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Matgioi - A Via Metafisica

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Matgioi - A Via Metafísica

APRESENTAÇÃO

Albert Puyou, conde de Pouvourville, nasceu em Nancy (França) em 1862. Participou de


expedições francesas à China, aonde ocupou diversas funções militares e a administrativas.
Sua prolongada permanência no Tonkin e em diversas províncias lhe permitiu penetrar no
espírito chinês. Logo ele encontrou um mestre taoísta que o preparou para receber a iniciação
em uma sociedade secreta chinesa, o que aconteceu logo em seguida. Albert de Pouvourville
tomou o nome de Matgioi, que significa “olho do dia”. Ele voltou ao Ocidente e dedicou-se a
difundir, na medida do possível, os ensinamentos taoístas. Em suas obras A Via Metafísica e A
Via Racional, ele expôs as doutrinas taoístas, tanto do ponto de vista principial como em suas
aplicações diversas. Foi também autor de diversos ensaios sobre a China e sobre as colônias
francesas na Ásia. Faleceu em 1939.

Assim, não é de estranhar o modo como ele se refere aos povos do Oriente, que na ocasião
ainda se distinguiam dos ocidentais pela obstinada defesa de seu antigo modo de vida e pela
conservação de seus valores tradicionais, malgrado a opressão exercida pelas potências
coloniais da época. Esta condição opressiva explica também, em parte, a aversão que o autor
demonstra pelas instituições políticas, religiosas e intelectuais européias da época em que o
livro foi escrito.
NOTA EXPLICATIVA

Isto não é um prefácio aonde, pronto para a discussão, eu apresento a Tradição oriental à
crítica ocidental; pois, no que concerne às coisas do espírito, seria mais polido, lógico e normal
apresentar o Ocidente ao Oriente, desde que este último assim o permita.

Eu não quis desde o início colocar em oposição duas doutrinas, ou, melhor dizendo, dois
ensinamentos  humanos sobre uma doutrina. Eu apenas pensei que, numa época onde todos
se esforçam em voltar às fontes da ciência humana, a fim de encontrar aí a verdade ainda não
poluída, seria bom apresentar a fonte primordial e tradicional de todo o conhecimento, o veio
inicial do qual toda a Humanidade é tributária; eu a resgatei do limbo numa operação delicada,
em primeiro lugar porque hoje em dia as temporadas obrigatórias no Extremo-Oriente são
feitas mais com o intuito de cortar cabeças do que para decifrar e compreender os textos;
depois, porque a ideografia em que está encerrada a Tradição é incompreensível, ou quase,
para a raça branca; e enfim porque, se ainda sei contar, existem precisamente cinco europeus,
dos quais um acaba de morrer, e que receberam, ao mesmo tempo que os meios materiais
para ler, a capacidade intelectual de chegar ao fundo de sua leitura.

Eu dividi este trabalho em três partes: uma – que eu apresento aqui – relata, sob o título de “A
Via metafísica”, os princípios da Tradição e seu movimento filosófico e cosmogônico; a
segunda, sob o título de “A Via racional”, relatará a sistematização da Tradição, com o
Taoísmo, ou “O Caminho e a virtude da Razão”, de Lao Tsé; a terceira, com o título de “A Via
social”, relatará a adaptação da Tradição, com a filosofia política e comunista de Kong Tsé
(chamado de Confúcio pelos missionários cristãos).

Esta tarefa delicada, e da qual posso dizer que me desincumbi, senão com felicidade, ao
menos com escrúpulo, sem dúvida não trará frutos agradáveis ao paladar europeu. E no
entanto devo confessar que, com o objetivo, mais prático do que louvável, de permitir a
compreensão dos textos sagrados da antigüidade oriental, eu empreguei muitas vezes a
fraseologia ocidental, e mantido, mais do que o raciocínio adequado a estes textos, o raciocínio
adequado aos cérebros dos leitores, sempre que ambos conduzissem a uma conclusão
idêntica.

Eu tomei a liberdade de agir assim, para que os ensinamentos da “Via metafísica” possam ser
acessíveis sem comentários; assim, eu adaptei imediatamente à mentalidade ocidental os
comentários que fiz, em lugar de conduzir a uma tradução, sempre fatigante, em linguagem
ocidental, das teorias em língua oriental, que me teria sido mais simples expor.

Não agirei assim na “A Via racional”, nem na “A Via social”; pois não existem aí raciocínios a
acrescentar aos ensinamentos de Lao Tsé e de Confúcio, mas apenas alguns esclarecimentos.
Além do meu próprio gosto, eu fui levado a esta rigidez de transposição, ao ver os resultados
cômicos obtidos por alguns recentes pseudo-tradutores, que acreditaram poder embelezar e
aperfeiçoar o “Livro do Caminho” e que, ao fazê-lo, não tinham sequer a desculpa de serem
membros do Instituto.

E se, após a leitura árdua ou a rejeição pura e simples destas difíceis mas maravilhosas
doutrinas, me for negado o mérito de ter sido elegante, interessante e agradável, ao menos eu
terei dado o testemunho de ter sido sempre um intérprete respeitoso da tradição, e um filho
exato e piedoso dos mestres que a ensinaram a mim.

Este testemunho libera minha consciência. É somente dela que eu sempre fui, e permaneço
sendo, zeloso. Pois o sucesso desta pequena contingência, que é a exposição local de uma
doutrina, não importa a um verbo que se sabe eterno.

Matgioi
I
A TRADIÇÃO PRIMORDIAL

As religiões atuais dos povos amarelos compõem-se de uma mistura de elementos diversos.
Não vemos aí mais do que um emaranhado popular, saído de três fontes geradoras: a religião
primitiva, o Taoísmo e o confucionismo. Estas três influências, amalgamadas de modo mais ou
menos feliz ao longo dos séculos, constituem a religião tradicional do império: a essas três
influências correspondem três liturgias, que formam o conjunto das cerimônias oficiais e
populares.

Os viajantes, os missionários, todos os estrangeiros às raças amarelas, que julgaram o status


tradicional chinês desde o exterior, tomaram a aparência pela realidade: tivessem aliás eles –
que jamais mostraram nem tempo nem disposição para tanto – tentado penetrar mais, e teriam
sido impedidos pelos detentores da Tradição Primordial, esta que não se encontra vulgarizada
entre o povo amarelo[1], e que a fortiori é escondida aos bárbaros vindos de longe.

É fácil desconhecer aqueles que querem permanecer desconhecidos. É o que fizeram os


sábios ocidentais brancos diante dos sábios orientais amarelos, e com tanto mais impunidade
quanto menos havia quem se apresentasse para lhes dar a réplica; acreditando poderem
passar sem eles, ignoraram-nos: e é assim que a mui venerável tradição ocidental, para
voltarmos ao começo dos tempos, subiu a Escada de Jacó, e, na falta de melhor, apegou-se a
este judaísmo, que não passa de uma sangrenta paródia de antigos cultos hindus, e a este
mosaísmo, que não é senão uma adaptação egípcia lavada no Mar Vermelho.

