Pensar o Gênero Dialogos Com Serviço Social
Pensar o Gênero Dialogos Com Serviço Social
Pensar o Gênero Dialogos Com Serviço Social
Resumo: O artigo apresenta as três abordagens Abstract: The article presents the three most
sobre gênero mais comuns nas pesquisas no campo common approaches to gender in research
do Serviço Social brasileiro. São elas: o marxismo, in the field of Brazilian social service. They
as relações sociais de sexo e a interseccionalidade. are: Marxism, social relations of sex and
Enquanto as duas primeiras são mais recorrentes, intersectionality. While the first two are more
a última começa a adentrar as produções da área. recurring, the latter begins to enter the productions
O texto discute cada uma, mostra suas potencia- of the area. The text discusses each of them, shows
lidades e limites e estabelece algumas conexões their potentialities and limits and establishes some
entre elas. Por fim, aponta para lacunas presentes connections between them. Lastly, it points to
nas investigações sobre gênero no Serviço Social. gaps in the investigation of gender in social work.
Palavras-chave: Gênero. Marxismo. Relações Keywords: Gender. Marxism. Social Relations of
Sociais de Sexo. Interseccionalidade. Sex. Intersectionality
O
Serviço Social brasileiro produziu em sua história recente uma im-
portante contribuição aos estudos no campo das relações de gênero.
A discussão em torno da categoria gênero está presente nas pesquisas
da área, e a intervenção profissional lida diretamente com as dimensões que
envolvem o gênero, com especial destaque para os trabalhos sobre violência e
direitos reprodutivos. Nos cursos de graduação, gênero está incluído seja em
disciplinas obrigatórias, seja em eletivas. No Enade 2016, por exemplo, uma
das questões abordava a Lei Maria da Penha. Nesse sentido, há um acúmulo
consolidado de conhecimento sobre gênero no Serviço Social, movimento que
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http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.141
acompanha a relevância que as relações de gênero têm para a compreensão
da vida social.
Os sentidos dados a gênero no campo do Serviço Social são variáveis
(e isso não é uma exclusividade da área). Gênero é um conceito em perma-
nente disputa, para citarmos Joan Scott (2012). Seu significado nunca se
estabiliza. Há no Serviço Social uma compreensão geral de que gênero trata
das relações de poder na vida social, relações essas que atribuem posições
assimétricas ao masculino e ao feminino. Desse modo, as desigualdades de
gênero constituem-se como um dos focos do trabalho do assistente social e
de suas preocupações de pesquisa. No entanto, o acordo parece parar nesse
ponto. A partir desse caldo comum, emergem perspectivas distintas. Este
artigo apresenta essas perspectivas.
Três advertências são necessárias aqui: em primeiro lugar, não há a
pretensão de se esgotar todas as perspectivas presentes no campo; minha
seleção é parcial. Essa parcialidade advém de minha experiência prática
como docente de curso de graduação em Serviço Social. Em segundo lu-
gar, sublinho que todas as perspectivas aqui apresentadas são igualmente
relevantes, embora as duas primeiras (marxismo e as relações sociais de
sexo) sejam as mais utilizadas e a última (interseccionalidade) esteja co-
meçando a adentrar nas produções acadêmicas em Serviço Social. Não há
uma ordem de importância entre elas. A sistematização das perspectivas
serve para começar um diálogo e não é, de maneira alguma, a palavra final
sobre o tema. A terceira advertência é que podemos observar um trânsito
entre perspectivas. Elas não se comportam necessariamente como estanques,
mas dialogam entre si.
