Ma Mule Ngos
Ma Mule Ngos
Ma Mule Ngos
*
Obra executada na, oficlnu da
SÃO PAULO EDITORA S. A.
Rua Barão de Ladário, 226
Silo Paulo 6, SP - Brasil
·BRASILIANA
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AucusTE DE SAJNT-HILAIRE
Viagem à Comarca de Curlttba (1820)
F. HUXLEY
Selvagens Amável., (um antropologista
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. A, Minas Gera'8 e os primórdw, do
Caraça
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História da queda do lmpérw
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A conquista da Paraíba
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Hist6ria do Po.ntivmno no Branl
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(no prelo)
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Novas Páginas de Hist6rla do Bra.nl
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Rto Branco (segunda edição)
AROLDO DE AzEVEDO
Os Cochranes do Branl
Luís WAsHINCToN VrrA
Alberto Sales, úle6logo da RepúbUca
HELJO VIANNA
D. Pedro I e D. Pedro li
ediçôes da
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
S.fo PAULO
o
brasiliana
()olume 332
,.
Obra publicada
com a colaboraçlfo da
COMISSÃO EDITORIAL:
Dire~o:
AMÉRICO JACOBINA LACOMBE
"
. HERMILO BORBA FILHO
Fisionomia e Espírito
do Mamulengo
( o teatro popular do Nordeste)
edição ilustrada
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SÃO PAULO \~
.,..t-
2ste livro é o resultado de uma pesquisa
realizada para o Instituto Joaquim Nabuco
de Pesquisas Sociais, do Ministério de
Educação e Cultura .
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1 1
Direitos reservados
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 631\_ - São Paulo 2, SP
1966
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O homem é uma marionete
De uma ária de StMPHIN
MrcHEL DE GHELDERODE
A., entrevúta3 de Oatende
SAINTYVEB
j
A memória de Cheiroso
SUMARIO
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIII
I - A marionete 3
II - A marionete no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . 67
"As bravatas do Professor Tiridá na Usina do
Coronel de Javunda" (Januário de Oliveira) 115
"As aventuras de uma viúva alucinada" (Ja-
nuário de Oliveira ) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
"As trapaças de Benedito" ( Manuel Amen-
doim) .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
"Haja pau" (José de Moraes Pinho) . . . . . . . 193
"Torturas de um coração" ( Ariano Suassuna) 203
Bibliografia 292
.
INTRODUÇÃO
XIV
mundo é mundo; a segunda estuda os bonecos no Brasil e
mais especialmente no Nordeste; a terceira tenta aquilo que
pernosticamente poderíamos chamar de "metafísica do boneco".
Como exemplos transcrevo peças populares de mamulengueiros
pernambucanos, gravadas por ocasião do espetáculo; obras de
autores pernambucanos eruditos escritas para um teatro de
bonecos, e finalmente uma obra que Michel de Ghelderode
recolheu num velho teatro de bonecos da Bélgica, sôbre a
Paixão de Cristo, para concordiincia de nossa tese sôbre a
origem religiosa das marionetes.
Na pesquisa bibliográfica e de campo muitas pessoas me
ajudaram. Prestaram um serviço à arte popular nordestina e
por isso devem merecer um reconhecimento público. Foram
elas: Abelardo Rodrigues, Adelmar de Oliveira, Airton Car-
valho, Alfredo de Oliveira, Altimar de Alencar Pimentel, Aluí-
zio Chagas, Antônio Farias, Ariano Suassuna, Beatriz Ferreira,
Ca piba, Ceei Cantinho Lobo, Francisco Rodrigues, Geninha
Sá da Rosa Borges, Getúlio César, Hermógenes Francisco
Dámaso, Hildebrando de Assis, Janice Lobo, João Santiago
dos Reis, Joel Pontes, José Brasileiro, José de Moraes Pinho,
José Lourenço de Lima, Lauro Raposo, Lourival de Oliveira,
Luís Nascimento, Maria Rosa Mendes Primo, Olympio Costa,
Otávio da Rosa Borges, Rubens Teixeira, Sílvio Rabelo, Val-
domiro Gomes e Zuleide Medeiros de Souza, além dos fun-
cionários da Escolinha de Arte do Recife, da Biblioteca da
Escola de Belas-artes e da Biblioteca Pública.
Não fiz trabalho de folclorista, mas de homem de teatro,
encarando o mamulengo nordestino como forma de teatro
popular existente em nossa região. E mais: a nossa exclusiva
forma de espetáculo total, onde o boneco é o personagem
integral e o público um elemento atuante.
Recife, 1963.
•
H. B. F.
XV
Fisionomia e Espírito
do Mamulengo
., .
•
•
'
I
"A marionete é velha como o mundo. Renasce de suas própri<u
dnzas. í; então um ser n6vo que é preciso aprender a conhecer para
amá-lo, amando-o para aceitar e perdoar seus defeitos (ou o que pode
parecer defeito ao profano). Ela é uma filha natural da poesia. T6das
as fadas do mundo compareceram ao seu nascimento, levando-lhe dons
e honrarias. í; imortal, embora habitando na te"a e tendo sido criada
para fazer os homens esquecerem suas preocupações. Diverte as crianças.
encanta as pessoas grandes, toca o simples, oferece um prazer delicado
ao enfastiado e ao cético. í; um ;6go dos deuses, p6sto por ~les na terra
para nos lembrar a realidade do seu duro ofício e da sua modéstia" ( 2).
J ACQUES CHESNAIS
3
- a de luva - é um boneco de cabeça de madeira, de
massa ou de papelão, montado num camisolão de pano.
Seu movimento é produzido pela mão: o dedo indi-
cador introduz-se na cabeça e os dedos polegar e médio
nos braços;
- a de vareta - boneco de madeira ou de outro material
qualquer, articulado e movimentado por varetas;
- a de teclado - manejada por uma haste que lhe segura
a cabeça. O movimento se processa por meio de teclas
que orientam cordéis ligados aos braços e às. pernas;
- a dobrada - montada sôbre uma tábtfa, podendo do-
brar-se em diferentes sentidos e reencontrando sua
posição primitiva por meio de elásticos ou molas;
- a de haste - suspensa numa haste de metal que parte
da cabeça da marionete para ir até a mão do mani-
pulador. Pode ter fios para os braços e as pernas;
- a de fio - os fios são ligados a uma pequena cons-
trução de madeira - o controle - que permite ao
manipulador movimentar o persona~m ( 4 ).
.4
vinte anos que êle governava com sabedoria e juízo o Império
Celeste e seu reinado era dos mais gloriosos de todos os
tempos. Mas Wu Ti era muito supersticioso e acreditava nas
artes mágicas. Quando morreu a dançarina, êle voltou-se no
seu desespêro para o mágico da côrte, exigindo que fizesse
voltar a linda defunta do país das sombras. Ameaçado de
pena de morte, o mágico não perdeu a cabeça e soube usá-la,
como também das mãos, adestradas por longo treino de pelo-
ticas e prestidigitações. Numa pele de peixe, cuidadosamente
preparada para torná-la macia e transparente, recortou a si-
lhueta da dançarina, tão linda e graciosa como ~la fôra. Numa
varanda do palácio imperial, fechada dos lados e coberta por
cima, mandou esticar uma cortina branca em frente a um
campo aberto. Com o imperador e a côrte reunida na varanda
e à luz do meio-dia que se filtrava através da cortina, êle fêz
evoluir a sombra da dançarina, ao som de uma flauta, e todos
ficaram alucinados com a semelhança. O mágico recebeu um
rico presente e desde então o teatro de sombras ficou sendo
passatempo predileto dos fidalgos chineses e, mais tarde, do
povo.
Embora seja 16gico supor que o mais antigo teatro de
figuras tenha sido o de sombras, nada existe de positivo a
respeito e, apesar dêsse tipo de espetáculo ter o nome de
"sombras chinesas", nada nos autoriza a garantir que tenha
partido da China, pois não existe nenhum documento a res-
peito. Foram populares nesse país no século XI e somente
mais tarde apareceram em outros países. lt o que se sabe.
Indiscutivelmente, porém, pelo seu modo de animação as som-
bras pertencem à história das marionetes e vale a p!:lna saber-
• mos mais alguma coisa a seu respeito.
Se as sombras da China possuem um caráter restrito de
divertimento, as de Java têm um caráter religioso, não exis-
tindo mesmo sob o aspecto puramente comercial. Em quase
tôdas as casas - ricas ou pob,es - há um lugar destinado
ao Dalang( 6 ), onde êle poderá instalar sua tela.
5
Já na Turquia as sombras adquirem um caráter exclusi-
vamente diversional, utilizando-se de um tipo popularíssimo
do teatro de bonecos: Karagós. E é precisamente dêsse tipo
que surge uma lenda que tenta também explicar a origem do
teatro de sombras. Karagós tinha um companheiro: Hacivad.
Um era pedreiro e o outro, ferreiro. Viveram em Bursa no
século XVI. Empregados na construção de uma mesquita dis-
traíam seus companheiros contando histórias alegres. Mas isto
prejudicava o trabalho e o sultão mandou cortar-lhes a cabeça.
Para descanso do suserano que o remorso logo perseguiu, um
certo Seyh KusMn fêz reviver num teatro de sembras Karagós
e Hacivad( 7 ).
Embora os bonecos sejam tão antigos quanto os homens,
pode-se dizer que no período primitivo existia apenas "o
boneco inconsciente", no sentido do espetáculo. Sabe-se que
desde a mais remota antigüidade os egípcios possuíam está-
tuas animadas nos templos, sendo que por ocasião das festas
dedicadas a Osíris as mulheres participavam das procissões
conduzindo falos mecânicos. A estatuária animada represen-
tou, por exemplo, acontecimentos em t&mo ~ Osíris. No pri-
meiro quadro via-se lsis chegar, lamentando-se pela morte de
Osíris; o segundo quadro figurava um barco e lsis à procura
do corpo do marido que deveria ter sido jogado ao Nilo;
terceiro quadro: mais lamentações, o corpo encontrado e res-
surreição de Osíris. Estamos, sem nenhuma dúvida, diante da
origem religiosa do teatro de bonecos, muito aproximado, por
sinal, dos espetáculos litúrgicos medievais, inclusive com o
tema da ressurreição. Ainda neste século, foi encontrado no
Egito, um teatro de marionetes, com as figuras esculpidas em
marfim.
Vestígios de um teatro de bonecos podem ser encontrados
na lndia no século XI antes de nossa era, com a figura impor-
tante do sutradhara, isto é, o homem que puxa o fio. O texto
das peças era improvisado, também com caráter religioso.
Ràpidamente evoluiu para um tipo de teatro popular, onde
. o personagem principal_ era Vidouchaka, um brâmane, anão,
(7) Francis Bovcnar e Denis BoRDAT, Le, th.Stltre, d'omb,u, L'Arche, Paris,
1956.
6
corcunda, com enormes dentes, olhos amarelos e completa-
mente calvo. E ridículo por suas expressões, suas vestes e
sobretudo por sua glutonaria. Concupiscente e lúbrico, brin-
calhão e grosseiro, bate em todo mundo, fala a linguagem
popular, o prácrito, em vez de empregar o sânscrito, que é a
linguagem dos brâmanes. Vidouchaka é o pai dos Karagoses,
dos Polichinelos, dos Punchs, dos Guignols, dos Fantoccini,
dos Beneditos, dos João Redondos do mundo inteiro. E o
primeiro personagem integral do teatro de bonecos.
Atualmente, na lndia, o manipulador de fantoches ou
putti-wallah é figura muito conhecida, sendo encontrado em
festas como a de Dussehra, a de Diwali e por volta do Natal.
O titeriteiro indiano costuma ir de casa em casa levando os
bonecos e marcando espetáculos. Encontra grande receptivi-
dade, pois os fantoches representam na India uma ocupação
tradicional; a arte de fazê-los e movimentá-los passa de gera-
ção a geração. Cada geração embeleza as histórias ouvidas
da anterior, dando-lhes maior interêsse emocional.
Geralmente o putti-wallah improvisa seu palco, amarran-
do, por exemplo, as cortinas entre duas paredes ou no vão
de uma porta. A pessoa que conta a história é geralmente
o filho mais nôvo ou a espôsa do artista. :E:le dá um sinal
de tambor para indicar que vai começar. As preliminares às
vêzes são um pouco demoradas. Os fantoches aparecem ves-
tidos em côres berrantes, geralmente em trajes típicos. A
introdução, que pode demorar de dez minutos a uma hora,
é cantada docemente ao som do tabla, instrumento indiano.
À medida que, na introdução, o titeriteiro vai apresentando
os personagens, a platéia vaia os maus ou ri dos cômicos.
Quando a peça propriamente dita começa, não há muita novi-
dade de enrêdo. Todos já sabem as histórias .. O que varia
é a maneira de apresentá-las, os detalhes, a técnica do titeri-
teiro. Os enredos versam geralmente sôbre os príncipes de
Rajasthan. O heroísmo, as int~as da côrte, as batalhas san-
grentas, onde matam crocodilos ou tigres, arrancam das crian-
ças gritos de emoç.10. A peça termina com alguma tocante
reconciliação ou a visão do campo de batalha cheio de cadá-
veres ensangüentados. Os maus perecem, os bons sobrevivem.
7
O personagem principal do teatro de bonecos do Ceilão
é um certo Raguin. Eis uma representação típica assistida e
contada por Jacliotº: "Ap6s ter destruído tudo o que se con-
vencionou chamar na Europa de bases sociais, depois de ter
jogado na lama todos os princípios de autoridade, o atrevido
declara que cada um está na terra para distrair-se à sua von-
tade e que êle s6 achava uma coisa boa: os prazeres do
amor. E não tinha outra ocupação senão a de possuir tôdas
as mulheres que encontrava, seja pela sedução, seja pela fôrça.
Aparece uma jovem senhorita inglêsa, de chapéu verde-maçã,
que passeia sua melancolia pelo campo. Ra~in lhe faz uma
declaração, ela resiste e o descarado a sacrifica à fôrça sôbre
o altar de Citéres. . . Chega a criada à procura de sua ama
e tem a mesma sorte. A mãe, procurando a filha por todos
os cantos, também não é respeitada . .. Enfim, o pai, um bom
velho Lorde de compridas suíças, de ar respeitável, acaba de
saber o que aconteceu a tôda sua familia. Raguin lança-se
sôbre êle ... Nesse instante, eu sai".
Uma das mais extraordinárias manifestações da arte indo-
javanesa, nas ilhas de Sonda, são os Wayan~s, nome pelo qual
são conhecidas as marionetes. Os javaneses sofreram a in-
fluência dos hindus desde o século III e as marionetes até
hoje conservam o seu caráter hierático.
"O mais antigo dos Wayangs é o Wayang Poerwa, que
quer dizer marionete antiga. São silhuetas recortadas em pele
de búfalo, decoradas preciosamente, projetando-se sua sombra
sôbre uma tela chamada Kelir. Os espectadores ficam sepa-
rados: os homens, do lado do manipulador, assistem à repre-
sentação vendo a figura recortada, enquanto as mulheres vêem
apenas as sombras movimentadas pelo Dalang, espécie de
médium que faz as almas dos mortos descerem em suas ma-
rionetes, revivendo assim as maravilhosas histórias da mito-
logia javanesa, ao som de gongos, do souling, do rabab, que
formam o Gamelang ( a orquestra) ." ( 8 ). 1l:ste é um espetáculo
de caráter animista, com a materialização do Além.
( • ) Tõdn< ns citnçõt•s neste c11pltulo, quando nlo se c•specificnr u nhrn de
onde foram cxtrnldus, pod~m ser encontradas no livro de Jacques CH1tlRAt1, f6
mencionado, que constitui n mais compl eta história sõbre as marionetes.
( 8) Jacq11es CHESNAIS, Obra citada, p6g. 44.
8
Há uma outra forma de espetáculo: o Wayang-Beber,
cenas pintadas em papéis colados uns aos outros e que vão
passando aos olhos dos espectadores à medida que a história
é narrada. ~ o ancestral mais remoto do desenho animado.
Há também o Wayang Kelitik, "constituído por um corpo
em madeira recortada, maravilhosamente decorado e muito
chato, esculpido em medalha, com braços de couro, seme-
lhante ao Wayang Poerwa. Aqui, a marionete não aparece
mais em sombra, é inteiramente visível a todos os especta-
dores, como para o W ayang-Golek que é uma verdadeira
marionete esculpida, com seus braços em madeira e um corpo
vestido com fazendas",
Sofrendo a influência hindu, o teatro de bonecos javanês
é, por conseqüência, de base religiosa. As histórias se rela-
cionam quase sempre ao Mahabarata e ao Ramaiana. Vichnu
apresenta-se sob o nome de Krisna. ~ o conselheiro dos
Pendawas que acabam de entrar em guerra com os cinco
filhos de Pandu contra seus cem primos, os Kurus. Krisna
leva para a luta o guerreiro esplêndido e amado por todos,
Arjuana, que conduz seu exército à vitória. Após uma luta
heróica, restam apenas seis Pendawas vitoriosos e Krisna.
Quanto aos Kurus restam apenas quatro. Pouco tempo depois
o deus morre, também, de um acidente de caça.
Os tipos são divididos em duas categorias: o aristocrático
e o grosseiro. Arjuana, o cavaleiro sem mancha e sem mácula,
pertence ao primeiro grupo. E ao seu lado estão os Pendawas,
Abijasa, Drestarastra e Pandoe, todos arianos puros. No se-
gundo grupo estão os Korvas e os Reksasas: Rawana, Kolojekso,
Doersosona, de dentes enormes e faces terríveis.
Ao lado dos Pendawas estão os servos mais curiosos,
personagens grotescos, de origem antiga e nobre. São êles:
Semar, que possui uma barriga enorme, um traseiro igual à
barriga, cabeça pontuda, nariz p~queno, a devoção em pessoa;
Petroek, nariz grosso e atitude insolente; N ala Gareng, mali-
cioso e pobre, Bagong, um bruto e Zogok, uma verdadeira
bêsta, opõem-se aos Pendawas, secundados por Sorowito, tão
ruim quanto êles.
9
A marionete de fio é muito popular na Birmânia. Os
bonecos são de uma riqueza estonteante e montados com um
engenho admirável. O testemunho de Mahe de la Bourdonnais
é importante: "A plataforma de bambu tem mais ou menos
dois metros e meio, fechada no sentido da largura por uma
cortina atrás da qual postam-se os marionetistas. Na parte
anterior que forma a cena vê-se, de um lado, um pátio onde
está um trono, chapéus-de-sol dourados e outras insígnias
reais; do outro, uma floresta representada por alguns ramos
de árvores que produzem uma ilusão absolutamente insufi-
ciente. Os bonecos, em madeira, têm dois ai-três pés de altura
e são luxuosamente vestidos. Seus movimentos, produzidos por
cordéis ligados à cabeça, às pernas e aos braços, parecem
bastante naturais. Eu assisti, sem compreender grande coisa,
à peça que se desenrolava diante de mim e que parecia pro-
duzir um grande prazer ao público, principalmente quando
acontecia um incidente grotesco, pelo menos para mim. Um
dos fios que fazia o rei mover-se, quebrou-se, e eu vi descer
do céu uma mão gigantesca, na extremidade de um braço
que parecia desmedido, pondo tudo em, ordem, o que me
fêz pensar em Gulliver no país dos anões. Os marionetistas
adquirem muitas vêzes mais reputação que os atôres verda-
deiros. O mais célebre é Mong-Tha-Byiah, sem rival nos
papéis de príncipe. Sua reputação é imensa e seus julgamen-
tos são oráculos".
Os bonecos chineses possuem as mesmas características..
Mil anos antes de Cristo já Let-Tse fazia referência aos bo-
necos em suas crônicas: "Elas dançavam e cantavam". O
imperador Muh, da dinastia Chow, promoveu representações
de bonecos por um homem chamado Yen-Sze. No século III
antes de Cristo, uma grande guerreira, O, sitiou a cidade de
Ping, e o imperador fêz dançar uma grande e bela boneca,
em cima das muralhas. O, receosa que essa cortesã de ma-
deira enfeitiçasse seu marido, levantou o cêrco.
As marionetes tinham um lugar importante na vida social
do pais, as representações sucedendo-se nos palácios dos im-
peradores e nos meios populares. Já tomamos conhecimento
das sombras chinesas e verificamos agora que existiam maria-
10
netes de fio e de luva. Entre as de luva existiu um perso-
nagem típico, Kvo, muito parecido ao Vidouchaka hindu,
zombando dos poderosos, muito ativo, distribuindo cacetadas.
Esta é uma característica de todos os tipos principais das
marionetes de luva do mundo inteiro.
Uma outra variedade de espetáculo é aquela onde o
manipulador faz do seu corpo o próprio teatro ( 9 ).
Os marionetistas iam de casa em casa, representando
principalmente para as crianças, por ocasião de aniversários,
festas, etc. No Diário de Mac Arthenay temos uma descrição
de um dêsses espetáculos: "Tivemos um espetáculo de mario-
netes que diferem pouco das nossas. Representaram primeiro
uma princesa infeliz prêsa num castelo. Um cavaleiro errante
que combatia os animais ferozes e os dragões monstruosos
libertava a princesa e obtinha, como recompensa, a sua mão.
Celebrava-se o casamento com justas, torneios e divertimentos.
Depois dessa espécie de féerie houve uma peça cômica na
qual intervinham vários personagens bastante semelhantes a
Polichinelo, a Madame Gigogne e a Scaramouche ( claro que
K vo representava os papéis principais ). tsse jôgo de mario-
netes pertencia, segundo nos informaram, aos apartamentos
das mulheres do Imperador, e que nos foi enviado como um,
favor especial para nos distrair. Uma das peças representadas
foi extremamente aplaudida pelos chineses que estavam co-
nosco ( ... )." ,
As marionetes japonêsas foram importadas da China e·
divididas em duas categorias: as de fio, chamadas Ito-Tsoukai
e as do teatro Bonrakuza, chamadas Ninguen-Tsoukai. Estas
últimas são extremamente curiosas e seu repertório, consti-:
tuído na maior parte de poemas históricos, contém peças de
Shikamatsu Monzamon, considerado o Shakespeare do Japão.
Os manipuladores são chamados por um nome que significà
"Capaz de mudar o espírito da árvore" ou "Capaz de dar vida
à madeira". • ·
Eis um teatro de marionetes do século XVI: a cena tem
a forma de uma grande mesa com uma passagem livre atrás,
( 9) Luiz EDMUNDO faz referência a êsse tipo de teatro de bonecos em seu
livro O Rio de Janeiro ,10 tempo dos Vice-Reis. Vamos analisá-lo maia adiante.
11
porque os bonecos são manipulados por homens que não se
ocultam absolutamente dos espectadores. São necessárias três
pessoas para manobrar um boneco comum. Para os papéis
de figurantes ou muito pouco importantes uma só basta. O
principal animador sustenta o boneco com seu braço esquerdo
e faz mover a cabeça cuja mobilidade é extraordinária: os
olhos, as sobrancelhas, a bôca, tudo mexe. Com a outra mão
êle faz viver o braço direito do personagem. O segundo ani-
mador está lá para manobrar o braço esquerdo do boneco e
deve sincronizar todos os seus gestos de braço com os movi-
mentos da cabeça. Quanto ao terceiro opêrador maneja os
pés do boneco ou o seu traje.
Quando se trata de um Sewamono ( peça mundana) o
animador apresenta-se mascarado. Quando se trata de um
Judaimono ou Kimbyobumono ( peça histórica) o animador
não está mascarado, mas usa um traje de cerimônia histórico
chamado kamishimo. Quanto aos outros dois operadores estão
sempre cobertos por um véu prêto. Cada cena se desenvolve
como um balé, seguindo a história que é contada e cantada
por um ou diversos narradores-cantores, 'acompanhados por
uma orquestra cujo principal instrumento é o ahamissen. 11:sse
gênero de expressão dramática chama-se Joruri( 1º).
A invenção d~sse gênero é atribuída a uma dama que
viveu nos fins do século XVI, Ono-No-Otsu. Nos fins do
século XVII, Takemoto Chikugo cria em Osaka uma nova
escola de marionetes, conhecida sob a denominação de Gidayu,
prevalecendo até hoje. Os personagens são típicos. Runshichi,
que representa os papéis de homem piedoso; Danshichi, os
de homem mau; Keisai, destinado aos papéis de amante.
Masumé, os de môça; Shinzo, os de espôsa; Fukeoyama, os
de velha; e Wakaatoko, os de rapaz. As marionetes que
representam as mulheres não têm pernas, a não ser quando
se trata de viajantes.
Na Pérsia, o personagem principal dos teatros de bonecos
tem dois nomes: Pendj, que significa cinco, em persa, corres-
pondente ao número · mínimo dos personagens que .devem
( 10) Jacque1 CimmAU, Obra oftada, pãg. 53.
12
intervir numa representação; ou Ketchek Pehlivan, que quer
dizer o lutador calvo. Os bonecos são uma variante das som-
bras chinesas. Pendj, como qualquer personagem principal
de teatro de bonecos, emprega todos os meios para obter os
seus fins. Tem um tremendo complexo de superioridade, é
paciente, hipócrita, compraz-se em arranjar vítimas, na sua
maioria mulheres, mas também adolescentes aos quais deseja
impor a suprema humilhação ... Sua concupiscência é notória.
l!: um personagem típico da lubricidade do teatro oriental que
pode parecer imoral para os ocidentais, mas que em nada
afeta os indígenas.
Outro personagem importante: Cheitan, o gênio do mal e
do vício, distribuidor de pancadas, sempre à procura de uma
mulher para desencaminhá-la. Só se sente bem praticando
o mal. Temos também Rustem, outro campeão de virilidade.
l!: capaz de tôdas as proezas eróticas, mas ao contrário de
Pendj tem um bom coração. Hassan-Ilodfa ou Mehmet-Ilodfa
é professor, teólogo e prefeito da cidade. l!: o bode expiatório:
roubado, expulso de casa, perde a mulher e a filha, mas sua
filosofia o leva a suportar tôdas as desgraças. Zen, a mulher,
pode interpretar vários papéis: mulher do professor ou sua
filha, dançarina, prostituta. l!: o centro da ação dramática, em
tôrno dela girando Pendj e Rustem. Eis os assuntos, natural-
mente improvisados em tôrno de um tema central, referidos
por A. Thalasso:
"Ketchel Pehlivan, amando a filha do teólogo, penetra na
casa dêle, cativa-o com suas belas maneiras, embriaga-o com
haschich e rapta Zen. De outra vez êle se empenha em dar
um herdeiro ao professor, a ponto de repudiar sua mulher,
Zen, acusada de esterilidade. Ketchel sacrifica-se pela tran-
qüilidade e felicidade do casal".
Sabe-se também de um teatro de marionetes de luva,
conhecido sob o nome de Schith Selim, mais ou menos com
o mesmo repertório.
Na Turquia encontramos o mais espantoso tipo de teatro
de bonecos, ao qual já fizemos referência quando tratamos
das versões poéticas sôbre o nascimento dêsse tipo de espe-
13
táculos. Karagós. Trapalhão, hipócrita, bmtal, egoísta, libi-
dinoso. Vive enganando os outros e distribuindo pancadas a
torto e a direito. Mente descaradamente, não tem escrúpulos
de qualquer espécie e sua sensualidade é espantosa. Esta é
sua principal característica: a luxúria. Cansado e esgotado
nesse terreno, êle procura sempre novas satisfações sexuais.
t calvo, tem uma barriga enorme, uma corcunda e um órgão
sexual monstmoso. Seu companheiro chama-se Hacivad, tipo
astucioso: sabe de tudo, conhece tudo, vê tudo, já estudou
tudo e experimentou tôdas as coisas. Critica todo mundo e
conhece perfeitamente o coração do homem. Apesar disso,
sempre termina apanhando, porque os serviços que tenta pres-
tar a Karagós nem sempre dão certo.
O pai - Ali, Mestapha ou Mehmet - é um velho ridículo,
apaixonado e enganado, paga tudo.
O capitão é uma figura curiosíssima. Toma os nomes de
Zeibek, Reheri Mustapha ou Bachi-Bouzouk. t um blasfe-
mador, bôca-grande e valentão, detestando Karagós e Hacivad.
Aparece como justiceiro e reparador dos nttles causados pela
dupla, mas termina sempre como vítima.
Temos ainda: o jovem apaixonado, o sultão, o banhista,
os músicos, o pers~, à dançarina, o tocador de tamborim, o
bey, o francês ou cristão, o barbeiro, o polícia, a velha con-
fidente, o tirano, a alcoviteira, tôda uma humanidade repre-
sentada em pele de búfalo recortada, tipo de espetáculo mais
de acôrdo com o Alcorão que "proíbe tôda representação
humana no campo das três dimensões".
O curioso é que êsse teatro onde entram todos os vícios,
principalmente o da luxúria, Karagós apresentando-se com um
atributo físico como o que já referimos, é dado para tôdas
as classes de pessoas, inclusive crianças, todos comprazendo-se
com as piadas cínicas e irreverentes. Decididamente a men-
talidade oriental está muito distante da nossa. Ou a nossa
da dêles?
Uma dessas representações ao ar livre, à noite, somente
para homens e crianças ( as mulheres também podiam ver
14
Karagós, mas dentro de suas casas ou nos haréns) , foi assis-
tida por Gérard de Nerval. A peça intitula-se Karag6s, vítima
da castidade:
15
"O Turco afasta-se. Cegueira dos homens, exclama Kara-
gós. Eu, singularmente dotado I Diga antes muito bem do-
tado, mas muito mesmo, muito sedutor.
"Enfim, diz êle, em seu monólogo, meu amigo confiou-me
sua mulher e é preciso corresponder a essa confiança. Entre-
mos em sua casa como êle o quis e vamos nos aboletar num
divã. . . Oh, desgraça 1 sua mulher, curiosa como tôdas as
mulheres, virá ver-me ... e no momento em que seus olhos
caírem sôbre mim ela ficará admirada e perderá todo o con-
trôle. Não I não entremos. . . fiquemos à porta da casa como
um spahi de sentinela. Uma mulher é tão-pouca coisa .. . e
um verdadeiro amigo é um bem tão raro 1
"Esta frase produziu uma verdadeira simpatia no auditório
masculino do café. Ela estava enquadrada num couplet, êsse
tipo de peças estando misturadas de vaudevilles como os
nossos, os refrões reproduzindo muitas vêzes a palavra bak-
kaloum, que é o têrmo favorito dos turcoi; e que quer dizer:
não importa ou: isso me é indiferente.
"Quanto a Karag6s, através da gaze fina que fundia os
tons da decoração e dos personagens, de~enhava-se admirà-
velmente com seu ôlho prêto, suas sobrancelhas n1.tidamente
traçadas e a superioridade mais saliente de sua desenvoltura.
Seu amor-próprio, do ponto de vista das seduções, não parecia
espantar os espectàdores.
"Depois do seu couplet, parece mergulhar em reflexões.
Que fazer?, diz êle, velar à porta sem dúvida, esperando a
volta do meu amigo. . . Mas essa mulher pode ver-me por
detrás das moucharabys ( as janelas). Além do mais pode
sair com suas escravas para ir ao banho ... Nenhum marido,
afinal de contas, pode impedir sua mulher de sair sob êsse
pretexto. . . Então poderá admirar-me à vontade. . . Oh, im-
prudente amigo I por que me deste essa vigília ?
"Aqui, a peça volta-se para o fantástico. Karagós, para
esquivar-se do olhar da mulher do seu amigo, deita-se de
barriga para baixo, dizendo: vou fingir-me de ponte . .. ll:
preciso compreender sua conformação particular para perce-
ber essa excentricidade. Pode-se imaginar Polichinelo colo-
16
cando a saliência do seu ventre como um arco e imaginando a
ponte com seus pés e com os seus braços. Passa uma multidão
de pessoas, cavalos, cachorros, uma patrulha, enfim uma car-
roça puxada por bois e cheia de mulheres. O infeliz Karagós
levanta-se a tempo para não servir de ponte a uma máquina
tão pesada.
"Uma cena, mais cómica na representação do que fácil
de escrever, sucede-se àquela onde Karagós, para fugir aos
olhares da mulher do seu amigo, quis fingir-se de ponte. Para
que nos expliquemos melhor, é preciso remontarmos ao cómico
das atelanas latinas ( 11 ) . O próprio Karagós, por seu lado,
não é outro senão o Polichinelo dos oscos, do qual ainda se
podem ver tão belos exemplares no museu de Nápoles. Nesta
cena, duma excentricidade que seria difícil de suportar entre
nós, Karagós deita-se de costas e deseja parecer uma estaca.
A multidão passa e todo mundo diz: quem enfiou essa estaca ?
Ontem não estava aí. lt de carvalho ? lt de pinheiro ? Chegam
as lavadeiras da fonte e estendem a roupa em Karagós. tle
vê com prazer que seu expediente deu certo. Um instante
depois vêem-se entrar escravos que conduzem os cavalos ao
bebedouro. Um amigo os encontra e convida-os a entrar numa
galera ( espécie de cabaré ) para dessedentarem-se. Mas onde
amarrar os cavalos? "Ali está uma estaca" e amarram os cava-
los em Karagós.
"Logo canções alegres provocadas pelo calor do vinho
de Tenedos ressoam no cabaré. Os cavalos, impacientes, agi-
tam-se. Karagós, puxado por todos os lados, chama os tran-
seuntes em seu socorro e demonstra que é vítima de um êrro.
Livram-no e colocam-no de pé. Nesse momento, a espôsa do
amigo sai da casa para ir ao banho. tle não tem tempo de
esconder-se e a admiração dessa mulher estala em transportes
que o auditório acha mais do que justos. Que belo homem,
exclama a dama, jamais vi uma .coisa igual.
"- Desculpe-me, Hanoum (Senhora), diz Karagós, sem-
pre virtuoso, não sou um homem a que se possa falar . . . Sou
( 11) Tipo de representaçlo Do teatro popular latino, conslatlndo DO entre-
laçamento de episódios cômicos e p antomlma. A palavra se origina d e Atella,
pequena cidade da Itália.
17
um vigilante da noite, daqueles que batem com sua alabarda
para advertir o público que estalou algum incêndio no quar-
teirão.
"- E como ainda estás aí a essa hora do dia?
"- Sou um infeliz pecador. . . Embora seja um bom mu-
çulmano, deixei-me levar ao cabaré pelos malandros. Então,
não sei como, deixaram-me morto de bêbado aqui nesta praça.
Que Maomé me perdoe por ter infringido suas prescrições.
"- Pobre homem. . . Deves estar doente. . . Entra em
minha casa e poderás repousar.
"E a dama procura pegar na mão de Kai.agós em sinal
de hospitalidade.
"- Não me toque, Hanoum I exclama êle com terror ...
Eu estou impuro. Não poderia entrar numa honesta casa
muçulmana. Estou profanado pelo contato de um cão.
"Para compreender essa suposição heróica, que eleva a
delicadeza ameaçada de Karagós, é preciso saber que os
turcos, embora respeitando a vida dos cães, e mesmo alimen-
tando-os, por meio de fundações piedosas, acham que é uma
impureza tocá-los ou ser tocados por êles. 1
"- Como aconteceu isso? pergunta a dama.
"- O céu puniu-me justamente: eu tinha comido uvas
cristalizadas durante ~ espantosa orgia da noite passada e,
quando me acordei, na via pública, senti com horror que
um cão lambia minha cara. . . Eis a verdade e que Alá me
perdoe 1
"De tôdas as suposições de que se vale Karagós para
afastar os avanços da mulher do seu amigo essa parece ser
a vitoriosa.
"- Pobre homem I disse ela com compaixao, ninguém
poderá tocar-te antes de teres feito cinco abluções de um
quarto de hora cada uma, recitando os versículos do Alcorão.
Vai à fonte e que eu te encontre aqui quando voltar do banho.
"- Como as mulheres de Istambul são descaradas I ex-
clama Karagós ao ficar só. Sob êsse véu que oculta seu rosto
adquirem mais audácia para insultar o pudor das pessoas
18
honestas. Não, não me deixarei levar por êsses artifícios, por
essa voz melosa, êsse ôlho que brilha pelas aberturas de sua
máscara de gaze. Por que a polícia não obriga essas desa-
vergonhadas a cobrir os olhos ?''
19
de raiva contra tudo o que é turco, não hesitam em deformar
a realidade, sobretudo se está em contradição com sua aspi-
ração secreta. Assim, acontece a certos viajantes que não
conhecem uma palavra de turco dissertar longamente sôbre a
obscenidade dos propósitos de Karagós ou de tomar seu braço
exageradamente comprido por um objeto indecoroso. Acon-
tece também a certos outros, guiados sempre pelos mesmos
intérpretes, irem ver Karagós, não nos lugares onde o teatro
de sombras tinha suas sessões de acôrdo com a tradição, mas
em algumas tavernas suspeitas de Galata, fervilhantes de ma-
rinheiros, onde exibidores de baixa qualidade podiam permi-
tir-se tôda espécie de improvisações mais ou ~ enos imorais".
Mas já Théophile Gautier, em 1853, assinalava a existência
de dois tipos de teatros: um culto e outro licencioso:
"Neste último, as crianças e, sobretudo, as meninas de
oito a nove anos, abundavam. Algumas lembravam, em seu
sexo ainda indeciso, essas bonitas cabeças da "Saída da escola",
de Deschamps, tão graciosamente bizarras e tão fantàstica-
mente encantadoras. Com os seus belos olhos espantados e
encantados, abertos como flôres negras, olhavam Karagós en-
tregando-se às suas saturnais de impurezas e pianchando tudo
com seus monstruosos caprichos. Cada proeza erótica arran-
cava a êsses anjinhos, precocemente corrompidos, gargalhadas
argentinas e palmas que pareciam não ter mais fim. O pudor
moderno não suportaria essas loucas atelanas, onde as cenas
lascivas de Aristófanes combinam-se com os sonhos cômicos
de Rabelais".
Estendemo-nos sôbre Karagós, não somente porque êle é
o ancestral mais antigo de certos tipos de todos os teatros
de bonecos do mundo, principalmente dos populares, como
porque, partindo dêle, teremos de analisar as constantes de
obscenidade, devoção, desprendimento, ardil, sabedoria, pou-
ca-vergonha ou sacrifício, próprias dos nossos Beneditos e
Tiridás. O boneco, neste sentido, representa a alma humana
contendo, numa contradição, o bem e o mal, capaz de li-
vre arbítrio.
O teatro de marionetes foi popular na Grécia antiga. Há
'várias referências a respeito em Xenofonte, Luciano, HomJ:'rO,
20
Sócrates e Plutarco e sabe-se que um certo Potino dava espe•
táculos dêsse tipo no Teatro de Dionísio. As marionetes eram
de haste, a maior parte em terracota.
O teatro de bonecos em Roma também tem uma origem
religiosa, logo depois aceito pelo povo. As fontes de referência
são escassas, mas Marco Aurélio fala de marionetes, compa-
rando-as aos homens. Isto, apenas do ponto de vista literário
porque como espetáculo êle achava que êsse tipo de repre-
sentações era indigno:
"Comprazer-se com a pompa do circo e com os jogos de
cena é mostrar-se frívolo. Essas representações, onde tudo se
expõe aos olhares do público, seja uma longa continuação de
animais grandes e pequenos, sejam combates de gladiadores,
têm mais interêsse que a vista dum osso que se joga no meio
dos cães ou o pão que se esmigalha num viveiro cheio de
peixes ? Não valem mais do que o espetáculo das formigas
que trabalham para carrear pequenos fardos, o dos ratos que
correm dum lado para o outro ou mesmo o das marionetes !"
