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Cidade Mercadoria, Cidade-Vitrine, Cidade Mascarenhas

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Caderno Virtual de Turismo

E-ISSN: 1677-6976
caderno@ivt-rj.net
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil

Mascarenhas, Gilmar
Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos
esportivos
Caderno Virtual de Turismo, vol. 14, núm. 1, noviembre-, 2014, pp. 52-65
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Río de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=115437784005

Como citar este artigo


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ARTIGO ESPECIAL

Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade


turística:
a espetacularização do urbano nos megaeventos
esportivos

Commodity city, shop-window cities, tourist city: the urban as spectacle


in sports mega-events.
Ciudad-mercancía, ciudad-vitrina, ciudad turística: la
espectacularización del urbano en los grandes eventos deportivos.

Gilmar Mascarenhas  < gilmasc2001@yahoo.com.br >


Professor associado e membro do quadro permanente do Programa de Pós-graduação em
Geografia (PPGEO) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

O presente trabalho foi apresentado na Conferência de Abertura do V Encontro de Hospitalidade


e Turismo e do I Seminário Internacional sobre Políticas Públicas de turismo, organizados pela
Faculdade de Turismo e Hotelaria da Universidade Federal Fluminense, entre os dias 25 e 27 de
setembro de 2013, na cidade de Niterói, RJ.

Formato para citação deste artigo


MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização
do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo. Edição especial:
Hospitalidade e políticas públicas em turismo. Rio de Janeiro, v. 14, supl.1, s.52-s.65, nov. 2014.

REALIZAÇÃO APOIO INSTITUCIONAL PATROCÍNIO

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Rio de Janeiro, v. 14, supl. 1, s.52-s.65, nov. 2014
Mascarenhas Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística

Resumo: No atual processo de reestruturação do capital, as cidades passam a assumir atribuições e iniciativas
que antes eram restritas ao Estado-nação, tornando-se um elemento indispensável na organização geográfica
das grandes empresas transnacionais. Este recente protagonismo das cidades se reveste de valores e estratégias
neoliberais, algo que David Harvey (2005) identificou e denominou “empresariamento (ou empreendedoris-
mo) urbano”, através de políticas que acentuam a competição entre cidades no cenário global. Este modelo
apresenta densa confluência com as transformações recentes no modo de preparar as cidades para sediar me-
gaeventos esportivos, especialmente as Olimpíadas. Surgem projetos fabulosos que resultam em maior visibi-
lidade e atratividade turística para as cidades. A relação entre turismo e grandes eventos é evidente. Todavia,
pouco se sabe sobre a dimensão precisa do real impacto destes eventos sobre a atividade turística. E sobre o
papel do turismo na espetacularização desses grandes projetos.
Palavras-chave: Megaeventos esportivos; Cidade espetáculo; Políticas urbanas.

Abstract: In the current restructuring of capital, cities begin to take responsibilities and initiatives that were previ-
ously restricted to the nation-state, becoming an indispensable element in the geographical organization of trans-
national big companies. This new protagonism of cities adopt values and neoliberal strategies, something that
David Harvey (2005) identified and named “urban entrepreneurism” through policies that enhance competition
between cities on the global stage. This model features dense confluence with the recent changes in the way cities
prepare to host mega-events, especially the Olympics. Fabulous designs arise and result in greater visibility and
tourist attractiveness to the cities. The relationship between tourism and major events is evident. However, little is
known about the precise dimension of the real impact of these events on tourism, and how tourism itself contrib-
utes to the spectacular dimension of these large projects.
Keywords: Sports mega-events; Spectacle city; Urban policies..

Resumen: En la actual reestructuración del capital, las ciudades empiezan a tomar responsabilidades e ini-
ciativas que antes estaban restringidos al estado nacional, convirtiéndose en un elemento indispensable en la
organización geográfica de las grandes empresas transnacionales. Este nuevo protagonismo de las ciudades
adoptan los valores y las estrategias neoliberales, algo que David Harvey (2005) identificó y nombró “empren-
dedorismo urbano” a través de políticas que ponen acento la competencia entre las ciudades en el escenario
global. Este modelo expone fuerte confluencia con los recientes cambios en la forma por la cual las ciudades
se preparan para acoger grandes eventos, especialmente los Juegos Olímpicos. Diseños fabulosos surgen y se
traducen en una mayor visibilidad e atractividad turística de las ciudades. La relación entre el turismo y los
grandes eventos es evidente. Sin embargo, poco se sabe acerca de la dimensión precisa del impacto real de es-
tos acontecimientos en el turismo. Y lo cuanto el turismo contribuye para aportar dimensiones espectaculares
a estos grandes proyectos.
Palavras clave: Grandes eventos deportivos; Ciudad espectáculo; Políticas urbanas.