1. Gênero e marxismo
Para fins deste artigo, vou começar por me apoiar na leitura de Nancy
Holmstrom em “Como Karl Marx pode contribuir para a compreensão do
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gênero?”, publicado em português na coletânea Gênero nas Ciências Sociais”
(2014). A autora defende que a abordagem de Marx oferece um caminho
apropriado para a compreensão das relações de gênero como relações so-
ciais. Para Marx, os seres humanos são intrinsecamente interdependentes, e
a produção e reprodução da vida humana são, ao mesmo tempo, biológicas
e sociais. As posições relacionais de homens e de mulheres são componentes
da produção e da reprodução. Portanto, divisões que se apresentam como
naturais são, não obstante, socialmente construídas. Esse é um ponto fun-
damental para qualquer teorização acerca das relações entre gêneros. Nesse
sentido, Holmstrom está correta em ressaltar a contribuição inicial de Marx
para pensar o tema. No entanto, acrescentaria que, para Marx, a divisão sexual
do trabalho é entendida como interdependência entre os sexos, e não pensada
em termos de subordinação de um sexo a outro. A problematização da divi-
são do trabalho em Marx começa com a separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual, e não com a divisão sexual. O fato de que mulheres na
ordem capitalista irão compor a força de trabalho é tratado por Marx menos
como uma questão que afeta as mulheres e mais como um processo que diz
respeito à lógica da acumulação capitalista.
Coube ao trabalho de F. Engels, A origem da família, da propriedade
privada e do Estado (2014), publicado originalmente em 1884, o desenvolvi-
mento de uma teoria que ligou as relações de dominação das mulheres pelos
homens à formação da família monogâmica e ao advento da propriedade
privada. Entre as diversas críticas que Engels sofreu, a fundamental incide
sobre o fato de que sua explicação sobre a origem da subordinação das mu-
lheres apresenta uma série de lacunas e imprecisões, deixando de fora que
“a dominação masculina, às vezes violenta, existe também nas sociedades
pré-classistas que não conhecem a propriedade privada” (Trat, 2014, p. 362).
As críticas formuladas à obra de Engels serviram como ponto de partida para
uma renovação da abordagem marxista no que tange ao lugar das mulheres.
Nos anos 1970, esse debate frutificou no interior do feminismo dessa década.
Não vamos recuperá-lo aqui, pois seria tema para outro artigo, mas apontamos
a contribuição fundamental de uma autora brasileira que é referência até os
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dias de hoje dentro e fora do Serviço Social: Heleieth Saffioti. Ela será uma
das pioneiras na revisão do tratamento dado à subordinação feminina nas
sociedades de classes.
Duas questões paralelas atravessam a renovação da abordagem marxista
sobre gênero. A primeira delas é desenvolver a reflexão sobre o que responde
à alocação das mulheres no mundo da reprodução, visto como trabalho não
pago, e dos homens ao lugar da produção, ou do trabalho assalariado. Em
segundo lugar, responder à pergunta sobre qual é a participação do trabalho
não pago das mulheres na reprodução da força de trabalho, elemento essen-
cial à ordem capitalista. E mais: qual seria o impacto da incorporação das
mulheres no mundo do trabalho assalariado? É necessário sublinhar que é
prioritariamente a discussão sobre o lugar subordinado dado às mulheres na
vida social que guia o olhar dos debates marxistas.
Saffioti escreveu uma tese de doutorado no ano de 1969 intitulada A
mulher na sociedade de classes: mito e realidade. É um trabalho de fôlego
no qual a autora lida com uma questão: a tese de que a incorporação das
mulheres à força de trabalho no capitalismo varia conforme o grau de de-
senvolvimento das forças produtivas. O pleno desenvolvimento do sistema
capitalista de produção expele o trabalho feminino em um processo de
marginalização das mulheres, levando-as ao trabalho parcial ou à posição
exclusiva de “dona de casa”. A figura da “dona de casa” de família de classe
trabalhadora seria o produto mais acabado desse processo, pois, afastada do
mundo produtivo ou parcialmente integrada a ele, a mulher ficaria relegada
às tarefas da reprodução, aquelas que produzem e reproduzem as gerações
atuais e futuras de trabalhadores assalariados. Nesse aspecto, as mudanças
no lugar da mulher na família seriam essenciais para entender a sociedade
capitalista. A autora conclui seu trabalho apresentando uma instigante dis-
cussão sobre a alienação da dona de casa.
