Sustentabilidade e Articulação Territorial Do Desenvolvimento Brasileiro - Henri Acselrad
Sustentabilidade e Articulação Territorial Do Desenvolvimento Brasileiro - Henri Acselrad
Sustentabilidade e Articulação Territorial Do Desenvolvimento Brasileiro - Henri Acselrad
Henri Acselrad*
Resumo
*
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do CNPq.
1
Abstract
2
exemplo, Conway refere-se à sustentabilidade como “a capacidade do sistema
manter sua produtividade face a grandes distúrbios como aqueles causados por
erosão do solo, secas imprevistas e novas pragas”1. Podemos observar toda
uma trajetória desse conceito de uma para outra disciplina científica até o mesmo
aparecer no final do século XX como uma noção relativamente corrente no debate
público. Neste âmbito, tratar-se-á de uma construção discursiva que colocará em
pauta os princípios éticos, políticos, utilitários e outros, que orientam a reprodução
da base material da sociedade. Ao fazê-lo, essa noção, nos seus múltiplos
conteúdos em discussão, pressupõe uma redistribuição de legitimidade entre as
práticas de disposição da base material das sociedades. Em função do tipo de
definição que prevaleça, estabelecida como hegemônica, as práticas sociais serão
divididas em mais ou menos sustentáveis, entre sustentáveis e insustentáveis;
portanto, serão legitimadas ou deslegitimadas, retirando-se e atribuindo-se
legitimidade a essas diferentes formas de apropriação.
3
definições socialmente vazias e teleológicas: são definidas pelos efeitos que
pretendem atingir e não pelos processos sóciopolíticos que deverão ser acionados
em nome de tal pretensão.
O esforço teórico que temos ainda que fazer é, neste contexto, o de tentar
trazer essa discussão de sustentabilidade para o campo das relações sociais.
Evidentemente, não tem sentido falar de natureza sem sociedade. A sociedade só
existe em relação com a natureza, nas diferentes acepções que a esta possam ser
atribuídas. A sustentabilidade remete a relações entre a sociedade e a base
material de sua reprodução. Portanto, não trata-se de uma sustentabilidade dos
recursos e do meio ambiente, mas sim das formas sociais de apropriação e uso
desses recursos e deste ambiente. Pensar dessa maneira implica certamente em
se debruçar sobre a luta social, posto que torna-se visível a vigência de uma
disputa entre diferentes modos de apropriação e uso da base material das
sociedades.
4
estaria ameaçado porque as suas bases materiais de reprodução estariam sendo
comprometidas.
Fala-se também de uma crise das relações sociais, em que o capitalismo não
poderia se reproduzir por causa da ruptura dos ecossistemas. Isto implicaria, por
ventura, considerar que por força da “crise ambiental”, o capitalismo estaria
perdendo as condições de transformar as famílias de despossuídos em
assalariados, movimento estratégico no projeto capitalista? Este também não
parece na atualidade um movimento e, menos ainda, um projeto sob ameaça.
5
produtivos e de consumo, o cálculo econômico e as formas de regulação para que
o modelo de desenvolvimento dominante pudesse prosseguir, ainda que
ajustando-se no plano de suas formas institucionais. Estaríamos vivendo assim
uma situação transitória. Não é a toa que se promoveu uma conferência
internacional da ONU para tentar lançar na esfera política o esforço de criação
dessa nova institucionalidade, de construção destas novas regulações. Por mais
que desta conferência tenha resultado muito pouco, o sintoma está dado: ele não
é só uma fabricação do movimento ambientalista, mas foi abraçado pelas elites
dirigentes internacionais.
6
concepção industrialista de progresso, desestruturam-se assim as condições
materiais de existência de grupos socioculturais territorialmente referenciados e
destroem-se os direitos das populações que estão inseridas em formas sociais de
produção não-capitalistas.
7
sob determinados padrões técnicos redefinidos, continuar sendo jogados nas
águas ou no ar no que se pretende apresentar como nível ótimo de poluição. Ao
modelo, seria garantido que se reciclasse, se ajustando. Boa parte do que se tem
apresentado como desenvolvimento sustentável vem sendo elaborado por essa
via.
8
Trata-se da discussão, entre os chamados “cowboys” e os “cornucopianos”. Os
primeiros consideram-se num imenso faroeste de horizonte infinito e despovoado,
usando recursos a seu bel-prazer. Os “cornucopianos”, por sua vez, acreditam na
capacidade da tecnologia superar todos os problemas e tornar a produção de
bens infinita. Aqui surge um conceito-chave – o de capacidade de suporte:
pretende-se direcionar o debate para a determinação de um tamanho de
população que o planeta seria capaz de tolerar. Ora, nessa perspectiva todo
mundo é equalizado enquanto consumidor de matéria e energia. Desconhecem-se
as desigualdades. Esvazia-se mais uma vez, portanto, o conteúdo social da
apropriação dos recursos do território.
Por último, há a idéia de dar preço ao que não tem preço: internalizam-se
custos e procura-se considerar a natureza como capital. Instaura-se uma tentativa
de redefinir o que situa-se sob o mercado e o que permanece fora dele. Essa é a
lógica da chamada modernização ecológica, que estaria privilegiando a esfera
econômica em relação à política: traduz-se o meio ambiente em economia para
não explicitar o que de conflito político ele encerra.
9
I. O meio ambiente em quadros conceituais não determinísticos
2
cf. J. Vieira da Silva, Introduction à la Théorie Écologique, Paris, Masson, 1979, apud Guille-Escuret, G.,
Les Sociétés et leurs Natures, Armand Colin, 1989, Paris.
3
cf. G. Guille-Escuret, Les Sociétés et leurs Natures, Armand Colin, 1989, Paris.
4
cf. C. Friedberg, "Ethnologie, Anthropologie: les sociétés dans leurs "natures" ", in M. Jollivet (org.),
Sciences de la Nature Sciences de la Société - Les Passeurs de Frontières, CNRS Ed., Paris, 1992, pp.155-
166.