Hoje temos conhecimento de melhores e mais nobres origens; e se as conquistas coloniais da


Europa não tivessem mais do que este resultado, elas ainda seriam dignas da gratidão do
espírito humano, ao qual elas revelaram, inconscientemente bem entendido, as tradições
cuidadosamente escondidas atrás das Grandes Muralhas, abrigadas pelas civilizações mais
fechadas e mais antinômicas à nossa mentalidade.

Quero tentar aqui abrir para o vigésimo século ocidental este tesouro guardado desde cinco mil
anos atrás, e ignorado por alguns de seus guardiães. Mas primeiro quero estabelecer as
principais características dessa tradição, graças às quais ela aparece como a Tradição Primeira
(e por conseguinte verdadeira), e sobretudo determinar, pela prova humana e tangível que nos
deixaram seus autores, como os monumentos desta tradição remontam a uma época na qual,
nas florestas que cobriam a Europa e mesmo a parte ocidental da Ásia, os ursos e lobos mal se
distinguiam dos homens, como eles cobertos de pelos e se alimentando de carne crua.

Quando Fo Hi, este enigmático imperador, escreveu, há três mil e setecentos anos antes de
Cristo, ou seja dois mil anos antes de Moisés, os arcanos metafísicos e cosmogônicos que
serviram de trama ao Yi Ching, ele declarou retirar respeitosamente seu ensinamento do
passado, declarando-o sábio, prudente e muito difícil de determinar.

E, disse ainda, ele compreendia que algum dia, para as raças futuras, seu tempo seria também
um passado igualmente obscuro e difícil de precisar.

Ele então data a sua obra, não por meio de uma época convencional ou com o nome de um
soberano cuja celebridade e memória o tempo apagaria, mas através de um estado solar e
estelar, que ele descreveu em todos os detalhes, e para o qual, sem erro possível, os
astrônomos do futuro poderiam assinalar uma cronologia. Assim, enquanto os patriarcas
hebraicos deram, em meio a grossos livros e vetustos escritos, um inútil trabalho aos
beneditinos, é bastante, para conhecermos a data exata de Fo Hi e seu I Ching, colocarmos
uma luneta nas mãos de um dos inumeráveis discípulos do Sr. Camille Flammarion[2]. Sem
dúvida Fo Hi não temia nem o controle nem o desmentido da posteridade. Se insistimos nesta
maravilhosa precaução, foi não só para mostrarmos a que perfeição chegara, já nesta época, a
ciência da astronomia, mas para fazermos compreender, de uma tirada, o espírito prático,
engenhoso, lógico e sem névoas, que possuíam os sábios[3] chineses de cinco mil anos atrás,
espírito que os distingue de todos os reformadores de povos, que, chegados bem depois à
terra, não viveram senão nas lendas e não escreveram senão parábolas.

Para os milhões de indivíduos que povoam o Extremo-Oriente, qualquer que seja a forma
exterior de suas crenças, nunca houve, no que diz respeito à origem das coisas, à essência
divina, às relações do céu com a terra e com os homens, nunca houve, em época alguma,
histórica ou lendária (e a história da China é autêntica desde há cinco mil anos), nem revelação
divina, nem intervenção do alto. Nos livros, nas glosas, nas tradições, não há nada de
“sobrenatural”: a idéia nunca foi lançada; a palavra nunca foi pronunciada. Nenhum patriarca
viu o Senhor, como Moisés; nenhum homem entreteve conversas com os anjos, como Maomé;
nenhum santo atingiu em vida a perfeição eterna, como Buda; nenhum Deus desceu sobre a
terra, como o Messias.

Para acompanharmos sua severa lógica, para compreendermos a inegável claridade da


tradição chinesa, é preciso frisar com todas as letras esta distinção original: é que ela se diz
humana, e não reclama senão as luzes humanas, à exclusão de todo mistério divino e mesmo
de todo postulado metafísico.

Apesar de um erro muito generalizado da lingüística, uma revelação é exatamente o contrário


de um esclarecimento: revelar é o oposto de desvelar, como recobrir é o posto de descobrir;
uma revelação é uma nuvem colocada sobre a verdade, nuvem cujas formas convém à estética
moral do momento; é, para falarmos sem rodeios, um engano adequado aos sentimentos e às
necessidades do momento em que é formulado, e destinado a ser, no futuro, controvertido,
negado e substituído, na medida em que os sentimentos que o fizeram nascer vão se
transformando.

Trata-se de uma brincadeira de Deus? Ou, ao contrário, não convém destacar que a suposta
“revelação” feita por um deus que fala, anda e vive, não passa de uma conseqüência do
antropomorfismo inconsciente que foi e continua sendo o mestre soberano das concepções
teogônicas de uma boa porção do gênero humano?

Mas os mestres do pensamento extremo-oriental não tiveram necessidade do concurso do céu


para dissipar os erros ou para criar símbolos.

Seus povos, satisfeitos com a verdade que eles jamais perderam, não reclamavam ornamentos
para cobri-la; eles não pediam a manifestação de Deus, pois achavam-se ainda muito próximos
d’Ele ainda para esquecê-lo ou confundi-lo. Na Tradição intacta e nas palavras daqueles que a
transmitiam, eles viam com clareza o próprio céu e suas obras; e contentes por
compreenderem o Pai de quem descendiam, não sentiam urgência alguma de que uma
divindade surgisse aos seus olhos, sob uma forma mais ou menos tangível, para lhes impor
uma doutrina feita por homens mas cheia de mistérios que espantam o bom senso e invertem a
lógica humana.

E pelo fato de que a tradição primordial pode perpetuar-se entre os povos amarelos – a quem
devemos os primeiros monumentos da escrita e da ciência – sem que tivesse tido a
necessidade, para triunfar, da violência de um deus ou da intervenção celeste, é por isso
mesmo que devemos reconhecê-la como sendo a mais apropriada ao gênero humano, além de
ser intacta e verdadeira.

Esta tradição, que não foi desvelada nem revelada por um deus, que não foi dogmatizada nem
decretada pelos representantes, oficiais ou oficiosos, de alguma divindade, não se reveste de
nenhum dos caracteres próprios às coisas que estão a priori acima da natureza humana e, por
isso mesmo, fora da discussão dos homens.

