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Artigo - Rodovalho-Reis - Testemunhas de Jeová - CIV102 - Art.2

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ISSN 1807-0930

Revista Magister de Direito


Civil e Processual Civil
Ano XVII – Nº 102
Maio-Jun 2021

Repositório Autorizado de Jurisprudência


Superior Tribunal de Justiça – nº 63/2008

Classificação Qualis/Capes: B1

Editor
Fábio Paixão

Coordenadores
Anderson Schreiber – Daniel Amorim Assumpção Neves – Débora Brandão
Fernanda Tartuce – Flávio Tartuce

Conselho Editorial
Ana Beatriz Presgrave – Ana Luiza Maia Nevares – Angelica Carlini
Arlete Aurelli – Carlos Nelson Konder – Cecília Asperti – Cesar Calo Peghini
Cláudia Lima Marques – Ênio Santarelli Zuliani – Eroulths Cortiano Junior
Fredie Didier Junior – Giselda M. F. Novaes Hironaka – Gisele Góes
Gustavo Tepedino – Heloísa Helena Barboza – José Fernando Simão
José Rogério Cruz e Tucci – Marco Aurélio Bezerra de Melo – Marco Jobim
Maria Helena Diniz – Marilia Pedroso Xavier – Maurício Bunazar
Pablo Malheiros Cunha Frota – Pablo Stolze Gagliano – Rodolfo Pamplona Filho
Rodrigo Reis Mazzei – Rolf Madaleno – Sílvio de Salvo Venosa
Susana Henriques da Costa – Trícia Navarro
Colaboradores deste Volume
Bruno Reis – Diego Reschette Spagnolli – Fernando Moreira Freitas da Silva
Giuliano Máximo Martins – Guilherme Luis Hack Lamy
José Américo Zampar Júnior – Leonardo Fernandes Ranña
Manuella Bonavides Amaral – Marcelo Abelha Rodrigues – Marcos Ehrhardt Jr.
Michel Canuto de Sena – Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos
Rita Vasconcelos – Thiago Rodovalho – Vinicius Silva Lemos
Vitor Henrique Melo de Albuquerque
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil
Publicação bimestral da LexMagister à qual se reservam todos os direitos, sendo vedada a
reprodução total ou parcial sem a citação expressa da fonte.

A responsabilidade quanto aos conceitos emitidos nos artigos publicados é de seus autores.

Artigos podem ser encaminhados via site (http://www.lexmagister.com.br/EnviarArtigos.aspx).


Não devolvemos os originais recebidos, publicados ou não.

As íntegras dos acórdãos aqui publicadas correspondem aos seus originais, obtidos junto ao
órgão competente do respectivo Tribunal.

Esta publicação conta com distribuição em todo o território nacional.

A editoração eletrônica foi realizada pela LexMagister, para uma tiragem de 5.000 exemplares.

Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil


v. 1 (jul./ago. 2004)-.– Porto Alegre: LexMagister, 2004
Bimestral.
v. 102 (maio/jun. 2021)
Coordenadores: Anderson Schreiber, Daniel Amorim Assumpção Neves, Débora Brandão, Fernanda
Tartuce e Flávio Tartuce.

ISSN 1807-0930

1. Direito Civil – Periódico. 2. Processo Civil – Periódico.

CDU 347(05)
CDU 347.9(05)

Ficha catalográfica: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273


Capa: Apollo 13

LexMagister
Diretor Executivo: Fábio Paixão

Rua 18 de Novembro, 423 Porto Alegre – RS – 90.240-040


www.lexmagister.com.br magister@editoramagister.com
Serviço de Atendimento – (51) 3237.4243
Apresentação

Em tempos de tantas perdas e incertezas, é com enorme satisfação que


apresento esta edição da nossa revista, com artigos científicos que trazem
maior segurança não apenas na prática, mas, também, em nossos estudos do
Direito Civil e Processual Civil.
“Observações sobre o incidente de desconsideração da personalidade
jurídica” já inicia a obra com o peso e a realidade da prática processual com a
visão metódica necessária para o estudo do tema. Marcelo Abelha Rodrigues
escreve com simplicidade e eficiência usual, facilitando o entendimento do
Direito Processual Civil.
Em seguida, “Da ofensa à dignidade da pessoa humana perpetrada pelas
operadoras de planos de saúde que se recusam a fornecer o tratamento mais
adequado aos cooperados que confessem a religião das Testemunhas de Jeová:
uma análise de casos”, assinado por Thiago Rodovalho e Bruno Reis, traz
estudo prático sobre as barreiras encontradas para tratar de maneira efetiva e
humana pessoas que utilizam sua liberdade religiosa e fazem determinadas
escolhas relativas a tratamentos sanguíneos. Artigo democraticamente impor-
tante, pois toca desde a base do Direito até o dia a dia de parte da sociedade.
Ademais, é fundamental que o assunto seja debatido à exaustão para que seja
suficientemente amadurecido e futuramente legislado.
“A medida executiva atípica em aproximação a aspectos do direito
material” traz uma ciência jurídica fundamental para a prática do Direito. A
análise dos limites no direito material para a aplicação do direito processual,
respeitando os princípios e características de cada ramo. Marcos Ehrhardt Jr.
e Vitor Henrique Melo de Albuquerque cooperaram para mais um artigo
iluminador.
Em “O recurso do julgamento do incidente de assunção de competên-
cia, a admissibilidade positiva e a tramitação em tribunal superior”, Vinicius
Silva Lemos analisa o incidente de assunção de competência até o fim do seu
processo de conhecimento de maneira clara e objetiva.
“A transmissibilidade da obrigação de prestar alimentos: questões con-
trovertidas”, por Rita Vasconcelos, Diego Reschette Spagnolli e Guilherme
Luis Hack Lamy, inicia direito de família e das sucessões, nesta edição, com
assunto de destaque analisado com maestria. Estudando posições doutrinárias
divergentes e jurisprudência do STJ, é um artigo completo e esclarecedor
diante dos equívocos acerca das diversas classificações dos alimentos e suas
peculiaridades.
“O depoimento especial de crianças e de adolescentes durante a pan-
demia da Covid-19: um diálogo entre proteção e memória”, de Giuliano
Máximo Martins, Fernando Moreira Freitas da Silva, Michel Canuto de
Sena e Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos, mostra as questões da
participação de crianças e adolescentes em depoimentos por videoconferência
durante a atual pandemia. Artigo que inspira o pensamento e a análise sobre
o uso da tecnologia que nem sempre é facilitador com a frieza e a distância
dos seus aparelhos.
Em “Medidas liminares contra o Poder Público: vedações e suspensão”,
José Américo Zampar Júnior aprofunda-se num tema complexo de maneira
direta e simples.
Por último, “Conflito de coisa julgada: uma análise da evolução juris-
prudencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça”, de Leonardo Fernandes
Ranña e Manuella Bonavides Amaral, trata de estudo de jurisprudência sobre a
perenidade da coisa julgada quando há outra contrária a ela. Questão relevante
e muito bem empregada no artigo que finaliza esta edição.

