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Artigo - Luiz Sérgio Fernandes de Souza

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ISSN 1807-0930

Revista Magister de Direito


Civil e Processual Civil
Ano XVI – Nº 95
Mar-Abr 2020

Repositório Autorizado de Jurisprudência


Superior Tribunal de Justiça – nº 63/2008

Classificação Qualis/Capes: B1

Editores
Fábio Paixão
Walter Diab

Conselho Editorial
Álvaro Villaça Azevedo – Araken de Assis
Arnaldo Rizzardo – Arnoldo Wald – Bruno Campos Silva – Clayton Maranhão
Clito Fornaciari Júnior – Daniel Mitidiero – Ênio Santarelli Zuliani – Flávio Tartuce
Fredie Didier Junior – Giselda M. F. Novaes Hironaka – Hermes Zaneti Junior
Humberto Theodoro Júnior – Ives Gandra da Silva Martins – João Baptista Villela
José Maria Rosa Tesheiner – José Roberto F. Gouvêa – José Rogério Cruz e Tucci
Luiz Guilherme Marinoni – Mário Luiz Delgado – Pablo Stolze Gagliano
Rodolfo Pamplona Filho – Rolf Madaleno – Sérgio Cruz Arenhart
Sérgio Gilberto Porto – Sílvio de Salvo Venosa – Voltaire Marensi

Colaboradores deste Volume


Ataliba Telles Carpes – Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Fábio Siebeneichler de Andrade – Fernanda Tartuce – Gustavo Osna
Luiz Antonio Scavone Junior – Luiz Sergio Fernandes de Souza
Thiago Simões Pessoa – Viviane Toscano Sad
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil
Publicação bimestral da LexMagister à qual se reservam todos os direitos, sendo vedada a
reprodução total ou parcial sem a citação expressa da fonte.

A responsabilidade quanto aos conceitos emitidos nos artigos publicados é de seus autores.

Artigos podem ser encaminhados via site (http://www.lexmagister.com.br/EnviarArtigos.aspx).


Não devolvemos os originais recebidos, publicados ou não.

As íntegras dos acórdãos aqui publicadas correspondem aos seus originais, obtidos junto ao
órgão competente do respectivo Tribunal.

Esta publicação conta com distribuição em todo o território nacional.

A editoração eletrônica foi realizada pela LexMagister, para uma tiragem de 5.000 exemplares.

Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil


v. 1 (jul./ago. 2004)-.– Porto Alegre: LexMagister, 2004
Bimestral.
v. 95 (mar./abr. 2020)

ISSN 1807-0930

1. Direito Civil – Periódico. 2. Processo Civil – Periódico.

CDU 347(05)
CDU 347.9(05)

Ficha catalográfica: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273


Capa: Apollo 13

LexMagister
Diretor Executivo: Fábio Paixão

Rua 18 de Novembro, 423 Porto Alegre – RS – 90.240-040


www.lexmagister.com.br magister@editoramagister.com
Serviço de Atendimento – (51) 3237.4243
Sumário
Doutrina
1. A Fiança, o Bem de Família, o Direito Social à Moradia e o Ativismo do
Supremo Tribunal Federal
Luiz Antonio Scavone Junior...................................................................................... 5
2. A Penhora do FGTS como Instrumento Capaz de Elidir a Prisão Civil
do Devedor de Alimentos
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e Viviane Toscano Sad................................. 19
3. Divórcio Liminar como Tutela Provisória de Evidência: Avanços e
Resistências
Fernanda Tartuce...................................................................................................... 37
4. O Crepúsculo da Doutrina na Elaboração Jurisdicional Brasileira
Luiz Sergio Fernandes de Souza............................................................................... 51
5. O Teorema de Arrow e o Processo Coletivo – a Inevitabilidade da
Representação
Gustavo Osna e Ataliba Telles Carpes....................................................................... 68
6. Notas Sobre as Distinções e Relações entre a Responsabilidade Civil e a
Responsabilidade Penal
Fábio Siebeneichler de Andrade................................................................................. 83
7. Os Novos Conflitos Coletivos e a Readequação da Atuação da Fazenda
Pública
Thiago Simões Pessoa............................................................................................. 101

Jurisprudência
1. Superior Tribunal de Justiça – Responsabilidade Civil. Danos Morais.
Falha na Prestação de Serviços Hospitalares. Demora para Autorização
de Cirurgia de Urgência. Óbito da Paciente. Hospital e Plano de Saúde
Pertencentes à Mesma Rede. Responsabilidade Solidária
Rel. Min. Raul Araújo........................................................................................... 119
2. Superior Tribunal de Justiça – Compra e Venda. Ascendente a
Descendente por Interposta Pessoa. Simulação. Nulidade do
Negócio Jurídico. Decadência. Inexistência. Ato Nulo Insuscetível de
Convalidação pelo Decurso do Tempo
Rel. Min. Raul Araújo........................................................................................... 124
3. Superior Tribunal de Justiça – Propriedade Intelectual. Direitos Autorais.
Fotografia. Uso Não Autorizado. Ausência de Indicação da Autoria. Danos
Morais Configurados
Relª Minª Nancy Andrighi..................................................................................... 132
4. Tribunal de Justiça de Minas Gerais – Seguro Obrigatório. DPVAT.
Acidente com Trator Agrícola no Exercício de Atividade Laboral.
Possibilidade de Indenização. Entendimento do STJ. Acidentes
Automobilísticos Envolvendo Trator, Veículo Automotor Terrestre, São
Passíveis de Indenização pelo Seguro DPVAT, Inexistindo Exclusão de
Cobertura
Rel. Des. Otávio Portes........................................................................................... 139
5. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – Responsabilidade Civil do
Município. CR/88, Art. 37, § 6º. Queda de Menor em Coletor de Águas
Pluviais, Cuja Grade se Encontrava Quebrada. Autora, Quando do
Evento, Contava com 10 Anos de Idade e Havia Dado Início à Travessia da
Via Sozinha. Irrelevância
Rel. Des. Jessé Torres.............................................................................................. 143
6. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Alienação Fiduciária. Veículo.
Penhora. Realização do Leilão do Bem. A Restrição Fiduciária Não
Impede a Venda do Bem, Considerando que o Fruto de Eventual
Alienação Servirá Primeiramente à Quitação do Contrato Bancário
Rel. Des. Carlos Cini Marchionatti......................................................................... 147
7. Tribunal de Justiça de Santa Catarina – Pensão por Morte. Ex-Servidor
Público. Veredicto de Procedência. Insurgência do IPREV. Simulação.
Inocorrência. Diferença de Idade entre os Cônjuges que, de Per Se, Não
Sugere Vício Marital
Rel. Des. Luiz Fernando Boller.............................................................................. 149
8. Tribunal de Justiça de São Paulo – Penhora. Remoção do Veículo.
Admissibilidade. Art. 840, II, § 1º, do CPC. Vigora a Regra de que os Bens
Móveis Penhorados Ficarão em Poder do Depositário Judicial e, na Falta
Deste, Ficarão em Poder do Exequente
Rel. Des. Jacob Valente............................................................................................ 157
9. Divergência Jurisprudencial............................................................................... 160
10. Ementário............................................................................................................ 161
11. Julgados da OAB – CF/TED.............................................................................. 187

