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Politicas Publicas 2022

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Psicologia e Políticas públicas

Ano: 2022
SUMÁRIO

1. UNIDADE I – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)................................................. 03


2. ATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS NA SAÚDE PÚBLICA: DIFICULDADES E POSSIBILIDADES DE TRABALHOS COM GRUPOS.... 29
3. O CAMPO DA SAÚDE COLETIVA NO BRASIL: DEFINIÇÕES E DEBATES EM SUA CONSTITUIÇÃO…………...................... 32
4. UNIDADE II - ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NA ATENÇÃO BÁSICA DO SUS E A PSICOLOGIA SOCIAL ............................. 43
5. O DESAFIO DA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL: A (RE)INSERÇÃO SOCIAL DOS PORTADORES DE TRANSTORNOS
MENTAIS..................................................................................................................................................................... 53
6. AS RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL…………....................………………… 59
7. UNIDADE III - POLÍTICA DE SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE IMPLEMENTAÇÃO
DO SUBSISTEMA DE ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA................................................................................................... 64
8. POPULAÇÃO LGBT: OS PROCESSOS DE DISCRIMINAÇÃO SOCIAL NA CONTEMPORANEIDADE E O PAPEL DA
PSICOLOGIA COMO MEDIADORA NO CAMPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS…………………………………………........……………. 90
9. REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA A ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS (OS) NO CAPS - CENTRO DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL............................................................................................................................................................. 97
10. UNIDADE IV - O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS); LOAS. O CRAS E O CREAS…………........................ 105
CREAS............................................................................................................................. .............................................. 105
11. ASSISTÊNCIA SOCIAL E PSICOLOGIA: SOBRE AS TENSÕES E CONFLITOS DO PSICÓLOGO NO COTIDIANO DO
SERVIÇO PÚBLICO...................................................................................................................................................... 109
12. LOAS – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DA PREVIDÊNCIA: O QUE É, COMO FUNCIONA E QUEM TEM DIREITO……...…..... 116

Ano: 2022
UNIDADE I -
Conceitos, tais como: Políticas Públicas, Direitos
1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: Humanos, Cidadania, Trabalho em Rede, Política,
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) Metodologia de Elaboração de Políticas Públicas,
entre outros, são importantes para balizarmos as
intervenções do psicólogo na área das Políticas
Públicas. Trata-se de um referencial pouco utilizado
Texto retirado do Caderno de psicologia e
dentro da Psicologia, mas que vem sendo
políticas públicas / Andrea Fernanda Silveira ...
introduzido na categoria com bastante ênfase, nos
[et al.]. - Curitiba : Gráfica e Editora Unificado,
últimos anos. Nesse sentido, o Sistema Conselhos
2007.
assume o papel de desenvolver estratégias de
1.1 Psicologia e Políticas Públicas enfrentamento no âmbito nacional. O Conselho
Federal de Psicologia criou o Centro de Referência
1.1.1 Contribuições do Sistema Conselhos de Técnica em Psicologia e Políticas Públicas
Psicologia (CREPOP), estabelecendo como meta a
sistematização e difusão de conhecimento na área
O Sistema Conselhos de Psicologia, composto de Políticas Públicas. Ainda em fase de
pelos Conselhos Regionais e pelo Conselho implantação, o CREPOP permitirá visualizar o
Federal de Psicologia, decidiu assumir panorama geral da atuação do psicólogo nessa
responsabilidades frente às Políticas Públicas e área e irá dispor de informações que servem de
incluir, entre suas metas e estratégias, ações em referência para novas propostas de atuação
relação a esta temática.
profissional.
As crescentes demandas da população brasileira Sintonizado com essa mobilização nacional, o
por Políticas Públicas, para o atendimento de suas Conselho Regional de Psicologia da 8ª Região
necessidades básicas e direitos, precipitaram essa criou, em março de 2006, o Núcleo de Articulação
decisão. O Sistema Conselhos não poderia omitir- em Políticas Públicas (NAPP-08). Trata-se de uma
se como instituição organizada da sociedade civil resposta à necessidade de se ter uma estrutura
brasileira e a Psicologia, enquanto ciência e permanente na 8ª Região, para tratar da
profissão, tem a obrigação de oferecer especificidade do tema, gerando condições para um
contribuições nessa área social e política. maior engajamento dos psicólogos com a Política
Entretanto, apenas recentemente os currículos dos Pública no estado do Paraná e no Brasil. Desde a
cursos de graduação em Psicologia, no Brasil, sua criação, o NAPP-08 vem realizando diferentes
começaram a oferecer capacitação mais específica ações que visam aproximar cada vez mais o
para que o profissional possa lidar com estas psicólogo da temática em questão. Entre essas
demandas sociais, sendo este fator também um ações constam também: seminários conceituais,
desafio para o Sistema Conselhos. Os profissionais grupos de estudo, sistematização de dados sobre
já graduados precisam de atualização para os profissionais que atuam na rede pública e nos
responder com eficácia à nova realidade e desafios. Conselhos de Controle Social, levantamento de
Isso nos coloca diante da necessidade de aquecer referências teóricas, curso de atualização, jornada
o debate com a categoria e criar mecanismos para científica e pesquisa de campo.
auxiliar esses profissionais na tarefa de ampliar sua
perspectiva de trabalho e aprimorar seu
conhecimento teórico e técnico.

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1.1.2 A Participação da Categoria nos 1.2 O Conceito de Política Pública
Conselhos de Controle Social
Políticas Públicas podem ser entendidas como um
Na luta e no esforço de construção das Políticas conjunto de normas que orientam práticas e
Públicas, os Conselhos de Controle Social são respaldam os direitos dos indivíduos em todos os
espaços importantes para a materialização das níveis e setores da sociedade. Elas devem ter como
políticas. Portanto, o engajamento do psicólogo, base os princípios da igualdade e da eqüidade,
não só como cidadão, mas como profissional que disseminando o sentido de justiça social. Por meio
possui conhecimentos e instrumentos técnicos, é delas, os bens e serviços sociais são distribuídos,
bastante valiosa. Com sua participação ética, crítica redistribuídos, de maneira a garantir o direito
e articulada, o psicólogo pode ser um ator social coletivo e atender às demandas da sociedade.
importante, sensível às demandas sociais e criativo De acordo com Frey (2000), existem três aspectos
na busca de soluções. importantes para entendermos as Políticas
A Psicologia e os psicólogos precisam ter a Públicas:
percepção da dimensão coletiva do indivíduo, com
suas subjetividades. Necessitam, ainda, inspirar-se • Qual o seu conteúdo concreto;
nos Direitos Humanos e na Democracia, para a • Como ocorre o processo político que pauta
construção das Políticas Públicas. sua formulação;
Porém, esta participação não deve ocorrer numa • Em que sistema e estrutura política,
perspectiva individualista, mas expressar uma administrativa e institucional elas são
contribuição da categoria de forma organizada elaboradas.
politicamente, estabelecendo parcerias efetivas
com a sociedade, em suas diferentes instâncias. As Políticas Públicas surgem como necessidades
Para que isto ocorra, é importante que os em resposta aos problemas sociais. Devem refletir,
psicólogos estejam atentos aos eventos nos três portanto, soluções às necessidades identificadas na
níveis de organização política (municipal, estadual e vida coletiva, nas suas diversas áreas: educação,
federal), aos fóruns e conferências das diversas saúde, trabalho, social, entre outras tantas.
temáticas de Políticas Públicas, participando
Essas necessidades podem ser identificadas com o
sempre e marcando seu posicionamento. Estes são
uso de métodos de pesquisa, apoiadas no
os espaços em que podemos debater sobre a
conhecimento científico, ou, ainda, puramente com
realidade social e elaborar teses que são,
base na experiência empírica. As Políticas Públicas
oportunamente, encaminhadas para outros níveis
não estão isentas, entretanto, de surgir como
de poder, podendo tornar-se Políticas Públicas. São
resposta a uma necessidade política e ideológica,
espaços em que elegemos delegados e
com base na interpretação que partidos políticos
conquistamos representação nos diferentes
específicos fazem sobre a realidade da população e
Conselhos de Controle Social e nos Conselhos de
suas reivindicações.
Direitos. A participação nesses eventos é aberta
aos psicólogos. Ao serem eleitos representantes 1.2.1 A Construção de Política Pública
para um desses Conselhos, o profissional tem um
papel importante também para a categoria. É uma A elaboração de uma Política Pública segue
oportunidade de fazer representar a Psicologia e algumas etapas de trabalho. Devemos, porém,
defender seu espaço profissional na área das reconhecê-las como um processo e não como fases
Políticas Públicas que estabelecem entre si uma relação de
linearidade. São elas:

• Identificação do problema: é necessário ter


em mente a área de investimento que será o
foco da atenção, suas necessidades e
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demandas, além das prioridades requeridas Mitchell & Mitchell (1969, p.208) afirmam que “os
dentro desse contexto. O problema pode ser meios de regulamentação podem ser variados: de
delineado a partir de indicadores leis e regras formais a orientações e sugestões
específicos, crises, eventos e pesquisas informais; de ameaças negativas ou custos a
científicas. A delimitação de um problema coação positiva e recompensas; de sugestões
deve pautar-se em evidências; indiretas ou contravenções à compulsão muito
• Inclusão na agenda: é a fase em que a diretamente exercida sobre a pessoa”. Para esses
agenda política é definida, tendo aqui uma autores, quanto mais regulamentada uma política
diversidade de fatores ideopolíticos, menor é o conflito e maior é o controle sobre o
econômicos e sociais, que podem contribuir comportamento, fatores estes que diminuem
favorável ou negativamente para a inclusão significativamente o problema em foco.
e/ou exclusão dos fenômenos em trânsito
social; 1.2.2 Protagonistas da Política Pública
• Deliberação das estratégias: momento em As Políticas Públicas são formuladas a partir da
que se discutem as possíveis ações seus ação de diferentes atores sociais. Esses atores são
custos e benefícios à luz do conhecimento conhecidos também como policy makers.
sobre as necessidades já identificadas;
• Desenvolvimento da intervenção: fase em Sua atuação dependerá da demanda em si e da
que se formulam as políticas propriamente posição que esses atores ocupam na sociedade.
ditas, incluindo nesse momento uma análise Uma mesma demanda pode ser apresentada por
bastante complexa sobre as condições um ou mais policy makers, de diferentes setores
micro e macro estruturais para a sua e/ou grupos da sociedade. Igualmente, um mesmo
implementação; protagonista pode representar mais de uma
• Implantação das políticas: nessa fase é demanda.
novamente fundamental mapear o contexto
A participação dos atores ativos governantes e
político, econômico e social, da mesma
não-governantes e das agências “fazedoras de
forma que é imprescindível caracterizar, em
política” (Viana, 1996, p.5) é que direcionam o rumo
todas as suas dimensões, as agências
das Políticas Públicas. Ou seja, os protagonistas
implementadoras e seus respectivos papéis
não precisam estar necessariamente, vinculados ao
no processo;
poder público. Em geral, eles atuam em conjunto,
• Avaliação continuada: avalia-se o processo
formando o que Frey (2000) chama de policy
e o impacto gerado, esperando identificar
network.
tanto os fatores negativos quanto os
positivos da ação que permitam corrigir o Essa rede pode ser composta por:
fluxo e medir os resultados.
• Políticos de diferentes partidos;
Paralelamente à identificação dos problemas e à
• Representantes do poder legislativo e
formulação de políticas para solucioná-los, cabe
judiciário;
ainda nesse processo sua regulamentação e
• Representantes de conselhos e/ou
controle. A regulamentação das Políticas Públicas é
entidades de classe;
papel dos governos, mas o seu controle pode ser
• Representantes de setores específicos da
exercido também por grupos sociais. Trata-se do
sociedade;
estabelecimento de leis e normas com o intuito de
• Representantes de diferentes grupos sociais
controlar o comportamento dos membros do
da sociedade;
sistema, ou, em outras palavras, de exercer o poder
sobre as pessoas a fim de nortear seu • Representantes de organizações não
governamentais.
comportamento.

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Também é preciso considerar que o “cidadão difere-se em muito dessa concepção. O termo é
comum” pode influenciar a agenda política, usado para nos referirmos à participação popular na
apresentando as reivindicações de uma formulação, deliberação e fiscalização das Políticas
determinada parcela da população, através de: Públicas.
movimentos sociais, campanha nos meios de
comunicação de massa, cartas direcionadas ao Trata-se de um mecanismo de controle social
governo, abaixo-assinados, entre outras formas de sobre a ação do Estado (nos âmbitos municipal,
manifestação. estadual e federal), que oportuniza a participação
pluri-representativa da sociedade civil organizada
1.3. Locus da Política Pública na esfera pública. Ainda, os Conselhos de Direitos
têm papel fundamental para o controle das Políticas
1.3.1 Sociedade Civil Organizada Públicas, cabendo aos seus membros lutar pela
garantia dos direitos humanos fundamentais.
Na atual organização da sociedade tem sido
No Brasil, os Conselhos de Controle Social
usado o conceito de SETOR para a descrição de
foram criados a partir da Constituição de 1988,
sua estrutura/dinâmica. É chamado de primeiro
funcionando como um espaço intermediário entre o
setor o ESTADO, que é composto pelas
ESTADO e a SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA.
organizações e entidades que representam o
Neles, diferentes atores sociais dialogam, negociam
governo, tanto no âmbito municipal, quanto no
sentidos, deliberam e fiscalizam a aplicação
estadual e no federal. Já o conjunto das
adequada de estratégias para atender às
EMPRESAS PRIVADAS, que são organizações de
demandas da sociedade.
direito privado e que atuam com fins lucrativos, é
designado como segundo setor. O termo terceiro Isso pode ocorrer de diferentes formas: por meio
setor é utilizado para nos referirmos à SOCIEDADE da participação em conferências, em manifestações
CIVIL ORGANIZADA, formada por organizações de de rua, na organização de agrupamentos sociais,
direito privado e sem fins lucrativos, que geram nas eleições, na organização e luta das categorias
profissionais e dos diversos grupos sociais
bens e serviços de caráter público.
(mulheres, negros, estudantes, homossexuais,
O Terceiro Setor, além da prestação de serviços,
tem se tornado um importante ator na construção etc.).
das políticas públicas, como força de pressão, de
1.3.3 A Arena Política
fiscalização e de cobrança para que o ESTADO
cumpra a sua função de construir e garantir O processo de formulação de uma Política
condições justas e dignas para todos os cidadãos. Pública ocorre dentro de uma arena política (policy
Com a consolidação do Terceiro Setor, houve arena), que é definida, entre outros fatores, pelos
uma inovação na atual configuração da sociedade e objetivos específicos de cada política e pelo grau de
uma conseqüente melhoria nas políticas públicas. conflito e de consenso que pode gerar.
Esse setor, representado pelas Organizações Não- Frey (2000, p.224) subdivide a policy arena, os
Governamentais (ONGs) e pelas Organizações da processos de conflito e de consenso da seguinte
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), maneira:
vem influenciando consideravelmente a agenda • Políticas distributivas: que representam
política dos governos. baixo grau de conflito já que beneficiam um
número grande de pessoas, embora em
1.3.2 Conselhos de Controle Social e Conselhos pequena escala;
de Direitos
• Políticas redistributivas: que têm um alto
O conceito de controle social foi, historicamente, grau de conflito, pois implicam no desvio e
atrelado à idéia de que o Estado exerce controle recolocação de recursos entre as diferentes
sobre a população. Atualmente, seu significado camadas e grupos da sociedade;

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• Políticas regulatórias: que, como o próprio Essa concepção também é reforçada pela definição
termo indica, regulam o processo por meio de polis como o espaço onde o homem pode e
de portarias, decretos e proibições. Tanto deve exercer sua fala, ao mesmo tempo em que
podem buscar atender aos interesses indica a existência de um ator compromissado com
restritos como também podem buscar os interesses comuns dos membros de uma dada
distribuir igualitariamente os recursos nas sociedade e o debate coletivo para a tomada de
várias instâncias da sociedade; decisão sobre que ações adotar diante de certos
• Políticas constitutivas ou estruturadoras: são eventos.
as que determinam e/ou modificam as Se o conceito de política foi usado durante muito
regras do processo e afetam as demais tempo para se referir ao poder do Estado e à
políticas. capacidade de sustentar e promover ações com
vistas ao bem-estar geral, outras perspectivas têm
Os resultados da análise dos custos e benefícios ampliado as fronteiras do termo, implicando o
dessas políticas e da análise das estratégias, que “sujeito comum” como protagonista do sistema
visam implantar as medidas criadas, é que político.
caracterizam a arena política. Isso implica em Como explica Thiele (1997, p.100-101), os
identificar como as pessoas reagirão às medidas, estudos políticos modernos elaboraram teorias com
que tipo de conflito pode surgir com a sua foco essencialmente, voltado para a investigação
implantação, qual o custo político das estratégias acerca das interações sociais. Enquanto os pós-
escolhidas, que setores da sociedade estarão modernistas “se interessaram primeiramente no
envolvidos e quais as possíveis estratégias para se estudo da construção social da identidade”, a
atingir o consenso. política ganha com isso uma dimensão
1.4. Conceitos Básicos psicossocial, pois passa a ser entendida também
como uma forma de expressão dinâmica do ser
1.4.1 Política humano no conjunto das suas relações. É vista
como parte integrante da vida cotidiana, podendo
Um posicionamento político expressa uma inclusive ser considerada como uma estratégia para
posição ideológica. Portanto, falar de política transformar as injustiças sociais e exercer os
significa discutir valores e ideias a respeito de um direitos humanos fundamentais.
determinado objeto. Sua expressão por meio do
comportamento implica em analisar quais ideias e 1.4.2 O Público e o Privado
valores o sujeito da ação carrega em relação ao
objeto. Os termos “público” e “privado” surgiram com o
Política é, dessa forma, algo do domínio da ética estabelecimento do Direito Público e do Direito
e da moral, das relações humanas, de suas Privado, que compõem o alicerce do Direito
atividades individuais ou encadeadas Romano. Esses conceitos, porém, estão
coletivamente. Política chega a ser definida como especialmente presentes na organização da
algo da ordem da natureza do homem ou, ainda, sociedade grega, relacionando-se com a
algo que define a própria natureza humana. participação do cidadão na esfera social e política.
Para Arendt (2001, p.32-36), o termo político De acordo com Cruz (2006), “pode-se perceber
acabou sendo substituído pelo termo social, ao se que na sua origem o termo público remete à esfera
referir à natureza da condição humana, pois, de da coletividade, ao exercício do poder e à
alguma forma, está intimamente relacionado à idéia sociedade dos iguais. Em contrapartida, o privado
da “aliança entre as pessoas para um fim específico se relaciona com as esferas particulares, à
(...) o ser político, o viver numa polis, significava sociedade dos desiguais”. Na Grécia Antiga, o
que tudo era decidido mediante palavras de público era marcado pela liberdade de expressão
persuasão, e não através de força ou violência.” das idéias e opiniões numa arena e as relações

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sociais eram consideradas relações entre iguais. dignidade humana não pode ser garantida apenas
Em contraposição, o privado estabelecia fronteiras por direitos civis, mas pelo conjunto, incluindo os
privatizadas, colocando o foco nas necessidades direitos sociais, econômicos e culturais); e a
individuais. Interdependência (aponta para a dependência entre
Dessa forma, utilizamos o termo público para os direitos econômicos, direitos civis e políticos).
nos referirmos àquilo que é da ordem coletiva e que O conhecimento e a compreensão sobre os
diz respeito à vida dos habitantes de forma geral. A Direitos Humanos são fundamentais para o
esfera pública requer um investimento conjunto desenvolvimento das Políticas Públicas, as quais,
daqueles que formam uma mesma sociedade, na maioria das vezes, são ações e estratégias para
superando o anonimato. Conforme esclarece Cruz concretização desses direitos. Seus princípios
(2006), freqüentemente associamos o “público” ao devem inspirar e basear as Políticas Públicas para
“Estado”, pois o primeiro é pensado como uma que elas possam combater as desigualdades e
esfera política e o segundo como um representante desequilíbrios de uma sociedade e garantir a todos
legítimo do seu exercício. os seres humanos uma vida digna.
O público pode ser entendido como a expressão Dois elementos fundamentam os Direitos Humanos:
de uma lógica social múltipla, em que diferentes
discursos constituem realidades diversas e supõem I. Igualdade: os direitos humanos são intitulados
a co-existência de ideologias e de um sistema de por todos os indivíduos pelo mero fato de
representações próprios. O público demanda, desta serem Seres Humanos;
forma, o reconhecimento das diferenças e evoca a II. Dignidade: esta concepção permite que junto
presença da alteridade na mobilidade social. ao conceito de igualdade haja o
Já o campo do privado nos remete a um círculo reconhecimento da diferença, tais como
particular de relações restrito e íntimo. Faz alusão aquelas relacionadas ao gênero, à raça, à
àquilo que é resguardado em foro íntimo. Trata-se idade, etc., mas a igualdade de dignidade
de um espaço reservado ao anonimato, à concede a qualquer ser humano o caráter de
privacidade da vida cotidiana, aos interesses fim em si mesmo e não de mero meio para
individuais e particulares. É nesse espaço que outros fins.
ocorrem, de acordo com Cruz (2006), as “relações
entre os não cidadãos”. Os Direitos Humanos são princípios construídos
pela Humanidade, a serem constantemente
1.4.3 Direitos Humanos trabalhados para a sua incorporação na cultura e
nos costumes das diversas sociedades de nosso
A história dos Direitos Humanos no século XX planeta. Não dá para conceber que a Psicologia,
possui dois momentos. Um deles data do período enquanto ciência e profissão não estejam
anterior à 2ª Guerra Mundial com três marcos comprometidas com esta construção. Todo e
internacional surgido logo após a 1ª Guerra qualquer uso dos conhecimentos e práticas da
Mundial, para garantir alguns direitos humanos. Psicologia que violem a dignidade humana e a ética
Foram eles: “Direito Internacional Humanitário”, deve ser repudiado. Ajudar os indivíduos e os
“Organização Internacional do Trabalho” e “Liga das grupos sociais a superarem os entraves para a
Nações”. O segundo momento foi estabelecido construção e efetivação de um novo paradigma nas
após a 2ª Guerra Mundial com a criação da relações humanas é um dos desafios e, ao mesmo
“Organização das Nações Unidas” e com a adoção tempo, uma das mais importantes possibilidades de
da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. contribuição da Psicologia.
Esta Declaração consolidou uma visão
contemporânea de Direitos Humanos, a saber: a 1.4.4 Cidadania
Universalidade (todos os indivíduos têm direito, pelo
Não se pode olhar para um indivíduo de forma
mero fato de sua humanidade); a Indivisibilidade (a
isolada, pois ele guarda em si o status da sua
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sociedade. Indivíduo e sociedade são indissociáveis sociopolítico, construídas por atores sociais
e juntos formam uma rede complexa de relações pertencentes a diferentes classes e camadas
sociais. Cada sistema social tem uma estrutura sociais. Eles politizam suas demandas e criam um
normativa que rege essas relações, contribuindo campo político de força social na sociedade civil”.
para a definição da identidade individual e social Essas ações são formuladas a partir de interesses
dos direitos e obrigações. E é justamente nesse e ideologias específicas, com forte vínculo de
jogo de inter-relações, de construções e de solidariedade entre seus atores, e sustentam a
transformações, que podemos resgatar o conceito dinâmica do grupo, forjando-lhe uma identidade
de cidadania. própria.
Cidadania significa exatamente a participação na A definição do que é um movimento social
construção da sociedade. Conforme explica depende diretamente da análise que se faz sobre
Guareschi (1999), na Grécia Antiga só era sua origem, dinâmicos e objetivos, já que, em
considerado cidadão aquele que, ativamente, função das formas complexas de relações e
contribuía com a construção da cidade, dando suas sociabilidade humana, muitas mobilizações podem
sugestões e participando do processo de decisão e ser definidas puramente como ações coletivas (seja
definição do seu planejamento. Naquela época, as de persuasão ou de confronto).
discussões sobre os rumos da cidade aconteciam Movimentos sociais em geral reivindicam bens
em praça pública (nas chamadas ágoras) e a que são finitos (materiais), ou lutam pelo uso de
expressão do pensamento era livre e desejada. bens, ou de poder coercitivo ou ainda por direitos
Por isso, o significado de cidadania está simbólicos. Pode-se afirmar que em movimentos
diretamente ligado à ação e ao exercício da palavra sociais as utopias precisam ser “traduzidas” para
e dos direitos, momento este em que o indivíduo gerar mobilização. Isso depende também dos
assume sua parcela de responsabilidade pelos indivíduos e do compromisso que a pessoa tem
processos de construção e de manutenção da (individualmente) com a causa em questão. Por
sociedade em que vive. isso, movimentos sociais pressupõem um estado de
Nesse sentido, Guareschi (1999) afirma que nós consciência avançado e, de acordo com
temos pelo menos quatro possibilidades de ação: Sandoval (Comunicação Pessoal, 2003), isso
agir fazendo algo acontecer (FAZER); agir para que implica em responder às seguintes questões:
nada aconteça (IMPEDIR); agir sem colocar
nenhum ato para que algo aconteça (PERMITIR), e • Por que as pessoas se engajam em movimentos
agir sem colocar nenhum ato e com isso nada sociais?
aconteça (OMITIR-SE). O que se pode concluir com • Como as pessoas participam do movimento
isso é que, com certeza, o exercício da cidadania social?
demanda uma prática do FAZER (agir fazendo algo • De que forma se dá a continuidade da
acontecer). Tendo como referência essa forma de participação no movimento social?
conceber o homem e de compreendê-lo no conjunto • Quais as consequências da participação no
das possibilidades de vir-a-ser “indivíduo” e movimento social?
“coletivo”, é que a Psicologia pode contribuir com É possível dizer, portanto, que a participação em
práticas que visam devolver ao homem os espaços movimentos sociais e em grupos sociais depende
de discussão sobre o destino da sua sociedade. Ou diretamente da maneira como subjetivamente o
seja, que procuram restaurar o sentido da cidadania indivíduo se insere na sociedade e faz dela uma
na vida das pessoas. leitura própria. Sandoval (in Lhullier et al., 1997,
p.22) explica que os “participantes em movimentos
1.4.5 Movimentos Sociais
sociais não se restringem apenas aos militantes e
Conforme explica Gohn (1995, p.44), ativistas.
movimentos sociais “são ações coletivas de caráter Outras pessoas também se engajam no
processo. Nesse sentido, o movimento social
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poderá ser visto como um processo político no qual de que todos os campos do conhecimento são
as pessoas se envolvem de maneiras diferentes, limitados.
conforme variações de fatores determinantes.
1.4.7 Exclusão e Inclusão
1.4.6 Interdisciplinaridade
Os conceitos de exclusão e inclusão surgem
Embora pareça uma novidade, a como substitutos dos conceitos de opressão,
interdisciplinaridade não é um campo recente de dominação, exploração, subordinação, entre outros
indagações. Os gregos já demonstravam tantos utilizados na análise da luta de classes.
preocupações com a integração dos Enfim, eles seriam uma modernização da definição
conhecimentos. No século XVIII, considerado o de pobre, carente, necessitado, oprimido, etc.,
“Século das Luzes”, foram formuladas muitas das criados para abordar os efeitos da produção de
idéias políticas, econômicas e sociais da chamada desigualdade social decorrente da globalização.
modernidade, provocando uma verdadeira Em especial, o termo inclusão vem sendo
revolução intelectual que se espalhou pelo mundo, associado ao processo pelo qual passam as
repercutindo até os dias atuais. pessoas que necessitam de condições especiais
Com a expansão do trabalho científico e o para usufruírem de direitos iguais aos de outros
advento da especialização, essa preocupação cidadãos ou para exercerem a sua cidadania.
perde força no século XIX e a interdisciplinaridade Portanto, podemos reconhecer nesses
ressurge, no final do século XX, pela necessidade processos muitas necessidades inclusivas, assim
de dar uma resposta à fragmentação causada pela como diferentes níveis e dimensões de inclusão.
especialização. Trata-se de conceitos polêmicos, muitas vezes
As ciências haviam se dividido em muitas considerados simplificatórios, por não darem conta
disciplinas e a interdisciplinaridade tenta de toda complexidade das relações que os
restabelecer um diálogo entre elas. A envolvem.
interdisciplinaridade consiste, então, no método de Em consideração a essa dinâmica, Sawaia
pesquisa, ensino e atuação voltado para a interação (1999, p.7) evidencia sua ambiguidade, criando a
entre duas ou mais disciplinas, num processo que expressão “dialética exclusão/inclusão”, tendo em
pode ir da simples comunicação de ideias até a vista a contradição que constitui o processo de
integração recíproca de finalidades, objetivos, exclusão. Segundo esta autora, todos estão
conceitos e procedimentos de ação. incluídos de alguma forma, mas esta inclusão nem
Na interdisciplinaridade, os interesses próprios de sempre é decente e digna, pois podemos estar
cada disciplina são preservados, cada área do incluídos em uma ordem desigual, exploradora,
conhecimento mantém suas especificidades culpabilizante, enfim, configurando uma “inclusão
respeitadas e são buscadas novas relações de perversa”.
colaboração integrada de diferentes especialistas, Bauman (2005, p.14-15) vai ainda mais longe
que trazem a sua contribuição para a análise de nesta conceituação ao chamar a atenção para a
determinado tema, visando a construção de um produção de “refugo humano” pela modernidade.
conhecimento que rompe com as fronteiras das Ou seja, os “excessivos” e “redundantes”, que
disciplinas. Para isso, não basta integrar conteúdos, seriam, segundo o autor, “um inescapável efeito
é necessária uma atitude e postura interdisciplinar colateral da construção da ordem (...) e do
de busca, envolvimento, compromisso e progresso econômico”, visto que “a expansão global
reciprocidade diante do conhecimento. da forma de vida moderna liberou e pôs em
A interdisciplinaridade pressupõe o movimento quantidades enormes e crescentes de
reconhecimento de que todo conhecimento é seres humanos destituídos de formas e meios de
igualmente importante, derrubando a hierarquia sobrevivência”.
entre saberes e requer também o reconhecimento Ambos os autores concordam que não há uma
única forma de conceituar a exclusão, nem
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tampouco de combate-la, pois é produto do Dentro deste conceito, há muitas especificidades
funcionamento de um sistema social e só poderá entre elas: negligência, abandono, agressões
ser compreendida na dinâmica desse sistema. físicas ou verbais, abuso físico ou psicológico,
A Psicologia, neste contexto, tem a função de violência urbana ou doméstica, contra a mulher,
diagnosticar e de tratar da diversidade, além de idoso, criança, etc. Suas formas de expressão
construir meios de exercício pleno da cidadania, podem ser:
através de sua atuação junto às Políticas Públicas. • Violência física: desde tapas e empurrões até
Enfim, trata-se de intervir em níveis de prevenção, espancamento e assassinatos;
reabilitação e equiparação de oportunidades que
possibilitem respeitar e conviver junto à diversidade. • Violência sexual: assédio sexual, relação sexual
forçada e estupro conjugal;
1.4.8 Dignidade • Violência psicológica: humilhação, xingamentos,
ofensas, desqualificação do seu trabalho,
A palavra dignidade vem do latim dignìtas –
desrespeito, piadas que subjugam a pessoa,
merecimento, valor, nobreza – e tem como
ameaças verbais ou por armas, abuso do poder;
significado a qualidade moral que infunde respeito;
consciência do próprio valor, honra, autoridade, • Violência auto-infringida: auto-flagelo, suicídio;
nobreza (Dicionário Houaiss).
A abordagem atual da dignidade humana faz-se, • Violência patrimonial: quebrar ou atirar objetos,
sobretudo, pela negação das restrições de destruição de bens públicos, vandalismo.
liberdade, pela negação da violência e das Os custos decorrentes da violência, nas suas
situações de desrespeito, pelo repúdio aos que mais variadas formas, podem ser diretos (em
acreditam na insignificância humana e, por isso, função dos gastos com profissionais da saúde e da
não têm pudor de matar ou de deixar morrer. saúde mental, serviços de emergência, serviços
Repúdio aos que consideram a vida humana legais, serviços judiciais) ou indiretos (em função
apenas como uma presença ou ausência nos das mortes prematuras, perda da produtividade, da
quadros estatísticos, que implantam no mundo a qualidade de vida e outras perdas intangíveis).
ideia de “redundância” ou de “refugo humano” Conforme dados do Sistema de Informação de
(Bauman, 2005). Ou seja, para aqueles que não Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação
têm mais lugar no mundo: os desempregados, os Hospitalar (SIH), as causas externas (acidentes,
desgraçados, os miseráveis, os que não podem suicídios, homicídio, afogamentos, armamentos)
consumir, enfim, os que estão fora da ordem são responsáveis por um número considerável de
econômica. mortes no Brasil. O Ministério da Saúde e o
Um dos maiores princípios constitucionais é, Ministério da Justiça vêm implantando políticas e
sem dúvida, a dignidade. E como afirma Kant programas de proteção (como por exemplo, o Pacto
(1997, p.77), “quando uma coisa tem um preço, em Defesa da Vida), buscando reduzir a taxa de
pode-se pôr em vez dela qualquer outra como morbimortalidade em decorrência das causas
equivalente; mas quando uma coisa está acima de externas.
todo o preço, e, portanto, não permite equivalente,
então ela tem dignidade."
1.5. Campos da Política Pública
1.4.9 Violência
1.5.1 Sistema Único de Saúde e a Estratégia de
A violência pode ser compreendida como um Saúde da Família
fenômeno social que acontece como manifestação
de relações de poder, tanto no nível individual como O Sistema Único de Saúde (SUS) é fruto do
coletivo, de forma concreta ou simbólica. movimento da Reforma Sanitária que culminou com
a VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986, e
11
está garantido desde 1988, através da Constituição tratamento e reabilitação, buscando resguardar os
Federal. Seus princípios estão descritos no capítulo conceitos de:
da ordem social, seção Saúde, nos seguintes • Universalidade: todos têm direito a atendimento
artigos: nos serviços de saúde do SUS, independente de
estar ou não contribuindo ao sistema
• 196: está fundamentado no princípio de que previdenciário;
“Saúde é um direito de todos e um dever do • Equidade: todos têm direito a atendimento, sem
estado”. Neste sentido todo cidadão brasileiro, discriminação ou privilégios, de acordo com as
independente da sua condição de contribuinte suas necessidades, oferecendo-se mais atenção
ao sistema previdenciário, tem direito aos a quem precisa mais, de forma a reduzir
serviços de saúde, que devem estar desigualdades;
organizados no sentido de prover ações de • Integralidade: todo brasileiro tem direito ao
promoção, proteção, cura e reabilitação; atendimento preventivo e curativo, sem distinção
• 197: reafirma a relevância das ações dos a todas as suas demandas;
serviços de saúde, cabendo ao poder público • Descentralização: a responsabilidade pelo
sua regulamentação, fiscalização e controle; atendimento cabe às três esferas
• 198: explicita as diretrizes para a organização governamentais (federal estadual e municipal);
do sistema, que são: a descentralização, o • Hierarquização: organização das ações de
atendimento integral e a participação saúde das diferentes esferas de governo, para o
comunitária; atendimento em nível primário, secundário e
• 199: trata da participação da iniciativa privada terciário da assistência, de forma a contemplar a
no SUS, que deverá ser de forma complexidade do cuidado.
complementar, não podendo receber recursos Neste cenário, insere-se a Estratégia de Saúde
públicos para sua organização; da Família, que forma equipes com o compromisso
• 200: estabelece outras competências do SUS de estabelecer vínculo com a população,
como: a vigilância sanitária, epidemiológica e compartilhando a responsabilidade com os usuários
do meio ambiente. e a comunidade. Seu desafio é o de ampliar as
A regulamentação do SUS ocorreu através da fronteiras de atuação, visando a uma maior
Lei 8.080/90, que detalha a sua forma de resolubilidade da atenção. Nesse sentido, a Saúde
organização, e da Lei 8.142/90, que trata do da Família é compreendida como a estratégia
Controle Social no SUS. Garante, assim, a principal para mudança do modelo de saúde
participação popular, através das Conferências e individualista, devendo integrar-se ao contexto de
Conselhos de Saúde, que são previstos em cada reorganização dos programas de governo.
esfera de governo. Esta estratégia, proposta pelo Ministério da
A organização do SUS é contemporânea ao Saúde em 1994, apoia-se no trabalho
avanço da globalização e ao fortalecimento das multiprofissional e intersetorial. Busca o
políticas neoliberais. estabelecimento de parcerias com os demais
Essas políticas se apoiam na lógica do estado organismos governamentais (escola, creche,
mínimo, o que significa a redução dos serviços segurança, etc.) e não governamentais (pastoral da
públicos e o incentivo ao capital privado. Neste criança, igrejas, associações de moradores, etc.),
sentido, a construção do SUS segue de forma presentes no território geográfico de sua
contra hegemônica e é, certamente, um movimento abrangência.
que se firma em resistência à privatização da O Ministério da Saúde determina que a equipe
saúde. mínima do programa de Saúde da Família seja
O sistema de saúde brasileiro se fundamenta nos formada pelos seguintes profissionais: um médico
preceitos do SUS, tendo Políticas Públicas dirigidas de família, um enfermeiro, um auxiliar de
à promoção da saúde, prevenção de doenças, enfermagem e seis agentes comunitários de saúde.
12
Cada equipe responsabiliza-se pelo Com base nessa lei e no Plano Nacional de
acompanhamento de cerca de mil famílias de uma Educação, toda e qualquer forma de educação
determinada área. institucionalizada, seja de ordem pública ou privada,
A atuação das equipes ocorre principalmente reconhecida pelo MEC, fica submetida às normas
nas Unidades Básicas de Saúde, nas residências e que organizam o currículo da proposta, o
na mobilização da comunidade, caracterizando-se calendário, exigências de formação do corpo
como porta de entrada de um sistema hierarquizado docente, condições de funcionamento do curso, etc.
e regionalizado, no qual se propõe ações em rede Assim, as diversas modalidades e níveis do sistema
entre municípios próximos, para tornar a educacional mantêm unidade em sua execução,
resolutividade do sistema mais acessível para os respeitando algumas especificidades. Dentre estas
seus usuários. existem: a Educação Básica, que abrange
Embora o psicólogo não esteja contemplado na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino
equipe mínima, proposta pelo Ministério da Saúde, Médio; a Educação Superior, a Educação à
algumas prefeituras têm incluído esse profissional Distância, a Educação de Jovens e Adultos, a
como parte da equipe em suas jurisdições. Com Educação Especial, a Educação Indígena e de
isso, o campo da saúde da família tem se revelado Campo e a Educação Profissional.
um novo espaço de ação profissional para a Chamada a contribuir nessa área, a Psicologia
Psicologia. pode atuar em diferentes frentes de trabalho, como:
colocando à disposição seus referenciais teóricos
fundamentais sobre o Homem e a Educação;
1.5.2 Educação desenvolvendo métodos e técnicas que
O Sistema Educacional Brasileiro é planejado e auxiliem na promoção do processo de ensino-
executado por órgãos como o Ministério da aprendizagem; aprimorando o sistema de
Educação (MEC) e as secretarias em níveis avaliação; formando profissionais do corpo docente;
Estadual e Municipal. Dois importantes documentos fazendo o diagnóstico de dificuldades de
regem a educação em nosso país. São eles: a Lei aprendizagem; promovendo a inclusão escolar;
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei entre outras possibilidades que variam desde o
9.394, de 20 de dezembro de 1996) e o Plano planejamento até a implantação dos sistemas
Nacional de Educação (Lei 10.172/2001). educacionais.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação preconiza
1.5.3 Criança e Adolescente
que a educação é dever da família e do Estado,
assegurada como direito do cidadão. Para Em termos legais, o Brasil avançou
compreender a sua amplitude, citamos o primeiro consideravelmente ao promover a aprovação do
artigo: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei
- Art. 1º A educação abrange os processos 8.069, em 13 de julho de 1990. Este estatuto foi
formativos que se desenvolvem na vida familiar, na resultado de anos de avaliações, levantamentos e
convivência humana, no trabalho, nas instituições denúncias de várias entidades – órgãos e
de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e sociedade civil – sobre maus-tratos, violência e
organizações da sociedade civil e nas negligência no atendimento à criança e ao
manifestações culturais. adolescente.
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se Mais que isto, os conceitos de infância e de
desenvolve, predominantemente, por meio do desenvolvimento foram reformulados, implicando
ensino, em instituições próprias. modificações em vários sistemas de atenção a este
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao público: saúde, educação, entidades de
atendimentos de direitos da família, abrigos,
mundo do trabalho e à prática social.
medidas de proteção, etc. O estatuto orienta a

13
criação e funcionamento de várias Políticas de forma integrada às políticas setoriais, visando ao
Públicas dirigidas à criança e ao adolescente. enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos
Com a ampliação da discussão sobre direitos e sociais, ao provimento de condições para atender
deveres da criança e do adolescente e de seus contingências sociais e à universalização dos
responsáveis (pais ou entidades), muitas ações direitos sociais". O próprio texto constitucional, no
passaram a ser desenvolvidas para dar conta das artigo 194, corrobora o ideal presente na Lei
premissas que contemplam tal proposta, sendo Orgânica de Assistência Social (LOAS): "a
transformadas em Política Pública e executadas seguridade social compreende um conjunto
regularmente por meio do Sistema Único da integrado de ações de iniciativa dos Poderes
Assistência Social (SUAS). Uma delas foi a criação Públicos e da sociedade, destinados a assegurar os
do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil direitos relativos à saúde, à pre - vidência e à
(PETI), como forma de garantir que crianças e assistência social".
adolescentes (até 15 anos) possam estudar, serem O Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
saudáveis e se manterem afastados do trabalho criado a partir da IV Conferência Nacional de
perigoso, penoso, insalubre e degradante. Assistência Social, é considerado uma rede cidadã
Outra ação importante é a intervenção de um de serviços, benefícios e ações de assistência
órgão não jurisdicional que tem por função fiscalizar social a ser implantada em âmbito nacional.
o cumprimento dos direitos previstos no Estatuto da Tem como objetivo romper com o quadro atual
Criança e do Adolescente. Trata-se do Conselho de ações sociais fragmentadas entre as diferentes
Tutelar, que atua sobre casos de negligência, esferas governamentais (municipal, estadual e
discriminação, exploração, violência, crueldade e federal) os segmentos da sociedade. Para tanto, o
opressão em casos que tenham como vítimas SUAS prevê a criação de Centros de Referência de
crianças ou adolescentes. Também existem os Assistência Social (CRAS), que deve atender até
Conselhos de Direito da Criança e do Adolescente, mil famílias por unidade.
em níveis nacional, estadual e municipal. Em função da diversidade de questões que os
O psicólogo, junto a outros profissionais, vem CRAS abordam em suas ações, o psicólogo tem
atuando tanto na organização das ações de sido convocado para auxiliar no trabalho de
Políticas Públicas como na sua implementação em acompanhamento das famílias e no
diversos meios: abrigos, escolas, sistema de saúde, desenvolvimento de programas específicos. Cabe a
entidades de medidas socioeducativas, inclusão nossa categoria, levar o olhar psi para esse campo,
social e educativa. numa perspectiva social e não individualista.

1.5.5 A Questão da Mulher


1.5.4 Lei Orgânica da Assistência Social
A condição feminina vem sendo tema de muitos
A Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993, surgiu estudos ao longo dos séculos. Embora o cenário já
após a promulgação da Constituição de 1988, se apresente de forma mais favorável, a mulher
também denominada de “Constituição Cidadã”, e é contemporânea ainda sofre discriminação e
fruto do movimento de luta articulado violência, independente de sua classe social e
nacionalmente por trabalhadores da área social e etnia.
outras entidades da sociedade civil. Ela dispõe No âmbito do trabalho, a luta contra a
diretrizes básicas e regras para a organização da discriminação salarial e profissional ainda perdura.
Assistência Social no Brasil, levando em conta o A valorização da mão de obra feminina para
cenário social e político do país. determinados cargos e funções já é reconhecida
De acordo com essa lei, a Assistência Social socialmente, mas em termos de salários, ela é
deve garantir o caráter de política universal e de muitas vezes negada, recebendo salário inferior ao
participação efetiva na construção de políticas do homem numa mesma posição de trabalho. Em
públicas. Diz o texto: "a assistência social realiza-se
14
relação à violência, as estatísticas ainda depõem Nesse sentido, o profissional da Psicologia pode
contra a mulher. De acordo com o Instituto Patrícia contribuir amplamente com seu conhecimento e
Galvão (2006), um terço das brasileiras já foram método de trabalho, participando formal ou
vítimas de algum tipo de violência física, sendo que informalmente das instituições que atendem à
os casos de violência sexista compõem a maioria mulher nos diferentes segmentos da sociedade.
das denúncias. Uma a cada cinco mulheres já
declarou ter sido agredida por um homem. Porém, 1.5.6 Políticas Públicas para o Idoso
os avanços também podem ser observados através
das políticas de proteção à mulher, criadas e O aumento gradativo na expectativa de vida em
implantadas no país sob a jurisprudência do vários países é fato real. Aspectos positivos dessa
Ministério da Justiça, por meio da Secretaria transformação são o avanço da Medicina e a
Nacional de Segurança Pública (SENASP). melhora na qualidade de vida. Segundo previsões
Assistiu-se nas últimas décadas à criação de da Organização Mundial de Saúde, por
delegacias especializadas no atendimento a volta do ano 2025, pela primeira vez na história,
mulheres, que buscam investigar e apurar crimes haverá mais idosos que crianças no planeta e o
de violência contra a mulher; ao surgimento de Brasil será o sexto país do mundo com o maior
centros de referências para atendimento número de pessoas idosas.
psicológico, jurídico e social para mulheres em Portanto, esta perspectiva tem gerado novas
situação de vulnerabilidade; à implantação de necessidades relacionadas a esse público. A
abrigos de proteção, entre outras medidas e leis pessoa idosa tem sido considerada aquela que
visando coibir e prevenir a violência doméstica possui acima de 60 anos de vida. Quando falamos
contra a mulher. em idoso, principalmente na realidade brasileira,
Já na área da saúde, a mulher vem notoriamente constatamos fatos associados à manutenção de
ganhando cada vez mais atenção. Novos sua capacidade funcional, à desvalorização de sua
programas de assistência primária, secundária e remuneração, à seguridade social e à promoção de
terciária vêm sendo implantados com o objetivo de sua saúde. Apesar do pouco preparo técnico para
promover melhor qualidade de vida para a mulher e atuar com este grupo social, é necessária a
garantir seu acesso a serviços de saúde, sejam elaboração de Políticas Públicas a fim de enfrentar
eles especializados ou gerais. Trata-se do os problemas citados.
Programa de Assistência Integral à Saúde da A Constituição de 1988 pode ser considerada
Mulher (PAISM), que dispõe, dentre outros, dos como uma das iniciativas mais importantes para a
seguintes programas: planejamento reprodutivo, definição da Política Nacional do Idoso, pois,
atenção obstétrica e neonatal, aleitamento implementou a regulamentação para formação das
orientado, prevenção e tratamento do câncer de redes estaduais de atenção à saúde do idoso. A Lei
colo de útero e de mama, saúde das mulheres 8.842, em 4 de janeiro de 1994, inaugura o início de
trabalhadoras do campo e da cidade, saúde mental cursos voltados à Geriatria e à Gerontologia em
da mulher, saúde da mulher negra e saúde da busca de ações que garantam dignidade e respeito
mulher na terceira idade. aos idosos. Portanto, podemos perceber que, além
O trabalho para a valorização da condição da previdência social, áreas de atenção ao idoso
feminina vem também sendo desenvolvido com a como a saúde e outros direitos humanos têm sido
participação efetiva da sociedade civil organizada, destacadas.
seja através de ONGs que prestam serviços em Simultaneamente ao crescimento populacional
diferentes áreas de interesse da mulher ou, ainda, do idoso, têm surgido clubes, associações e
por meio de representantes em conselhos e programas universitários com propostas de
comissões especialmente criados em defesa da atividades que colaboram para qualidade de vida.
mulher. Esta tem sido entendida, diante de vários estudos,
como a possibilidade de manter capacidade

15
funcional, autonomia e segurança sócio-econômica, visando a mobilização da população para a
além de gozar de um estado de bem-estar melhoria da qualidade de vida das cidades. Esse
psicossocial em relação à saúde e à família. trabalho é feito, especialmente, por meio da
Atualmente, ao nos referirmos ao processo de capacitação de lideranças e de agentes públicos
envelhecimento, falamos de cidadania, de saúde, para o apoio aos programas e ações.
de qualidade de vida e de produtividade. Como
conseqüência dessa nova postura, foi elaborado o
Estatuto do Idoso, no qual se buscam garantias de 1.5.7 Políticas de Trabalho
promoção de saúde, de benefícios em relação a
transportes coletivos, sanções às situações de A posição central que o trabalho ocupa na vida
violência, negligência ou abandono, humana, atualmente, faz com que ele esteja
regulamentação de funcionamento das entidades presente na discussão das Políticas Públicas de
de atendimento ao idoso, oferta de programas de diversas áreas, não se restringindo àquelas
lazer, cultura, esporte, educação, garantias de definidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
direitos em relação ao trabalho e à habitação, entre Uma das principais Políticas Públicas da
vários fatores. atualidade nesta área é a de geração de trabalho e
A função da Psicologia frente a essa realidade renda e a de manutenção de níveis de emprego,
tem sido a de problematizar as representações que permitam o acesso da população a padrões
sobre o ser idoso, seus modos de produção, etc. O aceitáveis de vida e cidadania. Mas, observando-se
foco na saúde mental tem sido desenvolvido em atentamente, esta centralidade do trabalho faz com
parceria com centros de convivência, asilos, que várias outras políticas estejam associadas a
unidades de saúde e programas de inclusão social. esse campo. Como exemplo, podemos citar as
políticas econômicas, políticas agrícolas, políticas
de inclusão social, entre outras. Há também
1.5.7 Políticas de Desenvolvimento Urbano políticas de combate ao trabalho infantil, de
educação para o trabalho, de inclusão de
As políticas do desenvolvimento urbano visam à portadores de deficiência, de combate à
implantação do Estatuto das Cidades, discriminação e violência no trabalho.
assessorando os municípios na elaboração de seus Mesmo na área específica de atendimento ao
Planos Diretores. Buscam assegurar o acesso à trabalhador, as políticas geralmente envolvem
moradia digna, à terra urbanizada, à água potável, vários ministérios. O Ministério do Trabalho e
ao ambiente saudável e à mobilidade com Emprego regulamenta as relações trabalhistas mais
segurança; visto que atualmente cerca de 80% da gerais, implementando e fiscalizando o
população do país mora em área urbana e existe cumprimento das leis que regem trabalho no país.
um grande déficit habitacional e infra-estrutura Existe, ainda, o Ministério de Previdência Social,
urbana, principalmente junto à população de baixa que atua na transferência de renda ao trabalhador
renda. quando ele perde a capacidade de trabalho por
São três os grandes eixos de atuação nesse algum motivo (aposentadoria, doença, etc.), e o
campo: Ministério da Saúde, que provê políticas
relacionadas à manutenção da saúde do
I. Mobilização e Organização Comunitária e/ou trabalhador.
Condominial; O psicólogo é um dos profissionais convidados a
II. Educação Sanitária, Ambiental e Patrimonial; pensar nas possíveis estratégias para garantir a
III. Capacitação Profissional e Geração de Trabalho saúde do trabalhador, podendo ainda contribuir com
e Renda. a sua visão dos processos organizacionais e das
Nesse campo, a atuação dos psicólogos se dá relações de trabalho que se estabelecem nas
principalmente em ações com as comunidades, diversas instituições.

16
1.5.8 Políticas em Meio Ambiente e rurais, com grupos étnicos, sindicalistas,
associações de bairros, agricultores, artistas, etc.
Inúmeras temáticas relacionadas ao meio
ambiente têm emergido como alvo de preocupação 1.5.9 Políticas da Cultura
por parte de vários setores, sejam eles científicos
ou de outra natureza. Ao falarmos deste assunto, O campo das Políticas Públicas da Cultura é um
associando-o à Psicologia, existem algumas dos mais complexos, pois a cultura é expressa
tendências que delineiam seu desenvolvimento através de inúmeras linguagens, suportes e
enquanto área em expansão. particularidades locais. Manifestações culturais
Eventos que discutem posicionamentos diante mais diversas, como: teatro, música, dança,
de problemáticas ambientais, como as conferências cinema, comunicação de massa, artes plásticas,
das Nações Unidas para o Meio Ambiente e fotografia, escultura, artesanato, livros, patrimônio
Desenvolvimento, integram diferentes grupos, como cultural (material e imaterial), circo, museus etc.,
organismos governamentais, instituições cada um com a sua complexidade e especificidade,
educativas, empresas, organizações sociais e precisam de atenção.
ambientais, povos indígenas e a sociedade civil. As políticas nesta área devem prever
Os debates organizam-se em torno de eixos capacitação profissional, criação, produção,
como as políticas de desenvolvimento sustentável, circulação e financiamento da cultura, pensando
o ambiente construído (arquitetura e urbanismo) e ainda que as mesmas devem ser dirigidas a
problemas ambientais (desastres e catástrofes). diferentes públicos ou segmentos culturais, como
Nesses, a interdisciplinaridade evidencia-se à povos indígenas e afro-descendentes, juventude,
medida que participam áreas como a da Arquitetura portadores de necessidades especiais,
e Planejamento Ambiental, Geografia e Ciências comunidades marginalizadas das grandes cidades
Bio/Ecológicas. Da área da Psicologia têm maior e para as comunidades gays, lésbicas, bissexuais e
representatividade a Psicologia Ecológica, a transexuais.
Psicologia da Percepção e a Psicologia Social. As ações vinculadas às políticas culturais ainda
Outra interface acontece com a educação funcionam como suporte para várias outras áreas,
ambiental. como por exemplo, a educação, a redução da
Portanto, encontram-se ONGs, governos, violência, saúde, entre outras. Nesse campo, cabe
universidades, comunidades e setores produtivos ao psicólogo interagir com profissionais de
em torno do esforço de compreensão de temas diferentes áreas das ciências humanas e sociais,
como: produção do espaço, relações sociais, contribuindo com sua visão sobre o processo
respeito à diversidade, democratização dos meios criativo e a concepção de cultura como uma
de comunicação de massa, consciência ética, manifestação psicossocial.
cultura, tradição, memória, responsabilidade,
recursos naturais e tecnologias. 1.5.10 Políticas Públicas do Esporte e Lazer
O psicólogo é chamado a contribuir para a Em 2003 foram convidados inúmeros segmentos
educação ambiental (que deve integrar do esporte no país para se mobilizarem na
conhecimentos, aptidões, valores, atitudes e ações) elaboração de uma Política Nacional de Esporte.
de forma articulada com gestão ambiental. Também Foi realizada a 1ª Conferência Nacional do Esporte,
pode auxiliar na compreensão do fenômeno sob o tema “Esporte, Lazer e Desenvolvimento
psicossocial em que processos cognitivos e afetivos Humano”, resultando em mudanças conceituais e
estão implicados na representação do ambiente, de profundidade, a partir do cumprimento das
tanto na esfera individual como na coletiva. Outros etapas da conferência que começa no âmbito
temas associados são: privacidade, territorialidade, municipal, passando pelo regional, estadual e
espaço pessoal e aglomeração, em meios urbanos finalmente nacional.

