidade escolar, influenciando
também a realização de um projeto posterior na rede municipal de ensino.

Análise de projetos na inter-relação entre comunicação e educação


em escolas públicas de Campo Grande

Apesar dos exemplos de projetos que utilizaram a educomunicação


como uma das bases para o seu desenvolvimento, há poucas informações
sobre como o conceito permaneceu inserido na educação pública estadual
216 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
após o encerramento dos programas, principalmente devido à independên-
cia que as escolas têm em relação à Secretaria Estadual de Educação, que
isenta as instituições da obrigatoriedade de informar todas as iniciativas que
ocorrem no ambiente escolar (MESQUITA, 2019).
No caso do Educomrádio.Centro-Oeste, um formulário com seis per-
guntas fechadas e três abertas foi enviado às nove instituições de ensino que
participaram da iniciativa em Campo Grande, em busca de dados referentes
à relação entre a comunicação e a educação nas instituições. As questões in-
vestigaram, entre outros pontos, se o projeto permaneceu após o encerramen-
to do convênio federal ou se existiam outras iniciativas semelhantes inseridas
na inter-relação entre comunicação e educação. As perguntas foram enviadas
para o e-mail institucional de cada escola nos dias 21 de novembro, 27 de
novembro e 12 de dezembro de 2018, permanecendo abertas para respostas
até o dia 31 de janeiro de 2019 (MESQUITA, 2019).

Tabela 1 - Questionário enviado às escolas de Campo Grande que participaram do


Educomrádio.Centro-Oeste

Fonte: MESQUITA, 2019.


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 217
Como resultado, das nove instituições de ensino que receberam o
formulário, apenas seis responderam às questões, sendo que três consegui-
ram delimitar com precisão quando a rádio criada durante o Educomrádio.
Centro-Oeste parou de transmitir conteúdo. O restante não dispunha de
informações sobre o projeto.
Em relação às iniciativas na inter-relação entre comunicação e edu-
cação, cinco frisaram manter projetos na interface, principalmente relacio-
nados a produtos audiovisuais e à internet, com destaque para as escolas
de ensino integral, que utilizam as disciplinas eletivas – fora da grade tra-
dicional curricular – para dar vasão à criatividade dos alunos, com diversos
temas para a aprendizagem, desde videodocumentário até YouTube (MES-
QUITA, 2019).
As informações presentes nesse formulário auxiliaram não só na re-
construção histórica do projeto, mas no desenvolvimento de outra etapa
da investigação, a pesquisa de campo. Com base nas respostas, foi possível
delimitar quais instituições ainda mantinham atividades na inter-relação
entre comunicação e educação em 2018, nas quais seria possível aplicar a
metodologia de análise da Mediação Tecnológica na Educação e observar o
possível uso da educomunicação como conceito base para a promoção das
atividades na interface.
Neste caso, a Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado
foi selecionada por ter integrado o Educomrádio.Centro-Oeste e desenvol-
ver simultaneamente duas iniciativas inseridas na inter-relação entre co-
municação e educação, sendo elas, as disciplinas eletivas de Mídia e de
Jornalismo. A primeira integra o projeto do Centro Nacional de Mídias na
Educação (CNME), um programa desenvolvido pelo Governo Federal em
parceria com a TV Escola, Fundação Roberto Marinho e Fundação Ayrton
Senna, que propõe a educação presencial mediada pela tecnologia, em que
os alunos são convidados a interagir com participantes de outros estados,
após a exibição de uma videoaula preparada especialmente pela equipe do
CNME.
O projeto foi implementado no segundo semestre de 2018, com a
entrega de equipamentos especiais para a transmissão e recebimento de
sinal via satélite, além da capacitação de todos os professores participantes,
na cidade de Manaus (AM), onde foram gravados os programas exibidos em
videoaula. Apesar da proposta, o projeto teve diversas dificuldades, segundo
a professora responsável pela aula, como dificuldade de interação e proble-
mas técnicos relacionados à queda de sinal constante (MESQUITA, 2019).
Também na escola ocorreu a eletiva de jornalismo Quem não se co-
munica, se trumbica que, apesar de não ser mencionada no questionário
respondido anteriormente pela escola, estava inserida na inter-relação en-
tre comunicação e educação. A descoberta da atividade ocorreu no dia 4
de dezembro de 2018, durante um evento de culminância das disciplinas
218 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
eletivas da escola, em que os alunos e professores responsáveis pelo projeto
apresentaram os vídeos produzidos durante o semestre, simulando a apre-
sentação de um telejornal.
Por ser o encerramento do ano letivo, ao contrário da disciplina de
Mídias, não foi possível observar uma aula, sendo permitida apenas a coleta
de dados sobre o projeto por entrevista com a professora responsável. Apesar
de o nome indicar a realização de uma eletiva de jornalismo, os vídeos pro-
duzidos tiveram inspiração artística e foram todos produzidos com histórias
fictícias, sem relação com o cotidiano e a realidade da escola, dos alunos ou
da comunidade escolar.
Na outra ponta da pesquisa de campo está a Escola Estadual Manoel
Bonifácio Nunes da Cunha. A instituição de ensino integral localizada em
Campo Grande não participou do Educomrádio.Centro-Oeste, mas teve
contato com a educomunicação por meio de outras duas ações, o PERE
e o programa Mais Educação. Desde 2017, os alunos são os responsáveis
pelo jornal Bonifácio News, um projeto baseado nas orientações de jornalis-
mo que inclui a redação, edição e divulgação de notícias produzidas pelos
próprios estudantes por meio das mídias sociais Instagram e Facebook. A ati-
vidade faz parte do Clube de Protagonismo Estudantil, uma possibilidade
incluída nas diretrizes da Escola de Autoria, programa de implementação
do ensino integral do Governo do Estado de MS (MESQUITA, 2019).
No projeto, os estudantes desenvolvem habilidades de planejamen-
to, organização de ideias, melhora na escrita e compreensão dos processos
midiáticos, principalmente pela realização de cursos de roteiro, cinema e
a visita do Curso de Jornalismo da UFMS na unidade escolar. No campo
tecnológico, os estudantes aprenderam sozinhos a editar vídeos e utilizaram
a experiência de um colega youtuber para coletarem dicas sobre softwares
de edição. Democrático, o clube não obriga os alunos a participar, sendo
que cada integrante escolhe uma atividade que irá desempenhar ao longo
do processo (MESQUITA, 2019).
Apesar das diferenças, em ambos os casos, a tecnologia desempenha
um papel importante na promoção das atividades, portanto o olhar para os
projetos foi baseado nas ponderações da Mediação Tecnológica na Educa-
ção (MTE), área de intervenção da educomunicação, que busca compreen-
der as consequências do atravessamento das tecnologias de informação no
cotidiano escolar, principalmente com o avanço da internet, dos smartpho-
nes e tantos outros aparatos.
Soares (2007) acredita que, apesar da apreensão que os educadores
podem sentir em relação à tecnologia, é importante que os profissionais
compreendam a relação estreita que o jovem brasileiro tem com a tecni-
cidade, sendo o melhor caminho o da convivência com o fenômeno, pos-
sibilitando que os usuários se tornem mais atentos e críticos, desta forma,
produzindo antídotos contra os possíveis abusos e perigos da internet.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 219
A tecnologia eletrônica garante leveza e criatividade ao ambiente
educacional, sempre que a apropriação de seus recursos e pro-
cessos dê-se a partir do reconhecimento da potencialidade da
comunicação em favorecer a construção permanente de novas
alternativas de busca de conhecimento e de convivência. A isso
a educomunicação denomina mediação tecnológica nos espaços
educativos (SOARES, 2007, p. 40).

Dessa forma, a área da Mediação Tecnológica na Educação foi defi-


nida pelo autor como:

O estudo das mudanças decorrentes da incidência das inovações


tecnológicas no cotidiano das pessoas e grupos sociais, assim como
o uso das ferramentas da informação nos processos educativos, se-
jam os presenciais, sejam os a distância (SOARES, 2002, p.18).

A partir dessas reflexões, Consani (2008) desenvolveu um método de


análise de projetos educomunicativos denominado de Quadro Esquemá-
tico de Modelo para a Mediação Comunicativa que, por meio de pergun-
tas-chave auxilia a elucidar sobre elementos da mediação, que vão desde
quem e quais são os agentes mediadores, qual é o objeto da mediação, em
que universo cultural trabalha-se e até quem concentra o protagonismo do
processo.
Pela proposta de Consani (2008), para se definir a mediação, o ideal
é fugir da dicotomia “bom ou ruim”, e investir em uma nova abordagem,
apresentada pelo autor como mediatividade e mediância, frisando que os
conceitos não são opostos, mas sim de níveis diferentes. Do ponto de vista
da comunicação, a mediatividade remete a ação do emissor e a mediância
à do receptor, enquanto na educação, o primeiro caso está ligado à relação
do professor/educador (mediativo), e o segundo, ao do aluno/aprendiz (me-
diante).

Levando em conta que a mediação é uma ação executada por


agentes bem definidos, seu exercício pode ser observado e quali-
ficado à luz do maior ou menor grau de iniciativa das partes en-
volvidas. Essa prerrogativa – que na prática, no mais das vezes, é
já fornecida por instituições organizadoras – define o papel e os
limites da atuação mediadora. Posto isso, denominamos mediati-
vidade a capacidade do agente para influenciar e conduzir o pro-
cesso da mediação, enquanto chamamos de mediância a atitude
coadjuvante ou de “menor proatividade” do mediador (CONSA-
NI, 2008, p. 167).

Ainda segundo o autor, a proposta de análise faz jus à complexida-


de das relações mediadas, que não devem ser definidas apenas como mais
220 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
ativas ou menos ativas, uma vez que os protagonistas podem estar inseridos
em situações reais que apresentam diversas possibilidades além do senso
comum (CONSANI, 2008, p.167).

Tabela 2 - Análise da Escola Estadual Maria Constança Barros Machado

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 221


222 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Com base nas respostas apresentadas nas perguntas-chave do Qua-
dro Esquemático (acima), na observação e nas entrevistas com educadores
e educandos, foi possível pontuar, por exemplo, que a eletiva de Mídias,
na Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado, apresentam ru-
ídos tecnológicos, que atrapalharam a compreensão dos estudantes sobre
a temática. A investigação também detectou, durante os encontros, que a
relação dialógica entre mediador e aluno não foi desenvolvida ao longo do
projeto, o que resultou na diminuição do protagonismo do educando, que,
muitas vezes por timidez ou falta de compreensão do tema, sentiu dificul-
dade de interagir com os colegas, com a educadora em sala de aula e profes-
sores que ministravam a aula a distância. Dessa forma, o professor-mediador
acumulou a responsabilidade não só de guiar, mas também de interferir no
processo educomunicativo (MESQUITA, 2019).

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 223


Tabela 3 - Análise da Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha

224 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Fonte: Mesquita, 2019 com base em Consani, 2008.

Na Escola Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, é possível


observar alguns pontos práticos da educomunicação no desenvolvimento
do projeto Bonifácio News, mas sem influência teórica. Os estudantes são os
responsáveis pelo andamento das atividades, que envolvem um ecossistema
educomunicativo, formado por professores, alunos e a comunidade externa.
Mesmo com o auxílio da professora mediadora, que oferece suporte prin-
cipalmente em ortografia e na organização das atividades, os educandos
estão à frente de todas as fases da pesquisa, da reunião de pauta até a publi-
cação das notas informativas (MESQUITA, 2019). O processo que envolve
o ecossistema educomunicativo da escola se encaixa dentro das definições
da Educomunicação (SOARES, 2001), enquanto o uso da tecnologia se
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 225
aproxima das concepções da Mediação Tecnológica na Educação (CON-
SANI, 2008).
Os alunos do clube também demonstraram interesse em participar
de outras atividades fora do ambiente escolar, como o projeto Repórter Jú-
nior, iniciativa realizada desde 2018 pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS), em que estudantes de escolas públicas da cida-
de realizam a cobertura jornalística educomunicativa do Integra UFMS,
maior evento de ciência, tecnologia e inovação promovido pela instituição
federal em MS. Como a proposta da cobertura ocorreu nos moldes educo-
municativos, os estudantes foram os responsáveis por selecionar, entrevis-
tar, escrever e editar as reportagens sobre pesquisas apresentadas durante o
evento. A produção foi publicada nos principais veículos de comunicação
da Universidade (MESQUITA, 2019). O projeto Repórter Júnior foi pre-
miado no Integra UFMS de 2019, recebendo menção honrosa pelo pôster
Cobertura educomunicativa: Repórter Científico-Cultural Júnior, que apre-
sentou os resultados da primeira edição da iniciativa.

Discussões e conclusões

O presente texto apresenta os principais resultados da dissertação de


mestrado A Educomunicação nas escolas estaduais de Campo Grande: um
recorte a partir do Educomrádio.Centro-Oeste. As informações apresentadas
no texto são o resultado de um intenso processo de busca pela reconstru-
ção histórica de programas que foram importantes para a reflexão sobre
o atravessamento da comunicação no cotidiano escolar, além da prática
educomunicativa, mas que, ao longo do tempo, foram superados por outras
iniciativas na interface ou não, devido à falta de investimentos em políticas
públicas que garantissem a continuidade dos projetos.
A pesquisa surgiu da indagação do papel que o projeto Educomrá-
dio.Centro-Oeste teve como impulsionador de iniciativas posteriores na in-
ter-relação entre comunicação e educação na cidade de Campo Grande,
a exemplo da herança deixada em outros estados, como no caso de Mato
Grosso, que transformou a proposta em política pública educomunicativa e
aliada ao rádio, logo após a finalização do convênio com o Governo Fede-
ral. Em 10 de junho de 2008, foi sancionada a Lei estadual nº 8.889/08, de
autoria do deputado estadual Alexandre César, que implantou o programa
Rádio Escola Independente, na Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso.
“O poder público acabou por aprovar um dispositivo legal destinado a ga-
rantir o emprego do conceito da educomunicação mediante o uso da lin-
guagem radiofônica” (SOARES, 2011, p.40). Com o tempo, a política pú-
blica em Mato Grosso apenas se adequou aos avanços tecnológicos com a
inclusão não só do rádio como prática educomunicativa, mas da fotografia,
história em quadrinhos, jornal escolar, robótica educacional, tecnologias
226 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
educacionais e vídeo (MESQUITA, 2019).
Em Mato Grosso do Sul, não houve o interesse em transformar a
educomunicação em política pública e nem mesmo a continuidade do
projeto em escolas que participaram da iniciativa, conforme mencionado
anteriormente. Dessa forma, a primeira hipótese, de que as escolas que par-
ticiparam do Educomrádio.Centro-Oeste manteriam uma relação estreita
com projetos na interface, mostrou-se parcialmente correta. Apesar de a
maioria das instituições que respondeu ao questionário promover iniciativas
na inter-relação entre comunicação e educação, nenhuma utilizava a edu-
comunicação como conceito base no ensino público estadual e nem man-
teve a rádio na escola ao longo dos anos, sendo o caso de 2010 o mais antigo.
Outra hipótese da pesquisa é que, além do Educomrádio.Centro-O-
este, os programas de educação integral do país, como o Mais Educação,
seriam responsáveis pela disseminação do conceito no Estado. Na Escola
Estadual Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, uma das escolas analisadas
pela pesquisa e que adotou a modalidade de ensino desde 2009, há uma na-
turalidade com as possibilidades educacionais da jornada estendida, como
as disciplinas eletivas e os clubes de conhecimento, sendo que o jornal es-
colar Bonifácio News é produzido há três anos, uma continuidade que não
foi observada nas demais instituições de ensino da cidade (MESQUITA,
2019).
No entanto, no programa de educação integral Escola de Autoria, do
Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, não há menção da educomuni-
cação como um dos conceitos que podem inspirar a realização de projetos
práticos aplicados no ambiente escolar, apesar da presença de iniciativas na
inter-relação entre comunicação e educação nas unidades de ensino que
responderam ao questionário.
A terceira e última hipótese era que os projetos escolares permane-
ceriam vinculados à tecnologia e, portanto, estariam inseridos na área de
intervenção da Mediação Tecnológica na Educação. A investigação acabou
comprovando essa análise por mostrar diversas iniciativas em sala de aula
que utilizavam a tecnologia em suas produções, seja na disciplina eletiva
de Mídias, da Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado, ou
no Clube de Jornalismo, da Escola Estadual Bonifácio Nunes da Cunha
(MESQUITA,2019).
Com base nessas informações apresentadas durante a pesquisa, é
possível afirmar que as escolas estaduais de Campo Grande continuaram
com projetos na inter-relação entre comunicação e educação, apesar de não
utilizarem a nomenclatura educomunicação. As escolas visitadas durante
a pesquisa de campo confirmaram que não empregam o conceito como
base teórica dos projetos, mas têm a preocupação em estabelecer o diálogo
com o estudante, incentivar o protagonismo e a independência dos alunos
durante as iniciativas, características da educomunicação. As instituições
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 227
também buscam incentivar o engajamento da comunidade escolar nos
projetos, o que mostra um esforço da instituição em promover a cidadania
(MESQUITA, 2019).
É importante ressaltar também que a educomunicação está presen-
te em Campo Grande como base teórica do projeto implementado pela
ex-gestora do PERE, no ensino fundamental das escolas municipais de
Campo Grande, denominado de Diálogos em Educomunicação – Rádio na
Escola. O projeto segue o modelo do PERE e propõe a criação de rádios
de baixo custo nas instituições de ensino, utilizando apenas uma caixa de
som e um microfone. No entanto, com a popularização dos smartphones,
ocorreu um crescente interesse entre os educandos e educadores pela pro-
dução de materiais audiovisuais utilizando ferramentas de edição de áudio
e vídeo a partir de aplicativos para o celular, uma tendência que também se
aproxima da Mediação Tecnológica na Educação.
Além das informações descritas acima, a pesquisa trouxe para a com-
preensão da trajetória do conceito em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, a Linha do Tempo da Educomunicação, que destaca as iniciativas que
foram importantes ao longo dos anos. Foi possível, por meio desta análise,
compreender que a educomunicação se desenvolveu a partir do esforço e
da dedicação de professores, pesquisadores e gestores da área, mas que, devi-
do à falta de uma política pública específica, como ocorre em Mato Grosso
e São Paulo, os projetos educomuncativos foram interrompidos ao longo
dos anos. Dessa forma, por mais que educadores almejem uma educação
mais dialógica por meio da inter-relação entre a comunicação e educação,
é preciso buscar novos mecanismos que possibilitem a permanência e o
desenvolvimento da educomunicação em Campo Grande.
Mesmo com esse desafio, a pesquisa mostra que a realização de pro-
jetos na inter-relação entre comunicação e educação dentro das escolas,
aliado às iniciativas no âmbito municipal, como o Diálogos em Educomu-
nicação e o Repórter Júnior, são capazes de transpor as barreiras do ensino
formal e as limitações da falta de uma política pública mantenedora da
educomunicação. Mais uma vez a dedicação de professores empenhados
em difundir uma educação mais democrática é essencial para a construção
de um terreno fértil para as práticas educomunicativas.