Sinopse Legislativa . ............................................................................................. 189


Destaques dos Volumes Anteriores ................................................................... 190
Índice Alfabético-Remissivo ............................................................................... 191
Doutrina

O Crepúsculo da Doutrina na Elaboração


Jurisdicional Brasileira

Luiz Sergio Fernandes de Souza


Desembargador do TJSP; Mestre e Doutor pela USP;
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da
PUC-SP.

RESUMO: Trata-se de uma reflexão crítica, orientada pela racionalidade histó-


rica e teorética (normativo-dogmática e empírica), sobre o ocaso da doutrina no
horizonte das ciências normativas, que se deu na passagem do século XIX para o
século XX, fruto das sociedades modernizantes, fenômeno que se viu aprofunda-
do, no Brasil, na base do próprio formalismo jurídico de tradição europeia, com
a instauração do sistema de vinculação vertical das decisões judiciais, delineado,
a princípio, na Reforma do Judiciário (EC nº 45/04), mas cujos contornos se
tornaram mais precisos no Código de Processo Civil de 2015. Hoje, nenhum juiz
ou tribunal pode decidir sem levar em conta a orientação das Cortes superiores,
havendo se estabelecido um rígido mecanismo de controle normativo, tudo em
nome da estabilidade, integralidade e coerência do sistema jurisdicional. Com
isso, a doutrina, no País, tende a ficar praticamente circunscrita ao ambiente
universitário (aqui também com sinais de desprestígio) e à esfera acadêmica.

PALAVRAS-CHAVE: Fontes do Direito. Ciência do Direito. Jurisdição. Pre-


cedente. Vinculação.

SUMÁRIO: 1 Tema, Método e Proposição. 2 A Doutrina Vinculante: Origem e


Desenvolvimento. 3 O Primado da Lei e a Doutrina como “Teoria”. 4 O Ocaso
da Doutrina no Horizonte da Ciência Normativa. 5 O Crepúsculo da Doutrina
Brasileira. 6 Considerações Finais. 7 Referências Bibliográficas.

1 Tema, Método e Proposição


Busca-se desenvolver no presente trabalho, do ponto vista do historicis-
mo (compreensão temporal da trajetória dos institutos jurídicos) e da teorética
(compreensão normativo-dogmática e empírica do direito)1, uma análise crítica
do papel da doutrina na produção jurisdicional brasileira contemporânea, com
o que se intenta demonstrar que a doutrina vive hoje no País, em tempos de

1 A propósito, v. NEVES, António Castanheira. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra
Editora, 1993. p. 49-54.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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vinculação vertical das decisões judiciais, o seu crepúsculo, ideia que remete
à claridade frouxa que persiste algum tempo depois de o sol se pôr.
Para tanto, trataremos da origem da doutrina e do seu desenvolvimento,
deixando de lado a polêmica existente em torno da palavra “fonte do direito”,
expressão que só utilizaremos, acrescida do adjetivo “formal”, em algumas
circunstâncias (para evitar ambiguidades), no sentido de reconhecer a produ-
ção jurídica que vincula o aplicador do direito na prestação jurisdicional. De
tal sorte, indagações acerca da existência de “fontes materiais” (fundamentos
de ordem filosófica, compreensão histórica e sociológica), ao lado das cha-
madas “fontes formais” (norma, costume, jurisdição e contrato), também
denominadas, respectivamente, “fontes mediatas” e “fontes imediatas”, não
serão objeto de análise, porquanto a classificação, proposta por muitos, não
interfere na proposição do presente estudo.

2 A Doutrina Vinculante: Origem e Desenvolvimento


Tanto a jurisprudência como a doutrina viveram tempos de fastígio na
antiga Roma, época em que os pretores, por meio dos editos, estabeleciam
a forma como a justiça seria aplicada no ano futuro, tratando, outrossim, de
corrigir o direito vigente por meio da equidade. Mas a importância do trabalho
dos jurisconsultos também era grande, chegando ao ponto de submeter os
próprios magistrados, em certas circunstâncias.
Nesse sentido, consta que o Imperador Adriano (76-138 d.C.) ordenou
que os magistrados, na dúvida sobre o direito a ser aplicado no caso submetido
a exame, haveriam de se orientar pela communis opinio doctorum, vale dizer, pela
opinião dos jurisconsultos, a qual se tornou, portanto, quando concordante,
uma das fontes formais de maior importância no Império Romano.
Mesmo antes, os jurisconsultos já haviam recebido do Imperador
Augusto (63 a.C.-14 d.C.) o direito de resposta, e do Imperador Tibério (42
a.C-37 d.C) o jus respondendi, jus publice, populo respondendi, ou seja, o poder
de emitir opiniões vinculantes para o juiz, para o judex privatus, nomeado no
processo, e para o magistrado, cabendo anotar que as responsas não adquiriram
tal força no império de Augusto, pois esse Imperador não exercera a função
legislativa.
A resposta do jurisconsulto, a princípio, vinculava o magistrado apenas
no processo de que se estava tratando, mas com o decorrer do tempo, por
força do seu prestígio, a autoridade das opiniões emitidas acabou se estenden-
do a casos semelhantes, de forma que o Imperador Adriano não fizera senão
reconhecer e confirmar esse costume (MAYNEZ, 1982, p. 76-77), direito
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 53