5
cf. M. Sahlins, "Culture and Environment: The Study of Cultural Ecology", in Sol Tax, Panorama of
Anthropology, 1966, p.132-147.
10
"grandes projetos" reduzem estas populações à condição de "ambiente" da
barragem.6 Nestes casos, é de se supor que os sujeitos políticos que exercem a
hegemonia sobre o território tenderão a impor sobre os demais sujeitos sua
própria concepção sobre o ambiente. É a evidenciação da interação dos diferentes
sujeitos que colocará assim a possibilidade do conflito entre distintos modos de
apropriação do meio ambiente e afastará os riscos de que se tome por exclusiva a
perspectivca dos atores sociais hegemônicos.
6
cf. E. Viveiros de Castro, - L. de Andrade, Hidroelétricas do Xingu: o Estado Versus as Sociedades Indígenas, in,
Viveiros de Castro - de Andrade (ed.), As Hidrelétricas do Xingu e os Povos Indígenas, Comissão Pró-Índio, SP,1990 e
Vainer, C. - Araújo, F.: Grandes Projetos Hidrelétricos e Desenvolvimento Regional, CEDI, RJ,1992.
7
cf. T. Benton, "Marxism and Natural Limits: An Ecological Critique and Reconstruction", New Left Review
n.178, 1989, pp. 51-86.
8
cf. W.H.Matthews (ed.), Outer limits and Human Needs, 1976, Uppsala apud Benton, T., "Marxism and
Natural Limits: An Ecological Critique and Reconstruction", New Left Review n.178, 1989, pp. 51-86.
9
cf. C. Raffestin, "La Territorialité: Miroir des Discordances entre Tradition et Modernité",Revue de l'Institut
de Sociologie, n.3-4, 1984, pp.437-447.
11
determinações do meio ambiente, não fora pela ação deste mediador essencial
que é a linguagem.10
10
Segundo Gadamer, à diferença de todo outro ser vivo, a relação do homem ao mundo é caracterizada por sua liberdade
com respeito ao meio ambiente (Gadamer,1976 apud Raffestin, op. cit.,p.439). A construção linguística do mundo
diferencia assim a territorialidade humana da territorialidade animal, e os limites do mundo constituem-se pelos limites da
linguagem (Wittgenstein, L. apud Raffestin, op. cit., p.440).
11
cf. S. Lélé, "Sustainable Development, a Critical Review", in World Development, vol. 19, n.6, 1991,
pp.607-621.
12
aos elementos da base material do desenvolvimento. Considerando "os diferentes
significados das árvores dados por conjuntos de interesses em competição por
parte de proprietários fundiários, agricultores e agentes de desenvolvimento com
12
relação à agro-silvicultura", como o faz Schroeder por exemplo , as análises
poderão identificar os diferentes "modos de acesso à extração de recursos
florestais e como estes modos são conformados pelos direitos costumeiros,
formas locais de uso dos recursos, de mercados regionais e contestações legais",
[..] "mais do que ver os sistemas "tradicionais" e "indígenas" de gestão como
práticas ossificadas do passado precolonial superiores à 'silvicultura científica
ocidental'" 13.
12
cf. R. A. Schroeder, "Contested Boundaries: State Policies, Forest Classifications and Deforestation in the
Gahrwal Himalayas", Anthipode, vol. 27, n.4, 1995, pp.343-362.
13
cf. H. Rangan, "Local Challenges to Global Agendas: Conservation, Economic Liberalization and the
Pastoralists' Rights Movement in Tanzania", Antipode, vol. 27, n.4, 1995, p356.
14
cf. J.Habermas, Ciência e Técnica Enquanto Ideologia, in Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jurgen
Habermas - Textos Escolhidos, Coleção Os Pensadores, 1983, Abril Cultural, SP, pp.313-343.
15
cf. Bruno Latour, Jamais Fomos Modernos- Ensaios de Antropologia Simétrica, Ed. 34, RJ, 1994.
13
por um lado, que a cultura não é simples resposta tecnológica aos
constrangimentos materiais e, por outro, que as relações da sociedade com o
meio ambiente - inclusive pelas técnicas as mais biopoderosas - exprimem
projetos culturais e práticas de significação e não apenas respostas eficientes a
problemas utilitários.
16
cf. T. Malmberg, "Pour une Territorialité Humaine - Quelques Concepts de Base", Revue de l'Institut de
Sociologie, n.3-4, 1984, p. 369.
17
cf. T. Malmberg, op. cit., p. 367.
18
cf. T. Malmberg, op. cit., p. 367.
19
cf. S. E. Kingsland, Modeling Nature - Episodes in the History of Population Ecology, University of Chicago Press,
1995.
14
as práticas sociais são exercidas. O seu uso nos remete novamente à discussão
sobre os "limites naturais" como vetores da escassez, a qual, como mostrou-nos
Harvey, tem uma definição inextricavelmente "social e cultural em sua origem",
pois "pressupõe certos fins sociais (...) que definem a escassez tanto quanto a
falta de meios naturais para alcançar estes fins" 20.
15
outra que projeta a sustentabilidade no campo da transformação social. A primeira
é a razão prática, "que reduz a ordem cultural a uma codificação da ação
pragmática do homem, fundada na teoria da utilidade e na lógica da vantagem
22
material que induz à maximização na relação entre meios e fins" . Com ela quer-
se sustentar a ordem capitalista estendendo o campo de ação da racionalidade
econômica (a eficiência global) e produzindo uma nova subjetividade capitalista,
que seja capaz de autolimitar as taxas de acumulação (a restrição à escala do
crescimento econômico). Duas matrizes discursivas articulam a sustentabilidade à
razão prática: o discurso da eficiência propõe uma economia de meios para os
mesmos fins (o crescimento econômico), enquanto o discurso da escala propõe a
limitação quantitativa dos mesmos fins (a abundância material em que se apóia a
acumulação).