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230 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Parte III

Produção midiática, tecnologias digitais


e interatividade
A participação do público pelo WhatsApp
no telejornal MS Record1

Cláudia Regina FERREIRA2


Taís Marina TELLAROLI3

Introdução

A ampliação do uso das tecnologias digitais possibilita às pessoas não


só terem acesso a um mundo complexo e dinâmico de informações, mas
também de selecionar e produzir o conteúdo que lhes interessa, de forma
rápida, na palma da mão. Com o surgimento das redes sociais, essa prática
ficou ainda mais evidenciada (VIVO, 2013). A televisão, então, teve de se
reinventar, ampliando seu espaço para além da tela da própria TV, fazen-
do-se presente nas redes sociais e em aplicativos criados para dispositivos
móveis – smartphones e tablets – os quais a TV vem buscando como aliados.
Costa (2012) resume que “a comunicação móvel abre novas possibi-
lidades de acesso à informação e ao mundo globalizado. Potencialidades es-
tas que são apropriadas de diferentes maneiras pelos usuários”. O WhatsApp
se destaca por possibilitar a troca de mensagens pelo celular sem pagar por
SMS (Serviço de Mensagens Curtas). O aplicativo consome apenas o plano
de dados móveis (internet) da operadora e permite criar grupos de conversa-
ção, realizar ligações e enviar texto, fotos, vídeos e arquivos de áudio.
A TV MS, afiliada da Record em Campo Grande, Mato Grosso do
Sul, começou a utilizar o aplicativo WhatsApp para promover interação
com os telespectadores no telejornal MS Record, exibido às 12h30min, de
segunda a sexta-feira e aos sábados, por volta das 11 horas. O tempo de du-
ração do telejornal era em torno de 50 minutos durante a semana e de cerca
de 20 minutos aos sábados.
A experiência começou no final de 2014 e devido à grande quanti-
dade de mensagens que começaram a ser enviadas à emissora, houve uma
mudança na apresentação do telejornal. Em fevereiro de 2015, a apresen-
1 Este capítulo é baseado na dissertação TV e tecnologias digitais: a participação do público no
telejornal MS Record por meio do WhatsApp. A banca foi realizada no dia 14 de abril de 2016 no
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(PPGCom/UFMS). A banca foi composta pela orientadora Profa. Dra. Taís Marina Tellaroli Fe-
nelon (UFMS), o Prof. Dr. Marcelo Câncio Soares (UFMS) e Prof. Dr. Paulo Eduardo Silva Lins
Cajazeira (UFCA).
2 Mestre em Comunicação pelo PPGCom da UFMS. Jornalista. Integrante do Grupo de Pesquisa
NJor vinculado ao curso de Jornalismo da Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, Bahia.
E-mail: claudia.ferreira.3105@gmail.com.
3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP). E-mail: tais.fenelon@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 233


tadora Glaura Villalba passou a utilizar um smartphone para ler ao vivo as
mensagens que chegavam.
Fora do horário de exibição do telejornal, parte das mensagens que
chegava também era aproveitada para o telejornal em forma de reporta-
gens, notas cobertas e ou outros formatos.
Além das tradicionais categorias jornalísticas como cidades, polícia,
educação, saúde, entre outras, foi criada uma à parte denominada “rela-
cionamento com o telespectador”, para enquadrar as interações motivadas
por pedidos dos telespectadores para a apresentadora mandar beijos e abra-
ços a eles ao vivo. A pesquisa também revela e analisa as mudanças que o
telejornal se propôs a fazer para interagir com seu público no cenário de
convergência midiática.
Essas alterações estão relacionadas a questões mercadológicas em
que a TV tenta evitar a queda da audiência. Nesse processo, o telespec-
tador é convidado a participar, seja enviando sugestões, críticas, opiniões,
denúncias ou comentários. O importante não é exatamente a natureza do
assunto, e sim o reforço dos laços sociais entre a audiência e o telejornal
(CAJAZERA, 2014).
A coleta começou em fevereiro e foi até o mês de abril de 2015.
Todos os telejornais do período foram gravados por um aparelho adquirido
pela pesquisadora (HDMax, NET® TV a cabo). Realizou-se a análise de
conteúdo orientada a partir da pesquisadora Bardin (2009), em três níveis:
o primeiro com a verificação e a interpretação dos dados quantitativos e
qualitativos das amostras do mês de fevereiro de 2015, na contagem das par-
ticipações do público com o telejornal pelo WhatsApp. Essas participações
foram agrupadas em categorias na análise qualitativa, definidas de acordo
com suas editorias (por exemplo Cidade, Saúde e Polícia). O objetivo foi
verificar os temas propostos que geraram interesse do público e a sua inte-
ração.
No segundo nível está a análise dos formatos das participações que
chegaram pelas mensagens recebidas pelo WhatsApp na redação, com uma
categorização dos formatos de acordo com os nomes utilizados no telejor-
nalismo. As unidades foram quantificadas por dias da semana, por semana
e sintetizadas em tabelas e quadros.
Finalmente, é analisado o tipo de interação do público com o tele-
jornal a partir de classificações e conceitos descritos por diferentes autores
sobre o tema. O capítulo traz ainda análise das participações a partir dos
conceitos de narrativas e da comunicação digital (multimídia, transmídia e
crossmedia), para verificar se e como esses elementos se apresentam.
As análises evidenciam as relações comunicacionais entre o telejor-
nal e seu público. Com elas foi realizada a observação participante de um
dia na redação da emissora, a fim de acompanhar a produção das pautas
e a interação do público a partir das mensagens recebidas pelo aplicativo
234 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
WhatsApp, inclusive no período fora do ar do telejornal.
Profissionais da redação foram entrevistados para auxiliar a compre-
ensão sobre as ações e decisões do departamento de jornalismo relacionadas
ao uso do WhatsApp, bem como a seleção de mensagens e temas propostos
para discussão pelo aplicativo em alguns telejornais.
A intenção foi mostrar a preocupação dos telejornais em atrair sua
audiência convergida em multiplataformas e se a essência do jornalismo
(suas características fundamentais) é mantida e de que maneira. Numa si-
tuação de mudança tecnológica combinada a amplas e variadas formas de
interação e de narrativas, qual a postura do jornalismo adotada pela TV
MS, afiliada da Rede Record no Estado? Tanto essa como outras emissoras
buscam telespectadores para aumentar a audiência, mas a receita de suces-
so ainda é uma incógnita. Em meio a esse processo, a televisão em geral
enfrenta o desafio de lutar para manter a sua identidade. Muitas pesquisas
sobre esse tema, como a de Cajazeira (2014), apontam que a maioria das
emissoras e profissionais da televisão não estão preparados para a interação
no ambiente de convergência midiática que permite a exploração das novas
possibilidades de finalização de seu público.

Televisão no Brasil e no mundo

A origem da televisão no mundo data do século XIX e acompanha


uma série de descobertas no campo tecnológico. Paternostro (1999) con-
sidera como um dos primórdios da invenção a descoberta em 1817, pelo
químico sueco Jakob Berzelius, de que a luz modificava a capacidade do
selênio.
Várias experiências e descobertas se passaram ao longo dos anos, até
que a substituição do selênio da célula fotoelétrica por um elemento deri-
vado do potássio, em 1913, aumentou a sensibilidade da célula e a veloci-
dade de transmissão de linhas (MATTOS, 2009). Outro marco importante
descrito por Mattos (2009) e Paternostro (1999), em 1923, foi a invenção
do iconoscópio, um tubo a vácuo com uma tela de células fotoelétricas que
permitia a análise eletrônica da imagem.
A partir da década de 1930, vários aparelhos de televisão começa-
ram a ser produzidos em diferentes países. Segundo Paternostro (1999), em
1936, a British Broadcasting Corporation (BBC) pôs as câmeras na rua e fez
uma transmissão do Rei Jorge VI. Mas só em 1940, a televisão se afirmou
como um sistema totalmente eletrônico. No entanto, devido à Segunda
Guerra Mundial, entre os anos de 1939 e 1945, a maioria dos países euro-
peus interrompeu as transmissões de televisão. As fábricas de televisores fo-
ram usadas na produção de materiais destinados para a guerra (MATTOS,
2009, p.166).
Com o desenvolvimento retomado após a guerra, houve crescimento
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 235
na venda de aparelhos e a televisão começou a receber anúncios publicitá-
rios. Segundo Mattos (2009), em 1949 existiam mais de um milhão de televi-
sores nos Estados Unidos. Dez anos depois, já eram 50 milhões de aparelhos.
No Brasil, apesar de a televisão ter sido inaugurada em 1950, há re-
gistros de que já era conhecida no país desde 1939. Mattos (2009) relata que
um público seleto assistiu a alguns artistas mostrados em um aparelho numa
Feira de Amostras no Rio de Janeiro. No início, havia muita improvisação
nos programas, pois não havia profissionais com experiência em televisão;
muitos haviam trabalhado em rádio ou cinema. Em 1956, a descoberta do
videoteipe trouxe mais profissionalização à atividade (MATTOS, 2009).
Em 1969, o Jornal Nacional foi ao ar transmitido pela primeira vez
para todo o país, o que marcou o início das transmissões em rede. Os avan-
ços na televisão prosseguiram e a Copa do Mundo de 1970 foi transmitida
ao vivo. Dois anos mais tarde, houve a primeira transmissão oficial em cores
do Brasil (MATTOS, 2009).
As redes de televisão também cresceram e se aperfeiçoaram. A Rede
Globo se destacou principalmente com a expansão das afiliadas por diversas
cidades brasileiras e incremento na programação (PATERNOSTRO, 1999).
No final da década de 80, a audiência televisiva atingiu 90 milhões
de telespectadores, o correspondente a 63% da população brasileira à épo-
ca. Nos anos de 1990, a televisão era fonte de informação e entretenimento
(PATERNOSTRO, 1999). Com o estabelecimento da internet no Brasil,
nesse período, foram dados os passos iniciais do que mais tarde seria uma
revolução também para o mercado televisivo. A partir de 2000, iniciou-se a
fase atual da convergência e da qualidade digital, impulsionada pelos indí-
cios tecnológicos que sinalizam para a interação dos veículos de comunica-
ção em geral, principalmente da televisão com a internet, e também outras
tecnologias da informação.

TV Record no Brasil e em Mato Grosso do Sul

A TV Record entrou no ar no dia 27 de setembro de 1953, às 20 ho-


ras, em São Paulo. Estreou com um musical apresentado por Hélio Ansaldo
e Sandra Amaral. Foi a primeira emissora inaugurada num prédio feito para
ser uma emissora de televisão (MATTOS, 2009).
Fundada pelo empresário Paulo Machado de Carvalho, a TV Re-
cord começou sua história no Canal 7. Exibiu o primeiro seriado de aven-
turas produzido no país, o Capitão 7. Em 1956, transmitiu ao vivo o Grande
Prêmio de Turfe do Brasil, direto do Jóquei Clube do Rio de Janeiro. E em
maio de 1960, o prédio da TV Record São Paulo sofreu o primeiro e grande
incêndio4.
4 Em 1969, a TV Record sofreu o segundo incêndio nos teatros Consolação e Paramount, perten-
centes à empresa de comunicação.

236 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Em 1964, a emissora começou a exibir o Repórter Esso. Um ano
depois inaugurou o programa Jovem Guarda, com o cantor Roberto Carlos.
Dois anos depois, segundo Mattos (2009), outro incêndio destruiu os estú-
dios e também a central técnica em São Paulo.
Nos anos 1970, a emissora começou a dedicar mais tempo aos pro-
gramas de entrevista e de jornalismo. Foi quando surgiram os programas
Dia D, Jornal do Rei, Jornal da Record e Tempo de Notícias. A década
de 1980 foi marcada pela expansão da cobertura e transmissão para todo o
Estado de São Paulo.
Em 1997, a TV Record deu sequência aos investimentos que en-
volviam expansão da rede, da tecnologia e a contratação de profissionais
como Boris Casoy e Carlos Massa, o Ratinho. Em 1998 estrearam novos
programas, como a revista jornalística Fala Brasil, o Repórter Record, Dis-
que Record e o infantil Vila Esperança.
De todos os investimentos feitos pela TV Record, o que rendeu au-
diência em primeiro lugar em alguns momentos do horário nobre foi o
sucesso do Programa do Ratinho, em 1997. Uma espécie de reality show,
o programa dramatizava e espetacularizava a miséria humana e a falência
das políticas sociais de segurança, saúde e educação. Uma das explicações
para a audiência desse gênero pode ter sido o esgotamento da fórmula das
novelas diárias.
Em Mato Grosso do Sul, a afiliada TV MS pertencente à Rede MS
de Rádio e Televisão, da Organização Ivan Paes Barbosa, foi a quarta em-
presa de televisão a se estabelecer no Estado, depois respectivamente da
TV Morena, da TV Campo Grande e da TVE. Além do sinal da televisão,
o grupo também tem a concessão das rádios Cidade FM e Concórdia AM.
Inaugurada em fevereiro de 1987, a TV MS, empresa de capital privado,
era na época afiliada da Rede Manchete e transmitia a programação da rede
nacional. Não havia, até então, produção local. O primeiro telejornal, o
MS em Manchete, surgiu no dia 28 de abril de 1987 e era produzido com
muita improvisação e pouco profissionalismo (CANCIO, 2005).
Em 1995, a TV MS aceitou a proposta para transmitir o sinal da Rede
Record. Em outubro daquele mesmo ano, encerrou o contrato com a Man-
chete, em vista do declínio que se encontrava a emissora nacional. A mudança
ocorreu sem aviso prévio. Após mudar a transmissão do sinal para a TV Record,
não houve alteração na programação regional nem no telejornalismo. A produ-
ção diária de jornalismo da TV Record no Estado naquele momento era de 30
minutos, com 2% de conteúdo informativo em toda a programação. Além da
produção local, a emissora retransmitia programação da rede nacional, o que
continua sendo feito até hoje (CANCIO, 2005).
A partir de 2009 houve uma reformulação do telejornal. Novos jorna-
listas foram contratados para assumir os jornais e programas oferecidos. Eram
profissionais já conhecidos no mercado, da concorrente afiliada da Rede Glo-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 237
bo em Campo Grande, a TV Morena, com a proposta de que houvesse migra-
ção da audiência para o Canal 11 (TV MS). Confiante com a credibilidade
de profissionais experientes e com uma proposta inovadora, o jornalismo assu-
miu uma linguagem mais coloquial, com maior participação do telespectador,
principalmente com mensagens enviadas pelo portal de notícias da emissora,
que surgiu em 20085.
Também aumentou o tempo da produção local de programas com
material informativo. A grade regional tinha uma média de 3h15 diários
de informações no total. No período da coleta de dados desta pesquisa,
o telejornal MS Record, lançado no ano de 2007 em Campo Grande,
Mato Grosso do Sul, era exibido pela afiliada da emissora TV Record às
12h30min, de segunda a sexta-feira. Aos sábados, por volta das 11 horas.
O tempo de duração do telejornal era em torno de 50 minutos durante a
semana e de cerca de 20 minutos aos sábados.

O WhatsApp e o jornalismo

Pela popularidade dos smartphones e sua importância no cotidiano


das pessoas (armazenamento de dados pessoais, fotos, vídeos, mensagens
e inúmeras outras funções), é natural que sejam uma das plataformas de
mídia que mais crescem no mundo. Do fenômeno do uso de aplicativos em
conjunto com programas de televisão, o WhatsApp se destaca: permite a
troca de mensagens pelo celular sem pagar por SMS (serviço de mensagens
que tem custo para envio de acordo com a operadora de telefonia) (WHAT-
SAPP, 2015).
O aplicativo foi criado em agosto de 2009 pelo ucraniano Jan Koum
e pelo norte-americano Brian Acton (REVENTÓS, 2012). Os dois traba-
lharam por vinte anos no site Yahoo até a decisão de criar o WhatsApp. Em
fevereiro de 2012, um bilhão de mensagens circulavam por dia pelo aplica-
tivo no mundo e havia mais de 50 milhões de downloads nas lojas virtuais
dos dispositivos móveis. No início de 2014, a rede social Facebook comprou
o WhatsApp por US$ 22 bilhões, valor equivalente ao Produto Interno Bru-
to (PIB) de 22 países (G1, 2015).
Devido a essa rápida expansão e sucesso, o WhatsApp logo se tor-
nou parte do cotidiano de milhões de pessoas no mundo inteiro e passou a
ser usado também no jornalismo. Foi pela observação do comportamento
das pessoas na rua se comunicando pelo WhatsApp que o editor digital do
Jornal Extra, Fábio Gusmão, começou a pesquisar e estudar o aplicativo
e os novos hábitos das pessoas de forma mais aprofundada (CARVALHO,
5 O portal MS Record é mantido pela Rede MS Integração de Rádio e Televisão. Foi criado em ju-
lho de 2008. Possui conteúdo e vídeos do telejornal MS Record. O endereço era <www.msrecord.
com.br.>. No início de 2014, houve uma fusão com o site Diário Digital, também pertencente à
Rede MS, e o endereço passou a ser <www.diariodigital.com.br>.

238 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


2014). Gusmão criou um projeto e o aplicativo começou a ser usado pelo
jornal em junho de 2013, em paralelo às manifestações populares em todo
o Brasil.
O Jornal Extra passou a ter acesso a 35 mil pessoas do país inteiro
pelo WhatsApp e já recebeu mais de dois milhões de mensagens desde o
início do projeto. A iniciativa inspirou outras redações de jornalismo. Gus-
mão ressalta que o jornalismo não mudou, que é importante e que continua
sendo feito o trabalho de apuração. A diferença é a agilidade na produção
de notícia (CARVALHO, 2014).
A adoção do WhatsApp pelas redações brasileiras cresceu ainda mais
a partir de 2014 e o aplicativo assumiu o papel de ferramenta de trabalho e
canal de comunicação com o público. Tanto nos veículos impressos como
sites de notícia e de televisão, a imprensa de um modo geral percebe o
aplicativo como um instrumento prático, rápido e barato. No entanto, em
muitas redações, o índice de material aproveitável para o jornalismo que
chega pelo aplicativo não passa de 10% do total das mensagens recebidas
(MATUOKA, 2014).
O uso do WhatsApp pelas empresas de comunicação requer atenção
a detalhes importantes. Não é possível saber nenhuma informação da pes-
soa que envia a mensagem além do número de telefone. O nome e a foto
apenas quando registrados no perfil do usuário e existe a possibilidade da
criação de perfis falsos. Isso significa que a empresa de comunicação não
tem como saber exatamente quem está do outro lado na conversa, nem ter
maiores garantias sobre a veracidade das informações enviadas por texto,
foto ou vídeo. O aplicativo pertence a uma empresa privada e esse tipo de
informação não está disponível.

Níveis de interação: conceitos e classificações

O conceito de interatividade é considerado recente por alguns auto-


res. Sua origem é associada ao advento dos meios digitais e relacionada ao
conceito de convergência, descrito na obra A cultura da convergência, por
Jenkins (2008, p. 30-31):

O estouro da bolha pontocom jogou água fria nessa conversa so-


bre revolução digital. Agora, a convergência ressurge como um
importante ponto de referência, à medida que velhas e novas em-
presas tentam imaginar o futuro da indústria de entretenimento.
Se o paradigma da revolução digital presumia que as novas mídias
substituiriam as antigas, o emergente paradigma da convergência
presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada
vez mais complexas.

Montez e Becker (2005) descrevem que a comunicação mediada por


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 239
computador requer um meio eletrônico entre os atuantes. A interatividade
tem a ver com o quanto o usuário pode participar ou influenciar na modifi-
cação imediata, forma e conteúdo de um ambiente computacional.
Segundo Primo (2008), é importante diferenciar interação de intera-
tividade. Tanto o clique em um ícone na interface quanto uma conversação
na janela de comentários de um blog são interações. É necessário diferenciar
qualitativamente ambos e não cair no risco de reduzir a interação apenas a
questões tecnológicas. “É fechar os olhos para o que há além do computador.
Seria como tentar jogar futebol olhando apenas para a bola, ou seja, é preciso
que se estude não apenas a interação com o computador, mas também a
interação por meio da máquina” (PRIMO, 2008, p. 30-31).
De acordo com Montez e Becker (2005), o princípio da interativida-
de remete a um programa proposto por Doug Ross em 1954, que permitia
desenhar em um monitor. O verdadeiro impulso para a interatividade, no
entanto, foi dado por Ivan Sutherland, em 1963, com o programa chamado
Sketchpad. Nele, segundo os autores, o usuário podia desenhar diretamente
no monitor com uma caneta chamada pen light.
Apesar das descrições e relatos sobre o princípio da interatividade
nas décadas de 1950 e 1960, seu uso em massa ocorreu na década de 1980,
quando surgiram os jogos eletrônicos. Eles mostraram a capacidade das novas
máquinas eletrônicas de representar ações nas quais os homens poderiam e
deveriam participar, caso contrário não haveria interação (MONTEZ; BE-
CKER, 2005).
Thompson (2011) sugere uma discussão a partir da interação face a
face e a mediada ou quase mediada. Para isso, o autor remete às tradições
orais que mantinham as informações repassadas de uma geração a outra
e dependia da interação face a face e ainda, em alguns casos, da dispo-
nibilidade das pessoas se deslocarem de um lugar a outro. Os meios de
comunicação e mais tarde, o surgimento das tecnologias digitais, criaram
outras formas de interação. Primeiro, ela não se limita a um deslocamento
geográfico e proximidade física. A internet, por exemplo, permite o acesso a
informações independentemente da distância entre as pessoas, o que rompe
com a necessidade de um mesmo ambiente espaço-temporal para haver
interação.
A partir desse raciocínio, Thompson (2011, p. 120) define três tipos
de interação: face a face, interação mediada e quase-interação mediada. Na
interação face a face, os receptores podem responder aos produtores. Essa
interação também permite as trocas simbólicas como gestos, piscadas de
olhar e entonação de voz.
As interações mediadas requerem um meio técnico como papel, on-
das eletromagnéticas e fios elétricos. São exemplos desse tipo de interação
as cartas e conversas telefônicas. A quase-interação mediada se refere às
relações com os meios de comunicação de massa, tais como livros, jornais,
240 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
rádio, televisão, entre outros. O que difere a quase-interação mediada das
outras é a orientação da mensagem, que nos outros tipos de interação, é
dirigida para pessoas específicas a quem são produzidas ações e afirmações
(THOMPSON, 2011). Apesar de definir esses três tipos, o autor não esgota
as possibilidades de outros cenários de interação, criadas a partir das tecno-
logias digitais da comunicação, que permitem mais recursos de receptivi-
dade.