consuetudinário que se formou sem que interviesse o elemento popular


(BEVILÁQUA, 1972, p. 23).
Já no ano de 476 d.C., uma constituição dos Imperadores Teodósio II
e Valentiniano III (respectivamente, Imperadores da parte oriental e da parte
ocidental) impunha uma curiosa hierarquia na autoridade de velhos juristas,
já falecidos, Papiniano, Paulo, Gaio, Ulpiano e Modestino. E, numa alusão a
tal reverência, falava-se no “Tribunal dos Mortos”.
Caso houvesse entre eles opiniões divergentes, ter-se-ia de atender ao
sustentado pela maioria, e ocorrendo empate (na hipótese de um dos juris-
consultos não haver se pronunciado), prevaleceria a opinião de Papiniano.
Só mesmo quando o jurisconsulto não estivesse atuando é que o juiz tinha a
liberdade para seguir a doutrina que se lhe afigurasse mais justa (LATORRE,
1978, p. 91-92).
Tratava-se da famosa “Lei das Citações” (Ley de las Citas), havendo de se
dizer que a autoridade dos jurisconsultos, nessa medida, passou a influenciar
também a atividade do legislador, dando origem, mais tarde, ao ius civile. Veja-se
que o Digesto (§ 161), integrante do Corpus Juris Civilis, nada mais era do que
a compilação da doutrina produzida pelos juristas romanos da época clássica.
De fato, conquanto Justiniano houvesse derrogado a “Lei das Citações”,
certo é que se notabilizou por haver compilado, com o apoio do Chanceler
Triboniano – logo depois de elaborar um novo código, destinado a substituir
o Gregoriano, o Hermogeniano e o Teodosiano, o que se deu em dois anos
–, o escrito dos antigos juristas, passando a vigorar as Pandectas (ou Digestos)
em 30 de dezembro de 533 (CORRÊA; SCIASCIA, 1988, p. 304-305).
A divergência entre as opiniões dos jurisconsultos, a desafiar um critério
de escolha, bem demonstra a dificuldade de se reconhecer na doutrina uma
fonte do direito formal. Nesse contexto, Angel Latorre chama atenção para
um aspecto interessante, também ressaltado pelos romanistas, mas apontando
em outro sentido.
Na palavra dos romanistas, “Para se conseguirem os livros condensados
nos Digestos seria preciso despender tesouros e riquezas imensas (...). Graças
a Triboniano, (os juízes) agora têm à sua disposição todas as leis vigentes”
(CORRÊA; SCIASCIA, 1988, p. 305). Angel Latorre observa que a doutrina
desempenhou, de modo semelhante ao que se passou com a jurisprudência,
ora uma função simplificadora, ora uma função amplificadora.
Quando o direito vigente era de extraordinária complexidade, reve-
lando-se muito difícil, para a maioria dos iniciados, o acesso direto às fontes,
havia necessidade de intermediários que expusessem, de maneira sintética e
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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ordenada, as regras fundamentais daquelas compilações. Foi o que se passou


no período intermédio, com o Corpus Juris Civilis e o Corpus Juris Canonici. De
outra forma, com o movimento de codificação, que se iniciou na moderni-
dade, deitando raízes na Idade Contemporânea, tudo tende à simplificação,
não obstante a realidade múltipla e dinâmica, o que exige da doutrina uma
função amplificadora (LATORRE, 1978, p. 93).
De fato, a necessidade de cobrir casos para os quais a generalidade e
abstração da lei não contemplam solução passa a exigir da doutrina um papel
expansivo, auxiliando o juiz, inclusive, no preenchimento das lacunas existen-
tes num direito que se torna mais e mais codificado, distante da tradição. Isso
explica a abundância da literatura de comentários a leis e códigos (LATORRE,
1978, p. 93), chamando atenção, na contemporaneidade, dois métodos de
exposição doutrinária, notadamente o alemão e o francês.
O Direito alemão desenvolve-se na base dos comentários às regras
normativas e das anotações, ao passo que o Direito Francês investe no estu-
do sistemático do Direito, por meio de manuais e tratados. Mas é possível
encontrar, no Direito alemão, tratados (Lehrbücher) destinados ao exame da
jurisprudência e questões práticas, assim como se encontra no Direito francês
códigos anotados reservados aos práticos (DAVID, 1993, p. 132-133).

3 O Primado da Lei e a Doutrina como “Teoria”


É inegável que depois da codificação a doutrina definitivamente perdeu
o papel de fonte vinculante, assistindo-se, a partir da fase do direito racional, no
contexto da chamada dominação legal (para utilizar uma categoria weberiana),
àquilo que pareceria ser o ocaso dos doutrinadores, figura de linguagem que remete
à ideia de desaparecimento do astro no horizonte. Mas a doutrina não perde
o seu prestígio, sobretudo, nas universidades (pensando-se, aqui, na civil law).
E o prestígio da doutrina, particularmente no final da Idade Moder-
na, deve-se ao fato de que aos poucos foi se adaptando a uma compreensão
racionalista do direito, elaboração que não se encontrava presente entre os
romanos. A trajetória para a supremacia da lei, que já se anunciava com a de-
cadência de Roma, período em que o processo legislativo passou a prevalecer
sobre o processo jurisdicional como fonte reveladora do direito, inscreveu a
doutrina na construção de modelos filosóficos e humanistas que desaguaram
no jusnaturalismo do século XVIII.
De fato, finda a Baixa Idade Média, ainda resplandecia o trabalho dos
glosadores, que, a exemplo de Acúrsio e Imério, resgataram o Direito romano,
a partir do direito justinianeu, na sequência das universidades nascentes do
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 55