Dividiu-se, portanto, o teatro de bonecos, em Roma: a
marionete hierática, cuja forma é a da estatuária religiosa; e
a marionete popular, semelhante, em tipos e assuntos, ao teatro
propriamente dito, derivando-se, com certeza, de duas cor-
rentes de teatro popular: a dos atôres etruscos, chamados
histriões, cuja arte consistia na dança e na pantomima, pro-
piciando o aparecimento dos saltimbancos e dos pelotiqueiros;
e a das fabulae Atellanae, que devem presumivelmente aos
oscos o seu aparecimento, consistindo no entrelaçamento de
episódios cômicos e pantomima. Vários dos tipos das atelanas
são constantes no teatro de bonecos daquele período: Pappus,
o homem mau; Bucco, o fanfarrão; Dossenus, o manhoso; e
principalmente Maccus, o escravo intrigante, com tôdas as
características de Polichinelo, assemelhando-se, por outro lado,
a todos os outros personagens asiáticos já examinados.
Conforme acentua George E. Iliickworth ( 12 ) tôdas estas
formas de drama popular possuem muita coisa em comum:
21
situações humorísticas, irreverência e obscenidade, sendo proe-
minentes os elementos de canto e dança.
Com a Idade Média começa a nossa civilização, mas
toma-se difícil seguir o curso da evolução da arte popular
antes do século XV, porque a Renascença se encarregou de
destruir a lembrança dêsses fenômenos. "A marionete quase
desapareceu com o Império Romano. Com o aparecimento
do cristianismo, com o segrêdo que êle reclamava em sua
origem, e por uma reação inevitável contra o antropomorfismo
pagão, tudo o que podia ter forma humana se achava natu-
ralmente rejeitado".
A marionete, -no entanto, nasce e se desen\lt)lve na Idade
Média, com as mesmas formas, intenções e repercussões dos
dias de hoje. A marionete medieval é essencialmente religiosa
e entrou no grande movimento da estatuária que adquiria
uma forma simbólica dos objetos do culto. A Igreja lançava
mão dêste meio para que a fraca inteligência das massas
tomasse conhecimento das abstrações.
O ponto de partida é um concílio dos fins do século VII,
onde a Igreja toma posição "contra as represeptações simbó-
licas. Dever-se-á, diz o cânone 92 do Condho Qulnccx, re-
presentar Jesus Cristo, não mais sob a figura do cordeiro, mas
sob o aspecto humano".
Canalizava-se, assi111, a fôrça popular. E mais: tratava-se
de animar, aos olhos do povo, a divindade. As imagens de
Cristo, da Virgem e dos santos passaram a mover-se por meio
de fios e vários outros mecanismos. Tudo isso perdurou até
o Concílio de Trento ( 1545) que, reconhecendo o caráter
fetichista do movimento, proibiu êsse tipo de convencimento
que se estava voltando contra o próprio espírito da Igreja.
Mas antes do Concílio de Trento estávamos em pleno
reinado dos autômatos: estátuas animadas, aparições e relógios
que, dando horas, exibiam santos, martírios, anjos, cenas bí-
blicas. Eis a descrição daquilo que Jacques Chesnais, com
muita propriedade, chama de balé sacro, referindo-se ao re-
lógio monumental da cate<4'al de Lund, na Suécia. ~
22
"A Virgem está sentada com o Menino. Diante dela
desfilam, atrás de um arauto de armas brandindo sua espada,
os três reis magos e seus servidores. Os reis passam e vol-
tam-se para a Virgem. Depois de saudá-la, continuam seu
caminho, enquanto os servidores, por sua vez, passam sim-
plesmente. Esta cena é anunciada pelo som das trombetas
de dois arautos situados à direita e à esquerda do relógio.
Por fim, um carrilhão toca um hino que termina depois que
o cortejo sai",
Na Espanha, o mesmo fenômeno, com Cristos, Virgens e
santos animados; e na Polônia representavam-se, pelo N atai, os
acontecimentos do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O Grande espetáculo do drama litúrgico medieval eram
os mistérios. Saindo do interior do templo e despojando-se
do caráter propriamente litúrgico, o drama projetou-se sôbre
as massas, sem perder ( ao contrário, levando a religião ao
povo por um meio fácil de aceitação) a sua finalidade de
orientação cristã. Voltavam-se os poetas, certos de que a
essência misteriosa ou mística deveria ser aceita sem discussão,
para o lado humano do drama universal e seu resultado no
pluno cósmico. U sanda as palavras de Paul Arnold( 18 ). "Esta
obra estabeleceu, consciente ou inconscientemente, dois prin-
cípios cardinais: a necessidade de uma psicologia precisa,
objetiva e completa; a certeza da existência, da interferência
do mundo subconsciente no ser, as quais, em suas relações
com o nosso, podem ser definidas e representadas nesta mar-
gem mesma".
Com os mistérios atingimos a transformação do espetáculo
em obra coletiva, pois o clero, os magistrados, os pobres, o
povo, colaboravam no espetáculo de fé. Já se disse que em
nenhum outro momento da história do teatro o público estêve
tão de acôrdo com as obras representadas, vinculado a elas
pela fé. Na verdade, o drama que se representava ia direto
ao coração do fiel, que o tinha aprentlido, de início, no cate-
cismo e que o tinha interpretado, no sermão. Toma-se imenso
23
aquêle drama que fala diretamente à exaltação religiosa do
homem, abrangendo a sua vida, os seus temores do infemo,
as suas esperanças no Céu, o cômico e o trágico, a própria
Terra e o próprio Céu. E quanto mais se avança na interpre-
tação dos mistérios, mais se constata sua grandeza até verifi-
car-se que permanece como a grande conquista artística da
Idade Média, ao lado da Catedral, porque, como esta, possui
"'as mesmas qualidades de fervor, de elevação, de simbolismo".
A participação das marionetes nos mistérios medievais foi
importante. A Hungria, até há bem pouco tempo, conservava
a tradição religiosa das marionetes, havendo representações
durante a época de Natal. Nessas ocasiões o teatro "tpiha o
aspecto de um armário portátil em forma de igreja, muitas
vêzes com um campanário, tudo recoberto com papel de côr
e ornado com uma cruz de estrêlas. Num pequeno átrio mo-
vem-se os personagens da manjedoura ( 14 ).
Das anotações de um diretor de espetáculos ( o régisseur
de um mistério) medieval, no capítulo das despesas, precisa-
mente para o Mistério da Paixão, representado em Mons, em
1501, lê-se: "Deus Pai está sentado em pessoa, veste imperial
de púrpura, barba branca, coroa de ouro, enquanto ~ volta
df:le uma imensa roda carregada de an;os de madeira gira ...
do outro lado do palco, no inferno, uma roda igual, mas
carregada de danados eternos".
"Uma das razões essenciais pelas quais a Igreja teve de
tomar posição contra as marionetes mecanizadas foi a Magia.
Ninguém ignora a que ponto a Idade Média está cheia dessas
práticas ditas ocultas. 11:sses pobres mecanismos, aos quais se
dava a aparência de vida contribuíram, se bem que inocen-
temente, para o culto das potências ditas tenebrosas mais do
que o desejavam os padres. E os tolos, estupefatos por verem
evoluir personagens sem compreender o funcionamento mara-
vilhoso, por estupidez, por ignorância, sonharam com podêres
maléficos e foram conduzidos a práticas estranhas para satis-
fazer seu gôsto de lucro e seu desejo de domínio".
24
Jérôme Cardan, em 1550, escreve:
"Vi dois sicilianos que operavam verdadeiras maravilhas
com duas estatuetas de madeira. Um s6 fio as atravessava e
elas eram ligadas dum lado a uma estátua de madeira que
permanecia fixa e, do outro, à perna que o manipulador fazia
mover. O fio era estendido dos dois lados. Não há dança
que essas estatuetas não sejam capazes de imitar, fazendo os
gestos mais surpreendentes com os pés, as pernas, os braços,
a cabeça, tudo com pôses tão variadas que eu não pude,
confesso, compreender o segrêdo de um tão engenhoso me-
canismo porque não havia diversos fios, estendidos ou con-
traídos, mas um s6 em cada estatueta a êste estava sempre
estendido".
E noutra obra:
"Se eu quisesse enumerar tôdas as maravilhas que se faz,
por meio de fios, executar às estatuetas de madeira vulgar-
mente chamadas magatelli, um dia inteiro não bastava, por-
que essas figurinhas representam, combatem, caçam, dançam,
tocam trombeta e cozinham muito artisticamente".
No século XIV surgiu, na Inglaterra, a palavra popet, mais
tarde transformada em puppet para designar as marionetes.
Na Abadia de Bosley havia um Cristo mecanizado; na catedral
de São Paulo uma pomba descia da grande nave, simbolizando
o Espírito Santo; e em Witney se representava a Ressurreição
por meio de estátuas animadas. Em 1538 tôdas essas mario-
netes foram quebradas e queimadas na praça pública.
Na Holanda e na Alemanha abundavam as estátuas ani-
madas nas igrejas, enquanto os teatrinhos profanos se valiam
do cancioneiro - Branca de Neve, Genoveva de Brabant, A
bela Madalena - do Nôvo Testamento e da fantástica história
do Doutor Fausto.
Em Liege ainda se conserva uma tradição medieval das
marionetes. O personagem principal chama-se Tchanchet e é
um boneco de haste, construído, como todos os outros, da
maneira mais simples possível: "São constitaídos, geralmente,
por um busto formado dum grosso bloco de madeira apenas
modelada. A cabeça faz parte do tronco, é esculpida sim-
25
plesmente à faca, com o mínimo de decoração, isto é, os
olhos, os cabelos, a barba, a bôca, tudo é pintado na pr6pria
madeira, sem relêvo; os pés e as mãos balançam. O todo é
recoberto de fazenda, formando o traje que é muito curioso".
Manipulação: deslocam-se os bonecos, muito pesados, por
sinal, pendurando-os simplesmente pelo fio de arame que os
suspenda, animando-os por pequenas agitações que provocam
movimentos das pernas e dos braços "que em nada imitam
a natureza". Mais recentemente, êsse tipo de bonecos sofreu
uma transformação, separando-se a cabeça do tronco.
O repert6rio é baseado na Bíblia, na cavalaria e nas·
hist6rias de capa-e-espada. Chesnais cita a opinião de um
espectador sôbre a representação de Natal: •
"Foi antes um espetáculo triste no qual o Natal se mistura
muitas vêzes a situações desrespeitosas, prestando-se, em todo
o caso, a deploráveis divertimentos por parte do público ...
Não se deve tornar as coisas mais trágicas do que são, mas
na verdade êsse espetáculo é penoso para os crentes".
O mesmo fenômeno que aconteceu em relação ao teatro
estendeu-se às marionetes. As produções fugiram das mãos
da Igreja, por causa da elasticidade dos assuntos, da liberdade
de tratamento e costumes. Viu-se, então, a Igreja •obrigada
a condenar a representação das peças, punindo dêste modo
a ausência do espírito religioso e o escândalo. Mas convém
não esquecer a grande contribuição popular que nos legou
uma tradição e uma poesia · e que, por etapas, modificações,
inovações, conservou vivo o espírito do jôgo.
Quanto à Espanha, nada melhor para nos dar ensina-
mentos a respeito dos seus teatros de marionetes do que o
epis6dio de Maese Pedro em El ingenioso hidalgo Don Qui;ote
de la Mancha ( 115 ):
26
se oyeron sonar en el retablo cantidad de atabales y trompetas,
y dispararse mucha artillería, cuyo rumor pasó en tiempo
breve, y luego alzó la voz el muchacho, y dijo:
- Esta verdadera historia que aquí a vuesas mercedes
se representa es sacada al pie de la letra de las crónicas fran-
cesas y de los romances espafíoles que andan en boca de
las gentes, y de los muchachos, por esas calles. Trata de la
libertad que dió el sefíor don Gaiferos a su esposa Melisendra,
que estava cautiva en Espaiia, en poder de moros, en la ciudad
de Sansuefia, que así se llamava entonces la que hoy se llama
Zaragoza; y vean vuesas mercedes allí cómo está jugando a
las tablas don Gaiferos, según aquello que se canta:
Jugando está a las tablas don Gaiferos,
Que ya de Melisendra está olvidado.
27
en camino. Vuelvan vuesas mercedes los ojos a aquella torre
que allí parece, que se presupone que es una de las torres
del alcázar de Zaragoza, que ahora llaman la Aljafaría; y
aquella dama que en aquel balcón aparece, vestida a lo moro,
es la ·sin par Melisendra, que desde allí muchas veces se
ponía a mirar el camino de Francia, y puesta la imaginación
en París y en su esposo, se consolaba en su cautiverio.
Miren también un nuevo caso que ahora sucede, quizá no
visto jamás. No ven aquel moro que callandico y pasito a
paso, puesto el dedo en la boca, se llaga por las apaldas de
Melisendra ? Pues miren cómo la da un beso en mitad de
fos labios, y la prisa que. ella se da a escupir, y a limpiárselos
con la blanca manga de su camisa, y cómo se lamenta, y se
arranca de pesar sus hermosos cabellos, como si ellos tuvieran
la culpa dei maleficio. Miren también cómo aquel grave moro
que está en aquellos corredores, es el rey Marsilio de San-
suefia; el cual, por haber visto la insolencia del moro, puesto
que era un pariente y gran privado suyo, le mandó luego
prender, y que le den doscientos azotés, llevándole por las
calles acostumbradas de la ciudad,
28
- Yo lo haré así - respondió el muchacho, y prosiguió
diciendo -. Esta figura que aquí aparece a caballo, cubierta
con una capa gascona, es Ia mesma de don Gaiferos; aquí su
esposa, ya vengada dei atrevimiento dei enamorado moro, con
mejor y más sosegado sémblante, se ha puesto a los miradores
de la torre, y bahia con su esposo, creyendo que es algún
pasajero, con quien pasó todas aquellas razones y coloquios
de aquel romance que dice:
Caballero, si a Francia ides,
Por Gaiferos preguntad;
29
Aqui alz6 otra vez la voz maese Pedro, y dijo :
- Llancza, muchacho: no te encumbres; que toda afec-
taci6n es mala.
No respondi6 nada el intérprete; antes prosigui6, di-
ciendo:
- No faltaron algunos ociosos ojos, que lo suelen ver
todo, que no viesen la bajada y la subida de Melisendra,
de quicn dieron noticia al rey Marsilio, el cual mand6 luego
tocar al arma; y miren con qué priesa; que ya la ciudad se
bunde con el son de las campanas que en todas las torres de
las mezquitas suenan. _
- Eso no I dijo a saz6n don Quijote -. En est; de las
campanas anda muy impropio maese Pedro, porque entre
moros no se usan campanas, sino atabales, y un género de
dulzainas que parecem nuestras chirimías; y esto de sonar
campanas en Sansueiia sin duda que es un gran disparate.
Lo cual oído por maese Pedro, ces6 el tocar, y dijo:
- No mire vuesa merced en niiierias, seiior don Quijote,
ni quiera llevar las cosas tan por el cabo, que no se le halle.
No se representan por ahí, casi de ordinario, mil, comedias
llenas de mil impropiedades y disparates, y con todo eso,
corren felicísimamente su carrera, y se escuchan, no s61o con
aplauso, sino con admiraci6n y todo ? Prosigue, muchacho, y
deja decir; que como yo llene mi talego, siquiera represente
más impropiedades que tiene átomos el sol.
- Así es la verdad - replic6 don Quijote.
Y el muchacho dijo:
- Miren cuánta u cuán lucida caballeria sale de la ciudad
en seguimiento de los dos católicos amantes; cuántas trom-
petas que suenan, cuántas dulzainas que tocan y cuántos
atabales y atambores que retumban. Támome que los han de
alcanzar, y los han de volver atados a la cola de su mismo
9aballo, que sería un horrendo espetáculo.
Viendo y oyendo, pues, tanta morisma, y tanto estruendo
don Quijote, pareci61e ser bien dar ayuda a los que huían, y
levantándose en pie, en voz alta dijo:
30
- No consentiré yo que en mis días y en mi presencia
se le baga supercheria a tan famoso caballero y a tan atrevido
enamorado como don Gaiferos. Deteneos, mal nacida canalla,
no le sigáis ni persigáis; si no, commigo sois en batalla 1
Y diciendo y haciendo, desenvain6 Ia espada, y de un
brinco se puso junto al retablo, y con acelerada y nunca vista
furia comenz6 a Ilover cuchilladas sobre la titerera morisma,
derribando a unos, descabezando a otros, estropeando a éste,
destrozando a aquél, y entre otros muchos, tir6 un altibajo
tal, que se maese Pedro no se abaja, se encoge y agazapa,
le cercenara Ia cabeza con más facilidad que si fuera hecha
de masa de mazapán."
·31
trombeta, anunciando aos pastôres a boa nova. Depois da
partida dos pastôres a cidad~ ~esperta. ~ vemos o padeiro,
Barba Micheu, o compadre S1mao, a v1zmha Barba Lamen,
a comadre Cicoum, o sacristão e o padre dom Pellugna, o
caçador, 0 pescador, a fiandeira, os gendarmes. Todo o mundo
parte para Belém. .
Os primeiros a se libertarem da influência religiosa, na
Renascença, foram os italianos e dêles surgiu, no mundo das
marionetes, uma figura internacionalmente conhecida até os
dias de hoje: Pulcinella, secundada por uma multidão de
outros tipos. A invasão da arte italiana na França, notada-
mente através do seu te1:J,tro e, mais particularmente, da com-
media deU'arte, forma de espetáculo popular com inúmeros
pontos de contato com o espírito das marionetes, propiciou a
fusão de tipos, dando nascimento ao Polichinelo. Foi o rei-
nado dos teatrinhos de bonecos que adquiriram um prestígio
enorme nos meios populares graças à pressão sofrida pelos
comediantes de feiras.
Três entidades teatrais gozavam dos privilégios e da ex-
clusividade dos seus gêneros: a Comédie-Française, o Teatro
dos Italianos e a ópera de Lulli. Os comediantes de feiras
não podiam representar peças, pois o teatro decladiado era
privilégio da companhia oficial; não sabiam como fazer com-
media dell' arte, gênero típi co dos italianos; e não podiam can-
tar porque o canto era excl~sividade da Ópera. Valeram-se,
então - além de pelotiquices, acrobacias, pantomimas - das
marionetes. ". . . ela ( a Comédie-Française) tenta em vão
abater essas companhias ambulantes que renascem constan-
temente. São perseguidas, mas pouco se incomodam com isto
porque não têm grande coisa a perder. São proibidas de
representar, derruba-se o teatrinho que haviam construído na
feira de Saint-Germain. As companhias, então, procuram con-
tornar o obstáculo, dando espetáculos com crianças, atôres de
madeira, marionetes. Para ficar dentro das regras, tinham di-
reito, durante o tempo da feira, a um estrado sem pintura
nem cenário, onde podiam apresentar dançarinos, pelotiquei-
ros, atrações como se chamam hoje, e um só ator, Gilles, para
divertir com piadas. Nada de .música por causa da ópera,
32
nada de diálogo por causa da Comédie-Française, nada de
pantomima por causa dos Italianos"( 16 ).
Ao mesmo tempo que Pulcinella se afrancesava e tomava
cada vez maior impulso, um autor italiano, chamado Burattino,
dava o seu nome ao boneco de luva e projetava-o por tôda
a Itália: os burattini.
Na Espanha, reinava Carlos V, um apaixonado dessa
forma de espetáculo. Michel de Guelderode, autor de uma
peça intitulada O par do sol, diretamente relacionada com
o espírito da marionete, conta-nos, em suas Entrevistas de
Ostende( 17 ):
33
"Nessa época, nas estradas da Espanha, encontrava-se
sempre um mostrador de marionetes ambulante. :Estes, com
efeito, tinham então e por pouco tempo ainda, o direito de
estacionar nas praças públicas e muitas vêzes mesmo nas igre-
jas - sim, nas igrejas - e eu imaginei que aquêle que se
levava para Carlos V vinha dos Países-Baixos. Afinal de con-
tas, na Espanha, os marionetistas foram durante muito tempo
.estrangeiros - italianos, na maioria das vêzes, boêmios tam-
bém, e, - por que não ? - flamengos.
"Mas o nosso, Mestre Ignotus, não foi apanhado nas
estradas, mas arrancado dos calabouços onde a Santa Inqui-
sição o jogara. ..
"f: um poeta errante, um taumaturgo também e, saber-se-á,
um antigo te6logo agora excomungado e condenado a ser
queimado no próximo auto-de-fé, esta representação diante
.do imperador devendo ser a última. Assim começa o drama,
num ambiente senil e sinistro.
"Dois grandes espíritos arruinados estão diante um do
.outro, ambos destinados a uma morte próxima, cujos sinais
vão multiplicar-se.
"Nesta peça, que é como uma meditação sôbre 1 a Morte,
pus-me a sonhar com êsse estranho encontro entre o Imperador
.envelhecido, afastado do mundo, e o mestre dos pequenos
fantoches do seu país nata~, dessas bonecas primitivas que
iam suscitar sua última alegria, permitindo que êle ouvisse a
língua de sua nação, dessa Flandres original e que a posse
do Império do mundo não o fizera esquecer.
"A grandeza das maríonetes está tôda aí, nesse último riso
,que provocam no condenado - porque o Imperador também
está condenado e sabe disso - êsse último riso de verdade
que o induz ao sublime e perturbador desejo de ordenar os
faustos dos seus próprios funerais. E aqui nos deparamos com
um dêsses enigmas da Hist6ria: os funerais dum vivo, pelo
pr6prio Carlos V ordenado. As crônicas acrescentam que êle
teria seguido pessoalmente o desenrolar de tôda a cerimônia
fúnebre, para em alguns dias entregar sua alma, de verdade. :E
imenso, é muito imperial para não ser verdadeiro - e desde
34
que o próprio historiador Gachard não ousa concluir. . . Em
resumo, eis uma obra onde as marionetes se tomam as vozes
premonitórias, onde o saltimbanco que as exibe se revela como
um agente do Destino."
35
de Nero. Certamente a Côrte reagiu com violência: Prynne
foi prêso, perdeu suas orelhas no pelourinho, foi condenado
a uma multa considerável e à prisão perpétua. Teve mesmo
( por reincidência, mas sôbre um assunto puramente religioso)
as duas faces marcadas com ferro em brasa, mas a publicidade
feita em tôrno dêste caso deu importância ao panfletário. Era
a Côrte que defendia o .teatro e não mais o povo.
Ben Johnson, numa das suas comédias, Bartolomew fair,
satiriza êsse estado de coisas, essa intolerância, fazendo um
dos personagens comparecer a um puppet-show:
BusY •
Abaixo Dagon I Abaixo Dagon I Não posso suportar mais tão odiosas
profanações.
Q TITERITEIRO
Quero expulsar êsse ídolo, êsse ídolo pagão, êsse monstro que fura o
ôlho dos irmãos 1. . . Vossos atôres, vossos poetastros, vossos dançarinos
mouros ligam-se contra os irmãos e a causa. 1
Q TITERJTElRO
Ficai sabendo, senhor, que não mostra aqui nada que não tenha recebido
licença da autoridade. •
Busy
Q TITERITEIRO
BusY
Dizei antes a assinatura do Mestre dos rebeldes, a garra de Satanás 1
Ide ocultar-vos, fechai a bôca, bufões. Vossa profissão é amaldiçoada.
Defendê-la é ligar-se a Beal. Hei de respirar tão ardentemente após
vossa destruição quanto a ostra depois .da maré ...
36
0 TITERITEIRO
Palavra de honra, senhor, não estou muito a par das controvérsias que
se levantaram entre nós e os hipócritas, mas tenho na minha companhia
um boneco chamado Denis, que foi mestre-escola e tentará responder-vos.
Não receio confiar-lhe minha causa.
UM ESPECTADOR
Muito bem dito I Muito bem dito I Mestre Lanterna. Não conheço,
para combater um hipócrita, melhor campeão que uma marionete 1
37
dedicando grande parte de sua obra ao repertório dos teatros
de bonecos: Hans Sachs.
Um espantoso assunto, no entanto, nasceria nessa época,
uma assombrosa peça de marionetes. "Seu valor filosófico, seu
assunto provocam imediatamente um grande sucesso popular
e tornam-se uma fonte de inspiração para os maiores poetas.
A esta peça, feita para comediantes de madeira, e da qual
temos um texto do século XVI, estão ligados duma maneira
indissolúvel os nomes de Marlowe, Goethe e Lessing. A astro-
logia e a alquimia estavam em seu apogeu. Vimos Frederico
III mais apaixonado por essas questões do que pelas do
Império e eis o que se encontra na tese de Ernest Falignan
e num livrinho de Meek sôbre a origem da lenda popular:
um certo George Sabel ( em latim Sabelicus), nascido por volta
de 1488 e tendo adotado o nome de Faustus Júnior, levava
no princípio do século XVI a vida de estudante alemão tal
como a tradição nos relata. Acredita-se descobrir sua passa-
gem em Heidelberg. Como todos os espíritos dessa época é
apaixonado pelas ciências ocultas e encontra um mestre em
Franz von Sickingen. Torna-se professor, mas é expulso do
cargo sob a acusação de pederastia. Pensa-se que obteve seu
título de bacharel em 1509, porque se encontra seu Aome nos
registros da Universidade de Heidelberg. Depois conquistará
o título de doutor. :E: falador, pretensioso, quer fazer-se passar
por um grande personagem e procura fortuna de cidade em
cidade. :E: um caráter estraiiho, praticando a astrologia e a
quiromancia. :E: o protótipo do cético da Renascença. Morre
em 1541, na miséria. Previne o dono da hospedaria onde
está, em Wurtemberg, que vai morrer. Depois de uma noite
horrorosa, onde os elementos parecem desencadeados, desco-
brem-no por terra, morto, a cama manchada de sangue e
excrementos, o pescoço torcido, a cara contra o chão e as
costas no solo. .tsse fim terrível devia tomar uma importân-
cia considerável na imaginação popular. Nasce uma fábula.
Conta-se a história por tôda a Alemanha. Que maravilhoso
assunto para o país dos trolls, dos kobolds e das paixões
metafísicas I Esta peça permanecerá como o fecho da abó-
bada de todo o teatro de marjonetes alemãs. Ultrapassará
38
mesmo as fronteiras e se inscreverá no repertório de quase
todos os grandes teatros de marionetes do mundo inteiro. Em
sua origem, e como sempre, a peça é representada de impro-
viso. Foi somente muito mais tarde que espíritos curiosos e
bem avisados se preocuparam em escrever o texto desta peça
admiràvelmente construída".
Fausto é, sem dúvida, a peça máxima dos teatros de
bonecos na Alemanha, mas vale a pena ainda examinar os
heróis dêsse teatro. "Como nos outros países, a marionete cria
seu herói". Vejamos, porém, antes, o estado do teatro em
geral na Alemanha dessa época. As produções nativas se
caracterizavam pelos horrores melodramáticos ou pelas peças
bufas, com Hans Wurst, o palhaço alemão, como chefe do
espetáculo, havendo uma troupe italiana, no ano de 1670,
introduzindo a figura de Arlequim, que alcançou grande po-
pularidade, principalmente em Viena. Transformado num tipo
alemão, Arlequim tornou-se o sinônimo de todos os baixos
cômicos dos palcos europeus, como o próprio Hans Wurst,
Eulenspiegel, o Louco, o Vício e o Demônio do teatro
medieval ou o criado e o parasita da ópera.
Pois um dos heróis do teatro de marionetes veio direta-
mente do teatro mesmo: Hanswurst, que significa João Abor-
recido. 1!:sse João, no entanto, teve a sua popularidade ultra-
passada por um personagem austríaco: Kasperle; enquanto nos
Países-Baixos surge, primeiro Hans Pickelhaering e depois,
Jean Klaassen.
Polichinelo, na França, expandia-se cada vez mais e, em-
bora sua ascendência fôsse italiana, êle se nacionalizava e a
memória perdia a lembrança do passado, enquanto o momento
político, agitado, sob o mando do Cardeal Mazzarino, trans-
formava o herói no mais popular comentarista. 1!:le não pou-
pava as mazarinadas do Primeiro Ministro, seu compatriota,
aliás:
"Posso vangloriar-me, sem vaidade, Mestre Júlio, que me-
lhor do que vós, vim do povo e sou muito nfais considerado
por êle, porque já ouvi, com meus próprios ouvidos, dizerem:
"Vamos ver Polichinelo" e jamais ouvi alguém dizer: "Vamos
39
ver Mazzarino". t esta a razão por que me recebem como
um nobre burguês em Paris e vós, ao contrário, sois expulso
como um piolho de igreja".
O primeiro marionetista a inaugurar uma tradição de
família, isto é, o mais famoso dêles, chamava-se Pierre Datelin,
conhecido sob o nome de Brioché, tendo morrido em 1671
com mais de cem anos de idade. Seu filho, Fanchon, estabe-
leceu-se na feira de Saint-Germain, tendo representado diante
de Luís XIV. Mas enquanto o Delfim assistia, encantado, às
representações, Bossuet expulsava as marionetes de sua diocese
e o próprio rei interveio para salvar Fanchon Brioché das
garras da polícia. ,
Segue-se, na França, uma linhagem de ilustres e famosos
marionetistas, usando todos os tipos de bonecos e aperfeiçoa-
mentos cênicos. E mais: lançando mão do repertório normal
do teatro, no Boulevard du crime, assim chamado porque nas
peças corriam torrentes de sangue e lágrimas. Atingimos,
então, Séraphin, em 1772, mestre em sombras chinesas, re-
presentando para a Côrte, seu teatrinho tomando o título de
Espetáculos das Crianças da França. Estabelecido, expôs êste
aviso: "Parisienses, o senhor Séraphin tem a honra ~ prevenir
o público que para merecer cada vez mais sua confiança não
cessou de variar seu espetáculo com um repertório que o
próprio público deverá julgar". O sucesso é enorme e do
espetáculo pode dizer-se que o parisiense, pela primeira vez,
teve uma idéia do que seria o cinema. Séraphin representava
diàriamente, dando duas sessões aos domingos, prestigiado
pelo rei e pelo público, mas quando chega a Revolução êle
guilhotina, em sombra, as figuras reais. Futuramente isto
deveria ter um nome de polêmica: teatro dirigido.
Aos 15 de agôsto de 1870, um século depois do apare-
cimento de Séraphin, sua linhagem desapareceu e o espetáculo
transformou-se. Foi o que lamentou um escr'itor da época.
40
çadamente, dançando, uma numerosa ninhada de títeres no
meio da qual dançava outra mamãe Gigogne que, por sua
vez, alguns segundos apenas depois do seu nascimento, paria
também, dançando perto de sua mãe, outra ninhada de peque-
nos títeres. O vaso de flôres que, para grande espanto de
Polichinelo, transformava-se em moinho que êle fazia girar as
aspas duma maneira tão desajeitada mas tão reconfortante
para as crianças - as sombras chinesas, as imitações ingênuas
dos contos de Perrault, acusadas de serem muito rococós,
foram substituídas por reduções, em miniatura, dos grandes
espetáculos da Ponte Saint-Martin, da GaJté e do Châtelet.
As marionetes, os cenários, as máquinas, os truques foram
aperfeiçoados. As crianças abrem cada vez mais os olhos, mas
não se ouvem mais aquelas gargalhadas estrepitosas, aquelas
palavras espontâneas que testemunhavam a grande alegria do
pequeno público. Fêz-se, como em muitos grandes teatros,
mais para olhos do que para o espírito."
A PONTE QUEBRADA
Cena primeira
0 RAPAZINHO
41
Cena segunda
O RAPAZINHO, O VIAJANTE
0 VIAJANTE
0 VIAJANTE
0 RAPAZINHO
,
Os seixos tocam na terra, lire-lire-lá. Os seixos tocam na terra, lire-lô-pá.
0 VIAJANTE
Ora 1tebo I Isso eu sei e você não está dizendo nada de nôvo. Mas
diga-me, amiguinho ...
0 RAPAZINHO
0 RAPAZINHO
42
Ü VIAJANTE
0 RAPAZINHO
0 VIAJANTE
Que impertinente 1. Mas êle é môço e quer rir . . . ti, meu amigo 1
Ü RAPAZINHO
Hein, meu senhor?
0 VIAJANTE
Pode dizer-me a quem pertence aquela casa que estou vendo ali?
Ü RAPAZINHO
A quem pertence? Ora, não é preciso ser muito inteligente para saber
disso;
A casa pertence ao dono,
lire-lire-lá 1
A casa pertence ao dono,
lire-18-pá 1
0 VIAJANTE
Ü RAPAZINHO
0 RAPAZINHO
Se vendem vinho ?
Se vende mais que se dá, •
lire-lire-lá 1
Se vende mais que se dá,
lire-lô-pá 1
43
o VJAJAN'n
0 VIAJANTE
Acho que êsse menino está ZQmbando de mim. :E: preciso que eu saiba
o nome dêle a fim de me queixar às autoridades. ti, meu ,.amigo 1
Ü RAPAZINHO
0 VIAJANTE
Q RAPAZINHO
,
O senhor quer saber meu nome? E o que é que o senhor quer fazer
com o meu nome?
0 VIAJANTE
Ü VIAJANTK
Ah, você tem o mesmo nome do seu pai, seu farsante I Pois muito
bem, seu sabido, vou enrascá-lo. :E:i, meu amigo 1
0 RAPAZINHO
44
0 VIAJA.NTE
0 RAPAZINHO
O senhor quer saber como se chama meu pai P Acha que me empulhou,
não é?
0 VIAJANTE
0 RAPAZINHO
Bravo, meu senhor I O nome do meu pai
I!: segrêdo de minha mãe,
lire-lfre-lá 1
:€ segrêdo de minha mãe,
lire-lô-pá 1
0 VIAJANTE
Ai, que patife I Mas estou vendo que perco o meu tempo e não chego
na hora para o encontro. O dia avança ( Tirando o relógio). Com
todos os diabos, meu relógio parou I êsse menino não se recusará a
dizer-me que horas são. ~i, meu amigo 1
0 RAPAZINHO
0 VIAJANTE
Por favor, menino, meu relógio parou. Pode dizer-me que horas do ?
0 RAPAZINHO
45
Eis meu relógio solar,
lire-lire-lá 1
Eis meu relógio solar,
lire-lô-pá 1
0 VIAJANTE
Estão vendo o vagabundo ? Mas espere, espere, seu Insolente, para ver
o que acontece com o seu relógio solar. Ah I ali está um barqueiro .. .
(Chama-o) 8i, você do barco I Quer me levar para o outro lado?
0 BARQUEIRO
0 VIAJANTE
Por favor, meu caro, quem é êsse vagabundo que está trabalhando do
lado de lá da ponte e que a tudo que a gente lhe pergunta responde
com lires-lires-lá e lires-lôs-pá ?
0 BARQUEIRO
0 BAPAZINHO
0 BARQUEIRO
0 VIAJANTE
Muito bem, meu amigo, estou satisfeito com você. Tome ( Dá-lhe
dinheiro).
0 BARQUEIRO
( Olhando o dinheiro) Que bela porcaria 1
Q VIAJANTE
46
O rapazinho, que nlio parou de trabalhar, agora detém-se e olha
para o outro lado da ponte.
Q RAPAZINHO
Ora essa I Prá onde êle foi ? Não estou vendo mais aquêle homem.
Que chato 1 :Ele estava me divertindo.
Q VIAJANTE
0 RAPAZINHO
0 VIAJANTE
Quebrei o vidro do seu relógio solar, não foi? Que pena I Mas você
nunca mais vai se esquecer dêste relojoeiro 1 (Sal).
47
"Chegou em Genebra um charlatão italiano chamado
Gambacorta, Fomos vê-lo uma vez e depois não quisemos
mais ir, mas êle tinha marionetes e nós nos pusemos a fazer
marionetes. Essas marionetes representam espécies de comé-
dias e· fizemos comédias para as nossas. Não tínhamos prá-
tica, mas tentávamos imitar a voz de Polichinelo para repre-
sentar essas encantadoras comédias que nossos pobres parentes
tinham a paciência de ver e ouvir".
No século XVIII as marionetes estavam em seu apogeu
na França e essa voga estendia-se até a Itália. Todos os
palácios venezianos possuíam seu teatrinho de bonecos e
Malamani conta que: •
"Em Veneza, na praça São Marcos, e na Piazetta, até a
queda da República, no tempo de Carnaval, numerosas bar-
racas de burattini eram colocadas no meio dos tablados dos
funâmbulos, dos estábulos e dos estrados de dentistas. A prin-
cípio foram apenas autorizados em barracas fechadas, onde
se pagava para entrar. A representação devia começar ao pôr
do sol e terminar quando os teatros abrissem, porque os em-
presários e os diretores receavam a concorrência dos burattini.
Mas em 1760 alguns dêles livraram-se da barraca e' mostra-
ram-se gratuitamente ao público, a serviço do famoso char-
latão Gambacorta, ao qual serviam de reclamo para a venda
de algum bálsamo prodigioso," _
· Os comediantes de madeira incorporaram ao seu reper-
tório as grandes óperas e quanto aos tipos deve-se assinalar
Cassandrino, segundo Stendhal "um velho namorador de cin-
qüenta e sessenta anos, lépido, ágil, de cabelos brancos, bem
empoado, bem cuidado, assim como um cardeal. Além disto,
Cassandrino abandonou os negócios e brilha na sociedade.
Seria, na verdade, um homem perfeito se não tivesse a des-
graça de cair regularmente apaixonado por tôdas as mulheres
que encontra".
As marionetes também estão em moda em Gênova e em
Milão são célebres, com um personagem muito do agrado do
público: Girolamo, grande farsante. Mas segundo uma teste-
munha da época o mais impressionante de tudo são as danças:
48
"A dança ( ... ) é verdadeiramente incrível, não há uma dessas
marionetes que não faça inveja a tantos dançarinos de Ná-
poles, Londres ou Paris, que ganham grandes ordenados.
Dança horizontal, dança de lado, dança vertical, tôdas as
danças possíveis, tôdas as variações dos pés e das pernas que
admiramos na ópera são encontradas no teatro Fiando. E
quando a boneca termina sua dança, quando é bem aplaudida,
quando o st-st-st faz-se ouvir na platéia, pequeno assobio de
admiração, precursor do grito de entusiasmo - fori I fori I -
que chama o artista, ela sai dos bastidores, saúda com uma
pôse bem estudada, coloca sua mãozinha no coração e só se
retira depois de haver imitado completamente as grandes can-
toras e os altivos dançarinos do Scala (Jal )".
No século XVII já, as marionetes italianas tinham inva-
dido Londres e no ano de 1688 Pulcinella iria desbancar o per-
sonagem mais importante dos fuatrinhos de Londres, Oldvice,
transformando-se em Punch, a: partir de então projetando-se
em todo o mundo. A princípio êle era galante, alegre e brin-
calhão, libertino, falador, mas envelhecendo, tornou-se cruel
e imoral.