Débora Brandão
Sumário
Doutrina
1. Observações sobre o Incidente de Desconsideração da Personalidade
Jurídica
Marcelo Abelha Rodrigues........................................................................................... 7
2. Da Ofensa à Dignidade da Pessoa Humana Perpetrada pelas Operadoras
de Planos de Saúde que se Recusam a Fornecer o Tratamento mais
Adequado aos Cooperados que Confessem a Religião das Testemunhas
de Jeová: uma Análise de Casos
Thiago Rodovalho e Bruno Reis................................................................................ 32
3. A Medida Executiva Atípica em Aproximação a Aspectos do Direito
Material
Vitor Henrique Melo de Albuquerque e Marcos Ehrhardt Jr......................................... 50
4. O Recurso do Julgamento do Incidente de Assunção de Competência, a
Admissibilidade Positiva e a Tramitação em Tribunal Superior
Vinicius Silva Lemos................................................................................................ 74
5. A Transmissibilidade da Obrigação de Prestar Alimentos: Questões
Controvertidas
Rita Vasconcelos, Diego Reschette Spagnolli e Guilherme Luis Hack Lamy............... 103
6. O Depoimento Especial de Crianças e de Adolescentes Durante a Pandemia
da Covid-19: um Diálogo entre Proteção e Memória
Giuliano Máximo Martins, Fernando Moreira Freitas da Silva,
Michel Canuto de Sena e Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos..................... 116
7. Medidas Liminares contra o Poder Público: Vedações e Suspensão
José Américo Zampar Júnior................................................................................... 131
8. Conflito de Coisa Julgada: uma Análise da Evolução Jurisprudencial no
Âmbito do Superior Tribunal de Justiça
Leonardo Fernandes Ranña e Manuella Bonavides Amaral...................................... 155

Jurisprudência
1. Superior Tribunal de Justiça – Contrato de Compra e Venda de Obra de
Arte “A Caipirinha”, de Tarsila do Amaral. Negócio Jurídico Simulado.
Reenquadramento Jurídico. Impossibilidade. Necessidade do Reexame
do Contexto Fático-Probatório. Incidência da Súmula nº 7 desta Corte.
Reconhecimento de Simulação em Sede de Embargos de Terceiro. Causa
de Nulidade do Negócio Jurídico. Matéria de Ordem Pública que Pode Ser
Conhecida até Mesmo de Ofício pelo Juiz
Rel. Min. Moura Ribeiro........................................................................................ 181
2. Superior Tribunal de Justiça – Juízo de Prelibação Negativo. Decisão do
Tribunal de Origem. Impugnação Específica. Ausência
Rel. Min. Gurgel de Faria...................................................................................... 193
3. Superior Tribunal de Justiça – Cumprimento de Sentença. Penhora
Via Bacenjud. Saldo Remanescente em Conta Corrente. Proventos de
Aposentadoria. Não Cabimento. Precedentes do STJ
Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino...................................................................... 196

Diretrizes para Submissão de Artigos Doutrinários...................................... 203


Doutrina

Da Ofensa à Dignidade da Pessoa Humana


Perpetrada pelas Operadoras de Planos
de Saúde que se Recusam a Fornecer
o Tratamento mais Adequado aos
Cooperados que Confessem a Religião das
Testemunhas de Jeová: uma Análise de
Casos

Thiago Rodovalho
Professor Titular da PUC-Campinas (Graduação e Mestrado);
Membro do Corpo Docente Permanente do Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD); Doutor e Mestre
em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP, com Estágio Pós-Doutoral no Max-Planck-
Institut für Ausländisches und Internationales Privatrecht;
e-mail: rodovalho@rodovalho.pro.br.

Bruno Reis
Mestre em Direito pela PUC-Campinas com Estágio Docência
em Processo Civil; Especialista em Direito Processual Civil
pela Escola Paulista da Magistratura (EPM); Especialista
em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos
Tributários (IBET); Graduado em Ciências Sociais e Jurídicas
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-
Campinas); e-mail: bruno_reispinto@yahoo.com.br.

RESUMO: O presente trabalho busca, partindo da análise de duas decisões


conflitantes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que retratam a (des)
proteção do consumidor que professa a religião denominada Testemunha de
Jeová e que, por convicção religiosa, se recusa a ser submetido a tratamentos
que envolvam sangue ou hemoderivados, tecer reflexões sobre o princípio da
preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral,
que, com outros, rege o Sistema Único de Saúde brasileiro; sobre o direito fun-
damental à liberdade religiosa; e sobre o fundamento republicano da dignidade
humana, em um ambiente de possível aplicação da teoria do diálogo das fontes.

PALAVRAS-CHAVE: Liberdade Religiosa. Direitos Fundamentais. Políticas


Públicas. Dignidade da Pessoa Humana. Testemunhas de Jeová.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 33

SUMÁRIO: Introdução. 1 O Caso Testemunha de Jeová I. 2 O Caso Teste-


munha de Jeová II. 3 Da Humanização das Atividades do Médico e do Juiz à
Luz do Princípio da Preservação da Autonomia das Pessoas na Defesa de sua
Integridade Física e Moral. 4 Do Direito Fundamental à Liberdade Religiosa e
do Fundamento Republicano da Dignidade Humana em Cotejo com a Teoria
do Diálogo das Fontes. 5 O Caso Específico das Testemunhas de Jeová. 6 Cotejo
entre os Dois Posicionamentos Adotados pelo TJSP nos Casos sob Análise.
Curtas Reflexões sobre a Imprescindível Humanização do Direito à Luz da
Dignidade da Pessoa Humana. Conclusão. Referências.