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Mascarenhas Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística

Introdução
Os megaeventos esportivos se definem por um conjunto de competições periódicas, geralmente
quadrienais e que abrangem eventos de alcance planetário, tais como os Jogos Olímpicos de Verão,
os Jogos Olímpicos de Inverno e a Copa do Mundo de Futebol Masculino e eventos de alcance regio-
nal/continental, como os Jogos Pan-americanos, os Jogos Asiáticos, os Jogos da Comunidade (Britâ-
nica), a Eurocopa (futebol) e, em menor grau, os Jogos Africanos. Tais eventos vêm apresentando há
décadas crescimento constante e elevada capacidade de impactar as cidades onde são realizados. Ao
mesmo tempo em que atraem recursos e investimentos, mobilizam capital simbólico e geram focos
de resistência social.
A magnitude crescente de tais eventos tem como motor principal a poderosa aliança “mídia-
-esporte-negócios”, que articula a promoção global do evento a partir de milionários contratos tele-
visivos e patrocínio de grandes marcas comerciais, interessadas na ampla visibilidade internacional
proporcionada pelo espetáculo esportivo. Um poder crescente que leva cidades a lutar pela obten-
ção do direito de sediar tais eventos, tomados como incontestável alavanca para a dinamização da
economia local e, sobretudo para redefinir a imagem da cidade no competitivo cenário mundial.
Desfrutando de bilhões de espectadores, tais cidades se transformam, momentaneamente, no ad-
mirado centro das atenções em escala planetária. Tal poder dos megaeventos esportivos se apóia na
profunda reformulação (a “virada olímpica”) sofrida pelo olimpismo a partir de 1980, por ocasião
da gestão do catalão Juan Antonio Samaranch (1980 – 2001) e na gestão do futebol a partir de 1974,
quando o brasileiro João Havelange assumiu a presidência da FIFA, ambos baseados em princípios
arrojados de gestão empresarial do esporte.
Todavia, a expansão de tais eventos não se explica apenas pelas transformações (ainda que pro-
fundas e globais) na economia e gestão dos esportes. Tal crescimento encontra abrigo e repercussão
no cenário neoliberal contemporâneo e em aspectos cruciais de sua dimensão espacial. No atual
processo de reestruturação do capital, as cidades passam a assumir atribuições e iniciativas que antes
eram restritas ao Estado-nação. Para Rose Compans (2005), as cidades, na nova economia, são luga-
res chave para a produtividade e a reprodução do sistema capitalista. De acordo ainda com a autora,
a inserção das cidades na nova economia globalizada se deve a dois fatores: as cidades se tornaram
um elemento indispensável na organização geográfica das grandes empresas e os governos nacionais
terem perdido grande parte de sua capacidade governativa, resultando que os governos das cidades
surjam como agentes privilegiados para intermediarem a negociação entre os interesses do capital
global e os das coletividades territoriais (COMPANS, 2005, p.66).
Este recente protagonismo das cidades, no afã de maior projeção global, se reveste nitidamente
de valores e estratégias neoliberais, algo que David Harvey (2005) sagazmente identificou ainda em
seus primórdios e o denominou “empresariamento (ou empreendedorismo) urbano”. O autor apon-
ta os anos setenta como ponto de inflexão da reestruturação da economia mundial, com a transição
de um regime fordista-keynesiano para um regime de “acumulação flexível” e assim, no plano da
gestão urbana, a mudança do paradigma do administrativismo para o empreendedorismo urbano.
As construções de complexos turísticos e de lazer, centros de exposição, museus, shopping centers,
revitalização de centros históricos, além da realização de grandes eventos com seus ícones arquitetô-
nicos e seus recintos de consumo exclusivo e hedonista, são intervenções que compõem o repertório
de ações do modelo empreendedorista, acentuando a competição entre cidades no cenário global.
Este modelo se consolida mundialmente nas últimas três décadas e, conforme argumentaremos
aqui, apresenta densa confluência com as transformações recentes no modo de preparar as cidades
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para sediar megaeventos esportivos, especialmente as Olimpíadas. Surgem projetos fabulosos que
incidem sobre os espaços das cidades, alterando-os de forma cada vez mais incisiva, e que resultam
em maior visibilidade e atratividade turística (WEED, 2008; PREUSS 2004). A relação entre turis-
mo e grandes eventos é evidente. Todavia, pouco se sabe sobre a dimensão precisa do real impacto
destes eventos sobre a atividade turística, tendendo tal impacto a fazer parte do chamado “legado
intangível” (MIAH, GARCÍA, 2012).
Numa tentativa de melhor encadeamento de nossas reflexões, o texto se estrutura em três seg-
mentos. No primeiro, apresentamos a natureza e ascensão da cidade-espetáculo, ou seja, das formas
de produção de espaços urbanos que se oferecem como vitrine global para o consumo turístico e
para atração de investimentos. A seguir, tentamos mostrar como este modelo de cidade se articula
plenamente com os interesses do atual modo de produção dos grandes eventos esportivos, detentores
de amplo apelo midiático e desejosos de novas (e sofisticadas) espacialidades para exibir seu triunfo
no contexto da sociedade do espetáculo. Por fim, recorreremos a algumas situações empíricas, no
plano internacional, verificando experiências de mercantilização e espetacularização das cidades
por ocasião de grandes eventos olímpicos, e seus efeitos na produção de novos espaços turísticos.