17
No mesmo ano da Conferência foi criado o A consolidação e garantia destes direitos é uma
Ministério do Esporte, com a missão de “formular e luta e conquista diária. Por isto que, ao mesmo
implementar Políticas Públicas inclusivas e de tempo em que a doutrina do Direito Humano vai
afirmação do esporte e do lazer, como direitos sendo construída, é preciso organizar as instâncias
sociais dos cidadãos, colaborando para o para garanti-los e estimular permanentemente a
desenvolvimento nacional e humano”. militância dos cidadãos em sua defesa.
O objetivo da lei é, portanto, o de assegurar o Observamos que, gradativamente, uma rede de
acesso de todas as atividades esportivas e de lazer Defesa dos Direitos Humanos vem sendo
a fim de reduzir ou mesmo eliminar o quadro de formatada para dar conta dessa necessidade.
injustiças, exclusão e vulnerabilidade social, que Como parte integrante da Rede Internacional,
atinge grande parte da população brasileira. Cabe constam: a Organização das Nações Unidas, a
ao Estado a democratização do esporte e do lazer, Organização dos Estados Americanos, a Comissão
que são direitos sociais, denominados de cidadania Interamericana de Direitos Humanos, a Corte
esportiva e de lazer, objetivando detectar e Interamericana de Direitos Humanos, a Corte
desenvolver talentos esportivos em potencial, Européia de Direitos Humanos e o Tribunal Penal
aprimorar o desempenho de atletas e para-atletas Internacional.
de rendimento, fomentar a prática do esporte No Brasil, além dos artigos da nossa
educacional e de identidade cultural. Constituição sobre os Direitos Humanos, temos
O esporte é, portanto, um fator de inclusão social várias convenções e pactos ratificados.
e para isso está articulado a outros serviços E como instâncias de defesa dos direitos
públicos, sobretudo educação, saúde e qualidade humanos temos: o Judiciário e a Promotoria, a
de vida. Construir com responsabilidade social as Secretaria Especial de Direitos Humanos, o
propostas para uma política cultural de esporte e Conselho Nacional de Direitos Humanos, os
lazer não tem sido tarefa fácil. Porém, é necessário Conselhos Estaduais e também vários Conselhos
intervir com consistente base teórica junto a Municipais de Direitos. Também diferentes ONGs
crianças e jovens para que o esporte possa ser militantes na área dos direitos humanos vêm se
discutido, pesquisado e vivenciado como projeto integrando à formação desta Rede de Defesa dos
histórico, socialista e de uma correspondente teoria Direitos Humanos.
pedagógica. Conhecer os princípios dos Direitos Humanos,
Compete ao psicólogo reconhecer as os mecanismos de denúncia de abusos e as
problemáticas significativas que deverão ser estratégias de garantia dos direitos e é fundamental
tratadas em um esforço conjunto, discutindo o para o psicólogo trabalhar com qualidade e
esporte como um contexto complexo e contribuindo coerência na área das Políticas Públicas. Além
com as possibilidades educativas desse relevante disso, o Sistema Conselhos de Psicologia (CRPs e
fenômeno social. CFP) possui comissões de Direitos Humanos, que
* Adaptado do texto “Políticas Públicas do Esporte e têm desenvolvido várias ações e através delas
do Lazer no Brasil” da Professora Maria Regina acumulado experiências e conhecimentos teórico-
Walter, disponível no arquivo de artigos do NAPP. práticos em relação à Psicologia e aos Direitos
Humanos.
1.5.11 Rede de Defesa dos Direitos Humanos
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Os Direitos Humanos são um conjunto de
princípios, conceitos, acordos, convenções e pactos ARENDT, H. A condição humana. 10ª ed. Rio de
pela humanidade, no sentido de vir a garantir a Janeiro: Forense Universitária, 2001.
todos uma vida com dignidade. Foram sendo ARZABE, P. H. M. Conselhos de direitos e
construídos ao longo da história, representando a formulação de políticas públicas. Disponível em:
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Disponível em <http://www.patriciagalvao.org.br> uma análise sobre a lógica de diferentes
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THIELE, L. P. Thinking politics – Perspectives in industrialização e urbanização brasileiros. Acentua-
ancient, modern, and postmodern political theory. se o componente de assistência médica, em parte
Chatham, NJ: Chatham House Publishers, 1997. por meio de serviços próprios, mas, principalmente,
VIANA, A. L. Abordagens metodológicas em por meio da compra de serviços do setor privado.
políticas públicas. Revista de Administração
Pública, Rio de Janeiro, vol. 30, n. 2, mar/abr 1996. o 1965 Criação do Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS) .
O INPS são resultados da unificação dos
1.1 AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE: IAPs, no regime autoritário de 1964, unificou as
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) categorias profissionais que tinham institutos mais
ricos. O INPS consolida o componente assistencial,
com marcada opção de compra de serviços
assistenciais do setor privado, concretizando o
modelo assistencial hospitalocêntrico, curativista e
médico centrado, que terá uma forte presença no
futuro SUS.
o 1977 - Criação do SINPAS
Apresentamos agora direto da linha do tempo, um
conjunto de datas que marcaram o longo caminho Em 1977 foi criado o Sistema Nacional de
da constituição do SUS com a principal política Assistência e Previdência Social (SINPAS), e,
pública de saúde brasileira, destacando as dentro dele, o Instituto Nacional de Assistência
contribuições dadas por estes eventos na Médica da Previdência Social (INAMPS), criado em
construção de nosso sistema único de saúde.. 1974, este passou a ser o maior órgão
governamental prestador de assistência médica,
o 1923 - Criação das Caixas de Aposentadorias isso aconteceu á custa de compra de serviços
e Pensões (CAP) médico-hospitalares e especializados do setor
privado.
As Caixas de Aposentadorias e Pensões
o 1982 - Implantação do PAIS
(CAP) foin criada pela Lei Eloy Chaves. Com
oacellerado processo de industrialização e da Em 1982ocorre a implantação do Programa
urbanização, essa lei tem como objetivo garantir de Ações Integradas de Saúde (PAIS), que dava
pensão em caso de algum acidente ou afastamento particular ênfase à Atenção Primária, sendo a rede
do trabalho por doença, e uma futura ambulatorial pensada como a “porta de entrada” do
aposentadoria. Com as “caixas”, surgem as sistema. Seu objetivo era à integração das
primeiras discussões sobre a necessidade de se instituições públicas da saúde mantidas pelas
atender à demanda dos trabalhadores. Nascem diferentes esferas de governo, em rede
nesse momento complexas relações entre os regionalizada e hierarquizada.
setores público e privado que persistirão no futuro
Sistema Único de Saúde. Propunha a criação de sistemas de referência
e contrarreferência e a atribuição de prioridade para
o 1932 - Criação dos Institutos de a rede pública de serviços de saúde, com
Aposentadoria e Pensões (IAPs) complementação pela rede privada, após sua plena
utilização;
Getúlio Vargas cria os IAPs. Os institutos
• Previa a descentralização da administração dos
podem ser vistos como resposta, por parte do
recursos, a simplificação dos mecanismos de
Estado, às lutas e reivindicações dos trabalhadores
pagamento dos serviços prestados por terceiros
no contexto de consolidação dos processos de
e seu efetivo controle;
20
• A racionalização do uso de procedimentos de recursos humanos; financiamento e gestão
custo elevado e o estabelecimento de critérios financeira e planejamento e orçamento.
racionais para todos os procedimentos. Logo em seguida, a Lei no 8.142 de 28 de
dezembro de 1990, dispõe sobre a participação da
Viabilizou a realização de convênios trilaterais comunidade, na gestão do SUS e sobre as
entre Ministério da Saúde, Ministério da Previdência transferências intergovernamentais de recursos
e Assistência Social e Secretarias de Estado de financeiros. Institui os Conselhos de Saúde e
Saúde, com o objetivo de racionalizar recursos confere legitimidade aos organismos de
utilizando capacidade pública ociosa. Podemos representação de governos estaduais (CONASS –
reconhecer nas AIS os principais pontos Conselho Nacional de Secretários Estaduais de
programáticos que estarão presentes quando da Saúde) e municipais (CONASEMS – Conselho
criação do SUS. Nacional de Secretários Municipais de Saúde).
Finalmente estava criado o arcabouço jurídico do
o 1986 - VIII Conferência Nacional de Saúde
Sistema Único de Saúde aprimoramentos ainda
Com intensa participação social, deu-se logo seriam necessários (BRASIL, 1990), mas novas
após o fim da ditadura militar iniciada em 1964, e lutas e aprimoramentos ainda seriam necessários
consagrou uma concepção ampliada de saúde e o (BRASIL, 1990).
princípio da saúde como direito universal e como
dever do Estado, atributos seriam plenamente o 1991 - Criação da Comissão de Intergestores
incorporados na Constituição de 1988. Tripartite (CIT)
A VIII CNS foi o grande marco nas histórias Criada a Comissão de Intergestores Tripartite
das conferências de saúde no Brasil. Foi, portanto, (CIT) com representação do Ministério da Saúde,
a primeira vez que a população participou das das Secretarias Estaduais de Saúde e das
discussões da conferência. Suas propostas foram Secretarias Municipais de Saúde e da primeira
contempladas tanto no texto da Constituição norma operacional básica do SUS, além da
Federal/1988 como nas leis orgânicas da saúde, no Comissão de Intergestores Bipartite (CIB) para o
8.080/90 e no 8.142/90. Participaram dessa acompanhamento da implantação e da
conferência mais de 4 mil delegados, impulsionados operacionalização da implantação do recém-criado
pelo movimento da Reforma Sanitária, os quais SUS. As duas comissões, ainda atuantes, tiveram
propuseram a criação de uma ação institucional um papel importante para o fortalecimento da ideia
correspondente ao conceito ampliado de saúde, de gestão colegiada do SUS, compartilhada entre
que envolve promoção, proteção e recuperação. os vários níveis de governo.
o 1990 - Criação do SUS A Criação do Sistema
o 1993 - NOB-SUS 93
Único de Saúde
A NOB-SUS 93,foi publicada em
A Criação do SUS ocorreu através da Lei nº
1993,buscava restaurar o compromisso da
8.080, de 19 de setembro de 1990, que “dispõe
implantação do SUS e estabelecer o princípio da
sobre as condições para a promoção, proteção e
municipalização, tal como havia sido desenhada
recuperação da saúde, a organização e o
progressivos de gestão local do SUS e estabelece
funcionamento dos serviços correspondentes” do
um conjunto de níveis estratégias que consagra a
SUS detalha: os objetivos e atribuições; os
descentralização político-administrativa na saúde.
princípios e diretrizes;
Também define diferentes níveis de
A primeira lei orgânica a organização,
responsabilidade e competência para a gestão do
direção e gestão, a competência e atribuições de
novo sistema de saúde (incipiente, parcial e
cada nível (federal, estadual e municipal); a
semiplena, a depender das competências de cada
participação complementar do sistema privado;
gestor) e consagra ou ratifica os organismos
colegiados com grau elevado de autonomia: as
21

Ano: 2022.1
Comissões Intergestoras (Tripartite e Bipartite) No Brasil, a origem do PSF remonta à criação
(BRASIL, 1993). do Programa de Agentes Comunitários de Saúde
A população foi a grande beneficiada com a (PACS) em 1991 como parte do processo de
incorporação de itens de alta complexidade, que reforma do setor da saúde, desde a Constituição,
antes eram restritos aos contribuintes da com intenção de aumentar a acessibilidade ao
previdência. Com a grande extensão de programas sistema de saúde e incrementar as ações de
de saúde pública e serviços assistenciais, deu-se o prevenção e promoção da saúde. Em 1994, o
início efetivo do processo de descentralização Ministério da Saúde lançou o PSF como política
política e administrativa, que pode ser observado nacional de Atenção Básica, com caráter
pela progressiva municipalização do sistema e pelo organizativo e substitutivo, fazendo frente ao
desenvolvimento de organismos colegiados modelo tradicional de assistência primária baseada
intergovernamentais. A participação popular trouxe em profissionais médicos especialistas focais.
a incorporação dos usuários do sistema ao
processo decisório, com a disseminação dos o 1994 - NOB 96
conselhos municipais de saúde, ampliando as
discussões das questões de saúde na sociedade A edição da NOB 96 representou um novo
(LEVCOVITZ et al., 2001). modelo de Atenção que acelera a descentralização
dos recursos federais em direção aos estados e
o 1994 - O Programa Saúde da Família ou PSF municípios, consolidando a tendência à autonomia
no Brasil de gestão das esferas descentralizadas, criando
incentivo explícito às mudanças, na lógica
Conhecido hoje como “Estratégia Saúde da assistencial, rompendo com o produtivismo
Família”, o fato é que não se constitui somente (pagamento por produção de serviços, como o
como um programa. Inicialmente em 1994, surge INAMPS usava para comprar serviços do setor
como programas propostos pelo governo federal privado) e implementando incentivos aos
aos municípios para implementar a Atenção programas dirigidos às populações mais carentes,
Primária. A Estratégia Saúde da Família tem como como o Programa de Agentes Comunitários de
objetivo à reversão do modelo assistencial vigente, Saúde (PACS), e às práticas fundadas numa nova
em que predomina o atendimento emergencial ao lógica assistencial, como o Programa de Saúde da
doente, na maioria das vezes em grandes hospitais. Família (PSF).
A família passa a ser o objeto de atenção, no
ambiente em que vive, permitindo uma As principais inovações da NOB 96 foram:
compreensão ampliada do processo saúde-doença.
a) a concepção ampliada de saúde – considera
O programa inclui ações de promoção da saúde,
a concepção determinada pela Constituição
prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e
englobando promoção, prevenção, condições
agravos mais frequentes. No âmbito da
sanitárias, ambientais, emprego, moradia etc.
reorganização dos serviços de saúde, a Estratégia
fortalecimento das instâncias colegiadas e da
Saúde da Família vai ao encontro dos debates e
gestão pactuada.;
análises referentes ao processo de mudança do
b) o e descentralizada – consagrada na prática
paradigma que orienta o modelo de Atenção à
com as Comissões Intergestores e os Conselhos de
Saúde vigente e que vem sendo enfrentado, desde
Saúde;
a década de 1970, pelo conjunto de atores e
c) as transferências fundo a fundo (do Fundo
sujeitos sociais comprometidos com um novo
Nacional de Saúde direto para os fundos municipais
modelo que valorize as ações de promoção e
de saúde, regulamentados pela NOB 96), com base
proteção da saúde, prevenção das doenças e
na população e em valores per capita previamente
atenção integral às pessoas.
fixados;

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Ano: 2022.1
d) novos mecanismos de classificação para cada ente da federação. As transferências dos
determinam os estágios de habilitação para a recursos também foram modificadas, passando a
gestão, nos quais os municípios são classificados ser divididas em seis grandes blocos de
em duas condições: gestão plena da Atenção financiamento (Atenção, Básica, Média e Alta
Básica e gestão plena do sistema municipal Complexidade da Assistência, Vigilância em Saúde,
(BRASIL, 1996). Assistência Farmacêutica, Gestão do SUS e
Na gestão plena da Atenção Básica, os Investimentos em Saúde). Mais informações sobre
recursos são transferidos de acordo com os o Pacto pela Saúde serão apresentadas na última
procedimentos correspondentes ao PAB – Piso da parte do texto.
Atenção Básica. A atenção ambulatorial
especializada e a atenção hospitalar continuam 1.1 SISTEMA ÙNICO DE SAÚDE- (SUS)
financiadas pelo Sistema de Informações
Ambulatoriais (SIA-SUS) e pelo Sistema de O Sistema Único de Saúde (SUS),foi criado
Informações Hospitalares (SIH-SUS). No caso dos pela Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990,
municípios em gestão plena do sistema, a também chamada de “Lei Orgânica da Saúde”, é a
totalidade dos recursos é transferida tradução prática do princípio constitucional da
automaticamente. saúde como direito de todos e dever do Estado e
estabelece, no seu artigo 7º, que “as ações e
o 2002 - Norma Operacional de Assistência à serviços públicos de saúde e os serviços privados
Saúde (NOAS-SUS) contratados ou conveniados que integram o
Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos
No ano 2002 é editada a Norma Operacional de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da
de Assistência à Saúde (NOAS-SUS), cuja ênfase Constituição Federal”, obedecendo os seguintes
maior é no processo de regionalização do SUS, a princípios:
partir de uma avaliação de que a municipalização
da gestão do sistema de saúde, regulamentada e I- universalidade de acesso aos serviços de saúde
consolidada pelas normas operacionais, estava em todos os níveis de assistência;
sendo insuficiente para a configuração do sistema II- integralidade de assistência, entendida como
de saúde por não permitir uma definição mais clara conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
dos mecanismos regionais de organização da preventivos e curativos, individuais e coletivos,
prestação de serviços. Como veremos adiante, o exigidos para cada caso em todos os níveis de
Pacto pela Vida tem sua grande força, exatamente complexidade do sistema;
em um novo ordenamento dos processos de III- preservação da autonomia das pessoas na
regionalização do SUS (BRASIL, 2002). defesa de sua integridade física e moral;
IV- igualdade da assistência à saúde, sem
o 2006 - Pacto pela Saúde preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V- direito à informação, às pessoas assistidas,
O Pacto pela Saúde é um conjunto de sobre sua saúde;
reformas institucionais pactuados entre as três VI- divulgação de informações quanto ao potencial
esferas de gestão (União, estados e municípios) do dos serviços de saúde e a sua utilização pelo
Sistema Único de Saúde, com o objetivo de usuário;
promover inovações nos processos e instrumentos VII- utilização da epidemiologia para o
de gestão. Sua implementação se dá por meio da estabelecimento de prioridades, a alocação de
adesão de municípios, estados e União ao Termo recursos e a orientação programática;
de Compromisso de Gestão (TCG), que, renovado VIII - participação da comunidade;
anualmente, substitui os anteriores processos de IX- descentralização político-administrativa, com
habilitação e estabelece metas e compromissos direção única em cada esfera de governo: a) ênfase

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Ano: 2022.1
na descentralização dos serviços para os • Diretrizes para Implementação do Projeto Saúde e
municípios; b) regionalização e hierarquização da Prevenção nas Escolas, 2006
rede de serviços de saúde; • Diretrizes para o controle da sífilis congênita:
X- integração em nível executivo das ações de manual de bolso, 2006
saúde, meio ambiente e saneamento básico; • Diretrizes para o fortalecimento para as ações de
XI- conjugação dos recursos financeiros, adesão ao tratamento para as pessoas que vivem
tecnológicos, materiais e humanos da União, dos com HIV e AIDS
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na • Diretrizes para Vigilância, Atenção e Controle da
prestação de serviços de assistência à saúde da Hanseníase (Portaria MS/GM no 3.125, de
população; 07/10/10)
XII- capacidade de resolução dos serviços em todos •Estratégia Nacional de Avaliação, Monitoramento,
os níveis de assistência; e XIII - organização dos Supervisão e Apoio Técnico aos Centros de
serviços públicos de modo a evitar duplicidade de Atenção Psicossocial.
meios para fins idênticos. • Pacto Nacional: Um mundo pela criança e o
As diretrizes do SUS foram produzidas pelo adolescente do semiárido
ministério da saúde, é, portanto, um conjunto de • Pacto Nacional pela Redução Mortalidade
recomendações técnicas destinadas a problemas Materna e Neonatal, 2007.
específicos, reconhecida no saber de atuação em • Lei no 11.445, de 05/01/2007. Estabelece
abrangência nacional, sendo assim funciona em diretrizes nacionais para o saneamento básico As
abrangência nacionais respeitadas as diretrizes apontadas como exemplo, apesar de
especificidades de cada unidade federativa e de parecerem uma coisa técnica demais, acabam
cada município. tendo bastante influência no modo como os
sistemas municipais de saúde são organizados, até
Dentre as principais diretrizes estão: mesmo porque, de uma maneira geral, elas são
acompanhadas de recursos financeiros para a sua
• Diretrizes para a Atenção Psicossocial: Portaria execução.
MS/GM no 678, de 30/3/2006 O SUS transformou-se no maior projeto
• Diretrizes nacionais para o saneamento básico: público de inclusão social em menos de duas
Lei no 11.445, de 05/01/2007 décadas: 110 milhões de pessoas atendidas por
• Diretrizes Nacionais para a Atenção à Saúde das agentes comunitários de saúde em 95% dos
Pessoas Ostomizadas (instituídas pela Portaria municípios e 87 milhões atendidos por 27 mil
MS/SAS n 400, de 16/11/2009) Políticas públicas equipes de saúde de família. Em 2007: 2,7 bilhões
de saúde: Sistema Único de Saúde, Especialização de procedimentos ambulatoriais, 610 milhões de
em Saúde da Família Unidades de Conteúdo consultas, 10,8 milhões de internações, 212
• Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal, milhões de atendimentos odontológicos, 403
2004 milhões de exames laboratoriais, 2,1 milhões de
• Diretrizes para execução e financiamento das partos, 13,4 milhões de ultrassons, tomografias e
ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, ressonâncias, 55 milhões de seções de fisioterapia,
Distrito Federal e Municípios. Portaria no 23 milhões de ações de vigilância sanitária, 150
3.252/2009 milhões de vacinas, 12 mil transplantes, 3,1 milhões
• Diretrizes para a Programação Pactuada e de cirurgias, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões
Integrada da Assistência à Saúde de seções de radioquimioterapia, 9,7 milhões de
• Diretrizes para a Implantação de Complexos seções de hemodiálise e o controle mais avançado
Reguladores da aids no terceiro mundo.
• Diretrizes para a implementação do Programa de “Estes avanços foram possíveis graças à
Formação de Profissionais de Nível Médio para a profunda descentralização de competências com
Saúde (PROFAPS). Portaria no 3.189/2009 ênfase na municipalização, com a criação e

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Ano: 2022.1
funcionamento das comissões Intergestores o respeito às diferenças e às distintas necessidades
(Tripartite nacional e Bipartites estaduais), dos dos pacientes. Seria “tratar desigualmente os
fundos de saúde com repasses fundo a fundo, desiguais”, focando esforços especiais onde há
com a extinção do INAMPS unificando a direção maior carência. Um exemplo disso é o direito ao
em cada esfera de governo, com a criação e atendimento preferencial de idosos acima dos 60
funcionamento dos conselhos de saúde, e anos, devido à fragilidade de sua saúde;
fundamentalmente, com o belo contágio e a • Integralidade: políticas públicas, tais
influência dos valores éticos e sociais da política como educação e preservação ambiental, para
pública do SUS perante a população usuária, os assegurar a garantia de qualidade de vida à
trabalhadores de saúde, os gestores públicos e população.
os conselhos de saúde, levando às grandes
expectativas de alcançar os direitos sociais e Princípios Organizativos do SUS
decorrente força e pressão social.” (SANTOS,
2007). Os princípios organizativos são formas
de concretizar os ideais do SUS na prática, por
Todos os investimentos e esforços visando à meio de:
implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF)
do nosso país, somente poderão ser entendidos a • Participação Popular: como já vimos, a
partir da consolidação do SUS e da extensão dos população teve um papel importante no processo
seus benefícios para milhões de brasileiros. de elaboração do SUS. Justamente por isso, um
dos princípios visa a garantir a continuidade dessa
O SUS é a expressão mais acabada do participação por meio da criação dos Conselhos e
esforço do nosso país de garantir o acesso da realização das Conferências de Saúde. Tais
universal de seus cidadãos aos cuidados em espaços são destinados ao controle e avaliação
saúde que necessitam para ter uma vida mais das políticas de saúde, assim como à formulação
longa, produtiva e feliz. de novas estratégias.
• Descentralização e Comando Único: dispõe
sobre a distribuição de poderes e
responsabilidades entre os três níveis de governo
(municipal, estadual e federal) de modo a oferecer
2.1.2 OS PRINCÍPIOS DO SUS um melhor serviço de saúde. No SUS, essa
responsabilidade deve ser descentralizada até
As “ideias-padrão” do SUS podem ser separadas o nível municipal, ou seja, o objetivo é que o
em duas categorias: doutrinária e organizativa. município – por si só – tenha condições técnicas,
gerenciais, administrativas e financeiras para
Princípios doutrinários do SUS oferecer os devidos serviços. O princípio da
descentralização resulta em outro princípio: o do
Referem-se aos ideais do Sistema Único de Saúde. mando único. O mando único permite
É a partir deles que as estratégias de ação são a soberania de cada esfera do governo para tomar
pensadas. Assim, os princípios doutrinários são: decisões, desde que sejam respeitados os
• Universalidade: o Estado deve garantir princípios gerais e a participação social.
que todos os cidadãos tenham acesso aos • Regionalização e Hierarquização: é como o
serviços de saúde oferecidos, independente de princípio da integralidade torna-se real, já que
quaisquer características sociais ou pessoais – dentro de uma determinada área geográfica os
gênero, raça, profissão, entre outras. serviços de saúde devem ser organizados
• Equidade: busca diminuir as desigualdades no conforme níveis crescentes de complexidade. Isso
atendimento e, ao contrário do que parece, significa garante a articulação entre os serviços existentes
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Ano: 2022.1
dentro dessa região de forma a cobrir os diferentes • Unidade de Pronto-Atendimento
graus de necessidade da população. (UPA): consiste em unidades de urgência e
Para que garantir um melhor funcionamento emergência abertas 24 horas. Por contar com mais
dos serviços de saúde há uma hierarquização dos recursos do que um posto de saúde, é capacitada a
serviços do SUS. Essa classificação é feita de atender serviços de média a alta complexidade,
acordo com a complexidade do caso a ser como casos de pressão alta, infarto, fraturas ou
atendido e é dividida em quatro níveis: derrame. Na UPA, é o grau de emergência que
define a ordem dos atendimentos.
• Atenção Básica: engloba os atendimentos e • Hospital (incluindo o hospital
ações de promoção, prevenção e recuperação universitário): destinada ao atendimento dos
do estado da saúde, contemplando consultas, casos de atenção terciária. Geralmente os
vacinação e outras ações. Os atendimentos a pacientes são encaminhados ao hospital pelos
famílias também se encaixam aqui, como gestão níveis anteriores, ou ainda em ambulância. Por
materna, saúde do idoso, da criança e do contar com maior quantidade de recursos
adolescente. tecnológicos, também são responsáveis por
• Atenção secundária: estágio em que alguma atendimento clínico geral em diversas
doença já foi identificada e especialidades. Os hospitais atendem casos de
demanda acompanhamento especializado de enfermidades que ameacem a vida dos pacientes –
oftalmologistas e cardiologistas, por exemplo. como câncer – e realizam cirurgias, entre várias
• Atenção terciária: para pacientes com outras funções.
um quadro mais grave, que precisam ser A função dos postos de atendimento – em
internados para melhor acompanhamento (por especial dos citados acima – deve estar muito clara
exemplo, nas Unidades de Tratamento Intensivo para a população. Afinal, as filas seriam reduzidas e
– UTI). o serviço médico agilizado se os civis soubessem a
• Reabilitação: seria uma quarta fase para casos qual forma de atendimento recorrer em cada
em que o paciente teve alta, mas ainda demanda ocasião. É necessária a preocupação em educar a
um acompanhamento posterior – como fisioterapia, população, pois esse fator por si só já auxiliaria na
por exemplo. melhoria dos atendimentos públicos. Em Joinville,
Com base nessa classificação, o SUS definiu por exemplo ,a prefeitura distribui uma cartilha que
as unidades de atendimentos de saúde e quais informa sobre as funções dos diferentes postos de
casos cada uma delas pode e deve atender. As atendimento.
principais opções são:
• Posto de Saúde: presta assistência à
população de uma determinada área (por 1.1.3 OS IMPASSES OU DIFICULDADES DO
exemplo um bairro), com agendamentos de SUS
consultas ou não. O atendimento é realizado por
profissionais da saúde de nível médio (como Apesar dos seus inegáveis avanços, como
enfermeiras e auxiliares) e pode, ou não, contar atestam os números citados anteriormente, a
com a presença de um médico. construção do SUS encontra vários entraves, entre
• Unidade Básica de Saúde (UBS): realiza os quais destacamos, para os propósitos do
atendimentos de atenção básica e integral, como presente texto, apenas dois, até porque eles com
curativos. Os atendimentos englobam certeza impactam diretamente no seu trabalho
especialidades fundamentais, podendo também como membro de uma equipe de Saúde da Família:
oferecer serviços odontológicos. A assistência deve
ser permanente e prestada por médico generalista
ou especialistas nas áreas oferecidas – o que pode
variar de uma UBS para outra.
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a) O subfinanciamento; empresas do atendimento aos seus afiliados, pelas
isenções tributárias e outros, que totalizava mais de
Isto é, os recursos destinados à 20% do faturamento do conjunto dessas empresas
operacionalização e ao financiamento do SUS ficam (SANTOS, 2007).
muito aquém de suas necessidades. Para Nelson
Rodrigues dos Santos: b) As insuficiências da gestão local do SUS.

A atualização do financiamento federal segundo a A gestão municipal dos recursos do SUS vem
variação nominal do PIB não vem sequer funcionando apenas em parte – sem desconsiderar
acompanhado o crescimento populacional, a que os recursos para o SUS são insuficientes. A
inflação na saúde e a incorporação de gestão municipal é idealizada pelo projeto da
tecnologias. Mantém o financiamento público Reforma Sanitária Brasileira como mais eficaz,
anual per capita abaixo do investido no Uruguai, porque “estaria mais próxima dos cidadãos” e mais
Argentina, Chile e Costa Rica e por volta de 15 sensível aos seus anseios. O SUS denomina como
vezes menor que a média do praticado no “gestão local” o conjunto de atividades
Canadá, países europeus, Austrália e outros. desenvolvidas pelos gestores municipais, visando à
Também é fundamental ter presente que a operacionalização, na prática e em seus contextos
indicação de 30% do Orçamento da Seguridade sociopolítico-institucionais singulares, das grandes
Social para a Saúde, como era previsto nas diretrizes políticas do Sistema Único de Saúde.
Disposições Constitucionais Transitórias (DCT) da Pesquisadores do Departamento de Medicina
Constituição, era o mínimo para iniciar a Preventiva da Universidade Federal de São Paulo
implementação do SUS com Universalidade, realizaram recente pesquisa em 20 pequenos
Igualdade e Integralidade. Se tivesse sido municípios de duas regiões de saúde próximas a
implementada tal medida, hoje haveria R$ 106,6 São Paulo. Por serem municípios pequenos, estes
bilhões para o financiamento do sistema, e não funcionaram como um verdadeiro “laboratório” de
aos R$ 48,5 bilhões aprovados para o orçamento observação das reais condições de
federal de 2008. O financiamento do SUS é operacionalização em muitos municípios brasileiros,
marcadamente insuficiente, a ponto de impedir já que pouco mais de 80% dos municípios do país
não somente a implementação têm menos de 20 mil habitantes. Vejamos alguns
progressiva/incremental do sistema, como e dados sobre a operacionalização real do SUS
principalmente de avançar na reestruturação do mostrados pelo estudo (CECÍLIO et al., 2007):
modelo e procedimentos de gestão em função do • A baixa resolutividade da rede básica de
cumprimento dos princípios Constitucionais serviços montada no país desde a década de 1980,
(SANTOS, 2007). mas acelerada nos anos 1990, fruto de uma gestão
do cuidado desqualificada, em particular pela
Para quem trabalha na Estratégia Saúde da realização de uma clínica degradada, pela baixa
Família, tal insuficiência é sentida, principalmente, capacidade de construção de vínculo e produção de
quando há necessidade de se acessar os outros autonomia dos usuários. Tem havido grande
níveis de maior complexidade do sistema, cuja dificuldade de produção de alternativas de cuidado
oferta parece sempre aquém das demandas. ao modelo biomédico e sua poderosa articulação
Por outro lado, o autor destaca que: houve com o complexo médico-industrial e acelerado
também a opção dos governos pela participação do processo de incorporação tecnológica. Isso tem
orçamento federal no financiamento indireto das resultado em encaminhamentos desnecessários e
empresas privadas de planos e seguros de saúde excessivos e alimenta as filas de espera em todos
por meio da dedução do IR, do cofinanciamento de os serviços de média e alta complexidade, além de
planos privados dos servidores públicos incluindo resultar: na fragmentação dos cuidados prestados;
as estatais, do não ressarcimento ao SUS pelas na repetição desnecessária de meios

27
complementares de diagnóstico e terapêutica; mais complexa de saberes, enriquecida por outras
numa perigosa poliprescrição medicamentosa; na contribuições além da biomedicina (psicanálise,
confusão e no isolamento dos doentes; e inclusive psicologia, ciências humanas, saberes populares
na perda de motivação para o trabalho por parte etc.), se quisermos ampliar no sentido de produzir
dos clínicos da rede básica. um cuidado mais integral.
Os modelos assistenciais e consequentes Especialização em Saúde da Família
modos de organização de processos de trabalho Unidades de Conteúdo da produtividade, qualidade
adotados na rede básica de saúde têm resultado, do trabalho e resolutividade desses profissionais;
quase sempre, em pouca flexibilidade de c) baixa capacidade de planejamento/programação
atendimento das necessidades das pessoas e em de serviços a partir de indicadores epidemiológicos
dificuldade de acesso aos serviços em seus e estabelecimento de prioridades para alocação de
momentos de maior necessidade, fazendo recursos;
aumentar a demanda desordenada pelos serviços d) pouca ou nenhuma prática de priorização de
de urgência/emergência. “gestão de casos” em situação de alta
• Deficiência na formação dos profissionais vulnerabilidade dos pacientes com o objetivo de
de saúde, ainda muito centrada em práticas garantir o uso dos múltiplos recursos necessários
curativas e hospitalares, com consequente para o cuidado de forma mais racional e integrada.
dificuldade de desenvolvimento de práticas mais • O forte protagonismo dos usuários, que
integrais e resolutivas de cuidado, incluindo a ainda fazem uma clara valorização do consumo de
capacidade de trabalhar em equipe, implementar serviços médico-hospitalares; a garantia de acesso
atividades de promoção e prevenção em saúde e ao atendimento mais rápido em serviços de
ter uma postura mais ética e cuidadora dos urgência/emergência; e a busca por segurança e
usuários do SUS. satisfação na utilização de tecnologias
• Deficiência na gestão dos sistemas consideradas mais potentes, em particular a
locorregionais de saúde que se traduz em: a) utilização de fármacos; a realização de exames
baixa capacidade de fazer uma adequada sofisticados; e o acesso a especialistas.
regulação do acesso aos serviços de saúde voltada Tais percepções seriam componente
para seu uso mais racional e produtivo; importante da explicação da demanda sem fim por
b) baixíssima ou quase nula capacidade de atendimento médico que desqualifica todos os
gestão do trabalho médico, em particular avaliação parâmetros de programação e planejamento dos
e acompanhamento Saiba mais... O modelo serviços de saúde. Todas essas explicações talvez
biomédico (biomedicina) é construído a partir da pudessem ser dispostas na forma de uma complexa
forte ênfase e valorização da materialidade rede causal que, mesmo tendo seus “nós críticos”,
anatomofisiológica do corpo humano e a acabam todas, de uma forma ou de outra,
possibilidade de se produzir conhecimentos contribuindo para a formação de filas, demora no
objetivos sobre seu funcionamento normal e suas acesso e longas esperas. Em última instância,
disfunções, o que permitiria “intervenções” para a reforçando a reconhecida insuficiência de recursos
volta à “normalidade”. Esse seria o papel principal necessários para o atendimento às necessidades
da medicina. Metaforicamente, podemos dizer que das pessoas.
o corpo é pensado como uma “máquina”. É Aguiar et al (2015), aponta algumas ações que
inegável que a medicina tecnológica, mesmo são empreendidas dentro do SUS como metas
operando com tal modelo “reducionista”, tem fundamentais para se implementar mais ações e
contribuído para uma formidável melhoria nos cuidar da manutenção do SUS, Aguiar et al (2015,
indicadores de saúde, inclusive para o aumento da p. 155-156):
perspectiva de vida.
No entanto, hoje temos a compreensão de • Fontes estáveis de financiamento para o setor e
que é necessário operar com uma combinação oriundas dos três níveis de governo, como tentativa
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de assegurar a universalidade, igualdade e 2. ATUAÇÃO DE PSICÓLOGOS NA SAÚDE
sustentabilidade no longo prazo; PÚBLICA: DIFICULDADES E
• Condições de financiamento e de gasto POSSIBILIDADES DE TRABALHOS COM
adequadas para o setor nos três níveis de governo; GRUPOS
• Consolidação do sistema público, único e
universal, em uma lógica de seguridade social, com Cristina Vilela de Carvalho;
caráter complementar do setor privado e Lúcia Cecília da Silva
fortalecimento da gestão pública e regulação do
setor privado; O primeiro dado que chama a atenção é que,
• Definição do papel dos governos no SUS, além de ser um trabalho previsto pela instituição, o
federal, estadual e municipal, respeitando interesse pelo atendimento psicológico em nível
especificidades regionais; grupal parte também dos psicólogos que vêem
• Mecanismos de negociação entre gestores para nesta modalidade de intervenção uma forma de
definição e implementação de políticas; estender os serviços psicológicos a um número
• Fortalecimento da capacidade de gestão do maior de pessoas que procuram a saúde pública
sistema, com promoção de expansão e Contudo, apesar do interesse manifesto, os
desconcentração da oferta de serviços com psicólogos apontam que enfrentam muitas
adequação às necessidades da população. dificuldades nesse trabalho, principalmente no que
Renegociação dos papéis público e privado; se refere à formação e manutenção dos grupos.
• Organização da rede de serviços em lógica Deste fato partiu-se para uma análise sobre o
hierarquizada e regionalizada de modo a melhorar a discurso corrente na psicologia atual que trata da
gestão clínica, a promoção de saúde e o uso necessidade de se trabalhar com grupos como
racional de recursos; forma de estender os recursos psicológicos a um
• Universalização efetiva do acesso a todos número maior de pessoas, principalmente àquelas
cidadãos brasileiros a todas as ações necessárias; mais desfavorecidas pelo sistema sócio-econômico
• Mudança do modelo de atenção em saúde para e, também, procurou-se refletir sobre as
atender às rápidas mudanças demográficas e dificuldades relatadas pelos psicólogos em se
epidemiológicas do país e a promoção da melhoria trabalhar com grupos.
da qualidade de atenção e da segurança dos Os depoimentos colhidos vieram confirmar e
pacientes; ilustrar que o psicólogo atuante na saúde pública
• Formação e capacitação adequadas dos defronta-se com uma clientela que aliada às
recursos humanos para o SUS, com distribuição dificuldades emocionais traz problemas que dizem
equitativa de profissionais de saúde em todo país; respeito à sua condição material de vida, tais como
falta de trabalho, moradia, más condições de
• Desenvolvimento científico e tecnológico
nacional compatível com as necessidades do SUS; alimentação, exposição à violência, só para citar
alguns.
• Fortalecimento da capacidade de regulação da
Partindo dessa realidade, os psicólogos
incorporação tecnológica no SUS mediante adoção
argumentam que com essas clientelas e com as
de critérios científicos;
condições, quase sempre, inadequadas de
• Distribuição e provisão adequada de insumos
trabalhos oferecidos pela saúde pública, não é
necessários para a saúde em todo o território
possível desenvolver um atendimento psicológico
nacional. Conclui-se na leitura da obra que o
com os mesmos procedimentos e recursos técnicos
Sistema Único de Saúde brasileiro é grande, possui
utilizados no atendimento de clientes que procuram
uma enorme quantidade de procedimentos
serviços particulares. Neste sentido, os
oferecidos para população, mas há dificuldades em
profissionais afirmam ser necessário uma
universalizá-lo e financiar os gastos crescentes com
"adaptação" dos conhecimentos psicológicos à
novos procedimentos. (AGUIAR ET AL. 2015, P.
situação encontrada na saúde pública visando,
155-156): …
29

Professora: Maria Flor Ano: 2022.1


principalmente, o aspecto educativo onde, muitas transcendem o seu poder de atuação. É gritante as
vezes, o objetivo é a "conscientização0" da clientela precárias condições de vida da maioria da
sobre suas condições de vida. população e fácil verificar que a angústia, o
Imerso nessas adversidades e imbuído do desespero, a depressão não estão apenas
desejo de minorar o sofrimento de sua clientela, relacionados ao mundo intra-psíquico mas,
pode-se dizer que a tentativa de adaptar os também, às condições concretas de vida das
conhecimentos psicológicos a um atendimento pessoas. Assim sendo, faz-se necessário que o
pretensamente mais eficaz para as camadas psicólogo entenda os limites de sua ciência, e
populacionais desfavorecidas acaba, em última assuma que, por si só, a psicologia não pode dar
instância, referendando as diferenças de classes conta dos problemas intrínsecos à ordem social
establecidas pelas relações sociais da produção vigente.
capitalista. Outro aspecto a ser observado é o fato dos
Embora querendo prestar um atendimento psicólogos argumentarem que apesar dos muitos
que melhore as condições de vida da população os esforços que fazem, é difícil realizar os trabalhos
psicólogos, ao adaptarem os conhecimentos que se propõem, uma vez que os grupos não se
científicos, acabam por demonstrar de forma mantêm enquanto tal. E uma indagação que fica é:
inequívoca que a ciência (no caso a psicologia), será que pelo menos parte das pessoas que
uma produção social, é apropriada e usufruída pela procuram os psicólogos nos serviços de saúde
classe social detentora do capital. De modo pública, ao invés de trabalho em grupo não
simples, pode-se afirmar que na prática o que se necessitavam do atendimento individual? Pode-se
opera é que a burguesia fica com a "nata" da inferir que parte do fracasso dessas experiências
psicologia, daquilo que já foi validado pode estar relacionada ao fato de que o
cientificamente e o proletariado fica com as "novas procedimento foi pautado pelo desejo do psicólogo
alternativas", com as experiências que os e não pela necessidade do cliente. Isto,
psicólogos, de modo geral, vão criando ao sentirem psicologicamente falando, é suficiente para obstruir
dificuldades, de forma que o proletariado é o trabalho já em sua gênese.
expropriado de mais um bem que o homem Merece indagação, também, se o objetivo
socialmente produziu. acenado pela psicologia na saúde pública - o de
Entende-se aqui que o trabalho com grupos é propiciar saúde mental através dos grupos que
um campo de atuação que já foi bastante veiculem informações psicológicas - é possível de
desenvolvido pela psicologia. Contudo, como ser alcançado. A melhoria da saúde mental da
qualquer outro procedimento científico, ele tem de população em decorrência da educação
ser usado por quem possui conhecimento tanto de psicológica, parece não estar sendo constatada na
seus aspectos teóricos quanto técnicos, e deve ser realidade concreta.
indicado para os casos que realmente vão se Costa (1984) aponta para o falo de que
beneficiar com esse tipo de procedimento. experiências de trabalhos psicológicos em nível de
Neste sentido, faz-se necessário refletir sobre informação/educação são fadados ao fracasso
os discursos que afirmam ser o trabalho grupal porque almejam transpor níveis mentais que são
como o mais adequado na saúde pública. O intransponíveis com esse tipo de abordagem
atendimento em grupo deve, sim, ser realizado técnica. Já nos primórdios da psicanálise, Freud
quando ele for a melhor indicação técnica para o assinalou que não é o conhecimento teórico - o
caso e não deve ser usado, apenas, para dar conta entendimento em nível consciente - que possibilita
da grande demanda. mudanças nos processos afetivos do indivíduo. E
Quanto a este aspecto cabe destacar que por tendo a psicanálise por referência, pode-se dizer
maior que seja o número de pessoas atendidas que qualquer trabalho que se atenha apenas aos
pelo psicólogo, ele não dará conta da demanda aspectos mais superficiais, isto é, que se respalde
existente se não mudarem questões que
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num contexto de informação/ educação psicológica, "a redistribuição do saber psicológico medida
muito provavelmente, não terá o sucesso esperado. aparentemente democrática, assumindo a forma de
Na medida em que já existe todo um educação, incorporou também a função social que
conhecimento científico produzido, por exemplo, a esta última cumpre numa sociedade comandada
psicanálise, que aponta a ineficiência de trabalhos por interesses de classe. Tornou-se um instrumento
psicológicos em nível informativo/educativo com o de conversão dos. indivíduos aos valores
objetivo de melhorar a saúde mental da população, ideológicos da elite dominante".
cabe questionar o motivo da insistência na forma Nesse contexto, pode-se arriscar a dizer que
"adaptada" de atuação. o motivo da psicologia estar nos últimos tempos
Parece possível algumas tentativas de desenvolvendo trabalhos em prol da
respostas. A primeira delas está na própria crise "conscientização do proletariado" é circunscrito, em
que atravessa o modo de produção capitalista. No última análise, por mecanismos que servem à
bojo do encaminhamento de sua manutenção, a manutenção da hegemonia do capital. Como
ideologia do capital traz o pressuposto de não se salienta Costa (Op. cit), além da educação
respeitar o saber acumulado pelos homens através psicológica não produzir saúde mental, ela reproduz
da ciência, incentivando uma atuação em nível a ordem social.
pragmático, individual, de senso comum. Há um Finalmente, um nível bem mais específico
descaso para com o conhecimento historicamente que também tem relação com a não valorização
organizado. E aqui está a se falar do descaso que é dos conhecimentos psicológicos como diz respeito
feito a alguns princípios elementares, mas ao aspecto primeiro no atendimento psicológico em
fundamentais, das teorias psicológicas. grupo: a sua formação. Muitos grupos são formados
Concretamente, o que se observa no trabalho de em função de um tema comum aos indivíduos
muitos psicólogos é o abandono da ciência. (gestantes, hipertensos, diabéticos, etc) ou por faixa
Individualmente, estes profissionais procuram etária e sexo. Contudo, a bibliografia especializada
desenvolver práticas inusitadas fazendo esvaziar mostra que o trabalho com grupos, em qualquer
cada vez mais a ciência psicológica. abordagem (seja na psicanálise, no psicodrama, na
Dentro disso têm-se, ainda presente entre gestalt, na não diretiva), deve levar em
certos profissionais da psicologia, a postura de se consideração inúmera outros aspectos para que se
criticar determinadas linhas teóricas alegando-as consiga resultados terapêuticos. Os pressupostos
inadequadas à realidade brasileira. Muitas dessas teóricos acabam sendo relegados quando os
críticas são feitas sem um conhecimento mais profissionais pautam-se por critérios mais práticos,
aprofundado das teorias e sem se ter em mente superficiais, ligados aos seus próprios desejos e/ou
que a ciência, enquanto tal ,não procura o que há às exigências institucionais.
de diferente mas o que há de comum, de universal. Sintetizando as análises aqui colocadas e
Esta prática favorece o descarte de conhecimentos para que as mesmas possam ser aprofundadas por
que poderiam contribuir no exercício profissional. outros estudos, pode-se dizer que alguns dos
Como já se afirmou anteriormente, o fatores que contribuem para o fracasso de muito
atendimento psicológico em grupo surge como uma dos trabalhos psicológicos com grupos podem ser
forma dos profissionais conduzirem trabalhos mais vistos, pelo menos, em três aspectos.
avançados no sentido de se fomentar uma Em primeiro lugar, a psicologia não atende e
"consciência crítica do social", na clientela atendida. não resolve parte das problemáticas psicológicas
Só que ao contrário do que se pretende, os da clientela de baixa renda pois estas estão
psicólogos acabam contribuindo no processo de vinculadas às condições de subsistência cuja
normatização social das pessoas que procuram os resolução transcende o alcance da psicologia.
serviços de psicologia. Conforme argumenta Costa O segundo aspecto é o fato de que aqueles
(1984, p.7). conflitos e sofrimentos emocionais que poderiam
ser trabalhados, não estão encontrando caminhos
31
para suas resoluções uma vez que muitos movimento da Reforma Sanitária. Apontam-se as
profissionais estão respaldados mais pelo "senso influências do preventivismo e da medicina social
comum" que pelos conhecimentos científicos em sua constituição. Ao longo deste estudo, foram
produzidos pela psicologia. exploradas distintas tentativas de sua delimitação
E, em terceiro lugar, pode-se inferir que, se os como campo de saberes e de práticas. Buscou-se
trabalhos dos psicólogos acabam funcionando em apresentar a Saúde Coletiva não com uma
prol da hegemonia burguesa, o não investimento definição única, mas considerando a multiplicidade
por parte da clientela no trabalho proposto, pode de construções encontradas, o que permite apontar
estar sendo uma forma indireta de lutar contra a para uma identidade de difícil elaboração e ainda
submissão ideológica que lhe é colocada (Melo, em desenvolvimento. Palavras-chave: Saúde
1985 ePatto, 1987). Coletiva; Medicina Social; Domínios Científicos;
Desta forma, parece fundamental o resgate Conhecimento.
de conhecimentos que os profissionais da
psicologia têm de fazer. Muitos dos conhecimentos INTRODUÇÃO
desta ciência devem ser retomados e estudados O que instigou a escolha do tema para este
profundamente. Parece salutar que os psicólogos trabalho foi a percepção de que a Saúde Coletiva
dediquem-se à apropriação de sua ciência e que, pode, em um primeiro contato, parecer bastante
ao mesmo tempo, apropriem-se da história dos
múltipla e fragmentada, tanto do ponto de vista
homens para que possam perceber e entender os teórico quanto do prático. Pretendendo, então,
limites da psicologia. Assumir estes limites e conhecê-la melhor, foi realizado um estudo a partir
apontar que eles se colocam em função dos limites da produção em Saúde Coletiva na tentativa de
estabelecidos por uma sociedade de classes, talvez buscar respostas para as questões: O que
seja o primeiro passo para se construir, caracteriza e define a Saúde Coletiva?
verdadeiramente, um novo conhecimento. O que a distingue de outros campos de
conhecimento e intervenção?
3. O CAMPO DA SAÚDE COLETIVA NO
A referência de que a Saúde Coletiva configura
BRASIL: DEFINIÇÕES E DEBATES EM SUA um “campo” é registrada em quase todas as
CONSTITUIÇÃO publicações.
Alan Osmo . Neste texto, manteremos essa referência
seguindo Paim e Almeida Filho (1999, 2000), que,
Resumo em suas reflexões sobre a Saúde Coletiva,
caracterizam-na como “campo de conhecimento e
A Saúde Coletiva pode, em um primeiro contato, âmbito próprio de práticas”: “A Saúde Coletiva pode
parecer bastante múltipla e fragmentada. Buscando ser considerada como um campo de conhecimento
compreender melhor o que a define como de natureza interdisciplinar cujas disciplinas básicas
conhecimento e atuação na sociedade, realizou-se são a epidemiologia, o planejamento/administração
uma recuperação de natureza teórica das de saúde e as ciências sociais em saúde” (Paim;
considerações históricas e epistemológicas Almeida Filho, 2000, p. 63). No entanto, em recente
desenvolvidas por pesquisadores dedicados a publicação que examina a Saúde Coletiva, essa
caracterizá-la como campo científico e social. qualificação de “campo”, desde o início embasada
Primeiro, com base nessa produção bibliográfica, pelo conceito cunhado por Pierre Bourdieu (1993),
foi feita uma breve caracterização da emergência é relativizada, considerando que a Saúde Coletiva,
da Saúde Coletiva. É de se destacar que suas ora denominada como “área”, ora como “espaço
origens situam-se no final da década de 1970, em social”, aponta em seu desenvolvimento uma
um contexto no qual o Brasil estava vivendo uma tendência para consolidar-se como um campo
ditadura militar. A Saúde Coletiva nasce, nesse (Vieira da Silva; Paim; Schraiber, 2014).
período, vinculada à luta pela democracia e ao
32
Conhecendo essa questão em aberto, como um também constam em textos de autores do campo,
campo futuro ou consolidado, instigou-nos, os quais trazem diferentes perspectivas de
sobretudo, a delimitação de uma identidade, delimitação da Saúde Coletiva, já indicando em seu
científica e prática, com base em seus conteúdos interior uma grande multiplicidade de correntes de
de saber e âmbitos de intervenção. pensamento acerca de suas definições como
Desse modo, buscamos, nessa mencionada campo.
revisita às publicações sobre a construção da A constituição do campo da Saúde Coletiva As
Saúde Coletiva, explicitar quais domínios de origens do campo da Saúde Coletiva são situadas
competência se fala desde suas origens. Menos por Nunes (1994) na década de 1950. Vieira-da-
que uma revisão bibliográfica, portanto, este Silva, Paim e Schraiber (2014) reforçam o final da
trabalho busca uma releitura de importantes década de 1970 utilizando como marco o
discussões sobre a identidade da Saúde Coletiva. surgimento do termo Saúde Coletiva no Brasil e a
Trata-se de um esforço para se ter uma clareza criação da associação civil que representaria o
maior sobre o que constitui “o todo” da Saúde campo a Associação Brasileira de Pós-Graduação
Coletiva, tentando superar uma possível visão em Saúde Coletiva (Abrasco), não negando as
fragmentária baseada nos diversos recortes raízes apontadas por Nunes em períodos
disciplinares que a compõem, de modo, inclusive, a anteriores.
compreender melhor uma construção de sua A Saúde Coletiva consolidou-se, então, com
identidade. esse nome e com suas especificidades no Brasil.
Segundo Everardo Nunes (2005), tal esforço Apesar de o nome não ter sido adotado em
parece ser uma preocupação importante na própria outros países, muitos autores veem a Saúde
história da Saúde Coletiva: Recuperar a história e Coletiva como parte de um movimento mais amplo
desvendar sua composição interna (epistemé) tem da América Latina, como aponta o próprio Nunes
sido uma das preocupações presentes em diversos (1994). Com base em uma distinção entre “projeto”
trabalhos e análises que vêm acompanhando a e “campo” de Saúde Coletiva, Nunes (1994)
própria construção da Saúde Coletiva no Brasil. apresenta a emergência desse campo composta
Esse esforço tem estado presente desde os anos por três momentos: o primeiro, denominado fase
80 e se estende até a atualidade, buscando pré-Saúde Coletiva, durou os primeiros quinze anos
fornecer os elementos que configurem nossa a partir de 1955, e foi marcado pela instauração do
identidade e revelem quem somos, onde nos projeto preventivista; o segundo, que vai até o final
situamos, o que fazemos, quais os produtos de dos anos 1970, é denominado fase da medicina
nossas práticas (p. 14). O presente artigo está social; o terceiro vai do final dos anos 1970 até pelo
divido em duas partes. menos 1994, quando o autor escreveu o artigo
A primeira faz uma breve apreciação sobre a Saúde coletiva: história de uma ideia e de um
constituição da Saúde Coletiva, tal como conceito.
apresentada por autores do campo, em que damos O autor considera este último segmento como
destaque às correntes de pensamento em torno a sendo o período da Saúde Coletiva propriamente
processos saúde – doença em coletivos, como dita.
formas de aproximação distintas de uma saúde Segundo Nunes (1994,p.2), “a emergência
pública e com base no olhar cunhado pela medicina desses projetos reflete, de um modo geral, o
da modernidade. O modo como são articuladas contexto socioeconômico e políticoideológico mais
questões da medicina e da saúde pública é a amplo, como também as sucessivas crises,
referência para a compreensão das questões que presentes tanto no plano epistemológico, como das
cercam o conteúdo disciplinar que a proposta da práticas de saúde e da formação de recursos
Saúde Coletiva abraçou. A nossa segunda parte humanos”.
explora contrastes entre distintas tentativas de Nesse sentido, Paim e Almeida Filho (1999)
definição da Saúde Coletiva. Tais contrastes também alertam para a importância do contexto nas