22
cf. M. Sahlins, Cultura e Razão Prática, Ed. Zahar, RJ, 1979.
23
cf. J. Ravetz - S.O.Funtovicz, The Worth of a songbird: ecological economics as a post-normal science, in Ecological
Economics 10 (1994). pp. 197-207.
16
pensamento sobre o entendimento do meio ambiente enquanto capital. Pretendem
estender assim a racionalidade do cálculo econômico para o horizonte temporal
longo da rentabilidade do capital (artificial e "natural"), não restringindo-o à mera
prevenção da eventualidade imediata de intempéries, própria da temporalidade
das sociedades camponesas. No entanto, por esta via, tal concepção da
Economia Ecológica experimentará, como o mostraremos mais adiante, a
contradição de fundar a busca de novos princípios de conservação social sobre as
bases do mesmo modelo antropológico do Homo Economicus e do individualismo
possessivo que estruturam a economia convencional.
24
cf. H. Daly, La Economia como Ciencia de la Vida, in Daly, H. (ed.) Economia, Ecologia, Ética - Ensayos hacia una
economia en estado estacionario, Fondo de Cultura Economico, Mexico, 1979, p. 247-261
17
territorializados resta o desafio de identificar as forças sociais capazes de
desenvolver novas racionalidades e protagonizar tais transformações .
25
Cf. Harvey, D. A Condição Pós-moderna, SP, Loyola, 1992.
26
Cf. Lash, S – Urry, J., Economies of Signs and Space, Sage, New York, 1996, p. 303.
18
movimentos comunitários e identitários. Na América Latina, em particular, tais
processos resultaram no enfraquecimento dos modelos de desenvolvimento
fundados no papel privilegiado do Estado na organização das bases da
acumulação. E frente às lógicas espaciais deslocalizadas dos Estados, que
tendem a subordinar o local ao global, alguns autores assinalam a ocorrência de
uma retomada das iniciativas de atores sociais localizados, que é interpretada
como um movimento de resistência à dominação do econômico, através da
politização do território e da busca de um projeto social comum em um espaço
controlável localmente. A dimensão cultural articula-se, assim, à dimensão local
numa crítica à expansão mundial das relações monetárias e mercantis e ao
primado do econômico 27.
27
Cf. Léna, P., "Emergence de Nouveaux Acteurs Sociaux, Dévelopement Durable et Organizations Non-
gouvernamentales", Simpósio Internacional O Desafio do Desenvolvimento Sustentável e a Geografia
Política, IGU/LAGET, Rio de Janeiro 22-25 oct. 1995, pp.119-130.
19
na entrada no circuito dos serviços imateriais de alta tecnologia. Dado o tamanho
e a complexidade da economia brasileira e as resistências a um modelo
exportador, aponta-se para um modelo bidimensional de mercado, onde os
ganhos de escala na produção para o consumo interno gerariam vantagens para a
competição no mercado internacional. A inserção neste último exigiria um
mergulho no novo paradigma tecnológico e organizacional da acumulação flexível,
através da conexão estratégica entre reestruturação produtiva, progresso técnico
e educação28. O investimento maciço em "capital humano" aparece então como
condição do crescimento no contexto do novo paradigma industrial. De olho na
dinâmica do capitalismo contemporâneo, um tal modelo tende a interpretar a
sociedade como uma máquina industrial (ou, se preferirmos uma representação
mais atual, como uma constelação de firmas inovadoras em competição), ainda
que operando em meio a condições político-institucionais. É praticamente
inevitável que o social aí apareça, analiticamente, sob a forma de "recursos
humanos". Mas o discurso das novas tecnologias estende-se igualmente ao
campo, onde uma agricultura empresarial moderna continuaria a expandir sua
fronteira econômica e a agregar valor aos recursos naturais. O agro, portanto, só
aparece enquanto subsetor do complexo agroindustrial, um simples elo da matriz
inter-industrial, desprovido de relações sociais e estruturas políticas que lhe sejam
específicas. Ignora-se assim o papel estratégico da terra e dos sujeitos sociais do
campo no pacto político de sustentação do novo modelo de desenvolvimento. Ou
antes, não se enfrenta, mais uma vez, a estrutura fundiária hiper-concentrada que
assegurou a participação das oligarquias rurais em todos os pactos conservadores
responsáveis pelos inigualáveis padrões de desigualdade social do Brasil.
28
Elementos básicos de tal perspectiva podem ser encontrados em J.P. dos Reis Velloso, Inovação e Sociedade - Uma
Estratégia de Desenvolvimento com Equidade para o Brasil, José Olympio Editora, 1994, e Um Projeto para o Brasil - A
Proposta da Força Sindical, Geração Editorial, SP.
20
instituição de "empresas inteligentes" dificilmente dará conta , mesmo a médio
prazo, dos vastos contingentes de excluídos - aqueles cuja condição histórica
Robert Kurz definiu como a de "sujeitos monetários sem moeda".
29
É evidente que o espaço territorial foi fundamental em toda a trajetória do desenvolvimento capitalista no Brasil. A
incorporação produtiva do espaço deu-se, no entanto, no compasso da temporalidade do capital agro-mercantil,
inicialmente, agroindustrial, industrial e financeiro, em seguida (sempre, por certo, com redução da complexidade
biológica e social do território). Referências repetidas à vastidão continental do país, à terra como principal meio de
produção do complexo agro-exportador do capitalismo nascente, à ocupação da fronteira agrícola como vetor do padrão
extensivo de expansão capitalista, à colonização de "espaços vazios" nas estratégias nacional-militares de ocupação
territorial, à integração nacional de espaços segmentares através dos grandes projetos de investimento do planejamento
territorial autoritário, são, todas, indicações da significação do espaço no desenvolvimento capitalista no Brasil. cf.