Coloquemos a seguir as consequências práticas, na vida cotidiana dos povos amarelos, desta
origem indiscutível da Tradição Primordial: e também reconheçamos que, mesmo fora
satisfazer a lógica e tornar possível seu estudo racional, os chineses tiveram uma felicidade
inusitada devida à modéstia de seus primeiros sábios, que foram também seus primeiros
imperadores, e que não consideraram necessário, para serem ilustres e obedecidos, fazer
saírem seus decretos do antro de alguma sibila, ou caírem de uma montanha coberta de
nuvens. Felizes povos, sem dúvida, aqueles que não foram constrangidos a uma luta perpétua
entre sua razão e seu coração, que tiveram sempre o auxílio e a voz do Céu ao seu alcance,
que encontraram em sua tradição sagrada o meio para alcançar tanto sua prosperidade
imediata quanto sua felicidade futura, a quem nenhum poder misterioso inculcou o temor de um
soberano das alturas terrível e vingador, e para quem o pensamento da morte, natural e
inevitável, não envenenou a vida terrestre com os terrores do desconhecido.
De fato, esta Tradição, à qual todo homem amarelo, mesmo sem a compreender bem ou sem
aprofundá-la, está tão ligado como à sua família, sua terra e seu sangue, por ser ela, em
resumo, toda a herança intelectual e moral dos Ancestrais, esta Tradição não reclama para si
uma origem divina (pelo menos não direta nem especial para uma dada raça); ela ignora a
doutrina teocrática imposta; ela não constitui dogmas religiosos. O corolário é imediato: todas
as religiões, todas as liturgias, que florescem mais ou menos no Extremo-Oriente, não
possuem origem tradicional; elas não participam do caráter absoluto e indestrutível de uma
herança transmitida; elas não passam de “faculdades”: elas não podem pretender a obediência
que devemos às coisas legadas como certas, nem o respeito que devemos às coisas legadas
como antigas. A Tradição em pessoa não se impõe senão por sua clareza e a virtude poderosa
de seu passado. Como as religiões, traduções mais ou menos puras desta tradição, com a
finalidade de mais facilmente adaptá-la ao vulgo, ousam tomar este caráter de certeza
obrigatória, que em nenhuma parte é imposta pela própria Tradição?

*********

“Amem a Religião; desconfiem das religiões”. Esta máxima, inscrita no frontão dos templos e
no espírito dos homens, é o único conselho dado à raça amarela; e este conselho não é uma
ordem. Mas ele define, com uma concisão inigualável em sua clareza, como a Religião é
precisamente a Tradição Primordial, exclusivamente humana, e como as religiões, com suas
intervenções celestes, são maneiras mais fáceis, mas menos exatas, de se alcançar a Religião.
E podemos ver de imediato, a partir deste sistema tão lógico, simples e natural, ou, melhor
dizendo, tão anti-sobrenatural, as consequências profundas que decorrem para toda a vida
intelectual, moral e mesmo material dos povos sábios o bastante para segui-lo.

“A Religião não possui obrigações”. Pois, a partir do momento em que, aplicada em conhecer a
Essência da Via de todos os seres, a razão puramente humana dos primeiros Sábios deduziu
seus símbolos e seus ritos, tornou-se impossível obrigar os homens a crer neles e praticá-los:
aquilo que saiu de um cérebro humano não é a priori obrigatório para outros cérebros
humanos. Os mestres mais reverenciados procuraram esclarecer os dogmas tradicionais da
forma mais brilhante e definitiva; mas aquele que não compreende não está obrigado a nada; e
aquele que não tem tempo para tentar entender não está obrigado a nada. E, assim como os
letrados mais sábios e mais estudiosos, ele será igualmente arrastado na evolução geral, da
qual felizmente não poderá escapar uma vez que existe.

“A Religião não possui sanções”. Pois não é senão em nome de um Deus, invocado mais ou
menos logicamente, que os homens podem ameaçar seus semelhantes com penas ou
represálias, se outros não crêem em tudo o que eles dizem, por incompreensíveis que sejam
suas colocações; e, para que suas ameaças tenham um efeito ativo, é preciso que estes
homens se declarem e sejam aceitos como os ecos de um Deus ausente e rigoroso. Portanto
aqui ninguém é obrigado a nada; cada qual é simplesmente engajado ao esclarecimento
segundo suas aptidões e seus meios, e, qualquer que seja o resultado do trabalho intelectual
assim empreendido, nenhuma pena, nem na vida terrestre nem nas outras, estará suspensa
sobre as cabeças daqueles que não seguiram em seu coração os ensinamentos tradicionais.
“A Religião não tem exclusividade”. É perfeitamente lícito, desde que as leis não sejam
infringidas, praticar o Taoísmo, o budismo, o confucionismo, ou qualquer outro culto exterior; é
permitido mudar; é permitido não pertencer a nenhum: não existe anátema contra a pessoa.
Como o Céu constitui, ao final da evolução, a universalidade dos seres, reprovar ou condenar
uma parcela necessária desta universalidade eqüivale a retardar esta evolução (se isto fosse
possível).

“Não existe religião de Estado”. Nem culto do Estado ou de sacerdotes funcionários; o Estado
não protege nem proscreve nenhum culto; não existe proselitismo. O estudo das religiões é
feito à vontade por ouvintes voluntários junto a mestres gratuitos; todos os cultos acontecem
lado a lado, sob o olhar indiferente do Estado, com a única condição de que permaneçam
dentro do domínio das consciências, que não disputem os adeptos uns dos outros e que, por
ambição ou turbulência de seus representantes, não fomentem no Império nem problemas nem
rebelião contra a lei. Não existe perseguição: as medidas tomadas no curso da história contra
certos cultos novos foram sempre respostas e nunca ataques.

“Não existe culto pago”. Cada seita ou cada crença mantém seus templos e seus sacerdotes,
segundo o número e a generosidade dos adeptos; ninguém se importa com o que acontece no
fundo desses edifícios – nos quais, em geral, não se passa nada – uma vez que as religiões
são sobretudo metafísicas e as liturgias não pertencem especificamente a nenhuma delas. E se
o Estado determina o local e a época das honras confucionistas nos pagodes comemorativos, é
porque as cerimônias instituídas em honra a Confúcio nunca constituíram, nem de perto nem
de longe, uma religião, mas apenas um rito civil.

A Religião, ao menos no que concerne a estas traduções a que chamamos religiões, e


sobretudo no que diz respeito ao culto exterior, não é sequer um assunto de família; o
nascimento, o casamento e a morte não são assuntos religiosos, precisamente porque são
assuntos naturais; e é o chefe da família que é aí o único sacerdote. No pagode do bonzo
como no altar da família, coloca-se, com todo seu respaldo legal, a autoridade soberana do pai,
e com todo seu poder antigo, o culto familiar dos Ancestrais, imagem, reduzida a cada geração,
da Tradição primordial e geral da Humanidade. A religião é assim uma questão de consciência
pessoal e de liberdade individual; os princípios da metafísica e da filosofia tradicionais são
transmitidos, dentro da família, pelos letrados que fazem parte dela. Nada transpira para fora
dos muros que encerram o recinto patriarcal; e ninguém teria a temeridade, de resto inútil, de
romper a barreira moral que protege assim a independência e a dignidade dos cidadãos.

As liturgias não exigem nenhum sinal exterior. Os ritos, determinados por séries de leis e
regulamentos, fazem parte dos princípios do Império; e como a prática religiosa fica assim
reduzida a nada, as teorias não são objeto, entre aqueles que observam os diferentes ritos,
senão de discussões corteses e sorridentes, onde não brilha a cólera nos olhares nem o fogo
das fogueiras.

Quanto à conduta moral dos povos, que parece ser o objetivo terrestre e imediato das religiões,
o filósofo naturista que foi Confúcio dela se encarrega, fora de qualquer intervenção divina; e
sabemos de que maneira magistral este doce letrado educou seus discípulos, e como ele
conquistou a alma de sua raça, ao contrário do que fizeram os profetas da Judéia e do Islam,
recebidos em meio a carnificinas e maldições.

