Artigo - Rodovalho-Reis - Testemunhas de Jeová - CIV102 - Art.2
Artigo - Rodovalho-Reis - Testemunhas de Jeová - CIV102 - Art.2
Artigo - Rodovalho-Reis - Testemunhas de Jeová - CIV102 - Art.2
Classificação Qualis/Capes: B1
Editor
Fábio Paixão
Coordenadores
Anderson Schreiber – Daniel Amorim Assumpção Neves – Débora Brandão
Fernanda Tartuce – Flávio Tartuce
Conselho Editorial
Ana Beatriz Presgrave – Ana Luiza Maia Nevares – Angelica Carlini
Arlete Aurelli – Carlos Nelson Konder – Cecília Asperti – Cesar Calo Peghini
Cláudia Lima Marques – Ênio Santarelli Zuliani – Eroulths Cortiano Junior
Fredie Didier Junior – Giselda M. F. Novaes Hironaka – Gisele Góes
Gustavo Tepedino – Heloísa Helena Barboza – José Fernando Simão
José Rogério Cruz e Tucci – Marco Aurélio Bezerra de Melo – Marco Jobim
Maria Helena Diniz – Marilia Pedroso Xavier – Maurício Bunazar
Pablo Malheiros Cunha Frota – Pablo Stolze Gagliano – Rodolfo Pamplona Filho
Rodrigo Reis Mazzei – Rolf Madaleno – Sílvio de Salvo Venosa
Susana Henriques da Costa – Trícia Navarro
Colaboradores deste Volume
Bruno Reis – Diego Reschette Spagnolli – Fernando Moreira Freitas da Silva
Giuliano Máximo Martins – Guilherme Luis Hack Lamy
José Américo Zampar Júnior – Leonardo Fernandes Ranña
Manuella Bonavides Amaral – Marcelo Abelha Rodrigues – Marcos Ehrhardt Jr.
Michel Canuto de Sena – Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos
Rita Vasconcelos – Thiago Rodovalho – Vinicius Silva Lemos
Vitor Henrique Melo de Albuquerque
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil
Publicação bimestral da LexMagister à qual se reservam todos os direitos, sendo vedada a
reprodução total ou parcial sem a citação expressa da fonte.
A responsabilidade quanto aos conceitos emitidos nos artigos publicados é de seus autores.
As íntegras dos acórdãos aqui publicadas correspondem aos seus originais, obtidos junto ao
órgão competente do respectivo Tribunal.
A editoração eletrônica foi realizada pela LexMagister, para uma tiragem de 5.000 exemplares.
ISSN 1807-0930
CDU 347(05)
CDU 347.9(05)
LexMagister
Diretor Executivo: Fábio Paixão
Débora Brandão
Sumário
Doutrina
1. Observações sobre o Incidente de Desconsideração da Personalidade
Jurídica
Marcelo Abelha Rodrigues........................................................................................... 7
2. Da Ofensa à Dignidade da Pessoa Humana Perpetrada pelas Operadoras
de Planos de Saúde que se Recusam a Fornecer o Tratamento mais
Adequado aos Cooperados que Confessem a Religião das Testemunhas
de Jeová: uma Análise de Casos
Thiago Rodovalho e Bruno Reis................................................................................ 32
3. A Medida Executiva Atípica em Aproximação a Aspectos do Direito
Material
Vitor Henrique Melo de Albuquerque e Marcos Ehrhardt Jr......................................... 50
4. O Recurso do Julgamento do Incidente de Assunção de Competência, a
Admissibilidade Positiva e a Tramitação em Tribunal Superior
Vinicius Silva Lemos................................................................................................ 74
5. A Transmissibilidade da Obrigação de Prestar Alimentos: Questões
Controvertidas
Rita Vasconcelos, Diego Reschette Spagnolli e Guilherme Luis Hack Lamy............... 103
6. O Depoimento Especial de Crianças e de Adolescentes Durante a Pandemia
da Covid-19: um Diálogo entre Proteção e Memória
Giuliano Máximo Martins, Fernando Moreira Freitas da Silva,
Michel Canuto de Sena e Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos..................... 116
7. Medidas Liminares contra o Poder Público: Vedações e Suspensão
José Américo Zampar Júnior................................................................................... 131
8. Conflito de Coisa Julgada: uma Análise da Evolução Jurisprudencial no
Âmbito do Superior Tribunal de Justiça
Leonardo Fernandes Ranña e Manuella Bonavides Amaral...................................... 155
Jurisprudência
1. Superior Tribunal de Justiça – Contrato de Compra e Venda de Obra de
Arte “A Caipirinha”, de Tarsila do Amaral. Negócio Jurídico Simulado.
