Tese - Daniela Schlic Matos
Tese - Daniela Schlic Matos
Tese - Daniela Schlic Matos
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
São Paulo
2022
DANIELA SCHLIC MATOS
Versão original
São Paulo
2022
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a
fonte.
MATOS, D. S. Formação de professores polivalentes para o ensino de língua
portuguesa como 2ª língua para surdos: desafios e possibilidades. 2022. 252 f.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2022.
Aprovado em:
Banca Examinadora
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR POLIVALENTE ........................... 21
1.1 O PROFESSOR COMO PROFISSIONAL ........................................................... 21
1.2 A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL PROFESSOR ........................................... 24
1.3 A FORMAÇÃO DO PROFESSOR POLIVALENTE ............................................. 31
1.4 A FORMAÇÃO DO PROFESSOR ESPECIALISTA PARA A EDUCAÇÃO
ESPECIAL ................................................................................................................. 37
1.5 O ESPAÇO ESCOLAR E A FORMAÇÃO DO PROFESSOR ............................. 51
CAPÍTULO 2. LÍNGUA E BILINGUISMO: CONCEITOS E CONSTRUÇÕES.......... 55
2.1 LÍNGUA E DESENVOLVIMENTO ....................................................................... 55
2.2 A PRIVAÇÃO DA LÍNGUA E O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA SURDA .. 60
2.3 BREVE HISTÓRICO DA ESCOLARIZAÇÃO DE ESTUDANTES SURDOS ....... 64
2.4 A EDUCAÇÃO BILÍNGUE ................................................................................... 70
2.5 A EDUCAÇÃO BILÍNGUE DA PESSOA SURDA ................................................ 79
CAPÍTULO 3. A AQUISIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCRITA.................... 89
3.1 O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCRITA ............................................ 89
3.2 O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA ESCRITA PARA A CRIANÇA SURDA
.................................................................................................................................. 97
3.3 PROPOSTAS PARA O ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA SURDOS
................................................................................................................................ 105
CAPÍTULO 4. TECENDO A TRAMA DA PESQUISA............................................. 117
4.1 AMBIÊNCIA DA PESQUISA ............................................................................. 117
4.2 A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS NO MUNICÍPIO ..... 117
4.3 O CONTATO INICIAL COM A REDE E COM AS ESCOLAS ............................ 120
4.4 AS ESCOLAS E CLASSES DE EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS ....... 121
4.5 OS PROFESSORES PARTICIPANTES ............................................................ 126
4.6 PERCURSO METODOLÓGICO........................................................................ 129
4.7 A TRIANGULAÇÃO DE INSTRUMENTOS ....................................................... 130
4.8 A ENTREVISTA REFLEXIVA ............................................................................ 135
4.9 A ANÁLISE DE DADOS .................................................................................... 139
CAPÍTULO 5. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS ........................... 143
5.1 AS ENTREVISTAS E OS CONTEÚDOS DE ANÁLISE .................................... 143
10
INTRODUÇÃO
garante o direito à Libras, a mesma lei, em seu parágrafo único, afirma que “a
Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da
língua portuguesa.” (BRASIL, 2002).
Assim, surge a exigência de uma educação bilíngue que depreende-se do
fato de que no espaço escolar oferecido ao estudante surdo deve ser garantida não
só a Libras, como também o aprendizado da língua portuguesa escrita. Isto é
explicitado no Decreto 5626, de 22 de dezembro de 2005, ao definir o que são
escolas ou classes bilíngues: “Art. 22. [...] § 1o São denominadas escolas ou classes
de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua
Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o
processo educativo.” (BRASIL, 2005).
A existência de um dispositivo legal reconhecendo o direito a uma educação
bilíngue foi um passo fundamental, porém somente a existência da lei não consegue
garantir uma educação efetivamente bilíngue aos surdos. A existência de um espaço
de educação bilíngue exige, além de todos os recursos materiais e pessoais
necessários, profissionais que recebam a formação que a atuação em tal tipo de
espaço demanda, de maneira especial professores e intérpretes.
Considerando os pressupostos apresentados, nesta pesquisa, a qual possui
abordagem qualitativa, buscamos, assim, investigar e refletir sobre a formação de
professores das séries iniciais do ensino fundamental. Delimitamos nosso olhar a
professores que atuam com crianças surdas em classes bilíngues, com o foco em
sua formação para o ensino de língua portuguesa como segunda língua aos
referidos alunos. Esta pesquisa, que foi desenvolvida no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação (FEUSP), da
Universidade de São Paulo (USP) e está ligada à área de concentração “Formação,
Currículo e Práticas Pedagógicas”, teve como objetivo conhecer a trajetória
formativa dos professores participantes, procurando, primordialmente, descobrir se
ao longo de tal trajetória os professores receberam alguma formação relacionada ao
ensino de língua portuguesa como segunda língua.
Segundo Libâneo (2013, p. 77), o currículo de formação de professores deve
“[...] ter como eixo e como referência para todas as disciplinas do currículo os
clássicos elementos constitutivos da didática: ‘o que ensinar?’, ‘para que ensinar?’,
‘como ensinar?’, ‘em que condições ensinar?’”. Assim, um dos eixos fundamentais,
ao falarmos da formação dos professores, refere-se a garantir que recebam
15
Cabe pontuarmos aqui que a pesquisadora, embora aqui esteja em tal papel,
sendo professora atuante no Ensino Fundamental I de ouvintes, não pode deixar de
considerar que traz para este trabalho seu olhar de professora que estuda e atua
nas questões relacionadas à alfabetização de ouvintes e de pesquisadora na
educação de surdos. A pesquisadora, que teve a sua trajetória formativa realizada
majoritariamente em instituições públicas, traz consigo a premissa de ser
fundamental valorizarmos tais espaços e os profissionais que ali atuam, agindo para
que sejam supridas as necessidades que se apresentam, inclusive as de formação.
Tendo como formação inicial a licenciatura em letras, seguida da formação em
Pedagogia, a pesquisadora já possuía um olhar dedicado às questões de ensino da
língua portuguesa.
O desejo em conhecer a educação de surdos e aprofundar o olhar na questão
do ensino da língua portuguesa para tais alunos nasceu a partir de uma experiência
da própria pesquisadora que, atuando como professora de língua inglesa, se
deparou com uma estudante surda em uma turma de 1º ano de ouvintes. Não havia
interprete, ninguém no espaço escolar sabia Libras, inclusive a própria aluna,
ficando bastante claro que aquele espaço era inadequado para garantir à estudante
seus direitos de aprendizagem.
A partir de tal experiência, a pesquisadora buscou conhecer a Libras e, já
tendo o intuito de, em um futuro próximo, atuar como professora de ensino
fundamental I, seu interesse em conhecer as questões da educação bilíngue e o
processo de ensino da língua portuguesa para os estudantes surdos se consolidou.
A pesquisa de mestrado realizada foi uma oportunidade para olhar para algumas
práticas encontradas em uma escola de educação bilíngue para surdos e notar
como a formação dos professores para o ensino de língua portuguesa como
segunda língua é uma questão crucial.
No desenvolvimento da pesquisa de Mestrado, foi possível constatar que, ao
menos dentro do contexto investigado, embora a língua portuguesa fosse
reconhecida como segunda língua para o surdo e devesse, como tal, ser ensinada,
faltava clareza e repertório a respeito do que significa e como se realiza a tarefa de
ensinar a língua portuguesa escrita como segunda língua. A partir daí, surgiu a
indagação a respeito de, se, em algum momento da formação, o professor recebe,
de fato, a formação necessária para tal prática em uma proposta de educação
bilíngue.
17
1
SOARES, R. da S. Educação bilíngue de surdos: desafios para a formação de professores. 2013.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de concentração: Estado,
Sociedade e Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013.
2
QUEIROZ, E. F. Contribuições da sociolinguística educacional à formação do professor
alfabetizador/letrador de alunos surdos. 2013. 243f. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação
em Educação. Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, Departamento de Métodos e
Técnicas. Brasília, 2013.
19
fato, a formação que foi e é oferecida, para que o profissional docente tenha onde
ancorar sua prática, demanda maior espaço.
Se olharmos novamente para o Decreto 5626, identificamos que tal
documento, em seu artigo 13, afirma que:
Ao longo dos últimos anos, a formação de professores tem sido uma das
temáticas pesquisadas, na área de educação, sendo analisada e discutida, em
virtude do impacto que a formação recebida pelos professores tem para a garantia
de uma educação de qualidade para nossas crianças e jovens. Sabemos que a
educação brasileira, embora tenha apresentado avanços nas últimas décadas, de
maneira especial no que se refere ao direito de acesso à escola, tem ainda como
grande desafio a garantia de uma educação de qualidade para a população como
um todo.
A garantia constitucional do direito à educação básica veio acompanhada da
necessidade de expansão do número de escolas e, com elas, a expansão do
número de professores. Entretanto, assim como garantir uma educação de
qualidade às crianças e jovens se mostrou um enorme desafio, garantir uma
formação de professores que desse conta da amplitude e importância desse
processo se mostrou igualmente desafiador e complexo. De acordo com Nóvoa
(2013), a expansão dos sistemas de ensino nas últimas décadas teve como uma das
consequências, a entrada de diversos professores que não foram bem-preparados.
O aligeiramento da formação e ocupação deste mercado por instituições privadas
estão implicados neste fenômeno.
A primeira questão a ser refletida é, justamente, a respeito do olhar ao
professor como profissional. Entender o trabalho docente como exercício
profissional, e não como uma “missão”, ou ainda, como uma extensão da função de
“cuidar das crianças”, é essencial para que seja construída e fortalecida uma visão
da prática docente como um exercício qualificado e que, portanto, exige uma
formação sólida. Imbernón (2011, p. 28) afirma que identificarmos o professor como
22
profissional exige entendermos que ele precisa “dominar uma série de capacidades
e habilidades especializadas que o fazem ser competente em determinado trabalho,
e que além disso o ligam a um grupo profissional organizado e sujeito a controle”.
De acordo com Nóvoa (2013), na história da formação de professores,
podemos identificar três grandes momentos:
1) até meados do século XIX, não existiam cursos de formação de
professores e, assim, a formação do futuro professor ocorria nas próprias escolas,
junto com o professor mais experiente;
2) entre o final do século XIX e meados do século XX, passam a existir
espaços específicos de formação, as escolas normais, que buscam uma preparação
teórica e pedagógica, articulando tal formação com as escolas de aplicação, nas
quais se realizavam os estágios;
3) A partir das últimas décadas do século XX, a formação de professores
passa a adquirir um caráter de nível superior e, assim, começa a ser realizada nas
universidades.
A definição do que caracteriza um profissional, sua formação e sua prática
não parte de uma visão neutra ou puramente científica, uma vez que é resultado das
ideologias e contextos de seu tempo histórico (IMBERNÓN, 2011). Nesse sentido, a
definição de quais são os conhecimentos que compõem a base de formação do
profissional professor também tem sido alvo de inúmeras pesquisas e discussões ao
longo dos anos (TARDIF, 2014), tanto considerando o grande impacto de tais
profissionais na formação das novas gerações, quanto as inúmeras mudanças
sociais que vem ocorrendo, de maneira especial nas últimas décadas, e que exigem
mudanças nas práticas educativas e, consequentemente, na formação dos
professores que executam e/ou fazem a mediação de tais práticas. Tardif (2014, p.
250) afirma que,
3
Destaque do autor.
23
Diante de tudo o que até aqui refletimos, podemos afirmar que é urgente
construir e consolidar uma maneira de formar nossos professores, tanto em sua
formação inicial quanto continuada, em que os componentes fundamentais desse
processo formativo – ter a prática como elemento central, garantir a formação de um
professor reflexivo, garantir aos professores a construção dos conhecimentos
específicos necessários a sua atuação profissional – não sejam constantemente
negligenciados. Nóvoa (2013) defende a construção de uma formação de
professores que se baseie em quatro pontos fundamentais:
1) Uma formação que se construa a partir de dentro da prática, o que significa
implicar os professores já atuantes em participar de maneira ampla da formação de
seus futuros colegas e de seus pares;
2) A valorização do conhecimento profissional docente, que é “um
conhecimento elaborado a partir de uma reflexão sobre a prática e sobre a
experiência, transformando-o em um elemento central da formação.” (NÓVOA, 2013,
p. 209).
3) A criação de uma nova realidade organizacional, o que implica em
repensar e reconstruir o espaço acadêmico de formação dos professores, de
maneira a construir um “quadro de reforço das redes de colaboração e de
cooperação, criando novas instituições que juntem a realidade das escolas e a
realidade das escolas de formação (universidades).” (NÓVOA, 2013, p. 209).
4) O fortalecimento do espaço público da educação, de tal forma que a
formação dos professores seja articulada com os debates sociais e políticos,
“desenvolvendo iniciativas no sentido da definição de um novo contrato social em
torno da educação.” (NÓVOA, 2013, p. 209).
Repensar a formação de professores, nos termos propostos por Nóvoa
(2013), os quais aqui defendemos, exige um grande esforço coletivo, afinal não é
possível repensá-la sem pensar também em qual a escola que estamos buscando e
para a construção de qual sociedade. Sabendo do papel essencial que a escola
possui, ou pode possuir, na manutenção ou na desconstrução de saberes, valores,
práticas e identidades, a formação do professor, a qual terá um papel determinante
em sua atuação dentro do espaço escolar, se apresenta como uma questão tão
importante quanto complexa e na qual temos muito a avançar. Nesse sentido,
valorizar o espaço escolar como um espaço essencialmente de formação, não
31
somente dos alunos, mas também dos próprios professores, é primordial para a
questão da formação contínua de tais profissionais.
social elementar que tal espaço ocupa. Além disso, está prevista a necessidade da
formação de um profissional reflexivo e propositivo quanto ao seu espaço de
trabalho e às práticas que são ali desenvolvidas. A formação baseada em tais
premissas é essencial para que o professor em formação, de fato, delas se aproprie.
Além dessas premissas mais gerais, e que são pertinentes a formação de
qualquer professor, a Resolução CNE/CP nº 1, elenca as habilidades que o egresso
do curso de Pedagogia deve ter construído. Elencadas no artigo 5º, dentre outras
coisas, a resolução afirma que o licenciado em Pedagogia deve estar apto a ensinar
as diversas áreas de conhecimento (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências,
História, Geografia, Artes e Educação Física), em seus conteúdos pertinentes à faixa
etária em que se trabalhará, de forma interdisciplinar. Também lhe cabe estar apto a
desenvolver o trabalho em equipe, de maneira que o trabalho seja articulado entre
os profissionais. Além disso, o licenciado em Pedagogia deve estar apto a pesquisar
sobre diversas questões que implicam em sua prática, sabendo se apropriar e
executar as diretrizes curriculares e, destacamos, “utilizar, com propriedade,
instrumentos próprios para construção de conhecimentos pedagógicos e científicos”
(BRASIL, 2006). O professor deve estar apto, portanto, a fazer uso das ferramentas
próprias de sua profissão: as ferramentas pedagógicas, dentre elas as ferramentas
didático-metodológicas que serão essenciais no processo de ensino dos diversos
conteúdos.
A Resolução CNE/CP nº 1 determina também que a estrutura do curso de
Pedagogia deve ser composta por três núcleos: 1) núcleo de estudos básicos, 2)
núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos – voltado às áreas de
atuação profissional e 3) núcleo de estudos integradores – que engloba as
atividades práticas, de extensão, de iniciação científica etc. O núcleo de estudos
básicos, a partir do que é descrito na resolução, deve se constituir de forma a dar ao
estudante a formação elementar ao exercício do professor, aí incluído o estudo da
Didática, metodologias e teorias pedagógicas, além de processos de organização do
trabalho docente.
A formação que garanta ao professor o conhecimento dos conteúdos que tem
a ensinar e as ferramentas didático-metodológicas necessárias ao exercício de seu
trabalho, do qual o professor deve ter uma visão a respeito do contexto no qual o
processo de ensino está inserido, é, como vimos, um fator primordial na formação
prevista para o professor licenciado em Pedagogia (LIBÂNEO, 2013). Para Libâneo
33
que, em geral, vem sendo oferecida aos professores em formação não tem,
portanto, dado prioridade ao que é específico do ofício docente – os conteúdos e
seus desdobramentos didático-metodológicos. Oferece-se um grande volume de
disciplinas de cunho formativo mais geral, as quais, como defendido por Gatti
(2013), são sim importantes, porém a formação que deveria dar conta do que
essencialmente caracteriza o conhecimento específico do professor acaba por ficar
em segundo plano.
Tal como na crítica apontada por Tardif (2014), o estudo de Gatti e Nunes
(2009) observou que a formação oferecida se dá por meio da oferta de disciplinas,
as quais são trabalhadas de maneira fragmentada, com pouca ou nenhuma
articulação. Tal tipo de construção da formação oferecida aos professores acaba
por, como argumenta Tardif (2014), ter um impacto pequeno na efetiva formação
dos professores, uma vez que os conhecimentos são trabalhados de maneira
isolada, prejudicando a construção de uma visão mais ampla, complexa, interligada
e aplicada à ação prática. Assim, mesmo tendo um volume grande de disciplinas de
formação geral – bem maior do que o que das disciplinas de formação específica,
que deveriam ser priorizadas –, é possível refletirmos sobre qual o real impacto
formativo que tais disciplinas vêm desempenhando, considerando a forma como
vêm sendo ofertadas e, ainda, que possivelmente poderiam ser ainda mais
impactantes na formação se fossem oferecidas de maneira mais articulada, em
especial com a prática.
Outro ponto muito importante indicado pela pesquisa desenvolvida por Gatti e
Nunes (2009), e que foi identificado a partir do estudo das ementas das disciplinas, é
que mesmo as disciplinas que têm como fim a formação profissional específica do
docente apresentam em suas ementas um enfoque no porquê ensinar, enquanto o o
quê e o como ensinar aparecem de forma muito incipiente. Não há dúvidas de que a
construção bem embasada da compreensão do motivo pelo qual um determinado
conteúdo é importante e deve ser ensinado é algo central dentro do trabalho
docente, porém tal aspecto do processo didático está atrelado de maneira
indissociável à necessidade de que o profissional conheça o conteúdo e as questões
didático-metodológicas que o envolvem.
Gatti (2010) indica, a partir dos dados do mesmo estudo já citado, que, as
disciplinas relacionadas às didáticas específicas, metodologias e práticas de ensino,
em outras palavras, o “como” ensinar, representam 20,7% do conjunto de
35
O novo capítulo que foi acrescido à LDB garante, portanto, não somente o
direito à educação bilíngue para os estudantes surdos, afirmando que sua oferta
deve ocorrer desde a educação infantil, como também garante que os estudantes
surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas
habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas devem ter
acesso a materiais didáticos e professores bilíngues com “formação e
especialização adequadas, em nível superior.” (BRASIL, 2021).
A LDB classifica a modalidade de ensino “Educação Especial”, como
“educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para
educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades ou superdotação.” (BRASIL, 1996). Dentro dessa especificação, o
atendimento ao estudante surdo, se enquadra, de acordo com a legislação
brasileira, na modalidade de Educação Especial. Em seu Artigo 59, a LDB
determina, em seus cinco incisos, adequações e possibilidades que os sistemas de
ensino devem garantir ao, como cita a lei, educando com deficiência. Destacamos
aqui o inciso I que afirma que devem ser garantidos “currículos, métodos, técnicas,
recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades.”
(BRASIL, 1996).
A Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001, institui diretrizes
nacionais para a Educação Especial na educação básica e afirma, em seu artigo 18,
parágrafo 2º que
Vemos, assim, que o professor que atuará na Educação Especial deve estar
apto, de maneira ainda mais ampla, a repensar e reconstruir sua atuação, uma vez
que precisa construir uma ação pedagógica flexível, adaptada às necessidades
individuais dos alunos e com estratégias didático-metodológicas adequadas. Outro
ponto importante, apresentado no trecho acima citado, refere-se à necessidade de
que tal profissional esteja apto a trabalhar de maneira conjunta com outro professor
41
4
Atual Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
42
A partir do artigo acima citado vemos que, no que se refere à formação para a
atuação na Educação de Surdos, além do percurso formativo apontado pela
Resolução CNE/CEB nº 2, de 2001 – a formação em um curso de licenciatura e uma
pós-graduação na área –, há a possibilidade de formação em um curso de
licenciatura específico (Letras/Libras), cabendo, porém, destacar que no caso deste
curso, o foco da formação é na Libras e seu ensino e não na educação bilíngue. O
curso de Letras/Libras é ofertado em algumas instituições no país, como a
Universidade Federal do Paraná (UFPR) – campus Curitiba, a Universidade Federal
de Pernambuco (UFPE) – campus Recife e a Universidade Federal do Acre (UFAC)
– campus Rio Branco.
Para a atuação nas séries iniciais, existe a oferta da formação no curso de
Pedagogia Bilíngue, que é oferecido por algumas instituições no país, como o
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), o Instituto Federal de Santa
Catarina (IFSC) – campus Palhoça e o Instituto Federal de Goiás (IFG) – campus
Aparecida de Goiânia.
Bär (2019), em sua tese de Doutorado, analisa as propostas dos cursos de
Pedagogia Bilíngue apresentadas pelas instituições de ensino acima mencionadas,
a partir dos aspectos políticos, linguísticos e pedagógicos do campo da Educação
Bilíngue, assim como das bases teórico-conceituais da Pedagogia, como curso e
como área de conhecimento. A autora indica como elementos pedagógicos
essenciais da educação bilíngue a visualidade, o letramento, o registro e avaliação,
assim tais elementos devem estar presentes na formação do professor que irá atuar
no espaço bilíngue.