Esse processo de marginalização da mulher é permeado pelo que
Saffioti qualifica de “mística feminina”,1 ou seja, a legitimação ideológica
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do lugar subalternizado da mulher na sociedade. Saffioti divide a tese em
dois grandes momentos: um em que apresenta a ideia central de margina-
lização das mulheres na sociedade de classes e outro em que se dedica a
acompanhar como se efetiva essa marginalização em uma sociedade perifé-
rica como a brasileira. A tese é um marco na produção intelectual de nosso
país e nos apresenta a conexão entre sexo e classe social. Para ela, o sexo é
uma característica da estratificação social. A estratificação é um princípio
de classificação social que estabelece distâncias diferenciais e assimétricas
entre posições. A estratificação distribui prestígio, status e autoridade na
ordem social. Nessa qualidade é que se pode estabelecer um vínculo entre
sexo e classe. A produção na sociedade de classes depende da formação de
uma força de trabalho que inclui alguns elementos e segrega outros. Essa
seleção, por sua vez, depende fundamentalmente das atribuições de status
baseadas em sexo, idade e raça,2, na medida em que são esses os fatores que
determinam quem ocupará lugares na produção e quem ficará subalternizado
ou excluído nesse processo. Segundo a autora, a estratificação social é um
catalisador das tensões sociais na ordem capitalista. Nesse sentido, as lutas
feministas em torno do acesso das mulheres ao trabalho remunerado carregam
um potencial revelador das contradições da própria formação capitalista. Esse
potencial pode ser realizado na medida em que os limites da incorporação
das mulheres ao mundo do trabalho assalariado e a natureza da relação entre
reprodução (as tarefas domésticas) e o mundo da produção — a divisão sexual
do trabalho — sejam efetivamente compreendidos. O desafio do feminismo
2. A raça perde força na análise de Saffioti, pois ela compartilha de uma leitura que vê a sociedade
brasileira como um espaço de miscigenação, onde a cor poderia ser suavizada como atributo, sendo a figura
do mulato um emblema dessa operação. Já o sexo não teria a mesma capacidade. Sendo assim, sexo ocuparia
um lugar essencial como forma de estratificação social. Nas palavras da própria autora: “As características
raciais visíveis do grupo minoritário, muitas vezes selecionadas socialmente como marcas negativas, a fim de
tornar desigual a competição para os dois grupos raciais em presença, podem, portanto, perder-se através da
miscigenação. No caso da mulher, o atributo isolado socialmente para operar como regulador da competição
— o sexo — não pode nem ser atenuado nem desaparecer. Disto isto não se pode concluir que a estratifica-
ção a partir do sexo jamais desaparecerá da sociedade. A digressão tem o objetivo somente de diferenciar a
situação da mulher da situação das minorias raciais e mostrar que o sexo, enquanto fator natural que é, estará
sempre presente, podendo ser usado como critério de atribuição de status com consequências negativas para
a mulher, como empiricamente se tem verificado” (Saffioti, 2013, p. 425).
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para Saffioti seria realizar essa compreensão e nessa tarefa incluir também os
homens. “Sendo homens e mulheres seres complementares na produção e na
reprodução da vida, fatos básicos da convivência social, nenhum fenômeno
há que afete a um deixando de atingir o outro sexo” (Saffioti, 2013, p. 34).
A tese central de Saffioti, qual seja: a marginalização da força de
trabalho das mulheres no capitalismo, foi revista por teóricas ligadas ao
campo da sociologia do trabalho. Essa revisão foi de grande relevância
para a consolidação desse campo de estudos no Brasil (Souza-Lobo, 2011).
