Conflit Os Massacres Me Mori As
Conflit Os Massacres Me Mori As
Conflit Os Massacres Me Mori As
ficha técnica
CONFLITOS, MASSACRES E MEMÓRIA DAS Índice
LUTADORAS E LUTADORES DO CERRADO 2022
Comissão Pastoral da Terra – Articulação das CPTs do Cerrado
Rua 19, nº 35, 1º andar – Edifício Dom Abel, Centro – Goiânia/GO
COORDENAÇÃO DA PUBLICAÇÃO
4 Apresentação
Amanda Costa
Valéria Pereira Santos
8 Cerrados brasileiros:
territorialidades em conflito
COLABORADORES
Antonia Laudeci Oliveira Moraes, Antônio Gomes de
Moraes, Altamiram Ribeiro, Etelvina Moreira de Arruda,
Edilene Alves da Silva, Leila Lemes de Moraes, Lucimone
Maria de Oliveira, Leuziene Lopes, Fátima Beatriz 22 Geografia dos conflitos
agrários como instrumento de luta:
Stringhi, Isolete Wichinieski, Maria das Mercês Alves de
Cerrado e Zonas de Transição,
Sousa, Mariana Verardi Bringhenti, Roberto Carlos de
Oliveira, Samuel Brito das Chagas.
Brasil 2003–2019
ILUSTRAÇÃO
Mauro Maroto - Estúdio Massa APOIO 78 Povos e comunidades do Cerrado:
o direito à memória, à verdade e à terra
IMPRESSÃO
TOP - Gráfica & Editora
120
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-994503-1-0
Homenagem às lutadoras
1. Conflito social - Brasil. 2. Trabalhadores rurais - Brasil.
e aos lutadores do Cerrado
3. Memoriais. 4. Cerrados - Brasil. 5. Violência - Brasil. I. Costa,
Amanda. II. Santos, Valéria Pereira.
CDD: 333.31
2
O primeiro artigo, do professor Car- geral dos conflitos em nível nacional,
los Walter Porto-Gonçalves – “Cerrados cujo eixo central é a terra – e a irreso-
brasileiros: territorialidades em confli- luta questão agrária –, detém-se sobre
to” – traz o percurso histórico-geográfi- a periodização, a natureza e a locali-
co e teórico sobre a questão até o qua- dade das ocorrências de conflitos, no
dro atual e oferece um referencial para período. A partir daí, se debruça sobre
os textos seguintes. Estabelece que os a particularidade desses conflitos nos
conflitos são mais do que de terra, são Cerrados e em suas Zonas de Transição
4 5
Camponeses do Assentamento de Re-
forma Agrária Roseli Nunes, em Mirassol
D’Oeste (MT), lutam para manter a sua
produção e comercialização agroecoló-
gica em um contexto de destruição das
políticas de reforma agrária e de incentivo
à comercialização camponesa, enquan-
to enfrentam a ameaça de expropriação
por projetos minerários de fosfato e ferro
ligada aos interesses de políticos e do
agronegócio do estado.
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Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito
CERRADOS BRASILEIROS:
um lugar ao Sol, assim como ninguém planta sem água. Muitos dos conflitos por terra hoje
vêm se dando em função do impedimento do acesso à água, seja por seu envenenamento/
poluição, seja pela alagação de áreas ribeirinhas de posseiros e outras comunidades em fun-
TERRITORIALIDADES ção de barragens públicas ou privadas, ou ainda em função da apropriação desigual da água
sobretudo por iniciativa de grupos/classes poderosas.
EM CONFLITO
Carlos Walter Porto-Gonçalves1 TERRITORIALIDADE diz respeito à dimensão cultural através da qual determinado grupo social
dá sentido à sua relação com o espaço onde produz/reproduz a vida. Na verdade, trata-se
de uma dimensão indissociável do conceito de território e acompanha a aventura humana
por meio da qual os diversos grupos sociais se territorializam. Assim, há uma tríade concei-
tual indissociável entre território-territorialidade-territorialização: não há território que não
comporte determinada territorialidade que não tenha sido conformada por um processo de
territorialização com/contra outras territorialidades.
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DESENVOLVIMENTISMO diz respeito a todo um conjunto de ideias (teorias e ideologias) que
praticamente dominou o debate político acerca das relações internacionais a partir dos anos
1950. Segundo Arturo Escobar (1998), a expressão “desenvolvimento” começou a ganhar sen-
tido a partir de uma afirmação do presidente estadunidense H. Truman, em 1949, que definiu
como subdesenvolvido aquele país em que se vive com menos de 2 dólares per capita diários.
Na verdade, o debate em torno do desenvolvimento-subdesenvolvimento, que conforma o
que denominamos desenvolvimentismo, após a 2ª Guerra Mundial passou a ocupar o debate
que até antes da guerra girava em torno da ideia de civilização com que os europeus justifi-
cavam suas ações colonizadoras fora da Europa. O fim da 2ª Guerra expôs os limites do colo-
nialismo com a denúncia da desigualdade entre as nações, que, todavia, passou a ser lida por
uma chave ainda colonizadora como a ideia de desenvolvimento-subdesenvolvimento, como
se houvesse um caminho único através do qual todos os povos estivessem condenados a
seguir. É como se a colonialidade sobrevivesse ao fim do colonialismo que teria terminado
com as independências dos países. A ideia de uma mesma trajetória de desenvolvimento que
haveria de ser seguida por todos os povos e nacionalidades continuou a dominar o debate
no qual a superioridade da civilização europeia continuaria a dominar corações e mentes,
desqualificando outras civilizações e culturas que se afirmaram a partir de outros lugares e
continentes. O capitalismo, o racismo e o patriarcado continuaram a dominar o debate apesar Crédito: Nilmar Lage
dos esforços de diferentes correntes políticas e filosóficas em combatê-los, como as socia-
listas, comunistas e anarquistas.
ritórios do Planalto Central tinha base lado o caráter colonial dessa expressão
na ideia que vinha do período colonial “descoberta do Brasil”, aproveitando-
tral brasileiro, em 1960. Era o auge do do Planalto Central, iniciando um pro- de que se tratava de “vazios demográfi- -nos do fato de que Josué de Castro a
desenvolvimentismo brasileiro com cesso de valorização das terras dessa cos”, terras de ninguém, terra nullius5. usa exatamente num sentido aberta-
seu lema de “50 anos em 5” animado imensa região. O geógrafo Aziz Ab’ Sa- mente anti-colonial. Talvez em toda a
pela ideia de superação do subdesen- ber calculou em torno de 190 milhões O Brasil vivia naquela época um ten- história do Brasil as classes dominantes
volvimento visto como “solo fértil para de hectares4 com seus “chapadões re- so e intenso debate sobre seus destinos, jamais tivessem se visto tão ameaçadas,
a disseminação de ideologias espú- cobertos por cerrados e penetrados por num momento em que era grande a sobretudo diante da mobilização popu-
rias”, conforme as palavras do então florestas-galerias” (AB’SABER, 1973). mobilização nacional e popular, que já lar de alcance nacional.
Presidente JK (LIMOEIRO, 1978). vivera momentos dramáticos em 1954
O Brasil passava, então, a deixar de com a morte de Getúlio Vargas. O gran- O cenário internacional se esquen-
Brasília passaria, então, a ser uma ser só litoral e se interiorizava confor- de geógrafo e médico Josué de Castro tava com a “Guerra Fria”6 ganhando o
verdadeira cabeça de ponte de onde me o projeto geopolítico acalentado pe- chamara a atenção, em seu livro Sete continente americano com a Revolução
viriam conexões que interligariam as los militares desde finais do século XIX palmos de terra e um caixão, publicado Cubana. O imperialismo estadunidense
capitais dos estados à nova capital fe- (VESENTINI, 1987). Para as classes do- em 1965, que estávamos diante da “se- soube tirar proveito do “grande medo”
deral. Com isso, toda uma logística de minantes brasileiras, incutidas de co- gunda descoberta do Brasil”, quando o (LEFEBVRE, 1979) das oligarquias lati-
transportes passou a cortar os Cerrados lonialidade, a conquista daqueles ter- povo brasileiro, agora sim, havia desco- no-americanas, ameaçadas por baixo
berto o Brasil com o grande movimen- e de dentro, e encontrou no exterior
4. Uma área equivalente a todos os países da Europa Ocidental desde o Mediterrâneo até a Escandinávia. to das Ligas Camponesas. Deixemos de aliados, inaugurando, então, uma nova
5. A diplomacia brasileira historicamente lança mão do princípio jurídico do uti possidetis de facto - segun-
do o qual têm direito sobre um território os que de fato o possuem -, para reivindicar o domínio territorial
e assim demarcar suas fronteiras externas. Interessante que, ao mesmo tempo, o estado brasileiro negue 6. Guerra Fria é uma expressão consagrada após os anos 1950 que diz respeito à tensão geopolítica que se
esse mesmo princípio aos seus povos e comunidades que tradicionalmente estão em posse de terras e instaurou entre o capitalismo e o socialismo, com a polarização entre os EEUU e a URSS. Era como se vivês-
demais condições necessárias à reprodução metabólica da vida com suas territorialidades próprias. semos sob a ameaça de uma guerra que poderia se tornar quente a qualquer momento.
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Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito
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Crédito: Andressa Zumpano
A renda da terra e a
tensão de territorialidades
Para que entendamos a enorme con- sas áreas planas (calculadas em cerca de
flitividade que, desde então, se estabe- 190 milhões de hectares), onde o mundo
lece nas regiões dos Cerrados, é preciso “carece de fechos”, ou seja, onde não há
que levemos em conta uma dimensão cercas, pois as terras são de uso comum Crédito: Nilmar Lage
geográfica decisiva no metabolismo so- pelos povos e comunidades tradicionais
cial de reprodução da vida dos povos e que ali habitam. Muitas comunidades se
comunidades que ali habitam há mais autodenominam como geraizeiras, pois
de 10 mil anos. Foi nos Cerrados de Mi- usam as “terras gerais” cujo nome deri-
nas Gerais que foi encontrada Luzia, o va justamente de serem terras de uso co-
fóssil humano mais antigo do Brasil, da- mum, sem cercas, enfim, onde ninguém
tado de 11.500 anos. Enfim, o Brasil nem fica privado de acesso à terra: são gerais.
sonhava em ser Brasil e já havia gente Ali, naquela unidade da paisagem, nos Nos estados do Cerrado, comunidades
habitando os Cerrados. Povos indígenas Gerais, “a água não empoça, sorveta”, se inteiras resistem contra toda tentativa
de variados troncos linguísticos já os infiltrando “feito azeitim entrador”, dizia de desestruturação do modo de vida
habitavam há milênios e, depois da in- Guimarães Rosa. Ali se coletam frutos, tradicional e a biodiversidade que
vasão portuguesa em 1500, os Cerrados resinas, raízes para remédios e tantas garante a existência dos povos e a ma-
se viram ocupados por negros que fu- outras coisas que alimentam o estôma- nutenção da vida em seus territórios,
giam da escravidão para criar territórios go e a fantasia. Cria-se ali também gado. considerados sagrados.
Crédito: João Zinclar
de liberdade (quilombos), assim como Na outra grande unidade da paisagem,
por brancos pobres que conformaram as veredas (nos baixões, nos pântanos,
diversas formas de serem camponeses. nos brejos), abundantes em água, se faz
Muitas dessas formas se apresentam, um roçado, criam-se pequenos animais, além de regular as duas maiores áreas Esse padrão de organização do espa-
hoje, como povos e comunidades tradi- se faz a casa. continentais alagadas do planeta, a sa- ço forjou múltiplas territorialidades até
cionais: geraizeiros, veredeiros, vazan- ber, a do Pantanal e a do Araguaia. que, nos anos 1970, chegaram os “pi-
teiros, retireiros, quebradeiras de coco Observe-se que a ausência de práti- vôs da discórdia”, como lhes batizaram
babaçu, comunidades de fundo e fecho cas propriamente agrícolas nas chapa- As duas unidades da paisagem – as os camponeses do Riachão, em Minas
de pasto, e um largo et cetera. das se deve sobretudo ao fato de a água chapadas e as veredas – são usadas em Gerais (Porto-Gonçalves, 1997 [2001]).
“sorvetar”, o que foi notado pela enorme complementariedade, em reciprocida- Os pivôs centrais foram os principais
O mais interessante desse encontro/ sensibilidade de Guimarães Rosa na de, e com isso, depois de milênios e sé- meios de acesso àquela água que antes
desencontro conflitivo é o fato de que escuta dos geraizeiros. Ou seja, a água culos de ocupação, os Cerrados chega- “sorvetava”, se infiltrava feito “azeitim
essas múltiplas territorialidades tradi- não estava disponível na superfície das ram até muito recentemente, nos anos entrador”, e que, agora irriga enormes
cionais se forjaram durante milênios/sé- chapadas, pois infiltrava-se rapidamen- 1970, ricos em água e em biodiversida- latifúndios monocultores de soja, euca-
culos com base no uso das duas grandes te. Considere-se que essa qualidade do de, e com uma enorme diversidade cul- lipto, algodão, milho, entre outras plan-
unidades da paisagem com que apren- metabolismo dos Cerrados se configu- tural com suas múltiplas territorialida- tações. Com os pivôs centrais, a água
deram a lidar: as chapadas e as veredas. ra como área de recarga hídrica que des. E essa diversidade cultural que se passa a ser captada cada vez em profun-
Nas palavras do grande escritor Guima- alimenta a maior parte das grandes ba- forjou, como seu fator determinante, didades maiores em função do rebaixa-
rães Rosa, na sua obra máxima Grande cias hidrográficas brasileiras, como a com base no uso complementar/recí- mento dos lençóis freáticos. Aliás, cada
Sertão: Veredas (ROSA, 2001), os “grandes do Amazonas, a do Tocantins, a do São proco de chapadas e veredas. vez mais se fala de aquíferos e menos de
sertões” são as enormes chapadas, imen- Francisco, a do Paraná e muitas outras,
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lençol freático, o que dá conta da pro- dentada para preparar a terra e colher a
fundidade com que se busca a água e a produção, maior seria o gasto de ener-
da profundidade da crise hídrica social- gia e menor a renda da terra.
mente produzida. Rios, veredas, lagos e
brejos passam a secar. A água, de fonte Assim, por essa conformação do re-
da vida, torna-se fonte de conflitos. levo e pela enorme disponibilidade de
água, o controle dessas terras das cha-
Além disso, as máquinas ceifadeiras, padas se tornou uma verdadeira obses-
colheitadeiras e outras consomem mui- são para o grande capital. E o Estado
ta energia em seus motores, e o fato de cumpriu um papel decisivo ao garan-
as chapadas serem planas e em enor- tir aos grandes proprietários de terras
mes extensões proporciona uma renda nacionais e internacionais o acesso a
diferencial da terra por fertilidade deri- essas terras e águas, onde é comum a
vada dessa topografia, pois permite me- prática da grilagem com as fraudulen-
Crédito: Andressa Zumpano
nor investimento de capital em energia, tas validações de propriedades por um
o que não é qualquer coisa num modo sistema judicial viciado pelo controle
de produção agrícola altamente depen- das oligarquias8. Não bastassem esses
isenta de cobrança de impostos de ex- dos Cerrados (desmatamento, expro-
dente de consumo de energia. Tives- mecanismos de controle das terras, fo-
portação as commodities agrícolas e mi- priação e contaminação das águas) e o
sem essas máquinas que subir e descer ram também criadas legislações espe-
nerais, aumentando assim a apropria- genocídio cultural de seus povos, que,
numa topografia ondulada ou mais aci- cíficas, como a Lei Kandir, de 1998, que
ção de renda pelo complexo de poder sem seus territórios, não podem mais
do agribusiness. exercer suas territorialidades.
RENDA DA TERRA é um conceito atribuído a David Ricardo (1772–1823) e retrabalhado na tra- Desse modo, as chapadas e os chapa- Enfim, trata-se não só de um conflito
dição marxista que diz respeito à renda diferencial proporcionada pela fertilidade da terra dões deixam de ser de todos, de serem por terra, embora de algum modo o seja,
ou pela posição geográfica diante da mesma quantidade de trabalho. Em outras palavras, um gerais, de ser terras de uso comum, con- mas também de conflitos de territoria-
mesmo esforço de trabalho implica maior ou menor renda a depender da qualidade das con- forme as territorialidades indígenas, lidades, de modos de usar e significar
dições metabólicas da terra, como a fertilidade que pode derivar da qualidade de nutrientes quilombolas e camponesas, e se veem material e simbolicamente as condições
do solo, da disponibilidade de água ou mesmo da topografia do terreno, como se destaca privatizadas. Desde então, as águas necessárias à produção/reprodução do
nos Cerrados por suas chapadas e chapadões. A renda diferencial também deriva da maior
já não minam, posto que os Gerais fo- metabolismo da vida. Considerar ape-
ou menor proximidade dos mercados pelos custos dos transportes, como destacado por J-H
ram privatizados (PORTO-GONÇALVES, nas o conflito por terra é assumir um
von Thünen (1783–1850). Pela destinação aos mercados mundiais dos grandes volumes de
1997 [2001]). Com isso, quebrou-se o dos lados em conflito, o daquele que vê
produção e por sua localização interiorizada no território brasileiro, o agribusiness que vem
se impondo nos Cerrados contra seus povos e comunidades depende de uma complexa lo-
uso complementar e recíproco daque- as condições de produção/reprodução
gística para que possa se apropriar da renda diferencial por localização, diminuindo o tempo las duas unidades da paisagem numa da vida medidas em área, por hectare,
de circulação. Esclareça-se que a renda diferencial, sob o capitalismo, é apropriada a partir espécie de “cercamento dos campos” o que implica uma tradição de direito
da renda absoluta, que é o tributo que a sociedade paga ao proprietário privado. Afinal, a (enclosure) tropical. Com essa ruptura, própria, a do direito liberal, que funda a
condição da propriedade privada permite ao proprietário cobrar um tributo pelo fato de ser os povos e comunidades tradicionais apropriação como propriedade privada.
proprietário, por ter o monopólio da terra, enfim, de algo que, no caso, não é fruto do trabalho. ficam cada vez mais encurralados, isso Para esses, a complexidade das condi-
Viver de renda, conforme a expressão popular. quando não são simplesmente expulsos ções de produção/reprodução da vida se
de suas terras, de seus territórios forja- reduz à terra como extensão, pois a ter-
dos com o uso das chapadas e veredas ra mesma, como metabolismo de repro-
8. O jurista baiano Nestor Duarte faz uma fina caracterização desse processo de controle político a partir de modo indivisível. Com isso desen- dução da vida, eles creem poder corrigir
da “ordem privada” em seu livro cujo título sintetiza bem esse processo: Ordem privada e organização polí- cadeia-se, a um só tempo, o ecocídio com o uso de fertilizantes e agrotóxicos.
tica nacional (DUARTE, 1966). Devo ao professor Milton Santos a indicação desse livro.
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Territorialidades
Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito
do Cerrado
Domínio Cerrado
e Transições:
18 19
Bibliografia
20 21
Crédito: Andressa Zumpano
GEOGRAFIA DOS
de estar no mundo. Quando se fala em
conflitos por terra, é possível encon- A formação territorial do Brasil vem
sendo, desde a colonização, baseada na
CONFLITOS AGRÁRIOS COMO
trar manifestações ao longo de toda a
história do Brasil. E, como explica Por- concentração de terras e consequente
concentração de poder. Terras essas,
INSTRUMENTO DE LUTA: to-Gonçalves (2006, p. 12), a formação
dos territórios não é algo externo ou usurpadas dos mais diversos donos da
CERRADO E ZONAS DE desassociado da sociedade que neles terra por meio de violência desde a
existem. Pelo contrário, “o território é chegada dos colonizadores. Atualmen-
TRANSIÇÃO, BRASIL constituído pela sociedade no próprio te, no campo brasileiro, o avanço do
processo em que tece o conjunto das processo de apropriação da terra pau-
2003–20191 relações sociais e de poder”. Sendo as- tado no modelo capitalista moderno
sim, não é coincidência que temos vis- colonial (PORTO-GONÇALVES, 2006)
Julia Nascimento Ladeira2 1. Agradeço o importantíssimo trabalho realizado pela equipe responsável pelo CEDOC Dom Tomás Balduíno,
que, com o rigor científico e a sensibilidade no acompanhamento e acolhimento de denúncias das comuni-
dades, permitem que as vozes daquelas e daqueles implicados na luta por seus territórios sejam potencia-
lizadas. Agradeço também ao Prof. Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves, coordenador do LEMTO-UFF (Labora-
tório de Estudos em Movimentos Sociais e Territorialidades) e aos demais companheiros pesquisadores do
LEMTO, uma vez que o presente trabalho é uma síntese de anos de acúmulo coletivo. E ainda, à Articulação
das CPTs do Cerrado, pela rica parceria e por trabalhar para que essa e outras pesquisas cheguem nas
mãos dos que estão na ponta da lança e possa ser utilizada como instrumento de luta.
2. Geógrafa, pesquisadora do Eixo de Conflitos Agrários do LEMTO-UFF e militante do MTST (Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto).