O Projeto Político Pedagógico do curso de Pedagogia Bilíngue do Instituto
Federal de Santa Catarina (IFSC) – campus Palhoça (2016), por exemplo, afirma
que o curso pretende formar “profissionais bilíngues para atuação na Educação
Infantil e Séries Iniciais do Ensino Fundamental”, estando incluída em tal formação
“a aptidão para o trabalho vinculado a uma política linguística que reconhece
as especificidades pedagógicas e linguísticas dos Surdos.” (IFSC, 2016, p.
10). O documento afirma ainda que:
46
língua portuguesa como segunda língua não tem sido encontrada. Entendemos que
a consulta às matrizes de vários cursos, além do estudo das ementas das disciplinas
relacionadas ao ensino de língua portuguesa para verificar se tal temática de ensino
não se apresenta, de alguma forma, dentro delas, trata-se de um estudo importante
para podermos afirmar com dados a não existência da disciplina. De qualquer forma,
para termos um ponto de partida para tal afirmação, verificamos as matrizes
disponíveis para consulta online dos cursos de Pedagogia das universidades
públicas do estado de São Paulo – USP, UNESP, UFSCAR, UNIFESP – e da PUC-
SP e em nenhuma das matrizes, dentro do rol de disciplinas obrigatórias, existe a
oferta da disciplina de ensino de língua portuguesa como segunda língua.
A partir dos estudos de Gatti e Nunes (2009), é possível constatarmos que, de
maneira geral, os professores não estariam recebendo a formação necessária, no
que se refere aos conteúdos e estratégias didático-metodológicas quanto às
disciplinas que tem o dever de ensinar, dentre as quais destacamos a língua
portuguesa, que é o foco deste trabalho. Sem receber tal formação adequada, o
exercício da função docente de ensino da língua fica prejudicado, mesmo pensando
no aluno ouvinte, cuja língua portuguesa é sua primeira língua, afinal é necessário
ao professor ter o domínio dos conteúdos e um repertório de estratégias
metodológicas para a construção de um trabalho que possa garantir que o aluno se
aproprie da língua escrita e desenvolva de maneira adequada suas habilidades de
leitura e produção escrita.
Ensinar a língua portuguesa como segunda língua para as crianças surdas vai
exigir que o professor possua, além de bons conhecimentos das especificidades da
educação de surdos, da Libras e de estratégias de ensino de segunda língua, bons
conhecimentos da língua portuguesa. Assim, o professor precisa possuir um
repertório que lhe permita conhecer as estratégias de ensino de língua portuguesa,
em que pressupostos elas estão pautadas e o que se pretende alcançar com elas,
para que possa ter clareza se essas mesmas estratégias, pressupostos e objetivos
fazem ou não sentido dentro do trabalho de ensino com as crianças surdas. A partir
desse repertório, conhecer e construir estratégias para ensinar a língua portuguesa
como segunda língua será um trabalho muito mais possível.
Se, entretanto, os professores não tem recebido, de maneira geral, a
formação adequada nem para o ensino de língua portuguesa como primeira língua –
sem compreender bem as diversas estratégias, e o que as embasam e sustentam,
49
uma escola. Sobrecarregado com as inúmeras atividades que envolvem sua prática,
em geral, com poucos recursos e sem uma política institucional que dê espaço
concreto e recursos à sua formação, ao professor sobra muito pouco espaço para se
construir como o professor reflexivo da própria prática, como se espera que seja.
Como afirma Sacristán (2012, p. 96) “[...] o professor que trabalha não pode refletir
sobre sua própria prática, porque não tem tempo, não tem recursos, até porque,
para sua saúde mental, é melhor que não reflita muito”.
É sim fundamental que a formação do professor lhe dê a oportunidade de se
construir como um profissional que possa refletir sobre e atuar na reconstrução da
própria prática, porém tal reflexão precisa ser estendida às questões sócio-históricas
que envolvem sua atuação e seu contexto de trabalho, assim como as restrições
impostas pela prática institucional, a fim de que a premissa de que cabe ao
professor ser autocrítico e se reconstruir não seja utilizada como justificativa para
todas as questões do espaço escolar, deixando de lado as responsabilidades que
cabem às políticas públicas (PIMENTA, 2012). Como afirma Pimenta (2012, p. 31):
Segundo o autor, é por volta dos dois anos que o percurso do pensamento e
o da língua se encontram. Por meio da língua as possibilidades se ampliam, uma
vez que o indivíduo passará a contar com o repertório simbólico e conceitual que a
língua lhe permite construir. De acordo com Vygotsky (2007, p. 17):
oportunidade de apropriar-se de uma língua terá que ser garantida de outras formas,
que não a audição, no convívio social. Caso tal oportunidade não ocorra, é possível
que seu desenvolvimento seja prejudicado, uma vez que não conseguirá se
apropriar de uma língua enquanto instrumento de desenvolvimento. O mesmo
ocorreria com uma pessoa ouvinte que, por algum motivo, fosse privado de contato
com a língua.
Sacks (1989, p. 19) defende que é por meio da língua que “nos comunicamos
livremente com nossos semelhantes, adquirimos e compartilhamos informações” e,
assim, mesmo estando aptos ao pleno desenvolvimento cognitivo, sem a
possibilidade de acesso a língua “ficaremos incapacitados e isolados, de um modo
bizarro”, de forma que seremos “tão pouco capazes de realizar nossas capacidades
intelectuais que pareceremos deficientes mentais (sic)6”.
A questão da deficiência como tratada por Vygotsky (1997a, p. 62) se
aproxima do atual modelo social da deficiência no que diz respeito ao fato de não
encarar a deficiência somente como uma doença ou algo biológico, mas também
como produto do social. Para Vygotsky, quando deixamos de olhar para a criança
para olhar somente para seu problema, “detemo-nos nos gramas de enfermidade e
não nos atentamos ao quilos de saúde” (original em espanhol, tradução nossa), ou
seja, ficamos tão presos àquilo que a criança não consegue fazer, que acabamos
não lhe dando a oportunidade de alcançar tudo o que pode e consegue fazer.
Ademais, ao defender a formação social da mente, o autor nos convida a refletir na
responsabilidade do meio social nas condições presentes na relação da criança com
o mundo. Vygostky (1997b, p. 77, original em espanhol, tradução nossa) afirma que
6
Mantemos aqui a nomenclatura original do texto, destacando, porém, que a nomenclatura correta,
seguindo da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), é pessoa com deficiência intelectual.
62
consertar o que supostamente seria um defeito. Vygotsky (1997b, p. 81) afirma que
“educar ao cego e ao surdo significa educar a cegueira e a surdez, e transformar a
pedagogia do defeito infantil em uma pedagogia do defeito” (original em espanhol,
tradução nossa). Para o autor, é fundamental que o processo educativo esteja
direcionado à criança e não à deficiência, dessa forma, para o autor, não estaremos
promovendo a educação da cegueira ou da surdez, mas sim de uma criança
(VYGOTSKY, 1997b).
Diante do que é proposto por Vygotsky, vemos que é necessário que
reconstruamos não somente a forma como olhamos para a criança com deficiência,
mas também as formas com as quais buscamos garantir seu direito ao
desenvolvimento e à educação. Como defendido por Vygotsky (1997b, p. 83), “a
compensação biológica deve ser substituída pela compensação social do defeito”
(original em espanhol, tradução nossa). Dizer isso significa dizer que nossas
relações sociais, a forma como organizamos nossa sociedade pode e deve ser
revista de tal forma que às pessoas com algum tipo de deficiência também seja
garantido o direito de conviver e interagir com o outro, com o meio, podendo ter
acesso aquilo que está disponível aos demais, construindo e sendo construída por
seu meio social.
Ao se referir ao desenvolvimento das crianças surdas ou cegas, Vygotsky
reafirma que buscar outras vias para garantir à pessoa com deficiência sua plenitude
de realização da vida humana, buscar as estratégias sociais para que isso ocorra, é
o caminho a seguir, afinal “[...] o princípio e o mecanismo psicológico da educação
são aqui os mesmos da criança normal7 (sic) (VYGOTSKY, 1997c, p. 117)” (original
em espanhol, tradução nossa).
Com o avanço das ciências médicas, é possível que crianças que nascem
surdas ou com deficiência auditiva sejam diagnosticadas precocemente. A realidade
socioeconômica dos diferentes países impõe encaminhamentos diferentes. Ao
pensar a situação do Brasil, especificamente, um país com grande extensão
territorial e grande desigualdade social, os encaminhamentos podem ser de
diferentes ordens. É importante refletirmos, porém, se o acolhimento e
aconselhamento das famílias que se deparam com o nascimento de um bebê surdo
7
Mantemos aqui a nomenclatura do texto original e ressaltamos que tal termo não está de acordo
com as discussões atuais.
63
língua gesto-visual, e que o contato com tal língua só lhe trará possibilidades de
benefícios, não prejudicando em nada seu desenvolvimento em quaisquer outras
questões, inclusive na aprendizagem de outras línguas, incluindo a língua oral, se for
o caso.
As discussões sobre o que seria melhor, procurar ensinar a língua oral à
criança surda ou utilizar a língua de sinais e a modalidade escrita da língua
majoritária tem uma longa trajetória, a qual vale a pena lembrarmos, de maneira
sucinta, neste momento.
indivíduo surdo não é linear ao longo dos anos, sendo repleta de avanços e
retrocessos quanto aos direitos da pessoa surda.
Durante muitos anos as crianças nascidas surdas foram totalmente privadas
não somente do acesso à escolarização, mas até da própria vida. Vistas como
incapazes, impuras, perigosas e até amaldiçoadas, as pessoas com deficiência
eram excluídas do convívio social ou, por vezes, até mesmo mortas. É somente no
século XVI que as pessoas com deficiência começam a ser vistas com outro olhar, a
partir da ideia de que as deficiências não teriam a ver com causas sobrenaturais,
mas sim biológicas. É a partir daí que começam a surgir as primeiras ideias e
propostas para a educação das pessoas surdas. O espaço religioso, católico e
protestante, teve a vanguarda em tais discussões e ações, sendo membros de tais
grupos os primeiros a iniciar ações de educação para pessoas surdas (ROCHA,
2008).
De acordo com Lodi (2005), o trabalho com a educação de surdos teve início
no século XVI, com o trabalho do monge beneditino Pedro Ponce de León. A autora
afirma que sua atuação demonstrou que eram falsos os argumentos médicos e
filosóficos, muito presentes na época, de que os surdos eram incapazes de
desenvolver linguagem e, por consequência, de desenvolver qualquer
aprendizagem. A autora argumenta que, em virtude de sua vida como monge com
voto de silêncio, Ponce de León possuía alguma experiência com o uso de gestos.
Ao educar dois jovens surdos, o monge incorporou em sua prática o uso dos sinais
construídos por tais surdos e, segundo Lodi (2005), esse é um dos motivos aos
quais é atribuído o sucesso de sua prática.
Mesmo fazendo o uso de sinais na prática educativa, havia a busca pela
oralização dos surdos, como esclarece Lodi (2005), pois o desenvolvimento da
oralidade era obrigatório para que o surdo pudesse ter direito à herança e aos títulos
da família. Entretanto, os sinais e a oralização não eram os únicos objetivos do
processo educativo. O ensino da língua escrita possuía também um papel
fundamental dentro do processo educativo proposto. De acordo com Lodi (2005, p.
411),
linguagem de sinais, modificações que acabavam por torná-la estranha aos próprios
surdos”.
Segundo Nascimento (2006), Berthier narra os grandes desafios que L´Epée
enfrentou para provar que seu método era adequado ao processo educativo dos
surdos e conseguir com que o uso de sinais fosse aceito. Berthier defende que o
abade conseguiu provar que a língua de sinais, tanto quanto a língua oral, pode
alcançar não somente ideias concretas, mas também metafísicas.
Embora critique o método de L´Epée por modificar a língua de sinais em prol
da aquisição da língua escrita, Berthier (1984, p.188 apud NASCIMENTO, 2006, p.
262) defende a importância da escrita para o surdo:
De acordo com Rocha (2008, p. 19), “era comum que professores surdos,
formados pelos institutos de surdos europeus, fossem contratados para fundar
estabelecimentos para a educação de seus semelhantes”. A primeira escola para
surdos na América foi fundada nos Estados Unidos pelo reverendo Thomas Hopkins
Gallaudet (1787-1851), que trouxe com ele aos Estados Unidos o professor surdo
Laurent Clérc, que havia sido aluno do abade Sicard.
No Brasil, em 1855, E. Huet, que também havia estudado no Instituto de
Surdos de Paris, apresentou a D. Pedro II um relatório com a proposta de criação da
primeira escola de educação de surdos do Brasil. Tal escola, existente até hoje –
atualmente chamada Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) - tem
considerada sua data oficial de fundação o dia 26 de setembro8 de 1857.
As diferentes propostas metodológicas e os grandes embates a respeito da
educação de surdos perduraram ao longo dos anos e, em 1880, foi realizado o
Congresso de Milão, no qual foi realizada uma votação a respeito de qual seria o
método mais adequado para a educação dos surdos e o Oralismo saiu vencedor em
8
Em referência a tal data, o dia 26 de setembro foi instituído como o Dia Nacional do Surdo.
68
tal disputa. É importante destacar que os surdos foram postos à margem nas
discussões realizadas em tal Congresso e o peso e influência política de defensores
do Oralismo, que era o caso, por exemplo, de Alexander Graham Bell, foram
determinantes em tal decisão. De acordo com Gesser (2009, p. 50), Graham Bell
“pregava que a surdez era uma aberração para a humanidade, pois perpetuava
características genéticas negativas”.
A partir de tal Congresso, houve uma tendência mundial em procurar abolir o
uso das línguas de sinais, cujos usos foram proibidos, e implantar metodologias de
ensino que buscassem oralizar as pessoas surdas. No Brasil, no INES, não foi
diferente. A decisão de proibir os usos das línguas de sinais e isso ter sido adotado
como regra nas instituições não fez, contudo, com que as línguas de sinais
desaparecessem. A moção humana à comunicação, a interagir no mundo e
compreendê-lo está sempre presente e, assim, mesmo que às escondidas, diversos
surdos mantiveram vivas suas línguas de sinais, às quais conseguiam ter acesso na
interação com outros, sem a necessidade de serem ensinados de maneira
sistemática, que era o caso da língua oral.
Na década de 1960, o linguista William Stokoe, publicou a obra “Sign
Language Structure: An Outline of the Visual Communication System of the
American Deaf”, a partir de uma extensa pesquisa a respeito da língua de sinais
americana, a ASL, e demonstrou que a ASL apresentava toda estrutura e
características de uma língua, tal como uma língua oral. A partir de tais estudos,
começam a surgir outros a respeito do uso da língua de sinais na educação dos
surdos, afinal, uma vez que se trata de uma língua tanto quanto uma língua oral,
pode desempenhar os papéis cognitivos e sociais que uma língua oral desempenha
para os ouvintes.
Também na década de 1960, Dorothy Schifflet, professora e mãe de surdo,
“começa a utilizar um método que combinava a língua de sinais em adição à língua
oral, leitura labial, treino auditivo e alfabeto manual” (GOLDFELD, 2002, p. 31),
método o qual foi denominado por ela de Total Approach e, posteriormente,
renomeado para Total Communication, por Roy Holcom. Tal proposta metodológica
defendia a utilização de todas as estratégias possíveis, uma vez que o foco não
estaria na aquisição da língua, mas sim no desenvolvimento da habilidade de
comunicação.
69
9
Hughlings-Jackson foi um neurologista britânico e a menção feita por Sacks a ele refere-se ao
seguinte trecho, encontrado em Sacks (1989, p. 28): “Não falamos ou pensamos apenas com
palavras ou sinais, mas com palavras ou sinais que se referem uns aos outros de uma determinada
maneira. [...] Sem uma inter-relação adequada de suas partes, uma emissão verbal seria uma mera
sucessão de nomes, um amontoado de palavras que não encerra proposição alguma. [...] A unidade
da fala é uma proposição. A perda da fala (afasia) é, portanto, a perda da capacidade de
proposicionar [...] não só a perda da capacidade de proposicionar em voz alta (falar), mas de
proposicionar interna ou externamente. [...] O paciente sem fala perdeu-a não apenas no sentido
popular, de não conseguir expressar-se em voz alta, mas no sentido mais completo. Falamos não
70
profundamente surdos, isso só pode ser feito por meio da língua de sinais.
Portanto, a surdez deve ser diagnosticada o mais cedo possível. As
crianças surdas precisam ser postas em contato com pessoas fluentes na
língua de sinais, sejam seus pais, professores ou outros. Assim que a
comunicação por sinais for aprendida – e ela pode ser fluente aos três anos
de idade -, tudo então pode decorrer: livre intercurso de pensamento, livre
fluxo de informações, aprendizado da leitura e escrita e, talvez, da fala. Não
há indícios de que o uso de uma língua de sinais iniba a aquisição da fala.
De fato, provavelmente ocorre o inverso.
A proposta mais recente de educação para surdos que, como já dito, nasceu
da reivindicação e pressão de movimentos surdos, e que está presente na atual
legislação brasileira, é a educação bilíngue. Tal proposta educativa aponta, dentre
outras coisas, que a pessoa surda deverá ter garantidas em seu processo educativo
duas línguas: a língua portuguesa e a Libras.
A Libras somente foi reconhecida oficialmente em 2002, a partir da lei 10.436,
de 24 de abril. Tal lei, além de reconhecer a Libras como meio legal de comunicação
e expressão, determina que o poder público deve passar a ter formas
institucionalizadas de apoiar o uso e difusão de tal língua, garantindo também
atendimento adequado às pessoas surdas. A mesma lei determina também que a
Libras seja incluída nos cursos de formação de professores, em nível médio e
apenas para dizer a outras pessoas o que pensamos, mas para dizer a nós mesmos o que
pensamos. A fala é uma parte do pensamento.”
71
superior, e fonoaudiologia. Por fim, a lei determina, em seu parágrafo único que “A
Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da
língua portuguesa.” (BRASIL, 2002).
A regulamentação da lei acima citada veio com o Decreto nº 5626, de 22 de
dezembro de 2005, o qual especifica a garantia de educação bilíngue aos surdos em
seu artigo 22, que afirma o seguinte:
10
Grifo nosso.
72
De acordo com Oliveira (2009), no Brasil são faladas cerca de 215 línguas,
entre grupos indígenas, comunidades descendentes de imigrantes, usuários de
línguas de sinais e comunidades quilombolas que se utilizam de línguas afro-
brasileiras. Diante de tal cenário é fundamental reconhecermos que somos um país
multilíngue. Reconhecer a pluralidade linguística brasileira é fundamental para que
possamos construir políticas que garantam o respeito à língua e cultura de grupos
minoritários.
Cabe aqui esclarecermos os termos multilíngue e plurilíngue, os quais estarão
presentes em nossas discussões a frente. Menezes (2013), a partir da visão
apresentada pelo “Quadro Comum Europeu de referência para Línguas”, aponta que
plurilinguismo e multilinguismo se diferem uma vez que o segundo se refere
basicamente à oferta de diferentes línguas estrangeiras, enquanto o primeiro não
está relacionado somente ao conhecimento de diversas línguas, mas também à
relação entre língua e cultura. Lemos (2018), também a partir do que é proposto no
já citado documento cita que:
poder que se apresentam como plano de fundo quando é dito ou determinado que
uma língua é mais ou menos importante do que outra.
A ampliação dos espaços escolares com propostas bilíngues, mesmo sendo
em sua maioria de línguas de prestígio, traz, de qualquer forma, as discussões sobre
bilinguismo à tona, de forma que se abre mais espaço para refletir a respeito dos
pressupostos teóricos que subsidiam tais práticas. Ao dizermos que a educação
oferecida aos surdos deve ser uma educação bilíngue, é importante refletirmos ao
que está vinculado a tal afirmação.
García e Woodley (2015) afirmam que a educação bilíngue não se trata de
uma proposta nova de educação, uma vez que, ao longo da história, a maior parte
das crianças de elite eram educadas para serem bilíngues. De acordo com as
autoras, “no século 19, o desenvolvimento de escolas públicas tornou-se um
mecanismo de estados-nação para estabelecer o domínio de uma única língua do
estado, e a educação se tornou majoritariamente monolíngue.” (GARCÍA;
WOODLEY, 2015, p. 133, original em inglês, tradução nossa). As autoras afirmam
que:
das pessoas e das relações, uma vez que se trata de um produto que é intrínseco à
cultura. García e Woodley (2015, p. 137, original em inglês, tradução nossa)
destacam essa mudança de visão e, a partir dela, uma nova forma de pensar na
educação bilíngue, afirmando que quando partimos da visão da “[...] língua como
uma forma de ação humana, incorporada no mundo social das relações humanas, e
intimamente conectado com todas as outras formas de ação – física, social, e
simbólica [...]”, facilmente entendemos o papel primordial da língua na educação.
De acordo com García e Woodley (2015), o campo da educação bilíngue foi
altamente influenciado por conceitos psicolinguísticos, os quais foram amplamente
discutidos e desenvolvidos por Cummins (1979). Tal estudioso cunhou o conceito de
“Interdependência” o qual foi central para o desenvolvimento da educação bilíngue
no século XX. A partir de tal conceito, Cummins defende que existe
interdependência entre as duas línguas aprendidas, o que permite ao usuário a
transferência de habilidades e conhecimentos linguísticos entre as línguas. Em
outras palavras, o que se apresenta é a impossibilidade de pensar as duas línguas
de forma estanques e compartimentadas, uma vez que elas estarão, de alguma
forma, em interação constante, podendo o usuário fazer uso das habilidades,
estratégias e conhecimentos construídos em uma língua, para o desenvolvimento da
outra.