Cidade espetáculo, cidade-mercadoria: o contexto


Nas últimas três ou quatro décadas, as transformações gerais do capitalismo repercutiram sobrema-
neira na produção e gestão das cidades em escala mundial. Em nossos dias, produtividade e compe-
titividade delineiam os principais parâmetros orientadores da questão urbana, não mais concebida
majoritariamente enquanto desafio histórico ao enfrentamento da injustiça social. Este conjunto de
transformações afetou profundamente a forma de conceber e realizar o planejamento urbano: as
cidades reconquistaram autonomia e importância, adquirindo crescente protagonismo no cenário
mundial (MARICATO, 2000).
Ao mesmo tempo, a tradicional matriz modernista-funcionalista de planejamento, dominante
até a década de 1970, vem sendo desmontada pela ideologia neoliberal que acompanha a reestrutu-
ração produtiva das últimas três décadas. A matriz em pauta se fundamentava na centralidade do
aparelho estatal e em padrões holísticos de uso e ocupação do solo urbano. Neste contexto, emerge
em seu lugar o chamado “planejamento estratégico”, cuja critica fundamental foi construída no Bra-
sil por autores como Carlos Vainer (2000; 2001). Na contramão do tradicional planejamento físico-
-territorial, de caráter holístico, o novo modelo de planejamento passa a enfatizar a implementação
dos chamados grandes projetos de desenvolvimento urbano como vetores privilegiados e “estruturan-
tes” do desenvolvimento. Operações emblemáticas, voltadas para a monumentalidade espetacular e
para a projeção da imagem urbana, tais iniciativas vêm, quase sempre, acompanhadas das parcerias
público-privadas, da desregulamentação edilícia, da concessão de vantagens fiscais e da privatização
dos espaços urbanos. Os grandes projetos de desenvolvimento urbano, a seu modo, sintetizam as
novas formas de fazer e refazer as cidades do capitalismo contemporâneo.
A lógica do mercado, alimentada pelas agências multilaterais e pelos consultores internacionais,
passa a dominar o debate, o discurso e a prática das administrações urbanas mundo afora, unifican-
do, num inusitado e curioso consenso, partidos e lideranças cuja tradição sugeriria antes a diver-
gência que a convergência (BIENENSTEIN, 2001). A gestão urbana empreendedorista pressupõe

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não apenas a presença de um governo local, mas uma coalizão de forças denominada de governança
urbana, que tem como premissa a atuação conjunta do governo local, da iniciativa privada e da so-
ciedade civil. A premissa implícita deste discurso, segundo Souza (2006, p.129), é a de que

O que é bom para as empresas e faz a prosperidade econômica aumentar também acaba sendo bom
para a população em geral. Desse ponto de vista, ao Estado local está reservado o papel de costurar
“pactos” e “consensos” locais, ajudar a criar um bom “ambiente de negócios” e promover a imagem da
cidade no país e no mundo.

Otília Arantes (2000) já havia chamado a atenção para a dimensão cultural de todo este processo
de reformulação do planejamento urbano: o negócio das imagens como nova fronteira de acumu-
lação e dinheiro, um verdadeiro culturalismo de mercado. Nesse sentido é necessário entender não
apenas como os lugares adquirem qualidades materiais, mas também como eles adquirem valor
simbólico mediante atividades de representação, como já dizia Lefebvre (1998). Por sua vez, Frede-
ric Jameson (2000) salienta esta integração crescente entre a estética e a produção de mercadorias,
dentre estas, a própria cidade. O turismo tem se utilizado amplamente desse recurso, ao acoplar
identidades culturais aos lugares, vendendo “etnicidades” e tradições locais.
Fernanda Sánchez acredita que as estratégias de marketing urbano utilizadas pelas lideranças lo-
cais se tornaram de fundamental importância para a divulgação dos atributos dos diferentes lugares
e das imagens construídas. São criados verdadeiros cenários, que na maioria das vezes, omitem a re-
alidade, aumentando a capacidade de atratividade do “produto cidade”, transformando os cidadãos
em meros figurantes, atores secundários de seu roteiro (SÁNCHEZ, 1999, p.118.).
Guy Debord (1992) [1967] já havia profetizado que a cultura teria papel central na próxima
etapa do capitalismo, a exemplo do papel cumprido em etapas anteriores pela ferrovia e pelo auto-
móvel. Infelizmente, a cultura em questão não é exatamente aquela produzida historicamente pelos
segmentos populares, fermentadas nos espaços de sociabilidade, no “espaço banal”, diria Milton
Santos, mas a cultura produzida nos circuitos da mercadoria, com o poderoso recurso da tecnologia
midiática. Sociedade do espetáculo, do simulacro, das representações. Neste quadro de valorização
do simulacro, emergem as retóricas competitivas expressas no city marketing. E, entre as estratégias
de city marketing se insere a promoção de grandes eventos esportivos, tema do próximo segmento,
quando procuraremos demonstrar como estes se beneficiam do modelo vigente de espetaculariza-
ção urbano, bem como este modelo, que tem o empreendedorismo como fundamento, se beneficia
dos megaeventos para conquistar visibilidade mundial e produzir seus espaços monumentais de
consumo.

Confluência de interesses: megaeventos e empreendedorismo


urbano
No plano internacional, é claramente perceptível que os megaeventos esportivos se tornaram, nas
últimas três décadas, uma das estrelas principais da atual “sociedade do espetáculo”. Contando com
volumosos recursos públicos e privados, e dispondo de fabulosa cobertura midiática, são eventos cuja
globalidade não se mede apenas pela mobilização de praticamente todas as nações do mundo, afilia-
das às respectivas entidades organizadoras internacionais e desejosas de participação nos certames.