Narrativas da comunicação digital interativa

As mudanças tecnológicas e comportamentais influenciaram não só


modificações no aparelho televisor e no hábito de assistir aos assuntos da
televisão e discuti-los, mas também na narrativa utilizada pelos meios de
comunicação. Novas características foram incorporadas e uma delas é a
hipertextualidade, possível na navegação na internet e definida por Scolari
(2008) como estruturas textuais sem sequência.
No caso da televisão, muitas emissoras expandiram seu negócio para
outros meios, principalmente a internet, a partir de outras telas dos dispo-
sitivos móveis. A maioria das emissoras tem pelo menos um site ou uma
fanpage de alguma rede social, ou ambos. Assim, ampliam a possibilidade
de disseminação do conteúdo com diferentes tipos de narrativas em várias
plataformas. Esse é também um modelo interessante para o mercado publi-
citário, pois expande alternativas para o consumo de um produto.
A mediação da interatividade por computador introduziu várias mu-
danças na comunicação. Recursos multimídia como vídeos, áudios, fotos e
outros arquivos agora podem ser incorporados ao texto. Isso amplia as for-
mas de acesso aos conteúdos no ambiente do ciberespaço, no qual surgiram
as narrativas crossmedia e transmídia, tornando possível ao usuário interagir
com a narrativa em diferentes mídias.
Um dos critérios de multimidialidade definido por Noci (2008) é a
possibilidade de integrar em uma mesma estrutura hipertextual os nós visu-
ais, sonoros ou de outro tipo. O autor sugere incluir nesse mesmo campo o
estudo da interface como meio de relação entre o leitor e o sistema (ou au-
tor). Texto e aspectos gráficos, visuais e auditivos não devem ser separados.
Todos esses elementos devem ser levados em conta para o entendimento da
informação jornalística.
Numa só página na internet pode haver um texto e uma foto que
foram veiculados em um jornal impresso, um vídeo de uma reportagem de
televisão e o arquivo em áudio de uma informação dada numa rádio. Para
Renault (2014, p. 122), “o hipertexto materializou a perspectiva de que um
meio de comunicação pode conter o outro”. Todos os elementos (texto,
foto, vídeo e áudio) podem ser justapostos para contribuir com a compre-
ensão da informação.
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 241
Na narrativa multimídia, existe mais de um meio de comunicação
numa mesma história, no entanto, segundo Arnaut et al. (2011), ela é pra-
ticamente uma cópia do conteúdo em diferentes mídias. Não há comple-
mentação no conteúdo quando um telejornal convida o telespectador a
rever uma reportagem na página na internet. A multimídia é caracterizada
pela possibilidade de transposição de conteúdo em outras mídias.
O conceito de narrativa transmídia foi introduzido por Henry Jenkins
no artigo intitulado Technology Review, publicado em 2003. Scolari (2013)
ressalta que, nesse artigo, Jenkins afirmava a existência inevitável do fluxo
de conteúdo a partir de diferentes canais na era da convergência. Como
prova disso, evidenciou a mudança de comportamento dos jovens atuais,
que gostam de mergulhar nas histórias de ficção e conectar conteúdo e
personagens com outros de uma mesma franquia.
É uma narrativa caracterizada pela ocorrência em vários suportes mi-
diáticos. Cada texto contribui de maneira distinta para o entendimento do
todo, como o exemplo clássico do filme Matrix. Além das telas do cinema,
foi fornecido conteúdo adicional na internet, em jogos de videogame e nas
histórias em quadrinhos. Jenkins (2008) explica que, nesse caso, a narrativa
não pode ser contada numa única mídia.
As narrativas transmidiáticas se expandem por diferentes sistemas de
significação (verbal, icônico, audiovisual, dentre outros) e meios como o
cinema, quadrinhos, televisão, videogames e teatro. Não são simplesmente
uma adaptação de uma linguagem para outra. A história contada num li-
vro não é a mesma do cinema ou de um dispositivo móvel. “Uma história
transmidiática se desenrola por meio de múltiplos suportes midiáticos, com
cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo”
(JENKINS, 2008, p. 135). Cada produto se torna um acesso à franquia.
Do cinema, a narrativa transmídia passou para campanhas publici-
tárias, mas ainda gera questionamentos no uso do jornalismo. Apesar de
o conceito ter sido utilizado inicialmente no âmbito do entretenimento,
Scolari (2013) acredita na possibilidade de uso no jornalismo. Alzamora
e Tárcia (2012) sugerem seu uso a princípio na modalidade de jornalismo
investigativo e em reportagens especiais, que proponham discussões mais
profundas sobre outros subtemas de um determinado assunto.
Na narrativa crossmedia, um conteúdo ou ideia utilizam concomi-
tantemente diversas plataformas. É muito confundida com a transmídia,
no entanto, o que a diferencia das narrativas anteriores é principalmente
o fato de não haver conexão entre as partes da história. Cada uma delas se
desenvolve em um canal de distribuição (ARNAUT et al., 2011). Esse tipo
de narrativa também surgiu no período de convergência de mídias. Apesar
de ser uma produção integrada, os conteúdos distribuídos em diferentes
plataformas não se complementam como na narrativa transmidiática, em
que o usuário precisa conhecer todas as franquias de acesso ao conteúdo
242 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
para compreender a história como um todo. Scolari (2013) defende a pos-
sibilidade de, assim como no caso da narrativa transmídia, utilizar também
a crossmedia no jornalismo e na publicidade.
Na opinião do autor, o jornalismo possui duas condições para que
haja narrativa crossmedia: uma história que pode ser contada em vários
meios (blog, rádio, televisão, jornal impresso, etc.) e o respaldo do público
ou usuário em diferentes formas (comentários, notas peladas telefônicas,
posts, tweets, etc.).

MS Record: análise da participação do público no telejornal

Na análise da interação do telespectador no telejornal MS Record,


foi verificado como a emissora disponibilizou e estimulou a interação pelo
aplicativo WhatsApp. A TV MS tem outros programas com informação,
inclusive algumas notícias no formato jornalístico, que também promovem
interação pelo WhatsApp. No entanto, o telejornal em estudo foi o primeiro
no Estado do gênero jornalístico a utilizar esse aplicativo como meio de
interação com o público.
Este tópico destaca a preocupação de se relacionar com os telespec-
tadores e de ouvir seus anseios, parte do telejornalismo na TV MS. Desde o
início da transmissão do sinal da Rede Record, em 1995, a participação do
público nos noticiários ocorria com o uso de telefonemas.
Com o início do telejornal MS Record, em 2007, além do telefone, o
telespectador passou a participar também por e-mails e um ano depois, com
mensagens pelo portal de notícias MS Record, criado em 20086 e perten-
cente à emissora. O telejornal, inclusive, foi transmitido ao vivo pelo site até
2014. A transmissão era informada no início da apresentação de cada edição
do telejornal7.
A partir de 2009 houve uma reformulação do telejornal MS Record.
Segundo a editora-chefe da Record, [Ellen Genaro] Lemos (2015), foram
contratados jornalistas da afiliada da Rede Globo em Campo Grande, a TV
Morena, com a proposta de que houvesse a migração da audiência para o
canal 11 (Rede Record). Por determinação da rede nacional, o telejornal
Record MS incorporou uma linguagem mais coloquial e passou a incenti-
var ainda mais a participação do telespectador, naquele período com men-
sagens enviadas pelo portal de notícias.
6 O portal MS Record é mantido pela Rede MS Integração de Rádio e Televisão. Foi criado em julho de
2008. Possui conteúdo e vídeos da TV MS Record. O endereço era <www.msrecord.com.br>. No início de
2014, houve uma fusão com o site Diário Digital, também pertencente à Rede MS e o endereço passou a
ser <www.diariodigital.com.br>.
7 No segundo semestre de 2014, houve a fusão do portal MS Record com o Diário Digital, dois sites de
notícia que pertenciam à mesma afiliada da Rede Record em Mato Grosso do Sul. Após a fusão, ficou man-
tido o nome Diário Digital e foi extinto o outro. O telejornal MS Record continuou sendo exibido ao vivo
na página do Diário Digital, mas, meses depois, no final de 2014, a transmissão ao vivo deixou de ser feita.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 243


O portal da TV MS na internet passou a trabalhar em parceria com a tele-
visão na apuração e produção de notícias. Foi disponibilizado no site um fórum
interativo, com uma pergunta ao internauta sobre o assunto que seria discutido
no telejornal. Em média, 70 telespectadores ao dia participavam na ferramenta.
Em 2011, o portal de notícias MS Record criou um perfil no Facebook,
também usado pelo jornalismo, mas com pouca frequência e interação com o
público. Por isso, a equipe de jornalismo resolveu mudar a tática. No final de
2014, a emissora passou a estimular os telespectadores a enviarem mensagens
de texto, fotos e vídeos pelo WhatsApp. Em poucos meses, a resposta do público
foi maior do que a esperada. Os telespectadores opinavam e mandavam suges-
tões de pautas dentro e fora do horário de exibição do telejornal.
A primeira experiência com WhatsApp no telejornalismo aconteceu
no Mercado Municipal de Campo Grande e foi considerada muito positiva
por Lemos (2015). Foram feitas entradas ao vivo para sortear brindes aos te-
lespectadores. Os jornalistas da redação não conseguiam atender a todos os
telefonemas. Lemos (2015) conta que até foi preciso entregar o prêmio na se-
gunda-feira para dar tempo de a equipe contabilizar as pessoas contempladas.
O aplicativo logo passou para uso diário. A partir de fevereiro de 2015, no
retorno das férias da apresentadora Glaura Villalba, o telejornal inovou: Glaura
começou a utilizar um smartphone nas apresentações do telejornal para ler as
mensagens que chegavam em tempo real e estimular sempre mais participações
ao vivo. Por isso, a pesquisa levou em consideração esse fenômeno na emissora.
Durante cada telejornal, o smartphone do MS Record recebia em
média 200 participações ao dia, entre fotos, áudios, vídeos e texto. Até uma
hora depois que o telejornal se encerrava, muitas pessoas continuavam
mandando mensagens. O aproveitamento destas variava muito. Segundo
o coordenador de produção do MS Record, Rigo (2015) e a produtora
Yahn (2015), em média, 20% do conteúdo recebido pelo aplicativo era
utilizado no telejornal.
As mensagens de texto só precisavam ser lidas pela apresentadora,
mas os formatos que necessitavam de edição, como as “lapadas” e “notas
cobertas”, eram mais demorados para produzir. Quando alguém faltava, a
operação ficava inviável. Mesmo assim, Lemos (2015) considera o resulta-
do do uso do aplicativo como muito satisfatório, apesar de não ter sido pos-
sível medir a audiência com o uso do WhatsApp ou durante a experiência.
No período da coleta de dados da pesquisa, o telejornal MS Record
era exibido às 12h30min, de segunda à sexta-feira, com tempo de produção
em torno de 50 minutos. Aos sábados, o telejornal entrava no ar às 11 horas,
com tempo médio de produção de 20 minutos.

Análise quantitativa por categorias de análise

Em fevereiro, mês da análise, foram identificados assuntos referentes


244 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
a seis editorias classificadas dentro do gênero jornalístico: Cidades, Polícia,
Educação, Saúde, Economia e Serviço. Em observação às participações
pelo aplicativo WhatsApp, verificou-se a presença de outra categoria que
não pode ser classificada dentro das editorias de gênero jornalístico, mas é
pertinente de análise. Foi nomeada na pesquisa de “relacionamento com
o telespectador”, incluindo beijos e abraços solicitados pelo aplicativo e
enviados pela apresentadora a telespectadores ao vivo, durante o telejornal.
Foi também estabelecida a categoria “outros”, para assuntos não pertencen-
tes às demais editorias classificadas.
O critério para a categorização das unidades de análise foi estabe-
lecido de acordo com as editorias utilizadas pelo telejornal MS Record,
predefinidas com embasamento jornalístico, com exceção da categoria que
trata de quantificar as mensagens com pedidos de beijos e abraços (relacio-
namento com o telespectador) e a categoria “outros”, usada para classificar
convites e interações sem editorias específicas.
No total, foram contabilizadas 116 participações. Em situações iso-
ladas, uma mesma participação enviada por um telespectador apareceu
no telejornal duas ou mais vezes na mesma edição ou foi repetida no dia
seguinte. Nesses casos, foi contabilizada como uma só interação e as de-
mais foram desprezadas na contagem.
A proposta nesta análise é retratar o número de vezes que a apresen-
tadora convida o telespectador para interagir, quantas vezes ele interage e
que assuntos são tratados nesse processo. Como o telejornal é exibido de
segunda a sexta-feira, a observação direta começou na segunda-feira, dia 02
de fevereiro, como mostra a organização exposta na sequência (Tabela 1).

Tabela 1 - Número de participações pelo WhatsApp no mês de fevereiro de 2015.

Fonte: próprias autoras.


Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 245
Nos convites e interações realizados por meio do aplicativo, em al-
gumas situações os temas discutidos foram propostos pela figura do apre-
sentador, com o estabelecimento da relação enunciado-resposta ou apenas
enunciado, sem resposta do público. Outros foram enviados e sugeridos de
modo espontâneo pelo público e geraram interação.
Lemos (2015) explicou que muitas vezes havia dificuldade de conse-
guir uma “nota retorno” das autoridades, mas não queria deixar de noticiar
um fato. Por isso, a preocupação maior era ouvir a voz da população. A em-
presa permitia isso, não havia um controle de qualidade. Segundo Villalba
(2016, s.p.), a empresa tinha o conhecimento de que deveria ter critérios
mais rígidos, mas deixava acontecer: “é uma questão de ponto de vista, é
uma questão corporativa, sem dúvida, e eu acho também que passa pelo
amadurecimento”. A ex-apresentadora, no entanto, afirma que, de fato,
considera importante ter um controle de qualidade, mas com equilíbrio.
Dentro do estilo coloquial e mais conversado do telejornal, sem pa-
drões rígidos, Villalba (2016) também assumiu a postura de mandar beijos
e abraços ao vivo para se aproximar do seu público.

Eu estava em busca de audiência e como a Glaura é uma pessoa


muito querida e que tem uma credibilidade muito boa, eu falava
assim, a Glaura pode fazer qualquer coisa aqui no ar, isso não vai
comprometer a credibilidade dela. E o jornal cabe isso, a gente
estava num horário popular. Aí o pessoal falava: “manda um alô
para mim”, de Coxim, por exemplo, de Nioaque. Eu ficava feliz
com aquela audiência! Eu falava assim: Glaura, pode mandar
beijo! E daí começou. Eu lembro que no começo ela ficava as-
sim “mas pode isso”? E eu dizia “pode, faz”! Tira foto, tira selfie,
coloca sua foto no Facebook, para dizer que você faz parte de
todos ali, não está distante, está próxima (LEMOS, 2015).

Essa prática era realizada principalmente com mensagens enviadas


por telespectadores de cidades do interior, onde a emissora não dispõe de
equipe para realizar apuração in loco. Por isso, é atribuída à prática o senti-
do de uma estratégia para dar voz aos telespectadores de regiões em que a
emissora não tem estrutura operacional e técnica para cobrir diariamente.
Assim, conquistava audiência fora da capital e, ao mesmo tempo, reforçava
a audiência no interior e a própria marca.
Por esse ponto de vista, o resultado era alcançado. Nesta pesquisa, esse
relacionamento com o telespectador representou 8% do corpus analisado, per-
centual maior que o das editorias de Economia, Serviços e Outros assuntos.
Villalba (2016) conta que a relação com os telespectadores começou
a ficar tão próxima que deixou de ser apenas uma apresentadora: “eu não
era apenas uma âncora, eu era... quis ser mais que isso”. O telejornal se
tornou uma mistura de revista com programa de entrevistas, notícias e até
246 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
mesmo uma cozinha para preparar pratos na hora do almoço, durante a
exibição do telejornal.
Nesta análise, foram considerados os dias da semana com o propósito
de verificar em quais ocorreram mais convites e interações pelo WhatsA-
pp. O mês de fevereiro de 2015 teve quatro semanas completas, com dias
distribuídos de modo uniforme, o que permitiu resultados equilibrados de
quantificação (Tabela 2).
Tabela 2 - Quantificação de convites e interações por dias da semana.

Fonte: próprias autoras.

Nas sextas-feiras há um número elevado de participações em relação


aos demais dias da semana. Foram 33 interações nas quatro sextas-feiras do
mês de fevereiro. A média dos outros dias foi de dez interações / dia. O nú-
mero de convites também foi maior nas sextas-feiras, dez no total. A média
dos outros cinco dias da semana foi de três convites / dia.
Ao ser questionada sobre o resultado dessa análise, Villalba (2016,
s.p.) mostrou-se surpresa, pois, segundo ela, não foi intencional: “não tinha
um roteiro específico, era tudo muito de acordo com o sabor das sugestões e
o que estava acontecendo na cidade e assuntos mais polêmicos. Coincidiu
então, porque a gente não tinha esse controle, absolutamente”.
Já aos sábados, as interações foram pouco expressivas. O tempo de
produção do telejornal neste dia da semana era em torno de 20 a 25 minu-
tos, quase a metade do tempo de produção dos telejornais exibidos durante
a semana, em torno de 50 minutos.
O maior número de convites e de interações ficou concentrado na
primeira e na última semana do mês de fevereiro. A quantidade de convites
dos apresentadores para os telespectadores interagirem por meio do apli-
cativo e das interações foi muito parecida (11 convites e 29 interações na
primeira semana e dez convites e 28 interações na última).
A segunda e a terceira semanas tiveram um número menor de con-
vites e de interações. Comparando apenas essas duas semanas, os dados
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 247
são razoavelmente equiparados. A segunda semana teve seis convites e 17
interações, a terceira teve dois convites e 13 interações.

Análise dos formatos das participações

Além da análise quanti-qualitativa por categorização de editorias, o


mesmo método foi utilizado para a análise dos formatos em que as parti-
cipações aparecem nos telejornais. Assim foi possível identificar em quais
momentos os apresentadores costumam fazer os convites ao público, in-
centivando a participação e como as interações com os telespectadores são
representadas e mostradas no telejornal MS Record.
Os telespectadores mandam mensagens de texto, fotos e vídeos produzi-
dos por eles mesmos e com os próprios smartphones. Os jornalistas da emissora
utilizam esse material que chega até a redação pelo WhatsApp de diferentes
maneiras, por exemplo, como nota pelada, lida muitas vezes durante o telejor-
nal à medida que chegava ao smartphone da apresentadora; como “lapada”8;
nota coberta; pool de imagens9 e reportagem completa, dentre outros.
Para diferenciar os formatos em que os assuntos tratados por meio do
WhatsApp são exibidos, foram estabelecidas algumas categorias de análise
em que os convites e as interações pelo aplicativo aparecem como conteú-
do ou como parte do conteúdo. O critério para a categorização foi elabora-
do de acordo com a nomenclatura-padrão utilizada no telejornalismo.
No total, foram identificadas 98 unidades nesta análise dos formatos
dos convites e interações (Tabela 3). A “nota pelada”, fácil e ágil para as
redações de telejornal, foi o formato utilizado o maior número de vezes no
mês de fevereiro de 2015. Como não precisa de imagens, não há necessi-
dade de passar pelo trabalho de edição. Basta que a informação seja lida ao
vivo. A apresentadora utilizou muito esse formato ao convidar os telespec-
tadores a participarem do telejornal e também para ler as mensagens que
chegam pelo WhatsApp, inclusive no momento em que chegavam.