Além da ampliação e aprofundamentos dos conhecimentos linguísticos,
García e Woodley (2015) apontam o impacto que as novas configurações do século
XXI trouxeram para o olhar voltado à educação bilíngue. Os cenários linguísticos
não são mais tão fortemente delimitados por fronteiras. As barreiras geográficas e
linguísticas foram fortemente modificadas, as questões sociais e políticas também
continuam tendo seu impacto nos fluxos de migração de muitas populações que
trazem com elas novos cenários linguísticos. As lutas de grupos minoritários que
conseguiram, nas últimas décadas, o avanço legal para garantir suas línguas e
culturas também trouxeram à tona a necessidade de construção de novos cenários
educativos com relação à língua.
O segundo princípio no qual a educação bilíngue se baseia, de acordo com
García e Woodley (2015) refere-se ao papel que o bilinguismo possui na
representação de identidades e ideologias e, também, no nivelamento das questões
de poder. Para as autoras a língua é um instrumento na formação de nossa
identidade e esta não se refere a algo estático, algo que se constrói de determinada
77
ambas as línguas em sua vida, mesmo que não as utilize da mesma forma e com o
mesmo nível de fluência.
Uma terceira similaridade quanto ao bilinguismo de surdos e ouvintes, de
acordo com Grosjean (2010) está no fato de que ambos utilizam suas línguas de
formas variadas e elas se completam em suas ações da vida cotidiana. O sujeito,
surdo ou ouvinte, utiliza suas línguas para diferentes propósitos, em diferentes
momentos e situações de sua vida. Em alguns, utiliza-se de ambas as línguas, em
outros, utiliza especificamente uma delas. Grosjean (2010, p. 136, original em inglês,
tradução nossa) afirma que:
No caso dos surdos, embora alguns aprendam a língua oral, é possível que tais
surdos optem por não utilizar tal modalidade, por exemplo, por receber retornos
negativos de pessoas ouvintes com relação a sua voz.
A quarta diferença apontada por Grosjean (2010) refere-se à forma como
utilizam suas línguas. O autor defende que os surdos raramente estão no modo
monolinguístico – com exceção de, por exemplo, estarem se comunicando via
modalidade escrita da língua majoritária com um usuário monolíngue de tal língua –,
pois, em geral, estão no modo bilíngue de uso da língua. Uma última diferença
apontada por Grosjean (2010) é que os padrões de conhecimento e uso da língua
para os bilíngues surdos parecem ser de alguma forma diferentes e provavelmente
mais complexos, do que no bilinguismo de língua falada, até por envolver línguas de
modalidades distintas.
Grosjean (2010, p. 140) apresenta uma série de aspectos nos quais, em
geral, há concordância entre pais, cuidadores, profissionais de patologias da
linguagem e educadores a respeito de porque a criança surda precisa ser bilíngue:
1) A criança precisa ter acesso à língua o quanto antes for possível. Nesse
aspecto há os que defendem a oferta somente da língua oral, através do uso de
aparelhos e implantes, há os que defendem a oferta de língua de sinais e os que
defendem a oferta bilíngue, com a língua de sinais e a língua oral, tendo a língua de
sinais um papel primordial nos primeiros anos de vida.
2) É fundamental que a criança surda possa se comunicar com suas famílias
e as pessoas que a cercam e a língua é o instrumento principal para que tal
interação possa ocorrer, inclusive para a criação dos vínculos familiares, até com os
próprios pais.
3) A língua é um instrumento fundamental para o desenvolvimento cognitivo
e, assim, privar a criança de uma língua pode se desdobrar em consequências muito
negativas com relação ao desenvolvimento da criança.
4) A criança surda precisa criar conhecimento sobre o mundo. Tal
conhecimento é criado na interação com outras pessoas, interações essas que são
mediadas pela língua. O conhecimento de mundo construído é essencial para
fundamentar as demais aprendizagens, inclusive as escolares.
5) A criança surda precisa estar apta a se comunicar plenamente com o
mundo ao seu redor e, assim, com todos que a cercam. Dessa forma, a
comunicação precisa acontecer em língua apropriada ao interlocutor e à situação.
83
caminho para garantir que ela seja vista por todas as pessoas como o que ela
realmente é.
Um quinto mal-entendido quanto o bilinguismo está relacionado à ideia, ainda
hoje propagada, de que dar acesso à língua de sinais para a criança surda irá
dificultar ou impedir que ela desenvolva a língua oral. Porém, há indicativos de que,
na verdade, ocorre o inverso (GROSJEAN, 2010; SACKS, 1989). Um último mal-
entendido e que está relacionado ao anterior, é a ideia de que se uma pessoa é
favorável e defensora do ensino de língua de sinais à criança surda, isso significa
que ela, obrigatoriamente, é contra o ensino de língua oral, o que não é
necessariamente verdadeiro. Há grupos que são contra a oralização da criança
surda, mas há também muitos que defendem que seja garantido a criança a
aquisição da língua de sinais, mas também que ela adquira o maior nível possível de
fluência na língua oral (GROSJEAN, 2010).
Quadros e Karnopp (2004) também afirmam que há ainda muito
desconhecimento por parte da sociedade em geral no que se refere às línguas de
sinais e, sendo assim, ainda hoje é possível nos depararmos com a propagação de
diversos mitos relacionados às línguas de sinais. Dentre os mitos apresentados
pelas autoras estão a ideia de que as línguas de sinais são universais, de que a
língua de sinais seria uma mistura de pantomima e gesticulação, e não uma língua,
e sendo assim, não teria condições de expressar conceitos abstratos, além da ideia
de que as línguas de sinais seriam, de alguma forma, subordinadas às línguas orais,
uma vez que as primeiras teriam falhas em sua organização gramatical (QUADROS;
KARNOPP, 2004).
Um mito também bastante difundido seria o que de, por serem línguas visual-
espaciais, tais línguas não seriam gerenciadas pelo lado esquerdo do cérebro,
responsável pela linguagem, mas sim pelo lado direito que é responsável pelo
processamento de informações espaciais. Quadros e Karnopp citam Bellugi e Klima
(1990), os quais apresentam estudos realizados com surdos com lesões nos
hemisférios esquerdo e direito do cérebro, que demonstraram que tal mito não é
real. Segundo Quadros e Karnopp (2004, p. 36):
11
Tal grupo foi composto por representantes de diversos espaços como Feneis, MEC, universidades
federais e INES.
88
Para que seja possível pôr em prática a proposta da educação bilíngue para
surdos, que garanta que o sujeito surdo possa ter acesso a um processo educativo
que lhe permita a aquisição da Libras e da língua portuguesa escrita, é essencial
que a formação, inicial e continuada, dos professores que atuarão em tais espaços
esteja de acordo com se espera construir, em outras palavras, que os professores
possuam os conhecimentos necessários, linguísticos e socioculturais, para tal ação.
89
escolares, sobre qual é o papel que tal construção de conhecimento, em si, provê ao
sujeito. A língua é a grande mediadora não somente das relações sociais, mas da
própria formação do sujeito enquanto ser cognitivo, como defendido por Vygotsky.
Diante disso, ter se apropriado da língua em suas diversas facetas, inclusive na
forma escrita, a qual possui grande espaço dentro da sociedade em que vivemos,
permite ao sujeito se colocar no mundo de maneira mais ampla.
Vygotsky (2007, p. 125) defende que a aprendizagem da língua escrita
demanda um treinamento artificial, diferente da língua falada, a qual pode ser
aprendida pela criança de maneira natural. Diante disso, Vygotsky afirma que tal
processo requer muita atenção e esforço, tanto por parte dos professores quanto
dos alunos. Em tal contexto, por vezes, a língua escrita acaba por ser ensinada
como algo fechado em si mesmo, vindo de fora, “relegando a linguagem escrita viva
a segundo plano.” (VYGOTSKY, 2007, p. 125).
A escrita vai além de uma habilidade motora, pois trata-se de uma atividade
cultural complexa e é sob tal perspectiva que deve ser ensinada (VYGOTSKY,
2007, grifo nosso). Portanto, a língua escrita faz parte da vida cultural dos indivíduos
e é essencial, ao ensiná-la, auxiliar as crianças a construírem a perspectiva de que
tal ferramenta lhes é significativa, útil e necessária. Para Vygotsky (2007, p. 144), no
processo de ensino, “[...] a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e
relevante para a vida” e, assim, é fundamental “ensinar às crianças a linguagem
escrita e não apenas a escrita de letras” (VYGOTSKY, 2007, p. 145).
Compreender que a língua escrita se refere a um sistema próprio, ou seja,
que ela não é simplesmente uma transcrição da língua oral, é de fundamental
importância para que o processo de ensino da língua escrita possa ser realizado de
forma significativa. Embora esteja relacionada à língua oral e sua aprendizagem seja
por ela intermediada – no processo da criança ouvinte –, a língua escrita se refere a
um sistema independente e que, com a consolidação de sua aprendizagem, passará
a ter uma atuação autônoma para o indivíduo. A respeito dela, Vygotsky (2007, p.
126, grifos nossos) afirma que:
educação ganhou destaque como uma das utopias modernas”. De acordo com a
autora:
É a partir desses novos ideais que o saber ler e escrever passa a ser visto
como instrumento de fundamental importância para a modernização e
desenvolvimento da sociedade e torna-se fundamento da escola obrigatória. Até
então, a aprendizagem da leitura e da escrita era restrito a poucas pessoas, as quais
aprendiam em seus lares, de maneira informal e assistemática, ou ainda nas poucas
“escolas” do Império (“aulas régias”) (MORTATTI, 2006). A leitura e a escrita passam
a ser consideradas algo possível de ser ensinado tecnicamente e, assim, “a ser
submetidas a ensino organizado, sistemático e intencional, demandando, para isso,
a preparação de profissionais especializados.” (MORTATTI, 2006, p. 02).
A tarefa escolar de garantir aos alunos a aquisição da língua escrita não é,
portanto, uma tarefa recente. Da mesma forma, a garantia efetiva de que os alunos
se apropriem do sistema de escrita não é, segundo Mortatti (2006), desafio exclusivo
de nossa época. A relação entre a escola e a alfabetização vem sendo questionada,
de maneira especial nas últimas duas décadas, em decorrência da dificuldade que
tem se apresentado em garantir tal aprendizagem (MORTATTI, 2006). A
problemática, de acordo com a autora, é “explicada como problema decorrente, ora
do método de ensino, ora do aluno, ora do professor, ora do sistema escolar, ora
das condições sociais, ora de políticas públicas [...]” (MORTATTI, 2006, p. 03).
Neste contexto, a questão da aquisição da língua escrita vem sendo objeto de
inúmeras discussões ao longo dos anos. Em meio a essas discussões surge, de
acordo com Soares (2004), na década de 1980, as discussões sobre a ideia do
Letramento e os debates que o envolvem. O letramento se refere às funções
sociais da língua escrita (SOARES, 2004) e, assim, à preocupação de que a
aprendizagem da língua tenha o propósito de prover ao aluno uma formação que
realmente lhe permita construir a língua escrita como instrumento de ação no
93
mundo, assim como que o próprio ensino da língua escrita ocorra dentro desse
contexto.
As discussões sobre Letramento trouxeram grande contribuição às questões
sobre o ensino de língua escrita, pois puseram em destaque as questões sociais,
históricas, culturais e políticas que envolvem tal processo. A meta é, em tal visão,
“alfabetizar letrando”, ou seja, ensinar o código escrito, porém tendo sempre em
vista os desdobramentos que a apropriação de tal código, e seu uso pleno, pode e
deve prover ao indivíduo enquanto sujeito.
As discussões em torno do letramento colocaram em perspectiva as práticas
de ensino de língua que se concentravam - e que por vezes ainda se concentram -
no ensino da técnica da escrita, sem considerar sua dimensão social. Tais práticas
partem do princípio que o ensino do código escrito, e sua consequente apropriação
pelo aluno, já abrirá as portas da plena inserção na cultura letrada.
Soares (2004, p. 11) defende a construção de uma prática de ensino de
língua que ocorra dentro de um contexto de letramento, porém ressalta a
importância de que não se pode desconsiderar “a natureza do objeto de
conhecimento em construção, que é, fundamentalmente, um objeto linguístico
constituído”. Diante disso, é fundamental que o trabalho para o ensino de língua
escrita seja constituído também de ações que visem trabalhar e refletir com os
alunos sobre os aspectos linguísticos, considerando tratar-se da aquisição de um
sistema convencional de escrita alfabética e ortográfica (SOARES, 2004).
Para Soares (2004), o processo chamado pela autora de aquisição inicial da
língua escrita é composto por duas vertentes: a alfabetização, que consiste no
ensino do sistema de escrita, considerando suas características linguísticas, e o
letramento, que refere-se a considerar o uso social da língua, a imersão na cultura
escrita e, assim, realizar um trabalho que permita ao aluno aprender a língua escrita
considerando tal uso. A autora defende que essas duas vertentes demandam
conhecimentos e estratégias distintas de ação e, diante disso, afirma que:
É que, diante dos precários resultados que vêm sendo obtidos, entre nós,
na aprendizagem inicial da língua escrita, com sérios reflexos ao longo de
todo o ensino fundamental, parece ser necessário rever os quadros
referenciais e os processos de ensino que têm predominado em nossas
salas de aula, e talvez reconhecer a possibilidade e mesmo a necessidade
de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente se denomina
letramento, de que são muitas as facetas – imersão das crianças na cultura
escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita,
94
portuguesa escrita ganha contornos ainda mais amplos e desafiadores, afinal, além
de continuarem presentes as questões relacionadas ao ensino de um sistema de
escrita alfabético e ao letramento, com suas características próprias e demandas de
trabalho específicas, há ainda a exigência de que a língua portuguesa seja
encarada, e ensinada, como segunda língua.
Como mencionado anteriormente, embora a língua escrita não se trate de
uma representação da língua oral e sim se refira a um sistema próprio, no processo
de aquisição da escrita, a criança ouvinte se apoia na língua oral para se apropriar
de tal sistema. Antes que possa compreender a língua escrita como um sistema
simbólico em si, a criança olhará para ela como uma representação da fala e, assim,
para a criança ouvinte, a língua oral possui um papel importante na apropriação da
escrita. A modalidade oral da língua, que até então lhe permitiu construir suas
funções psicológicas superiores, como defendido por Vygotsky, lhe permitirá agora,
também, construir o conhecimento de uma ferramenta tão importante quanto a
língua escrita.
No caso da criança surda, partindo das premissas defendidas neste trabalho
– dentre elas, a de que deve ser-lhe garantida a apropriação da Libras, como sua
primeira língua -, será a Libras, a língua da qual pode se apropriar naturalmente e a
qual lhe permite construir suas funções psicológicas superiores, que exercerá o
papel que, na criança ouvinte, fica a cargo da língua portuguesa oral. Em outras
palavras, a criança surda, usuária da Libras, terá nesta língua a ponte para chegar à
construção do conhecimento da escrita, uma vez que a Libras pode oferecer à
criança surda todas as funções que a língua oral possui no desenvolvimento da
criança ouvinte.
Com a aquisição da língua escrita, a criança passará a ter acesso a um novo
mundo de conhecimentos e possibilidades, sendo a escrita um novo instrumento de
construção e organização cognitiva. Hocevar, Castilla e Duhart (2015, p. 91, original
em espanhol, tradução nossa) afirmam que:
1 - Escreve-se com letras que não podem ser inventadas, que têm um
repertório finito e que são diferentes de números e de outros símbolos;
2 - As letras tem formatos fixos e pequenas variações produzem mudanças
em sua identidade (p, q, b, d), embora uma letra assuma formatos variados;
3 -A ordem das letras no interior da palavra não pode ser mudada;
4 - Uma letra pode se repetir no interior de uma palavra e em diferentes
palavras, ao mesmo tempo em que distintas palavras compartilham as
mesmas letras;
5 - Nem todas as letras podem ocupar certas posições no interior das
palavras e nem todas as letras podem vir juntas de quaisquer outras;
6 - As letras notam ou substituem a pauta sonora das palavras que
pronunciamos e nunca levam em conta as características físicas ou
funcionais dos referentes que substituem;
7 - As letras notam segmentos sonoros menores que as sílabas orais que
pronunciamos;
8 - As letras têm valores sonoros fixos, apesar de muitas terem mais de um
valor sonoro e certos sons poderem ser notados com mais de uma letra;
101
de tal sistema, muitas vezes a criança surda chega ao espaço escolar sem ter tido a
oportunidade de se apropriar efetivamente de um sistema linguístico, sem o domínio
da língua portuguesa oral e sem o domínio da Libras. O fato de passar tantos anos
de sua primeira infância sem ter o acesso a uma língua impacta diretamente no
desenvolvimento da criança, afinal é por meio da língua que a criança construirá
suas funções psicológicas superiores e seus conhecimentos e vivências culturais,
conforme defendido por Vygotsky.
A privação linguística da criança surda terá um importante impacto tanto nas
possibilidades das relações que estabelece com os outros, como também na
construção de seu conhecimento de mundo, o conhecimento construído de forma
incidental, nas relações cotidianas, na observação/escuta de diálogos, na
convivência com tudo aquilo que o mundo oferece e que, em grande parte das
vezes, está mediado pela linguagem. Diante disso, é importante termos clareza de
que embora igualmente capaz de aprender tanto quanto qualquer criança ouvinte,
por vezes, a criança surda que chega à escola precisará que tal espaço lhe
proporcione não somente a aquisição da Libras, mas também a oportunidade de
construir uma série de conhecimentos de mundo que até aquele momento não teve
a oportunidade de acessar, em virtude de sua privação linguística.
Sabendo que, estatisticamente, a maior parte das crianças surdas nascem em
lares de pais ouvintes, é muito comum que a família não conheça Libras, não tendo
condições de ofertar tal língua à criança surda e, sem as devidas orientações,
também não busca tal oferta em outros locais. Sem uma mesma língua para
estabelecer as relações, a família consegue auxiliar pouco a criança surda em sua
construção dos conhecimentos do mundo, tão necessários para construir-se como
pessoa e cidadão, além de fundamentais na construção do conhecimento da língua
escrita. Sánchez (2015) defende que será a escola o espaço que precisará prover
ao surdo aqueles conhecimentos que a família não pôde lhe oferecer. Fernandes
(2015a, p. 62) afirma que “como grupo minoritário, os surdos buscam na
escolarização a expectativa de incorporação social e a consequente conquista de
direitos básicos da sua cidadania”.
Para tratarmos, portanto, da questão da aprendizagem da língua portuguesa
pela pessoa surda, é fundamental que tenhamos em perspectiva os desafios que,
em geral, vem acompanhando este processo. Não se trata somente de promover o
processo de aquisição inicial da língua escrita – o que, por si só, já é um processo
103
complexo –, mas desenvolver tal atividade com crianças que, muitas vezes, estão
ainda se apropriando de sua primeira língua e que, também por vezes, chegam à
escola sem uma série de conhecimentos de mundo que a escola teria, comumente,
a expectativa de que já tivessem.
Apesar das características específicas do processo de ensino da língua
portuguesa para a criança surda, defendemos aqui a importância de que não seja
deixado de lado a questão fundamental de que se trata de uma criança que está em
seu processo de aquisição inicial da escrita (SOARES, 2004), o que significa que ela
está no processo de entender a língua escrita como um sistema simbólico e
compreender o funcionamento de tal sistema. Diante disso, é muito importante que o
professor conheça a trajetória da construção da escrita pela criança, assim como as
diversas facetas da alfabetização e do letramento, na perspectiva defendida por
Soares (2004), a fim de que possa fazer uso de estratégias diversas que procurem
dar conta da amplitude do trabalho que tem a desenvolver.
Fernandes (2015b, p. 97), ao discutir os dados observados nas produções de
crianças surdas em fase de aquisição inicial da língua escrita12, afirma que:
12
Por meio do Projeto “Surdez e Bilinguismo: leitura de mundo e mundo da leitura”, desenvolvido no
Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), sob a coordenação de Fernandes e Rios. As
crianças observadas em tal projeto não faziam uso da língua portuguesa oral, somente da Libras.
104
escrita de uma língua que não é mesma que lhe constitui cognitivamente traz para a
criança surda grandes desafios para se apropriar do sistema de escrita, afinal a
organização das duas línguas é distinta.
Quadros e Schmiedt (2006) defendem que é de extrema importância que a
criança surda interaja com a escrita alfabética durante seu processo de aquisição
inicial da língua escrita, a fim de buscar um resultado mais efetivo. As autoras
defendem, porém, que “esse processo ocorreria de forma mais eficaz se a criança
fosse alfabetizada na sua própria língua.” (QUADROS; SCHMIEDT, 2006, p. 30). A
escrita da língua de sinais é ainda pouco difundida no Brasil e não há legislação que
preveja a garantia de seu ensino à comunidade surda, assim, a criança surda não
tem a oportunidade de compreender o que é a escrita a partir da apropriação do
sistema escrito de sua primeira língua, para depois se apropriar da escrita da língua
portuguesa como segunda língua – o que, defendemos, é algo de extrema
importância. A criança surda tem o desafio de compreender o que é a escrita a partir
de uma língua que é, para ela, sua segunda língua. Assim, o acesso à língua escrita
precisará ocorrer recorrendo à visualidade do sistema de escrita, que é, diferente da
oralidade, totalmente acessível à criança surda.