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questões relativas ao campo do conhecimento. reformas defendidas apareceram vinculadas a um
Esses autores, a partir de ideias de Kuhn e de plano pedagógico:
Rorty, defendem que a construção do O grande saldo do período é a inclusão, no curso
conhecimento científico não é produzida pelos de graduação em medicina, de disciplinas e temas
investigadores de forma isolada, em abstrato, mas associados à epidemiologia, ciências da conduta,
ocorre, sim, organizada institucionalmente, dentro administração de serviços de saúde, bioestatística.
da cultura, imersa na linguagem. A ciência seria, Procurava-se, dessa forma, ao criticar a
portanto, determinada social e historicamente. biologização do ensino, calcado em práticas
Os autores propõem que a ciência deva ser individuais e centrado no hospital, não somente
entendida como uma prática social que tem introduzir outros conhecimentos, mas fornecer uma
fundamentos particulares, que se exerce em um visão mais completa do indivíduo (Nunes, 1994, p.
processo de diálogo e de negociação destinado à 7).
produção de um consenso localizado e datado, O fato de que o ensino fosse pautado na
baseado em uma certa solidariedade dos atuantes especialização tornava a educação médica muito
da comunidade científica. estilhaçada. Como reação a isso, buscou-se
A nosso ver, um importante aporte dessa realizar propostas de mudanças no ensino, a fim de
periodização está em evidenciar o preventivismo e que o futuro profissional médico tivesse uma
a medicina social como abordagens do processo compreensão do indivíduo como um todo,
saúde-doença em coletivos que podem ser acreditando-se que, assim, haveria uma
reconhecidas como as raízes da proposta de Saúde recomposição do bio-psico-social que tinha sido
Coletiva elaborada no Brasil e que tiveram fragmentado.
influência na implantação institucional do campo. A O movimento social que originou a Medicina
seguir, vamos caracterizar essas raízes para que se Preventiva como disciplina do currículo das escolas
possa compreender a modalidade de proposição médicas denominou-se Medicina Integral, com o
disciplinar e prática que constituíam. objetivo de buscar a recomposição das práticas
O preventivismo Segundo Paim e Almeida Filho especializadas (Schraiber, 1989). Dele, porém,
(1998), na década de 1940, começou-se a resultou apenas a inclusão de uma única disciplina
diagnosticar nos Estados Unidos uma crise de curricular, ainda que perpassasse diversos
determinada medicina, que estava extremamente momentos da formação do médico, mas sem que
especializada e fragmentada, o que ocasionava, outros projetos integradores além do ensino da
também, um aumento dos custos relacionados às prevenção fossem incorporados, quer na formação
práticas médicas. Em resposta a isso, surgiram dos médicos, quer em termos de seus exercícios
propostas de mudanças no ensino médico, profissionais em serviços de saúde.
incorporando nele uma ideia de prevenção. Essas Como apontou Schraiber (1989), essas
propostas serviram de base para uma reforma dos propostas pretendiam uma reforma da prática
currículos escolares dos cursos de medicina de médica, mas pressupunham que essa reforma seria
várias faculdades norte-americanas na década de alcançada pela formação do médico, como se cada
1950. médico em sua prática fosse o principal recurso
Organismos internacionais do campo da saúde transformador da forma de prestar assistência à
aderiram à nova doutrina, que veio a ser chamada população. Esse modo de olhar a reforma da
de Medicina Preventiva, ocorrendo, então, uma prática médica foi bem caracterizado, como uma
internacionalização dessa proposta. Nunes (1994) leitura liberal e individualizante das questões
aponta que a emergência do “projeto preventivista”, sociais, bastante próprio à cultura norte-americana
na América Latina, aconteceu na segunda metade relativamente ao papel do Estado na sociedade, por
dos anos 1950, nos seminários que se realizaram Arouca (2003) em publicação hoje considerada um
no Chile e no México, sob o patrocínio da marco para a Saúde Coletiva brasileira (Vieira da
Organização Pan-americana de Saúde (Opas). As Silva; Paim; Schraiber, 2014).
34
Diversos modelos de intervenção foram, então, sua atuação junto à Opas (Garcia, 1985; Nunes,
testados e institucionalizados sob a forma de 1983;
movimentos organizados em comunidades urbanas, Vieira da Silva; Paim; Schraiber, 2014). Ao
tendo como objetivo reduzir as tensões sociais nos valorizar a presença do social na saúde, Garcia,
guetos das principais cidades norte-americanas. assim como muitos dos pesquisadores brasileiros
No campo da saúde, houve a implantação de partícipes da construção da Saúde Coletiva, buscou
centros comunitários de saúde subsidiados pelo referências em uma abordagem histórico-estrutural
governo federal, que estavam destinados a efetuar do social e não apenas assumiu uma presença
ações preventivas e prestar cuidados básicos de segmentada do social tal como a abordagem
saúde à população local (Paim; Almeida Filho, isolada de elementos do meio ambiente e da
1998). Assim como na Medicina Preventiva, havia, própria população. De outro lado, diversos autores,
na proposta da Medicina Comunitária, uma ênfase ao fazerem referência à Medicina Social, com os
nas “ciências da conduta”. Nesse caso, entretanto, estudos que George Rosen fez sobre o assunto,
o conhecimento dos processos socioculturais e valem-se do movimento que surge na Europa em
psicossociais destinava-se “a possibilitar a meados do século XIX. A esse respeito, Nunes
integração das equipes de saúde nas comunidades (1983) diz: Este artigo de Rosen tem sido
‘problemáticas’, através da identificação e considerado de fundamental importância para a
cooptação dos agentes e forças sociais locais para compreensão da medicina social e entre os pontos
os programas de educação em saúde” (Paim; que levanta fica ressaltada a questão dos
Almeida Filho, 1998, p. 304). problemas sanitários, que se avolumam quando das
Os organismos internacionais do campo da transformações decorrentes do processo de
saúde incorporaram, mais uma vez, o novo industrialização (p. 19).
movimento ideológico comunitário e preventivista, Rosen (1983) vai apontar que uma questão
traduzindo o seu corpo doutrinário às necessidades central na Europa, durante o século XIX, poderia
dos diferentes contextos em que poderia ser ser explicitada em termos de qual orientação
aplicado. A Medicina Comunitária e a Medicina política o governo devia seguir a fim de aumentar o
Preventiva, apesar de terem surgido em momentos poder e a riqueza nacionais. Via-se como um dos
diferentes nos Estados Unidos, chegaram, mais ou principais meios a indústria. Em consequência
menos, ao mesmo tempo no Brasil (Donnangelo; disso, o trabalho passou a ser olhado pelos
Pereira 1976; Schraiber, 1989). Medicina Social estadistas como um elemento essencial para gerar
O movimento da Medicina Social apareceu na a riqueza nacional.
América Latina no final da década de 1960 e no Qualquer perda de produtividade no trabalho em
início da de 1970. Em seu centro está a discussão relação à doença e morte era, nessa época, visto
acerca da valorização do social enquanto esfera de como um problema econômico significativo. Essa
determinação dos adoecimentos e possibilidades abordagem implicou na ideia de uma intervenção
de saúde, na prevenção das doenças e na pública de caráter nacional para a saúde, que foi
promoção da saúde, assim como esfera própria de desenvolvida em diferentes direções, dependendo
intervenção, para além de, e em, uma articulação do país.
com a medicina como intervenção nos casos O primeiro lugar em que apareceu uma
individuais (Vieira da Silva; Paim; Schraiber, 2014). preocupação do Estado em relação aos problemas
Trata-se, pois, de um olhar alternativo à redução de saúde da população foi nos estados alemães,
biomédica em que se estruturou o saber e a prática antes mesmo de se unificarem ou passarem pelo
da medicina, ainda que com explorações diversas processo de industrialização, surgindo pela primeira
quanto ao sentido da valorização do social. Nesse vez a ideia de polícia médica. Sobre o termo, diz
sentido, a figura central para a América Latina, e Rosen (1983), Polizei, em alemão, (police, em
com forte influência no Brasil, foi o médico e inglês), deriva da palavra grega politeia. A teoria e
sociólogo argentino Juan Cesar Garcia por meio de prática da administração pública veio a ser
35
conhecida ao longo do século XVIII, nos estados Social. Jules Guérin foi um dos primeiros autores a
alemães, como Polizeiwissenschaft (a science of utilizar esse termo, em 1848.
police) e o ramo que trata da administração da Nunes (2007) enfatiza que foi em um contexto
saúde como Medizinalpolizei (medical police). revolucionário, ocorrido na década de 1840, que
O desenvolvimento da teoria e prática da muitos médicos, filósofos e pensadores assumiram
administração pública estava intimamente o caráter social da medicina e da doença. As ideias
relacionado aos interesses do Estado absolutista. e propostas que tinham progredido na França,
Alcançou-se aí uma sistematização de pensamento antes e durante o movimento revolucionário de
e comportamento administrativo que atribuía ao 1848, se espalharam pela Alemanha. Entre os
Estado absoluto as atividades de bem-estar. principais nomes do movimento alemão, que
Ficava, entretanto, a cargo do legislador determinar assume então a Medicina Social e não a Polícia
qual era o maior bem-estar, de modo que o Estado Médica como proposta de intervenção nacional
tinha o poder de intervir nos assuntos dos estavam Neumann e Virchow.
indivíduos visando o interesse geral. Neumann, em 1847 (apud Rosen, 1983, p. 50),
O desenvolvimento e aplicação do conceito de afirma que “a ciência médica é intrínseca e
“polícia médica” foi uma tentativa pioneira de um essencialmente uma ciência social e, enquanto isto
exame metódico e preciso dos problemas de saúde não for reconhecido na prática, não seremos
do ponto de vista social. No princípio e na metade capazes de desfrutar de seus benefícios e teremos
do século XIX, foi na França que esse tipo de que nos satisfazer com um vazio e uma
estudo se desenvolveu teoricamente. Na França, mistificação”.
todavia, o conceito de polícia médica não foi aceito Os proponentes da ideia da medicina como uma
amplamente (Rosen, 1983). ciência social empregavam-na como uma
No contexto da Revolução Francesa, problemas formulação conceitual sob a qual resumiam
de saúde e de bem-estar haviam sido pensados princípios definidos:
pelos governos revolucionários. Chegou-se,
inclusive, a uma tentativa de se estabelecer um O primeiro destes princípios é que a saúde das
sistema nacional de assistência social, que incluía pessoas é um assunto societário direto e que a
atenção médica. Apesar de isso não ter avançado, sociedade tem a obrigação de proteger e
algumas das ideias e objetivos do período iriam assegurar a saúde de seus membros [...].
influir profundamente na França da primeira metade O segundo, como notou Neumann, é que as
do século XIX. “Ideias de serviço público e utilidade condições sociais e econômicas têm um
social forneceram a semente da qual germinaram importante e – em muitos casos – crucial impacto
novas ideias sobre a relação entre saúde, medicina sobre a saúde e a doença e que estas relações
e sociedade” (Rosen, 1983, p. 43). devem ser submetidas à investigação científica
Durante a primeira metade do século XIX, houve [...].
na França um fecundo cruzamento entre a filosofia
social e a medicina. “Como resultado, a medicina O terceiro princípio, que se segue
francesa esteve permeada, em grau considerável, logicamente, é que os passos tomados para
com o espírito de mudança social” (Rosen, 1983, p. promover a saúde e combater a doença devem ser
46). tanto sociais como médicos (Rosen, 1983, p. 51-
O contato com as novas condições de vida 52). A influência de toda essa formulação na Saúde
decorrentes do processo de industrialização, como Coletiva brasileira pode ser vista, por exemplo, no
a condição dos trabalhadores e a realidade social fato de esses princípios terem sido revisitados no
em que viviam, fez emergir novas ideias no campo Brasil na VIII Conferência Nacional de Saúde, em
da saúde em suas relações com a sociedade. uma releitura própria ao contexto histórico dos anos
Desse cenário, germinou a ideia de Medicina 1980 e para a realidade de um país periférico ao
desenvolvimento capitalista. Portanto, são

36
princípios que, enquanto conexões entre a medicina campo de investigação estas relações, tenta
e o social, vão influenciar a reforma sanitária estabelecer uma ciência que se situa nos limites
brasileira. das ciências atuais (Arouca, 2003, p. 150).
O processo revolucionário da década de Arouca aponta aqui duas dimensões da Medicina
1840, entretanto, foi derrotado na Alemanha, assim Social: a formulação de propostas de intervenção
como na França, e com isso o movimento de na vida social e na medicina baseadas na conexão
reforma médica terminou rapidamente (Rosen, saúde-sociedade e a proposta de estabelecer um
1983). Durante as décadas seguintes, a ampla ramo de estudos dessa específica conexão, seja
proposta de reforma transformou-se em um nas questões de adoecimento, seja nas de
programa limitado. A ideia de medicina social foi produção da assistência médica e das práticas
aparecer novamente em uma reunião convocada profissionais nos serviços.
pela Organização Mundial de Saúde, OMS, em Além de uma crítica a certa medicina – cara,
1952, em Nancy, e depois, mais uma vez, em um fragmentada e com poucos resultados para a saúde
documento da Opas, de 1974 (Nunes, 1994). da população – estava em pauta também uma
O final da década de 1960 e início da década de discussão em torno da extensão da cobertura dos
1970 foram anos extremamente férteis em serviços de saúde para a população. De acordo
discussões teóricas sobre as relações saúde- com Nunes (1994), assistia-se ao início da crise do
sociedade. Houve bastante influência de modelo de saúde pública desenvolvimentista, que
discussões oriundas de autores das ciências havia postulado que um dos efeitos do crescimento
humanas, sendo um marco nesse sentido a econômico seria a melhora das condições de
conferência de Michel Foucault, em 1974, no Rio de saúde. Isso é particularmente válido para o Brasil
Janeiro, sobre as origens da Medicina Social do período, que, apesar de passar por um momento
(Nunes, 2005), já rediscutindo o conteúdo de crescimento econômico, não via resultados disso
significativo desse termo. refletidos nas condições de vida de sua população.
De acordo com Paim (1992), nesse momento, Nos anos 1970, houve, no âmbito internacional, um
observou-se no Brasil e no restante da América fortalecimento da discussão sobre a extensão da
Latina uma produção teórica importante, que cobertura dos serviços de saúde, de modo que, na
reconhecia os vínculos das práticas de saúde com Assembleia Mundial de Saúde, em 1977, foi
a totalidade social. Nesse sentido, as contribuições lançado o lema “Saúde para todos no ano 2000”
das ciências sociais ao estudo da saúde foram (Paim; Almeida Filho, 1998).
fundamentais para alcançar o grau atual de No Brasil, em um contexto marcado pelo
sistematização dos conhecimentos no campo. recrudescimento das forças repressivas por parte
Sobre a proposta da medicina social, Sérgio de um Estado autoritário e pelo aumento das
Arouca vai dizer o seguinte: A Medicina Social desigualdades sociais e piora das condições de
aparece, pois, com duas tendências; a primeira [...] vida de boa parte da população, foi-se tentando
movimento de modificação da medicina ligado à construir um campo de saber e de práticas
própria mudança de sociedade, ou [...] através de inovadores na área da saúde. Nunes (1983),
sua mudança institucional [...]; a segunda é uma fazendo referência a Laurell, diz que a reflexão
tentativa de redefinir a posição e o lugar dos objetos crítica sobre a medicina e suas instituições, nos
dentro da medicina, de fazer demarcações países latino-americanos, no período, pode ser
conceituais, colocar em questão quadros teóricos, vista como resposta a quatro grupos de questões:
enfim, trata-se de um movimento ao nível da 1) a posição de classe explica muito melhor do
produção de conhecimentos que, reformulando as que qualquer fator biológico a distribuição das
indagações básicas que possibilitaram a doenças na população;
emergência da Medicina Preventiva, tenta definir 2) a crença de que as condições de saúde da
um objeto de estudo nas relações entre o biológico população melhorariam como resultado do
e o psicossocial. A medicina social, elegendo como crescimento econômico se mostrou equivocada;
37
3) o desenvolvimento da atenção médico- de Salud Pública (Opas/Alesp), ambos realizados
hospitalar não implicou em um avanço significativo em 1978.
nos índices de saúde dos grupos cobertos por ela; Eles tiveram como objetivo redefinir a formação
4) a distribuição dos serviços de saúde entre os de pessoal para a área da saúde, propondo uma
diferentes grupos e classes sociais não depende de associação que pudesse congregar os interesses
considerações técnicas e científicas, mas, das instituições formadoras em nível de pós-
principalmente, de considerações políticas e graduação (Nunes, 1994). O movimento da reforma
econômicas. sanitária brasileira, surgido em meados da década
A Saúde Coletiva Paim e Almeida Filho de 1970, tinha como principal bandeira a luta pela
(1998) apontam influências mútuas entre o democratização da saúde.
desenvolvimento de um projeto de campo de Paim (2008) defende que, muito além de um
conhecimento chamado Saúde Coletiva e os projeto de reforma setorial da saúde, constituía-se
movimentos pela democratização no Brasil, como um amplo projeto de reforma social: [...] como
especialmente o da reforma sanitária. Isso nos leva uma reforma social centrada nos seguintes
a ressaltar a importância em considerar o contexto elementos constituintes:
histórico no qual apareceu a Saúde Coletiva, que foi a) democratização da saúde, o que implica a
o de um país vivendo sob um regime autoritário. elevação da consciência sanitária sobre saúde e
Nesse sentido, pode-se afirmar que a Aliança da seus determinantes e o reconhecimento do direito à
Saúde Coletiva com a democracia e os direitos saúde, inerente à cidadania, garantindo o acesso
humanos e sociais deve-se ao fato histórico de universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde e
que se gesta o campo em plena década de participação social no estabelecimento de políticas
turbulências sociais e movimentos reivindicatórios, e na gestão;
dentro da luta contra a ditadura brasileira e pela b) democratização do Estado e seus
reforma social (Schraiber, 2008, p. 15). aparelhos, respeitando o pacto federativo,
Essa reforma social inclui no projeto da Saúde assegurando a descentralização do processo
Coletiva uma reforma sanitária. No Brasil, duas decisório e o controle social, bem como fomentando
instituições surgem diretamente ligadas a esse a ética e a transparência dos governos;
projeto: o Cebes e a Abrasco. O Centro Brasileiro c) democratização da sociedade alcançando
de Estudos de Saúde (Cebes) foi criado em 1976 os espaços da organização econômica e da cultura,
“trazendo para discussão a questão da seja na produção e distribuição justa da riqueza e
democratização da saúde e constituindo-se como do saber, seja na adoção de uma ‘totalidade de
um organizador da cultura capaz de reconstruir o mudanças’, em torno de um conjunto de políticas
pensamento em saúde” (Paim, 2008, p. 78). públicas e práticas de saúde, seja mediante uma
De acordo com Paim (2008), o Cebes é reforma intelectual e moral (Paim, 2008, p. 173).
reconhecido como o primeiro protagonista Em um cenário de crise no setor da saúde na
institucionalizado do movimento sanitário brasileira, segunda metade da década de 1970 – apesar de
desempenhando papel importante a partir da haver um discurso oficial, por parte do governo,
socialização da produção acadêmica crítica oriunda com maior abertura ao social –, as medidas
da então emergente Saúde Coletiva. adotadas foram muito limitadas diante dos
Dois momentos importantes na criação em 1979 determinantes dessa crise que “se expressava pela
da Associação Brasileira de Programas de Pós- baixa eficácia da assistência médica, pelos altos
Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) – hoje custos do modelo médico-hospitalar e pela baixa
Associação Brasileira de Saúde Coletiva –, foram o cobertura dos serviços de saúde em função das
I Encontro Nacional de Pós-Graduação em Saúde necessidades da população” (Paim, 2008, p. 75).
Coletiva e a Reunião sub-Regional de Saúde Nesse mesmo período, “ocorreu um
Pública da Organização Pan-americana de renascimento dos movimentos sociais, envolvendo
Saúde/Associación Latinoamericana de Escuelas a classe trabalhadora, setores populares,
38
intelectuais e profissionais da classe média” (Paim, de Saúde, realizada em 1986. Essa foi a primeira
2008, p. 77). conferência com ampla participação da sociedade
No âmbito da saúde, esses movimentos civil, contando com “o protagonismo dos
articularam-se, tornando-se forças sociais profissionais de saúde, trabalhadores e setores
contrárias às políticas de saúde autoritárias e populares” (Paim, 2008, p. 99).
privatizantes. Em relação aos fundamentos teóricos A Abrasco elaborou um documento para
vinculados à proposta da reforma sanitária, Paim embasar discussões nessa conferência, que
(2008) aponta que as concepções de saúde acabou servindo de referência para textos e
utilizadas foram elaboradas pelo seu braço intervenções apresentados. O documento partia do
acadêmico, ou seja, pelos departamentos de reconhecimento de uma conjuntura de crise
medicina preventiva e social e as escolas de saúde econômica com mudanças na ordem político-
pública ou equivalentes. institucional e buscava revisar questões teórico-
Havia, na década de 1970, bastante influência políticas, assim como recuperar princípios e
do movimento preventivista, que trazia as ideias da diretrizes do movimento pela democratização da
Medicina Integral. Porém, na medida em que as saúde; sublinhava que a saúde deveria ser vista
críticas das propostas de Medicina Preventiva e de como “fruto de um conjunto de condições de vida
Medicina Comunitária eram elaboradas, no Brasil e que vai além do setor dito de saúde” (Paim, 2008,
em outros países latino-americanos, parte dessas p. 100); defendia a participação popular na política
instituições acadêmicas passou a se inspirar na da saúde bem como o controle da sociedade sobre
Medicina Social desenvolvida na Europa em o aparelho estatal; e reconhecia a saúde como
meados do século XIX (Paim, 2008). função pública.
A Saúde Coletiva apareceu no Brasil, então, Em um dos eixos da conferência, chamado
como uma ruptura, a partir da crítica aos “saúde como direito inerente à cidadania, aos
movimentos da medicina preventiva, comunitária e direitos sociais e ao Estado”, nas discussões sobre
ao sanitarismo institucional (Paim, 1992). Dois as respostas sociais visando à ampliação do direito
conceitos importantes como fundamento teórico à saúde, foram destacados os movimentos sociais
para a reforma sanitária, desenvolvidos pela vinculados ao aparecimento da Medicina Social do
produção acadêmica em Saúde Coletiva, foram: século XIX. Foram, inclusive, retomados os
determinação social das doenças e processo de princípios elaborados por Virchow e Neumann
trabalho em saúde. (Paim, 2008).
Segundo Paim (2008), o “entendimento de que a Paim também afirma que a compreensão de
saúde e a doença não podem ser explicadas saúde presente nas proposições do relatório final
exclusivamente pelas dimensões biológica e da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) pode
ecológica permitia alargar os horizontes de análise ser creditada à produção teórica sobre
e de intervenção sobre a realidade” (p. 165). determinação social do processo saúde-doença,
Ganhou força a compreensão dos fenômenos da realizada por pesquisadores da área de Saúde
saúde e da doença como determinados social e Coletiva no Brasil e na América Latina desde a
historicamente, sendo o materialismo histórico um década de 1970, tendo elementos nesse sentido
importante fundamento epistemológico. tais como: ampliação do conceito de saúde,
A Medicina Social latinoamericana, já alinhada reconhecimento da saúde como direito de todos e
nesse sentido, passou a ser, no período, uma dever do Estado, criação do SUS, participação
corrente de pensamento crítico em relação à Saúde popular e constituição e ampliação do orçamento
Pública dominante. Essa corrente orientou muitas social. Outro evento importante foi o I Congresso
das proposições do movimento da reforma sanitária Brasileiro de Saúde Coletiva (I Abrascão), cujo
relativa às políticas de saúde (Paim, 2008). tema era “Reforma Sanitária e Constituinte: garantia
Um marco de grande importância na reforma do direito universal à saúde” e que aconteceu
sanitária brasileira foi a VIII Conferência Nacional também no ano de 1986. Assim, o presidente da
39
entidade definia a linha da atuação da Abrasco, tensão entre a crítica contracultural de ordem
naquela conjuntura: A recente convocação da VIII técnico-científica e a democratização dos modelos
CNS trouxe-nos a grande responsabilidade de dar médico e sanitário cientificamente tradicionais”
continuidade a este processo e de contribuir tanto (Schraiber, 2008, p. 14).
com o conhecimento técnico científico produzido na O campo foi sempre desenvolvido em
área de saúde coletiva, como na competência compromisso com a democratização e com a luta
política de analisar criticamente certas conjunturas, pelos direitos humanos e sociais, em um
mobilizar vontades, articular ações e iniciativas que compromisso, como disse Donnangelo (1983), com
levem adiante um projeto de transformações o coletivo desde sua origem: Essa multiplicidade de
profundas e radicais para o setor saúde. É esta a objetos e de áreas de saber correspondentes – da
responsabilidade, é este o compromisso que a ciência natural à ciência social – não é indiferente à
Abrasco, ao organizar este congresso, quer dividir permeabilidade aparentemente mais imediata
com todos os participantes (Paim, 2008, p. 128). desse campo a inflexões econômicas e político-
É possível observar, desse modo, um ideológicas.
entrelaçamento, no período, entre outras, das O compromisso, ainda quando genérico e
instituições da Abrasco e do Cebes, com a impreciso, com a noção de coletivo, implica a
produção teórica em Saúde Coletiva, no possibilidade de compromissos com manifestações
engajamento político em torno da reforma sanitária. particulares, histórico-concretas desse mesmo
Nesse sentido, Paim (2008) afirma que “a Saúde coletivo, dos quais a medicina ‘do indivíduo’ tem
Coletiva apoiou teoricamente a RSB a partir do tentado se resguardar através do específico
triedro ideologia, saber e prática, porquanto surgiu e estatuto da cientificidade dos campos de
se desenvolveu, enquanto campo científico, de conhecimento que a fundamentam (Donnangelo,
forma vinculada à proposta e ao projeto da Reforma 1983, p. 21).
Sanitária” (p. 292). Características e especificidades da Saúde
Para o autor, o campo da Saúde Coletiva Coletiva: tentativa de delimitação
apresenta rupturas fundamentais em termos Contemporaneamente, com o desenvolvimento da
políticos em relação ao da Saúde Pública, apesar Saúde Coletiva e a emergência de um corpo bem
de trazer ainda algumas continuidades. A visão da constituído de produções científicas, observa-se
saúde da população como resultante das formas de também a importância em debater acerca de suas
organização social de produção, tal como delimitações e competências.
concebida pela Medicina Social e pela Saúde Uma primeira aproximação mostra que o campo
Coletiva, acabou sendo, por meio da reforma da Saúde Coletiva, talvez por ser novo e existir
sanitária, assimilada pelo arcabouço legal no Brasil apenas no Brasil, ou talvez por articular-se também
(Paim, 2008, p. 306). em uma dimensão mais prática dos serviços de
De acordo com Schraiber (2008), o campo da saúde, por vezes confundindo-se com essa
Saúde Coletiva instituiu-se como um projeto dimensão de corte político-administrativo, carece de
duplamente reformador: de um lado, na sua crítica reflexões mais aprofundadas no campo
às necessidades de saúde culturalmente dadas e epistemológico.
ao modelo assistencial vigente em satisfazê-las “na De antemão, chama a atenção que é comum
assistência médica (modelo biomédico, liberal e autores usarem como sinônimos, em um mesmo
privatizante da produção dos serviços e elitista no texto, os termos Saúde Coletiva e Saúde Pública,
acesso) e na saúde pública (modelo da educação ou Saúde Coletiva e Medicina Social, ou ainda
sanitária, de cunho liberal-individualizante no que Saúde Coletiva e Epidemiologia. É interessante que
concerne às práticas de prevenção)” (p. 13); de essa própria dificuldade em definir o campo da
outro lado, na sua crítica à alienação da face Saúde Coletiva foi tematizada por alguns autores.
tecnocientífica do campo. Segundo a autora, o Uma característica muito associada à Saúde
projeto do campo da Saúde Coletiva “se situa na Coletiva é a de ser um campo interdisciplinar (às
40
vezes Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.205- carecimentos humanos associados a esses
218, 2015 215 seus autores usam o termo conceitos em termos estritamente biológicos”
multidisciplinaridade, ou então transdisciplinaridade (Ayres, 2002, p. 92).
– não cabendo aqui entrar em discussão). Nunes O social foi, então, incorporado meramente
(1994) destaca que o campo fundamenta-se na como elemento secundário no processo saúde-
interdisciplinaridade como possibilitadora de um doença, uma condição adjetiva, uma espécie de
conhecimento ampliado de saúde e na linha auxiliar de apreensão dos fenômenos que só
multiprofissionalidade como forma de enfrentar a adquirem positividade no organismo individual. Para
diversidade interna ao saber/fazer das práticas Ayres (2002), Desde o estabelecimento da
sanitárias. A Saúde Coletiva necessita pensar o hegemonia clínica no pensar e produzir saúde, os
geral e o específico. Para Birman (1991), o campo eventos extraorgânicos da doença e de seus
“admite no seu território uma diversidade de objetos determinantes passam a ser, no plano da
e de discursos teóricos, sem reconhecer em relação construção do conhecimento, somente suporte
a eles qualquer perspectiva hierárquica e valorativa” lógico ou empírico para construções fisiopatológicas
(p. 15). (p. 27).
Outra característica bastante destacada é o A dimensão extraorgânica da doença passou a
papel das Ciências Humanas nesse campo de ser apenas um elo das relações de eficiência
conhecimento. Nesse sentido, Ayres (2002) causal, do “determinismo exato” das ciências da
apresenta a seguinte compreensão: O campo da saúde. O “irrequieto social” foi domado pelas
“saúde coletiva”, termo pelo qual estaremos nos variáveis morfofuncionais e físico-químicas do
referindo genericamente a um conjunto, na verdade corpo: traduzida “pelo comportamento coletivo
muito amplo e contraditório, de disciplinas dessas qualidades empíricas, a determinação social
ocupadas do “social da saúde” (medicina social, da doença é aprisionada sob o inofensivo emblema
medicina preventiva, saúde pública etc.), é, de condicionante externo dos estados de saúde”
sabidamente, o principal polo de aglutinação e (Ayres, 2002, p. 132).
irradiação dessa renovada preocupação com as A investigação em saúde na dimensão coletiva
relações entre a saúde e sociedade no campo passou a distinguir, então, de um lado, grupos
acadêmico (p. 26). populacionais tomando por base características
Segundo Birman (1991), a concepção de Saúde demográficas, e do outro lado, as variáveis
Coletiva “se constituiu através da crítica sistemática morfofuncionais orgânicas. “O comportamento
do universalismo naturalista do saber médico. Seu quantitativo dessas subpopulações torna-se os
postulado fundamental afirma que a problemática elementos necessários e suficientes para as
da saúde é mais abrangente e complexa que a inferências causais” (Ayres, 2002, p. 133).
leitura realizada pela medicina” (p. 12). Essa A natureza de um conhecimento assim gerado
questão é bastante importante quando reveste-se de um ar de neutralidade, como se fosse
consideramos como o âmbito do social foi uma forma universal de apreensão da realidade.
progressivamente silenciado, no campo da saúde, Ayres (2002), em sua crítica de como ocorreu esse
pelo discurso biomédico. processo, conclui: “Ao perder-se a dimensão social
A Saúde Coletiva teria, justamente, como uma dos fenômenos coletivos de saúde em sua
de suas principais propostas resgatar o social. Ao objetivação científica, perde-se, imediatamente, a
traçar a história da epidemiologia em seu livro possibilidade de abordar racionalmente sua
Epidemiologia e emancipação, Ayres (2002) substância propriamente pública” (p. 150).
apresenta como se deu esse processo de O discurso científico hegemônico tornou
domesticação do social nas ciências da saúde. unidimensional a apreensão do espaço público da
Segundo esse autor, a partir de um dado momento saúde, naturalizando-o. Nesse sentido, a Saúde
histórico, os discursos predominantes acerca da Coletiva, ao ter como uma de suas propostas a
saúde e da doença passaram “a traduzir os aproximação com as ciências humanas, busca
41
reconfigurar o campo do social na saúde. Paim e d) O conhecimento não se dá pelo contato com a
Almeida Filho (1998) colocam como elementos realidade, mas pela compreensão de suas leis e
significativos do campo “a superação do biologismo pelo comprometimento com as forças capazes de
dominante, da naturalização da vida social, da sua transformá-la (Paim; Almeida Filho, 1998, p. 309).
submissão à clínica e da sua dependência ao A “delimitação provisória” do campo da Saúde
modelo médico hegemônico” (p. 310). 216 Saúde Coletiva na qual Paim e Almeida Filho (1998)
Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.205-218, 2015. chegam, no mencionado artigo, é: Enquanto campo
A partir desse quadro, Paim e Almeida Filho de conhecimento, a saúde coletiva contribui com o
(1998) propuseram compreender a Saúde Coletiva estudo do fenômeno saúde/doença em populações
como um campo científico em que “se produzem enquanto processo social; investiga a produção e
saberes e conhecimentos acerca do objeto ‘saúde’ distribuição das doenças na sociedade como
e onde operam distintas disciplinas que o processos de produção e reprodução social; analisa
contemplam sob vários ângulos” (p. 308). E as práticas de saúde (processo de trabalho) na sua
também como um âmbito de práticas, em que “se articulação com as demais práticas sociais; procura
realizam ações em diferentes organizações e compreender, enfim, as formas com que a
instituições por diversos agentes (especializados ou sociedade identifica suas necessidades e
não) dentro e fora do espaço convencionalmente problemas de saúde, busca sua explicação e se
reconhecido como ‘setor saúde’” (p. 308). organiza para enfrentá-los (p. 309).
Os autores preferiram adotar a visão da Saúde Tanto esses autores (Paim; Almeida Filho,
Coletiva como um campo interdisciplinar, e não 1998), quanto Nunes (1994), identificam na Saúde
como uma disciplina científica ou como uma Coletiva três grupos disciplinares: a epidemiologia;
ciência. Sobre os pressupostos básicos do marco as ciências sociais em saúde; e a política,
conceitual do campo, os autores fazem referência a planejamento e administração em saúde. São
um texto de Paim de 1982, ou seja, a um mencionadas ainda outras disciplinas
documento de um período em que a Saúde Coletiva complementares a essas. Campos (2000), seguindo
ainda estava em nascimento. uma outra linha, vai defender que a Saúde Coletiva
Paim e Almeida Filho retomam alguns dos é um pedaço do campo da saúde.
pressupostos daquele texto: O autor quer contrapor-se a uma tendência
a) A Saúde, enquanto estado vital, setor de que identifica em outros acadêmicos de confundir a
produção e campo de saber, está articulada à Saúde Coletiva com todo o campo da Saúde.
estrutura da sociedade através das suas instâncias Tendência essa que contribuiria para a
econômica e político-ideológica, possuindo, fragmentação e enfraquecimento da Saúde Coletiva
portanto, uma historicidade. enquanto campo de saber e de prática.
b) As ações de saúde (promoção, proteção, A inserção da Saúde Coletiva no campo da
recuperação e reabilitação) constituem uma prática saúde dar-se-ia, segundo sua proposta, em dois
social e trazem consigo as influências do planos: no horizontal e no vertical. No plano
relacionamento dos grupos sociais. horizontal, os saberes e práticas oriundos da Saúde
c) O objeto da Saúde Coletiva é construído nos Coletiva comporiam parte dos saberes e práticas de
limites do biológico e do social e compreende a outras categorias e atores sociais. Assim, todas as
investigação dos determinantes da produção social profissões de saúde, em alguma medida, deveriam
das doenças e da organização dos serviços de incorporar em sua formação e em sua prática
saúde, e o estudo da historicidade do saber e das elementos da Saúde Coletiva. “Nessa perspectiva,
práticas sobre os mesmos. O caráter interdisciplinar a missão da saúde coletiva seria a de influenciar a
desse objeto sugere uma integração no plano do transformação de saberes e práticas de outros
conhecimento e no plano da estratégia de reunir agentes, contribuindo para mudanças do modelo de
profissionais com múltiplas formações. atenção e da lógica com que funcionam os serviços
de saúde em geral” (Campos, 2000, p. 225).
42
No plano vertical, a Saúde Coletiva consistiria CAMPOS, G. W. S. Saúde pública e saúde coletiva:
Saúde Soc. São Paulo, v.24, supl.1, p.205-218, campo e núcleo de saberes e práticas. Ciência &
2015 217 em uma área específica de intervenção. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 219-
“Uma área especializada e com valor de uso 250, 2000.
próprio, diferente da clínica ou de outras áreas de BOURDIEU, P. O campo científico. In: ORTIZ, R.
intervenção” (Campos, 2000, p. 225). (Org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1993. p.
Alguns problemas são levantados a partir disso, 122-155.
como: quem seria o agente da Saúde Coletiva? DONNANGELO, M. C. F. A pesquisa em saúde
Haveria um curso básico de formação? De todo coletiva no Brasil: a década de 70. In: ABRASCO.
modo, Campos (2000) defende que se combinem Ensino da saúde pública, medicina preventiva e
as perspectivas do plano horizontal e do plano social no Brasil. Rio de Janeiro, 1983. v. 2, p. 17-35.
vertical na Saúde Coletiva. Ou seja, que tanto se NUNES, E. D. (Org.). Medicina social: aspectos
socialize os saberes e práticas da Saúde Coletiva teóricos e históricos. São Paulo: Global, 1983.
quanto que se assegure a existência de PAIM, J. S.; ALMEIDA FILHO, N. A crise da saúde
especialistas que produzam saberes mais pública e a utopia da saúde coletiva. Salvador:
sofisticados na área e que possam intervir em Casa da Qualidade, 2000. ROSEN, G. A evolução
situações mais complexas. Chegamos, assim, ao da medicina social. In: NUNES, E. (Org.). Medicina
final deste percurso ainda com muitas dúvidas. social: aspectos teóricos e históricos. São Paulo:
Neste caminho, nos pareceu que o campo da Global, 1983. p. 25-82.
Saúde Coletiva pode não admitir apenas uma única
definição sobre sua delimitação e caracterização. UNIDADE II
Talvez pelo fato de ser um campo bastante novo, 4. ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NA ATENÇÃO
houve nele ainda poucas cristalizações no sentido BÁSICA DO SUS E A PSICOLOGIA SOCIAL
de se formarem culturas tradicionais, de modo que
existe, em seu interior, uma grande pluralidade (e Marcela Spinardi Cintra
tensões) em termos disciplinares e epistemológicos. Marcia Hespanhol Bernardo
Sempre em construção e muito podendo caminhar Resumo:
na produção e em termos de reflexão sobre a
própria identidade, a Saúde Coletiva, como outros, A visão de que o fazer dos psicólogos é clínico,
constitui um “campo vivo” (Schraiber, 2008). Mas a pautado no modelo biomédico, se apresenta ainda
dificuldade em encontrar elementos aglutinadores, muito enraizada no discurso de muitos
tecendo pontos comuns, pode representar, por um profissionais. Parecem compreender que essa
lado, uma fragilidade, ainda que, por outro, tornar a atuação é a principal, senão a única, forma de a
Saúde Coletiva um campo sempre “aberto à Psicologia contribuir com os usuários do sistema de
incorporação de propostas inovadoras” (Paim; saúde e com a comunidade. Porém, alguns
Almeida Filho, 1998, p. 312). profissionais procuram atuar de acordo com os
princípios do SUS, baseando-se em abordagens
REFERÊNCIAS críticas da Psicologia. Eles se aproximam das
comunidades e apresentam uma prática
AROUCA, A. S. S. O dilema preventivista: diferenciada com relação à tradicional. Assim, o
contribuição para a compreensão e crítica da objetivo desta pesquisa é conhecer práticas de
medicina preventiva. São Paulo: Unesp; Rio de alguns psicólogos inseridos na Atenção Básica,
Janeiro: Fiocruz, 2003. AYRES, J. R. Epidemiologia buscando identificar as bases que as fundamentam
e emancipação. São Paulo: Hucitec, 2002. e se estão em consonância com a Psicologia Social
BIRMAN, J. A physis da saúde coletiva. Physis: Crítica. A pesquisa teve caráter qualitativo, usando
Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 1, n. a pesquisa participante como estratégia
1, p. 7-11, 1991. metodológica, juntamente com a realização de

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entrevistas abertas. Os participantes são três a realidade da comunidade em que se está
psicólogos que atuam em Unidades Básicas de inserido, buscando novas formas de deixar emergir
Saúde de Campinas. Os resultados da pesquisa o novo.
indicam que o posicionamento ético-político do Acrescenta-se aqui também que uma atuação
profissional e uma formação voltada para a atuação contextualizada deve promover conscientização e
no SUS são fundamentais para uma atuação crítica empoderamento.
e contextualizada. Mostrase que o trabalho Dessa forma, a pergunta que guiou essa
realizado para além dos muros dos Centros de investigação foi: quais são as bases que
Saúde tem grande relevância e é nele que as fundamentam uma atuação mais contextualizada do
relações estabelecidas com os conceitos da psicólogo na atenção básica do SUS? Partiu-se do
Psicologia Social Crítica ficam mais evidentes. pressuposto de que a aqui chamada Psicologia
Considera-se a importância da reflexão dos Social Crítica, desenvolvida na América Latina, se
psicólogos sobre suas próprias ações, além da mostra como uma das possíveis referências para
busca por práticas inovadoras que possam ser embasar tal atuação, justamente por entender que
incluídas nas políticas públicas de saúde e entende- há uma afinidade entre os princípios da Psicologia
se que os princípios da Psicologia Social Crítica Social Crítica e as propostas do SUS para a
fornecem subsídios para tal. Palavras-chave: Atenção Básica.
Psicologia Social Crítica, SUS, Atenção básica, Com base nesse pressuposto, o objetivo da
Pesquisa participante. pesquisa apresentada aqui foi o de conhecer
práticas de alguns psicólogos inseridos na Atenção
Ainda hoje, a visão de que o fazer desse Básica, buscando identificar as bases que as
profissional é majoritariamente clínico – pautado no fundamentam e se estão em consonância com a
modelo biomédico – se apresenta muito enraizada Psicologia Social Crítica. Entende-se que essa
em discursos de psicólogos e demais compreensão possa ser importante para a
trabalhadores. Assim, muitos parecem discussão de uma formação oferecida nos cursos
compreender que essa é a principal, senão a única, de Psicologia de modo a dar mais subsídios para
forma de atender aos preceitos da profissão. que os futuros profissionais atuem em consonância
Porém, é importante destacar que alguns com os preceitos do SUS.
psicólogos buscam maneiras mais condizentes de
atuar, valendo-se de práticas que se embasam em Introdução
conceitos e princípios do SUS, se aproximando da
comunidade e também apresentando um saber A saúde pública e a inserção de psicólogos são
crítico em relação à sua própria atuação. necessária esclarecer que o que se entende por
Considerando as dificuldades enfrentadas no saúde “reflete a conjuntura social, econômica,
campo da Saúde Pública e o fato de o número de política e cultural” (Scliar, 2007, p. 30). Dessa
psicólogos contratados ter mais que dobrado de forma, cada pessoa tem uma representação sobre
2005 até 2011, como apontam Macedo e o que é saúde, pois depende “da época, do lugar,
Dimenstein (2011), sentiu-se a necessidade de da classe social [...] de valores individuais, [...] de
explorar outras possibilidades de ação do psicólogo concepções científicas, religiosas, filosóficas”
na Atenção Básica que vão além do atendimento (Scliar, 2007, p. 30).
clínico individual embasado na lógica privatista e E isso, com certeza, é um determinante para a
liberal. Mas, o que se define, neste artigo, como organização de um sistema de saúde em um local e
uma atuação contextualizada? Para explicar essa época.
denominação adotada, utiliza-se o texto de No Brasil, a partir da Constituição de 1988, a
Dimenstein (1998), em que a autora explica que saúde passa a ser um direito para todos e dever do
atuar dessa forma é propiciar uma prática Estado. Em 1990, o SUS é regulamentado,
transformadora e reflexiva, sempre condizente com instituindo- -se a Lei no 8.080/1990 (Paim, 2009),

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que visa a promoção, a proteção e a recuperação particulares. Isso pode ser explicado pela história
em saúde, através de princípios como a da inserção do psicólogo na saúde pública, como
universalidade, a gratuidade, a integralidade e a afirma Dimenstein (1998).
descentralização. Importante destacar que esse Segundo Ronzani e Rodrigues (2006), a postura
sistema nasceu da luta de movimentos sociais. individualista para tratar dos usuários vai na
Ele está dividido em três níveis de atenção, contramão do que seria uma atuação comprometida
apresentados, aqui, da maior para a menor com a comunidade, além de também se contrapor
complexidade: o nível terciário (que envolve ao conceito de saúde que norteia o SUS – que
procedimentos de alta complexidade, tecnologia e inclui os aspectos sociais nos cuidados. Com isso,
custo); o nível secundário (que visam atender pode-se afirmar que um trabalho contextualizado do
agravos à saúde que demandem profissionais psicólogo nesse nível de atenção deve se dar no
especialistas ou recursos mais avançados que o sentido de empoderar indivíduos e coletividades,
nível primário) e o nível primário, lócus da pesquisa possibilitando que eles promovam mudanças em
aqui apresentada, em que são realizados os suas vidas.
procedimentos que necessitam de menos Para que isso aconteça, Amaral, Gonçalves e
tecnologia e equipamentos, capazes de dar Serpa (2012) acreditam que o psicólogo deve se
resolutividade à maioria dos problemas comuns à inserir, de fato, na comunidade, ou seja, no
população. Também chamada de Atenção Básica, cotidiano dos moradores, compreendendo suas
é a porta de entrada do usuário no sistema de dinâmicas de maneira profunda e com
saúde, onde acontece a referência e comprometimento.
contrarreferência para demais serviços Todas essas questões esbarram na formação
especializados (Brasil, 2007). dos psicólogos. Muitos chegam à saúde pública
Na Atenção Básica, há cerca de uma década, sem o devido preparo para assumir esse contexto
começou a ser implementada a Estratégia de de trabalho (Dimenstein, 1998) e também há um
Saúde da Família (ESF), promovida pelo Ministério desconhecimento de outras possibilidades de
da Saúde. Os profissionais que defendem sua atuação (Boing, & Crepaldi, 2010).
implementação, como Gomes, Cotta, Araújo, Mas, não é só isso. Há questões como a
Cherchiglia e Martins (2011), acreditam que ela “inexistência de local adequado [que] não permite
transformou o modelo médico individualista em um outras práticas, falta de credibilidade das práticas
modelo de saúde coletiva. Porém, nem todos psicológicas diferentes das tradicionalmente
concordam com isso. Scarcelli e Junqueira (2011), estabelecidas e ausência de preparo para atender
por exemplo, afirmam que a estratégia apresenta ‘demandas sociais’” (Oliveira et al, 2004, p. 82), que
um retrocesso, tendo em vista que centraliza o também devem ser levadas em conta quando se
cuidado nos aspectos biológicos – já que a equipe fala da atuação do psicólogo nesse espaço.
da ESF é composta por médicos, enfermeiros e Assim, Nascimento, Manzini e Bocco (2006)
agentes comunitários de saúde e os demais afirmam que é preciso reinventar as práticas
profissionais, como é o caso do psicólogo, ficariam psicológicas, criando um constante estranhamento
como apoiadores a eles, no Núcleo de Apoio à dos paradigmas e realidades que se apresentam
Saúde da Família (NASF). como prontos, autorizando-nos a inventar, no
Nesse contexto, cabe indagar como se dá sua cotidiano, estratégias que não obedeçam às
atuação do psicólogo na Atenção Básica. Como fórmulas prescritas, mas que, pelo contrário,
afirmado por Campos e Guarido (2007), mesmo possibilite o exercício de autonomia em nossas
com um grande repertório de ações que podem ser análises e gestões do dia a dia (p. 19).
desenvolvidas, como atividades em grupo, visitas Essas não precisam ser práticas mirabolantes,
domiciliares e oficinas, por exemplo, a maioria dos mas podem ser pequenos atos que, muitas vezes,
psicólogos ainda se volta para os atendimentos não são tidos como o quefazer do psicólogo. As
clínicos individuais, nos moldes dos consultórios
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mesmas autoras e Dimenstein (PSI, 2009) trazem da ideologia como fenômeno psicológico;
essa temática para discussão. incorporação de uma concepção dinâmica e
Ações como acompanhar um jovem em sua dialética dos seres humanos; fomento à autonomia
matrícula na escola podem surtir efeito e e emancipação social; inclusão de estudos sobre a
repercutem na saúde das pessoas. É preciso, relação entre indivíduos e vida cotidiana, [e] a
então, se libertar das amarras que prendem a construção diária dos sentidos dados ao mundo e à
atuação do psicólogo a uma única ação e dar vida (p. 457).
liberdade para que ela se transforme em atividades
necessárias para aquele momento. De acordo com Domingues e Franco (2014), ela
Sobre a Psicologia Social Crítica É preciso foi construída.
ressaltar que existem várias denominações para
falar de perspectivas psicológicas críticas A partir de uma vertente alinhada aos
desenvolvidas no contexto latino-americano, como movimentos latino-americanos de tradição
Psicologia Crítica, Psicologia da Libertação, marxista, os quais denunciaram a colonização
Psicologia Social Comunitária e até mesmo político-científica que ocorreu por meio da
Psicologia Social Latino Americana, mas, neste aplicação direta de modelos europeus e norte-
artigo, optou-se por grupar esses enfoques em uma americanos em seus territórios, e buscam
denominação genérica de Psicologia Social Crítica. construir uma Psicologia Social que contribuísse
Entendemos que todas essas propostas têm em para a transformação das condições de vida (p.
comum o fato de questionarem as opressões, 16).
violências e desigualdades econômicas e/ou sociais
vividas pelos povos latino-americanos (Montero, Com isso, pode-se citar diversos autores na
2011) e buscarem o empoderamento das América Latina que escreveram sobre uma
comunidades para o enfrentamento dessas Psicologia Social Crítica, como Silvia Lane no
situações. Observa-se, assim, que elas não se Brasil, Ignácio Martin-Baró em El Salvador, Maritza
configuram como áreas ou campos de atuação Montero na Venezuela, Ignacio Dobles na Costa
dentro da Psicologia, mas como um posicionamento Rica, Fernando González Rey entre Cuba e Brasil e
ético-político. outros tantos (Conselho Regional de Psicologia,
Parte-se do princípio de que a Psicologia é 2016).
chamada a tomar uma posição sobre os adventos A historicidade dos processos sociais é um
da vida cotidiana, não sendo, assim, neutra. Ao aspecto destacado por esses autores. Eles
assumir uma postura, cada psicólogo mostra sua acreditam que o homem é produto e produtor da
posição ética e política em relação à sua prática sociedade em que está inserido. Outro tema que
(Martin-Baró, 2015; Patto, 1997). merece destaque é o das relações de poder.
Cabe ainda uma caracterização da Psicologia Martin-Baró (2014) afirma que o poder está
Social Crítica, aqui importada do texto de presente em todos os aspectos da vida. É
Nepomuceno, Ximenes, Cidade, Mendonça e imprescindível que uma atuação transformadora,
Soares (2008), que a configura pela ênfase no como a Psicologia Social Crítica propõe, mude
caráter histórico da Psicologia; por ter a realidade também as estruturas de poder. Dessa forma,
social como orientadora fundamental dos estudos conscientização e empoderamento se tornam
psicológicos; combate ao objetivismo; aspectos fundamentais para uma atuação
reconhecimento do caráter ativo dos seres contextualizada.
humanos como produtores da história; necessidade Para Martin-Baró (1996), a conscientização dos
de incluir no estudo psicológico o ponto de vista dos povos deve ser um dos objetivos do trabalho do
oprimidos, compreendidos como sujeitos psicólogo, para que todos possam ter um saber
epistêmicos; consideração de que o conflito é parte crítico sobre sua realidade. Assim, o psicólogo deve
da ação humana; reconhecimento da importância dar condições para que a conscientização

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aconteça, para que os indivíduos e grupos possam falar sobre ações que são realizadas fora da
pensar criticamente, ou seja, reverter a alienação. delimitação física do Centro de Saúde, que também
A conscientização também se faz necessária se configuram como uma atuação profunda e
para que haja o empoderamento, pois só se comprometida de acordo com as características e
empoderam indivíduos conscientes de sua necessidades da comunidade.
realidade. Foi possível observar que os três psicólogos
Com isso, podem ser desmascaradas as estavam, na maior parte do tempo, transitando pelo
ideologias que justificam a exploração, a pobreza, a Centro de Saúde e também pelo território, fazendo
desigualdade e a opressão como uma providência com que os usuários tivessem liberdade para
divina, gerando o que se chama de fatalismo, que interagir com eles, mesmo que fosse apenas para
impedem que a democracia, a igualdade e o cumprimentá-los. Todos eram muito receptivos em
desenvolvimento pleno do ser humano avancem relação a essas abordagens.
(Martin-Baró, 1985). Ainda sobre a territorialidade, Renato afirma que
E esse trabalho deve ser realizado no cotidiano. essa é uma estratégia que utiliza para acessar os
A partir dessa breve exposição, é possível observar usuários e que, em um caso em específico bastante
que existe uma convergência entre os preceitos da complexo2 , essa inserção no território foi
Psicologia Social Crítica e os princípios que regem fundamental para que ele tivesse uma melhor
o SUS, como a historicidade dos processos sociais, compreensão sobre a vida de uma usuária.
a ideia de transformação social e também do Em suas palavras Se eu marco consulta, ela [a
trabalho realizado com as coletividades. Mas, quais usuária] vai. Ela não deixa de comparecer aos
fundamentos e princípios embasam as ações dos atendimentos. Então, o lance de você pensar na
psicólogos inseridos na Atenção Básica em perspectiva de conhecer o ambiente em que o
Campinas? A Psicologia Social Crítica pode ser um sujeito vive e as relações que ele estabelece é uma
deles? outra forma de lidar com o sujeito, porque se eu não
fosse visitá-la, não ia ter dimensão objetivamente
Resultados e discussão de tudo que tá rolando na vida dela.
Esse é um exemplo importante para mostrar
A leitura minuciosa dos diários de campo e das como essa inserção amplia o olhar do psicólogo
entrevistas propiciou que se chegasse a três para outras questões e favorece a busca por um
categorias de análise, mas para a discussão cuidado em saúde contextualizado com a realidade
proposta neste artigo, optou-se por apresentar duas que o usuário vive, mesmo que seja no âmbito da
delas. A primeira aborda as práticas realizadas por clínica. Mas, essa não é a única forma de se
esses profissionais, dando ênfase naquelas que os trabalhar “no território”. Há também a possibilidade
próprios participantes afirmam como “no território”, de utilizar outros espaços dentro da comunidade
ou seja, que vão para além dos muros dos Centros para se promover ações em saúde.
de Saúde. Novamente, os três psicólogos realizam
Por fim, a última categoria discute a formação e atividades em outros locais, como o Centro de
o posicionamento ético-político dos psicólogos Convivência (CECO), o Centro de Integração da
como sendo cruciais para uma atuação mais Cidadania (CIC) e até espaços que não estavam
contextualizada nesse espaço. A atuação do sendo ocupados e que foram apropriados pelo
psicólogo e a valorização das atividades para além Centro de Saúde para a realização de grupos.
dos muros dos Centros de Saúde Essa categoria Felipe afirma que é preciso conhecer o território em
aborda um tema muito importante para, que se atua para fazer diversos tipos de ofertas em
principalmente, a Psicologia Social Crítica voltada saúde para os usuários. Para ele Trabalhar no
para a ação em comunidades, que é a território, por exemplo, não implica só cumprir
territorialidade. Trabalhar “no território” é uma forma agendinha e só ficar fazendo aquilo que tá
muito particular que os participantes assumem ao agendado ali e pronto.
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Se você não vai conhecer o território, não vai Você não tem que estar marcado pela assimetria
conseguir ofertar outras coisas que tem no território do fato de você ser o cuidador, profissional
que as pessoas que você tá atendendo podem contratado que tem o conhecimento, psicólogo ou
precisar, que você pode indicar. Se a gente fica médico, enfermeiro. Você tá ali dividindo com o
psicologizando as coisas, a gente come um monte sujeito o espaço do protagonismo, pra discussões
de bola no atendimento. “n” questões, que vão desde cidadania, participação
Ainda é possível identificar nessa fala a social mais ampla, até ajudar em questões
preocupação de Felipe em não tratar de problemas relacionadas à auto estima, estilo de vida, de tudo,
sociais como se fossem psicológicos, além da né?
valorização de espaços e atividades que a própria Porém, isso não significa que o psicólogo tenha
comunidade já oferta para os que ali vivem. que abrir mão de seu saber profissional, mas
Ana Paula também comenta as atividades delimitar seu papel, sem que isso seja feito de
realizadas em outros espaços e percebe que, forma hierarquizada, como já propunham Oddone
quando os grupos do seu Centro de Saúde et al. (1986) na década de 1960 com relação à
acontecem fora de seus muros, a postura dos saúde do trabalhador.
usuários é diferente. Em suas palavras [os O que se deve é somar o saber profissional ao
usuários] preferem fazer lá... acho que lá é melhor, saber do usuário sobre sua própria saúde,
é um outro ambiente. promovendo sua autonomia em relação ao cuidado
Acho que fica mais acolhedor, eles gostam mais. em saúde.
Eu acho que despatologiza também. Então, você O tema da territorialidade ainda remete à
tira daqui [do Centro de Saúde] e vai fazer em um discussão do social como parte fundamental para
outro espaço. se pensar no cuidado em saúde e essa reflexão
Aí, acho que dá pra pensar em outras coisas e [o sobre o social também se faz presente quando se
usuário] não se sente num atendimento com o fala na Psicologia Social Crítica.
psicólogo “porque eu tô louco da cabeça” Todos os psicólogos dessa pesquisa afirmam
Nessas duas falas, nota-se que, para esses levar em consideração essas questões. Durante a
psicólogos, as ações concretas realizadas em entrevista, Ana Paula é elucidativa ao afirmar que
espaços fora dos Centros de Saúde as questões sociais, com o tempo, podem gerar
“despatologizam” a relação dos usuários com os adoecimento as pessoas trazem situações de
profissionais de saúde, pois este deixa de estar em violência que elas viveram.
sua “casa” para se tornar uma “visita” no território Violência intrafamiliar ou sofreu uma violência
que pertence ao outro. Essa postura reduz o caráter urbana, então o social atravessa o tempo todo.
hierárquico estabelecido tradicionalmente entre A história de vida da pessoa, de privação. [Essa]
profissionais da saúde e seus “pacientes”. é uma região de classe média baixa, tem áreas de
Além disso, também demonstra que esses grande risco aqui. Então, é uma população que
psicólogos acreditam na relevância de uma atuação você olha e fala “teve muitos direitos negados ali
para além dos muros do Centro de Saúde. pra essa pessoa”, não teve acesso a muita coisa.
Sobre essa relação assimétrica entre os E o tempo todo isso vai aparecendo como
profissionais e os usuários, Renato apresenta uma adoecimento. Felipe também fala sobre isso. Para
fala muito interessante, em que diz que As pessoas ele, muitos dilemas sociais chegam fantasiados de
me chamam de doutor, me colocam nesse lugar sofrimento psíquico e é por isso que é fundamental
social. Mas, quando você tá dentro de um outro ter a dimensão do social no cuidado em saúde.
espaço, de uma outra natureza, você consegue Mas, apesar disso, é preciso esclarecer que não
estabelecer um vínculo com o sujeito que é muito desconsideram o sofrimento psíquico dos
mais interessante do ponto de vista da indivíduos, pois as pessoas sofrem por mazelas
horizontalidade da relação. que são produzidas socialmente.