Tabela 3 - Quantificação de formatos dos convites e interações

8 Lapada é o nome utilizado, no jargão jornalístico, para designar um resumo de fatos ilustrados
com imagens de fotos e/ou vídeos, geralmente narrados pelo apresentador ou repórter.
9 Pool de imagens é outra nomenclatura que faz parte do jargão jornalístico nos veículos de televi-
são. Usado para se referir a um conjunto de imagens editadas, uma sequência de vários fragmentos
pequenos de imagens sobre determinado assunto.

248 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Fonte: próprias autoras.

Depois da nota pelada, a nota pé foi a mais usada, apareceu 14 vezes.


É uma nota simples e apresenta as mesmas vantagens da nota pelada. A di-
ferença é que, na maioria das vezes, a nota pé é uma resposta de autoridades
ou especialistas de determinado assunto para complementar a informação
de uma reportagem, nota coberta ou link. Nesse caso, muitas vezes, a nota
pé era um convite ou uma interação com ou sem a resposta de uma fonte
específica para o assunto.
Na sequência, os outros formatos mais utilizados no telejornal foram
a cabeça e o off ao vivo com pool de imagens, cada um aparece 12 vezes.
Assim como os demais, são formatos simples, rápidos de serem preparados
para o telejornal.
Mesmo o off ao vivo, que requer uma edição de imagens com um pool
editado previamente antes de ir ao ar, é considerado simples e rápido, pois
basta editar uma breve sequência de imagens. A narração do apresentador
é feita ao vivo, enquanto as imagens são exibidas por cima do texto falado.
Inclusive o apresentador tem a possibilidade de improvisar ou ler mensagens
que chegam pelo aplicativo referentes às imagens que estão no ar.
Já a reportagem completa, a lapada, a passagem de bloco e a nota
coberta requerem um trabalho maior na edição de imagens e provavelmen-
te por isso foram usadas com menos frequência. Ao contrário das notas, da
cabeça e do off ao vivo, que permitem ao apresentador certa improvisação,
nos formatos de reportagem, lapada, passagem de bloco e nota coberta, o
texto precisa estar casado com a imagem. É preciso harmonia e ligação en-
tre ambos, por isso o texto deve ser escrito, gravado e depois editado.
No caso da reportagem, deve ainda passar por um trabalho de apu-
ração do produtor na elaboração da pauta, do repórter que vai a campo
checar e produzir a matéria e do editor que confere e edita o material antes
da exibição no telejornal.

Análise do tipo de interação e das narrativas da comunicação digital

Com base na revisão bibliográfica das classificações dadas à intera-


tividade por vários autores e os tipos de narrativas a partir das tecnologias
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 249
digitais, foi procedida a análise dos convites e das interações no telejornal MS
Record. O objetivo foi verificar como essas participações, ocorridas durante
o telejornal, enquadram-se nas definições estabelecidas pelos autores citados
na revisão referida.
A partir da literatura apresentada neste trabalho, foi verificado se os
formatos e conteúdos apresentados na interação pelo WhatsApp poderia ser
considerados como narrativa multimídia, transmídia ou crossmidia.
Identificou-se na pesquisa que os convites e interações realizados por
meio do WhatsApp durante o telejornal se encaixam principalmente no
conceito de narrativa multimídia. Além disso, as interações apresentam ele-
mentos transmidiáticos.
As características de narrativa multimídia se evidenciam por existir
mais de um meio de comunicação em uma só história e haver praticamente
a cópia de um conteúdo em mídias diferentes. Parte do conteúdo, gera-
do ou enviado por meio do WhatsApp, é reproduzido no site da afiliada,
o Diário Digital. Quase todos os dias, ao final do telejornal, a apresenta-
dora chamava os telespectadores para rever as notícias do MS Record no
site Diário Digital e também acessar outras notícias. Uma frase comum da
apresentadora Glaura Villalba era “Veja essas e outras notícias no diariodi-
gital.com.br”. Quando dizia “outras notícias”, referia-se às produzidas pela
equipe de jornalismo do próprio site, que raramente complementavam as
informações da televisão.
No Diário Digital, foram reproduzidos textos ou fragmentos de tex-
tos extraídos da cabeça e/ou nota pé da apresentação e ainda vídeos mos-
trando trechos da apresentação, links ao vivo e reportagens. Nesse caso, não
houve complementação do conteúdo. O assunto apresentado e discutido
no telejornal migrava para o cibermeio praticamente na íntegra. Essa práti-
ca reforça a ideia do hipertexto na televisão (Renault, 2014) de que, quando
um site é mencionado na televisão, pode ser encontrado facilmente ao ter
seu endereço eletrônico digitado na internet.
Em relação aos elementos que podem ser atribuídos à narrativa
transmídia, notou-se sua presença nas vezes em que a apresentadora Glaura
Villalba (ou apresentador[a] substituto[a]) convidava o telespectador a opi-
nar sobre um tema proposto pela emissora. Era lançada uma enquete pelo
WhatsApp. A partir do momento em que o telespectador precisou acessar
o aplicativo (outro meio) para participar, enviar sua opinião, houve a carac-
terização da narrativa transmídia, pois ele acessou uma franquia daquela
história. A interação cria no telespectador a sensação de jogo, de entrete-
nimento, tanto que muitos pediam à apresentadora que mandasse beijos e
abraços a eles durante o telejornal, ao vivo. O telespectador se apresenta
como fã do telejornal, ao invés de mero espectador da notícia.
De acordo com Jenkins (2009), essa situação pode ser enquadrada
nos conceitos de spreadability e drillability, em que o conteúdo se dissemi-
250 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
na horizontalmente por meio de um aplicativo, a partir do momento em
que uma informação de um telespectador abrange muitos outros que estão
assistindo ao telejornal. E de modo vertical (drillability), para aprofundar a
interpretação e o conhecimento: quando uma mensagem enviada por uma
pessoa é complementada pela figura do apresentador ou de um entrevista-
do ao vivo no telejornal. Muitas vezes, durante um link, a apresentadora
interrompia a entrevista do repórter para ler uma mensagem do WhatsApp
e pedir ao entrevistado que respondesse.
Algumas interações podem ser encaixadas também nos conceitos de
continuity e multiplicity. Algumas mensagens lidas num dia se tornaram re-
portagens ou temas de discussão com reportagens e entrevistas ao vivo no dia
seguinte, como o caso do muro de uma escola estadual que estava prestes a
cair, o abandono de obras de creches públicas, o assédio sexual em ônibus e
a história de uma dona de casa com duas crianças deficientes que não podia
levá-las na cadeira de rodas por causa da erosão na rua em frente à sua casa.
Houve um esforço no sentido de juntar mensagens de vários telespectadores
que, encaixadas, proporcionariam uma compreensão mais global. A multiplici-
dade também foi observada nos casos em que uma temática dominou boa parte
das discussões do telejornal, como a dengue. As mensagens que chegavam no
decorrer do telejornal estimulavam outros telespectadores a enviarem suas crí-
ticas e opiniões.
Nos casos em que a apresentadora convidava o público a participar
a respeito de qualquer tema, ou sobre mensagens que chegavam sobre as-
suntos diversos, não foi possível caracterizar narrativa transmídia, pois não
houve um engajamento numa só história e sim fragmentos isolados partin-
do ora do emissor, ora do receptor.

Considerações finais

Os autores que estudam as tecnologias digitais citados no presente


trabalho concordam que a essência das práticas jornalísticas não deve se
perder em meio à velocidade conferida pela Internet e os próprios disposi-
tivos móveis. As tecnologias da informação e da comunicação servem sim
para dar agilidade ao processo, mas acima de tudo é importante manter o
papel do jornalista de checar, conferir, apurar, filtrar as informações. Sejam
elas oriundas de redes sociais, aplicativos ou telefonemas como era mais
comum no passado.
Pelo fato de a internet ter se tornado um “espaço de legitimação”,
como denomina Cajazera (2014, p.12), há de se ter cuidado com o conte-
údo que circula e inclusive pode ser manipulado por meio das próprias tec-
nologias digitais. Como o tempo é de inovação da TV, as emissoras em geral
estão em busca de uma receita de sucesso na interação com seu público.
No entanto, não há uma fórmula definida que dê certo para todas
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 251
elas. Diante disso, as empresas vão tentando inúmeras formas de fazer te-
levisão de um modo diferente, sem deixar de ser televisão. A própria TV
MS, afiliada da Record, sempre deu espaço às participações, sejam elas por
telefonemas, e-mail, fórum interativo, Facebook e atualmente WhatsApp.
Alguns deram certo por um período, como o fórum interativo. Outros como
o Facebook não tiveram a resposta esperada. É preciso testar, mas avaliar
também os riscos.
Apresentar um telejornal e ler as mensagens à medida que chegam
é uma prática que confere imediatismo, sincronia com o telespectador,
mostra que o retorno do público é dinâmico, mas também perigoso. Del
Bianco (2004) ressalta as facilidades e as fragilidades da internet. Perdeu-se,
no caso da dengue, o fio condutor do assunto com a chegada de mensagens
de outros temas por falta de um filtro, por exemplo, poderia ser um jorna-
lista que apurasse mensagens dentro da redação. Percebeu-se muitas vezes
a deficiência de ouvir uma autoridade ou órgão reclamado no conteúdo
enviado pelo aplicativo. Assim como a necessidade de a apresentadora dar
uma resposta rápida.
O editor digital do jornal Extra reforça que é importante sim respon-
der às mensagens que chegam, mas dar uma resposta que caminhe para
uma solução eficiente, sempre ouvindo os dois lados da história, cumprindo
a práxis jornalística. Não há como permanecer na fórmula do passado. E
inovar na forma não significa perder o conteúdo. Nesse período de trans-
formações e hibridismos, interagir é necessário, mas sem perder o foco nas
premissas e responsabilidades éticas do jornalista.
Del Bianco (2004), Santos (2014), Finger (2012) e outros autores
que estudam as tecnologias digitais concordam que a essência das práticas
jornalísticas não deve se perder em meio às diversas possibilidades das no-
vas experiências com diferentes narrativas, formatos, velocidade e recursos
multimídia conferidos pela internet e dispositivos móveis.
As tecnologias da informação e da comunicação ampliam e agilizam
o processo, mas, acima de tudo, é importante manter o papel do jornalis-
ta de checar, conferir, apurar e filtrar as informações. Esse papel deve ser
mantido aquém da origem da informação, seja oriunda de redes sociais,
aplicativos ou de telefonemas, como era mais comum no passado.

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254 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Pouca interação e muita televisão no jornalismo ao
vivo de Campo Grande no Facebook 1
Oswaldo Ribeiro da SILVA2
Marcelo Vicente Cancio SOARES3

Introdução

As emissoras de televisão, desde a invenção e implantação, sempre


foram as detentoras das transmissões ao vivo de conteúdos audiovisuais.
Com a digitalização do processo de captação de imagens e sons, as pos-
sibilidades mudaram. Por causa disso, a informática em rede começou a
oferecer a opção de compartilhamento de conteúdos audiovisuais gravados
e, posteriormente, com as webcams, as transmissões ao vivo viraram uma
realidade entre os usuários com esses equipamentos instalados nos desktops
ou notebooks.
Nas redes sociais, as transmissões ao vivo de conteúdos audiovisuais
aguardaram as mudanças tecnológicas e as ferramentas necessárias para se
tornarem “febre” entre os usuários. Atualmente redes sociais como Twitter,
Youtube, Facebook, Instagram e WhatsApp oferecem facilidades para esse
tipo de compartilhamento de conteúdo, entre tantos outros.
As emissoras de televisão internacionais, nacionais e regionais não
perderam tempo e começaram a utilizar essa ferramenta como forma de
ampliar o alcance das transmissões ao vivo, naturalmente levando em conta
as relações contratuais com as redes sociais, bem como características de
legislação próprias das empresas televisivas. Em Mato Grosso do Sul, três
exemplos podem ser citados: a Rádio CBN, a TV Estado MS do portal
OE10 e o SBT MS vêm colocando no ar, ao vivo, conteúdos jornalísticos
diariamente em suas programações. A emissora de rádio desde dezembro de
2017 apresenta de segunda à sexta-feira a edição do radiojornalístico CBN
Campo Grande. O portal, que é ligado ao jornal impresso O Estado de
Mato Grosso do Sul exibe, também de segunda à sexta, o Jornal da Tarde,
que estreou em março de 2018. A afiliada do SBT em Mato Grosso do Sul
1 Capítulo retirado do relatório de pesquisa de Pós-Doutorado realizada entre os anos de 2017 e
2019 junto ao Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Comunicação da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS) com bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CA-
PES). Supervisor do Pós-Doutorado, Prof. Dr. Marcelo Vicente Câncio Soares (UFMS).
2 Professor-pesquisador (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação - Mestrado em
Comunicação (UFMS-2017/2019) e professor-pesquisador da Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB). Doutor em Educação (UFMS-2014), Mestre em Ciência da Informação (UnB-2006),
Graduado em Jornalismo (UFMS-1995). E-mail: oswaldoribeiro@ucdb.br.
3 Professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Doutor em Ciên-
cias da Comunicação (USP-2008), Mestre em Ciências da Comunicação (USP-2002), Graduado
em Comunicação Social (UFRJ-1980). E-mail: marcelo.cancio@ufms.br.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 255


leva ao ar, de segunda à sexta, o SBT MS 1ª Edição. E como são propostas
recentes, inclusive pelo tempo em que as ferramentas foram disponibiliza-
das a todos os usuários, não há estudos registrando esse cenário e as caracte-
rísticas dele em Campo Grande (MS).
Para tanto foram analisados cinco dias de transmissão dos três con-
teúdos jornalísticos, de segunda à sexta-feira, no período de 30 de julho
de 2018 a 3 de agosto de 2018. Espaço de tempo em que as três emissoras
transmitiram ao vivo os referidos programas. Foram analisadas, exatamente,
21 horas, 48 minutos e 12 segundos de transmissão ao vivo, via Facebook, di-
vididas entre 15 horas, 18 minutos e 27 segundos do CBN Campo Grande;
3 horas, 43 minutos e 29 segundos do Jornal da Tarde e 2 horas, 46 minutos
e 16 segundos do SBT MS 1ª Edição.

Jornalismo na TV

O telejornalismo sempre esteve ligado à tecnologia. O seu nascimen-


to só foi possível graças à televisão e à necessidade de as pessoas terem aces-
so à informação através desse veículo eletrônico que une imagem e som.
Sua chegada ao Brasil se deu na década de 1950, mais precisamente no
mês de setembro. No início da televisão e do telejornalismo no Brasil, um
conceito já esteve presente - o de mediação. Segundo Squirra (1995, p.22),
duas características eram marcantes: a herança radiofônica e a subordina-
ção total dos programas aos patrocinadores. Seguindo a reflexão sobre o
conceito, Machado (2001) comenta que o telejornalismo tem um efeito de
mediação e assim deve ser visto:

[...] o telejornal não pode ser encarado como um simples dispo-


sitivo de reflexão dos eventos, de natureza especular, ou como
mero recurso de aproximação daquilo que acontece alhures, mas
antes como um efeito de mediação. A menos que nós mesmos se-
jamos os protagonistas, os eventos surgem para nós, espectadores,
mediados através de repórteres (literalmente: aqueles que repor-
tam, aqueles que contam o que viram), porta-vozes, testemunhas
oculares e toda uma multidão de sujeitos falantes considerados
competentes para construir “versões” do que acontece (MACHA-
DO, 2001, p. 102).

É importante ressaltar que o modo de fazer jornalismo, seja ele num


veículo eletrônico ou não, ainda é o mesmo e depende de reflexão, inves-
tigação e divulgação. A barreira qualitativa não foi quebrada e faz parte da
essência do jornalismo. Outra preocupação é que o jornalista tem perdido a
curiosidade, justificada, muitas vezes, pela falta de tempo ou grande quan-
tidade de dados disponíveis.

256 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Telejornalismo on-line, breve histórico no Brasil

Antes de entrar na versão via internet do telejornalismo é importante


comentar características intrínsecas do formato. De acordo com Paternos-
tro (1999, p.66), “em telejornalismo o texto é escrito para ser falado (pelo
locutor) e ouvido (pelo telespectador). Pela própria característica dos veícu-
los eletrônicos de comunicação – a instantaneidade, o receptor deve pegar
a informação de uma vez”.
Neste aspecto, o da instantaneidade, o formato se iguala ao radiojor-
nalismo, que apenas sofre pela falta da imagem. Podemos dizer que, além
do texto falado do telejornalismo, a imagem também traz informação para
o telespectador. Assim como a fala, a imagem, ou a organização sequen-
cial dela num telejornal, também oferece ao telespectador um sentido e,
portanto, alguma informação, independente do grau de escolaridade dele.
A história do telejornalismo muda no fim da década de 1980, quando
a informática foi incorporada. Primeiro com a chegada dos computadores
que agilizaram a produção, realização e exibição do formato. Segundo Pa-
ternostro (1999, p.115), “a antiga lauda, que no telejornalismo é chamada
de script, já está na tela de um terminal, e não só ela, mas todas as funções
da produção de um telejornal, desde a elaboração da pauta até a exibição,
estão sendo automatizadas nas redações brasileiras”.
Este processo permitiu uma interligação total entre os setores da
emissora de televisão e possibilidades de acesso simultâneo a todos os res-
ponsáveis pela realização do produto. Por volta de 2000, a banda larga tor-
nou-se uma realidade no Brasil. Segundo Pereira (2002, p. 158) “isso permi-
tiu o acesso rápido às informações e tráfego de dados”. Como consequência
surgiram os webjornais televisivos como o Jornal da Lílian (Witte Fibe) do
portal Terra e de Paulo Henrique Amorim, do portal UOL. Na mesma épo-
ca surgiu também um programa de entrevistas na internet no portal AOL,
apresentado pela jornalista Mona Dorf. Os três com qualidade de imagem
e som semelhantes ao da TV (SILVA, 2006, p.20).
Em 2002, nasce outra experiência na área, a AllTV, uma televisão
realizada para exibição de conteúdo audiovisual apenas na Internet. Entre
os produtos oferecidos estava o Jornal Interativo. Desta vez sem nenhum
ex-grande nome do telejornalismo feito nas TVs Abertas. De acordo com
o diretor da AllTV, Alberto Luchetti, a estratégia foi montar uma TV com
gente jovem, inexperiente e com vontade de aprender fazendo. Dessa for-
ma, a AllTV rompeu com a busca por figurões globais. O Jornal Interativo
da AllTV era apresentado, em 2002, por Vinícius Costa e Amanda Klein. E
mesmo com uma história recente. o jornalismo da AllTV já obteve retorno.
Em 2005, a emissora recebeu o Prêmio Esso na categoria “Melhor Con-
tribuição ao Telejornalismo” (SILVA, 2006, p.21). E ao que se apresenta,
neste pequeno histórico do telejornalismo tanto tradicional quanto on-line,
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 257
o ao vivo, tão presente no DNA da televisão, atrelado às redes sociais, é a
grande novidade na intenção de dar alcance às programações. Optou-se,
nesta breve revisão de literatura, apenas apresentar um ponto de partida
para as discussões sobre o telejornalismo praticado, em momento de transi-
ção para as redes sociais.