22 23
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
vem deixando marcas de privações, so- documentam, mas sim de lutas identidades coletivas, motiva- abraçamos é aquela que se forja a par-
bretudo para um leque amplo de povos, pela afirmação de modos de ções e interesses compartilha- tir do olhar dos grupos/classes sociais
comunidades e grupos étnicos e sociais existência haja vista que estão dos, estratégias de luta, assim que vêm de baixo, daqueles e daquelas
com diferentes culturas que lutam con- em posse real de uso de seus como formas de organização e que já estão na terra e cuja existência
tra essa lógica violenta da concentra- territórios. Nesses casos, esses manifestação (PORTO-GONÇAL- se contrapõe às formas hegemônicas
ção de terra e de poder. modos de ser próprios lutam pela VES, 2006, p. 2). de produção, assim como daqueles e
dignidade de seus modos de vida
daquelas que lutam para ter acesso à
A disputa pela terra deve, então, ser e, em geral, para eles, a terra é
terra. Esses grupos/classes sociais, com
entendida como disputa pelas condi- condição da vida em reprodução Assim sendo, há grupos sociais
o avanço violento do capital no campo
ções metabólicas de reprodução da cultural e metabólica, simbiotica- que veem a terra como recurso para
mente (PORTO-GONÇALVES et al., brasileiro, apesar de se encontrarem
vida (PORTO-GONÇALVES et al., 2018) acumular capital e renda, enquanto
2019, p. 114. em posição relativa de subalternização
que incluem não somente a terra pro- há outros, muito diferenciados entre
frente às classes de grandes empresá-
priamente dita, mas também a água e si, que querem a terra para produzir/
rios, fazendeiros etc., não são compos-
a vida (solo-fauna-flora). Assim, a con- reproduzir a vida com seus modos pró-
Por isso, as relações das populações tos de sujeitos que se calam. Ao contrá-
centração da terra implica concentra- prios de ser.
tradicionais com seus territórios são rio, a história da disputa pela terra no
ção de condições de vida e, por isso, centrais nos conflitos. Brasil está conformada por ações de
Assumimos, em nosso trabalho, a
a luta pela terra transcende a luta por resistência, luta por direitos e retoma-
perspectiva dos grupos sociais cuja
um “pedaço de chão”. A terra, com suas A partir desse entendimento, os con-
afirmação depende, objetivamente, da de terras protagonizadas por esses
conotações materiais e simbólicas, é o flitos agrários constituem-se em uma
do acesso à terra para produzir/repro- grupos diversos.
que permite que culturas e modos de forma de manifestação concreta das
duzir a vida com seus modos próprios
vida os mais diversos se reproduzam, contradições e das disputas que vêm
de ser e de viver. A objetividade que
como vêm fazendo diferentes povos, al- se dando há séculos no Brasil. O olhar
guns há milhares de anos, como os in- dos conflitos agrários aqui adotado está
dígenas, e outros há centenas de anos, longe de ser um olhar neutro, embora
como os quilombolas e outras denomi- reivindiquemos a objetividade. Pois a
nações camponesas. Assim, a simples apropriação da terra, assim como de
existência dessa diversidade de comu- tudo que nela está implicado, tem um
significado essencial na constituição
nidades, povos e culturas torna-se um
ato de r-existência, fazendo frente ao das relações sociais e de poder. Em Panorama geral de conflitos no Brasil
avanço de um modo de vida e produção torno do seu controle, há um tenso e
que privatiza, individualiza, viola, vio- intenso processo ao qual grupos sociais
lenta e tem como objetivo primordial a se conformam através da territorializa- A centralidade da terra e a Henrique Cardoso -1995/2002 (FHC), e
a perspectiva de vitória para o cargo de
obtenção do lucro. ção-desterritorialização-reterritoriali- questão agrária
zações. O conflito agrário constitui-se, presidente da República de um ex-ope-
Dizemos r-existência para res- portanto, como O início do século XXI correspon- rário metalúrgico e líder sindical, que
saltar que não se trata somente deu no Brasil a um período de grandes construiu sua trajetória política a partir
de resistir à ação do capital, [...] manifestação concreta dos mobilizações de movimentos sociais de lutas sociais, influenciaram as mo-
quase sempre em conivência antagonismos de grupos e clas- bilizações. Isso se reflete nos números
rurais de luta por terra e em defesa da
com os governos/agentes (que ses e por meio dele se evidencia de ocorrências de mobilizações no pri-
reforma agrária. As investidas de cri-
deveriam ser) públicos, conforme a experiência concreta de cons- meiro ano de governo do presidente
minalização de movimentos sociais
os históricos dos conflitos re- trução de sujeitos sociais, onde Lula em 2003.
se configura a construção de pelo governo anterior, de Fernando
gistrados pela CPT amplamente
24 25
O recorte temporal que analisamos Essa faceta da política econômica
tem início no ano de 2003 e segue até internacional pautada no consenso das
20193, ano mais recente com dados de commodities (SVAMPA, 2012) manifes-
conflitos consolidados pelo Centro de ta-se no princípio do século, especial-
Documentação Dom Tomás Balduino, mente no que diz respeito à América
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Latina e aos demais países emergentes.
no momento de conclusão da análise . A China passa a se sobressair como uma
O início do recorte em 2003 adota a pe- nova potência mundial e assume o pa-
riodização realizada por Alentejano e pel antes desempenhado pelos Estados
Porto-Gonçalves (2010), que analisaram Unidos da América na prevalência das
as tendências dos conflitos por terra de relações comerciais com o Brasil (SILVA,
1985 até 2009. Segundo os autores, o pe- 2019), em particular na compra de com-
ríodo entre 2003 e 2009 é o “de maior modities. Diversos governos progressis-
conflitividade em toda a série histórica tas da América Latina voltam-se para o
de 25 anos. É o período recordista na fortalecimento das atividades extrativas
média anual de conflitos e o segundo de grande escala para a exportação de
na média anual de famílias envolvidas bens primários, sustentados pelo boom
Crédito: Andressa Zumpano
nesses conflitos [...]” (ALENTEJANO; nos preços internacionais das commodi-
PORTO-GONÇALVES, 2010, p. 110). ties e acarretando o processo de repri-
marização das economias de exporta-
O período caracterizado por essa al- ção latino-americanas (SVAMPA, 2012). a mudança abrupta no cenário político Assim como o foco no investimen-
tíssima conflitividade, marcou o início pós impedimento da presidenta Dilma. to em infraestrutura, outros compro-
dos governos progressistas do Partido No Brasil, a centralidade dos proje- missos representam continuidades ao
Muitos dos projetos prioritários longo dos diferentes governos, como
dos Trabalhadores no Brasil, com Lula tos de infraestrutura e apoio ao agrone-
no programa do governo golpista
(2003–2010) e Dilma Roussef (2011– gócio vem de antes dos governos pro- por exemplo o apoio ao agronegócio
[Michel Temer] (PPI – Programa
2016), a dinâmica da relação desses go- gressistas de Lula e Dilma, perpassou a (SILVA, 2019). Entre as estratégias de
de Parceria de Investimento) e
vernos com movimentos sociais está estes e se manteve após eles. Projetos políticas territoriais de aprofunda-
no homônimo programa do atual
associada ao aprofundamento da repri- como a IIRSA (Integração da Infraestru- governo [Jair Bolsonaro] são os mento desse apoio destaca-se o Plano
marização da pauta exportadora, de- tura Regional Sul-Americana), iniciada mesmos do PAC [Programa de Nacional de Desenvolvimento Regio-
corrente do consenso das commodities4 em 2000 no governo FHC, foram apro- Aceleração de Crescimento] e do nal (PNDR), em vigor a partir de 2003.
(SVAMPA, 2012), que influenciou o avan- fundados pelos governos posteriores, PIL [Programa de Investimento Além de estar presente nos objetivos
ço da fronteira do capital no campo e, e outros programas iniciados nos go- em Logística] dos ex-presiden- gerais do programa, o fomento às ativi-
consequentemente, as dinâmicas de dis- vernos petistas seguiram mesmo após tes Lula e Dilma Rousseff, tais dades de produção de commodities en-
puta pela terra nos Cerrados e no Brasil. como a pavimentação da BR-163, contra-se, segundo Silva (2019, p. 283),
a Ferrogrão e a FIOL [Ferrovia de nos direcionamentos dos fundos de
Integração Oeste-Leste]. Poucos desenvolvimento que contam com pro-
3. O presente artigo é fruto da pesquisa que realizada pelo LEMTO-UFF em parceria com a CPT (Comissão
Pastoral da Terra) e resultou no Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Geografia, apresentado interesses capitalistas são tão jetos estratégicos, tais como: “1. Fundo
à banca em 2020. Foram analisados dados da série de 2003 a 2019, uma vez que eram os mais atualiza- imunes a mudanças de governo e de Financiamento do Centro-Oeste:
dos até o momento de finalização do trabalho, que era para ser publicado em 2020. Porém, por conta da
pandemia, houve um atraso na publicação e não foi possível atualizá-los para este momento. As análises tão plasmados na agenda públi-
agronegócio; 2. Fundo de Investimento
geográficas aqui realizadas, embora tenham defasagem de dois anos em relação aos dados mais atuais, ca quanto os logísticos (AGUIAR,
propõem um novo olhar sobre os conflitos nos Cerrados brasileiros e seguem abertas para produções pos- da Amazônia: Polo siderúrgico do Pará,
teriores de atualização/seguimento da pesquisa. 2019, p. 179).
usina hidrelétrica de Lajeado, Tocan-
4. No contexto de mudanças no modelo de produção e acumulação do final do século XX, especialmente
na América Latina, os projetos de extração e exportação de bens sem maior valor agregado intensificaram-
tins, polo de beneficiamento de alumí-
-se. Esses bens, como minério, petróleo, soja, milho etc., constituem as chamadas commodities. nio no Maranhão etc.”.
26 27
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
1970, que justificava que os Cerrados Adotando o olhar a partir dos Cerra-
fossem destinados aos grandes latifún- dos, e não “sobre o Cerrado”, percebe-
O olhar dos Cerrados dios empresariais com suas monocul- mos que a amplitude dessa formação
turas em nome da preservação da Ama- vai muito além da área comumente
zônia. Hoje sabemos que nenhum dos compreendida e aceita como “Cerra-
Durante a ditadura empresarial-mi- dois foi poupado dos processos violen- do”. O Cerrado, bioma brasileiro que
Domínios dos Cerrados e
litar, destacaram-se alguns programas tos de espoliação do capital, pautados faz contato com todos os outros biomas
suas particularidades inseridos nas políticas territoriais dos em intensa colonialidade, conforme do país à exceção do Pampa, encontra-
O bioma Cerrado, segundo o Mi- Planos Nacionais de Desenvolvimento assinala o agrônomo-geógrafo Mazzet- -se numa posição geográfica que pro-
nistério do Meio Ambiente (BRASIL, (PNDs) I, II e III, voltados diretamente to (2006), cuja a pesquisa de doutorado porciona um vasto leque de riquezas,
2020), ocupa uma área de 22% do ter- para a inserção do Cerrado no comple- realizou em profunda relação com os saberes e sabores nascidos e desenvol-
ritório nacional. É reconhecido pelo xo agroindustrial brasileiro. povos e comunidades do Cerrado: vidos a partir das particularidades de
órgão como o segundo maior bioma cada uma, que podemos chamar de
O Polocentro (Programa de De- A linha de pensamento que dirigiu zonas de tensão ecológica com outros
brasileiro, que detém grande número senvolvimento dos Cerrados) e o este processo no Cerrado tem
de espécies endêmicas e larga biodi- biomas. Não há um limite abrupto ou
Prodecer (Programa de Coopera- um forte viés depreciativo deste
versidade, e é berço das três maiores uma divisão repentina entre Cerrado
ção Nipo-Brasileira para o Desen- ecossistema em si mesmo e en-
bacias hidrográficas da América do Sul e Amazônia, por exemplo; há uma re-
volvimento dos Cerrados), cria- xerga esta região como um “vazio”
(Amazônia/Tocantins, São Francisco aparentemente econômico e po- gião de contato entre duas formações
dos no governo Geisel, visavam
e Prata). Porém, essa noção a respeito instrumentalizar o Cerrado em pulacional. É como se a natureza e ecossistêmicas, formando uma área
do Cerrado e de sua riqueza é relativa- infraestrutura logística de arma- as populações locais, espalhadas de transição gradual cujas particulari-
mente recente, já que, principalmente zenamento, estradas, pesquisas e pelos Gerais até aquele momento dades e riqueza de biodiversidade são
a partir dos anos 1960, o bioma passou financiamento à pecuária e lavou- [anos 1970], não tivessem nenhum únicas. A natureza ali é mais complexa,
a ser um dos focos principais de avanço ra de grãos, que atingiram frações significado, nenhuma riqueza cul- como muito bem descreveu o indíge-
de Goiás, Mato Grosso e Triângulo tural e ecológica, nem modos de na Anísio (apud PORTO-GONÇALVES,
da fronteira do modelo agrário/agríco-
Mineiro. O Prodecer ainda atua- vida e de produção próprios, nem 2019, p. 25), do povo Guató do Pantanal
la de produção baseado nos latifúndios
va em áreas do atual Tocantins, conhecimentos, expectativas, de- mato-grossense: “a natureza quando se
monocultores de caráter empresarial.
oeste baiano e sul do Maranhão e sejos e necessidades (MAZZETO, encontra não subtrai, não se divide. Ela
Piauí, sobretudo a partir de 1985 2006, p. 69). se multiplica. Ali a vida é mais”.
Ao longo das décadas de 1960 e 1970,
principalmente, os esforços de “inte- (SILVA, 2019, p. 195).
gração econômica” entre as regiões do Portanto, os Cerrados, mais que
A compreensão dos Cerrados em sua
país da ditadura empresarial-militar e qualquer outro ecossistema no Brasil,
Com o fomento desses interesses e o pluralidade e os conhecimentos cons-
a construção de Brasília, associados à englobam vastas áreas de tensão eco-
avanço da tecnologia – a tropicalização truídos na própria região, compostos
pressão das elites agrárias, articulada lógica que possuem profunda comple-
da soja e a irrigação por pivôs centrais por enorme diversidade de culturas,
até mesmo com a permissividade do xidade. E é justamente para trazer vi-
–, os Cerrados, com suas chapadas e são provenientes dos povos e dos sabe-
discurso acadêmico, levaram à consoli- sibilidade a essas particularidades dos
chapadões, imensas áreas planas com res que estes vêm elaborando com sua
dação do imaginário do Cerrado como Cerrados que trabalhamos aqui com
abundância de água subterrânea, pas- convivência com as particularidades
vazio demográfico e ausência de rique- esse bioma em sua totalidade e envol-
saram a ser o foco das investidas do de cada subárea há milhares de anos.
za natural. Isso serviu de pano de fundo vendo toda sua complexidade. Isto é,
agronegócio. Isso foi legitimado, inclu- A complexidade destas áreas torna
para legitimar o avanço sobre o bioma ao fazer referência ao Cerrado neste
sive, por argumentos como o apresen- altamente relevante o conhecimento
e contra seus povos, levando-o a uma trabalho, falamos de uma área que cor-
tado por Mário Guimarães Ferri (1977), de quem vive nelas há centenas ou mi-
gradativa destruição. responde a 36% do território brasileiro,
uma das maiores autoridades acadêmi- lhares de anos pelo detalhado conheci-
cas em estudos sobre a região nos anos mento que acumularam.
28 29
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
o Cerrado Ampliado, que engloba a core convivendo com essa complexidade há Domínios do Cerrado e as Zonas de Transição
area do Cerrado, ou Cerrado Contínuo, milhares de anos. A regionalização do Sistema Savânico Brasileiro
e seus ecótonos e encraves ou Zonas Cerrado proposta foi construída junto
de Transição. Falamos em regiões de com e a partir do olhar de grupos/clas- ÁREA TOTAL CERRADO CONTÍNUO
ecologia complexa e de uma diversida- ses sociais em situação de subalterni- 192,14 milhões de hectares
de de comunidades e povos que vêm zação, os povos dos Cerrados.
ÁREA TOTAL ZONAS DE TRANSIÇÃO
122,04 milhões de hectares
30 31
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Dinâmica de conflitos no medida em que é um pico pontual, e De modo geral, as tendências em brasileiro se resumia à resposta do Es-
logo após, em 2011, a tendência passa a curso no Cerrado Ampliado não desto- tado e das classes proprietárias às ações
Cerrado Ampliado
ser ascendente. Nota-se também um sal- am das tendências gerais do Brasil. Nos dos movimentos sociais de luta pela ter-
Iniciamos, então, a análise das di- to no número de ocorrências em 2019, dois recortes, as ações de ataques a di- ra não se sustenta. O que percebemos é
nâmicas geográficas e temporais numa destoando do resto do período inteiro. reitos/violência crescem em proporção justamente o contrário: como se a cer-
comparação dos conflitos agrários do e em números absolutos de maneira teza da impunidade e a diminuição das
O gráfico traz uma comparação di- vertiginosa ao longo do período inteiro, ações dos movimentos gerassem certa
Brasil com os limites do Cerrado Am-
reta das tendências do Brasil, em parti- somando maior número de ocorrências tranquilidade para as violências provo-
pliado, isto é, os Cerrados em sua tota-
cular do Cerrado Ampliado, no que diz que as ações de conquista/retomada cadas pelas classes dominantes e hege-
lidade, englobando o Cerrado Contínuo
respeito à natureza das ações de dispu- de terra em todos os anos. No caso do mônicas aumentarem, fechando o cer-
e suas Zonas de Transição.
ta pela terra. O panorama nacional de Cerrado Ampliado, o ano de 2010 pode co contra os movimentos.
As ocorrências de conflitos no Cer- composição das ações mostra a perda ser tomado como um marco das ocor-
rado Ampliado podem ser divididas em de espaço proporcional das ações de rências de conflitos: de 2003 a 2009 as É evidente que, conforme o quadro
dois subperíodos, sendo o primeiro de- conquista e retomada de terras, prota- ocorrências, de modo geral, estão em político do país muda, reduzindo a de-
les descendente, de 2003 a 2009. O ano gonizadas pelos movimentos e organi- descenso e de 2011 em diante a tendên- mocracia, os ataques violentos aos mo-
de 2010 é como o marco divisório, na zações nos conflitos agrários. cia do número de ocorrências passa a vimentos, povos e comunidades tradi-
ser de ascensão até o registro recorde cionais aumentam vertiginosamente.
em 2019. Uma hipótese nos permite co- Ressaltemos, ainda, que as ocorrências
nectar essa dinâmica dos conflitos com de conquista/retomada de terra são
Composição das ações de disputa pela terra no Brasil e Cerrado Ampliado os efeitos da crise global do capitalismo ações diretas dos movimentos sociais
Gráfico 1 de 2008, que tiveram sérias repercus- na luta pela terra. Isto é, são ocupa-
sões nos preços das commodities e pos- ções, retomadas de terra ou acampa-
sivelmente implicaram a expansão do mentos feitos em beira de estrada nos
agronegócio sobre as terras dos Cerra- quais esses grupos/classes em situação
dos no intuito de aumentar a produção de subalternização reivindicam a posse
para compensar a redução do preço, in- da terra.
crementando também a ocorrência de
Com os dados especializados de con-
conflitos protagonizados por esse setor
flitos, o que pudemos constatar até aqui
social ávido por mais terras e lucros.
em relação ao Cerrado e a suas Zonas
O aumento dessa diferença entre as de Transição foi o aumento, ao longo
ações de naturezas distintas mostra que, dos últimos quatro anos, dos ataques
ao longo do período, não somente acir- aos direitos daqueles que se encontram
rou-se a disputa pela terra com a amplia- na terra, chegando a um salto de 34%
ção do número total de conflitos, como de ocorrências entre 2018 e 2019.
também essa disputa veio se tornando
mais violenta, com atentados contínuos
à permanência de camponeses e outras
comunidades do campo em seus terri-
tórios, especialmente no Cerrado Am-
Fonte: CPT com elaboração do LEMTO-UFF, 2020. pliado. Mais uma vez, a falaciosa argu-
mentação de que a violência no campo
32 33
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Análise comparativa do O Gráfico 2 também evidencia a ção de localidades em conflito, uma Contínuo ocupa 23% do território bra-
Zona dos Cocais, que chama a atenção vez que levam em conta a proporção da sileiro e concentra 14% das localidades
Cerrado Contínuo e das
pelos altos números absolutos de lo- área de cada bioma e a proporção de lo- em conflito. Isso representa um índice
Zonas de Transição calidades em conflito, especialmente calidades em que se registraram ações de densidade de conflitos de 0,6, consi-
a partir de 2009, início do intervalo de de violência. Por exemplo, o Cerrado derado baixo.
O Cerrado Contínuo é a região com
tendência crescente, quando a região
maior número absoluto de conflitos
saltou para uma posição de protagonis-
números absolutos de conflitos e os ní-
mo no ranking de conflitos. Os índices aqui apresentados são elaborados levando em consideração
veis de conflitos nessa região se manti-
veram altos ao longo dos anos quando a proporção do evento considerado (no caso, localidades em conflito) do
Consideremos os índices de densi-
comparados aos números de conflitos bioma em questão em relação ao total do país (em porcentagem), dividido
dade de conflitos, que permitem maior
nas outras Zonas de Transição. pela proporção da área do mesmo bioma no total do país. Assim, se um bio-
rigor na análise espacial da distribui-
ma teve 10% das localidades em conflito do país e tem 10% da área do país,
seu Índice de Densidade de Conflitos será de 1 (10 dividido por 10). No caso
Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição do Índice de Conflitividade, a mesma lógica é aplicada, porém com consi-
Gráfico 2 derando a proporção de população rural presente no bioma em questão
em relação à população rural do país. Desse modo, sempre que um índice é
superior a 1 esse bioma está com uma densidade daquele evento maior que
a proporção de sua área ou de população rural. Para facilitar, propomos a
seguinte classificação da intensidade desses índices: de 0 a 0,9 – índice
baixo; de 1 a 2,0 – índice alto; de 2,1 a 4 – índice muito alto; de 4,1 a 8 – índi-
ce altíssimo; acima de 8 – excepcionalmente alto.
Transição
Cerrado-Amazônia 6% 4% 0,8 Baixo
Transição
Cerrado-Mata Atlântica 3% 5% 1,5 Alto
Transição
Cerrado-Caatinga 2% 2% 1,4 Alto
Transição
Zona dos Cocais 2% 11% 6,8 Altíssimo
Pantanal -
Transição Cerrado 2% 0% 0,3 Baixo
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Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Já a extensão da Zona dos Cocais Outras duas Zonas de Transição com tos, chegando, em 2019, a um total de um total correspondente a 30% do total
ocupa apenas 2% da área do país, en- índices altos de densidade de conflitos 212.481 famílias. No Cerrado Ampliado, do país nesse último ano. Entretanto,
quanto concentra 11% dos conflitos no são as Transições Cerrado–Mata Atlân- em 2003, 65.722 famílias foram envolvi- enquanto o número total de famílias
período. Com isso, seu índice atinge tica e Cerrado–Caatinga. A Transição das em conflitos agrários, o que corres- envolvidas em conflitos agrário no Bra-
preocupantes 6,8, um índice altíssimo Cerrado–Mata Atlântica inicia o perío- pondeu a 55% do total de famílias en- sil aumentou consideravelmente, o de
de densidade de conflitos! A Zona dos do com números absolutos mais altos, volvidas em todo o país. Esse número famílias no Cerrado Ampliado está hoje
Cocais configura uma transição de trí- atingindo o pico em 2004. Passada a total também sofreu oscilações ao lon- num patamar muito próximo do que
plice fronteira, sendo a região de tran- tendência geral de decréscimo no nú- go do período, chegando a 64.553 famí- estava no início do período. O Gráfico 3
sição entre os biomas Cerrado, Caatin- mero de conflitos, essa região volta a lias em 2019. Houve uma queda de 2% ilustra essa diversidade nos comporta-
ga e Amazônia. Essa é também uma crescer em 2012, mantendo-se em um em relação ao início do período (2003) e mentos das colunas.
região onde se encontram babaçuais, patamar mais baixo que o do início do
buritizais e carnaubais e, por conta dis- período. Por sua vez, a Transição Cerra-
so, há a presença de diversas comuni- do–Caatinga passa a contar com maio- Famílias envolvidas em conflitos agrários no Cerrado e em Zonas de Transição
dades tradicionais extrativistas que vi- res números de conflitos a partir da Gráfico 3
vem da relação com esse ecossistema. segunda metade do período, a partir de
2010 e especialmente a partir de 2017,
quando claramente muda de patamar.
6. O número total de famílias envolvidas em conflitos no Brasil durante o período inteiro foi de 895.595.
Importante ressaltar que os números de famílias de um ano não podem ser somados com os de outro ano Fonte: CPT, Elaboração:
para chegar ao total do período, uma vez que as famílias de um local que se manteve em conflito se repeti- LEMTO-UFF, 2020.
riam. É preciso, portanto, recorrer ao total de localidades em conflito no período abordado e atribuir a cada
uma delas seu respectivo número de famílias uma vez apenas.