As marionetes inglêsas dessa época são tôdas de fio e
Punch tomou-se ainda mais célebre através dos espetáculos
de Powell, marionetista que viajou por tôda a Europa, termi-
nando por estabPlf-'cer-se em Londres e batizando seu teatri-
nho de Punch's 1'/wder, chegando a representar um Fausto.
Foi citado por autores célebres como Swift, Stell e Addison.
Swift preocupou-se muito com as marionetes:
49
Alguns atraem nossos olhares por uma falsa grandeza, enga-
nadora aparência que impede de percebennos que o interior
é de madeira. Que são nossos legisladores em seus tribunais ?
Muitas vêzes máquinas que fingem pensar. Pode acontecer
que uma acha de lenha ostente um diadema, que um barrote
ocupe o lugar dum lorde, uma estátua pode ter a sobrancelha
franzida e iludir-nos com seu ar meditativo."
Mas voltemos a Punch e, segundo Payne Collier, no seu
livro As façanhas do senhor Punch, de 1790, vejamos o esbôço
de acôrdo com o qual, variando a improvisação do momento,
é claro, Punch aparecia em todos os teatros :
•
"ti, por favor, um momento, ·prestem atenção. Vou contar
uma história, a história do senhor Punch que foi um tratante
sem fé e assassino. tle tinha uma mulher, um filho também,
todos dois duma beleza sem igual. O nome do filho eu não sei,
mas o da mãe era Judith. Muito bem, muito bem, muito bem.
"O senhor Punch não era tão bonito quanto ela. Tinha
um nariz de elefante, senhor I Nas suas costas elevava-se um
cone que atingia a altura da sua cabeça, mas isto não 'impedia
que êle tivesse, diz-se, a voz tão sedutora quanto a de uma
sereia e por causa dessa voz seduziu Judith, a linda jovem.
Muito bem, muito bem, muito bem.
"Mas êle era tão cruel quanto um turco e como um turco
não podia contentar-se com uma mulher só ( na verdade é
pouca coisa uma mulher só), mas a lei o proibia de ter duas,
ou vinte e duas, embora êle pudesse manter a tôdas, Que
fêz então o celerado? Amasiou-se. Muito bem, muito bem,
muito bem.
"A senhora Judith descobriu a coisa e, em seu furor ciu-
mento, agarrou-se ao nariz do seu espôso e no de sua folgazã
companheira. Então Punch aborreceu-se, bancou o ator trá-
. gico e com uma cacetada abriu-lhe a cabeça em duas. Oh 1
O monstro I Muito bem, muito bem, muito bem.
"Depois agarrou o seu jovem herdeiro ... oh I pai des-
naturado I e jogou-o pela janela- do segundo andar, porque
50
preferia ficar com a mulher que amava do que com a espôsa
legítima, senhor I E ligava tanto o seu filho quanto uma
pitada de rapé. Muito bem, muito bem, muito bem.
"Os pais de sua mulher vieram à cidade pedir-lhe contas
dêsse procedimento, senhor 1 :E:le armou-se com um cacête
para recebê-los e serviu-lhes o mesmo môlho que já dera à
sua mulher, senhor I Dizia que a lei não tinha sido feita para
êle, zombava dos códigos e acrescentava que se a justiça lhe
estendesse as garras êle saberia ensiná-la a viver. Muito bem,
muito bem, muito bem.
"Então foi viajar no estrangeiro, tão amável e tão sedutor
que três mulheres somente recusaram seguir suas lições tão
instrutivas. A primeira era uma môça simples do campo; a
segunda uma piedosa abadessa; a terceira, eu bem que gos-
taria de dizer o que ela era, mas não ouso: era a mais impura
das impuras. Muito bem, muito bem, muito bem.
"Na Itália, encontrou mulheres da mesma espécie; na
França, falavam muito alto; na Inglaterra, tímidas e virtuosas
a princípio, tornavam-se as mais amorosas do mundo; na
Espanha, eram arrogantes como crianças, embora frágeis; na
Alemanha, eram apenas gêlo. Aí êle não viajou mais, não
foi ao norte, o que teria sido uma loucura. Muito bem, muito
bem, muito bem.
"Em tôdas as suas andanças não teve nenhum escrúpulo
de brincar com a vida dos homens. Pais e irmãos passavam
por suas mãos. Treme-se só de pensar no horrível caminho
de sangue que êle traçou por sistema. Embora tivesse uma
corcunda as mulheres não lhe resistiam. Muito bem, muito
bem, muito bem.
"Dizia-se que êle tinha um pacto com o velho Nic'las
( O demônio), como o chamam, mas mesmo que eu soubesse
de alguma coisa não diria. Talvez seja devido a isso que êle
obteve tanto sucesso por tôda a parte por onde.andou, senhor 1,
mas acho também, convenhamos, que essas senhoras eram
um pouco assim-assim, senhor I Muito bem, m,uito bem,
muito bem,
51
"Por fim, volta à Inglaterra, um libertino completo e um
verdadeiro pirata. Logo que desembarcou em Dover mudou
de nome e disfarçou-se, mas a polícia tinha tomado provi-
dências e êle foi prêso onde menos poderia esperar. Muito
bem, muito bem, muito bem.
"Entretanto aproximava-se o dia em que deveria saldar
suas contas. Quando a sentença foi pronunciada pôs-se a
pensar em como fugir à execução e quando o carrasco, de
cara sinistra, anunciou que tudo estava pronto, êle lhe piscou
o ôlho e pediu para ver sua amante. Muito bem, muito bem,
muito bem.
"Alegando que não- sabia como servir-se da co~a que
pendia da fôrca, senhor, passou a cabeça do carrasco no nó
corredio e retirou a sua. Enfim, o diabo veio reclamar sua
dívida, mas Punch perguntou-lhe o que queria dizer, com
certeza estava sendo tomado por outro, não conhecia o con-
trato de que lhe falava. Muito bem, muito bem, muito bem.
"Ah, você não o conhece I exclamou o diabo. Muito bem.
Vai conhecer agora. E logo engalfinharam-se numa luta tre-
menda. O diabo lutava com o forcado e Punch com o cacete,
mas mesmo assim senhor, êle matou o diabo. Hurra t' O velho
Nick ( o diabo) morreu, senhor 1 muito bem, muito bem,
muito bem."
52
teatral de Wílhelm Meister( 2º) conta-nos a atitude do seu
herói diante de uma representação de bonecos:
"Como aquilo se passava? Tal era agora sua preocupa-
ção. As marionetes não falavam, êle já compreendera, não
se moviam sozinhas, já suspeitara. Mas por que tudo isso,
no entanto, era tão bonito e por que pareciam falar e movi-
mentar-se sozinhas ? Por que sentia-se um tão grande prazer,
olhando-as? Seriam as luzes, as pessoas? ltsses mistérios o
perturbavam tanto mais quanto êle queria estar ao mesmo
tempo com os encantados e os encantadores, gostaria de
participar do jógo e gozar igualmente, como espectador, do
prazer sentido pelas outras crianças.
"A peça tinha terminado, o balé já começara, quando
Wilhelm tentou aproximar-se sorrateiramente da tenda. Logo
que o pano caíra, logo que a vigilância foi relaxada e um
barulhinho preveniu-o que, do outro lado, estava-se ocupado
a arrumar alguma coisa, levantou a cortina e olhou entre os
pés da mesa. Uma criada o viu e puxou-o para trás. Mas êle
já vira que juntavam amigos e inimigos, Saul e Golias, negros
e anões numa caixa de gaveta; e sua curiosidade mal satisfeita
tornou-se um nôvo alimento."
53
instalado no mercado e que divertia o público com pequenos
dramas burlescos, entremeados de danças e canções".
E continua.
"Garantiu-me êle que a arte da pantomima dêsses bone-
cos lhe dava muito prazer, deixando-me entender que um
bailarino que deseja aperfeiçoar-se, muitas coisas poderia
aprender com êles.
"Como esta opinião, da maneira com que êle a apresen-
tava, me pareceu mais que mera fantasia, sentei-me a seu lado
para interrogá-lo acêrca de seus argumentos. Perguntou-se se
não concordava em que os movimentos dos bonecos, sobre-
tudo dos menores, eram· extremamente graciosos. Nãõ pude
negar que isso fôsse verdade e que tinha visto um grupo
de quatro a dançar numa roda, à moda da roça, e que não
poderia ser melhor nem mesmo em um desenho de Teniers.
"Informei-me, então, sôbre o mecanismo dessas figuras e
lhe perguntei como era possível - sem ter miríades de cordéis
presos aos dçdos - governar cada membro e tôdas as suas
partes segundo. o ritmo do movimento exigido pela dança.
Respondeu-me que não era necessário imaginar que ,o titeri-
teiro afrouxava ou puxava o arame de cada membro durante
os diversos movimentos da dança. Cada movimento, disse
êle, tem o seu centro de gravidade; basta dirigir êste no
interior da figura: os membros, que não passam de pêndulos,
obedecem mecânicamente, setn o auxílio de ninguém. Acres-
centou que êsse movimento era muito simples: cada vez que
se desloca o centro de gravidade segundo uma linha reta, os
membros começam a acompanhar uma curva e que, muitas
vêzes, balançado acidentalmente, o conjunto todo se põe a
oscilar com um ritmo comparável ao de uma dança.
"Essa observação pareceu-me trazer algum esclarecimento
sôbre o prazer que êle achava no teatro de marionetes. Não
óbstante, eu ainda não podia suspeitar das conclusões a que
· êle chegaria, ao prosseguir.
"Perguntei-lhe se êle achava que o titeriteiro que dirigia
êsses bonecos devia ser êle próprio um bailarino ou, pelo
menos, ter alguma idéia do que .é a beleza na dança.
54
"Respondeu-me que, embora fôsse a coisa fácil sob o
aspecto mecânico, não poderíamos concluir daí que pudesse
ser manobrada inteiramente sem sensibilidade.
"A linha que deve descrever o centro de gravidade, de
certo, é, em geral, muito simples e, em sua opinião, na maioria
das vêzes, reta. Nos casos em que é curva, a lei de sua
curvatura é, no mínimo, de primeiro grau e, no máximo, de
segundo; ainda neste último caso, elítica, sendo esta forma
de movimento, disse êle, muito natural para as extremidades
do corpo humano por causa das articulações; portanto, não
se requer do titeriteiro muita arte para traçá-la. Vista de
outra forma, essa linha permanece um tanto misteriosa, porque
não é outra coisa senão o caminho que faz a alma do baila-
rino, e êle muito duvidava de que o titeriteiro pudesse per-
corrê-lo sem situar-se êle próprio no centro de gravidade do
boneco, quer dizer, senão dançando.
"Repliquei-lhe que me tinham falado do ofício de tite-
riteiro como uma coisa desprovida de espírito, qualquer coisa
como girar a manivela quando se toca um realejo.
"De modo algum, retrucou, os movimentos dos dedos,
pelo contrário, têm relações bastante sutis com os dos bonecos
que estão ligados a êles, relações essas comparáveis às dos
números com seus logaritmos, ou então das assíntotas com a
hipérbole. Exprimiu sua crença de que as marionetes seriam
um dia esvaziadas dêsse último vestígio de espírito, de que
acabava de falar, que a sua dança passaria inteiramente para
o domínio da meclnica e que seria obtida com o auxílio de
uma manivela, justamente como eu o havia imaginado.
"Confiei-lhe meu espanto ao vê-lo achar digna de tal
atenção essa espécie de arte inventada para a turba. Não
apenas acreditava êle que ela fôsse capaz de evoluir, mas êle
próprio parecia ocupar-se disso.
"Sorriu, dizendo-me que tinha a ousadia de pretender que,
se um mecânico lhe construísse uma marionete de acôrdo com
suas exigências, êle poderia apresentar com ela uma dança
que nem êle nem nenhum outro bailarino de seu tempo,
inclusive Vestris, poderiam igualar."
55
Em Colônia, no princ1 p10 do século XIX, Christophe
Winter dirige o Hannesche Theater, dando três tipos de es-
petáculos: um para as crianças, outro para as pessoas grandes
e ainda outro para o público dos domingos. Em suas peças
tudo terminava bem, até mesmo quando fêz Romeu e Julieta.
Os marionetistas se sucedem, surgindo o grande poeta
das marionetes no século XIX: o conde Pocci.
"Um general bávaro, o marquês Karl Wilhelm von
Heydeck, possuía um teatro de marionetes que deu a Josef
Schmid, em 1858. :E:ste funda uma emprêsa em Munique e é
o famoso conde Pocci que se torna o escritor oficial dêsse
teatro, tendo escrito quarenta e uma comédias. Possum um
humor encantador. Sua sátira nunca era maldosa, dando a
Kasperl um caráter, que lhe é particular e cuja comicidade
é baseada sôbre o contraste entre a realidade vulgar do
personagem e o mundo de fantasia onde êle se movimenta,
Não há grosseria, nem na linguagem nem na ação."
O marionetista Schmid era excelente, tendo inventado
uma porção de figuras interessantes e solicitado a cooperação
de pintores de nomeada, assim como a vários esculto~s.
Parece que foram os alemães que introduziram na Rússia
o gôsto pelas marionetes, mas a primeira notícia que se tem
daquele país data de 1633 e sabe-se que em 1672 o pastor
da igreja protestante de Moscou fêz representar uma peça
intitulada Ester.
''.Petroska nasceu no século XVII. Sabemos que, sob o
reinado do Imperador Alexis, êle foi proibido de 1648 a 1672.
Petruska é um personagem extremamente popular, muito vul-
gar em suas palavras e em seus atos. Faz parte da raça dos
Polichinelos e é quase exclusivamente representado por mario-
netes de luva."
Sucederam-se representações, não somente populares mas
em palácios e a própria Catarina II, em suas memórias,
refere-se a uma dessas representações. E, como sempre, espe-
táculos religiosos são organizados. Depois de Petruska, o tipo
mais popular entre os comediantes de madeira é Zaporojetz,
56
da Ucrânia, sujeito terrível, uma espécie de anarquista que
mata todo mundo.
Voltando à França, para obedecer à ordem cronológica
que êste estudo vem seguindo, vamos encontrar um perso-
nagem que foi muito amado, um típico personagem à Luís
XV: Lafleur, que parece ter nascido de uma representação
sacra, O nascimento do menino Jesus, somente depois tomando
o caráter profano com que se aliou a vários outros perso-
nagens. "O caráter particular de Lafleur é o de um criado
. de comédia com todos os vícios que comporta êste estado.
Sua probidade não é excessiva. :E: mentiroso. Gosta de beber
e de comer bem. Adora as mulheres. Sempre de bom humor,
crepitante de espírito, possui a palavra que convém a tôdas
as situações. Compraz-se em produzir farsas. :E: um camponês
que conhece bem a cidade, mas tem bom coração e, se a
honestidade nem sempre é ortodoxa, pelo menos não lhe fal-
tam sentimentos. :É altivo, tem o dever da justiça e isto faz
que êle se revolte. Escarnece das leis e da autoridade sempre
que estas não estão de acôrdo com sua sêde de eqüidade,
que é a marca infalível do herói popular."
Chegamos então a um dos personagens mais célebres de
tôda a história dos bonecos-atôres, mistura de Arlequim e
Pierrô, nascido depois da Revolução Francesa, já no Império:
Guignol. Nasceu do teatrinho de Laurent Mourguet e Lambert
Grégoire Ladré, que se instalaram no Jardim Chinês, em
Paris. "Que representa êste nome? pergunta Chesnais. Tôdas
as hipóteses foram formuladas. :É uma deformação da palavra
Chignolo, cidadezinha lombarda? Afinal o inseparável com-
panheiro de Guignol, Gnafron, continua sempre a chamá-lo
de Chignol, mas estará aí a verdade ? Gnafron não apareceu
logo. :É uma transformação de Polichinelo. Perdendo sua cor-
cunda, perde todo o lado mau dêste último. Torna-se lionês,
com tudo o que esta palavra comporta. Mourguet cria um
mundo, êste mundo eterno do qual já vimoi todos os carac-
teres na comédia italiana; é Guignol criado de comédia, o
rapaz simpático, bem apessoado; é Gnafron, o arreliado de
bom coração; é Canezou, burguês de Lião; Caroline, a jovem
57
apaixonada; Arthur, o jovem apaixonado; Piffard, o truculento
e Madelon companheira de Guignol."
O mais célebre de todos os teatros de marionetes de fio
na França, foi o Teatro Joly, fundado pelo homem que lhe
deu o nome, em 1830, apresentando um presépio, logo depois
dedicando-se também às peças profanas e às sombras chinesas.
Vêm depois os Pajot-Walton's, descendentes de uma nobre
família de titeriteiros que percorreu cidades e cidades da
França, transformando-se no maior teatro ambulante daquele
país, até o dia em que os oito vagões de material se incen-
deiam. Pajot II, no entanto, reúne os escombros e monta um
número de music-hall, voltando a percorrer, dessa vez, c.,idades
estrangeiras: Berlim, Milão, Lisboa, Constantinopla, Madri,
Buenos Aires. ·
Os rom!lnticos prestaram suas homenagens aos bonecos
e a própria George S'and escreveu: "Que significa isto de
burattini P 1t a marionete clássica, primitiva, a melhor. Não
é o fantoccio de tôdas as peças que, pendurado no teto por
fios, anda sem tocar na terra ou faz um ruído ridículo e inve-
rossímil. Esta moda mais sábia e mais completa da mJuionete
articulada chega, com grandes aperfeiçoamentos mecânicos, a
simular gestos bastante verdadeiros e poses bastante graciosas;
não há dúvida que se possa chegar, por meio de outros aper-
feiçoamentos, a imitar completamente a natureza; mas, apro-
fundando a questão, fiquei pensando onde estaria a finalidade
e que vantagem a arte poderia obter dum teatro de autômatos.
Quanto maiores e mais semelhantes aos homens, mais o espe-
táculo dêsses atôres postiços será uma coisa triste e mesmo
assustadora."
Defendendo, assim, o boneco de luva, George Sand monta
um teatrinho em Nohant, que tinha menos de acontecimento
dramático que de mundano, mas um impulso sério foi real-
mente dado por Maurice Sand e Eugene Lambert, ambos
· discípulos de Delacroix, que se puseram a esculpir as figuras,
criando os tipos de Guignol, Purpurin, Pierrô Combrillo, Isa-
belle, Della Spada, o Capitão, o Gendarme e um monstro
verde. E pouco a pouco o teatrinbo de Nohant foi-se impondo,
58
por outras liguras criadas e peio repertório. "Maurice Sanei
era a verdadeira alma dêsse teatro, que logo usou o título
de Teatro dos Amigos. Entre 1854 e 1872 foram dadas mais
de cento e vinte obras diferentes e tôda Paris lá desfilou.
Representou-se A dama das camélias diante do próprio autor."
Posteriormente, Maurice Sand instala o teatrinho em
Passy, lá representando até o ano de sua morte: 1889.
Pouco tempo antes, Duranty havia instalado o seu teatri-
nho nos jardins das Tulherias, tendo o escultor Leboeuf feito
. as cabeças. O teatrinho obedeceu a todos os planos de arqui-
tetura e pintura. Por outro lado, cuidou severamente dos
costumes e dos cenários, do repertório e das vozes.
Antes ainda, desde 1862, deparamo-nos com uma figura
impressionante no mundo das marionetes: Lemercier de Neu-
ville, que começou, por insistência de amigos, criando um
curioso teatrinho: L'Er6tikon Theatron. A 27 de maio daquele
ano, depois do espetáculó, num jantar, bebeu-se à morte do
teatro francês e à prosperidade das marionetes. O teatrinho
durou pouco, apenas um ano, mas Lemercier de N euville não
abandonou a idéia e passou a fabricar pupazzi para distrair
seu filhinho, a princípio, depois os amigos, e os jornais come-
çaram a falar de sua representação. De sucesso em sucesso,
Lemercier de Neuville caiu na moda e seu prestígio jamais
foi abalado até a sua morte. "De 28 de novembro de 1863,
com Perfis e silhuetas, até 7 de junho de 1891, Lemercier de
Neuville escreveu cento e seis peças das quais algumas foram
representadas quinhentas vêzes. 1!: também autor de um
grande número de obras sôbre marionetes, histórias e peças.
Mas o mais divertido dos seus livros é, sem dúvida, Recor-
dações de um marionetista, onde, contando a história dos
seus pupazzi, êle termina por fazer a história da França de
sua época".
Lemercier de Neuville, representando para todo tipo de
'público - famílias aristocratas, burguesas, espetáculos priva-
dos ou comuns - também representou para •o imperador do
Brasil, Dom Pedro II.
Em 1879 surgiu um marionetista impressionante: Holden.
No Diário de Edmond de Goncourt podemos ler: "Sábado, 5
59
de abril. As marionetes de Holden. Essas figuras de madeira
são um pouco inquietantes. Há uma dançarina fazendo pi-
ruetas nas pontas dos pés sob a luz da lua, pela qual poderia
apaixonar-se um personagem de Hoffmann, e ainda um clown
que se deita, procura sua posição no leito e adormece com
poses duma humanidade de carne e osso".
O próprio Lemercier de Neuville diz: "Os fantoches de
Thomas Holden eram certamente maravilhas de precisão e
longe de mim negar o seu valor, mas êles se dirigiam aos
olho~ e não ao espírito, sua própria perfeição é um defeito.
Eram admirados, mas não faziam rir; espantavam, mas não
encantavam. Além do rriais, eram mudos, defeito que 1_)oderia
ser remediado, mas que diálogo vivo e animado se poderia
pôr na bôca dêsses títeres cujos gestos eram regulados e que
não tinham uma fisionomia ?"
Holden levou ao máximo a mecanização do boneco e
numa entrevista de 1887 falava a respeito do seu trabalho:
"Minha tarefa detrás do pano não é uma sinecura e para
movimentar todos êsses homenzinhos já molhei mais duma
camisa. Passando da máquina hidráulica à pilha elét,ica e do
aparelho pneumático ao magnetismo, chega-se muitas vêzes
ao reumatismo, sobretudo em certos teatros onde as correntes
de ar parecem ter instalado seu domicílio; tudo isto não
constitui uma tarefa das mais agradáveis. Sem contar os pesos
a levantar, os fios a puxar, Ôra em pé, ora de joelhos, muitas
vêzes deitado de barriga em posições quase sempre perigosas,
mas sempre muito incômodas; ora suspenso por um pé ou
pendurado por um braço numa barra de ferro, indo da direita
para a esquerda, de alto a baixo, cantando, falando, gritando
segundo as necessidades do momento, não tendo nem mesmo
o tempo de respirar, mudando o timbre de minha voz segundo
o personagem apresentado ao público e sempre transpirando
como num banho turco, eis um dos segredos mais importantes
da minha profissão.
"Numa emprêsa como a minha é raro não acontecerem
acidentes aos meus homenzinhos: às vêzes, é um braço que
se desloca, outras um pé· que entorta. Para nada esquecer e
60
a fim de reparar tudo isto para a representação do dia se-
guinte, um caderno é mantido em dia escrupulosamente, no
qual podem ler-se anotações como estas:
tabuleta do barbeiro quebrada
fixar a cabeleira de Cassandra
fazer um rabo nôvo para o touro
baixar a bambolina
levantar o fundo de mar
empalhar novamente o cachorro
óleo para as máquinas
carvão, álcool, fio de ferro, platina, cêra
lavar os calçados do palhaço
fazer um nariz para o polícia, etc.
61
O mais célebre teatrinho de sombras dos fins do século
XIX foi Gato prêto, tornando-se conhecido no mundo inteiro.
O renomado crítico teatral Jules Lemaitre chegou a dizer a
respeito do seu animador, Henri Riviere : "1l:le tem, como
desenhista, a simplificação justa, o sentimento da vida, a
abundância da invenção plástica e a tudo isto junta a ima-
ginação sonhadora e grande dum verdadeiro poeta . . . Seus
recortes de paisagens, de arquiteturas, de multidões, de grupos
ou de figuras isoladas sob céus feéricos e mutáveis são obras-
primas, breves como fogos de Bengala e fugitivas como som-
bras, mas obras-primas de côr, de graça e de emoção."
O primeiro teatro de marionetes literárias foi o ~queno
Teatro, que estreou em 1888. Durou pouco tempo, mas obteve
resultados bem curiosos. Representou Cervantes, Aristófanes,
Shakespeare, Hrotswitha, mistérios e lendas bíblicas. Seu
animador, Signoret, disse, num manifesto: "Muitas pessoas que
não são estranhas às letras apenas sabem que existe um teatro
hindu. As maravilhas da cena grega quase não foram trans-
portadas em nossos teatros. As peças latinas não tentaram um
hábil diretor; também não se tem tentado fazer-nos ~nhecer
os mistérios da Idade Média. Quase nada tem sido feito pela
farsa francesa ou italiana e o teatro espanhol, tão transbor-
dante de vida, permanece sepultado nos livros. Os admiráveis
dramaturgos do século XVI na I_nglaterra não viram, em nosso
país, as luzes da ribalta - com exceção de Shakespeare - e
a obra de Shakespeare, apesar de louváveis tentativas, apenas
raramente tem sido bem interpretada ·de modo a satisfazer
aquêles que a amam e a compreendem."
Para melhor compreender o Pequeno Teatro e suas altas
pretensões, vale a pena, ainda, citar o que se segue:
"As marionetes da sala Vivienne são exigentes, quiseram
logo apropriar-se do que há de mais belo no repertório dra-
mático de todos os tempos e de todos os países. Uma vez
que os teatros sérios, disseram elas, não querem essas velha-
rias, é preciso que nós as adjudiquemos. Para começar foram
traduzidas para elas duas maravilhosas féeries: Os pássaros,
de Aristófanes e A tempestade, de Shakespeare. Os pequenos
atl>res recJamaram também prólogos onde, sob o pretexto de
solicitarem indulgência, deram a entender que são os únicos
comediantes possíveis. Três prólogos foram escritos e o senhor
Richepin escreveu, dos três, aquêle onde nossos fantoches são
mais apaixonadamente glorificados. :fl:1e pretendeu, sem dú-
vida, conquistar o apoio de tão altos personagens. . . As
marionetes são mell>manas. Quiseram que se pusesse música
em tôda parte, música, bem entendido, composta para elas
e que, ao mesmo tempo, agradasse ao espectador mais ignaro
e satisfizesse o mais difícil entendido.
"Um jovem escultor de verdadeiro talento fêz tudo o que
se queria e de maneira a satisfazer os mais exigentes. Pensam
que os pintores descansaram? Absolutamente. Os associados
da sala Vivienne exigiram que se pintassem para êles mag-
níficos cenários. Não falo dos leitores habituais que nossas
marionetes ligaram às suas pessoas. Quanto a isto, elas foram
boas ml>ças e as cordas vocais dúma meia dúzia de poetas
lhes pareceram suficientes. No entanto, vozes frescas de mu-
lheres foram também engajadas. Enfim, perdidos na sombra
de suas varandas os maquinistas deram provas dum infatigável
devotamento. Souberam dar aos nossos rígidos atôres uma
leveza inesperada. . . Possa meu ensaio encontrar um acolhi-
mento indulgente junto àqueles que nossos bonecos distraem.
Alegro-me com o pensamento de-que a primeira peça, talvez
a única que será representada por mim, veja as luzes da
ribalta na pequena cena do Teatro de marionetes. . . e que
deverei essa graça a um homem unicamente apaixonado pelas
belas e grandes coisas, incapaz de cálculos e desdenhando o
sucesso vulgar, um homem de acôrdo com o meu coração . ..
Divulguei a boa notícia através do mundo, quer dizer, fiz
conferências para explicar os raros méritos do Pequeno Teatro
e a superioridade dos fantoches sl>bre os comediantes. A fim
de não contrariar frontalmente um preconceito secular, reco-
nheci os limites de nossa ação, concedi às ma,ionetes de carne
e osso o direito excJusivo de interpretar certas obras dramá-
ticas, aquelas por exemplo onde a vida exterior, com a des-
culpa da verdade, é copiada servilmente. Vocês não podem
acreditar quanto os comediantes de madeira são idealistas.
63
Admiti que uma seriedade demasiadamente prolongada não
conviria aos nossos intérpretes. Isto deve ser verdade, uma
vez que o elemento cômico permanece a nosso favor . Enfim,
cometi_ o êrro de declarar que as mais terríveis situações da
tragédia poderiam ser transferidas para o Pequeno Teatro,
concessão imprudente sôbre a qual falarei mais adiante, mas
provei de saída, por sábias demonstrações, que nossos bonecos
gostam de respirar uma atmosfera de poesia, de graça e de
ternura, que êles se comprazem no que é primitivo ou legen-
dário, que são feitos para exprimir o sentimento religioso em
sua maior simplicidade ou para traduzir as mais altas espe-
culações dos fil6sofos, que se acomodam maravilhosa~·nte à
músi<.:a misturada com a poesia, c1ue passam de bom grado
dum lirismo desvairado às mais licenciosas brincadeiras, Não
reconheci somente essas preciosas aptidões das marionetes,
mas demonstrei também que elas as possuem num grau muito
mais elevado do que os atôres comuns."
64
tada com uma miscelânea de emblemas cujo conjunto repre-
senta o germe do deus. Seis discos, decorados com símbolos
do sol, ocupam a parte inferior. Diante dêsse pano encon-
tra-se um campo em miniatura, com cereais que saem de
pequenos montes de barro.
"O auditório senta-se de frente. O espetáculo começa por
um côro de homens que cantam com acompanhamento de
tambores. Logo os discos se abrem e vêem-se sair dêles mons-
truosas serpentes cujas cabeças, formadas por cabaças, têm
grandes olhos vesgos, acima dos quais estão colocadas penas
de águia e um chifre curvo. O corpo é feito de peles esten-
didns sóhre uma série de anéis de tamanhos decrescentes.
Estas seis figuras são acionadas por igual número de homens
escondidos atras do telão do fundo. O canto eleva-se como
grito de guerra, as caheçns dns serpl'nks inclínnm-se, batendo
no chão, virando as espigas e espalhando-as em tôdas as
direções, enquanto um homem, invisível para o espectador,
imita o silvo da grande serpente soprando num búzio.
"Depois os seis monstros levantam a cabeça; um ator,
personificando a deusa da tel'ra, vai de ttm a outro, dil'lge-lhes
Hsonjas e lhes oferece alimento, ap6s o que são levados para
trás, os discos fecham-se e a primeira fase da cerimônia está
terminada."
A primeira manifestação de marionetes manipuladas por
estrangeiros nos Estados Unidos teve lugar em Nova York,
em 1739 e durante todo o século XVIII vários espetáculos
podem ser constatados em várias das cidades do Atlântico,
quase desaparecendo no século XIX.
Mac Pharlin informa-nos o seguinte:
"A primeira representação de marionetes dada na América
do Norte deve ter acontecido no "Holt's Lang Room", de 12
a 20 de fevereiro de 1739. Ter-se-iam representado as aven-
turas de Arlequim e de Scaramouche, mas não sabemos nem
0 nome nem a nacionalidade dos animadorl!llõ."
Em 1771, marionetes de luva espanholas são apresentadas
em Nova Orleans e daí passam para o México, enquanto em
1790 sombras chinesas são vistas em Nova York. Em 1819
65
aparece Pulcinella, em 1830 Punch e Judy. Em 1870 mario-
netistas inglêses exibem-se nos Estados Unidos, coincidindo
com o aparecimento de companhias norte-americanas ( 22 ).
Vimos, assim, o desenvolvimento do teatro de bonecos
em todo o mundo, de-Sde as origens conhecidas do homem.
Isto tornava-se necessário para compreendermos, por um lado
a forma e o espírito das nossas marionetes brasileiras e nor-
destinas em particular e, por outro, as constantes peculiares
aos animadores e aos pequenos sêres de madeira, massa ou
papelão.
Além de um estudo onde o nosso interêsse é revelar o
mecanismo dêsse estranho ·e poético mundo, o que tentaremos
a mais, como Chesnais o fêz no plano internacional, é fazer
que se ame esta forma popular de espetáculo e arte dramática.
66
II
Feito de madeira, represento o papel dum respeitável velho.
Com a plumagem do galo ou do cisne assemelho-me à realidade.
Param de mover-me? Ent<io descanso sem cuidado, igual aos homens,
aos homens cuja vida é apenas um sonho.
SIUANN-TSONG-MING-ROANG-TI
67
para a catequese dos indígenas, que êstes passassem a movi-
mentar os bonecos, que posteriormente os negros trouxessem
uma forma de espetáculo dêsse tipo, que as correntes se entre-
cruzassem, juntando-se às dos europeus, mas tudo é nebuloso
e vai até aonde a imaginação alcança.
A primeira notícia positiva que se tem a respeito de um
teatro de marionetes no Brasil é dada por Luiz Edmundo( 24 )
e refere-se ao século XVIII, por conseguinte duzentos anos
após o descobrimento:
"O teatro de bonifrates ( 211 ) supria no século XVIII, entre
nós , a deficiência de palcos. e casas de espetáculos. Era .,.uma
ingênua diversão do povo.
"Explicando a sua existência, se outros documentos não
possuíssemos, bastaria a recordação da Ópera dos vivos, de
11ue nos fala Vieira Fazenda, e t:njo título pnrec.:e recordar
que o elenco de tal ópera menos era de títeres que de homens,
mais de vivos atóres que de imagens,
"Por certa documentação por n6s compulsada em Lisboa,
chegamos a compreender a existência de três grupos di,t:intos
dêsse curioso teatro de bonecos no Rio de Janeiro, pela época
dos vice-reis: o grupo que se pode chamar dos títeres ele JJOrta,
improvisado espetáculo vivendo apenas do óbulo espontâneo
dos espectadores de passagem, o dos títeres de ca1iote, ainda
mais rudimentar que o primeirô, embora mais popular e mais
pitoresco e, finalmente, o dos títeres de sala, êste último já
em franca evolução para o teatro de personagens vivas e com
ares gentis de pátios de comédias."
Continuemos com Luiz Edmundo para percebermos a
variedade dês ses espetáculos:
muitas len das, que nos foram herdadas pelos nossos colonizadores europeus, ntio
são originàriamente dêstes, mas npenns por êle veiculadas. Os dois povos ihéricor
t:stiveram longamente sob o domínio d os muçulmanos e entraram em demorado
contacto com os árias do lndostí\o e com os mongóis e mongolóides da Ásia e
tlu Occftnia, nntes que se ultimasse a conquista, e, com <'Sta, o povoamento do
Brasil_. Não é, portanto, de pasmar que, entre as suas lendas e fábulas de fundo
próprw, nos hnjam também transmitido algumns levrmtinns e índostt\nicas, direta -
mente nprendidas ou intermêdiamente recebidas dos judeus."
( 24) Luiz EDMUNDO, O füo de Janeiro no tempo dos vice-reis, Instituto
Histórico e Geognlfico Brasileiro, Rio de Janeiro , 1932, páginas 447 e seguintes.
( 25) Boneco de engonços do latim Bonus frater,
68
"Vamos encontrar em ruelas afastadas do centro, freqüen-
tadas pela escumalha das ruas, os teatróides do primeiro
gênero.
"Cá está um. lt uma porta escancarada, onde uma colcha
de côr escandalosa se coloca latitudinalmente a dividi-la em
duas porções distintas. Na parte superior, que é um vão,
forma-se a bôca de cena, aberta, sempre, ao boneco que aflora
e que gesticula animado pelas mãos de um homem escondido
e que, com o indicador, move-lhe a cabeça e, com o polegar
e o mínimo, os bracinhos nervosos. Não há cenário ( 26 ) .
"Na parte inferior está a coxia com os seus sobressalentes
de bonecos, contra-regragem completamente fechada aos olhos
do público.
"Aquém soleira, o indefectível cego da sanfona ou da
rabeca, zurzindo a corda desafinada do instrumento. Ao solo,
em função <lisercta, n lnrgn cseudl•lu <lns receitas, mostrnndo,
ao fundo, sempre, uma moeda de prata nova, posta pela mão
do empresário desejoso de enganar a generosidade do tran-
seunte.
"A platéia pode ser curta, mas é sempre atenta e gene-
• rosa. E não se compõe apenas, como talvez se pensa, da massa
vagabunda de ambulantes e de escravos, boc1uiabertos, tôda
ela, à espera da bexigada final que os há de fazer arrebentar
de rir. Há muita gente de meia de sêda e de óculo de punho
de ouro, que também pára e goza a ingenuidade do espe-
táculo, não esquecendo de escorregar a sua contribuiçãozinha.
"Os títeres de capote, que eram ambulantes, andavam
pelas feiras, pelos adros de igreja, em dias de festa, e por
lugares de movimento maior.
"Há te-deum em São Bento ? No adro da igreja, neces-
sàriamente, haverá, pelo menos, um dêsses teatros de impro-
viso, entre os mendigos e as negras vendedoras de cuscuz, do
aluá e de laranja."
"Extraordinária forma de espetáculo de bonecos, já agora
inteiramente desaparecida, verdadeiro espí:?to de um teatro
( 26) Trota-se de uma marionete de luva, mas Luiz EDMUNDO está enganado
quanto à posfç!lo dos dt•dos, que são, realmente, o indicador e o polegar, mas o
médio. em vez do mfn(mo.
69
ambulante, onde o titeriteiro é tudo, fazendo do seu corpó o
próprio palco.
"Curioso, porém, é ver a bôca de cena dessa ópera im-
provisada, feita pelo próprio empresário com o panejamento
amplo do seu capote, traçado de ombro a ombro, em linha
horizontal, de tal sorte formando o campo necessário à movi-
mentação do boneco.
"Escondido na pregaria da capa, que tomba até os joelhos
do homem-palco, está um guri que dá ao personagem de pano
e massa o movimento necessário.
"O homem-palco é, ao mesmo tempo, homem-orqq.estra,
pois que, com os dedos, repenica a viola da função, que o
capote nem sempre dissimula. ·
"Deixemos, porérri, o adro de São Bento, que os melhores
títeres estão na parte baixa da cidade, e não são diurnos como
os primeiros. A sombra da noite, felizmente, desce. Tomemos
em Santa Rita a linha da rua do Vale e desçamos como quem
vai à Carioca. '
"Ali, à rua do Cano, quase ao chegar à casa do Sjrgento
Mor Albino dos Santos Pereira, comandante do quarto têrço
de infantaria dos pardos libertos, está uma casa de cimalha,
saliente, com o seu vetusto telhado acaçapado e feio, mos-
trando de um lado, uma porta larga, desenhada em curva,
pelo arco de resalva, e de oHde uma lanterna de azeite se
dependura, soltando no ar um penacho largo de fumo, con-
seqüência e vício de uma torcida gasta ou mal cortada.
"};: uma ópera de títeres, recém-montada, sala de fa.nto-
ches, teatro de bonecos.
"À ombreira da porta do lado direito, o tricórnio sovado
sôbre uma cabeça encanecida e triste, pára um cego, tocado1
de rabeca, arrancando às entranhas do instrumento esvanecido
. os compassos de um minueto que plange. À esquerda, o
homem incumbido de vender os lugares, o cobrador, todo
metido numa indumentária de pompa e escândalo, um largo
varapau enfitado na mão grossa, ora recebendo as moedas
da entráda, ora, em voz rouca,_ muito sério, apregoando o
valor da ópera nova que se espeta no cartaz.