C.B.Vainer, Processos de Ocupação Social do Território, in V Seminário Nacional sobre Universidade e meio Ambiente,
B.H., abril 1992. No entanto, todos estes fatos espaciais constituem a dimensão territorial de uma dinâmica de acumulação
que é extraterritorial. Nessa perspectiva, falar de modelos de desenvolvimento alternativos fundados nas possibilidades do
território significa dar às distintas configurações sócio-espaciais sentidos diferentes daqueles impostos pela lógica de
acumulação até aqui prevalecente.
21
movimentos sociais em sua articulação com as respectivas bases territoriais -
camponeses, pescadores, comunidades extrativistas. Peça emblemática de tal
modelo é a reforma agrária que, fortalecendo a agricultura familiar, produziria um
reordenamento da ocupação do espaço, reduzindo a pressão demográfica nas
cidades, enfrentando a desigualdade e a exclusão social e articulando as metas
de segurança alimentar, preservação do potencial de biodiversidade e busca de
alternativas ecologicamente sustentáveis à agricultura químico-mecanizada.
30
cf. Regina Novaes, Reforma Agrária e Cultura política no Brasil, in Democracia na Terra n.9, março-abril 1993,p.3.
31
cf. Rudá Rucci, Um Novo Patamar de Elaboração , in Democracia na Terra,n.3, jan.-fev. 1992,p.4.
32
Caberia hoje, segundo Maria da Conceição d'Incao, "orientar o conhecimento acumulado para um novo projeto político
de solução da questão social no campo - um projeto capaz de pensar as lutas dos trabalhadores rurais como parte do
movimento mais geral de transformação da sociedade. Isto é, não mais como incluídos/excluídos do processo produtivo,
mas como questionador da forma pela qual esse mesmo processo vem se desenvolvendo", cf. M.Conceição D'Incao,
22
É consenso que o fordismo nos países centrais conseguiu , ao mesmo
tempo, integrar a economia e os territórios, distribuir renda e abrir algum espaço
de participação democrática. No Brasil, o capitalismo associado integrou o
território à acumulação expulsando do campo "excedentes populacionais"
liberados da terra que não foram todos reincorporados pela via do assalariamento
- constituindo legiões de pobreza em movimento pelo território. A "despossessão
ambiental" destas populações - despojadas de qualquer ambiente de referência - é
figura emblemática do padrão de desenvolvimento do capitalismo brasileiro33.
Governo de Transição: Entre o Velho e o Novo Projeto Político de Reforma Agrária, in Lua Nova n. 20, maio 1990, pp.
89-120.
33
Estima-se que no Brasil, na década de 60, quase 13 milhões de pessoas saíram do campo para morar nas cidades; na
década de 70, esse número subiu a quase 16 milhões. Há indicações de que o destino preferencial dessa migração foi,
numa primeira etapa, as cidades mais próximas, ou a capital do estado de origem, e numa etapa seguinte, centros regionais
ou cidades metropolitanas. Três grandes movimentos de expansão de fronteira agrícola foram alternativa de absorção de
fluxos populacionais: migração rural-rural para o Norte e Noroeste do Paraná; para a faixa central do país(Mato Grosso do
Sul, Goiás, Tocantins e Maranhão; e para a região amazônica.cf. G. Martine, Desenvolvimento, Dinâmica Demográfica e
Meio Ambiente: Repensando a Agenda Ambiental Brasileira, ISPN , Documento de Trabalho n.1, Brasília, mimeo, 1991.
Há indícios de que, na década de 80, a mobilidade generalizada declinou, dada a perda de dinamismo do emprego,
mantendo-se, porém, em direção a Rondônia e aos garimpos. O trajeto migratório tendeu a delinear-se em um raio menor.
Os fatores que explicaram o êxodo rural (crédito subsidiado, elevação de preços e especulação fundiária) também foram
atenuados no período 1980-1985. É possível que pequenos produtores tenham voltado das cidades nesse período,
impelidos pela dificuldade de encontrar sustento no contexto urbano. Na segunda metade dos anos 80, retomaram os
padrões migratórios que prevaleceram entre 1960-80, pela reativação dos incentivos às "super-safras", a elevação do valor
comercial da terra e a redução do espaço para a pequena produção retentora de mão-de-obra no campo. cf. G. Martine,
Processos Recentes de Concentração e Desconcentração Urbana no Brasil: Determinantes e Implicações, ISPN.
Documento de Trabalho n.11, Brasília, mimeo, 1992.A grande mobilidade populacional verificada no país nos últimos
trinta anos, segundo pesquisadores da FIOCRUZ, aumentou o risco de introdução de parasitos a partir de hospedeiros ou
mercadorias contaminadas. "Nas áreas endêmicas, o aumento da taxa de contato social vai refletir-se diretamente no
incremento da força de transmissão dos parasitos, e, portanto, na incidência das doenças". "Se considerarmos doenças que
têm mecanismos de transmissão tão diferentes como a meningite meningocócica, a malária, a hanseníase, a leishmaniose
tegumentar, a AIDS, podemos observar tendência de incremento dos casos em todas elas nos últimos vinte anos. A
mobilidade maior e, portanto, o aumento da taxa de contato social parece ser o processo geral que vai se expressar,
através de cada uma, como problemas particulares, mediados por características ambientais e sociais das diferentes
situações", cf. P.C. Sabroza - M.C. Leal, Saúde, Ambiente e Desenvolvimento - Alguns Conceitos Fundamentais, in
Saúde, Ambiente e Desenvolvimento - Uma Análise Interdisciplinar, vol.1, Hucitec-Abrasco,1992,SP/RJ,pp.45-93.