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Ao estudar as Olimpíadas e seus impactos sobre as cidades sedes, adotamos a noção de urbanis-
mo olímpico (MUÑOZ, 1996): trata-se do conjunto de pressupostos e intervenções sobre as cidades
que acolhem os grandes eventos olímpicos. Trata-se, pela natureza intrínseca do fato esportivo, de
dotar as cidades de instalações específicas, que atendam às distintas modalidades, dentro de pa-
drões normativos internacionais. Mas, trata-se também, de criar condições de alojamento para os
milhares de atletas, pessoal de apoio e membros dos comitês olímpicos, bem como para a imprensa.
Além disso, quase sempre a cidade-sede requer expansão ou melhorias em sua infraestrutura geral
(transportes, telecomunicações, malha viária etc.). Trata-se, enfim, de um amplo conjunto de inter-
venções urbanísticas preestabelecidas pelas exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI) em
seu Caderno de Encargos.
Às exigências técnicas do COI, que já são extensas e onerosas, as cidades candidatas adicionam
uma série de outros projetos, para muito além das instalações esportivas e toda a logística do evento.
No afã de construir um projeto sedutor no âmbito da acirrada disputa pela conquista da condição de
cidade-sede, os governos apostam em projetos monumentais, de grande impacto na paisagem urba-
na. E estes resultam justamente da coalizão governamental com grandes interesses imobiliários e do
setor de construção civil. Neste sentido, a cidade olímpica se torna não apenas uma cidade dotada de
novas instalações, de ícones arquitetônicos e de ajustes no sistema de mobilidade: ela é, sobretudo,
subordinada, mais do que antes, aos interesses do grande capital. No Brasil, é notório o quanto os
megaeventos esportivos de nossos dias se inserem plenamente no modelo neodesenvolvimentista
em vigor, que acirra a concentração de capital e poder das grandes empreiteiras.
O interesse de governos urbanos pela promoção de megaeventos esportivos decorre não apenas
da necessidade de projeção global num contexto de “guerra dos lugares”, mas também da articu-
lação local de interesses do setor imobiliário e das grandes empreiteiras. Assim, a partir de 1980,
cada Olimpíada tem sido cada vez mais, uma rodada de grandes intervenções no espaço urbano,
incidindo na valorização da terra e processos de gentrificação. Juan Antonio Saramanch assumiu
a presidência do COI naquele mesmo ano de 1980, imprimindo à entidade uma nova perspectiva
gerencial, contendo uma estratégia de clara mercantilização do olimpismo (PRONI, 2008). Não por
acaso, os Jogos Olímpicos seguintes (Los Angeles 1984) foram um marco no processo histórico de
transformação dos jogos, no sentido do crescente poder empresarial em sua organização. O prin-
cipal legado para a cidade foi o aprimoramento de infraestrutura, particularmente viária e de tele-
comunicações. Desde então, a poderosa aliança “mídia-esportes-negócio” passou a orientar os pro-
jetos olímpicos, que se tornaram cada vez mais ambiciosos e impactantes. Neste sentido, em 1988,
os Jogos Olímpicos de Seul vão custar o triplo da edição anterior, a de Los Angeles (SHAW, 2008).
Ao mesmo tempo, o interesse em se tornar uma “cidade olímpica” cresceu vertiginosamente: para
os Jogos de 1980 havia apenas duas cidades candidatas; uma única candidata para 1984 (Los Ange-
les), e duas para 1988. Para os Jogos de 1992, já havia cinco cidades candidatas, igual número para
a edição seguinte. A condição de sede dos Jogos de 2004, por sua vez, foi disputada por dez cidades
(HORNE; MANZENREITER, 2006). Tal tendência se inscreve no processo mais amplo de trans-
formações recentes, o de afirmação de um cenário de competitividade global que leva as cidades a
desejarem maior projeção e visibilidade, e sendo o grande evento festivo pontual uma das formas de
city branding (GRAVARI-BARBAS, 2011).
Para além das instalações esportivas, Seul cumpriu projetos urbanísticos de elevada enverga-
dura, redefinindo centralidades e constituindo verdadeiros marcos na evolução urbana, projetan-
do no cenário internacional a potência do “Tigre Asiático”, e multiplicando a visitação turística.