Introdução
Em 25 de setembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, por unanimi-
dade, reconheceu a existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário
1.212.272, que visa a discutir a possibilidade de uma paciente, que professa a
religião Testemunhas de Jeová, de submeter-se a um procedimento cirúrgico
de alto risco (substituição da válvula aórtica), sem que ao Estado caiba a fa-
culdade de se utilizar do procedimento de transfusão sanguínea em eventual
intercorrência médica, ao argumento de que as alternativas disponíveis no
SUS não seriam compatíveis com a fé professada pela paciente.
Noutro norte, vemos duas decisões conflitantes, uma proferida em sede
de primeira e a outra de segunda instância de jurisdição, ambas pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que debatem se às operadoras de
planos de saúde é conferido o direito de não custear tratamento alternativo,
quando existente – que não passe pela via da técnica transfusional ou pela
utilização de hemoderivados – para cooperados que professam a religião de
Testemunhas de Jeová.
Se a primeira notícia revela uma antiga (porém, ainda atual) discussão
acerca da preservação dos valores daqueles que professam a religião denomi-
nada Testemunhas de Jeová, no âmbito do direito público, os dois últimos
casos revelam similar problemática, travada, agora, não mais diretamente
entre o Estado e o particular, mas, sim, entre dois particulares (em que pese
a função pública inerente aos planos de saúde). E esse último cenário, pois,
o que serve de plano de fundo para o presente estudo.
Será, assim, a partir da análise dessas duas decisões proferidas pelo
mesmo Tribunal Estadual e das argumentações nelas constantes que, à luz do
movimento de humanização da saúde e do direito, do direito fundamental
à liberdade religiosa e dos princípios que resguardam o pilar republicano da
dignidade da pessoa humana, que teceremos reflexões.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
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Nesse intento, o cortejo passará, assim, por necessário, pelo fenômeno


da humanização das atividades médicas e judiciárias, até chegar, em curto
passeio, ao princípio da preservação da autonomia das pessoas na defesa de
sua integridade física e moral, previsto na lei que institui o Sistema Único
de Saúde.
Com necessárias incursões no espectro do direito fundamental à liber-
dade religiosa, mira-se a concretização da dignidade da pessoa humana, por
meio de um necessário diálogo entre as fontes normativas.
Por derradeiro, da colação entre os dois posicionamentos adotados pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos casos investigados, tecem-se
reflexões também sobre a indispensável humanização do exercício da atividade
jurisdicional, sob o véu reluzente da dignidade da pessoa humana, com ênfase
no caso específico do drama vivido pelas Testemunhas de Jeová.

1 O Caso Testemunha de Jeová I


Um jurisdicionado, segundo relatos comprovados por documentos,
foi diagnosticado com um tumor cerebral (CID 10 D35.2/CID 10 E22.8) e,
por pertencer à comunidade denominada Testemunhas de Jeová, não pode-
ria, em razão de suas convicções religiosas, submeter-se a tratamentos que
envolvessem transfusão de sangue ou hemoderivados.
Ele era conveniado a um plano de saúde e, sendo atendido por dois
médicos a este credenciados, obteve a recomendação de uma “abordagem ci-
rúrgica para resolução do caso”, para a qual, após a realização de determinados
exames, expediu-se a “Guia de Solicitação de Internação”.
A operação realizar-se-ia no dia 28 de março de 2018, porém, ao to-
mar prévia ciência, por escrito, que o paciente não aceitava por convicções
religiosas ser submetido a operações que envolvessem transfusão sanguínea,
providenciou a cooperativa de médicos o cancelamento do procedimento, o
que ocorreu, contudo, somente momentos antes do início da cirurgia.
Contudo, posteriormente, logrou o consumidor obter nova prescrição
médica para efetivação de procedimento envolvendo, agora, uma tecnologia
denominada “neuronavegador”, que dispensaria potencialmente a necessidade
de amparo transfusional no ato cirúrgico.
A cooperativa, então, após convocar “junta médica”, teria autorizado
a realização da cirurgia, porém, sem o método tecnológico reclamado, sob a
alegação precípua de que esse procedimento não constava do rol previsto pela
Agência Nacional de Saúde (ANS).
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 35

No entanto, buscando, ato contínuo, obrigar o plano de saúde a custear


e proporcionar o tratamento médico prescrito – com a utilização de tecnologia
capaz de evitar ou minimizar a necessidade de recorro a eventual operação
transfusional – ajuizou o consumidor/cooperado, em 30 de junho de 2018, ação
cominatória em face da cooperativa que comercializava o plano em questão.
Na referida ação, fundamentou seu pedido, entre outros pontos, nas
Súmulas ns. 608 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e 100 do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que reconhecem a incidência do Có-
digo de Defesa do Consumidor (CDC) aos contratos de plano de saúde, e nos
arts. 2º e 3º do CDC, que definem os conceitos de fornecedor e consumidor;
no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à saúde, previstos,
respectivamente, nos arts. 1º, inciso III, 6º, ambos da Constituição Federal, e,
nesse último caso, também no art. 219, inciso IV, da Constituição do Estado
de São Paulo; no art. 10 da Lei nº 9.656/98, que regulamenta a coberta mí-
nima devida pelos Planos de Saúde; no art. 7º, inciso III, da Lei Orgânica da
Saúde (Lei nº 8.080/90), que trata do princípio da “preservação da autonomia
das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”; e, especialmente, na
Súmula nº 102 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que preconiza
que “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura
de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou
por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.
O autor teve, em 5 de julho de 2018, seu pedido de tutela antecipada
acolhido pelo juízo do Foro de Iacanga-SP, para ver o plano obrigado a custear
o tratamento personalizado prescrito, em processo que recebeu a numera-
ção 1000397-34.2018.8.26.0027 e que correu perante a Vara Única daquela
Comarca.
Importa reproduzir, com foco no objeto do presente trabalho, a ar-
gumentação trazida pelo magistrado quando da prolação da decisão acerca
da tutela antecipada pleiteada pelo consumidor, quando pontuou que “o
particular, quando presta os serviços médicos e de saúde, possui os mesmos
deveres/obrigações do Estado, consistentes no fornecimento de assistência
médica integral para os aderentes dos respectivos serviços” e que “a liberdade
de crença, consagrada no texto constitucional não se resume à liberdade de
culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se
e seguir os preceitos dela”.
Não obstante, asseverou que não caberia ao plano de saúde “avaliar e
julgar valores religiosos, mas respeitá-los” e que “a inclinação de religiosidade
é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discrimi-
nação”, para concluir então, de maneira contundente que: “se por motivos
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
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religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível


à submissão do autor à cirurgia tradicional, deve disponibilizar recursos para
que o procedimento se dê por meio de técnica que a dispense”.
Ao final, pontuou que a solicitação do procedimento feito pelo con-
sumidor se justificaria, por primeiro, pela “necessidade de preservação do
tecido cerebral viável, com o fim de tornar menos invasivo e mais preciso o
ato cirúrgico”, e, por segundo, pelo fato de “servir como garantia de proteção
às convicções religiosas do requerente, contando, inclusive, com respaldo
médico, conforme apresentado nos autos”.
O plano de saúde, por sua vez, a despeito de dar cumprimento à decisão
liminar, em 10 de agosto de 2018, contestou o feito, pugnando pela rejeição
do pleito autoral, sob o argumento de que diante da existência de eventos
médicos cobertos e excluídos pelo rol de procedimento da ANS (art. 13, § 4º,
da Lei nº 9.656/98 e Resolução Normativa ANS nº 428/2017); das limitações
do plano contratado e do princípio da boa-fé contratual (previsto nos arts.
113 e 422, ambos do Código Civil); da necessidade de harmonização dos
interesses das partes em relações consumeristas, conforme art. 4º, inciso III,
do Código de Defesa do Consumidor; da exigência constitucional de respeito
ao ato jurídico perfeito e acabado (nos termos do art. 5º, incisos II, XXXVI
e LICC, e art. 6º, §§ 1º e 2º, ambos da Constituição Federal), não havendo
como se determinar à entidade obrigações e riscos maiores do que aquelas
assumidas contratualmente.
Em sentença, entendeu o magistrado que “sendo o procedimento plei-
teado pelo autor a melhor opção de tratamento, bem como a mais adequada
às suas crenças, este deve ser custeado pelas rés”.
Com relação à alegação de que o procedimento não estaria previsto
entre os obrigatórios elencados pela ANS, aduziu que não se trataria de rol
taxativo, mas, sim, meramente referencial às operadoras de planos de saúde.
No tocante à obrigação do plano de saúde de oferecer o melhor trata-
mento ao autor, afirmou que não se trataria da imposição de assunção de riscos
não contratados, mas tão somente de “conferir interpretação adequada aos
termos da avença, considerando a legítima expectativa do consumidor, com a
adoção das técnicas disponibilizadas pela medicina para controle, prevenção
e combate de doenças cobertas pelo plano de saúde”.
Por fim, acolhendo as razões do autor da demanda, observou o disposto
na Súmula nº 102 do TJSP, cujo teor já fora anteriormente transcrito neste
trabalho, reconhecendo que a negativa apresentada configuraria conduta ilícita
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 37

por ferir o direito fundamental à saúde, à vida e ao princípio da dignidade da


pessoa humana.

2 O Caso Testemunha de Jeová II


Outra jurisdicionada, “contando com quase 80 anos de idade”, foi
diagnosticada, após um episódio de fortes dores na região lombar, com tu-
mor renal, e, ato seguinte, foi informada da necessidade de retirada do rim
localizado no lado esquerdo do corpo, que já se encontrava completamente
comprometido pela moléstia.
Somente seis meses após esse diagnóstico, mais precisamente em 20
de abril de 2016, foi marcada cirurgia para retirada do órgão.
Internada, e iniciados os preparativos para o ato cirúrgico, foi a consu-
midora informada de que a cirurgia seria cancelada diante das limitações (pré)
impostas ao procedimento em razão de sua religião (Testemunha de Jeová).
Após uma reunião com diretores do nosocômio em que havia sido in-
ternada, foi a Sra. informada de que seria possível realizar a cirurgia mediante
método alternativo, que fugia à necessidade de transfusão sanguínea, deno-
minado “hemodiluição”. Para a realização do ato, contudo, todos os filhos da
Sra. Maria foram obrigados a assinar um termo de consentimento, atestando
que estavam cientes dos riscos que seriam agregados ao procedimento em
razão da utilização da indigitada técnica alternativa.
Foi então que em 8 de agosto de 2016, novamente internada, sujeitou-
se a consumidora à nova recusa na realização do procedimento, dessa vez
pelo profissional médico anestesista, que, ao ser informado da realização do
tratamento alternativo, recusou-se a adotá-lo, por entendê-lo arriscado à vida
da paciente.
Dado o segundo constrangimento, optou a consumidora, aparentemen-
te sem alternativa – em razão da ausência de solução do entrave pela operadora
de plano de saúde contratada –, por se consultar com médico particular, que,
após avaliá-la, entendeu pela urgência do procedimento e, com a adoção do
método de “hemodiluição”, consumou-o em 3 de março de 2017 (mais de um
ano após a identificação, pelos profissionais médicos credenciados ao plano
de saúde, da necessidade de retirada do órgão maculado).
Submetido o caso ao Poder Judiciário, em 23 de junho de 2017, en-
tendeu o Juiz da 5ª Vara Cível da Comarca de Guarulhos, após o transcurso
do iter processual, com a garantia do contraditório e do devido processo legal,
pela procedência do pedido de restituição dos valores gastos com a cirurgia
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
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por parte do plano de saúde réu, entendendo, contudo, pela inexistência de


danos morais na espécie. A decisão foi proferida em 16 de setembro de 2017
e os autos do processo receberam a numeração 1022545-64.2017.8.26.0224.
Em sua fundamentação, discorreu o magistrado sobre a relação médico-
paciente, tratou ainda acerca do direito fundamental à liberdade religiosa e
até mesmo a respeito da liberdade de consciência do médico, tecendo inte-
ressantes reflexões, entre as quais se destacam, respectivamente, as de que: “a
relação médico-paciente, antes regida pelo paternalismo da autoridade médica
cedeu à autonomia da vontade do paciente, considerando que a dignidade da
pessoa humana assegura a todos a realização de escolhas existenciais”; que
a despeito da indisponibilidade dos direitos fundamentais seria “possível
que outros valores ou direitos, também fundamentais, justifiquem eventual
flexibilização, calcada na autonomia da vontade como essência da dignida-
de da pessoa humana”; também que “a religião é parte integrante da vida e
existência, e nela se buscam explicações existenciais, o sentido da vida, entre
outras questões inerentes à condição humana”; e, ainda, que “considerando a
laicidade da sociedade em que vivemos, é preciso respeitar situações em que
a crença existencial e seus desdobramentos conduzem à disponibilidade de
outro direito fundamental”.
Pontua o magistrado, em prosseguimento, que “a religião a que as Tes-
temunhas de Jeová estão inseridas professam a crença de que a introdução de
sangue, via oral ou endovenosa, é contrária às leis de Deus” e que “com base
nesta confissão de fé, legítima [seria] a recusa à transfusão ante a liberdade de
cada um orientar sua própria vida segundo suas convicções”.
Não obstante, obtempera que a recusa médica (que não se confunde,
é claro, com aquela apresentada pela operadora do plano de saúde) seria
igualmente legítima, uma vez que não estariam tais profissionais obrigados a
assumir risco que extrapole aquele já inerente ao próprio procedimento ci-
rúrgico (mormente se dado tratamento vier a agravar os riscos e impor perigo
de morte), sendo certo que se à autora é dado agir de acordo com suas con-
vicções, assim também é assegurado ao médico, “segundo a doutrina médica
e considerando as peculiaridades da paciente”, tendo a liberdade de escolher
se deseja atuar ou não no ato cirúrgico, tendo em vista o procedimento a ser
adotado no tratamento.
Asseverando, ao final, que se o plano de saúde, no caso, cobre o trata-
mento oncológico e, ainda assim, “não disponibilizou à contratante profissio-
nais que estivessem aptos a empregar técnica de hemodiluição, se necessário,
durante o procedimento cirúrgico”, compelindo a consumidora a se socorrer
de profissional não credenciado, devido seria o reembolso pleiteado.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 39