Reenquadramento Jurídico. Impossibilidade. Necessidade do Reexame
do Contexto Fático-Probatório. Incidência da Súmula nº 7 desta Corte.
Reconhecimento de Simulação em Sede de Embargos de Terceiro. Causa
de Nulidade do Negócio Jurídico. Matéria de Ordem Pública que Pode Ser
Conhecida até Mesmo de Ofício pelo Juiz
Rel. Min. Moura Ribeiro........................................................................................ 181
2. Superior Tribunal de Justiça – Juízo de Prelibação Negativo. Decisão do
Tribunal de Origem. Impugnação Específica. Ausência
Rel. Min. Gurgel de Faria...................................................................................... 193
3. Superior Tribunal de Justiça – Cumprimento de Sentença. Penhora
Via Bacenjud. Saldo Remanescente em Conta Corrente. Proventos de
Aposentadoria. Não Cabimento. Precedentes do STJ
Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino...................................................................... 196
Thiago Rodovalho
Professor Titular da PUC-Campinas (Graduação e Mestrado);
Membro do Corpo Docente Permanente do Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD); Doutor e Mestre
em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP, com Estágio Pós-Doutoral no Max-Planck-
Institut für Ausländisches und Internationales Privatrecht;
e-mail: rodovalho@rodovalho.pro.br.
Bruno Reis
Mestre em Direito pela PUC-Campinas com Estágio Docência
em Processo Civil; Especialista em Direito Processual Civil
pela Escola Paulista da Magistratura (EPM); Especialista
em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos
Tributários (IBET); Graduado em Ciências Sociais e Jurídicas
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-
Campinas); e-mail: bruno_reispinto@yahoo.com.br.
Introdução
Em 25 de setembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, por unanimi-
dade, reconheceu a existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário
1.212.272, que visa a discutir a possibilidade de uma paciente, que professa a
religião Testemunhas de Jeová, de submeter-se a um procedimento cirúrgico
de alto risco (substituição da válvula aórtica), sem que ao Estado caiba a fa-
culdade de se utilizar do procedimento de transfusão sanguínea em eventual
intercorrência médica, ao argumento de que as alternativas disponíveis no
SUS não seriam compatíveis com a fé professada pela paciente.
Noutro norte, vemos duas decisões conflitantes, uma proferida em sede
de primeira e a outra de segunda instância de jurisdição, ambas pelo Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que debatem se às operadoras de
planos de saúde é conferido o direito de não custear tratamento alternativo,
quando existente – que não passe pela via da técnica transfusional ou pela
utilização de hemoderivados – para cooperados que professam a religião de
Testemunhas de Jeová.
Se a primeira notícia revela uma antiga (porém, ainda atual) discussão
acerca da preservação dos valores daqueles que professam a religião denomi-
nada Testemunhas de Jeová, no âmbito do direito público, os dois últimos
casos revelam similar problemática, travada, agora, não mais diretamente
entre o Estado e o particular, mas, sim, entre dois particulares (em que pese
a função pública inerente aos planos de saúde). E esse último cenário, pois,
o que serve de plano de fundo para o presente estudo.
Será, assim, a partir da análise dessas duas decisões proferidas pelo
mesmo Tribunal Estadual e das argumentações nelas constantes que, à luz do
movimento de humanização da saúde e do direito, do direito fundamental
à liberdade religiosa e dos princípios que resguardam o pilar republicano da
dignidade da pessoa humana, que teceremos reflexões.