século XI. Mais precisamente em 1100, na Itália, dá-se o renascimento do


Direito romano, que dominou até o século XVIII, com penetração na Espa-
nha, na Alemanha e, em menor medida, na França, sucedendo ao período dos
glosadores (séculos XII e XIII), a Escola de Orleães (século XIII), a Escola dos
Pós-Glosadores (ou comentadores), dos séculos XIV e XV, e, por último, o
período humanista, nos séculos XVI e XVII (GILISSEN, 1988, p. 337-340).
Na Espanha, em 1499, instalou-se, na época dos reis católicos, um tri-
bunal semelhante àquele instituído pela “Lei das Citações”, promulgada por
Teodósio II e Valentiniano III, no qual as opiniões de Juan Andrés, Baldo de
Ubaldis, Nicolas de Tudeschi e de Bartolo da Sassoferrato tinham força de lei.
Os pareceres de Bartolo, senão obrigatórios, seguiram como fonte subsidiária
da lei mesmo no período de intensa codificação, como se vê nas Ordenações
Manuelinas (Livro II, Tít. 5) e nas Ordenações Filipinas (Livro III, Tít. 64),
achando-se reunida sua obra em dois primorosos volumes, editados em ce-
lebração ao sexto centenário da morte daquele que é considerado chefe da
Escola de Orleães, por iniciativa da Facultà di Giurisprudenza di Perugia2.
Veja-se que até o século XIII, os julgamentos raramente eram reduzi-
dos a escrito, tampouco fundamentados. Essa prática judicial subsistiu até o
século XVIII – fundada na crença de que os tribunais, soberanos, decidiam
por delegação do monarca –, alterando-se, significativamente, no período
coincidente com o apogeu do direito natural racionalista – que substitui o
jusnaturalismo de bases teocráticas –, mais especificamente no século XVIII
(GILISSEN, 1988, p. 395-396).
A partir do século XVIII, na Itália, Portugal, em alguns Länders alemães,
e também na França e nos Países Baixos austríacos (os dois últimos, um pouco
retardatários nesse movimento), a fundamentação dos julgamentos tornou-se
obrigatória. Surge, na França, a princípio, por força de um edito datado de 8
de maio de 1788, a exigência de fundamentação da sentença criminal, com
especificação dos delitos imputados ao réu (GILISSEN, 1988, p. 396), o que,
aliás, coincide com o Período Humanitário de Cesare Beccaria (1735-1793),
autor que sofreu a influência dos enciclopedistas franceses, notadamente de
Diderot e d’Alambert.
Para esse dever de fundamentação das sentenças em muito contribuiu,
decerto, a visão de sistema e método que tomou conta do pensamento produzido
na época (FOUCAULT, 1968, p. 188-196), podendo-se dizer que o dever de
fundamentação participava da pretensão lógico-dedutiva que as ciências rei-

2 Ver textos reunidos de Bartolo em: SEGOLONI, Danilo (Org.). Bartolo da Sassoferrato: studi e documenti per il VI
centenario. Milano: Giuffrè, 1962.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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vindicavam, sobretudo, na passagem para o século XIX, a inspirar, no campo


do direito, a chamada jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), expressão
de uma atitude de adesão formal ao direito legislado, também presente na
Escola da Exegese (França) e na Escola Analítica (Inglaterra).
Para os partidários da jurisprudência dos conceitos, resultante da deterioração
do aspecto histórico da Escola Histórica de Savigny (direito científico) – na
qual acabou por predominar o caráter sistemático do direito –, a tarefa do
juiz é meramente cognitiva, o que se coloca a par com uma visão de ciência
do direito que tem em conta a formulação, classificação e combinação dos
conceitos jurídicos. Dessa perspectiva, a função jurisdicional reduzia-se a
um silogismo, em que das premissas se retira necessariamente a conclusão.
Tal qual se deu no campo do cientificismo – cujas raízes se encontram no
século XVIII, mas que se firmou como atitude intelectual, passando a postular
um conhecimento isento de valores, apenas no século XIX –, o racionalismo
conduziu à crença na figura de um juiz neutro, distante dos aspectos culturais,
históricos e axiológicos, a lembrar a figura do “juge bouche de la loi”, dos
tempos da Escola da Exegese, que não haveria de considerar a tradição (os
costumes haviam sido banidos como traço característico do Antigo Regime).
Ocorre que, depois da Segunda Revolução Industrial – por volta de
1860, cujo marco foi a utilização da eletricidade e do petróleo como maiores
fontes de energia –, a sociedade, cada vez mais complexa e dinâmica, conheceu
novas práticas, a desafiar a inventiva da doutrina, que passou a ocupar papel
central na evolução do direito (GILISSEN, 1988, p. 416). Nesse contexto,
mercê das ideias socialistas e comunistas, surgem os primeiros movimentos
do operariado incipiente, com o que se faz necessária uma interpretação mais
elástica da legislação, em muito contribuindo os juristas, sobretudo, no campo
da responsabilidade civil (PLANIOL, 1949, p. 304-323) e das relações de tra-
balho (LEFRANC, 1975, p. 25-32; EHRLICH, 1986, p. 13, 56-57 e 305-306).
Além disso, importante a participação da doutrina – desenvolvida, so-
bretudo, a partir do ensino nas universidades – na elaboração de preceitos que
serviram de base para a revisão constitucional e legislativa, no início do século
XX, sob o influxo dos ideais de liberdade, igualdade, passando a se orientar o
legislador para a proteção dos mais fracos e para uma crescente intervenção
do Estado nas relações sociais (GILISSEN, 1988, p. 465-468), com o que vai
se tornando mais tênue a linha que divide a esfera pública da esfera privada.
Ao admitir a existência de imperfeições e lacunas no ordenamento
jurídico, uma outra vertente doutrinária, avessa às teses defendidas pela ju-
risprudência dos conceitos, desenvolveu-se sob o signo do cientificismo. Trata-se
da Escola da Livre Investigação Científica, de François Gény (fundada no
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 57