23
capitalismo estaria "fora dos eixos" e deveria se curvar diante do espaço - a
acumulação acelerada e predatória estaria levando as empresas a consumirem
como renda seu "capital natural". Caberia agora - dizem-nos os economistas do
meio ambiente - colocar limites à aceleração da acumulação, privilegiar a
"espacialização do tempo", observar as determinações do local, as resistências e
especificidades espacializadas. Assim é que, ainda que conjunturalmente em
declínio, a questão ambiental emergiu na pauta das relações internacionais
(Conferência da ONU em 1992), na ponta da fronteira tecnológica (exploração dos
recursos genéticos) e na linha de reestruturação dos direitos de propriedade (vide
a pressão exercida pelos EUA sobre as Leis de Patentes incidentes sobre as
atividades da biotecnologia). Neste quadro, um desenvolvimento que se apóie nas
possibilidades oferecidas pela variedade de biomas, ecossistemas e demais
configurações territoriais, ou seja, na diversidade de saberes dos sujeitos sociais
que se referenciam a estes territórios, não está necessariamente na contramão
da competição intercapitalista mundial. E poucas regiões, como a latinoamericana
junto a outras regiões periféricas do capitalismo mundial, detêm tal potencial de
combinações socioambientais.
34
Procurando explicitar o jogo de interesses subjacente ao debate sobre as regulações incidentes sobre a biodiversidade,
David Hathaway assinala que "há uma postura de inspiração conservacionista , que apresenta o que seria uma proposta de
consenso ideal. Por esta postura, defendida pelos governos dos Estados Unidos e da Europa, e por boa parte das entidades
ambientalistas norte-americanas, o importante é conservar a biodiversidade "para todos". Os centros ex situ
complementariam as unidades de conservação in situ, e estas teriam um enfoque que combina justiça social, a defesa do
meio ambiente e a viabilidade financeira. A fórmula para as áreas de conservação se resume na demarcação de unidades
e/ou zoneamento para uso restrito, onde as comunidades locais de indígenas, caboclos, quilombos, agricultores,
24
É importante não confundir, porém, a perspectiva de um modelo baseado
nos recursos territoriais com interpretações segundo as quais "o território
substituiu a empresa como teatro da produção e do conflito"35, sob a hipótese de
que teríamos superado o tempo dos movimentos sociais (o problema da
exploração) e adentrado o tempo da ação propriamente política sobre o território
(problemas de integração/exclusão no espaço segmentado)36. Tais interpretações
promovem, na verdade, uma separação analítica indevida entre espaço e
sociedade, desconsiderando que espaço, território, meio ambiente são objetos das
lutas sociais aos quais os atores sociais atribuem distintos sentidos37. Não se trata
portanto de uma questão de exclusão/inclusão em um espaço homogêneo, mas
de uma disputa entre diferentes projetos sociais territorializados38. Falar de
pescadores etc. assumiriam boa parte da gestão (evitando gastos com guardas florestais, barateando a fiscalização) e
poderiam tirar seu próprio sustento através da exploração e comercialização sustentáveis dos recursos biológicos da
natureza ( a exemplo das reservas extrativistas)". (...) "O que proposta tão "politicamente correta" normalmente deixa de
mencionar é que ela de fato contempla dois níveis bem distintos de desenvolvimento econômico e tecnológico: um para as
comunidades e sociedades locais a partir da exploração bruta dos recursos biológicos e outro para as transnacionais e suas
próprias economias com base nos recursos genéticos a serem manipulados a nível molecular". Assim, uma planta
medicinal descoberta por antropólogos entre os indígenas da Amazônia poderia ser usada para a criação de um remédio
cujo princípio ativo seria sintetizado quimicamente e comercializado mundialmente, rendendo enormes lucros aos
industriais que o "criaram". cf. D.Hathaway, Biodiversidade e Garimpagem Genética, Comunicação ao Seminário
Diversidade Eco-social e Estratégias de Cooperação entre ONGs na Amazônia, FAOR/FASE,junho de 1994, Belém,
mimeo, e Alfredo Wagner B. de Almeida, Amazônia: a dimensão política dos conhecimentos tradicionais, in H. Acselrad
(org.) Conflitos Ambientais no Brasil, Relume Dumará, RJ, 2004.
35
cf. P. Bernard- A. Lebaube, Entretien avec Jean-Marie Delarue, Le Monde 3.5.1994, apud I.Bursoni, La Diagonale
Casseurs, Le Paradoxe de l'Existance et le Nouvel Espace du Conflit Social, in Futur Antérieur 23-24,1994/3-4,p.114.
36
cf. A.Touraine, Face à l ' Exclusion, in J.Baudrillard et alii, Citoyenneté et Urbanité, Ed. Esprit,Paris,1991,p.165-173.
37
Ao sublinhar a perpétua influência recíproca entre o meio físico e as reacomodações do terreno social, Marc Bloch nos
lembra que "as sociedades, como as formas de terreno, têm sua tectônica", cf. M.Bloch, Régions Naturelles et Groupes
Sociaux, in Annales d'Histoire Économique et Social, Paris, 1939.