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Esses dois relatos apresentam uma clara marco um horário pra ele vir falar do sofrimento
relação com a Psicologia Social Crítica e suas dele.
premissas ético-políticas, pois considera a Mas a dinâmica da organização da vida das
historicidade dos indivíduos, como já apontado por pessoas é totalmente diferente. Então, eu tomo um
Lane (1994/2006), Martin-Baró (2015) e Freitas monte de cano, os usuários não vêm [...]. Sobre os
(2014). Como esses autores afirmam, o sujeito é atendimentos individuais que realiza, ele também
produto e produtor de seu meio, sendo influenciado afirma que não utiliza o enfoque tradicional por
pelas questões sociais que atravessam a sua vida. achar que esse modelo não dá conta de abarcar as
E essa concepção pode propiciar ao psicólogo uma complexidades da vida das pessoas.
atuação contextualizada. Ele considera que cada indivíduo tem uma
Todavia, o que foi observado algumas vezes nas família, uma história e seu lugar no mundo e que
falas e nas atuações dos participantes da pesquisa isso tudo faz com que ele possa compreender a
foi um olhar para o “social”, como se este fosse dinâmica da vida dos usuários. Por isso, acha mais
sinônimo de falta de acesso a recursos materiais e interessante trabalhar com grupos e com a própria
não envolvesse fenômenos diversos e complexos. comunidade. Ele ainda faz um desabafo em relação
Porém, os psicólogos ainda realizam atividades ao seu cotidiano, dizendo que, muitas vezes,
dentro de seus Centros de Saúde, como é o caso gostaria de fazer mais em seu trabalho, mas que
dos atendimentos individuais. “não há como chegar tentando mudar todas as
Apesar de, muitas vezes, criticados, por regras e fazer tudo do seu jeito”.
transportarem o modelo privatista de atuação para Para ele, existe o possível de se fazer. Renato
um local onde a realidade é outra, não se pode ainda afirma que é preciso manejo e confiança,
descartar que, para alguns casos, esse tipo de além do tempo, para realizar atividades
atendimento é importante e necessário (Figueiredo significativas no espaço de trabalho, pois ainda há
e Onocko-Campos, 2009) – quando não reproduz a uma pressão – tanto dos profissionais como dos
lógica individualizante. Felipe faz uma afirmação próprios usuários – para que o psicólogo assuma
nesse sentido. uma posição tradicional, que é o atendimento
Para ele, “é lógico que o atendimento individual é clínico individual.
muito importante e, para alguns casos, é o que tem Ele também afirma que, por conta de seu
que fazer, mas é para alguns casos. Não para tudo pensamento contra hegemônico, foi desrespeitado
que a gente pega”. em alguns momentos de sua vida profissional, mas
Renato também avalia que, em alguns mantém o que acredita: eu estou fundamentado
momentos, esse modelo é importante, como para numa outra lógica que, para mim, faz sentido.
casos em que há queixa de abusos, agressões e Então, não é porque alguém vai me xingar que
outras características que considera serem eu vou deixar de fazer ou deixar de acreditar
complicadas de serem discutidas em grupos ou em naquilo que eu tenho pensado do ponto de vista da
outros espaços. minha atuação profissional.
Mas, ao mesmo tempo em que faz essa É interessante destacar que, mesmo que essa
afirmação, relata a difi- culdade que sente em postura seja identificada nos três psicólogos
relação a essa prática com pessoas que têm outra participantes da pesquisa, foi possível perceber que
“dinâmica de vida”: Eu estou cansado, cansado no eles ainda dedicam grande parte de seu tempo para
sentido de careca de ver, que, em vários ações voltadas para recuperação/tratamento em
momentos, os agendamentos individuais que eu saúde.
faço são totalmente vazios, porque, de alguma Ao ser questionado sobre isso na entrevista,
maneira, eu não consigo interagir com o sujeito no Felipe afirma que se sente “preso” em realizar
momento em que a necessidade se apresenta pra ações de recuperação em saúde por conta da
ele, em uma dimensão social do sofrimento e eu enorme demanda por atendimentos psicológicos e
que isso não pode ser ignorado. Por isso, precisa
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ser persistente para realizar atividades de graduação com um olhar para essas questões e,
promoção e prevenção em saúde: Eu sinto que assim, poderia ser mais fácil de realizar práticas
consigo fazer práticas de promoção porque também condizentes com os preceitos do SUS, por
meto o pé pra fazer, sabe? Porque vai muito disso, exemplo. Nesse sentido, Renato e Felipe
porque se você deixa, [...] a demanda grita na sua destacaram o quanto suas formações em Saúde
cara. Coletiva estão presentes em ações cotidianas.
Se você se deixa levar pela demanda apenas, Ambos buscaram, por iniciativa própria, essa
pela demanda manifesta que aparece ali pra você, formação após vivências na saúde pública.
você não consegue fazer promoção de saúde, por Já Ana Paula não relata nenhuma formação na
exemplo. Saúde Coletiva, mas mais importante do que isso a
Nota-se que essa fala juntamente com a de ser destacado aqui é que essa profissional se
Renato, destacada acima, mostram as contradições mostrou muito aberta para discutir seu trabalho e
que permeiam o atendimento clínico no Centro de aprender com os colegas. Deve-se levar em
Saúde, pois, ao mesmo tempo em que são consideração o fato de ela se aproximar de Renato
pressionados pela “demanda” por atendimento – por conta do NASF – o que, com certeza a tem
individual, a adesão a esse tipo de atividade é influenciado. Renato e Felipe também relatam que,
pequena. Finaliza-se, então, essa categoria com a em algum momento de suas formações, tiveram
fala de Ana Paula que é a que mais se aproxima contato com a Psicologia Social e que isso os
dos conceitos e vertentes da Psicologia Social influenciou.
Crítica. Felipe, inclusive, cita autores das Ciências
Ela afirma que o trabalho do psicólogo deve se Sociais durante a entrevista. Já Renato, durante
dar no sentido de promover qualidade de vida e uma conversa informal, assume que tem baseado
ainda complementa: no primeiro momento [o suas ações em teorias sociais.
trabalho do psicólogo] é o acolhimento, a Ao comentar isso, pode-se perceber seu claro
continência, o estar ali, ver que tem alguém ali, o alinhamento de suas ideias com a Psicologia Social
que a gente pode ofertar. E acho que mais Crítica quando destaca a importância de valorizar o
amplamente, ajudando até socialmente, no acesso, que a comunidade já tem e trabalhar no território.
na formação de grupos, na problematização com a Para ele, a Psicologia Social tem um alinhamento
população dessas questões sociais [e] acho que com “as diretrizes de trabalho da Atenção Básica a
principalmente no produzir conhecimento. partir do que o SUS preconiza”.
No ajudar a pensar como que a pessoa pode Já Ana Paula, que sempre teve interesse na
reagir a uma situação. Primeiro, ela precisa ter o área da Psicologia Hospitalar, afirma que isso não a
básico. E acho que a gente entra aí também, impediu de buscar desempenhar um trabalho
porque se a gente identifica uma situação, a gente condizente com os preceitos do SUS no nível
pode acionar outros parceiros também [como] a primário.
Assistência [Social], a Justiça. Ela se mostrou muito interessada em reuniões,
Dessa forma, o trabalho do psicólogo deve capacitações e discussões para aprimorar sua
considerar o contexto social e promover a prática, não ficando presa a modelos pré-
autonomia e o empoderamento dos usuários, tanto estabelecidos. Isso demonstra que, para além da
no nível individual como no coletivo, além de formação acadêmica, o posicionamento ético-
trabalhar de forma intersetorial com outros serviços político também é de extrema importância quando
públicos. se pensa em práticas contextualizadas. Os
Sobre a formação e o posicionamento ético- psicólogos apresentavam uma postura crítica e não
político dos psicólogos Na introdução deste artigo naturalizante em relação ao seu trabalho, levando
foi possível observar que uma formação voltada em consideração os contextos (macro e
para políticas públicas seria um importante microssociais) em que estão inseridos, além da
instrumento para que o psicólogo já saísse da constante reflexão sobre suas ações.

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Ficou claro que os três têm consciência das Nesse sentido, o movimento da luta
relações de poder e possibilidades entre os grupos antimanicomial se coloca, tanto Renato como
sociais e das contradições presentes em na Felipe, como uma forma de garantir os direitos dos
sociedade, ainda que, em alguns momentos, eles usuários de saúde mental.
mesmos apresentem algumas contradições em A partir das experiências aqui relatadas, pode-se
suas práticas e suas falas. Uma autora que discute estabelecer a diferença entre prática e práxis.
a importância do embasamento político por detrás Bottomore (1997) explica a diferença entre essas
das ações dos profissionais é Freitas (1998). duas palavras que constantemente são tidas como
Segundo ela, os aspectos instrumentais sinônimos. Para o autor, a práxis é uma
dependem das concepções adotadas pelo ação/atividade em que o homem cria e transforma a
psicólogo para orientar sua prática. E isso se torna si mesmo e a sua história. Assim, necessariamente,
crucial quando se fala de uma atuação contra está atrelada a uma reflexão sobre essa
hegemônica. Renato afirma que, desde a ação/atividade.
graduação, está envolvido com a militância (de Já a prática é uma ação sem reflexões e
movimentos estudantis, sociais e da luta questionamentos, em que há reprodução de ações.
antimanicomial) e isso com certeza influenciou e Aqui, nota-se que as atividades do cotidiano dos
ainda influencia suas ações no Centro de Saúde. psicólogos da Atenção Básica de Campinas são
Para ele, a participação em movimentos sociais atendimentos individuais, atividades “no território”,
é uma dimensão de seu trabalho – e também um grupos de diversos caráteres e reuniões, por
posicionamento ético-político. exemplo.
Em suas palavras a prática profissional nunca Mas, então, o que muda de uma prática para
deve estar apartada das outras dimensões da vida uma práxis? Nesta pesquisa, parece ser o
pessoal, social, da participação cidadã. posicionamento ético-político que embasa a
Que nem hoje, a gente está fazendo a entrevista atuação dos participantes e não teorias específicas.
depois do ato da luta antimanicomial, que, de Não se pode esquecer que não existe ação
alguma maneira, na minha concepção, é uma humana que não seja ideológica, como bem
dimensão do meu trabalho. Estar em espaços como afirmam Martin-Baró (2015) e Patto (1997).
esse, reivindicando a melhora de políticas públicas, Assim, a atuação do psicólogo também o é.
denunciando situações em que a gente percebe Renato, por exemplo, afirma que se embasa nas
que as condições mínimas pra trabalhar estão teorias sociais, enquanto que Felipe diz ter
sendo agredidas [faz com que] a gente perceba que estudado Lacan, autores da Psicologia Social e
precisa de mais investimentos, estar em outros também da Saúde Coletiva.
espaços de formação e debate. Apesar de Ana Paula apresentar um percurso
A visão de mundo também aparece nas ações acadêmico diferente dos outros dois psicólogos, é
cotidianas dos participantes da pesquisa, como foi ela quem afirma que o olhar voltado para o SUS
possível perceber durante um grupo liderado por deve começar logo na graduação: [Eu] não me
Felipe. lembro em ter tido muita ênfase em políticas
Muitos estigmas em relação à vida dos usuários públicas, eu fui aprender isso na prática, estudando
foram aparecendo durante as conversas do grupo para concurso, porque daí pede.
e, por ter uma crítica em relação a essas Aí que eu fui conhecer mais essa parte de
afirmações preconceituosas, Felipe as políticas públicas. Então, eu acho que isso já tem
problematizou. que começar na graduação.
Isso demonstra o quanto o posicionamento ético- A gente tem que ter uma graduação que amplie
político do psicólogo aparece no dia a dia e que, se os olhares para as diferentes possibilidades da
tais estigmas não forem questionados e debatidos, Psicologia [...]. Tem que começar na base porque
não serão superados. daí a gente já vai aprendendo mesmo as diferentes
formas de atuar, porque senão fica muito difícil.

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A gente vai apanhando e é meio na marra que a ser considerado, pois permite um olhar entre
você vai descobrindo. Essa coisa do setting, do “iguais” para uma atuação contextualizada.
consultório, imagina né? Aqui, eu atendo cada dia Não se pode esquecer das lutas por melhores
em um consultório, na casa, em conjunto, atende condições de trabalho e pela defesa de direitos,
no corredor, então é muito diferente. como foi visto em atividades realizadas no dia de
Essa sua fala mostra um aspecto muito luta antimanicomial, como importantes momentos
importante defendido neste artigo. Uma formação de militância, em que o posicionamento ético-
com embasamento nos princípios da Psicologia político dos psicólogos ficou muito evidente.
Social Crítica poderia ser interessante para Foi possível concluir que mais importante do que
apresentar ao aluno que a Psicologia vai muito a atividade em si é o posicionamento ético-político
além do que o consultório privado. por detrás dela. Mesmo sabendo da dificuldade de
Dessa forma, ao oferecer espaços “críticos” na práticas inovadoras, elas são importantes para um
graduação, os estudantes poderiam voltar seus cuidado em saúde que busca superar o modelo
olhares para questões sociais, gerando, inclusive, clínico tradicional.
maior interesse em atuar em políticas públicas, seja A reflexão sobre novos fazeres que aflorem o
no campo da saúde ou em outros. lado criativo que Dimenstein (PSI, 2009) tanto fala
Aqui, os psicólogos seguiram suas formações em seu texto permite que os psicólogos saiam de
por caminhos diversos, mas, com certeza, a ênfase lugares pré-estabelecidos rumo a uma prática
crítica na graduação poderia ser um facilitador para comprometida socialmente.
que se encontrassem muito mais Renatos, Felipes Este artigo busca deixar claro que não apenas
e Anas Paulas atuando em serviços públicos de uma teoria pode propiciar essa atuação
saúde, assistência e tantos outros onde uma contextualizada, mas que um posicionamento ético-
atuação contextualizada é imprescindível. político crítico sobre a realidade e sobre a saúde
impacta positivamente na maneira de atuar.
Considerações finais Dessa forma, defende-se que uma formação
crítica, com perspectivas como as da Psicologia
A pesquisa aqui apresentada permitiu afirmar Social Crítica pode favorecer a uma maior reflexão
que os psicólogos participantes não limitam suas para os alunos e profissionais da saúde.
ações a atendimentos clínicos tradicionais, Entende-se que as limitações deste artigo,
realizando muitas outras atividades, como grupos especialmente, no que diz respeito à
dos mais variados tipos, reuniões com escolas e impossibilidade de fazer comparações com outros
entre profissionais e visitas domiciliares para citar profissionais que não possuem as características
alguns exemplos. apresentadas pelos participantes escolhidos.
Também pode-se observar o quanto as Todavia, acredita-se que a contribuição deste
atividades realizadas fora do espaço dos Centros trabalho tenha sido a de evidenciar que, apesar do
de Saúde são importantes quando se pensa em cenário desfavorável para as políticas públicas, é
uma atuação contextualizada. possível, e cada vez mais necessário, desenvolver
A aqui chamada de atuação “no território” se uma atuação crítica.
mostra imprescindível para esse tipo de ação
comprometida. Com isso, destaca-se a importância Referências
de que a atuação do psicólogo nesse local não se
limite a uma prática curativa e individualizante, mas • Amaral, M. S., Gonçalves, C. H., & Serpa,
que abranja ações que promovam autonomia, M. G. (2012). Psicologia Comunitária e a Saúde
conscientização e empoderamento, visando a Pública: relato de experiência da prática Psi em
transformação social da comunidade. A uma Unidade de Saúde da Família. Psicologia:
horizontalidade das relações também é um aspecto Ciência e Profissão, 32(2),

52
• Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo Seu ponto central versava sobre a recusa declarada
nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para de muitos pacientes em sair da instituição, após
a formação e atuação de profissionais. Estudos anos de internação, mesmo quando alternativas
de Psicologia (Natal), 3(1), 53-81. concretas de vida fora dos muros lhes eram
• Domingues, A. R. & Franco, E. M. oferecidas (MACHADO et al, 2005).
(2014). Reflexões teóricas sobre sujeitos Tais relatos dizem respeito a experiências
coletivos e experiências comunitárias. In: C. ocorridas em diferentes regiões do País e, em si,
Stella (Org.), Psicologia comunitária: não trazem nenhuma novidade. Não se trata de
contribuições teóricas, encontros e experiências algo inusitado ou mesmo desconhecido da maioria
(pp. 15-44). Petrópolis, RJ: Vozes. daqueles que vivem o cotidiano da saúde mental.
• Freitas, M. F. Q. (2014). Psicologia Social Entretanto, são indicadores importantes dos
Comunitária como politização da vida cotidiana: problemas e dos desafios hoje colocados aos
desafios à prática em comunidade. In: C. Stella, gestores e trabalhadores do campo da saúde
(Org.), Psicologia Comunitária: contribuições mental. Neste estudo, não há a pretensão de
teóricas, encontros e experiências (pp. 65-85). analisar profundamente todas as questões
Petrópolis, RJ: Vozes. envolvidas nas situações mencionadas. A idéia é
tentar situar em que campo esses relatos se
…. Referencia no artigo original… inserem, que linhas os compõem e para que
direções seguem as políticas de saúde mental.
5. O DESAFIO DA POLÍTICA DE SAÚDE Em uma primeira análise, é possível identificar,
MENTAL: A (RE)INSERÇÃO SOCIAL DOS em ambos os relatos, processos que seguem em
PORTADORES DE TRANSTORNOS MENTAIS direção oposta à reforma psiquiátrica,
especialmente as propostas de reabilitação
psicossocial e de reinserção, que buscam garantir a
O desafio da política de saúde mental: a autonomia e a cidadania de portadores de
(re)inserção social dos portadores de transtornos mentais e que são a tônica das políticas
transtornos mentais públicas de saúde mental. Ancorados nessa
primeira análise, torna-se viável mapear alguns
Um desses relatos trata da abertura de uma possíveis determinantes para a reação desses
residência terapêutica, um dos equipamentos trabalhadores e usuários, bem como pensar que
fundamentais para o avanço da reforma estratégias podem ser implementadas para produzir
psiquiátrica. No texto, eram discutidos a transformações na atenção em saúde mental.
complexidade e os inúmeros desafios presentes no Um primeiro grupo de problemas e desafios a
processo de implantação dessa experiência. Apesar ser enfrentado diz respeito à dinâmica das
de não ser o foco do trabalho, ao apresentar esse instituições de saúde à qual os trabalhadores estão
processo, as autoras tocaram em um ponto vinculados, o que inclui questões salariais e
fundamental: apesar de bastante empenhados na condições de trabalho, até a falta de capacitação
abertura dessa residência terapêutica, muitos que viabilize a produção de novas formas de
trabalhadores relutavam em participar das equipes cuidado.
que ficariam responsáveis pelo funcionamento Além desses pontos, que podem ser
desse novo serviço, relutância que eclodia quando identificados no contexto nacional, assinalamos o
se depararam com a necessidade de produzir um investimento insuficiente e inadequado do SUS
cuidar de forma distinta daquela produzida no para os serviços substitutivos; o aumento
manicômio, local onde também trabalhavam considerável da demanda em saúde mental
(PAULON et al, 2005). (egressos de hospitais psiquiátricos, uso constante
O segundo relato tratava de uma investigação e inadequado de benzodiazepínicos, álcool e outras
realizada com moradores de hospitais psiquiátricos. drogas) e a diminuição, ainda tímida, dos gastos
53

Professora: Maria Flor Ano: 2022.1


com internação psiquiátrica (o que reflete a política postos como passivos frente ao desafio de
ideológica dos hospitais). produção de outra subjetivação, seja porque o
Podemos indicar, também, pelo menos no contexto sóciofamiliar é refratário à inclusão e o
contexto do Rio Grande do Norte, o baixo índice de sociopolítico é adverso e precário, seja porque as
pessoas que são atendidas em serviços condições socioculturais mais amplas são
substitutivos como o CAPS, devido ao número marcadamente discriminatórias em relação aos
insuficiente de unidades para atender à crescente chamados "pacientes psiquiátricos", de modo que
demanda, ao tempo excessivo de sua utilização as ofertas como as de trabalho são raras e
pelos usuários, ao insuficiente registro de altas e à acompanham o modelo formal do mercado
absoluta falta de articulação entre esses serviços e capitalista, ao exigir profissionalização e
a rede de atenção básica (ALVERGA e disciplinarização;
DIMENSTEIN, 2005a). (2) A cronicidade dos modos de gestão, dos
Isso implica a produção de um tipo de atenção à dispositivos e dos profissionais, refletida pela
saúde mental pouco diversificada na rede, que se dificuldade em aliar a discussão clínica à análise
torna ineficiente na produção de saúde no meio dos processos de trabalho e das instituições (ou
social do indivíduo. Assim, esse modelo torna-se seja, aliar a clínica à política), bem como a
paradoxal àquele de assistência à saúde proposto dificuldade de aliar a formação permanente às
pela reforma psiquiátrica e a seus aspectos práticas dos serviços, de modo que as marcas da
fundamentais: a desconstrução de saberes e de segmentarização, dos especialismos e da
práticas restritos à mera desospitalização e a centralidade (não territorialização das práticas nos
produção de cuidados em núcleos de base contextos diversos) da formação sejam superadas;
comunitária, na concretude cotidiana dos espaços (3) A cronicidade produzida pela inexistência ou
onde circula a loucura. pela fragilidade de uma efetiva "rede" de atenção
É preciso, dessa maneira, avançar nos em saúde e, em especial, em saúde mental, que se
processos de expansão e de articulação da atenção verifica na existência desorganizada de várias
na rede básica e substitutiva e fortalecer o lugar do portas de entrada e a falta de portas de saída, de
CAPS como, por exemplo, organizador da rede de modo que a rede não se faz, pois, características
cuidados em saúde mental, tal como idealizado essenciais como a acentralidade, a conectividade e
pelo Ministério da Saúde, na forma de dispositivo a produção permanente não se operam, e o que
transitório que funcione, preferencialmente, na vemos é "um conjunto de pontos ligados frágil e
interface com a comunidade, potencializando os burocraticamente" (p. 205).
recursos de suporte social existentes e promovendo Ou seja, essas duas formas de prestação de
a discussão da cultura manicomial que perpassa os cuidados devem estar articuladas, gerar
mais diferentes espaços de convívio. Em diversos responsabilidades compartilhadas entre as equipes
trabalhos (MERHY, 2004; MERHY et al, 2002) há o e evitar que o usuário não vá direto ao hospital
alerta para o problema (presente em todo território psiquiátrico.
nacional) de institucionalização dos CAPS e da Esses questionamentos também se aplicam em
produção de novas cronicidades que se expressam relação ao mais novo dispositivo da reforma
na retenção de usuários, em modos de gestão psiquiátrica brasileira: os serviços residenciais
resistentes em operar para fora do serviço, em terapêuticos (SRTs). Esses serviços, em linhas
produzir portas de saída e de circulação na rede, gerais, são propostos como modalidade de cuidado
aspectos que podem estar transformando os CAPS que oferece às pessoas com história de longa
em manicômios disfarçados. internação em hospital psiquiátrico e que
Corroborando essa discussão, Barros (2003) permaneciam internadas, devido à perda de
aponta para três "ordens de cronicidade": vínculos familiares e sociais, a possibilidade de
(1) As "novas cronicidades" dos pacientes que construir uma vida na cidade, de habitar numa casa
se tornam "usuários-pacientes", pois estão e/ou são como outra qualquer, de circular livremente pelos
54
espaços públicos, de receber assistência por que utiliza o espaço público e a cidade como locais
técnicos cuidadores e acompanhamento para processar sua ação, na medida em que visa à
ambulatorial pelos Centros de Atenção circulação do usuário na cotidianidade ao investir
Psicossocial. em estratégias de enlace social. Tal modalidade de
Na realidade específica da saúde mental, em atenção não é restrita a um grupo específico de
Natal, esse serviço foi implantado muito técnicos, mas pode ser exercida por diferentes
recentemente. Isso despertou nosso interesse pessoas que, após treinamento adequado, podem
sobre como seria o processo de exercer a função de acompanhantes terapêuticos.
desinstitucionalização dessas pessoas, um O dispositivo do AT se insere além do espaço
dispositivo que fosse potencialmente livre de estrito dos estabelecimentos de saúde, ao realizar
"cronicidades" e repleto de desafios em sua uma "clínica sem muros" na qual o setting
implantação. terapêutico se configura a cada incursão no espaço
Entre esses desafios, estaria a desconstrução de urbano. Em outras palavras, é interessante investir
formas comuns e hegemônicas de habitar a cidade, no dispositivo do AT, seja em sua potência clínica
de modos de morar e de formas de cuidar e de de intervenção com usuários, familiares e redes
"clinicar", considerando as imprevisibilidades que o sociais, seja em sua potência analisadora do
encontro da loucura, em sua estranheza e em suas próprio movimento da Reforma Psiquiátrica.
formas institucionalizadas com a cidade, coloca Nesse sentido, consideramos imprescindível
para esses moradores e cuidadores. Supomos que identificar e capacitar equipes de AT e estabelecer
tais encontros com a cidade seriam potentes para a uma central que possa dar suporte aos mais
desconstrução da lógica manicomial, a partir da diferentes serviços, seja de atenção básica, seja
diversidade de formas de vida que nela se especializado, bem como às equipes de atenção
desenvolvem, cotidianamente, nos espaços de básica.
sociabilidade, solidariedade e convívio com a Outro ponto importante na constituição dessa
diferença, que coloca em questão as forças rede integrada diz respeito à consolidação da
homogeneizantes e aprisionadoras das Política Nacional de Humanização do Ministério da
subjetividades contemporâneas. Saúde e, conseqüentemente, à implementação de
Assim, o encontro com a cidade e com a vida uma de suas estratégias, a do "Apoio Matricial", ou
cotidiana no espaço além dos muros manicomiais, seja, a capacitação de uma equipe de supervisores
em sentido restrito, exigirá o desenvolvimento de institucionais que possam operacionalizar a política
novas práticas de saúde. Tais práticas também de saúde mental do município, extrapolando o viés
deverão ser direcionadas para além das estritamente clínico tal como vem, tradicionalmente,
intervenções dos cuidadores, constituindo-se em sendo exercido por aqueles que ocupam esse
estratégias que esses moradores construirão no lugar.
encontro com a cidade, em seus diferentes espaços O Apoio Matricial é uma estratégia de
de sociabilidade e nas formas de cuidado e de vida interlocução na rede de saúde, que tem por meta
que ela pode oferecer. pensar a saúde mental inserida na saúde como um
Um dos aspectos importantes dentro desse todo e construir estratégias que permitam e/ou
processo de reorientação da atenção em saúde facilitem o direcionamento dos fluxos na rede.
mental diz respeito à capacitação dos Nesse contexto, o Apoio Matricial é um arranjo
Acompanhantes Terapêuticos (AT) para que institucional criado para promover interlocução
possam dar suporte às diversas equipes entre os serviços de saúde mental, como os CAPS
espalhadas na rede de saúde. e as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Destina-
A presença dos AT é um dispositivo fundamental se, principalmente, a contribuir com a
no processo de reforma psiquiátrica e de inserção implementação de uma clínica ampliada; a
dos portadores de transtornos mentais na vida favorecer a co-responsabilização entre as equipes;
extramanicomial. É uma modalidade de atenção a servir de apoio para as equipes de referência; a
55
promover saúde e diversidade de ofertas suporte aos diferentes serviços, assim como
terapêuticas. constituir equipes de saúde mental de referência
Para isso, é necessário que o profissional da (apoio matricial) para a atenção básica e
saúde mental acompanhe freqüentemente as implementar a supervisão institucional como
equipes das UBS, especialmente aquelas que não dispositivo de reorganização da atenção em rede e
possuem equipe de saúde mental, propiciando um de materialização da política de saúde mental,
suporte teórico-prático. O apoio matricial é diferente escapando dos velhos modelos clínicos presentes
da lógica do encaminhamento ou da referência e no mundo "psi".
contra-referência, porque implica a Todas essas ações podem repercutir clara e
responsabilidade compartilhada dos casos. Visa, diretamente na reinserção social dos usuários de
portanto, aumentar a capacidade resolutiva da serviços de saúde mental.
equipe local. Sobre esse último aspecto, há vasto material
Segundo documento do Ministério da Saúde literário cujos autores discutem e problematizam a
(2004), formação, a produção de conhecimento e as
A equipe de referência e o apoio matricial, práticas do psicólogo no contexto da saúde pública
juntos, permitem um modelo de atendimento (DIMENSTEIN, 1998, 2000 e 2004; LAZZAROTTO,
voltado para as necessidades de cada usuário: as 2004; MATOS, 2004; LIMA, 2005; BARROS, 2005).
equipes conhecem os usuários que estão sob o Tais trabalhos têm em comum a crítica às teorias
seu cuidado e isso favorece a construção de e às práticas descontextualizadas, ainda
vínculos terapêuticos e a responsabilização pregnantes no campo, à marca biologicista das
(definição de responsabilidades) das equipes.... concepções de saúde, loucura etc., que norteiam a
sendo assim, ferramentas indispensáveis para atuação do psicólogo, à reprodução de modelos
humanização da atenção e da gestão em saúde técnicos individualizantes, operados por teorias de
(p. 14). cunho essencialista, à psicologia atemporal, a-
histórica e a-política, orientada pelo desejo de
Em Natal, a SMS vem investindo nessa adaptação e adequação do que se encontra fora da
experiência e, atualmente, conta com uma equipe ordem. Recentemente, o Conselho Federal de
de 16 apoiadores que se articulam em duplas e Psicologia (CFP) e a Associação Brasileira de
acompanham o trabalho de oito USF. Porém, em Ensino em Psicologia (ABEP) realizaram seminário
Natal existem 32 Unidades de Saúde da Família para refletir sobre a especificidade do foco do
que demandam acompanhamento do trabalho que exercício profissional, os saberes que orientam as
realizam. Notamos, portanto, a necessidade de práticas, o fracionamento das tarefas, as questões
ampliar as equipes de apoiadores para estender a ligadas às identidades e às características dos
cobertura que, atualmente, vem se realizando. agentes da prática profissional, entre outros.
Com base nesses pontos, insistimos na questão Trata-se de uma discussão que o campo precisa
de que é preciso investir na construção de uma operar cotidianamente.
rede integrada de atenção à saúde, no O segundo grupo de problemas/desafios para a
reordenamento dos serviços de atenção política de saúde mental pode ser identificado a
especializados, para que estejam voltados para a partir do relato trazido, no início do texto, a respeito
produção e para a identificação de uma rede de dessa vontade que alguns usuários demonstram de
lugares de acolhimento no território, no incremento permanecerem hospitalizados e sob a tutela do
das residências terapêuticas (pois são os Estado.
equipamentos que têm mais potencial de Os autores apontaram que, para eles, o hospital
desconstruir a lógica manicomial). representa um local seguro diante dos perigos da
É também necessário investir, maciçamente, na cidade, considerada perigosa e hostil à loucura,
capacitação dos trabalhadores da atenção básica e garante condições básicas de sobrevivência
dos acompanhantes terapêuticos que possam dar

56
(abrigo, alimentação, roupa limpa etc) e de servir para nossas reflexões do dia-a-dia: por que
tratamento de saúde (medicação e assistência). as pessoas lutam por sua própria opressão como
O hospital-albergue, por assim dizer, os protege, se estivessem lutando por liberdade?
também, do retorno ao mundo do trabalho, Por que produzimos modos de existência tiranos
extremamente competitivo e desigual, bem como da que fazem com que a hierarquia e a exploração
falta de programas e equipamentos sociais que sejam desejadas? Por que costuramos tantas
viabilizariam seu acolhimento na vida burcas que, mesmo de cores e tecidos variados,
extramanicomial. são sempre fôrmas-prisões? Por que o desejo
Novamente nos deparamos com argumentos investe contra si mesmo e a favor do fortalecimento
absolutamente pertinentes e legítimos quando do status quo (ROLNIK, 1989)? Trata-se, então, do
sabemos que a grande maioria das pessoas que enfrentamento de um desejo-escravo presente em
vivem muitos anos confinada em hospitais nós.
psiquiátricos tem comprometimentos importantes Esses questionamentos nos indicam que somos
em termos de suas habilidades e de seu trânsito capturados constantemente pela tentação do
fora do ambiente hospitalar. conforto das formas e dos equilíbrios; indicam
Ou seja, é preciso enfrentar a absoluta falta de também que empreendemos, a todo o momento,
uma rede de equipamentos sociais - comunitários e processos de institucionalização da vida e que
familiares - que sirva de base de apoio e de local de ajudamos a modular os sistemas de saberes-
acolhimento, diversão e encontro para que as poderes que nos atravessam e a conservar as
pessoas não fiquem confinadas nas instituições, ou redes invisíveis de subjetivação moral, que sabotam
mesmo na família, e circulem pelas cidades. as forças vivas da vida, a potência do novo, do
Nesse sentido, as residências terapêuticas e os desconhecido, do inusitado, da diferença.
acompanhantes terapêuticos são dispositivos Chamamos isso de "desejos de manicômio".
potentes para propiciar a inserção do portador de Trata-se de uma lógica; são marcas invisíveis que
transtorno mental na cidade, para fazê-los circular produzem formas de subjetivações. Segundo
por outros circuitos, que não os cronificantes. Machado e Lavrador (2001), essa lógica se
Tanto a primeira categoria de problemas expressa "através de um desejo em nós de
(referente à dinâmica institucional e à organização dominar, de subjugar, de classificar, de
do processo de trabalho) quanto a segunda (sobre hierarquizar, de oprimir e de controlar.
a ausência de equipamentos de suporte social) não Esses manicômios se fazem presentes em toda
são suficientes para nos fazer avançar na e qualquer forma de expressão que se sustente
compreensão daquilo que caminha na contramão numa racionalidade carcerária, explicativa e
do processo de reforma psiquiátrica, na medida em despótica" (p. 46).
que se constitui como obstáculo às equipes e aos Entretanto, o mais importante é que essa lógica
gestores. manicomial não está restrita a um campo específico
Há algo mais que resiste à desinstitucionalização de práticas. Ou seja, a fabricação desses modos de
e que insiste na manutenção da lógica manicomial, existência, capturados em sua força de invenção,
aspecto que será abordado a seguir. de devires fascistas que se voltam em nome da
O terceiro e último ponto observado para discutir razão, à correção de tudo o que escapa à
as questões da reinserção dos portadores de normalidade, à vigilância ininterrupta para não
transtornos mentais é um desafio que, apesar de sairmos da ordem, à produção de práticas e
estar presente no cotidiano, é pouco palpável tecnologias de disciplinarização é algo que
porque implica acompanhar movimentos invisíveis perpassa o cotidiano, que alimenta os modos pelos
não de sujeitos ou de pessoas, mas de "operações quais circulam as pessoas nos espaços sociais,
estratégicas do desejo" (ROLNIK, 1989). nossos atos e formas de pensar.
Essa faceta dos problemas/desafios ganha Portanto, não é algo produzido especificamente
sentido numa indagação spinozana, que poderia no contexto da saúde mental; são movimentos que

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atravessam o socius, o tornar-se humano viver, pensar e sentir" capazes de afirmar a
contemporâneo. Isso quer dizer que eles envolvem potência de efetuação da vida, a partir da invenção
todos nós; estão dentro e fora dos muros dos permanente de práticas aptas a deflagrar
hospitais. movimentos de singularização a desmascarar tais
Nesse sentido, as novas modalidades códigos, revelar os movimentos de apropriação, de
terapêuticas, tais como os serviços substitutivos, exploração, de etiquetamento, de controle e de
não garantem, por si só, a superação desse desejo produção de cronicidade, ou seja, daqueles que
de exclusão e de exploração que carregamos. buscam manter o manicômio vivo.
Ancoramo-nos em Santos (2001) para pensar a São exatamente nesses movimentos de
reforma psiquiátrica como movimento social mais inssurreição que se encontram as possibilidades de
amplo onde "as formas de opressão e de exclusão ruptura com o instituído e com as supostas "boas
contra as quais lutamos não podem ser abolidas intenções" que não nos permitem ousar, "sair da
com a mera concessão de direitos, como é típico da linha". Não se trata de estabelecer fórmulas prontas
cidadania, mas exigem uma reconversão global dos de como agir, de como ser inventivo, tampouco de
processos de socialização" (p. 261). desqualificar esses aspectos que emperram
Ou seja, trata-se de um processo de determinados processos vitais.
desinstitucionalização do social, do nosso apego à Ao contrário, o que se pontua é exatamente a
formas de vida institucionalizadas, em que é preciso impossibilidade de desconhecermos ou não
produzir "um olhar que abandona o modo de ver discutirmos o funcionamento de um sistema
próprio da razão" (ABOU-YD E SILVA, 2003, p. 41), produtor de subjetividades assujeitadas.
abrir uma via de acesso à escuta qualificada da Nosso compromisso é com a participação em um
desrazão e considerar outras rotas possíveis que bloco de forças que tenha a potencialidade de
possam não apenas lutar contra a sujeição romper e gerar estímulos capazes de produzir
fundante da sociabilidade capitalista, mas também mudanças na ordem estabelecida, nos modelos de
instigar a desconstrução cotidiana e interminável atenção e nas práticas profissionais cronificadas.
das relações de dominação. Trata-se, pois, de ir em busca de milagres em
Ou seja, é fazer a revolução do dia-a-dia dentro favor do inesperado e do imprevisível que só
e fora dos serviços de saúde. podem nos tocar se sentirmos o hálito do mundo
Diante disso nos perguntamos: contra o que em nossa pele.
devemos lutar, então? Contra o que precisamos
provocar insurreições, inconformações, terrorismo? REFERÊNCIAS
Alguns inconformados, espalhados pelo mundo,
dizem: contra idéias letais e asfixiantes (BEY, ABOU-YD, Miriam Nadim & SILVA, Rosimeire. A
2003), contra o fácil trajeto dos obedientes lógica dos mapas: marcando diferenças.
(PASSETTI, 2004), contra o espírito de rebanho In: Loucura, Ética e Política: escritos militantes. São
produzido por nós mesmos (CASTELO BRANCO, Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 40-48.
2004), contra os desejos de manicômio que nos ALVERGA, Alex e DIMENSTEIN, Magda. Salud
atravessam (ALVERGA E DIMENSTEIN, 2005b), mental en la atención básica. Construyendo la
contra os amoladores de faca, sábios, especialistas, integralidad en el Sistema Unico de Salud en
pastores da alma, da ciência, da culpa, do medo, Brasil. Revista Alternativas en Psicología, México,
que criam a necessidade de tutela de diversas p. 67-77, 2005a.
ordens (BAPTISTA, 1999). ALVERGA, Alex e DIMENSTEIN, Magda. A
Consideramos que nosso desafio para a loucura interrompida nas malhas da subjetividade.
reinserção social de portadores de transtornos In: AMARANTE, P. (Org.). Archivos de Saúde
mentais, além de produzir alternativas concretas, Mental e Atenção Psicossocial 2. Rio de Janeiro:
em termos de equipamentos, alternativas, serviços NAU, 2005b, p. 45-66.
etc., seja, principalmente, o de "produzir modos de
58
BAPTISTA, Luis Antonio. A cidade dos sábios. ao encontro das prerrogativas da nova política de
São Paulo: Summus, 1999. saúde mental do Ministério da Saúde, a partir da
BARROS, Regina Benevides. Reforma década de 1990, que redireciona paulatinamente os
Psiquiátrica Brasileira: resistências e capturas em recursos da assistência psiquiátrica hospitalar para
tempos neoliberais. In: Loucura, Ética e Política: um modelo substitutivo, baseado em serviços de
escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, base comunitária e territorial.
2003, p. 196-206. Uma política que se consolida e ganha
BARROS, Regina Benevides. A Psicologia e o impulso com a promulgação da Lei Federal 10.216,
Sistema Único de Saúde: quais de 06 de abril 2001, que dispõe sobre a proteção e
interfaces? Psicologia & Sociedade, 17(2), 2005, p. os direitos das pessoas portadoras de transtornos
21-25. mentais e reestrutura o modelo assistencial em
… saúde mental no Brasil.
Assim, as Residências Terapêuticas surgem
neste contexto, conhecido como Reforma
6. AS RESIDÊNCIAS TERAPÊUTICAS E AS Psiquiátrica, a partir da Portaria 106/2000 do
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL Ministério da Saúde. Um contexto marcado por um
conjunto de transformações nos conhecimentos
RESUMO teóricos, nas estratégias de intervenção, nos
valores culturais e sociais que se materializam no
O serviço de Residência Terapêutica surge no processo interventivo dos serviços de atenção a
Brasil visando à atenção integral ao indivíduo com saúde mental no Brasil, como a Residência
transtorno mental priorizando a inserção social Terapêutica.
desses indivíduos. O presente artigo busca Diante deste contexto o objetivo desta pesquisa
investigar de que forma as Residências é investigar de que forma as Residências
Terapêuticas contribuem para a inserção dos Terapêuticas contribuem para a inserção dos
indivíduos com transtornos mentais no contexto indivíduos com transtornos mentais no contexto
comunitário a que pertencem. Através do aporte comunitário a que pertencem. Através da pesquisa
teórico de autores tais como: Barcelar (2006) bibliográfica acredita-se que as Residências
Scarcelli (2002), Alves (2005) dentre outros que Terapêuticas podem contribuir significativamente
abordam a temática é possível afirmar que as para a inserção dos indivíduos com transtornos
parcerias são fundamentais para o êxito do mentais no seio da comunidade, resgatando sua
processo de reabilitação psicossocial realizado a identidade, além de proporcionar um atendimento
partir das Residências Terapêuticas. A integração mais humanizado.
de práticas e conhecimentos é fundamental ao
desenvolvimento e a qualidade de vida dos
moradores. Palavra-chave: residência terapêutica; As Residências Terapêuticas
inserção social; integração.
O Serviço Residencial Terapêutico, mais As Residências Terapêuticas são moradias
conhecido como Residência Terapêutica faz parte inseridas na comunidade, destinadas a pessoas
da Política Nacional de Saúde Mental do Ministério que em algum momento de suas vidas foram
da Saúde que tem como premissa básica a alcunhadas de “loucas” e se tornaram dependentes
implantação e consolidação de um modelo de do chamado manicômio, privadas do convívio social
atenção à saúde mental voltado para a inserção e do seu direito de ir e vir.
social dos portadores de transtornos mentais na Deste modo, caracteriza-se como um serviço
comunidade. substitutivo, que visa o atendimento dos portadores
Trata-se de uma política pública de atenção de transtornos mentais egressos de longo período
integral ao portador de transtorno mental, que vai

59
de internação psiquiátrica e que não possuem realocação dos recursos da Autorização de
vínculo familiar e/ou suporte social. Internação Hospitalar para o recurso orçamentário
O processo de desinstitucionalização não deve do município que irá implantar o serviço.
ser compreendido como sinônimo de Assim, conforme preconiza a legislação nacional,
desospitalização, uma vez que se trata de um o Sistema Único de Saúde realiza o
processo complexo, que demanda a implantação de descredenciamento dos leitos hospitalares para a
uma rede de atenção comunitária à saúde mental desospitalização dos pacientes para as Residências
sólida e integrada. Terapêuticas. Segundo a Portaria 175/2001, que
“A Residência Terapêutica se constitui como altera o artigo 7º da Portaria 106/2000, a
dispositivo no processo de desinstitucionalização Residência Terapêutica deverá estar vinculada aos
das pessoas acometidas de transtorno mental, com serviços ambulatoriais especializados em saúde
o intuito de promover a construção da sua inserção mental, como os Centros de Atenção Psicossocial e
na comunidade”. contar com uma equipe mínima responsável pelo
As residências se constituem como espaços de acompanhamento dos moradores, composta por
habitação e de reconstrução de laços sociais e um profissional médico e dois profissionais com
afetivos para as pessoas que se encontravam formação em ensino médio e capacitação ou
confinadas nos hospitais psiquiátricos. “No experiência em reabilitação psicossocial (BRASIL,
ambiente residencial não são mais considerados 2001).
pacientes e sim moradores” (CAVALCANTI, 2005, De acordo com Scarcelli (2002) esta equipe será
p. 32). responsável por desenvolver um projeto terapêutico
O Ministério da Saúde, ao criar as que tenha como objetivo promover a construção
Residências Terapêuticas, a partir da Portaria progressiva da autonomia dos moradores,
106/2000, estabeleceu as características necessária à realização de atividades sociais e
necessárias à criação e ao funcionamento deste cotidianas, integrando-os ao ambiente comunitário.
serviço, e dentre elas destaca-se: as características Para tanto, deverá desenvolver intervenções
físicas e funcionais das Residências Terapêuticas, voltadas à inserção em atividades de trabalho,
recursos financeiros para implantação do serviço, a atividades escolares, atividades domésticas da
equipe que irá atuar na assistência aos portadores própria casa, lazer e cultura, entre outras.
de transtornos mentais, os princípios e as diretrizes Em outro momento deste texto serão tratadas
do Projeto Terapêutico que deverá ser desenvolvido com mais detalhes as diretrizes e princípios do
(BRASIL, 2004). projeto terapêutico, bem como as características de
Em relação às características físicas e funcionais uma equipe responsável pela implantação de uma
das Residências Terapêuticas, cada casa deve Residência Terapêutica. Como parte da
estar inserida em bairros da cidade, ou seja, em reestruturação da política de saúde mental no Brasil
contato com a comunidade. Nela deverá morar um foi criado também o programa “De volta para Casa”.
número de pacientes que pode variar de uma Este programa foi criado pelo Ministério da
pessoa até no máximo um pequeno grupo de oito. Saúde a partir da Lei nº 10.708, de 31 de julho de
A casa precisa ser mobiliada com equipamentos 2003, que atualmente destina uma bolsa-auxílio
necessários à realização das atividades domésticas reabilitação psicossocial no valor de R$ 412,001
(higiene pessoal, preparo de alimentos, lavagem de para o portador de transtorno mental que ficou
roupas, entre outros), possuir até três dormitórios e internado por um período de dois anos ou mais em
oferecer o mínimo de três refeições. instituição psiquiátrica.
Para a manutenção desta estrutura (aluguel da Trata-se de um benefício muito importante
casa, mobiliário, eletrodomésticos, telefone, água, no acompanhamento dos moradores nas
luz etc.), bem como para o pagamento dos Residências Terapêuticas, uma vez que possibilita
profissionais que formarão a equipe de assistência, o acesso do morador a bens de consumo pessoal
os recursos financeiros são provenientes da (roupas, produtos de higiene pessoal), a atividades

60
de lazer e cultura (teatro, dança, cinema, viagens), vulnerabilidade destas pessoas. Para tanto, afirma
a eletrodomésticos (som, secador de cabelo, Alves (2005, p. 16): “É imprescindível que haja uma
máquina fotográfica), ao transporte (coletivo, taxi, reformulação da legislação existente, ou seja, uma
moto-taxi), entre outras possibilidades que revisão da Lei 10.708/2003, no sentido de rever os
favorecem o exercício de sua cidadania. critérios de acesso e concessão do programa.
Um programa que funciona como um “Ainda segundo o referido relatório é necessário
importante parceiro das Residências Terapêuticas também estabelecer um critério de reajuste anual
na construção progressiva da autonomia dos da bolsa auxílio baseado no salário mínimo”.
moradores, contribuindo de forma efetiva para sua Assistência em saúde mental realizada no Brasil
inserção na comunidade e para a garantia dos é marcada durante o século XX por uma assistência
direitos civis do cidadão. predominantemente manicomial.
Em 2003, ano de criação do “De Volta para Apesar das críticas iniciadas na década de 1970
Casa” foram beneficiados 206 portadores de ao modelo manicomial, das estratégias e mudanças
transtorno mental em todo o Brasil e em 2010 o propostas pela reforma psiquiátrica, no sentido de
programa já contava com 3.754 beneficiários. humanizar e melhorar a qualidade da assistência
Segundo o Relatório de Gestão do Ministério da em saúde mental, havia no Brasil, ao final do ano
Saúde (2010) trata-se de um número muito 2000, 60.868 leitos em hospitais psiquiátricos e 40
pequeno de beneficiários. Apesar dos avanços, Residências Terapêuticas. No ano seguinte, 2001,
Cavalcanti (2005) afirma que apenas 1/3 do número o cenário da política de saúde mental de base
estimado de pessoas com transtorno mental que territorial não estava muito diferente.
poderiam receber este benefício o recebem. O Ministério da Saúde destinava 79,54% dos
Esta realidade pode ser atribuída a alguns recursos do Sistema Único de Saúde aos hospitais
fatores que dificultam o processo de psiquiátricos e apenas 20,46% aos serviços de
desinstitucionalização como: problemas de saúde mental extra-hospitalares.
documentação dos pacientes, número insuficiente Atualmente, segundo o Cadastro Nacional de
de residências terapêuticas e também grande Estabelecimentos de Saúde da área técnica da
dificuldade para a desinstitucionalização das saúde mental (BRASIL, 2010), no Brasil há 32.735
pessoas com um tempo muito de longo de leitos psiquiátricos e 570 Residências Terapêuticas.
internação psiquiátrica devido à idade avançada, a Apesar da redução significativa dos leitos e o
comorbidades que demandam uma estrutura aumento considerável no número de residências
adaptada das Residências Terapêuticas, terapêuticas, trata-se ainda de um número muito
profissionais capacitados e em maior número, baixo.
consequentemente um custo maior para a sua Tal realidade pode ser atribuída às dificuldades
manutenção. técnicas e políticas e a realocação dos recursos
Diante desta realidade há a perspectiva de financeiros nos níveis federal, estadual e municipal,
criação do Serviço Residencial Terapêutico de que se constitui como um principal obstáculo à
Cuidados Intensivos, que irá possibilitar o aumento expansão deste serviço.
significativo de beneficiários do programa. Essas dificuldades podem ser superadas
É importante destacar que, de acordo com o segundo algumas deliberações da IV Conferência
relatório da IV Conferência Nacional de Saúde Nacional de Saúde Mental, que propõem uma
Mental (2010), faz-se necessário ampliar e garantir revisão da Portaria 106/2000, criando novas formas
o acesso do programa De Volta para Casa não de financiamento para a Residência Terapêutica,
apenas ao portador de transtorno mental egresso em parceria com segmentos da intersetorialidade
de longo período de internação psiquiátrica, mas que resulte em alocação de recursos para além
também aos usuários de saúde mental egressos do daqueles provenientes da Autorização de
sistema penitenciário, aos moradores de rua e/ou Internação Psiquiátrica.
andarilhos, devido ao histórico de exclusão social e
61
E também ampliação do direito à Residência pacientes e inserção social das pessoas usuárias
Terapêutica aos usuários de saúde mental sem do serviço de saúde mental”.
referência familiar que não sejam egressos de Pode-se afirmar que na Residência Terapêutica
hospital psiquiátrico. Há também um estudo do residem os moradores e não mais os pacientes.
Ministério da Saúde, para a criação de Residência A equipe para atuar em uma Residência
Terapêutica de Cuidados Intensivos, voltada para Terapêutica deve ser escolhida em função das
pessoas com grave dependência institucional que características dos moradores, ou seja, depende
demandem cuidado intensivo (por exemplo: dos níveis de desenvolvimento dos moradores nos
pessoas acamadas, idosas, com problemas de aspectos cognitivos, afetivo, físico e social.
saúde física). Deste modo, há casas que podem precisar de
Para Alves (2005) o processo de intervenção uma assistência intensiva durante 24 horas e há
realizado por uma equipe de saúde mental a partir outras em que não é necessário. No âmbito
das Residências Terapêuticas inicia-se com a nacional verifica-se que geralmente a equipe de
desospitalização dos portadores de transtornos uma Residência Terapêutica é formada por um
mentais de longa permanência nos hospitais profissional com ensino superior completo e por
psiquiátricos. profissionais que exercem a função de cuidadores.
Uma etapa muito importante em que os Os técnicos de referência podem ser
pacientes devem ser acompanhados nos hospitais profissionais com formação em Psicologia, Serviço
pela equipe da Residência Terapêutica com vistas à Social, Terapia Ocupacional ou Enfermagem, que
preparação para a desospitalização. De acordo com atuam principalmente no acompanhamento dos
Bacelar (2006) trata-se de um processo de moradores, bem como na orientação e supervisão
adaptação do paciente psiquiátrico, para a nova dos cuidadores (TENÓRIO, 2001).
vida em comunidade, como morador de Residência A capacitação específica em reabilitação
Terapêutica. Um acompanhamento que deve ser psicossocial é muito importante para a formação
marcado pelo respeito às diferenças e ao ritmo de continuada desses profissionais como, por
adaptação de cada pessoa. exemplo, a participação em cursos que abordem
O processo de intervenção que ocorre a partir da temas relacionados à atuação nas Residências
desospitalização pode ser facilitado por meio de Terapêuticas: relacionamento interpessoal,
discussões em grupo com a finalidade de procedimentos na administração de medicamentos,
possibilitar ao portador de transtorno mental a legislação em saúde mental, acolhimento e
expressão dos sentimentos que permeiam o acompanhamento dos moradores nas atividades de
processo de mudar para uma Residência vida diária, de vida prática e nas situações de crise.
Terapêutica como: o medo, a insegurança, as Esses cursos podem ser desenvolvidos a partir
dúvidas sobre as rotinas de uma casa, o sair pela de grupos de discussão entre os cuidadores e os
cidade, considerando sempre as suas técnicos de referência, apresentação comentada de
características e preferências pessoais. Pode-se filmes que abordam a temática da saúde mental,
afirmar que a desospitalização faz parte do vivências grupais com ênfase no relacionamento
processo de desinstitucionalização do portador de interpessoal e ainda palestras com profissionais
transtorno mental. Um processo amplo, que requer como: enfermeiros, farmacêuticos, dentre outros.
uma atuação interdisciplinar. Neste sentido, Esse processo de educação permanente dos
Medeiros e Guimarães (2002, p. 22) apontam: “É profissionais das Residências Terapêuticas se
necessário que a equipe da Residência Terapêutica configura como um instrumento primordial na
(enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, qualidade do acompanhamento realizado com os
cuidadores) atue em parceria com a equipe do moradores no seu processo de inserção social.
Centro de Atenção Psicossocial e de outros As intervenções realizadas pela equipe das
parceiros desse processo de ressocialização dos Residências Terapêuticas devem ser pautadas na
identificação das principais dificuldades
62
apresentadas pelos moradores, mais
especificamente em relação às habilidades Faz-se necessário enfatizar a relevância da
cotidianas e as habilidades sociais. Residência Terapêutica na reestruturação da saúde
Essas dificuldades representam um dos mental no Brasil, com vistas à integração social do
principais fatores que inibem o processo de portador de transtorno mental egresso de hospital
inserção social dos portadores de transtornos psiquiátrico. Um serviço capaz de acolher o
mentais, uma vez que as pessoas que portador de transtorno mental, de respeitar os seus
permaneceram por um longo período internadas em direitos como cidadão e como sujeito em condição
hospitais psiquiátricos apresentam acentuada de viver em comunidade, ou seja, prima pela
dificuldade na interação social, devido à grave qualidade de vida de seus usuários.
dependência institucional. As características da atenção em saúde mental
Segundo Bandeira e Ireno (2002) o déficit de preconizadas pela Residência Terapêutica apontam
habilidades sociais e cotidianas dificulta o para a complexidade do processo de
estabelecimento de relações interpessoais, eleva o desinstitucionalização, uma vez que pressupõem a
nível de estresse, inibindo o processo de inserção criação de novas formas de relações e do fazer em
social dos portadores de transtornos mentais. saúde mental, implicam em um constante
É importante destacar outro tipo de intervenção questionar e refletir sobre conhecimentos, normas,
que deve ser desempenhada pelos profissionais valores e costumes culturalmente determinados.
que atuam nas Residências Terapêuticas: a O processo de reabilitação psicossocial
sensibilização da comunidade. Esta intervenção desenvolvido a partir da Residência Terapêutica vai
configura-se como uma abordagem que envolve muito além do simples cumprimento de leis e
práticas educativas e informativas acerca do portarias.
trabalho realizado pela Residência Terapêutica, O exercício desse trabalho consiste em
enfatizando a relevância desse programa de questionar as intervenções instituídas e promover
reabilitação psicossocial para o desenvolvimento com responsabilidade novas intervenções, uma vez
dos portadores de transtornos mentais. que nenhum saber é absoluto e não existem
A sensibilização da comunidade também deve soluções pré- fabricadas sobre a prática em saúde
ser concebida como um processo cujo foco são as mental.
pessoas que convivem e que fazem parte do dia a
dia do morador: os vizinhos, os funcionários do REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
comércio local, a equipe do programa de saúde da
família, os policiais, entre outros. • ALVES, C. S. Projeto para implantação de
No processo de inserção social do portador de Residência Terapêutica. Volta Redonda:
transtorno mental não basta que apenas a equipe Coordenação do Programa de Saúde Mental da
de saúde mental do município compreenda a Secretaria de Saúde Municipal, 2005.
finalidade e os princípios norteadores da • BANDEIRA, M., Ireno, E. M. Reinserção
assistência em saúde mental desenvolvida pela Social de Psicóticos: Avaliação Global do Grau
Residência Terapêutica. de Assertividade, em Situações de Fazer e
É necessário que as pessoas de outros Receber Crítica. Psicologia Reflexão e Crítica,
segmentos da sociedade (educação, assistência v.13, n.3, p.665-675, 2002.
social, igreja, universidades, associações de bairro, • BRASIL, Ministério da Saúde. Gabinete
poder judiciário) entendam a relevância do serviço, Ministerial. Portaria nº 106 de 11 de fevereiro de
e ainda que eles podem atuar como agentes sociais 2000: Institui os serviços residenciais
no processo de inserção na comunidade dos Terapêuticos. Brasília: Ministério da Saúde,
portadores de transtornos mentais. 2000.
• SCARCELLI, I.R. Entre o hospício e a
Considerações Finais cidade: exclusão/inclusão social no campo da
63
saúde mental. 2002. 259f. Tese (Doutorado em subsistema de atenção diferenciada à saúde - o
Psicologia) - Universidade de São Paulo, 2002. Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-
SUS) - como parte integrante SUS. Portanto, essa
UNIDADE III lei constitui-se como o principal dispositivo legal da
7. POLÍTICA DE SAÚDE INDÍGENA NO BRASIL: saúde indígena.
REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE A partir de então, o Ministério da Saúde (MS)
IMPLEMENTAÇÃO DO SUBSISTEMA DE passou a ser responsável por estabelecer as
ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA políticas e diretrizes para promoção e recuperação
da saúde do índio, enquanto a Fundação acional de
Texto completo https://.icict.fiocruz.br Saúde (Funasa), órgão vinculado ao MS, passou a
André Luiz Martins ser responsável pela coordenação e execução das
INTRODUÇÃO ações de saúde.
O atual sistema público de saúde indígena foi
As políticas indigenistas se referem ao conjunto estabelecido há mais de uma década. Desde então,
de ações e atividades adotadas pelo Estado em uma série de dispositivos legais moldaram e
relação às populações indígenas que habitam seu regularam o funcionamento do sistema de saúde e
território. Nessa lógica, saúde, educação, meio instituíram modelos de gestão e atenção à saúde
ambiente, desenvolvimento sustentável podem ser bastante peculiares e complexos.
tratadas como políticas setoriais que constituem o O meu interesse pela temática da política de
indigenismo (OLIVEIRA, 1995). saúde indígena é fruto da minha inserção
O primeiro órgão de Estado criado, no início do profissional na área. Mergulhei nesse campo por ter
século passado, para proteger e assistir aos índios tido a oportunidade de vivenciar a execução da
foi o Serviço de Proteção aos Índios e Localização política de saúde indígena, de 2005 a 2008,
de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que, fazendo parte de uma equipe multidisciplinar de
posteriormente, ampliou suas atribuições, criando assistência à saúde indígena na região amazônica
um serviço de saúde para as populações indígenas, (Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio
e passou a se chamar Serviço de Proteção ao Índio Negro) e, posteriormente, de coordenar os serviços
(SPI). Antes da implantação desses órgãos, de saúde nessa região.
tradicionalmente, a igreja católica, por meio de seus Em função da transferência da gestão da saúde
missionários, prestava assistência ocasional aos indígena da Funasa para a Secretaria Especial de
índios. Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde no
Com a Constituição Federal (CF) e a criação do fim de 2010, atualmente continuo componho a
Sistema Único de Saúde (SUS), ambos em 1988, equipe de gestão da atenção à saúde indígena
foi reconhecido o direito dos povos originários às nessa Secretaria, sediada em Brasília-DF, que por
suas terras e a um tratamento diferenciado a eles. sua vez colabora na definição de estratégias de
Na década de 90, frente às insatisfações sobre a execução, monitoramento e avaliação das ações de
atuação da Funai no campo da saúde indígena, saúde, na perspectiva da melhoria contínua e
eclodiram uma série de movimentos indígenas que aperfeiçoamento da política pública.
reivindicavam a criação de subsistema de saúde Envolvi-me na política de saúde indígena por
diferenciado e universal para a população indígena, entender a complexidade da relação entre o Estado
que seria gerido pelo Ministério da Saúde e que brasileiro e os povos indígenas, e por acreditar que
lhes garantiria a participação nos processos de o poder público pode atuar de forma mais
planejamento, execução e avaliação da política substantiva e ser capaz de ofertar serviços de
pública. saúde de qualidade aos povos indígenas que
A Lei Arouca (Lei nº. 9.836), de 1999, – que vivem, muitos deles, à margem das políticas
incluiu o capítulo V na Lei Orgânica do Sistema públicas.
Único de Saúde (SUS) – Lei nº 8.080/90 – criou um