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1 “Art. 4º Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados,
em ambiente limpo, confortável e acessível a todos. Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de
saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade,
raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde,
de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe: (...) III – nas consultas, nos procedimentos diagnósticos,
preventivos, cirúrgicos, terapêuticos e internações, o seguinte: a) à integridade física; b) à privacidade e ao conforto; c)
à individualidade; d) aos seus valores éticos, culturais e religiosos; (...) g) o bem-estar psíquico e emocional.” (os destaques não
constam do original)
2 “Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-
lhe: I – a escolha do tipo de plano de saúde que melhor lhe convier, de acordo com as exigências mínimas constantes
da legislação e a informação pela operadora sobre a cobertura, custos e condições do plano que está adquirindo;
(...) V – o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo
nos casos que acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer
instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas à pessoa sanções morais, financeiras ou legais;” (os destaques
não constam do original)
3 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 36.
4 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 36.
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5 FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde.
Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004, p. 31.
6 FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção à saúde.
Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004, p. 31.
7 LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para
graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 18, n. 48, p. 139-150, 2014, p. 140.
8 LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades e humanização em saúde: a literatura como elemento humanizador para
graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 18, n. 48, p. 139-150, 2014, p. 140.
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9 MELLO, Baptista de. Interpretação e humanização da lei. Revista de Direito Civil, RT, v. 95, n. 308, maio/1935 – edições
especiais Revista dos Tribunais 100 anos – Doutrinas Essenciais Direito Civil Parte Geral, organizadores Gilmar
Ferreira Mendes e Rui Stoco – Volume 1 – São Paulo: RT, 2011. p. 1.234.
10 MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 201.
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nação –, essa dita “laicidade não significa, por certo, inimizade com a fé. Não
impede a colaboração com confissões religiosas, para o interesse público”12.
Assim, entre as possíveis e variadas definições do direito à liberdade reli-
giosa, trazemos, para o presente debate, aquela arquitetada por Vicente Prieto,
segundo o qual, constituir-se-ia este “[n]o direito a [se] praticar livremente a
religião, tanto individualmente como em associação com outras pessoas, sem
que o Estado, outras instâncias sociais ou mesmo os indíviduos, possam impor
convicções religiosas ou discriminar a alguém em razão de suas crenças”13.
A previsão do direito fundamental à liberdade religiosa, por via de con-
sequência, não visa apenas a guarnecer o conjunto de palavras que compõe
o texto constitucional, mas, certamente, estabelece cogentes parâmetros ao
Estado e aos particulares acerca do trato com o religioso.
É, enfim, a necessária máxima aplicabilidade dos direitos fundamentais,
que pontifica, com muita propriedade, Juarez Freitas, no prefácio da seminal
obra “��������������������������������������������������������������������������
a eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional”14, quando prescreve que, em qualquer
interpretação principialista desses direitos, deva ela (a máxima aplicabilidade)
ser levada em conta, “pois de nada adianta que permaneçam como exortações
abstratas ou construções fadadas ao limbo”.
Quer, assim, no que tocam às prescrições relacionadas ao direito fun-
damental da liberdade religiosa; quer no que se refere ao preceito maior da
dignidade da pessoa humana; não há como se esquivar do necessário predicado
da máxima aplicabilidade.
11 MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 272.
12 MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 462.
13 PRIETO, Vicente. Libertad religiosa y confesiones. Bogotá: Temis – Universidad de la Sabana, 2008. p. 39.
14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. Prefácio.
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“Cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da
natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão,
tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar a sua conduta, bem
com o de formatar a sua existência e o meio que o circunda.”
15 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 102.
16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 13. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 102.
17 GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 95
18 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admi-
nistrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 91.
19 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admin-
istrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 91.
20 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de Direito Admin-
istrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998, p. 92.