38
Maria Inês Castro e Lilia Gudes Galetti mostraram como diferentes sujeitos sociais atribuem distintos signficados à
biodiversidade: "A qualificação de "ociosos" aos recursos naturais provinha do fato deles se manterem "fora do controle
da elite proprietária" e se encontrarem disponíveis para pessoas que não os utilizavam para produzir mercadorias
requisitadas pelo mercado internacional Esta percepção sobre a ociosidade dos recursos tinha como corolário a idéia de
que os homens e mulheres que deles sobreviviam eram igualmente ociosos, pois a noção de trabalho que a presidia -
gestada o longo de todo o período moderno e plenamente vitoriosa no século XIX - considerava como tal apenas aquelas
atividades capazes de transformar recursos em mercadorias". Além do mais, a idéia de que a população obtinha, "sem
trabalhar" , alimentos e artigos úteis na vida cotidiana, era encarada como um óbice à inserção dos indivíduos no mundo
do trabalho e das mercadorias" cf. M. I. Malta Castro - L. S. Gudes Galetti: Diagnóstico dos Usos dos Recursos Florestais
em Mato Grosso, ITTO/IBAMA/FUNATURA,Cuiabá,1994,p.17-18.O discurso de administradores provinciais e viajantes
naturalistas o exemplificam. "Rio muito piscoso, muita caça, coco com fartura, qualquer dia da semana em que um dos
homens do sítio trabalhe, de ordinário o chefe da casa ,basta para que corra a semana no mais suave e confortável
descanso. A viola, os cânticos, os passeios de canoa e a constante ocupação da rede, constituem a delícia de todo caboclo,
parte integrante da gente do interior do Estado; permanecendo , por isso, em grande parte, o país inculto e a sua população
ribeirinha sem o menor pecúlio para qualquer cometimento". cf. A.C. Simoens da Silva, Cartas Matogrossenses, RJ,
Imprensa Nacional, 1927, apud M.I. Malta Castro - L.S. Gudes Galetti: op.cit. "Há uma classe como esta em todos os
países, estrato inferior da civilização, mais aparente talvez na América do Sul, porque é fácil viver nestas plagas ubertosas,
e porque as raças mestiças, tão comuns aqui, herdaram os hábitos inertes e descuidados de seus antepassados índios e
africanos: apenas alguns têm ambição de erguer-se da vida animal. Aumentam as listas da população, mas para o estado
são verdadeiro zero, não fazendo bem nem mal: quase nada trazem ao mercado e ainda menos levam para casa; vivem, ao
deus dará, satisfeitos porque têm provisões para um dia e palhoça que os abrigue. Hão de desaparecer em grande parte à
25
modelos de desenvolvimento fundados nas possibilidades do território significará,
assim, evidenciar as perspectivas dos sujeitos sociais que procuram dar às
distintas configurações socioespaciais sentidos diversos daqueles impostos pelo
regime de acumulação dominante.
medida que da terra forem se apossando gentes mais industriosas; hão de submergir-se e morrer diante da onda de
imigração européia. Pois que morram! É o único serviço que podem prestar ao país, e a lei inexorável do progresso
determinou sua extinção" cf. H.Smith, Do Rio de Janeiro a Cuyabá: notas de um naturalista, SP/RJ/Cayeiras, Cia.
Melhoramentos,1922, apud M.I.Malta Castro- L.S.Gudes Galetti:op.cit.
39
"Conflitos localizados, envolvendo aparelhos de poder cujas instituições de caráter econômico implantam seus
programas como uma ordem a ser acatada a todo custo têm se agravado.(...) No bojo desses antagonismos aguçados
manifestam-se, todavia, condições favoráveis à aglutinação de interesses de grupos sociais diferenciados", que
"mobilizam-se pela manutenção das condições de vida pré-existentes" e "compõem-se objetivando garantir o controle de
domínios representados como territórios fundamentais à sua identidade". cf. A.Wagner, Universalização e Localismo -
Movimentos Sociais e Crise dos Padrões Tradicionais de Relação política na Amazônia, in Reforma Agrária, abril/julho
1989,pp.4-7. Procurando refletir sobre o que chama de "um novo regionalismo de base popular", Carlos Vainer destaca a
importância do recorte territorial na construção da identidade e na elaboração das estratégias políticas de tais grupos
sociais que, à diferença do "velho regionalismo", constroem pautas reivindicatórias que só se poderão realizar "no âmbito
de um projeto nacional que subverta profundamente a lógica territorial - passada e emergente - do capital e do Estado em
seus diferentes níveis e escalas". cf. C.Vainer , Regionalismos e Projeto Nacional : uma reflexão sobre regionalismos
velhos e novos, in Cadernos IPPUR/UFRJ, ano VII,n.2,set. 1993, p.21-34.
40
Fundado em 1989 a partir de uma articulação de sindicatos de trabalhadores rurais e de professores em seis municípios
paraenses nucleados por Altamira, o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, hoje MDTX, reúne forças
sociais de identidades diversas em torno a lutas e projetos referenciados territorialmente. Sindicatos, cooperativas,
associações de produtores e de funcionários públicos articularam-se cobrando do governo federal a reconstrução da
rodovia, a construção de hospitais e escolas, a regularização fundiária e crédito para os pequenos produtores. Conjugaram
assim um caráter reativo frente a políticas governamentais - no caso a ausência de políticas públicas nas áreas de saúde,
educação e infra-estrutura - , perspectivas de desenvolvimento marcadas territorialmente ( "é importante formar técnicos
agrícolas, professores e enfermeiros na região, pois sabemos que dificilmente eles virão de outras áreas"; "buscamos
maior articulação com outras regiões do estado para fortalecer as cooperativas e os sindicatos e fazer com que as
reivindicações caminhem na prática"- declarou José Geraldo, uma das lideranças do MPST) e a configuração de um bloco
de forças sociais não dominantes ("a especificidade do movimento é nossa capacidade de propor um novo modelo de
desenvolvimento para a região - e não só cobrar do Estado - associando produção e preservação ambiental; há dois
projetos em disputa - o dos prefeitos e alguns empresários, e o nosso projeto pela manutenção do pequeno produtor") cf.
Entrevista com José Geraldo, Belém, maio 1993. A Carta da Transamazônica firmada pelo MPST, o MNAB e o CNS
aponta para a constituição de um bloco social territorializado: "É difícil ficar calado diante desse tipo de política
governamental que transformou a maioria dos colonos em bóias-frias e meeiros, numa situação de abandono e sofrimento.