A Libras, língua natural dos surdos, é uma língua viso-espacial e possui uma
organização sintática própria, sendo assim, ao aprender a língua portuguesa escrita,
a criança surda não precisará somente aprender a transcrever palavras para a forma
escrita. Ela precisará aprender também o esquema sintático da língua portuguesa,
que é diferente da Libras. No caso da criança ouvinte que está em processo de
alfabetização, por já utilizar a língua portuguesa em sua forma oral, tal criança já se
apropriou da estrutura de uso dessa língua. Já a criança surda, usuária da Libras
como primeira língua, conhece a estrutura linguística de Libras, assim, para
aprender a língua portuguesa escrita, ela precisará também entender que está
aprendendo uma língua diferente da sua e que isso tem implicações na organização
da escrita.
Fernandes (2015a, p. 66) afirma que, no processo de aprendizagem da
pessoa surda, a Libras tem o papel da “internalização de significados, conceitos,
valores e conhecimentos”, sendo ela também a que “servirá como suporte cognitivo
para a aprendizagem de um sistema de signos”, no caso, o sistema escrito. No que
se refere ao processo de alfabetização da criança surda, Peixoto (2006, p. 205) diz:
105
Por mais ingênuo que possa parecer, para produzir um texto (em qualquer
modalidade) é preciso que:
a) se tenha o que dizer;
b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para
quem diz [...];
e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d).
107
da língua oral, é fundamental que o aluno possa ter acesso não somente a um
grande repertório de textos, mas principalmente que o professor faça uma boa
seleção dos textos que utilizará, pois como argumenta Fernandes (2006b, p. 17) “[...]
o professor deve estar ciente de que o conhecimento mais amplo ou mais reduzido
do que seja o português dependerá da seleção dos textos que ele trouxer para a
sala de aula”.
Fernandes (2006b) propõe como estratégia metodológica para o trabalho com
textos com os alunos surdos, a criação do roteiro de leitura, com o objetivo de
permitir ao aluno o olhar às principais ideias do texto trabalhado, selecionando
informações importantes para que possa compreendê-lo. De acordo com Fernandes
(2006b, p. 19):
na fase inicial de aquisição da escrita. Diante disso, a autora propõe que o professor
busque por textos ricos em imagens como fotografias, desenhos, caricaturas,
cartazes, outdoors, folhetos, informativos, revistas, jornais, gibis, programas de TV e
filmes (legendados, preferencialmente), dentre outros. Como o objetivo final é o de
que o aluno reconheça significado na língua escrita, dela se apropriando, Fernandes
(2006b) destaca a importância de que o material utilizado possua, de fato, texto
escrito e não somente imagens.
A ideia do momento da contextualização do texto é a de que o aluno, por
meio das “pistas” apresentadas nas imagens relacionadas possa construir ideias a
respeito do que é dito ali, por meio da língua escrita. O professor deve ser o
mediador de tal construção realizando perguntas norteadoras, que auxiliem o aluno
a se aproximar do que está expresso no texto escrito (FERNANDES, 2006b). O
planejamento de tais perguntas é algo essencial, uma vez que elas deverão conduzir
o aluno às questões de destaque dentro do texto, previamente analisadas pelo
professor. Fernandes (2006b) destaca a importância de tal etapa, para evitar que o
aluno realize uma leitura que se refira simplesmente a sinalizar cada palavra e que
não gera, ao final, interpretação do texto em si.
Na etapa exploração do conhecimento prévio e de elementos
intertextuais, a proposta é que o aluno “‘leia’ sem compromissos com a
‘decodificação’ das palavras” (FERNANDES, 2006b, p. 21). A partir do que foi
explorado na etapa anterior, o aluno, com o auxílio do professor, poderá associar as
informações levantadas com ideias, experiências pessoais e atividades já
vivenciadas. A associação com outros textos já lidos, à apresentação do texto – que
pode se referir a um gênero já trabalhado anteriormente -, ao autor – que também já
pode ter sido apresentado – são questões que podem ser trabalhadas. É
fundamental que o professor conduza o processo para evitar que a discussão se
perca, em meio a tantas situações/questões que podem se apresentar, tendo em
foco a compreensão das ideias do texto que está sendo trabalhado (FERNANDES,
2006b).
A etapa da identificação de elementos textuais e paratextuais é, de acordo
com Fernandes (2006b), um dos elementos mais importantes para a construção da
leitura dos alunos, pois lhes dará o suporte necessário para que possam
compreender o texto. Este é momento em que será realizado um olhar com maior
“‘refinamento’ das informações visuais que chegam sob a forma de hipóteses e
111
passo da etapa representa a maior dificuldade até então, “pois exige que o professor
tenha clareza em relação à diferença entre conhecer as regras de funcionamento da
língua e teoria gramatical.” (FERNANDES, 2006b, p. 23).
O terceiro aspecto, proposto por Fernandes (2006b) refere-se ao olhar
dedicado aos elementos paratextuais e a função que exercem, inserindo o texto
trabalhado em determinada tipologia, gênero e em um determinado nível de
formalidade. Elementos como pontuação, organização do texto – verso ou prosa –,
palavras/expressões em destaque, notas de rodapé, formato das letras, uso das
letras maiúsculas e minúsculas, também fazem parte dos aspectos paratextuais que
devem ser explorados e que podem auxiliar o aluno na compreensão do texto
(FERNANDES, 2006b). Mais uma vez, o planejamento e preparo do professor são
extremamente importantes, em especial no que se refere ao seu conhecimento da
Libras.
É essencial que o professor que atua na educação bilíngue de estudantes
surdos, e que realiza o trabalho de ensino de língua portuguesa a tal público,
conheça bem a língua portuguesa em seus diversos aspectos – sintáticos,
semânticos, ortográficos, de organização textual. É essencial, também, que conheça
bem a Libras, em seus diversos aspectos, além de ter fluência em tal língua. Quanto
melhor o professor conhecer a estrutura e uso de ambas as línguas, mais terá
condições de, no trabalho de ensino da língua portuguesa escrita, além de debater
as ideias, apresentar e discutir os elementos do texto escrito, inclusive contrastando-
os com a Libras.
A leitura individual e discussão das hipóteses de leitura no grupo refere-
se, de acordo com a proposta de Fernandes (2006b), ao momento em que o aluno
procurará ler, “de fato”, o texto. As etapas anteriores, do roteiro proposto por
Fernandes, permitem a contextualização, observação de elementos, descoberta de
novas palavras e a criação de hipóteses de leitura. Tendo por recurso tudo que foi
construído, nessa etapa, a autora defende que o aluno terá certa autonomia para
leitura do texto. Fernandes (2006b) afirma que, nesta etapa é comum que os alunos
recorram ao roteiro registrado no quadro, buscando elementos que se relacionem
com o que estão identificando no texto. A autora defende que toda a construção
necessária para a chegada a tal etapa minimiza a prática de leitura que leva o aluno
a ler palavras isoladas, auxiliando-o a buscar a leitura a partir de trechos do texto,
113
que possuem sentido, nos quais estão incorporados elementos coesivos do texto,
como preposições, que individualmente não fariam sentido ao aluno.
Posteriormente à leitura individual do aluno, Fernandes (2006b) defende a
necessidade de que seja verificada a compreensão que o aluno teve do texto. A
autora defende que isso pode ser feito de diversas maneiras, como “[...] fazendo
perguntas diretas, retomando o roteiro de leitura registrado inicialmente no quadro e
questionando a que parte do texto se refere, solicitando aos alunos a leitura de
trechos para a turma [...]” (FERNANDES, 2006b, p. 25), dentre outras possibilidades.
Tal etapa é, segunda a autora, essencial, pois permitirá não somente verificar a
compreensão do texto pelos alunos, como também valorizar o trabalho de leitura
individual que foi realizado.
A última etapa do roteiro proposto por Fernandes (2006b) é a (Re)elaboração
escrita com vistas à sistematização e parte do princípio, defendido pela autora, de
que leitura e escrita são indissociáveis. Sendo assim, a autora defende a proposta
escrita como a etapa final de tal roteiro, uma vez que, tendo realizado as diversas
etapas anteriores, o aluno terá tido a oportunidade de explorar o tema, construindo
um repertório sobre ele. Para além da construção de repertório prévio, a autora
defende a proposta de produções escritas de maneira contextual e significativa,
afirmando que:
Como discutido por Pereira (2014), portanto, para o trabalho com o texto é
importante que o professor trabalhe as ideias ali expressas previamente na língua de
sinais, para que o aluno possa se familiarizar com o que está sendo dito ali. Cabe ao
professor construir a ponte entre as duas línguas para os alunos, auxiliando-os a
relacioná-las, percebendo que são diferentes e, portanto, apresentam formas
diferentes de construir uma mesma ideia.
Destacamos o que é apontado por Pereira (2014) quanto à importância de
que o professor, ao trabalhar o ensino da língua portuguesa com estudante surdos,
tendo a Libras como língua mediadora, o faça dentro de uma perspectiva
contrastiva, ou seja, tendo como parte da atividade evidenciar as semelhanças e as
115
diferenças entre ambas as línguas. Com isso, o professor permite ao aluno conhecer
e se apropriar da forma como algo é expresso em ambas as línguas, assim como
que o estudante vá tendo repertório para construir hipóteses sobre o funcionamento
também de ambas a línguas.
Pereira (2009) defende que o foco do trabalho deve estar no campo
semântico, como é proposto na concepção discursiva da língua, sendo o foco do
trabalho, portanto, não a compreensão de cada item e das estruturas gramaticais,
mas sim a compreensão do texto e das ideias que ele expressa. Nesse sentido, é
essencial a primeira etapa do trabalho proposto, a tradução para a Libras, pois é a
partir desse primeiro passo que o aluno poderá significar aquelas ideias, delas se
apropriando e relacionando com aquilo que já conhece, para poder associá-las com
a nova língua que está construindo.
O Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua
Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa (BRASIL, 2013), reforça o status de
segunda língua da língua portuguesa para os surdos e, assim, defende a
importância de que sejam utilizadas metodologias de ensino de segunda língua,
ressaltando a importância de que sejam desenvolvidas metodologias que pensem o
ensino de segunda língua em se tratando de línguas de modalidades distintas, que é
o caso da Libras, que é viso-espacial, e da língua portuguesa, que é oral-auditiva.
O mesmo relatório ressalta a importância da formação docente a fim de que
possam ser construídos métodos que consigam dar conta da construção de um
desempenho adequado na língua escrita por parte dos surdos, porém aponta que
algumas questões precisam ser consideradas, como o fato de que há poucos
docentes doutores e mestres no ensino da língua portuguesa como segunda língua
para os surdos e a importância de que as abordagens, os métodos e as técnicas
adequados para o ensino de L2 “devem ter como ponto de partida as competências
e as habilidades, exigidas em qualquer avaliação a que se submetem os brasileiros
que querem avançar no conhecimento e nos saberes, exigidos pelo mercado de
trabalho.” (BRASIL, 2013, p. 12).
Sánchez (2015, p. 43, original em espanhol, tradução nossa) também reforça
a importância da formação de professores para o avanço da educação de surdos
afirmando que:
116
[...] ainda que possam conhecer muito sobre a surdez, sobretudo sobre a
surdez como deficiência auditiva, os educadores de surdos conhecem
pouco sobre a língua escrita, não tiveram a oportunidade de estudar a
língua escrita como objeto de conhecimento, como expressão de uma
prática social, como instrumento privilegiado da linguagem para o
desenvolvimento cognitivo, como uma língua própria para acessar também
os conhecimentos particulares, porque eles a concebem tradicionalmente
como uma disciplina escolar.
13
Para preservar a identidade dos participantes, o número da lei em questão não será mencionado,
sendo a referência a ela feita a partir do termo Lei Municipal.
14
Para preservar a identidade dos participantes, no decorrer do trabalho e nas referências, será
utilizado o termo XXXXXX para nos referirmos ao município em estudo.
118
15
Grifo original do documento.
16
Além do documento publicado pelo município em 2011, esse histórico do atendimento aos
estudantes surdos foi trazido nas coletas de dados com professores participantes da pesquisa, que
atuam na rede pesquisada há diversos anos e acompanharam esse processo.
119
– EJA. Para a matrícula nas classes em questão, cabe ao responsável pelo aluno,
ou ao próprio aluno, se for civilmente capaz, solicitar o atendimento na classe de
educação bilíngue. A efetivação da matrícula exige a apresentação de um laudo de
audiometria que comprove a surdez e uma sondagem com o professor, devidamente
habilitado, regente da classe bilíngue. Unidades escolares que não possuem classe
bilíngue devem orientar o responsável a se encaminhar para a escola mais próxima,
dentre as que oferecem esse atendimento, e que hoje são as três unidades
mencionadas.
A Lei Municipal (XXXXXXX, 2019) reafirma o proposto nas demais legislações
vigentes referentes à educação de Surdos: o direito ao atendimento bilíngue,
proposta em que a Libras é considerada a primeira língua e a língua portuguesa, a
segunda língua. O mesmo documento (XXXXXXX, 2019) afirma:
Dessa forma, vemos que a proposta da rede está em consonância com o que
temos discutido e defendido até o momento com relação à educação de surdos.
Considerando tais proposições, uma das afirmações da lei acima mencionada
refere-se à exigência de ações que busquem garantir a aprendizagem de Libras não
somente por parte dos estudantes, mas também de suas famílias desde a Educação
Infantil e para aqueles que, por algum motivo, tiveram contato tardio com a Libras.
A Lei Municipal (XXXXXXX, 2019) não faz menção quanto à formação exigida
para que o professor seja considerado habilitado a atuar nas classes bilíngues.
Encontramos menção ao professor no documento curricular próprio da rede
investigada, chamado “Quadro de Saberes Necessários” (QSN), o qual faz parte de
nosso tripé de dados, que será apresentado no capítulo de análise. O QSN
(XXXXXXX (SP), 2019, p. 52) refere-se ao profissional que deve atuar nas classes
bilíngues afirmando que “[...] para o trabalho docente nas classes bilíngues, é
imprescindível a presença de professores bilíngues, com proficiência tanto na Libras
120
quanto na Língua Portuguesa [...]”, entretanto, o documento não faz menção sobre
como deve ser comprovada a proficiência exigida ou se é necessário comprovar
alguma formação específica.
No que se refere à organização curricular das Classes de Educação Bilíngue
para Surdos, a Lei Municipal (XXXXXXX, 2019) determina que ela deverá seguir os
componentes na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e a Proposta Curricular
da própria Rede.
dos diretores das escolas e dos demais participantes. O documento foi retirado pela
pesquisadora, a fim de poder ser apresentado às escolas.
Com a autorização da Secretaria de Educação em mãos, novamente foi
realizado contato com as três escolas, através de suas coordenadoras. Foi
agendada uma conversa pessoal com cada uma delas e, se fosse possível, também
os professores das classes bilíngues de cada escola. Sabendo, por informação
prévia das coordenadoras, a quantidade de turmas e professores bilíngues de cada
escola, a pesquisadora dirigiu-se, em datas distintas, a cada escola, levando consigo
a carta de autorização da Secretaria de Educação – também os demais documentos
apresentados no pedido, caso desejassem verificar –, além dos Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido para apresentação aos professores participantes,
assim como o Termo de Autorização Institucional para o desenvolvimento da
pesquisa, a ser assinado pela Direção da escola.
É importante esclarecermos que tal pesquisa foi também autorizada pelo
Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para o qual, além do projeto de pesquisa e modelos
dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, foram apresentadas as devidas
autorizações institucionais concordando com a realização da pesquisa.
Escola A
O contato com a escola ocorreu inicialmente com a coordenadora e, no dia
agendado para a conversa pessoal, a pesquisadora foi recebida por ela. A proposta
de pesquisa, os documentos e termos de consentimento foram apresentados e a
coordenadora, que foi muito gentil e prestativa durante todo o contato, se dispôs a já
levar o Termo de Autorização Institucional para o desenvolvimento da pesquisa para
assinatura da direção. A escola funciona em quatro turnos – Manhã (7h às 11h),
Intermediário (11h às 15h), Tarde (15h às 19h) e Noturno (19h às 23h) - e possui
duas turmas de educação bilíngue. Uma das turmas é ofertada no turno
122
Escola B
recentemente. Dessa forma, a turma possui uma professora, que tem auxílio de uma
estagiária. A segunda turma é ofertada no período da Tarde e atende alunos no final
da Educação Infantil, 1º e 2º anos do Ensino Fundamental. A turma possui duas
professoras. As três professoras atuantes nas classes bilíngues aceitaram participar
da pesquisa. O ano de 2020 foi o primeiro ano em que a Escola B ofertou classes
bilíngues de educação de surdos.
A escola localiza-se em uma região periférica da cidade e, segundo dados na
página da Secretaria de Educação do município, referentes a agosto de 2021, a
escola atende um total de 863 alunos. A escola possui 13 turmas no período da
manhã, 13 a tarde e 3 a noite, considerando todas as turmas existentes, de
Educação Infantil, Ensino Fundamental e EJA. A escola possui 26 professores de
Educação básica.
A Escola B recebe alunos surdos cuja moradia seja mais próxima a ela do
que das outras duas escolas polo. Todos os estudantes surdos têm direito ao
transporte escolar gratuito oferecido pela própria rede. No ano de 2020, a escola
atendeu, em suas classes bilíngues, 17 alunos, 8 no período da manhã e 8 no
período da tarde. As classes preveem o atendimento de até 12 alunos.
O trabalho com os diversos componentes curriculares, ministrados pelos
professores das turmas, é distribuído ao longo da semana, sendo, em geral,
trabalhado um componente por dia. Além das aulas com os professores bilíngues,
os estudantes surdos têm semanalmente aula de Inglês, Educação Física e Arte. Em
tais momentos, os professores bilíngues estão presentes e realizam a mediação da
comunicação entre os professores ouvintes e os estudantes surdos. Tal como na
Escola A, o contato com os demais estudantes da unidade escolar, ouvintes, ocorre
em momentos não programados do dia a dia, no contato diário pela escola, e em
momentos programados, como atividades didáticas realizadas conjunta e
periodicamente com as diversas turmas e em horários de intervalos e refeições que
são conjuntos também.
Escola C
conversar diretamente com uma das professoras bilíngues da escola. A escola, que
atende em dois turnos - Manhã (7h às 12h) e Tarde (13h às 18h) - possui uma turma
de educação bilíngue que atende alunos do 1º ao 5º anos do Ensino Fundamental e
é ofertada no período da manhã. A turma possui duas professoras. A conversa foi
feita com uma das professoras, para a qual foi apresentada a proposta da pesquisa
e os documentos. Tal professora manifestou o interesse em participar e prontificou-
se a conversar, posteriormente, com a outra professora e verificar se ela teria
interesse em participar. Em contato posterior, a professora com a qual a conversa
ocorreu informou que outra professora não tinha interesse em participar.
No dia do contato inicial, a professora já levou à direção o Termo de
Autorização Institucional para o desenvolvimento da pesquisa para assinatura e
ficou com o termo de consentimento e o questionário para preenchimento. Tais
documentos foram retirados pela pesquisadora, com a professora, algumas
semanas depois.
A escola localiza-se em uma região periférica da cidade e, segundo dados na
página da Secretaria de Educação do município, referentes a agosto de 2021, a
escola atende um total de 1346 alunos. A escola possui 22 turmas no período da
manhã e 22 no período da tarde, considerando todas as turmas existentes, de
Educação Infantil e Ensino Fundamental. A escola possui 44 professores de
Educação básica.
A Escola C recebe alunos surdos cuja moradia seja mais próxima a ela do
que das outras duas escolas polo. Todos os estudantes surdos têm direito ao
transporte escolar gratuito oferecido pela própria rede. No ano de 2020, a escola
atendeu, em sua classe bilíngue, 11 alunos, todos na única classe, no período da
manhã. A classe prevê o atendimento de até 12 alunos. É importante destacar que,
citamos anteriormente documento produzido pela rede, publicado em 2011, o qual
relatava o desenvolvimento de projeto de atendimento aos surdos chamado M.A.I.S,
e que era aplicado em duas escolas, de acordo com o documento. A Escola C era
uma das escolas nas quais o projeto era desenvolvido.
O trabalho com os diversos componentes curriculares ministrados pelas
professoras das turmas é distribuído ao longo da semana, sendo, em geral,
trabalhado um componente por dia. Além das aulas com os professores bilíngues,
os estudantes surdos têm semanalmente aula de Inglês, Educação Física e Arte. Em
tais momentos, os professores bilíngues estão presentes e realizam a mediação da
126
Escola A
Escola B
Escola C
Quem pesquisa tem uma intencionalidade, que vai além da mera busca de
informações: pretende criar uma situação de confiança para que o
entrevistado se abra, pretende passar uma imagem de credibilidade e quer
que o interlocutor colabore, trazendo dados relevantes para sua pesquisa. A
concordância em participar, como “informante”, de uma pesquisa, já é
indicador também de uma intencionalidade por parte do entrevistado – pelo
menos a de ser ouvido, acreditado e considerado, o que caracteriza o
caráter ativo de sua participação como desenvolvimento de modos de
influenciar o interlocutor.
Para que o processo proposto possa ocorrer e, a partir dele, seja de fato
possível emergir as perspectivas, visões, valores e ideias do entrevistado,
Szymanski (2000) reforça a essencialidade de que os objetivos da entrevista sejam
claros. Que seja claro, dentro do processo, quais são as informações que se
pretende obter. É essencial que o pesquisador tenha clareza quanto ao que está
buscando, para que seja possível construir uma real interação com seu interlocutor,
assim como para que o pesquisador possa conduzir a entrevista de maneira
adequada e diretiva para alcançar seus objetivos. O pesquisador precisa ter clareza
quanto aos seus objetivos, buscando em seu processo responder ao seu problema
de pesquisa.