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Evidentemente, ao custo de remoções forçadas dos seus habitantes: estima-se que 15% da população
tiveram de buscar novos locais para morar, e que 48 mil edifícios foram destruídos (ROLNIK, 2010).
E sua vila olímpica foi comercializada para a classe média alta, com base na estratégia de aporte sim-
bólico do evento como elemento de valorização imobiliária, outro marco importante na evolução
dos jogos, posto que do pós-segunda guerra até 1980 (Jogos de Moscou) prevalecia o uso posterior
das vilas como instrumento de política de habitação social no âmbito do Welfare State (MASCARE-
NHAS, 2004).
A edição seguinte, a de Barcelona, é por demais conhecida (MASCARENHAS, 2008; Delgado,
2007), e por isso evitaremos aqui comentar, e apenas registrar que superou os gastos de Seul. Mas,
o grande salto corresponde aos Jogos de 2004, em Atenas, e mais ainda a edição posterior, a de Pe-
quim. Mergulhada na recente crise econômica da “zona do euro”, a Grécia ainda hoje lamenta os
efeitos duradouros do endividamento e dos gastos exorbitantes com os jogos. Pequim, por sua vez,
exagerou a ponto de quadruplicar o custo do evento em relação ao anterior, no afã de exibir para o
mundo a nova potência e sua civilidade, sem evitar enorme violência e autoritarismo, conforme de-
talhou Broudehoux (2007). Realizou grandes investimentos na infraestrutura urbana, com destaque
para a expansão colossal do metrô e do aeroporto, mas serviu também para acentuar o processo de
segregação socioespacial em Pequim, com remoções em massa e destruição do patrimônio histórico
(os hutongs), além de edificar estruturas esportivas monumentais, imponentes, verdadeiros elefan-
tes brancos hoje abandonados, como o famoso Ninho de Pássaro (mais caro estádio da História) e
diversas outras instalações, posto que inúmeras modalidades esportivas não são praticadas no país.
Cumpre frisar que a noção de “elefante branco”, quando aplicada a estádios e outras instala-
ções olímpicas, resulta do fato de tais equipamentos terem sido planejados sem levar em conta as
demandas locais, e sim as do evento em si. Nesse sentido, é comum verificarmos a construção de
equipamentos superdimensionados para a realidade local, além de muito caros. Ou de equipamen-
tos cujo uso não se insere nas tradições ou mesmo nas possibilidades locais. Evidentemente, alguns
equipamentos são passíveis de projetos de reapropriação ou readequação para novos e rentáveis
usos após o megaevento esportivo, mas parece se tratar de uma minoria. E, mesmo quando alvo de
projetos inteligentes de readequação do equipamento, permanece a crítica quanto ao gasto público
mal encaminhado.
Também, embora em menor grau, as Copas do Mundo de Futebol reproduzem processos de
espetacularização e mercantilização que estamos discutindo neste artigo. O menor grau se deve ao
fato de uma Copa distribuir entre dez ou doze cidades o conjunto de investimentos e intervenções
urbanas, enquanto uma Olimpíada concentra tudo isto em uma única cidade, provocando assim
um impacto muito maior. No caso da Copa da África do Sul, em 2010, um fato despertou atenção
internacional e ainda hoje reverbera na mídia local, nos debates políticos. Na belíssima cidade de
Cape Town, um bairro costeiro chamado Green Point, muito bem localizado entre a área central dos
subúrbios mais nobres (como Sea Point), apresenta uma área livre e verde (daí a toponímia), outrora
utilizada como campo de golfe. Desde 1923, um decreto do rei George V estabeleceu a área como de
uso comum e perpetuamente destinada ao lazer, preferencialmente sem uso comercial. Este common
abrigava também um modesto estádio de rugby, esporte preferido pela população “branca” da cida-
de. Após a reforma do waterfront, que criou no antigo porto uma animada zona de lazer e turismo,
o local se tornou ainda mais valorizado.
Inicialmente, enquanto cidade-sede da Copa, Cape Town iria construir o novo estádio em uma
zona menos valorizada, e até começou a obra, quando a FIFA tomou uma decisão repentina, de con-
denar o plano anteriormente ajustado entre as partes, e “sugerir” que o novo estádio fosse localizado
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em área nobre e que assim oferecesse ao evento um cenário espetacular e digno de sua magnitu-
de: Green Point. O pequeno estádio de rugby foi ampliado e modernizado, tornando-se um novo
cartão-postal da cidade. O problema é que tal ampliação não estava nos planos nem nos limites do
mercado local deste esporte, que hoje enfrenta os elevados custos de tal equipamento. Considerado
o maior “elefante-branco” daquela Copa (temos outros em cidades como Mpulanga e Iokkane), a
única forma de tornar tal equipamento “economicamente viável” seria alterar toda a legislação para
a área, permitindo a construção de shopping centers e outros usos comerciais. Em outras palavras, a
cidade perderia mais uma área pública em favor da privatização e da mercantilização dos espaços.
O discurso oficial que busca legitimar todas essas operações recorre amiúde ao desenvolvimento
do turismo, como uma das supostas vantagens que determinada cidade teria ao sediar um megae-
vento esportivo. A grande visibilidade internacional e a criação de novos espaços e equipamentos
(monumentais e sofisticados) seriam promotores de uma nova onda de visitação. No entanto, o que
temos encontrado nem sempre condiz com esta perspectiva, de modo que o próximo segmento cui-
dará de apresentar algumas experiências recentes.