Jornalismo, Cultura da Convergência e Redes Sociais

Para Marcondes Filho (2000), o jornalismo hoje vive a sua quarta


fase. Neste momento, o agente humano jornalista é substituído pelos sis-
temas de comunicação eletrônica, pelas redes, pelas formas interativas. As
chamadas novas tecnologias influenciam na relação do homem da redação,
o ambiente de trabalho passa para a lógica imaterial da tecnologia. No pe-
ríodo contemporâneo, a tecnologia imprime uma nova lógica nas relações
de trabalho. Depois da revolução da rotativa, a inovação tecnológica da
década de 1970 atinge o ambiente redacional, que sofre sérias mudanças:
digitalização, informação facilmente manipulada, disseminada, transforma-
da. A tecnologia digital é inevitável, quem se coloca à margem é tido como
ultrapassado.
Neste cenário do jornalismo e da sociedade em que toda história
é contada por um número infinito de processos digitais, a convergência
dos meios é palavra-chave do contexto em que estamos inseridos. Jenkins
(2009) explica detalhadamente:

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de


múltiplas plataformas de mídia, à cooperação de conteúdos atra-
vés de múltiplas plataformas de mídia à cooperação entre múl-
tiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos
públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer
lugar em busca das experiências de entretenimento que desejam.
Convergência é uma palavra que consegue definir transforma-
ções tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, depen-
dendo de quem está falando e do que imaginam estar falando
(JENKINS, 2009, p. 29).

De acordo com Jenkins (2009), não podemos limitar o pensamento


sobre convergência exclusivamente ao desenvolvimento de tecnologias e
hardware que unem diversos aparelhos num só, mas pensar também na mu-
dança cultural que as tecnologias e as práticas da mídia provocam. O proces-
so ocorre ainda dentro do cérebro das pessoas, no momento das interações
sociais e na mudança de comportamento decorrentes desta convergência.
As redes sociais aparecem como ferramentas importantes para alavancá-
-lo. De acordo com Recuero (2009, p. 24), a rede “é uma metáfora para
observar os padrões de conexão de um grupo social, a partir das conexões
258 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
estabelecidas entre os diversos atores. A abordagem de rede tem, assim, seu
foco na estrutura social, onde não é possível isolar os atores sociais e nem
suas conexões”. As conexões oferecem aos agentes da rede social, a oportu-
nidade de contar suas histórias na convivência entre formatos/linguagens
tradicionais e as novas possibilidades ampliadas pelo contexto convergente.

Metodologia operacional da pesquisa

A abordagem desta pesquisa é qualitativa, bastante utilizada nas ci-


ências sociais aplicadas. Segundo Marques et al. (2014, p. 38), ela identifica
os mapas-mentais que explicam a história do sujeito, retratada do jeito que
ela é, porém com uma visão mais apurada sobre o entendimento de deter-
minada realidade. A coleta de dados para a pesquisa será desenvolvida por
meio de revisão de literatura e análise de conteúdo.
Segundo Bardin (1977, p. 42), a análise de conteúdo é caracterizada
por:

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando


obter, por procedimentos, sistemáticos e objectivos de descrição
do conteúdo de mensagens, indicadores (quantitativos ou não)
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às con-
dições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensa-
gens.

Outra metodologia utilizada nesta pesquisa foi o estudo de caso


com técnicas empregadas pela pesquisa qualitativa, já que a ocorrência de
transmissões ao vivo, via rede social, é recente, principalmente em Mato
Grosso do Sul. Neste sentido, a escolha do estudo de caso como método
foi determinante. De acordo com Tellis (1997, apud Leite. 2004):

[...] o estudo de caso é exploratório quando seu objetivo é explo-


rar o fenômeno ou a situação de interesse em seu contexto, sob
múltiplas perspectivas, visando formular proposições, hipóteses
ou recomendações para futuros estudos.

No caso da utilização das técnicas da pesquisa qualitativa, Flick


(2004, p.22) destaca:

Os métodos qualitativos consideram a comunicação do pesquisa-


dor com o campo e seus membros como parte do conhecimento,
ao invés de excluí-la ao máximo como uma variável intermédia. As
subjetividades do pesquisador e daqueles que estão sendo
estudados são parte do processo de pesquisa. As reflexões dos pes-
quisadores sobre suas ações e observações no campo, suas impres-
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 259
sões, irritações, sentimentos, e assim por diante, tornam-se dados
em si mesmos, constituindo parte da interpretação, sendo docu-
mentadas em diários de pesquisa ou em protocolos de contexto.

A ideia é partir desse referencial metodológico para investigar as


experiências de transmissão ao vivo de conteúdos jornalísticos nas redes
sociais realizadas pela imprensa de Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Primeiro, conceituar, por meio de revisão de literatura, características do
telejornalismo tradicional e do telejornalismo on-line transmitido ao vivo
para as redes sociais, bem como as possibilidades que elas oferecem para
estes formatos informativos. Paralelamente, a ação será de identificar essas
experiências para descrever processos, produtos e linguagens dos conteúdos
telejornalísticos, por meio de uma análise destes conteúdos.

Procedimento de Análise: Filtros de análise do cenário de transmissão ao


vivo, no Facebook, de conteúdos jornalísticos em Campo Grande (MS)

Além das características do telejornalismo e do telejornalismo on-li-


ne, bem como dos contextos da cultura da convergência e das redes sociais,
apresentados anteriormente, outros filtros de análise foram utilizados para
avaliar o cenário das transmissões ao vivo de conteúdos jornalísticos nas re-
des sociais por emissoras/empresas da imprensa de Campo Grande (MS). A
interatividade, descrita por Machado e Palácios (2003), como a capacidade
de fazer com que o leitor/usuário se sinta mais diretamente parte do proces-
so jornalístico (e-mails, opinião dos leitores, fóruns de discussão, chats, etc.).
Outros filtros foram as narrativas comuns na web definidas por Noguera
Vivo (2015), especialmente as duas abaixo:

Narrativas de timelines: eixo central da história se apresenta a


partir da união dos pontos cronológicos relevantes e que, por sua
vez, atuam na forma de micro-histórias dentro da anterior (princi-
pal); são autônomas em relação ao significado, mas plenamente
conectadas e relacionadas com todo o relato principal; normal-
mente ocorre em uma apresentação diferenciada com destaque
para a linha do tempo. Narrativas selfie: individuais por definição.
Aquelas pelas quais a marca pessoal do emissor cobra um papel
determinante e a mensagem é recebida e consumida para ter o
ponto de vista do emissor sobre um determinado tema; aparece,
portanto, tanto a opinião quanto a informação em, sobretudo,
formatos audiovisuais (NOGUERA VIVO, 2015, p. 71-73).

A partir destes filtros serão descritos, individualmente, a seguir, os


conteúdos jornalísticos elencados para esta pesquisa e posteriormente as
considerações sobre o cenário.
260 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Emissoras/empresas que transmitem, ao vivo, conteúdos jornalísticos
no Facebook em Campo Grande (MS)

Nesta parte do artigo são apresentadas as emissoras/empresas jornalísti-


cas que transmitem ao vivo conteúdos jornalísticos pela rede social Facebook
com regularidade diária em Campo Grande/MS. Primeiro será descrito um
pequeno histórico das emissoras/empresas e depois os conteúdos jornalísticos
analisados nesta pesquisa.

Rádio CBN Campo Grande


A CBN Campo Grande entrou no ar no dia 01 de dezembro de
20174, com sede na cidade de Campo Grande/MS, na frequência FM 93,7
MHz, no processo de migração da AM 1120 KHz Concórdia para Frequên-
cia Modulada (FM). De acordo com Netto (2017), a emissora faz parte do
grupo RCN de Comunicação, idealizado por Rosário Congro, que tem “68
anos de atuação nos mercados jornalístico e publicitário, na Costa Leste do
Estado. [...] A CBN é a 12ª empresa de mídia do Grupo, entre o Jornal do
Povo, rádios, mídia eletrônica, portal na internet, outdoor, indoor e a TVC
- Canal 13”5.
A primeira transmissão de um programa (CBN Campo Grande) via
rede social foi no dia 07 de dezembro de 2017. De segunda à sexta-feira são
transmitidos o CBN Campo Grande das 8h30 às 11 horas e o RCN Notí-
cias6 das 18 às 19 horas. Nos fins de semana são apresentados os programas
CBN Agro, CBN Motors e CBN Festas e Eventos (também exibidos desde
23 de dezembro de 2017 na página da emissora no Facebook).

Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul/ OE10


O Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul foi fundado em 02 de
dezembro de 2002 pelo empresário Jaime Vallér7. O portal OE10 foi
inaugurado no dia 03 de julho de 20178 com a intenção de ampliar o
conteúdo produzido pelo jornal impresso e também de colocar no ar uma
TV on-line.
A primeira edição, ao vivo, do Jornal da Tarde, da TV on-line O
4 Esta pode ser considerada a segunda fase da emissora em Campo Grande (MS). Isso porque em
1995, a CBN Morena (e posteriormente CBN Pantanal) funcionou na cidade, ligada a outros gru-
pos de comunicação do Estado. De acordo com Amarilha e Amorim (2006), “o último programa
foi ouvido em outubro de 2004, com o fechamento definitivo em 31 de dezembro de mesmo ano”.
5 Disponível em: https://www.jpnews.com.br/campo-grande/cbn-fm-lanca-modelo-inovador-de-
-jornalismo-em-campo-grande/104772/ Acesso em: 29 Abr. 2018
6 Por questões ligadas ao horário de transmissão da Voz do Brasil, o programa RCN Notícias foi
tirado do ar no dia 05 de abril de 2018.
7 Disponível em http://www.portaldemidia.ufms.br/place/o-estado-de-mato-grosso-do-sul/ Acesso
em: 29 Abr. 2018
8 Disponível em http://www.oe10.com.br/noticiaDw4NDAsKCQgHBgUEAwIBANjOqbB2HY-
-p1eBjMJxqGYs,/convidados_prestigiam_lanaamento_do_novo_portal_o_e10.html Acesso em: 29
Abr. 2018

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 261


Estado de MS, foi ao ar das 13h30 às 14 horas de forma simultânea no por-
tal e na página do Facebook da empresa no dia 12 de março de 2018. De
acordo com Yafusso (2018)9, a TV é parte integrante dos veículos de comu-
nicação do jornal impresso O Estado, que compreende além da televisão,
a rádio web, o jornal impresso, site O Estado on-line e o Portal OE10.com.
br: “inaugurada em outubro de 2017, e após um crescimento inesperado,
foi necessário que houvesse uma readequação na estrutura do estúdio, que
é pioneira em Mato Grosso do Sul”10.

SBT MS
De acordo Cancio (2005, p. 124 - 125), em 11 de outubro de 1980,
começam as transmissões da TV Campo Grande (atual SBTMS), “a primeira
emissora de televisão criada após a divisão do Estado. Desde o início firmou
contrato com o Grupo Sílvio Santos e transmitiu primeiro os sinais da TVS e,
posteriormente do SBT”. Ainda de acordo do autor, o telejornalismo nasceu
nas primeiras transmissões. “O Jornal da Noite fez sua estreia às 18h45min”
do mesmo dia. Nessa época a emissora fazia parte do Grupo Correio do Es-
tado. Segundo o site11 oficial da emissora, a TV Campo Grande, em 2009,
passou a ser comandada pela Fundação Internacional de Comunicação (liga-
da ao missionário R.R. Soares). E dois anos depois, começou a ser chamada
de SBTMS, portanto, sem ter uma data informada em 2011 começaram as
transmissões do SBTMS 1ª e 2ª edições. Neste trabalho, por causa da regula-
ridade de exibição, o SBTMS 1ª Edição será analisado.
O telejornal SBTMS 1ª Edição vai ao ar de segunda à sexta a partir
das 12h40, tem duração média de 30 a 35 minutos na transmissão completa
contando com os comerciais. A primeira transmissão ao vivo, via Facebook,
foi realizada em 16 de janeiro de 2018, a regularidade semanal é mantida
até o dia 14 de agosto do mesmo ano. Analisando os vídeos disponíveis na
página da rede social, o primeiro disponibilizado foi em 10 de junho de
2015, no geral foram promoções, outros programas da grade e reportagens
produzidas, nenhum desses conteúdos transmitidos ao vivo. O único no
período analisado foi o SBTMS 1ª Edição.

Análises e Resultados

Descrição e análise dos conteúdos jornalísticos transmitidos ao vivo no


Facebook
9 Disponível em http://www.oe10.com.br/noticia/17070/jornal_o_estado_ms_estreia_primeira_te-
levisao_web_de_mato_grosso_do_sul.html Acesso em: 29 Abr. 2018
10 Apesar da informação de ser a primeira TV na internet do estado de MS, desde 06 de abril de 2009,
data do primeiro vídeo disponível no canal do Youtube, está no ar a TV Via Morena, que informa ser
a primeira webtv de Mato Grosso do Sul. A emissora foi idealizada pelo radialista Sérgio Cruz e ainda
transmite programação ao vivo. Disponível em: https://www.viamorena.com/ Acesso em: 29 Abr. 2018
11 Disponível em http://www.sbtms.com.br/sobre/nossa-historia Acesso em: 29 Abr. 2018

262 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


CBN Campo Grande
O CBN Campo Grande é um radiojornal apresentado de segunda à
sexta-feira das 8h30 às 11 horas, pelos jornalistas Otávio Neto e Lucas Ma-
médio12. Os conteúdos em questão que foram avaliados são transmissões
ao vivo via página da emissora CBN Campo Grande 93,7 no Facebook de
30 de julho a 3 de agosto de 2018 (de segunda à sexta-feira, cinco dias).
O CBN Campo Grande ainda continua sendo transmitido ao vivo, via
Facebook, diariamente pela emissora (julho de 2019). Foram analisadas
15h18min27seg de programação. Link de todos os conteúdos analisados
(contém as imagens usadas também): https://drive.google.com/open?i-
d=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ As retiradas do Facebook es-
tão disponíveis em https://www.facebook.com/pg/CBNCampoGrande/
videos/?ref=page_internal
A partir da descrição dos cinco conteúdos jornalísticos produzidos e
realizados pela CBN Campo Grande transmitidos, ao vivo, pela fanpage do
Facebook da emissora, é possível dizer que, mesmo sendo um radiojornal, as
características de telejornal estão presentes, como os apresentadores olhan-
do diretamente para as câmeras, tela com apresentadores e entrevistados
em cena, etc. A utilização da marca da emissora e do gerador de caracteres
identificando apresentadores e entrevistados também reforçam o formato
de telejornal (imagens abaixo). As características do on-line também po-
dem ser identificadas em todas as edições por conta do espaço digital em
que os conteúdos são transmitidos ao vivo.

12 Os dois apresentadores não estão mais na emissora.


13 Disponível em: https://drive.google.comopen?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
14 Disponível em: https://drive.google.comopen?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
15 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
16 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 263


A emissora, nos materiais analisados, também explora as possibili-
dades de características da Cultura da Convergência, pois sendo original-
mente um conteúdo sonoro, explora a audiovisualidade da informação e a
oportunidade de oferecer imagens em movimento em outros canais, como
uma rede social com o alcance do Facebook19. Quanto ao quesito intera-
tividade, na semana de análise, mesmo sendo disponibilizados e indicados
pelos apresentadores os números de Whatsapp e endereços eletrônicos do
site da emissora e fanpage, em nenhum momento das mais 15 horas anali-
sadas, não houve menção ou utilização das participações do Facebook ou de
alguma do Whatsapp. Quanto às narrativas na web, a timeline é utilizada,
pois faz parte do formato da rede social em que são transmitidos os conte-
údos jornalísticos sonoros/audiovisuais. A selfie é acessada na transmissão,
quando os apresentadores e entrevistados olham diretamente para as câme-
ras dispostas no estúdio da emissora (características bastante próximas das
do telejornalismo tradicional). (Figuras a seguir).

17 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ


Acesso em: 09 Set. 2020
18 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
19 A página CBN Campo Grande, até 25 de julho de 2019, tinha 6.041 pessoas seguindo (o menor
alcance dos três conteúdos analisados nesta pesquisa). Disponível em: https://www.facebook.com/
CBNCampoGrande/ Acesso em: 25 Jul. 2019

264 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Jornal da Tarde
O Jornal da Tarde é um telejornal exibido de segunda à sexta-feira
das 13h30 às 14 horas pelo jornalista Ogg Ibrahim. A análise foi feita para
este artigo refere-se aos programas transmitidos ao vivo pela página do Jor-
nal O Estado de Mato Grosso do Sul – OE10 no Facebook de 30 de julho
20 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
21 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
22 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
23 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
24 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
25 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 265


a 03 de agosto de 2018 (cinco dias - segunda à sexta-feira). O último Jornal
da Tarde transmitido ao vivo, via Facebook, foi ao ar em 21 de dezembro
de 2018. Foram analisadas 03h43min29seg de programação. Link de to-
dos os conteúdos analisados (contém as imagens usadas também): https://
drive.google.com/open?id=1lznGl4w2J7mkeiFSk7E6avi8MTUrBba4 As
retiradas do Facebook estão disponíveis em: https://www.facebook.com/
pg/JornalOEstadoMS/videos/?ref=page_internal
A partir da descrição dos cinco conteúdos jornalísticos produzidos e
realizados pela equipe do Jornal da Tarde transmitidos, ao vivo, pela fanpage
do Facebook da emissora, é possível dizer que as características de um tele-
jornal tradicional estão presentes (inclusive a escolha de um apresentador26
de telejornal de emissora mais antiga da cidade remete a isso), como o apre-
sentador olhando diretamente para as câmeras e chamando reportagens. A
utilização da marca da emissora informando sobre a transmissão ao vivo e
do gerador de caracteres identificando apresentadores e entrevistados tam-
bém reforçam o formato de telejornal (importante destacar que, em alguns
casos, o GC não é utilizado como na identificação do apresentador no iní-
cio do jornal, padrão em todos os telejornais). Como o Jornal da Tarde é um
conteúdo nativo da web, as características do on-line fazem parte de todas
as edições por causa do espaço digital em que os conteúdos são transmitidos
ao vivo (imagens a seguir).

26 O jornalista Ogg Ibrahim foi editor-chefe e apresentador de todos os telejornais da TV Morena


(Campo Grande/MS) entre os anos de 1994 e 2003. Disponível em: https://www.portaldosjornalis-
tas.com.br/jornalista/ogg-ibrahim-2/ Acesso em: 25 Jul. 2019
27 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
28 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
29 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
30 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020

266 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


A empresa, nos materiais analisados que somados chegaram a mais
de 3 horas e 40 minutos, também explora as possibilidades de caracte-
rísticas da Cultura da Convergência, pois, sendo originalmente nativo,
explora, além do portal da internet, uma rede social com o alcance do
Facebook33. Quanto ao quesito interatividade, na semana de análise, mes-
mo sendo apenas uma resposta aos cumprimentos os usuários, em três
dos cinco dias analisados, houve contato da equipe do Jornal da Tarde
com a audiência deles (importante que a única menção aos contatos com
o Jornal da Tarde vinha pela fanpage do Facebook, onde estava ocorren-
do a transmissão – não houve indicação de outro tipo de contato com a
equipe). Quanto às narrativas na web, a timeline é utilizada, pois faz parte
do formato da rede social em que os conteúdos jornalísticos audiovisuais
são transmitidos de forma nativa e no caso do Jornal da Tarde é a única
disponível para se ter acesso ao conteúdo. A selfie é acessada na transmis-
são, quando o apresentador e entrevistados olham diretamente para as câ-
meras dispostas no estúdio da emissora (características bastante próximas
das do telejornalismo tradicional) e quando nas matérias, os repórteres
31 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
32 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
33 A página do Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul, até 25 de julho de 2019, tinha 68.339
pessoas seguindo (o maior alcance de seguidores dos três conteúdos analisados nesta pesquisa).
Disponível em: https://www.facebook.com/JornalOEstadoMS/ Acesso em: 25 Jul. 2019

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 267


seguram os smartphones para fazer imagens, entrevistas e aparecerem no
vídeo – o que ocorre em todas as transmissões analisadas nesta referida
pesquisa (imagens a seguir).