empirismo da sociologia incipiente de Émile Durkheim, associado ao intui-


cionismo de Bergson), que em 1899 publica Méthode d’Interprétation et Sources
en Droit Privé Positif, obra na qual o autor francês afasta a pura aplicação do
método dedutivo ao direito, ao reconhecer a existência de outras fontes além
da lei (GÉNY, 1919a, p. 14-15).
Atento à prática judicial, Gény aponta para os casos em que o ordena-
mento jurídico se revela incompleto, havendo o magistrado, então, de recorrer
ao costume, à autoridade e à tradição (precisamente nessa ordem), desde que
consagrados pela doutrina e pela jurisprudência, que se colocam, ao lado da lei,
como fontes formais do direito, capazes de adequá-lo ao caso concreto (GÉNY,
1919a, p. 237-446; GÉNY, 1919b, p. 1-73). Apenas se malograr o recurso
àqueles instrumentos de integração normativa é que o juiz fará uma livre
investigação científica, expressão que remete a fontes reais, ou seja, aos dados
reais, históricos, racionais e ideais (GÉNY, 1919b, p. 74-220).
Os dados reais e históricos colocam-se no plano dos fatos, cujo conheci-
mento demanda a aplicação dos métodos do positivismo científico (os mesmos
das ciências da natureza), ao passo que os dados racionais (que remetem à na-
tureza das coisas e dos homens) e os dados ideais (princípios jurídicos exigidos
pela situação histórica real e concreta, captados pela intuição) estão no plano
normativo, a inspirar a conduta do magistrado, do legislador e do doutrinador.
Os dados estão postos para análise em qualquer campo do conhecimen-
to, mas ao editor da norma e ao intérprete caberá elaborar suas construções, a
partir deles, visando à realização das finalidades do direito, sempre à luz do
justo equilíbrio entre as partes, da ordem e do interesse público. Em outras
palavras, o juiz deve obediência à autoridade e tradição reconhecidas pela
doutrina e jurisprudência, as quais, ao lado da lei, são fonte por excelência do
direito. Se nelas não encontrar resposta, haverá de investigar recorrendo à via
racional e/ou à via intuitiva. Eis aqui o dualismo metodológico de François
Gény (RABAULT, 1997, p. 36).
Por último, nessa perspectiva que apela para o pluralismo das fontes
do direito, cabe lembrar o sociologismo jurídico da Europa, cuja origem se
encontra nos escritos de Ehrlich e na Escola do Direito Livre, a qual reúne
pensadores, como Kantorowicz, Fuchs e Isay. Conquanto se reconheça tam-
bém no Direito inglês a importância da obra de juristas e dos profissionais
do direito – estes reunidos em instituições, do que são exemplos históricos o
Year Book (1284), os Law Reports, documentação mais importante de juízes e
advogados (ainda hoje), e a Restatements of the Law, consolidação de casos e de
legislação iniciada em 1923 (GILISSEN, 1988, p. 211-213) –, não interessa,
aqui, o exame das concepções anglo-saxônicas, pois nossos estudos estão
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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voltados ao entendimento do declínio da doutrina na elaboração jurisdicional


brasileira contemporânea, ocorrendo apenas lembrar que o Código de Processo
Civil de 2015 deu força aos precedentes, aproximando-se daquela tradição.
Mas antes de tratarmos do impacto da ideia de precedente (no enfoque
da Lei Federal nº 13.105/2015) sobre a doutrina, convém discorrer acerca do
chamado positivismo metodológico, identificando o contexto histórico em que
ele se desenvolveu, precisamente, porque a noção de precedente – no sistema de
vinculação vertical das decisões judiciais estabelecido pelo Código de Processo
Civil de 2015 – opera do ponto de vista de uma sucessão de competências.

4 O Ocaso da Doutrina no Horizonte da Ciência Normativa


Se é certo que o movimento de codificação não pôs fim ao prestígio da
doutrina, muito embora dela retirasse o lugar de fonte formal do direito, tem-
se de reconhecer que o formalismo jurídico, mormente o positivismo metodológico,
ao afastar o racionalismo das teses jusnaturalistas, o empirismo da Escola da
Livre Investigação Científica e a crítica ao irracionalismo da decisão, contida no
sociologismo jurídico de Hermann Isay (para ficar num exemplo), acaba não só
destronando de vez a doutrina como fonte do direito como também apon-
tando para o fato de que ela não constitui propriamente um modelo teórico.
Sem aprofundar o exame do positivismo metodológico, além do estri-
tamente necessário à demonstração da tese da perda da relevância da doutrina
na elaboração dos tribunais brasileiros, pode-se dizer que esse modelo teórico
surge, precisamente, no contexto da perda das tradições, da exaltação do novo
no lugar do sagrado, da racionalidade burocrática no lugar do costume, da
multiplicidade de valores em vez de um sistema de valoração único e homo-
gêneo, de um tempo em que se assiste ao eclipse da razão, para reproduzir a
expressão de Horkheimer, que dá título a uma de suas obras.
É precisamente esse novo tempo – em que a esfera do econômico se
especializa na base do surgimento da sociedade de classes, das ideologias no
campo da estratificação social, do aparecimento de formas mais abstratas
de propriedade, da família nuclear, da laicização, da transição demográfica
(migração do meio rural para o urbano) – que exige um direito mais lábil,
transitório, maleável, posto por decisão, papel que o formalismo jurídico irá
desempenhar plenamente, com a sua metodologia infensa à moral e a supos-
tos condicionamentos sociais do direito (no que se afasta, a um só tempo, da
tradição iluminista e do positivismo sociológico).
Na construção de Kelsen – sob o ponto de vista da estática jurídica –, a
vontade é apenas o resultado de uma operação lógica que ele conhece como
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 59

imputação, noção que permitirá definir o conceito de norma (enunciado por


meio do qual o legislador atribui sanção à determinada conduta), afastando, ao
mesmo tempo, a importância que a palavra “dever” assume no Direito Natural.
De fato, o dever jurídico, para Kelsen, nada mais é que a conduta oposta àquela
para a qual o legislador atribui a sanção, vale dizer, conduta oposta ao ilícito,
este sim conceito fundamental, o que explica a referência da estática jurídica
a uma teoria da norma (KELSEN, 1979, p. 163-176).
A partir daí a teoria kelseniana desenvolve uma cadeia de conceitos-
chave que envolve noções como direito subjetivo (dever jurídico reflexo),
responsabilidade, capacidade, relação jurídica, sujeito jurídico, etc., tudo na
base do corte epistemológico entre ser e dever-ser (KELSEN, 1979, p. 177-265),
passando a formular, agora no campo da chamada dinâmica jurídica, mas ainda a
partir da noção de norma (com o que o modelo mantém sempre aberta a janela
para a estática jurídica), o conceito de “competência”, que coloca em relevo o
exame do ordenamento jurídico (KELSEN, 1979, p. 267-376).
Nessa medida, a Teoria Pura de Kelsen, como já se acentuou, concebe
um direito expurgado de influências sociológicas, políticas e éticas, que se
dedica ao exame da norma (único objeto da ciência jurídica), por meio de
enunciados (proposição jurídica) que se põem no campo do dever-ser (KEL-
SEN, 1979, p. 93-107, 116, 124-136 e 148). Trata-se, enfim, de uma ciência
social normativa, que constitui o seu próprio objeto, expressão de um poder
racional legal, que surge no contexto das sociedades complexas.
Não por outra razão, Kelsen coloca o termo “fontes do direito” entre aspas,
esclarecendo que “os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, pareceres
de especialistas e outros” não são fontes do direito positivo, por não integrarem
a ordem jurídica. A ideia de fonte do direito, nos limites de uma Teoria Pura,
remete ao fundamento de validade do ordenamento jurídico, apresentando-se
a constituição como “fonte das normas jurídicas produzidas por via legislativa
ou consuetudinária; e uma norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica
e que é representada por uma norma individual” (KELSEN, 1979, p. 323).
Eis aqui reproduzida nessa passagem – como em tantas outras da Teoria
Pura – a imagem da pirâmide normativa, ocorrendo lembrar, nesse sentido,
que “a decisão judicial também pode ser considerada como fonte dos deveres
ou direitos das partes litigantes (...) ou da atribuição de competência ao órgão
que tem de executar esta decisão” (KELSEN, 1979, p. 323), decisão que se
aplica ao caso concreto. Kelsen só não concebe a função integrativa da sen-
tença judicial, a menos que o ordenamento jurídico contemple a doutrina,
os costumes, e mesmo os princípios gerais do direito e o direito comparado,
como direito válido. Significativa, nesse aspecto, a afirmação do jusfilósofo
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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austríaco, no sentido de que “fonte do Direito só pode ser o Direito” (KEL-