Atentou-se, sobretudo, para a investigação das relações de trabalho propria-
mente ditas e para a crescente heterogeneidade dos processos de trabalho
no capitalismo. A expansão e a diversificação do emprego feminino em
alguns setores produtivos na América Latina dos anos 1970 trouxeram a
necessidade de reformulação da hipótese da marginalização ao mesmo
tempo em que desafiaram as pesquisas a pensar o porquê de essa incorpo-
ração da força de trabalho das mulheres conviver com a permanência da
subordinação social das mesmas, expressa nos baixos salários e na segre-
gação ocupacional. As mulheres ampliaram sua participação na indústria
e na agricultura, mas também cresceram o trabalho doméstico remunerado
e o setor de serviços. A modernização tecnológica não afastou necessaria-
mente as mulheres do trabalho assalariado, embora os salários delas sejam
mais baixos em relação ao dos homens no mesmo tipo de função. Para
além de pensar o sexo como mecanismo de estratificação social constitu-
tivo da exploração capitalista, a sociologia do trabalho aprofundou-se na
investigação da forma da divisão sexual do trabalho em sua variabilidade
histórica e conjuntural. A chamada “sexualização das ocupações” passou
a ocupar lugar de destaque na produção desse campo de estudos ao longo
da década de 1980 e início da de 1990.
A pergunta sobre a construção das tradições que fixam o sexo do trabalho, das
ocupações e das tarefas, remete, especialmente nas realidades heterogêneas da
América Latina, à reconstituição tanto da história das trajetórias femininas e das
tradições e representações simbólicas, como do comportamento do mercado de
trabalho e da dinâmica das relações capitalistas. (Souza-Lobo, 2011, p. 172)
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Essas trajetórias, tradições e representações simbólicas têm um lugar
distinto daquele atribuído por Saffioti à “mística feminina”.3 Não são legiti-
mações ideológicas, mas práticas sociais, ou seja, como homens e mulheres
vivem as relações de trabalho, como experimentam situações determinadas
no mercado de trabalho, como produzem resistências. Dá-se um lugar mais
estruturante às relações de gênero no mundo do trabalho, tão relevante quan-
to a dinâmica do capital. Passa-se a prestar mais atenção à diversidade e à
complexidade dos processos de trabalho e das relações no interior do mer-
cado de trabalho, abrindo espaço para pesquisas que mapeiam as trajetórias
laborais de homens e de mulheres, suas distintas relações com o sindicato,
aproximando as investigações de preocupações com o tema das mobilidades
no mundo do trabalho e das estratificações sexuais e ocupacionais.4
3. É importante lembrar que Saffioti escreveu outros trabalhos além da tese e que se dedicou pos-
teriormente a refletir sobre o conceito de patriarcado e sua relação com a violência contra as mulheres,
complexificando bastante sua análise anterior sobre a questão da ideologia, assim como das relações entre
gênero, raça e classe. Em seus escritos posteriores, a autora aproxima-se da ideia de que gênero, raça e
classe estão imbricados e são estruturantes da vida social. Nas palavras da autora: “O importante é analisar
estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do
nó górdio ou apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de seus componentes. Não
que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica
especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma
lógica contraditória. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó
adquire relevos distintos. E esta motilidade é importante reter, a fim de não tomar nada como fixo, aí inclusa
a organização destas subestruturas na estrutura global” (Saffioti, 2004, p. 125). Esta é uma posição diversa
daquela apresentada em sua tese de 1969.
4. O que desliza o conceito de classe para uma interpretação de cunho mais weberiano.
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e mulheres e as atribuições de poder que repartem esses elementos de forma
contraditória são constitutivas da vida social em geral. Que as relações de
trabalho (contraditórias no capitalismo) sejam inerentemente sexuadas (e
contraditórias) traduz justamente a percepção de que toda vida social o é. A
noção de que sexo e classe (relações que se estabelecem na produção da vida
material) são consubstanciais tem a ver justamente com essa compreensão
de que são ambas constitutivas uma da outra, antagônicas e estruturantes da
vida social. Vale ressaltar o caráter de antagonismo que essas relações têm.