70
,,
72
"O grande funcionário rompe a massa e enfia pela casa
de espetáculo, largando na manopla do porteiro, que dança
uma cortesia de mergulho, a moeda da tabela.
"Vamos seguir o Sr. Tesoureiro Mor da Mesa Grande do
Juízo da Alfândega, que já penetrou na sala da ópera, com
as suas paredes brancas e tristes, apenas marcadas a negro,
de espaço a espaço, pelo fumo das lanternas de azeite que
ardem em tôrno, lançando sôbre a face do auditório um clarão
amarelado e baço. O ambiente não agrada. A água de Cór-
doba do Tesoureiro não consegue minorar o bafio nauseante
que se espalha pelo ar, hostil à pituitária delicada, bafio inso-
lente e que já pelo tempo se chamava - cheiro de natureza.
"Em face aos espectadores está armado um palco minús-
culo, onde marionetes de 30 a 50 centímetros devem mover-se
em cenários de papel ( 27 ) •
O varapau enfitado do cobrador anuncia, a bater ruido-
samente no solo, que vai começar a ópera do anúncio. Já se
fecharam as portas da rua e o cego da rabeca, no recinto da
folgança, recomeça, no seu desafinado e lúgubre instrumento,
o minueto tristíssimo.
"Faz a rabeca a ouverture. Cala-se depois. Segue-se um
silêncio profundo, apenas interrompido pelo plic plic das ta-
baqueiras que se fecham e pelo assoar discreto de algumas
bicancas besuntadas de rapé.
"Numa fôlha de papel, pendurada à guisa de cartaz, lá
está o nome da peça: O desespêro de D. Brites que perdeu
na festa da Glória as suas anquinhas de arame ou a esco'la
das novas sécias. Incisan /oco-Séria Anatômica e Crítica por
Pantufo Cabinda.
"O título é, no entanto, menor que o destempêro dra-
mático. As três pancadinhas do estilo para o sinal do pano
e o homem do varapau que solta um psiu prolongado para
que se calem, de vez, os ruídos das tabaqueiras e narizes.
Silêncio I Obedece-se, gostosamente, ao ho111em do varapau.
Pano ao alto. Já é a peça.
73
"O cenário de papel recorda o Largo do Carmo. Vê-se
o chafariz à beira-mar, o casarão do Teles, o palácio vice-rea]
e a baía, ao fundo. Surge D. Brites, seguida do moleque Cazu.
Atrás dela, D. Sancha, a mamãe, e o casquilho Vaporim. Os
bonecos vestem de pano, têm a cabeça de papelão, movendo
os braços de madeira articulados por molinhas de ferro.
"A bôca de cena do teatro é marcada, de alto a baixo,
com arames verticais, paralelos, de modo a esconder ou con-
fundir as linhas que movimentam os fantoches em função.
"O entremez desenrola-se ao agrado da platéia. Os espec-
tadores riem, gozam as pacholices do moleque, os arremessos
da velha e os dengues efeminados de Vaporim. Só o homem
do varapau de ar amofinado e gasto é que não goza. Em-
botou-se. Súbito, aparece um frade. A platéia gargalha. Surge
depois dêle o fidalgo pobre da pragmática. A platéia exulta.
D. Brites, finalmente, perde os arames da saia. Aí a sala quase
vem abaixo 1
"O capitão José de Oliveira Barbosa, da Academia de
Geometria, confessa a um cavaleiro, que lhe fica ao pé, que
jamais vira peça tão engraçada. O outro nem lhe pode res-
ponder, a palavra estrangulada na garganta por uma cónvulsão
de riso. ll: um desafôgo insólito de gargalhadas gostosas, um
contorcer unânime de diafragmas, um júbilo histérico e es-
candaloso, que chega até a impressionar o homem do varapau
enfitado, ali mais para os efeitos da receita que para gôzo
de uma peça, quiçá por êle próprio escrita e ensaiada.
"E, com mutações de cenário, a farsa continua até a cena
final, onde D. Brites entra na posse da anquinha que o peralta
descobre, e D. Sancha, amolecida pela galanteria do jovem,
cede-lhe a mão da filha, que desmaia. :E: quando o cego da
rabeca, então, numa ária que recorda os cantares dolentes dos
cafuzos da terra, faz, de nôvo, a rabeca gemer angustiosa,
acompanhando o vozeirão atenorado do empresário, que pre-
. cipita o final com uma toada lírica que muito agrada.
74
Morrer por ti,
Se me desejas
Da morte isento,
Não te retires,
Pois só me alento
Com o ver-te aqui.
75
-
77
Adão, vestido de meia, pula no palco; deita-se logo em seguida
para dormir, roncando ruidosamente. Munido de uma serra, o
Padre Eterno corta-lhe uma costela e aparece Eva, também
vestida· de meia. Segue o segundo ato: A tentação. Sentados
ao pé de uma árvore, Adão e Eva conversam sôbre assuntos
domésticos. Aparece a Serpente. "São Bento I" grita Adão
pulando para trás. Mas Eva escuta a voz pérfida da serpente.
Parece que a voz era fraca e não se ouvia bem na sala. Não
querendo perder o diálogo, o Duque de Caxias mandou que
falassem mais alto. A serpente deu uma resposta um tanto
impertinente, com voz tonitruante, provocando uma gargalhada
do ilustre hóspede, que se divertia a valer. o terceiro ato,
O dilúvio, acabou, naquela noite memorável, de um modo
um tanto inesperado. Aliás, cada ato podia ser visto separado
ou junto com os demais. Primeira cena: Noé chama seus
escravos e os carpinteiros de nomeada na cidade - Mestre
João, tio Joaquim, seu Messias e outros, para deliberarem
sôbre a maneira de construir a arca. Segunda cena: vão todos
à procura de madeira para a construção, batendo por engano
na porta de uma escola, o que dá ensejo a um diálogo eômico,
temperado de piadas. Afinal, constrói-se a arca e prepara-se
a tormenta. Porém, no momento de esta desabar, pula no
palco um moleque, gritando aos altos brados: "Seu Manezinho,
falta breu para o relâmpago e -o trovão I" A representação
terminou aí. •
Segundo Maria Helena Góis(ªº), no sul, sobretudo no
norte de Minas Gerais e sul da Bahia, citando Lúcio Cardoso
em Maleita, encontravam-se titeriteiros ambulantes, a canastra
cheia de bonecos, "com vestes de côr, bizarros, inacreditáveis"
e um repertório de pecinhas, "comédias de antigamente, tôdas
sob o mesmo fundo de prepotência paterna, um drama de
amor interrompido, uma fuga pela escada, com o objeto dos
. seus sonhos". Briguela era o criado sabido. "E por briguelas
ainda hoje são rememorados no sertão."
Sem nenhuma dúvida estamos diante de bonecos de
origem italiana e mais: descendentes diretos da commedia
( 30) Maria Helena G61s, Teatrinho de fantoche,, Serviço de Informaçlo
Agrícola do Ministério da Agricultura, Rio de Janelro, 1957.
78
dell'arte, pois o Briguela era um dos tipos da comédia ita-
liana, onde reunia todos os vícios opostos de um covarde e
de um bravo ao mesmo tempo. Era êle quem servia de guia
aos estrangeiros, carregando a valise, indicando-lhes os ende-
reços convenientes e propondo-lhes a irmãzinha. Por dinheiro
cantará serenatas por êles ou usará o punhal, mas só recebe
depois do golpe e depois que verifiquem que êle agiu direito.
Eis sua figura. "Basta vê-lo uma vez para que jamais se
esqueça a bizarra expressão cínica e adocicada desta máscara
azeitonada, de olhos oblíquos, de nariz curvo, os lábios grossos
e sensuais, o queixo bestial ornado de uma barba rala, o
bigode recurvado nas pontas que lhe acrescenta algo de odio-
samente fanfarrão".
Briguela é o mais vil de todos os tipos da commedia
dell' arte e, não contente de assombrar os palcos europeus,
transformou-se num boneco e veio continuar suas velhacarias
nos sertões de Minas Gerais.
Em várias regiões do Brasil os bonecos continuam uma
tradição e uma história tão antigas quanto o homem: Briguela
ou João Minhoca em Minas Gerais, também João Minhoca
em São Paulo, Estado do Rio e Espírito Santo; Mané Gostoso
na Bahia; João Redondo no Rio Grande do Norte; Babau em
certas zonas; Benedito em outras; mamulengo em Pernambuco,
o único Estado em que se pode acompanhar com mais precisão
uma história do seu desenvolvimento até os dias de hoje.
Quando, na Idade Média, a Igreja se valeu do teatro de
marionetes para difusão do espírito religioso, para atrair a
atenção dos fiéis de maneira direta e mais objetiva, essa forma
de espetáculo adquiriu também a denominação de Presépio,
figurando o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que
já vimos na primeira parte dêste estudo. Deve ter sido sob
essa forma que entrou no Brasil, de que é prova o espetáculo
descrito por Manuel Quirino, na Bahia, sob o nome de Pre-
sépio de Fala, já não mais especificamente sôbre o Nascimento,
mas, por extensão, sôbre assuntos bíblico,. A mesma coisa
com o espetáculo de José Ferreira, em Minas Gerais. Presépio
de Fala em contraposição ao inanimado, mudo, onde as figuras
eram dispostas segundo a narrativa do nascimento de Jesus,
79
O mesmo fenômeno aconteceu em Pernambuco. Começa-
mos com os presépios e dêles partimos para duas formas de
representação: os pastoris, com atôres de carne e osso e os
mamulengos, com atôres de madeira.
Pereira da Costa diz que, segundo a legenda se achava
São Francisco de Assis em Grécio, em 1223, e quis comemorar
o Natal com uma festa nunca antes vista: a representação ao
vivo do nascimento do Divino Redentor. Obteve a licença
do Papa e, escolhendo uma gruta, transportou para lá um boi,
um jumento e uma manjedoura, colocando o Menino na palha,
ladeado por imagens da Virgem Maria e de São José. Na
gruta cantou uma missa e no sermão, quando pronunciou as
palavras do Evangelho - colocou-o em um presépio - ajoe-
lhou-se em adoração, aparecendo-lhe entre os braços um me-
nino resplandecente de luz divina.
A partir daí, os franciscanos conservaram o costume da
representação de presépios, depois espalhando-se pelo resto do
mundo.
Em Portugal, êsse tipo de representação, conforme Frei
Luiz de Souza, foi iniciado no convento das freiras ,do Sal-
vador, em Lisboa, no ano de 1391, erguendo-se no centro do
templo o estábulo de Belém, com figuras. No século XVI o
assunto foi dramatizado, partindo para o auto com a sucessão
de assuntos religiosos. Teófilo Braga diz o seguinte: "Como
em todos os povos católicos ·em que as festas religiosas do
Natal, Reis Magos e Paixão eram a base do teatro hierático,
tivemos êsses autos ou vigílias, que se ligavam às manifes-
tações do culto, sobretudo no tempo em que a Igreja admitia
o povo à participação da liturgia. Foi por um monólogo de
natureza da visitação da !apinha ou do presépio, que Gil
Vicente começou a elaborar a forma literária do auto hierático".
Pereira da Costaº acha que a introdução do presépio em
Pernambuco vem, talvez, do século XVI, com representação
· no convento dos franciscanos , em Olinda, por Frei Gaspar
de Santo Antônio, a respeito do que diz o cronista Jaboatão:
"Foi devotíssimo do mistério inefável do nascimento de Cristo,
(º) PEIIEJJIA J>A COSTA, Folk-lors penfambucano, 1. e,, 1. d,, pá~_as 189 e
1e~inte1,
80
fazendo naqueles dias, além das suas particulares devoções,
algum passo do Deus Menino em Belém, para mover aos reli-
giosos o maior afeto a êste mistério; e ali lhe dizia alguns
louvores, e fazia suas devotas representações, ainda depois de
muito velho, pois naquele convento faleceu em 1635, na idade
de 93 anos".
Antônio Joaquim de Melo descreve os presépios de anti-
gamenteº:
"De ramos de árvores cheirosas e folhagem vividoura
entretecia-se sôbre um altar uma abóbada, aberta em arco
pela frente. No centro desta abóbada mostrava-se a !apinha
e na manjedoura sôbre palhas o Menino Jesus nascido, sua
Mãe Santíssima e São José, o seu espôso, de joelhos, contem-
plando-o maravilhados e adorando-o. Ali junto vereis o pa-
ciente boizinho descansado ruminando, o jumentinho e outros
irracionais; e já de redor, já descendo dos montes e do
povoado, pastôres e pastôras,· que um desejo ardente e santo
impelia a ver em Belém o Deus humanado, que os anjos com
seus cantos lhes anunciaram. Qual por oferenda lhe trazia o
cândido cordeirinho, que lhe pesa aos ombros; qual a cestinha
de escolhidas frutas, e cheirosas, lindas flôres; qual os ovos,
e qual na gaiola as ternas rolinhas. Outras figuras, em grupos
alegres, dançam por aqui e ali ao som dos adufes e gaitas
campesinas. No interior do teto, como que no céu sôbre
nuvens, os anjos sustentam o letreiro: Gloria in excelsis Deo,
et in terra pax hominibus honre voluntatis. Nas casas pobres
a . estrutura dêstes presépios era também pobre e limitada,
expondo apenas sob o teto verdejante e odoroso o divino
recém-nascido no feno vil e enfeitadinho, e a um e outro
lado seus gloriosos pais absortos e humilhados em amor e
oração. Esta mesma indigente e pia singeleza comovia tal vez
mais a alma cristã, que devota e muda a contemplava, do que
a extensão das fábricas de rica variedade e lustroso aparato,
desvêlo de possantes devotas . . . Segundo, porém, as fôrças
e fantasias das festeiras, estas armações en~andeciam-se em
adornos e cenas. Alguns prendiam à arcada folhuda as frutas
mais belas do tempo, o sol, a lua no côncavo, e em colocações
( •) Pl:1\11:11\4 l>A Cot'rA. 1 Ol>rt1 çltada.
81
melhor apropriadas no interior, agregavam passos da Escritura
como o desposório da Santíssima Virgem, a fuga da sacra
família para o Egito, a degolação dos inocentes, a visita de
Santa Isabel e São Joaquim a Nossa Senhora e outros. Tam-
bém em convenientes perspectivas, entre montes e desfiladei-
ros, descobriam-se a cavalo os três reis magos, que adivinha-
ram o nascimento do Divino Messias, e o vinham adorar,
guiados pela estrêla brilhante. E então aquêles três monarcas
já se viam prostrados ante Jesus Menino e depostos na terra
os diademas, adorabundos prestavam-lhe as simbólicas obla-
ções de ouro, de incenso e mirra.
"Era à noite que se reunia a família e os visitantes fliante
dêste frondoso e ameno oratório. As pastorinhas, trajadas
uniformemente, à consonância de seus pandeiros e maracás,
enfeitados, talvez de outros instrumentos à parte, com arcos
de flôres e fitas, ou sem êles, dançavam modestamente, can-
tavam hinos, e recitavam, em breve poesia, piedosas jacula-
tórias e enternecidos adeuses de inocente simplicidade e graça
ao lindo infante, seus amôres, Deus de infinita majestade feito
homem para remir ao mundo; e por fim depunh~ suas
humildes oferendas no altar da maviosa }apinha.
"Prestava-se também o festivo natal à representação de
outros pequenos dramas; eram, porém, tais representações
menos comuns e quase tód~ entremeadas de iocosidades e
anacronismos e com burlescos e indecentes epis6dios não
poucas. Mas qual é a coisa inocente ou útil neste mundo de
imperfeições de que não abusam a ignordncia, o desvario e
a malícia dos homens ? ( 31 ) .•
"Em 1801, o bispo Azeredo Coutinho representou junto
ao govêrno, reclamando contra a função das chamadas pasto-
rinhas, o que foi levado em consideração, assegurando-lhe o
govêrno que ia empregar os devidos meios "para se extinguir
de todo êsse abuso à nossa santa religião".
Lopes da Gama, em 1840, num dos números de seu jor-
nalzinho O carapuceiro, brada contra as irreverências, o cos-
( 3 l) Grffamos o trecho da descrição,. a fim de chamar a atenção para o
processo da passagem do sagrado para o profano, comum ao teatro litúrgico
medieval e à marionete religiosa.
82
tume da arrematação das flôres, mas em vão e o divertimento
sacro foi cada vez mais caindo no profano. "Até o trajar das
pastôras, de azul umas, e de encarnado outras, dispostas em
duas ordens para a execução dos seus bailados, deu origem
à criação do cordão azul e do cordão encarnado, partidos
êsses que no auge do entusiasmo, aos gritos de vivas e bravos,
com palmas sem fim, chocam-se muitas vêzes e acabam en-
galfinhando-se, resultando contusões e ferimentos e até mesmo
casos fatais."
Pastôras, belas pastôras,
que na relva estais deitadas,
descansais e não sabeis
que a luz do céu é chegada ?
8.'3
O teatro de bonecos, forma animada, neste caso, do pre-
sépio, sofreu o mesmo fenômeno. Começou representando o
Nascimento, desenvolveu-se no sentido de apresentar as cenas
bíblicas e, pouco a pouco, contaminado pelos assuntos do dia,
desejoso de um público cada vez maior, caiu no profano,
embora continuasse a exibir-se por ocasião das festas da Igreja.
A notícia mais antiga que se tem dessa representação em
Pernambuco, embora acreditemos que o teatro de bonecos
tenha vindo desde o século XVI, é a de uma nota publicada
no Jornal do Recife, na véspera de Natal do ano de 1896:
"O Natal na Várzea.
"Haverá hoje missa d; Natal na Várzea. Além distó, rea-
lizam-se ali diversos brinquedos populares: presépios, mamu-
lengos, !apinhas, quermesse, músicas, serenata e etc., etc.
"O pátio da igreja estará elegantemente enfeitado e em
um coreto tocará a banda musical Varsense, havendo depois
fogo de artifício.
"A Várzea é hoje o chamariz da gente alegre."
Mamulengos, segundo Beaurepaire Rohan, é uma espec1e
de divertimento popular, que consiste em representaç~s dra-
máticas, por meio de bonecos, em um pequeno palco alguma
coisa elevado. Por detrás de uma empanada escondem-se uma
ou duas pessoas adestradas e fazem que os bonecos se exibam
com movimento e fala. A êsses dramas servem ao mesmo
tempo de assunto cenas bíblicas e da atualidade. Tem lugar
por ocasião de festividades da Igreja, p rincipalmente nos
arrabaldes. O povo aplaude e se deleita com essa distração,
recompensando seus autores com pequenas dádivas pecuniá-
rias. Os mamulengos entre nós são, mais ou menos, o que
os franceses chamam marionette ou Polichinelle. Em outras
províncias, como no Ceará e Piauí, dão a êsse divertimento
a denominação de Presepe de calungas de sombra. Aí os
. bonecos são representados por sombras e remontam-se à his-
tória da criação do mundo (J, A. de Freitas). Na Bahia dão
aos mamulengos o nome de Presepe e representam grotesca-
mente as personagens mais salientes do Gêneseº.
( º ) Beaurepalre RoHAN, Dlclon4rlo de vocdbulo, brtuilelro,, Imprensa Nn-
clonal, Rio de Janeiro, 1889.
84
Conforme vimos, na época de Rohan o teatro de bonecos
já se estava dividindo entre o religioso e o profano, embora
em algumas regiões ainda conservasse o nome de Presepe.
:€ curioso observar, por outro lado, a notícia de que no Piauí
e no Ceará tenha existido um teatro de sombras e esta é a
única referência existente a êsse tipo de representação entre
nós. O Dicionário de Rohan foi publicado em 1889, o que
equivale a dizer que é a data mais remota de menção ao
divertimento, pois a que encontramos e à qual já nos referimos
é a do Natal de 1896, publicada pelo Jornal do Recife.
Pereira da Costa limita-se a copiar a nota de Beaurepaire
Rohan em seu Vocabulário pernambucanoº , a mesma coisa
acontecendo a Luís da Câmara Cascudo( 32 ), que acrescenta,
por sua vez, algumas explicações sôbre as várias denominações
do divertimento no Brasil e no estrangeiro.
Já sabemos em que consiste êsse tipo de representação
dramática popular, uma vez que acompanhamos até aqui a
sua história através do mundo inteiro e vamos estudá-la em
todos os seus aspectos em Pernambuco, mas a dificuldade
surge logo de início em relação à própria palavra mamulengo.
Os dicionários limitam-se a descrever o divertimento e pas-
sam por cima da significação do vocábulo. José Pedro Ma-
chado (ªª), por exemplo, diz : "Mamulengo, substantivo, etimo-
logia obscura".
Tentamos mergulhar dentro desta obscuridade para dela
arrancar o significado da palavra e estabelecermos duas hipó-
teses, que aqui apresentamos, menos como certezas do que
como caminhos percorridos para revelaç-ão do vocábulo for-
mado pelo povo. Nessas pesquisas fomos ajudados pelos
professôres Sílvio Rabelo, José Lourenço de Lima e José Bra-
sileiro. Cada um dêles contribuiu para esclarecer o meu pen-
samento nesta trama verdadeiramente detetivesca.
85
Primeira hip6tese - Parti do Mané Gostoso. Que é o
Mané Gostoso ? Segundo Pereira da Costa, na obra já citada,
é um boneco de engonço com movimento nas pernas e nos
braços,· que se agitam puxados por um cordão. Personagem
grotesca do bumba-meu-boi, que figura em certas cenas, tre-
pado em umas andas, a fazer certos passos e cantando umas
toadas apropriadas ao seu caráter, em que figuram êstes
versos, exemplificadamente: Mané-gostoso/ perna de pau/
salta da cama,/ cai no jirau. Está fora de dúvida, que o
Mané Gostoso, personagem do bumba-meu-boi, por efeito da
inter-relação existente entre os divertimentos populares, tor-
nou-se um personagem dõ teatro de bonecos. Mais amante,
veremos que a mesma coisa aconteceu com a figura do Babau,
que deu até nome ao próprio divertimento na zona de Goiana.
Mané Gostoso é um boneco que, na minha infância, ouvi
muitas vêzes chamar de m.amulengo. "Mamãe, compre um
mamulengo pra mim". ~ possível que a palavra mamulengo
tenha vindo do nome Mané Gostoso: Mamu, diminutivo de
Manuel, com a substituição do n pelo m para torná-lo mais
brando, mais ao jeito da própria figura, juntando-se 9 sufixo
lengo, de lengo-lengo, corruptela de lenga-lenga ( narração
fastidiosa, monótona), expressão onornatopaica do barulho
monótono que faz o boneco ao ser movido por um movimento
da . mão, dando cambalhotas, ficando de cabeça para baixo,
com uma perna atrás da orelha, etc. O fato é que o teatro
de bonecos ainda se chama, atualmente, na Bahia, de Mané
Gostoso, convindo esclarecer que o mamulengo, a princípio,
não era o divertimento, mas o boneco que, por extensão, deu
nome ao jôgo, empregando-se a palavra ;6go no sentido de
representação dramática.
Segunda hipótese - Há muito tempo atrás ouvi também
referência ao mamulengo como sendo "a brincadeira do mo-
lengo". - "Vamos ver a brincadeira do molengo"? - José
Petronilo Dutra, mamulengueiro em Surubim, muito mais
idoso do que eu, confirmou essa designação, ouvida na sua
infância. A palavra m.amulengo,_ então, vem da palavra mo-
lengo. Houve uma reduplicação (mo) e uma dissimilação
86
tste é o Mané Gostoso: figura de papelão montada entre duas hastes
de madeira e movimentada pela pressão da mão.
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Momolengo
Mamalengo
Mamulengo.
00
uma fazenda no interior do nosso Estado um senhor de muitos
escravos. ltle era rústico, perverso para seus escravos. Quando
um dêles adoecia mandava matar e ficava tão-somente com
os escravos que gozavam perfeita saúde, porque dizia êle:
"Escravo doente não dá produção". E entre outros existia
um prêto que êle pràticamente era sabido( 35 ). O nome dêle
era Tião.
Por êle chegar atrasado um dia no serviço o seu senhor
chamou êle atenção, dizendo:
- Tião, por que chegasse tão atrasado ?
ltle disse:
- Senhor, cheguei atrasado porque Maria minha mulher
recebeu a visita da cegonha.
Então êle disse:
- Negro imbecil, quem recebe visita da cegonha é a
minha espôsa, não a tua negra. A tua negra recebe, sim, a
visita de um urubu.
O negrinho ficou chocado, mas reclamou:
- Senhor, não é possível, também somos humanos.
- Tu já sabes falar, não é? Vais ser bàrbaramente açoi-
tado para que sirva de exemplo para os outros.
Então bateu no negro e botou num tronco. À noite,
quando o negro chegou na sanzala e justamente no lugar
aonde dormia começou a lamentar a sua situação e dizendo
para os outros:
- O senhorzinho não parece ter aquilo que nós temos
detrás do peito e que se chama coração. Parece que dentro
do peito dêle tem uma pedra. Até a cara dêle é de pau.
Mais que depressa o prêto pràticamente esculturou uma
figura, envolvendo em trapos, atravessando uma esteira na
porteira da sanzala, começou fazendo tudo o que o patrão
fazia ao correr do dia dêle:
- Vai, negro vadio, trabalha, negro é cerno porco, mate-se
um, encontra-se outro.
91
As figuras indicam a posição dos dedos num boneco de mamulengo.
'
No meio dêles tinha um prêto que era muito chaleira.
Correu à casa-grande e disse:
- Senhor, Tião está mangando do senhor, fazendo tudo
o que o senhor faz com nós no dia.
:E:le então veio e disse:
- Vou dar-lhe um castigo.
Apanhou um bruto chicote, chega na porta da sanzala
ficou apreciando o resto da história do prêto. Quando viram
o senhor, ajoelharam-se, curvaram-se respeitosamente, pediram
piedade:
- Senhor, não fui eu, foi Tião.
:E:le aí disse:
- Tião, como falasse a verdade vai ser perdoado. Todos
aquêles que falam a verdade merecem perdão.
Volta êle para a casa-grande aonde encontrou a sua
espôsa. Então ela disse para êle:
- Não sois tão bravio, tão corajoso, então por que deixas
que um negro mangue de ti ?
:E:le, chocado com aquilo, no dia seguinte disse a Tião:
- Tião, agora você vai fazer o mesmo que fêz comigo
com a sua sinhá.
- Senhor, o senhor tem um coração perverso e a minha
sinhazinha tem pior. ~ fácil dela me mandar matar.
- Quem manda aqui sou eu. Escultura.
tle fêz a escultura e começou novamente no outro dia.
Fazia a mesma coisa. O negro saiu de entre os outros e foi
avisar a sua sinhá:
- Sinhazinha, Tião agora tá fazem~o a mesma coisa com
a senhora.
Ela levanta-se e diz:
- Tu não batesse nêle, mas eu vou bater.
Entra, então êle apanha ela pela mão e diz:
- Não. A cumieira sou eu, você fa,a depois. Volte,
descanse.
No outro dia o administrador censurou os dois. Então
o negrinho levantou-se do mesmo canto e foi dizer. Já tinha
93
mandado. Acontece que o negro foi justamente o pivô dessa
situação. O administrador quis bater, mas não foi possível.
Então o patrão veio e disse:
- Tião, de hoje em diante tu continua com essa pequena
diversão, uma vez que depois do teu trabalho, cansado, tu
nada tem o que fazer e nem tem diversão nenhuma. Continua
com êsse mamulengo.
Tião, contente com aquilo, continuou todos os sábados
fazer o mamulengo nessa cidade. E daí começou o mamu-
lengo nordestino."
-
Conversei com dezenas de pessoas, nô meio erudito e
no meio popular, principalmente com os velhos; fui a capitais
e cidades do interior do Nordeste; entrevistei uma porção de
mamulengueiros, gravando suas conversas e seus espetáculos;
consultei uma centena de livros de pesquisadores, historiado-
res, cronistas para estabelecer a história do mamulengo em
Pernambuco. As notícias de jornais são escassas e quando
muito datam dos fins do século passado. A memória dos
velhos não guardou nomes de mamulengueiros, mas de qual-
quer modo sabemos que o nosso teatro de bonecos perdeu o
seu caráter "litúrgico" no século passado e o seu sentido pro-
fano é o mesmo dos dias a~ais. O mamulengueiro chega,
arma sua tenda ao ar livre ou numa sala quase sempre ilu-
minada a candeeiro e o espetáculo se inicia com a participação
da platéia. Os bonecos representam suas histórias na maior
parte improvisadas, com críticas a pessoas e entidades ( O
sentido social do espetáculo de Januário de Oliveira, por
exemplo, bem atesta a inquietação dos dias atuais), cantam,
dançam, dão pauladas, gritam obscenidades.
Até onde a memória alcança, o mamulengueiro mais fa-
. moso de Pernambuco foi o Doutor Babau. Que significa a
palavra babau ?
Pereira da Costa assim se refere ao vocábulo: "Acabou-se 1
11: tarde I Adeusinho I Está tudo perdido I Não há mais re-
médios I' Babau, sinhá Miquilina I Vá chorar na cama que
é lugar quente". Tais são as expressões desta dicção interjetiva
94
Cena típica de mamulengo numa cidadezinha do Nordeste.
na ocorrência de um fato consumado, de uma pretensão frus-
trada, de um negócio que fracassou. "Tomem lá esta lição.
Então, ainda fazem guerra ? Querem inda o Sete em terra ?
Babau /" ( de uns versos políticos de 1834 sôbre a revolução·
de sete de abril de 1831) . "Pois então, meu amiguinho, outro
ofício, que o de oficial-maior, babau senhor doutor" ( O Pos-
tilhão, n. 0 16 de 1846). "Agora, doutor, babau. Perdeu todo
o seu latim I" ( América Ilustrada, n. 0 35 de 1881). "Amigo
Carlos Alberto, sumiu-se tudo; babau f' ( A Pimenta, n. 0 9 de
1890.) "Acabou-se a ditadura, findou-se tudo; babau /" ( A
Lanceta, n. 0 53 de 1890). "O Velodromo, babau I. . . Adeus
vidinha adorada; muita gente há de chorar de lenço na mão"
( A Pimenta, n. 0 638 de 1908). Esta dicção é brasileira ou
de origem portuguêsa ? A êste respeito ocorre: Bluteau, autor
do mais antigo vocabulário português, não a consigna, nem
Moraes, que o seguiu: .mas o continuador do seu Dicionário
( quarta edição, 1881 ) a inscreve, como se verifica do sinal
indicativo dos têrmos acrescentados, porém com esta expres-
são: Golpe ou pancada de duas bo"la.s entre si, naturalmente
copiada de Constâncio, autor mais antigo, e assim .rhegamos
ao Dicionário de Lacerda ( 1858-1859), que inscreve o vocá-
bulo pe"la. primeira vez como uma expressão de que usa o
vulgo para dar a entender que uma cousa se acabou ou não
tem remédio, vindo daí a sua repetição pelos modernos autores
como Vieira, Aulete e Cândido Figueiredo. Ora, verificado
que o vocábulo, com as nossas consignadas expressões, já era
corrente e vulgar no Rio de Janeiro em 1834, documentada-
mente sabido, e aqui em Pernambuco em 1846, igualmente,
como vimos e que somente em 1855-59 teve assim, pe"la. pri-
meira vez, codificação lexicológica por Lacerda, parece que é
de origem brasileira, a menos que não apareçam documentos
que destruam estas nossas considerações provando o contrário".
96
Olha o Babau 1
Olha o Babau 1
Fecha a porta,
arrocha o pau 1
97
A festa prossegue muito animada por uma orquestra de
cordas, entremeada de frases picantes, até a entrada do
Homem de Duas Caras, com uma cara na frente e outra atrás,
acompanhado pela Viúva, tôda vestida de prêto, o Velho da
Goma, com um saquinho nas costas, o Caboclo, figura bron-
zeada, aproveitada, com certeza, dos Caboclinhos( 87 ).
Depois da entrada do Homem de Duas Caras a festa
começa a degenerar em brigas. Surge uma, depois outra, o
dono da casa intervém sempre, começa a ter ciúmes de Qui-
tera e êle mesmo provoca a briga maior. Todos lutam e, a
certa altura, a propósito n&o me lembro de que mais, ap_arece
Mussolini. O Capitão Reimundo investe contra o Homem de
Duas Caras e dá-lhe uma facada. A confusão é enorme.
Alguém se lembra de chamar a polícia e pouco tempo depois
aparece o Cabo 70 dando pancadas, querendo manter a ordem,
mas só fazendo barulho. Chega o guarda-civil com a tintu-
reira ( 88), prende o Capitão Reimundo, empurra-o para dentro
do carro, êle resiste à prisão, a tintureira é pequena para caber
o homem dentro. Chega o Enfermeiro com a assistência ( 89 )
e leva o Homem de Duas Caras. ,
Mesmo com a ausência do dono da casa a festa recomeça,
surgindo Caruaru, um mulato de prestígio, por quem Quitera
logo_se apaixona. Novamente cantam e dançam:
Lá chegou Caruaru,
eu confesso que sou capaz,
tenho mêdo,
tenho mêdo,
olhe Pisado aí atrás.
Olhai, olhai,
senhores,
qul Pisando tá na frente,
pisando em flôres.
( 37) Divertimento popular à imitação das festas dos índios e o mais apro-
idmadamente possível do caracterlstlco dos seus usos e costumes, particularmente
atinentes aq vestuário. bailados e música, geralmente só exibido pelo carnaval,
( 38) Carro policial para o transporte de presos,
( 39) Ambu!Ancia.
98
Há outro princípio de briga entre Pisado e Caruaru por
causa de Quitera, mas nessa altura aparece a Morte e mata
todo mundo para o Cão levar para o infemo.
O espetáculo, como acontece com o de todos os mamu-
lengueiros, é, na sua maior parte, improvisado. Jt claro que
êles têm um roteiro para a hist6ria, jamais escrita, mas os
diálogos são inventados na hora, ao sabor das circunstâncias
e de acôrdo com a reação do público. Jt mais um ponto de
contacto do teatro de bonecos com a commedia dell'arte.
Não existe mamulengo sem dança. Quase tôdas as his-
t6rias começam numa dança, o que dá margem à orquestra
e aos cantos, além das confusões naturais que podem sair dêste
ambiente.
João Redondo, como vimos, é um personagem mais ou
menos constante nos mamulengos: em Doutor Babau, em
Cheiroso, em José Petronilo Dutra, de Surubim, em Manuel
Amendoim, de Goiana, sem falar das regiões em que êle
qualifica o divertimento.
O Cabo 70 já foi uma figura mais importante. Tinha
importância em Doutor Babau e em Cheiroso, mas atualmente
vem perdendo o seu prestígio, transformando-se do policial
valente em esbirro fanfarrão e arrogante, porém acovardado
logo que tope com um macho na sua frente.
No mamulengo do Doutor Babau as figuras tinham o
nome daquilo que representavam: o Homem de Duas Caras,
a Viúva, o Velho da Goma, o Caboclo, etc., todos dentro da
característica principal dessa forma de teatro, constante em
todos os teatros de bonecos do mundo inteiro: a pancadaria,
com as inevitáveis mortes que são sempre cômicas pela ma-
neira como se processam, arrancando gargalhadas do público'.
Duas figuras indispensáveis em quase tôdas as pecinhas
dos mamulengueiros são a Morte e o Diabo, reminiscência,
com certeza, dos autos litúrgicos que era~ representados a
princípio.
O mamulengo do Doutor Babau tinha um repert6rio
muito grande e mais de setenta bonecos, todos feitos por êle
99
mesmo e por sua mulher Agripina, uns mal arranjados, outros,
porém, com muita propriedade de tipos. Tanto uns como
outros, porém, com um sentido popular firme: Cachimbinho
de Côco, Zé Gago, João Redondo, Sapucaia, a Noiva, Simão, O
menino gêmeo, etc. As farsas eram baseadas em motivos po-
pulares, com brigas, mágicas, com enredos heróicos: Engole
fogo, Duzentos metros de fita na barriga, O mastigador de
vidro, Ver para crer, Corto uma cabeça de passarinho e apre-
sento vivo voando, O sedutor apaixonado, A flor roubada.
Num terreiro de arrabalde, à luz de candeeiros, com uma
orquestra de cordas, os bonecos do Doutor Babau diit:raíam
e emocionavam uma platéia formada por meninos de pés
descalços, carregadores suados, soldados de polícia, mulheres
perdidas, calungas de caminhão. Interpretava para o povo
os motivos do seu agrado, com o eterno assunto do bem
contra o mal.
Cheiroso foi o sucessor de Doutor Babau. Era magro,
muito alto e feio, morava no Alto do Pascoal e seu apelido
lhe veio do fato de fabricar "cheiros" (perfume), ~'>sências
baratas extraídas das flôres e metidas em frasquinhos para
venda às pessoas de sua classe. Morreu há alguns dez anos,
tentei localizar a residência de sua mulher que o ajudava na
brincadeira, mas em vão. Não sei como era seu nome próprio,
mas isto não tem grande importância porque foi como Chei-
roso que êle realizou um mamulengo de primeira, represen-
tando em tudo quanto era festa de arrabalde ou de aniversário.
Projetou-se lá fora graças ao entusiasmo do pintor Au-
gusto Rodrigues, como um verdadeiro artista popular, ao lado
de Vitalino, que também foi dado a conhecer a meio mundo
por aquêle pintor. Um dos números da revista da UNESCO,
citado por Ladjane num artigo para o Jornal do Comércio,
assim se refere ao famoso titeriteiro pernambucano, como le-
genda a uma fotografia onde se vê Cheiroso mostrando aos
meninos do seu bairro os personagens de suas peças:
"Uno de los titiriteros más pitorescos del Brasil fué un
viejo vendedor de perfumes, extraídos de las flores, en las
ferias de Pernambuco. Apodado "El Cheiroso" - o sea "el
100
B,1rrnca d<' mamulengo armada numa praça de Água Fria
( Foto Olga Ohry, tirada du u11u n·v~ta).
101
flagrante" - deleit6 al publico hasta su muerte con sus repre-
sentaciones unipersonales."
O depoimento da pintora Ladjane é curiosoº :
"Acompanhei, por várias vêzes, pessoas vindas do sul, até
a casa do titeriteiro, no Alto do Pascoal, onde êle nos recebia
em festa, a alegria estampada no rosto de nariz defeituoso,
criando suas peças para "a gente de fora". Eram engraçadas.
Havia a do filho do b êbado inveterado que por maldição da
própria mãe, a quem maltratava, terminava sendo atropelado,
"no meio da estrada prus urubu comê", se não me engano, por
uma ambulância; havia ll do prestarnista desavergonhado, que
se aproveitando da ausência dos maridos de suas f~guesas,
tentava abusar da fraqueza das mesmas, terminando por "levar
cacete no quengo pru rnode deixá de sê bêsta"; havia a do
prêto soldado valente, que não consigo lembrar o nome( 40 ) ,
"metido a coisa", que matava e espancava a torto e a direito
( "1!:ta, cabra danado") e muitas outras que não me ocorrem.