Contudo, ao ser levado o caso à segunda instância de jurisdição, por


meio de recurso de apelação, o desfecho do caso viu-se exposto a uma revi-
ravolta.
Isso, porque entenderam os Desembargadores que julgaram o caso que,
a despeito da necessidade de respeito à crença religiosa da consumidora – que
seria um bem jurídico tutelado pelo Estado “em consonância com a dignidade
da pessoa humana” –, não poderia o plano de saúde “ser onerado em virtude
da crença religiosa da autora, que deve arcar com as consequências de sua livre
escolha”. Para justificar sua posição, invocaram os julgadores acórdãos profe-
ridos pelo próprio TJSP, que enfrentaram o mesmo tema em casos análogos.
O acórdão transitou em julgado em 19 de março de 2019.

3 Da Humanização das Atividades do Médico e do Juiz à Luz do


Princípio da Preservação da Autonomia das Pessoas na Defesa de
sua Integridade Física e Moral
No contexto jurídico-processual, há de haver sempre, é claro, pelo
juiz, no exercício da atividade jurisdicional, uma análise do caso concreto,
narrado e, eventualmente, provado pelas partes. Porém, na prática, sempre
há lides cujas peculiaridades do caso são desafiadoras, especialmente quando
envolvem questões que suscitam divergências culturais, como é a situação,
por exemplo, dos Testemunhas de Jeová.
No campo médico-paciente, de igual sorte, esses conflitos culturais
emergem. Há, atualmente, uma exigência de que o atendimento prestado
se atente à singularidade do indivíduo que a ele se submeterá. Tal imposição
não advém, contudo, apenas de meros costumes, mas de um princípio que
foi positivado por uma lei federal.
Tal diretiva/direito é chamado de “princípio da preservação da autono-
mia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral” e o instrumento
normativo que o prevê é a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (que
“dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde,
a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências” e cria o Sistema Único de Saúde – SUS), mais precisamente,
o inciso III de seu art. 7º.
Por sua vez, os arts. 22 a 24 do Código de Ética Médica (Resolução nº
1.931/09 do Conselho Federal de Medicina) estabelecem ser vedado ao profis-
sional médico, respectivamente, “deixar de obter consentimento do paciente
ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser
realizado, salvo em caso de risco iminente de morte”; “tratar o ser humano
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
40

sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de


qualquer forma ou sob qualquer pretexto”; e “deixar de garantir ao paciente o
exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar,
bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.
Ao lado desses elementos normativos (legais e regulamentares), coe-
xistem o art. 15 do Código Civil (que consagra o preceito de que “ninguém
pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico
ou a intervenção cirúrgica”), bem como os arts. 4º, parágrafo único, inciso
III, alíneas a, b, c, d e g1 e 5º incisos I e V2, ambos da Portaria do Ministério da
Saúde nº 1.820/09, sendo que esse último inciso promove, segundo Nelson
Nery Junior, uma instrução necessária ao exercício “do direito constitucional
(consentimento informado) na relação médico-paciente”3.
Segundo o autor, o chamado consentimento informado seria, em linguagem
técnica, “a capacidade de decisão do paciente quanto ao tratamento que receberá, decisão
esta que só poderá ser tomada após detalhado esclarecimento médico e fornecimento de
todas as informações relativas ao mesmo”4.
Em suma, as diretrizes nacionais sobre saúde apontam, obrigatoriamen-
te, para a necessidade de que todo e qualquer tratamento médico jamais deixe
de se atentar às necessidades e realidades específicas do paciente, incluindo
sua vontade expressada, e do quadro clínico investigado. Esse seria, enfim, o
tratamento mais adequado.
Tal valor, aliás, representa, no campo do funcionamento dos sistemas
de saúde, a bandeira da transformação do primado da tecnicidade (eficácia,
otimização e eficiência), sobressalente na década de 1980, no da humaniza-
ção (tecnicidade associada à qualidade, à equidade, à satisfação e à autonomia

1 “Art. 4º Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados,
em ambiente limpo, confortável e acessível a todos. Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de
saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade,
raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde,
de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe: (...) III – nas consultas, nos procedimentos diagnósticos,
preventivos, cirúrgicos, terapêuticos e internações, o seguinte: a) à integridade física; b) à privacidade e ao conforto; c)
à individualidade; d) aos seus valores éticos, culturais e religiosos; (...) g) o bem-estar psíquico e emocional.” (os destaques não
constam do original)
2 “Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-
lhe: I – a escolha do tipo de plano de saúde que melhor lhe convier, de acordo com as exigências mínimas constantes
da legislação e a informação pela operadora sobre a cobertura, custos e condições do plano que está adquirindo;
(...) V – o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo
nos casos que acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer
instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas à pessoa sanções morais, financeiras ou legais;” (os destaques
não constam do original)
3 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 36.
4 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 36.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 41