Segundo Kergoat (2016, p. 20): “Para que se possa falar em relação social, é
necessário que esta domine, oprima e explore”. Nesse sentido, o trabalho das
mulheres é trabalho explorado e expropriado, na medida em que elas são força
de trabalho disponível para o capital e que as tarefas destinadas à reprodução
da própria força de trabalho como cozinhar, lavar, cuidar de crianças, são
classificadas socialmente como femininas. A expropriação e a exploração
das mulheres na divisão do trabalho sob o capitalismo deixam claro que a
figura clássica do trabalhador livre não pode ser definida estritamente pelo
masculino. Parafraseando o título do livro de Elisabeth Souza-Lobo (2011):
“A classe operária tem dois sexos”.
As políticas voltadas para a conciliação entre trabalho doméstico
(trabalho reprodutivo) e trabalho assalariado (trabalho produtivo) incidem
sobre as formas de inclusão da força de trabalho das mulheres no mundo
produtivo e afetam as relações entre homens e mulheres no espaço doméstico
(Hirata e Kergoat, 2007). Segundo Fraser (2009), uma das críticas centrais
do feminismo liberal dos anos 1970 ao Estado de bem-estar baseou-se na
denúncia do modelo do homem provedor como paradigma da família. Esse
modelo contribuiu para o confinamento das mulheres ao mundo privado.
Na perspectiva das relações sociais de sexo, o conceito de trabalho passa
a ser dilatado. O trabalho na sua acepção marxista clássica, entendido como
produção de valor, é modificado e passa a referir-se ao que Kergoat (2016)
chama de “produção do viver em sociedade” ou o conjunto das atividades
necessárias para a produção material e reprodução da vida. Foi preciso
pensar o trabalho a partir do mundo das mulheres para que a compreensão
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das relações sociais no capitalismo transbordasse a perspectiva clássica do
trabalho como produção de valor, incluindo a reprodução dos seres humanos
e sua socialização (a família) como esfera também produtiva — embora
não produtora de mais-valia —, e não somente unidade de consumo. Nesse
sentido, a perspectiva das relações sociais de sexo estabelece um diálogo
com o marxismo, mantém sua perspectiva materialista, mas promove uma
reinterpretação de conceitos-chave da tradição marxista, como trabalho, a
relação entre produção e reprodução e classe social. Compreender esse salto
interpretativo é fundamental para acompanharmos o debate como um todo.
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das relações entre produção e reprodução. A própria noção de classe social
aparece renovada no sentido de que se incorpora a noção de que a classe se
faz na conjunção entre produção e reprodução.5
Ainda segundo Kergoat (2016), são as tarefas do cuidado que melhor
traduzem essa acepção reformulada do trabalho. A categoria “cuidado”
ou “care” carece de uma definição exata. De acordo com Helena Hirata
(2010, p. 48):
5. No interior do campo marxista, essa perspectiva não é incomum. Basta pensar nas contribuições de
E. P. Thompson.
6. Agência é um conceito caro ao debate sociológico contemporâneo, pois nos permite pensar para
além da dicotomia indivíduo X sociedade, marca do pensamento sociológico clássico. Agência diz respeito
às formas de ação social que constituem a vida em sociedade. Toda ação social é ao mesmo tempo limitada e
criadora, por isso a noção de que a dominação se constitui, mas não oblitera certas margens de manobra dos
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trabalho dominado per se; embora as condições de exploração desse tra-
balho sejam consideradas, observando-se as formas heterogêneas e pouco
reguladas desse tipo de serviço. Resgatando o compromisso da abordagem
das relações sociais de sexo com a lógica da contradição, as pesquisas costu-
mam observar os antagonismos de raça, etnia, classe e gênero, conformando
os trabalhadores e o trabalho do cuidado. Na produção contemporânea da
sociologia do trabalho, o tema do cuidado ou care tornou-se central para
pensar o estatuto do trabalho no capitalismo contemporâneo. As principais
áreas de investigação abordaram recentes movimentos migratórios que des-
pejam possíveis trabalhadores do cuidado (em sua maioria mulheres) entre
fronteiras nacionais e dentro dessas fronteiras, inaugurando novos formatos
de circulação da mão de obra feminina, mão de obra essa conformada por
classe, raça e etnia (Guimarães, Hirata e Sugita, 2011).