Mas a melhor era, sem dúvida, a da balofa vendedora de
miúdo, valente corno quê, não respeitando "otoridade" nem
"seu sordado, nem "seu cabo", nem o "seu delegado",passando
o pau até no soldado prêto metido a "brabo", porque enten-
dera de não pagar impôsto nem arredar-se do lugar. E não
pagava mesmo I Gorda, forte, brigona, podia com todos e
ainda pilheriava. "N êga rnausarave I" Parece que o vejo a
manejar os bonecos com 'tal facilidade e criar vozes tão
diversas para cada um, que assombrava aos entendidos e
deliciava os leigos. Talvez o defeito que tinha no nariz, tor-
nando-lhe fanhosa a voz, ajudasse-o na tarefa. Cheiroso era
mesmo perfumado. No seu sapato de pobre, na sua roupa de
pobre, no seu chapéu de pobre, êle ia meio desassombrado,
meio tímido, banhado em patchuli, criando adoráveis peças
de arte popular. Mas Cheiroso vivia apertado financeiramente.
Suas funções, corno êle chamava, não lhe rendiam muito. Não
é que êle fôsse bobo, isso não, e até dizia: "Curno é pra gente
rica eu faço pur quinhentos miréis, né secretara ? (Nesse
temp~ eu era secretária da Sociedade de Arte Moderna do
( •) No artigo acima citado,
( 40) Era o Cabo 70.
102
---- _____________.,
103
Recife). Quando é pra vosmicês, não". Realmente, para a
Sociedade eram cem ou duzentos cruzeiros, apenas, com di-
reito a comida e ao golezinho. Uma ninharia para um artista
do porte de Cheiroso, mas êle compreendia o quanto sentía-
mos a sua arte e quanto o incentivávamos, recomendando-o
em lugares onde êle pudesse dar sua "função". Várias vêzes eu
o vi chegar à Sociedade queixando-se por questões financeiras.
Pobre Cheiroso, nunca foi além dos setecentos ou oitocentos
por "função", para gente rica e de quase nada para os pobres,
especialmente as crianças."
A cronista, depois de lamentar que as entidades culturais
ligadas aos podêres públtcos não se tenham interessado em
preservar os bonecos de Cheiroso, e mesmo providenciado a
gravação das suas pecinhas, termina dizendo: "Há bonitas
coisas como um demônio negro, maravilhoso, ·com suas várias
cabeças em lugar de chifres. Há cobras, há mulheres, há
homens, há soldados, há ambulâncias e uma infinidade de
outras coisas. Há ainda o pano pintado com caracteres e
figuras das peças criadas que formava a barraca das repre-
sentações."
. Há muitos anos que Cheiroso representava em 'feiras e
festas para o povo quando foi "descoberto" pelo pintor Au-
gusto Rodrigues e pôsto em contacto com o Teatro do Estu-
dante de Pernambuco que, além de tentar a renovação dos
processos de representação ne Nordeste e a fixação do autor
da região, procurava valorizar tôdas as formas de teatro po-
pular, como o bumba-meu-boi, o pastoril e o mamulengo, con-
tratando os artistas populares e fazendo-os exibirem-se para
grandes massas.
Em 1947, como preparação a êsse ciclo de representações
populares, o Teatro do Estudante projetou e realizou uma
mesa-redonda com o poeta e folclorista Ascenso Ferreira,
Cheiroso, João Martins de Ataíde, Fuzarca, um velho de pas-
toril, Antônio Pereira, um cavalo-marinho de bumba-meu-boi,
um cantor de feira, o prêto Alegria representando um circo,
escritores e estudantes. Esta foi a primeira Mesa Redonda
de Teatro realizada no Brasil para tratar de Representações
Populares. ·
104
Crianças assi,tindo a uma exihição de Cheiroso ( Arquivo
de• fknnilo Borba Filho). Fotografia de Pierw Vergc·r.
10.5
teatro litúrgico e o profano e a ironia da história consiste em
Ismael ter sido morto por uma ambulância do Pronto Socorro.
O recruta conta as aventuras de um matuto que vem do
interior procurar emprêgo na cidade. Bate na casa de um
capitão e pede para trabalhar como jardineiro. O capitão
recusa e lhe oferece um lugar de soldado. O matuto, lem-
brando-se de uma cena que vira, de um ferreiro enfiando um
ferro em brasa no fundo de uma panela para remendá-la,
estremece com aquêle convite e diz que não quer "ser sol-
dado". O capitão explica o que realmente significa ser um
soldado, defensor da pátria, e o matuto aceita. Durante a
rápida instrução de cinco ou seis "meia-volta", "esqeerda" e
"direita", passa a "pronto" e começa a dar guarda. Na ordem
de gritar: "As armas" o recruta, que não. entendeu bem a
instrução do capitão, grita: "Peixeira, quicé, fuzil I" E assim
os dias vão correndo até que aparece no Quartel o Cabo 70,
para completar os conhecimentos militares do recruta. De um
desentendimento entre ambos nasce uma briga que termina
com a prisão do recruta pela autoridade do Cabo.
O drama do circo não tinha nada de circo. IJ m rapaz,
que teve sua namorada seduzida por outro, envia-lhe por seu
empregado Cossa-Cossa um prato de bolos. No meio do
caminho, o empregado come os bolos e volta, afirmando ao
patrão que havia entregu~ o presente. E acrescenta, para
justificar a mentira, que vira quando a môça "comeu os bolos,
palitou os dentes e b ebeu água". Com essa informação re-
petida uma dezena de vêzes Cossa-Cossa ouve do patrão a
confissão de que estava vingado, pois os bolos estavam en-
venenados. Cossa-Cossa, impressionado, desmaia e morre sob
a ação do veneno. Nessa ocasião entra um urubu em cena
e carrega .pelo ar o corpo do mentiroso.
Um tipo de peça como esta, beirando o trágico, é tratada
de maneira cômica, tendo ainda um fundo de moralidade,
com uma representação arbitrária e poética, a do urubu car-
regando Cossa-Cossa.
Diretamente influenciado por Cheiroso, ' o Teatro do Es-
tudante de Pernambuco fundou um Departamento de Bonecos, •
106
O Capitão e o Boi, numa cena de bumba-meu boi do mamulengo
de Cheiroso ( Foto do arquivo da Secretaria de Educação e Cultura
da Prefeitura do Recife).
107
estava no auge. Mas, abstraindo-se esta diferença, o Recife
encheu-se de entusiasmo pelos teatros de bonecos, surgindo
titeriteiros particulares como Berguedof Elliot e Carmosina
Araújo. ·
Convém ressaltar que muitos anos antes, lá pela década
de 30, o escritor Silvino Lopes e o ator Barreto Júnior fun-
daram um teatrinho de mamulengo chamado O Teatro de
João Melado, onde representaram até Deus lhe pague, de
Joracy Camargo, antes que a peça fôsse conhecida no Recife
através do Grupo Gente Nossa .
Olga Obry, provocando entusiasmo e possibilitando o
desenvolvimento de teatrinhos de bonecos em escolas,· enti-
dades, associações culturais, entusiasmou-se por sua vez com
o movimento popular e "literário" que aqui se processava e
foi uma das responsáveis pelo alastramento do nome de Chei-
roso, no país e no estrangeiro.
Vale a pena transcrever um artigo que escreveu para a
revista Argumentos, em 1948:
,
"Para muita gente, nos subúrbios de Recife e no interior
pernambucano, o mamulengo é a única forma de teatro dra-
mático, ao lado do teatro de dança e pantomima dos mara-
catus, do bumba-meu-boi, dos fandangos e das cheganças.
Estudiosos procuram-lhe a origem - tanto do nome quanto
do próprio modo de representar - sem chegar a conclusões
definitivas. Parece ter vindo de Portugal, há uns dois séculos.
Seu representante máximo, atualmente, na capital pernambu-
cana, é o "Cheiroso", que já se tornou famoso através de
várias reportagens publicadas na imprensa pernambucana e
carioca. "Tem cartaz", dizem com inveja seus vizinhos do
"Morro do Pascoal", no subúrbio de Agua Fria, onde mora
com a família numerosa, numa casinha cheia de bonecos de
pau e trapos, rodeada por minúsculo jardim.
"O Cheiroso não precisa de palco pai-a representar. Quan-
do fomos visitá-lo, amarrou um lençol entre duas árvores, lá
no seu ·jardinzinho e, atrás dêle, aparecendo apenas os bonecos
calçados em suas mãos, pôs-se a representar. As peças são
108
Dois personagens de Cheiroso, não 1dentificados ( Foto do arquivo
da Secretaria de Educação e Cultura ela Prefeitura elo Recife).
109
O Cabo 70 e o Urubu, numn representação de Cheiroso ( Foto do
arqnivo da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura dei" Recife).
LlO
Estas crianças, hoje, são rapazes e mô<;as, alguns casados, mas nacruela
época participavam do mundo de hciroso (Foto Pierre Vergcr, do
arcJt1i\ o ele Hermilo Borba Filho).
111
Note-se a alegria das crianças numa representação de Cheiroso
( Foto Pierre Verger, arquivo de Hermilo Borba Filho) .
112
seja uma autêntica moralidade. Outras peças suas, dentro das
vinte do seu repertório, são: As bravatas do Professor Tiridá
na usina do Coronel de Javunda, O homem que não deve a
ninguém, A cobra gigante e os dois vigias valentes, As aven-
turas de uma viúva alucinada, O fugitivo de um manicómio,
O matuto sentando praça( 41 ), A alma perdida, A chegada de
Tiridá no inferno, A negra do balaio grande, As paródias do
Libório e O casamento de Quitéria.
Seus personagens principais são: Professor Tiridá, Ma-
dame Quitéria, Tamancolino, Anastácio, A Velha Filefídéfica,
Chibata, Joaquim Bozó ( o valente) e Libório. Os bonecos
são de luva, com exceçfo de Manuel Pequenino que, por
um dispositivo especial, cresce quase dois metros à vista do
público.
O espetáculo de Ginu, por mais que êle queira sofisticá-lo,
permanece autênticamente popular. Não tem uma tenda e
deixa tudo a cargo de quem o contrata, improvisando o local
da representação com um lençol pendurado numa corda. O
de que êle faz questão é instalar os alto-falantes e pendurar
um microfone ao pescoço, pois "meu espetáculo é todo irra-
diado". Trata os espectadores de "meus caros ouvintes" e não
perde oportunidade para dizer que é o "primeiro diretor-ar-
tístico (?) do Nordeste." Vaidades naturais num artista de sua
categoria, que vive nesta época de tanto adiantamento técnico,
os divertimentos populares não fugindo a essa influência.
Apresento duas pecinhas de Ginu, gravadas por ocasião
de um dos seus espetáculos e transcritas depois. Podem pare-
cer pouco interessantes - o que duvido - mas crescem muito
mais no calor da representação, porque é impossível trans-
crever a espontaneidade de um espetáculo que é quase todo
improvisado, com frases criadas ao sabor das circunstâncias .
•
( 41) Já vimos essa peça no repertório de Cheiroso, o que vem provar que
Ginu nem sempre fala a verdade quando diz que "faço as comédias de minha
autoria".
113
..
,-
AS BRAVATAS DO PROFESSOR TIRIDA
NA USINA DO CORONEL DE JAVUNDA
Comedinha de JANUÁRIO DE Üf:,IVEIRA (GINU)
•
PERSONAGENS :
PROFESSOR TIRIDÁ •
o C o noNEL OE JAVUNDA
S1MÃO
UMA MULHER
UM HOMEM
NARRADOR
ÜM INDUSTRIAL
,
PROFESSOR TmmÁ - (Sobe) Boa noite. Aqui chega o professô Tiridá.
Mas é verdade: o meu nome não é sàmente êsse. O meu nome
é um pouquinho grande, mas porque eu sou do interiô. O meu
nome sempre é mai6 do qui os outro. Eu me chamo Tiridá Lotério
Conrado Negreiro de Albuquerque de Lima da Costa Leão do
Rêgo da Cunha Machado Barbosa Lelé Castanha Direita da Chica
Bicuda ademais e ai 1 ~ste é qui é o meu nome. Bem, acontece
qui eu tenho qui apresentá as minhas bravatas, mas é na usina do
coroné de Javunda, Não é aqui. E aí vem êle (Desce)( 42) .
S1MÃ0 - ( De fora) Sinhô, patrão, sinhô 1 (Sobe) Sinhô, qui é qui vossa
mercê qué?
CoRONEL - Mas acontece, Simão, qui eu vou viajá e priciso qui você
tome conta da usina.
117
CORONEL - E tem mais uma coisa: aquêle trabalhadô qui abusá bote
pra fora em vinte e quatro horas, toque fogo na casa. Mas só
bote pra fora aquêle qui tivé muita coisa plantado qui serve pra
gente.
·118
SIMÃO - E qui é qui tem isso ? Bote leite de banana, enrole numa
estôpa e venha trabaiá. Eu quero é produção purquê o meu patrão
não está aí. Tá ouvindo?
119
SIMÃO - Quem é qui vem aí ?
HOMEM - (Sobe) Sou eu, seu Simão.
SIMÃO -: Já vem chorando?
HOMEM - Seu Simão, eu quiria ...
SIMÃO - Não demore. Não demore qui eu quero lhe ate::idê. Quero
sabê o qui é.
HOMEM - Seu Simão, Maria minha mulhé tá com uma dor de cabeça
qui não pode trabaiá !
SIMÃO -O quê?! Uma dor de cabeça empata de trabalhá? Será qui
bp•? -
HOMEM - Impata, seu Simão, qui ela amanheceu o dia butando fôia
de banana quente. Butou manjiricão e não tem jeito. Não s'importe
não, seu Sbão, qui eu faço o serviço d~la.
SIMÃO - Não m'interessa. Diga aquela pirua qui venha. Ela tem qui
trabaiá. Aqui é a casa do mau home, quem não trabalha não come.
HOMEM - Não faça isso não, seu Simão, pur Nossa Senhora da Pres-
tação 1
SIMÃO - Sabe de uma coisa, qui a parada aqui é dura? Va.«'imbora,
siga o seu caminho, não olhe nem pra trás. lspere aí, ispere aí,
tem muita coisa aplantada ?
HoMEM - Tem. Eu plantei quatro cuias de feijão, uma légua de
· macaxeira, plantei uma légua. de- batata ... tem muita coisa 1
SIMÃO - ll: isso qui eu quero. Vá--s'imbora.
HOMEM - E as coisas ?
SIMÃO - Você trouxe nada praqui? Você não trouxe nada. E como
qué levá alguma coisa? Vá-s'imbora 1 ( Cacetada).
HOMEM - Seu Simão I Seu ·Simão 1
SIMÃO - Vá-s'imbora 1 ( o HOMEM arreia) Ah I Ah f Dois I Qué dizê
qui eu já tou mais ou menos. Quando o patrão chegá, vai go'stá
(arreia).
NARRADOR( 411) - O professor Tiridá andou pela cidade do Recife, não
achou trabalho, parado, com família, resolveu i pro interiô pra vê
120
se achava trabalho. E aí saiu procurá trabalho na usina do coroné
de Javunda.
TmmÁ - (Sobe) Mas é possível ! Qui tempo eu ando e ainda não
achei trabalho! O interiô parece qui tá pi6 do qui o Recife. ô de
casa!
S1MÃO - ( De fora, com uma voz muito grave e arrastada) Quem é ?
TmmÁ - Danou-se! S6 o truvão do Piauí! Eu quero sabê quem é
primeiro.
S1MÃO - (De fora) Já vou atendê, já vou atendê (Sobe).
TmmÁ - Quero.
S1MÃO - Bem, ali no pé de juá tem uma inxada.
TmmÁ - Ih ! agora sim. Eu acostumado a escrevê, pegá em inxada.
Nunca amadurece, o ruim é isso. Tá certo, ~eu Simão, eu quero.
S1MÃO - Vá buscá a inxada e vá logo pro corgo, compreendeu ? Brocá.
121
SIMÃO - E como é qui qué trabaiá sem sabê ó qui é brocá ? Broca
de derrubá aquêles tôco grande, aquelas massaranduba. . . Com-
preendeu P Depois queimá pra pudê plantá ...
TmmÁ _.,... Quanto ganho ?
SIMÃO - Quatro cruzeiro,
TIRIDÁ - Tá certo, seu Simão, eu quero. Eu vou vê a inxada ( Arreia
e sobe). ô seu Simão, seu Simão, me diga uma coisa: a água
é perto P
SIMÃO - Perfeitamente.
TmmÁ - Tá certo, eu vou (Arreia e sobe). ô seu Simão, seu Simão,
me diga uma coisa: a qui hora se armoça? •
SIMÃO - Se armoça às onze hora.
TIRIDÁ - Tá certo (Arreia e sobe). ô seu Simão, seu Simão, me diga
uma coisa: qui hora a gente vai pra casa?
SIMÃO - De tarde, ao pôr do sol.
TmmÁ - Sim sinhô, eu já venho ( Arreia e sobe). ô seu Simão, seu
Simão, me diga mais uma coisa: como é o nome do patrão?
SIMÃO - Coroné de Javunda. ,
TIRIDÁ - Sim sinhô, eu fá vou trabalhá, viu? (Arreia e sobe), ô s~u
Simão, seu Simão, como é o nome do sinhô ?
SIMÃO - Você qué anarquisá, é? .
TIRIDÁ - Eu quero sabê das coisa direito pra depois não dá errado;·
SIM;Ão - O nome dêle é Coroné de Javunda e ai 1
TIRIDÁ - Agora eu já sei (Arreia e sobe). ô seu Simão, seu Simão,
onde é qui eu amolo a inxada ?
SIMÃO - Mas isso é qui é um esprito I ôi, o sinhô qué sabê mais?
Vou mandá dá-lhe uma pisa.
TIRIDÁ - Ah, isso é qui não. O sinhô sabe o meu nome? Eu me
chamo Tiridá Lotério Conrado Negreiro de Albuquerque de Lima
da Costa Leão do Rêgo da Cunha Machado Barbosa Lelé Castanha
Direita da Chica Bicuda ademais e ai I Compreendeu ? Seu cabeça
de manga-espada 1
SIMÃO :... E o sinhô sabe como é meu nôôôôôôme? Eu me chamo
Simão de Lima Condessa 1
122
TUUDÁ - Tá direito qui o sinbô se chame Simão de Lima éondessa,
mas dá aqui no papai tá difice. t difice purquê eu peso cinqüenta
quilo, mas meu braço é cento e oitenta.
SIMÃO - Bom, seja quanto fõ, si o sinhô tivé sorte de passá a purteira
do ingenho, o sinhô não é pegado, mas si não tivé sorte de passá
a purteira, dou-lhe uma pisa qui com cem ano você se lembra.
TmmÁ - Tá certo. Si eu iscapá o sinhô nunca mais pisa no Recife,
compreendeu ? Si eu iscapá não me pise no Recife não, seu Simão,
qui o sinhô tá atrapaiado.
SI.MÃO - O qui eu vou. • . eu vou é aqui logo ( Faz menção de arrear) .
TIRIDÁ - Eu também já vou-m'imbora (Arreia. SIMÃ.o arreia também).
NARRADOR - O professor Tiridá, como muito veloz, conseguiu traspassá
a purteira antes de Simão. Simão procurou os cangaceiro todo,
encontrou, mas nada de encontrá o professor Tiridá. Quando é um
dia, porém, o Simão recebe o coroné da usina.
CoRONEL - (Fora) ô de casa 1
SIMÃO - (Sobe) Quem é ?
CoRONEL - (Fora) Sou eu, o coroné 1
SIMÃO - Ih I o coroné já veio. O coroné vem chegando.
CoRONEL - (Sobe) Simão 1
SIMÃO - Sinhõ, coroné? Fêz boa viage ?
CoaoNEL - Foi, Simão. Simão, qual é a situação do trabaio ?
SIMÃO - Ah, coroné, a situação do trabalho tá boa. Botei dois moradô
pra fora. Ah I Ah I Ah I Foi pau I Mas deixaro foi tanta coisa,
coroné, pra gente I Deixaro mandioca, macaxeira, deixaro tudo
plant~do.
CoaoNEL - Me diga uma coisa: e a filha mais velha daquele moradô,
seu Antero?
SIMÃO - Tá'í, na cuzinha.
CoRONEL - Tá trabaiando ?
StMÃO - Tá. •
CORONEL - Mas eu soube duma coisa, qui aqui teve um tá de Tiridá,
um disordeiro, um pistoleiro e você nada fêz com êle, hein? Você
nada fêz, Simão 1
123
SIMÃO - Mas coroné, o home pulou a purtelra tão ligeiro qui eu não
vi mais.
CoRoNEL - ói, vai pagá caro isso, viu ?
S1MÃ0 - Mas eu, coroné, tão bom trabaiadô ?
CoRoNEL - Não tá interessando, eu já venho (Arreia e sobe com o
cacête). Tá vendo, Simão, quem não cumpre orde o qui. acontece ?
(Bate).
SIMÃO - Coroné 1
CoRONEL - Olhe aqui, Simão 1 (Bate). Não quero vê-lo 1
SIMÃO - Tá certo, coroné, aqeus.
•
CoRONEL - 'Pere aí. Pra si lembrá de mim, tome 1 ( Bate e S1MÃ0
arreia). Aqui se faz o qui o coroné de Javunda manda (Arreia) .
NARRADOR - Fugindo da usina o Simão consegue, por esquecimento,
chegá no Recife. Então procura trabalho em tôda parte. E em
vão não incontrou. O professor Tiridá, andando pela cidade, após
a fuga da usina, incontrou uma indústria de vidro e nela conseguiu
imprêgo. -
lNDUSTRIAL - (Sobe) t verdade, abri essa casa agora há pouco e me
falta operários. '
TmmÁ - (Fora) ô de casa 1 (Sobe).
INDUSTRIAL - Qui é qui o sinhô deseja ?
Tmii>Á - Desejava vê si aranjava~uni trabalho pur aqui.
INDUSTRIAL - Oh I Chegou na hora. Eu priciso de um impregado.
Sabe lê, iscrevê e contá ?
TmlDÁ - Sei, sim sinhô.
INDUSTRIAL - Eu priciso de um mestre, aqui, pra dirigi essa indústria.
TmmÁ - Ah, então eu quero.
INDUSTRIAL - O sinhô qué? t pontual, trabalhadô?
TmmÁ - Muito trabalhadô. S6 o qui me atrapalha é quando eu istou
cum fome não faço nada. Mas eu como, sou trabalhadô muito.
INDUSTRIAL - Tá direito. O sinhô vai ganhá o salário mínimo, remu-
nerado, tudo. O sinhô toma conta do imprêgo desde já. Agora,
às nove hora o sinhô pega no trabalho, vai fazê as ficha dos traba-
lhadores, qui aí tem muito trabalhadô desnotado.
124
•
TmmÁ - Sim sinhô.
INDUSTRIAL - Bem, tome conta (Arreia).
TmmÁ - Nove horas I Só venho amanhã (Arreia).
NARRADOR - Simão anda pela cidade e vai arranjá sirviço justamente
na indústria de vidro.
125
•
Voz - (Fora) Sim sinhô, pois não. Seu Simão, seu Simão, fazê sua
ficha 1
SIMÃo - (Fora) Já vou, patrão, já vou (Sobe). Bom dia.
TIRIDÁ ..:._ Bom dia. Menino, óia Simão 1. . . Não parece Simão ? To-
dinho Simão I De onde você é, hein ?
S1MÃ0 - Eu sou um pobre matuto. Nunca fiz mal a ninguém. Vim
pur aqui procurá sirviço ... minha famia tudo ruim de vida • ..
e eu vim fazê minha ficha .. .
TmmÁ - Como é seu nome ? ( À parte). Minha gente, (>ia Simão 1
( Para S1MÃ0) Como é seu nome, hein ?
SIMÃO - Eu me chamo Simão de Lima Condessa. .
TmmÁ - Tu não me conhece não, Simão ? Mas Simão entrou na
horinha certa 1 Nove horas I Simão, eu te conheço, Simão 1
SIMÃO - O sinhô me conhece? O sinhô já viveu no interiô?
TmmÁ - Simão, tu te lembra quando tu me dissesse qui ia me dá
uma pisa, Simão ?
SIMÃO - Eu ?I. • • Eu ? Eu não faço mal a um pinto.
TmmÁ - Sendo seu, mas sendo dos outro você mata e come. t, você
disse se eu passasse na purteira ia levá uma pisa, não fo(, Simão ?
( À parte). Minha gente, óia Simão 1 ( Para SIMÃO). Quem sorri
milhó é quem sorri no fim. Simão, você sabe qul vai me pagá ?
Eu não disse, Simão, qui você não aparecesse no .Recife, Simão ?
SIMÃO - Mas é pussive, agora ql}i éu arrumo um imprêgo 1
TmmÁ - Mas Simão, eu também fui pra lá arrumá um imprêgo, eu
tava má de vida, Simão. Além de tu me dá uma inxada pra tra-
balhá, ainda quisesse me dá uma pisa, Simão I Eu vou lá dentro
buscá uma choca-cola pra você tumá. Hem, hem, minha gente,
olha Simão 1. . . ( Arreia e sobe, com o cacête) . Simão, tu sabe
como é o nome disso? Isso se chama Deus-me-perdoe. t aprovado
pelo Laboratório Bromatológico da Chapuletada. Garanto, Simão,
qui tu nunca mais dá em ninguém. Simão 1 vê se pega 1 (Bate).
SIMÃO - Nossa Senhora das Pernas Tortas 1
TIRIDÁ - Toma, Simão 1 (Bate).
SIMÃO - Pra onde é qui eu vou ?
TmmÁ - Tome a passage do ceteú(46)! (Bate). Vai-s'imbora, Simão 1
J26
A pecinha trata de um problema que é quase uma cons-
tante em tôdas as histórias de mamulengo: a vingança. Ou,
no sentido moralista, a aplicação da sentença de que "Quem
com ferro fere, com ferro será ferido".
i;; visível, por outro lado, a preocupação "social" do ma-
mulengueiro, descrevendo as arbitrariedades numa usina, com
o coronel atrabiliário e a exploração dos trabalhadores através .
de um imediato bajulador, apossando-se, inclusive, dos bens
dos camponeses, para sofrer a mesma injustiça. A cena da
cidade se passa numa fábrica de vidro, com certeza lembrança
dos dias em que Januário de Oliveira, o titeriteiro, lá traba-
lhava como vigia.
A pecinha não tem grandes vôos de imaginação, mas o
diálogo é saboroso e o emprêgo de certas palavras enriquece
as frases populares. A solução da unidade de lugar é inteli-
gente, apelando para a imaginação do espectador que não
sente falta da mudança de ambiente nem de móveis ou per-
tences, ajudado, ainda, pelo Narrador.
A segunda peça - As aventuras de uma viúva alucinada
_ é de fundo mais cômico, lançando mão da fraqueza humana
e do castigo através do Diabo, mas com a valentia do Pro-
fessor Tiridá triunfando com as cacetadas. f: um exemplo,
também, de peça musicada.
127
,,,
,
AS AVENTURAS
DE UMA VIúYA ALUCINADA
Comédia de JANUÁRIO DE OLIVEIRA (GINu)
•:'.
•]
•
/
PERSONAGENS:
PROFESSOR TnllDÁ •
V1ÚVA
HOMEM
SATANÁS
NARRADOR
MENINO
,
PROFESSOR T1ruoÁ - (Sobe) Eu agora mesmo recebi um telegrama qul
a minha cumadre tá sofrendo das faculdades mentais, mas como
faz muito tempo qui ela não nos visita eu istou isperando a cada
instante a visita da mesma (Batem). Quem está batendo?
V1ÚVA - (Fora) Não é ninguém, não, cumpadre, sou eu (Sobe).
TmmÁ - Cumadre, não chore. Triste de quem morre e para o céu não
vai. Quem fica, fica brincando; quem morre, não brinca mais.
VIÚVA - Mas meu cumpadre, êle era tão bonzinho, não era?
TmioÁ - Vôte, cumadre, vai mariá o diabo I Era l>om pra senhora,
pra mim não.
TIRlDÁ -
•
Como é o nome do primeiro ? Diga I Ih I Eu já tou mo
abufelendo I Eu já tou muito abufelido. Vá, cumadre.
131
TmIDÁ - Ah I Pa Manuelzinho eu vou arrumá uma vaga, cumadre, na
clareia( 47), pra isfregá urubu até ficá branco. Tá bom, cumadre ?
VIÚVA - Tá bom, cumpadre.
TIBIDÁ - Como é o nome do outro ?
VrúvA - O nome do outro é Toinho.
TmIDÁ - Cumadre, pa Toinho eu voi impregá êle no frigorífico pra
inxugá barra de gêlo. Tá bom, cumadre ?
VIÚVA - Tá bom, cumpadre, Agora, cumpadre, tem outro. ,
TmmÁ - Qual é o outro ?
VrúvA - Manezinho.
TmmÁ - Ah I pra Manêzinho é umà beleza, cumadre. Eu vou impregá
-
êle na fábrica de moleite( 48 ) . Já tão dando até macacão.
VIÚVA - Tá bom, cumpadre. Mas eu não gosto de me lembrá de
meu marido I ôi que des ... gôs. . . to 1. .. ôi I ôi 1. . .
TIRIDÁ - · Oxente I Cumadre, mas Isso é um caso sério. A minha
cumadre parece qui não tem uma certa cultura . . , Cumadre, a
sinhora sabe lê, inscrevê e contá ?
,
VIÚVA - Cumpadre, do a pra trás eu sei de tudo.
TmmÁ - Mas é possive? · Não parece, Cumadre, a sinhora ·faz o
siguinte: se a sinhora do a pra trás sabe tudo já pDde sê até uma
datilógrafa. Perfeitamente.
VIÚVA - Bem, cumpadre, mas eu não sei o qui é qui faça,
TIRIDÁ - Bem, bem, cumadre, mas isso não é problema. A sinhora
faz o siguinte: a sinhora cai na dança, no samba. . . A sinhora se
diverte. Aí manda as tristeza i imbora.
VIÚVA - Não quero, não quero, não qnero I Não faz bem quarenta e
dez anos que meu marido morreu I Como é qui eu vou dançá,
cumpadre? Todo o mundo me censura, cumpadre 1
TnnoÁ - Censura nada, cumadre. Cada um cuida da sua vida.
VIÚVA - Não quero não, cumpadre. . De jeito ninhum. Olhe o dedinho
dizendo qui não I Tá vendo? Não quero não.
132
TmmÁ - Cumadre, veja bem, eu não quero nem samba, nem bolero,
rumba, tuíste, nada. Eu vou cantá o côco do Arubu chumbado.
Tá bom, cumadre ?
VIÚVA - Não quero, não quero, não quero I Se eu quisé eu estore feito
peito de velha I Pôo 1
TmroÁ - Cu madre, deixe de besteira . . . Quer ver ? Iscute. . . ( Canta
e dança).
O trem de carga,
passageiro de Bunito,
qui apita dois apito
quando avista Caxangá.
Cavalo bom,
o cavalo carl-carêta,
cavalo da cara preta
danado para isquipá(49).
Eu vou na mata,
vou cortá o pau linheiro
para ver se sou ligeiro
no cacete pra brigá.
Antigamente
Maceió era de páia,
lá na rua da Atalaia
ninguém pudia passá.
133
TIRI'oÀ - Mas é uni caso sério I Não tá ruim ? Ah I me lembrei cie
outro I Me lembrei de outro 1 ( Canta e dança, A VIÚVA, não
agüentando mais, cai na dança) .
11: de mariá,
é de mariá,
ô Maria, solte o bode
qui o cabrito qué andá
} bis
134
VxúvA - Qui voz melodiosa I Quem será?
HOMEM - (Fora) Sabe quem ?
VIÚVA - Pode entrá. Veiu sambá?
HOMEM - (Fora) Perfeitamente.
VIÚVA - Venha, suba, tá na hora,
NARRADOR - Aproxima-se da viúva um disconhecido, mas dizendo-se
qui é um grande conquista e vem sambá com a viúva para matar
o tempo. E a viúva, para matá as saudades, prossegue o côco para
vê se isquece.
HOMEM - (Sobe) Boa noite.
VIÚVA - Boa noite. O sinhô veiu sambá?
HoMEM - Perfeitamente. O meu chão é grande.
VIÚVA. - Tá certo. Você agüenta rojão?
HoMEM - Olha, você pra agüentá meu rojão prlcisa sabê requebrá.
VIÚVA - Mas eu não danço tuíste ..•
HoMEM - Eu também não. Eu danç9 é côco. Côco I Pra dançá o
tuíste é milhó não dançá.
VIÚVA - Então vamo s'imbora.
( Cantam e dançam)
135
V1ÚVA - Tá vendo? Não tem jeito, não. Eu danço até cum Satanás,
pronto. Eu não sei se eu tau perdida ! . Não tem jeito.
SATANÁS - (Fora).
Quem na vida m'inova
se o amô qui já foi meu ?
E já acabado o presidio
e agora me apariceu.
ô de casa l ô de casa!
VIÚVA - Quem é?
SATANÁS - (Fora) Sou eu T Sou eu I Brrr 1
V1úv A - Pode ví. Pode sambá.
-
NARRADOR - ll: quando o Satanás ouve a voz da viuva qui sempre
chama pelo seu nome: quem chama sempre pelo Satanás êle sempre
istá perto, não demora a surgir. Portanto, a viúva sempre ispera
um par para o samba.
SATANÁs - (Sobe) Boa noite.
VIÚVA - Boa noite, 0 sinhô veiu sambá? ,
SATANÁS - Perfeitamente. A senhora não gosta de samba?
V1ÚVA - Gosto, sim. Mas tau vendo qui não incontro é parêia ...
ô qui vida boa! Se não f&sse . o samba não tinha m'isquicido 1
SATANÁS - Pois vamo sambá. • -
V1ÚVA - O sinhô canta ou eu canto?
SATANÁs ~ Quem canta sou eu:
VIÚVA - Pode cantá,
( Cantam e dançam)
136
VIÚVA - Eu tenho a certeza
qui fico no meu paladá.
MENINO - (Fora) ô mãe, mãe I ô mãe 1
VIÚVA - Qui é, minino?
MENINO - (Sobe) Mãe, isso é o diabo.
VIÚVA - Isso é o quê, minlno?
MENINO - Isso é o diabo, mãe.
VIÚVA - Qui diabo, minino. Um cidadão tão direito, tão bem vistido ...
MENINO - Mãe, não tá vendo as antena dêle, mãe? Maló do qui a
Rádio Clube, mãe?
VIÚVA - Qui antena, qui nada, minino. Vai, vai, vai imbora ( MENINO
arreia).
SATANÁS - Mas no lugá qui tem mulhé e minino s6 dá essas coisas.
Qui minino abiúdo I Apôis o minino já disse que eu sou Satanás 1
VIÚVA - Não sinhô, não vá atrás disso não. Minino é assim mesmo.
Não s'importe, não... Vamo sambá.
V1úvA - E apôis 1
MENINO - Mãe, é o diabo! Vá vê, mãe.
•
VIÚVA - Deixa de besteira. Vai-t'imbora. Vai, vai,
SATANÁS - Ah, minino I Ah, se eu te pego lá no inferno! (MENINO
arreia)
137
( Cantam e dançam)
Eu tenho a certeza
qui hoje eu vou te levá.
VrúvA - Eu tenho a certeza
qui fico no meu paladá.
MENINO - (Sobe) ô mãe I ô mãe I Repare agora, repare agora I O pé
dêle é de pato 1
VrúvA - Eu vou repará somente pela sua curiosidade (Repara) Virgem
Maria I Tou perdida I Não é mesmo ?I
SATANÁS - Agora é tarde.- A sinhora não dizia qui dançav, até com
Satanás ? Pois tem qui dançá mais eu e agora vai para o inferno 1
MENINO - Tá vendo, mãe ? Tá vendo, mãe ? Tá vendo ? Por causa da
sinhora ns 6vamo tê vergonha I Tá vendo, mãe ?
VrúvA - Qui é qui eu faço? Meu sinhô, êsse minino é piquinininho,
ainda amamenta.
SATANÁS - Não tem nada. Lá no inferno tem uma vaca qui o leite
dela é solução de bateria. Dá muito bem pra êle.
MENINO - Num quero não, num quero não, seu gaiúdo, nãorquero não 1
SATANÁS - Isso aqui são meus biliro.
VrúvA - Minino, cala a bôca I Não diz qui a mulhé enrola até o
diabo ? Deixa vê se eu enrolo êle.
SATANÁS - Mulhé não me enrola. Eu sou batizado. E a sinhora vai
pro inferno e eu volto para buscá o seu cumpadre.
VIÚVA - Meu cumpadre é o professô Tiridá.
MENINO - Mãe, a parada do meu padrinho é dura. :!tle não agüenta
não, mãe.
SATANÁS - Então vamo logo. Vamo logo antes de dá meia-noite. Antes
de dá meia-noite.
VrúvA - Ai I Ui 1
SATANÁs - Bm 1
MENINO - Ui I Ai 1 (sATANÁs leva os dois}.
NAJU1AooR - O professô Tiridá, sentindo falta de sua cumadre e do
afilhado, vem à residência dos mesmos.
188
TmmÁ - Mas minha gente, ê pussive ? Nunca mais vi minha cumadre.
Vocês tem visto minha cumadre, êsses menino? Tem visto, tem ?
Voz No MEIO DO PÚBLICO - Não!
TmmÁ - Nunca mais viu ?
Voz - Não!
TmmÁ - Mas é pussive I Qui fim levou minha cumadre? Vocês não
sabe não?
Voz - Não 1
TmIDÁ - Eu vi dizê qui teve aqui um homc fazendo baruio... Terá
levado ela prêsa ? Eu vou procurá (Arreia) .
NARRADOR - O professõ Tiridá procura sua cumadre em todo lugá, mas
não acha. Então recebe um recado qui Satanás havia levado ela.
Mas êle não crê nessas coisas, não compreende nem que ixiste
inferno.
TmIDÁ - (Sobe) Eu acridito em besteira I Não tá vendo qui não
ixiste Satanás I Pra mim o inferno é o mundo e o Satanás é a
gente mesmo qui faz mal uns aos outro.
SATANÁS - (Sobe) Mas existe I Sou eu 1
TIRIDÁ - Oxente I Quem é você, meu feia ? ( 110)
SATANÁS - Eu me chamo Lusbel. Me chamo Lusbel. Sou eu o Satanás.
Quem fala no meu nome sempre istá me chamando. Eu não deixo
de tá perto de quem chama,
TmmÁ - E daí? E tá me interessando? (A parte) Mas danou-se,
rapaz I J;: feio I E fala I Taí: nunca vi boi falá. Isso é um boi.
Ôi o chifre.
SATANÁS - Já lhe disse qui são meus biliro, Eu vim aqui buscá o
sinhô qui sua cumadre tá no inferno mais seu afilhado e precisa
de você.
TnuoÁ - E é s6 vim buscá e eu i? Você sabe qui eu vou?
SATANÁS - Eu sou um pudê invisive. Você não pode cumigo.
TmmÁ - Invisive, 6ia I Eu com cada butão de ôio dêsse vendo êle 1.••
Invisive I Não, meu felinha, não vou não l •
139
SATANÁs - Você não vai? Você gosta de orgia?