64
Apesar de que na primeira década de existência da macropolítica. Nesse contexto, esse estudo
do subsistema um intenso processo de implantação pretende refletir e propor melhorias para o
de distritos sanitários e, consequentemente, de uma Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, que é
rede de serviços de atenção à saúde diferenciada - objeto dessa pesquisa.
que contemplasse e respeitasse aspectos da
cultura e da multiplicidade étnica - tenha ocorrido, ASPECTOS SOCIAIS E DEMOGRÁFICOS DOS
poucos são os estudos que se propuseram analisar POVOS INDÍGENAS
o processo de implementação do subsistema.
Um dos raros esforços de avaliação do As comunidades indígenas, povos e nações são
subsistema partiu do Projeto VigiSUS 1 II/Funasa, aqueles que, tendo uma continuidade histórica com
financiado pelo Banco Mundial, que realizou um a pré-invasão e as sociedades pré-coloniais que se
diagnóstico situacional do subsistema de saúde desenvolveram em seus territórios, consideram-se
indígena e apresentar propostas para implantação distintas dos outros setores das sociedades
de novos modelos de atenção, gestão existentes atualmente naqueles territórios (ONU,
financiamento, organização e monitoramento & 2004).
avaliação. Esse trabalho foi realizado por um Eles formam setores não dominantes da
consórcio formado pelo IDS (Institute of sociedade e estão determinados a preservar,
Development Studies), SSL (Saúde Sem Limites) e desenvolver e transmitir às futuras gerações os
Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e seus territórios ancestrais e sua identidade étnica,
Planejamento). como base da sua existência continuada como
A existência de poucos estudos que traçam uma povos, em conformidade com os padrões culturais,
análise sobre o histórico da política de saúde com as instituições sociais e com o sistema legal
indígena, bem como os percursos que levaram à que lhe são próprios (ONU, 2004).
atual configuração, e, também, da carência de A compreensão sobre o conceito de "povos
pesquisas institucionais e não institucionais sobre o indígenas e tribais" também está contida no artigo
desenvolvimento da política de saúde têm 1º da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e
dificultado o conhecimento da dimensão de seus Tribais em Países Independentes, aprovada pela
resultados, informação esta que pode ser utilizada Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ao
para melhorar a concepção sobre a implementação invés de uma definição, o documento indica que a
da política de saúde, para fundamentar decisões e Convenção se aplica:
para melhorar a prestação de contas. a) Aos povos tribais em países independentes,
A reflexão sobre o subsistema também é cujas condições sociais, culturais e econômicas os
importante para o órgão público responsável pela distingam de outros setores da coletividade
condução da política, uma vez que pode oferecer nacional, e que estejam regidos, total ou
subsídios para a tomada de decisão sobre a parcialmente, por seus próprios costumes ou
continuidade ou não da política de saúde, sobre a tradições ou por legislação especial;
necessidade ou não de intervenções, rearranjos, b) Aos povos em países independentes,
ajustes, ou mesmo correção de rumos. Além disso, considerados indígenas pelo fato de descenderem
esse estudo pode contribuir para a produção de de populações que habitavam o país ou uma região
conhecimento sobre a necessidade de melhorias no geográfica pertencente ao país na época da
desenvolvimento da política de saúde indígena. conquista ou da colonização ou do estabelecimento
Por se tratar de tema complexo e abrangente, e das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for
em função de minha atual posição profissional - sua situação jurídica, conservam todas as suas
membro integrante de uma equipe técnica do nível próprias instituições sociais, econômicas, culturais e
central responsável por formulação e políticas, ou parte delas.
implementação da política de saúde indígena no
país - adotou-se como campo de trabalho a análise
65
Ainda segundo a convenção, a autoidentificação nesse percurso - e, por consequência ocorreu um
indígena é considerada como um elemento incremento na auto identificação da população – e
fundamental na sua definição. Em uma base por ter ocorrido (iii) aumento da natalidade entre
individual, uma pessoa indígena é aquela que indígenas (BRASIL, 2010f).
pertence aos povos indígenas por meio da A composição por sexo e idade da área urbana
autoidentificação como indígenas (consciência do revela características semelhantes àquelas dos não
grupo) e é reconhecida e aceita pelo grupo como indígenas. Diferentemente das áreas urbanas, as
um dos seus membros. Isso preserva a essas pirâmides das áreas rurais possuem bases mais
comunidades o direito soberano e o poder de alargadas e cúspides reduzidas, com uma
decidir quem pertence a eles, sem interferências diminuição mais acentuada dos grupos à medida
externas. que a idade das pessoas aumenta. Este
No Brasil, ainda são muito pouco estudos e, comportamento reflete os diferenciais tanto de
consequentemente, muito pouco conhecidas as fecundidade como de mortalidade existentes entre
diversas dimensões da dinâmica demográfica dos as situações do domicílio da população indígena
povos indígenas (PAGLIARO, AZEVEDO & (BRASIL, 2010e).
SANTOS, 2005). De acordo com a Funai, os índios,
Historicamente, as fontes de dados oficiais - historicamente, eram vistos pela sociedade
recenseamentos, censos periódicos e registros de envolvente a partir de um conjunto de imagens e
eventos vitais sobre as populações indígenas - crenças amplamente disseminado pelo senso
sempre foram bastante precárias, podendo oscilar comum: são os donos da terra, os primeiros
com o tempo em função de interesses políticos e do habitantes do país, estão em processo de
Serviço de Proteção ao Índio/Funai (PAGLIARO, desaparecimento e são parte de um passado.
AZEVEDO & SANTOS, 2005). Recentemente, no entanto, os diferentes
A partir de 1999, com a criação do subsistema e segmentos da sociedade brasileira estão se
a implementação dos 34 DSEI, a Funasa também conscientizando de que os índios são seus
iniciou um levantamento demográfico da população contemporâneos, vivem no mesmo país, participam
indígena aldeada, que seria atendida pelo da elaboração de leis, elegem candidatos e
subsistema de saúde e, consequentemente, compartilham problemas semelhantes, como
cadastrada no Sistema de Informação da Atenção à asconsequências da poluição ambiental e das
Saúde Indígena (SIASI) - criado para subsidiar a diretrizes e ações do governo nas áreas da política,
gestão da saúde indígena. economia, saúde, educação e administração
Anteriormente ao SIASI, até 1999, as pública em geral (BRASIL, 2013a).
informações de saúde dos povos indígenas eram Mesmo com uma mudança de concepção em
gerenciadas pela Funai. Em geral, dados vitais, curso, as populações indígenas ainda são vistas
particularmente nascimentos e óbitos, eram pela sociedade brasileira ora de forma
coletados nas aldeias sem que fossem preconceituosa, ora de forma idealizada. As
consolidados, analisados ou divulgados populações rurais, muitas vezes dominadas política,
satisfatoriamente (COIMBRA & SANTOS, 2000; ideológica e economicamente por elites municipais
SANTOS & COIMBRA, 2003). com fortes interesses nas terras dos índios e em
No início da implantação do subsistema, a seus recursos ambientais, necessitam disputar as
população indígena aldeada cadastrada no SIASI escassas oportunidades de sobrevivência em sua
era de apenas 306.849 indígenas. A Funasa região com membros de sociedades indígenas que
destaca que o crescimento da população no aí vivem (BRASIL, 2013a).
período de 2000 a 2010 está relacionado ao fato de Por esses motivos, utilizam estereótipos,
que houve (i) melhoria no cadastramento dessa chamando-os de "ladrões", "traiçoeiros",
população pelos serviços de saúde, (ii) novas terras "preguiçosos" e "beberrões", enfim, de tudo que
indígenas foram oficialmente sendo reconhecidas possa desqualificá-los. Procuram justificar, desta
66
forma, todo tipo de ação contra os índios e a atuou em desfavor aos interesses indígenas,
invasão de seus territórios. Já a população urbana, ocasionando perdas territoriais e de condições de
que vive distanciada das áreas indígenas, tende a vida, e desrespeito aos direitos à diferença étnica
ter deles uma imagem favorável, embora os veja (GARNELO et al, 2003).
como algo muito remoto (BRASIL, 2013a). No Brasil, tradicionalmente, a igreja católica se
imbuiu da missão de cuidar dos problemas de
ANTECEDENTES CONSTITUCIONAIS DA saúde dos povos indígenas, além de “catequizá-
POLÍTICA DE SAÚDE E DA SAÚDE INDÍGENA los”.
No início do século XX, frente ao surgimento de Antes da criação do Serviço de Proteção aos
grandes frentes de expansão no interior do país Índios (SPI), houve atendimento ocasional à saúde
(abertura de estradas e atividades agropecuárias) dos índios por parte dos missionários, e foi a partir
foi criado, por meio do Decreto n° 8.072, de 20 de de 1910, com a criação de SPI, que se iniciou uma
junho de 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e intervenção mais acentuada do Estado de um modo
Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), geral. Um dos objetivos do SPI era o de atender os
vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e problemas de saúde indígena (LANGDON, 1999).
Comércio, que objetivava tanto a proteção e Nesse período, chamado de “Estado Novo”, o
integração dos índios, quanto à fundação de país iniciava a construção das bases da máquina
colônias agrícolas que se utilizariam da mão-de- administrativa, ou seja, de um estado administrativo
obra encontrada pelas expedições oficiais. Seria a e interventor, caracterizado por forte tendência
primeira política nacional voltada para esses povos. centralizadora e autoritária. Para isso foi criada uma
O SPILTN se caracterizou por reproduzir o poder série de órgãos do poder executivo: institutos,
do Estado, por meio de uma política de autarquias, fundações, sociedades de economia
centralização e monopólio sobre os nativos, mista com o objetivo de intervir nas relações
assentado na premissa de que havia um problema econômicas para industrializar o país (LIMA
de interação entre os índios e não índios (LIMA, JÚNIOR, 1998).
1995; OLIVEIRA, 1995). Nesse contexto, o SPI se incumbia da missão
A ideia de proteção das populações indígenas de prestar assistência à saúde para os povos
em contato com não índios, contida na própria sigla indígenas. Entretanto, a assistência à saúde às
do órgão, pressupunha uma atuação que visava populações indígenas foi esporádica e não
minimizar os inevitáveis conflitos gerados pela sistemática (COSTA, 1987). O SPI não possuía um
ocupação de territórios indígenas por diversos corpo médico próprio e nem desenvolvia programas
agentes econômicos em expansão, tais como de ações de saúde sistematizados. Suas
madeireiras, empresas de garimpo e outras intervenções se restringiam ao atendimento às
agroempresas. [...] Assim, diversas foram as emergências relativas a surtos epidêmicos
tentativas de implementação de atividades (CONFALONIERI, 1993).
econômicas ‘modernas’ entre os povos indígenas: As avaliações do SPI revelam o paradoxo de sua
inserção de novas culturas agrícolas, tentativas de atuação: se por um lado, diversas tribos indígenas
produção para o mercado, modificações nas formas foram salvas da extinção total, por outro lado, a
tradicionais de organização do trabalho (GARNELO "pacificação das tribos hostis ocasionou a
et al, 2003, p.38-39). disseminação da fome, de doenças, da
O fato é que o modelo da política indigenista – desintegração tornando os índios parte do grupo
centrada na concepção de que os povos indígenas mais miserável dos segmentos marginais da
seriam mais primitivos que outros grupos humanos, sociedade" (RIBEIRO, 1982).
e, portanto, necessitariam percorrer uma trajetória Com a chegada dos militares ao poder, em 1964,
evolutiva incorporando-se as atividades produtivas a reforma administrativa da burocracia estatal
– associado a dificuldades do órgão indigenista em passou a fazer parte da agenda governamental de
cumprir a tarefa de defesa dos direitos indígenas, forma recorrente, fundamentalmente alicerçada na
67
modernização autoritária, expansão do Estado e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde
descentralização dos serviços públicos (LIMA- caberiam ofertar ações de saúde pública, como as
JÚNIOR, 1998). Nesse período retomou-se a ideia vigilâncias sanitária e epidemiológica, e o controle
do índio como obstáculo para o desenvolvimento do de doenças transmissíveis (PIOLA et al, 2009).
país, momento em que se agravava o processo de O modelo de saúde adotado desde a década de
decadência do SPI. 70, impulsionado pela crescente industrialização do
O período correspondente à chegada dos país – principalmente a partir da década de 50 -
militares ao poder até meados da década de 70 foi fora denominado de médico-assistencial-privatista,
marcado por radicais transformações do arcabouço caracterizado por Buss (1995, p. 76) como:
institucional e financeiro no campo das políticas a) o Estado como grande financiador do sistema,
sociais: regras, mecanismos de operação e através da Previdência Social e como prestador de
financiamento foram definidos, criando-se, assim, o serviços aos não integrados economicamente;
núcleo duro e centralizado da intervenção social b) o setor privado nacional como o maior
que culminou com a consolidação do Welfare State prestador de serviços de assistência médica;
no Brasil (DRAIBE, 1990). Draibe (1990, p. 09) c) o setor privado internacional como o mais
caracteriza esse período como: significativo produtor de insumos, especialmente
[...] momento em que efetivamente se organizam equipamentos biomédicos e medicamentos;
os sistemas nacionais públicos ou estatalmente A Funai substituiu o SPI e estabeleceu uma
regulados na área de bens e serviços sociais Divisão de Saúde para cuidar da assistência à
básicos (educação, saúde, assistência social, saúde das populações indígenas, que se daria por
previdência e habitação), superando a forma meio de Equipes Volantes de Saúde (EVS)10. O
fragmentada e socialmente seletiva anterior, SUSA11, por sua vez, deixou as ações de saúde
abrindo espaço para certas tendências para a divisão da Funai e passou a atuar apenas
universalizantes, mas principalmente para a com Tuberculose (COSTA, 1987).
implementação de políticas de massa, de Entretanto, esse sistema - pautado por ações
relativamente ampla cobertura. esporádicas e por assistência individual - não
Entretanto, a partir da organização do sistema de logrou êxito, não foi efetivo, tampouco adequado,
proteção social brasileiro, Draibe (1990) identificou principalmente em função do despreparo dos
uma série de problemas sobre o funcionamento profissionais de saúde, da falta de recursos, da
desse sistema: (i) alto grau de ineficiência e desorganização e da falta de coordenação dos
ineficácia de programas sociais; (ii) superposições serviços (COSTA, 1987).
de competências, objetivos e mecanismos São argumentos que corroboram com as
operadores; (iii) desvios de alvos nos programas análises de Confalonieri (1989) sobre a atuação da
sociais; (iv) formatação estanque das carência Funai frente ao atendimento de saúde em áreas
sociais, fragmentando e pulverizando recursos indígenas, caracterizada por:
humanos e financeiros; (v) ausência de
mecanismos e controle e avaliação de programas [...] um modelo de pouca eficácia, que esbarrou
sociais e (vi) graus exagerados de instabilidade e em várias dificuldades, dentre as quais a falta de
descontinuidade de programas sociais. planejamento e integralidade das ações; política
No campo da saúde, antes da criação do SUS, a de remuneração não contempladora de tempo
gestão era fortemente centralizada em dois órgãos integral; carência crônica de infraestrutura e
federais que compartilhavam funções diferentes recursos; falta de articulação com outros níveis de
funções e clientelas. Ao Ministério da Previdência e atenção; ausência de um sistema de informações
Assistência Social (MPAS), como era chamado à em saúde e o preparo inadequado de quadros
época, caberia ofertar assistência médico-hospitalar para atuação em comunidades indígenas
aos trabalhadores vinculados formalmente ao distintas.
mercado de trabalho. Ao MS, com apoio das
68
Garnelo e colaboradores (2003), por sua vez, todas as distorções, vale a pena sublinhar que as
destacam que a Funai, ao longo de décadas de ações de saúde pública, de tipo preventivo –
atuação, sempre esteve distante dos debates a atendidas tão somente com 15% dos recursos
cerca da necessidade de organização de sistemas públicos aplicados na área, contra 85% dirigidos à
locais de saúde que pudessem dar contar de medicina curativa – foram recorrentemente
atender as necessidades sanitárias dos povos incapazes de garantir melhorias constantes nos
indígenas, ou seja, ofertar serviços regulares e indicadores sociais mais importantes, tais como os
programadas baseados nos cuidados primários à de mortalidade, morbidade e esperança de vida.”
saúde e na prevenção de agravos. Não obstante os problemas relacionados à
Na tentativa de realizar uma expansão dos política setorial de saúde indígena e à saúde
serviços médico-assistenciais a segmentos da pública no país, o Indigenismo sempre vivenciou
sociedade não inseridos no mercado de trabalho foi problemas e contradições. Por ter sido conduzida
criado, em 1981, o Conselho Consultivo de num ideal de auto sustentabilidade, a politica
Administração da Saúde Pública (CONASP) com o indigenista brasileira não fora suficientemente
propósito de reorganizar os serviços de assistência subsidiada por recursos do tesouro nacional, mas
médica e reduzir seus custos. financiada por meio da exploração das riquezas
O CONASP lançou um plano em 1984 cujos naturais das terras indígenas para custear ações e
desdobramentos representaram as primeiras atividades programadas. Essa atuação gerou
experiências de integração do sistema de saúde, diversos problemas, a saber: dificuldade de gestão
através da implantação das Ações Integradas de dos recursos financeiros, dificuldade de controle
Saúde (AIS), em 1986, e do Sistema Unificado e transparente de recursos, redução de investimentos
Descentralizado de Saúde (SUDS), em 1987 estatais e pouca participação indígena na condução
(PIOLA et al, 2009). das intervenções do Estado (GARNELO et al,
A insatisfação da classe média da população em 2003).
relação a esse modelo (MAGALHÃES, 2001) e a O Estatuto do Índio segue o mesmo conceito do
baixa cobertura da assistência médica – estimativas Código Civil brasileiro de 1916 e considera os
da época evidenciavam que cerca de metade da povos indígenas como "relativamente capazes",
população brasileira à época não estava protegida sendo tutelados por um órgão estatal.
e coberta por nenhum sistema previdenciário, e A Constituição de 1988 dá um novo tratamento
para serem assistidos em saúde dependiam de aos povos indígenas: reconhece sua identidade
caridade e filantropia, (PIOLA, 2009) – alimentavam cultural própria e diferenciada (organização social,
o clima de fortes tensões no setor saúde. costumes, línguas, crenças e tradições),
Apresentando alguns indicativos das distorções assegurando o direito de permanecerem como
da assistência à saúde, Draibe (1990, p. 20) índios e explicita como direito originário (que
destaca: antecede a criação do estado) o usufruto das terras
“No que se refere às ações de saúde pública e que tradicionalmente ocupam. Segundo a CF, cabe
ao atendimento hospitalar de urgência são bem ao Estado zelar pelo reconhecimento destes
conhecidas as restritas e más condições em que direitos por parte da sociedade. O papel do Estado
essa minguada face ‘universal’ do direito à saúde passa, então, da tutela de pessoas para a tutela de
vem sendo realizada. Num modelo de tipo direitos.
‘hospitalocêntrico’, que privilegiou a assistência Diante desta mudança, tornou-se necessária a
médica de natureza ambulatorial e hospitalar, revisão do Estatuto do Índio. Neste sentido, foram
apoiado prioritariamente por recursos da apresentados na Câmara Federal três projetos de
Previdência Social (Inamps) e fortemente lei que ainda aguardam aprovação do Congresso
assentado na compra de serviços junto ao setor Nacional: um de autoria do Poder Executivo e
privado (responsável por 70% dos atos médicos do outros dois de autoria de organizações não
sistema) – em tal sistema, como dizíamos, além de governamentais. A revisão do Estatuto do Índio é
69
uma das principais demandas dos povos indígenas do país, tampouco para discutir a necessidade de
hoje no Brasil, ao lado da demarcação das suas uma verdadeira reforma do aparelho do Estado.
terras. A Carta dedicou um capítulo aos direitos
Em função das incongruências entre as indígenas especialmente sobre as terras que
assertivas constitucionais e do Estatuto do Índio, os ocupam, ao reconhecimento de seus “costumes,
dispositivos atuais do Estatuto permanecem línguas, crenças e tradições”, além de lhes conferir
vigentes naquilo que não confrontam a proteção territorial. Segundo Langdon (1999) a “CF
Constituição. Por isso, sua leitura deve ser feita de 88 é considerada uma das mais avançadas
com a cautela de singularizar os aspectos que sobre a questão indígena”.
requerem adaptação ao novo texto constitucional. O O envolvimento do movimento indígena, de
aspecto mais importante é que a ótica da tutela de organizações não governamentais ligadas à
pessoas foi substituída pela da tutela de direitos. questão indígena, universidades e igrejas nas
décadas de 1970 e 1980 foi fundamental para o
A CONSTITUIÇÃO DO SUS E DO estabelecimento do conjunto de direitos indígenas
SUBSISTEMA DE SAÚDE INDÍGENA na CF. Nessa trajetória, e frente à necessidade do
estabelecimento de uma política efetiva para o
Na década de 80, o Brasil vivia um período de atendimento à saúde das populações indígenas, foi
crise de legitimidade do Estado autoritário, crise realizada em 1986 a 1° Conferência Nacional de
financeira e crise existencial, esta última provocada Proteção à Saúde do Índio (CNPSI).
principalmente pela derrocada do então modelo Os povos indígenas reivindicavam a criação de
desenvolvimentista nacional dos militares e pela sistema de saúde específico e universal que lhes
inexistência de um novo modelo de garantiria a participação nos processos decisórios
desenvolvimento que guiasse a ação do Estado. de planejamento, execução e avaliação de ações e
atividades, o qual seria gerido por uma agência
[...] o modelo estatista de desenvolvimento governamental ligada ao Ministério da Saúde,
adotado pelo regime militar nos anos 70, como sendo esta, além de responsável pela execução
uma extensão fora do tempo da estratégia de das ações de atenção primária à saúde, também
substituição de importações nacional- pela gestão de recursos humanos baseada em
desenvolvimentista de Getúlio Vargas entrava concursos públicos e plano de cargos e salários.
em crise final. Crise fiscal, crise do No entanto, estudando as relações entre o SUS
intervencionismo estatal e da exagerada e a saúde indígena, Garnelo (2012), destaca que:
proteção à indústria nacional (PEREIRA, 1998,
p. 173). “na forma original como o SUS foi concebido, a
[...] a crise política, depois de um logo população indígena não representava uma de suas
processo de negociação, levaria à transição prioridades, posto que à época, a prestação de
democrática no inicio de 1985, era, portanto cuidados à saúde desses grupos ainda estava sob-
também uma crise da burocracia estatal, na responsabilidade do órgão indigenista” (GARNELO,
medida em que se identificava com o sistema 2012, p.23).
autoritário em pleno processo de degeneração
(PEREIRA, 1998, p.173). Inúmeras forças políticas advogavam em prol de
reformas nas finanças públicas, e principalmente de
Nesse período de transição democrática e mudanças profundas relacionadas à administração
discussão acerca da concepção da Carta Magna de pública como a (i) democratização do Estado, (ii)
88, a sociedade brasileira e grande parte do poder descentralização política, financeira e administrativa
legislativo não estavam preocupadas com as e (iii) a reforma do serviço civil, que vieram com a
questões econômicas e com a gravidade da crise Constituição de 88 (ABRUCIO, 2007).

70
Baseado no diagnóstico de que os dispositivos entidades “públicas não-estatais” gerou uma série
constitucionais por si só não seriam suficientes para de implicações e repercussões no campo das
resolver os problemas crônicos, históricos e políticas sociais.
estruturais da administração pública, o governo Inúmeras questões poderiam ser levantadas à
Fernando Henrique Cardoso, em 1995, cria o época: como universalizar um sistema de saúde
Ministério da Administração e Reforma do Estado num período de crise fiscal e reformas
(MARE) – nomeando como ministro Luis Carlos administrativas neoliberais que são fortemente
Bresser Pereira - cujas atribuições e alimentadas pela redução de gastos, redução do
responsabilidades eram de formular políticas para a tamanho do estado, privatizações e terceirizações?
reforma do Estado, reforma administrativa, Como o Estado poderia cumprir com os dispositivos
modernização da gestão e promoção da qualidade constitucionais de garantir o direito à saúde integral
no serviço público; e lança o Plano Diretor da a toda população e democratizar o processo
Reforma do Estado (PDRE), objetivando promover decisório num momento de forte movimento de
mudanças profundas na administração pública terceirização da saúde à organizações não-
brasileira. estatais? De que forma o Estado e a sociedade
É a introdução da política de “Estado mínimo” poderiam concretizar a implementação do SUS num
concebida, como descreve Abrucio (2007, p. 71), cenário tão adverso?
sob uma plataforma “que ressaltava, sobretudo, o O único princípio organizativo do SUS que não
que havia de mais negativo na CF de 1988 e feria as concepções e as ideias neoliberais era a
apoiava-se fortemente no estudo e tentativa de descentralização, ainda que por si só, como
aprendizado em relação à experiência internacional destaca Levcovitz e colaboradores (2001, p. 272)
recente, marcada pela construção da nova gestão não garantidora do “caráter democrático do
pública”. O PDRE preconizava a reforma da processo decisório” e “insuficiente para a
administração pública baseada em três dimensões: concretização dos demais princípios dos SUS”.
(1) uma dimensão institucional-legal, através da Para regular o arrojado processo de
qual se modificam as leis e se criam ou modificam descentralização foram editadas e instituídas uma
instituições; (2) uma dimensão cultural, baseada na série de Normas Operacionais Básicas (NOB).13
mudança dos valores burocráticos para os No final da década de 90 o país experimentou
gerenciais; e (3) uma dimensão-gestão. um intenso processo de descentralização do SUS,
Uma série de avanços foi obtida por meio da mediado principalmente pelas Normas
reforma Bresser: (i) a continuação e o Operacionais Básicas (NOB)/1993 e NOB n°
aperfeiçoamento da reforma do serviço civil, (ii) 1/1996, que culminou em avanços – como aumento
grande reorganização administrativa do governo da produtividade e efetividade das ações e queda
federal, com destaque para a melhoria substancial na mortalidade infantil nos municípios
das informações da administração pública (iii) o municipalizados -, mas com alguns problemas –
fortalecimento das carreiras de Estado, (iv) como a expansão dos sistemas municipais sem
aperfeiçoamento do ideal meritocrático contido no articulação regional, políticas de restrição do
chamado modelo weberiano (v) instituição das atendimento a pacientes de municípios vizinhos
Emendas Constitucionais n° 19 e 20, e (vi) (PIOLA, et al. 2009).
promoção de debates no âmbito federal sobre No campo da saúde indígena, a política de
novas formas de gestão pública em busca da estado mínimo:
melhoria do desemprenho (ABRUCIO, 2007). [...] influenciou decisivamente na produção das
De outro lado, essa política caracterizada por atuais dificuldades enfrentadas pelo subsistema de
mínima intervenção estatal, redução da saúde indígena, limitando a capacidade de resposta
abrangência estatal, ajuste fiscal, reordenamento por parte do Ministério da Saúde, a cuja carência de
das finanças públicas, privatizações, e condições estruturais somou-se o amargo embate
descentralização das ações de estado para com o órgão indigenista, que tampouco dispunha
71
das condições necessárias para prover atenção à indígena nacional, o ano de 1999 é considerado um
saúde (GARNELO, 2004, p. 9). marco histórico para a saúde indígena no Brasil: o
Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-
A natureza e a alternância das responsabilidades SUS) seria estabelecido como componente do
e competências institucionais delegadas por Lei, na Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Lei nº.
década de 90, à Fundação Nacional de Saúde 9.836/99, onde o MS passaria a ser responsável
(Funasa), MS e Funai resultaram em uma estrutura por estabelecer as políticas e diretrizes para
complexa e confusa de serviços de saúde, marcada promoção e recuperação da saúde do índio, e a
por diversos conflitos de interesse e contradições. Funasa seria responsável pela execução das
As conclusões da II Conferência Nacional de ações.
Proteção à Saúde Indígena, que ocorra em 1993, O subsistema teria a árdua missão de adotar um
haviam ratificado as recomendações da conferência modelo de organização da rede de serviços
anterior de que a gestão da saúde indígena deve pautado por uma abordagem diferenciada e global,
ser de responsabilidade do Ministério da Saúde, ao levando em conta as especificidades étnicas e
mesmo tempo em que reivindicaram maior culturais dos povos indígenas (BRASIL, 1999c).
participação social no processo decisório, A viabilização do acesso dos povos indígenas a
investimentos em infraestrutura e qualificação de uma rede de serviços básicos – por meio da
recursos humanos e a adoção de um modelo de implantação dos Distritos Sanitários Especiais
atenção diferenciado. Indígenas (DSEI) –, organizados, hierarquizados,
Diversos aspectos estruturais e conjunturais com participação dos povos indígenas e com
merecem destaque para melhor compreender os recursos humanos qualificados em quantidade
avanços e retrocessos, desafios e desajustes das necessária para o desenvolvimento de ações de
políticas sociais no Brasil nesse período, atenção à saúde, além da garantia de referência
especialmente a saúde, num país tão diverso, especializada na rede SUS, ficariam sob
desigual e imenso. responsabilidade da Funasa, enquanto à Secretaria
Os obstáculos estruturais como a desigualdade de Atenção à Saúde (SAS) do MS caberia a
social marcante, persistência de traços do modelo articulação com estados e municípios para garantir
assistencial-privatista, características de um que as populações indígenas tivessem acesso às
federalismo no qual os entes federativos são ações e serviços do SUS em qualquer nível de
autônomos e não vinculados hierarquicamente; complexidade (BRASIL, 1999b).
somado às dificuldades conjunturais da época Aspectos importantes relacionados à
determinadas pelo movimento de “reformas conformação e estruturação da gestão da saúde
estruturais” – baseadas nos ideais neoliberais de indígena, ao modelo assistencial adotado, bem
redução do tamanho do Estado – que culminaram como ao processo de distritalização sanitária
com forte política de ajuste fiscal, privatização de instituído, a partir da implantação do subsistema de
empresas estatais, e redução do quadro de saúde indígena, em 1999, até o ano de 2010, serão
funcionalismo público caracterizam um cenário abordados no próximo capítulo.
tenso, adverso e complexo para a implementação
da política de saúde de caráter universal na década ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DO SUBSISTEMA
de 90 (LEVCOVITZ et al, 2001).
A política setorial da saúde indígena também Um modelo de gestão deve contribuir para a
padeceu das consequências conjunturais e da plena realização dos modelos de atenção, de
associação de todos esses fatores, o que organização, de financiamento e de monitoramento
inviabilizou o projeto de garantir assistência à saúde e avaliação, desde que a gestão seja conceituada
indígena diferenciada, universal e de qualidade. como a atividade e a responsabilidade de dirigir um
Face às históricas desigualdades e iniquidades sistema de saúde, mediante o exercício de funções
no acesso aos serviços de saúde pela população de coordenação, articulação, negociação,

72
planejamento, acompanhamento, controle, assistencial, relações entre o SUS e o subsistema,
avaliação e auditoria. e participação social:
Há em todo o mundo dois modelos fundamentais • Financiamento de responsabilidade da
de gestão em saúde: o Modelo Flexneriano, de União, com custeio e execução das ações de
1910, e o Modelo Dawsoniano, de 1920, os quais forma complementar pelos Estados, Municípios,
até hoje servem de referência para a organização outras instituições governamentais e não-
dos sistemas de saúde (NOVAES, 1990). governamentais;
O modelo de Abraham Flexner, originário do • Concordância com os princípios do SUS no
início do século XX nos Estados Unidos da que tange a descentralização, hierarquização e
América, é baseado num paradigma regionalização;
fundamentalmente biológico e fundamentado na • Implantação do modelo de Distritos Sanitário
especialização da medicina orientada ao indivíduo. Especial Indígena;
(NOVAES, 1990). • Acesso garantido ao SUS, em âmbito local,
O modelo de Bertrand Dawson, médico e regional e de centros especializados,
membro do Conselho Consultivo do Ministério da considerando-se os serviços ambulatoriais e
Saúde do Reino Unido, se reporta à experiência da hospitalares do SUS como referência ao
Inglaterra desde 1600, com as primeiras leis de Subsistema de Atenção à Saúde Indígena; para
proteção aos pobres, recomendando em seu isso recomendam-se adaptações na estrutura e
relatório de 1920 a regionalização dos serviços, organização do SUS nas regiões onde residem
como forma de coordenar os aspectos preventivos as populações indígenas.
e terapêuticos, chamando atenção para a urgência • Direito da população indígena à participação
de se estabelecer então uma política de saúde de organismos colegiados de formulação,
construtiva (NOVAES, 1990). acompanhamento e avaliação das políticas de
O SUS, concebido por influência do modelo saúde, tais como o Conselho Nacional de Saúde
Dawsoniano, que preconiza um sistema e os Conselhos Estaduais e Municipais de
compreensivo, universal, integral e equânime, Saúde.
capaz de incluir toda a população
indiscriminadamente é, ao mesmo tempo, operado As atribuições da Funasa, com relação à saúde
como sistema de consumo de bens e serviços cada dos povos indígenas, foram estabelecidas por meio
vez mais especializados, funcionando por inércia do da Portaria MS-GM Nº 1.163/1999 (BRASIL,1999b),
modelo flexneriano adotado pela previdência social em seu Artigo 2º:
na atenção à saúde dos segurados e pelas escolas
de formação profissional para a saúde, em “I – promover a implantação dos Distritos
consequência da influência americana do pós- Sanitários Especiais Indígenas – DSEI, visando
guerra (RAGGIO, et al., 2009). facilitar o acesso dos povos indígenas às ações
Um dos desafios do Subsistema de Saúde e serviços básicos de saúde, observando os
Indígena, de inspiração Dawsoniana, como o seguintes aspectos:
próprio SUS, é o de superar o conflito original com a organização de cada distrito deve ser
o modelo Flexneriano para dar conta da atenção à entendida como um processo a ser construído
saúde integral e equânime a toda a população com a participação dos povos indígenas,
indígena brasileira, uma vez que as tensões e observando os seus próprios conceitos e
dificuldades na operacionalização de um sistema de práticas relativos às suas condições de viver e
saúde em contexto intercultural são maiores. morrer;
A Lei Arouca, que instituiu o subsistema de b) cada distrito deverá contar com uma rede
saúde indígena, definiu em seus dispositivos hierarquizada de serviços para atenção básica
aspectos gerais sobre o financiamento, modelo dentro das terras indígenas;

73
c) o acesso às estruturas assistenciais de principalmente aos povos indígenas que vivem em
maior complexidade, localizadas fora dos aldeias e/ou territórios indígenas.
territórios indígenas, deverá se dar de forma Aos estados e municípios cabem garantir,
articulada e pactuada com os gestores através da rede de serviços dos SUS, retaguarda
municipais e estaduais; para o subsistema, ou seja, promover a oferta de
II – garantir a referência para a atenção à serviços especializados e de maior complexidade
saúde de média e alta complexidade na rede de aos problemas de saúde que não forem
serviços já existentes, sob gestão do estado ou solucionados no âmbito da atenção básica pelas
do município; equipes de saúde dos DSEI.
III – garantir a participação dos povos Com o objetivo de fortalecer a rede SUS nos
indígenas nas instâncias de controle social municípios de referência para a população
formalizados em nível dos DSEI, por meio dos indígena, a mesma portaria instituiu dois incentivos
Conselhos Locais e Distritais de Saúde; que seriam repassados para municípios e/ou
IV – conduzir a implantação e unidades hospitalares: Fator de Incentivo de
operacionalização dos serviços de saúde de Atenção Básica aos Povos Indígenas e o Fator de
atenção básica desenvolvidos nos DSEI; [...] Incentivo para a Assistência Ambulatorial,
VII – realizar acompanhamento, supervisão e Hospitalar e de Apoio Diagnóstico à População
avaliação das ações desenvolvidas pelos DSEI; Indígena.
VIII – promover condições necessárias para o O fato é que, com o modelo de gestão adotado
processo de capacitação dos profissionais de pela Funasa, os DSEI não dispuseram de
saúde e educação permanente dos agentes autonomia administrava e financeira para gerenciar
indígenas de saúde e dos instrutores / plenamente os serviços de saúde indígena.
supervisores” Estabeleceu-se uma relação de subordinação
política-institucional ao Desai, e administrativa às
A estrutura responsável pela política de saúde Coordenações Regionais da Funasa nos estados.
indígena dentro da Funasa foi o Departamento de Os DSEI concentraram a organização e
Saúde Indígena (Desai), ligado à presidência da operacionalização dos serviços de saúde. As
instituição, cujas competências foram instituídas por equipes de saúde eram coordenadas por uma
meio da Portaria MS nº 1.776/2003 com atribuição equipe técnica que ficava na sede de cada DSEI,
precípua de “promover, proteger e recuperar a sob a gerência da chefia do distrito.
saúde dos povos indígenas, segundo De outro lado, as questões relacionadas à
peculiaridades, o perfil epidemiológico e a condição gestão administrativa e financeira dos DSEI –
sanitária de cada comunidade” (BRASIL, 2003). como: aquisições de medicamentos, insumos
Nesse contexto, para operacionalizar a política estratégicos para a saúde, materiais de expediente,
de saúde indígena, o DSEI foi criado e organizado equipamentos de saúde, passagens e diárias,
como sendo a menor estrutura funcional do contratos em geral, gestão de orçamento e
subsistema. O DSEI tem entre suas principais pagamentos – eram dirigidas pelas Coordenações
atribuições planejar, organizar e operacionalizar – Regionais da Funasa nos estados.
de forma direta ou indireta – ações e serviços de O Desai administrava as relações político-
saúde para os povos indígenas, com base nas institucionais, bem como coordenava, em todo
necessidades de saúde desses povos e nos território nacional, processo de gestão do
princípios e diretrizes organizativas do SUS. Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no
As ações e serviços organizados pelos DSEI se âmbito do Sistema Único de Saúde.
concentram no campo daquilo que se convencionou Athias & Machado (2001, p. 426), analisando a
denominar de Atenção Básica em Saúde, também formatação da atuação da Funasa no início de
conhecida internacionalmente como Atenção ou implantação do modelo de Distrito Sanitário já
Cuidados Primários à Saúde, sendo dirigidos ressaltava a presença de: “algumas distorções
74
quanto ao aspecto de autonomia orçamentária e A QUESTÃO DOS RECURSOS HUMANOS E A
financeira dos DSEI. O modelo administrativo TERCEIRIZAÇÃO
adotado pela Funasa contém duas vertentes. Na
primeira as Coordenações Regionais da Funasa Desde o início da implantação do subsistema, a
atuam como ordenadoras de despesas e, por Funasa/MS vinha buscando superar os limites à
conseguinte, controlam os recursos financeiros contratação de pessoal para o setor público,
destinados aos Distritos; na segunda modalidade imposto em grande medida pela política de
administrativa, o nível central da Funasa realiza a austeridade fiscal assumida pelo Estado brasileiro
celebração de convênios com organizações não com a Lei de Responsabilidade Fiscal, por meio do
governamentais, Secretarias de Saúde e estabelecimento de parcerias.
universidades para execução dos serviços de A Funasa concentrava parcerias com entidades
saúde nas áreas indígenas”. regidas pelo direito privado - classificadas como
Como tentativa de aprimorar a política nacional Organizações Não Governamentais (ONG) -, sendo
de atenção à saúde indígena e o modelo de gestão, a maioria delas empresas de consultoria de
além de melhor especificar as atribuições do MS, recursos humanos, fundações privadas ligadas a
estados e municípios, da Funasa e suas estruturas, universidades; e associações ligadas a igrejas, a
foi publicada a Portaria GM/MS n° 70/2004. povos indígenas e a categorias profissionais.
Ainda sobre os arranjos de gestão instituídos Os serviços públicos, como saúde, educação,
pelo subsistema, Raggio et al (2009, p. 118) assistência e previdência social, cujo exercício é
destacam a existência de três aspectos livre a iniciativa privada, podem ser prestados
contraditórios: diretamente pelo Estado ou por particulares e,
“O primeiro aspecto aponta para a necessária neste último caso, o Estado pode fomentar a
centralização da gestão, por se tratar de atribuição atividade privada por meio da concessão de
legal específica da União e por cautela em evitar o subvenções, transferindo recursos para, a partir da
acirramento de conflitos entre os povos indígenas e conjugação de esforços com tais agentes, ampliar a
as administrações municipais, em franca oposição oferta destes serviços relevantes, e sempre
ao processo de descentralização do Sistema escassos, para a população.
Nacional de Saúde em sua conversão ao SUS. As subvenções sociais devem ser transferidas
Segundo, a introdução da saúde indígena em por meio da celebração de convênio ou de
uma autarquia que vinha se dedicando com instrumento que preveja parâmetros, diretrizes e
crescente exclusividade à política de saneamento metas para o desenvolvimento da atividade
básico em municípios de 50 mil habitantes ou subvencionada.
menos, tendo redução de quadros próprios por Na prática, no entanto, o que se observou ao
cessão aos estados e municípios em favor da longo dos primeiros anos de implantação do
descentralização. subsistema de saúde indígena não foi a atuação
Terceiro, a impossibilidade de que a Funasa complementar, mas a transferência praticamente
fosse totalmente responsável pela gestão de um integral das atividades de execução das ações de
subsistema que não pode deixar de ser integral e atenção à saúde indígena por parte da Funasa para
equânime, fora do seu alcance tanto em quadros organizações não governamentais, o que
operacionais, quanto em estruturas de regulação, consubstancia não apenas violação das normas
controle e avaliação, haja vista a designação da mencionadas, relativas às transferências ao setor
SAS, no mesmo ato que a Funasa, para construir a privado, burla à norma constitucional que determina
organização da assistência á saúde dos povos a prévia realização de concursos públicos para
indígenas pela Portaria MS-GM 1.163”. contratação de pessoal, como cria rotineiramente
sérias embarações e comprometimento da regular
continuidade e eficiência das ações de atenção à
saúde indígena.
75
Na região Amazônica, no início da implantação citados não se faziam presentes. Assim, temos
do subsistema, a maior parte dos convênios foi convênios firmados com organizações não
firmada com organizações indígenas, enquanto que governamentais não indígenas distribuídos no
nas regiões Nordeste e SulSudeste, em função da eixo sulsudeste e centro-oeste do país, e uma
carência de instituições minimamente preparadas presença minoritária na Amazônia” (GARNELO,
para estabelecer convênios com a União, a opção 2004, p. 11).
encontrada foi a descentralização de recursos para
os sistemas municipais assumirem a execução das A partir dos anos 90 – em especial no período
ações. de governo Fernando Henrique Cardoso, no qual se
Nos primeiros anos de implantação do estabeleceu um projeto de reforma gerencial - o
subsistema, grande parte dos convênios celebrados país viveu um período de “crise do Estado”,
recebiam recursos previstos nos planos de trabalho caracterizado pela redução de sua capacidade de
não apenas para a contratação de profissionais de intervenção na economia e na implementação de
saúde, mas também para aquisição de insumos políticas públicas, transferindo para a sociedade a
estratégicos para a saúde (medicamentos, execução das políticas sociais.
materiais odontológicos, materiais médico- Confrontando as diferentes formas de
hospitalares), combustível, aquisição de bens participação social no campo das políticas sociais,
(carros, barcos, motos, motores de popa, mobiliário Silva e colaboradores (2005, p. 376-377) destacam
em geral, equipamentos médico, de enfermagem e que:
odontológico) e construção de postos de saúde e “A participação da sociedade na execução das
polos base. políticas sociais também sofreu uma grande
A celebração de convênios no SUS não era uma alteração a partir dos anos 1980. Na conjuntura da
prática desconhecida, porém fora abandonada luta pela democratização do país, consolidou-se no
devido aos problemas burocráticos desse arranjo campo da atuação privada, até então dominada
jurídico-institucional, que frequentemente pelas entidades de cunho filantrópico, um novo
ocasionava morosidade, interrupção de repasses elenco de atores sociais voltados à promoção da
orçamentários, descontinuidade da prestação de sociedade como protagonista de sua própria
serviços de saúde nas aldeias indígenas transformação. Movimentos sociais e organizações
(GARNELO, 2004). não governamentais (ONGs) passam a atuar na
Entretanto, assim como destacam Garnelo & implementação de projetos sociais de diversos
Sampaio (2005, p.1218), o formato assumido pela conteúdos, visando dotar comunidades e grupos
“terceirização em saúde indígena não encontra sociais de protagonismo social em um Estado
correspondente em qualquer área do SUS, que autoritário e numa realidade social marcada pela
mantém a compra de serviços de entidades exclusão, discriminação e pobreza.”
privadas, mas sem renunciar a execução direta de “Já no contexto democrático, em especial durante
ações através de serviços próprios”. os anos 1990, o campo da participação social na
“A geopolítica da terceirização mostra uma execução de políticas sociais foi reforçado a partir
concentração de convênios firmados com de um registro diverso de questões, cuja referência
entidades indígenas na Amazônia, onde o se deu em torna da chamada ‘crise do Estado’”.
movimento indígena estava mais bem O fato é que essa arena é marcada por inúmeras
aparelhado em termos administrativos, tendo ambiguidades, paradoxos, incertezas, tensões e
alguma condição de lidar com a burocracia conflitos, principalmente em relação ao papel e
estatal. No nordeste do país foi firmado um atuação da sociedade civil, do Estado e as formas
grande número de convênios com as prefeituras. desejadas de participação social como instrumento
As entidades indigenistas não governamentais de melhoria da gestão das políticas sociais.
surgem como curinga, assumindo os convênios Na saúde indígena, a partir dos anos de 1999, o
onde dois agentes políticos anteriormente movimento indígena, especialmente na região

76
amazônica - organizado por meio de organizações, prefeituras municipais que recebiam incentivos
associações e federações indígenas –, passou a financeiros do MS.
exercer não apenas o seu papel controlador do As relações entre a Funasa e as conveniadas,
Estado, que compreende um conjunto de ações que particularmente as indígenas, começam a
objetivam zelar, fiscalizar, acompanhar, participar enfraquecer após a troca de governo em 2003. As
dos fóruns de debate sobre o sistema de saúde, e dificuldades encontradas pelas conveniadas para
cobrar das instituições e do governo por serviços de se estabelecer um diálogo profícuo com o
saúde de qualidade para suas comunidades Desai/Funasa no sentido de buscar soluções para
indígenas, mas também inaugurou uma relação os problemas estruturais do subsistema de saúde
inovadora com o Estado assumindo a indígena nos DSEI, bem como dos diversos
responsabilidade pela execução da política de problemas judiciais ocasionados pelos sucessivos
saúde indígena. atrasos nos repasses orçamentários para a
“Os discursos indígenas demonstraram uma provisão de serviços de saúde, as denúncias
clara decisão de obter, através do campo da saúde, veiculadas na imprensa nacional sobre a má
uma intensificação e aprimoramento da ação utilização de recursos pelas convenentes, as
política do movimento indígena, numa ação pressões do Desai para que as conveniadas se
contraditória em que a utopia da autodeterminação convertessem em Organizações da Sociedade Civil
é alimentada pela vinculação com o poder de de Interesse Público (OSCIP) no intuito de acelerar
Estado”. as prestações de serviços de saúde, e as
Acrescenta ainda que, do pondo de vista das mudanças na direção nacional do Desai
lideranças indígenas, a terceirização da saúde corroboraram para agravar a crise entre o Estado e
apresenta “potencialidades para a ocupação de as entidades conveniadas entre 2003 e 2004.
novos espaços de poder e para buscar a resolução Garnelo (2004), analisando a política de saúde
de problemas e propostas de transformação da indígena, ressaltou que as disputas políticas entre a
sociedade indígena através da própria iniciativa Funasa e as convenentes, as constantes mudanças
indígena, face ao descrédito da capacidade, ou de regras na condução da política de saúde, as
vontade, do Estado em fazêlo” (GANELO & evidências de indício de distorção na aplicação de
SAMPAIO, 2005, p. 1221-22). recursos públicos por parte de algumas
A questão é complexa e contraditória uma vez conveniadas e as sucessivas interrupções na oferta
que, se por um lado o processo de terceirização da de serviços de saúde nas aldeias dificultavam a
saúde indígena às organizações indígenas não lhes construção do subsistema de saúde.
garantem autonomia, autogestão, e exigem um “A correção de rumos em políticas sociais exige
aprendizado burocrático e práticas de gestão que sensibilidade e paciência, pois se há intenção do
não fazem parte de suas lógicas de organização e atual governo em abolir a política de Estado
atuação, por outro lado, é inegável que o mínimo e investir numa estruturação efetiva do
movimento pela distritalização sanitária indígena poder público, há que se reconhecer que
promoveu um fortalecimento administrativo e mudanças tão súbitas não combinam com a
gerencial das entidades indígenas e uma interação delicada tarefa de preservar a vida humana. Além
mais respeitosa entre as minorias étnicas e o disso, todos sabemos que a distância entre a
Estado brasileiro (GANELO & SAMPAIO, 2005, p. intenção de prestar uma atenção de qualidade e
1222). gesto de concretizá-la é ainda bem maior do que
Um período de redução da atuação do Estado na desejaríamos” (GARNELO, 2004, p. 25).
implementação de políticas públicas, o subsistema
de saúde indígena começava a ser implantado em Após uma série de denúncias sobre mau uso de
todo o país, por um lado com quadro reduzido de recursos por algumas entidades conveniadas, em
servidores da fundação, por outro lado com suporte 2004, já no primeiro mandato do governo Lula, com
entidades conveniadas com a Funasa e das as portarias n° 69 e n° 70, são estabelecidas as

77
novas diretrizes da saúde indígena: a Funasa tenta incentivos repassados pela SAS/MS (44,9%), ou
retomar a execução direta do atendimento, por meio das organizações não governamentais
reduzindo a participação e o papel das conveniadas com a Funasa (37,1%) (Tabela 04)
organizações conveniadas, que se restringiram, a (RAGGIO, et al, 2009).
partir de então, à contratação e administração de Equipes de saúde não estava sob seu comando.
pessoal. Parte dos trabalhadores era selecionada e
A Funasa afirma que a experiência de convênio contratada pelos municípios e outra parte
com ONG indígena não foi totalmente satisfatória, contratada pelas conveniadas, ambos com
devido a inúmeras impropriedades e improbidades autonomia para definir as equipes. Os DSEI apenas
registradas em auditorias internas e externas, tendo exerciam as funções de organizar e coordenador as
por consequência a finalização de diversos ações de saúde realizadas pelas EMSI, além de
convênios. A título de ilustração, no ano de 2002, prover os meios logísticos e os suprimentos.
dos 20 convênios em situação de inadimplência, 14
eram convênios com ONG indígena (BRASIL,
2010b). FINANCIAMENTO DA SAÚDE INDÍGENA