36 37
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
As tendências de decréscimo e au- país, tendo em vista que esse número constatado com a Tabela 1. Porém, por ações colocam na mira (muitas vezes li-
mento no número de famílias do Cer- no país inteiro aumentou drasticamen- conta da alta densidade populacional teralmente) grupos/classes em situação
rado Contínuo tornam-se ainda mais te, chegando a 212.426 famílias em no campo, a Zona dos Cocais contou de subalternização. A manifestação de
evidentes. O Cerrado Contínuo, onde 2019. Esse aumento vertiginoso no res- com um índice de conflitividade de conflitos envolvendo esses sujeitos não
o campo é o mais populoso do Cerrado to do país fez com que, mesmo com o 0,78 em 2019, considerado baixo. En- apenas evidencia a disputa de modos
Ampliado, com 10,9% da população ru- alto número de famílias envolvidas em quanto isso, a Zona de Transição Cerra- de reprodução da vida na terra, mas
ral do país, atingiu no início do período conflitos na região, o índice de confliti- do–Amazônia, que soma apenas 1,5% também cumpre o papel de reconheci-
(2003) o índice de conflitividade de 2,2, vidade do Cerrado Contínuo caísse para da população rural do país, concentrou mento de sua existência na região.
considerado muito alto. 1,09 em 2019, ainda assim considerado durante o período inteiro 5% das famí-
alto. As regiões de transição também lias em conflito, chegando ao índice de Os conflitos agrários envolvem um
Durante o último subperíodo, esse chamam a atenção pelos altos números 3,1, considerado muito alto. Quando leque muito amplo de culturas, povos
número voltou a subir a níveis eleva- absolutos de famílias envolvidas ao lon- calculamos apenas o ano de 2019, essa e comunidades diferentes. Cada um
dos, em especial em 2019, ano em que go de todo o período. zona de transição teve 8% das famílias conta com suas particularidades e in-
25.224 famílias foram envolvidas em envolvidas em conflitos no ano, fazen- dividualidades, e respeitamos isso en-
conflitos no Cerrado Contínuo. Porém, A região da Zona dos Cocais conta do com que seu índice de conflitividade quanto pesquisadores. Há, porém, um
apesar de o número total de famílias ter com 6,4% da população rural do país, chegasse a 5,3, que é altíssimo. Já o caso desafio metodológico na forma de tra-
chegado a um patamar muito próximo sendo a zona de transição com maior do Pantanal é o oposto do que ocorre na duzir essa diversidade cultural em ma-
ao atingido em 2003, esse número re- população rural, e tem uma densida- Zona dos Cocais. O Pantanal conta com teriais de análise que cumpram o papel
presenta apenas 12% do total de famí- de muito alta de conflitos, conforme números absolutos de conflitos muito de demonstrar visualmente a luta diá-
lias envolvidas em conflitos em todo o baixos e teve seu índice de densidade ria desses povos, fazendo jus ao peso
de conflitos em 0,3, um índice baixo. do papel político e social que cada uma
Porém, ao levar em conta os dados de delas tem na luta por outros horizontes
Índice de conflitividade no Cerrado e em Zonas de Transição população, apesar de os números abso- de projetos territoriais.
Tabela 2 lutos de famílias envolvidas em confli-
Na forma de registro original das
tos serem baixos, como seu percentual
Índice de conflitividade em relação ao Brasil (2003-2019) chamadas “categorias sociais que so-
de população rural também é, a pro-
freram a ação” (ou seja, as comunida-
porção dos dois leva essa região para o
Percentual de
Percentual de
Índice de des que são alvo das ações de violên-
Biomas Famílias envolvidas Índice índice de 4,5, considerado altíssimo.
População Rural
em Conflitos
Conflitividade cia/ataques a direitos), o número total
é de 45 categorias sociais. Propomos
Cerrado Contínuo 10,9% 17% 1,5 Alto
que as categorias denominadas pela
Transição Grupos/classes sociais en- CPT como “categorias sociais que so-
1,5% 5% 3,1 Muito Alto
Cerrado-Amazônia volvidas nos conflitos freram a ação” neste trabalho sejam
Transição
Cerrado-Mata Atlântica 4,6% 8% 1,6 Alto
As localidades em conflito estam-
identificadas como “grupos/classes
em situação de subalternização”. Para
Transição padas nos mapas a seguir correspon-
Cerrado-Caatinga 1,7% 2% 1,1 Alto além disso, utilizamos formas de agru-
dem àquelas anteriormente referidas
pamento dos povos e comunidades
Transição como ações de ataques a direitos/ações
Zona dos Cocais 6,4% 6% 0,9 Baixo tradicionais para que seu peso político
de violência. Consistem nas ações uti-
Pantanal - se torne visível nas representações es-
0,2% 1% 4,5 Altíssimo lizadas pelos grupos/classes sociais
Transição Cerrado pacializadas dos conflitos.
em situação de dominação para abrir
Fonte: CPT, Elaboração: LEMTO-UFF, 2020. caminho à espoliação da terra. Essas
38 39
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Legenda:
Pequenos
Proprietários,
Cerrado Contínuo 41% 60% 46% 33%
Arrendatários
e Paceleiros Transição Pantanal 6% 0% 1% 1%
LEGENDA
Transição
Brasil
Cerrado-Amazônia
31% 10% 11% 7%
Sem Domínio Cerrado e Transições: Transição
Terras 1% 10% 4% 4%
Cerrado Contínuo Cerrado-Caatinga
Pantanal - Transição Cerrado Transição
Transição Cerrado-Amazônia Cerrado- Mata Atlântica
9% 10% 33% 10%
Povos e
Transição Cerrado-Caatinga Pantanal -
Comunidades 13% 10% 5% 47%
Transição Cerrado-Mata Atlântica Zona dos Cocais
Tradicionais
Transição Cerrado-Amazônia- Fonte: LEMTO-UFF, 2020.
Caatinga (Zona dos Cocais)
40 41
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Legenda:
Pequenos
Proprietários,
Cerrado Contínuo 33% 56% 48% 34%
Arrendatários
e Paceleiros Transição Pantanal 1% 2% 0% 2%
LEGENDA
Transição
Brasil
Cerrado-Amazônia
16% 5% 19% 4%
Sem Domínio Cerrado e Transições: Transição
Terras 8% 20% 3% 8%
Cerrado Contínuo Cerrado-Caatinga
Pantanal - Transição Cerrado Transição
Transição Cerrado-Amazônia Cerrado- Mata Atlântica
4% 9% 24% 8%
Povos e
Transição Cerrado-Caatinga Pantanal -
Comunidades 38% 8% 4% 43%
Transição Cerrado-Mata Atlântica Zona dos Cocais
Tradicionais
Transição Cerrado-Amazônia- Fonte: LEMTO-UFF, 2020.
Caatinga (Zona dos Cocais)
42 43
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
De início, percebem-se no Mapa 3 Comparando a evolução dos conflitos grupos que lutam para recuperar a terra ritorialização, como os sem-terra,
duas “manchas” principais e distintas de do primeiro para o segundo subperío- que já foi perdida no processo de espo- cujo “Sem” indica uma perda e
conflito. A primeira ocorre na Transição do, percebe-se que a mancha da con- liação. A região do Pontal do Paranapa- o “Terra” indica um horizonte de
Cerrado–Mata Atlântica, com grande centração de sem-terras na Transição nema, por exemplo, local de forte atu- sentido para a vida com aquilo
concentração de sem-terras implicados Cerrado–Mata Atlântica diminui, assim ação do MST, encontra-se nessa área. A que perderam (PORTO-GONÇAL-
em conflitos, e a segunda na Transição como os conflitos envolvendo sem-ter- organização de movimentos sociais de VES et al., 2016, p. 89).
Cerrado - Zona dos Cocais, com grande ras distribuídos pelo Cerrado Contínuo. luta por terra mostra, simultaneamen-
concentração de populações tradicio- Por outro lado, os conflitos envolvendo te, a movimentação da fronteira eco- Na evolução entre os dois subperío-
nais implicadas em conflitos. populações tradicionais se alastram e nômica e um processo de organização dos, no que tange aos diversos grupos
passam a permear a fronteira leste do social democrático em contraposição. de camponeses e povos do campo, o
De 2003 a 2008, quase metade (46%) Cerrado Contínuo nas regiões do Ma- Esse processo de disputa é muito dife- que se constata em linhas gerais é a mu-
do total das 570 ocorrências de confli- topiba e do oeste da Bahia, além de rente do processo em curso envolven- dança da predominância de conflitos
tos envolvendo sem-terras se deu no ocuparem parte da Transição Cerrado– do as populações tradicionais na Zona gerados por disputas pela conquista/
Cerrado Ampliado. Um terço dos con- Caatinga e da Transição Cerrado–Mata dos Cocais, por exemplo, haja vista que retomada da terra para os conflitos de
flitos envolvendo sem-terras se encon- Atlântica no sul do Mato Grosso do Sul. essas comunidades já se encontram na resistência contra a expulsão da terra.
tra de fato na “mancha” da Transição terra, em posição que podemos cha- Ao retomarmos o Gráfico 1, da nature-
Cerrado–Mata Atlântica, enquanto a Recordemos que o número total de mar de “posse real de uso”, indepen- za dos conflitos, vemos que o processo
maior parte deles se encontra distri- conflitos aumentou vertiginosamente dentemente de escrituras e afins. Os de diminuição das ações de conquis-
buída no Cerrado Contínuo. As popu- durante o segundo subperíodo, o que conflitos envolvendo essas populações ta/retomada de terras no subperíodo
lações tradicionais já se viam, nesse traz à tona um processo importante em demonstram o avanço das fronteiras é seguido de um aumento das ações
período, implicadas em 33% do total vigor no campo brasileiro. Há, nesse do capital para novas terras que não de resistência contra as investidas dos
de ocorrências de conflitos do perío- subperíodo, uma queda nos números se encontravam inseridas no mercado. grupos em situação de dominação, que
do, sendo 47% delas na Transição Zona absolutos de assentados implicados Podemos destacar, então, dois grupos seguem no movimento predatório em
dos Cocais e 33% nas porções de Cer- em conflitos, um leve aumento dos pe- que marcam a diferença nas identida- busca de novas terras. Porém, essas
rado Contínuo do sul do Maranhão quenos proprietários e uma estagnação des implicadas em conflitos: resistências não aparecem estampa-
atualmente reconhecidas como parte nos números de conflitos envolvendo
das nas diferentes naturezas das ações,
da região Matopiba7. E os conflitos en- sem-terras. Enquanto isso, os números 1º Grupo – reúne aqueles/as que
uma vez que não são registradas como
volvendo assentados têm um terço de absolutos dos conflitos envolvendo po- remetem a algum uso tradicional
da terra, em sentido amplo de “protagonizadas” pelas comunidades
sua totalidade ocorrendo na Transição pulações tradicionais cresceram 254%
natureza (o que implica a água, a tradicionais e, portanto, não entram
Cerrado–Amazônia, região do chama- de um período para o outro, sendo a
vida – floresta, campo, mangue nos registros de “anúncios” feitos pe-
do “Arco do Desmatamento” no Brasil. maioria deles ainda concentrada na
etc.); los movimentos que realizam as ações
Há ainda, também, o envolvimento de Zona dos Cocais.
de conquista/retomada de terra. Essas
assentados em 16% do total de conflitos 2º Grupo – reúne aqueles/as cuja
A concentração de sem-terras na ações aparecem na forma de resposta/
no primeiro subperíodo, concentrados identidade se define de algum
Transição Cerrado–Mata Atlântica tem modo por algum agente externo defesa às ações de violência/ataques a
principalmente no Cerrado Contínuo e
relação com a ocupação/invasão do ca- da violência que sofre. São atin- direitos, então as populações tradicio-
na Transição Cerrado–Amazônia.
pital, que teve seu início nessa área há gidos por barragens, pela mine- nais e seu protagonismo atual na resis-
No segundo subperíodo, o panorama décadas, o que faz com que hoje os en- ração, pelos trilhos, pelos linhões tência pela permanência na terra e luta
geográfico muda consideravelmente. volvidos em conflitos na região sejam de transmissão de energia. Ou, pelo território vão aparecer na forma
ainda, grupos que se definem de “denúncia” das ações de violência/
nas circunstâncias de proces- ataques a direitos e serão reconhecidas
7. Região que abrange o estado do Tocantins, sul e nordeste do Maranhão, sudoeste do Piauí e oeste da sos de desterritorialização e que nos mapeamentos dos sujeitos envolvi-
Bahia. Caracteriza uma região de foco da expansão da fronteira do capital e, portanto, concentra conflitos
à medida em que os territórios são expropriados com violência.
sinalizam um horizonte de reter- dos nos conflitos.
44 45
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019
Outra faceta dos sujeitos envolvidos resse privado de grandes latifundiários A centralidade da terra se reafirma Chamam a atenção também as ações
nos conflitos é o que temos denomina- ou empresários, seja por representan- de forma gritante na medida em que de governos/agentes públicos e de fa-
do aqui como classes/grupos em situa- tes do poder (que deveria ser) público, 57% do total de localidades em conflito zendeiros, que têm seu segundo maior
ção de dominação. Esses sujeitos apa- utilizando-se do aparato do Estado para têm suas ações protagonizadas por fa- foco na Transição Cerrado–Amazônia,
recem como a maioria esmagadora das assegurar os interesses de poucos. Veja- zendeiros. Além disso, a utilização do e dos empresários, com ações concen-
causas das ações de ataques a direitos/ mos, a seguir, em linhas gerais, a forma aparato do Estado para esse fim tam- tradas na Zona dos Cocais. Diferente-
violência. São esses grupos e classes como tais classes vêm se comportando bém se desenha com peso, sendo as mente dos sujeitos que se encontram
que representam os interesses capita- ao longo do período. instâncias do governo/agentes públicos em posse real de uso da terra, cujas
listas, expressos seja pelo próprio inte- protagonistas de 23% do total de confli- ações em defesa de territórios concen-
tos no período. tram-se em áreas onde essas comuni-
dades já estão, aqui percebemos um es-
Principais classes/grupos em situação de dominação causadores das ações Percebemos que nesse subperío- palhamento da atuação desses sujeitos
de violência/ataques a direitos – Subperíodo 1 (2003–2008) do as ações protagonizadas por todos de forma mais equilibrada nas diferen-
os sujeitos concentram-se no Cerrado tes regiões.
Gráfico 4
Contínuo mais que em qualquer outra
zona de transição de forma individual; Comparemos essa distribuição com
apenas as mineradoras têm a totalidade o segundo período no Gráfico 5 e na
de suas ações protagonizadas no Cerra- Tabela 4.
do Contínuo.
Governo/ Agen-
Biomas Empresário Fazendeiro Grileiro Mineradora
tes Públicos
Transição Pantanal 0% 1% 4% 2% 0%
Transição Cerrado-Caatinga 5% 5% 2% 2% 0%
46 47
Grupos/classes em situação de dominação causadores dos conflitos – Subperíodo 2
Tabela 4
Governo/ Agen-
Biomas Empresário Fazendeiro Grileiro Mineradora
tes Públicos
Transição Pantanal 0% 3% 1% 0% 1%
48 49
Referências
são pontos que alteram a dinâmica das
classes capitalistas e que, por vezes, tor- AGUIAR, Diana. Nas rotas dos conflitos. Con- PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; ALENTE-
nam uma determinada região mais alvo flitos no Campo Brasil, v. 1, p. 174-180, 2019 JANO, Paulo Roberto Raposo. A violência do
do avanço da fronteira capitalista. Esse latifúndio moderno-colonial e do agronegó-
ARRUDA, Moacir Bueno. Representativida-
avanço, portanto, não necessariamente cio nos últimos 25 anos. Conflitos no Campo
de ecológica com base na biogeografia de
é definido por particularidades de cada Brasil, v. 1, p. 109-117, 2010.
biomas e ecorregiões continentais do Brasil:
zona de transição nem tem relação di- o caso do bioma Cerrado. 2005. 194 p. Tese PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Dani-
reta com elas. Isso se mostra concreto (Doutorado) – Universidade de Brasília; IBA- lo Pereira; SILVA, Marlon Nunes; LEAL, Leandro
no relativo espalhamento dos diferen- MA, Brasília, 2005. Teixeira. Bye bye Brasil, aqui estamos: a rein-
venção da questão agrária no Brasil. Confli-
tes sujeitos protagonistas de ações de BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regio-
tos no Campo Brasil, v. 1, p. 86-98, 2016.
violência/ataques a direitos em todas as nal. Os 4 objetivos prioritários do PNDR. Bra-
regiões dos Cerrados. sília: MDR, 2019. Disponível em: https://www. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN,
mdr.gov.br/images/stories/ArquivosSDRU/ Danilo Pereira; LADEIRA, Julia Nascimento;
No entanto, para as comunidades, ArquivosPDF/Os-4-Objetivos-Prioritarios-da- SILVA, Marlon Nunes; LEÃO, Pedro Catanzaro
-PNDR_V3.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020. da Rocha. Terra em Transe: a geografia da
Por fim, colocamos uma reflexão as prioridades se invertem. Elas, que
expropriação e da r-existência no campo
para continuar ecoando: o avanço da vivem nesses ambientes e têm suas cul- BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. O bio-
brasileiro 2018. Conflitos no Campo Brasil, v. 1,
turas e conhecimentos profundamen- ma Cerrado. Biomas. Disponível em: https://
fronteira do capital, especialmente p. 91-119, 2019
mma.gov.br/biomas/cerrado. Acesso em: 21
do agronegócio, não faz distinção das te pautados na história de convivência
jul. 2020. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter (Org.). Os
particularidades dos ecossistemas pre- com as particularidades dos ecossis- Cerrados vistos por seus povos: O agroextra-
CORREIA, Maurício. Fronteiras desmedidas: o
sentes em cada zona de transição. Pelo temas e na relação direta e simbiótica tivismo no Cerrado. Goiânia: Centro de Desen-
Cerrado e a propriedade da terra no Brasil.
contrário, avança sobre eles como se com as respectivas zonas de transição, volvimento Agroecológico do Cerrado, 2008.
Revista Cerrados, Goiânia, v. 1, p. 8-15, dez.
todos fossem parte do mesmo grande têm como prioridade a manutenção 2018. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A geogra-
“vazio demográfico” e ecológico em de sua relação com um território espe- ficidade do social: uma contribuição para o
INSTITUTO SOCIEDADE, POPULAÇÃO E NATURE-
que as únicas características que têm cífico. Assim, os conflitos podem não ZA. Cerrado, berço das águas. Biomas. Dispo-
debate metodológico para os estudos de
valor são o terreno plano das chapadas ser específicos das particularidades de conflitos e movimentos sociais na América
nível em: https://ispn.org.br/biomas/cerrado/
cada zona de transição, por exemplo, Latina. Revista Eletrônica da Associação dos
e chapadões e a abundância de água, berco-das-aguas/. Acesso em: 19 ago. 2020.
Geógrafos Brasileiros, Três Lagoas, v. 1, n. 3, p.
principalmente na grande quantidade mas o registro analítico dos grupos/ LADEIRA, Julia. A Geografia dos Conflitos 5-26, maio 2006.
de aquíferos como o Urucuia, o Bam- classes que se encontram em situa- Agrários no Cerrado e suas Zonas de Transi-
ção de subalternização nesse contexto PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Dos Cerra-
buí e o Guarani, que, segundo o Insti- ção – Brasil 2003-2019. Trabalho de Conclu-
dos e de suas riquezas. Conflitos no Campo
tuto Sociedade, População e Natureza de avanço do capital e que vêm sendo são de Curso – Universidade Federal Flumi-
Brasil, v. 30, p. 88-95, 2015.
(2020), têm a maior parte de suas exten- implicados nos conflitos nos permite nense, Niterói.
identificar sua r-existência e contribuir PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globali-
sões dentro do Cerrado. MARQUES, José. Folha é a maior fake news
zação da natureza e a natureza da globaliza-
para sua consolidação como sujeitos do Brasil, diz Bolsonaro a manifestantes.
ção. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
Ainda assim, os agentes causadores políticos. A partir da manifestação da Folha de São Paulo, 12 out. 2018. Disponível
ra, 2006.
dos conflitos nas variadas regiões são disputa pelo território evidencia-se a em https://www1.folha.uol.com.br/amp/po-
influenciados por diversos outros fato- der/2018/10/folha-e-a-maior-fake-news-do- SILVA, Carlos Alberto Franco da. A moderniza-
diversidade de comunidades em pro- ção distópica do território brasileiro. Rio de
-brasil-diz-bolsonaro-a-manifestantes.shtml.
res: as principais atividades econômi- cesso de luta por seus territórios tão Acesso em: 23 jul. 2020. Janeiro: Consequência, 2019.
cas da região, a área de terras devolutas particulares, a intensidade e os senti-
presentes e a especulação, entre outros, MAZZETTO, Carlos Eduardo Silva. Os Cerrados SVAMPA, Maristella. Consenso de los com-
dos dessa luta. e a sustentabilidade: territorialidades em modities, giro ecoterritorial y pensamiento
tensão. 2006. 272 p. Tese (Doutorado) – Uni- crítico en América Latina. Revista Observató-
versidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. rio de America Latina, Buenos Aires, v. XIII, n.
32, p. 15-38, out. 2012.