T1RIDÁ - Gosto,
SATAN'.ÁS - Gosta de namorá uma dona boa?
TmmÁ - Gosto.
SATANÁS - Apôis no inferno tem amarela, morena, preta, de tôda qua-
lidade ...
TmmÁ - E você qué mais diabo bonito do qui tem em Pernambuco ?
Você sai com uma cesta e traz cheia I Não, meu filho, não vou.
Olhe o dedinho dizendo qui eu não vou lá. Tá vendo ?
ô -Benedito,
já diz qui não vou.
•
Por causa de você ...
Tome logo 1 ( Dá uma tapa em SATANÁS). Tá vendo?
SATANÁS - Olhe, o sinhô não dê não, O sinhô vai cumigo.
TmmÁ - Meu camarada, não é bom você pelejá qui eu não vou,
SATANÁS - Você não vai não? Você vai 1
TmmÁ - Eu vou. Deixe eu bebê água, ,
SATANÁS - Lá no inferno também tem água.
TmmÁ - Mas não é gelada I Deixe eu i bebê água qui eu vou.
SATANÁS - Pois vá bebê água .e volte em siguida. Você não sabe qui
não pode comigo ? Eu fui um anjo de luz, me rebelei contra o
Senhor e pur isso eu tou no seu reino e tle tá no dêle.
TIRIDÁ - Valha-me São Migué 1
SATANÁs - Não quero negócio com Migué qui a balança dêle roba
muito. Não quero negócio com Migué 1
TmmÁ - Posso bebê água ?
SATANÁs - Pode bebê sua água e venha logo antes do galo cantá.
TmmÁ - Sim sinhô ( Arreia e sobe com o cacête). Tá meu camarada,
não tinha água não, eu trouxe essa choca-cola pra você. Eu tomo
o líquido, lhe dou a tampinha, você concorre a um grande prêmio
e, ganha uma lembreta(lll).
140
SATANÁS - Não preciso de lambreta. Eu me conduzo nos espaços. Eu
sou um gênio.
TmmÁ - Eu também sou um gênio da cacetada. Qué me levá mesmo ?
SATANÁs - Perfeitamente.
TmmÁ - Então emburaque pra vê onde tá o defeito. Olha: daí pra
trás (Lutam. TmmÁ dá duas pauladas em SATANÁS). Dois a zero
no placar 1 (Lutam).
SATANÁS - Bé I Beeeé I Brrr I Brrrr 1
T1RIDÁ - Não, aqui não é chiqueiro não 1 ( Lutam e debaixo das cace-
tadas SATANÁS arreia).
Eu tomei muita aguardente,
comi muito amendoim, }
o maiorá do inferno bü
correu cum mêdo de mim.
141
Na época em que o Teatro Popular do Nordeste estava
preparando a montagem da peça de Ariano Suassuna, A pena
e a lei, cujo primeiro ato é feito à maneira do mamulengo,
andei atrás de tudo quanto foi mamulengueiro do Recife
para mostrar o divertimento aos atôres que deveriam imitar
os bonecos. Uma noite~ no meio da rua, encontrei Ulll homen-
zinho que movimentava uma casa de farinha com bonecos
dos mais interessantes. Tudo feito por êle. Era magro, ama-
relo, com cara de quem passa fome, gago e dizia chamar-se
Benedito. Confessou que era também mamulengueiro e ven-
tríloquo. Contratei-o por ser mamulengueiro e o apresentei ao
elenco duas noites depois, na sede do Gráfico Amador. O
homem era formidável e praticava um dos mamulengos mais
inteligentes que já vi. Não se chamava Beneditq. coisa ne-
nhuma. Benedito era o nome do boneco principal, um pre-
tinho ardiloso e sabido, descendente de Karagós e Polichinelo.
me tomara o nome do boneco e usava mão de mil ardis para
-esconder o seu próprio. E mais: antes de cada função apre-
sentava-se como ventríloqu·o com um outro Benedito de quase
meio metro e seu orgulho consistia antes nisto do que no
espetáculo.
Seu repertórió se compunha de trinta e três comedinhas
com as histórias extraídas do romanceiro, dos fatos do dia,
do folclore, com os diálogos em sua maior parte improvisa-
dos. Duas delas eram verdadeiras obras-primas: A cobra que
engole o povo e O preguiçoso. O assunto desta última vinha
da literatura de cordel e foi graças à sua inspiração que
Ariano Suassuna escreveu a peça talvez mais importante do
seu teatro: Farsa da boa preguiça, que lancei no Teatro de
AreI)a do Recife. Um dos seus tipos - Olares ( corruptela
de Olá) , assim chamado poFque a tudo quanto lhe pergun-
tavam respondia: "Olares I" - foi por mim aproveitado na·
142
peça O cabo fanfarrão; e seu Benedito foi um dos heróis do
mamulengo nordestino mais importantes que conheci: armava
e resolvia intrigas, distribuía pancadas, amava, enganava, cas-
tigava os maus e defendia a honra das mulheres. Um paladino
popular.
Benedito desapareceu como se a terra o tivesse engolido.
Nunca mais se soube dêle. Dizem que arranjou um emprêgo
no Rio de Janeiro e mudou-se para lá, mas o fato é que o
Nordeste perdeu um dos seus mais importantes artistas.
Entrevistei vários mamulengueiros de nossa região para
estabelecer as características do nosso teatro de bonecos na
realização desta pesquisa sôbre esta forma realmente dramá-
tica do teatro popular. Além da convivência que mantive
com vários dêles, tomando sua cachaça e seu café, ouvindo
particularidades de sua vida e convivendo com sua família,
gravei suas conversas e seus espetáculos, submetendo-os a um
questionário que procurava abarcar todos os aspectos de sua
vida e de sua arte. Eis o questionário:
Nome - Apelido - Filiação - Profissão - Sabe ler e
escrever ? - Idade - Estado civil - Onde nasceu - Tem
filhos? Quantos? Homens? Mulheres? - Já viajou? -
Fuma, bebe, joga ? - Quantas profissões já teve ? - O ma-
mulengo dá para viver ? - Brinca o ano todo ? - Há quanto
tempo brinca ? - Fora do mamulengo, para quem trabalha ?
- Quanto faz numa função ? - Em que lugares já brincou ?
- Já foi ajudado por alguma entidade ? - Como começou?
- Brinca sozinho ? - Arrecada dinheiro do público ? - Quem
faz os bonecos ? - Quem os veste ? - Quem os pinta ? - O
público gosta da brincadeira? - Já sofreu campanhas? - Só
representa para fazet rir ? - Já fêz alguma peça religiosa?
- Quantas peças tem? - Nome das histórias - Nome dos
bonecos - Assuntos - Inventa as histórias ? - Acredita nos
bonecos ? - Que tipo de boneco prefere: a) de luva; b) de
haste; e) de fio - Brinca com música ? - Quem compõe a
música ? - E os versos ? - De que se ,,propõe a orquestra ?
Várias respostas são idênticas a todos êles. Por exemplo :
o mamulengo não dá para viver e o mamulengueiro precisa
exercer uma outra profissão, quase sempre exaustiva; nenhum
143
dêles foi ajudado por qualquer entidade: prefeitura, associação
cultura], departamento de educação ou coisa que o valha;
todos declaram que brincam sozinhos, o que é mentira, pois
tôda. função a que assisti sempre os vi ajudados pela mulher,
pela fiJha, por um menino ou mesmo por um "secretário"
qualquer; todos arrecadam dinheiro do público, cobrando
entrada quando em ambiente fechado, fazendo um contrato
quando se trata de aniversário ou correndo o chapéu quando
ao ar livre; todos responderam que faziam os bonecos, mas
no decorrer da conversa um ou outro deixava escapar que tal
ou qual boneco tinha sido feito "pelo seu compadre Fulano
de Tal". Vi até, num dêles, três bonecos americanos,. que Jhe
tinham sido presenteados por u,m ricaço do lugar, que trouxera
dos Estados Unidos "os bonecos bonitos". Representam para
fazer rir e para isto lançam mão de todos os movimentos, das
frases mais loucas e das obscenidades mais agudas.
Com exceção do mamulengo de José Petronilo Dutra, em
Lagoa Nova (Surubim), onde não existe um personagem prin-
cipal, todos os outros possuem um tipo mais importante que
comanda o espetáculo: Benedito, Cabo 70, Professor Tiridá,
João Redondo. E com exceção de João Redon~o, que é
branco, os demais heróis são prêtos, na intenção clara "de
pintar a bravura do prêto, ressaltando o valor da raça negra".
Vale-se, assim, o artista popular daquilo que os eruditos cha-
mam de "arte comprometida", lançando mão dêste veículo
para gritar de público as qualidades e o desassombro daqueles
que são humilhados na vida real. Bofetada em nossa pre-
tensão, em nossa besteira, porque "todo brasileiro, mesmo o
alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e
no corpo - há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica
pelo Brasil - a sombra, ou, pelo menos, a pinta do indígena
ou do negro" ( 112 ).
O mamulengo de Manuel Amendoim, em Goiana( 118 ),
chama-se Babau e isto já foi explicado, mas essa figura pouco
( 52) Palavras iniciais de Cua-grande e sen:i:ala, de Gilberto Fu:YBB, Livraria
José Olímpio Editôra, 4.• edição, definitiva, Rio de Janeiro, 1943.
(53 ) Goiana é, em Pernambuco, a cidade onde ainda existem tõdas u
manifestações folcl(>rlcas: bumba-meu-boi, maracatu, caboclinhos, ciranda, pastoril,
·p diabo a q~atro,
144
ou quase nunca aparece. Manuel Amendoim usa cinco tipos
de bonecos: o de luva é o mais comum, manejado pelos dedos
polegar, indicador e médio; o de haste, onde o boneco é
manejado por uma vareta enfiada na parte inferior; o de fio,
puxado por baixo e não por cima, movendo apenas os braços
e a articulação da bôca; a simples boneca de pano, que o
titeriteiro segura pelas pernas; e os animais de corpo inteiro,
pegados com a mão pela barriga. Os bonecos são feitos de
mulungu, madeira tirada de uma árvore leguminosa-papilio-
nácea e muito fácil de talhar, com exceção do Peixe ( Goiana
sofre a influência do mar ), que é feito de chifre de boi, com
imitação de escamas.
Manuel Amendoim declarou a princípio que fabricava os
bonecos, mas acabou por confessar que eram feitos por um
seu parente, de nome Manuel Guilherme Tio, morador em
Varjão, Aliança, enquanto as roupas são compradas, mandadas
fazer por encomenda, dentro ou fora de casa.
As figuras principais são: Benedito, Jacaré, Balula, Doutor
Gezonito, O catimbozeiro, Isália, Seu Lapa, Boi Melão( 54 )
O cavalo Azulão, O vaqueiro, Limoeiro, Tira-figo( 55 ), Mariaci
(Maria cibola, de cebola), Cabo 70, A morte, O urubu, A
cabra, A raposa, Tucano do Pará, A onça, O delegado, Dona
Loló e o Capitão Lamora, êste último corruptela de Lavor,
que foi coletor naquela cidade e que se insurgiu contra o seu
nome no "brinquedo".
Manuel Amendoim, para viver, já que o mamulengo não
dá para isso, trabalha no cmte de lenha para fazer carvão e
considera o mamulengo um "brinquedo de pobre". Arma sua
tenda todos os sábados no oitão de um bar, com quem tem
contrato, possibilitando, pela afluência de muita gente, a venda
de bebida e a freqüência a um salão de jôgo que existe nos
fundos do estabelecimento. O nome certo do mamulengueiro
é Manuel Guilherme da Silva e seu apelido - Amendoim -
vem do fato de que, quando começou a trabalhar, era tão
pequeno que mais parecia um amendo~. Não sabe ler e
145
Manuel Amendoim, mamulengueiro de Goiana, exibe um boneco
de haste ( Foto Janice Lobo). '
146
B•mcco de fio movido por baixo, de Manuel Amendoim
(Foto Janice Lobo).
147
Barrac;a <le palha de ~fanucl Amendoim, armada no meio
de uma rua tlc Goiana ( Foto Janicc Lobo). ,
148
com o mamulengueiro, levar recados, brigar com o público.
Outro serve de intermediário entre o boneco que lhe dá o
lenço e o espectador que dá a sorte, quando o lenço é colocado
no seu ombro. O espetáculo é, então, uma mistura de bonecos
e gente de carne e osso e deveria fazer as delícias de Brecht,
que prega o anti-ilusionismo no teatro. A participação do
público é total; dialogando e incitando os bonecos, embora já
conheça tôdas as histórias. A mesma coisa acontece com o
mestre de cerimônia, que parece estar desempenhando o seu
papel pela primeira vez, tal o interêsse demonstrado, com os
olhos brilhando, contorcendo o corpo, dando gargalhadas.
Estamos diante de um espetáculo integral, onde o público
se funde com os bonecos-atôres, subvertendo as unidades de
tempo, lugar e ação, deixando sôlta a imaginação dos espec-
tadores. :E: uma fusão, além disto, do espetáculo dramático com
a forma espetacular do music-hall: diálogos, cantos, danças,
pantomima, acrobacia.
Tem-se a impressão de estar assistindo a um espetáculo e
a um ensaio ao mesmo tempo, sem que o interêsse diminua um
instante. O boneco mesmo é quem manda a orquestra começar
ou parar. Quando a orquestra não obedece, todo mundo -
ajudantes e público - grita: "Pára ! Pára I Não viu Benedito
mandar parar?"
No interior da tenda, feita de palha, com um cobertor
em cima para não estragar os bonecos nas cenas violentas,
estão três malas onde os personagens repousam, em ordem,
à espera de entrar em cena. Uma mulher e uma menina vão
entregando os bonecos a Manuel Amendoim que interpreta
com a voz, a cara, os gestos e o corpo, sapateando, suando
em bicas, um espetáculo à parte:
"Tá vendo ? Eu invento as histórias de acôrdo com a
figura". E nesta declaração está contido todo o seu entrosa-
mento com o personagem de madeira, o seu ato poético.
Antes de começar o espetáculo pràp~amente dito, os bo-
necos se exercitam em pequenos números musicais, cantando
e dançando, possibilitando o primeiro contacto com o público.
149
.
,
AS TRAPAÇAS DE BENEDIT0(56)
Comedinha de MANUEL AMENDOIM
•
( 56) O titulo foi criado por mim para ligar o personagem a Scapln, de
MouÊIIE, figura descend ente dn Commcdia doll'arte, identificada, portanto, com o
espfrito do mnmulengo. O espetáculo, a rigor, consta de várias peclnhas que U,m
Benedito como figura principal,
PERSONAGENS:
153
tudo em n6s terminou,
ai, ai, meu Deus 1
Ai, ai, meu Deus,
nosso amô morreu 1
Vai, procura outro infeliz
qui seja milh6 do qui eu(GT),
( Agarra novamente CmQVINHA e dança com ela).
BALVLA - Qui foi isso ? Qui é isso a{? Qui é isso ai?
CmQUJNHA - Aiiiii Ili
"Voz NO MEIO DO POVO - Olha fua filha, Balula 1
BALVLA - Hein?
Voz DO POVO - Olha tua filha 1
BALULA - E eu mandei essa danada vi pra essa dança ?!
QUITÉRIA - Chega acudi a fia da gente, Bala 1
BALVLA - Hein? (ZÉ DAS MÔÇAS vai dançando com CmQVINHA e o
derruba).
BALULA - Já me dero um baque 1
QUITÉRIA - ô home mole I Eu hoje arrumo outro marido, te deixo,
quizila assada 1
154
CHIQUINHA - Ailli 1 ( ZÉ DAS MÔÇAS derruba BALULA de nôvo).
CHIQUINHA - Allii 1
QUITÉRIA - Vamo tomá 1
CHIQUINHA - Aiüi 1
( BALULA investe a mêdo, mas não chega a tomar a menina,
que dança com ZÉ DAS MôçAs. Recua. ZÉ DAS MôçAs con-
tinua dançando).
Voz - Tui
BALULA - Eu sou um home, rapaz. (Para a orquestra) Cadê o tom?
o HOMEM DE FORA - Tá lá embaixo.
BALULA - Aonde?
0 HOMEM DE FORA - Lá fora ( 60).
Tooos (Cantando)
Correu de mêdo,
correu,
correu de mêdo 1
155
ZÉ DAS MÔÇAS - ( No ritmo da música, agarrando CHIQUINHA nova-
mente e dançando com ela) :
Comigo 1
Comigo 1
Comigo 1
BALULA - Venha, minha filha 1
ZÉ DAS MôçAs - (Continua)
Agora 1
Agora 1
Agora 1
Agora 1 •
Agora 1
Comigo 1
Comigo 1
Comigo 1
Comigo !
Comiiiigooo 1
Acabado o samba 1
HOMEM DE FORA - Acabado o samba ?
,
ZÉ DAS MôçAs - Essa môça não qué dançá comigo. Qui é qui a
senhora entende?
- HoMEM DE FORA - O q uê ? P,u quê ela não qué dançá com você ?
Voz NO MEIO DO POVO - Porque o senhor é feio que é danado. Tem
cara de pamonha ...
ZÉ. DAS MôçAs - Mais bonito do qui eu é um aleijado. Agora, o
seguinte é êsse: 6i, vá-se embora e venha outra, qui o home não
nasceu s6. Deixe qui venha outra, vá-se embora.
UM MENINO NO MEIO DO POVO - Sabe pÓr quê ela não te qué?
ZÉ DAS MÔÇAS - Sim.
MENINO - Porque tás sujo, rapaz.
ZÉ DAS MôçAs - Ah, eu vou trocá de roupa, qu i meu irmão morreu
e dêxou um baú de roupa ( Sobe MARIA JosÉ). Ah, minha fia, o
.senhora tá pra mim, hein? hein?
Voz No MEIO DO POVO - Como ·é o nome da senhora?
156
( O mamulengueiro sopra para a môça que o ajuda: "Diga :
Maria José").
MARIA JosÉ - ~ Maria José.
ZÉ DAS MôçAs - Ah! então eu sou José d e Maria. Tá pra mim.
Vou então trocá de roupa.
O HOMEM DE FORA - Vá logo, Zé das Môças.
( ZÉ DAS MôçAs desaparece e volta imediatamente).
( MÚSICA. DANÇA).
ZÉ oAs MôçAs - (Dançando com MARIA JosÉ).
Agora!
Agora!
Agora!
Agora!
Comigo 1
Comigo!
Mas eu me chamo seu Zé das Môças,
agora mesmo tou queimando as alpragatas.
Seu Benedito mas porém é gente boa,
lá na beira da lagoa
êle roubou quatro patos.
(Termina o canto e as figuras descem) .
BENEDITO (Sobe)
MÚSICA
•
ô boa noite pro dono da casa
ô boa noite pra sua senhora. bis
157
- ô-lô, ô-lô, quem é qui fala ?
- ll: Benedito, tá chegando agora, - bis.
o HOMEM DE FORA - ô Benedito l
BENEDITO - Hein ?
O HOMEM DE FORA - Sabe qui Zé das Môças disse aqui?
BENEDITO - Sim.
O HOMEM DE FORA - Disse qui você roubou quatro patos na lagoa e
qui você não vinha hoje cá não.
ZÉ DAS MôçAs - (Aparecendo) Eu disse isso ?
PÚBLICO - ( Em côro) Disse l .,,
BENEDITO - tle disse pra fazê puxa onde ?
O HOMEM DE FORA - Tá fazendo puxa no hoté de Zé da Tapa.
BENEDITO - No hoté de minha mãe?
0 HOMEM DE FORA - Foi.
ZÉ DAS MôçAs - Eu disse isso?
PÚBLICO - ( Em côro) Disse l
BENEDITO - ( Declamando)
,
Benedito véio da fiança,
cabelo no peito qui dá trança,
mundrunga de pau sêco jereba
é pau qui iõ:verga mas não se quebra.
Moro na grota grande,
querido das môças,
dador de lapada,
endireitador de cacunda.
ZÉ DAS MôçAs - ( Dando a puage) ( 61) .
Minha mala é o saco,
cadeado é o cordão,
cabeceira eu faço do braço,
comigo é na inhanha,
matando porco,
tirando a banha.
158
BENEDITO - Nesse caso eu não quero matá um peste aqui, vou-me
embora ( ZÉ DAS MôçAs dá uma cotucada nêle). Ai, qui êsse
perdiz vai querê hoje l
Zf DAS MôçAs - Canta o côco l
BENEDITO - Eu vou cantá qui eu não sou assombrado com home.
Purquê minha mãe sempre dizia a mim:
Venha cá, meu nêgo prêto,
todo tostado do sol,
qui eu por prêto não te injeito,
quanto mais pretinho milh6,
meu xodó.
Zf DAS MóçAs - Seu Benedito, eu não sou contra o sinhô ( BENEDITO
dá-lhe uma cacetada). Seu Benedito !...
BENEDITO - Você é safado mesmo, seu Zé das M6ças 1
ZÉ DAS MÔÇAs - Seu Benedito l ...
BENEDITO - Agora você qué botá fogo em mim I Eu vou-me embora
qui não quero matá um aqui.
159
BENEDITO - Chame seu marido, chame quem você quisé, mas aqui se
porte direito, viu ?
ZÉ DAS MÔÇAs - Você não tem qui se metê na minha brincadeira qui
você é um pouco inxirido.
BENEDITO - Você disse qui nêgo não dá certo pra dançá com uma
môça. . . Agora apanhou a môça e apanha você.
MÃE DE ZÉ DAS MÔÇAs - Meu fio tem andado em tudo fuá, nunca
fêz encrenca.
160
CABO 100 - Qui é isso aqui ?
BALULA - (Apanhando) Ai eu, ai eu 1
O HOMEM DE FORA - Segura êle, Zé das Môças 1
BALULA - Minha gente, socorro. Ôi o homem puxando a fac a 1
MÃE DE ZÉ DAS MÔÇAS - Ai minha bucecha 1
O HOMEM DE FORA - Segura êle, Zé das Môças 1
BALULA - ôia o inspetô, ói o inspetô 1
QurrÉRIA - ôia o inspetô, seu safado 1
CABO 100 - ôia o capitão, nêgo safado I ôia o capitão, nêgo safado 1
ôia o capitão, nêgo safado 1
Feijão queimou,
quero vê feijão queimá.
Menina, leva nta a saia,
quero vê poeira voá.
( Acabada a música, volta o CABO 100).
161
CABO 100 - Hein P
o HOMEM DE FORA - Deixa de brabeza qui é milh6.
CABO 100 - Brabeza, não. Botá brincadeira sem tirá licença I Isso é
de home ou de cabra safado P
o HOMEM DE FORA - :tle tem licença dêle.
CABO 100 - Tem licença o quê I Já viu nêgo tê licença 1 (Sai).
Vaz. DO MAMULENGUEIRO - (Para o Homem de Fora) ô Manuel, vá
onde tá seu Saiu e peça duas espolêta e um cartucho de polva.
DoNA S1cUNDINA - (Entrando) ô, sô, já houve baruio aqui P
0 HOMEM DE FORA - Já_.
•
DoNA S1cUNDINA - Dero em Benedito P
Voz NO MEIO DO POVO - Não I Como é seu nome P
DoNA SICUNDINA - Dona Sicundina, meu fio, eu ( Sai).
INTERLÚDIO - Surge um caboclo que dança e canta:
O CABOCLO - Quando eu vim de lá de cima
qui passei no Catolé, - bis
me chamam de cabôco, ,
tocadô de São José. - bis.
(Sai).
162
de querê beijá a fia dos outro. Isso é de home ou é de cabra
safado ? Eu trago minha fia pra essa dança purquê é bom. A gente
tem direito de tê duas fias e mexê na dança, purquê com as
meninas a gente tendo a fia da gente não mexendo num baile,
numa ciranda, numa coisa, nunca se casa, não é, minha fia ? E
eu andando com minha fia prum baile, pra tudo, não é ?. . • Agora
eu vim fazê pra mode se tu é home é hoje, pra você beijá essa
menina.
SEU LAPA - Cadê o home? Beija qui eu quero lhe furá até no caroço
do ôio 1
BENEDITO - ( Ao público) Eu beijo ?
PÚBLICO - ( Em côro) Beija 1 ( BENEDITO dá um beijo longo e espa-
lhafatoso na filha de SEU LAPA) .
SEU LAPA - Beijou !. . . ( Noutro tom) Minha fia, a senhora se ajunte
com home branco, mas não se ajunte com home ...
Vcn. NO MEIO oo POVO - Mete o quiri( 63) nêle, Benedito 1 ( Benedito
dá-lhe uma ~ancada).
SEU LAPA - Ai I Quase pegou meu pé. (Descem)
163
LIMOEIRO - Pois bem, você diga a êle qui Limoeiro teve aqui e tem
um negoço com êle. Diz qui êle é home, então deu umas pan-
cadas num véio. Deu mode uma môça, não é? Isso não é de
home, êle vai prêso hoje de tôda fonna. E então vem um tal de
. Zé Rasgado aí, viu ? Cuidado nêle. ( Entra a filha de LIMOEIRO)
Minha fia, você não venha pra essa dança não, é um conselho qui
eu vou lhe dá, José Rasgado vem aí e é muito desord eiro, viu?
A senhora vai-se embora, vá pra sua casa, qui a senhora hoje não
é dia de dança, não. ( S:1em )
INTERLÚDIO - MÚSICA
JoÃo REDONDO - João Rt:dondo. Toque pra seu Redondo dançá com
uma menina aqui.
MÚSICA. DANÇA.
Aparece o Jacu e belisca a môça.
IsÁLIA - Ai I Ai I Ai 1 (Desaparece)
164
JoÃo fü,1.>0NOO - O passo ( 04) da mãe de Benedito beliscou a menina.
Ai I Ai 1 ( O pássa ro belisca joÃo RE1JON1>0 )
A MÃE DE BENEDITO - ô Manuel, seu passo beliscou alguém por ai ?
O HOMEM DE FORA - Beliscou seu Redondo.
A MÃE DE BENEDITO - Beliscou seu Redond o, foi?
0 HOMEM DE FORA - Foi.
A MÃE DE BENEDITO - Ah I Ah I Ah I Eu acho é bom I Ohn I Ohn 1
Ohn 1
O HOMEM DE FORA - Beliscou seu Redondo e uma môça ai 1
A MÃE DE BENEIJITO - Beliscou seu Redondo I Obá 1 (Desaparece)
( 64 ) O pássaro.
165
ZÉ RASGADO - ô cabra safado I Você correu mesmo e você é safado 1
( Mostrando o traseiro) Atire aqui I Atire I Atire aqui 1
BENEDITO - Seu Zé, eu atiro mesmo.
ZÉ · RASGADO - Atire, cabra safado I Você atira num home com êsse
cofóide ((61!) Safado I Correu e correu... (Leva uma paulada)
ôi I você não é home não, é bagaço qui apanha pra tudo. Você
é acostumado a dá em todo mundo, mas você não dá em mim
não, cabra safado. Fio da peste I Atira aqui 1 ( Mostra o traseiro
novamente)
BENEDITO - Já, já, atiro no sinhô.
ZÉ RASGADO - Atire 1
V<n NO PÚBLICO - Cuidado pra não negá fogo 1 ( BENED;o sai)
ZÉ RASGADO - Cadê o nêgo ? Correu de nôvo. (Canta)
Correu de mêdo,
corresse,
com mêdo de apanhá.
V<n DE MULHER - Lá vem a barra do dia,
será o dia, será.
,
( BENEDITO volta e luta com ZÉ RASGADO, encostando-lhe o
cano da pistola no ôlho. ZÉ escapole e BENEDITO dá-lhe um
tiro( oo), errando. Briga de pau e foice)
V<YZ.Es DO PÚBLICO - Dá aquela cabeçada nêle, Benedito I Mata êle,
Zé I Segura êle 1 ( BENEDITO abate ZÉ RASGADO, dando-lhe violentas
pancadas nos testiculos)
· ZÉ RASGADO - Aí, não I Pelo amor de Deus I Aí, não l ( Morre. Todos
fogem, inclusive BENEDITO. Surge o DIABO)
O DIABO - Agora tu vai pras profunda 1
A ALMA DE ZÉ RASGADO - Ai qui eu não vou não 1
O DIABO - Vai e é agora mesmo 1 (Lutam)
V<YZ.ES DO PÚBLICO - Diz "cruz", Zé Rasgado I Cruz I Cruz 1
UMA voz - Não diz "cruz" não, se não êle não leva 1( 67)
( 65) Palavra Inventada: coisa que nlo vale nada, porcaria,
.( 66) l!: um tiro mesmo, com a pólvora e a espolêtà que Manuel Amendoim
mandou o mestre de cerimônia buscar. no bar de Sllu,
( 67) Diálogo entre os espectadores,
166
(o DIABO leva a alma de ZÉ RASCADO) MÚSICA.
JOANA TRAÇAIA - (Aparece) Eu me chamo dona Joana Traçaia 1
BENEDITO - (Aparecendo) Opa, minha sogra, você veio hoje P·
JoANA TRAÇAIA - Eu vim, Benedito, eu vim. Agora o seguinte: eu
trago a minha fia e quero dançá também.
BENEDITO - Tá danado é isso 1 ( Começa a alisar JOANA TI\AçAIA)
I sso quando era môça . .. 1
JOANA TRAÇAIA - Deixe de brincadeira dura, Benedito. Deixa de
brincadeira I Ai, meu bucho 1
O HOMEM DE FORA - ô Benedito 1
BENEDITO - ti!
o HOMEM DE FORA - Pega no braço dela 1
BENEDITO - t minha sogra, rapaz. (Canta)
- Sá Maria não ama imbingada
- Divagá, meu sinhô, sou casada. - bl&
SEU EsPARRA - (Surgindo) Eu me chamo seu Esparra.
JoANA TRAÇAIA - Seu Esparra, tem o seguinte: eu vou dançá mais
Benedito, mas cuidado com meu bucho. Ôi, quando eu vim pra
Benedito você não vem não. Quando eu voltá pra você Benedito
não vem, viu, Benedito P Qui eu gosto do samba mas não gosto
da patifaria.
BENEDITO - ô, minha sogra I Isso era bonita 1 (Canta)
- Sá Maria não ama imbingada
- Divagá, meu sinhô, sou casada. - bl&.
DANÇA.
167
BENEDITO - Sustenta o cordão da saia, véia danada 1
168
A FILHA - Papai !tt
SEu LAPA - Segura! ( E ntra FILOMENA)
Voz NO MEIO oo PÚBLICO - Como é qu i você se chama?
FILOMENA - Eu me chamo Fulomena.
Voz - ôia a cobra, Filomena.
FILOMENA - Ôi ?
SEu LAPA - A menina veio mais eu, cheguei aqui, meti o pau, a cobra
carregou.
SEu LAPA - Acuda qui a cobra engoliu minha fia e engoliu minha
muié.
BENEUITO - E você não fêz nada, home ?
169
SEu LAPA - Vá, seu Benedito.
BENEDITO - Vá você na frente 1
SEu LAPA - Vou nada 1
BEiilEDITO - Você vai 1
SEu LAPA - Vou nada 1
BENEDITO - Vai no cacête, mas vai 1 ( Mete-lhe o pau )
SEU LAPA - Ai I Ai I Ai 1
BENEDITO - Anda, infeliz 1 (Empurra Sru LAPA para junto da cobra.
SEu LAPA solta um peido e é agarrado pela cobra que desaparece
com êle)
MÚSICA, CANTAM E DANÇAM
.
Dono da casa,
quem quisé brincá ciranda,
vai a outra dança,
qui já tem moderna.
Qui eu perguntei
o nome da cirandeira,
era a vizinha
lá do pé da serra.
,
BENEDITO - E boa noite pro dono da casa
e boa noite pra sua senhora.
- ô-lô, ô-lô, quem é que fala?
- :t Benedito, tá saindo agora.
Boa noite, meu povo todo, qui Nossa Senhora da Conceição proteja
a gente tudo e até outra vez, se Deus quisé,
E boa noite pro dono da casa
e boa noite pra sua senhora.
- ô-lô, ô-lô, quem é que fala?
- :t Benedito qui já vai s'imbora.
... 170
J;: impossível transcrever o colorido e a riqueza da im-
provisação, as inflexões, os movimentos do espetáculo, cujo
texto apenas se aproxima do que é a representação de uma
peça como esta que foge ao sentido mais restrito do teatro, o
público dela participando com um interêsse e uma verdade
impressionante.
O espetáculo de Manuel Francisco da Silva, de Cabedelo,
é menos colorido e quase não tem uma ligação, embora arbi-
trária, como o de Manuel Amendoim. Também se chama
Babau e no pano de bôca, armado numa sala, está escrito:
"Babau ispetaco-comedio" ( 68 ). São duas as figuras principais:
João Redondo, que aparece sempre de cigarro aceso no canto
da bôca, e Benedito, que troca o e e o s pelo x.
O Manuel de Cabedelo é verdureiro e está com trinta e
cinco anos. D eclara-se "solteiro, livre e desimpedido, mas vive
com uma mulher", tendo nascido em Bananeiras, na Paraíba.
Antes de ser verdureiro matou bode, foi almocreve, trabalhou
no eito, foi garimpeiro, cavouqueiro, palhaço de circo e "ar-
tista". Brinca há nove anos e sempre em recintos fechados,
cobrando 20 cruzeiros por uma entrada. J;: um verdadeiro
saltimbanco, tendo percorrido os seguintes lugares: Natal,
Ritinha, Cajueiro do Norte, Galinhos, Dois Irmãos, Pedras
Pretas, Morro Azul, Lagoa de Sal, Zumbi, Praia de Carnaúba,
Barra de Apudi, Barra de Maxaranguape, Rio do Fogo, Barra
de Coroa, Cinza Velha, Vage (Várzea) do Milho, Rio do
Meio, Baixa Verde do Norte, Maracajaú, Paràzinho e Inde-
pendência, no Rio Grande do Norte; Serra do Bico da Arara,
Belém, Brejo dos Santos e Brejo das Freiras, no Ceará; Catolé
do Rocha, Cajueirinho, Vila de São João, São Bento dos Mor-
tos, Jucá, Salgadinho, Patos de Espinhara, Triângulo, Estacada,
(68) Tradução: "Babau, espetãculo de comédias" ,
171
Pomhal, Lagoa dos Cavalos, Soledade, Campinote, Campina
Grande e Cabedelo, na Paraíba; e Vitória de Santo Antão,
Nazaré da Mata e Paulista, em Pernambuco.
~le mesmo faz os bonecos, pois é "mestre de fazer e
brincar", Perguntei-lhe quantas peças tinha e o nome das
histórias e êle me respondeu: "Cada boneco tem a sua poesia".
Os bonecos chamam-se: Capitão João Redondo, Benedito,
Doutor Pilão Deitado, Cabo Zé Fincão, Doutor Zé Siqueira,
Brabo Tinteiro, Zé Calo, Dom Futusco ( O Diabo), Dona
Maroguinha (mulher de João Redondo), Dona Cocota, Dona
Juvita, Maria Branca, O boi, O jaraguá( 69 ), Seu Obá, Alma
Nova, A cobra sicuri, O cachorrinho Piaba, A onça Cenoca,
Garrote lavrado, O calàngo, O índio Jurupiara e dois -<:oquistas.
Usa bonecos de luva, de haste e de fio. "Eu brinco com
boneco de dedo, de pau com cordão por baixo e com boneca
de pano." A orquestra se compõe de uma rabeca tocada por
um cego e por êle mesmo feita e de uma gaita, produzindo os
sons mais estranhos e mais desafinados que se possa imaginar.
Começou a brincar com Miguel Relâmpago, de quem viu
um espetáculo durante tôda uma noite, no dia seguinte escul-
pindo um João Redondo, para entrar na "brincadaira do mo-
lengo". Acha que o mamulengo nasceu na Bahia, de uma '
negra ~scrava e sua versão já foi mencionada nesta pesquisa.
Seu espetáculo, como todos os de mamulengo, é arbitrário,
· interpondo as várias cena~ sem qualquer seqüência lógica, a
ação passando abruptamente de um salão de baile a um
campo onde o negro Benedito luta contra uma cobra, voltando
novamente ao baile, de lá saindo para enfrentar um garrote
brabo ou uma onça pintada.
Altimar de Alencar Pimentel diz, com muita razão: "O
que tudo nos faz crer é a intenção de pintar a bravura do
prêto na gradação em que o baile prossegue e cresce a tensão
(conflito) entre o dono da casa e o prêto intruso".
Tôdas as figuras de mulher são representadas por bonecas
de paM, pois êste é o seu sentido da beleza. Confessou-me,
172
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Como é movimentado Seu Ob6 e como se processa a articulação da bôca.
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O mamulengueiro Manuel Francisco da Silva, ele Cabeelelo, com o autor
desta pcs<1uisa, diante ele sua tenda ( Foto M. Clemente).
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177
João Redondo e o Dr. Zé Siqueira conversam antes do baile
( Foto M. Clemente).
,
Chegou o dia,
a saudade não levará.
Meus senhores
não repare o meu cantá
179
Chega Benedito ( Foto M. Clemente).
,
181
Benedito tlá uma surra cm João Redondo (Foto M. Clemente).
E sôbre o dinheiro:
S6 queria sê dinheiro
para andá de mão em mão,
estaria de palhaço
no banco de um barracão.
Estaria na quitanda
ou na mão do contadô.
Eu queria sê dinheiro
até de um jogadô,
tirava de quem perdia
po bôlso do jogadô.
183
O Dr. Zé Siqueira, que havia sido expulso da dança, arma-se
e vem matar Benedito ( Foto M. Clemente).
,.
185
Bcne<lito mata o a<lvcrsúrio ( Foto M. Clemente).
,
•
( 71 ) Soutien.
187
Dom Futnsc-o vai levar a alma do 1111c morreu (Foto M. Clemente).
191
•
-
HAJA PAU
JosÉ DE MoRAEs PINHO
PERSONAGENS :
TRÊS FIGURAS
MULHER •
M ENINO
HoMKM
PRÓLOGO
195
o menino comeu tudo,
só deixou
somente os ossos
pra seu pai.
- Quem mandou essa comida,
meu filho?
Foi minha mãe,
meu pai.
Só mandou mesmo os ossos,
meu filho?
S6, inhô sim,
meu piú. ,.
O homem indignado
voltou depressa pra sua casa
e sob as vistas do filho,
Que lá de cima de um pau gritava:
Haja pau, haja 1
Haja pau, hafa 1
surrou sua mulher ...
196
As três figuras desaparecem na penumbra, repetindo o
canto do pássaro :
Haja pau, haja 1
Haja pau, haja f
PRIMEIRO QUADRO
MENINO - Oxente, minha mãe, pássaro não cai não I Eu tou voando ...
MULHER - Vai, desce logo I E. . . por que já não falou, seu malu-
quinho ? .. .
197
Mn.1NO - Pássaro não !ala, minha mãe. Às vêzes êle canta. l!':u que
sou novinho só faço piar : piu, piu ( Desce da árvore) . Quando eu
souber cantar, aí sim, vou sair voando, voando .. . voando e can-
tando 1. . .
MULHER - li: melhor parar com êsses vôos I Já está na hora de levar
o almôço de teu pai. Não saia daí, que eu volto já 1. . . ( Entra
na casa).