Turismo e megaeventos esportivos: uma relação problemática


Concordamos com Rémy Knafou (2008, p. 9), quando este afirma que aqueles que estudam a cidade
contemporânea e não percebem a importância do turismo correm o risco de revelar seu arcaísmo.
Ademais, a cidade global de nossos dias é eminentemente uma “metrópole festiva” (GRAVARI-
-BARBAS, 2011). Então cumpre refletir sobre o lugar e o papel do turismo e dos megaeventos nesta
perspectiva da cidade espetáculo: em que medida poderia a atividade turística agir no sentido da
formação de novos pólos de atratividade no espaço urbano? Como os megaeventos esportivos con-
tribuiriam na geração de novos pontos turísticos, ou na recuperação dos já existentes?
Montreal (1976) entrou para a história dos Jogos como o primeiro alerta para os riscos do gigan-
tismo e da monumentalidade extravagante. O caso do teto móvel do Estádio Olímpico tornou-se
alvo de muitas críticas, por seu alto custo e escassa operacionalidade, além de ter sido inaugurado
apenas onze anos após os Jogos e seguir inútil por sua incapacidade de suportar o peso da neve. Algo
que Roult e Lefebvre (2012, p.11), ao estudar o fracasso do evento, definiram como “extravagância
arquitetural”. Ou ainda, a desnecessária infraestrutura de apoio, como o aeroporto de Mirabel, fe-
chado mais tarde por sua inutilidade. O Parque Olímpico dispõe de boa estrutura de recepção e re-
cebe visitas regulares, mas não desfruta de prestígio local e persiste como um geossímbolo negativo
dos Jogos Olímpicos de 1976.
A década de oitenta, conforme apontamos anteriormente, representou um marco importante
na confluência de interesses envolvidos, entre o urbanismo empreendedorista e o um novo modelo
de organização dos megaeventos esportivos. No bojo da expansão econômica acelerada da Coréia
do Sul, para as Olimpíadas de 1988 a cidade de Seul investiu vultosas quantias e implementou um
projeto urbanístico de elevada envergadura. Ademais, conseguiu projetar mundialmente a imagem
da cidade, proporcionando efeitos multiplicadores a curto e médio prazo, consubstanciados no ver-
tiginoso aumento do afluxo de turistas (MCKAY; PLUMB, 2001). O evento propiciou a expansão e
ampla renovação do sistema de transporte, além da criação de um novo espaço de esporte, lazer e
turismo, o Parque Olímpico, remodelado em 2011 e amplamente citado na divulgação turística da
cidade. Localizado então numa área em expansão a leste do centro, hoje consolidada, pode ser con-

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siderado um caso bem-sucedido de desconcentração de pólos de atratividade na metrópole de Seul,


cujo número de visitantes cresce progressivamente (CHALIP, 2002).
Os famosos Jogos de Barcelona (1992) devem ser compreendidos dentro de seu contexto históri-
co. Temos por um lado um país em pleno processo de redemocratização, após décadas de ditadura
franquista, que vivia também um momento econômico privilegiado, pela recente inserção no bloco
europeu. Por outro lado, no contexto regional catalão, presenciamos a cidade de Barcelona em mo-
vimento de afirmação metropolitana, ratificando sua identidade cosmopolita e ao mesmo tempo
mediterrânea, com forte anseio de projeção internacional. Uma cidade que vivenciava nos anos
1980 uma experiência de planejamento que a tornou referência nos debates urbanísticos (MASCA-
RENHAS, 2010).
Os eixos mestres do “modelo Barcelona”, de acordo com Carreras e Tello (1998), os esquematiza-
mos e resumimos a seguir:

1) A revitalização do centro histórico, descompactando sua trama medieval, abrindo espaços


públicos e refuncionalizando inúmeros edifícios;
2) A recuperação da zona costeira, fachada da cidade, reinserindo-a na vida social urbana, atra-
vés do incentivo ao uso residencial e da implantação de atrativos turísticos e de lazer;
3) Alteração no uso do solo, gerando parques urbanos, novas centralidades e monumentalidades
na periferia, e recuperação/refuncionalização de equipamentos obsoletos, como fábricas fechadas,
terminais ferroviários subutilizados etc.;
4) A melhoria na infraestrutura de acesso, construindo túneis, anel viário, ampliação da rede de
metrô (rumo à periferia), enquanto na área central se multiplicaram as vias de uso exclusivo pedestre;
5) Implantação de grandes equipamentos urbanos em toda a área metropolitana, voltados para o
esporte, a arte e a cultura em geral, além da expansão fundamental da rede de esgoto.

Em síntese, o urbanismo olímpico dos Jogos de 1992 reflete uma cidade que contava com um
plano diretor de âmbito metropolitano e gerado no contexto da redemocratização espanhola. Por
isso, realizou a façanha de conjugar as exigências dos Jogos com os objetivos fundamentais da ges-
tão urbana, de estender infraestrutura e benefícios à periferia. Por isso, em vez de realizar a clássica
construção de um grande parque olímpico, Barcelona optou pela desconcentração, criando quatro
parques menores, espalhados pela cidade.
No que tange a criação de novos espaços turísticos, destaca-se a antiga zona portuária revitaliza-
da e, em segundo plano, a colina de Montjuic. Em ambos, a reestruturação se baseou em violentos
processos de remoção de moradores (DELGADO, 2007). Após os Jogos, a cidade conquistou gra-
dualmente a condição atual de grande centro de interesse turístico internacional. Barcelona parece
ter aproveitado muito bem a oportunidade de redesenhar a metrópole, em sua geografia e em sua
imagem global, a partir de um megaevento esportivo.
A edição seguinte, em Atlanta, nos Estados Unidos, representa um caso polêmico na história
recente dos Jogos, pela possível influência da Coca-Cola e da CNN no processo de escolha da sede
que celebraria o centenário dos Jogos Olímpicos da era moderna, para a qual se aguardava a eleição
de Atenas. No contexto nacional, representa simbolicamente o recente e acelerado processo de ex-
pansão econômica do “sul”, o chamado sun belt norteamericano. A principal instalação do evento,
o Centennial Olympic Park, situa-se ao norte da área central de Atlanta. Após o evento, o referido
parque tornou-se animado local de entretenimento e turismo. Dez anos após os jogos, e como le-