SEN, 1979, p. 323).
Dessa maneira, Kelsen, que já refutara o jusnaturalismo e o Direito
Puro (em outro sentido) de Edmond Picard – jurista belga, que colocava a
teoria acima da norma legal (PICARD, 1954, p. 71) –, afasta-se também da
Escola da Livre Investigação Científica do Direito, da Escola do Direito Livre
e das diversas formas de sociologismo jurídico, importando registrar, nesse
último contexto, que apesar de Kantorowicz inadmitir a atuação do juiz e da
doutrina acima da lei – diferentemente do que se passa com Ehrlich (1986,
p. 19-21, 37, 70, 77, 103, 104 e 138-142), por exemplo –, reconhece o papel
dos instrumentos de integração normativa, além da atuação de elementos
extranormativos quando o direito posto for duvidoso ou quando não houver
ditado uma solução que a lei reclama (KANTOROWICZ, 1949, p. 363).
Para Kelsen, assim como a Constituição apenas determina o procedi-
mento legislativo que se tenha de seguir, sem dispor sobre o conteúdo das leis,
a norma tampouco indica ao juiz como haverá de julgar. Disso se retira que
ao juiz é dado interpretar, sucedendo apenas que o conteúdo da interpretação
(assim como se passa com o conteúdo da legislação) não é objeto da Teoria
Pura do Direito (KELSEN, 1979, p. 466-468).
Com efeito, a doutrina produzida pelos professores e demais profissio-
nais do direito, conquanto integre a própria formação jurídica dos magistrados,
desde a universidade, é apenas uma modelagem do jurídico, um esquema de
interpretação da norma editada pelo legislador (lei), da norma editada pelo
juiz (sentença) e das práticas sociais reconhecidas pelo ordenamento jurídico
(costume), esquema de interpretação distinto, todavia, daquele presente na
norma (KELSEN, 1979, p. 20-21), porque a doutrina, diferentemente do
que se passa com a norma, não é prescritiva; ela não estabelece uma ordem
de conduta, tampouco uma ordem de competência (KELSEN, 1984, p. 68).
Nesse contexto, não se confunde a ciência normativa do direito, que se
põe no plano epistemológico, com o trabalho prático dos professores e demais
profissionais do direito, podendo-se dizer que aquilo que se conhece como
“doutrina jurídica” nada mais é que um complexo argumentativo. Embora
esses planos muitas vezes se confundam, pois, no limite, a chamada dogmática
jurídica recorre a categorias que estão no plano zetético, certo é que a doutrina
não é uma teoria com função primariamente descritiva (ou compreensiva).
Longe da heurística, da problematização, os doutrinadores se dedicam – tal
qual os magistrados – à solução de problemas de ordem prática, com o que
a doutrina cumpre uma função social distinta daquela desempenhada pela
ciência (VIEHWEG, 1997, p. 122-123).
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 61

Daí ocorre que muitas vezes se pode encontrar na doutrina soluções


diferentes, quando não opostas, para o mesmo problema prático, situação
em que tanto o advogado (buscando influenciar o juiz) quanto o próprio
magistrado (para justificar o acerto da sua decisão), ainda que sem invocar
expressamente o prestígio do doutrinador, acabam por recorrer ao emprego
falacioso do argumento de autoridade, no mais das vezes, sem a consciência
disso, pois foram formados nessa tradição.
De fato, quando se tem duas autoridades igualmente competentes em
determinado assunto (utilizando-se aqui os termos autoridade e competência no
terreno da argumentação, e não no plano jurídico), não se pode injustificada-
mente optar pela opinião de uma delas em detrimento da posição sustentada
pela outra, incidindo-se, quando assim se faz, na chamada falácia do argumento
de autoridade (SALMON, 1984, p. 94), argumento especioso que também se
vê presente quando se invoca a posição de um tribunal em detrimento da
posição de outro, exceção feita aos casos de orientação vinculante.
É precisamente diante da necessidade de organização do consenso nas
sociedades complexas – e especialmente das sociedades do capitalismo tardio,
a exemplo da brasileira – que a doutrina vem perdendo, de tempos para cá, o
seu prestígio. A cultura representa a subjugação do mundo físico pela técnica
(embora importante também se revele o controle do homem sobre a razão
técnica), e a doutrina, como diretriz de solução dos conflitos, tem se revelado
insuficiente, considerada a expectativa de segurança e certeza jurídica existente
no direito de origem liberal-burguesa.
É certo que a tecnologia digital tornará previsível o desfecho dos jul-
gamentos, mudança já em curso; é certo também que o homem, mesmo
nesse cenário, não prescindirá do ato de interpretar, sempre estimativo, e não
meramente cognitivo, porque o direito é, sobretudo, uma ciência do espírito.
Ao jurisdicionado será dado saber qual a probabilidade de o juiz, sob certas
condições, decidir o caso neste ou naquele sentido. Mas a prognose, de qual-
quer forma, será feita na base do universo de julgamentos.
Por isso, busca-se, cada vez mais, a uniformidade possível de soluções
para problemas que estão no campo da praxeologia, problemas e soluções que
passam a ser catalogados e interpretados segundo uma base de dados que a
doutrina, apesar de todo o seu refinamento analítico (ao longo do tempo foi
tomando de empréstimo alguns elementos que se acham no campo da lógica
formal e da lógica material), não consegue desenvolver, mesmo quando se pen-
sa nos códigos anotados e comentados, legado da tradição do Direito alemão.
Reside precisamente no apontado déficit de prestação do sistema da
doutrina em relação ao sistema jurisdicional um dos fatores de certa hesitação dos
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
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juízes na solução do caso concreto, a gerar considerada dose de incerteza na


produção jurisdicional brasileira, razão de ser da desconfiança da tecnocracia
na capacidade de resolução dos conflitos por parte do Judiciário.