34 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ


Acesso em: 09 Set. 2020
35 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
36 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
37 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
38 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020

268 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


SBTMS 1ª Edição
O SBTMS 1ª Edição é um telejornal apresentado de segunda à
sexta a partir das 12h40 pela jornalista Emilia Chacon. As transmissões
ao vivo analisadas neste artigo são de 30 de julho a 3 de agosto de 2018
(cinco dias). A última transmissão ao vivo do SBT MS 1ª Edição rea-
lizada no Facebook do canal é de 14 de agosto de 2018. Foram analisa-
das 2h46min16seg de programação. Link de todos os conteúdos ana-
lisados (contém as imagens usadas também): https://drive.google.com/
open?id=15_lKeqw30M5zHkQcDLhD83gBBaswIr62 As retiradas do
Facebook estão disponíveis em https://www.facebook.com/pg/sbtms/vi-
deos/?ref=page_internal
A partir da descrição dos cinco conteúdos jornalísticos produzidos e re-
alizados pela equipe do SBT MS 1ª Edição transmitidos ao vivo pela fanpage
do Facebook da emissora, é possível considerar que as características de um
telejornal tradicional estão presentes, como o apresentador olhando direta-
mente para as câmeras e chamando reportagens. Por ser um jornal de uma
emissora de TV, ele naturalmente vai responder a isso. A utilização da marca
da emissora, como marca d’água, e do gerador de caracteres identificando
apresentadores e entrevistados também reforçam o formato de telejornal, a
previsão no tempo nas saídas de bloco reforçam a estrutura do formato. As
características do on-line fazem parte apenas da transposição do conteúdo do
telejornal transmitido ao vivo pelo Facebook (mesmo isso não sendo mencio-
nado, nem em gerador de caracteres, nem pela apresentadora ou repórteres,
ao longo das mais de 2 horas e 45 minutos analisadas durante a semana recor-
tada por esta pesquisa). (Imagens a seguir).

39 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ


Acesso em: 09 Set. 2020
40Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
41Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
42 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 269


A emissora explora pouco as possibilidades de características da
Cultura da Convergência, pois apenas cita ao final dos telejornais, em
gerador de caracteres, o portal da internet da emissora e não faz menção
ao Facebook44, mesmo com um alcance considerável de mais de 51 mil
seguidores na página. Quanto ao quesito interatividade, na semana de
análise, mesmo com cumprimentos, elogios e pessoas de outros estados
informando que estavam na audiência, nenhum retorno foi dado pela
equipe do telejornal aos usuários. Quanto às narrativas na web, a timeline
é utilizada, pois faz parte do formato da rede social em que os conteúdos
jornalísticos audiovisuais foram transmitidos. A selfie é usada na transmis-
são, quando o apresentador e entrevistados olham diretamente para as
câmeras dispostas no estúdio da emissora e nas externas, uma delas ao vivo
(característica bastante tradicional em telejornais, desde a criação deles).
(Imagens a seguir).

Acesso em: 09 Set. 2020


43 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
44 A página do SBT MS, até 25 de julho de 2019, tinha 51.520 pessoas seguindo (o segundo maior
alcance de seguidores dos três conteúdos analisados nesta pesquisa). Disponível em: https://www.
facebook.com/sbtms/ Acesso em: 25 jul. 2019

270 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


Considerações Finais

Por meio da análise de mais de 21 horas e 48 minutos de conteúdos


jornalísticos sonoros/audiovisuais, em cinco dias do ano de 2018, feita por
meio dos filtros (telejornalismo, telejornalismo on-line, cultura da conver-
45 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
46 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
47 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
48 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020
49 Disponível em: https://drive.google.com/open?id=1R4g8jgajIm0rYinqavpYSmojIuw9mPLJ
Acesso em: 09 Set. 2020

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 271


gência, interatividade e narrativas), é possível considerar que as transmis-
sões ao vivo pelo Facebook na imprensa de Campo Grande (MS) não tem
continuidade. Apenas uma, a CBN Campo Grande, das três emissoras/em-
presas analisadas nesta pesquisa, ainda está utilizando a possibilidade. As
transmissões do SBT MS 1ª Edição e do Jornal da Tarde pararam no final do
ano de 2018, respectivamente, nos meses de agosto e de dezembro.
A principal rede social utilizada pelas emissoras é o Facebook e o
número de acessos é relativamente pequeno dado o número de seguidores
das páginas, que somam juntas mais de 125 mil e 900 seguidores. Outra
questão a se destacar é que pouco se utiliza, nos três casos analisados, a
possibilidade de interação com os ouvintes/telespectadores/usuários da in-
formação jornalística. A única utilização foi por parte do Jornal da Tarde
apenas para cumprimentar quem estava na audiência, ainda assim as inte-
rações ocorreram em três das cinco edições analisadas. Os usuários até são
estimulados a participar em um dos conteúdos verificados, o CBN Campo
Grande, mas as participações não vão ao ar. No Jornal da Tarde, mesmo
sendo nativo da web, nada das interações é citado na transmissão, apenas,
em três delas, como já dito, a equipe respondeu aos cumprimentos da audi-
ência. Já no SBTMS, eles nem são estimulados, mas um interage bastante
com o conteúdo, embora os usuários não sejam citados na transmissão via
televisão ou rede social.
Quanto aos quesitos do telejornalismo, o produto inicialmente sono-
ro (CBN Campo Grande) explora bem mais os elementos visuais da trans-
missão, usando de caracteres gráficos para ilustrar e reforçar a informação,
do que o nativo televisual (Jornal da Tarde) que abusa da leitura de conteú-
do, por meio de notas (ilustradas com fotos e poucas filmagens), e pouco se
utiliza de recursos gráficos. Vemos em grande parte da transmissão apenas
o apresentador e, quando há entrevista no estúdio, apresentador e entrevis-
tado aparecem. Quando nas reportagens do Jornal da Tarde aparecem mais
filmagens, normalmente elas são feitas pelos repórteres. O SBTMS, telejor-
nal nativo, cumpre com todos os padrões do telejornalismo tradicional, mas
ignora a web.
Com relação à Cultura da Convergência, os três conteúdos jornalís-
ticos apresentam as possibilidades que se abrem pelas múltiplas plataformas
de mídia, nas quais um telejornal nativo usa essa ferramenta para ampliar
seu alcance (mesmo não citando em nenhum dos conteúdos analisados
que está na rede social), uma emissora de rádio pode transmitir imagens
em movimento do seu estúdio com a equipe responsável pela produção e
um jornal impresso, por meio do seu portal digital, criar a própria emissora
de TV e apresentar um telejornal. As redes sociais entram nesse cenário
para ampliar as conexões das três empresas da imprensa de Campo Grande
(MS) com o público que utiliza do Facebook, essencialmente para ter aces-
so aos conteúdos jornalísticos.
272 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Na análise das narrativas, de acordo com Noguera Vivo (2015), há
que se destacar a narrativa Timeline, essência da estrutura das redes sociais
como recurso dos três conteúdos analisados. Outro tipo de narrativa apre-
sentada, que aparece também no DNA do jornalismo audiovisual, é a de
Selfie, pois os apresentadores nos três casos olham diretamente para as câ-
meras do estúdio para se comunicar com os ouvintes/telespectadores/usuá-
rios do conteúdo jornalístico. No caso da transmissão ao vivo, via Facebook,
da emissora de rádio, os olhares dos apresentadores em alguns momentos
desviam para a leitura dos textos impressos nas folhas ou nos computadores
e notebooks. O mesmo acontece com o apresentador do Jornal da Tarde
durante a entrevista de estúdio, mas em grande parte da leitura das notas,
o olhar dele é direto e em primeiro plano para o telespectador/usuário do
conteúdo jornalístico, isso por causa do recurso do teleprompter (texto es-
pelhado na tela, em frente às câmeras de estúdio). No Jornal da Tarde é
importante destacar que a narrativa Selfie se aproxima mais do que estamos
acostumados na contemporaneidade, principalmente quando os repórte-
res do telejornal filmam eles mesmos com os smartphones. No SBTMS,
o padrão Selfie é mantido pela apresentadora, repórteres e apresentadores
olhando diretamente para as câmeras de estúdio e externas.
No Brasil, o ao vivo faz parte do DNA, tanto das transmissões radio-
fônicas quanto das televisivas (o novo é, ao mesmo tempo, o velho revisi-
tado pelas redes socias, especificamente para esta pesquisa no Facebook),
e esta análise de mais de 21 horas e 48 minutos de conteúdos jornalísticos
demonstra que elas ainda oferecem possibilidades para os produtores de
materiais sonoros e audiovisuais que têm utilizado essa ferramenta como
conexão com o público nas redes sociais, mesmo sem explorar as potenciali-
dades de estar ao vivo em dois momentos nos casos das emissoras de rádio e
televisão analisadas e na possibilidade de o Jornal impresso ganhar imagens
em movimento na web. Os movimentos indicam relações entre a essência
da transmissão de radiodifusão com momentos de potencialidade de aspec-
tos digitais, neste sentido os conteúdos informativos poderiam ganhar novos
contornos com as experiências apresentadas, mas perdem as oportunidades,
pois dois deles já não as utilizam.

Referências

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Abr. 2018

274 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


WhatsApp: mensageiro instantâneo móvel
utilizado na rotina de produção em
ciberjornais de Mato Grosso do Sul1
Ângela Eveline Werdemberg dos SANTOS 2
Gerson Luiz MARTINS 3

Introdução

Acompanhando o crescimento de acesso à internet por smartphone


e a utilização de aplicativos de mensagem instantânea móvel, em 2014,
ciberjornais de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, começaram a usar
o WhatsApp como meio de contato com a população e ficou configurado
como importante ferramenta de conexão com fontes nos mais variados ní-
veis. Os ciberjornais de Mato Grosso do Sul passaram a divulgar o número
de contato e a incentivar que os leitores enviassem sugestões de pauta, fotos
e vídeos para os jornalistas. Em poucos meses, passou a ser corriqueira a
utilização do WhatsApp como ferramenta de trabalho para os jornalistas
em Mato Grosso do Sul, seja para contato com leitores, fontes oficiais e não
oficiais.
A divulgação intensa do número de contato via WhatsApp, por meio
de anúncios nos ciberjornais e outdoor nas avenidas de Campo Grande - ca-
pital de Mato Grosso do Sul, e, consequentemente, o fluxo cada dia maior
de mensagens recebidas nas redações via aplicativo foram os principais fato-
res que influenciaram na escolha do tema desta pesquisa.
Os leitores já participavam com opiniões e sugestões de pautas por
meio de canais digitais, como e-mail, Facebook e Twitter, mas o WhatsApp
tem a proposta de que o leitor mande, de qualquer lugar, a qualquer hora,
uma mensagem diretamente de seu celular para o celular do ciberjornal,
que tem ali um jornalista escalado para responder às mensagens.
1 Este capítulo é uma adaptação da dissertação intitulada WhatsApp: mensageiro instantâneo mó-
vel utilizado na rotina de produção em cibermeios jornalísticos em Mato Grosso do Sul, de autoría
de Ângela Eveline Werdemberg dos Santos, defendida em 08 de agosto de 2018 no Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGCom/
UFMS). A banca foi composta pelo orientador Prof. Dr. Gerson Luiz Martins, (UFMS), Prof. Dr.
Marcos Paulo da Silva (UFMS) e Profª. Drª. Raquel da Cunha Recuero (UFPEL).
2 Doutoranda em Ciência da Informação – Jornalismo e Estudos Midiáticos pela Universidade
Fernando Pessoa; integrante do Grupo de Pesquisa em Ciberjornalismo da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul e professora da Universidade Anhanguera-Uniderp. E-mail: angela.wsantos@
anhanguera.com
3 Pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul (PPGCOM-UFMS), doutor em Jornalismo pela Universidade de
São Paulo (USP) e pós-doutorado em Ciberjornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona
(UAB), Espanha; coordenador do Grupo de Pesquisa em Ciberjornalismo (CIBERJOR-UFMS);
coordenador do Projeto “Primeira Notícia” do curso de graduação em Jornalismo da UFMS.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 275


Neste contexto, informações enviadas por leitores pelo WhatsApp ti-
veram destaque nos noticiários, como a fraude de uma empresa prestadora
de serviços para a Prefeitura de Campo Grande que simulava tapar buracos
em pavimentos sem buracos, em janeiro de 2015. A operação foi denomina-
da de “Tapa-buracos fantasma”4. Outro exemplo de denúncia enviada por
WhatsApp foi o vazamento da informação da prisão do ex-governador de
Mato Grosso do Sul, André Puccinelli5, em novembro de 2017, investigado
por desvio de verba pública. Leitores, ao perceberem a movimentação da
Polícia Federal em frente ao prédio em que morava Puccinelli, compar-
tilharam com a imprensa as imagens. Em seguida, documentos sobre a
Operação Lama Asfáltica6 também foram compartilhados por fontes ofi-
ciais com os jornalistas via WhatsApp.
Diante desse cenário, o objetivo desta pesquisa é entender como é
utilizado o WhatsApp na rotina de produção jornalística dos três princi-
pais ciberjornais de Mato Grosso do Sul. São eles: Campo Grande News7,
Correio do Estado8 e Midiamax News9. O recorte desta pesquisa teve como
critério a audiência dos ciberjornais em Mato Grosso do Sul, medida por
4 Disponível em: <http://www.midiamax.com.br/noticias/promotoria-investiga-tapa-buracos-feitos-
-em-ruas-centrais-de-campo-grande>. Acessado em: 05 de janeiro de 2018.
5 André Puccinelli é médico, foi secretário estadual de saúde de Mato Grosso do Sul, de 1983 a
1985; deputado estadual por dois mandatos, de 1987 a 1991 e de 1991 a 1995; deputado federal,
de 1995 a 1996; prefeito de Campo Grande por dois mandatos, de 1997 a 2000 e de 2001 a 2004;
governador de Mato Grosso do Sul de 2007 a 2010 e de 2011 a 2014.
6 A Polícia Federal investiga o ex-governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, por integrar
organização criminosa que desviou R$ 235 milhões de verbas públicas por meio de fraudes em
licitações e concessão de crédito tributário a grupos empresariais em troca de propinas. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/11/1935281-ex-governador-do-ms-e-alvo-de-opera-
cao-contra-corrupcao.shtml>. Acessado em: 05 de janeiro de 2018.
7 O Campo Grande News foi fundado em 4 de março de 1999, pelo empresário Miro Ceolim e o
jornalista Lucimar Couto. Ceolim era proprietário do provedor de internet Zaz, em Campo Gran-
de, e assim, o Campo Grande News nasceu vinculado ao portal. A proposta dos sócios era oferecer
conteúdo regional ao público que acessava a internet em Mato Grosso do Sul (SILVA, 2012).
8 O jornal Correio do Estado, fundado em 1954, é integrante do grupo de comunicação de mesmo
nome. O grupo é proprietário também do ciberjornal Correio do Estado, da Rádio Mega 94 FM,
da Rádio H’ora 92.3 FM, além de uma produtora e da Fundação Barbosa Rodrigues. Além desses
veículos, já foram de propriedade do Grupo Correio do Estado: a TV Guanandi (filiada à Rede
Bandeirantes, vendida no final de 2000), a TV Dourados (repetidora do SBT, no município de
Dourados, vendida no final de 2000), a Rádio Cultura AM (migrou em 2018 para Rádio H’ora 92,3
FM) e da Rede Centro Oeste de Rádio e Televisão: Rádio Canarinho FM e TV Campo Grande
(repetidora do SBT, vendida em 2009). O grupo Correio do Estado é de propriedade da família Ro-
drigues, administrado até 2003 por José Barbosa Rodrigues, e desde então por Antônio João Hugo
Rodrigues (que passou a administrar as empresas desde o falecimento do pai) e por Éster Figueiredo
Gameiro, que possui cota de participação da empresa.
9 A ideia de aproveitar as potencialidades da internet como nicho de mercado surgiu em 2000,
quando o empresário Carlos Naegele trabalhava com painéis eletrônicos de publicidade, instala-
dos em pontos estratégicos da cidade, como a avenida Afonso Pena, principal avenida de Campo
Grande. Inicialmente, notícias de vários veículos eram inseridas nos painéis. Em 2001, Carlos
Naegele, optou por contratar jornalistas para apurar as informações e disponibilizá-las nos painéis.
Ao mesmo tempo, Naegele analisou a possibilidade de publicar as notícias também na internet e,
em 16 de maio de 2002, fundou o Midiamax News (FORTUNA, 2015).

276 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


meio da plataforma SimilarWeb10.
Para recolha das informações apresentadas neste artigo, foram entre-
vistados os jornalistas responsáveis pelos ciberjornais, nas respectivas reda-
ções com horário agendado, conforme disponibilidade dos entrevistados.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas em profundidade com
questionários semiestruturados, que permite a liberdade de expressão do en-
trevistado e a manutenção do foco do entrevistador (LINDLOF; TAYLOR,
2002).
A entrevista em profundidade foi elaborada a partir de um roteiro de
questões abertas, com possibilidade de inclusão de perguntas adicionais à
medida que novos pensamentos e necessidades de entendimento de deter-
minado tema fossem identificados durante a realização das entrevistas, ou
seja, a flexibilidade observada na aplicação de entrevistas semiestruturadas
permite ao pesquisador partir de perguntas centrais ao tema e adicionar
novas questões a serem desvendadas.
A seguir serão apresentados os dados coletados, entre 2016 e 2018, e
as análises feitas pelos pesquisadores pertencentes ao Programa de Pós-Gra-
duação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Inserção do WhatsApp à rotina produtiva dos ciberjornais

Antes do WhatsApp, o profissional que saía para a captação de ima-


gens tinha que retornar à redação para fazer o download das imagens e
somente depois publicá-las. O momento entre a ocorrência do fato e a
publicação da notícia delongava. Com a utilização do aplicativo, o jor-
nalista escalado para uma pauta pôde utilizar equipamento profissional
fotográfico e, em seguida, retirar o cartão de memória da máquina foto-
gráfica, acoplar ao smartphone e compartilhar o arquivo com a redação via
WhatsApp. O processo, que demorava algumas horas, passou a demandar
alguns minutos.
Nem sempre o jornalista que sai para a cobertura de pauta é quem
escreve a notícia e a publica. Neste sentido, a inserção do WhatsApp à ro-
tina de produção jornalística proporcionou agilidade e redução de custos.

A gente viu que é um meio muito fácil de propagar, da foto


chegar à redação, de acionar o repórter. Então, [a utilização do
WhatsApp] começou dessa forma, para a comunicação interna.
Aí começamos a criar grupos. O grupo [de WhatsApp] hoje é a
principal forma da redação interagir (FERREIRA, 2017, Infor-
mação Verbal11).