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gado destes, foi construído o Centennial Olympic Games Museum, com imenso acervo da história
esportiva e olímpica. Situado no norte da região metropolitana, representa um movimento efetivo
no sentido da geração de novos polos de atração turística fora da área central.
Os Jogos de Atenas (2004) enfrentam até hoje a imagem negativa que se produziu.Trata-se de
um projeto ambicioso (BURGEL, 2004) com forte impacto na infraestrutura, sobretudo no setor de
transportes, sendo a zona costeira sul a maior beneficiada (BERIATOS, GOSPODINI, 2004; HENRY,
2005). Todavia, a Vila Olímpica e o Centro de Atletas Olímpicos de Atenas, que foram construídos a
18 km ao noroeste da capital junto ao Monte Parnitha, tornaram-se símbolos da decepção nacional.
O mesmo pode ser dito do Helliniko Olympic Complex, criado onde havia um aeroporto, na orla sul
da cidade, envolvendo projeto de renovação urbana costeira. Trata-se de um esforço urbanístico no
sentido da criação de novas centralidades no espaço metropolitano, no entanto, o estado de abando-
no não atrai visitantes. Instalações dispendiosas para um país com poucas condições de arcar com
seus custos de manutenção. Os Jogos de Atenas, possivelmente, produziu mais “elefantes brancos”
que qualquer outro na história.
Atenas também apostou elevado na chamada arquitetura icônica ou emblemática. O teto do es-
tádio olímpico foi projetado pelo espanhol Santiago Calatrava, celebridade internacional no ramo.
Horne e Manzenreiter (2006) apontam esta tendência recente nos projetos olímpicos, qual seja en-
carecer as instalações (já comprometidas pelo risco posterior de tornarem-se inúteis e dispendiosas)
pela contratação de “estrelas” da arquitetura mundial. Segundo Vasso Trova (2010), houve grande
investimento na criação de novos espaços de entretenimento para além do consolidado centro histó-
rico ateniense, mas se nota uma segregação social no uso dos espaços de lazer, bem como segregação
entre nacionais e “estrangeiros”. Acessibilidade existe, mas além do quadro de abandono, o quesito
“segurança” continua sendo questionado.
Os Jogos de 2008 alcançaram o ápice do gigantismo olímpico, e somente podem ser compreen-
didos dentro do contexto de elevado crescimento econômico, regime político autoritário e desejo de
projeção mundial da imagem da “nova China” (AUGUSTIN, GILLON, 2004; OWEN, 2005). Agru-
pando hoje em torno de 16 milhões de habitantes e apresentando uma taxa de crescimento econô-
mico anual na impressionante casa dos dois dígitos, Pequim tornou-se uma máquina urbana difícil
de controlar. O mercado imobiliário, com a abertura da economia, apresenta elevado dinamismo
e vem redesenhando o mapa da cidade, erodindo projetos como o Inner Greenbelt, que previa um
cinturão verde abrangendo terras agrícolas, áreas verdes e reservas territoriais. Em apenas uma dé-
cada de existência este cinturão, invadido por projetos habitacionais, foi reduzido a quase um terço
da área original (HUANG, 2004).
As instalações olímpicas estão geograficamente concentradas ao norte da cidade, mais precisa-
mente entre o terceiro e o quarto anel viário (são seis no total), em zona de baixa densidade demo-
gráfica para os padrões chineses, com elevado impacto urbanístico na escala metropolitana. Por
outro lado, Pequim abriga uma população pelo menos cinco vezes maior que a de Barcelona, cidade
cuja escala os investimentos urbanos de uma Olimpíada tendem a causar impactos bem mais signi-
ficativos. Ademais, os Jogos de 1992 encontraram uma cidade mais bem resolvida em suas questões
estruturais e sem o desafio de um crescimento urbano tão acelerado, como enfrenta Pequim. A
capital chinesa empreendeu um vasto programa de transformações urbanas, com destaque para a
impressionante expansão do sistema de transportes.
O Estádio Olímpico tornou-se a segunda maior atração turística do país. Vizinho à outra mo-
numental obra olímpica, o Cubo d’ Água, o estádio garante ampla visitação anual. O custo ele-