No que se refere ao entrevistado, Szymanski (2011) destaca que o momento
da entrevista é um momento de organização das ideias, dando-lhe a oportunidade
de olhar sua experiência e construir um discurso sobre ela. Esse pode ser um
momento de primeira oportunidade, e talvez única, de que ele possa ser, de fato,
ouvido, construindo sua própria narrativa, expondo sua visão e tendo o
136
Quem entrevista tem informações e procura outras, assim como aquele que
é entrevistado também processa um conjunto de conhecimentos e pré-
conceitos sobre o entrevistador, organizando suas respostas para aquela
situação. A intencionalidade do pesquisador vai além da mera busca de
informações; pretende criar uma situação de confiabilidade para que o
entrevistado se abra. Deseja instaurar credibilidade e quer que o interlocutor
colabore, trazendo dados relevantes para seu trabalho. A concordância do
entrevistado em colaborar na pesquisa já denota sua intencionalidade –
pelo menos a de ser ouvido e considerado verdadeiro no que diz -, o que
caracteriza o caráter ativo de sua participação, levando-se em conta que
também ele desenvolve atitudes de modo a influenciar o entrevistador.
para que este esclareça as dúvidas que tiver a respeito de todos esses elementos.
Um ponto muito importante, apontado por Szymanski (2011), é a necessidade de
que o pesquisador tenha em perspectiva que o entrevistado se encontra em um
determinado contexto sociocultural, o que tem um impacto nas informações que
serão trazidas. Diante disso, é essencial levantar algumas informações a respeito da
“cultura do grupo ou a instituição onde se vai desenvolver o trabalho.” (SZYMANSKI,
2011, p. 25).
A segunda etapa do processo refere-se à condução da entrevista, processo
que, dentro da proposta metodológica da Entrevista Reflexiva, impõe algumas
exigências. Szymanski (2011) chama o primeiro momento da entrevista de
Aquecimento. Tal momento refere-se à fase inicial da entrevista, momento no qual
se deve procurar estabelecer um clima mais informal, no qual uma apresentação
mais pessoal pode também ocorrer. É nesse momento que o pesquisar buscará
saber os dados a respeito do participante. A autora cita, como exemplo, algum
estudo que seja desenvolvido com professores, tipo de estudo no qual é essencial
buscar, neste momento inicial, conhecer a formação dos professores, seu tempo de
magistério, uma visão sobre sua trajetória profissional, afinal todas essas
informações são altamente pertinentes para que o pesquisador possa conhecer
melhor seu entrevistado e entender aquilo que ele trará à tona.
Após o momento de Aquecimento, é apresentada a pergunta
desencadeadora, a partir da qual a entrevista começará a ser construída. De acordo
com Szymanski (2011, p. 29):
essencial que a pergunta seja elaborada em uma linguagem que seja compreensível
para o participante, além disso, ela não pode ser construída de forma que induza
determinadas respostas por parte do entrevistado (SZYMANSKI, 2011).
Considerando os objetivos que pretendem ser atingidos por essa pesquisa, sendo o
primeiro deles conhecer a trajetória formativa dos professores participantes com
relação ao ensino de língua portuguesa como segunda língua para surdos e se eles
consideram que essa formação lhes deu o respaldo necessário à execução dessa
demanda, o que exige, em um primeiro momento, a narrativa desse processo, como
pergunta desencadeadora, propomos aos participantes: “Como você vê a questão
do ensino de língua portuguesa como segunda língua para surdos e como a sua
formação se encaixa dentro desta visão?”.
Ao longo do processo da entrevista, Szymanski (2011) aponta que cabe ao
pesquisador ir demonstrando ao entrevistado que está compreendendo seu
discurso. Não se trata, neste momento, de construir e expor interpretações a
respeito daquilo que está sendo dito, mas sim de demonstrar que as informações
trazidas estão sendo entendidas, a partir de um caráter descritivo e de síntese. O
pesquisador aponta sua compreensão da fala do entrevistado em suas próprias
palavras. Tal descrição de compreensão pode trazer também, de acordo com
Szymanski (2011), elementos não verbais como, por exemplo, algum tom mais
emocional relacionado a algo. A autora aponta que a realização do referido
procedimento, além de indicar a compreensão do discurso, auxilia para que o
pesquisador consiga manter em perspectiva o foco do problema que está sendo
pesquisado. De acordo com Szymanski (2011, p. 43), a atuação do pesquisador
pode ocorrer de diferentes maneiras: “elaborando sínteses, formulando questões de
esclarecimento, questões focalizadoras, questões de aprofundamento”.
A próxima etapa do desenvolvimento da pesquisa, a partir da metodologia
que temos apresentado, refere-se à Devolução, e é um passo muito importante
dentro da proposta do processo da Entrevista Reflexiva. Tal etapa refere-se,
conforme descrito por Szymanski (2011, p. 55), à exposição posterior “da
compreensão do entrevistador sobre a experiência relatada pelo entrevistado, e tal
procedimento pode ser considerado como um cuidado em equilibrar as relações de
poder da situação de pesquisa”. Para realizar esta etapa, Szymanski (2011) afirma
que podem ser apresentadas ao entrevistado tanto a transcrição da entrevista,
quanto a pré-análise do pesquisador referente a tais dados. A partir desse acesso, é
139
vai sendo construída uma compreensão do que está sendo investigado e tal
compreensão se aprofunda durante a etapa de análise em si. É importante ter em
vista que “A análise de dados implica a compreensão da maneira como o fenômeno
se insere no contexto do qual faz parte. Este inclui interrupções, clima emocional,
imprevistos e a introdução de novos elementos.” (SZYMANSKY; ALMEIDA;
PRANDINI, 2011, p. 75). Diante dessa perspectiva, as autoras defendem ser
fundamental a prática de um registro contínuo, ou seja, que as impressões,
sentimentos, percepções com as quais o pesquisador vai se deparando ao longo da
entrevista sejam anotadas o quanto antes for possível, para que não se percam e
possam ser trazidas pelo pesquisador em sua apresentação.
Outros dois pontos importantes dentro do processo de análise referem-se à
transcrição e ao texto de referência (SZYMANSKY; ALMEIDA; PRANDINI, 2011).
A transcrição refere-se ao primeiro registro escrito da fala do entrevistado e que
deve ser feito, tanto quanto for possível, o mais fiel a como foi expressa. É um
exercício que exige esforço e cuidado, afinal trata-se da passagem de um código
(oral) para outro (escrito). A partir da transcrição, constrói-se o texto de referência
que se trata de uma segunda versão do texto, na qual é realizada a “limpeza dos
vícios de linguagem e do texto grafado, segundo as normas ortográficas e de sintaxe
(quando não se tratar de um estudo cujo foco principal seja a construção da
linguagem)” (SZYMANSKY; ALMEIDA; PRANDINI, 2011, p. 77), porém é importante
que termos utilizados não sejam substituídos. Com relação a estes dois processos,
Szymanski, Almeida e Prandini (2011, p. 77) afirmam que:
17
EDAC é uma habilitação oferecida dentro do curso de Pedagogia, que existia à época da formação,
que significa Educação de Deficientes da Audiocomunicação.
148
que atuam nela, de fato, a conhecerem, validarem e atuarem prol dela. Através das
entrevistas realizadas, foi possível trazer a visão dos professores participantes a
respeito do que é a qual a importância da língua portuguesa para os surdos.
Nas falas dos professores participantes, a língua portuguesa é reconhecida
como segunda língua para os estudantes surdos e, com isso, há a explicitação de
que existe a demanda de um trabalho específico para o seu ensino, incluindo o fato
de que o estudante precisa conhecer a Libras, como podemos ver nas falas abaixo:
Enquanto ele não tiver a Libras, enquanto ele não tiver em casa essa
comunicação em Libras, não vai ter o Português.
Porque daí, quando ele tiver o conhecimento de mundo dele, por meio das
mãos, e tiver tudo muito claro, aí você insere o Português.” (BRUNA).
Eu acredito que eles, primeiro, têm que significar aquilo, que eles têm que
ver na função social da escrita, que eles não têm que ver as atividades
escritas somente porque a professora está mandando escrever, né? Então,
eu sempre tentei trabalhar com um letramento em que eles conseguissem
perceber, sabe? O letramento em si. Deles perceberem o que o rodeia e
deles quererem registrar aquilo com alguma função.” (BEATRIZ).
Como afirma Colello (2017, p. 36), “[...] o desafio que hoje se coloca às
escolas é a formação do homem consciente, crítico e produtivo” e, nesse percurso, o
domínio da língua escrita é uma peça-chave, em uma sociedade como a nossa.
Assim, garantir ao estudante a possibilidade de se apropriar plenamente da língua
escrita é uma das importantes garantias que contribuem para ampliar as
possibilidades de acesso aos diversos conhecimentos produzidos socialmente. Um
trabalho desenvolvido na perspectiva do letramento, que é o proposto no QSN, tal
como defendido por Soares (2004), no qual se defende a imersão das crianças na
cultura escrita, participação em experiências variadas com a leitura e a escrita,
conhecimento e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito é um
caminho propício para alcançar tal objetivo.
Vygotsky (2007) afirma que a aprendizagem da língua escrita exige um
treinamento artificial, o qual requer bastante esforço, tanto dos professores, quanto
dos alunos. Essa ideia vale para os estudantes ouvintes e surdos, com o destaque
que, para os segundos, o fato de se tratar de sua segunda língua faz com que o
processo seja ainda mais complexo, o que exige, como já foi dito, um trabalho
específico. Ao reconhecer a importância de se apropriar da língua portuguesa escrita
e também reconhecer a língua portuguesa como segunda língua para os surdos, os
professores apontam essas especificidades e a necessidade de um trabalho
apropriado a tal contexto. Tal trabalho vai exigir, assim, uma formação igualmente
apropriada.
Também por meio da entrevista, considerando o trabalho que têm a
desempenhar, foi possível levantar o olhar dos professores quanto às dificuldades e
155
barreiras para que consigam ensinar língua portuguesa como segunda língua para
os estudantes surdos.
Algo recorrente nas falas de todos os participantes refere-se à chegada dos
estudantes surdos à classe bilíngue sem terem se apropriado da Libras. Apontada
como uma das principais barreiras que os professores precisam transpor para
desenvolver o trabalho com os estudantes surdos, a não apropriação da língua de
sinais pelos estudantes decorre, em geral, de questões similares para todos os
estudantes. São crianças que, em geral, nasceram em lares ouvintes e para as
quais a família, por desconhecimento, impossibilidade ou, por vezes, escolha, não
promoveu o contato com a Libras. Em decorrência do não acesso à Libras e da
impossibilidade de se apropriar da língua portuguesa no convívio com outras
pessoas, como acontece com ouvintes, tais crianças chegam à escola sem uma
língua constituída, cabendo ao espaço escolar lhe oportunizar isso. As falas a seguir
refletem tal questão:
São crianças que chegam para a gente sem a Língua de Sinais, né? Não
tem como você ensinar a Língua Portuguesa antes da criança associar,
entender e usar a Língua de Sinais.
E sendo que muitas vezes a gente recebe crianças que já tá com 10 anos
de idade, 13 anos de idade, e não tem língua nenhuma, né? (ADRIANA).
Então, para os alunos menores que estão chegando, como eu falei, eles
estão descobrindo a sua primeira língua ainda, que é a Libras. Então,
quando um... Eu costumo falar, quando o ouvinte chega na escola, ele já
sabe nomear tudo. O que é mesa, o que é cadeira, quer ir ao banheiro, quer
beber água, seus sentimentos. E os surdos, não, né? Então, tem toda uma
construção de língua que ele tinha caseira, na casa dele, com a família dele,
para utilizar na escola. Que isso é o banheiro, que essa é a água, que ele
tem um sinal, que ele tem um nome. (ANDREIA).
Eu acho que a coisa não está resolvida, porque eu acho que, primeiro, as
crianças surdas nem sempre chegam à escola. Chegam à escola, chegam
com uma linguagem caseira, mas elas não chegam ainda com uma língua
constituída. Diante disso, a escola tem que apertar o freio de mão e cuidar
primeiro dessa primeira língua, que vai ser pro resto da vida, né?
(ALBERTO).
A gente tem que começar do zero. Ele chegando com 4 anos, com 5, com
6, com 18, como já recebi na EJA. Criança... Os jovens que não sabiam
156
nada, né? Então, se você não fizer essa construção na Libras antes, a
gente não consegue desenvolver. (BRUNA).
E o público que a gente recebe é o mais diverso. Que são os alunos que
não sabem Libras. Quanto mais o Português. Então, daí é o ponto de
partida, né? Como ele, sujeito surdo, vai ter a sua identidade, primeiro a
partir da sua língua.” (Bianca)
Porque eles precisam também, eles são de alunos, que são todos eles de
famílias ouvintes. Eles não têm a Libras em casa. Então, infelizmente, na
escola eu também preciso trabalhar Libras pra que a fluência. (BEATRIZ).
O aluno surdo, ele chega na escola sem a Língua de Sinais. Então, por
exemplo, eu tenho uma criança que chegou pra mim com 12 anos. É o
último ano dele aqui, porque a criança já vem com no... Ela fica até o quinto
ano aqui. Então, ele não tem Língua de Sinais, ele mal sabia escrever o
nome, agora que ele tá sabendo escrever o nome dele. Então, como que eu
vou alfabetizar ele no Português escrito, se ele nem sabe a Língua de
Sinais ainda? Então, nosso papel fundamental, primeiramente, é o ensino
da Libras.” (CAMILA).
Então, por mais que a gente saiba os caminhos, como utilizar, muitas vezes
há o impedimento dessa realidade aí, que a gente atua, né? Da criança
chegar com essa defasagem toda. Da gente ter que primeiro trabalhar a
Língua de Sinais com ela, trabalhar a autoestima dela como surdo. “Olha,
você é surdo”. “Ah, é? Eu sou surdo? Mas eu não queria ser”. (ADRIANA)
Então, eu fico assim ó... E infelizmente, a rede não conta com nenhum
profissional surdo para nos ajudar. Então, cabe a professora ouvinte, com a
cultura ouvinte, levar a cultura surda pra eles e ainda ter que trabalhar o
Português, sem saber realmente, sem estar inserido na cultura deles, pra
realmente ter a sensibilidade, né? De saber como fazer isso. Então, é um
desafio bem grande.
Além da família do surdo ser ouvinte, eles não têm outras pessoas pra
conversar. Então, ele só tem a mim como referência linguística. Olha... Olha
a responsabilidade, né? Tipo assim, só tem um ouvinte como referência
157
linguística. Isso é muito sério. Porque eles não têm um surdo pra se
identificar e até por mais que eu tenha fluência em Libras, ela é limitada, ela
é dentro da minha cultura. Então, eu não estou levando tudo que precisa
pra eles. (BEATRIZ)
Quadro 4 – Formação para ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para surdos –
Graduação
Professor(a) Cursou disciplina sobre o tema
Adriana Não
Andreia Não
Alberto Sim
Amélia Não
Bruna Sim
Bianca Não
Beatriz Não
Camila Não
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
A partir do Quadro 4, vemos que somente dois professores afirmam ter tido
disciplina relacionada ao ensino de língua portuguesa como segunda língua para
surdos na graduação: Professor Alberto e Professora Bruna. São estes dois
professores que cursaram o curso de Pedagogia com habilitação específica para o
trabalho com Surdos. É importante pontuar que o Professor Alberto cursa também o
curso de Pedagogia Bilíngue e indicou, em seu questionário, que dentro de tal
formação, cursou uma disciplina que tratava diretamente deste assunto e outras
duas que tratavam indiretamente. Os demais seis professores não tiveram, na
graduação, nenhuma formação relacionada ao tema, nem mesmo a Professora
Bianca, cuja formação é de licenciatura em Letras.
Como mencionamos anteriormente, o estudo produzido por Gatti e Nunes
(2009), que promoveu o estudo dos currículos e das ementas de 71 cursos de
Pedagogia, constataram que somente cerca de 30% da carga horária formativa é
dedicada ao que seria específico da formação docente, sendo os 70% restante da
carga horária dedicada a outros tipos de matérias. Tal estudo demonstrou que as
matrizes dos cursos tinham pouco espaço ao que é específico do ofício docente: os
conteúdos e seus desdobramentos didático-metodológicos.
Olhando especificamente para a formação dedicada ao ensino de língua
portuguesa como segunda língua para surdos, os únicos que a receberam foram os
professores que cursaram a graduação com habilitação específica (EDAC), a qual
não é mais ofertada atualmente. Os demais não tiveram, mesmo os que concluíram
a graduação após o Decreto nº 5626/2005, que determina que o ensino da
modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua para pessoas
surdas deve ser incluído como disciplina curricular nos cursos de formação de
160
Quadro 5 – Formação para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para surdos – Pós-
Graduação Lato sensu
Cursou disciplina
Professor(a) Disciplina cursada
sobre o tema
1) Na Pós-graduação “Tradutor/Intérprete e docente de
Libras”: “Linguística aplicada: abordagens e métodos de
ensino de segunda língua;
Adriana Sim
2) Na Pós-graduação “Libras e Educação para Surdos”: “O
ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para
surdos”.
Andreia Sim Não informou
Na Pós-graduação “Educação de Surdos” – Não informou o
Alberto Sim
nome da disciplina.
Amélia Sim Não informou.
Duas disciplinas de 15 horas cada:
Bruna Sim 1) “Bilinguismo para Surdos: Aquisição L1 e L2”;
2) Métodos de Ensino de L2.
Bianca Sim Não informou.
Beatriz Sim “Ensino de Português como L2”.
Na Pós-graduação “Educação de Surdos” - Não informou o
Camila Sim
nome da disciplina.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
Quadro 6 – Em qual etapa de sua trajetória formativa considera ter recebido a formação para o
ensino de língua portuguesa como segunda língua para surdos?
Professor(a) Resposta do Professor
Adriana Na pós-graduação lato-sensu.
Andreia Na pós-graduação lato-sensu.
Na graduação, no mestrado (sobretudo na pesquisa de campo), nas
Alberto formações da Secretaria de Educação (em parceria com a Derdic), em cursos
livres buscados por conta própria.
Amélia Na pós-graduação lato-sensu.
Bruna Na graduação e em curso livre buscado no iniciativa própria.
Bianca Na pós-graduação lato-sensu.
Beatriz Na pós-graduação lato-sensu.
Camila Na pós-graduação lato-sensu.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
principal formadora neste sentido, consideram que a formação recebida não havia
sido suficiente ou de qualidade.
Para além do objetivo formativo da especialização cursada, sabemos que, no
Brasil, no que se refere à oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, há uma
grande quantidade de cursos ofertados, os quais, por vezes, podem ser de
qualidade bastante precária. Se pensarmos exclusivamente na questão da formação
dos professores para atuação com estudantes surdos – o que, obviamente, não é
única temática dos inúmeros cursos de pós-graduação lato sensu –, considerando
as respostas apresentadas no Quadro 6, é essa etapa a principal responsável pela
formação específica, habilitando grande parte dos professores para a atuação na
educação de surdos.
Nóvoa (2013) afirma que a expansão dos sistemas de ensino nas últimas
décadas teve como uma das consequências decorrentes, a entrada de diversos
professores que não foram bem-preparados. Como refletimos anteriormente, a
garantia do direito de acesso à escola para todos não veio, necessariamente,
acompanhada da garantia de uma boa formação aos professores. A necessidade de
formar muitos professores de maneira rápida abriu portas para que muitos cursos de
formação de professores bastante precários, tanto de graduação, quanto de pós-
graduação passassem a ser oferecidos. Tal questão, associada ainda às limitações
que qualquer formação possui, apresenta seus desdobramentos na prática
educativa. Investigar como se dá e buscar garantir a qualidade da formação inicial
nos parece ser imperativo, se desejamos que nossos professores estejam aptos a
realizar, com o embasamento necessário, a prática que lhes é exigida. Além disso,
garantir a continuidade de tal formação é primordial.
Por meio do questionário, também foi perguntado aos professores
participantes, se consideravam ter recebido a formação necessária para ensinar
língua portuguesa como segunda língua para surdos, pedindo que escrevessem
uma justificativa à resposta. O Quadro 7 apresenta os dados trazidos a partir de tal
pergunta.
163
Quadro 7 – Considera que recebeu a formação necessária para ensinar língua portuguesa como
segunda língua para surdos?
Professor(a) Resposta do Professor
Adriana Sim
Andreia Não
Alberto Não
Amélia Não
Bruna Sim
Bianca Não respondeu
Beatriz Não
Camila Não
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
Recebi formação mas sinto que poderia ter sido melhor ou que falta mais
informação ou práticas. Utilizo práticas que não foram ensinadas em
nenhum curso ou formação. (ADRIANA).
Sim, pois a professora era altamente qualificada, porém por não trabalhar
na área, me via perdida frente às práticas por ela mencionadas. Hoje, ou
melhor, após alguns anos em sala de surdos, tudo foi fazendo sentido.
(BRUNA).
apontado por Gatti (2013) os documentos que estabelecem diretrizes nacionais para
a formação de professores expressam que, em tal processo, teorias e práticas
devem se apresentar de forma indissociáveis, porém, segundo a autora, não é isto
que pesquisas têm evidenciado.
Como defende Tardif (2014), é importante que a formação docente tenha
grande parte de seu espaço dedicado aos conhecimentos específicos de sua
profissão. Refletir sobre a prática, exercitando seu papel de atuação e de construção
e reconstrução de tal espaço, é algo primordial dentro da formação docente. Com
isso, se faz também necessário o espaço para formação quanto às estratégias
didático-metodológicas, que o professor utilizará para ensinar, na prática, um
determinado conteúdo.
Nas falas que apresentamos a seguir, vemos que é relatado pelos
professores a quase ausência, mesmo na pós-graduação, de disciplinas que se
propusessem a trabalhar, especificamente, metodologias de ensino de língua
portuguesa como segunda língua.