do usuário), que podemos chamar de tecnicidade-humanizada, reafirmada na


década de 19905.
Ora, humanizar, no aspecto da saúde, é, precipuamente, segundo Fortes,
entender “cada pessoa em sua singularidade, tendo necessidades específicas, e,
assim, criando condições para que tenha maiores possibilidades para exercer
sua vontade de forma autônoma”6.
Trazendo interessante reflexão, anota Lima que, embora o termo
humanização seja plurívoco, quando “se fala em desumanização, sucede o
contrário. Parece que todos compreendem seu significado, quer seja de uma
forma intuitiva ou quer seja por terem sofrido as suas consequências em
alguma esfera de suas vidas”7.
Decerto, se um simples desrespeito pode ferir; um desrespeito no
momento em que o indivíduo está mais frágil, prestes a se submeter a um
procedimento cirúrgico que poderá, como todo ato dessa natureza, ceifar-lhe
a vida, pode configurar o fenômeno da desumanização do ser.
Na relação médico-paciente, há – embora, em alguma medida e em
certos casos, isso não seja muito bem assimilado – uma relação entre dois
seres humanos, que carregam suas individualidades, historicidades, desejos
e sonhos, preconceitos e medos, estando de um lado, aquele que atende,
e, doutro, o atendido, sendo fundamental se aperceber que “o ser humano
doente e, portanto, fragilizado necessita, mais do que qualquer outra pessoa,
ser contemplado em sua totalidade, ou seja, em seus aspectos: físico, mental,
emocional, social, cultural e espiritual”8.
Por tratamento mais adequado, portanto, não se entende apenas aquele
que tecnicamente tenha maiores chances de fulminar a doença e/ou melhorar
clinicamente a condição do paciente, mas, sim, aquele que, associado aos dois
primeiros desideratos, melhor conforte o espírito do doente, respeitando-lhe as
convicções e desejos íntimos, é dizer, respeitando o exercício de sua autonomia
privada, de sua autodeterminação.

5 FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde.
Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004, p. 31.
6 FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde.
Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004, p. 31.
7 LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para
graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 18, n. 48, p. 139-150, 2014, p. 140.
8 LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para
graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 18, n. 48, p. 139-150, 2014, p. 140.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
42

Na busca por essa humanização do tratamento médico, portanto,


espera-se do médico a função de não somente ser técnico, mas de também
ser humanizado (= agir humanizado) em todas as suas atitudes e prescrições.
Noutro norte, ao se expandir uma relação travada na convencionada
área da saúde, para o âmbito normativo da Constituição Federal, observamos
que o constituinte originário, visando, justamente, a prestigiar o cuidado com
o outro, estabeleceu como fundamento da República a dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III) – o que será abordado de forma mais detida no
próximo capítulo.
E tal fundamento, pois, enraíza-se, por corolário lógico-sistêmico,
em toda a Constituição Federal e, por via de consequência, entrelaça toda a
legislação infraconstitucional brasileira.
Pelas emanações desse princípio, não há como o julgador – à semelhança
do médico, nos termos acima delineados, tomadas as devidas proporções –
ignorar, na aplicação da lei, o caráter social da norma que irá interpretar/criar
e o ser humano que se encontra na condição de destinatário da norma jurídica
concreta que será aplicada/criada.
Tal é a essência, pois, do que se pode chamar de humanização da lei,
nos dizeres de Baptista de Mello9:

“É mistér colher no amago do direito a ideia de humanidade, para com


ella fecundar o texto rígido da lei, para applical-a liberalmente e imprimir
realidade á sua dureza, para sentil-a com a consciencia e com a razão, para
arrancal-a dos codigos e espargir sobre o seu conteudo a agua lustral da
vida, eis que ella é um phenomeno humano, por isso mesmo imperfeita
e transitória.”

Além disso, é esse pilar do ordenamento jurídico brasileiro que, em


suma, legitima e reforça toda a gama de direitos humanos albergados pela
Constituição e transformados, assim, em Direitos Fundamentais.
Pode-se dizer ainda, noutro ponto, que até mesmo o estudo constitu-
cional e a própria evolução do Direito Constitucional sejam “fruto, em grande
medida, da aceitação dos direitos fundamentais como cerne da proteção da
dignidade da pessoa”10, valor central em nosso Estado.

9 MELLO, Baptista de. Interpretação e humanização da lei. Revista de Direito Civil, RT, v. 95, n. 308, maio/1935 – edições
especiais Revista dos Tribunais 100 anos – Doutrinas Essenciais Direito Civil Parte Geral, organizadores Gilmar
Ferreira Mendes e Rui Stoco – Volume 1 – São Paulo: RT, 2011. p. 1.234.
10 MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 201.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 43

4 Do Direito Fundamental à Liberdade Religiosa e do Fundamento


Republicano da Dignidade Humana em Cotejo com a Teoria do
Diálogo das Fontes
Adentrando mais profundamente no sistema constitucional, dentre os
direitos fundamentais que permeiam o rol das chamadas garantias individuais,
pincelamos – por necessário –, para o presente estudo, o da liberdade religiosa.
Embora, desde a adoção da forma republicana consagre o Brasil a laicida-
de – separação entre Estado e Igreja ou não adoção de uma religião oficial da
11

nação –, essa dita “laicidade não significa, por certo, inimizade com a fé. Não
impede a colaboração com confissões religiosas, para o interesse público”12.
Assim, entre as possíveis e variadas definições do direito à liberdade reli-
giosa, trazemos, para o presente debate, aquela arquitetada por Vicente Prieto,
segundo o qual, constituir-se-ia este “[n]o direito a [se] praticar livremente a
religião, tanto individualmente como em associação com outras pessoas, sem
que o Estado, outras instâncias sociais ou mesmo os indíviduos, possam impor
convicções religiosas ou discriminar a alguém em razão de suas crenças”13.
A previsão do direito fundamental à liberdade religiosa, por via de con-
sequência, não visa apenas a guarnecer o conjunto de palavras que compõe
o texto constitucional, mas, certamente, estabelece cogentes parâmetros ao
Estado e aos particulares acerca do trato com o religioso.
É, enfim, a necessária máxima aplicabilidade dos direitos fundamentais,
que pontifica, com muita propriedade, Juarez Freitas, no prefácio da seminal
obra “��������������������������������������������������������������������������
a eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional”14, quando prescreve que, em qualquer
interpretação principialista desses direitos, deva ela (a máxima aplicabilidade)
ser levada em conta, “pois de nada adianta que permaneçam como exortações
abstratas ou construções fadadas ao limbo”.
Quer, assim, no que tocam às prescrições relacionadas ao direito fun-
damental da liberdade religiosa; quer no que se refere ao preceito maior da
dignidade da pessoa humana; não há como se esquivar do necessário predicado
da máxima aplicabilidade.

11 MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 272.
12 MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 462.
13 PRIETO, Vicente. Libertad religiosa y confesiones. Bogotá: Temis – Universidad de la Sabana, 2008. p. 39.
14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. Prefácio.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
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Talhando, por conseguinte, para uma maior aplicabilidade, com mais


precisão e estética, o conceito de dignidade da pessoa humana, Sarlet nos
empresta as definições trazidas, por primeiro, pelo Tribunal Constitucional da
Espanha, no sentido de que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente
à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte
dos demais”15, e, num segundo momento, por Günter Dürig, no sentido de
que o conceito da dignidade da pessoa humana advém da constatação de que16:

“Cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da
natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão,
tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta, bem
com o de formatar a sua existência e o meio que o circunda.”