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vado de tais obras, que praticamente não acolhem eventos esportivos, é bastante questionado.
Também foram amplamente denunciados processos violentos de remoção de centenas de milhares
de moradores, repressão política, criminalização de atividades informais e diversos outros aspectos
que comprometem a imagem internacional do país (BROUDEHOUX, 2007). Mas, do ponto de vista
estritamente turístico, tais mega-venues tornaram-se símbolos atraentes de uma “nova China”.
Em 2005, já na esteira de uma nova “orientação” do olimpismo, a candidatura de Londres foi vi-
toriosa, por seu projeto que articulava recuperação de áreas decadentes e periféricas e sua inspiração
em Barcelona. O projeto Rio de Janeiro, por sua vez, se aproxima do modelo Pequim 2008. Londres
e Rio de Janeiro, de alguma forma, refletem a “balança” olímpica, que ora pende para a manutenção
de sua imagem que permitirá sustentabilidade de seus lucros em longo prazo, ora pende para ganhos
mais imediatos. Os Jogos de Londres, por isso, representam a faceta pretensamente mais social e
“ambientalista” do discurso olímpico. O fato de ter sido concebido no âmbito de um governo socia-
lista (outra semelhança com Barcelona) confere ao projeto elementos muito distintos do verificado
no Rio de Janeiro, onde uma gestão assumidamente mercadófila é a mentora do projeto olímpico.
No Rio de Janeiro, os impactos na materialidade urbana são muito maiores que em Londres.
Aliás, os Jogos de 2012 custaram aproximadamente quinze bilhões de dólares, menos da metade do
gasto de Pequim 2008. Muito rara esta inflexão na curva de crescimento do custo dos Jogos Olímpi-
cos, “austeridade” premiada, pois atende à preocupação para com a imagem do movimento olímpi-
co. O Rio de Janeiro certamente gastará muito mais que a edição de Londres. Apesar da consultoria
catalã, dela herdamos apenas o modelo de apropriação e valorização de zonas marítimas para fins de
gentrificação e turistificação. Com o diferencial de fazê-lo em área muito maior, com impacto muito
mais profundo. Portanto, mais próximo do modelo de Pequim. Não apenas no volume de recursos,
mas no espírito autoritário, pelo uso da força e desrespeito aos direitos humanos, sobretudo no que-
sito habitação e na ausência de canais democráticos de participação política. O tipo e a intensidade
do turismo que tais áreas receberão somente saberemos no futuro, mas o presente já evidencia as-
pectos polêmicos, tais como a remoção em massa de moradores e de usos populares, a apropriação
privada de amplos recursos públicos e processo de patrimonialização que reduzem a cultura e a
memória local (a herança da negritude, por exemplo) a monumentos descontextualizados e clichês.
Ao estudar e propor a noção de urbanização turística. Mullins (1991) já chamava a atenção para
a formação de enclaves, como “redutos espaciais de consumo hedonista”. Nestes espaços de reali-
zação dos desejos, o bem-estar do turista não pode ser molestado pela presença de personagens e
usos alheios à fantasia do consumo. Portanto, todas as experiências aqui descritas, mesmo quando
bem-sucedidas do ponto de vista do afluxo de visitantes, quase sempre não escapam a um modelo
segregador, que acaba reforçando e refletindo a produção mais geral do espaço urbano contemporâ-
neo, quando no marco do neoliberalismo e do empreendedorismo.

Considerações finais
Nas palavras do geógrafo Jean-Marc Holz (2011, p. 9), a realização dos Jogos Olímpicos em cada
cidade cumpre um ciclo habitual de produção-gestão-promoção-patrimonialização. De fato, as ex-
periências aqui expostas expressam este movimento. Corroborando nesta direção, podemos vis-
lumbrar em cada megaevento um “ciclo de criação de espaços-suporte para a cidade festiva” (GRA-
VARI-BARBAS, 2011, p. 192). A questão que nos propomos a discutir neste artigo é justamente a

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articulação entre tais processos de turistificação e os interesses do empreendedorismo urbano, que
se materializam em cada megaevento esportivo e sinalizam o sentido da produção da cidade mer-
cadoria.
A mercantilização se aplica efetivamente a determinados “pedaços” do tecido urbano, justamen-
te por que ao grande capital somente interessa determinados espaços, e não o conjunto da cidade.
Tais espaços “interessantes” são aqueles que apresentam potencial de alta rentabilidade, de grandes
negócios, e tal potencial deriva de várias condições: estímulo de políticas públicas (linhas de crédito
especiais, subsídios etc.), a existência de bairros ou zonas obsolescentes em processo de renovação-
-requalificação urbana e outros contextos nos quais se abre, ao investidor, a famosa “janela de opor-
tunidades”, tão presente no discurso dos promotores de megaeventos esportivos.
Mas não podemos ignorar um outro lado da cidade mercadoria (ou outra “escala” da mercantili-
zação): aquele que a vende “por inteiro” e não “em pedaços”. Estamos falando agora de um processo
que se realiza no âmbito mais abrangente do city marketing, o da promoção global da imagem ur-
bana. Em outras palavras, vender a cidade “por inteiro” é promovê-la, reconhecendo e valorizando
seu potencial de realização de negócios e assim atrair investidores e turistas. A cidade se torna uma
“marca” internacional, de forma a valorizar todos seus atributos e espaços. O caso de Barcelona é um
dos mais paradigmáticos.
Ao falar de city marketing, estamos operando no plano simbólico. E este plano se tornou central
para a acumulação capitalista, através do controle hegemônico das imagens e informações, cenário
ideal para produzir lucrativas ilusões e camuflar as contradições. Mas a cidade mercadoria, espaço
abstrato, império do valor de troca, espaço concebido e globalizado, moldada para consumidores,
confronta os conteúdos sociais da cidade concreta. As manifestações sociais em massa que o Brasil
vivenciou em meados de 2013, por ocasião da Copa das Confederações, revelam o descontenta-
mento generalizado, mas também voltado para o caso específico dos gastos públicos para com os
megaeventos, em detrimento de setores essenciais. A sociedade civil reclamando o alardeado “pa-
drão FIFA” não apenas para estádios de futebol, mas também para os serviços públicos como saúde,
educação e saneamento.
Em suma, a cidade espetáculo não atende aos anseios da maioria. A cidade mercadoria exclui
amplos segmentos sociais. Portanto, mesmo quando se afirma que determinado megaevento obteve
sucesso na promoção do turismo, é preciso averiguar os custos sociais, culturais e ambientais deste
“sucesso”.

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