Eu não vou dizer que eu estou 100% pronta. Eu considero que ainda é
insuficiente. Aquilo que é trazido, que é oferecido pela graduação, pós-
graduação, pelo menos o que eu tive, é insuficiente para a prática. Eu acho
que é bem teorizado, são escritos, né?
Então, falta sim um subsídio, eu acho, da formação, porque a formação não
fala isso pra gente. Pelo menos o que eu estudei não trouxe. Tá? Então,
não vou falar de todas as formações (ADRIANA).
A foração, ela não... Eu não tive nenhuma aula específica com relação a
língua portuguesa... Falando exatamente da Língua, eu até gostaria que
tivesse.
Não teve nenhuma matéria que tivesse esse tema também, né? Na
verdade, faz falta.
Ninguém ensinou. Não estou falando que vai ter que ter uma receita pronta.
“Ah, eu vou chegar lá e vou fazer isso, isso, isso”.
Não teve esse diálogo, sabe? Essa conversa: “professor, como que você vai
fazer essa questão?” (ANDREIA).
Tive Libras. Estava na grade, né? Porque têm algumas Pedagogias que não
tiveram. Eu tive Libras e tive Braile também. Mas não tive... Imagina, tive
Libras ainda daquele jeito. Mas nenhuma disciplina relacionada a
metodologias de ensino de Língua Portuguesa como segunda língua.
Na pós, a gente ainda via um pouquinho mais. Na pós, a gente ainda, como
era uma pós de tradução e intérprete, né? A gente ainda teve um pouquinho
mais sobre o assunto. Mas também nada muito profundo. Era uma matéria,
né? E foi também, assim... Nada de metodologia, como você ensina um
167
surdo e tal. Deu uma pincelada na Língua Portuguesa para surdo. Mas nada
específico.” (AMÉLIA).
A minha formação é em Letras. [...] Ah eu sei, tudo bem, você estudou pra
isso, até você dando uma recapitulada você lembra. Mas como que você vai
ensinar? Que recursos você vai usar? Então, acho que isso, eu não me
sinto preparada. Eu acho que todo mundo sempre tá procurando, buscando
melhorar e aprendendo.
Só teve didática de forma geral, Português não. (BIANCA).
C conta somente com uma classe de Educação Bilíngue e, sendo assim, a mesma
turma comporta alunos que vão do 1º ao 5º ano. A turma é atendida por duas
professoras: a Professora Camila e outra professora, a qual optou por não participar
da pesquisa aqui apresentada.
Dentro de sua atuação prática cabe aos professores buscar desenvolver com
os estudantes ações que os levem a construir os objetivos de aprendizagem
propostos, dentre as quais destacamos os conhecimentos relacionados a língua
portuguesa escrita, os quais são descritos no QSN (XXX, 2019). Tal documento,
como já mencionado, considerando as especificidades linguísticas dos estudantes
surdos, apresenta expectativas de aprendizagem relacionadas à língua portuguesa
específicas para os estudantes surdos. Embora o foco deste trabalho seja a questão
da formação dos professores e não as práticas de ensino, discutiremos a seguir, de
maneira geral, tais expectativas de aprendizagem, uma vez que entendemos que a
formação que os professores receberam, recebem e receberão deve lhes permitir
executar tais propostas na prática.
Para a língua portuguesa, o QSN se organiza apresentando Eixos, Saberes e
Expectativas de Aprendizagem, sendo dois os eixos: “Leitura e Recepção” e
“Produção escrita”. Os quadros abaixo apresentam a expectativas de aprendizagem
referentes ao eixo Leitura e Recepção”.
Ler palavras e outras enunciações com base em diferentes contextos e gêneros textuais.
Distinguir suportes
Reconhecer e utilizar textuais como
suportes textuais como estratégia de
Observar, explorar e conhecer suportes textuais
estratégia de antecipação da
como estratégia de antecipação da leitura com a
antecipação da leitura leitura com
mediação do educador bilíngue.
com e sem a mediação autonomia,
do educador bilíngue. atribuindo-lhes
função.
Explorar, observar e conhecer diversos gêneros Reconhecer diversos gêneros textuais com
textuais. base em sua estrutura.
174
Ler diversos gêneros textuais para buscar informações, pesquisar etc., avançando, gradativamente,
com base em suas experiências e vivências.
Identificar ideias principais em frases e diferentes Identificar as ideias principais dos diferentes
textos e gêneros textuais, com apoio dos pares e gêneros textuais, com e sem a mediação do
do educador bilíngue. educador bilíngue.
Construir compreensão global do texto lido pelo educador bilíngue, por parceiros e/ou
individualmente.
Buscar pistas textuais simples, palavras-chave e Buscar pistas textuais simples, palavras-chave
outras enunciações, com e sem a ajuda do e outras enunciações, com e sem a ajuda do
educador bilíngue para compreensão geral do educador bilíngue para compreensão geral do
texto, ampliando assim o repertório de vocabulário. texto e nas entrelinhas, ampliando assim o
repertório de vocabulário.
Explorar e realizar antecipações simples diante de Realizar antecipações mais elaboradas diante
um tema apresentado. de um tema apresentado.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora com as informações constantes no QSN – Ensino
Fundamental, 2019, p. 70.
LEITURA E RECEPÇÃO
1º E 2º ANOS 2º E 3º ANOS 3º E 4º ANOS 4º E 5º ANOS
175
Explorar e utilizar diferentes estratégias de leitura Utilizar diferentes estratégias de leitura para
para alcançar sentido em outros textos propostos, alcançar sentido em outros textos propostos,
com ajuda do educador bilíngue. com e sem ajuda do educador bilíngue.
Estabelecer relação entre o conteúdo do texto ou história lida e os conhecimentos prévios, com
mediação do educador bilíngue, ampliando significativamente o repertório
Identificar, reconhecer e ler palavras do cotidiano (em placas, rótulos etc.) com e sem mediação,
com vistas à ampliação de repertório e fluência, de forma gradativa.
Apreciar e explorar a leitura de histórias, com ou sem ilustrações, realizadas pelo educador bilíngue
e/ou pares, vivenciando emoções, estabelecendo outras identificações e exercitando a fantasia, a
imaginação e a construção imagética.
Ler, reconhecer e identificar o próprio nome, o Ler e reconhecer o próprio nome completo e
nome do educador bilíngue, dos demais colegas outros nomes relacionados ao seu cotidiano.
da turma e de familiares.
Explorar e conhecer diferentes histórias infantis da literatura surda e contos da cultura surda com ou
sem mediação do educador bilíngue.
Visualizar a leitura de textos com base na utilização de diferentes ilustrações e/ou imagens.
Escolher livros em rodas, cantos de leitura, orientando-se por diferentes critérios e informações, a
partir da mediação do educador bilíngue.
Participar e reconhecer que a Libras e a Língua Portuguesa são línguas com estruturas diferentes,
uma vez que são duas línguas diferentes, com base nas diversas interações na classe bilíngue.
177
Observar e reconhecer uma história contada por meio Identificar os conceitos que envolvem uma
de recursos multimodais e/ou relato do educador história contada por meio de recursos
bilíngue. multimodais e/ou relato do educador bilíngue.
Reconhecer a possibilidade de uso da escrita como umas das expressões da língua e da linguagem.
Com base no texto lido, estabelecer diálogos em Libras em diferentes contextos, ampliando
gradativamente o repertório e o vocabulário.
Acompanhar e visualizar a produção sinalizada com base na leitura de textos literários diversos
realizada pelo educador bilíngue e colegas surdos, apresentando a diversidade de culturas,
identificando a especificidade de sua organização interna e ampliando assim gradativamente os
desafios.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora com as informações constantes no QSN – Ensino
Fundamental, 2019, p. 72.
Acompanhar e visualizar a produção sinalizada com base na leitura, realizada por outros, de textos da
esfera jornalística (notícias e manchetes), de forma impressa e/ou eletrônica, que abordem a temática
das diferentes representações sociais, de modo a refletir e respeitar as diversidades cultural e social.
Participar de rodas de conversa baseadas em leitura Participar e interagir, de forma mais intensa e
de textos, de modo a poder expressar comentários, com repertório linguístico mais ampliado, de
opiniões e dúvidas. rodas de conversa baseadas em leitura de
textos, de modo a poder expressar comentários,
opiniões e dúvidas.
Conhecer, observar e perceber diferenças entre Reconhecer, perceber e recontar diferenças entre
histórias tradicionais e contos da cultura surda e histórias tradicionais e contos da cultura surda e
ouvinte, com auxílio e mediação do educador da cultura ouvinte.
bilíngue.
Vivenciar e observar trocas de informações sobre a Participar de forma mais ativa de trocas de
leitura de um livro (assunto, título, autor etc.), informações sobre a leitura de um livro (assunto,
aprendendo a respeitar a vez de cada pessoa nos título, autor etc.), respeitando a vez de cada
momentos de rodas de conversa e leitura. pessoa nos momentos de rodas de conversa e
leitura.
qual abrange do 1º ao 5º ano e que propõe que o estudante consiga “Ler palavras e
outras enunciações com base em diferentes contextos e gêneros textuais”.
É importante ressaltar que defendemos um processo de aprendizagem da
língua escrita dentro de uma perspectiva de letramento, a qual é a perspectiva que o
QSN afirma adotar, e, dessa forma, assumimos que é essencial que a criança tenha,
desde o início de sua trajetória escolar, a oportunidade de lidar com textos, em seus
diversos gêneros e suportes textuais. Diante disso, entendemos que realizar um
trabalho planejado com palavras, que tem como objetivo permitir à criança surda se
apropriar de um repertório elementar presente em um texto, por exemplo, não é – e
não deve ser – um fator que sirva como argumento para que a criança só lide com
palavras. O arcabouço teórico construído ao longo dos últimos anos, quanto à
aprendizagem da língua escrita, nos mostra que não faz sentido a ideia de que o
trabalho com textos só deva ser realizado com crianças já plenamente alfabetizadas,
ideia essa que, muitas vezes, também aparece na alfabetização de ouvintes.
O QSN também propõe como objetivo de aprendizagem o conhecimento de
estratégias de leitura. O documento propõe para os blocos 1º e 2º anos; 2º e 3º
anos, o seguinte: “Explorar e utilizar diferentes estratégias de leitura para alcançar
sentido em outros textos propostos, com ajuda do educador bilíngue”; para os blocos
3º e 4º anos; 4º e 5º anos, o documento descreve a seguinte expectativa: “Utilizar
diferentes estratégias de leitura para alcançar sentido em outros textos propostos,
com e sem ajuda do educador bilíngue”. Para que o professor consiga, de fato, levar
os estudantes a aprendizagem de estratégias de leitura é essencial que o próprio
professor possua tal repertório. É importante que o próprio professor tenha em sua
formação o repertório que lhe permita compreender a leitura como algo muito mais
complexo do que simplesmente uma decodificação de sinais gráficos. Para além
disso, quando pensamos no professor que atua no ambiente de educação bilíngue
de surdos, é fundamental que tal profissional possua conhecimentos de ambas as
línguas, além das estratégias que envolvem o trabalho de ensino das línguas e as
relações entre elas.
O ato de ler traz consigo a atribuição de sentidos àquilo que se lê,
compreendendo e ressignificando o texto. Ler envolve mais do que identificar as
palavras grafadas, decodificando a escrita, envolvendo também conhecimentos
sobre o conteúdo temático do texto, sobre o gênero em que ele se apresenta, sobre
as situações em que ele é empregado. Neste sentido, auxiliar os estudantes a
183
SABER: Produzir textos com coerência e coesão adequados aos seus interlocutores e aos
objetivos a que se propõe, considerando o gênero textual e respeitando a produção textual
própria e alheia.
Familiarizar-se com a escrita por meio de várias Utilizar a escrita por meio de várias formas de
formas de registro, recursos e materiais (individual, registro, recursos e materiais (individual, coletivo,
coletivo, espontâneo, desenhos, imagens etc.). espontâneo, desenhos, imagens etc.).
Conhecer e reconhecer a função social da escrita Compreender e utilizar a escrita como função
da Língua Portuguesa. social da Língua Portuguesa.
Reconhecer e escrever
o nome próprio e
utilizá-lo como Escrever o nome próprio completo e utilizá-lo como referência para a escrita.
referência para a
escrita.
Conhecer, explorar e registrar, tendo o educador Reconhecer e registrar, com ou sem a mediação
bilíngue como escriba, a estrutura composicional do educador bilíngue, a estrutura composicional
de textos presentes nas rotinas escolar e social de textos presentes nas rotinas escolar e social
(calendário, agenda, convites, regras de jogos e (calendário, agenda, convites, regras de jogos e
brincadeiras, entre outros). brincadeiras, entre outros).
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora com as informações constantes no QSN – Ensino
Fundamental, 2019, p. 74.
SABER: Produzir textos com coerência e coesão adequados aos seus interlocutores e aos
objetivos a que se propõe, considerando o gênero textual e respeitando a produção textual
própria e alheia. (continuação)
Observar e levantar hipóteses em relação à escrita de palavras e suas relações com outras palavras,
com base em um contexto, pela mediação do educador bilíngue.
Observar, explorar e Registrar, refletir e discutir coletivamente a relação, quando possível, entre
registrar coletivamente a sinal e palavra, com mediação do educador bilíngue.
relação, quando
possível, entre sinal e
palavra, com mediação
do educador bilíngue.
Rescrever coletivamente, e com a mediação do educador bilíngue, novos inícios ou finais de uma
narrativa conhecida, ampliando gradativamente a complexidade da produção.
Observar, conhecer e Registrar produções escritas por meio de diferentes tipos de letra.
registrar produções
escritas por meio de
diferentes tipos de letra.
Conhecer que textos são lidos e escritos da Reconhecer e fazer uso dos sinais de pontuação.
esquerda para a direita, de cima para baixo da
página e os sinais de pontuação do texto.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora com as informações constantes no QSN – Ensino
Fundamental, 2019, p. 75.
Conhecer e fazer uso de elementos gramaticais (classes de palavras: substantivos, artigos, verbos,
adjetivos etc.) em diferentes escritas, principalmente em suas produções, de forma paulatina.
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora com as informações constantes no QSN – Ensino
Fundamental, 2019, p. 76.
como um objeto isolado, para ser trabalhada como um instrumento de ação para
interagir com o mundo e com o outro.
Nas duas expectativas de aprendizagem descritas no parágrafo anterior, nos
parece relevante notar que uma delas, que abrange até o 3º ano, utiliza os termos
conhecer e reconhecer, a outra, que abrange do 3º ao 5º ano, utiliza os termos
compreender e utilizar. Embora, outras expectativas apresentadas no documento
venham propor a utilização da escrita para todas as séries do ensino fundamental I,
propor, dentro desta expectativa, que o aluno faça uso da língua portuguesa escrita,
considerando-a em seu papel social, somente a partir do 3º ano nos parece algo
equivocado. Ser proposto desta forma, pode levar à ideia equivocada de que
crianças das séries iniciais,1º e 2º ano, não estão aptas a utilizar a escrita, pois
supostamente não teriam o repertório para tal. Permitir e propor oportunidades para
que as crianças se utilizem da língua portuguesa escrita desde o início de sua
escolarização, em especial com atividades que estejam vinculadas a usos concretos
do dia a dia, é essencial e de grande importância para que a criança se aproprie do
processo de escrita.
É esperado que uma criança no início de seu processo de aprendizagem da
língua escrita não realize produções de maneira convencional, mas isso não
significa que tais oportunidades de uso não devem ser propostas e estimuladas.
Como apontado por Quadros e Schmiedt (2006), em estágios iniciais da aquisição
da escrita, o foco do trabalho deve estar direcionado à expressão do pensamento,
sem uma preocupação exagerada da estrutura frasal da língua portuguesa.
Atividades bem planejadas, que consideram os papéis sociais e as funções que a
língua escrita pode exercer, auxiliarão os estudantes a construir seus conhecimentos
com a língua, sobre a língua e, algo muito importante, se sentirem estimulados a
quererem utilizar a língua escrita. Dessa forma, dar à criança a oportunidade de
utilizar a língua escrita é algo que o espaço escolar deve propiciar com frequência.
Há um conjunto de expectativas apresentadas que estão relacionadas ao
reconhecimento e utilização do nome próprio e dos nomes dos colegas e familiares,
propondo para, a partir do 3º ano, “Analisar e explorar semelhanças e diferenças
entre os nomes dos colegas, considerando indícios de diferentes naturezas, como
extensão dos nomes, letras iniciais e finais, quantidade de palavras, presença ou
ausências de alguma letra medial, entre outros aspectos”. O trabalho com o nome
próprio é algo bastante utilizado nos processos de alfabetização de ouvintes, pois
192
auxilia a criança que está começando a entender o que é, afinal, a escrita. O nome
próprio é algo estável e que não sofre alterações em construções com outras
palavras, além disso ele marca a identidade da criança, sendo uma referência social.
Ela poderá identificar a si e aos outros através de seus nomes.
A partir do nome da criança, é comum, em processos de alfabetização de
ouvintes, que outras palavras sejam introduzidas, como palavras que se iniciam com
a mesma letra, palavras que terminam com o mesmo som, por exemplo. É
importante, portanto, como temos defendido até aqui, que o professor tenha clareza,
quanto a qualquer atividade que aplique, qual o objetivo que se pretende alcançar e
de que maneira aquela atividade auxilia para que isso ocorra. Na expectativa acima
descrita, é proposto que os estudantes possam analisar e explorar diferenças entre
os nomes dos colegas, como por exemplo, letras finais e iniciais. É fundamental,
assim, que esteja claro para o professor ao fazer atividades, que vislumbrem
alcançar a expectativa descrita, de que maneira aquela atividade auxiliará o aluno a,
de fato, aprofundar seus conhecimentos da língua portuguesa escrita, considerando
as especificidades da criança surda.
Como temos tratado até aqui, consideramos a premissa de que a criança
surda construirá seus conhecimentos sobre a língua portuguesa escrita
primordialmente a partir da rota visual. O que é proposto na expectativa de
aprendizagem anteriormente descrita, quanto à comparação entre os nomes, nos
parece ser coerente se for pensada e trabalhada no sentido de observar e destacar
a forma escrita daquela palavra, porém, é essencial que a formação que os
professores recebem lhes permita ter um repertório sobre essas questões.
Sem uma formação que lhe dê os subsídios necessários, ao propor que o
aluno deve conseguir comparar os nomes dos colegas, atentando a questões como
letra inicial e letra final, por exemplo, corremos o risco de que, mesmo sem a
intenção de trabalhar questões fonêmicas com o aluno, o professor acabe por lhe
propor atividades que, no final, objetivam a isso. Não nos parece produtivo propor a
um estudante surdo que, por exemplo, identificando que uma palavra se inicia com a
letra A, liste uma série de palavras que também começam com a letra A. Para um
ouvinte, que se apoia fortemente nas questões fonológicas da língua para construir
seu conhecimento sobre a escrita, isso pode até fazer sentido. Já para uma criança
surda, que está se apoiando primordialmente na rota visual, ela só estará listando
193
Ele (QSN) traz, ali, diretrizes dos conhecimentos principais para cada nível,
né? Que deve ser estimulado, procurado e enfim... O QSN é a nossa base
principal aqui da Prefeitura, né? A gente tenta trabalhar bastante em cima
dele, ali. A gente concorda muito com ele. (ADRIANA).
Então, como eu acho que fomos nós que fizemos. Então, toda hora que eu
vou dar aula, eu lembro das tabelas. Toda hora eu lembro. Eu acho que eu
não tenho dificuldade nenhuma em saber que as minhas concepções
teóricas estão lá no documento que a gente escreveu. Então, assim, fomos
os autores desse documento mesmo. Então, isso já me deixa feliz.
(ALBERTO).
Foram criados por nós, né? Nós fizemos um grupo. Todos os professores.
Todos os professores bilíngues da rede. A gente participou de um GT, no
qual foi construído esse documento. Então, o que tem lá, é o que nós
pensamos como, enquanto, professores de Sala Bilíngue, né? De dupla
docência. O que a gente acha que é necessário para ter... Para a criança
chegar a esse conhecimento da Língua Portuguesa. Então, esse documento
foi construído com todos nós da rede. Participamos. Então, o que está lá é
bem o nosso sentimento enquanto professor. É bem o que a gente anseia
no ensino de Libras e também no ensino da Língua Portuguesa como
segundo idioma. Então, tudo que a gente busca está nesse documento e
ele serve como um norteador para nós. Então, é muito a nossa prática
mesmo, né? (AMÉLIA).
Ele (QSN) é exatamente tudo isso que eu faço na prática com o tempo, só
que é isso, é lá ele tá dividido por ciclo, né? Dividido 1º a 3º, 4º, 5º, então é
assim, ele é um uma base pra gente ter como referência, né? (CAMILA).
As falas dos professores demonstram que o atual QSN representa para eles
uma conquista quanto a construção dos objetivos específicos para os estudantes
surdos, referentes a Libras e língua portuguesa, os quais respeitam as
particularidades educativas de tais estudantes. A fala da Professora Beatriz traz
ainda um segundo ponto: o documento permite que outras pessoas compreendam
que as classes bilíngues têm, tanto quanto as classes de ouvintes, um trabalho de
desenvolvimento de aprendizagens com os estudantes
Os objetivos de aprendizagem apresentados no QSN são válidos tanto para
os surdos quanto para os ouvintes, o que demonstra que ambos os públicos são
considerados igualmente aptos para atingi-los. Têm-se a exceção na língua
portuguesa, que é segunda língua para os surdos e, assim, tem objetivos
específicos e exige um trabalho direcionado para eles, e na Libras, que não é algo
trabalhado com os estudantes ouvintes – o que seria, ao nosso ver, algo que deveria
acontecer, para que fosse possível caminhar em direção a construção de um espaço
escolar bilíngue. De qualquer forma, partir da visão socioantropológica, que é de
onde o documento afirmar partir, o primeiro e fundamental passo para o trabalho é
considerar que o sujeito surdo é igualmente capaz e que sejam respeitadas suas
particularidades linguísticas.