MENINO - Ah, eu também quero comer I Hoje só achei uns carocinhos
de milho e uns talinhos de capim. Tou com uma fome medonha.
MULHER - ( Surge com um embrulho nos b'raços) Toma I Leva a comida
de teu pai, que o pobre já deve tá morrendo de fome . Vai ligeiro 1
MENINO - Vou voando (Vai saindo pela lateral esquerda, de repente
pára e fala de um modo curioso) O que é "isso" ?
MULHER - Galinha, guisada ...
.
MENINO - Gostosa ?
MULHER - Muito gostosa I Anda. Vá embora (Entra em casa).
MENINO - Muito gostosa, sim senhora... Muito gostosa (Cheira o
embrulho, torna a cheirar). Muito gostosa e muito cheirosa tam-
bém . . . Hum. . . Chega 'tá me reinando abrir o pacote 1 ( Cheira
novamente). Ai que eu não agüento mais não. ( Mete a mão no
embrulho, leva à bôca, repete o gesto várias vêzes, sempre repe-
tindo exclamações de satisfação. Depois fecha o pa«>te, bate na
barriga, dá um arrôto escandaloso. Bate na barriga novamente e
dá um nôvo arrôto. Anda de um lado para outro, com uma mão
na bôca e outra na barriga. De vez em quando, repete o arrôto,
que agora se transforma em soluços constantes. ~le fala, amedron-
tado. ) Ai 1. . . que diacho · é isso ? ( Soluça várias vêzes. Corre
para perto da casa. Arrepende-se e volta) Hum . . . A galinha está
cocoricando dentro da minha barriga! Ai. . . meu pai... Meu
pai. . . me acuda 1 ( Sai correndo por uma das laterais).
CAI O PANO
SEGUNDO QUADRO
198
MENINO - (Aproximando-se medrosamente do HOMEM. Vem com Un1a
mão na barriga, imprensando o pacote e com a outra tapando a
bôca. Fala em surdina). Meu pai. . . ( Dá um soluço, amedronta-se
e grita). Meu pai 1
HoMEM - ( Pára de trabalhar, limpa o suor do rosto e dirige-se ao
filho). Me dá, meu filho. 'Stou me acabando de fome. . . ( O
menino entrega-lhe o embrulho e afasta-se ràpidamente). Deus
Nosso Senhor abençoe esta comida que vou comer na hora do
m eio-dia 1 ( Benze-se). Com os podêres de Deus ela vai me fazer
bem 1 ( Abre o embrulho e lança uma exclamação ) Hum I Que
é isso ? Tentação do Satanás 1. . . ( Benze-se). Quem mandou essa
comida, meu filho ?
MENINO (Tímido) Foi minha mãe, meu pai ( Dá um bruto soluço).
Ho~M S6 man dou mesmo os ossos, meu filho?
MENINO S6, inhor sim, meu pai.
HOMEM - ( Com raiva) Ah, mulher maldita I Vam hora pra casa I Ela
vai me pagar caro I Muito caro I Eu, aqui, trabalhando neste
roçado, das seis às seis, todos os dias, sem ter um descanso 1...
Limpando mato, cavando a terra e plantando, plantando .. . (Apon-
tando o roçado). Nos leirões já tem batata I A roça já dá fari-
nha. . . Tudo porque eu quis 1. . . Eu, com os podêres de Deus 1...
E a tua mãe, meu filho, tua mãe - a minha mulher - fazendo
das suas comigo, que já tau velho e tou cansado ( Noutro tom ).
Olhe que eu sou manso, sou bom sujeito, não sou amante de
barulho. Mas quando me arrelio, sai fumaça, sou capaz de perder
o juízo ... (Decidido). Vambora, ela vai ver hoje o nôvo e o
velho... (Sai rápido. O menino, ainda tapando a bôca, dá um
soluço e desaparece ligeiro).
CAI O PANO
TERCEIRO QUADRO
199
bocado de anos atrás eu era môço e gostava de me divertir. Batia
tôda Goiana atrás dum côco de roda. . . Eu já gostava dum côco
de roda 1. . . Era sambar num cortar só. Só me arredava pra
esquentar a goela. Somente. ( Outro tom) Foi num côco de roda,
entonce, numa noite de Senhor São Pedro, lá pras bandas de Tcju-
·cupapo, que conheci Maria, a minha mulher. Essa mesma que
agora me faz encher os peitos de raiva. . . Ela, naqueles tempos,
era uma môça formosa. E eu sabia dançar. Quando entrou na
roda, eu tirei um côco bonito que falava nos olhos dela. . . Ela
me respondeu com outro mais bonito ainda ... Aí a gente tomou
conta do terreiro e quando a barra despontou eu tinha certeza de
que ela não me largava mais ( pausa curta). A gente se casou
no dia de Santa Luzia, na capela de Ponta de Pedras. . . E um
ano depois deixamos de dançar côco pra cuidar do nosso filho.
O menino de noite chorava direto que nem cantiga de grilo I E
pra êle se calar e dormir, a gente recordava tudo quanto era
toada e loa que a gente sabia. . . (Suspira). Sempre trabalhei,
me desdobrei pra não faltar nadinha em casa. E pelas festas
sempre a gente botava roupa nova ... (Amargurado). Quando é
agora. . . Agora ela se esciuece de tudo isso e me trata como
cachorro . . . me manda osso pra mode roer. . . (Colérico). Mulher 1
Vem cá 1. . .
MuLHER - ( Surge e fa la com surprêsa) Você já largou, meu velho?
HOMEM - Já. ,
MULHER - Com o sol no meio do céu? Tá doente ou vai pra chã? . . .
HOMEM - Mulher, eu tou doente 1
-MULHER - (Aflita) Santa Virgém I De quê, meu velho? De quê?
€ o panaríço de nôvo ?
200
Muunm - (Aflita) Meu marido I Meu marido, foi algum maracajá
ou raposa velha com cria ?
HoMEM - ( Com escárnio) Maracajá, raposa velha 1. . . (Explodindo)
Pra que tanto fingimento? pra que tu zombas de eu, aqui mesmo,
agora mesmo, na minha frente, maldita? (Avança para a Mullier
ameaçadoramente) .
MULHER - (Implorando) Meu marido, maridlnho I Valha-me Santa
Luzia I Meu marido ·~ doente... Socorrei o meu marido, Santa
Mãe, Vlrge Maria 1
HoMEM - Me diga uma coisa mullier ..•
MuLHER - (Humilde) Vá dizendo, meu bichinho ...
HoMEM - Já faltou comida em casa derna que a gente casou?
MULHER - Não. Não faltou nem faltará.
HoMEM - Faltou roupa, faltou gás, faltou o amor que furei?
Muum11 - Não faltou nada, marido. Nadinha mesmo, meu bem ...
HoMEM - 'Stá certo. Mas eu acho que tá faltando uma coisa ( Noutro
tom. Grave). Mulher, eu vou te encourar 1
MULHER - (Medrosa) Vai me dá? Que foi que fiz?
HoMEM - Já te esqueceste, malvada?
MULHER - Meu Deus do céu, o meu marido tá de juízo perdido 1
HoMEM - Doido de raiva eu 'tou I E ai de mim se não tivesse •••
MULHER - (Aflita) E por quê, entonce?
HoMEM - ( Sem ouvi-la) Não devia vestir calça, nem povoar êste
mundo de meu Deus 1 (Ameaçador) Eu nunca surrei mulher.
Mulher ficou pra se amar. . . Mas agora 'tou mudado. A fome
de indagorinha se virou em muita raiva. . . Foi bastante olhar pro
prato, pra aquêle prato de ossos 1
MuLHER - (Ainda medrosa) Não tava boa a galinha? Muito sal ou
sem tempêro ?
HoMEM - Você é quem sabe dizer I Você comeu a carne? (Agarrando
com a mulher e batendo-lhe) Sou seu marido ou algum cachorro?•••
Me diga, slá maldita 1..•
MULHER - AI, meu bom marido. Não me surre I Não me surre 1
Da árvore vem uma risada estranha seguida de piados.
Homem e Mulher soltam-se e viram-se para a árvore.
MENINO - ( Na árvore) Haja pau, haja I Haja pau, haja 1 ( O marido
volta a bater na mulher, enquanto o menino ri e grita "haja pau,
haja").
201
MULHER - ( Afastando-se do Homem, fala em desespêro) Ah I Foi
obra tua, não foi ? Foi obra tua, não foi?
MENINO - Haja pau, haja 1 (Ri debochado).
MULHER - Te desconjuro, filho ruim I Te amaldiçôo, filho ingrato 1
HoMEM - (Ameaçador) - Cala a bôca, mulestrada 1
Mut.HER ( Meio histérica) - Tu vai te virar num pássaro I Num pássaro
mais feio que já se viu I, . . Tu hás de ficar penando tôda vida
pelo mundo 1
lioMEM - ( Corre atrás da mulher q ue se dirige para dentro de casa ) .
Cala essa bôca quizila 1 (Ambos já desaparecendo, ouve-se a vo:t
do Homem, distante). Tu queres é apanhar mais. . . ( Ouvem-se
pancadas e gritos, começa a soprar um vento forte e desaparece a
luz do dia. Vê-se eptão, do cajueiro, um pássaro prêto e horroroso
alçar vôo, à medida que enche o espaço com o seu canft> de pavor).
Haja pau, haja 1
Haja pau, haja 1
Surgem as três figuras do côro.
PluMEmA FIGUBA - Esta história, senhores,
não tem alegria no fim.
SEGUNDA FIGUBA - Oxente. . . pra que alegria
se a lenda é contada a_pim ?
P:ruMEJl\A FIGUl\A - Portanto, senhores,
haja pau 1
TERCEJl\A FlGUl\A - Haja pau, não 1
• · Haja palma 1
SEGUNDA FIGUl\A - Haja pau 1
TERCEIRA. FIGUl\A - Haja palma 1
SEGUNDA FIGURA - ( Cocorote na TERCEIRA FIGURA) Haja, ••
pau!
TERCEIRA FIGURA - (Aplaudindo) Haja palma 1
f:ruME:rRA FIGURA - Então. . • Haja pai. .. rnada 1
TERCEIRA FIGUl\A - Haja palma 1
PluMEJRA z SEGUNDA FIGURAS - Haja pau I Haja pau 1
TERCEIRA FIGURA - (Abafada) Haja pai. ••
PluMBmA E SEGUNDA FIGURAS - Haja pau I Haja pau 1
· • Haja pau I e ACABOU 1•••
202
TORTURAS DE UM CORAÇÃO
Entremez para Mamulengo
ARIANO SuASSUNA
PERSONAGENS:
MANUEL FLÔRES
• CABO SETENTA
BENEDITO
AFONSO Gosroso
-
VtCENTÃO
MARIETA
Respeitável público ! A hist6ria que em breve
irão assistir, ou melhor, observar,
passa-se, como sempre, na terra de Taperoá 1
Várias autoridades de critério e respeitabilidade
assistiram aos acontecimentos
e sua veracidade poderão atestar.
Agora, os personagens que tomam parte na farsa
à alta sociedade eu vou apresentar.
Aqui vem Benedito. Com êle, Afonso Gostoso 1
Afonso, o môço delicado, o môço suspeitoso 1
As mulheres são loucas por êsse môço !
Agora, vem a mais alta patente da terra,
Sua Excelência o Senhor Cabo Setenta,
delegado de roubos, capturas, ladrões de cavalo,
de vigilância de costumes e de brigas de galo.
AtTeia.
CABO SETENTA
Esteja prêso 1
BENEDITO
Besteira, Cabo !
Eu já conheço essa hist6ria 1
205
BENEDITO
CABO S7LTENTA
Sentido, o quê?
Sentido é você 1
Sentido quer dizer podre
e podre pode ser você 1
•
BENEDITO
Cuo SETENTA
Ordinário o quê ?
Ordinário é você 1
Ordinário quer dizer safado
e safado pode ser você 1
· BENEDITO
CABO SETENTA
CABO SETENTA
206
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
A roubar galinha, é ?
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
Aprendi.
207
Cadê o fuzil ?
CABO SETENTA
Está aqui.
BKNEDITO
Vamos ver.
Meia volta I Volver 1
BENEDrro, despertando
E agora?
BENEDITO
BENEDrro
208
CABO SrrENTA
Boa noite 1
CAlio SETENTA
BENEDrro
Ah, sim, agora sim I Agora está uma beleza l
Comigo é assim, na educação e na delicadeza l
Não é, Afonso Gostoso ?
AP'oNSO Gos-roso
BENEDrI'O
Sentido, Cabo 1 Retire-se 1
Ordinário l Marche I Um, dois, um, dois ..•
BENEI>rro
Estão vendo como é o negócio aqui ?
Tudo eu ordeno, tudo eu ajeito, tudo eu pauto,
todo galçoso, todo valente, todo semiconflauto ...
tsse Cabo Setenta é assim, diz que com êle é na faca,
mas gritou, êle afraca 1
AFONSO Gos-roso
Ai, Benedito, me acuda 1
Estou com uma pancada no coração 1
Mci acuda que ali vem o valente Vicentão 1
209
V1cENTÃo
Eu hoje mato um 1
Eu hoje amanheci doido pra fazer
uma bainha para a minha faca
do couro do bucho dum 1
Estou doido por um negro para almoçar
e por um delicado gostoso para jantar !
BENEDITO
BENEDITO
VICENTÃO
BENEDrro
Fale com o público, Vlcentão 1
VlCENTÃO
Boa-noite, público 1
..
210
I BENEDITO, dando-lhe um catolé
VrcENTÃo
Boa-noite, excelente, distinto e respeitável público 1
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
BENEDITO
211
MAJUJtTA
BENEDlTO
MAIUETA
BENEDITO
MANUEL FLôRES
,
Como o distinto público pode ver
a situação de Benedito aqui é bem apreciável 1
Mas há dois dias, isso não era assim.
O que foi que aconteceu ?
t isso que a companhia vai mostrar !
Vai ter inicio o espetáculo 1
Atenção, respeitável público 1
Vai começar o maior espetáculo
de mamulengo do universo 1
O Grande Teatro Paraibano
tem o prazer de apresentar
o seu drama mais bonito,
o drama "Torturas de um Coração"
ou "Em Bôca Fechada não Entra Mosquito" 1
Vai começar. Toquem as violas,
toquem os pífanos do teX'!lo de Seu Manuel Campina,
212
o maior zabumba da atualidade,
o esquenta-mulher preferido das meninas 1
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
213
CABO SETENTA
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
Moleque 1
214
BENEDITO
CABO SETENTA
BENJIDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
215
BENEDttO
CABO SETENTA
BENEDITO
BENEDITO, à parte
O bicho já deixou de reclamar meu ditado !
Que sorte que nada, Cabo Setenta!
Tudo depende de jeito.
O mundo é um sutiã: o negócio é meter os peitdf!
ll: ou não é? .
CABO SETENTA
BENEDITO
Quem disse?
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
216
..
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
217
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDtro
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
218
Se alguém lhe fizer uma desfeita, você me chame,
que eu mando cobrir na peia 1
Adeus, Benedito 1
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
219
Eita, que a tarde ficou preta l
Ai, é não, é Benedito I Fui olhando assim . . .
Você inda pergunta o que é que há?
:ll: o meu sofrimento de cada dia:
ninguém gosta de mim 1
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
BENEDITO
MARIETA
220
comida de onça-tigre, pintada e suçuarana.
E Deus me livre de ser namorada de comida de onça 1
Se ao menos você fôsse valente 1
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
Vicentão?
MARIETA
BENEDITO
M,UUETA
221
Um meganha muito safado l
Aquilo é frouxo que faz vergonha l
MARIETA
BENEDITO
MARIETA
I
Isso nem se pergunta I Benedito, eu até lhe digo:
eu simpatizo muito com você 1
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
Pronto, já descangotei 1
Foi somente a emoção,
o sonhar com as excelências 1
Vou ser o homem mais temido
dos arredores e circunjacências 1
Você vai ver o escarcétl que eu vou fazer 1
222
MAIUJCTA
BENEDITO
MARIETA
BENEDITO
MARIETA
Obrigado, my love.
MARIETA
Hein? O quê?
BENEDITO
MARIETA
223
MAlllBTA
BENEDITO
MAlllETA
BENEDITO
O quê, Benedito ?
BENEDITO
Au revoir. Quer dizer "Deus te proteja",
em italiano.
MARIETA
BENEDJTO
VxcENTÃO
224
Pelo meu gôsto, eu vivia cheirando flôres 1
Sou louco pelas flôres, num jardim enluarado 1
Mas tenho que continuar como valente
se não morro de fome. Ah emprêgo amargoso
para um homem sensível e apaixonado 1
BENEDITO
VICENTÃ.O
BENEDITO
VICENTÁO
BENEDITO
VxcENTÃ.o
Bom, assim não há quem possa 1
Hoje é o aniversário dela, é P
225
BENEDrro
VICENTÃO
BENEDrro
VICENTÃO
BENEDITO
VICENTÃO ,
Ai, me segure I Me segure que eu vou desmaiar 1
BENEDITO
Coragem, Vicentão !
Você ó ou não valentão?
VICENTÃO
226
Você entrega a ela, Benedito ?
Me faz essa fineza?
BENEDITO
227
o plano está preparado.
Marieta I Venha cá, desgraçada 1
Aparece Maneta.
MAllIETA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
Ela quem?
CABO SETEJ){TA
228
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
De quê?
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
Só?
BENEDITO
BENEDITO
CABO SETENTA
229
BENEDITÇ)
CABO SETENTA
Virgem Maria 1
Que foi que ela mandou me dizer ?
BENEDITO
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
- BENEDITO
230
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
231
BENEDITO
CABO SE'TENTA
CABO SETENTA ,
Benedito I Você quer insinuar
que as autoridades estão com mêdo ?
A autoridade não tem mêdo de ninguém, Benedito 1
A autoridade não re~peita ninguém, Benedito 1
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
· 232
Se você vem com grito, eu largo o negócio de mão,
e vou dizer a Marieta que é melhor
ela ficar com Vicentão
porque com o Cabo Setenta
ela não arranja nem trinta e cinco 1
Estende a mão, onde o Cabo bota dinheiro.
CABO SETENTA
BENEDITO
CABO SETENTA
Até cem l
BENEDITO
Muito bem 1
E o que é que eu digo a Marieta?
CABO SETENTA
233
BENEDITO
BENEDITO
VICENTÃO
BENEDITO
Disse de quê ?
VICENTÃO
234
BENEDITO
VICENTÃO
S6?
BENEDITO
V ICENTÃO
BENEDITO
Falou.
VICENTÃO
BENEDITO
VICENTÃO
BENEDITO
VICENTÃO
235
nem tirar uma brincadeira 1
Marieta botou os brincos ?
BENEDITO
Não.
VICENTÃO
VICENTÁO
VICENTÁO
VICENTÃO
BENEDITO
- VICJCNTÁO
236
BENED1TO
S: o Cabo Setenta 1
VICENTÃO
BENEDITO
VICENTÃO
E êle soube?
BENEDITO
VICENTÃO
Falei.
J!:le mandou dizer que esperava
Vossa Excelência de noite, aqui,
para um encontro fatal.
Disse que vinha de capa preta,
com revólver e punhal 1
237
VICENTÃO
BENEDITO
VICENTÃO
VICENTÃO
238
a noite está perfumada 1
Tôdas as casas tranqüilas 1
As flôres ficam mais cheirosas à noite
e talvez amanhã
eu não esteja mais aqui para senti-las.
E eu não tenho nem êsse amor todo pela môça 1
Foi tudo vaidade,
foram fumos da ilusão 1
ô vaidade, teu nome é Vicentão 1
Um ulvo.
Ai, meu Deus, que terá sido ?
O Fogo da Terra ? A Alma da Poeira ?
Vou dar uma volta,
porque, se ficar aqui, parado,
o mêdo cresce tanto
que eu saio na carreira 1
AN"ela. Aparece o Cabo Setenta
CABO SETENTA
239
de pena eterna, de fogo e ansiedade 1
Vou morrer, estou morto 1
Já estou contemplando a eternidade 1
Arreia. Entra Vlcmtão, de costas
VICENTÃO
Até agora, nada,
nada do Cabo Setenta 1
Agüenta, pobre coração 1
Se êle não vier, subo
a Serra do Pico de joelhos,
e mando acender três velas
na imagem de São Sebastião 1
•
Entra o Cabo Setenta, de costas.
CABO SETENTA
Nada de Vicentão 1
Carne covarde, agüenta,
que hoje, de uma vez, se firma a fama
dêste herói que sou eu, Cabo Setenta 1
Setenta, que digo eu ? Oitenta,
e talvez, contando bem, Noventa 1
,
Viram -se, avistam-se, correm, cada qual para um
lado.
-V1cENTÃo, voltando
Correndo, meganha ? Ensebando as canelas,
levantando a poeira ?
Venha, que eu quero rasgar
essa barriga de peixeira 1
240
VJCENTÂO
CABO SETENTA
VICENTÃO
CABO SETENTA
V1cENTÃo
CABO SETENTA
241
BENEDITO
BENEDITO
-
Primeiro, o valentão,
o bigodudo atrevido,
o safado do Vicentão 1
Dá-lhe uma SUN'a de pau.
VICENTÃO
BENEDITO
CABO SETENTA
~ 242
BENEDITO
CABO SETENTA
Dê em todo canto,
mas não dê no figueiredo !
BENEDITO
CABO SETENTA
BENEDITO
Jl: Benedito 1
BENEDITO
VICENTÃO
:e você, Benedito 1
243
BENEDITO
0s DOJS
De Benedito 1
BENEDITO
MAIIIETA
-
Benedito, está certo, você cumpriu tudo,
cumpriu sua obrigação,
provou mesmo que é um sujeito corajoso,
mas acontece que eu me apaixonei
por seu Afonso Cabeleira,
por seu Afonso Gostoso 1
BENEDITO
Como é?
MAIUETA
BENEDITO
AFONSO GoSTOSO
Mané-Gostoso, o quê?
:l!: isso mesmo, a menina ai
gostou aqui da cabeleira 1
E tem uma coisa, negro aqui não dança 1
244
BENEDITO
BENEDITO
MAIUETA
BENEDITO
BENEDITO
245
de Carvalho
é o galo dêste terreiro 1
Seu Manuel Campina,
entre com o esquenta-mulher,
que eu vou levantar poeira,
balançando o esqueleto
aqui com essa morena,
defronte de Afonso Cabeleira.
Como é, Seu Afonso, negro dança ou não dança?
AFONSO GOSTOSO
Dança 1
BENED1TO
AFONSO GosTOSO
Dança 1
BENEDITO
AFONSO GosTOSO
Dança 1
BENEDITO, no ritmo
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253
III
"No teatro, somente Deus e as marionetes são perfeitos".
HEINRICH VON KLEIST
254
afã de prestar uma máxima representação significativa e de
acentuar o típico, abstrai-se cada vez mais mediante a elimi-
nação dos detalhes puramente fenomênicos e casuais da ima-
gem natural e outras vêzes chega-se, inclusive, a uma forma
absoluta, que parece verdadeiramente "cubista", ou ao orna-
mento geométrico."
Raramente as proporções anatômicas são levadas em con-
sideração, eliminando-se os detalhes insignificantes, convindo
não esquecer que tôda a expressão corporal deve limitar-se à
cara, pois o resto do corpo, inexistente na quase totalidade
dos bonecos, oculta-se sob a veste que já cai no campo do
decorativo ou da costura simplesmente. Outra observação de
Dittmer aplica-se perfeitamente aos nossos mamulengueiros:
"Quase nunca os artistas podem impor inovações que se afas-
tem demasiadamente da tradição, já que se vêem obrigados a
adaptar-se ao horizonte intelectual de sua comunidade para
encontrar nela compreensão e reconhecimento". A exceção é
feita para o ser sobrenatural, com traços de horror, pois aí
a imaginação se impõe e o ar tista lhe dá a sua interpretação
pessoal.
Convém lembrar que o animador do mamulengo é, ao
mesmo tempo, artista e artesão, as duas coisas nêle se con-
fundindo. :E:le maneja o material e a "idéia", juntando-lhes
som e movimento, servindo-se de um artesanato para trans-
mitir outra coisa completamente diferente dêle. t o mesmo
que o homem - criado por Deus - faz no teatro: a arte não
é o seu corpo, mas aquilo que êle consegue transmitir através
de palavras, risadas, choros, gestos.
O mamulengo é, nada mais, nada menos, que escultura
animada, partindo de um sentimento religioso que se foi pro-
fanando através dos séculos. As primeiras imagens das escul-
turas antigas exprimiam as concepções das teogonias elemen-
tares, como as poesias dos tempos primitivos celebravam a
majestade e cantavam as louvações dos deuses. A noção do
divino é a característica comum às obras da literatura e da
plástica antigas. Os artistas e os poetas pareciam obedecer a
um pensamento único e supremo: a idéia da divindade se
255
impunha à sua inspiração, porque o homem só era comovido
quando atingido o seu sentido religioso. Perdendo, na atua-
lidade, o seu caráter religioso, o mamulengo permanece como
transfiguração, no sentido do espetáculo, o homem dando ao
boneco uma vida e uma alma.
Ao lado de sua essência religiosa, o mamulengo é, por
. excelência, a forma popular de arte dramática, influindo no
folclore de sua região e sendo por êle influenciado, numa
intercomunicação constante. Renato Almeida diz: "Outro fato
de divulgação folclórica foi o teatro popular. A intenção
evangelizadora do teatro medieval e o seu destino ao povo
eram os próprios elementos de sua difusão, e assim a grande
concentração de crenças, costumes, falares, em suma, todo o
conteúdo humano que a cena absorve fàcilmen~ se foi espa-
lhando com o próprio movimento do teatro, andejo por exce-
lência. Ao lado disso, os teatros de bonecos, marionettes,
pupenspíel, guignol, pupazzi, títeres, mamulengos, joão-redon-
do, fantoches e que outros nomes tenham. Conhecidos dos
antigos, vulgarizadíssímos na Idade Média, continuam sendo
divertimento popular e infantil de todo tempo e todo lugar.
Na difusão do folclore tem importância similar à literatura
de cordel".
Certos puristas do folclore abrem a bôca'escandalizados
quando vêem, em qualquer divertimento popular ( no nosso
caso, o mamulengo), a intromissão de novos elementos. J;:
uma besteira. Os artistas populares incorporam e absorvem
qualquer fato nôvo qu.e lhes fira a imaginação, sem que por
isto abastardem sua arte. Vi, num mamulengo, uma figura
de andarilho que carregava nas costas um saco - elemento
p~(>prio - e uma miniatura de garrafa de coca-cola.
As influências se sucedem, mas o importante é guardar
o espírito popular. Por isto, o teatro de Ariano Suassuna, por
exemplo, é um teatro que, mais do que qualquer outro, no
Brasil, pode pretender à eternidade. Tirado das mais autên-
ticas tradições populares, embora renovado, guarda as suas
marcas mais profundas. :E: o caso especial de A pena e a lei,
que foi mais além, pois lançando mão de histórias do povo,
256
atingiu até o plano do mamulengo, com um primeiro ato
anto16gico neste sentido, quando os atôres de carne e osso,
pela primeira vez na história do nosso teatro, entraram na
sua verdadeira função essencial, a humildade, interpretando
bonecos. f: um despojamento e uma simplicidade.
O mamulengo é um teatro do riso , como são as outras
formas dramáticas populares : o bumba-meu-boi e o pastoril.
Há uma necessidade do riso entre o povo e seus divertimentos
dramáticos lhe proporcionam isto. O mamulengo é exemplo
ideal da teoria do riso. A teoria de Bergson pode ser reduzida
a iito : é cômico tudo o que nos dá, por um lado, a ilusão
da vida e, por outro, a ilusão de um arranjo mecânico. O
mamulengo preenche êstes requisitos, pois afasta a célebre
"talhada de vida" dos naturalistas, partindo para a recriação
arbitrária da vida, por processos que, aparentemente mecâni-
cos, possuem uma encarnação que o situa nas fronteiras da
alma e do inanimado. Ainda aqui o mamulengo está de
acôrdo com a teoria de Mélinand: "]!; cômico tudo o que se
pode classificar, duma parte no absurdo e doutra numa cate-
goria familiar". Os bonecos voam, contrariam a lei de gra-
vi dade, colocam-se, no ar, em posição horizontal, assumem as
posturas mais extravagantes, mas não perdem o seu caráter
de familiaridade, de pessoas por n6s conhecidas.
No mundo do mamulengo tôdas as inverossimilhanças são
permitidas porque nada é real e todo o prazer decorre das
convenções, atingindo um realismo superior, mais verdadeiro
do que o verdadeiro, porque é poético. Daí a vantagem do
boneco de luva - que é boneco mesmo - sôbre o de fio,
que tenta assemelhar-se à figura humana com tôdas as falsi-
dades que isto implica. "A marionete - diz Paul Claudel -
não tem vida e movimento senão aquêles que ela tira da ação.
Ela se anima na narração, é como uma sombra que se ressus-
cita contando-lhe tudo o que fêz e que, pouco a pouco, de
lembrança torna-se presença. Não é um ator que fala, é uma
palavra que age."
"Além das muralhas frias do real - diz André-Charles
Gervais - a imaginação do homem procura penetrar no mundo
257
do inexprimível. A obra de arte constitui, para certos espíritos,
o maravilhoso meio de transpor os limites do conhecido, da-
quilo que está sob o contrôle dos sentidos, do que se racio-
cina. Que são as palavras para êles sem, além das palavras,
o que sugere sua música? Que são para êles as côres e as
formas sem o que as ultrapassa pelo fato de sua harmonia ?
Que é a escultura sem, mais alto que sua representação, o
canto de suas linhas ? Como o teatro seria pobre para êsses
mesmos espíritos se se reduzisse a peripécias mesmo psicoló-
gicas e se, através das almas dos personagens que êle anima,
não os ajudasse pela emoção que cria a iluminar certas pro-
fundezas de suas próprias almas I No mundo das marionetes
as fronteiras são abolidas. Estamos no território encantado
onde o sonho é o pão cotidiano, a féerie ali~nto comum e
o fantástico alimento permitido. Levados por suas mãozinhas
de madeira entramos na ronda maravilhosa que tínhamos es-
quecido quando nos tornamos homens. E eis que reencontra-
mos a ingenuidade de nossa primeira manhã."
l1: a fórmula de Gaston Baty: cortar as pontes entre a
cena e esta forma da vida que se chama "real". Por isto, no
mundo do mamulengo, ri-se com tanta liberdade e aceitam-se
situações escabrosas. Pode-se rir, de público, com as funções
naturais que constituem boa parte das anejotas imorais e
contadas, entre civilizados, às escondidas: as funções de di-
gestão e reprodução. Tomar um clister é um ato secreto, mas
os clisteres, que vêm da commedia dell'arte e que são usados
por Moliere, aparecem nos mamulengos para desencadear o
riso e riso também provocam os peidos, as cólicas de barriga,
a imitação do ato sexual nas danças, as palavras ditas emas.
Afinal de contas não há acôrdo entre duas pessoas sôbre
a definição de obsceno. Lawrence diz: "Ninguém conhece o
sentido da palavra "obsceno". E Havelock Ellis: "A obsceni-
dade é um elemento permanente da vida social, ela corres-
ponde a um desejo profundo do espírito."
Mencionar as obras-primas que poderiam ser qualificadas
de obscenas seria uma tarefa ingrata. Começando pela Bíblia,
a maior parte dos grandes escritores estaria dentro desta clas-
sificação: de Platão a Havelock Ellis, de Aristóteles a Shaw,
258
de Shakespeare a Graham Greene. Estabeleça-se a diferença
entre obscenidade e pornografia. Enquanto a obscenidade é
subjetiva, variando de pessoa a pessoa, impossível, portanto,
de ser classificada, "a pornografia em arte é aquela que é
calculada para despertar o desejo sexual ou a excitação sexual".
~ a tentativa de insultar o sexo, de sujá-lo. Lawrence consi-
dera, com razão, Charlotte Bronte ou a autora de O sheik,
imorais, pelas suas intenções, enquanto Rabelais e Boccaccio
não têm nada de pornográficos ( 72 ).
A espontaneidade do obsceno nas representações de ma-
mulengo afasta o caráter pornográfico que se lhe queira dar.
Provoca o riso e age à maneira de catarse.
Outro motivo de riso no mamulengo são as diferenças
sociais. O povo ri do ridículo dac1ueles que estão acima de
sua classe. Numa representação do mamulengueiro Ginu, pre-
cisamente numa pecinha que incluímos neste estudo - As
bravatas do Professor Tíridá na usina do coronel de Javunda
- o público ria do usineiro e ria ainda mais quando o gerente
Simão foi desmoralizado. ~ muito diferente a queda de um
burguês enfatuado da queda de um sapateiro, por exemplo.
O povo ri também das bordoadas, porque não são na sua
pele; do valente desmoralizado; das mulheres salientes; ri das
situações e das palavras, mas neste último caso todos nós
rimos, que uma técnica vem de Moliere e outra de Beau-
marchais.
Os mamulengueiros se especializam nas farsas, que con-
sistem em colocar uma pessoa em estado de inferioridade
diante das outras, daquelas que riem. Marcel Pagnol( 73 )
coloca bem a questão: "A primeira espécie, dos farsantes
( 72) "Then whnt is pornogrnphy, ofter nll this ? lt lsn't sex nppenl or sex
stlmulns in nrt. Jt isn't cven n d,•liherate int<•ntion on the pari of thc a rtist to
a rouse or excite s,•xual fcelings, Tht'n•'s nothing wrong with sexunl feelings ln
themselves, so long as they ,ire strni~htforw,1rd ond not snenking or sly. The
ri11:ht sort of sex stimulus is invalu11hle to human dnily life. Without it tbe
world grows grey, 1 would givc evcrybucly the gay Rcnniss11ncc sturics to read,
th,•r. would help to shnke off o \ot of grey self-importnnce, which is our mod.-rn
civ11izcd dise11se. But even I would censor gcnuine pomogrophy, rigorously. II
would nol be very difficult. ln the f irst pince, gcnuine pornogrnpby is nlmost
ulwnys undl'rworld, it doesn't co1ne into the open, ln tho sccond, you cnn recov;nize
it by tbe insult it uffers, inv11ri nbly, to sc x, and to the humnn spirit. " 1'he port11ble
D . H. Lawrcnc,•, The Viklnl( l'ress, Nova York, 1957, páginas 052 e 653.
(73) Mercel PAGNOL, Note, n,r le rlre, Les ~dition., Nagel, Paris, 1947.
259
profissionais, se compõe de pessoas tristes, que não riem de
nada e que têm necessidade de organizar a série de circuns-
tâncias - na maior parte das vêzes estranhas e absurdas -
que os fará rir". Foi esta a impressão que me causou o
mamulengueiro José Petronilo Dutra, de Lagoa Nova, homem
sisudo que se transforma durante o espetáculo.
Mas o motivo principal do riso, nos mamulengos, reside
no fato de apresentar personagens que são quase sempre
inferiores aos assistentes e quando não, como no caso de
Benedito, professor Tiridá e Cabo 70, encarnações daqueles
sentimentos de coragem, habilidade, capacidade de enganar
o próximo. Isto satisfaz o homem do povo, cansado da luta
diária, amargurado pela carestia da vida, dominado pelos ricos.
Quem ri é uma p~ssoa diferente daquela que faz rir.
Segundo Marcos Victoria( 74 ), devem-se distinguir três
classes de comicidade: o cômico de breve duração, o cômico
simultâneo e o cômico de longa duração. O mamulengo é
cômico de breve duração e mesmo quando a peça é mais
longa o episódio cômico que mais nos interessa durante a
ação é o desenlace rápido, o episódio que aviva o interêsse,
o quiproquó, a piada, o som obsceno, quando menos são
esperados. Por extensão, o mamulengo está ainda dentro da-
quelas categorias que o ensaísta argentino chlftna de cômico
objetivo e cômico subjetivo: "O cômico objetivo requer a
ausência de consciência cômica na pessoa que o origina e,
é claro, supõe a falta de dita consciência quando o cômico
vem de um objeto inerte- ou de um ser vivo incapaz de per-
ceber o dito sentimento. O objeto cômico é indiferente às
reações que suscita. Não as compartilha ( o boneco) . Supo-
nhamos agora que a consciência no ser cômico esteja intima-
mente ligada a nosso sentimento do mesmo; que a pessoa
cômica seja cúmplice, colaborador, sabedor do efeito que
sôbre nós se produz. O cômico modifica-se substancialmente:
é, agora, o cômico subjetivo - o cômico da anedota, por
exemplo - que faz rir a quem a diz e a quem a escuta; o
260
cômico da caricatura, da ironia, do sarcasmo" ( o mamulen-
gueiro ).
A imitação dos gestos, das formas de falar ou de cantar
de alguém constitui um dos processos cômicos do mamulengo,
pela sua própria condição. Ainda Marcos Victoria, criticando
a teoria bergsoniana do riso, diz: "~le opõe a matéria inerte
à vida. O triunfo da primeira sôbre a segunda, em circuns-
tâncias em que o inverso deveria ocorrer, é cômico. De ma-
neira que - segundo transcrevíamos mais acima - "ali onde
a matéria condensa exteriormente a vida da alma", obter-se-ia
um efeito cômico. Pois bem: n6s conhecemos um caso em que
"a matéria condensa exteriormente a vida da alma". 11: o caso
de uma estátua realizada. E por acaso é cômica uma estátua
pelo fato de ser estátua ? O que resulta mais curioso - contra
a definição bergsoniana - é que, quando o mecânico mima o
vivo, quando imita seus caracteres, quando assume categoria
vital, resulta também cômico. Recorde-se que sôbre esta comi-
cidade resultante da humanização das coisas ( não da meca-
nização do vital, como diz Bergson) está fundada quase tôda
a estética dos filmes de desenhos animados ( móveis que dan-
çam, caçarolas que cantam, nuvens que adquirem formas
humanas, etc.). O caso é o mesmo em relação ao mamulcngo.
Gordon Craig, na sua pesquisa terrível para eliminar o
ator e substituí-lo pela sur-marionette, afirma que o intérprete
de carn e e osso nem sequer pode ser chamado de artista
porque a arte é a antítese do caos e não pode repousar sôbre
0 acidental. Para se criar uma obra de arte, deve-se contar
com materiais que possam ser manejados com certeza e o
homem tende para a independência.
Napoleão disse: "Há, na vida, muitas coisas pequenas que
devem ser evitadas em Arte, como a dúvida e a irresolução,
por exemplo. Tudo isto não entra na representação do herói.
Devemos figurá-lo como uma estátua onde as fraquezas e
as sensações da carne desapareceram". lt um protesto contra
.a imitação da natureza, que Craig fêz seu, prevendo o desa-
parecimento do ator, para substituí-lo p ela sur-marionette( 7 rs),
(75) O Cardeal MA1<N1No, inglês, emborn noutro aentldo, condenn o ator po1
"prostituir seu corpo purificndo pelo batismo".
261
obediente a quem à maneja, indiferente às injunções da vida:
"Os aplausos explodem ou se perdem isolados e a marionete
não se comove; seus gestos não se precipitam nem se confun-
dem; pode ser coberta de flôres ou louvores e permanecerá
com uma fisionomia impassível".