3. Interseccionalidade
agentes, tornando a vida social, portanto, sempre mais complexa, nuançada e dinâmica. Compreender a ação
dos agentes sociais nos permite entender como “habitamos as normas” (Mahmood, 2005).
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reparo fundamental: à pureza sexual imposta à mulher branca contrapõe-se
a hipersexualização dos corpos das mulheres negras. À maternidade vigiada
das mulheres brancas contrapõe-se a negação da maternidade das mulheres
negras. O paradigma patriarcal projetou uma sombra sobre as experiências
corporais e sexuais das mulheres negras, marginalizando-as como mulheres
e reduzindo-as à sua raça. Esse ajuste de perspectiva para além da ótica
patriarcal mudou o percurso do feminismo e ainda faz surtir seus efeitos no
campo feminista atual. É a partir dele que a chamada interseccionalidade
será construída. Não irei me aprofundar sobre o feminismo negro nesse
artigo. Mas é importante sinalizar que o feminismo negro é o berço da in-
terseccionalidade e que essa origem faz toda a diferença na forma como a
interseccionalidade opera com raça.
A abordagem interseccional coloca a raça e a sexualidade no centro
da problematização das relações de gênero. Mara Viveros (2009), no artigo
“La sexualización de laraza y laracialización de lasexualidadenel contexto
latino-americano actual”, apresenta sucintamente autoras que trabalharam a
articulação entre gênero, raça e sexualidade. Baseando-se nas discussões da
feminista negra norte-americana Kimberle Crenshaw (2005, apud Viveros,
2009), primeira a usar o termo interseccionalidade, Mara Viveros aponta
para a operação política de transformação do sexo, da sexualidade e da raça
em natureza e que essa transformação justificou e justifica desigualdades,
dificultando formas de resistência. Esse processo de transformação é histórico
e está na base das estruturas de dominação que constituem a chamada mo-
dernidade colonial. Os sujeitos coloniais são marcados por sua cor e por seu
gênero, esses se tornam a sua “essência” e os designam à posição de objeto
da empresa moderna colonial. A empresa colonial, por sua vez, baseou-se
amplamente no controle da sexualidade dos corpos colonizados, regulando
os encontros sexuais legítimos e marginalizando os considerados ilegítimos.
A historicidade desse processo é tratada em trabalhos destacados por Mara
Viveros em seu artigo, como os estudos pioneiros de Verena Stolcke sobre
casamento, classe e raça na Cuba do século XIX (1974, apud Viveros, 2009)
e de Sueann Caulfield sobre honra, raça e moral sexual na construção da ideia
de nação no Brasil republicano (1998, apud Viveros, 2009). A esses estudos
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acrescento o trabalho de Angela Davis (1981/2016), expoente do feminis-
mo negro norte-americano. Em Mulheres, raça e classe, a autora percorre
a situação dos negros e das negras no período pós-abolição da escravatura
nos EUA, mostrando como se estabelecem desigualdades raciais profundas,
clivadas por classe e gênero. No trabalho de Davis, alguns capítulos se de-
dicam a sexualidade e reprodução. No Brasil, Lélia Gonzalez (1984) é uma
referência no assunto ao tratar da articulação entre racismo e sexismo. O que
essas autoras nos apresentam é uma visão bastante inovadora a respeito da
reformulação do debate de gênero a partir da ótica étnico-racial.