Considerando que será mediado pela Libras que o estudante surdo construirá
seu conhecimento da língua portuguesa escrita, o documento apresenta, assim, as
expectativas de aprendizagem da Libras, no sentido de, dentre outras coisas,
garantir que o espaço escolar buscará garantir que o estudante surdo se aproprie da
Libras. Uma vez que a classe é bilíngue, ao estudante também deve ser garantido a
aprendizagem da língua portuguesa escrita, a qual possui uma série de
199
A nossa maior dúvida nessa escrita, eu vou te contar, foi pensar no aluno
real e no aluno ideal. A gente pensou: “e agora? Qual grau de dificuldade
para essa criança?”. Mas a gente pensou que depois que ela tem essa
primeira língua, ou então, que nem todas vão chegar sem ter essa primeira
língua. Ela tem possibilidades de aprender muito. Tanto quanto os ouvintes.
Ela não tem nenhum atraso. Se ela não tiver nenhum outro
comprometimento, ela tendo a língua, ela é capaz. Tanto capaz, quanto
qualquer outra criança de seguir aquele currículo, né? Então, nós pensamos
em um aluno ideal. Mas, muitas vezes, a gente sabe que tudo que está lá,
no dia a dia acaba sendo um pouco difícil para determinados alunos. Mas a
gente tenta fazer com que esse caminho seja trilhado, né? (ANDREIA).
Possuir uma língua, como defendido por Vygostsky, é essencial para ser e
para agir no mundo. É a língua compartilhada que permite a troca de significados
com o grupo cultural (HALL, 2016) e ela também que permite o alcance das funções
psicológicas superiores (VYGOTSKY, 2001). Garantir que o estudante se aproprie
200
da Libras torna-se passo fundamental para que seja possível trabalhar, de fato, os
demais componentes curriculares, uma vez que será ela que mediará a
possibilidade de acesso a eles, inclusive no que se refere à língua portuguesa.
As partes do documento voltadas aos objetivos de aprendizagem da Libras e
da língua portuguesa específica para os estudantes surdos foram elaboradas com a
participação dos professores que atuam nas classes bilíngues, por meio de grupo de
trabalho. Ao longo das entrevistas realizadas, como vimos, os professores
mencionaram que foram os construtores de tal documento e, assim, as visões e as
práticas que possuem estão ali presentes. O fato de serem construtores do
documento deixou claro que há, por parte dos professores, identificação com o que
produziram, um reconhecimento da importância do documento e o empenho em
querer colocá-lo em prática.
Como apontado por Tardif e Lessard (2014), muitas vezes as reformas, que
implicam aos professores novos saberes e métodos pedagógicos, não os incluem,
sendo realizadas de cima para baixo. Nesse sentido, é bastante interessante que os
professores tenham sido chamados a fazer parte da elaboração do currículo, e fica
evidente em suas falas, o valor que dão a essa participação. Ao mesmo tempo, é
importante que exista um processo de reflexão constante a respeito do currículo, dos
objetivos de aprendizagem e das práticas realizadas, a fim de que fragilidades
possam ser identificadas, objetivos possam ficar claros e as práticas, aprimoradas.
Para isso, a oportunidade contínua de formação é fundamental.
Ter uma parte do currículo da rede direcionada ao que é, de fato, específico
para os surdos, que é o caso da Libras e da língua portuguesa, foi, como discutimos
anteriormente, uma conquista importante dentro de processo de educação bilíngue
dos surdos na rede de ensino. Como é possível identificar nas falas dos professores,
isso trouxe a eles a oportunidade de construírem, de maneira sistematizada, um
documento que valida as premissas fundamentais da educação dos surdos dentro
da rede, como a visão socioantropológica dos surdos, a escolha pela educação
bilíngue, o direito à apropriação da Libras, o direito a aprendizagem da língua
portuguesa a ser ensinada como segunda língua em sua modalidade escrita. Tudo
isso tendo sido construído junto com o grupo de professores.
Sendo o documento válido para o trabalho com todos os estudantes –
garantindo as especificidades da Libras e da língua portuguesa -, como já
mencionamos, trata-se de um documento que é, ou deveria ser, acessado,
201
E assim, eu entendo que a formação, ela dá uma base teórica, né? Ela traz
ali, os autores, como que eles pensam a educação. Mas a prática é muito
variável, dependendo de onde vem esse surdo, de como ele recebe, dos
estímulos de outras coisas que ele traz além da surdez. Para ser sincera
com você, eu não vou me lembrar do que que está escrito na teoria. Porque
está lá na faculdade. Eu teria que pegar o material. Eu sei que eu tive uma
disciplina, que era assim, Educação para Sur... Ensino de Língua
Portuguesa como segunda Língua para Surdos. Mas eu já estava tão em
prática, que eu meio que li, dei uma passada por cima daquilo dali, e falei:
“iih, não tem nada a ver com a prática isso aqui”. E sabe quando você
descarta? Eu teria que olhar novamente aquele material, porque já faz uns
anos... (ADRIANA).
pode haver uma preocupação em apresentar teorias diversas, mas sem aprofundá-
las e, mais ainda, sem conectá-las com a prática, elas podem acabar perdidas.
Destacamos, como exemplo, a fala da Professora Adriana, a qual relata ter tido
conteúdos teóricos relacionados ao ensino da língua portuguesa, porém não se
lembrar deles.
Se o repertório formativo oferecido ao professor for desconectado da prática e
sem aprofundamento, possivelmente, o professor, em sua atuação, não conseguirá
reconhecer e identificar quais as teorias que subsidiam sua prática. Lembramos,
como aponta Imbernón (2011, p. 51), que a formação continuada, dentre outros
pontos, deve levar o professor também a “[...] descobrir, organizar, fundamentar,
revisar e construir a teoria.” Assim, é muito importante que os professores possam
ter um olhar também para a teoria que embasa sua prática.
Como discutem Tardif (2014) e Imbernón (2011), o professor deve estar apto
a participar de maneira ativa e crítica da construção de seu espaço de atuação, para
tal é importante que ele possa conhecer e reconhecer as teorias que subsidiam as
ações daquele espaço, assim como outras que podem contribuir, para que possa
refletir, criticar e propor ações. A formação oferecida, em sua forma inicial e
continuada, tem um papel primordial neste ponto. Além disso, novamente
lembramos o que é defendido por Libâneo (2013), o currículo de formação de
professores deve ter sempre como eixo e referência o que ensinar, para que
ensinar, como ensinar e em que condições ensinar. A partir das falas dos
professores, vemos o que o como ensinar tem ficado à margem na formação dos
professores.
Como apontado por Gatti (2013), os documentos que estabelecem diretrizes
nacionais para a formação de professores expressam que, em tal processo, teorias
e práticas devem se apresentar de forma indissociáveis. A Resolução CNE/CP nº 1,
de 15 de maio de 2006, por exemplo, determina que a formação do Pedagogo deve
se construir por meio de estudos teórico-práticos, promovendo investigação e
reflexão crítica. Neste sentido, apresentamos a seguir uma fala do Professor Alberto.
Se você me perguntar: tá, mas então a sua formação falou ou não falou de
Língua Portuguesa? Acho que falou pouco, mas acho que os estágios, eu
considero os estágios como formação. Assim, foi muito sério para mim [...]
Obviamente não encontrei todas as respostas no estágio. Mas conversando
com os colegas, conversando com um, com outro, aprendi muita coisa.
(ALBERTO).
204
Teve colegas que já falaram assim pra mim: "ah eu não conseguiria fazer o
que você fez". Tipo, trabalhava de manhã como professor e à noite ser
intérprete. Pra mim foi um ganho muito grande. Porque à noite eu chegava
e o meu papel era intérprete. Eu não ensinava nada ali. Mas eu tinha
contato com os textos do aluno surdo que eu interpretava. Ele fazia a prova
lá, o professor ia corrigir, né? Então eu estava todo em todo momento
pensando em como ia versar essa questão de Libras pra Português, de
Português pra Libras, né?
Isso também me provocava a pensar, assim: "caramba, ele chegou aqui na
universidade, mas ele ainda tem essas questões no Português". Então,
essa coisa da teoria de que o Português é uma língua adicional ou de que é
uma segunda língua. Opa! Não é só teoria. Realmente é fato. É verdade
isso. E o pouco entendimento das pessoas, por exemplo, no mercado de
trabalho ou na universidade, dos professores em relação a essas questões,
vão trazer um monte de problemática pros alunos surdos que tão lá na
graduação. Porque ele vai fazer a prova, ele vai escrever em Português,
mas vai ser em Português de surdo, né? E daí, por exemplo, assim,
professores fazendo comentários: "nossa, mas olha aqui o que ele escreveu
e tal tal tal". Sabe? Assim, essas coisas. E nessa hora eu falava: "não
professor, mas só não se esqueça que..." Daí a gente tentava explicar
daquela forma, né? "Ó professor, segunda língua do cara, não é preguiça,
não é falta de vontade". Né? Entendendo, assim, momento de várias
tensões envolvendo essas duas línguas, né? Trabalhando com isso, né?
Então, me ajudou muito. (ALBERTO).
A gente trabalha muito com bilhete, por exemplo. Que são textos do dia a
dia, né? Porque o WhatsApp, né? Que hoje em dia as pessoas usam muito.
Então, são coisas que estimulam a criança.
Então, a gente trabalha muito com esse texto do dia a dia também. Bula de
remédio, receita, a gente faz coisa para comer. “E vamos seguir aqui o texto
instrucional da receita. Qual a instrução? O que que coloca primeiro?”.
Entendeu?” (ADRIANA).
Coisas que até hoje eu uso, né? De Português. Por exemplo: cruzadinha,
brincadeira de stop, o que me vem agora na mente, que os professores
faziam. Cruzadinha, stop, ler um texto e conversar sobre ele. Já tinha
naquela época. Eu observei isso no estágio.
Eu já aprendi que alguns gêneros textuais, pra quem está começando a dar
os primeiros passos, me parecem ser, me parecem ser gêneros, com uma
complexidade menor, mas com um grande desafio. Por exemplo, ler ou
trabalhar, ficar uma, duas, três semanas ali, com um convite de festa de
aniversário, né? Como eu começo? Primeiro eu começo pela leitura. Bom,
primeiro, não. Primeiro eu começo conversando sobre aquilo.
Então, assim, esse trabalho... pra chegar no texto, tá, ok. Quando eu chego
no texto, vamos lá. Palavra inteira.
A literatura infantil é algo que, assim, ela tem que permear os cinco anos. É
o que eu é o que eu faço. Mas pro carinha do 1º, eu não vou pedir pra ele
escrever o final da história. Eu não vou pedir isso. Talvez, aqui, no 5º ano,
talvez eu possa pedir. Aqui eu vou querer que ele... inclui em Língua
Portuguesa, tá? Vamos, vamos identificar onde tá o nome dos personagens,
o título, sabe? Sei lá, lá no 3º ano, não tem uma regra, né? Porque, enfim, lá
no 3º ano sei lá, eu vou... Eu vou não só mais o título, eu vou querer
palavras. No 5º ano, talvez, eu vou pedir uma reescrita ou vou dar uma cena
e vamos tentar escrever juntos, sabe, assim? Já é um que ele vai se repetir,
eu vou pedir propostas diferentes a partir do mesmo gênero, né? É isso.”
(ALBERTO).
Como que a gente vai fazer? E qual o caminho melhor? No visual. Sempre
mostrar. Então, todos os caminhos a gente sabe que é esse, né?
Principalmente livros. Começar a mostrar: “olha aqui”. E aí, assim, entendeu
aqui, você vai para a escrita. E sempre relacionando, né?
Eu penso que uma das estratégias que se torna mais eficaz, é você estar
com a imagem, escrever junto, pedir que ele, sinalize o que está vendo, isso
já é desenvolvimento da Libras. Então, por isso que é super bom,
principalmente com pequenos, começar com as histórias infantis, porque
daí ele vai falar para você, se ele já souber, é um lobo. Se ele tentar dizer
que é o Lobo Mau da Chapeuzinho, por exemplo, eu já vou falar: ‘sinal lobo.
Lobo’. Vou escrever: lobo. E vou mostrar: “olha”. E bem devagar, né?
Assim, muito. Então, sempre tem que estar atrelado.” (BRUNA).
Eu gosto de usar muito as Literaturas, né? Daí eu procuro uma história pra
contar pra eles, né? Esses... Depois da retomada das aulas a gente
trabalhou dois clássicos dos contos de fada, né?
E aí eu sempre faço muito... Muita roda de conversa, sinal por sinal. E
dentro daquele contexto da Literatura, eu exploro outras matérias, né? De
Português, Matemática, Geografia, Ciências, a partir da Literatura, eu faço
outros links.
Opa! A gente vai escrever uma frase ou vamos contar aqui, vamos colocar
no caderno. Já teve esse momento. Eu acho que muita retomada, eu faço
muito essa questão da retomada dos conteúdos. Mas é imagem, o vídeo, eu
explicando com a minha mão, e os vídeos em movimento, depois eu trago
vídeos com outras pessoas contando a história, eles recontam também,
eles colorem e a gente escreve algumas palavras. E eu relaciono com
Matemática, outras matérias também.
Eu faço papel de escriba. Por exemplo, no dia, eu vou trabalhar a frase,
então, eu pego aquele texto, que eu pego a frase que eu quero trabalhar,
volto lá no vídeo, “o lobo soprou a casa”, então, olha, eles vão lá, eles
fazem, porque eles já... A história já tá na mente deles. “Casa cai”. “Ah,
então agora vamos escrever?” Então, escreve. Então, é todo... Demora até
chegar essa frase aí, demora. Então, eu contextualizo bem Libras pra
depois escrever as palavras.
A história em si, com a minha turma, eu não escrevo. O máximo que eu
escrevo é a palavra e algumas frases, no máximo. (BIANCA).
Hoje não dá pra falar, nenhuma receita pronta e nem pra ouvinte, nem pra
surdo. Então, a gente vai muito no que cada aluno vai trazendo. O que eles
trazem de casa, então, eu pego a deixa, né? Ah, eu vi tal filme, eu comi tal
coisa. Então, aí a gente vai lá e escreve. A gente conseguiu nesse setembro
azul, alguns passeios. Então, a gente aproveita esses passeios pra escrever
alguns nomes, né? Do que foi feito, que eles gostaram mais. Algumas
mães, eu oriento a nomear tudo que tem na casa. Então, sofá, cama.
Porque eles vão pela memorização mesmo, principalmente os surdos
profundos, eles vão memorizar a palavra, eles não vão pelo som.
Dificilmente eu chego (NO TEXTO). Só se for num texto coletivo. Então, por
exemplo, uma receita, aí eu faço coletivamente. Mas por exemplo, uma
209
intermediando as relações e trocas, à criança surda, muitas vezes, não são dadas
as devidas oportunidades de construção de conhecimento de mundo, que é
necessário para desenvolver-se plenamente como pessoa e cidadão, além de
fundamental na construção do conhecimento da língua escrita. Sánchez (2015)
defende que será a escola o espaço que precisará prover ao surdo aqueles
conhecimentos que a família não pôde lhe oferecer.
A apresentação de palavras, associando-as com a imagem e sinal é, como
vimos, uma estratégia presente na fala dos professores. Considerando a importância
dos recursos visuais para os surdos, a utilização de imagens se mostra um recurso
que pode trazer contribuições no processo de aquisição da língua escrita. Não
basta, porém, que as práticas se resumam a apresentar a palavra em língua
portuguesa, seguida da imagem que corresponde àquela palavra e seu sinal. Como
defende Lodi (2014), a leitura de figuras, inicialmente de uma maneira mais
descritiva, pode ser um ponto de partida para as práticas de leitura. Sendo assim,
para além da apresentação das palavras e suas respectivas imagens, o caminho
inverso – apresentação de imagens e sua descrição com sinais e palavras,
construindo também frases e histórias – também pode ser uma estratégia de
trabalho. Os acontecimentos do dia a dia, assim como histórias contadas em sala de
aula, ambos previamente trabalhados extensivamente em Libras, apareceram nas
falas dos professores, como fonte principal da escolha das palavras a serem
apresentadas aos estudantes. A repetição, da apresentação e escrita de tais
palavras, também foi elencada como uma estratégia.
Nas falas dos professores, é possível constatar que o trabalho com o texto,
em língua portuguesa, sendo lendo-o ou produzindo escrita é algo que acaba por ser
pouco desenvolvido. A opção por apresentar textos, mais comumente histórias ou
textos instrucionais, trabalhando o texto em Libras e, posteriormente, apresentando
e reforçando palavras do texto, a fim de que os estudantes as memorizem, sabendo
lê-las e escrevê-las, acaba por ser a atividade mais realizada. Parte de tal opção é
justificada, nas entrevistas realizadas, pela idade/série das crianças, e também pelo
escasso repertório de Libras com o qual os estudantes chegam à escola, o que
demanda, de acordo com os professores, a necessidade de um trabalho que
garanta, antes de mais nada, a ampliação do repertório de mundo dos estudantes.
Com grande parte do tempo tendo que ser dedicada ao ensino da própria Libras e
da contextualização, os professores das séries iniciais, que iniciam o trabalho do
211
Libras, que será primordial em seu desenvolvimento cognitivo, como apontado por
Vygotsky (2001; 2007).
Encontramos nas falas dos professores uma grande preocupação em
procurar garantir aos estudantes a oportunidade de se apropriarem da Libras.
Quanto à imersão do aprendiz na prática social da língua escrita, será também a
escola que promoverá tal trabalho, e para tal, quanto mais possibilidades de contato
e uso da língua escrita em textos, maiores serão as possibilidades de aprendizagem
e desenvolvimento, daí a importância da maior presença, no dia a dia, de
oportunidades para ler e escrever genuinamente.
O ensino da língua portuguesa para os surdos foi apontado pelos professores,
nas entrevistas realizadas, como uma das grandes questões problematizadoras de
seus trabalhos, por ainda se apresentar como algo complexo e que, com todos os
seus desafios, traz inseguranças aos professores. Ao observarmos as falas
apresentadas acima, vemos que os professores buscam estratégias diversas, com o
objetivo de que os estudantes, de fato, se apropriem da língua escrita. Há uma
preocupação por parte dos professores de que o trabalho que é realizado não seja
simplesmente uma replicação de atividades de ouvintes.
Embora diversas estratégias possam ser utilizadas com ambos os públicos,
os professores defendem a importância de que qualquer estratégia utilizada seja, de
fato, adequada ao público surdo, considerando a trajetória da criança surda, de
maneira especial, a linguística, assim como a questão da cultura surda.
Consideramos que tal perspectiva é importante, uma vez que a educação das
crianças surdas demanda que as especificidades de tal público sejam atendidas e,
dentre elas, está a necessidade de construir práticas que sejam, de fato, promotoras
de uma educação bilíngue e bicultural, educação a qual elas têm direito.
Para além do conhecimento linguístico, é essencial o reconhecimento de que,
sendo um ambiente bilíngue, ambas as culturas devem se fazer presentes, uma vez
que o sujeito surdo transita entre elas (GROSJEAN, 2010). Conhecer a cultura surda
e trazê-la, utilizando-a também para a construção da educação bilíngue é
fundamental, afinal não basta que atividades de ensino de língua portuguesa para
ouvintes sejam replicados com os estudantes surdos. As atividades devem ser
adequadas à realidade e cultura do aluno a quem estão sendo propostas. No caso
dos estudantes surdos, isso significa, dentre outras coisas, que as atividades
propostas levarão em conta não somente a cultura ouvinte, mas também a surda.
213
A criança chega pra gente, a família ainda não entende que a Língua de
Sinais é o melhor para ela. A gente tem que convencer, trabalhar esse
convencimento com essa família, né? Então, enquanto a família não
interioriza que é importante, não aprende a Língua de Sinais para que essa
criança tenha esse contato em casa também, fica muito raso.
Então, assim, realidades, uma diferente da outra. Famílias contam muito. A
criança, a realidade dela, na casa dela, conta muito. O que ela recebeu de
estímulo conta muito. (ADRIANA).
Daí assim, vê que essa criança não está progredindo, não é que não... não
é que vê que essa criança não está progredindo e daí manda pra classe
bilíngue. Não. Ele não está lendo, escrevendo. Olha o Português. “Oh, ele
não está lendo, escrevendo”. Daí vem. (ALBERTO).
Aí, o que a gente enfrenta, assim, primeiro a mãe passa por aquele luto e
tal. Então, quando ela entende que o filho é surdo, ela faz... Ele já perdeu
um tanto da escola, né? Porque até compreender isso. Aí a mãe matricula,
como no regular e tal. Até que descobre essa sala. (AMÉLIA).
Quando a nossa criança ouvinte chega lá na escola, ela já vem com todo
um vocabulário, uma descrição auditiva, uma memorização. Ela já escutou
a mãe falando desde a barriga, na hora da amamentação, na hora do
banho. E sempre teve essa troca, né? E a nossa criança, quando ela chega,
ela chega com gestos. E ela já chega grande. (BRUNA).