50 51
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
Os anos de 2020 e 2021 foram atra- lizando quase dois trilhões de reais. Ao
vessados pela pandemia da Covid-19, mesmo tempo, a velocidade no avanço
cujas consequências se fizeram sentir da fome foi não menos que assustadora
em escala global e de forma absoluta- – um salto de 10,3 milhões de pessoas
mente assimétrica a partir das relações em situação de insuficiência alimentar
sociais e de poder que nos conformam grave em 2018 para 19,1 milhões em
enquanto sociedade. Os grupos/classes 2020 (MALUF, 2021), ou seja, quase o
sociais situados no “andar de cima” pu- dobro num intervalo de dois anos. Está
deram isolar-se e cumprir quarentena. aí implícita uma aparente contradição,
Mas aos grupos/classes sociais situados considerando que a autodenominada
no andar de baixo foi imposta uma mo- “indústria-riqueza do Brasil” reivindica
bilidade precária no meio urbano e, no para si levar alimento à mesa da popula-
mundo rural, houve inúmeras invasões ção, no entanto é justamente o bloco de
sobre terras/territórios de comunida- poder do agro – leia-se, a associação en-
des camponesas e povos tradicionais, tre os capitais agroindustrial, financeiro
situação que a contrapelo deu origem e bancário com patrocínio irrestrito do
ao fenômeno das barreiras sanitárias. Estado e da mídia corporativa – o gran-
de responsável pelo cenário de fome e
Os tempos de pandemia não repre- carestia em curso no país. Enfim, um
sentaram uma inflexão, contudo, no
A VIDA AMEAÇADA E
quadro que demonstra serem “perver-
que diz respeito ao modo de des-envol- sas”, em seu sentido clínico e patológi-
vimento dominante no Brasil, cada vez
AS LUTAS PELA VIDA:
co, as classes dominantes brasileiras.
mais protagonizado pelo agronegócio
e por outros negócios primário-expor- Nas cifras-recorde do agro só são
VIOLÊNCIA E CONFLITOS tadores. O predomínio dos produtos possíveis a dinâmica de expansão/in-
(2020–2021)1
mos percentuais (BRASIL, 2022), teve outros. Segundo Porto-Gonçalves e
seu aprofundamento nos últimos anos, Leão (2021), entre 1988 e 2018 houve
de modo que o produto interno bruto um aumento de 118% na área plantada
(PIB) do agronegócio avançou 24,31% das três principais commodities agríco-
Pedro Catanzaro da Rocha Leão2 em 2020 frente a 2019 (CNA, 2021), tota- las brasileiras (soja, cana de açúcar e
52 53
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
ral para Brasília em 1960. Sob o signo da Tal qualidade se faz presente na es-
chamada Revolução Verde e com todo colha em abordar os Cerrados consi-
apoio da ditadura empresarial-militar a derando suas Zonas de Transição, de
partir de 1964, avançou sobre os Cerra- modo a compreendê-los para além da
dos, liderado pelo bloco de poder deno- regionalização adotada pelo Instituto
minado agronegócio, o projeto de uma Brasileiro de Geografia e Estatística
“agricultura sem agricultores”, como (IBGE), que adota como Cerrado uma
formulou o economista Miguel Teubal área de cerca de 2.040.000 km² corres-
(2002). A chamada expansão das fron- pondente a 22% do território brasilei-
teiras do agro não ocorre, todavia, sobre ro. As chamadas Zonas de Transição,
um “vazio demográfico”, como preten- também conhecidas como ecótonos,
samente anunciou o discurso oficial, correspondem a aproximadamente
mas a partir da invasão dos territórios 14% do território nacional e destacam-
milho), enquanto a área cultivada de em suas áreas de expansão/invasão. Aí de povos e comunidades que lá habitam. -se por sua altíssima complexidade
três dos principais produtos presentes está explícita a colonialidade que cami- Desse modo, mais do que conflitos por ecológica, o que torna altamente re-
na alimentação básica da população nha de mãos dadas com a modernida- terra, estamos diante de conflitos entre levante o conhecimento peculiar acu-
brasileira – arroz, feijão e mandioca – de em nossa formação territorial e que territorialidades distintas, em que o que mulado por quem habita essas áreas
caiu de 24,7% para 7,7% em relação à nos constitui enquanto sociedade, as- está em jogo são diferentes modos de há centenas ou milhares de anos (LA-
área total cultivada no país nesse mes- sim, capitalista moderno-colonial. uso e significação da terra e do conjunto DEIRA, 2020). Desse modo, a ênfase
mo período. Trata-se, portanto, de um das condições metabólicas da vida (ter- nas Zonas de Transição enquanto par-
processo de reconfiguração das fron- Os Cerrados brasileiros tornaram- ra-água-ar-fotossíntese), o que implica te constituinte dos Cerrados e de sua
teiras da (re)produção de capital que, -se o palco prioritário desse processo a a qualidade ecológica e cultural desses dinâmica metabólica procura incorpo-
enquanto tal, produz verdadeiros fronts partir da transferência da capital fede- conflitos ao mesmo tempo fundiários. rar um olhar a partir dos Cerrados, e
54 55
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
prazo7. Além disso, a vegetação dos Cer- freáticos e rios que alimentam as ba-
POR QUE CERRADOS? rados apresenta, em média, dois terços cias hidrográficas do Amazonas, do São
de sua biomassa sob o solo na forma de Francisco, do Tocantins e do Paraná,
“Chamamos essa formação geobotânica no plural: Cerrados e não Cerrado. Há muitas
razões para isso. Ignorar que os Cerrados brasileiros reúnem a maior diversidade bio-
raízes, e é justamente esse complexo entre outras8. Como se pode ver, os Cer-
lógica entre todos os ecossistemas brasileiros é um verdadeiro absurdo, sobretudo de raízes profundas e esponjosas, jun- rados detêm enorme importância na
numa época em que a diversidade biológica, e todo o conhecimento sobre ela, ga- to a suas chapadas e chapadões, que manutenção das condições metabólicas
nham valor estratégico” (PORTO-GONÇALVES, 2014, p. 89). permitem que a água “sorvete”, como da vida no Brasil, na América Latina e
escreveu Guimarães Rosa no Grande ser- para toda a humanidade.
tão: veredas, e gere os aquíferos, lençóis
7. Consideremos algumas espécies dos Cerrados. Por exemplo, segundo o antropólogo Altair Barbosa, o
5. Muitos foram os pesquisadores a propor anteriormente uma regionalização alternativa ao paradigma
capim-barba-de-bode, cujas raízes são fundamentais na formação de aquíferos, só atinge sua maturidade
dos biomas, cuja caracterização baseia-se numa compreensão do quadro ambiental desde um pretenso
reprodutiva aos mil anos de idade. Já o araticum, árvore frutífera, só obtém a quebra de dormência de suas
clímax vegetacional. Dentre eles, destaque-se o geógrafo Aziz Ab’Saber, com a denominação de domínios
sementes após passar pelo sistema digestivo de um canídeo nativo do Cerrado como o lobo-guará, espé-
morfoclimáticos e fitogeográficos, e o antropólogo Altair Sales Barbosa, que trabalha com o conceito de
cie-símbolo dos riscos de extinção. Não há, portanto, tecnologia capaz de viabilizar o cultivo de boa parte
matrizes ambientais (BARBOSA, 2016).
das espécies dos Cerrados em cativeiro (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2017).
6. A pergunta “que horas são?” faz alusão ao chamado Doomsday Clock, relógio simbólico criado por
8. Lembremos que as bacias hidrográficas dos rios Amazonas e São Francisco situam-se, em sua maior par-
cientistas atômicos norte-americanos em 1947 quando despontava a corrida armamentista nos primórdios
te, sobre solos cratônicos, ou seja, sobre rochas graníticas que, por sua baixíssima porosidade, dificultam a
da Guerra Fria, como forma de publicizar os riscos de um conflito nuclear. Em tese, quanto maior o risco
infiltração da água em profundidade, de forma a praticamente impedir a formação de aquíferos e reservas
nuclear, mais próximo o ponteiro está da meia-noite, uma metáfora para o colapso nuclear. Utilizamos aqui
d’água em alta profundidade. Isso quer dizer que, em suma, a recarga hídrica desses rios e de seus afluen-
essa metáfora em analogia ao risco representado pela chamada fratura metabólica e/ou colapso ambiental.
tes está intimamente relacionada aos Cerrados e a sua dinâmica metabólica.
56 57
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
9. Matopiba é um acrônimo que se refere a uma área que engloba parte dos estados do Maranhão, do
Tocantins, do Piauí e da Bahia. A denominação é produto do projeto de des-envolvimento regional voltado 10. Por conflitos no campo entende-se a soma de ocorrências de conflitos por terra, conflitos por terra
para essa área, formalizado pela criação da Agência de Desenvolvimento do Matopiba em 2016. envolvendo água, conflitos trabalhistas, ações de ocupação e retomada e acampamentos.
58 59
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
Da mesma forma, houve uma redução que há uma continuidade em seu cres-
ternização, e, de outro lado, ataques a
de 7% da extensão de terras implica- cimento nos últimos anos, o que refor-
direitos e ações de violência, geralmen-
da em conflitos entre 2020 (76.230.144 ça a tese de que os anos de pandemia
te protagonizadas por grupos/classes
hectares) e 2021 (71.2424.729 hectares). intensificaram as características mais
sociais em situação de dominação. As-
Em relação aos conflitos por terra es- perversas do mundo agrário brasileiro.
sim, as ocorrências de ações de ataques
pecificamente, 2021 registra uma di- Ao passo que o período de 2011 a 2019
a direitos/ações de violência são conta-
minuição de aproximadamente 21% no tem média anual de 132 ocorrências de
bilizadas através de registros de expul-
número de ocorrências de conflitos no conflitos por água, o período de 2020 a
sões, despejos, ameaças de expulsão,
Brasil em relação a 2020. Constata-se 2021 registrou média anual de 327 ocor-
ameaças de despejo, invasões, grila- O que nos mostram os dados de con-
uma diminuição, de modo geral, nos rências. É mais que o dobro.
gem e outros, enquanto as ocorrências flitos por terra no país em 2020 e 2021 é
conflitos no campo de um ano para o
Podemos identificar empiricamente de ações de conquista ou retomada de a continuidade do violento processo ex-
outro. Uma análise mais atenta, toda-
nos conflitos no campo, apoiados em terras estão registradas nas ocupações, propriatório em curso no espaço agrá-
via, nos faz perceber que o período em
José de Souza Martins (1980), pelo me- retomadas de terra e acampamentos. rio brasileiro, que se intensificou com a
tela insere-se no contexto da elevada
nos dois lados: enquanto uns buscam a ruptura política que se viu agravar ain-
tensão conflitiva que vem caracterizan- Para uma análise mais aprofundada
terra para trabalho (grupos/classes so- da mais no atual governo. Sendo assim,
do o campo brasileiro, que se acentuou da natureza das ações na atual quadra
ciais em situação de subalternização), a despeito da queda no número geral de
desde a ruptura política (2015–2021) e histórica, recuperemos os registros dos
onde possam garantir suas condições ocorrências de conflito em 2021, é se-
se agravou ainda mais na atualidade11. Cadernos de Conflitos no Campo da CPT
de produção/reprodução da vida, ou- guro afirmar que vivemos um período
anteriores a 2011. O quadro geral do pe- de aguda violência e intensa conflitivi-
Enquanto o período de 2011 a 2019 tros querem a terra para negócio (gru-
ríodo de 2003 a 2019 apresenta uma ver- dade no campo.
(CPT, 2021) possui uma média anual de pos/classes sociais em situação de do-
tiginosa queda nas ações de conquista e
944 ocorrências, o de 2020 a 2021 regis- minação), com o fim de acumulação e
retomada de terra, que representaram É importante ressaltar, ainda, que o
tra uma média anual de 1.409 ocorrên- reprodução de capital. Um olhar mais
49% das ocorrências de conflito em atual governo ampliou o compromisso
cias. Semelhante dinâmica conflitiva atento às categorias sociais causadoras
2003, enquanto em 2019 responderam irrestrito do Estado brasileiro com o
também pode ser observada quanto e àquelas que sofrem violências nas
por apenas 3% delas. No mesmo recor- agro e outros negócios de exportação,
às localidades onde ocorreram esses disputas por terra nos indica o que cha-
te, observa-se o aumento gradual, in- posicionando-se desde a campanha
conflitos: enquanto o período de 2011 mamos de natureza das ações, isto é, o
tensificado nos últimos anos, das ações eleitoral explicitamente contrário a
a 2019 possui uma média anual de 770 conflito a partir dos grupos/classes so-
de ataques a direitos/ações de violên- quaisquer direitos dos povos e comu-
localidades em conflito, o período de ciais nele envolvidos.
cia, que tinham participação em 51% nidades tradicionais e atuando ativa-
2020 a 2021 alcançou uma média anual mente no processo de fragilização de
O Centro de Documentação Dom To- das ocorrências em 2003 e chegaram a
de 979 localidades. Registre-se que, em várias instituições criadas para afirmar
mas Balduino (CEDOC), da Comissão impressionantes 97% das ocorrências
2021, os conflitos por terra correspon- seus direitos instituídos na Constitui-
Pastoral da Terra (CPT) registra esses em 2019. Já em 2020, as ações protago-
deram a 70% dos conflitos no campo no ção de 1988, como a Fundação Nacional
conflitos, identificando a natureza das nizadas pelos grupos/classes sociais em
Brasil (CPT, 2022). do Índio (FUNAI), a Fundação Cultural
ações que geram conflitos no campo. situação de subalternização responde-
São registradas, de um lado, ações de ram por 2% do total e subiram para 4% Palmares (FCP) e o Instituto Brasileiro
Quando olhamos os dados de con-
conquista e retomada de terras, qua- em 2021. Isso significa que, em 2021, do Meio Ambiente e dos Recursos Na-
flitos envolvendo água, as conclusões
se sempre protagonizadas por grupos/ 96% dos conflitos por terra no Brasil se turais Renováveis (IBAMA). Ademais,
são as mesmas. Uma recuperação dos
classes sociais em situação de subal- deram por ações de ataques a direitos/ ampliou a política de paralisia da refor-
dados desse tipo de conflito nos mostra
ações de violência protagonizadas pe-
los grupos/classes sociais em situação
11. Ver: PORTO-GONÇALVES, C. CUIN, D. LADEIRA, J. SILVA, M. LEÃO, P. A ruptura política e a questão agrária no de dominação.
Brasil (2015-2017): da política de terra arrasada à luta pela dignidade. Revista OKARA: Geografia em debate,
v. 12, n. 2, p. 708-730, 2018.
60 61
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
ma agrária no país iniciada no gover- 2020). É seguro dizer, a esse respeito, produtos do agro e do aumento dos por essa condição topográfica propor-
no Michel Temer, com o empenho, em que não é o modo de des-envolvimen- conflitos no campo brasileiro apontam cionam menor gasto em energia do que
2020, do menor orçamento para aqui- to em curso – vendido sob o slogan “o é que a terra tem ganhado centralida- um relevo ondulado ou mesmo suave-
sição de terras desde 1995 (GOVERNO agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo” de na exata medida em que aumentam mente ondulado, o que não é de pouca
FEDERAL, 2021) de acordo com o Ins- – que apresenta alternativas, afinal é consideravelmente as disputas sobre relevância para um modo de produção/
tituto Nacional de Colonização e Refor- ele próprio a força motriz da moderni- ela (PORTO-GONÇALVES et al., 2017). reprodução de grande custo operacional
ma Agrária (INCRA). zação conservadora do território bra- em energia para movimentar suas má-
sileiro e do aprofundamento de nossa Os Cerrados têm registrado boa par- quinas pesadas; (b) a enorme disponibi-
Evidentemente, tal cenário de terra condição periférico-dependente no sis- te do avanço das lavouras do agronegó- lidade de água12; e (c) a estrutura agrá-
arrasada escancarado nos últimos anos tema-mundo. cio no país. Por exemplo, a macrorre- ria tradicional, de caráter latifundiário,
não surgiu do dia para a noite, cons- gião Centro-Oeste – ocupada quase em que facilita enormemente a aquisição
tituindo-se nas últimas décadas pelo Na esteira dessa dinâmica, atuali- sua totalidade pelos Cerrados – apre- de muita terra com poucas operações
agravamento de nossa condição peri- zam-se práticas coloniais no espaço sentou, entre 1988 e 2018, um espeta- de transferência de propriedade. Essa
férico-dependente através da ênfase agrário brasileiro, com o avanço das cular aumento de 380,4% na área plan- herança facilitou a reprodução moder-
na pauta primário-exportadora. Enfim, áreas plantadas das monoculturas de tada com as lavouras de soja, milho e nizada do latifúndio tradicional.
por trás das cifras-recorde das commodi- commodities, o incremento da concen- cana de açúcar, que passaram a repre-
ties há uma dinâmica de conflitividades tração fundiária, e o aumento dos con- sentar nada menos que 92,1% da área Entretanto, que as regiões dos Cer-
que intensifica a questão (da reforma) flitos por terra e da violência contra os total cultivada na região. Ou seja, é evi- rados tinham uma tradição de manejo
agrária, na medida em que aumentam grupos/classes sociais em situação de dente o avanço da expansão territorial das suas paisagens, que ficaram consa-
as disputas em torno do controle e do subalternização no campo. É o desen- do agro nos Cerrados. gradas na obra-prima do grande escri-
acesso à terra (Porto-Gonçalves et. al., volvimento do subdesenvolvimento tor brasileiro Guimarães Rosa: Grande
(MARINI, 1973), em suma. A partir dos anos 1970 os capitais Sertão: Veredas. Esse livro recria litera-
bancários-empresariais-agropecuá- riamente o mundo de vida camponês:
rios se aventuraram pelos Cerrados, os grandes sertões são as chapadas onde o
quando essas regiões passaram a ser mundo “carece de fechos”, pois não têm
a área mais dinâmica da produção de cercas, e são usados como terra comum
Um olhar mais atento à geografia dos commodities para exportação com base para a pastagem do gado e para o extra-
conflitos nos Cerrados (2020–2021) em latifúndios de produção intensiva,
encontraram determinadas condições
tivismo de centenas de produtos; e as
veredas são os fundos dos vales onde os
sociogeográficas que não só os favore- camponeses habitam, fazem agricultura
Dado o contexto de conflitos no cam- biogeográfico que traz em sua dinâmi- ceram, como também são a razão de e criam pequenos animais. Os campone-
po brasileiro nos anos de 2020 e 2021, ca territorial um quadro privilegiado fundo da enorme conflitividade que ses faziam o uso complementar dessas
olhemos mais atentamente o que tem sobre a relevância da terra e do conjun- desde então se estabeleceu. duas unidades da paisagem, enfim, do
se passado no Cerrado brasileiro e em to das condições metabólicas da vida binômio chapada-vereda. Era comum,
Entre essas condições destaquemos:
suas Zonas de Transição, ou nos Cer- na atualidade. ainda, que grandes fazendeiros tradi-
(a) as enormes extensões de terras pla-
rados, como os chamaremos daqui em cionais estabelecessem relações com os
Na contramão do que têm defendi- nas – as chapadas e chapadões –, que
diante. Como vimos, a questão agrária camponeses permitindo que eles fizes-
tem estado em evidência, atestada pelo do os ideólogos do agronegócio – que a
aumento dos conflitos por terra nos úl- terra tem cada vez menos importância
dada diminuição de sua participação 12. Os Cerrados são a caixa d’água do Brasil. Não só por sua extensa rede hidrográfica, como também pelos
timos anos, o que evidencia também ricos aquíferos da região (Guarani, Urucuia e Bambuí). Nas chapadas, onde a água se infiltra rapidamente, a
sua centralidade teórico-política. Os no valor geral de produção –, o que os atividade agrícola ficava limitada, pois o precioso líquido havia de ser buscado no subsolo, sobretudo nos
aquíferos.
Cerrados brasileiros são um sistema dados de avanço de área plantada dos
13. Pelo sistema de quarta, a cada quatro crias, o camponês tem direito a uma para si.
62 63
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
por terra e envolvendo água no espaço do. Esses dados começam a nos mos-
agrário brasileiro ocorreram nos Cer- trar como os Cerrados têm sido palco
rados e suas Zonas de Transição com avançado das disputas pelo controle e o
Amazônia, Zona dos Cocais, Caatinga, acesso à terra e ao conjunto das condi-
Mata Atlântica e Pantanal nesse perío- ções metabólicas da vida no país.
64 65
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
os anos de 2020 e 2021 são dois dos mica observada no panorama nacional A exceção foi a diminuição de qua- direitos/ações de violência na Transi-
mais conflitivos na história recente dos se confirmou na região. Ou seja, nesse se 50% nesse tipo de ação na Zona de ção Cerrado–Caatinga, atesta que o au-
Cerrados. Desde 2003 até 2019, aliás, período houve uma queda considerável Transição Cerrado–Mata Atlântica (Ta- mento das ocorrências de conflito to-
não haviam sido registradas mais de das ações de conquista e retomada de bela 2), área onde, por sinal, houve tal nessa área se deveu à violência dos
300 ocorrências de conflitos na região. terra acompanhada do brutal aumento um aumento nas ações de ocupação grupos/classes sociais em situação de
Em 2019 esse número saltou para mais das ações de ataques a direitos/ações e retomada de terra (Tabela 3) prota- dominação (empresários; fazendeiros;
de 500 ocorrências. Já 2020, com um de violência, tanto em proporção como gonizadas pelos sem-terra. O aumento agentes públicos/governos; grileiros;
registro de 653 ocorrências, foi o ano em números absolutos. Ainda segundo de quase 50% das ações de ataques a mineradoras e outros).
com mais conflitos no Cerrado Amplia- Ladeira (2020), no caso do Cerrado Am-
do, pelo menos desde 2003, segundo o pliado, o ano de 2010 pode ser tomado
CEDOC Dom Tomás Balduino/CPT. A como um marco das ocorrências de Natureza das ações de disputa por terra/território no Cerrado e em Zonas
ligeira queda observada em 2021 (592) conflitos: de 2003 a 2009 as ocorrências de Transição – ações de ocupações e conquista e/ou retomada de terras
não impede que esse tenha sido o se- apresentam uma tendência de descen- (2020–2021) Tabela 3
gundo ano com mais ocorrências de so e de 2011 em diante a tendência do
conflito nos Cerrados, atrás somente número de ocorrências passa a ser de Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021
de 2020. Enfim, se há expansão/invasão ascensão até o registro recorde em 2020.
Cerrado Contínuo 6 2
das fronteiras, os Cerrados são o front,
como se vê. Quase todas as áreas do Cerrado Transição Cerrado- Mata Atlântica - 12
registraram menos ações de ataques Transição Cerrado-Amazônia 1 2
No que diz respeito à natureza das a direitos/ações de violência em 2021
ações no Cerrado Ampliado, podemos do que em 2020, com exceção da Tran- Transição Cerrado-Caatinga - 2
afirmar, de acordo com Ladeira (2020), sição Cerrado–Caatinga. Entretanto, Transição Cerrado- Zona dos Cocais - -
que entre 2003 e 2019 a mesma dinâ- no quadro geral, a queda foi pouca. Pantanal Transição Cerrado - -
Cerrado Ampliado 7 18
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
Natureza das ações de disputa por terra/território no Cerrado e em Zonas
de Transição – ações de ataques a direitos/ações de violência (2020–2021)
Tabela 2
Entre 2020 e 2021, evidencia-se que aumento de zero para 12 ocorrências
a participação dos movimentos sociais de ações de ocupações e conquista e/ou
Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021
e comunidades rurais nas disputas pela retomada de terras na Zona de Transi-
Cerrado Contínuo 299 257 terra nos Cerrados segue tendo uma ção Cerrado–Mata Atlântica, área onde
relevância mínima se comparada com houve uma diminuição das ações dos
Transição Cerrado- Mata Atlântica 120 69
a altíssima violência dos grupos/clas- grupos/classes em situação de domina-
Transição Cerrado-Amazônia 91 87 ses sociais em situação de dominação. ção. Embora tenha havido um aumen-
Transição Cerrado-Caatinga 29 65 Em 2020, 1% das ocorrências de con- to nas ações dos movimentos em 2021,
Transição Cerrado- Zona dos Cocais 83 78 flitos por terra ou envolvendo água se se comparadas com o total da nature-
deveram a ações de ocupações, acam- za das ações dos conflitos no campo,
Pantanal Transição Cerrado 24 18 pamentos e/ou retomadas, enquanto seguem com representação pequena
Cerrado Ampliado 646 574 o restante foi violência dos de cima frente às ações de ataques a direitos/
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022. contra os de baixo. Em 2021, essa ten- ações de violência.
dência se repetiu. Chama a atenção o
66 67
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
Olhemos agora para o quadro geral 2019 esse número alcançou 64.533 fa-
A geograficidade das categorias
das famílias envolvidas em conflitos mílias. Isto é, o número de famílias en-
nos Cerrados e em suas Zonas de Tran- volvidas em conflitos nos Cerrados não sociais envolvidas em conflitos no
sição. De acordo com o CEDOC Dom acompanhou o recrudescimento das Cerrado (2020–2021)
Tomas Balduino/CPT, o crescimento no ocorrências de conflito. Já em 2020,
número de famílias envolvidas em con- temos um salto para 73.056 famílias
flitos no Brasil entre 2003 e 2019 foi de envolvidas em conflitos, enquanto em Tanta terra, tanto conflito, tanta beirinhos, geraizeiros, faxinalenses,
78%. No Cerrado Ampliado, entretan- 2021 foram 80.891 famílias (Tabela 4). gente em conflito. Mas quem é essa sem-terra e mais uma ampla diversida-
to, estes números de famílias mostram Ou seja, tivemos um aumento em nú- gente? Como se autoidentifica? Uma de de identidades sociopolíticas) apare-
uma ligeira queda e estão hoje num pa- meros absolutos de famílias envolvi- análise das categorias sociais envol- cem envolvidos na maioria dos confli-
tamar muito próximo de onde estavam das, apesar da queda no número de vidas em conflitos mostra como se tos por sua resistência às muitas ações
no início do período (LADEIRA, 2020). ocorrências. Este aumento do número movimentam, no espaço-tempo, as de tentativa de expulsão, expulsão,
de famílias se deu nas Transições Cer- contradições entre os agentes e seus tentativas de despejo, despejo, invasão,
Em números absolutos, 2003 re- rado–Amazônia e Cerrado–Caatinga, e interesses, e quem são os grupos em grilagem e outras, protagonizadas pe-
gistrou 65.722 famílias envolvidas em no Cerrado Contínuo. luta pela permanência, pelo acesso los grupos/classes sociais em situação
conflitos nos Cerrados, enquanto em ou pela retomada de terras. Isso por- de dominação. Predominam entre os
que uma sociedade não existe fora do grupos/classes sociais em situação de
espaço e, portanto, entender sua dis- subalternização as categorias que estão
Famílias envolvidas em conflitos no campo no Cerrado e em Zonas de tribuição, sua dinâmica territorial e em posse real de uso da terra, ou seja, do
Transição (2020–2021) quem são os agentes dessa dinâmica conjunto das condições de produção
Tabela 4 torna-se fundamental para a leitura da e reprodução da vida. Algumas desde
questão (da reforma) agrária no Brasil. tempos imemoriais, como os povos in-
Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021 Ademais, muitas das vezes, o conflito dígenas, e outras há séculos, como as
entre dois ou mais modos de usar e sig- diferentes campesinidades que confor-
Cerrado Contínuo 26.425 29.757 nificar, material e simbolicamente, o mam o a sociedade brasileira em sua
espaço desencadeia um cenário de ter- dimensão agrária.