(...) Não queremos que se repitam as mortes desnecessárias de colonos e principalmente de crianças que ocorrem todos os
26
Desenvolvimento da Tansamazônica, o Fórum-Rondônia (FO-RO)41, o Conselho
Nacional dos Seringueiros (CNS), o Movimento de Defesa da Região Tocantina
(MODERTE) ou a Rede Alerta contra o Deserto Verde que agrega múltiplos atores
que resistem à expansão indiscriminada da monocultura do eucalipto no Espírito
Santo, Minas Gerais e sul da Bahia, são exemplos de tais formas organizativas,
surgidas, em grande parte, em reação a intervenções estatais diretas ou indiretas
no espaço, avançando em seguida para reivindicações relativas a suas condições
de inscrição no território (saúde, educação, demarcação, titulação...), desenho de
políticas públicas (políticas de preços da borracha, no caso dos seringueiros,
crédito rural para pequenos agricultores e regionalização da merenda escolar, no
caso do MDTX, políticas energéticas no caso do MAB) até esforços de ampliação
dos espaços de participação na definição de políticas (intensificando a
participação no campo institucional, pressionando pela criação e operação dos
Conselhos Municipais de saúde, educação, criança e adolescente, prioridades do
MDTX, por exemplo, desde 1993).42 Se a multiplicidade de identidades sociais e
formas organizativas que aglutinam - sindicatos de trabalhadores rurais,
associações de pequenos produtores, comissões de atingidos por barragens,
sindicatos de trabalhadores da educação etc. - aparece, por um lado, como
dificuldade a transpor (a construção da unidade na diversidade, dados diferentes
graus de representatividade conseguidos junto às suas respectivas bases sociais),
representa, por outro, recurso relevante para a eficácia política de suas posições e
anos por falta de estradas e de assistência médica. São pessoas que acreditaram na saída irresponsável apontada pelos
governos militares para o problema da terra no Brasil. (...) Queremos um desenvolvimento econômico e social que dê
condições para os colonos permanecerem na Transamazônica tendo vantagem em viver aqui". cf. MPST : Carta da
Transamazônica, mimeo, s.d. O histórico do movimento também ilustra os passos evolutivos na constituição do bloco
contra-hegemônico de forças : "O MPST teve três grandes momentos: 1- o grande encontro em Rurópolis, em junho de
1990, onde aconteceu a discussão sobre a unificação das lutas, o início dos debates na região e a divulgação dos
problemas. Ainda não tínhamos propostas e limitávamos-nos às críticas à situação vigente; 2- no segundo momento
aconteceram grandes atos regionais, debate em agosto de 1990 em Altamira, quando prosseguimos as denúncias em
relação ao abandono da região para todo o país e conseguimos trazer alguns representantes dos órgãos governamentais; 3-
ações de confronto ao mesmo tempo em que apresentávamos as propostas alternativas para a recuperação da região. Após
os três momentos, no grande acampamento de 31 de maio a 6 de junho de 1991 estudamos os problemas da região e
concluímos a Proposta Global de Desenvolvimento para a Transamazônica que visa a recuperação social e econômica da
Transamazônica". cf. Relatório do Encontro Anual de Avaliação, Altamira, dez. 1992, mimeo.
41
Criado em 1991, o Fórum de ONGs de Rondônia (FO-RO) reuniu 27 entidades de representação e assessoria de
pequenos agricultores, extrativistas, comunidades indígenas, concentrando-se em atividades de acompanhamento ,
fiscalização e consulta ao Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (PLANAFLORO), financiado pelo Banco
Mundial. A despeito de inúmeras fragilidades, procurou tornar transparentes as ações relativas ao referido Plano, entrando
porém subsequentemente em crise. cf. B. Milikan, A Campanha do Fórum de ONGs de Rondônia e a Situação Atual de
Implementação do PLANAFLORO, mimeo, Porto Velho, 8.3.1995.
42
O movimento zapatista de Chiapas não deixa de ser um caso radicalizado de tal tipo de unidade de mobilização.
27
ações43. Situados em áreas de fronteira da expansão capitalista sobre o território,
tais manifestações tendem a configurar movimentos contra-hegemônicos ante o
processo de transformação da terra em valor de troca mediado pelo capital.
Podem, consequentemente, protagonizar experiências capazes de alimentar a
formulação de modelos alternativos de desenvolvimento44.
28
ligação rodoviária entre áreas antes afastadas. Por vários motivos, esse processo
não trouxe os resultados esperados, e nos últimos tempos o objetivo maior de
inserir o país no 'mercado global' reforçou a concentração econômica e a
desigualdade regional. Dado o caráter participativo do debate em torno ao plano
de investimentos do atual governo para o período 2004-2007, é forte a expectativa
– ainda não correspondida - de que seja revertida essa tendência, buscando a
chamada 'sustentabilidade democrática', que leve em conta a distribuição da
riqueza, a redução das desigualdades regionais e a proteção do meio ambiente.
29
basicamente através da navegação de cabotagem ao longo da costa, e o
processo de industrialização fez surgirem complementaridades inter-regionais.
Assim, uma relativa especialização das regiões acompanhou a crescente
integração interna da economia.
A partir dos anos 60, a integração do mercado nacional passou a contar com
políticas de desenvolvimento regional, através das quais o Estado buscava
30
estimular a industrialização periférica, com incentivos fiscais e apoio financeiro à
instalação de plantas industriais estatais e privadas. O processo de
desconcentração industrial teve a contribuição do crescimento da infra-estrutura
econômica promovido pelo Estado: a malha rodoviária pavimentada federal e
estadual quadruplicou entre 1960 e 1970.
31
forte golpe no prestígio do rodoviarismo, que sustentara a expansão das fronteiras
econômicas e geopolíticas. Seu exorbitante custo por quilômetro, as dificuldades
técnicas de construção causadas pelo clima, o fracasso dos projetos de
colonização e a reprodução dos conflitos fundiários, motivados por grilagem de
terras, fortaleceram os argumentos dos que, nas elites dirigentes de então, já
diziam que a “interligação de regiões empobrecidas” não tinha racionalidade
econômica.
32
economia nacional e de seu mercado interno, mas observou-se uma redução da
vinculação de São Paulo com o mercado nacional. Isto porque a partir dos anos
80, começaram a surgir novas formas de articulação espacial da economia,
claramente voltadas para o mercado mundial.