Assim, o primeiro dos homens, Fo Hi[4], cristalizou a Tradição Primordial, Lao Tsé tirou dela
um corpo doutrinal e Confúcio deduziu um sistema moral. Podemos dizer que uma destas
heranças intelectuais ou que sua amálgama formam uma Religião no sentido que o Ocidente
dá ao termo? É impossível; nada seria mais contrário à verdade. E no entanto não existe outra
coisa, nas raças amarelas, para religar o homem a Deus; não existe país no Universo aonde a
crença no Ser Supremo seja mais universal e pareça mais razoável do que nos países de raça
amarela. De onde vem esta aparente contradição? Ela vem da própria essência da Tradição.
Não existe necessidade de religião para religar o homem ao Céu[5], basta a tradição: ela é o
cordão metafísico através do qual a Humanidade permanece atada à Essência; nada a
rompeu; nada a relaxou; e será assim ao longo do tempo. A Humanidade jamais cessará de
nascer: e, se ela parar de nascer, ela terá se tornado, precisamente então, Aquele que a
engendrou. Esta é a pedra angular da Tradição. Protegidas pelas melhores leis e pela mais
calma história, as raças amarelas jamais perderam de vista esta pedra angular; uma
intervenção celeste não lhes acrescentaria nada; e é por isso que esta intervenção não se
produziu, e que nenhum sábio ou imperador achou útil simulá-la. É por isso que a crença no
Céu é universal, natural e lógica. Para um chinês, crer em Deus é crer em si mesmo. Nestas
condições, não existem ateus.

Para a prática cotidiana, a conseqüência é que, se o Ser Supremo está interessado nas
evoluções da criação, e notadamente da Humanidade, ele é indiferente a que a Humanidade se
ocupe dele. Assim, não existem sacrifícios, nem temores, nem esmolas, nem doações feitas
em nome desse temor: o Senhor do Céu coroa esta criação saída de si, esperando que ela se
aperfeiçoe até o ponto de entrar novamente nele. Ele, que é a fonte da qual nasce o rio e o mar
aonde ele se espalha e se perde, não poderia ser o inimigo das ondas que o compõem, em
nenhum momento do seu curso. E assim, sem negar as imperfeições que são o inevitável
cortejo da divisibilidade, o homem amarelo tem de si mesmo, de seu espírito e de suas
concepções, uma idéia de dignidade, que lhe vale sua continuidade celeste, e que em nada
lembra o rebaixamento no qual as religiões reveladas precipitam a criatura humana.

A ausência de ideal religioso nos motivos de suas ações é, para as raças amarelas, a causa da
estagnação secular em que sua civilização se nutriu? Ninguém poderia afirmá-lo. Mas esta
ausência de religiosidade, ao suprimir um poderoso fermento da discórdia, evitou muitos
conflitos ao longo de sua história. E esta falta de sentimentalismo, que lhes deu esta falta de
curiosidade em relação ao além e voltou seus olhares e seus desejos para a terra paternal e
nutris, as tornou mais facilmente e imediatamente felizes.

Em todo caso, é preciso ter sempre presente no espírito, quando estudamos ou penetramos a
Tradição Primordial, estas duas fórmulas que são a base de toda a ciência extremo-oriental: o
rebaixamento do homem não é um elemento necessário para a grandeza do céu; e o
sofrimento do homem não é um elemento necessário para a sua evolução.
II
O PRIMEIRO MONUMENTO
DO CONHECIMENTO

Não é apenas por um raciocínio cronológico que fomos conduzidos a buscar na raça amarela o
mais antigo monumento do conhecimento: foi  um raciocínio psicológico e lógico que nos levou
a constatar entre eles o monumento mais exato deste conhecimento.

Como os povos amarelos são essencialmente tradicionais, a essência de sua filosofia deveria
residir nos livros mais antigos: estes, escritos em épocas longínquas, quando as necessidades
do homem eram menores e quando o ardor dos desejos ainda não os levavam a obscurecer,
consciente ou inconscientemente, a verdade, deveriam ser a fonte de todos os ensinamentos
ulteriores. A piedade filial dos chineses considerava assim que tudo o que pudesse interessar
ao homem estava contido virtualmente nos primeiros livros, e que todas as respostas a todos
os problemas ali estavam potencialmente presentes: as soluções e os esclarecimentos,
necessários às ciências novas, deveriam ser encontrados nas leis antigas, em germe, e
deveriam ser desenvolvidas num sentido analógico às soluções dadas pelas ciências da época
em que eles foram compostos. A convicção desta síntese, tão poderosa que continha no ovo
todos os esforços concebíveis do espírito humano, forma o fundamento e a certeza de toda a
filosofia asiática, e desenvolveu o espírito analógico e dedutivo da raça amarela.

Esta manifestação do espírito, que venera as instituições e as doutrinas do passado até


subordinar a elas os atos do presente e as especulações do porvir, é também uma maneira de
honrar, até a mais primitiva parcela, o Ancestral comum de onde saiu toda a raça. O resultado
disto é duplo: em primeiro lugar, consistiu em conservar, através das vicissitudes das eras, os
livros da mais alta antigüidade, integralmente, e com uma fidelidade perfeita; depois, impediu
as divisões dos espíritos, os antagonismos dos sistemas, e criou, numa só corrente de
ensinamento, uma escola única, ligada a um mesmo autor, e aplicada ao mesmo objetivo,
pelos mesmos meios, toda a engenhosa tenacidade da raça. Este duplo resultado foi atingido;
veremos quais consequências isto trouxe para a vida intelectual, política e histórica da raça.

O primeiro livro da China – e que é também, de longe, o primeiro livro do mundo – remonta ao
imperador Fo Hi, o primeiro dos soberanos do ciclo histórico dos amarelos. Por mais que tenha
sido cercada de lendas, acrescentadas por um respeito ingênuo e popular, sua existência não é
nem contestável nem contestada. Ele reinou sobre aquilo que então se chamava China, a partir
do ano 3468 antes da era cristã. Esta cronologia assenta-se, como dissemos, não sobre
cálculos modernos mais ou menos fantasistas, mas sobre a descrição precisa do aspecto do
céu da época em que reinou Fo Hi[6].

Diremos agora que não se deve atribuir a Fo Hi as doutrinas transmitidas à posteridade sob
seu nome. Fo Hi, como todos os soberanos destas épocas longínquas, foi um sábio, um mago,
um chefe de escola: foi aliás por isso que ele foi escolhido soberano por sua raça (de fato, a
China só possuirá dinastias hereditárias depois do ano 2199 a.C.). Fo Hi tinha amigos,
discípulos, ministros. Todos fizeram glosas e interpretações de suas doutrinas, necessárias aos
hexagramas imperiais; e toda esta bagagem, amalgamada e misturada, tornou-se a “Doutrina
de Fo Hi”: “Fo Hi” é a razão social de uma escola metafísica, e de alguns séculos de
pensamento humano.

A obra de Fo Hi consiste em três tratados, dos quais perderam-se dois; os escritos


contemporâneos só lhes mencionam os títulos; eles são: o Lienshan (“cadeias de montanhas”),
ou seja o Livro dos Princípios Inalteráveis, contra os quais nada pode prevalecer; e o
Koueitsang (“o retorno”), ou seja o Livro ao qual todas as questões devem ser levadas para
encontrar suas soluções.