O financiamento das políticas de saúde tem se


O fato é que a estruturação efetiva do Estado
destacado como matéria relevante do ponto de
para assumir diretamente a execução da política de
vista econômico há pouco tempo. As funções do
saúde indígena não ocorreu, pois era necessário
Estado, até a década de 30 eram relativamente
que a Funasa fortalecesse seu corpo de
pequenas e a questão do financiamento da saúde
funcionários, e a relação de dependência do órgão
não estava dentro do aparelho do Estado, uma vez
gestor no estabelecimento de parcerias com
que as ações de saúde – que geralmente consome
entidades públicas e privadas, por meio do
a maior fatia dos gastos em saúde – eram, em
instrumento de convênio, não cessou.
grande medida, financiadas pelos usuários dos
A própria Funasa reconheceu que “a ausência
serviços, fundos de previdência, organismos
de concurso público durante todos esses anos foi,
filantrópicos (MÉDICI, 2002).
também, decisiva na busca de outros mecanismos
O problema do financiamento da saúde pública
de contratação de recursos humanos para atuarem
está relacionada a inúmeras questões que
na atenção à saúde dos povos indígenas”. “Os
envolvem desde a estrutura tributária dos países –
servidores disponíveis na Fundação Nacional de
que define a parcela de recursos a serem aplicados
Saúde para esta missão, até hoje, são
pelo Estado para a implementação das políticas
quantitativamente insuficientes e, como estratégia,
públicas – até a definição pelo pacto federativo e
optou-se, também para o financiamento desta
pelos arranjos institucionais (ABREU &
atividade por meio de convênios com organizações
BENEVIDES, 2004).
não governamentais, organizações indígenas,
Nos países desenvolvidos, que investem parcela
prefeituras e universidades, que participaram de
considerável do seu produto interno bruto (PIB) em
forma importante neste processo” (BRASIL, 2010b).
saúde, cresce a preocupação com a eficiência,
A carência de informações oficiais sobre a
efetividade e equidade nos gastos, uma vez que o
evolução do quadro de recursos humanos da saúde
incremento nos dispêndios com serviços médico-
indígena prejudica a elaboração de uma análise
assistenciais não redundam, necessariamente, em
mais qualificada. Entretanto, dados publicados por
melhores condições de saúde e nem resolvem,
uma consultoria, contratada para realizar um
automaticamente, as iniqüidades no acesso aos
diagnóstico da saúde indígena no Brasil, revela
serviços. Nos países em desenvolvimento, por sua
que, em 2007, existiam 12.926 trabalhadores,
vez, existe o problema adicional de estender a
sendo que, apenas 10,2% total eram servidores da
cobertura a toda a população e de atender as
Fundação, e a grande maioria é terceirizada,
exigências de financiamento setorial em
contratada por meio das prefeituras municipais com
concorrência com outras necessidades de
78
desenvolvimento social e econômico. (RIBEIRO, destinado a apoiar a implantação de agentes de
PIOLA & SERVO, 2005). saúde indígena e de equipes multidisciplinares para
De uma maneira geral, nos países desenvolvidos atenção à saúde das comunidades indígenas – e o
e em desenvolvimento, a maior parte do fator de Incentivo para a Assistência Ambulatorial,
financiamento da saúde, provém de fontes públicas Hospitalar e de Apoio Diagnóstico à população
– a exceção mais importante são os Estados indígena (IAE-I) – destinado aos estabelecimentos
Unidos, onde a maior parte dos recursos é hospitalares que considerem as especificidades da
originária de fontes privadas. Nos países da assistência à saúde dessas populações e que
Organização para Cooperação e Desenvolvimento ofereçam atendimento diferenciado às mesmas, em
Econômico (OCDE) a maior pare do financiamento seu próprio território ou região de referência.
– em torno de 70% - provém de fontes No entanto, verificou-se ao longo dos anos que a
administradas pelo poder público. Na América utilização dos dois incentivos transferidos, por meio
Latina, onde predominam sistemas segmentados, a do Fundo Nacional de Saúde, para os municípios e
participação de recursos públicos é bem menor – hospitais ainda prescindia de regulamentação,
inferior a 50%. O desembolso direto - forma mais principalmente pela ausência de regras e critérios
iníqua e instável de financiamento - é, equitativos nos mecanismos de alocação de
paradoxalmente, maior nos países mais pobres recursos, e também pela carência de
(OMS, 2000). monitoramento, transparência, avaliação e controle
No Brasil, pela CF de 1988, o financiamento do na aplicação dos recursos.
SUS foi definido como competência comum da Apenas em 2007, por meio da Portaria nº
União, estados, Distrito Federal e municípios, 2.656/GM/MS15 (que posteriormente fora
mediante recursos do Orçamento da Seguridade revogada), os dois incentivos foram efetivamente
Social (OSS) e do orçamento fiscal daqueles entes regulamentados, criando-se, assim, condições para
federados. Assim como já ocorria anteriormente, o aumentar a organicidade entre o SUS e o
financiamento da saúde se apoia em orçamentos subsistema e corrigir as conhecidas deficiências de
fiscais e de contribuições. integração de ações.
Durante a década de 90, o subfinanciamento do Os recursos do Subsistema de Saúde Indígena,
setor foi acompanhado da ênfase na desde 1999, são provenientes de três fontes
descentralização do sistema de saúde, que distintas: (i) do tesouro nacional – alocado
correspondeu mais a uma desoneração de diretamente na Funasa, através do Programa 0150
obrigações por parte da União do que propriamente (Proteção e Promoção dos Povos Indígenas,
um incremento real de recursos (NORONHA, contido no Plano Plurianual, em ações de saúde,
SANTOS & PEREIRA, 2010). sob a gerência da Fundação Nacional do Índio); (ii)
A Lei Arouca que institui o subsistema de saúde do Ministério da Saúde – por meio da Secretaria de
indígena definiu que as ações a serem Atenção à Saúde (SAS), denominado IAB-PI e IAE-
desenvolvidas pelos DSEI devem ser financiadas PI com repasse mensal, regular e automático
pelo orçamento da Funasa e do Ministério da diretamente ao fundo municipal de saúde e
Saúde, podendo ser complementada por estabelecimentos de saúde, visando atender as
organismos de cooperação internacional e da ações de contratação de equipes multidisciplinares
iniciativa privada. Os estados e municípios também e incentivos a hospitais credenciados; e (iii) Acordo
podem atuar complementarmente no custeio e de Empréstimo pactuado entre o Governo Brasileiro
execução das ações. e o Banco Mundial, denominado Projeto de
A Portaria n. 1.163, de 14 de setembro de 1999, Vigilância e Controle de Doenças (Projeto
instituiu as responsabilidades para a prestação de VIGISUS) (BRASIL, 2010b).
assistência à saúde dos povos indígenas no SUS, Dados da Funasa revelam que o orçamento da
criando dois incentivos: O fator de Incentivo de Funasa aprovado pelo Congresso Nacional, por
Atenção Básica aos Povos Indígenas (IAP-I) - intermédio das Leis Orçamentárias Anuais,
79
destinado à saúde indígena aumentou Silva e colaboradores (2005, p. 375) sintetizam
consideravelmente em termos nominais, no período a importância da participação social em relação à
de 1999 a 2009 (BRASIL, 2010). democratização das instituições, à proteção social e
Uma pesquisa realizada por um grupo de aos direitos sociais:
consultoria registrou que, entre 2003 e 2007, o a) a participação social promove transparência
orçamento liquidado da saúde indígena composto na deliberação e visibilidade das ações,
por recursos da SAS/MS e por recursos da Funasa democratizando o sistema decisório;
aumentou 154% em termos nominais, ao passo b) a participação social permite maior expressão
que, em valores reais, o orçamento liquidado nesse e visibilidade das demandas sociais, provocando
período dobrou. O investimento do MS em 2007 foi um avanço na promoção da igualdade e da
cerca de 74% superior, em termos nominais, ao de equidade nas políticas públicas;
2003. (BIASOTO e TEIXEIRA, 2009). c) a sociedade, por meio de inúmeros
No entanto, verificou-se que houve movimentos e formas de associativismo, permeia
desaceleração do crescimento dos recursos para a as ações estatais na defesa e alargamento de
saúde indígena em anos recentes. De 2003/04 o direitos, demanda ações e é capaz de executá-las
crescimento corrente foi de 29,22%; no interesse público.
Na Portaria nº 2.656, de 2007, que revogou a A participação da sociedade, por meio dos
Portaria nº 1.163, de 1999, o Fator de Incentivo de conselhos nacionais de políticas sociais, no âmbito
Atenção Básica aos povos indígenas e o Fator de das políticas públicas não é algo novo no Sistema
Incentivo para a Assistência Ambulatorial, Brasileiro de Proteção Social (SBPS). Entre os anos
Hospitalar e de Apoio Diagnóstico à População de 1930 e 1960, a participação social estava
Indígena, criados pela Portaria nº 1.163/GM, de 14 presente em diversas políticas, ainda que se
de setembro de 1999, passam a ser denominados revestia de um caráter eminentemente consultivo. A
Incentivo de Atenção Básica aos Povos Indígenas – partir dos anos 1980, esse processo se alargou
IAB-PI e Incentivo para a Atenção Especializada quando outros atores sociais começaram a
aos Povos Indígenas – IAE-PI. A Portaria n. 2.656 participar dessas arenas, como as organizações
foi recentemente revogada pela Portaria nº 2.048, não governamentais, associações de profissionais e
de 03 de setembro de 2009, na qual foi aprovado o entidades de defesa de direitos (SILVA, JACCOUD
Regulamento do SUS. Na Seção VII, relativo à & BEGHIN, 2005).
Saúde Indígena, do Artigo 360 ao Artigo 383 está No campo da saúde pública, a luta pela
reproduzido praticamente todo o conteúdo da democratização do país estimulou um importante
Portaria nº 2.656, revogada. 2004/05 o crescimento movimento nacional que reivindicou mudanças
foi de 30,47%; de 2005/06 o crescimento foi de radicais no sistema público de saúde brasileiro. O
37,81; e de 2006/07 o crescimento foi de 9,27% movimento da Reforma Sanitária levou à ampliação
(BIASOTO & TEIXEIRA, 2009:152). da organização popular e ao surgimento de novos
atores sociais, produzindo e aumentando as
Participação Social demandas sociais sobre o Estado (MARTINS et al,
2008).
A CF 88 reconheceu que a participação social é Autores como Oliveira (2004) e Martins et al
um dos principais elementos na organização das (2008), destacam que, desde o movimento da
políticas públicas, não apenas quanto ao controle reforma sanitária, a participação popular assumiu
do Estado, mas também nos processos decisórios e importante papel na saúde pública, onde os
na implementação das políticas sociais. conselhos de saúde vêm convergindo como
Consequentemente, o texto constitucional alargou o instâncias de ação política e de construção da
projeto de democracia, compatibilizando princípios cidadania, e ainda, vêm sendo primordial
de democracia representativa e da democracia instrumento na garantia do direito à saúde e
participativa (SILVA, JACCOUD e BEGHIN, 2005). exercendo importante função de controle social,
80
fundado nos princípios da democratização do poder saúde, em especial após o advento do SUS,
decisório no SUS . dirigido pela sociedade organizada no exercício do
A Seção II - dedicada à Saúde -, do Capítulo II acompanhamento e controle das políticas de saúde,
(da Seguridade Social) da CF/88, previu, no seu Martins et at (2008), discutindo a construção da
Artigo 198, que a participação da sociedade seria participação da sociedade civil no SUS, afirma que:
diretriz das ações e dos serviços públicos de saúde.
O arcabouço jurídico-institucional que complementa “[...] ainda se está longe de alcançar a plenitude da
os dispositivos do texto constitucional é formado democracia republicana e pluralista moderna. Este
pelas duas leis, conhecidas com Leis Orgânicas da contexto é uma firme justificativa para estudar a
Saúde: a Lei 8.080/90 – que regula as ações e fundo a dinâmica e o funcionamento dos conselhos
serviços públicos e privados de saúde no que de saúde, uma vez que estes constituem uma
concerne a sua direção, gestão, competências e inovação política institucional e cultural na
atribuições em cada nível de governo – e a Lei consolidação do SUS, especialmente para se
8.142/90 – que, por sua vez, dispõe sobre a compreender a natureza das dificuldades a serem
participação da comunidade na gestão do SUS, enfrentadas, das quais se destacam aquelas
através de duas instâncias colegiadas – Conselho relativas à desigualdade e à exclusão de atores
de Saúde e a Conferência de Saúde -, e regula as sociais importantes nesse jogo político” (MARTINS
transferências intergovernamentais de recursos et al, 2008, p. 116).
financeiros. Na saúde indígena, seguindo a modelagem
Os Conselhos de Saúde podem ser entendidos do SUS, a participação social indígena se dá por
como instâncias de deliberação do Sistema Único intermédio dos Conselhos Distritais de Saúde
de Saúde – SUS - de caráter permanente e Indígena e dos Conselhos Locais de Saúde.
deliberativo, e tem como missão a deliberação, Os Conselhos Distritais de Saúde Indígena
fiscalização, acompanhamento e monitoramento (Condisi) são instâncias de Controle Social, de
das políticas públicas de saúde. É competência do caráter permanente e deliberativo, de acordo com a
Conselho, dentre outras, aprovar o orçamento da Lei nº 8.142/90. A PNASPI orienta que a
saúde assim como, acompanhar a sua execução composição dos conselhos indígenas se dê forma
orçamentária, além da responsabilidade de aprovar paritária, com 50% de usuários e 50% de
a cada quatro anos o Plano de Saúde de cada representantes de organizações governamentais,
esfera de governo. prestadores de serviços e trabalhadores do setor de
Para Kruger (2000), os conselhos de saúde são saúde dos respectivos distritos.
instrumentos privilegiados para a garantia dos Garnelo (2012), estudando a participação
direitos dos cidadãos, uma vez que impulsionam a social na saúde indígena, chama atenção para o
construção de esferas públicas mais democráticas fato de que a atuação dos Conselhos Distritais de
e participativas. Saúde Indígena muitas vezes se confundem com
A Conferência de Saúde, de caráter apenas as atividades desenvolvidas pelos Conselhos
consultivo, deve-se reunir a cada quatro anos para Municipais de Saúde, ainda que não existam
avaliar a situação de saúde e propor diretrizes para dispositivos legais sobre formas de interface entre
a formulação da política de saúde nos níveis as duas instâncias de controle social.
correspondentes. A composição, tanto das Por outro lado, Benevides (2012), estudando
conferências quanto dos conselhos, deve se dar de o controle social no subsistema de saúde indígena,
forma paritária entre a representação dos usuários afirma que a criação dos Condisi proporcionaram o
e ao conjunto dos demais segmentos estabelecimento de um novo canal de comunicação
(representantes do governo, prestadores de entre os povos indígenas e o Estado, bem como a
serviços e profissionais da saúde). constituição de novos espaços de interação. Não
A despeito do intenso avanço no processo de obstante, destaca que:
construção (ou reconstrução) dos conselhos de
81
“existe um descompasso entre a constituição Benevides (2012, p. 117) alerta para o fato de
ideológica dos mecanismos formais de controle que a “atuação centralizada do Fórum, sem uma
social e realização prática desse controle. Ou forte ligação com os conselhos distritais e com suas
seja, se reconhece a importância e defende-se a bases, pode desvirtuar seu papel”. “Ou seja, discutir
constituição das instâncias de controle social da a pauta colocada pelo governo e não as demandas
saúde indígena, mas o exercício desse controle das comunidades indígenas”.
social ainda apresenta-se frágil diante da Na história da saúde indígena no Brasil
dificuldade para consolidar sua estrutura e para aconteceram quatro Conferências Nacionais de
concretizar o diálogo intercultural” (BENEVIDES, Saúde Indígena abordando temáticas diferenciadas.
2012, p.116). A primeira, em 1986, denominada I Conferência
Nacional de Proteção à Saúde dos Povos Indígenas
Os Conselhos Locais de Saúde, por sua vez, (I CNSPI) propôs as bases para a construção de
são constituídos apenas pelos representantes das um subsistema específico para cuidar da população
comunidades indígenas da área de abrangência indígena à saúde indígena.
dos polos base, incluindo lideranças tradicionais, A segunda, em 1993, denominada II
professores indígenas, agentes indígenas de Conferência Nacional de Saúde para os Povos
saúde, especialistas tradicionais, parteiras e outros. Indígenas (II CNSPI) aprofundou a proposta de um
Os representantes que fazem parte do Conselho modelo diferenciado e integral - incluindo a
Local de Saúde são escolhidos pelas comunidades discussão da saúde, saneamento básico, nutrição,
daquela região. habitação – e, ao mesmo tempo, sinalizou para a
Essa deve ser uma instância privilegiada de criação de distritos sanitários.
articulação e encaminhamento de discussões A constituição de conselhos de saúde no interior
pertinentes às ações e serviços de saúde no âmbito da saúde indígena respondeu as demandas das
de uma pequena região, ou seja, de um Conferências de Saúde Indígena e da própria
congregado de aldeias pertencente a um democratização da sociedade brasileira e do SUS,
determinado polo base. em face do processo de planejamento,
Na prática, entretanto, a despeito da carência monitoramento e avaliação, que permeia as
de dados sistematizados e pesquisas científicas políticas públicas, bem como das demandas de
sobre o funcionamento dos conselhos de saúde reorganização da intervenção do Estado em busca
indígena no Brasil, segundo Garnelo (2012, p. 40), de maior igualdade, eficiência, equidade e
“não se observou um funcionamento efetivo dos universalidade.
conselhos locais e o exercício do controle social no No entanto, esse movimento não convergiu em
subsistema limitou-se ao funcionamento dos torno de diretrizes comuns. Ao contrário, sofreu a
conselhos distritais”. influência de diferentes concepções, tanto no que
Formado por 34 presidentes dos Conselhos se refere aos objetivos da atuação dos conselhos
Distritais de Saúde Indígena, o Fórum tem caráter de saúde indígena, quanto no perfil do Estado em
consultivo, propositivo e analítico e é a instância oferecer as condições suficientes para que a
máxima de assessoramento das Políticas de Saúde participação social fosse importante instrumento de
Indígena, no âmbito do Subsistema de Saúde aprimoramento da política pública.
Indígena, sem prejuízo das competências Não restam dúvidas de que há muito que se
deliberativas do Conselho Nacional de Saúde. O avançar no campo do controle social na saúde
Fórum atua em consonância com as instâncias indígena, especialmente em relação ao pleno
decisórias do SUS, com os Conselhos Distritais de exercício das atribuições de deliberação e controle
Saúde Indígena e com as diretrizes estabelecidas da política de saúde por parte dos conselhos de
nas Conferências Nacionais de Saúde e nas saúde. Por mais complexas que sejam as relações
Conferências Nacionais de Saúde Indígena. que se estabelecem nos conselhos de saúde
indígena, é imprescindível que o Estado, por outro
82
lado, ofereça garantia de condições de serviços instalados em nível local e à rede regional
funcionamento regular dessa instância, invista na do SUS; (iii) relações sociais entre os diferentes
qualificação dos conselheiros e estimule a povos indígenas do território e a sociedade
participação de gestores municipais e estaduais regional; (iv) distribuição demográfica tradicional
nessa arena. dos povos indígenas, que não coincide
necessariamente com os limites de estados e
DISTRITALIZAÇÃO SANITÁRIA E MODELO municípios onde estão localizadas as terras
ASSISTENCIAL indígenas; e (v) disponibilidade de serviços,
recursos humanos e infraestrutura.
O modelo assistencial, segundo Silva Júnior & A PNASPI orienta, ainda, para que a atenção
Alves (2007:27), se refere ao modo como se básica seja realizada nas aldeias “por intermédio
organiza as ações de saúde numa determinada dos agentes indígenas de saúde, e pelas equipes
sociedade. É um formato de organização e multidisciplinares periodicamente, conforme o
articulação de uma série de recursos disponíveis planejamento de suas ações” e tem a formação e a
(físicos, humanos, tecnológicos) no intuito de capacitação de indígenas como agentes de saúde
enfrentar e solucionar os problemas de saúde de como “uma estratégia que visa favorecer a
um coletivo. apropriação, pelos povos indígenas, de
O modelo assistencial inicialmente proposto na conhecimentos e recursos técnicos da medicina
concepção do subsistema de saúde indígena – o ocidental”, sendo que:
qual seria reafirmado dois anos depois pela Política “o programa de formação de Agentes Indígenas
Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas de Saúde deverá ser concebido como parte do
(PNASPI) – buscou compatibilidade com as processo de construção dos Distritos Sanitários
determinações da Constituição Federal e com os Especiais Indígenas. Será desenvolvido em serviço
princípios do SUS. e de forma continuada sob a responsabilidade de
Na saúde indígena, a PNASPI reconheceu as Instrutores/Supervisores, devidamente capacitados,
evidências de um quadro sanitário caracterizado com a colaboração de outros profissionais do
pela “alta ocorrência de agravos que poderiam ser serviço de saúde, das lideranças e organizações
significativamente reduzida com o estabelecimento indígenas” (BRASIL, 2002, p. 15).
de ações sistemáticas e continuada de atenção
básica à saúde no interior das áreas indígenas” A PNASPI recomenda que este processo deva
(BRASIL, 2002, p. 10; 13) e propôs a organização ser priorizado como “instrumento fundamental de
dos serviços de atenção à saúde dos povos adequação das ações dos profissionais e serviços
indígenas na forma dos Distritos Sanitários de saúde do SUS às especificidades da atenção à
Especiais Indígenas (DSEI), entendidos como: saúde dos povos indígenas e às novas realidades
“modelo de organização de serviços – orientado técnicas, legais, políticas e de organização dos
para um espaço etnocultural dinâmico, geográfico, serviços” (BRASIL, 2002, p. 16). Para tanto se faz
populacional e administrativo bem delimitado -, que necessária a realização de cursos de atualização/
contempla um conjunto de atividades técnicas, aperfeiçoamento/especialização para gestores,
visando medidas racionalizadas e qualificadas de profissionais de saúde e assessores técnicos
atenção à saúde, promovendo a reordenação da (indígenas e não indígenas) das várias instituições
rede de saúde e das práticas sanitárias e que atuam no sistema.
desenvolvendo atividades administrativo-gerenciais Debater a organização do processo de trabalho
necessárias à prestação da assistência, com em saúde e as práticas de saúde no âmbito do
controle social” (BRASIL, 2002, p. 13). modelo de atenção implica em refletir sobre os
Para definição territorial dos DSEI foram arranjos institucionais e organizacionais que lhes
seguidos os seguintes critérios: (i) população, área dão suporte, ou seja, como a gestão e a
geográfica e perfil epidemiológico; (ii) acesso aos

83
organização dos serviços se estruturam para - levando-se em consideração que o processo
“produzir saúde” (PAIM,1999). saúde-doença é bastante distinto entre o mosaico
De um modo geral, o modelo de atenção à de etnias indígenas existente, pode ser
saúde implementado não tem conseguido se extremamente potente para o enfrentamento dos
consolidar e ser potente o suficiente para solucionar problemas de saúde da população indígena.
os problemas sanitários locais. Isto porque tem sido A política de capacitação de trabalhadores da
excessivamente centrado na prática assistencialista saúde indígena não foi suficiente estruturada para
e tecnicista, deixando a segundo plano as ser transformadora das práticas profissionais e da
estratégias de discussão local com a comunidade, a organização do trabalho. Os planos anuais de
possibilidade integração entre as medicinas capacitação eram construídos pelos DSEI, que por
tradicional e ocidental, e a incorporação das sua vez elencavam toda sua demanda em um único
práticas de vigilância em saúde e promoção da ano, sem critérios definidos ou recomendações
saúde. técnicas do nível central, inviabilizando todo o
Pellegrini e colaboradores (2009, p. 100-101) processo institucional. Uma vez encaminhados para
reforçam essa concepção quando destacam que “o as Core e/ou Desai, a morosidade da análise
modelo assistencial implantado nos distritos segue técnica e de descentralização dos recursos
a lógica da produção de serviços, centrado na deixavam os distritos sanitários, muitas vezes, sem
concepção médico-curativa e na tecnificacão da possibilidade de executar sequer um evento
assistência e os indicadores nos mostram que não discriminado no plano anual.
tem conseguido atender as necessidades e resolver
os principais problemas de saúde”, principalmente ACESSO E COBERTURA
porque a “assistência à saúde não tem se efetivado
de forma continuada nas aldeias, principalmente na A despeito da existência na literatura de
região amazônica, onde as distâncias e o difícil variações no conceito de acesso, que por vezes é
acesso exigem estratégias diferenciadas de utilizado de forma imprecisa e pouco clara na
prestação de serviços, para garantir a continuidade relação com o uso dos serviços de saúde,
da assistência”. prevalece a concepção de que acesso está
A irregularidade das ações de saúde em áreas associado à oferta dos serviços e constitui uma
indígenas e a valorização de um modelo centrado dimensão do desempenho dos serviços de saúde
no tecnicismo dificultaram que o conceito de (TRAVASSOS & MARTINS, 2004).
vigilância em saúde se tornasse verdadeiramente Travassos & Martins (2004), em revisão literária
um eixo orientador do modelo de atenção. sobre os conceitos de acesso e utilização dos
Segundo Paim (2001), a vigilância da saúde, serviços de saúde, destacam uma tendência entre
como prática sanitária de organização do processo os autores de deslocamento da entrada nos
de trabalho em saúde para enfrentamento de serviços para os resultados dos cuidados de saúde.
problemas contínuos, enfoca as relações entre a No entanto, concluem que:
equipe de saúde e a população; atua sobre os “deve-se priorizar o emprego de medidas que
danos, riscos e condições determinantes da saúde. apreendam cada uma das etapas no processo de
Nesse contexto, o conjunto articulado de ações utilização de serviços, de forma a permitir a
que incidam sobre os “efeitos” dos problemas de verificação do efeito dos múltiplos fatores
saúde (doença, agravos) explicativos das variações no uso de serviços,
- como ações programáticas regulares, como destas nas condições de saúde das pessoas
assistência à saúde focada nas famílias. e desta forma orientar melhor a formulação de
- bem como ações que incidam sobre as politicas para um melhor desempenho dos sistemas
“causas” de saúde” (TRAVASSOS & MARTINS, 2004, p.
- ações intersetoriais, ações de vigilância em 197).
saúde e promoção da saúde.
84
Com a implantação do subsistema, os DSEI distritos, ou EMSI, devam ser compostas por
tinham a árdua tarefa de expandir a atenção básica, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e
por meio dos programas de saúde preconizados, agentes indígenas de saúde, contando,
para todas as regiões onde existissem aldeias complementarmente, com a participação
indígenas, cuja população necessitava de atenção sistemática de antropólogos, educadores,
diferenciada à saúde, e construir sistemas locais de engenheiros sanitaristas e outros especialistas.
saúde democráticos e adaptados às diversidades Baseado em dados mais atuais,
locais, culturais e ambientais. disponibilizados pela Funasa, fazendo-se uma
Nesse contexto, o subsistema de saúde indígena relação entre o número de indígenas atendidos pelo
precisaria construir uma rede de estabelecimentos subsistema e o número de polos-base,
de saúde nas aldeias indígenas e em algumas considerando, idealmente, que cada em cada polo-
cidades estratégicas de referência para a base existe uma EMSI, teríamos a relação de uma
população indígena no âmbito de cada DSEI. equipe para 1.677 indígenas (BRASIL, 2010a)
O Posto de Saúde Indígena é um (BRASIL, 2010b).
estabelecimento de saúde, localizado em zonas A Política Nacional de Atenção Básica,
rurais ou em terras indígenas, para realização de publicada por meio da Portaria MS n. 2.488/2011
ações de atenção básica por meio da EMSI, bem estabelece que:
como para servir de referência aos AIS e AISAN “cada equipe de Saúde da Família deve ser
das Unidades de Apoio. responsável por, no máximo, 4.000 pessoas, sendo
A Sede de Polo-Base Indígena é um a média recomendada de 3.000, respeitando
estabelecimento de saúde, referência para um critérios de equidade para essa definição”.
conjunto de Postos de Saúde Indígenas, Unidades A atual Política Nacional de Atenção Básica
de Apoio e aldeias para as ações administrativas, (2012) orienta que cada Equipe de Saúde da
de saúde e de saneamento na sua área geográfica Família deve contar com no mínimo, médico
de abrangência. O Polo-base Tipo I desenvolve generalista ou especialista em Saúde da Família ou
atividades técnico-administrativas, de saneamento médico de Família e Comunidade, enfermeiro
e de atenção básica à saúde. Pode estar localizado generalista ou especialista em Saúde da Família,
em sedes ou distritos de municípios, em zonas auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes
rurais e em terra indígena. O Polo-base Tipo II comunitários de saúde, podendo acrescentar a esta
desenvolve as mesmas atividades que o tipo I, à composição, como parte da equipe
exceção das ações de saúde. multiprofissional, os profissionais de saúde bucal:
A Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) é cirurgião-dentista generalista ou especialista em
um estabelecimento de saúde, localizado em sede Saúde da Família, auxiliar e/ ou técnico em saúde
de município estratégico, que presta apoio (saúde, bucal.
acomodação, hospedagem, alimentação) ao índio, “O número de pessoas por equipe considere
bem como a seus acompanhantes, referenciado o grau de vulnerabilidade das famílias daquele
pelo DSEI para atendimento de média e alta território, sendo que, quanto maior o grau de
complexidade na rede SUS. vulnerabilidade, menor deverá ser a quantidade de
A Sede do DSEI é um estabelecimento que pessoas por equipe”.
gerencia e coordena as ações de atenção à saúde Garnelo (2012, p. 39), baseado em número
indígena realizadas na rede de serviços de sua de famílias, destaca que, se cada polo base
abrangência, devendo estar integrada, contasse com uma equipe de saúde a proporção de
hierarquizada e articulada com o SUS. famílias atendidas por equipe (230 a 396 famílias
Em consonância com as diretrizes da Estratégia por equipe) seria satisfatória de acordo com as
de Saúde da Família (ESF) – que reorganiza a normas da Atenção Primária, no entanto, chama
atenção básica no âmbito do SUS -, a PNASPI atenção para o fato de que a “adequação de tais
também recomenda que as equipes de saúde dos proporções precisa ser relativizada, pois são
85
indicadores propostos para áreas urbanas e não há farmacológicas tradicionais; c) avaliação e
ainda como confirmar se eles seriam adequados adaptação dos protocolos padronizados de
para as áreas indígenas”. intervenção terapêutica e dos respectivos
Na prática, entretanto, a Funasa nunca esquemas de tratamento; d) controle de qualidade e
trabalhou com a ideia de realmente agrupar os vigilância em relação a possíveis efeitos
profissionais de saúde por equipe, ou seja, por iatrogênicos; e) promoção de ações educativas no
EMSI aos moldes da saúde da família. Em função sentido de se garantir adesão do paciente ao
disso não existem informações disponíveis na tratamento, inibir as práticas e os riscos
literatura, nem sequer oficias, sobre o número de relacionados com a automedicação; e f) autonomia
equipes, a lotação das equipes por polo base ou dos povos indígenas quanto à realização ou
posto de saúde, tampouco sobre a sua composição. autorização de levantamento e divulgação da
Evidentemente que cada DSEI deve possuir farmacopéia tradicional indígena, seus usos,
essa informação, mesmo que fragilmente conhecimentos e práticas terapêuticas.
organizada e susceptível a alterações e ajustes de Como a implementação da política de
ordem não técnica. Isso porque não houve assistência farmacêutica “não estava” sob o
regulamentação complementar oficial sobre os gerenciamento do nível central, não havia um área
critérios para definição da composição, carga técnica especializada no Departamento de Saúde
horária e número de equipes. Nesse sentido, não é Indígena, em Brasília, responsável pela
possível saber quantas equipes estão completas ou coordenação, acompanhamento e monitoramento
incompletas, quantas equipes existem por território da assistência farmacêutica no subsistema.
ou polo base em cada DSEI, assim com não é A própria Funasa reconheceu que, apenas a
possível se fazer relações entre o número de partir de 2005, a área técnica de assistência
equipes e a população adscrita para cálculos de farmacêutica passou a ser efetivamente estruturada
cobertura. com a contratação de profissionais farmacêuticos.
Por outro lado, reafirmou que a reestruturação da
ACESSO A MEDICAMENTOS assistência farmacêutica possibilitou a melhoria da
atenção aos povos indígenas e destacou que em
A Política Nacional de Medicamentos (Portaria 2009 existiam 60 trabalhadores, entre
MS n. 3.916/1998), ao estabelecer os princípios, farmacêuticos e de auxiliares de farmácia, para
pressupostos e prioridades a serem conferidos na atuar na gestão de medicamentos. (BRASIL,
sua implementação, bem como as 2010a).
responsabilidades dos gestores em saúde na sua Se de um lado a centralização da aquisição e
efetivação, elencou as seguintes diretrizes: (i) distribuição de medicamentos e insumos
adoção da Relação Nacional de Medicamentos estratégicos para a saúde no órgão central em
Essenciais (RENAME); (ii) regulamentação sanitária Brasília gerou maior economicidade para a
de medicamentos; (iii) reorientação da Assistência administração pública, uma vez que um processo
Farmacêutica; (iii) promoção do uso racional de licitatório de aquisição de inúmeros itens em
medicamentos; (iv) promoção da produção de grandes quantidades possibilita a ampliação da
medicamentos; e (v) garantia da segurança, concorrência e a queda do preço unitário, de outro
eficácia e qualidade dos medicamentos. lado criou uma série de embaraços para a gestão
A PNASPI, com o objetivo de orientar os da assistência farmacêutica na saúde indígena.
gestores dos DSEI quanto a efetivação das ações e Podem-se destacar inúmeros: (i) plano de
das diretrizes da assistência farmacêutica, definiu demandas de insumos mal elaborados pelos DSEI,
os seguintes pressupostos: a) descentralização da (ii) morosidade nos processos licitatórios pelo nível
gestão da assistência farmacêutica para os DSEI; central, (iii) falta de qualificação técnica do nível
b) promoção do uso racional dos medicamentos central para elaboração dos projetos básicos
essenciais básicos e valorização das práticas (termos de referência para aquisição, (iv)
86
sucessivas impugnações dos editais de licitação, (v) De acordo com Piola e colaboradores (2009), a
atraso na entrega pelos fornecedores, (vi) demora mortalidade infantil e na infância vem declinando no
na entrega pelo nível central aos DSEI, (vii) envio Brasil graças à associação de inúmeros
de insumos em quantidades menores que o determinantes de saúde que registraram melhoria –
necessário para os DSEI, (viii) ausência de uma como, condições de saneamento básico,
transição gradativa na centralização das compras. alimentação, escolaridade das mães – com as
Além disso, a impossibilidade dos DSEI ou ações do sistema de saúde.
Coordenações Regionais da Funasa realizarem a Na última década, entre 2000 e 2010, a taxa de
aquisição de itens, cuja compra central não obteve mortalidade infantil caiu de 27,4 por mil nascidos
êxito, ou cuja quantidade enviada pelo nível central vivos para 16,0 por mil nascidos vivos, registrando
ao DSEI foi inferior ao plano de demandas local, uma redução percentual de 58,39%. Todavia,
cumprindo o que determina a Portaria Funasa n. desigualdades regionais ainda persistem
047/2007, é considerado um fator dos mais principalmente nas macrorregiões Norte e
complicadores. Nordeste, cujos indicadores são superiores à média
A gestão da assistência farmacêutica foi um registrada no país.
problema frequentemente relatado pelos DSEI à
equipe de consultoria contratada para avaliar o VIGILÂNCIA E CONTROLE DE DOENÇAS
subsistema quando questionados sobre aspectos
relacionados a suprimento de insumos. Os pontos A malária é uma doença parasitária de ampla
críticos citados são o atraso na entrega e distribuição geográfica que acomete populações de
quantidades insuficientes de medicamentos diversas regiões como: África, América Central e
(PELLEGRINI et al, 2009). América do Sul, inclusive o Brasil.
Em 2010 se iniciou um movimento para No Brasil, a malária ocorre principalmente na
elaboração de relação de medicamentos essenciais Amazônia Legal - que compreende os estados do
para a saúde indígena, a qual deveria considerar, Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima,
além das diretrizes e normas vigentes, a Tocantins, Pará, Mato Grosso e Maranhão – onde
possiblidade de inclusão medicamentos de uso está o maior contingente populacional indígena do
consagrado nos atendimentos à população país. É considerada uma doença importante e
indígena de acordo com a prática clínica local e o grave para os povos indígenas do Brasil, uma vez
perfil de morbimortalidade da população indígena. que representa um das principais causa de
Ainda nesse mesmo ano, diante dos inúmeros internação e óbito para algumas etnias (SAMPAIO
problemas relacionados às compras e entregas de et al, 1996).
medicamentos, permitiu-se aos DSEI a Sua evolução tem sido bastante irregular no
possibilidade de aquisição de medicamentos que, Brasil. No ano de 1995, o número de caso
por ventura, estejam em falta temporariamente na registrado foi de 564.570. Em 2000 foram
central de medicamentos do distrito. registrados 615.247 casos, e em 2001 e 2002 foram
registradas duas quedas sucessivas, porém, a
MORTALIDADE INFANTIL incidência voltou a crescer, praticamente atingindo,
em 2005, o patamar de casos registrados no ano
A Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) é um 2000. A partir de 2005, os dados disponíveis
indicador que estima o risco de morte dos nascidos apontam para uma tendência de queda na
vivos durante o seu primeiro ano de vida. Reflete, incidência da doença Uma das principais
de maneira geral, as condições de desenvolvimento estratégias adotadas pela Funasa, além o reforço
socioeconômico e infraestrutura ambiental, bem na rede de assistência, para o enfrentamento da
como o acesso e a qualidade dos recursos pandemia de Influenza (H1N1) 2009, foi a
disponíveis para atenção à saúde materna e da vacinação para grupos prioritários. Foram
população infantil (OPAS, 2008). vacinados cerca 495 mil indígenas aldeados

87
(n=495.804) 23, de acordo com o Sistema de das Conferências de Saúde Indígena e, de certo
Informação do Programa Nacional de Imunizações modo, construídos em um processo de amplo
(SI-PNI). Esse número corresponde a uma debate junto aos povos indígenas, seus
cobertura vacinal de 89,4%, superando a meta de representantes, organizações indígenas,
80% preconizada pelo MS (BRASIL, 2010a). profissionais de saúde, sanitaristas e indigenistas
A tuberculose é outra patologia importante e de com o objetivo de instituir um (sub) sistema de
relevância sanitária entre os povos indígenas do saúde diferenciado e específico para os índios, não
Brasil, tendo em vista as altas taxas de prevalência. deixando de ser integrante do SUS.
No entanto, a carência de informações da Funasa Esse formato, sob o qual o subsistema foi
disponíveis sobre a tuberculose nas populações idealmente pensado e instituído por lei, foi, em
indígenas dificulta, de certo modo, a construção de grande medida, resultado de dispositivos da CF/88
uma análise mais aprofundada nesse estudo. que reconheceu os direitos sociais e os direitos
Segundo dados divulgados pela Organização indígenas no Brasil – especialmente sobre as terras
Mundial da Saúde (OMS), em 2010, foram que ocupam e o reconhecimento de seus costumes,
diagnosticados e notificados 6,2 milhões de casos línguas, crenças e tradições – e enunciou a saúde
de tuberculose no mundo, sendo 5,4 milhões de com um direito universal a ser assegurado pelo
casos novos, equivalentes a 65% dos casos Estado, abrindo-se um novo horizonte para as
estimados para o mesmo ano. A Índia e a China relações entre o Estado e as populações indígenas.
representam 40% dos casos notificados, e o Brasil Em substituição ao sistema vigente até a
está entre os 22 países que concentram 82% dos publicação da Lei Arouca, mesmo enfrentando
casos de tuberculose no mundo (BRASIL, 2012b). dificuldades nos campos da gestão, financiamento,
De acordo com dados do MS, entre 2001 e 2011, modelo de atenção, além de interferências e
a incidência de tuberculose na população brasileira resistências de ordem política, implantou-se um
passou de 42,8 casos a cada grupo de 100 mil sistema de saúde indígena que adentrou os
habitantes para 36,0, o que significa uma redução territórios indígenas do país com o propósito de
de 15,9 pontos percentuais na última década oferecer ações e serviços de atenção primária nas
(BRASIL, 2012b). A taxa de cura, entre 2006 e aldeias, por meio das unidades descentralizadas –
2010, tem se mantido entre 73% e 74%. Já a taxa os distritos sanitários – e manter a integração com o
de abandono, no mesmo período, tem oscilado SUS, nos municípios de abrangência de cada DSEI,
entre 9 e 10%. para garantir a integralidade da assistência em
todos os níveis de complexidade.
CONSIDERAÇÕES E RECOMENDAÇÕES Em relação ao financiamento do setor, apesar do
FINAIS importante incremento de recursos destinados à
saúde indígena ao longo do processo de
A constituição do Subsistema de Atenção à implementação do subsistema, alguns problemas
Saúde Indígena, como componente do SUS, como, a duplicidade de fontes de recursos, a
propiciou mudanças importantes nos princípios fragmentação dos mecanismos de alocação,
estruturais da política de saúde indígena no Brasil, ausência de regras e critérios equitativos, além da
substituindo um modelo que era fragmentado entre falta de transparência nos processos de
ações campanhistas e emergenciais, vulnerável em monitoramento, avaliação e controle da aplicação
sua base de financiamento e sem infraestrutura e dos recursos, se tornaram evidentes e não foram
corpo técnico qualificado para coordenar e executar devidamente enfrentados pelo órgão responsável
as ações de saúde. pela política de saúde.
Com a Lei Arouca, o Estado brasileiro buscou De 1999 a 2010, aplicou-se diretamente no
inaugurar uma nova forma de atuação no campo da subsistema cerca de R$ 2,5 bilhões, com o objetivo
saúde indígena. Os dispositivos legais relacionados de implementar uma rede de serviços de atenção
à saúde indígena foram fruto das recomendações básica em saúde nas terras indígenas, para uma

88
população de aproximadamente 600 mil indígenas. É preciso reconhecer que os esforços
Somado a esses recursos, o MS, por meio do empreendidos não foram suficientes para vencer as
Fundo Nacional de Saúde (FNS), alocou para os dificuldades de oferecer serviços regulares,
municípios e unidades hospitalares com populações sistemáticos, diferenciados e integrais ao universo
indígenas incentivos da ordem de R$ 1 bilhão. complexo e dinâmico dos povos indígenas.
Quanto ao exercício do controle social no interior Ademais, as barreiras e obstáculos da
do subsistema de saúde indígena, embora administração pública não foram ultrapassados, em
enfrentando dificuldades em relação às condições muitas ocasiões, sequer enfrentados pelos gestores
estruturais, técnicas, financeiras e políticas para o da saúde indígena no país. Inúmeras fragilidades
funcionamento efetivo dos conselhos de saúde, a se tornaram evidentes e alguns resultados se
constituição dos conselhos de saúde indígena mostraram incipientes para o conjunto dos DSEI.
resultou em importantes contribuições para o Ainda há sérios problemas para se efetivar a
processo de democratização da sociedade descentralização e autonomia dos DSEI, incluindo
brasileira e da saúde pública, estabelecendo-se um discussões sobre os papéis do nível central, dos
novo espaço de diálogo entre o Estado e os povos distritos e dos sistemas municipais de saúde
minoritários, superando ideal de tutela. (prefeituras e secretarias municipais). Há, também,
Na estrutura institucional do subsistema de necessidade de se rediscutir e aprimorar o modelo
saúde indígena, a participação social no controle da de atenção integral à saúde, fortalecer os
política de saúde por meios dos conselhos de mecanismos de gestão de pessoas e de controle
saúde é uma oportunidade potente de participação social, além de reorganizar o modelo de
da sociedade sobre os governos. Entretanto, para financiamento do setor.
que os conselhos de saúde indígena exerçam O fortalecimento do subsistema, dessa forma,
influência na formulação, controle e avaliação da deve estar orientada por diretrizes, estratégias e
política de saúde é imprescindível que o Estado ações de curto e médio prazos. Isso implica:
ofereça garantia de condições de funcionamento e 1- Dar maior ênfase em ações que objetivam
participe dessa instância de forma mais expandir a cobertura e qualificar a assistência ao
democrática. pré-natal, parto e puerpério, o que, à longo prazo,
Em relação ao modelo de atenção à saúde pode contribuir com a redução da mortalidade
indígena, pode-se afirmar que o conjunto de infantil;
políticas, diretrizes, programas e projetos que foram 2- Disponibilizar os meios logísticos adequados
introduzidos ao longo dos anos de implementação (barcos, carros, aviões, suprimentos em geral) para
do subsistema certamente contribuíram para a garantir regularidade das ações de atenção primária
ampliação do acesso da população indígena aos à saúde nas aldeias e, com isso, permitir extensão
serviços terapêuticos, de promoção e prevenção à da oferta dos serviços e acesso mais oportuno da
saúde, antes inacessíveis. população;
A rede de saúde do subsistema implantada nos 3- Revisar os incentivos financeiros que são
34 DSEI conta com 358 Polos-Base – distribuídos transferidos para os sistemas municipais de saúde
na abrangência de 448 municípios –, 751 Postos de e para os hospitais de referência para a população
Saúde e 67 Casas de Apoio à Saúde Indígena indígena na perspectiva de reformulação desse
(CASAI), estruturada para atender 600.518 modelo. É imprescindível que sejam assegurados
indígenas cadastrados, moradores de 4.774 aldeias os recursos mínimos necessários para garantir a
(BRASIL, 2010a) (BRASIL, 2010b). Infelizmente, continuidade do cuidado nas redes de atenção à
essa implementação não se deu de forma saúde municipais. Outro ponto relevante é garantir
consistente em todos os distritos, o que mantém que os critérios e as regras para aplicação dos
desigualdades regionais importantes do ponto de incentivos fiquem claras para os gestores de saúde
vista estrutural (física e de equipamentos de e para as populações indígenas;
saúde).
89
4- Estimular e reforçar a ações de promoção e PAIM, J. Reorganização das Práticas de saúde em
prevenção da saúde tanto em relação a doenças DS In MENDES, E. V Distrito Sanitário: O processo
transmissíveis quanto a doenças crônicas passíveis social de mudanças das praticas sanitárias no
de intervenção precoce e controle de evolução; SUS.; HUCITEC-Abrasco, 4 edicão 1999.
5- Garantir condições estruturais, materiais,
financeiras e técnicas para o funcionamento dos 8. POPULAÇÃO LGBT: OS PROCESSOS DE
conselhos de saúde no interior do subsistema de DISCRIMINAÇÃO SOCIAL NA
saúde indígena, de modo a possibilitar o pleno CONTEMPORANEIDADE E O PAPEL DA
exercício de suas atribuições de deliberação e PSICOLOGIA COMO MEDIADORA NO CAMPO
controle da política de saúde. DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Ressalta-se que a constituição do subsistema,
no interior do SUS, representou um importante Roberta Casarini
avanço nas relações entre o Estado e as INTRODUÇÃO
populações indígenas, marcadas, historicamente,
por práticas tutelares. De forma mais focal pretende-se problematizar
as barreiras que se colocam para a inserção no
mercado de trabalho como um dos entraves mais
BIBLIOGRAFIA impactantes para esta população, para além das
conhecidas violências, de todas as ordens, as quais
ABREU, R. V., SÁ E BENEVIDES, R. P. sofrem estes coletivos. Neste sentido, negar ou
Financiamento da saúde pública no Brasil: a impedir o acesso destas pessoas a inserção no
situação atual e o impacto da vinculação mercado de trabalho, por essas não
constitucional de recursos (EC 29/2000). In.: corresponderem a um padrão de orientação sexual
Revista de Gestão Governamental e Políticas esperado, os coloca na via do subemprego, da
Públicas, editor: GOMES, S. A. L. Goiânia, 2004, exploração de mão de obra sem as devidas
p.5985. garantias trabalhistas, de estereótipos de trabalho,
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional faz com que, muitas vezes, o único recurso possível
de Saúde (CNS). Resolução nº 380, de 14 de junho para sustentarem-se é a utilização do corpo como
de 2007. modo de “trabalho” que, se não for por livre
BRASIL. Portaria Funasa nº 984, de 06 de julho de escolha, é uma atividade degradante e de grande
2006, que instituiu o Sistema de Vigilância violência psíquica para à subjetividade envolvida.
Alimentar e Nutricional Indígena (SISVAN) nos Sabe-se que muitas vezes a diferença em relação
DSEI. ao padrão dominante, heteronormativo, avesso à
BRASIL. Acórdão nº 823/2005, Tribunal de Contas diversidade de características e situações da vida,
da União. Disponível em fala mais alto do que as competências, que
https://contas.tcu.gov.br/juris/Web/Juris/ConsultarTe deveriam ocupar um lugar central na escolha de
xtual2/Jurisprudencia.faces?colegiado=P pessoas para o trabalho. (Manual de Promoção aos
LENARIO&numeroAcordao=823&textoPesquisa=Fu Direitos LGBT ao Trabalho, 2015).De igual maneira,
nasa. Acesso em 12/02/2013. pretende-se discutir a respeito da preservação dos
BRASIL. Portaria Funasa n. 047/2007. direitos sexuais e de cidadania para pessoas LGBT
BRASIL. Portaria n.º 3.916, de 30 de outubro de (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. transgêneros), que ainda são vistas por muitos
BRASIL. Associação Brasileira de Saúde Coletiva como sujeitos inexistentes na sociedade. É
(ABRASCO). Inquérito Nacional de Saúde e significativo sublinhar que primorosamente, esta
Nutrição dos Povos Indígenas. Relatório Final. população é conclamada à subordinação, e a fortes
Análise de Dados n. 07. Rio de Janeiro, 01 de estigmas morais e religiosos, movimento este
dezembro de 2009. antagônico ao surgimento do respeito à virtude, de
90
proteção à soberania e de assistência à liberdade, o lobotomia e os estupros corretivos. Em países do
que caracterizaria as sociedades democráticas e os continente Africano, ou países muçulmanos, as leis
estados laicos. anti-sodomia perseveram e os indivíduos nelas
Desde o seu princípio até os dias atuais, o enquadrados, não esporadicamente são multados,
movimento LGBT foi construído com o objetivo presos ou até mortos. Em outros mesmo que este
principal de luta pela igualdade de direitos dos tipo de lei não vigore mais, estes indivíduos
homossexuais. Essa população acabava por se continuam a serem alvos de preconceito e atitudes
manter em uma espécie de clandestinidade imposta discriminatórias.
por certos regramentos instituídos historicamente .
pela sociedade dominante, que lançavam às
pessoas de comportamento diferente a norma, em 2.2 Histórico do Movimento LGBT
especial o grupo LGBT, no campo do preconceito, “Onde há poder, há resistência”.
da discriminação, da marginalidade, negando a (FOUCAULT, 1976-1988)
estes sujeitos o direito primordial de exercer a sua
sexualidade, de trabalhar, de constituir uma família Penso que é preciso considerar que o poder
se assim for o desejo reconhecendo o direito a enquanto um mecanismo que se dobra sobre
maternidade e a paternidade.
sujeitos, produz também dispositivos de resistência
Em vista disso, se fez uma pesquisa de revisão e ressignificação a este mesmo poder, ação, luta e
bibliográfica, com o objetivo de examinar artigos protagonismo. Creio que o movimento LGBT, por
científicos e outras referências, além de livros e exemplo, é grande representante do discurso contra
documentários que discutem sobre o tema LGBT e preconceito, contra a discriminação, contra ódio e
a relação com a sociedade, em virtude da de todos os modos de subjetivação que incluem
Faculdade São Francisco de Assis não possuir este grupo deste estudo, ou outras minorias.
Comitê de Ética que possa aprovar pesquisa com Para Ferrari (2003), o Movimento que defende
seres humanos. Segundo Barros e Lehfeld (2007), os Direitos dos Homossexuais teve início na
a pesquisa bibliográfica é utilizada quando se Europa, no final do século passado, tendo como
pretende resolver um problema ou adquirir principal bandeira a não criminalização da
conhecimentos a partir do uso de informações homossexualidade e a luta pelo total
retiradas de material gráfico, sonoro e reconhecimento dos direitos civis dos
informatizado. homossexuais.
Para marcar, exponho como era tratada a Nos Estados Unidos, em junho de 1969,
população gay nos campos de concentração StonewallInn, Greenwich Village, iniciou-se o
durante o regime nazista, embora na época ainda evento que ficou conhecido mundialmente, como
não existisse a denominação LGBT, mas os Stonewall Riot (Rebelião de Stonewall). A narrativa
sujeitos que a compõem sim. Os gays eram postos instaura que nas primeiras horas da manhã do dia
em locais separados dos demais prisioneiros, havia 28 de junho, gays, lésbicas, travestis e dragqueens
um símbolo, um triângulo invertido na cor rosa que encaram policiais e começam uma revolução que
indicava os homens gays, da mesma forma, um dispararia as noções para o movimento pelos
triangulo preto era atribuído às mulheres direitos LGBT nos Estados Unidos e no mundo.
“antissociais”, grupo que incluía as lésbicas. A Durando seis dias, o movimento seguiu em
ciência também era utilizada como mecanismo de resposta às ações opressivas da polícia, que
extinguir o comportamento homossexual, a frequentemente faziam rondas, com direito a
medicina, por exemplo, tratava da revistas, tapas, deboches degradantes em bares
homossexualidade como uma patologia que podia gays de Nova Iorque. Dia 28 de junho é celebrado
ser debelada por meio de métodos desumanos como o Dia Internacional do Orgulho LGBT para
como a tortura, a castração, a terapia de choque, a comemorar conquistas históricas, da mesma forma,

91
para lembrar que ainda há um extenso trajeto a ser Em 1996, um ato na Praça Roosevelt, em São
trilhado. Paulo, reuniu cerca de 500 pessoas reivindicando
De acordo com Mendes (2010), na realidade direitos LGBT. A partir daquele ato, coletivos LGBT
brasileira dos anos 1970, sob a ótica da autocracia começaram a planejar a primeira parada LGBT do
burguesa, mesmo com a desistência de alguns país, que aconteceu em 1997, na Avenida Paulista,
militantes na luta armada e contestação cultural em São Paulo. Ela teve entre 500 e 2.000 pessoas.
encontram-se brechas na repressão política. A Hoje em dia a parada é um das maiores
homossexualidade adquiria então um potencial festividades da capital paulista, condensando um
revolucionário. Caetano Veloso, cantor coletivo maior do que o de cidades inteiras.
ecompositor, após sua volta do exílio na Inglaterra, Em 2007 foram realizadas, segundo a ABGLT,
em 1972, subiu ao palco de batom e como forma de 300 paradas em todo o país. Da maior delas, a
protesto, imitou Carmem Miranda. Parada de São Paulo, participaram, de acordo com
A partir da década de 1980, os movimentos o registro da Prefeitura desta cidade, 3 milhões de
sociais em geral vieram com novas configurações pessoas. Com o apoio de prefeituras locais, do
em meio à sociedade e no âmbito do estado Ministério da Cultura, de programas nacionais de
cristalizaram-se idéias via projetos com o objetivo Direitos Humanos e de combate à discriminação e à
de possibilitar o diálogo entre militância e governo. AIDS, as Paradas do Orgulho LGBT não são
Conforme Viana (2000, p. 38): frequentadas somente por gays, lésbicas,
[...] o país ensaiava novos passos rumos a uma bissexuais, travestis e transexuais, bem como um
democracia frágil. Os espaços de construção de alto número de “simpatizantes”, entre estes amigos,
novas entidades eram múltiplos. Mulheres, familiares e militantes de partidos e muitos
operários, estudantes, meninos de rua, CEB’s, movimentos sociais, sendo comum ver famílias e
homossexuais, negros, índios, ecologistas, pessoas de todas as idades participando da
pacifistas e tantos outros protagonistas de comemoração. Essa mobilização é, seguramente,
manifestações coletivas revelaram um país em referência primordial para pensarmos temas como
ebulição, com variados problemas, a exigir do poder desigualdade, diferença, diversidade e identidade
público novas práticas políticas que incorporassem na sociedade brasileira contemporânea.
as preocupações desses setores [...]
2.3 Uma Barreira Relevante Para a População
Desta forma, dando um pouco mais de espaço LGBT: As Dificuldades no Processo de Inserção
para que os grupos invisíveis possam estar na via no Mercado de Trabalho e a Potência do “Caso
da visibilidade de toda sociedade, a década de 90 Carrefour”
foi marcada por várias conquistas, entre elas a letra
L é incluída na sigla geral do movimento em 1993, O ambiente de trabalho nas organizações tem
quando militantes votaram para que o Sétimo se tornado um espaço cada vez mais heterogêneo,
Encontro Brasileiro de Homossexuais passasse a onde convivem indivíduos de diferentes sexos,
se chamar Encontro Brasileiro de Homossexuais e etnias, religiões e orientações sexuais (ALVES;
Lésbicas e foi formada no Rio de Janeiro, a primeira GALEÃO-SILVA, 2004). Esta nova realidade impôs
organização política de Travestis da América aos administradores a necessidade de elaborarem
Latina. A letra T é incluída no movimento geral em estratégias que harmonizem justiça social e lucro
1995, quando gays e lésbicas convidam com as práticas organizacionais (ROBINS;
formalmente travestis para seu encontro nacional e COULTER, 1998) e, aos empregados, o desafio de
se funda a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas conviverem com indivíduos de identidades sociais
e Travestis. O processo de aproximação e distintas (IRIGARAY, 2006). Estas podem ser
formação de um movimento conjunto ocorreu não visíveis (gênero, etnia) ou invisíveis (religião,
só via grupos de visibilidade nacional, mas também doenças crônicas). Independentemente de serem
por pequenos grupos locais. raramente ponderadas, as identidades sociais
invisíveis não são singulares. Por exemplo, no
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Brasil, vivem aproximadamente 90 mil judeus origem do nome Carrefour, cruzamento em francês.
(DECOL, 2001), 26.1 milhões de evangélicos O primeiro hipermercado chegou ao Brasil em
(CACP, 2007), 3.2 milhões de pacientes de algum 1975. Com ele, espalhou-se pelo país suas
tipo de doença crônica (OMS, 2010) e 19.4 milhões bandeiras Carrefour Drogaria, Carrefour Posto,
de cidadãos homo ou bissexuais (INTERAGIR, Atacadão, entre outros. (CARREFOUR, 2017)
2010). A inclusão da diversidade no mercado de A média de abertura de lojas no Brasil, em 1999,
trabalho vem avançando nos últimos anos. era de seis lojas ano. Neste ano também foi criado
O mercado de trabalho, conforme Adelman o Selo Garantia de Origem Carrefour
(2003), ainda é uma grande barreira para os (CARREFOUR, 2017). Já em 2015, foi criado o
transgêneros, mesmo não sendo claramente Instituto Carrefour Brasil, focado na colocação no
discriminados nas preferências de vagas, fica clara mercado de trabalho, na educação para a inclusão
a opção do contratante em relação ao sexo, e na geração de renda. Com 72 mil colaboradores,
masculino ou feminino. De diversas formas isso a empresa é uma das maiores empregadoras do
acaba contribuindo para a marginalização, pois a país. (CARREFOUR, 2017)
sociedade em si critica as diferenças que este Nos últimos anos, o Carrefour organizou um
coletivo representa, as quais não se encaixam no grupo de representantes para focar na alteração de
padrão exigido e enraizado. cultura e inclusão. Um dos resultados está sendo
LGBT’s estão nas mais diferentes classes visto na contratação de colaboradores
sociais, ocupam todo tipo de profissão, têm estilos transgêneros, já que são vistos como um grupo que
de vida diversos. Mas há em comum o fato de que encara com dificuldade o mercado de trabalho.
sofrem preconceito e discriminação no mercado de (PACETE, 2017)
trabalho e, por isso, encontram-se, muitas vezes,
em trabalhos caracterizados por altas condições de No Dia da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, a
vulnerabilidade. empresa divulgou em seu perfil de uma rede social
A complexidade da situação do grupo LGBT no fotos de duas colaboradoras transgêneras.
mercado de trabalho, especialmente, diante das Declararam oferecer cursos de capacitação em
evidências que a orientação sexual e a identidade varejo focado no aumento de oportunidades reais
de gênero têm na determinação social e na saúde no mercado de trabalho. (PACETE, 2017)
do trabalhador, impõe a construção de interfaces O foco inicial foi verificar como era o pensamento
nas quais possam ocorrer ações integradas para a da empresa junto ao tema diversidade. Logo após,
promoção da inclusão social, contribuindo para o arquitetou-se um meio para dialogar com as
acesso e a qualidade de vida do trabalhador, lideranças para que fosse propagado aos outros
garantindo assim o enfrentamento das iniquidades. colaboradores. Em seguida, foi necessário entender
A inclusão da diversidade no mercado de o grupo com o qual seria dado enfoque e apontar
trabalho vem avançando nos últimos anos. Diversas as suas necessidades. (PACETE, 2017)
empresas já observaram que se forem
reconhecidas como empresas que sabem lidar com As questões estruturais foram decididas de
a diversidade e inclusão, impulsionarão o maneira simples, como por exemplo, banheiros e
rendimento e o lucro, haja vista existir grande parte crachás. Se o colaborador transgênero nasceu
da população LGBT, por exemplo, com condições homem, mas se representa como mulher, utilizará o
financeiras privilegiadas, ávidas para consumir. A banheiro feminino, tal qual o uso do crachá.
novidade, e colaborarão para uma convivência (PACETE, 2017)
soberana entre os colaboradores, aumentando o
seu conjunto. (BRASIL, 2017). O assunto diversidade deverá estar ligado ao
Entre as empresas que trabalham a diversidade Carrefour, pois seus clientes e o Brasil simbolizam
está o Carrefour Fundada na França, em 1959, sua este tema. Nada mais justo que ela seja
primeira loja ficava em um cruzamento, daí a
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representada no mercado de trabalho. (PACETE, em que estes processos produzem sofrimento
2017) psíquico.
Seguramente o trabalho tem muitas variações,
A lei das cotas (8213/1991), que impõe a sentidos, e significados para cada um de nós. Pode
obrigatoriedade das empresas a terem de dois a não ser prazeroso para uns, uma atividade que
cinco por cento de pessoas que se enquadram com traga satisfação para quem a executa, ou para
alguma deficiência, ganha mais força com o passar outro algo que é cumprido apenas pela
do tempo. A área de recursos humanos precisa necessidade temporária de sobrevivência.
investir em programas de inclusão para que seus O trabalho é dado como importante e
colaboradores estejam capacitados para receber fundamental e constituinte do sujeito, proporciona
estes profissionais, independente das suas benefícios para quem trabalha, assim como para a
dificuldades, alimentando a igualdade social. sociedade. Assim 12 considerando a sua
(OLIVEIRA, 2013) importância, privar alguém ou grupo de acessar o
Um grande número de instituições sofre direito a produzir, a sentir-se útil, por questões de
monitoramentos com a pretensão de qualificar o gênero, ou mantê-lo em situação de rebaixamento,
nível de contentamento de seus funcionários e o de humilhação ou desconsiderar outros pontos
quanto estão comprometidos. Deste modo, pode relevantes como preparo e conhecimento para
ser viável a criação de um canal de protesto de desenvolver certas atividades pelo mesmo motivo,
forma anônima, que possa também ser utilizado é corroborar para que estes sujeitos vivenciem um
para dirigir questões de melhoria. Por processo de sofrimento e algum distúrbio.
consequência, a instituição pode proporcionar É neste sentido que a psicologia tem papel
fundamentos que exiba que seus colaboradores essencial no contexto das organizações. Trabalha
estão sendo tratados de forma igualitária, não para que, se não extinguir, minimizar os processos
havendo qualquer forma de discriminação de patologização que podem surgir através dos
(NORLOCH, 2015). No âmbito, do cotidiano do modos de exercício de práticas preconceituosas e
trabalhado com os colaboradores LGBT, assim discriminatórias das pessoas nos seus locais de
como com qualquer outra pessoa deve promover o trabalho ou em virtude do seu não acesso. É
respeito às diferenças singulares como princípio preciso colocar diversas temáticas em destaque no
ético ligado à condição humana, e por isso, as que se refere ao sofrimento psíquico do
mesmas não podem ser usadas como mecanismo trabalhador: formação e educação permanente para
de reprodução dos tratos desiguais e os profissionais (como uma forma de reconhecer e
discriminatórios, com a população LGBT. erradicar as práticas e os efeitos perversos dos
processos de discriminação e de exclusão no
2.4 A Psicologia do Trabalho e a Saúde cotidiano dos serviços, no sentido de reverter à
Mental do Trabalhador (a) LGBT mudança de tais atitudes no contexto saúde do
trabalhador LGBT); direitos humanos e saúde
A psicologia e seus vastos campos de atuação mental como o combate ao estigma, respeito à
proporcionaram a sua inserção em um lócus que diferença e à diversidade, garantia dos direitos
até pouco tempo mantinha-se como campo sem sociais e civis e cidadania.
estudo ou investigação, atualmente definido como
campo da Saúde do Trabalhador. 2.5 População LGBT e o Papel da Psicologia
como Mediadora no Campo das Políticas
Neste âmbito, a saúde mental do trabalhador,
Públicas Frente aos Processos Discriminatórios
principalmente destes sujeitos da pesquisa que são
foco de inúmeros processos discriminatórios, de Podemos pensar a psicologia como um
falta de reconhecimento, da não aceitação do seu dispositivo de ressignificação e de (RE)construção
produto, - que é a sua força de trabalho na medida de protagonismo de sujeitos e de grupos