Transição Cerrado- Mata Atlântica 13.342 11.581
ritorialidades em conflito. Os conflitos
Transição Cerrado-Amazônia 17.897 22.483 As análises que aqui desenvolvemos
são aqui registrados conceitualmente
estão fundamentadas nos dados refe-
Transição Cerrado-Caatinga 2.833 9.992 segundo a iniciativa das diferentes ca-
rentes às categorias sociais envolvidas
tegorias sociais que agem segundo sua
Transição Cerrado- Zona dos Cocais 10.467 6.604 nos conflitos no campo nos Cerrados.
posição nas relações sociais e de poder,
De um lado, temos as categorias sociais
Pantanal Transição Cerrado 2.092 474 por isso diferenciamos os chamados
que causam as ações de ataques a di-
grupos/classes sociais em situação de
Cerrado Ampliado 73.056 80.891 reitos/ações de violência (empresários;
subalternização daqueles grupos/clas-
fazendeiros; governo/agentes públicos;
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022. ses sociais em situação de dominação.
grileiros; mineradoras; e outros) e, do
Nesse sentido, os grupos/classes so- outro, temos as categoriais sociais que
ciais em situação de subalternização sofrem essas ações de violência (assen-
(posseiros, indígenas, quilombolas, ri-
68 69
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
tados, pequenos proprietários, arren- nização com maior envolvimento em alguma incidência nas Zona de Tran- No Mapa 1, podemos visualizar a dis-
datários e parceleiros; sem-terra; povos conflitos no campo entre 2020 e 2021 sição Cerrado–Mata Atlântica e Cer- tribuição espacial dos conflitos de acor-
e comunidades tradicionais; e outros). (Gráfico 1). O aumento vertiginoso das rado–Amazônia. Em relação aos pe- do com os grupos/classes sociais em si-
ações de violência protagonizadas pe- quenos proprietários, arrendatários e tuação de subalternização envolvidos.
A chamada reconfiguração da ques- los grupos/classes sociais em situação parceleiros, destaca-se sua presença no
tão agrária (PORTO-GONÇALVES, 2018) de dominação contra os territórios de Cerrado Contínuo.
se atualiza nos Cerrados, onde os fronts vida de povos e comunidades tradicio-
das disputas pela terra são principal- nais indica como o espaço agrário bra-
mente áreas tradicionalmente ocupa- sileiro tem sido palco do avanço/inva- Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição segundo os
das por povos e comunidades tradicio- são do capital, cuja territorialização se grupos/classes sociais em situação de subalternização
nais que, em posse real de uso de suas faz em áreas ocupadas com uso tradi- Mapa 1
terras/territórios, foram os grupos/ cional da terra como terra de trabalho
classes sociais em situação de subalter- e vida, desterritorializando-as.
Transição Cerrado-Amazônia 16 4 15 64 0
Transição Cerrado-Caatinga 12 6 6 59 0
Transição Pantanal 1 2 1 35 0
LEGENDA
Cerrado Ampliado 42 33 92 710 34
Brasil
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
em conflitos (Gráfico 1). Destacam-se rado–Amazônia, no Cerrado Contínuo Transição Cerrado-Amazônia-Caatinga Sem Terras
(Zona dos Cocais) Outros
os altos números no Cerrado Contínuo e na Zona de Transição Cerrado–Caa-
(73%), na Zona de Transição Cerrado– tinga. Já os sem-terra tiveram destaque
Mata Atlântica (84%) e na Zona de Tran- principalmente no Cerrado Contínuo e
Fonte: IBGE; Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
70 71
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
Uma análise da geografia dos confli- as denúncias sobre o tratamento dis- zônia, ao longo da BR-173 (Cuiabá–
tos segundo os grupos/classes sociais pensado pelo do poder público aos Santarém) e da BR-364 (Cuiabá–Porto
em situação de dominação indica um trabalhadores e às trabalhadoras da Velho), a violência tem sido especial-
cenário complexo, com uma distribui- terra durante a pandemia. O modo de mente marcante.
ção em especial de acordo com cada produção-reprodução em des-envolvi-
área do Cerrado Ampliado. mento não parou e, com ele, continua- Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição
ram as ameaças de despejo, situações segundo os grupos/classes sociais em situação de dominação
Na Transição Pantanal–Cerrado, de omissão/conivência, impedimentos Mapa 2
os fazendeiros foram o grupo/classe de ir e vir e demais ações do poder pú-
social em situação de dominação que blico nesse período.
mais causou conflitos. O mesmo ocor-
reu no Cerrado Contínuo e na Zona Já na Zona de Transição Cerrado–
de Transição Cerrado–Caatinga. Já Amazônia, 29% dos conflitos foram
na Zona de Transição Cerrado–Mata causados por ações de empresários e
Atlântica, 52% das ações de ataques a 29% por fazendeiros. Juntos, respon-
direitos/ações de violência foram pro- deram por 68% das ações de ataques a
tagonizadas pelo governo/por agentes direitos/ações de violência nessa área.
públicos (Gráfico 2). Aqui, muitas são Na transição dos Cerrados com a Ama-
Governo/
Biomas Empresário Fazendeiro Agentes Grileiro Mineradora Outros
públicos
Fonte: IBGE; Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
72 73
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros
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76 77
Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
78 79
Romaria da Terra
e das Águas Padre
Josimo, no Bico
do Papagaio,
Tocantins.
são e à violência como marca dessa Na (re)construção da memória cam- que atingiram inclusive muitos povos de? Em seguida são apresentados casos
luta. Os indígenas foram vítimas de ponesa, o movimento de Trombas e For- cerratenses. Violações praticadas pelo emblemáticos de camponeses e cam-
genocídios de grupos e etnias com o moso (1949–1964), em Goiás, território Estado e seus agentes que não podem ponesas cerratenses cuja memória foi
processo de ocupação das terras inte- originalmente cerratense, é um exem- (e não devem) ser esquecidas para que registrada pela CCV. Por fim, são apon-
riores (ELEUTÉRIO, 2013). A busca por plo de como os/as camponeses/as foram não aconteçam mais. tados desafios que se apresentam para
liberdade levou povos negros a viver reprimidos/as por abraçar a luta pelo dar continuidade ao direito à memória
em lugares recônditos, isolados e sem direito à terra e o modo de vida campo- Este texto vai tratar especificamente e à verdade camponesas, tentando res-
acesso a direitos por séculos, criando nês. A reforma agrária, pauta política da (re)construção de memórias de cam- ponder perguntas como:
quilombos em terras livres da opres- desse movimento e de tantos outros, foi poneses e camponesas violentados em
são. A negação do direito à terra ao brutalmente interrompida pela ditadura seus direitos por lutar pela terra, por
camponês gerou milhares de conflitos reforma agrária em terras do Cerrado. Qual tratamento deve ser
civil-militar (1964–1985), cujos governos
Inicialmente, aborda-se como o direito dado à memória de povos
com latifundiários, mineradores e em- optaram por um projeto de desenvolvi-
à memória e à verdade camponesas foi e comunidades do Cerrado
presários que negaram (e ainda negam) mento do campo conservador, exclu-
demandado pelos movimentos sociais violentados em seu direito à
esse direito. dente e violento (MARTINS, 1985). terra?
como parte da reparação de dores e
Muitas histórias e memórias de lu- Os anos da ditadura deixaram uma perdas e como essa pauta foi contem-
tas e resistências podem ser contadas marca permanente nas histórias de plada pela Comissão Nacional da Ver- Qual o papel do Tribunal dos
para (re)construir a trajetória histórica vida de muitos camponeses e muitas dade (CNV) e, posteriormente, pela Co- Povos em Defesa dos Terri-
de povos e comunidades do Cerrado na missão Camponesa da Verdade (CCV). tórios do Cerrado na luta por
camponesas. Nesse período, o direito à
luta pelo território indígena e pela terra As perguntas que nortearam essa pri- memória e verdade diante
terra e ao território foi duramente re-
camponesa. Essas lutas guardam mui- meira parte do texto foram: quais são
da permanência da violência
primido, gerando dores cujas narrati- contra povos e comunidades
tas marcas de dor e perdas. vas passam por torturas, assassinatos, as especificidades da (re)construção da
do Cerrado?
expulsão das terras, perseguições polí- memória camponesa? Por que contem-
ticas, mais genocídio indígena, desapa- plar a memória camponesa como parte
recimentos forçados e outras práticas das discussões sobre memória e verda-
80 81
Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
Movimentos e povos indígenas cria- das pelo Estado e seus agentes contra
Comissão Camponesa da Verdade e o ram, em agosto de 2013, uma Comissão camponeses de 1946 a 1988 (período de
abrangência da CNV), e a necessida-
Indígena da Verdade e Justiça (CIVJ),
direito à memória e à verdade camponesas com apoiadores, intelectuais e pesqui- de premente de reparação (SARAIVA;
sadores de diferentes entidades, para SAUER, 2014).
subsidiar a CNV e elaborar seu próprio
relatório sobre violações de direitos Entre os objetivos da Comissão
Indígenas, sem-terra, famílias as- de 2012), do Grupo de Trabalho sobre
indígenas de 1946 a 1988 (SAUER; SA- Camponesa estavam: a) construir uma
sentadas, quilombolas, agricultores “violações de direitos humanos relacio-
RAIVA, 2015). Marcelo Zelic, do Grupo agenda de trabalho, tanto para propor
familiares, populações tradicionais, nadas à luta pela terra e contra popu-
Tortura Nunca Mais de São Paulo, ela- casos e estudos à Comissão Nacional
extrativistas, reunidos no Encontro lações indígenas, por motivações polí-
borou um documento de apoio à CNV da Verdade (CNV) como para mobili-
Nacional Unitário dos Trabalhadores, ticas” (CNV, 2015). O objetivo desse GT
intitulado “Povos Indígenas e Ditadura zar as organizações no resgate da me-
Trabalhadoras e Povos do Campo, das foi “identificar e tornar públicas estru-
Militar: subsídios à CNV” (TELÓ, 2019). mória camponesa; b) reunir trabalhos
Águas e das Florestas, em Brasília, 2012, turas, locais, instituições, circunstân-
e pesquisas em uma investigação pró-
comemoraram os 51 anos do Congres- cias e autorias de violação de direitos
Um aspecto comum no trabalho reali- pria (violações e casos emblemáticos,4
so Camponês de Belo Horizonte, ocor- humanos no campo brasileiro, entre
zado pela CCV e no da CIVJ foi o entendi- organização de documentos e pesqui-
rido em 1961, e reforçaram a unidade 1946 e 1988” (KEHL, 2014, p. 1).
mento alargado sobre o conceito de vio- sas etc.); c) elaborar um relatório dos
das organizações e movimentos sociais
lações de direitos humanos para além movimentos e entidades, resgatando
do campo em torno de lutas comuns
da definição adotada pela CNV (TELÓ, a memória camponesa, dando maior
pelo território, pela terra e por reforma Segundo a Lei nº 12.528, de 18
2019), como veremos em seguida. visibilidade aos sujeitos do campo, du-
agrária. Cerca de sete mil participan- de novembro de 2011, a CNV
ramente vitimados pelo Estado entre
tes, entre eles povos e comunidades do foi criada pela Presidência da A CCV foi formada por mais de 40
República com a “finalidade de
1946 e 1988 (SAUER et al., 2015).
Cerrado, mobilizaram-se contra a vio- professores/as – pesquisadores/as de
lência histórica (permanente e estru- examinar e esclarecer as graves
várias áreas do conhecimento de insti- A Comissão Camponesa realizou
tural) do direito ao território indígena violações de direitos humanos
tuições públicas de ensino superior de vários encontros nacionais e articulou
e à terra camponesa como espaços de praticadas no período fixado no
art. 8º do Ato das Disposições diferentes regiões do país –, lideranças equipes estaduais de pesquisa para
vida, de produção e de identidade. de movimentos sociais e entidades do reunir e sistematizar estudos e levanta-
Constitucionais Transitórias
[1946–1988], a fim de efetivar o campo e apoiadores/as. Entre 2012 e mentos e agregar contribuições para o
Entre os compromissos assumidos
direito à memória e à verdade 2015, buscou efetivar o direito à me- relatório da CNV (2015). Algumas per-
no Encontro Unitário encontra-se a dis-
histórica e promover a reconci- mória e à verdade e dar visibilidade guntas mobilizaram o debate: qual a
posição de buscar o direito à memória e
liação nacional” (Art. 1) (SARAI- (oficial) à necessidade de investigar as importância de (re)construir memórias
à verdade camponesas como mecanis-
VA; SAUER, 2014). violações praticadas no campo. A CCV de camponeses e camponesas que so-
mo de reparação pelas violações sofri-
Para mais detalhes sobre a CNV, teve como objetivo dar suporte e inci- freram violações de direitos? Há espe-
das nos períodos de repressão política.
ver o site http://www.cnv.gov.br. dir na Comissão Nacional, no sentido cificidades – e, se houver, quais seriam
Esse compromisso, assumido publi- de registrar (indicar ou sugerir investi- – de uma memória camponesa? Por
camente em 2012, levou a mobilização gações) situações de violências cometi- que é preciso contemplar a memória
dos movimentos camponeses a atuar O direito à memória e à verdade cam-
sobre os trabalhos da CNV – criada ponesas e indígenas ganhou, por parte
pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro dos movimentos sociais, ações específi- 3. “Casos emblemáticos”: situações, eventos e episódios que exemplificam a violência, a violação de
de 2011. O trabalho articulado desses cas visando a incidir sobre os trabalhos direitos e as diversas formas de repressão no campo. Como episódios ou situações importantes (histori-
camente circunscritas ou um processo temporal mais longo) envolvendo pessoas, grupos de pessoas até
grupos resultou na criação, pela CNV da CNV, resultando desse movimento a comunidades inteiras, são exemplos (casos particulares, histórica e geograficamente delimitados) que, ao
(Resolução nº 5, de 05 de novembro criação da CCV. serem resgatados e recontados, podem ser universalizados, pois explicitam ações, violações e responsabi-
lidades do Estado (CCV, 2015).
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
camponesa como parte das discussões branças e construindo identidade social nismo na luta contra a ditadura como A CCV, ao trazer à discussão as es-
públicas sobre a Verdade? Qual trata- e cultural para que essas dores e perdas nos processos de reparação (VIANA, pecificidades da questão camponesa,
mento deve ser dado a essa memória não voltem a acontecer, não sejam es- 2014). Essa invisibilização serve como reconheceu a necessidade de conside-
(SARAIVA; SAUER, 2014)? quecidas e sejam parte da construção um mecanismo político de não reco- rar não apenas casos e ações em que
da memória coletiva (MENESES, 1984), nhecimento e, consequentemente, não agentes do Estado agiram como ator
Esses questionamentos direciona- incluindo nessa memória o protagonis- justiça (há poucos casos de reparação), direto. Esses seriam os casos ou situa-
ram o trabalho realizado pela CCV e as mo de movimentos sociais e entidades sendo fundamental o trabalho de (re) ções em que estiveram presentes agen-
discussões teórico-conceituais foram do campo. Segundo Meneses (1984, p. construção da memória da CCV (SA- tes públicos – funcionários públicos e
fundamentais para a compreensão da 33), essa memória coletiva dá suporte à RAIVA; SAUER, 2014) no âmbito da CNV instituições do Estado de qualquer ní-
(re)construção da memória camponesa construção de identidade, identidade de (SAUER et al., 2015). vel ou instância – e/ou “pessoas a seu
para além da perspectiva apontada pela grupos sociais, pois se constitui no “[...] serviço”. Mas de considerar também
CNV. Foram elas: a presentificação do mecanismo de retenção de informação, situações de omissão, conluio, acober-
passado; a ampliação da responsabili- conhecimento, experiência individual Levantamentos na Comissão de tamento ou mesmo a “privatização da
dade do Estado como sujeito de viola- ou social, constituindo-se em um eixo Anistia e na Comissão Especial ação do Estado” pelo latifúndio duran-
ções de direitos e a concepção de gra- de atribuições que articula, categoriza sobre Mortos e Desaparecidos te a ditadura civil-militar (SAUER et al.,
ves violações. os aspectos multiformes de realidade, Políticos revelaram um baixo 2015, p. 27; SARAIVA; SAUER, 2014).
dando-lhes lógica e inteligibilidade”. acesso de camponeses aos
A (re)construção da memória cam- direitos da Justiça de Transi- Welch e Sauer (2015) observam que,
ponesa foi entendida como fundamen- Nas discussões realizadas pela CCV, ção. Segundo Viana (2104, p. no campo pós-1964, o latifúndio agiu
tal para dar visibilidade pública às vio- foi reconhecido que há um processo 2), foram identificados “[...] 663 como braço privado do regime ditato-
lações cometidas contra camponeses. político e social de invisibilização no camponeses dentre os 14.481 rial, sustentado por um conjunto de
Para (re)construir a memória não so- que se refere tanto à luta e à resistên- atingidos classificados pelo políticas públicas, com especial desta-
mente como parte de um processo de cia camponesas (retirada ou esqueci- BNM [acervo do Brasil Nunca que para projetos privados de coloniza-
contar, relatar ou rememorizar o passa- Mais] nas categorias de denun- ção em áreas de fronteira agrícola, cré-
mento de protagonistas) quanto aos
ciados, indiciados, testemunhas
do, mas de (re)construção na busca por processos de reparação em curso no ditos subsidiados e incentivos fiscais e
e declarantes”, sendo que essa
reparação e justiça. Estado brasileiro (SAUER et al., 2015). apoio a empresas que violaram direitos
lista não compreende a tota-
Por isso, presentificar a memória cam- lidade de camponesas e cam-
etc. Isso era parte expressiva da alian-
A memória camponesa foi pensada ponesa diz respeito à reparação de de- ça entre militares e o latifúndio, cons-
poneses perseguidos e vítimas
numa perspectiva inspirada em Wal- sejos, anseios e intenções em relação de violências e violações (CCV, tituindo, portanto, uma ditadura ci-
ter Benjamin, em que o passado é (re) ao direito à terra e à dignidade huma- 2015; VIANA, 2014). vil-militar (SAUER et al., 2015; SAUER;
construído para que dores e perdas não na de homens e mulheres brutalmen- SARAIVA, 2015).
sejam silenciadas e esquecidas; a me- te “retirados” da história, como se não
mória é trazida como presentificação tivessem importância ou não devessem Os levantamentos da CCV procura-
do passado a ser reparado e para garan- existir; essa presentificação tem como Em relação à responsabilidade do ram considerar também investimentos
tir justiça aos camponeses silenciados. finalidade que a resistência e o protago- Estado como sujeito de violações de di- econômicos e políticos que levaram
Essa perspectiva significa concretizar e nismo histórico da população do cam- reitos, a Resolução nº 2, de 2012, da CNV à modernização – “mais dolorosa que
ampliar as possibilidades de que repa- po (sujeitos políticos), na luta contra a estabeleceu “examinar e esclarecer as conservadora” (WELCH; SAUER, 2015)
rações de violações aconteçam e o pas- ditadura civil-militar, não se percam na graves violações de direitos humanos – e os seus impactos, tais como o apro-
sado seja redimido (GAGNEBIN, 1993). história nacional. praticadas no período fixado no art. 8º fundamento do problema fundiário
do Ato das Disposições Constitucionais (concentração da propriedade da terra)
Presentificar memórias é tornar Uma das motivações para criar a Transitórias, por agentes públicos, pes- e o financiamento da destruição am-
presentes realidades de dores e perdas CCV foi a invisibilização dos campone- soas a seu serviço, com apoio ou no in- biental, especialmente na Amazônia e
vividas no passado, socializando lem- ses, tanto em relação ao seu protago- teresse do Estado” (Art. 1º) (CNV, 2015). no Cerrado (SAUER et al., 2015).
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
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Violações de direitos humanos de camponeses 1977
do Cerrado durante a Ditadura Civil Militar 1985
Tromba e Formoso (GO)
Casos emblemáticos apresentados pela CCV Cerrado Chapada Diamantina (BA)
Lideranças sindicais, lideranças comunitárias
região de transição Cerrado e Caatinga Outros casos
João José Rodrigues
e religiosos foram perseguidas e ocorreram 1966 (Juca Caburé), foi preso, Vários posseiros foram per-
em Goiás
muitas prisões e torturas de camponeses. torturado e morto; seguidos e lideranças como Nativo da Natividade
Santa Terezinha (MT) José Zacarias dos Santos Oliveira, presidente do
região de transição Cerrado e Amazônia Outras lideranças foram foi morto, por organizar e resis- Sindicato dos Trabalha-
vítimas de torturas e tir na luta pela terra; dores Rurais de Carmo
Foram registradas situações de persegui-
espancamentos: do Rio Verde, Goiás.
ção, prisões, ameaças, destruição de roças
Bartolomeu Gomes da Sila,
e casas de posseiros que viviam nas terras.
Carmina Castro Marnio,
As violências foram protagonizadas pela
Companhia de Desenvolvimento do Araguaia
Dirce Machado da Silva 1986
e tantas outros foram
(CODEARA) e ganhou contornos políticos, com Bico do Papagaio (TO)
vítimas de torturas,
o envolvimento dos órgãos militares da dita- região de transição Cerrado e Amazônia Jauru (MT)
1968 > 1972 dura e do Serviço Nacional e Informação (SNI),
espancamentos, e outras
atrocidades praticadas por
acusando trabalhadores e padres da região Foi assassinado Pe. Josimo O líder Chapeú de Couro,
Norte de agentes do Estado e seus
de “agitadores comunistas”. Moraes Tavares que coordenava 60 anos, foi executado,
Minas Gerais apoiadores civis. a Comissão Pastoral da Ter- de forma cruel e “exem-
Cerrado
1970 ra, regional Araguia-Tocantins. plar”; à sua morte soma-
Foi registrado casos de
perseguições de posseiros e Tromba e Formoso (GO) 1982 Josimo foi baleado pelas costas
por defender camponeses contra
ram-se outras mortes
de posseiros, caracte-
militantes da Ação Popular em Cerrado Jauru (MT) atos de expulsão de terras por rizando-se esse caso
Varzelândia e Montes Claros. Os Cassimiro Luiz Freitas, lavrador fazendeiros da região. como uma chacina.