O terceiro tratado, que é o “primeiro monumento do conhecimento humano”, leva o título de Yi


Ching (“mutações na revolução circular”). Este título lembra-nos que todas as modalidades
aparentes do criador na criação são estudadas em sessenta e quatro símbolos (os
hexagramas), que formam um círculo, e dos quais o último está intimamente ligado ao primeiro
(temos aqui a ocasião de lembrar que os amarelos empregam freqüentemente o desenho no
lugar da palavra, para permitir a amplitude sintética de uma dada idéia).

Não há dúvida – frisemos – que existiram monumentos escritos anteriores aos tratados dos
quais o Yi Ching é o terceiro. Estes monumentos foram escritos, ou desenhados, ou
esculpidos, sobre o “Teto do Mundo”, berço único da Humanidade, com a ajuda de signos que
toda a Humanidade compreendia, antes de se dividir em migrações diversas, perdendo assim a
consciência de sua totalidade. O que foi esta escritura única, jamais saberemos a não ser por
apreciações aproximativas: pois um paleógrafo não reconstruirá uma escrita a partir de um
único traço, como Cuvier[7] reconstrói um mamute a partir de uma perna. Mas foi desta escrita
única que surgiram, em épocas concordantes e por processos de deformação paralelos, os
ideogramas chineses e os hieróglifos caldeus (ou sumério-acádicos). É possível aliás
determinar as influências, todas físicas, que presidiram a estas deformações.

Neste Pamir[8], que foi nosso berço comum, uma mesma língua, uma mesma grafia, ambas
perdidas, reinaram. Um dia, seja porque um cataclismo levou a estas altitudes o frio que lá
reina hoje em dia, seja porque, à força de pender das bordas rugosas dos platôs, a raça
humana tomou-se da vertigem das planícies desconhecidas, um dia chegou em que os
homens, através dos rios que nasciam nos primitivos planaltos, desceram aos níveis inferiores.
Assim fizeram os do Sul, os futuros Vermelhos, pelo Dzangbo e o Sindh, assim fizeram os do
Oeste, os futuros Brancos, pelo Syr e o Amou, assim os do Leste, os futuros Amarelos, pelo
Hoangho e o Yangtsé, todos, sem olhar para trás, deixaram a montanha ancestral que foi o
umbigo do mundo. Em meio a eles, os anciãos e os sábios levaram a Sabedoria e a Tradição.

Ora, nas margens férteis dos rios, sob o benévolo e quente sol do Extremo-Oriente, os povos
do Leste, educados pouco a pouco, encontraram o bac-chi (cay gio, phaongmoc), fibras das
quais eles tiraram um papel fino, leve, e pincéis mais macios do que a seda, instrumentos
maravilhosos entre seus dedos ágeis de artesãos e artistas. Com estes meios sutis de
transmissão, os rabiscos primitivos tomaram a figura de desenhos ornamentados de cheios e
vazios, sob a leveza do pincel e a habilidade da mão. Mas nos espaços tortuosos que se
estendem a oeste das montanhas Thianshan, sob o sol devorador da Mesopotâmia, os povos
encontraram na superfície do solo os granitos, as dioritas, os mármores, as pedras brilhantes e
duras, que, amontoadas em muralhas, assentaram sobre bases quase indestrutíveis os
monumentos do poder e da ciência caldaica. Então, tomando de martelos, os povos deste
Oriente talharam, com a ajuda de pontas de aço, os caracteres primitivos, que, erguendo-se do
cinzel sobre a superfície dos mármores, estrelaram-se em triângulos agudos e alongaram-se
em linhas rígidas.

Logo estas diferenças, devidas inicialmente apenas às dificuldades gráficas encontradas na


natureza, penetraram na essência dos hieróglifos e constituíram, pela deformação progressiva
dos caracteres e na medida em que as civilizações divergiam, diferentes escritas. Mas apesar
de tudo, o caráter essencial das representações permaneceu o mesmo; um espírito sintético
pode reconstituir o tipo primitivo, e descobrir, sob o véu das aparentes diversas, o mesmo signo
hieroglífico, luminoso e triunfante.

Ora, foi precisamente por saber que os hierogramas do 35 o. século a.C. não passavam de
deformações da escrita primitiva, sendo portanto insuficientes para representar pensamentos
abstratos e gerais, que Fo Hi empregou, para fixar a Tradição da única maneira conveniente
(ou seja, sintética e universal), os símbolos lineares dos Trigramas.

Pois a escrita do Yi Ching é de dois tipos: o trigrama para o próprio texto de Fo Hi e o


hierograma (caracteres primitivos de Koteou) para as glosas e paráfrases da Escola de Fo Hi.

A trama do Yi Ching consiste assim em sessenta e quatro hexagramas, ou trigramas duplos;


estes sessenta e quatro tipos provém, por uma revolução em sentido inverso de dois círculos
concêntricos, de oito trigramas; estes trigramas provém de quatro digramas; e estes digramas,
das diferentes posições de um traço cheio –  e de um traço truncado --.

Estes dois traços são as figuras simbólicas representativas mais simples que jamais existiram.
Aonde o imperador Fo Hi encontrou um simbolismo tão ingênuo? Neste caso como em outros,
e tanto para a escrita que traduz um pensamento quanto para este pensamento mesmo, Fo Hi
não se dirigiu nem às intervenções celestes nem às potências invisíveis, mas antes à natureza
que cercava e encantava sua raça. Foi da sua altura de homem que, com lógica indiscutível,
ele assumiu a tradução da Tradição que deveria esclarecer e guiar a Humanidade. Com efeito,
o livro histórico dos “Ritos de Tsheou” diz: “Antes de traçar os trigramas, Fo Hi olhou para o
céu, depois baixou os olhos para a terra, observando suas peculiaridades e considerando as
características do corpo humano e de todas as coisas exteriores”. Vale dizer que os dois traços
indicam um duplo estado, ou melhor, a igualdade entre dois estados, comuns a toda a criação.
Convém aproximar deste símbolo em linha reta o mesmo símbolo em linha circular, conhecido
por toda a antigüidade oriental e renovado pelos taoístas, o Yin-Yang, representação do
princípio duplo, ativo-passivo, positivo-negativo, masculino-feminino, luminoso-obscuro, etc.,
que quando dividido em suas duas partes por um observador analítico produz o erro fatal do
Bem e do Mal, mas que, indissoluvelmente um em essência (malgrado o aspecto que a
representação material é obrigada a lhe dar) constitui o Tai Chi ou Grande Extremo, símbolo
enérgico e absoluto, gravado no frontão de todos os templos, e que Lao Tsé colocou à frente
de todas as doutrinas asiáticas.