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21 Entre outros julgados, o Supremo Tribunal Federal já decidiu consignando ser o direito à busca da felicidade consectário do
princípio da dignidade da pessoa humana; verbis: “O Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto
em suspensão de tutela antecipada para manter decisão interlocutória proferida por desembargador do Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco, que concedera parcialmente pedido formulado em ação de indenização por perdas
e danos morais e materiais para determinar que o mencionado Estado-membro pagasse todas as despesas necessárias à
realização de cirurgia de implante de Marcapasso Diafragmático Muscular – MDM no agravante, com o profissional
por este requerido. Na espécie, o agravante, que teria ficado tetraplégico em decorrência de assalto ocorrido em
via pública, ajuizara a ação indenizatória, em que objetiva a responsabilização do Estado de Pernambuco pelo custo
decorrente da referida cirurgia, ‘que devolverá ao autor a condição de respirar sem a dependência do respirador
mecânico’. (...) Concluiu-se que a realidade da vida tão pulsante na espécie imporia o provimento do recurso, a fim
de reconhecer ao agravante, que inclusive poderia correr risco de morte, o direito de buscar autonomia existencial,
desvinculando-se de um respirador artificial que o mantém ligado a um leito hospitalar depois de meses em estado
de coma, implementando-se, com isso, o direito à busca da felicidade, que é um consectário do princípio da dignidade da pessoa
humana” (STF, Pleno, STA 223 AgR, Min. Rel. p/ac. Celso de Mello, j. 14.04.08, Informativo 502) [destacamos] (cfr.
também RODOVALHO, 2012, p. 98-99).
22 SOARES, Felipe Ramos Ribas et al. Direito civil constitucional. Coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson
Konder. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 73.
23 Cfr. SOARES, Felipe Ramos Ribas et al. Direito civil constitucional. Coordenação Anderson Schreiber e Carlos Nelson
Konder. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 88.
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24 GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 53.
25 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 19.
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munhas de Jeová), não pretende pôr fim à vida; pelo contrário, se encontra
ele justamente diante de um médico por querer ou precisar (bem) sobreviver
(não, porém, em prejuízo de sua crença, mas, sim, de modo tal que possa
conciliar o tratamento a técnica alternativas à transfusão sanguínea).
Inspirado em Riestra, aponta Nery que essa recusa constituiria, in-
clusive, “direito constitucional inerente à sua autonomia pessoal; trata-se de
direito personalíssimo que permite ao enfermo o sopesamento dos riscos e
sofrimentos que lhe trará o tratamento médico”, ponderando que “a objeção
a determinado tratamento médico constitui expressão do direito de autode-
terminação de toda pessoa no que diz respeito à gestão de sua integridade
pessoal bem como de sua própria vida”26.
Temos, portanto, que, se existente esse direito constitucional à recusa do
tratamento com hemoderivados pelos praticantes da religião denominada Testemunhas de
Jeová, inevitavelmente, dele deriva o dever dirigido tanto ao Estado quanto ao
particular que lhe faça às vezes (no caso dos planos de saúde) – ou que atue
sob o manto exclusivo do direito privado –, de cuidar desse paciente religioso
dentro dessa conhecida particularidade.
O efeito, decerto, dessa garantia constitucional (direito de recusa), é
eliminar do rol de possibilidade de tratamento desses pacientes aqueles que
demandem a utilização de sangue ou hemoderivados, emergindo-lhe a partir
daí todos os demais direitos cabentes a qualquer outro paciente, quer pela lei,
quer pelas regulamentações e códigos de ética médicos.
Em suma, ao paciente que efetivamente possua essa crença, cabe o
direito de ser atendido por médicos que lancem mão de procedimentos que
não envolvam transfusões de sangue ou hemoderivados, sendo certo que, em
eventual risco iminente de vida, surgirá, então, novo conflito, agora aquele
debatido pelo Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 1.212.272.
26 NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício harmônico de
direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009. p. 23.