10 Disponível em: <https://www.similarweb.com/>. Acessado em: 05 de janeiro de 2018.


11 Entrevista concedida por FERREIRA, Marta. Entrevista I. [novembro de 2017]. Entrevistadora:
Ângela Eveline Werdemberg dos Santos. Campo Grande, 2017.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 277


A editora-chefe do Campo Grande News, Marta Ferreira12 (2017, In-
formação Verbal), narra que inicialmente teve resistência a utilizar o apli-
cativo na rotina de trabalho devido às novas demandas a serem geradas e à
aceleração dos processos de captação de informações, checagem dos dados
e resposta aos usuários. Segundo ela, consequentemente a tomada de deci-
sões deveria ser mais rápida, com menos tempo para reflexão.
Entretanto, com a adesão dos jornalistas mais jovens ao aplicativo e
a criação de grupos para a interação entre os membros da redação, Marta
explica que foi inevitável utilizar o WhatsApp, principalmente, consideran-
do os compromissos de editora-chefe perante à equipe. Ela expõe que foi
dessa forma que começaram a utilizar o WhatsApp. “Individualmente, com
os repórteres, colocando o aplicativo em seus celulares, e aí percebemos
que era uma forma muito prática, barata e rápida da gente receber e enviar
informações” (FERREIRA, 2017, Informação Verbal).
Com o mesmo intuito, o Midiamax News inseriu o WhatsApp à
rotina de produção jornalística. “O boom do WhatsApp ainda não tinha
acontecido e a gente achou muito prático, por unificar ali as plataformas.
A gente pode mandar vídeo, áudio, imagem e texto” (CÁCERES, 2017,
Informação Verbal13). O aplicativo passou, então, a ser utilizado como ferra-
menta de comunicação entre os jornalistas do Midiamax. O editor-chefe do
Midiamax News, Éser Cáceres14, explica que todos os celulares da redação
e dos jornalistas são conectados por meio de um grupo de WhatsApp, uti-
lizado para conversa direta entre os profissionais, o que não é uma prática
recente no ciberjornal. Segundo ele, há oito anos o WhatsApp é utilizado
com esse intuito.
O Correio do Estado é o único veículo, entre as empresas que com-
põem o escopo desta pesquisa, que não foi constituído exclusivamente para
cibermeio. A empresa, conforme dados coletados nesta pesquisa e que se-
rão apresentados no decorrer deste capítulo, prioriza a ligação telefônica
convencional para a apuração de informações e interação com as fontes.
Embora adote linha editorial mais conservadora na utilização do WhatsA-
pp, também inseriu o aplicativo à rotina de produção e como canal de
comunicação entre jornalistas a partir de 2012.
Diante da facilidade de circulação de informações, possibilitada princi-
palmente pela unificação da plataforma, e com a alta demanda de produção15,
12 Marta Ferreira é jornalista e foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso do Sul
(Sindijor-MS), formada em 1996 pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Nes-
tes 24 anos de profissão, trabalhou em diversas empresas jornalísticas, entre elas: editora-chefe do
Midiamax News e do Campo Grande News.
13 Entrevista concedida por CÁCERES, Éser. Entrevista II. [novembro de 2017]. Entrevistadora:
Angela Eveline Werdemberg dos Santos. Campo Grande, 2017.
14 Éser Cáceres é formado em jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em
2000. Trabalha na imprensa sul-mato-grossense desde os 15 anos. Lecionou como professor substi-
tuto, na UFMS, e desde 2010 é editor-chefe do Midiamax News.
15 Um dos trabalhos a respeito do tema, considerado referência, foi desenvolvido por Moretzsohn

278 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


os ciberjornais estenderam a utilização do aplicativo para além da comunica-
ção com a equipe, o que popularizou o WhatsApp como ferramenta de intera-
ção com fontes e leitores.
O Midiamax News foi o primeiro ciberjornal de Mato Grosso do Sul
e um dos pioneiros do Brasil a disponibilizar um número de contato para
o leitor interagir com a equipe jornalística, via WhatsApp. “O Jornal Ex-
tra16 já tinha uma experiência, no Rio de Janeiro, e a gente começou aqui,
também, [...] e logo caiu no gosto popular” (CÁCERES, 2017, Informação
Verbal).
Neste mesmo sentido, o subeditor-chefe do Portal Correio do Estado,
Rodolfo César de Sousa17 (2017, Informação Verbal18), considera o WhatsA-
pp como um canal de comunicação facilitador para o leitor:

As operadoras oferecem pacotes de dados em que a pessoa não


paga para enviar mensagem no Facebook e no WhatsApp. Então,
muitas vezes, o leitor não tem crédito e esse passou a ser o meio
de contato mais direto com a redação. [...] Para o leitor, o What-
sApp serviu como esse meio de comunicação. Hoje, bem mais
que o Facebook (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Em poucos meses de divulgação dos números telefônicos para con-


tato, tanto do Campo Grande News, como do Correio do Estado e do Mi-
diamax News, passou a ser corriqueira a utilização do WhatsApp como
ferramenta de trabalho para os jornalistas e interação com os leitores e fon-
tes. Consequentemente, o fluxo de mensagens recebidas nas redações via
aplicativo aumentou significativamente, o que gerou novas demandas para
os jornalistas: ler as inúmeras mensagens, responder a elas, filtrar as infor-
mações, checá-las, produzir a notícia e acompanhar os comentários, seja no
próprio ciberjornal, seja nas redes sociais da empresa, além das devolutivas
no WhatsApp referentes às críticas e aos elogios alusivos ao conteúdo pu-
blicado.
Apesar do aumento da demanda indicada pelos jornalistas, confor-
me explica Rodolfo César Sousa, a maioria das informações recebidas via
WhatsApp e enviada por leitores não é utilizada. “Nem sempre aproveita-
mos as informações. São mensagens de bom dia, boa tarde, seu dia será ma-
(2014), em O Globo.
16 Com a popularização do WhatsApp no Brasil, empresas de comunicação inseriram o aplicativo
à rotina de produção como forma de manter contato rápido com leitores. O Extra foi a primeira
empresa de comunicação do Brasil a implantar o uso do aplicativo WhatsApp na redação. Segundo
Carneiro (2016, p.10), em seguida diversos veículos brasileiros inseriram o aplicativo nas redações,
entre eles, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Dia e Meia Hora.
17 Rodolfo César de Sousa é formado em jornalismo pela Universidade de Franca, em 2004. Traba-
lhou na assessoria de imprensa da Prefeitura de Franca, atuou como repórter e analista de conteúdo
durante três anos, em Dublin. Foi subeditor do ciberjornal Correio do Estado de 2015 a 2018.
18 Entrevista concedida por SOUSA, Rodolfo César de. Entrevista III. [outubro de 2017]. Entre-
vistadora: Angela Eveline Werdemberg dos Santos. Campo Grande, 2017.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 279


ravilhoso” (SOUSA, 2018, Informação Verbal). Mesmo sendo mensagens
sem valor-notícia, elas têm significado técnico, pois os jornalistas precisam
responder aos participantes. Essas mensagens ocupam espaço de armaze-
namento - além de textos, os usuários enviam GIF e vídeos motivacionais
- e demandam tempo para apagar. Ao todo, o Correio do Estado recebe
cerca de dez mil mensagens, diariamente. Cerca de 25 a 30 pessoas enviam
mensagens diariamente. Temos, também, entre 10 a 12 grupos. Alguns têm
muitas mensagens, mas são do tipo: bom dia, boa tarde. [...] Dá uma média
de mil mensagens por grupo” (SOUSA, 2017, Informação Verbal).
Também foi citada, espontaneamente, por Éser Cáceres esta mes-
ma prática diária por parte dos leitores do Midiamax News. Segundo Éser
Cáceres, cerca de 5% das interações são leitores que cumprimentam os
jornalistas:

A gente tem situações de pessoas que enviam, todos os dias, todas


as tardes e todas as noites: bom dia, boa tarde e boa noite e só. O
cara está lá há três anos fazendo isso e é a única interação que ele
mantém com o Midiamax. A gente, óbvio, segue um protocolo
de atenção e responde, mas não tem relevância jornalística (CÁ-
CERES, 2017, Informação Verbal).

O Campo Grande News manifestou nunca ter feito monitoramen-


to relacionado à quantidade de mensagens recebidas, mas afirma receber
grande fluxo de demanda, diariamente. “É o tempo todo recebendo men-
sagem. Não consigo precisar a quantidade. Até porque não é unificado. A
redação toda recebe mensagem nos celulares” (FERREIRA, 2017, Infor-
mação verbal). A editora-chefe do Campo Grande News explica que, com
o grande fluxo de mensagens, intensifica-se a prontidão dos jornalistas, que
permanecem em estado de alerta o tempo todo, com os smartphones em
mãos. As informações, portanto, chegam tanto via celular do ciberjornal
quanto via aparelho privado dos jornalistas. Ela enfatiza que cada profissio-
nal tem a sua agenda, o seu network, e que também interage com as fontes
via WhatsApp pessoal.

Protocolo de trabalho dos jornalistas para responder às mensagens


via WhatsApp

Com a grande demanda de mensagens, os ciberjornais criaram pro-


tocolos para responder a elas e, em alguns casos, profissionais são encarre-
gados especificamente de ler o conteúdo enviado pelos usuários, filtrar as
informações e compartilhá-las com os editores e demais jornalistas.
O Campo Grande News incumbe dois estagiários de jornalismo - um
no período da manhã e o outro no período da tarde -, e ao jornalista de
280 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
plantão19, no período da noite, a tarefa de ler as mensagens do WhatsApp
oficial do ciberjornal. “Tem sempre alguém cuidando do celular, que é
o WhatsApp oficial, e todo mundo recebe mensagem em seus celulares”
(FERREIRA, 2017, Informação Verbal). O número oficial do jornal é utili-
zado, principalmente, para receber do leitor sugestão de pauta. É um canal
aberto entre o usuário e o jornal. Normalmente, quando o jornalista entra
em contato com as próprias fontes, que são pessoas com quem estabelecem
relação ao longo da carreira, utiliza o aplicativo privado, instalado e identi-
ficado pelo jornalista, e não o WhatsApp oficial do ciberjornal.
As sugestões de pauta compartilhadas pelos usuários com o Campo
Grande News são fatos relacionados ao cotidiano do leitor. Problemas nos
bairros, como: buracos nas ruas, problemas no trânsito, lixo em vias pú-
blicas e terrenos baldios. “São fatos que têm relação com a vida e o dia a
dia da pessoa. Assunto bem próximo dela” (FERREIRA, 2017, Informação
Verbal). O período de maior fluxo de mensagem é durante o expediente,
principalmente pela manhã e à tarde. Para identificar as notícias publicadas
a partir de fatos compartilhados e sugeridos pelos leitores, o Campo Grande
News criou a editoria Direto das Ruas.
No Portal Correio do Estado, antes das demissões e do processo de
mudança na redação, em abril de 201720, quem interagia com os usuários
pelo aplicativo eram os estagiários.

O WhatsApp virou o rádio escuta de antigamente. O estagiário


ficava com o WhatsApp e era responsável pela ronda por telefo-
ne. Com a diminuição de gente na redação, o estagiário teve que
assumir mais funções e o WhatsApp ficou para o jornalista que
tem mais afinidade (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Com isso, o WhatsApp oficial do ciberjornal ficou inativo por dois


meses. Passado o período, mesmo sem serem delegados, jornalistas e estagi-
ários, com afinidade, interagem com os leitores e repassam as informações
para os demais membros da redação.
Quanto aos assuntos das mensagens, Rodolfo César de Sousa (2017,
Informação Verbal) narra que são, basicamente, relacionados aos serviços pú-
blicos nos bairros de Campo Grande. Como, por exemplo: praça com mato
alto, demora em atendimento médico nas unidades de saúde e problemas
com a iluminação pública. O fluxo maior de mensagem é das 6 às 18 horas.
19 O jornalista de plantão atende a toda a demanda do ciberjornal no período da noite, o que
incluiu responder às mensagens no WhatsApp oficial. O expediente do Campo Grande News é
das 6h à meia-noite.
20 Em abril de 2017, o Correio do Estado demitiu 13 jornalistas e 7 profissionais que ocupavam
outros cargos na empresa. Com isso, a redação, tanto do ciberjornal quanto do impresso, foi refor-
mulada. Mais informações em: <http://www.jornalistasms.org.br/2017/04/sobre-demissoes-e-atua-
cao-do-sindjor-ms.html>; <https://portal.comunique-se.com.br/jornal-de-maior-circulacao-ms-de-
mite-mais-de-10-profissionais/>.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 281


O Midiamax News estabeleceu como prática o rodízio entres os jor-
nalistas para ler e responder às mensagens:

Nós temos sempre um jornalista que é escalado a cada expedien-


te, a cada plantão, para cuidar do trinta. Trinta porque o final do
nosso WhatsApp é trinta: 99207-4330. Então, logo no começo do
expediente a gente define: bom, hoje fulano cuida do trinta. E que
tanto pode ser prazeroso, como também pode ser massacrante. Em
dias que a gente tem uma demanda de contato maior, esse colega
chega a gerenciar mais de trezentas interações com leitores num
intervalo de cinco a seis horas (CÁCERES, 2017, Informação Ver-
bal).

O conteúdo das mensagens enviadas ao Midiamax News, na maioria


das vezes, trata de assuntos relacionados à saúde pública. “A gente brinca
que todo campo-grandense quando vai para a unidade básica de saúde, pri-
meira coisa que ele faz é saber qual o WhatsApp do Midiamax” (CÁCE-
RES, 2017, Informação Verbal). O Midiamax News, assim como o Portal
Correio do Estado, relatou receber denúncias referentes à administração pú-
blica em municípios do interior de Mato Grosso do Sul. “São denúncias de
desrespeitos da gestão pública, principalmente reclamação na demora de
atendimento nos serviços públicos básicos” (CÁCERES, 2017, Informação
Verbal). Acidentes e condições do trânsito também estão entre as principais
sugestões de pauta enviadas constantemente pelos leitores:

A gente recebe muitas informações de acidentes de trânsito. Mui-


tas vezes, acidentes relevantes ou fotos terríveis, impublicáveis.
Isso acontece muito e a gente tem um rigor grande para filtrar o
que vai para o ar ou não. O leitor não tem muita noção, então
ele manda corpo decepado, a vítima agonizando e esperando so-
corro. A gente faz um trabalho com o leitor, agradece e pergunta
se tem mais informação. Pergunta se o trânsito está lento, tenta
tirar conteúdo jornalístico e filtra o que não é (CÁCERES, 2017,
Informação Verbal).

Outra característica relatada pelos editores é que alguns usuários en-


caminham com frequência sugestões relacionadas a assuntos específicos e,
com isso, tornam-se referências para os jornalistas quando surgem pautas
relacionadas aos mesmos temas. Para armazenar esses contatos, o Midia-
max News criou um grupo secreto no Facebook. “Boa parte de quem entra
em contato com a gente é convidado para integrar este grupo secreto de lei-
tores [no Facebook” (CÁCERES, 2017, Informação Verbal). Paralelo a isso,
o Midiamax News tem um banco de dados mantido no WhatsApp, prática
adotada também pelo Campo Grande News e Correio do Estado.
282 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
Apuração das informações recebidas via aplicativo

Quanto ao processo de apuração das informações recebidas pelo


WhatsApp, todos os ciberjornais disseram seguir o rito tradicional jornalísti-
co21 de checagem das informações:

A gente checa da forma tradicional, como qualquer informação


jornalística. A gente vai atrás da fonte oficial, a gente vai atrás
do personagem daquela história, a gente vai em lugares, a gente
procura documentação, a gente acessa processo. Então, a gente
cerca dos caminhos tradicionais do jornalismo para checagem
das informações (FERREIRA, 2017, Informação Verbal).

No Midiamax News, foi criado um protocolo para checagem das


informações enviadas via WhatsApp. “Tudo que a gente recebe de infor-
mação a gente tem que verificar. Aconteceu um acidente em tal lugar.
Perguntamos se o leitor tem foto ou vídeo” (CÁCERES, 2017, Informa-
ção Verbal). Mesmo com o compartilhamento de fotos e vídeos, Éser Cá-
ceres explica que o ciberjornal tem como normativa aguardar confirma-
ção oficial dos fatos para publicação, nos casos que necessitam de parecer
das autoridades. No caso de acidentes, os jornalistas são orientados a es-
perarem a confirmação da Polícia de Trânsito e do Corpo de Bombeiros.
A contribuição do leitor, no Midiamax News, excedeu a sugestão
de pauta e o compartilhamento de fotos e vídeos via WhatsApp. Em casos
extraordinários, depois que o jornalista checou a informação recebida via
WhatsApp, o usuário é convidado para fazer a transmissão ao vivo do even-
to, via Facebook do Midiamax News. Observa-se, nesse caso, que a captação
da imagem e filtro das informações ficam sob responsabilidade do usuário
presente ao evento ao qual transmite vinculado à fan page do Midiamax
News no Facebook:

Em casos extremos, a gente já teve situação de leitor entrar ao


vivo na nossa fan page no Facebook. Estava lá o fato acontecendo
e leitor disse: ah, eu vou mandar para vocês o vídeo. Aí a gente co-
necta a conta dele com a nossa fan page e transmitimos ao vivo.
Foram poucas as ocorrências, mas foram experiências interessan-
tes. Então, essa questão do imediatismo de quem está nas ruas,
21 Tuchman (1972), Gans (1979), Shoemaker e Reese (1996), Sousa (2002), Schudson (2010),
Pavlik (2000, 2014), Shoemaker e Vos (2011) e Canavilhas (2017) destacam a importância de
estudar a rotina de produção jornalística, pois, segundo os autores, estas práticas afetam a realidade
social retratada nas notícias e que para entender o que é notícia, é necessário entender as rotinas
que as criam. Durante a produção da notícia, ao longo das fases de seleção, elaboração, edição e
publicação da informação, o trabalho do jornalista é influenciado por vários fatores, que formam
uma rede complexa de condicionamento. Estes condicionamentos envolvem atividades cotidianas,
como rotinas de produção.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 283


a gente tentou criar um protocolo de produção para se vacinar
contra os erros que ela traz, os riscos que ela traz (CÁCERES,
2017, Informação Verbal).

Éser Cáceres explica que faz parte do protocolo de checagem do Mi-


diamax News consultar, pelo menos, mais uma fonte, além de quem enviou
as informações. “A confirmação dos fatos foi uma preocupação que o Midia-
max teve desde o início do uso do WhatsApp e das redes sociais” (CÁCERES,
2017, Informação Verbal).
No Correio do Estado, a principal ferramenta de checagem das in-
formações é a ligação telefônica. As sugestões de pauta enviadas por leitores
também são avaliadas conforme procedimentos já estabelecidos:

Vamos supor que uma pessoa envia uma foto dizendo que a praça
está ruim. A gente pega a foto e a história e manda para quem
é responsável por aquela demanda que não foi atendida. Neste
caso, a gente não fala o nome de quem enviou a informação,
mas diz que é um morador da região e pergunta sobre a situação.
Dependendo do caso, quando a gente suspeita da informação, a
gente tenta fazer um filtro, muitas vezes, pesquisando no Google
Maps. Se alguma coisa está muito diferente do que a pessoa apre-
sentou, a gente vai ao lugar para confirmar. Mas é a menor parte
que a gente faz isso, pois, no geral, são demandas do tipo: uma
luz que não funciona, praça com mato alto. Agora, quando vem
uma coisa da polícia militar e de alguma delegacia da polícia
civil - elas usam muito o WhatsApp - é como se fosse a entrevis-
ta por telefone, a gente não confere (SOUSA 2017, Informação
Verbal).

A checagem inicial das informações enviadas via WhatsApp por fon-


tes não oficiais consiste em pedir aos usuários que enviem fotos, vídeos e a
geolocalização do evento. Com imagens e a localização, o jornalista con-
sulta outras fontes para confirmar os dados e elaborar a notícia.

Vamos supor: “parece que tem alguém aqui recebendo dinheiro


errado. Alguém está jogando lixo errado”. Neste caso, a gente
pede para mandar foto. Se não mandar foto, a gente já descarta
(SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Quando questionado a respeito do armazenamento das mensagens e


das informações utilizadas nas notícias, o Correio do Estado informou que
arquiva o material durante três meses. Depois disso, são guardadas “na nu-
vem”22 ou nos computadores apenas informações avaliadas pelos jornalistas
22 Cloud Computing: o armazenamento na nuvem é um modelo de computação em nuvem que
armazena dados na internet por meio de um provedor de computação na nuvem, que gerencia e

284 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul


como importantes e que possam gerar algum tipo de demanda judicial.
Este armazenamento é de responsabilidade do jornalista que publicou a
informação.
No Midiamax News, o armazenamento é restrito ao WhatsApp. “Pa-
ralelo a isso, nós temos um banco de dados, mantido no próprio aplicativo
do WhatsApp, com todos os contatos que a gente recebe e que não são
contatos efêmeros” (CÁCERES, 2017, Informação Verbal).
No Campo Grande News, a prática de armazenamento é semelhante
aos demais ciberjornais pesquisados. São guardados documentos e informa-
ções que precisam passar pelo crivo dos jornalistas, que atestarão a legalida-
de e autenticidade da notícia:

Não existe o hábito de armazenar as mensagens, não. Só alguma


coisa que a gente acha que pode dar algum problema. Assim, só
algum conteúdo que a gente precisa ter claro que a pessoa au-
torizou ou alguma coisa assim. Em geral, não. A gente costuma
fazer limpeza. A gente armazena documentos. Documentos que
a gente recebeu a gente guarda, mas a mensagem em si não é
comum armazenar (FERREIRA, 2017, Informação Verbal).

Já os contatos, habitualmente são armazenados pelos jornalistas no


smartphone. “Aí precisou daquela história a gente vai atrás de novo e isso
facilitou, também, as agendas. No próprio celular a gente já consegue fazer
uma agenda de contatos” (FERREIRA, 2017, Informação Verbal).