Perseguições, prisões,
conflitos levaram à expulsão dos e sindicalista, foi morto. espancamentos, maus tratos,
trabalhadores da terra.
ofensas, incêndio de roças e
casas, despejos, sequestros e
assassinatos de posseiros e
suas famílias no município
de Jauru, pela Agropecuá-
1973 ria Mirassol. A violência e
atrocidades foram prati-
cadas por jagunços, fazen-
deiros, polícia militar e pela
1985 > 2020
polícia federal. No Brasil entre os anos
Tromba e de 1985 a 2020, ocorreram
Formoso (GO) 55 massacres no campo em
Santa Terezinha (MT) Cerrado 1984 onze estados brasileiros, além de
região de transição Cerrado e Amazônia milhares de assassinatos e outras
José Porfírio de Souza, OUTROS CASOS EM GOIÁS
Pe. Jentel depois de sequestrado, desaparecido político e seu filho, Durvalino violações de direitos humanos
Sebastião Rosa da Paz, presidente
preso e julgado, foi expulso do Brasil, Porfírio de Souza, com 17 anos, foi tortura- ocorridas em conflitos por terra.
do Sindicato dos Trabalhadores
pelo governo militar de Geisel; do e desapareceu no mesmo ano
Rurais de Uruaçu, Goiás.
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
Fonte: CEDOC-CPT
Os casos emblemáticos apresenta- em 1984 (SAUER et al., 2015, p. 133), e
dos pela CCV apontaram para o desejo de Nativo da Natividade Oliveira, presi-
de reparação às situações de violação, dente do Sindicato dos Trabalhadores
demarcando dessa forma o direito à Rurais de Carmo do Rio Verde, em 1985
memória e à verdade como parte do (SAUER et al., 2015, p. 128).
processo reparativo. A intenção foi que
a luta pela terra e as histórias de campo- Em Mato Grosso, foram registrados,
neses e lideranças como José Firmino e em 1982, perseguições, prisões, espan-
José Porfírio de Souza, que participaram camentos, maus tratos, ofensas, incên-
do movimento de Trombas e Formoso dio de roças e casas, despejos, seques-
(1949–1964), fossem presentificadas, tros e assassinatos de posseiros e suas
para não ser esquecidas, e reparadas. famílias no município de Jauru pela
Agropecuária Mirassol. A violência e
Esse movimento camponês envolveu as atrocidades foram praticadas por
vários posseiros em conflitos agrários jagunços, fazendeiros, polícia militar
com fazendeiros e grileiros na região e polícia federal (SAUER et al., 2015, p. Os trabalhadores rurais e
norte e nordeste de Goiás, resultando 137). O líder Chapéu de Couro, 60 anos, sindicalistas Nativo da Nativi-
dade Oliveira e Sebastião Rosa
num quadro de muita violência e re- foi executado em 1986 de forma cruel
da Paz foram assassinados em
pressão. Com a instalação da ditadura e “exemplar”; à sua morte somaram-se
Goiás em 1985 e 1984, respec-
civil-militar, os títulos de posse da terra outras mortes de posseiros, caracteri- tivamente, crime cujos autores
anteriormente concedidos aos traba- zando-se esse caso como um massacre. nunca foram punidos.
lhadores rurais foram revogados. Lide-
ranças foram perseguidas e ocorreram Em Santa Teresinha (MT), área de
muitas prisões e torturas de campone- transição Cerrado/Amazônia, também sinha. A situação de conflito foi identi- noticiar o caso (SAUER et al., 2015, p.
ses. Cassimiro Luiz Freitas, lavrador e foram registradas situações de perse- ficada pelos órgãos da repressão como 143-155).
sindicalista, foi morto em 1970; José guição, prisões, ameaças, destruição “levante comunista”. Pe. Jentel e mui-
Porfírio de Souza é desaparecido polí- de roças e casas de posseiros. Com a tos camponeses foram presos diversas Depois do caso da CODEARA e de
tico desde 1973; Durvalino Porfírio de instalação da Cia. de Desenvolvimen- vezes. O Padre permaneceu sendo vi- outros na região do Baixo Araguaia, pa-
Souza, filho de José Porfírio, foi tortu- to do Araguaia (CODEARA), em 1966, giado. A CODEARA, sob o comando de dres, professores e agentes da Prelazia
rado e desapareceu em 1973, com ape- os camponeses passaram a sofrer todo seus dirigentes, destruiu casas e roças de São Félix do Araguaia foram presos,
nas 17 anos; João José Rodrigues (Juca tipo de violência por parte dos direto- em nome do projeto de planejamen- interrogados e sofreram torturas por
Caburé) foi preso, torturado e morto res e gerentes da Cia., que não aceita- to agrário e urbano que representa- agentes do Estado. O bispo-prelado Pe-
em 1977; Bartolomeu Gomes da Silva, vam qualquer tipo de negociação. A va. Mulheres, jovens e crianças foram dro Casaldáliga chegou a ser ameaçado
Carmina Castro Marnio, Dirce Macha- situação ganhou contornos políticos, ameaçados e sofreram torturas. Muitos de morte e a prelazia, indicada como
do da Silva e tantos outros foram víti- envolvendo órgãos militares da ditadu- camponeses se mantiveram em resis- foco de subversão e guerrilha. Os casos
mas de torturas, espancamentos e ou- ra como o Serviço Nacional de Infor- tência na mata, sendo posteriormente da prelazia registram grupos econômi-
tras atrocidades praticadas por agentes mação (SNI) e acusando-se posseiros e presos e punidos. Pe. Jentel, depois de cos envolvidos nas violações, como o
do Estado e seus apoiadores civis. padres da Prelazia de São Félix do Ara- sequestrado, preso e julgado, foi expul- Frigorífico Bordon e a Agropasa Agro-
guaia de “agitadores comunistas”. Tal so do Brasil, em 1973, pelo governo do pecuária (SAUER et al., 2015, p. 155-165).
Outros casos em Goiás trazem à foi o caso do Padre François Jentel, que general-presidente Geisel. O caso da
memória os assassinatos de Sebastião lutou para a permanência dos cam- CODEARA teve repercussão nacional A ditadura civil-militar foi impla-
Rosa da Paz, presidente do Sindicato poneses na terra e dos moradores no e internacional, mas a imprensa bra- cável e promoveu perseguições, pri-
dos Trabalhadores Rurais de Uruaçu, pequeno distrito urbano de Santa Tere- sileira foi impedida pela ditadura de sões, torturas e mortes em terras do
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
Padre Josimo Tavares, da Em 1986, no Tocantins, em terras Todas essas situações têm a marca da
Comissão Pastoral da Terra de transição com a Amazônia, foi as- violência estrutural que atravessa a his-
(CPT) Araguaia-Tocantins, sassinado o Pe. Josimo Moraes Tava- tória do campo no Brasil (MITIDIERO
assassinado com dois tiros res, que coordenava os trabalhos da JR.; FELICIANO, 2018). Com a ditadura,
nas costas em 10 de maio de Comissão Pastoral da Terra na região essa violência se institucionalizou, seja
1986, pelo pistoleiro Geraldo do Araguaia-Tocantins. A defesa in- por meio do aparato repressivo de ór-
Rodrigues, em Imperatriz (MA).
transigente dos camponeses contra gãos e entidades mobilizados para essa
A partir de sua religiosidade,
a expulsão de suas terras por fazen- tarefa (BRASIL NUNCA MAIS, 2014), seja
dedicou a vida em defesa
deiros levou à morte do Pe. Josimo, por meio da atuação de latifundiários e
do povo excluído.
baleado pelas costas, ao subir as esca- empresários que estavam envolvidos na
das do escritório da CPT em Impera- maior parte dos casos, mas ficaram im-
Créditos: João Ripper
triz (MA), depois de já ter escapado de punes pelos atos criminosos praticados.
um atentado em que foi metralhado o Martins (1985) caracteriza a repressão
carro em que viajava. no campo a partir da ditadura como
parte da militarização da questão agrá-
Nem todos os casos de camponeses ria. Pessoas ligadas a órgãos e entidades
atingidos pela ditadura foram listados públicas que participaram de projetos
como casos emblemáticos. As dificul- governamentais também fomentaram
dades de mobilização de pesquisado- ações repressivas, violentas e autoritá-
res em todas as regiões brasileiras e rias e não foram punidas pelas atrocida-
o tempo curto dos trabalhos motiva- des cometidas contra os camponeses.
ram a limitação dos registros. Sabe-se
que as situações de graves violações A CCV (SAUER et al., 2015), ao tratar
de direitos humanos ocorreram em da memória camponesa, reconheceu
todo o Brasil. Muitos mortos e desa- que a memória é parte da construção
parecidos foram listados pela CCV. No da verdade e da justiça. Sem trazer à
registro realizado constam 1.196 cam- tona memórias daqueles que foram
poneses e camponesas e apoiadores duramente atingidos em períodos re-
Oeste Baiano e da Chapada Diamanti- No norte mineiro, em terras tipica-
mortos ou desaparecidos de 1961 a pressivos, a verdade, o acesso à justiça
na (Bahia). Nessa região de Cerrado e mente de Cerrado, a CCV registrou os
1988, entre eles muita gente do Cerra- e a reparação são limitados. Memória e
Caatinga6 vários posseiros foram per- casos de perseguições de posseiros e
do. Nem todos os casos identificados verdade são elementos fundamentais
seguidos e lideranças, mortas. Zaca- militantes da Ação Popular em Varze-
pela CCV foram contemplados pela para a reparação das graves violações
rias José dos Santos foi assassinado, lândia e Montes Claros entre os anos
Comissão Nacional da Verdade (CCV, ao direito humano de camponeses atin-
em 1985, por organizar e resistir na de 1968–1972, motivados por confli-
p. 122). A lista produzida pela CNV gidos pela ditadura civil-militar, mas
luta pela terra no município de Mar- tos por terra. Os conflitos levaram à
contemplou os casos de camponeses também uma condição para a supera-
cionílio Souza (CARNEIRO; CIOCCA- expulsão dos trabalhadores da terra
mortos e desaparecidos. A lista com- ção do passado ditatorial e o estabeleci-
RI, 2011). (SAUER et al., 2015, p. 401).
pleta dos camponeses e camponesas mento de um regime democrático ple-
identificados pela CCV consta no Ane- no (SARAIVA; SAUER, 2014).
6. No Nordeste, a fisionomia típica do Cerrado é encontrada especialmente no oeste da Bahia, uma con- xo I do Relatório da Comissão Campo-
tinuação dos Cerrados de Goiás, do Tocantins e do sul do Piauí. Porém, podem ser encontradas áreas dis- nesa da Verdade (SAUER et al., 2015). Ainda há muito a ser investigado – a
juntas em praticamente todos os estados nordestinos. Tais áreas apresentam características em comum
com o bioma de Cerrado, seja pela fisionomia, seja pela presença de algumas espécies típicas e de ampla Esses números demonstram como a ser presentificado –, reconhecido como
distribuição. Na Bahia, essas áreas podem ser encontradas associadas às encostas das serras da Chapada
repressão política no campo durante parte da história oficial do país e repa-
Diamantina, geralmente entre 800–1.000 m de altitude, nas proximidades das restingas do litoral norte e
nas áreas de contato com as Caatingas do sudoeste e oeste do estado (JUNCÁ et al., 2005). a ditadura foi desumana e violenta. rado (SAUER; SARAIVA, 2015), inclusi-
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra
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Em terras de Cerrado no Matopi- (econômicos, sociais, culturais, políti-
ba, por exemplo, as ações de violência cos e jurídicos) a fim de retirar da vida
contra povos e comunidades estão asso- social a possibilidade de que as expe-
ciadas ao capital especulativo de terras riências autoritárias se mantenham.
com o agronegócio da soja, desmata-
mentos, compras de terra e produção A busca por reparação e justiça de
de commodities para atender grandes reparação de todos os casos de viola- Dona Raimunda,
empresas em áreas consideradas como ções (SAUER et al., 2015), de ontem e de liderança das quebradeiras
novas fronteiras produtivas.7 Essas hoje, é o maior desafio que enfrenta- de coco babaçu do Bico
mos. Para os povos e comunidades do do Papagaio (TO), falecida
ações contam com o apoio do Estado
campo e do Cerrado, a reforma agrária, em novembro de 2018, fala
brasileiro, penalizando camponeses tra-
demanda histórica dos movimentos sobre assassinato de Pe.
dicionais, quilombolas e indígenas que
sociais do campo, seria o mecanismo Josimo. Dona Raimunda foi
vivem e resistem nesses territórios de seguidora fiel do legado
Cerrado. A violência praticada é marca- reparativo de ordem política, econô-
de Josimo.
da por ameaças, derrubadas de cercas e mica e cultural com efeitos capazes de
Crédito: João Ripper
roças, desterritorializações, ameaças de minimizar e/ou acabar com (em longo
morte, intimidações, impedimento do prazo) o quadro de violência no cam-
acesso à água, pistolagem, ameaças de po. Além disso, as reparações jurídicas
e institucionais são imprescindíveis de direitos humanos conseguiram ser é uma compreensão fundamental a ser
grileiros, entre outras violações8, numa
para a construção de uma vida demo- sistematizados pela CCV. A (re)cons- internalizada, principalmente entre a
clara demonstração das fragilidades do
crática mais sólida, garantindo justiça trução de memórias camponesas pode juventude camponesa do Cerrado.
período dito democrático, ainda muito
para as ações violentas praticadas no presentificar, situar a relação entre pas-
marcado pela violência no campo. O Tribunal dos Povos, apesar de sua
passado e no presente. sado e presente nas situações de vio-
lência, ampliar a discussão política da autonomia do sistema de justiça esta-
O trabalho de (re)construção da
Os processos reparativos são parte violência no campo e registrar graves tal, tem papel determinante na busca
memória camponesa realizado pela
dos momentos de transição de perío- violações que estão associadas à degra- por justiça e reparação, promovendo
CCV e pela CNV se constituiu em uma
dos autoritários para a consolidação dação ambiental que atinge o território denúncias e ações políticas que causem
oportunidade histórica à memória e à
democrática. Nesse sentido, o Tribunal de Cerrado: supressão da vegetação na- impacto na cultura jurídica da impuni-
verdade. O trabalho realizado foi fun-
dos Povos em Defesa dos Territórios do tiva, erosão da biodiversidade, perda de dade e dando visibilidade internacional
damental para dar visibilidade às gra-
Cerrado tem um papel fundamental. bens hídricos etc. para as graves violações de direitos hu-
ves violações que marcaram vidas de
Primeiro, contribuindo com o direito manos que atingiram e atingem cam-
camponeses e camponesas durante a
à memória e à verdade de povos e co- Segundo, contribuindo para interna- poneses e camponesas do Cerrado.
ditadura civil-militar. Além da não re-
munidades do Cerrado, pois nem todos lizar a importância da memória campo-
petição dos fatos, as recomendações Por fim, o Tribunal dos Povos em
os fatos e situações de graves violações nesa nos movimentos e organizações
sinalizaram para processos reparativos Defesa dos Territórios do Cerrado, ao
do campo, como parte do seu empo-
deramento na luta pela terra. A busca assumir o compromisso com o fortale-
da justiça e da reparação tem sido ain- cimento dos modos de vida e produção
da pontual nas ações e reivindicações de camponeses e camponesas, assume
7. O Matopiba é a região considerada como a grande fronteira agrícola nacional da atualidade. Compreende atuais dos movimentos e entidades do também o importante papel de contri-
o bioma Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, envolvendo 337 municípios, 73 milhões
de hectares (área) e 5,9 milhões de pessoas, entre elas povos e comunidades tradicionais, quilombolas, campo (SAUER; SARAIVA, 2015). O re- buir com a emancipação cultural e po-
indígenas e assentados rurais (GREENPEACE, 2018). conhecimento de que a luta pela terra é lítica desses povos e comunidades do
8. FREITAS, Bernadete Maria Coêlho; SARAIVA, Regina Coelly Fernandes; RIBEIRO, Sônia Maria; PEREIRA, Kelci histórica e que a violência e a repressão e no Cerrado, em seus territórios com
Anne; ROCHA, Francisco José Sousa (Relatores). Relatório preliminar Tribunal dos Povos: Territórios de Chupé
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
Euzamara de Carvalho4
integrante da coordenação da pesquisa “Massacres no campo na Nova República: crime e impunidade”
2. Mestranda em Direito do Trabalho pelo PPGD - UFMG e esquisadora do IPDMS. Advogada.
Gustavo Seferian5 3. Doutora em Geografia pela UNICAMP e pesquisadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
4. Mestra em Direitos Humanos pelo PPGIDH/UFG, assessora da CPT e menbra da coordenação da pesquisa
Marcelle Stephanie Ferreira Conegundes6 massacres no Campo na Nova República-CPT/IPDMS e da Secretaria de Assuntos Acadêmicos da ABJD.
5. Professor na UFMG, diretor do ANDES-SN e membro da secretaria nacional do IPDMS
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
território brasileiro (ALMEIDA, 1997). razão pela qual eram necessárias medi-
diferentes formas de personificação do ponesa ou tradicional um movimento
das mais duras do poder público para
No período da Nova República no capital (madeireiro, pecuário, agrícola, articulado com os próprios agentes do
sua contenção.
Brasil, percebemos uma também minerário etc.). Estado, entre eles os do sistema de jus-
“nova” movimentação territorial em No período que abrange a realização tiça criminal?
A concentração da maior parte dos
torno de ocupações de terra. O movi- desta pesquisa, os graus de violência
casos de massacres no campo nas re- Para responder a essa questão cru-
mento social que se dinamiza no pe- dos conflitos são variáveis conforme
giões de “fronteira” leva à impressão cial, a pesquisa nacional em andamen-
ríodo ditatorial, desde os fins dos anos as regiões. Entre 1985 e 2014, 40% dos
de que tais territórios representariam to vem investigando a singularidade de
1970, e que adentra a década subse- assassinatos no campo no Brasil ocor-
uma espécie de “terra sem lei” e que, cada conflito no campo que ensejou a
quente reacende, mais uma vez, a ques- reram na região Norte do país e 25%,
portanto, o fenômeno da impunidade ocorrência de massacres, bem como a
tão agrária e a urgência de uma refor- na região Nordeste. Os modos como
decorreria do fato de o sistema de jus- atuação dos agentes do sistema de justi-
ma agrária no país (MARTINS, 1984). esses crimes são perpetuados também
tiça criminal não estar devidamente es- ça criminal na identificação da autoria
Não se tratava de um debate novo, pois são distintos conforme cada região, vis-
truturado nesses locais. Mas seria essa e da materialidade de tais condutas. É o
os setores camponeses traziam essa ne- to que, de 51 massacres ocorridos en-
interpretação correta? Ou seria esse que pretendemos aqui iniciar tratando
cessidade de décadas anteriores ao pe- tre 1985–2019, somente dois ocorreram
processo de expansão do capital sobre do Massacre de Colmeia.
ríodo ditatorial militar. Mas, na região Nordeste, enquanto 39 ocor-
terras e territórios de ocupação cam-
reram na região Norte (sobretudo nos
Organizados como classe, gran- estados do Pará e de Rondônia) (CPT,
des proprietários de terra e
2020). Essas informações são significa-
empresários rurais, em especial
tivas para as reflexões que se pretende
das regiões modernizadas do Sul
e do Sudeste, reagiram contra
produzir no projeto de pesquisa na- Contextualização histórica dos
cional em andamento, visto que, além
qualquer tentativa de democra-
tização da propriedade da terra, da violência física, há uma evidente conflitos agrários no Médio Araguaia:
fazendo ruir as possíveis alterna- violência simbólica perpetuada pelos Fazenda Juarina e Fazenda Vale do Juari
tivas abertas com a transição e massacres no campo, pois a partir de-
a mobilização dos trabalhadores les se veicula entre seus destinatários
rurais por uma reforma agrária uma verdadeira “pedagogia do terror”. Como ressaltado, neste artigo bus- do em conta o Cerrado adjacente, nas
(BRUNO, 2003). caremos compreender os conflitos zonas de transição para a Floresta Ama-
Dos 51 massacres no campo registra- agrários e as violências deles derivadas zônica, uma região especialmente assi-
dos pela CPT de 1985 a 2019, 29 ocor- – particularmente as circunstâncias de milada como “terra de oportunidades”.
Com auxílio dos instrumentos da reram no estado do Pará e sete ocorre- massacre – na região noroeste do esta- O asfalto, que representava essa mu-
mídia e imprensa, esses setores que ram no estado de Rondônia (CPT, 2020). do do Tocantins, conhecida como região dança paulatina, também acompanha-
representam os interesses da tradição Apenas esse dado nos mostra a especi- do Médio Araguaia, no limito com o sul va esse movimento (PEREIRA, 2013),
do monopólio da terra a qualquer custo ficidade regional que marca o tema dos do Pará. Dentro dessa região, observa- como veremos adiante.
assumem vias não pacíficas para a ma- massacres no campo na Nova Repúbli- remos com mais detalhamento o cha-
nutenção da estrutura agrária no país ca, ocorridos em regiões que José de mado Vale do Juari. O Médio Araguaia Já tratando do caso específico que
(BRUNO, 2003). Os massacres no con- Souza Martins (1997) identificou como não é exceção ao contexto de “fronteira” aqui destacamos, podemos dizer que
texto da Nova República representam a “frentes pioneiras” ou como “frentes relatado. Sendo paulatinamente ocupa- o Vale do Juari é mais do que um local
construção de um consenso da violên- de expansão”. Ambas estão dialetica- do por pessoas advindas do Nordeste, específico; é uma região. A Fazenda
cia no campo. Para as classes proprie- mente ligadas e constituem o cenário Centro-Oeste e Sul do Brasil (PEREIRA, Juarina tinha tem “30.200 hectares às
tárias, a movimentação pela democra- da “fronteira”, região de contato entre 2013), partilha traços estruturais com margens dos rios Araguaia e Juari, nos
tização da terra tinha como objetivo a formas camponesas e tradicionais de outros contextos em que massacres se municípios de Colmeia e Couto Maga-
desestabilização da Nova República, ocupação da terra ou do território e as deram de forma intensa, sobretudo ten- lhães” (LIMA, SOUZA, 2020, p. 82), lo-
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para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
Apesar disso, as lutas dos posseiros da 75 km da fazenda, espaço social foi responsável por muitos as- presa e estranhamento, pois ainda não
região foram múltiplas e ousadas, e re- em que ambos os agentes con- sassinatos na fazenda Juarina, teriam sido catalogadas como um caso
sultaram na desapropriação da fazenda. viviam, aumentando a tensão em inclusive de uma família que ele de massacre nesses exatos termos, po-
torno da terra. A disputa em tor- executou, com outro pistoleiro, rém o caso se aproximava muito do
Para forçar o GETAT a se posicio- no da terra durou quatro anos, Domingão, quando ela ia colher massacre conhecido como Massacre
nar sobre o conflito, os trabalha- neste tempo, tiveram três des- roça de arroz. O primeiro atirou de Colmeia, ocorrido no mesmo ano e
dores ocuparam a sede do órgão pejos, prisões de camponeses, no posseiro; a mulher, ao ver o
com a mesma caracterização das víti-
na cidade de Marabá no Estado conflito armado, com mortes de marido assassinado, reagiu, mas
mas na Fazenda Vale do Juari, sob man-
do Pará, também a sede do Ins- ambos os lados, tanto de pisto- foi alvejada pelo segundo, que
tituto Nacional de Colonização e
do do fazendeiro Luiz Espíndola, como
leiro quanto de camponeses. A executou também as crianças,
Reforma Agrária-INCRA, acampa- fazenda Juari foi desapropriada cujos restos mortais foram en- contextualizado em seguida.
ram ainda em frente aos órgãos em 1988, assentando 84 famílias contrados enterrados com uma
Os conflitos agrários na Fazenda Vale
do governo em várias cidades na em uma área de 4.800 hectares boneca nas dependências da
região, inclusive ocupando a Es- do Juari remontam à década de 1950,
(SOUZA, 2016, p. 19). sede da fazenda (FIG. 14). A roça
planada dos Ministérios, fazendo da família foi colhida pelos pisto- quando da ocupação de terras devolutas
uma greve de fome que resultou leiros e levada (LIMA, 2014, p. 151). da União por lavradores e posseiros, e se
na desapropriação de uma parte Em sua dissertação de mestrado, Eo- intensificam nos anos 1970. A presença
da fazenda Juarina (LIMA; SOUZA, nilson Lima desenvolveu uma pesquisa de oligarquias e ações organizadas de
2020, p. 84-85). qualitativa com pessoas moradoras e Tais informações são reforçadas por pistolagem pode indicar a reação des-
lutadoras de Juarina, utilizando arqui- uma notícia do Jornal do Tocantins, de ses grupos ao processo de término da
vos da Comissão Pastoral da Terra. Ele 21 a 24 de maio de 1993, sobre a des- Ditadura Empresarial-Militar e início da
Em decorrência da repercussão coberta da existência de um cemitério
constata que a violência dos pistoleiros abertura do processo democrático, jun-
em Brasília da greve de fome, o presi- clandestino na região. A reportagem,
de Carlito Meinberg era constante e di- tamente com a atuação contundente de
dente da República à época, José Sar- confirmada por notícia no jornal Folha
minuiu com a morte, em 16 de setem- movimentos sociais, em todo o Brasil,
ney, determinou a desapropriação de de São Paulo de 18 de maio de 1993 –
bro de 1984, do pistoleiro conhecido nesse novo momento político.