As famílias, eles respeitam e eles até tentam aprender (Libras). Porém, eles
ainda têm aquela coisa da normalização, sabe? Então, foi uma processo
muito grande de nós, educadores, convencermos eles, porque a gente teve
que convencer eles, que essa aula bilíngue não ia fazer com que os alunos,
que os filhos deles, se dedicassem a falar. Eles precisavam aprender. E por
isso que muitos deles estão tão tarde na sala bilíngue, porque eles
demoraram pra aceitar. Alguns deles demoraram pra aceitar a sala bilíngue.
Eles só aceitaram quando viram que o filho deles lá no 2º, 3º ano não
estava sabendo fazer nada, vamos dizer assim. E aí eles falaram: “não, eu
tenho que fazer o meu filho aprender alguma coisa”. Infelizmente, foi dessa
maneira que muitos entraram na sala bilíngue. Então, muitos pais, eles até
querem aprender, eles respeitam, eles tentam se comunicar com os filhos
deles em sinais, porém, eles não percebem a importância de que, o que
realmente é a Libras.” (BEATRIZ).
Mas a minha realidade aqui, são de famílias que não sabem Libras. E que já
foi oferecido oficinas de Libras, mas elas não têm, não sei, não vou nem
falar que é falta de interesse, porque elas trabalham, então, eu não posso
falar que é falta de interesse. (CAMILA).
para a criança surda e não saiba como buscar as ofertas necessárias à criança,
como a possibilidade de uma educação bilíngue, por exemplo. Nesse sentido,
reforçamos a importância de que existam caminhos para que tais conhecimentos e
possibilidades cheguem às famílias das crianças surdas, tanto por meio dos serviços
de saúde, quanto pelos serviços escolares, desde a creche.
Sem ter a oportunidade de conhecer, de fato, o que é a Libras, sem ter a
oportunidade de ter contato com outros surdos e ver que suas possibilidades de
desenvolvimento são as mesmas que a de uma criança ouvinte, desde que sejam
garantidos seus caminhos próprios de desenvolvimento, acaba restando à família o
contato com os mitos que ainda se espalham pela sociedade e, baseada neles,
acreditar que garantir à criança o acesso à Libras irá lhe prejudicar em outras
questões, centrando, assim, todos os seus esforços na “normalização” da criança.
Tendo a família a oportunidade de compreender a importância da língua de
sinais para a criança surda, ela poderá não somente garanti-la à criança, mas
também buscar tal conhecimento para os demais membros, a fim de que o grupo
familiar possa ter interações mediadas por uma língua de fato, garantindo à criança
surda a oportunidade de construir muito mais conhecimento de mundo junto de sua
família. Nesse sentido, lembramos que a Lei Municipal (XXXXXXX, 2019), que
instituiu legalmente as classes bilíngues na rede de ensino, apresenta, como uma de
suas exigência, que sejam promovidas ações que busquem garantir a aprendizagem
de Libras não somente por parte dos estudantes, mas também de suas famílias
desde a Educação Infantil e também para aqueles que, por algum motivo, tiveram
contato tardio com a Libras.
As falas dos professores demonstram a necessidade real de que seja
proporcionado às famílias oportunidade de conhecer a Libras e a cultura surda – o
que implica, também, em ofertas que precisam se adequar à realidades das famílias
atendidas -, mas também a importância da formação dos professores de crianças
ouvintes no que se refere às questões relacionadas à educação bilíngue da criança
surda. Uma vez que, como relatado pelos professores, a criança surda, muitas
vezes, chega primeiro nas turmas de crianças ouvintes, se os profissionais
responsáveis que ali atuam tiverem um olhar sensível às questões específicas da
criança surda, poderão auxiliar a família a iniciar o seu olhar a tais questões e
orientá-la onde e como buscar a possibilidade da educação bilíngue. Outro ponto
216
Existe bastante formações aqui na rede. Isso a gente não pode reclamar
com relação a educação de uma forma geral, né? A gente tem vários
encontros formativos, a gente tem vários webnários, mas, especificamente
na área, aí, da preparação, né? Do docente para trabalhar com essa
219
Porque não tem nada específico. Já teve, não sei se o ano retrasado, mas
ano passado teve um webinário, e nós pedimos para que viesse formador
que fosse da área para a gente poder aproveitar também. E para os outros
professores também, né? Porque a gente aprende sobre as outras áreas,
por que não as outras áreas não podem aprender sobre a nossa? Então, já
teve e foi muito bacana. Esse ano, o webinário, agora, nessa semana que
está acontecendo, tem a participação de um surdo, mas eu não estou a par.
Mas é só nesses momentos.” (BRUNA).
Então, não existe uma coisa pra salas bilíngue, pensado na sala bilíngue,
pensado nos professores bilíngues. Não existe. Agora mesmo, a gente tem
que... é obrigado a fazer uma formação, que é importante, uma formação de
professores, pra todos os professores da rede, a cada quinze dias, uma
sexta-feira. E eu estou inscrita numa, num curso de alfabetização totalmente
fonético. E aí você fala “por que que eu estou aqui?” Não que eu, não, né?
Um dia, se eu voltar pra sala de ouvinte, aquilo vai me acrescentar muito.
Todo o conhecimento é válido, mas nesse momento, se a cada quinze dias
ele já sabe que todos os professores da rede vão ter que ter uma formação,
são três salas, não, três escolas, cinco salas, nem dez professores. Não
poderia pegar esse horário e organizar pros professores bilíngues terem
uma formação? Chamar algum profissional, das universidades, pra nos
ajudar a ampliar, a trazer algum conhecimento para nós, né? Então, é isso
que realmente faz falta, nós não temos.” (BEATRIZ).
“É fundamental, lógico, só que nós que vamos atrás, só que pra ter uma
formação boa, pra isso acontecer, precisa vir pessoas de fora e isso é muito
caro, né? Hoje, por exemplo, uma Ronice, que é a pessoa que tá mais a
frente da questão de Língua Portuguesa pra surdo, de gramática da Libras,
só que é meio que impossível, entendeu? Se mal tem pro básico, pros
alunos, né? Se mal tem internet na escola. Então, eu acho que é meio
impossível, né? A gente vai mesmo por conta fazendo os cursos dela,
trocando no grupo de estudo da Universidade, né? Mas assim, a gente não
pode esperar da Prefeitura esse tipo de formação. (CAMILA).
diferente daquela que é direcionada aos estudantes ouvintes, a fim de que possam,
de fato, atender as demandas de ensino de tais estudantes.
Como defendido por Peixoto (2006), no que se refere a aquisição da língua
portuguesa, os estudantes surdos apresentam especificidades como a não
fonetização da escrita, uma intensa exploração dos aspectos viso-espaciais da
escrita e o uso dos parâmetros fonológicos da língua de sinais como elemento
regulador e organizador da escrita. Diante disso, uma formação que se proponha,
por exemplo, a abordar a aquisição da língua escrita a partir das questões fonéticas,
como mencionado na fala da Professora Beatriz, de fato, não trará contribuições ao
trabalho com os estudantes surdos, dentro da proposta da classe bilíngue.
Enquanto sujeito bilíngue, o surdo transitará entre ambas as línguas, com elas
se influenciado mutuamente. Como defendido por Yip e García (2018), com o sujeito
bilíngue ocorre o processo de Transliguagem, o qual refere-se ao uso pelo indivíduo
de seu repertório linguístico completo e não somente relacionado ao conhecimento
da língua em si. Como afirmam García e Woodley (2015, p. 141), “De várias
maneiras, a translinguagem reconhece as práticas dinâmicas de linguagem dos
bilíngues como ação humana.” O sujeito surdo, enquanto sujeito bilíngue, é formado,
dentre outras coisas, por suas construções em ambas as línguas e, dessa forma, é
fundamental considerar que, no que realiza no dia a dia, ele se vale do todo e não
somente de partes de seu repertório.
Assim, na aprendizagem da língua portuguesa escrita é esperado que o surdo
apresente a transferência de elementos da primeira língua – Libras – para a
segunda língua (LODI, 2004). Fernandes (2015a) também defende que a língua de
sinais organiza, de forma lógica, as ideias dos surdos e, com isso, sua estrutura
morfossintática acaba por se refletir nas atividades escritas dos surdos. Diante disso,
defendemos a importância de que os professores das classes bilíngues tenham
acesso a formações específicas que deem conta de questões como essas.
Como já mencionamos, Pereira (2014, p. 149) defende que, no trabalho do
professor de surdos, no ensino da língua portuguesa, “as explicações devem ser
dadas numa perspectiva contrastiva, na qual as diferenças e as semelhanças entre
a Libras e a língua portuguesa sejam elucidadas”. Para Cummins (2007), o processo
de aprendizagem do aprendiz pode ser beneficiado se o professor promover
explicitamente ações que levam os estudantes a notarem as semelhanças e as
diferenças entre as línguas presentes em seu processo educativo. Tais análises
221
Quadro 20 – Formação para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para surdos –
Pós-Graduação (Mestrado)
Professor(a) Cursou disciplina sobre o tema Disciplina cursada
Adriana Não cursou Mestrado
-
Afirmou não ter cursado ainda, mas cursaria no
Andreia Mestrado em curso
semestre seguinte
Não informou o nome da disciplina, porém
afirmou ter cursado uma disciplina diretamente
Alberto Sim
relacionada ao tema e outra ligada
indiretamente.
Amélia Não cursou Mestrado -
Bruna Não cursou Mestrado -
Bianca Não cursou Mestrado -
Beatriz Não cursou Mestrado -
Camila Não cursou Mestrado -
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
Quadro 21 – Houve oferta de formação continuada relacionada ao ensino de língua portuguesa como
segunda língua para surdos?
Professor(a) Resposta do Professor
Adriana Não
Andreia Não
Alberto Sim
Amélia Não
Bruna Não
Bianca Não
Beatriz Não
Camila Não
Fonte: Quadro elaborado pela pesquisadora a partir dos dados do questionário preenchido pelos
professores participantes da pesquisa.
Vemos que o Professor Alberto foi o único a afirmar ter recebido formação
relacionada ao ensino de língua portuguesa como segunda língua para surdos
promovida pela rede de ensino. Abaixo, apresentamos a fala do professor a respeito
de tal ponto.
na sala com esse professor, eles ficavam observando minha aula no fundo
da sala, fazendo anotações. Terminava a aula, a gente colocava as crianças
na perua, e voltávamos para conversar, para discutir.” (ALBERTO).
funcionado e o que pode ser aprimorado e atuar sobre elas. Um modelo como o
citado, permite que o espaço escolar tenha destaque, uma vez que é a partir da
observação e construção do que acontece lá que as ideias são refletidas e as ações
tomadas. Libâneo (2013, p. 77) afirma que “o professor realiza plenamente seu
trabalho quando ajuda o aluno a adquirir capacidades para novas operações
mentais e a operar mudanças qualitativas em sua personalidade”. Assim, a
formação que promove a reflexão sobre as ações, como e com que objetivo são
construídas e como refletem na aprendizagem e seu desenvolvimento dos alunos,
podem ter um importante impacto no processo educativo.
Como temos discutido, ofertar formação continuada aos professores é não
somente uma exigência do trabalho para garantir que eles tenham os subsídios
necessários à sua prática, a qual exige mudança constantemente, de acordo com o
contexto e o público atendido, como também existe a demanda por parte dos
próprios professores. Os profissionais reconhecem a importância da existência de
uma rotina formativa e demandam por ela, a fim de poderem aprimorar e avançar em
seu trabalho diário. Nesse sentido, o reconhecimento da importância da formação
entre pares também esteve presente nas falas de todos os professores.
A partir dos questionários preenchidos pelos professores e das entrevistas
realizadas, foi possível constatar que é grande a diversidade de formação e trajetória
profissional entre os professores participantes. Cada professor possui uma trajetória
formativa específica e um percurso profissional com experiências diferentes dos
outros. Considerando esse cenário, cada um dos profissionais tem repertório teórico
e/ou prático que poderia ser compartilhado com os demais. Como apontado por
Tardif (2014), um ponto importante a ser considerado na formação dos professores
refere-se à importância de que eles possam ter o direito de participar da construção
de sua formação. Nesse sentido, ao ter a oportunidade de formar seus pares, os
professores conseguem olhar para si enquanto formadores, formando a si, assim
como contribuir com a formação dos colegas.
[Sobre a formação entre pares] Eu acho. Acho que ajudaria muito, né? Eu
acho que é imprescindível, importante a gente estar em contato e a gente
trocar essas informações. Porque cada realidade é uma, de criança, de
família, e as vezes, a gente tem realidades parecidas e nem sabe, né? E um
pode, de repente, estar ajudando o outro, com certeza. Com certeza.
(ADRIANA).
225
Então, tanto a gente ter a nossa formação como formar outros, né? Que
queiram depois trabalhar com a Língua de Sinais, a gente busca isso nos
espaços que são abertos, a gente corre atrás e tenta também, né? Nós
mesmos, professores, a fazer isso. (ANDREIA).
Ah, eu acredito nisso, né? [Sobre a formação entre pares] Com certeza. É
o que a gente mais ou menos tenta fazer lá no grupo [Grupo de estudos
da Universidade] da professora Érica, né? Tipo, assim, a gente lê texto,
discute, traz prática, olha eu faço isso, olha eu faço aquilo, olha eu faço
aquilo outro. (ALBERTO).
Aprendi com as colegas lá do passado e de hoje, que tem muito mais anos
na área, trabalhar com tirinhas de gibi, porque ali tem muita ação, trabalhar
o verbo, etc. Aprendizado na prática. Porque a teoria a gente teve, e ela
dava, assim, ideias, né? (BRUNA).
que é oferecido pela rede, a fim de que possam também auxiliar os pais de crianças
surdas a olharem para elas com um visão socioantropológica, além de auxiliar os
estudantes surdos a chegarem, o quanto antes, nas classes bilíngues.
A Lei Municipal (XXXXXXX, 2019), que instituiu as classes bilíngues na rede,
afirma a orientação de que as unidades escolares que não possuem classe bilíngue
devem orientar o responsável a se encaminhar para a escola mais próxima, dentre
as que oferecem esse atendimento. Para que isso seja feito, com consciência e
auxílio às famílias, a formação dos professores de ouvintes é também um ponto
importante. A fala abaixo apresentada traz um exemplo de ação nesse sentido.
Ah, eu acho que é interessante trazer [Sobre ter uma rotina de formação
para os professores]. Eu acho que muita teoria fora da prática não é legal.
Acho que é legal trazer pessoas que já tiveram outras experiências em
outros Estados, talvez, para conversar com a gente. Eu acho que seria uma
ideia. Eu nunca tinha pensando nisso antes de você perguntar. Mas, eu
acho que é um caminho também, assim, não é tão novo, né? Nós temos aí
o INES, por exemplo, que é uma escola, né? Bastante antiga, que tem
diversas práticas, aí, com certeza. Alunos, ex-alunos de lá, né? Que
poderiam, talvez, trazer para a gente, aí, alguma contribuição. Talvez isso,
né? Como se traz aí para formações de ouvintes mesmo, em determinados
momentos do ano, né? “Ah, vai ter aí formação para os professores, vamos
trazer um convidado”, e aí a pessoa palestra. Seria interessante ouvir os
surdos. Os surdos que hoje são professores, que foram alunos surdos, né?
Eu acho que isso daí. E falando especificamente da aprendizagem da
Língua Portuguesa, porque se não é um caminho que a gente vai trilhando
a cada dia e tentando descobrir, né? E acho que é isso. Não sei.
(ADRIANA).
“Eu acho que, por exemplo, assim, se a gente pensar na formação inicial de
quem quer ser docente, a pedagogia... uma pedagogia bilíngue é um ótimo
exemplo, é um case de sucesso na minha opinião. Agora, para o professor
que já está atuando, daí eu aposto lá no que a DERDIC fazia. Né?
(ALBERTO).
“Eu acho que nós precisaríamos de uma formação, realmente, que nos
levasse a pensar em relação ao português, né? Para os educandos surdos.
Eu acho que isso é a grande problemática, o cerne que mais está
emperrando as salas, as escolas bilíngues em si, né? Permitir, é
oportunizar, é ofertar aos surdos o direito de aprendizagem dele em relação
ao Português, modalidade escrita. Eu acho que isso só não aconteceu
ainda, porque ainda não existe estudos e momentos de formação pra que
isso aconteça e o surdo precisa disso, né? Eu acho que isso é o principal
ponto. Mas eu também acredito que falta mais das redes de ensino valorizar
o surdo enquanto profissional, pra que o surdo esteja na frente desses
momentos de formação também, né? Pra que a gente consiga entender
quem é o indivíduo surdo. Acho que o que falta, eu acho que o grande
problema também da gente ainda não conseguir trabalhar o Português, é
porque falta uma análise, uma pesquisa, um olhar sobre o sujeito surdo, o
indivíduo surdo. Quem são? Sabe? e não de uma maneira de homogeneizar
o surdo. “Ah, todo surdo aprende assim”. Não. Então, da mesma forma que
228
nós temos formação sobre a criança ouvinte, né? Sobre como trabalhar, um
exemplo bem fulo, mas como trabalhar crianças ouvintes do nível silábico?
Como trabalhar com crianças ouvintes no pré-silábico? Não existe isso com
surdo, só existe como trabalhar o Português para surdos. Mas existem os
indivíduos surdos. As individualidades, o contexto familiar que cada um vive.
A aquisição linguística que cada um tem. Então, não tem como a gente
fazer um curso “Português para Surdos”. Não. A gente tem que analisar,
realmente, os indivíduos surdos, pra gente conseguir começar a caminhar
de uma maneira melhor pra essas crianças.
E além das propostas metodológicas, um curso que nos levasse a analisar
e pensar no indivíduo também, sabe? [...] Então, acho que falta isso
também. Nós, os professores, ter um horário, um olhar mais crítico e mais
detalhado sobre o indivíduo surdo.” (BEATRIZ).
Eu acho que tem que ser pensando nas experiências que os surdos já
tiveram. Assim, os surdos, pegar as experiências que eles tiveram.
A gente descobre se o surdo tem a dislexia, né? [..] Então, como que a
gente identifica, que eu tô aqui batendo na tecla pro meu surdo se
alfabetizar. Mas e se ele tiver um problema de aprendizagem e eu tô aqui
batendo na tecla, mas eu preciso trabalhar com uma psicopedagoga junto?
Então, eu sinto falta de formação nesse sentido, que eu acho que é mais
sério ainda do que só que estratégias de alfabetização. (CAMILA).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
analisado ter sido elaborado com a participação dos professores, trouxe a estes um
olhar interessado e uma identificação com o documento.
Considerado como um avanço nas garantias dos direitos dos estudantes
dentro da rede, o documento possui suas limitações, quanto aos objetivos de
aprendizagem, que podem ser aprimorados e mais claros aos professores. Da
mesma forma, o documento pode ser um importante ponto de partida para
formações relacionadas ao ensino da língua portuguesa para os professores,
considerando seus objetivos para que sejam pensadas estratégias metodológicas
para alcançá-los. Embora a rede tenha, em geral, uma oferta ampla de formação
continuada, os professores das classes bilíngues demandam por formação
direcionada às especificidades de seu trabalho, sendo assim, o QSN pode e deve
ser considerado.
Os questionários preenchidos pelos professores nos trouxeram um olhar geral
sobre as trajetórias dos participantes, conhecendo suas formações e seus níveis de
escolaridade. Foi possível constatar que os professores, em geral, buscam por
qualificação e verificar como na formação recebida por eles, mesmo na pós-
graduação, há quase ausência de disciplinas dedicadas às questões didático-
metodológicas para o ensino da língua portuguesa como segunda língua.
As entrevistas permitiram conhecer, de maneira mais aprofundada, a
formação que o questionário nos apresentou e nos trouxeram os olhares dos
professores a respeito de sua própria formação. Foi possível verificar que os
professores consideram que a formação recebida quanto ao ensino da língua
portuguesa como segunda língua foi pouca ou inexistente e, assim, reconhecerem
que a formação pode ser ampliada e aprimorada, apresentando esta demanda.
Diante disso, constatamos que a hipótese inicial deste trabalho, de fato, se confirma:
aos professores é dado uma tarefa para a qual não recebem a devida formação. Em
outras palavras: os professores tem a obrigação legal e curricular de ensinar a
língua portuguesa como segunda língua para os estudantes surdos, porém a
formação inicial, em geral, não provê tal demanda e a formação continuada, que
poderia preencher essa lacuna, não tem sido ofertada de forma a subsidiar os
professores para tal prática.
A pesquisa aqui exposta possui, claro, suas limitações. Os dados e as
análises apresentadas se limitam aos recortes e contextos que foram trazidos em
capítulos anteriores, assim como às delimitações impostas pela perspectiva da
236
REFERÊNCIAS
SACKS, O. Vendo Vozes – uma viagem ao mundo dos surdos. 6ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
FORMAÇÃO:
1) Graduação
Curso de graduação: __________________________________________________
Instituição onde cursou a graduação: _____________________________________
Ano de Conclusão do Curso: ____________________________________________
Em seu curso de Graduação, você cursou alguma disciplina relacionada ao ensino
de língua portuguesa como segunda língua para surdos? Quais?
___________________________________________________________________
2) Pós-Graduação (Lato sensu)
Curso de pós-graduação: _______________________________________________
Instituição onde cursou a pós-graduação: __________________________________
Duração do curso:_____________________________________________________
250
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
2) Em sua trajetória formativa, em qual etapa você considera ter recebido a
formação para o ensino de língua portuguesa como segunda língua para surdos?
( ) Na graduação
( ) Na pós-graduação lato sensu
( ) No mestrado
( ) No doutorado
( ) Nas formações recebidas pela SME
( ) Em curso (livre, extensão, aperfeiçoamento) buscado por iniciativa própria
( ) Não recebi formação relacionada ao ensino de língua portuguesa como
segunda língua para surdos