O traço sem solução de continuidade representa o ativo; o traço com solução de continuidade
representa o passivo; e sendo os traços como os princípios, Fo Hi reconhecia assim a essência
e a unidade da perfeição, da qual eles não passam de aspectos. Cuidemos bem, aqui mais do
que em qualquer outro lugar do mundo, de não confundirmos a coisa com a forma deteriorada
sob a qual podemos representá-la, e talvez mesmo compreendê-la: pois os piores erros
metafísicos, os piores cataclismos morais nasceram da compreensão insuficiente e da má
interpretação dos símbolos. E lembremo-nos sempre do deus Janus, que é representado com
dois rostos, mas que não possui senão um, que não é nem um nem outro que podemos tocar e
ver.

Esta é a interpretação do simbolismo dos traços dos hexagramas de Fo Hi; ela demonstra que
o Yi Ching é um livro universal e não um tratado de astronomia, como quiseram os japoneses e
os latinos niponizantes[9].

Os ideogramas que constituem as glosas e paráfrases da Escola de Fo Hi (dos quais os mais


importantes são as “fórmulas” de Wen Wang) estão escritos em caracteres primitivos
chamados Koteou; estes caracteres são a origem das “chaves” que existem ainda hoje na
escrita ideográfica chinesa. Não temos mais, nos documentos do Extremo-Oriente, a escrita da
Escola de Fo Hi; e poder-se-ia duvidar de seu valor e de suas formas, se esta escrita, que não
sobreviveu nas pinceladas dos manuscritos, não tivesse, como as rochas, e esculpida nas
rochas, resistido ao tempo e às revoluções. Os hierogramas em questão acham-se na célebre
inscrição de Yu, sobre a montanha de Heng Chan, conservada em Singan-Fou, primeira capital
da China histórica e uma cidade que permanece sendo, não apenas uma épica lembrança da
antigüidade chinesa, mas até hoje um refúgio sagrado que abrigou vitoriosamente os
soberanos da China moderna contra as tentativas guerreiras da coalizão européia.

Além de seu valor escultórico, esta inscrição é bastante interessante para que a mencionemos
textualmente, ao menos em parte. Ela é, de fato, contemporânea do dilúvio hebreu, e o
menciona. Ela remonta exatamente a 2276 a.C., ou seja é cinco séculos mais antiga que os
mais antigos hieróglifos egípcios.

“Ajudem-me, meus conselheiros, na administração dos negócios. A oeste e além das


montanhas, as grandes e pequenas ilhas, os planaltos habitados, as moradias dos pássaros e
dos quadrúpedes, estão inundados. Atentem para isso, façam escorrer as águas e levantem os
diques para impedir uma nova inundação”. E mais adiante: “Há muito tempo que eu esqueci
completamente os meus, para reparar os males da inundação; mas agora eu posso repousar: a
confusão da natureza cessou; as grandes correntezas que vinham do Sul escorreram para o
mar”.

Evidentemente faz tempo que sabemos que o dilúvio bíblico foi uma inundação parcial e um
cataclismo bastante medíocre; mas como cada qual estima as coisas conforme o bem ou o mal
que elas lhe provocam, o imperador Yu não viu mais do que um transbordamento provincial,
aonde o historiador hebreu enxergou a destruição da natureza, e portanto o dedo de seu
Jeová; alguns diques poderiam prevenir uma inundação análoga, e é o ministro dos trabalhos
públicos que substitui aqui a pomba da arca de Noé. Mais uma vez, a inscrição de Yu nos
convida a não tomarmos ao pé da letra as afirmações grandiloqüentes das pequenas nações, e
a nos lembrarmos, por exemplo, que no 22 o. século antes de Cristo, não era preciso muita água
para afogar a raça e o poderio judaicos[10].

As glosas que acompanham o hexagramas de Fo Hi – e que estão todas transcritas hoje em


dia na escrita ideográfica moderna – compreendem:  as fórmulas do príncipe Wen Wang,
fundador da dinastia dos Tsheou (1154 a.C.); as fórmulas de Tsheou Kong (1122 a.C.); os “Dez
golpes de asa” de Confúcio (aprox. 500 a.C.); o “comentário tradicional” de Tcheng Tsé (1150
d.C.); e o “sentido primitivo” do célebre Tsou Hi (1182 d.C.). cada um destes comentadores
esclareceu o texto de Fo Hi e de Wen Wang com as luzes preferidas de seu espírito. E como
esse texto é sintético e universal, nós veremos passar, um após outro, os sentidos metafísico,
político, mágico, moral, social ou divinatório, conforme as tendências particulares dos exegetas.

Apenas sua audácia tranqüila iguala a simplicidade de seus raciocínios. Lembremo-nos que Fo
Hi e Wen Wang – sobretudo Fo Hi – consideravam-se como intérpretes do Verbo Eterno, sem
necessidade de imaginar um intermediário divino entre este Verbo e eles.

É por isso que o Yi Ching, cuja análise direta iremos começar, abre com o estudo tangível da
Unidade e da Perfeição, ou seja pelo estudo humano do céu. E nós não obedecemos ao amor
do paradoxo, mas ao da verdade, ao colocarmos, no início deste estudo, os “Gráficos de
Deus”.
Que o sentido da fórmula esteja envolto em trevas, disto não se duvida: estas trevas são
devidas, por um lado, ao hábito sintético do raciocínio chinês, e ao caráter ideogramático de
sua forma gráfica. Para citarmos Philastre: “O caracter chinês não possui jamais um sentido
absolutamente definido e limitado; o sentido resulta de sua posição na frase, e também no seu
emprego neste ou naquele livro, e da interpretação admitida no caso. A palavra não tem valor
fora de suas acepções tradicionais”. Aqui a obscuridade do texto e dos comentários aparece,
ademais, como uma vontade contida de fornecer, no mesmo conjunto de caracteres, sentidos
paralelos e igualmente verossímeis, que podem ser lidos e compreendidos de tantas maneiras
quanto graus há no entendimento, quanto ciências existem na Humanidade, quanto mundos
existem no universo intelectual. Por estas características específicas é que reconhecemos que
o Yi Ching é bem o “Livro”, sem epíteto, ao mesmo tempo sintético e abstrato, lógico e
divinatório, político e metafísico, ontológico e moral, e que as escolas da China não erram ao
consultá-lo e citá-lo em todos os campos.

A via de estudos dos filósofos chineses não é traçada como a dos filósofos ocidentais; é
impossível separar o pensamento chinês de uma certa ambigüidade; nossa inteligência vê aí,
não esta ambigüidade voluntária, mas uma certa confusão, indicador de uma impotência do
raciocínio. Nada mais falso do que este ponto de vista. A ciência oriental difere da nossa, não
apenas devido à raça e ao país, mas também por causa da época. Não devemos esperar
encontrar, nos descendentes de Fo Hi e nos contemporâneos de Lao Tsé, estas afirmações
claras e francas, que nos envaidecem singularmente, afirmações que são sem dúvida exatas,
mas que, por força de serem estreitas e estritas, não encerram senão uma mínima parte da
verdade; todas estas porções infinitesimais, afirmadas umas ao lados das outras, e
independentemente umas das outras, por nossos espíritos analíticos, escondem a inteireza da
verdade aos nossos olhos delicados e míopes. É assim que um rosto se reproduz, com as
piores deformações, num espelho talhado em mil facetas justapostas em planos diferentes. As
discussões microscópicas nos tornaram inaptos a experimentar e captar as grandes sínteses.
Eu comparo de bom grado o sentimento do ocidental transportado à China, ao de um
camponês das planícies levado subitamente ao alto do Monte Branco; os sentidos
desacostumados às profundidades e aos horizontes longínquos, o arrepio desconhecido da
vertigem, tudo o impediria de saborear o esplendor da paisagem. É um sentimento de
inquietude análogo, que nos toma diante dos sistemas e dos modos de raciocínio chineses, mal
preparados que estamos, por falta de costume, a captar, nesta ordem inalterável que rege o
universo, outra coisa que não seja uma teoria complicada, em cujos espaços e profundidades
nossos espíritos pouco perspicazes impacientam-se, recusam-se e se perdem, antes de chegar
à compreensão.