Informações relevantes recebidas via WhatsApp

Segundo Éser Cáceres, o Midiamax News noticiou sobre a Operação


tapa-buracos fantasma com base em denúncias que o ciberjornal recebeu
por WhatsApp. Informações enviadas por leitores comprovaram a fraude de
uma empresa prestadora de serviços para a Prefeitura de Campo Grande,
que simulava tapar buracos em pavimentos sem buracos. A operação foi
denominada pela Polícia Federal de “Tapa-buracos fantasma”23. “Pessoas de
vários bairros começaram a avisar o jornal. “Olha, tem uma equipe tapando
buraco que não existe aqui” (CACÉRES, 2017, Informação Verbal). E a
partir de fotos, vídeos e geolocalização compartilhada por leitores, o jornal
escalou uma equipe de jornalistas, que, descaracterizada da identificação
“Imprensa”, flagrou e comprovou a irregularidade na prestação de serviço.
opera o armazenamento físico de dados como serviço. O serviço é fornecido sob demanda, com ca-
pacidade e custos just-in-time, e elimina a compra e o gerenciamento de sua própria infraestrutura
de armazenamento físico de dados. Assim, você obtém agilidade, escala global e resiliência, com
acesso aos dados “a qualquer momento, em qualquer lugar”. Disponível em: https://aws.amazon.
com/pt/what-is-cloud-storage. Acessado em: 07 de março de 2018.
23 Disponível em: <http://www.midiamax.com.br/noticias/promotoria-investiga-tapa-buracos-fei-
tos-em-ruas-centrais-de-campo-grande>. Acessado em: 05 de janeiro de 2018.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 285


O Correio do Estado também teve considerável audiência ao abordar
um assunto, aparentemente sem grande relevância, sugerido por um leitor da
periferia de Campo Grande. Por meio do WhatsApp, ele encaminhou para o
ciberjornal fotos de uma caçamba de lixo, perto de uma escola, que não havia
sido recolhida pela empresa responsável pela locação. A caçamba estava cheia
de entulho havia semanas. Após a publicação da notícia, a prefeitura respondeu
aos jornalistas que estava montando uma operação para fiscalizar as empresas
que haviam abandonado as caçambas e que o fato ocorria devido a procedi-
mentos ilegais das empresas no descarte do material:

A gente fez outra [matéria] sobre a operação que a prefeitura ia


fazer sobre as caçambas. Aí foi uma matéria maior. E depois des-
sa matéria, moradores do bairro mandaram [mensagem] falando
que tinham tirado a caçamba. Não sabem quem tirou. Parece
que foi até a prefeitura. Só que o lixo, que estava na caçamba,
jogaram na rua. E a resposta da Prefeitura foi que ela ia passar lá
com caminhão para limpar (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Outra notícia que teve desdobramentos, ainda relacionada ao


descarte de resíduos em Campo Grande, foi o incêndio no Aterro de
Entulho do Bairro Jardim Noroeste, na madrugada de 16 de julho de
2016, local onde as empresas de caçambas depositavam os dejetos. O
Correio do Estado utilizou fotos enviadas via WhatsApp, por moradores
do bairro, para noticiar os fatos:

O fogo foi à noite e nós não temos equipe à noite e as pessoas


fizeram foto do fogo, em si, e dá mais repercussão foto do mo-
mento do que você ir lá no dia seguinte e o fogo já ter apagado.
Então, neste ponto, ele [as imagens enviadas por WhatsApp] aju-
dou para demonstrar como a coisa foi grande. Aí pelo WhatsApp
tiveram pessoas falando do problema da fumaça, da fuligem e aí a
gente fez matéria, também (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Em dezembro de 2016, o Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul


acatou o pedido do Ministério Público do Estado e determinou a interdição
do Aterro de Entulho do Bairro Jardim Noroeste, porque estava operando
sem Licença de Operação junto à Secretaria Municipal de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Urbano (Semadur).
Outro exemplo de denúncia enviada por WhatsApp foi a prisão do
ex-governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, investigado por
desvio de verba pública. Ao perceberem a movimentação da Polícia Fede-
ral em frente ao prédio onde morava Puccinelli, no dia 14 de novembro
de 2017, leitores enviaram imagens à imprensa. Em seguida, documentos
286 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
relacionados à Operação Lama Asfáltica24 também foram compartilhados
por fontes oficiais com os jornalistas via WhatsApp:

Essas revelações, todas, de que a Polícia Federal estava na casa do


governador chegou por WhatsApp. Esta semana, por exemplo,
eu recebi a informação às seis da manhã de que a PF está na
frente da casa do governador. Isso pelo meu WhatsApp. Esse tipo
de informação chega mais pelo WhatsApp pessoal do que pelo
WhatsApp do jornal. Eu tenho dois WhatsApp e trabalho com
duas telas de computador. Um no WhatsApp pessoal e outro no
meu WhatsApp corporativo. Então, informação desse tipo vem
mais pelo WhatsApp pessoal. Cada jornalista tem suas fontes,
tem seus contatos e a gente circula a informação. Quando eu re-
cebi a informação da PF na casa do governador, algumas pessoas
da redação já estavam sabendo, mas aí eu recebi um documento.
Alguém me encaminhou a nota que a Polícia Federal ia distri-
buir. A jornalista que entra às seis horas recebeu a informação no
caminho para o trabalho. “Olha, a Polícia Federal está lá na casa
do governador”. Aí ela já nem veio para a redação e foi direto para
a casa do ex-governador (FERREIRA, 2017, Informação Verbal).

Assim, pode-se concluir, a partir do que foi relatado pelos três editores
que, embora grande parte do conteúdo que chega às redações via WhatsApp
seja de informações irrelevantes, há dados precisos e que podem originar pautas
de repercussão, inclusive, nacional.

Influência do WhatsApp na rotina de produção jornalística

Os editores consideraram o WhatsApp uma tecnologia que agregou


à rotina de produção jornalística e que trouxe agilidade para a prática pro-
fissional. O Correio do Estado utiliza, principalmente, ligações telefônicas,
e-mail e contato com assessorias de imprensa para obter informações. O
Midiamax considera o aplicativo mais uma ferramenta agregada à utiliza-
ção de dispositivos móveis à prática jornalística. O Campo Grande News
considera o WhatsApp a principal ferramenta de circulação de informação
e contato com a fonte.

Hoje, eu diria, que é o WhatsApp o principal meio de buscar e


checar informação. É o meio pelo qual a pauta e a fonte circu-
lam, tanto de chegada quanto de contato da gente. Mas ainda
24 A Polícia Federal investiga o ex-governador de Mato Grosso do Sul, André Puccinelli, por inte-
grar organização criminosa que desviou R$ 235 milhões de verbas públicas por meio de fraudes em
licitações e concessão de crédito tributário a grupos empresariais em troca de propinas. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/11/1935281-ex-governador-do-ms-e-alvo-de-opera-
cao-contra-corrupcao.shtml>. Acessado em: 05 de janeiro de 2018.

Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 287


se usa muito o e-mail e ainda se usa muito o telefone, também.
E o ao vivo, ir aos lugares. Mas a circulação das informações, o
WhatsApp é o principal. A foto, o texto - às vezes, o contato com
a fonte. Nisso o WhatsApp é mais utilizado do que o telefone, a
ligação em si. O Facebook é menos utilizado que o WhatsApp
(FERREIRA, 2017, Informação Verbal).

Para o Campo Grande News, o WhatsApp é uma ferramenta transfor-


madora e essencial. “Assim como o computador, o WhatsApp agregou uma
nova tecnologia que facilita o contato com fontes e entre membros da re-
dação” (FERREIRA, 2017, Informação Verbal). Do ponto de vista técnico,
Marta Ferreira considera o WhatsApp um aplicativo transformador:

Ele facilita, as coisas chegam muito mais rápido. Saem muito


mais rápido. Não precisa anexar foto no e-mail para mandar. É só
dar um clique que a foto já está na redação, se tiver internet. No
começo do Campo Grande News, a gente mandava o fotógrafo
para a rua e ele tinha que voltar para a redação para descarregar a
foto. Hoje não precisa mais. Ele pega o cartão e envia pelo celu-
lar via WhatsApp. Então, neste sentido transformou, sim (FER-
REIRA, 2017, Informação Verbal).

Segundo ela, as práticas jornalísticas, que consistem em buscar in-


formação e checar os fatos, continuam as mesmas. “A atividade em si não
mudou, o que mudou é a tecnologia para chegarmos até a fonte e para con-
feccionarmos o material que vai ao ar”. O jornalismo continua o mesmo.
“É buscar boas histórias, é contar fatos” (FERREIRA, 2017, Informação
Verbal).
O Correio do Estado utiliza-se de ligações telefônicas como principal
meio de contato com as fontes. “Outra forma são informações que vêm pela
assessoria de imprensa. A ligação telefônica ainda é referência” (SOUSA,
2017, Informação Verbal). Para o Correio do Estado, o WhatsApp é um ca-
nal que complementa e as informações recebidas pelo aplicativo, na maio-
ria das vezes, não são relevantes:

Basicamente, vêm muitas histórias, muitos boatos e coisa pela


metade. [...] Tem algumas pessoas que usam o WhatsApp, prin-
cipalmente, quando têm algum assunto relacionado à política ou
denúncia, por que é difícil monitorar. Então, o WhatsApp é um
meio para escapar de alguma fiscalização. Se for para elencar, re-
cebemos ligação, recebemos e-mail, contato dos jornalistas, What-
sApp e grupos de WhatsApp (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Mesmo com o baixo percentual de utilização de conteúdo, compa-


rado ao volume de mensagens recebidas pelo WhatsApp oficial do ciberjor-
288 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
nal, Rodolfo Sousa considera que o aplicativo mudou a rotina de produção
jornalística devido ao sentimento de urgência e de imediatismo, tanto por
parte dos jornalistas quanto por parte de quem entra em contato com o
Correio do Estado:

Sim, o WhatsApp mudou a rotina de produção, pois aumentou o


volume de informação que chega na redação. É mais agradável
mandar uma mensagem, talvez, do que um e-mail que você tem
que clicar num lugar e depois clicar em outro. Então, o WhatsA-
pp dá agilidade e cria urgência. O e-mail, não necessariamente,
você vai confirmar para a pessoa que você leu. Agora, o WhatsApp
apesar que tem recurso que você não precisa confirmar a visuali-
zação, no WhatsApp do Correio a pessoa vai ver que a mensagem
foi visualizada. Então, cria uma urgência. A pessoa envia, aquilo
está acontecendo e a pessoa espera que já vai ser resolvido, que
já vai ser publicada a matéria e, beleza, já vamos para a outra. E,
ao mesmo tempo, pelo lado do jornalista criou uma praticidade.
Você sabe que pode mandar uma pergunta e que a fonte vai res-
ponder depois, não necessariamente no momento que você quer,
mas ela vai responder depois e você pode ter contato com a fonte,
muitas vezes, fora do horário comercial e ter contato com a fonte
por WhatsApp, neste caso, aparenta ser menos invasivo. A pessoa
pode responder ou não e você tem a alegação de que mandou a
mensagem (SOUSA, 2017, Informação Verbal).

Para o Midiamax News, o jornalista ainda é o principal responsável


pela procura de informação e checagem dos fatos. Quando questionado a
respeito de qual o principal meio de busca de informação do ciberjornal,
Éser Cáceres explica que é missão dos jornalistas do Midiamax News man-
ter o olhar jornalístico, inclusive, fora do ambiente de trabalho:

Se não tiver um jornalista avaliando o que é pauta e o que não


é pauta, não rende. Acho que é um engano gravíssimo a gente
creditar as fontes às redes sociais. O jornalista tem que fazer nas
redes sociais o que ele faz na vida. Quando eu comecei no jor-
nal, eu ouvia muito: seja jornalista vinte quatro horas por dia ou
você nunca será um jornalista. Isso é mais válido do que nunca.
Enquanto você está correndo o seu feed do Instagram e do Fa-
cebook, você tem que ser jornalista. Tem que ter o olhar jorna-
lístico e identificar o que pode render pauta, ali. Ou por estar
alguma coisa fora da ordem ou por ter algum clamor público ou
por ter algum interesse público, entreter o público. Basicamente,
isso. Agora, entre as redes sociais se você for limitar, os brasileiros
usam mais o Facebook do que os outros canais. Então, talvez por
volume o Facebook participe mais, mas o dispositivo mais impor-
tante ainda é o jornalista (CÁCERES, 2017, Informação Verbal).
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 289
Assim como o Correio do Estado, o Midiamax afirma receber consi-
derável demanda de trabalho via ligação telefônica, redes sociais e cobertu-
ra de agenda oficial. Éser Cáceres considera que o WhatsApp não mudou a
rotina de produção do Midiamax News. Por se tratar de um ciberjornal, os
jornalistas já trabalhavam com dispositivos móveis e aplicativos de redes so-
ciais. O editor enfatiza que o WhatsApp aperfeiçoou o contato com o leitor,
mas não mudou o rito jornalístico. O Midiamax News tinha como prática
encaminhar SMS para o político que não atendia ligações e que, desde
2012, utiliza também o WhatsApp com a mesma finalidade. “O WhatsApp
incrementou um canal de contato com o leitor. [...] O smartphone já fazia
parte do rito jornalístico” (CÁCERES, 2017, Informação Verbal).

Considerações Finais

Esta pesquisa objetivou estudar quais os impactos da utilização do
WhatsApp na rotina de produção da notícia em ciberjornais, perante o flu-
xo de informação recebida via aplicativo. Com os dados coletados nesta
pesquisa, comprovou-se que o processo tradicional de seleção e produção
de notícias foi ampliado pelas informações oriundas de mensageiro instan-
tâneo móvel e sítios de redes sociais na internet. A utilização do WhatsApp
na rotina de produção contribuiu para a reconfiguração do fazer jornalísti-
co em cibermeios.
Diante dessa constatação, é possível observar também uma alteração
comportamental dos profissionais, pois os jornalistas, em poucas ocasiões,
saem das redações em busca de pauta e para checar as informações. Esta
mudança foi proporcionada pela incorporação de novas ferramentas de tra-
balho, entre elas o WhatsApp, com o objetivo de reduzir o tempo e o custo
de produção jornalística.
Erik Neveu (2006), ao descrever a sociologia do jornalismo, ques-
tionou a utilização da metáfora da fonte diante do novo fluxo de trabalho
jornalístico. Ir à fonte sugere um comportamento ativo para se abastecer de
informação, ou seja, remete ao jornalista curioso e investigador em busca
de furo jornalístico. A metáfora da fonte induz ao erro, segundo Neveu
(2006), não porque os jornalistas sejam desprovidos de iniciativa ou habi-
lidades para buscar informação, mas porque as fontes são, fundamental-
mente, ativas. Em um cenário de fluxo intenso de informação, é cada vez
maior o peso atribuído à participação do leitor, sobretudo num contexto de
enxugamento de redações e polivalência do jornalista.
Esta pesquisa comprova a participação do usuário no processo de
produção da notícia e, consequentemente, apresenta novas demandas jor-
nalísticas. Uma delas é interagir com o público que envia mensagens via
WhatsApp. A utilização deste mensageiro instantâneo móvel promoveu
aceleramento do ritmo de trabalho e acúmulo de funções. Os jornalistas
290 Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul
foram pressionados a produzir mais conteúdo e abastecer os ciberjornais
em intervalo cada vez mais curto e com informações fragmentadas. Este
cenário segue a lógica capitalista de que quanto maior é a oferta de ma-
téria-prima, provavelmente maior será a demanda de produção e a busca
por consumidores, inclusive no jornalismo. Vale destacar que o aumen-
to de matéria-prima não resultou em jornalismo contextualizado ou que
tenha se beneficiado das possibilidades narrativas, disponibilizadas pelas
características do cibermeio, entre elas: a multimidialidade e a hipertex-
tualidade.
As causas do aceleramento e fluxo mais concentrado de produção
são, principalmente: a possibilidade de compartilhamento de mídias em
diversos formatos - fotos, vídeos, áudio, texto, documentos, pois a facilidade
de circulação de informações, possibilitada pela unificação de plataforma
e pelo aumento ao acesso à internet, potencializa a instantaneidade e a
demanda de produção exigidas pelos ciberjornais. As empresas jornalísti-
cas ainda não conseguiram estabelecer uma rotina que evite a sobrecarga
diante das características do cibermeio, como também foi constatada pela
pesquisadora Sylvia Moretzsohn (2014).
Ferramentas tecnológicas, como o WhatsApp, limitam o desliga-
mento dos jornalistas com o trabalho e, conforme observadas na entrevista
com os editores, são utilizadas para reforçar o discurso de autolegitimação
da profissão, cujas ideias são de que os jornalistas precisam estar à disposi-
ção e atentos aos acontecimentos, mesmo fora do expediente de serviço.
Essa prática profissional pode acarretar desequilíbrios e problemas,
do ponto de vista sociológico. Agnes Heller (2008) aponta a alienação pro-
fissional como um dos problemas e contradições da vida social. Agnes Hel-
ler é estudiosa dos assuntos cotidianos e de como os indivíduos sociais se
comportam diante da realidade social em seus enfrentamentos.
Embora nesta pesquisa não tenham sido analisadas as consequências
na saúde física e mental do jornalista, causadas pelo aceleramento no pro-
cesso de produção, sem dúvida, esta é uma indicação para futuros estudos e
que contribuirão para entender amplamente as implicações das mudanças,
do campo de trabalho jornalístico, nos demais pilares que sustentam e equi-
libram a vida cotidiana desses profissionais.
Retomando a linha de pensamento de Eric Neveu (2006), o autor su-
gere que, se uma metáfora aquática pode fazer sentido perante a atual roti-
na de produção jornalística, esta metáfora é a de jornalistas submersos num
dilúvio de informações oferecidas pelas fontes. Apesar do grande volume de
mensagem que os ciberjornais recebem e, consequentemente, da deman-
da que gera para os jornalistas, as informações, na maioria delas, não têm
valor-notícia. Então, por qual motivo seguir este modelo de produção que
gera tencionamento para o jornalista e que não oferece notícias contextua-
lizadas aos leitores? Este é um forte motivo para reflexão e discussão sobre
Regionalidade e discursos midiáticos: mapeamento e análise em Mato Grosso do Sul 291
as práticas profissionais jornalísticas, diante das constatações desta pesquisa.
Outro ponto observado é a fragilidade na checagem das informa-
ções recebidas pelo WhatsApp. Embora os editores tenham afirmado que
seguem o rito tradicional de apuração das informações recebidas via What-
sApp, a velocidade do processo de produção e a ausência de equipes jorna-
lísticas que se desloquem para o local do acontecimento com o objetivo de
averiguar o que foi compartilhado por leitores via aplicativo, compromete
a veracidade do conteúdo publicado. Essas práticas podem afetar a autenti-
cidade das notícias ainda que o jornalismo, ao longo de sua história, tenha
convivido com este risco em virtude do imediatismo, conforme descreve
Souza (2017).
Mesmo com as mudanças na rotina de produção, as empresas jorna-
lísticas e os jornalistas não podem burlar as regras elementares do trabalho
e os protocolos que compõem o rito jornalístico, como por exemplo, a veri-
ficação da informação, além de uma postura ética e deontológica.
Fazem parte do jornalismo o questionar, o indagar, o duvidar para
que a informação seja noticiada para o público da melhor maneira possí-
vel, da forma mais completa e precisa. Para isso, é preciso beneficiar-se das
características do cibermeio para a produção de um jornalismo contextuali-
zado. É fundamental utilizar as tecnologias e os dados que já existem, para
contextualizar a informação. Além disso, o ciberjornalismo trabalha com
narrativa multimídia e é preciso saber trabalhar conteúdos multimídia para
uma geração que nasceu em ambiente multimidiático e que tem cultura
audiovisual.
A profissão deve manter-se atual, fiel aos códigos ético-deontológicos
e acompanhar os avanços da tecnologia absorvidos pelas audiências, mas
necessita, sobretudo, estar alinhada aos anseios da sociedade. Esta pesquisa
mostra que a discussão não se encerra aqui e estimula a busca por mais
conhecimento e estabelece um marco, no espaço e no tempo, que ajuda
a compreender o jornalismo como processo em constante transformação,
influenciado pela tecnologia.

Referências

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