33
ao desempenho econômico de todo o conjunto, o que levou a melhores resultados
apenas em algumas sub-regiões específicas. Isso quebrou os laços de
solidariedade econômica existentes entre as regiões brasileiras durante os ciclos
anteriores de crescimento e fez surgirem novas 'ilhas de prosperidade', reativando
o processo de concentração espacial da indústria.
34
Desde o início, porém, a configuração dos eixos era ambígua: ora surgiam
como eixo propriamente dito, atrelado a uma via de transporte, ora como uma
'região de planejamento' amorfa, a partir da vaga definição das peculiaridades
socioeconômicas de uma dada fração do território. Com uma visão logística
baseada na infra-estrutura de transportes -- em especial ferrovias, portos,
navegação de longo curso e de cabotagem -- e voltada principalmente para
commodities (produtos primários de exportação) minerais e agroindustriais, a
proposta defendia a idéia de 'explorar potencialidades', sugerindo a realização de
obras voltadas à conexão dos centros de produção do continente aos mercados
globais.
35
Se a intenção era identificar e acelerar o fluxo de circulação de mercadorias,
reduzindo o 'custo Brasil', elevando a competitividade geral da economia e
garantindo financiamento para os empreendimentos, era natural que as novas
'oportunidades de investimentos' fossem apresentadas como “negócios”. “A
viabilização dos investimentos ampliará a competitividade e reduzirá as
desigualdades”, afirmava o documento oficial, para em seguida reconhecer que a
“identificação de oportunidades de investimentos em infra-estrutura econômica,
desenvolvimento social e informação e conhecimento, nos eixos, dificilmente
configurará uma proposta completa de política de desenvolvimento regional”.
Informação e conhecimento, desenvolvimento social e meio ambiente apareceram
assim como complementos discursivos destinados a legitimar ações centradas
nos negócios com infra-estrutura.
36
O estudo dos eixos pretendia recuperar o papel do território no planejamento
do desenvolvimento, “identificando uma nova geografia socioeconômica para o
Brasil”, como enfatizou o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão no
Informativo PPA, em 1999. O único espaço considerado, porém, era o dos
negócios. A delimitação dos eixos serviu, na verdade, de fundamento discursivo
para legitimar as ações e a distribuição espacial dos investimentos. Por isso, os
autores do plano, em um aparente paradoxo, disseram ser importante
'desenfatizar' o traçado cartográfico dos eixos, insistindo que eles tinham caráter
integrador e não delimitador.
No entanto, apesar dessa preferência por uma visão holística e sinérgica dos
investimentos, o 'projeto' em si foi, de fato, a unidade de administração e análise
do modelo de gestão adotado. A figura do 'funcionário-empreendedor' -- gerentes
dos diferentes projetos do Plano, responsáveis por atrair investidores privados que
permitissem transformar em projetos reais um conjunto de investimentos-candidatos
-- é emblemática dessa interpenetração entre o mercado e a política.
37
Ao buscar corrigir os gargalos apontados pelo próprio mercado, o governo
abriu mão de implantar propriamente 'projetos estruturantes' para beneficiar
investimentos que, sobretudo, acelerassem a velocidade de circulação das
mercadorias. Em lugar da vontade política indispensável para atender a propósitos
redistributivos e de proteção ambiental, passou a vigorar uma ação governamental
facilitadora market-friendly (voltada para os interesses do mercado). O resultado
final certamente seria a reconstituição, agora pela via política, de uma economia
de arquipélago exportadora de recursos naturais, similar à que existia no país há
um século.
38
rentabilidade das vias de transporte estaria resolvido, segundo Rebouças, com a
democratização do acesso à terra em suas margens.
Nas condições de hoje, podemos acrescentar, essa democratização -- do
acesso à terra e a seus recursos -- é também o meio de garantir um
desenvolvimento sem destruição ambiental: isso evitaria que essas vias viessem a
servir exclusivamente à exploração predatória da madeira, à especulação fundiária
e à grande monocultura químico-mecanizada de commodities. Uma infra-estrutura
de transportes idealizada apenas em função da integração ao mercado mundial e
da perspectiva da atração de capitais internacionais para seu financiamento só
serve a um modelo de desenvolvimento voltado para a exportação de recursos
naturais e energia.
39
qualquer custo terminem por comprometer as componentes sociais e ambientais
do Plano. Preocupações desta ordem já se manifestam, notadamente em áreas
onde a construção de polidutos, gasodutos, hidrelétricas, linhas de transmissão de
energia e o asfaltamento de estradas favorecem a grilagem de terras, prática que
costuma antecipar qualquer perspectiva de valorização do preço da terra
sinalizada por obras de infra-estrutura. A regularização fundiária e o ordenamento
territorial surgem assim como pré-condições da maior importância para a
realização de qualquer obra de envergadura. Há pois que considerar a
complexidade do tecido social do território nacional onde intervêm os
investimentos infra-estruturais previstos. Isto implica reconhecer que, no caso de
espaços estratégicos como o da Amazônia, por exemplo, as forças do projeto
latifundiário-monocultural que pressionam para fazer da região área de expansão
da produção de grãos para exportação confrontam-se às forças da agricultura
familiar-policultural que tentam construir no longo prazo um projeto moderno de
desenvolvimento sustentável. A implantação de infra-estrutura sem a devida
atenção a este tipo de confronto pode resultar no favorecimento concreto de
dinâmicas ambientalmente predatórias e socialmente injustas.
40
nacional respeitando a diversidade dos atores sociais que o constroem é o desafio
da combinação sustentável das práticas espaciais na trajetória de
desenvolvimento do país.
41
Referências
42
----------------- y J.P. Leroy (2000): «Novas Premissas para a Construção de um
Brasil Sustentable» in H. Rattner (org.): Brasil no Limiar do Século XXI,
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43
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44
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45
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46
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47