Não há como se esquecer, nesse aspecto e contexto, da respectiva signifi-


cação da palavra “dignidade” trazida Günter Dürig, ao comentar o art. 1º, al 1.,
da Lei Fundamental alemã (precursor da onda de positivações constitucionais
do primado da dignidade da pessoa humana), no sentido de que ela revela
um “conceito axiológico que pressupõe como sujeito um titular de valores”17.
Por fim, em nosso âmbito doméstico, grada José Afonso da Silva ao
defender que essa referida “dignidade” é “atributo intrínseco, da essência,
da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a
qualquer preço, que não admite substituição equivalente”18, que ela se “en-
tranha e se confunde com a própria natureza do ser humano”19, relembrando
que, no âmbito de nossa Constituição Federal, sobreleva-se a dignidade da
pessoa humana não somente como mero princípio constitucional, mas, sim,
como fundamento da República, porquanto “constitui num valor supremo,
num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e
do Direito”, sendo não tão somente um princípio jurídico, mas também das
ordens político, social, econômica e cultural20.

15 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 102.
16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 102.
17 GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 95
18 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admi-
nistrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 91.
19 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admin-
istrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 91.
20 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admin-
istrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 92.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 45

Vislumbra-se, por conseguinte, que o núcleo da dignidade da pessoa


humana não passa ao largo do dever, imposto a toda coletividade, de se
respeitar e se tutelar, quando possível e na máxima medida, as convicções
e opções de vida de alguém. Trata-se do respeito ao livre desenvolvimento da
personalidade de cada um e de seu projeto de vida, como expressões do direito
à plenitude existencial e o seu direito à busca da felicidade, o direito constitucional de
ser feliz de inspiração americana (right to pursuit of happiness da Declaração de
Independência dos EUA, cujo autor principal foi Thomas Jefferson), como
corolário que é da própria dignidade da pessoa humana, como já reconhecido
pelo Supremo Tribunal Federal a partir dos pioneiros julgados sobre o tema
da lavra do Ministro Celso de Mello21.
E ao magistrado, pois, em sua atividade judicante, assistem ferramentas
que lhe permitem examinar e colher a(s) norma(s) jurídica(s) que melhor
atenda(m) ao caso concreto, podendo, quando viável, conjugá-las e sopesá-
las, como lhe faculta, no campo hermenêutico, a teoria do diálogo das fontes
e o próprio CPC art. 8º (“Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá
aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo
a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabi-
lidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”).
Tal técnica, pois, advém do pluralismo das fontes normativas22 e das
diferentes possibilidades de conjugação dos textos normativos, ou como
ensina Erik Jayme23:

“O ‘diálogo das fontes’ significa, que decisões de casos da vida complexos


são hoje o somar, o aplicar conjuntamente, de várias fontes (Constituição,
Direitos Humanos, direito supranacional e direito nacional). Hoje não
mais existe uma fixa determinação de ordem entre as fontes, mas uma

21 Entre outros julgados, o Supremo Tribunal Federal já decidiu consignando ser o direito à busca da felicidade consectário do
princípio da dignidade da pessoa humana; verbis: “O Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto
em suspensão de tutela antecipada para manter decisão interlocutória proferida por desembargador do Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco, que concedera parcialmente pedido formulado em ação de indenização por perdas
e danos morais e materiais para determinar que o mencionado Estado-membro pagasse todas as despesas necessárias à
realização de cirurgia de implante de Marcapasso Diafragmático Muscular – MDM no agravante, com o profissional
por este requerido. Na espécie, o agravante, que teria ficado tetraplégico em decorrência de assalto ocorrido em
via pública, ajuizara a ação indenizatória, em que objetiva a responsabilização do Estado de Pernambuco pelo custo
decorrente da referida cirurgia, ‘que devolverá ao autor a condição de respirar sem a dependência do respirador
mecânico’. (...) Concluiu-se que a realidade da vida tão pulsante na espécie imporia o provimento do recurso, a fim
de reconhecer ao agravante, que inclusive poderia correr risco de morte, o direito de buscar autonomia existencial,
desvinculando-se de um respirador artificial que o mantém ligado a um leito hospitalar depois de meses em estado
de coma, implementando-se, com isso, o direito à busca da felicidade, que é um consectário do princípio da dignidade da pessoa
humana” (STF, Pleno, STA 223 AgR, Min. Rel. p/ac. Celso de Mello, j. 14.04.08, Informativo 502) [destacamos] (cfr.
também RODOVALHO, 2012, p. 98-99).
22 SOARES, Felipe Ramos Ribas et al. Direito civil constitucional. Coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson
Konder. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 73.
23 Cfr. SOARES, Felipe Ramos Ribas et al. Direito civil constitucional. Coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson
Konder. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 88.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
46

cumulação destas, um aplicar lado a lado. Os direitos humanos são di-


reitos fundamentais, mas somente às vezes é possível deles retirar efeitos
jurídicos precisos.”

E dada essa “imprecisão” na aplicação dos direitos fundamentais, mencio-


nada pelo próprio criador da teoria, Erik Jayme, a condução do juiz pode ser fiada
pelos princípios e leis que direcionem a uma mais completa atuação jurisdicional,
que bem abarque as peculiaridades do direito invocado, como é o caso, no âmbito
do direito da saúde, do princípio da preservação da autonomia das pessoas na defesa
de sua integridade física e moral, previsto no art. 7º, inciso III, da Lei nº 8.080/90,
que associado ao direito fundamental à liberdade religiosa e ao fundamento da
dignidade da pessoa humana, recomendam, por força do quanto já exposto, a
busca pelo fornecimento (por agentes públicos ou privados que trabalhem com
a saúde) do tratamento mais adequado a este ou àquele paciente.
Feitas tais digressões e invocações, fundamentais à compreensão e situ-
ação do objeto estudado, passamos, então, ao caso específico das Testemunhas
de Jeová e do tratamento que lhes foi dado nas decisões sob enfoque.