5 O Crepúsculo da Doutrina Brasileira


Essa figura de linguagem permite entender, do ponto de vista do modelo
teórico aqui desenvolvido (normativo-dogmático e empírico), que a doutrina
– cujo ocaso se verificou quando se deu a aparição da ciência normativa no
horizonte do direito – vive aquele momento da claridade frouxa que ainda
persiste depois do poente.
Dessa perspectiva, ocorreria a alguém sustentar o paradoxo consistente
numa doutrina que aponta para o fato de encontrar-se superado o paradigma
da doutrina. Mas o desfazimento dessa aparente contradição faz-se precisa-
mente na base da distinção estabelecida, dentre outros, por Viehweg, como
apontada linhas acima, entre o nível do objeto do direito (a), o nível da teoria
do direito, a saber, a doutrina (b), e o nível da teoria crítica sobre a doutrina
(c), este último localizado no campo da filosofia e da sociologia do direito.
Enfim, trata-se de níveis metalinguísticos diferentes (GRÜN;
FARRELL, 1976, p. 69). Fosse de outra forma, seria possível sustentar, como
fazem alguns (PARESCI, 1968, p. 865-870), que, sendo a norma hipotética de
Kelsen, concebida pela ciência pura do direito, fundamento de todo o sistema,
no limite, a doutrina, daquele ponto de vista, seria fonte formal do direito.
Diante disso, cumpre registrar que o trabalho aqui desenvolvido não
tem sentido prático, mas especulativo. Não se intenta conciliar pontos de vista
diferentes ou opostos acerca dos problemas levantados, mas elaborar a crítica
sobre a maneira como juízes e doutrinadores trabalham a norma, seja editada
pelo legislador seja editada pelos tribunais.
A instituição de um Superior Tribunal de Justiça, em 1988, veio para
atender à necessidade de criação de um órgão de cúpula da justiça local e
federal, em busca da unidade da jurisdição do País, pois mesmo as súmulas,
resultantes da uniformização de jurisprudência, vinculavam apenas no limite
da jurisdição dos respectivos tribunais estaduais e federais.
Mas o sistema processual, conquanto atento à vocação jurisdicional do
Superior Tribunal de Justiça, ao qual incumbe o papel de manter a autoridade
e a unidade da lei federal, não dispunha de mecanismos eficientes para impe-
dir que a justiça estadual ou federal julgasse em desacordo com a orientação
firmada por aquele órgão de cúpula, cabendo apenas a reclamação, o que de
resto também sucedia com as decisões do Supremo Tribunal Federal, ao qual
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 63

passou a competir, após a Emenda Constitucional nº 45, de 30.12.04, a edição


de súmulas vinculantes.
A Emenda Constitucional nº 45/04 também atribuiu às decisões da
Suprema Corte, em sede de ação direta de inconstitucionalidade e de ação
declaratória de constitucionalidade, eficácia contra todos e o poder de vincular
os demais órgãos e instâncias jurisdicionais, além da Administração Pública,
ocorrendo lembrar a instituição da repercussão geral (regulada por lei apenas
no ano de 2006, para entrar em vigor no ano de 2007), cujo julgamento es-
tabelece o posicionamento a ser adotado pelos tribunais inferiores no exame
dos casos relativos à mesma questão de direito.
Enfim, a jurisprudência dos tribunais superiores (abstraindo aqui, diante
do recorte feito no presente estudo, da atividade jurisdicional desenvolvida
pelo Tribunal Superior do Trabalho, Superior Tribunal Militar e Tribunal
Superior Eleitoral) passou a ser fonte do direito, ocorrendo apenas que, a
partir do Código de Processo Civil de 2015, os mecanismos de verificação,
controle e efetividade tornaram-se mais eficazes, tudo na tentativa de garantir
a prestação jurisdicional uniforme e rápida.
Nesse sentido, além do estabelecimento de uma série de instrumentos
para a manutenção da estabilidade, integralidade e coerência da jurisprudên-
cia dos tribunais locais, a exemplo do Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas e do Incidente de Assunção de Competência – a par da afetação
para julgamento, pelo STF ou pelo STJ, de recursos repetitivos, da arguição
de inconstitucionalidade e da reclamação, estes já existentes no Código an-
terior, que passou por sucessivas reformas –, procedeu-se ao aprimoramento
das estratégias de garantia da vinculação vertical das decisões, vinculação que
não por acaso sugere a configuração de uma pirâmide, tal qual se mostra
representada a dinâmica jurídica em Kelsen.
E aquelas estratégias de controle estão amarradas de tal forma que se
tornou difícil um pronunciamento judicial independente, quer na base da
doutrina, dos princípios gerais do direito ou da equidade, observando-se
que uma decisão, sentença ou acórdão que injustificadamente se afaste das
súmulas, jurisprudência ou precedente invocado pela parte não se considerará
fundamentado, conforme decorre de expressa previsão legal.
De mais a mais, a decretação de inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo, por parte do Supremo Tribunal Federal, nas execuções contra a
Fazenda Pública, espraia seus efeitos sobre o título judicial fundado naquela
lei ou ato, constituído posteriormente à manifestação da Corte constitucional,
ocorrendo da mesma forma quando a Corte considera qualquer lei ou ato
normativo incompatível com a Constituição, mesmo em controle difuso de
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
64