E cita Heródoto:
"Quando entrei na Casa das Visões, vi, ao fundo, sentada
num trono, num túmulo - pelo menos me parecia uma coisa
ou outra - uma bela Rainha bronzeada. Deitado em meu
leito, observei seus gestos simbólicos. Punha tanta leveza nos
ritmos mutáveis de seus gestos sucessivos, tanta calma na
maneira de revelar seus pensamentos secretos, tanta nobreza
e beleza na expressão contida de sua dor, que nos parecia
que nenhuma dor poderia aniquilá-la; nada de.violência em
seus gestos; nada ae alteração em seus traços que nos fizesse
crer que sucumbiria à sua paixão; sem cessar parecia tomar
sua dor nas palmas das mãos, mantendo-a delicadamente, con-
templando-a com calma. Seus braços e suas mãos elevavam-se
às vêzes, como um delgado e morno filête dágua que se
quebrasse e caísse, a espuma de seus dedos brancos e leves
escorrendo por seus joelhos. Teria sido para nós uma reve-
lação da arte se já não tivéssemos encontrado um espírito
análogo noutros exemplos da arte dêsses egípcios. Esta arte,
que êles chamam a de "mostrar e ocultar" é uma tão grande
fôrça espiritual no país que tem um lugar preponderante na
religião."
Para concluir:
"Isto data do ano 800 antes de Cristo. Quem sabe se a
marionete, um dia, não voltará a ser o meio fiel do belo
pensamento do artista? Aproxima-se o dia que nos devolverá
o pupazzi, criatura simbólica moldada pelo gênio do artista
e onde reencontraremos "a nobre convenção" de que nos fala
o historiador grego ? Não estaremos mais então à mercê dessas
demonstrações de fraqueza que traem sem cessar os atôres e
que, por sua vez, despertam nos espectadores fraquezas idên-
ticas. Com esta finalidade é preciso que nos apliquemos a
reconstruir estas imagens e não satisfeitos com pupazzi cria-
262
..
ternos umà sur-tnarlonette. ~sta não rivalizará com a viela,
mas irá além; não figurará o corpo de carne e osso, mas o
corpo em estado de êxtase e, enquanto emanar dela um espírito
vivo, ela se revestirá de uma beleza de morte. A palavra
morte vem naturalmente à pena por aproximação com a pala-
vra vida, que é reclamada, sem cessar, pelos realistas."
Inanimados, no fundo de uma mala ou estendidos em
cima de uma mesa, os bonecos, agitados, adquirem uma alma.
Sentimos as pancadas que recebem, sofremos com as suas
desventuras, rimos com as suas trampolinagens. Porque se
pensa na condição humana e se tem a nostalgia de que êles
escapam às nossas contingências. :E:ste mistério tem preo-
cupado os artistas: Jacinto Grau, numa comédia intitulada
El sefíor de Pigmali6n, faz que os bonecos adquiram vida e
matem o seu criador; Paulo Gonçalves, em As mulheres não
querem almas, conta os sofrimentos de um boneco que ama;
Karel Kapek conta a destruição do mundo pelos robots, numa
peça curiosa, R. U. R. Mistura de humano e desumanizado,
o boneco se situa entre o mistério e a poesia; e outra coisa
não é o Amor de Don Perlimplín por Belisa en su fardin , de
Lorca, apelando para o popularismo, a graça e a candura,
"três demônios que sempre tentaram o poeta."
Além disto, de uma extrema liberdade artística. Ao fazer
dos homens uns bonecos de papelão, ao não ter que justificar
nenhum movimento psicológico - os homens de madeira não
precisam disto - pode-se construir livremente... Uma desu-
manização longínqua da preconizada por Ortega y Gasset e
quase oposta. Porque o que Lorca pretende é fazer entra-
nhàvelmente humanos seus bonecos, mas sem romper seu
próprio limite ante-humano. Não transpondo êste limite, seus
bonecos permanecem com o movimento entorpecido, o passo
rígido e a piruêta decidida. O que não impede que tenham
um amplo conteúdo humano.
Saindo do boneco para analisar o manipulador, devem-se
distinguir, com Gervais, vários tipos. O primeiro é o do mario-
netista no sentido comum da palavra. Representa para o seu
boneco. O personagem não é para êle o essencial: é o boneco.
263
Só trabalha e só se exprime para êle. Poder-se-ia quase dizer
que estão ligados fl.sicamente. Entre o personagem e o mani-
pulador interpõe-se o boneco. Não pode adquirir vida, não
pode tornar-se um ser, permanece um boneco porque se se
ocupa muito dêle.
O segundo tipo é o do marionetista que representa sob
o boneco e fica de tal modo preocupado pelo personagem
que deseja "compor" que esquece o boneco. Jl:, antes de tudo,
um comediante, um comediante com um boneco. Também aí
a vida não habita o boneco, mas agora porque o manipulador
não se preocupa bastante com êle.
Outro tipo é o do marionetista que faz representar exa-
tamente o personagem pelo boneco graças a um contrôle
absoluto. Conserva uma objetividade constante_,e em nenhum
momento perde de vista o boneco representando o personagem.
O tipo mais completo do marionetista é aquêle no qual
personagem, boneco e manipulador coincidem. tle identifica
seu boneco com o personagem que é preciso encarnar e o
boneco torna-se verdadeiramente um ser.
Estabelecendo-se uma comparação com os atôres de carne
e osso, pode-se dizer o seguinte: o marionetista deve ter, ao
mesmo tempo, o tipo do comediante positivo ( aquêle que
representa para se encontrar, para fazer entJ;ar em seu per-
sonagem elementos de si mesmo, para projetar-se em seu
personagem) e o tipo do comediante negativo ( aquêle que
representa para fugir de si mesmo, para penetrar numa outra
personalidade, para encontrar uma evasão, para criar além
de si mesmo, para enriquecer-se com a substllncia do seu
papel). Nisto o marionetista pode ser o comediante ideal.
tle representa para se encontrar num personagem que êle
enriquece. Estabelece um circuito que vai dêlc ao boneco
e volta do boneco para êle. Dá-se ao boneco que, por sua
vez, lhe dá o personagem.
O paradoxo do marionetista consiste na tensão que se
deve impor para ser realista com um boneco que, por sua
conformação e sua atitude estética, transpõe imediatamente
êste realismo em sinais e símbolos; é também a necessidade
264
na qual êle se encontra de tentar fazer "exato" para tornar o
personagem vivo e a estilização que dá ao seu esfôrço o bo-
neco, que transforma naturalmente gestos copiados em gestos
sugestivos.
:f:ste é o paradoxo do marionetista. E o paradoxo do
boneco ? Não resta nenhuma dúvida de que entre o boneco
de fio e o de luva ( o caso geral do mamulengo ), êste último
possui qualidades muito mais próprias, desde que se afasta
completamente do ator de carne e osso, quebrando todos os
preceitos realistas. Não se trata mais aqui da vida como a
vemos, mas de uma verdade que, no campo da arte, cria uma
nova forma de vida, exigindo de todos nós uma participação
total. O boneco de luva não encarna nenhum personagem,
êle é o próprio personagem. .
Num mamulengo nada é verdadeiro, ·a começar pela pró-
pria figura da qual .se vê apenas a metade do corpo e, mais
do que isto, somente o rosto, porque já se sabe que o seu
corpo é constituído pela mão do mamulenguei~o; a consti-
tuição do seu rosto: madeira, papelão, massa, onde o olhar
~ fixo, imóvel, reminiscência das máscaras do teatro grego,
das atelanas, da commedia clell' arte. A linguagem que os
bonecos falam, sem abrir a bôca ( há exceções, como nos casos
de bonecos articulados, mas êstes já escapam à classificação
dos de luva), é esquematizada, entrecortada; sumária.
Estamos em pleno mundo da transfiguração, exigindo do
espectador uma participação no plano da , imaginação, para
suprir tudo o que é apenas sugerido. Eis em que r.eside o
paradoxo do boneco: precisa exprimir mais do que o a_tor de
carne e osso porque dispõe de meios mais limitados, ajudado
pelo espectador. "Cabe-nos ajudá-lo através do sonho porque
êle é feito de madeira e ao . mesmo tempo nos obrigamos a
dar-lhe uma resposta porque êle é mudo".
Não vi, em nenhum mamulengo, os bichos falarem como
nas velhas histórias de trancoso. Mas os bichos têm um papel
importante no espetáculo: a cobra, o boi, o cavalo, os pássaros
são as constantes do mal, da utilidade e da beleza. Aliás,
"o folclore aproveitou sempre os animais de mil formas e dos
265
bestiários medievais dos séculos XII e XIII se multiplicaram
estórias, anedotas, provérbios, etc. Os bichos vivem nas me-
ditações e nas atividades, dos primitivos e do povo, que têm
com êles muito maior contato do que os civilizados. O bicho
falando, o bicho adivinhando o tempo, o bicho propiciando
ou afastando a sorte, o bicho na anedota, cada qual com seu
caráter e seu modo de ser, continuam em todos os folclores.
Entre nós o boi, o jabuti, o papagaio e o burro são talvez
os de maior destaque em cantorias, estórias e anedotas ( 76 ) ."
A cobra e o boi, principalmente, são os bichos que mais
aparecem nos mamulengos. O primeiro encarna o espírito do
mal, ligado à idéia do pecado original, engolindo as pessoas,
mas aniquilado por um Benedito disposto e valente. O se-
gundo está relacJonado aos anseios pastoris eas populações
rurais da zona nordestina. Quase se poderia dizer que são
totens, ligados ao povo pelo sangue e por uma idéia quase
mística, estabelecendo uma identidade entre o homem e o
animal. A cobra é o mal que se combate com respeito, o boi
ajuda no trabalho e fornece a carne. :€ste último mantém
um laço estreito com o homem, desde que é vital para a
comunidade. Presta-se, assim, um culto ao animal.
Quase não há peça de mamulengo que não tenha um
bicho no meio, pois os assuntos são extraídos'das histórias do
povo. Os mamulengueiros afirmam que "inventam" os enre-
dos, mas o que fazem é recriar casos já conhecidos, inclusive
da literatura de cordel, as próprias figuras, por sua natureza,
fazendo que a ação passe a desenvolver-se em função delas.
A dança é o ambiente propício para a sucessão das cenas,
com as mulheres, os galanteadores e os valentões. Nela entra,
é claro, o elemento musical, o que possibilita o canto e o baile
e a velha tradição do brabo "acabar com a dança", porque
não há mamulengo sem pancadaria. O burlador ( Benedito,
Professor Tiridá, etc.) consegue iludir os outros ( para êle não
existe a noção do bem e do mal), mas termina sempre casti-
gando os inimigos com cacetadas.
266
Vários mamulengueiros nem sequer se preocupam ern
"inventar" peças e as suas apresentações são mais espetáculos
de variedades, aproximando-se do circo ou mais especialmente
do music-hall, com a sucessão de ginastas, cômicos, dançari-
nos, de tudo o que não tem lugar no teatro dramático porque
insubmissos a um autor, agrupando todos os espetáculos que
não são do teatro, ali encontrando urna disciplina, modos de
viver, sem esquecer, às vêzes, inclusive, de incorporar o pró-
prio teatro. Com um pouco de audácia e muito de exagêro,
poder-se-ia dizer que êsse tipo de mamulengo possui o ver-
dadeiro espírito do espetáculo, colocando o espectador diante
de um mundo de formas . f: mais um divertimento, mas nem
por isto menos válido, onde as surprêsas se sucedem numa
grande variedade de expressões, trazendo-nos uma realidade
humana e esportiva das mais sãs.
O mamulengo de variedades não se coloca propriamente
à margem do teatro, nem do circo, nem do music-hall, mas
junta os três, criando uma unidade de espetáculo, aproximan-
do-se mais do gênero revista, numa sucessão de sketches.
A matéria do homem junta-se à matéria do boneco para
uma transfiguração. A alma do homem dá ao boneco também
uma alma e, nesta pureza, realizam um ato poético. Tudo se
funde, inclusive a transformação do criador - o marionetista
_ em espectador, naquele sentido "de que o homem, espec-
tador em tudo e sempre, vive numa incessante despedida",
pois é de sua condição "ser peregrino".
O homem é um corpo pesado, sujeito às leis da gravidade,
incapaz de levitação, por isto se substitui pelo boneco, numa
tentativa de fugir a essa impossibilidade, procurando uma
realidade mais profunda. f: verdade que o homem possui sua
liberdade, seu livre arbítrio, mas nem sempre pode fugir ao
sentimento de ser títere, predestinado portanto pelo Deus-fan-
toche de Kleist.
"O poeta quis certamente descobrir o estado de equilíbrio
em que o Anjo e o boneco, isto é, o espírito e a matéria, se
unissem para formar, numa verdadeira síntese, o ser humano,"
*
267
Como exemplo de marionete religiosa e de liberdade poé-
tica, transcrevemos uma peça do repertório das marionetes de
Bruxelas, A paixão de Nosso Senhor, reconstituída por Michel
de Ghelderode e traduzida por Yvonne Jean ( 77 ). ~ caracte-
rística de obra popular, dada a intimidade com as coisas
sagradas e os anacronismos.
~ Ghelderode quem diz:
"Que haja um cheirinho de heresia no seu teatro ( no de
Toone, o titeriteiro ) é evidente. Mas isto não quer dizer que
é irreverente. Absolutamente. A figura e o tato do titeriteiro,
o primitivismo das suas marionetes, a candidez do público
permitem o desabrochar desta poesia popular na qual o bar-
roco contrabalança o trágico e os trocadilhos realçam as pala-
vras sagradas. E se o público se diverte muit9 nesta Paixão
é à maneira das ·multidões medievais que assistiam aos mis-
térios nas catedrais: jogos públicos, destinados a edificar, mas
nos quais o burlesco era representado por diabos engraçados
e animais fantásticos que tomavam, muitas vêzes, a dianteira
sôbre o discurso moral. Só os hipócritas e as falsas , beatas
criticarão os monólogos do Nosso Senhor de Toone, êste Cristo
com o rosto de desempregado que fala o tempo todo de coisas
locais e muito atuais como se tivesse nascido nos Marolles ( 78 ) ."
,
• 1
• 1
268
O MIST:E:RIO DA PAIXÃO
DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO
( Com todos os personagens para os teatros de ·Marionetes)
Reconstit1,1ído conforme o espetáculo
por M1CHEL DE GHELDERODE
Judas entra cautelosamente na cozinha e sua mulher le-
vanta os braços para o céu.
JUDAS - Senhora Judas, não vai outra vez arranjar coisas para brigar
comigo f
A MULHER - Você não presta para nada I Sabes que a despensa está
vazia? •
JUDAS - Não tenho nada que ver com isso, senhora Judas.
JUDAS - ( Agita os braços) Fica sab endo que já estou farto de você.
Para início de conversa, foi você que me fabricou e todos sabem
que estou casado com minha mãe !
A MULHER - (Chora) Aie, ale, ale. . . Judas I O que é que você tem
o topete de dizer (Fica novamente com raiva), Mas niio faz mal.
Tu acabas no hospício. E agora me dá uns niqueis para ir à
esquina f
270
JUDAS - E minha salvação eterna ? Isto não vale nada ? E quando eu
estiver no céu, espiarei cá para baixo, onde você estará se quei-
mando e você certamente começará a gritar: "Judas, meu querido
J udazinho, vem me tirar daqui". E eu então te faço uma careta 1
271
A MULHER - Vamos, meu Judazlnho querido I Escuta ... não brigarei
mais com você 1
JUDAS - Então está decidido, vou vendê-lo. Mas quero a metade.
Agora me dá o meu escapulário c1ue eu vou ter com os apóstolos.
A MULHER - Aí está, Ganhas um chopinho e ainda por cima poderás
beijar-me 1 ( ll:les se beijam. Depois dançam e cantam) .
OUTRA CENA
'272
Os FARISEUS - :I!: uma desgraça ... o povo não vem mais às nossas
igrejas por causa de Jesus Cristo. E isto quer dizer que não cai
mais dinheiro no nosso saco l .••
J tmAs - Eu acreruto. :I!: por isso que eu vinha fazer uma propostazinha.
PruMus - Acontece que nunca se sabe quando você fala a verdade 1
JUDAS - Agora senhores podem acreditar em mim, pois preciso de prata
Querem comprar Jesus Cristo por trinta e cinco cruzeiros?
SECUNDUS - Você quer nos embrulhar, Judas. Nós prometemos trinta
cruzeiros l
JUDAS - Está bem I Está bem l Mas os senhores têm que pagar
adiantado.
Os u111sEus - Não h á dúvida, Judas. Já vamos te pagar ( Contando
o dinheiro).
JUDAS ~ F alta um cruzeiro ·l ''
PruMus - Estou sem óculos. Agora está certo.
JUDAS - Está ... mas esta moeda aqui é falsa!
SECUNDUS - Você é que é falso I Ap6stqlo salafrário l
JuoAS - E agora, boa noite, senhores padres! Boa noite, ricos padres
gordos. Os senhores estão contentes. Eu estou contente. E já vou
para o botequim 1
Os E nós compramos Jesus Cristo por uma pechincha I Foi
FARISEUS -
um bom negócio I Dançam e cantam) .
273
O PARALÍTICO CURADO - Não I Tenho novamente minhas duas pernas
e foi Jesus Cristo que me curou 1
O SOLDADO ROMANO - ( A outro homem) E você I Você não é mais
cego?
O CEGO CURADO - Não I Tenho novamente meus dois olhos e foi Jesus
Cristo que me curou 1
O SOLDADO ROMANO - Que maravilha I E se êste homem estivesse,
mesmo, falando a verdade 1
Os DOIS CURADOS - Juramos que é a verdade. Nós agora somos católicos
e vamos à missa.
O SOLDADO ROMANO - Vocês têm razão. Eu vou com vocês à missa
no próximo domingo 1
Entram os Três Reis Magos, vestidos como ricaços.
GASPAR - Olá I Você, guarda-civil 1. . • Tu não sabes ~ Jesus Cristo
já entrou na cfdade ?
O SOLDADO ROMANO -: Não sei, não, Prlncipe I Isto não é do meu
setor 1
MELCHIOR - Não faz mal. Havemos de encontrá-lo. S6 há um como
êle. tle deve ter crescido muito depois que o adoramos, tão pe-
quenino na sua manjedoura entre o burro e o boi 1
BALTASAR - !le vai nos reconhecer logo, apesar dos trinta e três anos
que se passaram. Agora êle deve ser um homem extraordinário,
que vai ser rei do Oriente e do Ocidente e sep mais célebre que
Cyrus 1 ( Entra São José) .
GASPAR - Lá está São José, o pai dêle I Bom dia, São José 1
SÃo JosÉ - Bom dia, meus_caros príncipes 1 (tles se abraçam). Vocês
sabem que meu filho vai entrar em Jerusalém?
O SOLDADO ROMANO - Vou vestir minha farda de gala 1•••
Os TR!s REIS - Viemos para vê-lo. ( Entra São João Batista).
SÃ.o JoÃo BATISTA - Ora essa .. . os reis Magos 1
Os REIS MAGOS - Bom dia, São João Batista 1 (Abraçam-se). Você
não está mais no deserto ?
SÃO JoÃo BATISTA - Não I Eu vim a Jerusalém para aplaudir Jesus
Cristo com quem brinquei e que batizei no Jordão. Mas estou meio
assustado porque a mulher de Herodes quer me cortat a cabeça 1
274
O SOLDADO ROMANO - Venham I Venham I Ouço barulho e estão to-
cando música.
Os REIS MAGOS, SÃo JosÉ e SÃo JoÃo BATISTA - :e Jesus que ch ega 1
Vamos ao encontro dêle para cumprimentá-lo. t domingo de
Ramos ! E depois vamos festejar porrrue isto é um acontecimento
maravilhoso ! . . . ( Saem atrás do soldado. Dançam e cantam ).
OUTRA CENA
JUDAS - Aie, aie, aie I Que dia 1.. . Jesus Cristo naturalmente está a
perguntar-se onde me escondi I Aie, aie, aie I Bebi vinte barris
de chape 1. . . :e bom tomar cuidado porque minha mulher deve
andnr atrás de mim. . . Vejo os grandes pés dela !. . . Vamos nos
esconder!
A MULHER - (Entra aos pulos) Aí estás, vagabundo! Bêbedo, monstro,
sem-vergonha, cobra, mentiroso, gozador. . . Então é assim que
gastas o teu dinheiro 1
275
SÃo MIGUEL - Está bem, pois assim é o servo de Deus. E enquanto
eu recebo os bons no paraíso, tu torturas os malvados no teu
inferno onde êles vão arder e para sempre . . . Mas sabes que Jesus
Cristo entra hoje em Jerusalém para salvar todos os homens? Pro-
cura não encontrá-lo, ouviu ? E desce mais do que depressa tuas
escadas negras 1 ·
SÃo MIGUEL - t uma grande festa I Mas sei que antes de ser glorioso
à direita do Pai dêle, Jesus Cristo vai sofrer e morrer pelos pecados
dos homens, e são coisas muito tristes que vão ver pelos atos
que seguem... E agora subo novamente ao céu onde fico 1...
Amém 1... (Voí! para o céu). •
OUTRA CENA
JEsus CmSTo - Meus caros apóstolos, meu reino não é dêste mundo.
Em breve, deixarei vocês e depois vocês serão espalhados como
cameirinhos depois que o pastor desaparecer. Um dentre vocês
vai me trair 1
276
Os REIS MAcos - (Entram e cumprimentam) Senhor, somos os Reis
Magos e viemos te adorar de joelhos. Quando vimos você em
pec1uenino, ninguém sabia que eras filho de Deus. Agora, cres-
ceste e és um rei mais ilustre que n6s três juntos e que todos os
reis da terra.
JESUS CRISTO - Voltai para o Oriente, meus caros reis magos. Não vos
esc1uecerei. Mas voltarei, uma vez ainda, entre os homens, e então
não serei mais pequenino, pobrezinho e numa creche, mas com
cerimônia e nas nuvens, no dia do juízo fin al ( Os Três Reis Magos
saem).
JuoAS - (Que entra) Senhor, também venho te adorar e sabes o quanto
te amo 1. ..
JESUS CRISTO - Ah 1 :E: você, Judas l Não confio em ti.. .. O que
fizeste devia ser feito ... Vá acabar tua traição 1 (JUDAS sai),
SANTA MARIA - (Que entra) ô meu filho, estou inquieta. Apesar da
festa c1ue fizeram em tua honra, receio que te · façam mal.
JEsus CRISTO - Valha-me Deus, minha qu erida · mãe, vou sofrer muito.
SANTA MARIA - Por que não ficaste conosco, em Nazaré, meu querido
filho?
JESUS CRISTO - Minha cara mãe, esqueces que o anjo Gabriel veio · te
anunciar o men nascimento. Só nasci na terra para ensinar a
verdade e resgatar os pecados... Também preferiria ficar em casa
contigo e São José 1. . . Mas não deves ficar triste e, ao contrário,
alegrar-te · ( Ela sai). Minha hora chegou l Agora vou instituir os
sete sacramentos e depois começará minha paixão. Amém (Sai).
OUTRA CENA
277
JESUS CRISTO - São Pedro, tu és um bom sujeito, mas esta noite mesma,
quando o galo cantar, fingirás que não me conheces 1
SÃo PEDRO - Não, não, meu caro Jesus Cristo, não é possível I Seguirei
você por tôda parte, mesmo que seja preciso morrer contigo 1
JESUS CRISTO - Acredito. Fica aí com teus dois companheiros. Eu
vou um pouco mais adiante para rezar. Mas não vai adormecer,
pois não se deve cair em tentação.
Os TRts APÓSTOLOS - Pem1aneceremos de olhos abertos 1 (Jesus Cristo
afasta-se, cai de joelhos e abre os braços)
JESus CRISTO - Ph I meu pai que estás no céu, estás vendo como teu
filho é infeliz I Estou exausto e tudo só está começando. Oh 1
meu pai, minha alma está infeliz até à morte. Já não tenho mais
coragem e precisaria de muita. Ao longe, ouço o barulho das
armas que preparam. Vão me prender como um ladrão. Mas que
tua vontade seja feita, oh I meu pai, pois está esr;irito que o filho
de Deus será sl'tcrificado. Ah I agora estou suando sangue. Vou
desmaiar, meu pai 1 ( Uma luz acende-se e um anjo desce).
O ANJO - Oh I Rei dos Reis, filho de Davi, venho para te reconfortar.
l!;s aquêle que vai reinar sôbre as nações.
JEsus CRISTO - Obrigado, caro anjo I Irei até o fim da Paixão, pois
minha dor será a felicidade de todos os homens. Vá dizer ao meu
pai que está no céu que seu filho fará como está escrito no
Evangelho ( Então o anjo sobe e Jesus Cristo vai ter com os após-
tolos). Aie, que miséria I Eis que meus apóstolos adormeceram e
estão roncando enquanto eu estou ocupado em !1\"'orrer I Não posso
me zangar, porque estou triste demais. Eu bem que disse que
seria abandonado 1. . . (Sacode-os). Apóstolos, levantem-se 1. . . J;:
a hora em que o filho de Deus vai ser entregue aos malvados.
SÃo PEDRO - Caro Jesu11, estávamos tão cansados 1
JESUS CmsTo - A carne é fraca. Mas agora é tarde. Estou avistando
uma porção de soldados.
SÃo PEDRO - Vou te defender 1 ( Os soldados estão chegando. JUDAS
vem na sua frente) .
JUDAS - Vocês prendam aquêle que vou beijar (Aproxima-se) . Boa
noite, Jesus Cristo (Beija-o).
JEsus CRISTO - Coitado I Seria melhor para ti que jamais tivesses nas-
cido 1 ( Os soldados aproximam-se ) . Soldados, quem estão pro-
curando?
278
Os SOLDADOS - Jesus de Nazaré 1. . •
OUTRA CENA
HERODES - Então .. . onde está êste acusado? Vocês estão dizendo que
é um personagem famoso I Bem gostaria de vê-lo, pois estou me
chateando.
UM CAVALEIRO - Nobre rei Herodes, podemos chamá-lo. Está esperando
atrás da porta.
HERODES - Quero que entre 1
CAVALEIRO - (O cavaleiro vai abrir a porta e diz) Entre Jesus Cristo.
Jesus Cristo entra, todo atado. Os tr& fariseus vêm atrás
dêle, em fila.
Os FARISEVS - Nobre rei Herodes, fomos mandados pelo ilustre Ponse-
pilhato (TO) . !le disse que o negócio do acusado é da tua conta e
que você tem que se arrumar.
279
HERODES - :€ cacête, êste Ponsepilhato ! Enfim .. , vou dar um jeito.
O que é que o acusado fêz ? Matou, roubou, incendiou, fêz barulho
nas ruas pu fêz outra qoisa ?
. OUTRA CENA
A MULHER .:... o que é que voé'ê tem, meu querido Ponsepilhato? Você
está sonhando ?
280
PoNSEPILHAT0 - Não sei! Mandei o acusado para Herodes. Mas o
povo quer a morte dêle e permanece debaixo da minha janela.
Está ouvindo seus gritos?
O Povo - Morra I Morra Jesus Cristo !
A MULHER - Parece que trazem o acusado de volta 1
PoNSEPILHATO - Que maçada 1. . . Não sei o que devo fazer 1. •
( Entra um cavaleiro).
O CAVALEIRO - Senhor, não fica zangado, mas Herodes nãe, quer fazer
nada com Jesus Cristo e mandou-o de volta para ti. O povo
permanece em frente ao teu palácio e vai atirar pedras nas tuas
janelas se não lavrares a sentença, já.
PoNSEPILHAT0 - Então manda entrar o acusado 1
O povo - Morra ! Morra Jesus Cristo 1.. . ( Entra Jesus Cristo, seguido
pelos três fariseus).
PoNSEPILHAT0 - l!: você que se faz chamar o rei dos Judeus?
JESUS CRISTO - Sou eu !
PoNSEPILHAT0 - Acusam-te de muitas coisas e querem tua morte. Vais
te deixar acusar sem nada responderes às acusações? (Jesus Cristo
não responde). Senhores fariseus, acho que êste homem não fêz
nada de mal 1
Os FARISEUS - Senhor, o povo quer a morte dêle e se não o condenarc,,
escreveremos a Roma para dizer que o senhor governa mal o país.
PoNSEPO..HATO - Vocês são cacetes. Enfim . . . como é dia de festa patll
os judeus e é hábito soltar um prisioneiro, vou soltar um. Quem
querem, o pobre Jesus Cristo ou o bandido Barrabás?
Os FARISEUS - Vamos perguntar ao povo (Vão à janela). Quem querem
que soltem: o bandido Jesus Cristo ou o pobre Barrabás?
O POVO - Que soltem o pobre Barrabás 1•••
PoNSEPO..HATO - Cada vez fica pior 1. . . Tirem o bandido Barrabás
da cadeia I Não há mais justiça 1. . • E agora, senhores fariseus,
o que é que vão fazer com Jesus Cristo?
Os FARISEUS - Vamos perguntar ao povo (Vão à janela). O que é
que querem fazer com o bandido Jesus Cristo?
O POVO - Crucifiquem-no ! Crucifiquem-no !
PoNSEPILHATO - Ai de mim! São feras I Não posso fazer nada. Cavn-
leiros, levem o acusado à janela para mostrá-lo ao povo 1 ( Lev11m
281
Jesus Cristo até a janela e Ponsepilhato também vai à janela e
diz): Eis o homem 1•••
•
OUTRA CENA
O Povo - Jl: aqui que vai passar a procissão que leva Jesus Cristo à
morte com o bom ladrão e o mau ladrão. P~r que vão matar o
infeliz ? Fêz o bem, curou doentes, distribuiu pão. Amou a mãe
dêle e disse coisas que se a gente seguisse seríamos melhores uns
para os outros.
282
JEsus CRISTO - Ah I Que terrível via-sacra 1. . . Vou cair pela primeira
vez (Cai).
Os SOLDADOS - (Batem nêle) Levanta, miserávell (Jesus Cristo le-
vanta-se).
O Povo - Os soldados não têm piedade. . . Estamos chorando de tão
triste que tudo isto é 1..•
JEsus CRISTO - Pobre gente I Não chorem por mim, mas chorem antes
por vocês e seus filhos. Ah I Não posso mais I Vou cair pela
segunda vez 1
O povo - Olhem I Está cambaleando 1 (Jesus Cristo cai).
Os SOLDADOS - ( Batendo nêle) Levanta, miserável 1
JESUS CRISTO - (Levanta-se) Ah I Morro de sêde I Tu que estás
olhando para mim, não terás um copo d'água?
O JUDEU - Não I Não I Nada tenho para bandidos da tua laia 1. ..
JESUS CRISTO - Como castigo, terás de andar até o fim do mundo.
Vai calçar tuas botinas I Ah I Estou exausto, outra vez 1
o POVO - Olhem 1. . • Está cambaleando novamente 1..•
JESUS CRISTO - Não tenho mais fôrça I Vou cair pela terceira vez 1
( Cai).
O SOLDA.DOS - ( Batendo nêle) Levanta, miserável 1
SIMÃO DE CIRINEU - Quero ajudar êste infeliz ( Ajuda Jesus, que se
põe novamente a caminho).
Chegam os dois ladrões com suas cruzes, depois os juízes
e, no fim, um pelotão de soldados ao som do tambor. O povo
segue o cortejo. Então chegam um homem e uma mulher.
SÃo JosÉ - Coragem, Santa Maria. Está quase no Calvário 1•••
SANTA MARIA. - Não sei mais chorar e há sete espadas no meu cora-
ção. . . Que vão fazer com meu filho ?
SÃo JosÉ - Ai de nós I Vão crucificá-lo I Mas lembra-te que teu filho
é o filho de Deus I Toma o teu rosário e reza 1 ( Prosseguem o
caminho).
o JUDEU ERRANTE - ( Entra aos pulinhos) Ah I Como estou castigado 1
Eis que estou obrigado a andar até o fim do mundo I Haverá um
homem mais infeliz do que o judeu errante ?
283
JUDAS - (Entra) :ll: terrível. . . O que é que tive coragem de fazer ?
Vendi meu mestre por trinta cruzeiros ! . . . Haverá um homem
mais infeliz do que Judas? ...
PoNSEl'ILHATO - (Entra) Jl: terrível 1. . . Apesar de ter lavado as mãos,
bem sinto que condenei um inocente ! . . . Nunca mais poderei
dormir. Haverá um homem mais infeliz que Ponsepilhato ?
$Ão PEDRO - (Entra) E eu, São Pedro, reneguei Nosso Senhor quando
o galo cantou ! . . . Ele que foi tão bom para mim! Haverá um
homem mais infeliz que São Pedro ?
$Ão MIGUEL - ( Desce do céu) Sim, vocês são uns infelizes e todos
aquêles que não querem acreditar em Deus nem observar o que
a Igreja manda, também são infelizes. Mas o que vocês fizeram
foi anunciado pelos profetas. Judeu errante, erra pelo mundo ...
Judas, vá até o fim do seu desespêro 1. . . Ponsepilhato, fique roído
pelo remorso até tua última hora. E tu, São Pedro, chora tõdas
as lágrimas do. teu corpo até que te ponham caro a cabeça para
baixo. Amém.
Os QUATRO - Amém.
OUTRA CENA
284
Os FAJUsEus - Ah I Ah I Ah I Ah I Está com sêde 1. . . que lhe dêem
a beber vinagre numa esponja ( Um soldado o faz).
SANTA MARIA - Meu pobre filho I Como deves sofrer com teus pés
e tuas mãos pregados ...
JEsus CRISTO - Sofro principalmente, querida mãe, por te deixar sozinha
na terra I São João está contigo ?
SÃo Jolo - Aqui estou, Senhor 1
JESUS CRISTO - São João, vais te tornar o filho de Santa Maria, no
meu lugar, e cuidará dela até o dia em que a farei subir viva
ao céu 1
SÃ.o JoÃo - Prometo-o, Senhor 1
BABRABÁs - (Entra) Sou Barrabás, o bandido que vem ver aquêle que
condenaram no meu lugar 1•••
JESUS CRISTO - Bom ladrão, tenho piedade de ti, pois parece que estás
te arrependendo. Hoje estarás comigo no paraíso 1. • •
285
Os FAIUSEVS - Eis que os mortos saem dos túmulos I Fujamos 1
Fogem. O trovão aumenta. Há relâmpagos. O vento
sopra.
Os SOLDADOS - Vnmos embora I Matamos um santo! Os Turcos estão
chegando para destruir Jerusalém! Que desgraça 1 (Vão embora).
SÃo JoÃo - As Escrituras se cumpriram 1 (Toma nos braços Santa
Maria, que desmaiou).
OUTRA CENA
286
A MULHER DE JUDAS - ( Que entra) Onde está meu salafrário de ma-
rido ? Vi que vinha para cá.
JUDAS - (Enforcado) Estou aqui, senhora Judas. . • Alto e sêco, e
longe da minha felicidade 1. . . Estou ocupado a morrer. Mas olha,
mesmo assim, ainda te faço uma careta, velha bruxa 1
A MULHER - Que sorte I Não pensa que vou cortar a corda I Livrei-me
de boa 1. . . Mas espera aí. Ainda não acabaste comigo (Pega um
pau e bate nêle).
JUDAS - Ai. . . ai. .. ai... Oh I ai... Tenha pena de mim, minha
mulherzinha querida ..•
A MULHER - Pena de ti 1. . . Olhe ... quero arrebentar esta sua carcaça
de judeu ... Você é um espião, um safado, um salafrário ... Vou
bater em você até quebrar o pau.
JUDAS - Não mereci tanto 1. . • Ai.. . ai.. . ai.. . Minha bela ahna
vai embora 1...
A MULHER - Você morreu agora P
JUDAS - Morri 1 (Suspira).
A MULHER - Não é sem tempo I E já que fiquei viúva, vou casar-me
outra vez 1...
O DIABO - (O diabo surge) Com o diabo, senhora Judas 1
A MULHER - Socorro 1. . • O diabo 1
O DIABO - Em pessoa, senhora Judas I Agora você vai pegar seu marido
nas costas e carregá-lo ao Inferno 1 ( Cem diabos pequenos surgem
e envolvem a mulher. Dão gritos tremendos. Ela carrega Judas
nas costas e os diabos fazem um cortejo, cantando).
OUTRA CENA
Ainda é noite.
287
€ o signo da vitória do bem sôbre o mal 1. . . Mas quem é êste
personagem horr[vel que chega dançando, quando há luto por tôda
parte ? ( A Morte entra). Quem és tu, espectro branco ?
A MORTE - Sou a Morte 1•••
SÃo MIGUEL - E por que estás alegre, Morte lívida ?
A MORTE - Estou contente porque Jesus Cristo está com "Pfe-kiek" ( so).
SÃo MIGUEL - Estás mentindo I Jesus Cristo não está com "Pie-kiek".
Não morreu nem pode morrer ! . . . Amanhã, antes do sol nascer,
terá saido todo iluminado do seu túmulo ! Oh I Morte, não és mais
temível 1. . • O céu se abriu para todos os homens 1. . . € a eter-
nidade que começa 1•••
A MORTE - Não tenho mêdo de ti 1•• •
SÃo MIGUEL - li: assim ? Não queres me obedecer ? ( Começa a bater
na morte, que dá gritos terríveis).
A MORTE - Não nie mates, grande São Gabriel. ~olto à escuridão 1
(Sai).
SÃo MIGUEL - Vejo dois casais que se aproximam I Estou reconhecendo
êles ( Um casal vai para a esquerda, outro para a direita. tle se
dirige a êste casal). Bom dia, Santa Maria; bom. dia, São José.
Ainda estão tristes ?
Sio JosÉ - Não, São Miguel, porque os homens foram salvos.
SANTA MARIA - E eu, Santa Maria, mãe dêle, estou me tomando a
mãe de todos os homens ·1
-
SÃo MIGUEL - ( Ao casal da esquerda) Bom dia, Adão I Bom dia, Eva 1
Por que voltaram esta noite ?
A.nÃo - Voltamos para nos alegrar e para agradecer a Jesus Cristo que
redimiu o nosso :primeiro pecado !...
EvA - E eu expiei na dor por ter dado ouvidos à serpente. Mas nossa
culpa será apagada pelo batismo 1
SÃo MIGUEL - Ainda estou vendo outros homens que se aproximam
( Os apóstolos entram e colocam-se no fundo do palco) . São os
apóstolos I O que é que vão fazer, s~nhores apóstolos ?
SÃo PEDRO - Eu sou São Pedro e fui nomeado Papa. Irei a Roma
para fundar a grande Igreja de Jesus Cristo.
SÃo MIGUEL - Não vejo mais ninguém chegar. Eis o dia que nasce
( Faz-se a luz). 1l: domingo de Páscoa. Não sabeis da grande
notícia?
289
SÃO MwuEL - Alegremo-nos e celebremos o dia famoso com uma canção
(Cantam) .
SÃo MrGuEL - Onde vão, Santas Mulheres
Com êstes bons perfumes ?
Onde vão, Santas Mulheres?
290
SÃo MIG UEL - Que reina sôbre a terra
E também no céu todo,
Que reina sôbre a terra.
291
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