Aquele que pretende iniciar-se na Tradição Primordial, que nos oferece o primeiro monumento
do conhecimento, deve estar prevenido: ele se sentirá invadido por uma confusão vaga e
singular, não apenas devido à universalidade da síntese, mas também por causa da
generalidade dos termos empregados, da impropriedade forçada das interpretações, e da falta
total de preparação, em que se encontram os ocidentais, em ler e escrever, numa linguagem
analítica, aquilo que só possui sentido perfeito e valor integral nos ideogramas. Qualquer um
que queira penetrar profundamente no íntimo desta ciência e deste pensamento, é nos livros
originais, e não nos resumos escolásticos – e menos ainda nas adaptações estrangeiras – que
ele deverá buscar auxílio e luzes. Este é o grande defeito das obras dos sinólogos mais
distintos, como Stanislas Julien e tantos outros, para quem uma longa permanência no país
chinês, em meio a letrados chineses, teria fornecido, sem contestação nem hesitação, as
soluções que eles procuraram em vão, entre trabalheiras ingratas, na Sorbone ou no Collège
de France; foi uma permanência assim que permitiu a Philastre seu trabalho sobre o Yi Ching;
foi sua estada no Extremo-Oriente que teria possibilitado aos missionários, e dentre eles aos
Padres Huc e Prémare, ir fundo no entendimento dos arcanos mais obscuros, se a idéia
religiosa romana, em vista da qual eles trabalhavam, não houvesse conduzido seus espíritos
sobre um único caminho, forçando-os a tirar conclusões singulares em seus trabalhos, com as
quais eles não teriam sonhado se seu estado não lhes tivesse criado uma necessidade
inelutável.

Por essas razões e nessas condições, é impossível elucidar o Yi Ching senão através dos
filósofos e dos raciocínios amarelos. Mas ainda é preciso ver como pedir e obter esta ajuda.
Não se pode fazê-lo da modo como, por exemplo, os comentadores ocidentais, através de
fórmulas estritas e deduções imperturbáveis, iluminaram todos os belos aspectos do gênio
grego, por exemplo, precisamente porque este gênio, de onde saiu o gênio das raças latinas,
acomoda-se perfeitamente aos nossos modos de argumentação e de dissecação intelectuais.
Mas, pela mesma razão pela qual o gênio dos chineses nos parece, à primeira vista, vago e
abstruso, a vasta síntese chinesa foi, por tais meios, não dividida e esclarecida, mas
despedaçada e destruída, não deixando diante de nós mais do que um corpo morto e
enregelado. A aplicação de um livro para o esclarecimento de um outro não pode estender-se
de maneira absoluta, nem quanto às ideias, nem quanto à terminologia. Explicar um texto por
um contexto seria aqui o cúmulo da ingenuidade, e também do erro. Mas, após haver captado
o fundo do ensinamento de um filósofo – de Lao Tsé, por exemplo – inteirar-se do valor que ele
atribuía aos termos do Antigo Estudo, e, a seguir, colocando-se diante do texto confuso e de
múltiplas interpretações de um dos primitivos Ching, induzir a maneira como Lao Tsé o teria
entendido, tal é a única maneira válida de esclarecer os textos orientais uns através dos outros,
e de encontrar seu pensamento em meio aos símbolos. Eles parecem divergentes; eles são
apenas diferentes. Mas todos apontam para a verdade única, assim como as ondas do mar,
que parecem diferentes na altura, na cor e na direção, caminham para o mesmo fim, sob as
influências constantes das monções e das marés.

III
OS GRAFISMOS DE DEUS

Como uma criança, a quem melhor ensinamos a nadar atirando-a bruscamente na água do que
sustentando-a pela cintura e dando-lhe lições com mestres mergulhadores, melhor é
precipitarmo-nos, arriscando-nos a perder pé talvez, na metafísica sagrada dos povos
amarelos. Depois de algum aturdimento e muita atenção, todo espírito sensato e refletido
encontrará seu caminho.

A diferença entre as concepções, ocidental e oriental, de Deus e da origem dos deuses, e da


idéia de Deus, é primordial e absoluta. No Ocidente, nossas línguas alfabéticas dão ao nosso
objeto de estudos o nome de quatro letras, Deus, que é de um concretismo maravilhoso e tão
preciso, que vemos por toda parte seus limites; e, ainda insatisfeitos com esta designação, os
ocidentais a ilustram por meio de um ancião barbudo tendo nas mãos um leque de raios, ou por
um triângulo em cujo centro está um olho. Aqui, o que chamamos Deus não possui um nome;
ele é representado por um caracter denominado Tien (que, em mandarim falado traduz-se por:
céu); este caracter supõe e compreende uma quantidade de propriedades específicas, não do
céu, mas daquilo que está no céu e além do céu. Assim, o Deus dos amarelos, em sua
denominação, não tem um nome particular; é uma idéia geral. E no entanto Fo Hi, o primeiro
sábio histórico da China, julgou que esta “idéia geral” era insuficiente, injusta e geradora de
erro; e ele substituiu o caracter por um desenho geométrico, inespecífico, tão generalista
quanto possível, e cuja forma seria representativa dos raciocínios necessários para a
aproximação a uma idéia que não é possível conceber; assim este desenho geométrico tomou
o valor de um arcano metafísico.

A ambição do ocidental é de ser compreendido; a ambição do oriental é de ser verdadeiro; em


teogonia como em metafísica, como em toda ciência transcendental, estas duas ambições são
excludentes. Não podemos captar a verdade se estamos cercados e como que embrulhados
em erros. Nosso dever é o de sempre distinguir este erro, inconsciente e necessário, da
verdade que ele cobre; e também o de diminuir sua espessura e quantidade a fim de que,
através deste envelope cada vez mais delgado, a verdade resplandeça enfim.

Foi neste estado de espírito que os sábios amarelos construíram os grafismos de Deus. Estes
grafismos carregam a denominação genérica de “Perfeição”. São enumeradas duas perfeições
(e portanto dois grafismos de Deus): a perfeição ativa e a perfeição passiva[11]. Mas não
existe, em realidade, senão uma única perfeição; e livremos desde já a metafísica chinesa da
acusação de dualismo que lhe foi feita, a respeito, por espíritos insuficientemente
documentados.