11.672,24 hectares da fazenda, menos ambas anexadas à dissertação citada –,
como Zé Lindomar, “um dos mais te-
de 50% da sua área, uma parte que não descreve que o promotor de justiça de Segundo informações do CEDOC/
midos da região” (LIMA, 2015, p. 150).
permitia acesso a quaisquer das cida- Colinas (TO) localizou em Juarina, en- CPT, o conflito nessa região se ini-
As razões de sua morte são duvidosas,
des da região, o que significou a perma- tre os dias 13 e 14 de maio, duas valas ciou em meados de 1971, quando um
passando por versões referentes a vin-
nência da luta até que a desapropriação a 50 metros da prefeitura municipal, empresário goianiense chamado José
gança, tocaia ou algum “erro de cálcu-
atendesse às reais necessidades das e na antiga sede da fazenda de Carlito Fleury Curado se afirmou proprietário
lo” do pistoleiro em uma de suas ações
dos trabalhadores. Meinberg, onde estavam enterradas, da região, e se estendeu até 1988, quan-
homicidas.
ilegalmente, duas crianças. O promo- do finalmente a Fazenda Vale do Juari
Conforme Adelma Souza desenvolve,
Na descrição do papel de Zé Lindo- tor atendeu a denúncias de moradores foi transferida para a União para fins
as lutas na Fazenda Juarina tornaram-
mar nas violências na região, Eonilson da região ao Conselho Nacional de De- de reforma agrária, ainda que a indeni-
-se exemplo na região, servindo como
Lima revela elementos de um massa- fesa dos Direitos Humanos (CNDH) e a zação tenha sido três vezes superior ao
motivação para outras lutas, como as
cre envolvendo dois adultos e crianças, hipótese levantada era de que as ossa- preço de mercado da fazenda. Mesmo
que desencadearam a ocupação da Fa-
conforme passagem abaixo: das das crianças poderiam estar rela- com inúmeras denúncias da Comissão
zenda Juari em seguida.
cionadas ao massacre da família acima Pastoral da Terra e dos movimentos so-
A morte de Zé Lindomar repre-
A ocupação da Fazenda Juari descrito, executado por Zé Lindomar e ciais sobre a violência ocorrida na re-
sentou um sossego para a co-
teve uma grande repercussão na Domingão em 1986. gião e as disputas judiciais, o processo
munidade segundo os trabalha-
região, uma vez que o fazendeiro de desapropriação da área para fins de
dores entrevistados. Temido na Tais informações soaram com sur-
morava na cidade de Colinas a região pelo sadismo, o pistoleiro reforma agrária só se iniciou em 1986.
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
Em 1979, o sr. Fleury vendeu a área tadura Empresarial-Militar, envolvidas à ação dos posseiros, o que foi denun- bro de 1986, entendendo que, em razão
da Fazenda Vale do Juari a Luiz Espín- em situações de tortura, assassinatos ciado por Dom Ivo Lorscheider, então de já haver um processo de desapro-
dola Cardoso, que teria em tese conse- e desaparecimentos naquele período, presidente da Conferência Nacional dos priação da área, a discussão do despejo
guido títulos de propriedade do INCRA. e continuou sendo pivô de violações de Bispos do Brasil (CNBB), ao presidente caberia à Justiça Federal.
Em 1985, o sr. Cardoso ingressou com Direitos Humanos após a redemocrati- José Sarney. Posteriormente, a Polícia
uma ação de reintegração de posse na zação, o que perdura até os dias atuais. Militar negaria que Iracílio Cícero Batis- Entre fevereiro e março de 1987,
comarca de Guaraí contra dezoito pes- ta de Farias fazia parte de seus quadros. o cumprimento da ordem judicial foi
soas, conseguindo, com uma medida Os jornalistas (BARROS; BARCELOS, executado por um oficial de justiça,
liminar alcançada rapidamente, o des- 2017) narram que Irineu da Silva Mattos, À época, a morte de Iracílio foi acompanhado de aproximadamente 50
tenente-coronel do Exército e ex-secretá- atribuída aos posseiros, mas policiais militares, que despejaram cer-
pejo de 86 famílias com emprego de
rio de segurança pública de Goiás (1975– um documento do SNI [Serviço ca de 86 famílias, segundo os relatos.
violência, queima das casas e espanca-
1979) e um dos fundadores do Movimen- Nacional de Informações] diz que Os posseiros perderam sua produção
mentos. Na execução da medida limi-
to de Defesa do Direito de Propriedade, ele morreu após uma discussão agrícola e os soldados da Polícia Militar
nar, estiveram presentes o sr. Cardoso, com outro ex-policial contratado
policiais militares e pistoleiros. No re- que posteriormente se tornaria a União ocuparam a sede da fazenda vizinha, a
para prestar serviços à Solução.
gistro do processo consta a retirada de Democrática Ruralista (UDR), tornou-se Fazenda Caramuru, a fim de impedir
A morte ocorrera antes mesmo
apenas cinquenta famílias. sócio majoritário da empresa. que os posseiros voltassem. Em junho
do despejo, para o qual ambos
haviam sido contratados pelo do mesmo ano, duas pessoas foram
No ano seguinte, deu-se início ao A Solução oferecia treinamento para sequestradas e mantidas em cárcere
tenente-coronel reformado José
processo de desapropriação da Fazen- os “funcionários” das fazendas, mas, privado na fazenda, com a presença de
Fernandes Mourão, segundo um
da Vale do Juari e outro despejo ocor- segundo as investigações dos jornalis- cerca de 40 policiais militares. Em julho
informe do SNI. Os documentos
reu no dia 7 de março de 1986, ainda tas, seus quadros eram compostos basi- mostram que, além de chefe de de 1987, segundo relatos dos posseiros,
mais violento, agora contra 36 famílias, camente por ex-policiais militares goia- segurança nas mineradoras lo- os filhos de Luiz Espíndola e pistoleiros
com torturas, incêndio de 86 casas e a nos, alguns expulsos da corporação. cais, Mourão era o grande alicia- jogaram cinco bombas e atiraram nos
morte de uma família, incluindo uma Um dos principais conflitos históricos dor de policiais para os quadros posseiros por várias horas.
criança – por nós chamado, a partir dos envolvendo a empresa foi justamente o da Solução. A versão do SNI foi
arquivos da CPT, de Massacre de Col- resultante no Massacre de Colmeia. confirmada pela ex-companheira Ainda em julho de 1987, duas pes-
meia. Porém, dessa vez não há registro de Iracílio, Marineide de Abreu soas foram assassinadas na Fazenda
Voltando à descrição do conflito, os Passos, e por outras testemu- Vale do Juari: Vilmone Campos da Silva
nos documentos da pesquisa de que o
corpos das vítimas foram deixados na nhas. A Solução sempre negou e seu irmão, Ione Valadares Campos da
despejo tenha ocorrido por força de de-
estrada. As informações sobre os mor- que contratasse policiais para Silva. O irmão dos mortos, Cícero, enca-
cisão judicial. Os pistoleiros presentes
tos foram denunciadas à CPT de Guru- seus quadros. Em outro docu- minhou denúncia ao promotor de justi-
no despejo, segundo os documentos mento, a empresa admitiu ter
pi por uma passageira de ônibus em 21 ça, ao procurador-geral de justiça e ao
do CEDOC/CPT, eram também funcio- adquirido armas irregularmente
de março de 1986. Não há registro dos secretário de segurança pública, além
nários da empresa denominada A So- (BARROS; BARCELOS, 2017).
nomes dos ocupantes da fazenda mor- de o Frei Henrique Des Roziers, da CPT,
lução – Empreendimentos e Serviços
tos. A CPT fez denúncias às autoridades também realizar denúncia ao delegado.
em Imóveis Ltda., fundada em 1983 na
continuamente sobre as violências co- Durante todo o período do proces- Em dezembro do mesmo ano, foi expe-
cidade de Goiânia.
metidas aos posseiros. so de desapropriação da área, outras dida ordem de prisão preventiva ao sr.
Segundo reportagem de Ciro Barros violências contra os posseiros conti- Luiz Espíndola.
Durante o despejo violento, um su-
e Iuri Barcelos (2017), da agência de nuaram a ocorrer a partir de uma nova
posto ex-soldado da Polícia Militar, que Muitas das informações apresenta-
jornalismo investigativo Pública, a em- ordem de cumprimento da decisão li-
prestava serviço para a empresa de se- das acima foram extraídas dos registros
presa de segurança privada A Solução é minar de 1985 para despejo dos possei-
gurança privada A Solução, foi morto e do CEDOC/CPT.
uma daquelas criadas como negócio pe- ros, ainda que o próprio juiz já tivesse
essa morte foi atribuída levianamente
los agentes de segurança durante a Di- se declarado incompetente em novem-
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
e o sistema de justiça criminal. Descor- tas dessas instituições. É, sim, uma ca-
tina-se nessas investigações, apoiadas racterística inerente a esse sistema, que
em tantas outras, o quanto a relação leva à endêmica não responsabilização
entre latifúndio e sistema de justiça pelas práticas de violência no campo.
não é meramente conjuntural, mas
constitui um fenômeno estrutural na Para perceber essa imbricada rela-
História do Brasil. ção e buscar responder à pergunta de
pesquisa quanto às razões da impunida-
Segundo dados da CPT, das 1.938 de, como já ressaltado, adotamos a pes-
pessoas executadas em conflitos por quisa empírica, de caráter qualitativo,
terra, água e trabalho no Brasil entre que tem como fonte primária de estudo
1985 e 2018, em 1.790 casos (92%) não a base de dados do CEDOC/CPT, além
houve qualquer responsável julgado ou de documentos extraídos de órgãos do
preso (CPT, 2020, p. 209). No caso dos sistema de justiça criminal a partir da
massacres no campo, por serem cri- atuação direta de seus agentes, incluin-
Viómenes Campos mes que atraem maior atenção da opi- do advogados/as, e/ou de organizações
da Silva, 28 anos, foi
nião pública, os índices de impunidade parceiras. Também são considerados
morto por pistolei-
são relativamente menores, mas, dos os relatos e reportagens produzidos
ro e Luís Spíndola
poucos casos que ensejaram prisões pela imprensa local e nacional sobre
enquanto comemo-
e condenações criminais, raros foram conflitos e violência no campo desde a
rava reintegração de
posse das terras do aqueles que implicaram executores e década de 1960, com especial ênfase ao
Vale do Juari. seus mandantes. período analisado.
Fonte: CEDOC-CPT
Uma das possíveis chaves interpreta- Desde esta contextualização do mas-
tivas que vêm sendo avaliadas ao longo sacre – ou dos massacres – no Médio
da pesquisa nacional remete à ideia de Araguaia, a sensação é de estarmos es-
que a impunidade nos crimes de mas- cavando a história em busca de míni-
sacres não é mero produto da precarie- mas pistas sobre os conflitos na região,
Desafios à pesquisa ante o turvar dade das ferramentas de investigação em toda sua gravidade e profundidade,
de informações dos conflitos no Cerrado criminal, mas resulta dos vínculos pro- tradutores que são de muitos dos senti-
fundos entre agentes do Estado e agentes dos do que foi a expansão do capital nas
do latifúndio implicados nessas mortes. regiões de “fronteira”.
Trabalhadores e trabalhadoras ru- é executada não apenas por pistoleiros,
rais e os povos tradicionais são as mas também por policiais militares a Assim, a hipótese sustentada nesta Como pudemos perceber na descri-
maiorias no campo brasileiro, domi- mando de fazendeiros, grileiros, em- pesquisa é que a ideia de impunidade ção feita acima, a expulsão dos posseiros
nadas, oprimidas e reprimidas, cotidia- presários e até autoridades públicas. dos massacres no campo brasileiro não das terras da região entre os anos 1960 e
namente, por agentes do latifúndio, do mais seja entendida como defeito ou 1980 se deu sob forte violência privada,
agronegócio e do próprio Estado. Essa A presente pesquisa nacional vem não consecução dos objetivos do siste- apoiada pelas instituições oficiais. Uma
repressão assume a forma de assassi- buscando compreender a dialética ma criminal (cujas funções declaradas violência tão legitimada e naturalizada
natos e massacres em contextos marca- dos conflitos agrários que ensejaram estariam ligadas à responsabilização que execuções de trabalhadores(as), in-
dos pelo acirramento das lutas de clas- massacres no campo para, assim, com- criminal de mandantes e executores), clusive de crianças, davam-se de manei-
ses em torno da terra e do território, e preender as relações entre o latifúndio evitando-se o risco de legitimar discur- ra sub-reptícia, propositalmente ocultas
sos encobridores das funções reais ocul- dos rastros da história.
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins
Desses diálogos e leituras fomos en- Era final do século XX nesse Brasil
tendendo mais sobre os conflitos na profundo e a dominação daqueles que
região do Vale do Juari e “tropeçamos” por gerações detêm poder e privilégios
em registros de um outro massacre no políticos e econômicos continuava sen-
mesmo ano, na Fazenda Juarina, de do tamanha que a despossessão, a pro-
um homem, uma mulher e uma crian- vocação de fome e miséria e até mesmo
ça, composição de vítimas correlata ao a eliminação da vida eram naturalizadas.
caso já sistematizado pela CPT, ainda
que sem pormenores do fato em si. A Nesse Brasil profundo, que nessas
trajetória até então percorrida levantou últimas quatro décadas não vivenciou
mais incógnitas sobre os massacres na qualquer ruptura de sentido, a ideia de
região e não revelou qualquer indício vidas precárias se materializa. O apa-
de existência de investigação criminal gamento histórico e a invisibilidade
ou processo criminal sobre o caso re- das situações aqui analisadas revelam
Quem eram as pessoas executadas? os condenados de nossa terra, cumpriu gistrado pela CPT e muito menos sobre a profunda desumanização dessas vi-
Como famílias podem “desaparecer” um papel democrático imprescindível o suposto outro caso detectado. das por parte do Estado brasileiro, em
sem que haja qualquer registro por par- e único de registrar os conflitos em uma simbiose autoritária com aqueles
te das instituições do Estado? Como o cada rincão do Brasil. Já é notório a quem nos acompa- que almejam perpetuar o abismo so-
massacre – ou massacres – de um ho- nha na leitura até aqui o quanto este cial por meio do latifúndio e da acumu-
Foi pelo arquivo produzido pelos(as)
mem, uma mulher e crianças em seus trabalho se mostra como um diário de lação de capital.
agentes da CPT e organizado pelo CE-
domicílios pode não suscitar qualquer pesquisa – coletivo e agora ainda mais
DOC que tivemos as primeiras informa-
tipo de ocorrência policial, investigação coletivizado com a comunidade leitora.
ções sobre o massacre de um homem,
criminal ou processo para apurar res- É relevante nem tanto pelas conclusões
uma mulher e uma criança no dia 7 de
ponsabilidades, mesmo sabendo dos de seus achados, mais pelas inquieta-
março de 1986, quando de um despejo
nomes das vítimas? Como a descoberta ções metodológicas e políticas que a
de 36 famílias na Fazenda Vale do Jua-
de um cemitério clandestino na região, esta investigação tem gerado.
ri, orquestrado pelo fazendeiro Luiz
nos anos 1990, continua sendo página
Espíndola Cardoso, acompanhado de
apagada em nossa história? Como, em
seus filhos, de pistoleiros e de policiais
2022, uma equipe de pesquisa se depa-
militares. Nesse material, pudemos
ra com a aparente impossibilidade de
tomar contato com muitos elementos
saber se existiu algum registro oficial
do caso? Se foi um massacre ou foram
explicativos dos conflitos prévios nes- Considerações finais
sa fazenda, mas nenhuma outra in-
dois com as mesmas características?
formação além dessa descrição geral
O chamado “Caso Colmeia” é um dos sobre o massacre em si. Foi então que Ainda que em processo de desenvol- ríodo da Nova República, mas também
51 casos ocorridos entre 1985 e 2019 que iniciamos uma busca por outras fon- vimento, a pesquisa nacional aqui em para o próprio processo de organização
estão sendo decifrados nesta pesquisa. tes, especialmente de militantes dos parte apresentada tem o potencial de de materiais e acesso a diferentes fon-
Se temos uma bússola que oriente essa movimentos sociais e pesquisadores e colaborar não só para o estudo mais di- tes de pesquisa. Deve contribuir tam-
escavação, isso se deve à atuação da pesquisadoras da região, sempre com a retamente relacionado ao papel do sis- bém para o exercício coletivo e trans-
CPT, que por mais de quatro décadas, colaboração da CPT. tema de justiça criminal nos massacres geracional de recontar a história do
para além de estar lado a lado com as e ocorridos no campo brasileiro no pe- Brasil do ponto de vista dos oprimidos
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Bibliografia
Nesse processo, que aqui denomina-
e oprimidas, explorados e exploradas, mos como de “escavação da história” dos
colaborando, de alguma maneira, para conflitos na região, nos deparamos com
os processos de construção de memó- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Rituais LIMA, Eonilson Antonio de. A luta pela terra
a possível existência de mais um caso de de Passagem entre a chacina e o genocídio: na região Norte de Goiás: assentamento Ju-
ria e reparação históricas daquelas e massacre ainda não catalogado pela Co- conflitos sociais na Amazônia. In: ANDRADE, arina (1968-1988). 2015. Dissertação (Mes-
daqueles lutadores sociais desumaniza- missão Pastoral da Terra. Até o presen- Maristela de Paula. Chacinas e massacres no trado em História) – Universidade Federal de
dos no anonimato e no esquecimento. te momento, tais constatações são em- campo. v. 4. São Luís: UFMA, 1997, p. 19-48. Goiás, Goiânia, 2015.
Esse é o caso das descobertas em curso brionárias e cumprem um papel muito BARROS, Ciro; BARCELOS, Iuri. “Seguran- LIMA, Eonilson Antonio de; SOUZA, Adelma
referentes ao Massacre de Colmeia, no maior de socialização de achados, a ser ça” privada, herdeira da ditadura. Com- Ferreira de. Expansão do capital mono-
atual estado do Tocantins. desenvolvida, bem como de comparti- bate Racismo Ambiental, 3 abr. 2017. Dis- polista no campo e aliança com militares:
lhamento dos desafios metodológicos ponível em: https://racismoambiental.n resistência camponesa à grilagem de terras
Neste texto, buscamos contextualizar et.br/2017/04/03/seguranca-privada-her- em Juarina, região do Médio Araguaia. In:
de realizar pesquisas dessa natureza.
os conflitos agrários no Médio Araguaia, deira-da-ditadura. Acesso em: 9 jan. 2022. MACIEL, David; PINTO, João Alberto da Costa
mais precisamente na região do Vale do De um lado, muito provavelmente, (Orgs.). Brasil 1964, Portugal 1974: Ditaduras,
BRUNO, Regina Angela Landim. Nova Repú-
Juari. Os principais acontecimentos em lutas sociais e revolução. Goiânia: Edições
nossa equipe de pesquisa poderá che- blica: a violência patronal rural como prá-
duas fazendas, a Juarina e a Vale do Jua- Gárgula; Editora Kelps, 2020. p. 66-93.
gar ao final deste processo de investi- tica de classe. Sociologias [online]. 2003,
ri, foram analisados em sua conflitivida- gação sem respostas quanto à análise n. 10, p. 284-310. Disponível em: https://doi. MARTINS, José de Souza. A militarização da
de, evidenciando a forma do exercício org/10.1590/S1517-45222003000200010. questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
de processos judiciais relacionados ao Acesso em: 9 jan. 2022. 1984.
da violência por parte dos latifundiários Massacre de Colmeia, objetivo inicial
e suas relações com o Estado. almejado. De outro lado, foi possível CANUTO, Antônio; SILVA LUZ, Cássia Regina; MARTINS, José de Souza. O tempo da fron-
ANDRADE, Thiago Valentim Pinto (Coord.). teira. Retorno à controvérsia sobre o tempo
elaborar sobre o apagamento histórico, Conflitos no campo: Brasil 2016. Goiânia: histórico da frente de expansão e da frente
a negligência institucional e o descaso CPT, 2016. pioneira. Tempo Social. São Paulo, v. 8, n. 1, p.
público aí evidenciados. A omissão do 25-70, 1996.
CAPPI, Riccardo. A “teorização fundamen-
Estado revela sua conexão com o poder tada nos dados”: um método possível na PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no
econômico e político determinante na pesquisa empírica em Direito. In: MACHADO, sul e sudeste do Pará: migrações, conflitos
história aqui contada. Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente e violência no campo. 2013. Tese (Doutora-
o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíri- do em História) – Universidade Federal de
Desse modo, ao final deste escrito, cos em Direito, 2017. Pernambuco, Recife, 2013.
reafirmamos nosso convencimento, COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Mas- SOUZA, Adelma Ferreira de. De geração em
por fidelidade de classe, quanto à ne- sacres no Campo: Tocantins, Colmeia, 1986. geração: famílias na luta por um pedaço de
cessidade obstinada de revolver indí- CPT Nacional, 2017. Disponível em: https:// chão – estratégias de reprodução social
cios e impulsionar o contar de nossa www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/ camponesa no Vale do Juari, TO. 2017. Tese
história na contracorrente da versão e massacres-no-campo/113-tocantins/ (Doutorado em Ciências Sociais) – Universi-
3948-colmeia-1986. Acesso em: 2 jan. 2022. dade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
do esquecimento oficiais, almejando
que esse conhecimento possa ser apro- COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Confli- SOUZA, Adelma Ferreira de. Recamponei-
priado positivamente pelas resistências tos no campo: Brasil 2020. Centro de Docu- zação do Vale do Juari: estratégias gera-
mentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT cionais de reprodução social camponesa.
vindouras do povo que luta por terra,
Nacional, 2021. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 40., 2016,
pão, alegria e dignidade no Brasil. Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Anpocs, 2016.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Mas-
sacres no campo. CPT Nacional. Disponível
em: https://www.cptnacional.org.br/massa-
cresnocampo. Acesso em: 2 jan. 2022.