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Conclusão
Buscou-se no presente trabalho, portanto, demonstrar que dentro de
um mesmo âmbito jurisdicional (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo),
decisões proferidas podem refletir visões distintas sobre a extensão do funda-
mento republicano da Dignidade da Pessoa Humana e do Direito Fundamental
à Liberdade Religiosa, ou, ainda, da correlação (ou não) existente entre estes
e as regras do direito privado, quando se está, como no caso se esteve, diante
da demanda de tratamento médico personalizado para pacientes adeptos da
religião denominada Testemunhas de Jeová.
Quer, pois, em um aparente esforço na humanização da lei e do direito,
quer no recorro à mera tecnicidade, a atividade do exegeta – mormente, no
caso daquele que se debruça, por função, sobre a solução do caso concreto –
exige, em casos como os tratados, uma maior ou menor abertura ao primado
da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental à liberdade religiosa.
Ainda que, por vezes, prossiga aparentemente vilipendiado e não visto,
é certo que o primado da dignidade da pessoa humana prossegue incessante-
mente vivo, quer nas novas construções dogmáticas, quer nas mãos dos juízes
ordinários que, com argumentos extraordinários, por vezes se esforçaram
para não relegar o consumidor religioso à própria sorte, sem, por outro lado,
ofender o direito das operadoras de plano de saúde.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 102 – Maio-Jun/2021 49
TITLE: From the offense to the dignity of the human person perpetrated by health insurance operators
who refuse to provide the most appropriate treatment to members who confess the religion of Jehovah’s
Witnesses: a case analysis.
ABSTRACT: This current paper pretend, based on the analysis of two conflicting rulings of the São Paulo
State Court of Justice that portray the (un)protection of the consumer who professes the religion called
Jehovah’s Witness and refuses to be subjected, based on a religious conviction, to treatments involving
blood or blood products, to reflect on the principle of preserving people’s autonomy in defense of their
physical and moral integrity, which, with others, governs the Brazilian Unified Health System, and on
human dignity, in an environment of possible application of the theory of source dialogue.
KEYWORDS: Religious Freedom. Fundamental Rights. Public Policies. Human Dignity. Jehovah’s
Witnesses.
Referências
FORTES, Paulo Antonio de Carvalho. Ética, direitos dos usuários e políticas de humanização da atenção
à saúde. Saúde Soc., São Paulo, v. 13, n. 3, p. 30-35, dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902004000300004&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 3 dez. 2019.
GÜNTER, Dürig. Escritos reunidos: 1952-1983. São Paulo: Saraiva, 2016.
LIMA, Carina Camilo et al. Humanidades
��������������������������������������������������������������������
e humanização em saúde: a literatura como elemento huma-
nizador para graduandos da área da saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 18, n. 48, p. 139-150, 2014.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000100139&ln
g=en&nrm=iso. Acesso em: 3 dez. 2019.
MASSON, Nathalia. Manual de direito constitucional. 5. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017.
MELLO, Baptista de. Interpretação e humanização da lei. Revista de Direito Civil, RT, v. 95, n. 308, maio/1935
– edições especiais Revista dos Tribunais 100 anos – Doutrinas Essenciais Direito Civil Parte Geral, orga-
nizadores Gilmar Ferreira Mendes e Rui Stoco – Volume 1 – São Paulo: RT, 2011.
MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NERY Jr., Nelson. Escolha esclarecida de tratamento médico por pacientes Testemunhas de Jeová como exercício har-
mônico de direitos fundamentais. Separata, São Paulo: [s. n.], 2009.
PRIETO, Vicente. Libertad religiosa y confesiones. Bogotá: Temis – Universidad de la Sabana, 2008.
RODOVALHO, Thiago. Esponsais: o rompimento do afeto e o dever de indenizar. Revista Brasileira de
Direito das Famílias e Sucessões, vol. 26, 2012.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 11. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de
Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 212, p. 89-94, abr. 1998. ISSN 2238-5177. Disponível em: http://
bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/47169. Acesso em: 24 fev. 2020. doi:http://dx.doi.
org/10.12660/rda.v212.1998.47169.
SOARES, Felipe Ramos Ribas et al. Direito civil constitucional. Coordenação Anderson Schreiber e Carlos
Nelson Konder. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2016.