5 O Caso Específico das Testemunhas de Jeová


Com base em particular interpretação dos escritos do velho testamento,
os membros da sociedade religiosa denominada Testemunhas de Jeová – que
pretendam não ofender o grupo a que pertencem e tampouco à divindade
em que acreditam –, adotam como postura inflexível a recusa à submissão de
tratamento médicos que envolvam sangue ou hemoderivados.
Para além da questão de fé, é certo, que, como invocou Dürig, a recusa,
em questão, é “um processo verdadeiramente típico de uma ‘organização da
vida’ com base numa decisão de consciência, sem rupturas e inabalável, de
alfa e ômega, suportada por um consequente preparativo para sofrer”24.
No caso específico do conflito existente entre os que professam essa
religião e as condutas médicas que se utilizam de sangue e hemoderivados,
muito se discute acerca do “problema” da preservação da vida (que, em tese,
justificaria restrições e até mesmo intervenções indevidas na esfera íntima de
pacientes adeptos dessa crença).
Nelson Nery, contudo, entende que seria esse um falso problema25
(2009, p. 19), uma vez que o paciente religioso (no caso específico das Teste-

24 GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 53.
25 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 19.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 47

munhas de Jeová), não pretende pôr fim à vida; pelo contrário, se encontra
ele justamente diante de um médico por querer ou precisar (bem) sobreviver
(não, porém, em prejuízo de sua crença, mas, sim, de modo tal que possa
conciliar o tratamento a técnica alternativas à transfusão sanguínea).
Inspirado em Riestra, aponta Nery que essa recusa constituiria, in-
clusive, “direito constitucional inerente à sua autonomia pessoal; trata-se de
direito personalíssimo que permite ao enfermo o sopesamento dos riscos e
sofrimentos que lhe trará o tratamento médico”, ponderando que “a objeção
a determinado tratamento médico constitui expressão do direito de autode-
terminação de toda pessoa no que diz respeito à gestão de sua integridade
pessoal bem como de sua própria vida”26.
Temos, portanto, que, se existente esse direito constitucional à recusa do
tratamento com hemoderivados pelos praticantes da religião denominada Testemunhas de
Jeová, inevitavelmente, dele deriva o dever dirigido tanto ao Estado quanto ao
particular que lhe faça às vezes (no caso dos planos de saúde) – ou que atue
sob o manto exclusivo do direito privado –, de cuidar desse paciente religioso
dentro dessa conhecida particularidade.
O efeito, decerto, dessa garantia constitucional (direito de recusa), é
eliminar do rol de possibilidade de tratamento desses pacientes aqueles que
demandem a utilização de sangue ou hemoderivados, emergindo-lhe a partir
daí todos os demais direitos cabentes a qualquer outro paciente, quer pela lei,
quer pelas regulamentações e códigos de ética médicos.
Em suma, ao paciente que efetivamente possua essa crença, cabe o
direito de ser atendido por médicos que lancem mão de procedimentos que
não envolvam transfusões de sangue ou hemoderivados, sendo certo que, em
eventual risco iminente de vida, surgirá, então, novo conflito, agora aquele
debatido pelo Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 1.212.272.

6 Cotejo entre os Dois Posicionamentos Adotados pelo TJSP


nos Casos sob Análise. Curtas Reflexões sobre a Imprescindível
Humanização do Direito à Luz da Dignidade da Pessoa Humana
Ao aproximarmos as considerações feitas e o conteúdo sobreposto
acerca da necessária busca pelos agentes envolvidos com a saúde (âmbito
no qual se incluem as operadoras de planos de saúde) pelo fornecimento do
tratamento mais adequado ao paciente, com respeito à sua religiosidade, e,

26 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 23.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 – Doutrina
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precipuamente, sua intocável dignidade humana, colocamos em xeque as


decisões conflitantes proferidas pelo Tribunal de Justiça (casos Testemunha
de Jeová I e II), que, partindo de pressupostos de fato similares, optam por
caminhos diametralmente opostos.
Essa identificação (de casos) permite uma aproximação sobre o drama
que se encontra presente tanto para o sujeito de direitos (que professa essa
determinada religião) quanto para o agente que com ele se relaciona (no caso
o profissional médico) e também para aquele encarregado (legalmente) de
tutelá-los (no caso, a figura do Estado-Juiz).
Seja lançando mão da mera tecnicidade ou avançando na adoção da hu-
manização do direito e da saúde, é certo que aqueles que professam a religião
denominada Testemunhas de Jeová merecem – e devem, efetivamente, ter, pela
máxima aplicabilidade dos direitos fundamentais – o resguardo jurisdicional
de sua autodeterminação, de sua religiosidade, e, em última instância, de sua
dignidade humana, cabendo tanto ao Estado quanto ao particular fornecerem
condições para que logrem (as Testemunhas de Jeová) prosseguir firmes em
seus propósitos, lutando pela preservação de seus valores.

Conclusão
Buscou-se no presente trabalho, portanto, demonstrar que dentro de
um mesmo âmbito jurisdicional (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo),
decisões proferidas podem refletir visões distintas sobre a extensão do funda-
mento republicano da Dignidade da Pessoa Humana e do Direito Fundamental
à Liberdade Religiosa, ou, ainda, da correlação (ou não) existente entre estes
e as regras do direito privado, quando se está, como no caso se esteve, diante
da demanda de tratamento médico personalizado para pacientes adeptos da
religião denominada Testemunhas de Jeová.
Quer, pois, em um aparente esforço na humanização da lei e do direito,
quer no recorro à mera tecnicidade, a atividade do exegeta – mormente, no
caso daquele que se debruça, por função, sobre a solução do caso concreto –
exige, em casos como os tratados, uma maior ou menor abertura ao primado
da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental à liberdade religiosa.
Ainda que, por vezes, prossiga aparentemente vilipendiado e não visto,
é certo que o primado da dignidade da pessoa humana prossegue incessante-
mente vivo, quer nas novas construções dogmáticas, quer nas mãos dos juízes
ordinários que, com argumentos extraordinários, por vezes se esforçaram
para não relegar o consumidor religioso à própria sorte, sem, por outro lado,
ofender o direito das operadoras de plano de saúde.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 49

TITLE: From the offense to the dignity of the human person perpetrated by health insurance operators
who refuse to provide the most appropriate treatment to members who confess the religion of Jehovah’s
Witnesses: a case analysis.

ABSTRACT: This current paper pretend, based on the analysis of two conflicting rulings of the São Paulo
State Court of Justice that portray the (un)protection of the consumer who professes the religion called
Jehovah’s Witness and refuses to be subjected, based on a religious conviction, to treatments involving
blood or blood products, to reflect on the principle of preserving people’s autonomy in defense of their
physical and moral integrity, which, with others, governs the Brazilian Unified Health System, and on
human dignity, in an environment of possible application of the theory of source dialogue.

KEYWORDS: Religious Freedom. Fundamental Rights. Public Policies. Human Dignity. Jehovah’s
Witnesses.

Referências
FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção
à saúde. Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902004000300004&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 dez. 2019.
GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016.
LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades
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Recebido em: 11.03.2021


Aprovado em: 01.06.2021

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