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
ÀS LUTADORAS
agente de pastoral da CPT Bahia; Balta- alguém antes de mim, foi lá,
zar Ferreira de Melo, camponês e agen- plantar, a, a.
te de pastoral da CPT Mato Grosso; Irmã Por que alguém antes de mim
E AOS LUTADORES
Vera Maria Lobo, religiosa e agente de foi lá, plantar a, a.
pastoral da CPT Mato Grosso; Antônio
Canuto, agente de pastoral da CPT Na- Eu existo, por que alguém escre-
DO CERRADO
veu a minha dor, por que alguém
cional; e Padre John Antunes Myers, re-
seguiu a minha cor, por que al-
ligioso e parceiro da CPT Piauí.
guém ensinou-me a caminhar.
Aos que partiram, mas que continu- E pra sempre viverei, nasceu o
am fazendo parte de nossas vidas e nos que plantei, e pra sempre viverei,
atravessando, seja pela saudade ou pe- nasceu o que plantei
los testemunhos, reafirmamos o legado
E pra sempre viverei, nasceu o
de luta e resistência que nos inspiram a
que plantei
seguir nesse caminho que já foi trilha-
do por muitos outros irmãos e irmãs de Letra e melodia, Rosalva Silva
caminhada. Queremos relembrar com Gomes, quebradeira de coco
carinho e gratidão de Maria Trindade babaçu do Cerrado
Gomes Ferreira, agente de pastoral da
CPT Araguaia-Tocantins; Dom Enemé- Boa leitura!
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
CPT Nacional
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
CPT Maranhão
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
Dom Enemésio Ângelo Lazzaris, Divina Providência quando então foi De fala clara, simples e ao mes- florestas, procurou seguir a prática
nasceu em Siderópolis, Santa Ca- eleito Superior da Província Norte mo tempo firme e profética, Dom de Jesus Cristo, buscando envolver
tarina, em 19 de dezembro de 1948. do Brasil dos orionitas, de 1998 a Enemésio foi uma presença ilumi- toda a comunidade e a sociedade
Filho de Mário Lazzaris e Maria Pat- 2004. De volta a Roma, foi nomeado nadora. Entre as diversas frentes na luta pela terra e produção na
tel Lazzaris, é o segundo dos dez Vigário Geral da Congregação, entre de atuação, passou dez anos como construção do Bem Viver”.
filhos do casal. Ainda adolescente, 2004 e 2007. bispo referencial da Pastoral do (Antônio Moraes, CPT/MA)
aos 12 anos, ingressou na congre- Menor, no Regional Nordeste V da
Em 2007, Dom Enemésio foi no- “Dom Enemésio, ao chegar em
gação da Pequena Obra da Divina CNBB, que corresponde ao estado
meado bispo da Diocese de Balsas, Balsas, sentou primeiro com as
Providência, dos padres orionitas. do Maranhão, onde assumiu com
no Maranhão, onde permaneceu no lideranças para compreender a vida
Estudou filosofia no Ipiranga, em muita dedicação a missão de pro-
episcopado até sua morte. Tendo das comunidades na diocese. E a
São Paulo, e teologia na Pontifícia mover e defender a vida das crian-
como lema episcopal “In Spe Salvi” partir daí fez uma opção de estar
Universidade Católica de Minas ças e adolescentes empobrecidos
(Salvos na esperança), Dom Enemé- sempre com as comunidades mais
Gerais, em Belo Horizonte. Enemé- em situação de risco, desrespeita-
sio marcou a história da Igreja de carentes. Passou a nos acompa-
sio terminou o noviciado em 1965, dos em seus direitos fundamentais.
Balsas, empenhado na promoção da nhar (equipe CPT em Balsas) em
licenciou-se em teologia e fez os
vida dos mais necessitados, dei- Outra missão assumida por Dom diversas visitas às comunidades
votos perpétuos em 1974 e, no ano
xando um legado de amor e leal- Enemésio foi o apoio à luta de po- em conflitos; fomos juntos à co-
seguinte, foi ordenado sacerdote.
dade à igreja para uma sociedade vos e comunidades tradicionais do munidade Bacuri, no Potozi e em
Dom Enemésio teve uma vida fraterna e solidária. Maranhão. Foi o bispo referencial diversas outras comunidades onde
migrante, sempre dedicado aos es- que acompanhou a CPT do Mara- estavam ocorrendo conflitos. Na
Dom Enemésio não se contentava
tudos e às causas dos mais pobres: nhão por dez anos, contribuindo comunidade Potozi, por exemplo, no
em ficar apenas dentro dos muros
foi formador e promotor vocacional; com muito amor e determinação despejo na Vivenda do Potozi, Dom
da igreja, buscava ir além para ga-
especializou-se em espiritualidade nas lutas pela terra, água e forta- Enemézio saiu de casa levando um
rantir a auto-sustentação das paró-
no Teresianum, em Roma, Itália; de- lecimento do regional. “Testemu- buquê de flores na mão, e quando
quias e ações pastorais e evange-
pois assumiu a direção do Lar dos nhamos a sua luta junto aos povos chegou na comunidade que avistou
lizadoras, integrando organizações
Meninos e do Seminário Dom Car- da terra e das águas na busca e o operador se dirigindo para der-
de luta pelo direito a terra e a uma
los Sterpi, em Belo Horizonte. Anos conquista dos seus direitos. Ele foi rubar a primeira casa, ele tomou a
vida digna. Assim, atuou como bispo
mais tarde, foi viver em Araguaína, sempre um companheiro dos sem frente da máquina, subiu no trator
referencial da Cáritas no Maranhão,
Tocantins, onde assumiu a Paró- voz e sem vez, ameaçados neste e entregou as flores em sinal de
participando de suas ações em nível
quia Sagrado Coração de Jesus. De Maranhão, sendo junto a eles e a paz. Ali foi um momento forte e de
estadual e nacional, no que se des-
volta ao sudeste, na cidade do Rio elas resistência, ânimo e coragem. muita emoção: o operador desceu
tacou pelo compromisso e evidente
de Janeiro, foi diretor da comuni- Fiel ao Deus dos pobres, à terra de da máquina chorando e foi embora,
posicionamento sobre o papel da
dade do Instituto de Artes e Ofícios Deus e aos pobres da terra, ouvin- abandonou a derrubada das casas.
instituição no apoio aos pobres.
do o clamor que vem dos campos e Dom Enemésio não media esforços
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CPT Bahia
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CPT Goiás
Plantou esperança,
espalhou sonhos
Não foi de repente. Foi planeja- generosa, era um exemplo de ale-
do pelos poderosos que pensam e gria, de coerência e de doação.
agem como donos do mundo. A vida
não poderia ser ceifada antes do A determinação era seu foco.
seu tempo, mas infelizmente muitos Amava organizar o povo. Possui-
acreditam que podem decidir quem dor de uma fala mansa, tranquila e
vive e quem morre. No dia 23 de cativante, sempre esteve junto ao
outubro de 1986, em Caçu, Goiás, o povo em suas lutas. Tinha um amor
chão se abriu para acolher o san- especial aos pequenos agricultores,
gue derramado de Vilmar José de cercados pelas grandes proprieda-
Castro. Foi no amanhecer cinzen- des. Em sua trajetória, Vilmar contri-
to sem sol como testemunha que buiu com a organização da Associa-
Vilmar teve sua vida interrompida. ção das Lavadeiras, que passaram a
Não esqueceremos o seu sangue ser reconhecidas pelo seu trabalho,
derramado na terra vermelha. Ficou e reorganizou a luta sindical cam-
ali por semanas, apesar das chu- ponesa, junto com as Irmãs de São
vas, como lembrança de uma vida José Rochester.
sacrificada antes do tempo pela
Trabalhou a formação do povo,
ganância daqueles que se acham
foi ousado em seu tempo. Priorizava
os donos da terra.
as visitas às famílias de pequenos
Vilmar era catequista, animador agricultores, sendo presença efeti-
das Comunidades Eclesiais de Base va. Sabia ouvir as queixas e pensar
(CEBs), professor rural, membro da estratégias de resistência, era o
Coordenação Ampliada da CPT Re- próprio dono da utopia, iluminava
gional Goiás, integrante da Escola com a palavra de Deus onde a vida
Bíblica do Centro de Estudos Bíbli- estava rachada, repartida. Juntava
cos - CEBI GO. Em plena juventude os pedaços da manhã, da tarde e
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
Uma mulher-semente
Irmã Lucinda Moretti foi uma reli- Falar da irmã Lucinda é falar de
giosa católica da congregação São uma mulher que trabalhou em prol
José de Chambéry no Brasil, falecida dos camponeses assentados e in-
em agosto de 2013. Em vida, tra- dígenas de Juti, como organizadora
balhou na CPT Mato Grosso do Sul, da feira de sementes crioulas, e de
onde foi coordenadora, e precursora Dourados, especialmente na aldeia volta e multiplicar seu legado. Foi
na organização das feiras de semen- Te’yikue Caarapó, onde desenvolveu uma mulher de muita paciência, que
tes do estado. O seu engajamento um projeto formidável de recupera- sabia escutar e levar as coisas ao
junto a outras irmãs e agentes de ção de matas e de alimentação sau- seu tempo, sem pressa.
pastoral proporcionou a “revoada de dável. Em suas andanças, também “Conheci a irmã Lucinda há uns
sementes”. Das feiras de sementes atuou na CPT Rondônia. E além do 20 anos, no início do assentamento o que colher, não precisará comprar
de Juti, hoje já na 17ª edição, mul- trabalho com as sementes e agro- Guanabara. E quando a conheci me sementes, não precisará colocar ve-
tiplicou-se a celebração de outras ecologia, acompanhou mulheres encantei pelo fato dela vir todas neno, que assim é possível produzir
destas feiras em diversos rincões indígenas e assentadas no proces- as semanas no ônibus da escola, com qualidade. Foi isso que nos fez
do estado. Atualmente, na mística so de empoderamento delas. trazendo sementes na sua sacola. encantar por ela. Em seu cuidado
da troca de sementes entre indí- Ela prestava atenção em tudo que com as sementes, percebemos que
“Nós temos uma resposta para o
genas e camponeses, há a memória as pessoas precisavam. Se alguém ela fazia de coração, que de fato
futuro... o futuro com uma semente
de Lucinda, que se fez, em vida e na dizia: ‘irmã, quero plantar tal coisa’, amava a semente, a terra, a água.
livre. Com as festas das sementes
morte, semente do amanhã. ela ia atrás e conseguia as semen- Isso fazia a diferença. Também o
estamos lutando por uma agricul-
Lucinda defendia que a semente tura familiar que não precisa mais tes. E ainda ensinava as pessoas a fato de ela sempre fortalecer as
crioula é tradicional, passa de pai comprar para produzir. Usar a se- cuidarem da terra e não colocarem pessoas, incentivar o empodera-
para filho, portanto é patrimônio da mente que quiser, e não o que o veneno, para ter uma qualidade de mento das mulheres. Através das
humanidade. Ela mesmo guardava outro quer que você plante.” vida melhor. Fazia isso com muita sementes, conseguia se aproximar
as sementes, herança de sua fa- simplicidade, amor e carinho, e se mais das pessoas, e as feiras surgi-
(Lucinda, 2012)
mília, recebida de sua avó materna preocupava com a proteção das ram através disso, para fortalecer
que as trouxe da Itália. “A semente Caminhando sempre devagarinho, sementes. Em cada reunião ela as trocas e possibilitar o encontro
faz parte da vida, porque se ela veio sem muito corre-corre, colocando levava uma sacola de sementes, e entre as pessoas. Irmã Lucinda foi
da Itália, ela trabalhou, se integrou, tudo ao seu tempo, esteve presen- dava para as pessoas. Ninguém saia uma pessoa iluminada, fará falta o
cresceu e, se ela ainda faz parte da te com o seu depoimento e com a sem sementes. Tinha muita preocu- resto de nossas vidas.
nossa família, é porque é algo que preocupação de levar as sementes pação com a qualidade de vida das (depoimentos de Vanilto
faz parte da nossa vida. É funda- para as aldeias. Assim, ela deixou pessoas, estava atenta se as pes- Camacho da Costa e Leila Cristine
mental que cada um cuide de sua suas marcas para nós, seja na defe- soas tinham o que comer.” Selini Dorce)
semente, isso seria uma benção”, sa das matas, na defesa do Cerrado
Além de distribuir sementes, Lu-
afirmava Lucinda pouco antes de e das nascentes. Lucinda tinha a
cinda ensinava que se plantar, terá
sua morte. capacidade de juntar pessoas à sua
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CPT Araguaia-Tocantins
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CPT Rondônia
Trajetória que inspira
Adilson Alves Machado, 50 anos, é da Reforma Agrária e do Cerrado. Sua
filho de Maria dos Santos Machado e trajetória como agente da CPT na região
de Benedito Machado Filho. O pequeno do Cone Sul/Rondônia começa em 2008,
agricultor veio do Paraná para Rondônia quando torna-se um dos conselheiros
acompanhando seus pais, como muitas regionais e membro da coordenação por
famílias na década de 1970, migrantes dois anos seguidos, e continua atuando
amazônicos, em busca de um pedaço de como agente em situações de conflito
chão para viverem. Desde criança viveu agrário. Em sua trajetória de militância
em assentamentos e sua família enfren- guerreira, Adilson foi também presidente
tou uma longa jornada até chegar nas da Associação dos Pequenos Produto-
áreas de transição entre os domínios da res Rurais de Águas Claras (APRAC) e fez
floresta amazônica e do cerrado rondo- parte do Conselho de Desenvolvimento
niense. Adilson morou na cidade com a Rural de Vilhena.
família, onde trabalhou como emprega-
Com pulso forte, ao longo do tem-
do até conseguir sua própria terra.
po se firmou como uma das principais
Para isto, em 2003, com sua esposa lideranças de sua região. Hoje, é um dos
Sueli e filhos, passou a morar em um maiores lutadores pelo direito dos po-
acampamento sem-terra até consegui- bres à terra e se coloca em defesa da
rem a terra e se tornarem assentados. agroecologia como modelo de produ-
Ele e sua família permanecem até os dias ção camponesa, contra o desmatamen-
de hoje no Assentamento Águas Claras, to do Cerrado e da Amazônia. Em uma
em Vilhena, onde resistem cotidiana- árdua mas constante atuação, está
mente às ameaças do agronegócio, que sempre de pé para o enfrentamento
gera conflitos e condena a vegetação, a das agressões do agronegócio contra o
água, os roçados e as pessoas. Ampara- Cerrado e seus povos.
do na fé e na esperança, Adilson se man-
Diz ele: “O agronegócio está desma-
tém firme cultivando a terra e tecendo
tando, acabando, destruindo, abrin-
contra-narrativas ao agronegócio.
do valas, drenando as margens do rio
“A situação é complicada, há o con- Guaporé, na fronteira com a Bolívia, nos
flito de terras alarmante, despejo em municípios de Pimenteiras, Cabixi, Cere-
plena pandemia, mortes e chacinas. É jeiras, Corumbiara, em áreas de reservas
difícil ser agricultor nessa região e ter das regiões do Cerrado. As APPs [Áreas
que conviver com agrotóxicos, contami- de Proteção Permanente] estão sendo
nação das águas, doenças e persegui- drenadas para a expansão de soja. A
ção”, conta ele. conscientização e educação social é
uma ferramenta muito importante em
Em 2004 conheceu a Comissão Pasto-
defesa dos povos e do Cerrado.”
ral da Terra (CPT) e desde então, atra-
vés dela, se dedica a ações em defesa
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CPT Piauí
Padre John Antunes Myers, co- “Pela era de 89, apareceu esse
nhecido por Padre João, é irlandês e padre aqui, não era brasileiro, ele
nos anos 1950, com apenas 29 anos é da Irlanda. A minha comunidade,
de idade, emigrou para o Brasil para Barra do Correntin, foi fundada
desenvolver ações missionárias dos por ele na década de 1990. Para as
padres redentoristas. Pe. João vem comunidades daqui ele foi um pai,
dedicando grande parte de sua uma mãe, um prefeito e um gover-
vida aos povos do Cerrado. Em ter- nador. A fazenda Aroeira, da Tangi-
ras brasileiras, sua primeira missão ca, foi vendida com o pessoal todo
foi em Goiânia, Goiás; na sequência, dentro, o fazendeiro Braga tirou
passou atuar no interior do estado, todos nós de dentro e queimou
na cidade de Pedro Afonso, hoje as 17 casas. Nesse tempo a justiça
estado de Tocantins; mais tarde era dos ricos, não dos pobres. E Pe.
mudou-se para a Diocese de Jua- João foi até ameaçado de morte
zeiro, na Bahia, para atuar em Pilão por conta disso. Com apoio de Pe.
Arcado; e em 1978, mudou-se para João conseguimos fundar a co-
Santa Filomena, na Diocese de Bom munidade Barra do Corretin, onde
Jesus do Gurguéia, no Piauí. moramos até hoje”. (Antônio James,
da comunidade Barra do Correntin)
Nos Cerrados piauienses, Pe. João
é considerado um grande homem, Além de celebrar os sacramentos
generoso, pai e defensor implacá- e animar as Santas Missões e as
vel dos pequenos e pobres. Através devoções populares, Pe. João abriu
das “desobrigas, ministrou os sa- trilhas nas chapadas para levar seu
cramentos em diversas comunida- apoio às comunidades tradicionais,
des rurais nos municípios de Uruçuí, contribuiu para a erradicação do
Ribeiro Gonçalves, Baixa Grande analfabetismo nas comunidades
do Ribeiro, parte de Gilbués, Monte rurais e lutou pela construção de
Alegre, Currais, Bom Jesus e ainda estradas vicinais, pontes, pequenos
em Tasso Fragoso, no Maranhão, açudes, poços artesianos, e pela
tornando-se padrinho de muitas comercialização dos produtos das
crianças da região. comunidades rurais. Ele sentia a dor
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Professor e Profeta
Do matuto inovador Kojac, Tatá e Maguila A qual desejava ter
Salve verde e as águas Sônia, Carlúcia e outros Era trazer para perto
Do homem devastador Pessoal que não se grila Lá do MST
E preservem a natureza Era toda boa gente Um grupo de cabras fortes
Fez do ato o seu clamor. Que só na luta burila. Para a luta promover.
Literatura de Cordel 4
Autor: MESTRE Carlos De filhos tiveram quatros 9 14 19
Azevedo Frutos dessa união A história desse bravo Foi nos idos de oitenta E tinha o Júlio Miranda
Dos quarenta e um anos Descrevo nesse cordel Que ao CPT se juntou Com questão a levantar
ALVIMAR RIBEIRO Em perfeita comunhão No sertão norte mineiro Pois a luta pela terra A mando de fazendeiros
Que depois deixou saudades Fez fama de tabaréu Aos grandesses assentou Tentando se suplantar
1 No fundo do coração. Avilmar era prendado Em um norte de conflitos Para impedir a reforma
Nascido nesse sertão Debateu com bacharel. Mesmo assim ele intentou. De no Norte se implantar.
Cidade de Bocaiúva 5
Mudou para Montes Claros E gostava de comida 10 15 20
Que o aderiu igual luva Rapadura e farinha No seu labor de pedreiro Januária era cenário O corpo tira da cova
E venceu dificuldades E de andu com torresmo Construiu um edifício De muita briga e de morte Pra fazer exumação
Amansando “Taituva”. E de fritar uma carninha O nome é Montes Claros Pensar em posse de terra Peritos e logo ali
Jurubeba e catuaba Com suor e sacrifício É mexer com o mais forte Alvimar de prontidão
2 Amargoza da caninha. Junto com quinhentos Pistolas e bacamartes A perícia se completa
O seu pai foi Joaquim homens Eram quem ditavam a sorte. É história do sertão.
Sua mãe a dona Augusta 6 Fez honra no seu ofício.
Um povo trabalhador Do esteio do cerrado 16 21
De família boa e justa De uma boa feijoada 11 Alvimar muito empenhado Lá em Buriti de Minas
Que buscava o sustento Mocotó e pururuca E nas lutas sindicais Inicia a caminhada Chegam Paulo e Alvimar
Vivendo da própria custa. Também a vaca atolada Pelo povo trovejou Andando por essa terra Depois tiveram a ideia
Queijo, café com beiju Na CUT foi testemunha Ao longo dessa jornada E buscaram praticar
3 E uma boa garapada. Quando a coisa arrojou Conversando com o povo Convenceram os de Brasília
Conheceu a moça Lúcia Com cautela e simpatia Deixando a turma animada. A descer para somar.
Por ela se apaixonou 7 Um a um encorajou.
Lúcia era meiga e bela Para o meio ambiente 17
E um olhar acionou Que fez uma romaria 12 Profeta mestre e bom pai
Foi paixão pra toda vida Às margens do São Francisco E nas empresas Malvinas E professor competente
Que o casório selou. Prevenindo o que viria Encarou bem muito mais Conheceu o chão batido
Salve as matas ciliares Sindicato e CPT Encarou o tiro quente
Se não o Chico morria. Enfrentando os carrascais Na demanda do sertão
Pelo campo e na cidade Avilmar se fez presente.
Combatendo os chacais.
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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado
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O local é Senharó Sua luta pela vida A CPT sente a falta
De luta de companheiro Devido a um mal repentino Do profeta e professor
Para garantir a posse Buscou vencer a doença Alvimar que tinha calma
Contra o maldito dinheiro Com a fé de um menino Trabalhando com amor
O povo é quem ganha Segurando firme em Deus Mesmo se pegasse fogo
a luta E cumprindo o seu destino. Ele agia com esplendor.
Quem perde é o fazendeiro.
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23 O povo então se comove Homenagens foram várias
Esse assentamento firme Na lida de um obreiro Que Avilmar obtivera
Enfrentou até a morte Se põe à disposição Rosas lindas e com rigor
Por aqui no meu sertão Romaria tem romeiro Do frio que lhes espera
Ousadia é passaporte A Malhada comovida Ah quem me dera revê-lo
Vou falar o nome dele Por Alvimar seu guerreiro. Utopia ou quimera.
Foi o Estrela do Norte.
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24 O sonho do diaconato Os colegas que atestam
Estudou teologia Foi ficando para trás A história relatada
Para ter conhecimento A doença o maltratando No verso desse cordel
Ligado à religião Feito peçonha voraz De forma elaborada
Sendo bom ou mau Que a vitória é de Deus De um grande professor
momento Derrota é de satanás. Que fez jus sua alvorada.
Aspirou a ser diácono
Sua fé foi seu sustento. 28 32
Avilmar aqui deixou Pois a luta continua
Seu legado e fez passagem Pelo Norte e Noroeste
Foi para junto do pai Resistência é um lema
Lá para outra paragem Desafio à fome e à peste
Hoje está junto de Deus Na caatinga e no cerrado
Numa nova hospedagem. E no campo do agreste
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Viva sempre Alvimar
Que foi um cabra decente
Encarou a besta fera
Sendo ágil e coerente
Sua partida lastima
Mas deixou sua semente.
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Os artigos que compõem este livro têm como
proposta apresentar aos leitores e às leitoras um
Cerrado-Povo-territórios de vidas forjados nas vastas
chapadas de gramíneas, de pequenas árvores tortas
e nos cursos de águas cristalinas. Um ecossistema
que vem sendo devastado pela expansão/invasão do
capital nacional e internacional, materializado nesses
sertões por meio do agronegócio e seus projetos
de morte.
As análises destacam a natureza e as formas de
violência presentes nos conflitos no campo desde
do período da Ditadura Civil-Militar e, de forma mais
sistemática, apresentam no tempo e no espaço, as
singularidades do Cerrado nos conflitos de 1985 a
2021. Trata-se de uma publicação que é denúncia,
mas também memória de lutas por justiça e anúncio
de existências e resistências de diversos povos
embrenhados nos chãos dos Cerrados.