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vulneráveis, tal como a população em estudo. É missão (é dever) do Ministério dos Direitos
Nesse sentido, às práticas da psicologia aliada a Humanos (MDH) desenvolver políticas públicas de
outros processos e instituições, surge como enfrentamento ao preconceito e à discriminação
mediadora no campo das politicas públicas frente contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
aos processos discriminatórios e de apagamentos Transexuais (LGBT). Tal missão é executada pela
subjetivos sejam eles quais forem. Desta forma vale Diretoria de Promoção dos Direitos de Lésbicas,
ressaltar que o cerne da psicologia é viabilizar um Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
ensaio crítico sobre os mecanismos de controle e (DPLGBT).
aniquilamento subjetivo na contemporaneidade e Para Haubert (2012), um grupo homossexual
combatê-lo. Conforme as diretrizes do CRP - atua como uma forma de sindicato para defender a
Conselho Federal de Psicologia (1990) e A categoria, juntando forças para combater a
Constituição Federal do Brasil (1988), os psicólogos discriminação e fazer pressão sobre o poder
devem operar na direção de afirmação às público, para garantir assim os direitos de cidadania
diversidades raciais, étnicas, sexuais e dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais.
principalmente, combater ações preconceituosas e No ano de 2008 houve no Brasil diversas
de violência a grupos vulneráveis, como as práticas conferências com temas que envolviam direitos
homofóbicas. humanos e LGBT, tendo a Conferência Nacional
A psicologia na contemporaneidade começa a se GLBT que aconteceu em Brasília no período de 5 a
reconfigurar diante de antigo-novas demandas 8 de junho de 2008, grande propulsor das
principalmente por que o campo das políticas demandas LGBTs, sendo a primeira Conferência
públicas e da militância possibilita a atuação de com essa abordagem no mundo. Nessa
muitos profissionais, psicólogos, assistentes conferência, foram debatidas políticas públicas e a
sociais, sociólogos e outros que venham a se urgência para a elaboração do Plano Nacional de
somar com seus saberes, garantindo proteção e Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de
que certos direitos fundamentais sejam direcionado LGBTT. Também foi objetivada a revisão, avaliação
a certos vulneráveis, no caso em tela a população e definição de estratégias para consolidação das
LGBT. Estes profissionais ampliarão a visão crítica ações propostas no “Brasil sem Homofobia”. Além
de um profissional e potencializarão o processo de da intensificação do debate sobre o Projeto de Lei
construção de noções afirmativas de coletividade e da Câmara no. 122/2006, que objetiva criminalizar
cidadania. “Pensar é desnaturalizar, buscando práticas de preconceito baseado na orientação
compreender os jogos que determinam, a cada sexual e identidade de gênero.
época, o que pode ser dito ou visto, ou ainda, o que Argumentar a resistência dos direitos e políticas
deve manter-se na escuridão e silêncio. Isto públicas para a população LGBT pressupõe
determina “uma tomada de posição”” (FOUCAULT, absolutamente em transformações no repertório
1999). Em adesão ao pensamento foucaultiano, dos costumes, moral e padrões sexuais impostos e
penso que desnaturalizar é deslocar práticas, estabelecidos historicamente na sociedade
ideias, ações, modos, paradigmas há tempos brasileira. Com a falta de cidadania para essa
constituídos. Neste sentido o papel do psicólogo no deliberada parte da população e as dificuldades
exercício profissional como um dos operadores das enfrentadas de forma recorrente, ainda é uma
Políticas Públicas, deve ocorrer via uma psicologia disputa muito grande alcançar grandes apoteoses e
forte e potente. transformações no contexto político e jurídico
Aqui estão alguns exemplos no campo das brasileiro. Nesse seguimento verificamos que um
Políticas Públicas: Clínica Ampliada no campo da contexto pode existir durante muito tempo,
Saúde Mental Coletiva, na Assistência Social dominando imensamente coletivos de pessoas e
práticas de participação e protagonismo, economia ocasionando contrariedade sem, entretanto, chegar
solidária, saúde mental e qualidade de vida no a sensibilizar as competências governamentais.
trabalho e demais práticas de visibilidade.
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Neste caso, trata-se de um "estado de coisas" lutas e conquistas que o movimento LGBT construiu
como explicita Rua (2009): e conquistou e porque não afirmar edificou, embora
Algo que incomoda, prejudica, gera insatisfação muitos espaços ainda estejam sem a presença
para muitos indivíduos, mas não chega a constituir destes coletivos. Vejo com satisfação modos
um item da agenda governamental, ou seja, não se sólidos de imposição a estas pessoas a um lugar de
encontra entre as prioridades dos tomadores de descredenciamento ruírem em razão da própria luta
decisão. Quando este estado de coisas passa a e busca de direitos do movimento, aliado a
preocupar as autoridades e se toma uma prioridade questões políticas, sociais, culturais e de teor
na agenda governamental, então tornou-se um humano emergentes. Assim, passa a dar início a
"problema político." uma reestruturação de valores em relação às
Mello e Brito (2012) entendem a necessidade de pessoas LGBT’s, regras e modos e normas
que todas as iniciativas possam favorecer a culturais reinventando outras práticas de ver a
construção de uma cultura política compromissada diversidade sexual como um caminho que pode ser
com a superação dos preconceitos, discriminações seguido pelos sujeitos desta orientação,
e exclusões na esfera dos direitos sexuais, que compreendendo, sobretudo no mercado de trabalho
atinge principalmente, mas não só, a população a existência de gays, lésbicas, bissexuais, travestis
LGBT. Nessa conjuntura, o reconhecimento das e transexuais, além de cada condição, como
demandas LGBT‟s pelo Estado bem como a trabalhadores, indivíduos que podem produzir para
promoção de valores e práticas fomentada pelos seu próprio bem e bem da sociedade, e que eles
movimentos sociais, certamente são ferramentas portam garantias e estão estabelecidos nas
extraordinárias para que diferentes grupos sociais políticas públicas não por uma circunstância, mais
passem a ter uma visão de mundo menos por serem cidadãos.
heteronormativa, expandindo as possibilidades de Escolher odiar, ou desconsiderar alguém por
formação de uma opinião pública mais favorável, sua orientação sexual é tão somente uma
inclusive, à aprovação de leis que assegurem demonstração de certo desvio de caráter, nada
cidadania plena à população LGBT. mais justifica. E hoje é necessário chamar mais
atenção pelas questões das minorias, pois é o
momento para reafirmar que a luta pelos direitos
CONSIDERAÇÕES FINAIS LGBT`s é uma luta de todos aqueles que buscam
Observei a partir desta minha pesquisa, o quanto uma sociedade de respeito e de igualdade, onde os
a população LGBT/Lésbicas, Gays, Bissexuais e Direitos Humanos são vividos em sua integralidade.
Transgêneros, vêm historicamente construindo
REFERÊNCIAS
enfrentamentos para garantir direitos fundamentais
coletivos como saúde, educação e trabalho, e ADAM, B. D. The rise of a gay and lesbian
individuais como viver a sua sexualidade sem que movement.Boston: Twayne. 1987
isto possa ser considerado comportamento BARRETO, A.; ARAÚJO, L.; PEREIRA, M. E.
desviante, anormal ou ilegal. Saber que o grupo em Gênero e diversidade na escola: formação de
questão busca apenas por respeito, ao direito à professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e
sexualidade plena, a orientação sexual sem o julgo Relações ÉtnicoRaciais. Livro de conteúdo. versão
do preconceito, sob a mira das várias violências, e 2009. – Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM,
poder lidar com o essencial de cada um as 2009.
expressões da identidade de gênero englobando as BARROS, A. J. S.; LEHFELD, N. A. S.
atribuições e alcance aos serviços e políticas Fundamentos da Metodologia Cientifica.3 ed. São
públicas considerando a singularidade do coletivo Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007.
aqui citado. Considero indispensável que se traga BRASIL, A. Transgênero, transexual e travesti: os
para âmbito público, seja via pesquisa, ou outros desafios para inclusão do grupo no mercado de
meios de divulgação, os fatos, as narrativas, as
96
trabalho. 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 de Portaria/SNAS Nº 224 - 29 de Janeiro de 1992
dez. 2017. CACP. Centro Apologético Cristão de (BRASIL, 2001). A respeito da constituição do
Pesquisas. 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 primeiro CAPS no Brasil, afirma Goldberg: “A
de fev. 2018. expectativa dos profissionais dessa instituição era
DECOL, D. Judeus no Brasil: Explorando os dados oferecer um cuidado personalizado aos pacientes,
censitários. 2001. Revista Brasileira de Ciências com a complexidade que cada caso requer, por
Sociais, n 16, p. 46. períodos tão longos quanto o tipo da evolução de
FALCÃO, K. J. Formação histórica da sua doença exigisse e sem afastálos da família e da
homossexualidade: um percurso marcado pela comunidade” (GOLDBERG, 1998, p.12). Assim, o
discriminação e pelo preconceito. Disponível em: CAPS é serviço estratégico na concretização da
Acesso em: 28 de nov. 2017. atual política de Saúde Mental do Brasil, que
FERRARI, A. Revisando o passado e construindo o pretende oferecer uma rede de serviços substitutiva
presente: o movimento gay como espaço educativo. aos hospitais psiquiátricos, capaz de responder às
Universidade Federal de Juiz de Fora. Revista necessidades das pessoas com sofrimento psíquico
Brasileira de Educação. 2003. respeitando sua cidadania e o cuidado em
FOUCAULT, M. DITS ET ECRITS 2: 1976-1988.1 liberdade.
ed. Gallimard: 2001. . Entrevista concedida No contexto da Reforma Psiquiátrica, os serviços
em 1977. Tradução Brasileira. Sobre a história da substitutivos devem ter a missão de superar o
sexualidade. paradigma manicomial, direcionados por novas
MACHADO, R. (org.). Microfísica do Poder. Rio de bases e valores éticos que venham a produzir uma
Janeiro: Graal, 1999. p.145-152 nova forma de convivência solidária e inclusiva.
MELLO, L.; BRITO,W. Políticas públicas para a Os CAPS têm se constituído como dispositivos
população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e que buscam tornarem-se substitutivos às
possibilidades. In: Cadernos Pagu. nº 39, jul-dez de internações psiquiátricas, oferecendo, além da
2012. p. 403- 429 atenção à crise, um espaço de convivência e a
Veja referência completa no artigo completo… criação de redes de relações que se alarguem para
além dos locais das instituições, atingindo o
9. REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA A território da vida cotidiana dos usuários.
ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS (OS) NO CAPS - Atualmente, a Rede de Saúde Mental é composta
CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL por 28 um conjunto de equipamentos e serviços de
atendimento integral e humanizado, conforme
descrito a seguir:
Para apresentar este tema tão caro para a
Psicologia, a comissão de elaboração dessa Centro de Atenção Psicossocial – CAPS:
referência, com intuito de orientar o texto, optou por
São instituições destinadas a acolher pessoas
construir uma introdução com a definição do
com sofrimento psíquico grave e persistente,
Serviço no Centro de Atenção Psicossocial-CAPS,
estimulando sua integração social e familiar,
sua estrutura e a rede de atendimento, para depois
apoiando-os em suas iniciativas de busca da
introduzir conceitos importantes, alem do contexto
autonomia. Apresenta como característica principal
sobre os quais esta referência tratará.
a busca da integração dos usuários a um ambiente
Os Centros/Núcleos de Atenção Psicossocial
social e cultural concreto, designado como seu
(CAPS/NAPS) são serviços da rede pública de
território, o espaço da cidade onde se desenvolve a
saúde que visam, como parte de uma rede
vida cotidiana de usuários e familiares, promovendo
comunitária, à substituição dos hospitais
sua reabilitação psicossocial. Tem como preceito
psiquiátricos - antigos hospícios ou manicômios - e
fundamental ajudar o usuário a recuperar os
de seus métodos para cuidar de transtornos
espaços não protegidos, mas socialmente passíveis
mentais. Foram instituídos por meio da
à produção de sentidos novos, substituindo as

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relações tutelares pelas relações contratuais, implantadas no Brasil, com 3.470 moradores em
especialmente em aspectos relativos à moradia, ao 2011. (BRASIL, 2012)
trabalho, à família e à criatividade.
Programa de Volta para Casa – PVC:
A atual política prevê a implantação de diferentes
tipos de CAPS: Este programa foi instituído pela Lei Federal
10708 de 31 de julho de 2003, e tem por objetivo
• CAPS I – Serviço de atenção à saúde mental garantir a assistência, o acompanhamento e a
em municípios com população de 20 mil até 70 mil integração social, fora da unidade hospitalar, de
habitantes. Oferece atendimento diário de 2ª a 6ª pessoas com sofrimento psíquico, com história de
feira em pelo menos um período/dia. longa internação psiquiátrica e também nos
• CAPS II – Serviço de atenção à saúde mental hospitais de custódia e tratamento (02 anos ou mais
em municípios com população de 70 mil a 200 mil de internação ininterruptos). É parte integrante
habitantes. Oferece atendimento diário de 2ª a 6ª deste Programa o auxílio-reabilitação, pago ao
feira em dois períodos/dia. próprio beneficiário durante um ano, podendo ser
• CAPS III – Serviço de atenção à saúde mental renovado, caso necessário. São 3.961 beneficiários
em municípios com população acima de 200 mil do PVC no país em 2011. (BRASIL, 2012)
habitantes. Oferece atendimento em período
integral/24h. Serviço Hospitalar de Referência para atenção a
• CAPS ad – Serviço especializado para usuários pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
de álcool e outras drogas em municípios de 70 mil a com necessidades de saúde decorrentes do uso de
200 mil habitantes. álcool, crack e outras 30 drogas: São leitos de
• CAPS ad III – Serviço especializado para retaguarda em hospital geral com metas de
usuários de álcool e outras drogas em municípios implantação por todo o Brasil. (BRASIL, 2012).
com população acima de 200 mil Centros de convivência: Os Centros de
• CAPS i - Serviço especializado para crianças, Convivência são estratégicos para a inclusão social
adolescentes e jovens (até 25 anos) em municípios das pessoas com transtornos mentais e pessoas
com população acima de 200 mil habitantes. que fazem uso de crack, álcool e outras drogas, por
meio da construção de espaços de convívio e
Segundo dados atualizados do Ministério da
sustentação das diferenças na comunidade e em
Saúde, existem hoje no Brasil 822 CAPS I; 431 variados espaços da cidade. (BRASIL, 2011). Estes
CAPS II; 63 CAPS III; 272 CAPS ad e 149 CAPSi e dispositivos ainda não recebem financiamento do
5 CAPS ad III perfazendo um total de 1742 Ministério da Saúde. Unidade Básica de Saúde:
serviços. (Saúde Mental em dados 10 - BRASIL,
2012) A Unidade Básica de Saúde como ponto de
atenção da Rede de Atenção Psicossocial tem a
responsabilidade de desenvolver ações de
Serviços Residenciais Terapêuticos – SRT: promoção de saúde mental, prevenção e cuidado
São casas localizadas no espaço urbano, dos transtornos mentais, ações de redução de
constituídas para responder às necessidades de danos e cuidado para pessoas com necessidades
moradia de pessoas com sofrimento psíquico decorrentes do uso de crack, álcool e outras
graves, egressas de hospitais psiquiátricos ou drogas, compartilhadas, sempre que necessário,
hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, que com os demais pontos da rede. As ações da
perderam os vínculos familiares e sociais; Estratégia de Saúde da Família (ESF) e Núcleos de
moradores de rua com transtornos mentais severos, Apoio à Saúde da Família (NASF) estão
quando inseridos em projetos terapêuticos referenciadas nas Unidades Básicas de Saúde.
acompanhados nos CAPS. São 625 casas (BRASIL, 2011)

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Consultório na Rua: Equipe constituída por com necessidades decorrentes do uso de crack,
profissionais que atuam de forma itinerante, álcool e outras drogas. Essa portaria impacta
ofertando ações e cuidados de saúde para a diretamente a estrutura da Rede de atendimento da
população em situação de rua, considerando suas Saúde Mental. A RAPS passam a serem formadas
diferentes necessidades de saúde. No âmbito da por sete componentes da Rede de Saúde, desde a
Rede de Atenção Psicossocial é responsabilidade Atenção Básica , passando pela Atenção
da Equipe do Consultório na Rua ofertar cuidados Psicossocial Especializada, a Urgência e
em saúde mental para (i) pessoas em situação de Emergência e a Atenção Residencial de Caráter
rua em geral; (ii) pessoas com transtornos mentais Transitório. As RAPS também são compostas pelos
e (iii) usuários de crack, álcool e outras drogas, componentes da Atenção Hospitalar, Estratégias de
incluindo ações de redução de danos, em parceria Desinstitucionalização e a Reabilitação
com equipes de outros pontos de atenção da rede Psicossocial.
de saúde. (BRASIL, 2011)
A ATUAÇÃO DA (O) PSICÓLOGA (O) NA
Escola de Redutores de Danos (ERD): As POLÍTICA DO CAPS
Escolas de Redutores de Danos do SUS tem como
objetivo a qualificação da rede de serviços, por O modo de fazer: desinstitucionalização da
meio da capacitação teórica e prática de segmentos prática e intervenção na cultura.
profissionais e populacionais da comunidade, que
A Reforma Psiquiátrica, política pública do
atuarão na rede de atenção substitutiva em saúde
Estado brasileiro de cuidado com as pessoas de
mental, com a oferta de ações de promoção,
sofrimento mental, é, em sua concepção e
prevenção e cuidados primários, intra ou
proposta, muito mais que uma reforma da
extramuros, que superem a abordagem única de
assistência pública em saúde mental. É, antes, e,
abstinência. (BRASIL, 2010). Em 2005, o Ministério
sobretudo, um complexo processo de
da Saúde apresentou como referência para
transformação assistencial e cultural que, ao
constituição de rede de saúde mental.
deslocar o tratamento do espaço restrito e
Nesta perspectiva a implementação da rede especializado de cuidado da loucura: o hospital
substitutiva priorizou de forma estratégica a psiquiátrico, para a cidade, que provoca mudanças
implantação e ampliação dos CAPS, tornando no modo como a sociedade se relaciona com esta
acessível outro modo de cuidado, a redução de experiência. O que coloca, de saída, para todos os
leitos em instituições psiquiátricas e outros dispositivos inventados por esta política, a
consequentemente a construção de uma nova saber, os chamados serviços substitutivos, e os
cultura assistencial, dando visibilidade à questão da CAPS são um destes serviços, uma dupla missão:
saúde mental. É importante salientar que no a de serem lugares de cuidado, sociabilidade e
processo de implantação da reforma psiquiátrica convívio da cidade com a loucura que a habita.
até o ano de 2010 haviam sido fechados 32.735 Lugares de tratamento e convívio entre
leitos em Hospitais Psiquiátricos no Brasil. diferentes, de realização de trocas simbólicas e
(BRASIL, 2011) É pelo papel estratégico dos CAPS culturais, enfim, lugares e práticas que
na rede substitutiva de cuidado em saúde mental desconstroem, em seu fazer cotidiano, uma
que se justifica sua eleição para 32 pesquisa e arraigada cultura de exclusão, invalidação e
produção de referência pelo Crepop. silenciamento dos ditos loucos, ao promover
intervenções no território que revelam
Em Dezembro de 2011, o governo brasileiro possibilidades de encontro, geram conexões,
estabelece entre suas prioridades na saúde, a Rede questionam os preconceitos e fazem aparecer a
de Atenção Psicossocial (RAPS) pela Portaria novidade: a presença cidadã dos portadores de
GM/MS nº 3.088/2011 –, preconiza o atendimento a sofrimento mental.
pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
99
Os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial - cotidiana de técnicos, usuários e familiares não
são uma das invenções deste processo que se encontra referência em nenhuma teoria ou
articulam e ganham potência no pulsar da rede na disciplina. Não está previsto em nenhum manual de
qual se inserem, e cumprem, dentro da arquitetura Psicologia ou qualquer outra disciplina e nem
aberta, livre e territorializada da reforma, um sempre se formaliza como saber teórico. “Práticas
importante papel. que – é importante assinalar– ocorrem ao lado de, e
Cabe a este estratégico serviço a resposta pela convivem com intervenções absolutamente
atenção diária e intensiva às pessoas com legitimadas e aceitas pelo saber técnicocientífico”.
sofrimento mental, oferecendo acolhimento, (Desinstitucionalização da prática e práticas da
cuidado e suporte desde o momento mais grave _ a desinstitucionalização. Texto apresentado no
crise, senha de ingresso no manicômio, até a Encontro Nacional “20 anos de Bauru” mimeo.
reconstrução dos laços com a vida. Materializando Bauru, 2007. CFP). Ou seja, a invenção convive
uma máxima psicanalítica, cabe aos CAPS, suas com a tradição, sempre balizada, contudo, por 95
equipes e recursos clínicos, não recuar frente à uma ética: a da liberdade e do respeito às
loucura ou ao sofrimento psíquico, tomando posição diferenças. Segue-se a tradição quando a mesma,
e se contrapondo à exclusão como método de suas prescrições e normas “não se constituem em
tratamento, mas também oferecendo ao estrangeiro obstáculos à vida e ao direito humano”.
da razão (LIMA, 2002) hospitalidade, manejos Pode-se afirmar, portanto, que em essência a
criativos e singulares para fazer contorno à dor prática nos CAPS é um embate entre a tradição e a
intensa e assegurar ao sujeito os direitos de um invenção, a construção do novo na negação do
cidadão. Cabe ainda ao CAPS, a invenção, velho; ou ainda, a construção diária de outro
pretensão que contrariaria a lógica que o instituiu, paradigma para o cuidado com a loucura que insere
contudo, é importante salientar que a clínica entre seus recursos e como condição preliminar
antimanicomial não é um fazer eclético, nem para o tratamento, a cidadania de quem é cuidado e
tampouco destituído de sentido. Ao contrário, a de quem cuida. Uma relação de cuidado, onde nos
criação, a invenção desta nova prática de trato e dois polos – terapeuta/paciente, devemos sempre
relação com a loucura sustenta-se em princípios encontrar um cidadão.
éticos claros e definidos. O direito à liberdade, o A liberdade é um dos direitos de todo cidadão.
consentimento com o tratamento, o respeito à E, para a Reforma Psiquiátrica, é o ponto de partida
cidadania e aos direitos humanos, a participação do da clínica. O que é feito tem na liberdade sua causa
usuário no serviço; articulam-se aos conceitos de e consequência. Cuidar em liberdade é, mais que
território, desinstitucionalização, porta aberta, uma máxima, uma diretriz. É posição que se traduz
vínculo, trabalho em equipe e em rede. Este na prática e em sentidos variados. Inicia-se na
conjunto formam os pontos de orientação que supressão das grades, na eliminação dos espaços
organizam e dão sentido ao cuidado nestes lugares. de isolamento e segregação, ou seja, na
A pergunta: o que se faz num lugar como este, substituição da arquitetura da exclusão, para
como é o tratamento dentro de um CAPS, quais são alcançar um ponto subjetivo e cidadão: o
os recursos terapêuticos adotados por esta prática consentimento com o tratamento. Para tratar,
de cuidado, questões sempre endereçadas à rigorosamente, é necessário ser livre para decidir
Reforma Psiquiátrica, é antecedida, portanto, por quando e porque tratar-se, sendo igualmente
uma orientação ética que diz por que se faz assim e importante, para esta clínica, tratar sem trancar,
não de outro modo. tratar dentro da cidade, buscando os laços sociais,
Tornou-se lugar comum a afirmação de que nos o fortalecimento ou a reconstrução das redes que
serviços substitutivos ocorre uma prática inventiva, sustentam a vida de cada usuário.
desinstitucionalizadora. E isto é absolutamente Liberdade e responsabilidade são, portanto,
verdadeiro. Nos novos serviços, nos CAPS, muito conceitos orientadores da prática clínica dos
do que é feito, grande parte da experiência serviços substitutivos e dos CAPS, em particular. A
100
responsabilidade foi problematizada pela reforma Tratar em liberdade é não pressupor a reclusão
psiquiátrica e a grande novidade foi a introdução do como modo de tratar, subvertendo tanto a lógica
reconhecimento da vontade e da responsabilidade quanto o pensamento clínicos. Abertas as portas,
na experiência da loucura. Ao modular a internação suprimidas as grades _ primeira tomada de
– artigo 4º da lei 10216 de 2001, dá a esta o decisão, outra mudança deve se operar. Faz-se
estatuto de um recurso entre outros e não mais o necessário abandonar a posição de tutores dos
recurso, a ser usado quando os demais houverem loucos e da loucura, recusando, ainda, a condição
se esgotado. Deste modo, produziu um corte em de agentes da ordem, inventando ou descobrindo o
relação às práticas de sequestro da loucura. Além novo lugar e função a ser exercida: o de parceiros
disso, distinguiu a aplicação jurídica da terapêutica. da loucura.
No campo do tratamento, a internação pode se dar Uma das máximas basaglianas ensina que é
em acordo com a vontade do sujeito, “preciso colocar entre parênteses a doença para
voluntariamente, e em desacordo com seu querer, encontrar o homem”. Deslocar o olhar da doença
involuntariamente. E neste ponto 96 reside a para o cidadão que sofre e para o sujeito que se
novidade, a subversão: se o ato se faz contra a manifesta e assim se expressa é um giro na
vontade de um sujeito, é porque há aí o posição de quem cuida que possibilita desvelar, na
reconhecimento da expressão de um querer, da manifestação do sofrimento, os sentidos ou
capacidade de manifestar e decidir sobre sua vida e significados que o mesmo revela ou expressa, mas
seus atos, mesmo que em crise ou surto. E visando também, as conexões e rupturas que põem em
minimizar os riscos de possíveis abusos da razão jogo.
no uso do poder sobre a loucura, o responsável por O sofrimento psíquico ou a crise - sua expressão
este ato fica obrigado a prestar contas do mesmo, mais intensa podem assim ser percebidos para
informando-o ao Ministério Público, instância além da dimensão psicopatológica. Entra em jogo
convocada pela lei, a avaliar e decidir quanto a aqui, a necessária escuta e o reconhecimento do
pertinência da decisão e os efeitos que provocou no sujeito e do laço social. Assim, temos a
exercício da cidadania do sujeito à mesma psicopatologia articulada à dimensão subjetiva e ao
submetido. Este é o sentido dado pela Lei da laço social. A crise do sujeito, ou o conflito que não
Reforma Psiquiátrica a internação involuntária. encontrou lugar na subjetividade e por isso tornou-
Completamente distinta é a internação se insuportável e transbordou, precisa ser escutada
compulsória. Nesta não há manifestação de naquilo que esta produz de tensionamento, ruptura
vontade, mas imposição de pena. Aqui temos um ou conexão com os laços sociais. Mudando a
ato jurídico, uma prescrição legal determinada por abordagem, muda-se, também, a resposta. Não
um juiz e decidida no curso de um processo e mais traduzida como senha para a perda da
nunca fora dele. cidadania, a crise pode ser inscrita e tratada
O projeto antimanicomial é comumente buscando a responsabilização possível, naquele
compreendido como uma ética que apenas momento e o consentimento do sujeito/cidadão com
beneficia as pessoas com sofrimento mental. Uma o tratamento. As intervenções, não mais exteriores
“leitura simplista e equivocada, que confunde direito e traduzidas pela razão, orientam-se pela palavra
com privilégio, dimensão que a luta antimanicomial do sujeito.
jamais reivindicou para os ditos loucos. A defesa do Tomar a fala do louco como orientador da
direito à liberdade e a cidade para os portadores de intervenção sobre seu sofrimento é uma novidade,
sofrimento mental, reconhece a exclusão de que uma ruptura com a institucionalização que culminou
eles foram e ainda são vítimas e reclama o seu na consagração da loucura como sinônimo de
direito por cidadania por compreender que esta é doença mental e esvaziou esta experiência de sua
uma condição preliminar para a clínica”. (SILVA, verdade, tornando inócuo e destituído de sentido o
2010, pg. 147) seu dizer.

101
No meio do mundo sereno da doença mental, o neste se baseia para desenhar o projeto de
homem moderno não se comunica mais com o tratamento a ser ofertado. Sempre singular e
louco; há de um lado, o homem de razão que distinto, na medida mesma da singularidade de
delega para a loucura o médico, não autorizando, cada experiência de sofrimento e do momento de
assim, relacionamento senão através da vida de cada usuário, esta metodologia introduz na
universalidade abstrata da doença... a linguagem prática clínica um operador o projeto terapêutico
da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a singular, que articula o sentido dos recursos
loucura, só pôde estabelecer-se sobre um tal colocados à disposição de cada um.
silêncio. (FOUCAULT, pg. 153, 2002. Prefácio (folie Bússola que orienta usuários e equipes no
et déraison) in Ditos e Escritos nº I. percurso pelo serviço e pela rede, o projeto
Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e terapêutico singular, articula os recursos colocados
psicanálise. à disposição pela política, mas também aqueles
que nos trazem cada usuário, seus familiares e
Neste ponto é preciso destacar outro suas referências. Instrumento mutável que busca
importante conceito: o vínculo ou a transferência e responder às necessidades, naquele momento e
um desdobramento ou efeito deste, a referência. para cada usuário, sendo ainda a expressão e o
Mais que qualquer outro recurso, o que a prática espaço de inscrição das soluções e estratégias
nos CAPS revela de mais potente é que é o vínculo criadas por cada um na reconstrução de sua
o recurso que melhor trata o sofrimento. É esta história e vida.
ferramenta, se quisermos assim nomear, que Para um, a permanência diária e hospitalidade
reveste todos os recursos disponíveis e possíveis noturna farão o contorno ao sofrimento; para outro,
de serem utilizados de sentido terapêutico e os a oferta de uma ida ao cinema e ao teatro, a
tornam potentes na resposta. Assim, um remédio participação na assembleia e na festa; o
tem tanto valor de alívio quanto um simples medicamento e a terapia, a negociação e a acolhida
passeio, ou uma festa, ou ainda, a conquista de dos familiares ou, a conquista de uma moradia, o
condições dignas de vida, a elaboração ou a acesso ao trabalho; e para todos a porta aberta que
subjetivação da experiência do sofrimento e a permite o acesso direto e no momento que uma
construção de um saber sobre a mesma. questão fizer urgência e desorganizar o ritmo do
E aqui é preciso considerar as dimensões viver, sem mediações e burocracias. O acesso ao
singular e coletiva dos vínculos. No plano micro, a serviço, à proteção e à palavra para fazer valer os
importância do vínculo com um técnico específico e direitos e a subjetividade.
no coletivo ou macro, o vínculo com um serviço. A Mas, a clínica dos CAPS distancia-se, e muito,
desconstrução do manicômio é também e de modo da ideia corrente que referencia a percepção social
sensível, um processo de substituição de acerca do fazer clínico. Ou seja, a clínica de um
referências, de reendereçamento do pedido de CAPS não se faz só de colóquios íntimos. Conjuga
resposta à dor, antes dirigido à instituição total, a elaboração subjetiva e reabilitação no processo de
lugares e sujeitos que assumem a responsabilidade construção da autonomia e da capacidade de cada
ética de cuidar e funcionar como suporte para a usuário. Por isso, agrega à psicoterapia e ao
vida de sujeitos/cidadãos vulneráveis e sempre em medicamento, a potência de outros recursos e
vias de exclusão social. intervenções.
Não mais assentada sobre o princípio único da Oficinas, assembleias, permanência,
totalização e homogeneização, buscando respostas hospitalidade, mediação das relações entre os
singulares e complexas, a prática nos CAPS sujeitos e seus familiares, suas referências e redes
assume o desafio de construir seu conhecimento na têm tanto valor quanto os recursos da ciência e da
partilha dos saberes. Um trabalho, portanto, técnica. Tratar para esta clínica, é construir as
coletivo, feito a muitas mãos e fruto de diferentes condições de liberdade e capacidade de se inserir
perspectivas que se orienta pelo saber do louco e na cidade, de fazer caber a diferença sempre
102
singular, no universal da cidadania, com cada periculosidade ou a doença (entendida como algo
usuário. que está no corpo ou no psiquismo de uma
A clínica no território e o confronto com as pessoa). Para nós, o objeto sempre foi a
verdades do manicômio. “existência-sofrimento dos pacientes e sua relação
As crônicas do cotidiano de um CAPS são repletas com o corpo social”. O mal obscuro da Psiquiatria
de cenas que demonstram, em ato, os sentidos da está em haver constituído instituições sobre a
desinstitucionalização. O inusitado presente nas separação de um objeto fictício a doença - da
mesmas é efeito de uma aposta que desconstrói existência global, complexa e concreta do paciente
pontos de “verdade” da tradição. Por exemplo: a e do corpo da sociedade.
convocação à responsabilidade do sujeito não se Deste modo, percebe-se que as
dá pela imposição da autoridade, nem, apenas, no ações/intervenções prioritárias na prática clínica
momento da recuperação da saúde. Passa, pela dos CAPS não provêm da química nem da
descoberta da lucidez e da capacidade de decisão, elaboração, importantes e necessárias, mas parte
mesmo no momento da crise, o que joga por terra e do conjunto de estratégias típicas da reabilitação
desconstrói a crença de que a crise é momento psicossocial, que evidenciam a ausência de
onde a capacidade de decidir e responder por seus direitos, a desabilitação promovida pela
atos encontra-se 100 suspensa e o sujeito institucionalização de um modo de vida doente e
necessita, sempre, de tutela. promovem, como forma de superar tais limites, o
A necessidade do manicômio como resposta acesso ao campo dos direitos e o exercício do
para alguns casos é hoje um dos argumentos que protagonismo dos sujeitos, tecendo junto com este,
desafiam a capacidade criativa, criadora ética de redes de suporte e sustentação para seu modo
um CAPS. Quase sempre os casos supostos como próprio de experimentar o sofrimento e conduzir a
impossíveis para um CAPS apresentam maior vida.
fragilidade dos laços, ou uma situação de abandono Na perspectiva da desinstitucionazação as
e ausência de referências. Para estes, a prévia terapias seja químicas ou psicoterápicas, são
receita da exclusão. meros recursos de mediação num processo amplo
A adequação do sujeito à norma, lembramos, de reconstrução dos modos de viver de cada
não responde à sua necessidade singular. O sujeito. Contudo, é preciso lembrar que como
manicômio, resposta da razão à loucura, apenas processo em curso, a prática dos CAPS e a ética
agudiza e torna mais miserável e indigna qualquer libertária da reforma psiquiátrica convivem e se
vida. Ou seja, não é solução, mas resposta defrontam, cotidianamente, com os mitos da
simplista da racionalidade. Desconstruí-lo, em tais incapacidade, periculosidade, com os mandatos de
situações, requer e introduz no cuidado em saúde tutela e exclusão, ou seja, com a lógica manicomial
mental situações que extrapolam, transcendem o que interpela a Reforma Psiquiátrica e os CAPS na
arsenal terapêutico, ou melhor, que enriquecem a validade de sua resposta, mesmo frente à sensível
clínica ao nesta introduzir as questões relativas à inovação de sua prática e seus efeitos
vida e não à doença. transformadores.
No texto “Da instituição negada a instituição Um tema frequente e que angustia as equipes
inventada”, Franco Roteli nos diz que a instituição dos CAPS e demais serviços da rede substitutiva, a
em questão era o conjunto de aparatos científicos, adesão ao tratamento revela, um dos limites da
legislativos, administrativos, de códigos de aposta da clínica antimanicomial: o consentimento
referência cultural e de relações de poder com o tratamento. Operar de forma avessa à
estruturados em torno de um objeto bem preciso: “a tradição exige criatividade, disposição e aposta nos
doença”, à qual se sobrepõe no manicômio o objeto efeitos subjetivos da implicação responsável de
“periculosidade”. Por que queremos esta cada um com o sofrimento e o modo de tratá-lo.
desinstitucionalização? Porque, a nosso ver, o Tradicionalmente, a resposta seria dada, sem
objeto da Psiquiatria não pode nem deve ser a questionamentos, pelo polo da razão, ou seja, pela
103
tradução dada pelo técnico à expressão do coisa do que fazemos e, neste momento, muda-se
sofrimento. Na desinstitucionalização um giro se a relação, e até mesmo o nosso paciente percebe
produzirá e aí, o que era simples, ou melhor, que algo mudou. (ROTELLI,2008 pag. 44)
simplificado, torna-se complexo. Entra em cena o Desinstitucionalizar a prática implica em
sujeito louco e sua responsabilidade. abandonar o manicômio como causa, como sentido
Deste modo enquanto o sujeito que sofre não lógico que prescreve modos de vida limitados,
reconhece quem o cuida como recurso de alívio anônimos e sem voz. E para isso não há manual ou
para sua dor, ainda que frequente ao serviço, código de conduta, mas há uma ética. A ética da
mesmo que se mostre obediente à proposta de liberdade. E há saber. Saber que quase nada se
organização do tratamento, a eficácia deste sabe e que o outro, o louco, pode e deve nos
percurso permanecerá reduzida. E o desenlace ou orientar quanto às possibilidades de saída para sua
o abandono de um projeto de tratamento pode dor.
significar, entre outras coisas, um desencontro
entre oferta e demanda, uma recusa ativa de quem
é tratado à oferta que lhe é feita, ou ainda, a Trabalho em rede: uma resposta sempre
adoção de outra solução às vezes construída no complexa e necessária à desconstrução do
silêncio e na solidão subjetiva, que não coloca o manicômio.
usuário em conexão com o serviço.
A escolha da ideia de rede como modo de
A adesão ao tratamento ou sua ausência organizar os serviços toma como ponto de partida a
deve ser sempre problematizada no movimento e negação da arquitetura rígida e hierárquica do
curso de uma história de tratamento, implicando a manicômio, ou melhor, do sempre vertical e
quem conduzo tratamento na tarefa e fechado hospital psiquiátrico, mesmo quando
responsabilidade de buscar contornos que moderno e asséptico, propondo em seu lugar a
impliquem os envolvidos usuários, familiares, instituição de estações de cuidado, de pontos de
equipes, gestores e a cidade, no compromisso com referência horizontais e abertos. Este é um dos
a vida, o cuidado e os direitos. sentidos.
Uma clínica com tal nível de complexidade Estar em rede também é estar em
pede formação à altura. Formação acadêmica, mas, movimento. Nenhum dos dispositivos ou pontos de
sobretudo, formação eticamente orientada para a cuidado funciona fechado em si mesmo, e
liberdade, capaz, portanto, de refletir criticamente aumentam sua potência quando se articulam em
sobre o seu fazer, cujo desafio é rede. Guimarães Rosa definiu rede como “uma
[...] fazer da teoria uma elaboração permanente, porção de buracos atados por pedaços de
que sustente, sem conformar, uma prática clínica barbante”. Ou seja, malha aberta, com furos ou
que, por sua vez, não perca de vista o compromisso espaços para a criação de possibilidades. Mas
terapêutico que a legitima. A indagação sobre a ainda, malha na qual os usuários podem descansar
loucura a serviço do interesse pelos loucos. A sua loucura. Uma, entre as múltiplas redes que
busca da verdade a serviço da liberdade e da compõem a cidade, uma rede de saúde mental é
solidariedade. (BEZERRA,1992. pag.37. )
ponto de ancoragem. É lugar de hospitalidade e fio
que ajuda a construir laços com o outro.
Franco Rotelli aponta que
Escolher a cidade como lócus da experiência
[...] de alguma forma somente eles (os usuários) clínica com psicóticos pede um trabalho em rede
nos obrigam, se não fecharmos nossos olhos, a como condição para superar a totalização e a
esta busca contínua por novas estratégias. São exclusão. Mais que um conjunto de serviços, a rede
eles os nossos formadores. No momento em que é, de modo muito sutil e sensível, aquilo que a
aceitamos este papel de ser formados por eles, anima, a pulsação do desejo de cada um dos
então finalmente começamos a entender alguma sujeitos, protagonistas das cenas da
desinstitucionalização.
104
É uma cidade igual a um sonho: tudo o que Executado pelos governos federal, estaduais,
pode ser imaginado pode ser sonhado, mas municipais e do Distrito Federal, em estreita
mesmo o mais inesperado dos sonhos é um parceria com a sociedade civil, o SUAS organiza,
quebra-cabeças que esconde um desejo, ou pela primeira vez na história do País, serviços,
então o seu oposto, um medo. As cidades, programas e benefícios destinados a cerca de 50
como os sonhos, são construídas por desejos milhões de brasileiros, em todas as faixas etárias.
e medos, ainda que o fio condutor de seu O Sistema Único integra uma política pactuada
discurso seja secreto, que suas regras sejam nacionalmente, que prevê uma organização
absurdas, as suas perspectivas enganosas, e participativa e descentralizada da assistência social,
que todas as coisas escondam uma outra com ações voltadas para o fortalecimento da
coisa. (CALVINO, 2002, p. 44) família.

Lugar da contradição, mas também das BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA


possibilidades de encontros e saídas, da tessitura
de redes afetivas e materiais, entre outras, a cidade É um direito garantido pela Constituição Federal
é a escolha ética da reforma psiquiátrica par de 1988 e consiste no pagamento de 01 (um)
inscrição e exercício da clínica cidadã do sofrimento salário mínimo mensal à pessoas com 65 anos ou
psíquico. Como na Raíssa de Calvino pelo traçado mais de idade e à pessoas com deficiência
das cidades correm fios invisíveis que ligam, por incapacitante para a vida independente e para o
instantes, um sujeito a outro e no movimento de trabalho, onde em ambos os casos a renda per
conexão e desconexão traçam formas mutantes. A capita familiar seja inferior a ¼ do salário mínimo. 
cidade feliz contém seu avesso e assim Em 2008, o BPC assegurou cobertura a cerca de
sucessivamente, no movimento próprio do viver. 2,9 milhões de pessoas. Dessas 1,5 milhões são
Dialético, por isso, vivo; contraditório e real, eis o pessoas com deficiência.
modo ético da prática clínica da reforma psiquiátrica
revelado no espelho da cidade. PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA

Referências Técnicas para a Atuação de O Centro de Referência de Assistência Social


Psicólogas(os) no CAPS - Centro de Atenção (CRAS) é uma unidade pública estatal
Psicossocial Brasília, 1ª Edição julho/2013 descentralizada da política de assistência social,
responsável pela organização e oferta de serviços
UNIDADE IV da proteção social básica do Sistema Único de
10. O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA Asssitência Social (SUAS) nas áreas de
SOCIAL (SUAS); LOAS. O CRAS E O CREAS vulnerabilidade e risco social dos municípios e DF.

HISTÓRICO – CRAS

SUAS- Sistema Único da Assistência Social é Dada sua capilaridade nos territórios, se
fruto de quase duas décadas de debates e coloca caracteriza como a principal porta de entrada do
em prática os preceitos da Constituição de 1988, SUAS, ou seja, é uma unidade que propicia o
que integra a assistência à Seguridade Social, acesso de um grande número de famílias à rede de
juntamente com Saúde e Previdência Social. Assim, proteção social de assistência social
as diversas ações e iniciativas de atendimento à O CRAS é uma unidade pública estatal
população carente deixam o campo do voluntarismo descentralizada da política de assistência social
e passam a operar sob a estrutura de uma política sendo responsável pela organização e oferta dos
pública de Estado. De mero favor, um benefício da serviços socioassistenciais da Proteção Social
assistência social agora é um direito do cidadão. Básica do Sistema Único de Assistência Social
105
(SUAS) nas áreas de vulnerabilidade e risco social para a população ou poderá realizar a cobertura
dos municípios e DF. dessas áreas por meio de equipes volantes (ver
Representa a principal estrutura física local para equipes volantes).
a proteção social básica, desempenha papel central
no território onde se localiza, possuindo a função CREAS (CENTRO DE REFERÊNCIA
exclusiva da oferta pública do trabalho social com ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL)
famílias por meio do serviço de Proteção e
Atendimento Integral a Famílias (PAIF) e gestão
territorial da rede socioassistencial de proteção Considerando a definição expressa na Lei nº
social básica. ; 12.435/2011, o CREAS é a unidade pública estatal
de abrangência municipal ou regional que tem
como papel constituir-se em lócus de referência,
• Ofertar o serviço PAIF e outros serviços,
nos territórios, da oferta de trabalho social
programas e projetos socioassistenciais de
especializado no SUAS a famílias e indivíduos em
proteção social básica, para as famílias, seus
membros e indivíduos em situação de situação de risco pessoal ou social, por violação de
vulnerabilidade social; direitos. Seu papel no SUAS define, igualmente,
seu papel na rede de atendimento.
• Articular e fortalecer a rede de Proteção
Sua implantação, funcionamento e a oferta
Social Básica local;
direta dos serviços constituem responsabilidades
• Prevenir as situações de risco em seu
do poder público local e, no caso dos CREAS
território de abrangência fortalecendo vínculos
Regionais, do Estado e municípios envolvidos,
familiares e comunitários e garantindo direitos.
conforme pactuação de responsabilidades. Devido
A localização do CRAS é fator determinante para
à natureza público- estatal, os CREAS não podem
que ele viabilize, de forma descentralizada, o
ser administrados por organizações de natureza
acesso aos direitos socioassistenciais.
privada sem fins lucrativos.
O CRAS deve ser instalado prioritariamente em
Dada a especificidade das situações
locais de maior concentração de famílias em
vivenciadas, os serviços ofertados pelo CREAS
situação de vulnerabilidade, com concentração de
não podem sofrer interrupções, seja por questões
famílias com renda per capita mensal de até ½
relativas à alternância da gestão ou qualquer
salário mínimo, com presença significativa de
outro motivo.
famílias e indivíduos beneficiários dos programas
O papel do CREAS e competências
de transferências de renda, como o BPC - Benefício
decorrentes estão consubstanciados em um
de Prestação Continuada, Bolsa Família e outros,
conjunto de leis e normativas que fundamentam e
conforme indicadores definidos na Norma
definem a política de Assistência Social e
Operacional Básica - NOBSUAS/2005. Cada
regulam o SUAS. Devem, portanto, ser
município deve identificar o(s) território(s) de
compreendidos a partir da definição do escopo da
vulnerabilidade social e nele(s) implantar um CRAS,
política de assistência social e do SUAS, qual
a fim de aproximar os serviços oferecidos aos
seja, afiançar seguranças socioassistenciais, na
usuários.
perspectiva da proteção social.
• Nos casos de municípios de Pequeno Porte I e
O papel do CREAS no SUAS, portanto,
II, o CRAS poderá ser instalado em áreas centrais,
define suas competências que, de modo geral,
ou seja, áreas de maior convergência da
compreendem:
população.
• Nos casos de territórios de baixa densidade
• Ofertar e referenciar serviços especializados de
demográfica, com espalhamento ou dispersão
caráter continuado para famílias e indivíduos em
populacional (áreas rurais, comunidades indígenas,
situação de risco pessoal e social, por violação de
quilombolas, calhas de rios, assentamentos etc...) o
direitos, conforme dispõe a Tipificação Nacional de
CRAS deverá instalar-se em local de melhor acesso
106
Serviços Socioassistenciais; • Acesso a direitos socioassistenciais;
• Centralidade na família;
• A gestão dos processos de trabalho na • Mobilização e participação social;
Unidade, incluindo a coordenação técnica e • Trabalho em rede.
administrativa, da equipe, o planejamento,
monitoramento e avaliação das ações, a
organização e execução direta do trabalho social no Os serviços ofertados pelo CREAS devem
âmbito dos serviços ofertados, o relacionamento propiciar acolhida e escuta qualificada, visando,
cotidiano com a rede e o registro de informações, dentre outros aspectos:
sem prejuízo das competências do órgão gestor de
assistência social em relação à Unidade.
• Ao fortalecimento da função protetiva da
família;
As normativas que fundamentam a oferta de • À interrupção de padrões de relacionamento
familiares e comunitários com violação de direitos;
serviços especializados pelo CREAS dentre
outras, pode-se citar: • À potencialização dos recursos para a
superação da situação vivenciada e reconstrução
de relacionamentos familiares, comunitários e
• Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS,
com o contexto social, ou construção de novas
1993;
referências, quando for o caso;
• Política Nacional de Assistência Social – • Ao acesso das famílias e indivíduos a
PNAS, 2004;
direitos socioassistenciais e à rede de
• Norma Operacional Básica – NOB/SUAS, proteção social;
2005;
• Ao exercício do protagonismo e da
• Norma Operacional Básica de Recursos participação social; e
Humanos do Sistema Único deAssistência Social
• À prevenção de agravamentos e da
– NOB-RH/SUAS, 2006; institucionalização.
• Protocolo de Gestão Integrada de Serviços,
Benefícios e Transferência de Renda no âmbito
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), As principais ações/atividades que constituem
2009; o trabalho social essencial aosserviços a
• Tipificação Nacional de Serviços serem realizadas pela equipe do CREAS
Socioassistenciais, 2009;
• Portaria nº 843, de 28 de dezembro de 2010. As principais ações/atividades que
constituem o trabalho social essencial ao
Eixos norteadores da atenção ofertada nos serviço e que devem ser realizadas pelos
CREAS profissionais do CREAS são: Acolhida; escuta;
estudo social; diagnóstico socioeconômico;
Abaixo estão elencados alguns eixos que monitoramento e avaliação do serviço;
devem nortear o trabalho social desenvolvido no orientação e encaminhamentos para a rede de
CREAS, devendo ser observados tanto no serviços locais; construção de plano individual
processo de implantação e gestão da Unidade, e/ou familiar de atendimento; orientação sócio-
quanto em seu funcionamento e na realização familiar; atendimento psicossocial; orientação
de atividades por parte da equipe profissional. jurídico- social; referência e contra-referência;
informação, comunicação e defesa de direitos;
• Atenção especializada e qualificação do apoio à família na sua função protetiva;
atendimento; acesso à documentação pessoal; mobilização,
• Território e localização do CREAS; identificação da família extensa ou ampliada;