Refletindo a partir de (e nos) contextos de países colonizados, e am-
parando suas pesquisas em conjunturas históricas concretas, essas investi-
gações trouxeram à tona a importância de se levar a sério o cruzamento de
raça e gênero para a explicação das formas de subordinação e de resistência
produzidas em sociedade. O corpo marcado por gênero, sexualidade e raça
aparece como um distintivo fundamental para a constituição das situações
de opressão. Obedecendo a um enfoque que preza pela situacionalidade do
conhecimento, a perspectiva interseccional nos ajuda a compreender os sen-
tidos da opressão em contextos delimitados, reservando um lugar essencial à
raça e etnia por serem marcadores fundamentais na construção da chamada
modernidade colonial. Nesse sentido, o corpo, seus significados e práticas
têm um lugar central nas pesquisas de corte interseccional. Na abordagem
interseccional, a raça funciona como experiência de constituição do eu
e como criação de uma comunidade de sentidos e de destino interpelada
pela cor. Essa concepção articula-se a sexualidade e gênero de uma forma
constitutiva e inextrincável.7 Para compreendê-la, é absolutamente neces-
sário trabalhar com a perspectiva dos sujeitos que vivem essas relações.
Por isso, as situações de opressão, de marginalização, de fronteiras sociais
são o terreno propício das investigações interseccionais.8 Não é à toa que
7. É possível inserir classe nesse contexto, desde que entendida como experiência de classe, no sentido
thompsoniano (1987) ou como entendida por Pierre Bourdieu (1996).
8. Autoras ligadas à abordagem das relações sociais de sexo tendem a classificar a abordagem inter-
seccional como descritiva, e não explicativa, pois esta não levaria em conta nem as dimensões materiais da
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a antropologia, entre as áreas das ciências sociais, é aquela mais próxima
da perspectiva interseccional com seus estudos etnográficos que cruzam
diferentes marcadores sociais (Moutinho, 2014).
Cabe apontar ainda que o que se denomina de modernidade colonial ou
colonialidade é um processo moderno e permanente de desumanização que
não se esgota em um passado colonial distante e superado. A colonialidade
permite, incentiva e necessita da produção constante de classificações so-
ciais que reduzem os seres humanos a objetos quantificáveis e controláveis.
Categorizar, criar dicotomias e hierarquizar são atividades características
da colonialidade. Para Lugones (2008 e 2014), a dicotomia central da mo-
dernidade colonial é a hierarquia dicotômica entre humano e não humano.
O colonizado foi convertido em não humano no projeto colonial moderno.
Nessa polarização entre humano e não humano, as gentes colonizadas opõem-
-se ao europeu branco e são inferiorizadas, racializadas e engendradas. A
hipersexualização da fêmea heterossexual negra/indígena colonizada é um
ícone desse processo. Ao engendrar, racializar e sexualizar, a colonialidade
produz a diferença colonial como medida absoluta de todas as formas de
vida, obscurecendo outras práticas e maneiras de existência. No entanto, faz
parte dos processos de resistência à colonialidade a construção de subjeti-
vidades que escapam à desumanização. É necessário confrontar a diferença
colonial a partir do pensamento do colonizado como ser que habita um lócus
fraturado que está em constante tensão e conflito. Nesse sentido, a aborda-
gem interseccional compromete-se em investigar as relações de opressão
considerando fundamentalmente o ponto de vista daquele que se encontra
marcado por essas relações. O poema “Gritaram-me negra”, de Victoria
Santa Cruz, expressa com maestria essa noção de situação de opressão e as
resistências que se tecem a partir dela.
dominação nem a história (Hirata, 2014). No entanto, essa crítica carece de uma compreensão mais fina
sobre o entendimento da noção de “situação de opressão”. A questão tem a ver com metodologia de pesquisa
e de construção do objeto de investigação. O recorte analítico da abordagem interseccional é a delimitação
da situação e os distintos atores sociais em interação nessa situação. Há história, mas não no sentido dado
pelo materialismo. Não se considera a expropriação e a exploração de classe como pensadas pela abordagem
marxista clássica. Mas se considera classe a partir de outras visões, como indica a nota citada.