constitucionalidade. Se a decisão do Supremo Tribunal Federal for posterior


à formação do título, cabe ação rescisória.
E nem se trata de questionar a constitucionalidade desse sistema de
vinculação vertical das decisões judiciais, pois se é certo que somente a lei
obriga no sistema constitucional brasileiro, igualmente certo é afirmar que a
lei existe, mais precisamente a Constituição Federal, lei de todas as leis, con-
siderada a Reforma do Judiciário, instaurada pela EC nº 45/04, e o Código
de Processo Civil, que tornou obrigatório o precedente judicial, no sentido
que a lei processual civil dá à palavra.
Não se venha dizer que caberia à doutrina, no limite, a definição do
que poderia ser essa vinculação vertical das decisões judiciais, pois se houver
dúvida, serão os tribunais superiores a dizer a lei de maneira incontrastável,
operando, muitas vezes, a própria modificação do texto legal, como se deu
no julgamento do Superior Tribunal de Justiça, a propósito da taxatividade
do rol de hipóteses em que o legislador autoriza o agravo de instrumento
(REsp 1.704.520).

6 Considerações Finais
Identifica-se uma tendência de que a doutrina, fonte primacial do di-
reito em Roma, que viveu momentos áureos até o final do século XVIII, fique
cada vez mais circunscrita, entre nós brasileiros, ao ambiente universitário e
acadêmico, assim mesmo, num espaço que se vê paulatinamente reduzido,
chamando atenção o fato de muitas publicações serem feitas por meio de papers
ou de postagens na internet, o que explica, à luz também de outros fatores, a
crise do mercado editorial, particularmente na área jurídica.
Veja-se que até o primeiro quartel do século XX os alunos do curso
de direito ainda liam a doutrina produzida por juristas franceses e italianos.
Progressivamente, os autores nacionais foram ganhando espaço, com a pro-
dução de tratados, comentários, manuais e compêndios. Poucos liam na fonte,
passando a doutrina dos juristas brasileiros a ganhar prestígio, como se vê
no estudo feito por Recaséns Siches acerca do pensamento filosófico, social,
político e jurídico na América Latina (SICHES, 1946, p. 428-441). Com a
massificação crescente do ensino, que atingiu também as universidades a
partir do início da década de 1970, passou-se a publicar doutrina nacional de
segunda mão e, hoje, “resumos do resumo”.
Os juízes mais jovens são fruto dessa geração, podendo-se dizer que
muitos magistrados que ocupam os tribunais superiores não tiveram contato
com o estudo do latim. Sem a pretensão de rigor científico – que envolveria
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 65

a seleção de espaço amostral representativo, vale dizer, suficiente e variado,


com tratamento estatístico, sobretudo para a consideração de variáveis, além da
adequada análise de dados e discussão dos resultados (DAVIS, 1976, p. 13-50)
–, pode-se afirmar que apenas 19% dos 360 desembargadores que integram
o Tribunal de Justiça de São Paulo valem-se de doutrina para fundamentar
os votos elaborados.
O levantamento por mim feito em 2018 – que se poderia melhor deno-
minar de apanhado – se não permite a confirmação, do ponto de vista do rigor
científico, da hipótese de trabalho proposta no presente estudo, aponta para o
fato de que uma parcela considerável (em termos quantitativos) da produção
jurisdicional dos tribunais estaduais deixa de levar em conta a doutrina para
o julgamento da causa3.
Enfim, vivemos tempos de vinculação normativa das decisões judiciais,
política legislativa que encontra justificação no próprio formalismo jurídico de
tradição europeia, podendo-se dizer que a opinião dos doutos, antes conside-
rada fonte do direito, em bem pouco tempo correrá o risco de ver-se reduzida
a simples palpite, com o que o caráter cultural do direito vai se perdendo.
Em breve, advogados e juízes se transformarão em exímios conhecedores dos
repositórios da superior jurisprudência (tanto quanto das centenas de temas
objeto de suspensão dos processos por parte dos tribunais superiores e dos
órgãos especiais dos tribunais estaduais e federais), cumprindo-se aqui, agora
em termos de vaticínio, o dito de Julio Germán von Kirchmann, segundo
o qual três palavras retificadoras (agora não mais do legislador) e bibliotecas
inteiras se converterão em papéis inúteis (KIRCHMANN, 1949, p. 267-268).
Se esse processo que a tecnocracia costuma chamar de “mecanismos
de gestão de processo” trouxer agilidade para a prestação jurisdicional, talvez
terá valido a pena. Mas nem quanto a isso temos certeza.

TITLE: The twilight of jurists in the Brazilian jurisdictional creation.

ABSTRACT: This article consists of a critical reflection, guided by historical and theoretical rationality
(normative/dogmatic and empirical), about the decline of jurists’ opinions in the horizon of normative
sciences, which took place in the transition from the 19th to the 20th century, as a result of modernizing
societies, a phenomenon that has been deepened in Brazil, on the basis of the legal formalism of European
tradition, with the establishment of the system of vertical binding of judicial decisions, outlined, in principle,

3 O número de ações demandadas no judiciário estadual paulista corresponde a 26% do total de processos em an-
damento em toda a justiça brasileira, incluindo Cortes federais e tribunais superiores, segundo o Relatório Justiça
em Números 2018, produzido pelo Conselho Nacional da Justiça (disponível em: <cnj.jus.br>. Acesso em: 22 jul.
2019). A propósito da afirmação feita no parágrafo que remete a esta nota, diga-se que, embora não se veja justificada
a extensão feita a todos os tribunais estaduais por um método rigorosamente indutivo, mais especificamente, por
uma autêntica generalização estatística, inexiste razão para supor que em outros tribunais estaduais a realidade seja
diferente daquela que se vê em São Paulo, à falta de uma variável (singularidade regional) relevante.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 95 – Mar-Abr/2020 – Doutrina
66

in the Judiciary Reform (Constitutional Amendment no. 45/04), but with aspects better explained in the
Code of Civil Procedure of 2015. Nowadays, no judge or court can decide without taking into account
the guidance of the higher courts, since a rigid normative control mechanism has been established, all
in the name of stability, completeness, and coherence of the jurisdictional system. Thus, the positioning
of jurists tends to be practically limited to the university environment (here also with signs of disrepute)
and to the academic sphere.

KEYWORDS: Authorities. Science of Law. Jurisdiction. Precedent. Binding.

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Recebido em: 24.07.2019


Aprovado em: 10.09.2019

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