107

Professora: Maria Flor Ano: 2022.1


articulação da rede de serviços • Coordenação dos processos de trabalho e da
socioassistenciais; articulação com os equipe da Unidade;
serviços de outras políticas públicas setoriais; • Articulação entre serviços prestados
articulação interinstitucional com os demais diretamente, pela própria Unidade, e serviços
órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; referenciados ao CREAS;
mobilização para o exercício da cidadania; • Atuação em rede, por meio da articulação com a
trabalho interdisciplinar; cadastramento das PSB e a PSE de Alta Complexidade, e articulação
organizações e dos serviços intersetorial com a rede de serviços das demais
socioassistenciais; elaboração de relatórios políticas públicas e dos órgãos de defesa de
e/ou prontuários; estímulo ao convívio familiar, direitos.
grupal e social; mobilização e fortalecimento Nessa direção, o CREAS deve coordenar o
do convívio e de redes sociais de apoio; (s) serviço (s) por ele ofertado (s) e a relação com
produção de orientações técnicas e materiais as unidades referenciadas, articulando processos
informativos; organização de banco de dados de trabalhos em rede na atenção às famílias e
e informações sobre o serviço, sobre indivíduos, sem, todavia, confundir suas
organizações governamentais e não competências com as do órgão gestor da política de
governamentais e sobre o Sistema deGarantia Assistência Social, ao qual está subordinado.
de Direitos; dentre outros. Para assegurar ao CREAS delimitação e
Nos serviços ofertados pelo CREAS exercício de suas competências, é fundamental
podem ser atendidas famílias e indivíduos diferenciá-las das competências do órgão gestor da
em situação de risco pessoal e social, por assistência social, em especial da área responsável
violação de direitos, em conformidade com pela Proteção Social Especial.
as demandas identificadas no território, tais De modo geral, cabe ao órgão gestor o
como: violência física, psicológica e desempenho dos macroprocessos relativos à
negligência; violência sexual: abuso e/ou gestão da proteção social especial na localidade,
exploração sexual; afastamento do convívio inclusive do CREAS e seus serviços. À unidade
familiar devido à aplicação de medida de CREAS, por sua vez, cabe a coordenação técnica e
proteção; situação de rua; abandono; administrativa da Unidade, dos fluxos de trabalho e
vivência de trabalho infantil; discriminação em da oferta, no cotidiano, dos serviços especializados.
decorrência da orientação sexual e/ou
raça/etnia; descumprimento de A rede de articulação essencial ao CREAS
condicionalidades do Programa Bolsa
Família e do PETI em decorrência de Existe uma relação de interdependência do
situações de risco pessoal e social, por CREAS com a rede socioassistencial, das demais
violação de direitos, cumprimento de medidas políticas públicas e órgãos de defesa de direitos.
socioeducativas em meio aberto de Liberdade Assim, a efetividade do atendimento, nos serviços
Assistida e de Prestação de Serviços à do CREAS, está diretamente relacionada à
Comunidade por adolescentes, dentre outras. articulação eficiente com a rede, localou até mesmo
O CREAS, além do lócus de atendimento e regional.
referência para o trabalho social e Alguns órgãos, unidades ou instituições, devido à
especializado na proteção social especial de sua função e competência, compõem a rede
média complexidade, tem, ainda, essencial de articulação do CREAS:
competências relativas à:
• CRAS;
• Oferta e referenciamento de serviços
• Gestão dos Programas de Transferência de
socioassisentciais especializados;
Renda e Benefícios (PETI,Bolsa Família,
• Coordenação direta dos serviços ofertados;
108
Benefício de Prestação Continuada - BPC) incorporado ao PAEFI – Serviço de
• Serviços de Saúde, em especial a Saúde Mental; Proteção e Atendimento Especializado a
• Órgãos de Defesa de Direitos (Conselho Tutelar, Famílias e Indivíduos, ofertado
Ministério Público,Poder Judiciário, Defensoria obrigatoriamente pelo CREAS.
Pública);
• Rede de Educação; 11. ASSISTÊNCIA SOCIAL E PSICOLOGIA:
SOBRE AS TENSÕES E CONFLITOS DO
• Serviços de Acolhimento;
PSICÓLOGO NO COTIDIANO DO SERVIÇO
A articulação do CREAS com outros
PÚBLICO
atores da rede, para além dos elencados
acima, pode qualificar ainda mais o
Carmem Magda Ghetti SenraI;
atendimento ofertado (serviços das demais
Raquel Souza Lobo GuzzoII
políticas públicas, como trabalho e geração de
renda, por exemplo; Instituições de Ensino
RESUMO
Superior; ONGS que atuam na defesa de
direitos; movimentos sociais, etc.).
O presente artigo buscou discutir a inserção da
Psicologia na área da Assistência Social e a prática
Na articulação com a rede é importante
profissional do psicólogo no setor público. Para
fortalecer a identidade do CREAS, através da
tanto, o contexto atual de implementação do
identificação de papéis e delimitação de
Sistema Único de Assistência Social (SUAS) foi
competências, de modo a assegurar o
abordado, relacionado, sobretudo à atuação nos
desenvolvimento de ações complementares e
Centros de Referência de Assistência Social
sinérgicas. A construção e pactuação de
(CRAS) e às reflexões sobre o compromisso social
fluxos de referência e contrarreferência com
na Psicologia. Considera a importância da
a rede socioassistencial e de articulação
compreensão do profissional, enquanto elemento
intersetorialcom as demais políticas públicas e
central na construção da política de Assistência
órgãos de defesa de direitos pode contribuir
Social e da elaboração de modelos de intervenção
para ofortalecimento desse processo.
psicológicos comprometidos com a transformação
A clarificação de competências do
da realidade social e as tensões do cotidiano deste
CREAS junto à rede é fundamental para
trabalho.
prevenir que seja chamado a assumir funções
que não lhe competem, como, por exemplo, Palavras-chave: psicologia social; assistência
as da Defensoria Pública, ou das equipes
social; compromisso social; transformação social.
interprofissionais do Poder Judiciário, das
Delegacias Especializadas ou da Saúde Introdução
Mental. A atuação do psicólogo no âmbito da Assistência
Com a implantação do SUAS no Social pode ser considerada recente no Brasil.
Brasil, o atendimento anteriormente Apesar de relevante e de se constituir como uma
ofertado pelo Programa Sentinela, foi ampliação necessária do campo profissional para
incorporado ao Serviço de Enfrentamento à um envolvimento mais direto com as questões
Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual sociais, essa realidade ainda impõe inúmeros
contra Criança e Adolescentes ofertado pelos desafios e problemas aos profissionais.
Centros de Referência Especializados de Em um cenário de profundas desigualdades
Assistência Social – CREAS, no âmbito da sociais que se revelam de modo contundente no
Proteção Social Especial de Média cotidiano do sistema público, o trabalho dos
Complexidade. Com a Resolução CNAS Nº psicólogos, apesar dos esforços, confirma o quanto
109, de 11/11/2009 - Tipificação Nacional de a psicologia, como ciência e profissão, manteve um
Serviços Socioassistenciais, este Serviço foi
109
distanciamento histórico das questões sociais responsáveis pelo seu desenvolvimento,
considerando as individuais como mais centrais descartando o papel da sociedade e
(Martín-Baró, 1997). Bock pontuou as contradições compreendendo o fenômeno psicológico a partir do
no desenvolvimento da Psicologia enquanto próprio homem.
profissão: Tais aspectos tornam-se indispensáveis em uma
E é importante registrar que, ao lado de toda análise crítica da inserção do psicólogo na área da
uma prática e de um conhecimento 'diferenciador' e Assistência Social. Partir de princípios como os
que via o homem de forma muito simplificada, a- predominantes historicamente na Psicologia
histórica, no qual o aspecto social era, na maior redunda em uma prática conservadora e superficial
parte das vezes, relegado a segundo ou último diante da realidade da população atendida pelas
plano, convivia um conhecimento crítico que políticas públicas de Assistência Social.
concebia o homem e o fenômeno psicológico como Além disso, cabe uma análise da recente
indissociáveis do processo de socialização (Bock, presença da Psicologia nos setores públicos da
1999, p. 319) Assistência Social. Isso se revela nas pesquisas
Refletir sobre a prática profissional do psicólogo realizadas (Botomé, 1979; Conselho Federal de
implica uma análise da inserção da Psicologia no Psicologia, 1988), que traçam um perfil da atuação
campo da Assistência Social, contextualizando o do psicólogo, com predominância em consultórios
momento atual de implementação do Sistema Único particulares, demarcando o elitismo da profissão.
de Assistência Social (SUAS) e do movimento de Mello (1975), em estudo publicado no início da
compromisso social emergente na Psicologia década de setenta, realiza uma crítica aos rumos
brasileira nas últimas duas décadas. da profissão, apontando que a Psicologia pela
natureza de seu conhecimento deveria ser "muito
Inserção da Psicologia na Assistência Social mais que uma atividade de luxo" (p. 109).
Campos (1983) afirmava que as contingências
Compartilhamos com a posição de Parker (2007) do mercado de trabalho estariam "empurrando" o
de que, historicamente, a Psicologia constituiu-se psicólogo para as classes subalternas e que esta
como um poderoso instrumento da ideologia migração exporia as insuficiências teórico-técnicas
burguesa a serviço da sociedade capitalista, da Psicologia tradicional.
sobretudo no Brasil onde majoritariamente se voltou Esses estudos pontuaram, portanto, o elitismo
à caracterização de um profissional liberal focado da profissão, com a prática do psicólogo restrita
no indivíduo isolado de seu contexto social. No àqueles que poderiam pagar pelos serviços
entanto, "a entrada em campos como o da política profissionais, tornando inacessível o atendimento
social força-lhe a reaprender a fazer e pensar psicológico para a maior parte da população.
Psicologia" (Yamamoto & Paiva, 2010, p. 155). O Conselho Federal de Psicologia reconhece, ao
Bock (2003) aponta três aspectos do caráter publicar referências técnicas para o exercício
ideológico da Psicologia que acompanham as profissional para a área da assistência social, que
práticas profissionais, favorecendo o sentido acima "a despolitização, a alienação e o elitismo
exposto. Primeiro, a naturalização do fenômeno marcaram a organização da profissão e
psicológico, resultando em uma concepção de influenciaram na construção da idéia de que o (a)
universalidade do fenômeno psíquico, o que psicólogo (a) só faz Psicoterapia" (Conselho
distancia a Psicologia da realidade social. Destaca Federal de Psicologia e Conselho Federal de
também que "os psicólogos não têm concebido Serviço Social, 2007, p. 20).
suas intervenções como trabalho" (Bock, 2003, p. Uma análise da realidade concreta de vida das
21), descolando dessa maneira a prática pessoas, a partir de uma compreensão histórica e
profissional dos interesses sociais e das disputas social de constituição dos indivíduos exige, no
políticas da sociedade. Por fim, ressalta que a entanto, novos posicionamentos da Psicologia e do
Psicologia tem concebido as pessoas como fazer psicológico (o sofrimento psíquico não é igual
110
para todos – ricos e pobres). Bock (1999) discute as condição de vida das pessoas atendidas pelas
limitações sociais do trabalho do psicólogo restrito políticas públicas de Assistência Social. Ao mesmo
aos consultórios particulares ou escritórios para a tempo, igualmente importante e necessária, a
interferência ou a melhoria das condições de vida apropriação dos princípios e diretrizes das
das pessoas atendidas legislações da Assistência Social torna-se um
Mesmo considerando essa configuração instrumento fundamental para o desenvolvimento
profissional, ainda majoritariamente atuando de do trabalho diante das mais difíceis e diversas
modo individual e com uma abordagem clínica, o condições sociais que se apresentam diante dos
envolvimento e a presença dos profissionais nos profissionais. (CFP e CFESS, 2007).
espaços públicos têm crescido, sobretudo em Concordamos com Freitas (2005) quando afirma
organizações não-governamentais e no poder que, na atualidade, é possível identificar uma
público. Yamamoto (2007), ao discutir esse proliferação de práticas e trabalhos comunitários
movimento da área, pontua a importância do dirigidos a uma variedade de problemáticas
envolvimento dos psicólogos na área da saúde, individuais e comunitárias.
sobretudo na participação na Luta Antimanicomial, O crescimento das grandes cidades foi
"que acabam definindo algumas das condições acompanhado de um processo de "periferização"
para a inserção da categoria, de forma mais que, por sua vez, não foi acompanhado de
extensiva, no campo público do bem estar social" investimentos públicos para atendimento da
(p. 31). população, atribuindo essa responsabilidade a
Desta inserção no campo da Assistência Social organizações não-governamentais.
decorrem inúmeros desafios para o profissional de O crescimento dessas organizações se deu de
Psicologia. Em 2005, Senra conduziu um estudo modo segmentado com intervenções para várias
em que os psicólogos da rede municipal de finalidades (criança, adolescente, família, idoso,
assistência puderam relatar as dificuldades morador de rua) em uma lógica assistencialista,
encontradas em sua prática, considerando, historicamente construída nas políticas públicas de
sobretudo, uma formação pouco embasada na Assistência Social e insuficientes para uma
realidade de atuação da Psicologia Social. mudança da realidade cotidiana da população
Os resultados desse trabalho apontaram para atendida.
uma tensão entre o papel profissional do psicólogo A prática psicológica na Assistência Social
e do assistente social diante das demandas do encontra, assim, o desafio de ampliar o debate
campo de trabalho. entre os diversos atores da política dessa área e de
O trabalho conjunto entre estes dois profissionais investir na sistematização das práticas que se
(Serviço Social e Psicologia) constitui-se como um comprometam com a transformação da realidade, e
ponto de conflito gerando dúvidas quanto à não com sua manutenção.
complementaridade ou a especificidade em relação Com o Sistema Único de Assistência Social
a sua atuação. Psicólogos e Assistentes Sociais (SUAS), a atuação do psicólogo está em pauta. No
questionam-se uns aos outros sobre seus papéis e âmbito nacional, os psicólogos estão integrando as
funções diante da realidade com que têm que lidar equipes dos Centros de Referência de Assistência
no cotidiano do trabalho. Social (CRAS) e dos Centros de Referência
Diante dos questionamentos, surgem inúmeras Especializado de Assistência Social (CREAS) dos
dificuldades quanto às possibilidades de municípios (Ministério de Desenvolvimento Social,
intervenção no campo sem que sejam 2004). A Política Nacional de Assistência Social
aprofundadas de modo coletivo (Senra, 2005). propõe uma maior integração das ações da
Essa condição aponta para a importância de um Assistência Social, mas o lugar do psicólogo nessa
aprofundamento desta realidade a partir de uma conjuntura ainda se encontra em construção.
análise crítica acerca da acerca da natureza e Há a permanência de dificuldades antigas para
características de sua intervenção, assim como da aqueles profissionais que já atuam na área e novos
111
desafios que exigem a construção de estratégias de públicas de Assistência Social, em especial na
superação e fortalecimento para que seja possível o atualidade, com a implementação do SUAS. Em
desenvolvimento das ações e o aprofundamento do alguns municípios, a contratação de muitos
debate sobre o papel do psicólogo e as psicólogos oficializa-se por meio de ONGs, sob a
contribuições da Psicologia para a Assistência justificativa de impedimentos fiscais e legais pelos
Social. gestores municipais e a ausência de concursos
públicos para o cargo. A inserção profissional,
O psicólogo no SUAS: cenário atual articulada dessa forma, precariza o serviço público,
além de assumir contornos de desvalorização da
A inserção do psicólogo na Assistência Social categoria profissional com baixos salários e alta
oficializa-se no país, portanto, por intermédio do rotatividade de profissionais.
SUAS, como um dos profissionais que devem Botarelli (2008, p.52) apresenta proposição
compor as equipes dos CRAS e dos CREAS. semelhante ao afirmar que:
Com o processo de implantação do SUAS em Ao considerarmos a agenda neoliberal no setor
todo território nacional amplia-se, das políticas públicas, a probabilidade de
significativamente, o número de psicólogos envolvimento profissional do psicólogo por
inseridos no campo da Assistência Social no nível delegação do CRAS no chamado 'terceiro Setor' é
do Poder Público e das ONGs, na composição das mais promissora do que propriamente o
equipes da rede socioassistencial. Mas não basta o desenvolvimento de trabalhos no âmbito do estado,
ingresso dos profissionais de psicologia no campo. mesmo que a ocupação seja significativamente
É preciso mais – acompanhamento e formação maior também no setor público comparativamente
para a intervenção com uma análise crítica da às primeiras décadas após a regulamentação da
realidade social e política. assistência.
Botarelli (2008, p. 16) enfatiza esse aspecto: Este contexto de terceirização do serviço público
O trabalho de profissionais da área de remete o psicólogo a um lugar de subalternidade
assistência social passou por uma nova aos gestores das ONGs, no atendimento dos
estruturação a partir deste novo ordenamento, mas interesses específicos de cada entidade. Os
ainda resta aprofundar-se sobre a consolidação do profissionais contratados pelas ONGs vivenciam
que e quais são as ações e os serviços sócio- dilemas semelhantes aos profissionais do Poder
assistenciais a serem caracterizados como básicos Público, mas em sua maioria participam pouco pelo
ou especiais. temor da perda do emprego vulnerável e instável
A atuação em contextos adversos, como em resultado do tipo precarizado de contrato de
bairros na periferia das cidades ou em ocupações trabalho.
ou favelas implica a elaboração de metodologias Destacamos assim que, embora haja hoje uma
alternativas às que são comuns e tradicionais no preocupação crescente com a formulação de
fazer do psicólogo. Ao profissional de Psicologia parâmetros e diretrizes para a atuação do psicólogo
cabe a análise da ausência histórica de no SUAS, mais especificamente nos CRAS
investimento do Estado nessas comunidades, (Conselho Federal de Psicologia, 2007a; CFP e
culminando com a inexistência e insuficiência de CFESS, 2007), isso não se traduz em uma prática
espaços e equipamentos públicos, assim como a profissional, de acordo com as diretrizes
necessidade de revisitar as próprias intervenções estabelecidas. Muitas vezes as diretrizes são
da Psicologia, que precisam transpor os limites de subvertidas obedecendo aos interesses dominantes
uma sala, para um outro modelo de atendimento da gestão municipal ou da direção das ONGs.
fundamentado em uma análise crítica da profissão Por outro lado, os psicólogos (servidores
(Parker, 2007). públicos concursados) vivenciam os dilemas
Existem inúmeros desafios a serem enfrentados estruturais da atuação, que sofre as repercussões
na construção do lugar do psicólogo nas políticas das mudanças administrativas e os impactos da
112
falta de investimento em infraestrutura tanto para as A "I Mostra Nacional de Práticas em Psicologia:
comunidades quanto para os próprios serviços Psicologia e Compromisso Social", realizada em
públicos. Mesmo com um contrato mais estável, 2000 pelo Conselho Federal de Psicologia, pode
esses profissionais também sofrem o temor da ser considerada um evento marcante na
retaliação, dependendo da postura assumida pelos visibilização das diversas práticas sociais dos
gestores municipais da Assistência Social. psicólogos. Yamamoto (2007) destaca que o
Observamos, portanto, que os avanços no compromisso social do psicólogo passa de "tema a
discurso pertinentes à área da Assistência Social, lema" nos debates sobre a profissão, vinculado a
assim como da própria Psicologia, ainda não são um grupo de psicólogos que lideraram este
acompanhados de avanços no cotidiano da ação. movimento.
Documentos oficiais não garantem a ocorrência na O compromisso social da Psicologia valorizava a
gestão dos municípios, muito menos a competência construção de práticas comprometidas com a
profissional para o exercício em condições transformação social em direção a uma ética
totalmente adversas. voltada para a emancipação humana (CFP, 2007a,
Nesse sentido, Botarelli (2008) alerta para os p. 6).
riscos, na implantação dos CRAS, dentre uma das Os significados atribuídos a este compromisso,
discussões na área: a permuta de plantões sociais no entanto, têm sido diferenciados de acordo, por
centralizados para a periferia da cidade sem uma exemplo, com a formação do profissional, ideologia,
reflexão sobre ações de cunho transformador e com contextos de atuação, entre outros fatores.
o agravante do isolamento das pessoas excluídas Concordamos com Lopes (2005, p. 10) quando
em seu próprio território. aponta que o "conteúdo ideológico está presente na
A prática profissional do psicólogo no âmbito da construção e na utilização de todo e qualquer
Política Nacional de Assistência Social configura conceito dentro das ciências, com maior ou menor
desafios para além de uma atuação técnica grau de consciência de quem dele se apropria".
(abordagens e metodologias psicológicas), pois Mas, ainda, não basta dizer de compromisso social.
esta inserção no campo de atuação é contraditória Para que uma profissão assuma para si a proposta
e muitas vezes tensa na articulação entre os de enfrentar a sociedade desigual e injusta, a
profissionais, sua prática profissional e a instituição serviço da emancipação humana, é preciso que ela
pública. Não se resolvem as questões sociais e a rompa com suas próprias amarras históricas de
falta de acesso da população ao atendimento uma profissão comprometida com a classe social
psicológico disponibilizando o profissional sem uma dominante e que se mantém reproduzindo e
formação adequada ou infraestrutura de trabalho. mantendo o status quo (Martín-Baró, 1997;
Pontuamos, assim, a importância do olhar crítico Prilleltenski, 1994).
dos profissionais da Psicologia que atuam na área Destacamos aqui a discussão proposta por
da Assistência Social e da articulação necessária Guareschi (2001) de que se torna necessário
entre a prática e a produção de conhecimento explicitar de que social estamos falando, quando
acumulada pela Psicologia nos últimos anos, nos referimos ao compromisso social da Psicologia,
especialmente, no contexto latino-americano com desvelando a visão de mundo dos psicólogos. Em
realidade social semelhante. consonância com Lopes (2005), Guareschi (2001,
p. 80) esclarece ainda que:
Compromisso social da Psicologia A concepção que temos de social passa a se
concretizar muitas vezes inconscientemente, na
"No final dos anos 80, começaram novos prática, em minhas condutas, ou comportamentos,
movimentos de mudança na atuação profissional e e no tipo de relações que eu estabeleço. É na
adotou-se o lema do compromisso social como prática que vamos testar qual é o nosso social, qual
norteador da atuação psicológica" (CFP e CFESS, o nosso compromisso social.
2007, p. 20).

113
A heterogeneidade e o uso banalizado do termo teóricos de outros contextos de atuação do
como constituinte de modismos e de vocabulário psicólogo para espaços comunitários, ou mesmo,
politicamente correto no meio dos profissionais sem restringir a abrangência de sua atuação.
uma correspondente mudança na realidade do Concordamos que é insuficiente e ineficaz uma
trabalho dificultam o aprofundamento e a intervenção que não busque a contextualização das
compreensão das questões envolvidas e esvaziam vivências dos diversos espaços sociais e das
de sentido um projeto técnico-político para a pessoas e comunidades que constituem o tecido
profissão e para os profissionais em exercício. social com o qual o profissional trabalha. Martin-
Martinez Mitjáns (2003) elenca questionamentos Baró (1997) aponta que o psicólogo deve despojar-
que consideramos de importância para a discussão se de pressupostos teóricos adaptacionistas e que
do compromisso social na Psicologia. A autora para isso é necessária a elaboração de novas
considera complexa essa discussão, tornando-se visões conceituais, novos métodos de diagnóstico e
necessária a reflexão sobre a quem se refere o de intervenção –a construção de uma outra
compromisso social: psicologia.
É o corpo articulado de conhecimentos Em uma prática no campo da Assistência Social
representado pela Psicologia como ciência entendemos que é necessário um aguçamento do
particular que se compromete socialmente ou é o olhar crítico sobre as relações hegemônicas da
indivíduo psicólogo que produz esses sociedade, das políticas públicas existentes
conhecimentos ou que os utiliza nas suas práticas construídas nesse contexto e das condições
profissionais específicas? (Martinez Mitjáns, 2003, concretas de vida da população atendida.
p. 144) Do mesmo modo, conforme aponta Yamamoto
Dessa forma, o compromisso social na (2007), a atuação do psicólogo no setor público, por
psicologia pode assumir conotações variadas, si só, não representa um indicador do compromisso
cabendo o esclarecimento de com quem e de que social do profissional. Muitas práticas intitulam-se
forma ele é firmado. Assim, entendemos que o de transformação social, sem, contudo significar
discurso de compromisso social da Psicologia deve mudanças na realidade das pessoas e das
estar articulado com uma prática coerente com tal comunidades. Determinadas formas de intervenção
propósito. no setor público podem caminhar em direção
A Psicologia é uma construção humana oposta à transformação social e ao compromisso
condicionada histórica e culturalmente (Martinez social. Muitas dessas práticas caminham no sentido
Mitjáns, 2003) e os psicólogos ocupam lugar central oposto ao de transformação, embora no discurso
quando se pretende abordar esta questão do intitulem-se como sendo práticas transformadoras.
compromisso social. Os conhecimentos são Lopes (2005) pontua que a preocupação do
produzidos por sujeitos concretos imbuídos de suas psicólogo com as condições de vida da população
experiências, visão de mundo e interesses que se geral e com os problemas relativos à estrutura
expressam em práticas diversificadas. social não tem se refletido na mesma intensidade
Quando Yamamoto (2007, p. 34) aponta que em ações concretas a partir de tais preocupações.
"atuar com compromisso significa não somente Freitas (2005) destaca também a importância em
superar o elitismo, mas dirigir a ação para rumos se identificar a relação entre a prática desenvolvida
diferentes daqueles que têm consagrado a nos trabalhos comunitários e os projetos políticos
Psicologia", é preciso retomar o projeto da profissão implicados.
com crítica consistente de diferentes elementos A autora esclarece que o caráter de
presentes na formação e no exercício profissional transformação social do trabalho comunitário não é
nos diferentes setores sociais onde a profissão se dado simplesmente por ser realizado com sujeitos
faz presente. novos ou com recursos nunca realizados ou ainda
Para uma atuação comprometida socialmente, em situações desafiadoras (Freitas, 2005).
não basta somente deslocar práticas e modelos

114
Os trabalhos comunitários poderiam ainda estar 52). Ao psicólogo cabe, então, assumir sua função
identificados em diferentes dimensões, social e política, uma vez que a intervenção
transformadoras em alguns momentos, "sem profissional "é sempre posicionada e deve ser
necessariamente implicar numa proposta de objeto de reflexão constante, a fim de que esse
transformação social na sua totalidade ou nos posicionamento fique claro" (Gonçalves, 2003, p.
aspectos estruturantes" (Freitas, 2005, p. 50). 278).
Existem práticas inéditas com caráter de não Para Martin-Baró (1997, p.7) "o trabalho
transformação, assim como práticas profissional do psicólogo deve ser definido em
transformadoras que não são necessariamente função das circunstâncias concretas da população
inéditas. Avaliar a prática e suas consequências no a que deve atender". O psicólogo brasileiro e latino-
cotidiano de vida das populações atendidas tem americano se assume um compromisso com a
disso um desafio para os profissionais deste maioria da população deve ter como horizonte a
campo. perspectiva das massas populares, voltando sua
A definição de práticas comprometidas com a prática para a melhoria das condições de vida da
transformação social exige um movimento crítico na população e assumindo um compromisso de
análise e produção de conhecimento e de transformação da realidade social.
formulação de intervenções que englobem a Essas contribuições denotam que é preciso
complexidade que podemos observar no tema. mudar a prática e a formação dos profissionais de
Concordamos com Yamamoto (2007) que, para psicologia para sua inserção e atuação nos
um compromisso com a transformação social, faz- espaços comunitários e dos serviços públicos. As
se necessário ampliar os limites da dimensão tensões e conflitos diários presentes no exercício
política da ação profissional do psicólogo. É cotidiano do trabalho neste campo, tornam o
essencial na prática comunitária a compreensão profissional da psicologia ou um mero repetidor de
das repercussões das questões estruturais da práticas que não resultam na efetiva mudança ou
sociedade no cotidiano das comunidades atendidas em alguém que, por buscar saídas na psicologia
e de uma reflexão sobre a atuação do profissional conservadora e hegemônica, acaba desistindo de
de Psicologia nos contextos institucionais públicos. fazer avançar a profissão como ferramenta de
Pereira (CFP, 2007b, p.72) reforça este aspecto mudança social.
ao afirmar que: A inserção do psicólogo no campo da
Ressaltar a necessidade de pensarmos sobre a Assistência Social requer a construção não
relação entre a Psicologia o domínio do público tem somente de novas metodologias, mas de uma
aqui uma aposta que afirmo ser da ordem da reflexão crítica acerca da própria atuação
resistência, e apostar em uma contra-tendência profissional num cenário de profundas
hegemônica e fazer, então, esse movimento de desigualdades sociais, acerca da constituição da
resistência no sentido positivo, portanto, na sociedade no sistema capitalista, das políticas que
compreensão política que se pode dar a essa prometem mudanças impossíveis de acontecerem.
noção, obriga a Psicologia a fazer um desvio. ... Um novo projeto ético-político-profissional é
Fazer esse desvio da Psicologia é engajá-la em um necessário para a Psicologia de modo que seja
movimento crítico. capaz de nortear a natureza, os objetivos e os
próprios limites das intervenções neste campo. O
Considerações finais projeto do "compromisso social do psicólogo" já se
esgotou para a psicologia, pois mesmo com alguns
À Psicologia Social Comunitária e aos psicólogos avanços, tornou-se esvaziado de sentido quando
da área cabe a explicitação de "um compromisso não aprofunda as contradições existentes na
político e adoção de práticas psicossociais voltadas sociedade e na própria profissão.
para intervenções coletivas com propostas de Uma prática comprometida com a transformação
construção de atores coletivos" (Freitas, 2005, p. social da realidade requer um maior debate,
115
portanto, sobre esse sujeito que implementa as É importante também não confundir o LOAS
políticas públicas, o profissional no campo da com o Auxílio Doença, que é um benefício
Assistência Social. O protagonismo do psicólogo na destinado as pessoas que sofrem acidente ou estão
construção de uma outra psicologia exige uma acometidas de doença, que possuem carteira
perspectiva crítica e constante articulação com as assinada. Confira mais detalhes.
políticas públicas vigentes, especialmente com a
implementação do Sistema Único de Assistência CONTEXTO HISTÓRICO LEI ORGÂNICA DE
Social - SUAS. ASSISTÊNCIA - LOAS

Referências O LOAS contempla a análise do grupo e


famílias, desde o início da civilização há uma
Bock, A. M. B. (1999). A Psicologia a caminho do apreensão com os momentos de adversidade da
novo século: identidade profissional e compromisso vida, como aborda Ibrahim (2008, p. 1):
social. Estudos de Psicologia, 4(2), 315-329. [Links] [...] informa que foi na família que a proteção
Bock, A. M. B. (2003). Psicologia e sua ideologia: social teve seu início. Na época em que precedeu a
40 anos de compromisso com as elites. In A. M. B. formação do Estado, os laços familiares eram mais
Bock (Org.), Psicologia e o compromisso social (pp. fortes e duradouros, a sociedade era constituída por
15-28). São Paulo: Cortez Editora. [Links] grupos familiares, os clãs, de modo que era
incumbência dos mais jovens cuidar dos mais
12. LOAS – BENEFÍCIO ASSISTENCIAL DA velhos e incapacitados.
PREVIDÊNCIA: O QUE É, COMO FUNCIONA Diante do exposto, observa-se a fragilidade da
E QUEM TEM DIREITO estrutura humana sempre necessitando de
assistência. Como descreve Silva (2011, s/p) o
contexto da Seguridade Social no Brasil:
Posto isso, pode-se dizer que os indícios de
direito de natureza securitária já pairavam na
primeira Constituição do Brasil (1824), como era
previsto em seu inciso XXXI do artigo 179 que
assegurava o socorro público em determinados
casos, como, por exemplo, calamidades públicas,
epidemias entre outras.
Desta feita, as demais Constituições Brasileiras
também trouxeram resquícios da seguridade social
O Benefício da Prestação Continuada ou BCP
em seu texto, como pode ser percebido pelas
também é conhecido como LOAS, ou Lei Orgânica
disposições da Constituição de 1891, que
da Assistência Social. Trata-se de um benefício
apresentou pela primeira vez a palavra
assistencial da previdência destinado a pessoas
aposentadoria, ressaltando-se que, para a
com deficiência (física, mental, sensorial ou
concessão da mesma não era necessário nenhum
intelectual) e também idosos com mais de 65 anos
tipo de contribuição pelo beneficiário, uma vez que
de idade em situação de extrema pobreza – renda
o custeio era integralmente do Estado.
igual ou menor a ¼ do salário mínimo para cada
Já a Constituição de 1934 trazia mais detalhes
pessoa da família.
sobre a proteção social, como, por exemplo, na
Por ser um benefício assistencial, não é
alínea c, inciso XIX, do artigo 5º, que atribuía à
exigido que o cidadão tenha contribuído ao INSS
União competência para legislar sobre a assistência
para ter direito ao LOAS. Contudo, também é válido
social.
ressaltar que o benefício não inclui 13º salário e é
Com a promulgação da Constituição de 1937,
suspenso no caso de falecimento do requerente,
com forte incidência dos dogmas do Estado Social,
pois não deixa pensão por morte.
116
viu-se explícito a proteção do Estado ao direito das favorecidas, assunto que será abordado no próximo
crianças, adolescentes e pais miseráveis, que em tópico.
seu artigo 137 resguardava a proteção à velhice,
vida, invalidez e acidentes de trabalho, uma prova 1.1 LEI Nº 8.742, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1993
clara da evolução da seguridade social. Não
bastante, nesse mesmo ano, houve, também, a Implantada pela necessidade daqueles menos
criação do Conselho Nacional de Seguridade Social favorecidos, a não ter uma condição razoável de
(CNSS). sobrevivência, neste sentido vejamos o que diz o
Com o passar dos anos, a assistência social foi art. 1° da lei:
se fortalecendo, sendo que em 1974 foi criada a Art. 1°. A assistência social, direito do cidadão e
renda mensal vitalícia, reconhecida como “amparo dever do Estado, é Política de Seguridade Social
previdenciário”, instituído pela Lei 6.179, custeado não contributiva, que provê os mínimos sociais,
pela Previdência Social que oferecia aos realizada através de um conjunto integrado de
beneficiários uma quantia correspondente à metade ações de iniciativa pública e da sociedade, para
do salário mínimo. garantir o atendimento às necessidades básicas
Percebe-se que somente a partir de então o (LEI Nº 8.742/93).
estado vem assumido este papel com a “proteção Neste aspecto, a necessidade básica do cidadão
social” instituída pela constituição de 1988 como a que se refere este artigo nada mais é que tirar o
forma de lei, garantindo uma vida digna aos cidadão que não possui a mínima condição de
cidadãos que se encontram em situações de sobrevivência entre a sociedade de uma situação
necessidade. de miserabilidade a qual o mesmo se encontra, e
Com o Estado Social surge o sistema de por isso vem a ideia de assistência social.
proteção social e a Seguridade Social, propiciando A Assistência Social é um direito adquirido por
o Bem-Estar Social, entre elas o sistema protetivo aqueles menos favorecidos dentro de uma
social, ou seja, é responsabilidade do Estado ações sociedade ao todo, e ela por si própria tem seus
universais e conjuntas na área de Assistência, objetivos na qual a lei também rege conforme
Saúde e Previdência Social. Desta maneira, a vejamos logo a seguir em seu art. 2° Incisos:
Assistência Social abandona o campo do
assistencialismo e passa a ser vista como um I - a proteção social, que visa à garantia da vida,
direito fundamental, como refere-se no art. 194 da à redução de danos e à prevenção da incidência de
Constituição Federal como direito subjetivo riscos, especialmente: (Redação dada pela Lei nº
fundamental, como reafirma o no art. 6º CF: 12.435, de 2011)
a) a proteção à família, à maternidade, à
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a infância, à adolescência e à velhice; (Incluído pela
saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o Lei nº 12.435, de 2011)
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção b) o amparo às crianças e aos adolescentes
à maternidade e à infância, a assistência aos carentes; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
desamparados, na forma desta Constituição. c) a promoção da integração ao mercado de
trabalho; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011)
Nota-se que a partir desse movimento o direito à d) a habilitação e reabilitação das pessoas com
assistência social faz parte da estrutura do Estado, deficiência e a promoção de sua integração à vida
sendo conceituado como um direito fundamental comunitária; e (Incluído pela Lei nº 12.435, de
social. 2011)
Pensando em cumprir o art. 6º da Constituição e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de
1988, no governo de Itamar Franco é criado a Lei benefício mensal à pessoa com deficiência e ao
Nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, a qual idoso que comprovem não possuir meios de prover
ampara os brasileiros das camadas menos

117
a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família; (Incluído pela Lei nº 12.435, de 2011) Cumprido todos estes princípios podemos dizer que
II - a vigilância socioassistencial, que visa a concretizado está a função social da assistência
analisar territorialmente a capacidade protetiva das aos necessitados, e teremos uma sociedade mais
famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de justa e sem fome com condições de pelo menos se
ameaças, de vitimizações e danos; (Redação dada manter vivo e saindo da situação de miserabilidade.
pela Lei nº 12.435, de 2011) Visto os direitos fornecidos pela lei e quem os
III - a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno beneficiários, na sequencia será descrito como é o
acesso aos direitos no conjunto das provisões benefício perante a agência pevidênciária.
socioassistenciais. (Redação dada pela Lei nº
12.435, de 2011) BENEFÍCIO PERANTE AGENCIA
PREVIDÊNCIÁRIA
Parágrafo único. Para o enfrentamento da pobreza,
a assistência social realiza-se de forma integrada Antes de começar a explanar como funciona o
às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e passo-a-passo, vale lembra que tal benefício
provimento de condições para atender alcança idosos e pessoas com deficiências, desde
contingências sociais e promovendo a que provadas por laudos médicos, e que comprove
universalização dos direitos sociais (LEI Nº sua situação de miserabilidade perante o órgão
8.742/93). competente, ou seja, I.N.S.S – Instituto Nacional de
Seguro Social, para conseguir o LOAS é necessário
Resta claro qual é a função da assistência social no que o agente seja idoso ou deficiente como já dito
presente caso, uma vez que a própria constituição acima, pois bem, em seguida o Requerente tem
nos assegura este direito tão importante e de que preencher os requisitos previstos em lei, se for
grande valia aos necessitados e todos aqueles que idoso ter mais de 65 anos, tem uma renda inferior a
podem se cobrir dessa assistência. ¼ do salário mínimo, não pode estar trabalhando, e
Ainda podemos ressaltar que como quase tudo no nem estar recebendo nenhum outro benefício, já o
direito existem princípios, aqui não é diferente deficiente quem têm impedimentos de longo prazo
senão vejamos o que nos traz o art. 4° Incisos I a V: de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
I - supremacia do atendimento às necessidades que, de alguma forma, impedem a participação
sociais sobre as exigências de rentabilidade plena na sociedade em igualdade de condições
econômica; com as demais pessoas, as duas formas de receber
II - universalização dos direitos sociais, a fim de o LOAS pode ser cumulados com a assistência
tornar o destinatário da ação assistencial alcançável medica e pensão especial de natureza
pelas demais políticas públicas; indenizatória, este benefício não é necessário ter
III - respeito à dignidade do cidadão, à sua contribuído, mas também não deixa pensão por
autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços morte (INSS, 2018).
de qualidade, bem como à convivência familiar e Preenchido os requisitos previstos acima, é só
comunitária, vedando-se qualquer comprovação agendar pelo 135 ou pelo site da previdência
vexatória de necessidade; social, http://www.previdencia.gov.br/, e no dia
IV - igualdade de direitos no acesso ao marcado levar consigo no caso do idoso:
atendimento, sem discriminação de qualquer Documento com foto, CPF, comprovante de
natureza, garantindo-se equivalência às populações endereço, CADUNICO atualizado, e formulários
urbanas e rurais; retirados do site do INSS que é o Requerimento de
V - divulgação ampla dos benefícios, serviços, Prestação Continuada de Assistência Social – BPC,
programas e projetos assistenciais, bem como dos e formulário de declaração de renda do grupo
recursos oferecidos pelo Poder Público e dos familiar que é de responsabilidade do servidor para
critérios para sua concessão (LEI Nº 8.742/93). preenchimento, essa documentação tem que ser de

118
todos os integrantes da composição familiar, já no contribuição à seguridade social, e tem por
caso de deficiência: São os mesmos documentos objetivos:
acima, mas acrescenta-se o laudo médico provando V - a garantia de um salário mínimo de benefício
sua deficiência (INSS, 2018). mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
Após levar esta documentação no dia marcado, idoso que comprovem não possuir meios de prover
o servidor encaminhara uma outra data para a à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
entrevista com a Assistente Social do INSS, que família, conforme dispuser a lei.
fazendo a entrevista e analisando a documentação
também encaminhara uma outra data para que Observa-se que a constituição ela vem para abrir
enfim se passe numa perícia seja documental no janelas e ser posteriormente feita leis para suprir o
caso do idoso, ou médica no caso de deficiência, espaço que a mesma deixa, porem cabe-nos refletir
que ao analisar irá deferir ou não o benefício (INSS, na lição em que é necessário que desse direito ao
2018).. necessitado fosse concretizado a norma teria que
ter eficácia plena a partir do momento em que a
Neste sentido, comenta Castro; Lazzari (2014, p. mesma fosse publicada em 1988.
862):
Mas ocorre que, o texto em comento não condiz
[...] o beneficio será devido depois de cumpridos a eficácia plena, e sim com a norma de eficácia
todos os requisitos exigidos e será pago a partir de, limitada e programática, e que em seguido teria que
no máximo, quarenta e cinco dias após o ser criado uma nova lei própria e programas para
requerimento. Não, está sujeito a desconto de se concretizar o direito a assistência social aqui
qualquer contribuição, nem gera direito a abono discutido.
anual e não pode ser acumulado com nenhum outro
beneficio da Previdência Social ou outro regime Foi ai então que em 1993, 5 (cinco) anos após a
assistencial. constituição surgiu a LEI Nº 8.742, DE 7 DE
Deferido o beneficiário passara a receber DEZEMBRO DE 1993. Dando eficácia plena à
aqueles meses atrasados desde a data da entrada norma de eficácia limitada, e dentro da referida lei
do requerimento, e um salário mínimo mensal em seu artigo 3°, §1° a 3° a eficácia plena à norma
vigente, cabe salientar que quanto mais de eficácia programática.
documentação se junta no processo administrativo Assim todos necessitados poderão se
mais rico e oportunidade tem-se de conseguir o cobrir do frio da necessidade e da miserabilidade,
benefício, já no caso do indeferimento, ainda tendo prestação continuada com o estado dando
caberá recurso na junta de médicos dentro do assistência à um salário mínimo para sua mantença
próprio INSS, o que no caso nunca muda a decisão e de sua família.
já tomada pelo perito, caso o beneficiário queira ele
tem o direito de reclamar via judicial (IN 77/2015). Como funciona
Visto o procedimento de como obter o benefício
o próximo capítulo tratará de expor sua previsão O LOAS é um salário mínimo mensal pago ao
legal e constitucional. beneficiário. Em uma mesma família, mais de uma
pessoa pode receber o benefício, desde que todos
DA PREVISÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL os pré-requisitos sejam preenchidos. O benefício já
concedido entra no cálculo da renda familiar para
A legislação é clara em nos trazer a previsão estabelecer se o segundo requerente também está
primeiramente constitucional no seu art. 203° da CF de acordo com as exigências.
88, V: É necessário que o requerente apresente
Art. 203. A assistência social será prestada a alguns documentos ao INSS para comprovar o
quem dela necessitar, independentemente de direito ao LOAS, tais como RG e CPF, documentos

119
dos outros membros do núcleo familiar, formulário com a sua dúvida ou entre em contato diretamente
de requerimento preenchido e assinado, termo de com uma das agências do INSS.
tutela (para menores de idade filhos de pais Referência: Lei orgânica de assistência social -
falecidos) e o resultado da perícia médica realizada LOAS, forma administrativa e sua previsão legal.
pelo INSS, no caso dos deficientes. Ewerthon Torres
O requerente também pode ser representado
por um representante legal, que deverá apresentar SERVIÇO DE PROTEÇÃO E
os documentos de identificação e procuração. ATENDIMENTO INTEGRAL À FAMÍLIA - PAIF
O LOAS é um benefício assistencial da
previdência que pode ser bloqueado, caso seja O Serviço de Proteção e Atendimento
verificado que o requerente já não apresenta as Integral à Família - PAIF é o principal serviço de
condições exigidas para se ter acesso a ele, como Proteção Social Básica (Decreto nº5.085, de 19 de
um aumento na renda familiar, por exemplo. Por maio de 2004), consiste no trabalho social com
isso, é importante que o cidadão atualize seu famílias, de caráter continuado, com a finalidade de
cadastro a cada dois anos para não perder o direito fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a
ao benefício. ruptura dos seus vínculos, promover seu acesso e
usufruto de direitos e contribuir na melhoria de sua
QUEM TEM DIREITO AO LOAS qualidade de vida.
Prevê o desenvolvimento de potencialidades
Para receber o LOAS, o requerente precisa e aquisições das famílias e o fortalecimento de
ter mais de 65 anos de idade, ou ser uma pessoa vínculos familiares e comunitários, por meio de
com deficiência, e a renda familiar per capita não ações de caráter preventivo, protetivo e proativo.
pode ser maior do que 25% de um salário mínimo
vigente. PROJOVEM ADOLESCENTE
O cálculo da renda familiar deve considerar
as pessoas que vivem na mesma casa, incluindo o Serviço socioeducativo, apoia-se em dois
requerente, cônjuges, filhos e irmãos não importantes pilares do SUAS:
emancipados, menores de 21 anos ou inválidos, 1) Matricialidade sociofamiliar: que considera
pais, enteados e menores tutelados. Dessas a capacidade protetiva e socializadora da família
pessoas, somam-se os salários, pensões ou (seja ela biológica ou construída) leva em conta a
qualquer tipo de renda recebida e divide-se o valor necessidade de que as políticas públicas
pelo número de membros da família. Se o resultado compreendam a família como portadora de direitos
for igual ou inferior a ¼ do valor de um salário e de proteção do Estado, bem como assegurem o
mínimo, o benefício pode ser solicitado. seu papel de responsável pelo desenvolvimento
Os idosos, além da idade mínima de 65 anos, dos jovens e garantam o exercício pleno de suas
não podem receber aposentadoria, pensões ou funções sociais.
outro benefício da Seguridade Social para ter direito 2) Territorialização: o serviço deve ser
a receber o LOAS. O mesmo vale para as pessoas ofertado próximo à moradia dos jovens e suas
com deficiência que, com exceção de pensão famílias, no território de abrangência do CRAS.
especial de natureza indenizatória e dos benefícios
da assistência médica, não podem estar recebendo
outro tipo de auxílio financeiro da previdência, como PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL
o seguro-desemprego. Também é exigido que o
requerente tenha nacionalidade brasileira ou Os serviços de Proteção Social Especial
portuguesa e more no Brasil. destinam-se a famílias e indivíduos cujos direitos
Para mais informações sobre o benefício tenham sido violados e/ou ameaçados.  São
assistencial da previdência, deixe um comentário serviços que requerem o acompanhamento familiar

120
e individual e maior flexibilidade nas soluções A ausência de documentação não impede o
protetivas. atendimento, porém é importante apresentar RG e
Comportam encaminhamentos efetivos e CPF.
monitorados, apoios e processos que assegurem
qualidade na atenção protetiva. Para acesso aos Programas de Transferência de
Renda:
Estreita interface com o sistema de Garantia Para o Responsável Familiar: CPF;
de Direito exigindo, muitas vezes, uma gestão mais
complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, Para os demais membros da família: qualquer
Ministério Público e outros órgãos e ações do documento oficial de identificação com foto, CPF,
Executivo. título de eleitor, certidão de casamento ou
nascimento, carteira de trabalho. Todos os
SERVIÇOS DE PROTEÇÃO SOCIAL ESPECIAL documentos originais.
DE MÉDIA
Atendimento
São aqueles que oferecem atendimento
Usuários: Toda família ou indivíduo que se
especializado às famílias e aos indivíduos com seus
encontrar em situação de vulnerabilidade social
direitos violados nas situações em que os vínculos
decorrente da pobreza, com dificuldade de acesso
familiares e comunitários não foram rompidos. Os
aos serviços públicos, da fragilização de vínculos
serviços de Proteção Social Especial de alta
familiares e comunitários e/ou qualquer outra
complexidade oferecem atendimento e acolhimento
situação de vulnerabilidade e risco social residentes
em serviços especializados nas situações de
nos territórios de abrangência dos Centros de
violação de direitos quando os vínculos familiares
Referência de Assistência Social – CRAS.
e/ou comunitários foram rompidos.
Requisitos para obter o serviço: Estar
Oferecem atendimento e acolhimento em
vivenciando: fragilização dos vínculos familiares,
serviços especializados nas situações de violação
dificuldades econômicas, desemprego, insegurança
de direitos quando os vínculos familiares e/ou
alimentar, dificuldades no acesso as demais
comunitários foram rompidos.
politicas e serviços públicos.
Forma de acesso aos Programas de
SERVIÇO DE PROTEÇÃO E ATENDIMENTO
Transferência de Renda: O atendimento é
INTEGRAL À FAMÍLIA (PAIF)
agendado por meio do Telefone
DESCRIÇÃO Custo do serviço prestado:gratuito

O Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Prioridades


Família é um trabalho de caráter continuado que
visa fortalecer a função de proteção das famílias, Famílias beneficiárias de programas de
prevenindo a ruptura de laços, promovendo o transferência de renda e benefícios assistenciais;
acesso e usufruto de direitos e contribuindo para a Famílias que foram inscritas em programas de
melhoria da qualidade de vida. transferência de renda, mas que ainda não foram
contempladas;
Famílias em situação de vulnerabilidade em
decorrência de dificuldades vivenciadas por algum
COMO TER ACESSO
de seus membros; tais como adoecimento,
Documentos desemprego; conflito; violência etc.
Pessoas com deficiência e/ou pessoas idosas
que vivenciam situações de vulnerabilidade e risco
social.

121
Critérios para concessão do auxílio natalidade: solicitação, o sepultamento ocorre em até 02 (dois)
dias.

Renda familiar per capita igual ou inferior a meio O Benefício por morte, na forma de PECÚNIA é
salário mínimo vigente na data do requerimento; destinado a atender, prioritariamente, às
O beneficiário deve estar inscrito no Cadastro necessidades urgentes da família que enfrenta
Único para Programas Sociais do Governo Federal vulnerabilidades advindas da morte de um de seus
Único; provedores. O valor pago na modalidade de
Caso o beneficiário não esteja cadastrado, o Benefício por Morte será de R$ 415,00
preenchimento do CadÚnico deve ser (quatrocentos e quinze reais), em prestação única.
providenciado logo após a concessão do benefício; O requerimento deve datar de até 90 (noventa) dias
Apresentação da certidão de nascimento do da data do óbito. Após a solicitação, o requerente
recém-nascido, ou certidão de nascido vivo, ou receberá o recurso em 30 dias.
certidão de óbito de natimorto; O Benefício por morte, na forma de
Apresentação de documento de identificação RESSARCIMENTO é destinado a cobrir as
com foto; despesas efetuadas por conta da própria família, na
hipótese de indisponibilidade do Benefício por
Apresentação de CPF; morte na forma de bens de consumo. É necessário
apresentação de comprovantes de despesas
Apresentação de documentos que comprovem a realizadas (documentos originais). O valor máximo
renda, sendo aceita, para esse fim, a declaração para a concessão do Auxílio por Morte na forma de
assinada pela própria pessoa ou por terceiros, a RESSARCIMENTO será de R$ 415,00
pedido, diante da situação de não saber ou poder (quatrocentos e quinze reais). Após a solicitação, o
assinar; requerente receberá o recurso em 30 dias.
Apresentação do comprovante de residência no
Distrito Federal, por meio de conta de água, luz, Requisitos para concessão do auxílio por
telefone, IPTU, ou declaração de domicílio assinada morte:
(não precisa autenticar no cartório) pela própria Renda familiar per capita igual ou inferior a meio
pessoa ou por terceiros, a pedido, diante da salário mínimo, vigente na data do requerimento;
situação de não saber ou poder assinar ou, ainda, O beneficiário deve estar inscrito no Cadastro
declaração de endereço da unidade de referência Único para Programas Sociais do Governo Federal
assinada pelo coordenador da unidade; – CadÚnico;
Comprovação de moradia no DF há pelo menos Caso o beneficiário não esteja cadastrado, o
6 (seis) meses – por meio de cartão de vacina, preenchimento do CadÚnico deve ser
matrícula em escola, comprovantes de aluguel, ou providenciado logo após a concessão do benefício;
declaração assinada pela própria pessoa ou por Apresentação de Atestado de Óbito e Guia de
terceiros, a pedido, diante da situação de não saber Sepultamento;
ou poder assinar. Apresentação do documento de identificação
com foto;
Benefício eventual – auxílio por morte:
O beneficio por morte, na forma BENS DE Critérios para solicitação da carteira do Idoso:
CONSUMO, consiste na concessão de urna
funerária, velório e sepultamento, incluindo É concedido à pessoa com 60 (sessenta) anos
transporte funerário, utilização de capela, de idade ou mais;
pagamento de taxas e colocação de placa de Que não tenha como provar renda igual ou
identificação, entre outros serviços que garantam inferior a dois salários mínimos. Idosos que
dignidade e respeito à família beneficiária. Após a possuem comprovação de renda podem adquirir as
passagens diretamente nas empresas de
122
transporte, sem necessidade de apresentar a Benefício Excepcional aquela que é acompanhada
carteira do idoso; pelas unidades da Subsecretaria de Assistência
Para a emissão da carteira o idoso deve possuir Social – SUBSAS e em processo de saída das
o Número de Inscrição Social – NIS. Caso não ruas. Nestes casos, é primordial que seja avaliada a
possua, deve ter seu cadastro único preenchido e, capacidade do usuário em administrar sua moradia,
enquanto aguarda a liberação do NIS, receberá assim como a relação existente entre a concessão
uma declaração provisória, com validade de 180 do benefício e a construção de novos projetos de
(cento e oitenta) dias, e que possui validade tal vida.
como a carteira oficial;
É necessário apresentação de documentos Etapas
pessoais (RG e CPF); declaração de residência As famílias e indivíduos acessam o serviço por
(não precisa autenticar em cartório). Os procura espontânea; por busca ativa da equipe do
documentos devem ser originais. CRAS; por encaminhamento da rede
Critérios para concessão do benefício socioassistencial; por encaminhamento das demais
excepcional: políticas públicas. Todos que demandam o serviço
Renda familiar per capita de até meio salário são atendidos.
mínimo;
Atender a alguma das situações expostas no O atendimento no PAIF compreende:
artigo 27 da Lei Nº 5.165/2013;
Inscrição no CadÚnico. Caso a família ou Acolhida – É o contato inicial de escuta das
indivíduo não possua o cadastro, deverá ser necessidades e demandas trazidas pelas famílias.
encaminhado para inclusão; É realizado diariamente em todas as unidades de
No caso de famílias deslocadas CRAS, das 8h às 18h. Nesse momento,
compulsoriamente, deve ser observado o critério de dependendo da solicitação da família, é realizado:
5 (cinco) anos de moradia na ocupação.
1. Abertura do Prontuário Familiar – É um
O benefício poderá ser solicitado nas seguintes
instrumental técnico que visa auxiliar o trabalho dos
situações:
profissionais, organizando as informações
Catástrofe, desastre ou calamidade pública,
indispensáveis à realização do trabalho social com
decretados por autoridade competente;
as famílias e registrando o planejamento e o
Situações de risco geológico, indicadas por
histórico do atendimento/acompanhamento familiar;
órgão competente;
Situações de risco à salubridade, indicadas por
2. Abertura do Prontuário Familiar – É um
órgão competente;
instrumental técnico que visa auxiliar o trabalho dos
Desocupações de áreas de interesse ambiental,
profissionais, organizando as informações
indicadas por órgão competente e notificada às
indispensáveis à realização do trabalho social com
famílias da impossibilidade de permanência na
as famílias e registrando o planejamento e o
moradia;
histórico do atendimento/acompanhamento familiar;
Processos de realocação, remoção ou
Informação/Orientação – Pode ser quanto aos
reassentamento indicados por órgão competente e
serviços, benefícios e programas ofertados no
notificados às famílias da impossibilidade de
CRAS, acesso a rede socioassistencial e demais
permanência na moradia;
políticas públicas;
Risco pessoal e eventos de risco, em casos
excepcionais. Neste caso é imprescindível que seja
3. Encaminhamento para acesso a
avaliada a relação entre o risco vivenciado e
documentação civil básica – Destinado às
condições de moradia;
pessoas com renda mensal de até um salário
Situação de Rua. Caracteriza-se como
mínimo. O requerente receberá uma declaração de
população em situação de rua para recebimento do

123
isenção da SEDHS que deve ser entregue à Polícia pessoa idosa ao sistema de transporte coletivo
Civil; interestadual rodoviário, ferroviário e aquaviário;

4. Alimentação emergencial – Destinada às 8. Inscrição em cursos de capacitação


famílias residentes no Distrito Federal que profissional – No CRAS as famílias realizam as
declararem situação de insegurança alimentar e pré-inscrições para cursos ofertados pelo Pronatec
nutricional. A primeira solicitação é realizada na – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico
acolhida e as próximas solicitações ficam a critério e Emprego. Após a pré-inscrição, o usuário deve se
do profissional que avalia as necessidades durante dirigir a instituição ofertante como o SENAI,
visita domiciliar. Poderá ser concedida mais de uma SENAT, SENAC, SENAR e IFB para confirmar a
cesta básica por mês, desde que comprovada inscrição. O objetivo é ampliar as oportunidades
necessidade. Famílias beneficiadas deverão ser educacionais e de formação profissional qualificada
orientadas a se inscrevam no Cadastro Único. A aos jovens, trabalhadores e beneficiários de
cesta é entregue na residência da família pelo programas de transferência de renda;
servidor da Subsecretaria de Segurança Alimentar
e Nutricional, no prazo máximo de uma semana, a 9. Agendamento com equipe de especialistas –
contar da data de solicitação; quando o atendimento não se esgota na acolhida
ou há alguma situação que demande atendimento
5. Benefício eventual – auxílio natalidade – com especialista (Assistente social, Psicólogo,
Integra os benefícios eventuais previstos na Lei Pedagogo) a família é encaminhada para
Orgânica da Assistência Social (LOAS). O Benefício atendimento naquele momento, caso não haja
Natalidade é de prestação temporária, destinado a disponibilidade, a entrevista é agendada para a
auxiliar a mãe nas despesas decorrentes do data mais próxima.
nascimento de criança. Atende às necessidades Atendimento com especialista: Caracteriza-se
básicas do nascituro e apoia a mãe nos casos de pela escuta das demandas do indivíduo/família
natimorto e morte do recém-nascido. O Benefício objetivando oferecer orientações qualificadas,
Natalidade pode ser concedido nas formas de encaminhamentos adequados e os registros
PECÚNIA e BENS DE CONSUMO. Na Forma necessários. O atendimento utiliza-se de técnicas
PECÚNIA – Será concedido o valor de R$200,00 para analisar, vincular e incluir famílias ou
(duzentos reais) por nascimento, devendo o indivíduos nos serviços, programas, projetos e
requerimento datar de até 90 (noventa) dias do dia benefícios socioassistenciais visando a garantia de
do nascimento. Na Forma BENS DE CONSUMO – direitos. O atendimento ocorre por demanda da
O requerimento deve datar de até 30 (trinta) dias própria família ou por encaminhamento de outro
após a data de nascimento e compreende órgão. Para integrar os serviços e minimizar as
um kit com itens necessários para o recém-nascido; situações de riscos, perdas e danos decorrentes de
contingências sociais, auxiliar no fortalecimento dos
6. Benefício eventual – Auxílio por Morte. Integra vínculos familiares e a inserção comunitária o
os benefícios eventuais previstos na Lei Orgânica especialista, ao atender ou acompanhar uma
da Assistência Social (LOAS) e têm como objetivo família/indivíduo, poderá solicitar os benefícios
reduzir vulnerabilidades provocadas por morte de eventuais e/ou excepcionais.
membro da família. O Benefício por Morte pode ser
concedido, cumulativamente, nas formas de 1. Vulnerabilidade – será sempre concedido em
PECÚNIA e BENS DE CONSUMO (ou caráter provisório, mediante avaliação técnica
RESSARCIMENTO); feita por especialista que atue nas unidades da
SEDHS, com o valor de até R$ 408,00
7. Solicitação da carteira do Idoso – Carteira do (quatrocentos e oito reais) e será definido
Idoso é o instrumento que garante o acesso da mediante procedimento de avaliação técnica de

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especialista, sendo fixado de acordo com o grau serem alcançados, a realização de mediações
de complexidade da situação de vulnerabilidade periódicas, a inserção em ações do PAIF, a fim
e risco pessoal das famílias e indivíduos; de superar, gradativamente, as vulnerabilidades
vivenciadas. O acompanhamento pode ser
2. Benefício Excepcional – É uma prestação particularizado ou coletivo
excepcional no âmbito da assistência social.
Trata-se de auxílio em razão de desabrigo 1. Acompanhamento Particularizado – Consiste
temporário. É vinculado à Política de Habitação na realização de intervenções com a família em
do Distrito Federal, portanto para a concessão particular ou indivíduo, quando for o caso. É
do auxílio é importante observar se a família já voltado principalmente para as famílias ou
tem algum tipo de cadastro nos programas indivíduos que não tenham possibilidade de
habitacionais e qual é o andamento desta participação no acompanhamento em grupo,
inscrição. A família deve ser orientada sobre a pelas condições e impedimentos da sua
excepcionalidade deste benefício e da dinâmica de vida. Objetivos a serem alcançados:
importância de estar inscrita em programa reflexão crítica das vulnerabilidades/riscos
habitacional. O benefício excepcional é exclusivo enfrentados e formas de enfrentamento e
para pagamento de aluguel de imóvel superação, identificação de recursos e
residencial. O valor do benefício é de até R$ potencialidades, ou seja, buscar a resolução;
600,00 (seiscentos reais), devendo o especialista
indicar o valor efetivamente contratado até o 2. Acompanhamento coletivo/oficinas – As
limite de R$ 600. oficinas têm por intuito gerar reflexão sobre um
tema de interesse das famílias, sobre
• Atendimento Particularizado: É o atendimento vulnerabilidades e riscos, ou potencialidades
realizado com objetivo de fazer uma análise do identificados no território, contribuindo para o
contexto e situação da família e do indivíduo. alcance de aquisições, em especial, o
Exige um conjunto de técnicas e procedimentos fortalecimento dos laços comunitários, o acesso
de intervenção profissional. Pode ser realizado a direitos, o protagonismo, a participação social
de forma individual ou com toda a família e pode, e a prevenção a riscos;
também, acontecer em apenas um atendimento
ou mais. Acesso aos Programas de Transferência de
• Atendimento em grupo: É o atendimento Renda – Os CRAS são responsáveis por
realizado com mais de um indivíduo ou mais de operacionalizar ações/atividades específicas,
uma família que objetiva tornar coletivas as relativas à inscrição das famílias no Cadastro
demandas do grupo, socialização de Único para Programas Sociais – CadÚnico e
informações, reflexão sobre situações demais procedimentos relacionados ao
vivenciadas pelos membros do grupo, definição Programa Bolsa Família (PBF) e DF Sem
de estratégias para autonomia e Miséria. Entre eles, inclusão no Cadastro Único,
empoderamento. O atendimento em grupos pode mudança de titularidade do Responsável
gerar outros atendiment Familiar, alteração de renda, inclusão/exclusão
de membros, alteração de dados escolares,
• Acompanhamento familiar/individual: alteração de endereço, orientações, a
Inserção da família em um conjunto de averiguação cadastral e o recadastramento
intervenções desenvolvidas de forma
continuada, a partir do estabelecimento de 1. Acompanhamento Particularizado – Consiste na
compromissos entre a família e os profissionais, realização de intervenções com a família em
que pressupõem a construção de um Plano de particular ou indivíduo, quando for o caso. É
Acompanhamento Familiar – com objetivos a voltado principalmente para as famílias ou

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indivíduos que não tenham possibilidade de
participação no acompanhamento em grupo,
pelas condições e impedimentos da sua
dinâmica de vida. Objetivos a serem alcançados:
reflexão crítica das vulnerabilidades/riscos
enfrentados e formas de enfrentamento e
superação, identificação de recursos e
potencialidades, ou seja, buscar a resolução

2. Acompanhamento coletivo/oficinas – As oficinas


têm por intuito gerar reflexão sobre um tema de
interesse das famílias, sobre vulnerabilidades e
riscos, ou potencialidades identificados no
território, contribuindo para o alcance de
aquisições, em especial, o fortalecimento dos
laços comunitários, o acesso a direitos, o
protagonismo, a participação social e a
prevenção a riscos;

Acesso aos Programas de Transferência de Renda


– Os CRAS são responsáveis por operacionalizar
ações/atividades específicas, relativas à inscrição
das famílias no Cadastro Único para Programas
Sociais – CadÚnico e demais procedimentos
relacionados ao Programa Bolsa Família (PBF) e
DF Sem Miséria. Entre eles, inclusão no Cadastro
Único, mudança de titularidade do Responsável
Familiar, alteração de renda, inclusão/exclusão de
membros, alteração de dados escolares, alteração
de endereço, orientações, a averiguação cadastral
e o recadastramento.

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