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[...]
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
E mirei apenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
[...]
Até que um dia que retrocedia, retrocedia e ia cair
Negra! Negra! Negra! Negra!
[...]
E daí? E daí?
Negra!
Negra!
Sim!
Negra!
SOU!
Considerações finais
Percorremos um caminho que aponta para três distintas abordagens
teóricas e metodológicas sobre gênero. Essas abordagens estão presentes
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na produção acadêmica do Serviço Social; algumas com mais forte pre-
sença, como as duas primeiras. O objetivo deste artigo foi sistematizar
essas concepções e apontar alguns aspectos que considero importantes: 1)
É preciso discernir cada uma das abordagens para que o diálogo entre elas
seja de fato profícuo. É fundamental saber para onde cada uma nos leva
teoricamente para que não façamos um uso inadequado delas; 2) As críticas
aos limites e potencialidades de cada abordagem podem e devem ser feitas,
desde que se guarde a devida atenção ao que cada uma de fato afirma e que
se conheça de onde vieram e para onde apontam; 3) Abordagens teóricas e
metodológicas não são receitas, mas inspiração para fazer pesquisa. Sempre
que elas nos inspiram, são suficientes; se nos limitam à repetição do que já
sabemos, não nos servem.
Nesse breve inventário produzido até aqui persistem algumas lacunas
para o Serviço Social: gênero tem sido usualmente pensado como sinônimo
de mulheres. Em geral, é a situação das mulheres que aparece com mais niti-
dez nas abordagens sobre gênero empregadas na área. Os homens aparecem
menos e quando o fazem é por derivação. Os homens se fazem conhecer
a partir da investigação sobre mulheres. As pesquisas acabam enfocando a
questão da mulher ou das mulheres e menos as relações de gênero propria-
mente ditas. Não é por acaso que inúmeras vezes o interesse pelo conceito
de patriarcado é o que desponta nos estudos do Serviço Social, fazendo com
que se perca o foco na discussão de gênero.
A atenção ao gênero para além das formas binárias é menos evidente nas
pesquisas do Serviço Social. Embora alguns estudos já tratem dos temas das
sexualidades e corpos dissidentes, a discussão ainda é restrita. A contribuição
da teoria queer ao debate de gênero encontra pouca acolhida nas produções
acadêmicas do Serviço Social.
O cruzamento entre raça e gênero, tal qual formulado pela abordagem
interseccional, ainda é periférico na produção do Serviço Social. A tendência
à incorporação da questão étnico-racial tem sido feita pela via da relação
com o debate marxista clássico, em que raça tende a aparecer como forma de
estratificação social — o mesmo se passa com gênero —, e assim coadjutora
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das relações de exploração de classe, ou através da abordagem das relações
sociais de sexo, incluindo raça como consubstancial à classe e gênero e,
portanto, estruturante da vida social. No entanto, essa incorporação, seja
num caso como no outro, precisa ser tratada com mais atenção, pois há o
risco de raça ser lida como sinônimo de cor (negro), e não como sinônimo
de relações raciais, relações entre negros e brancos, num processo similar
ao que já ocorre com o debate de gênero. O compromisso em pensar as
relações de sexo, de classe e de raça como inerentemente antagônicas, em-
bora seja frutífero, também pode levar à excessiva redução dessas relações
a esquemas dicotômicos, deixando de fora aspectos mais complexos dessas
mesmas relações, sobretudo as de gênero e de raça. Além disso, pensar raça
como categoria sociológica também necessita de maior explicitação. Essa
explicitação, por sua vez, precisa de um aprofundamento sobre a história
das relações raciais no Brasil recente.
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