Não existe mais do que uma única perfeição, uma só idéia de Deus, uma só “causa inicial de
todas as coisas”, Esta perfeição, chamada de “ativa”, é geratriz e reservatório potencial de toda
atividade; mas ela não age. Ela é e permanece em si, sem manifestação possível; ela é assim
ininteligível ao homem, no estado presente do composto humano.

Desde que esta perfeição manifestou-se, ela – sem deixar de ser ela mesma – sofreu a
modificação que a tornou inteligível ao espírito humano; pouco importa que esta manifestação
tenha sido um ato simples de vontade, ou uma ação verdadeira; pelo simples fato de que esta
perfeição agiu, ela se torna passível de conceituação e recebe a denominação de “perfeição
passiva”(Khouen). A Perfeição é uma e ininteligível ao homem: para que se possa falar dela, é
preciso que ela se torne, ou ao menos que possamos supor que ela se possa se tornar
inteligível. E assim nos a representamos por dois grafismos diferentes. Mas não existe senão
uma só e mesma perfeição, e uma só causa inicial.

Lembremo-nos que nosso espírito não capta senão o número, que ele não está apto para
captar a Unidade, e menos ainda o zero, que é a unidade antes de qualquer manifestação.
Lembremo-nos também que não se pode dizer que haja dualismo senão aonde existem dois
princípios contrários ou diferentes; e que dois ou cem aspectos de um mesmo princípio não
podem constituir nem dualismo nem multiplicidade. Aqui, como em toda parte, o Grande
Princípio é um, e é para situar sua unidade não-manifestada acima de todas as tentativas
possíveis da inteligência humana, que o sábio propõe, para nossa contemplação e nosso
estudo, não o princípio em si –  que não poderia sequer ser nomeado sem ser desfigurado –,
mas o aspecto do Grande Princípio, manifestado e refletido na consciência humana.

Sou obrigado a insistir nisto acima de modo quase excessivo, e o farei também para o Yin-
Yang, ou símbolo do Grande Extremo. Pois é espantoso e quase ridículo ver espíritos
excelentes, diante de um sistema metafísico ou de uma tradição oculta, acusarem-na de um
dualismo que só foi introduzido nela pela imperfeição atual da mentalidade humana, e para que
ela se aproximasse desta mentalidade. Há uma censura a fazer, de fato: mas é a si mesmos
que estes excelentes espíritos devem dirigi-la, repreendendo-se por ainda continuarem sendo
homens. É preciso nos resignarmos: jamais saberemos, enquanto homens, a verdade, e aquilo
que cremos como verdade não é a verdade, exatamente porque compreendemos que ela o é,
ou que ela pode sê-lo[12]. É assim com uma precaução infinita, que a Tradição comporta um
aspecto da verdade – ou de Deus – capaz de enfim ser captada pela nossa inteligência. E a fim
de que este aspecto não seja pronunciado (e não dê lugar, portanto, a uma frase falsa ou a
interpretações errôneas), ele não possui um caracter, nem mesmo uma idéia: é um desenho.
Este é o arcano, linear e metafísico, da Perfeição Passiva (Khouen).

E, para penetrarmos no fundo desta questão e não voltarmos mais a ela, este aspecto não é
um reflexo. A Perfeição Passiva não é um reflexo da Perfeição Ativa, como seria, na água, o
reflexo de um astro, ou seja a metade de uma ficção. A Perfeição Passiva é de modo absoluto
uma entidade idêntica, ou melhor, que deve ser idêntica à entidade da Perfeição Ativa, salvo
por esta circunstância, que é o podermos nos aproximar dela. Dito de outra maneira, a
Perfeição Ativa, captada pelo nosso entendimento imperfeito, torna-se a Perfeição Passiva;
entretanto ela permanece a Perfeição, e é aí que aparece sua misteriosa realidade abstrata.
Se transpusemos a verdade numérica para o plano divino (ou metafísico transcendental),
podemos dizer que a Perfeição Passiva está para a Perfeição Ativa assim como o um está para
o zero, sendo que ambos, mesmo sendo cifras diferentes, não passam do mesmo número, o
primeiro dos números e o único número.

Nunca é demais combater este erro instintivo e formidável do Espírito humano, que atribui à
Verdade esta multiplicidade – sem a qual ele não compreende nada e da qual ele é o único
exemplo na universalidade dos Espíritos – e que, por um orgulho inconsciente, projeta sua
imperfeição mental sobre a própria face da divindade. Este dualismo está na base de todos os
erros metafísicos. O espírito humano, esquecido de proceder à necessária justaposição de dois
princípios absolutamente idênticos (justaposição necessária para que, pela compreensão da
existência do segundo, ele possa admitir, mesmo sem compreender, a existência do primeiro),
levado à divisão e à diferenciação, atribuiu então, a estes princípios justapostos, propriedade
diferentes, de aparências diversas, e logo, sentidos contrários e de consequências
inconciliáveis. A partir daí o mal estava feito; ele é irreparável, e pôs a perder, desde as raízes,
as ciências e as religiões. E pior: o homem, que não pode permanecer constantemente um
metafísico, um lógico e um racionalista, torna-se rapidamente um sentimental, um sensitivo, um
sensual. Ele carrega consigo, neste novo domínio, o erro que ele criou no plano mental, e do
qual ele é o único responsável. E sobre este plano inferior, ele criou, à imagem monstruosa de
seu dualismo metafísico[13], as relatividades do Bem e do Mal; e ele criou leis; e erigiu
convenções, e martiriza-se com seus preconceitos, e com as lágrimas e o sangue que ele faz
derramar, e consolida sua obra detestável: ele coloca esse dualismo moral sob a proteção do
dualismo metafísico inventado pela sua ignorância e seu orgulho; e assim, guardião de sua
própria prisão, ele constrói, com suas mãos ilógicas, o inferno incompreensível, estúpido e
enganador, que é o agregado social contemporâneo.

A representação gráfica da Perfeição, como vemos no início deste capítulo, é concebida


através do simbolismo mais simples. Como o desenho da idéia de infinito é indefinido, nada
melhor que ele comporte um elemento sem começo nem fim: e assim é a linha reta que se
prolonga indefinidamente de um lado e de outro; ela termina no desenho, bem entendido, pela
limitação da necessidade material, mas ela não termina no pensamento, nem na suposição. É
nisto que, malgrado as aparências, o simbolismo da linha reta é superior ao da linha curva
fechada, ou da circunferência: esta, semelhante à serpente que morde a própria cauda, popular
e falsa aparência da Eternidade, parece nunca terminar de circunvalar indefinidamente sobre si
mesma; mas, em realidade, e com precisão, ela encerra um espaço, ela determina uma
superfície, que é o círculo, que possui uma medida, e que portanto é finito. E nada pode
impedir esta determinação, vale dizer esta inferioridade e insuficiência notórias do símbolo.

Ao contrário, na medida em que prolongamos a linha reta, por uma suposição perpétua, ela se
despersonaliza e se torna a própria imagem do indefinido, pois ela não determina, não encerra,
não define nada. Melhor ainda: se imaginarmos um plano qualquer engendrado por esta reta,
teremos a indefinição do espaço; e se imaginarmos simultaneamente todos os planos
engendrados por esta reta indefinida, teremos o “volume universal”, ou seja o símbolo do
Infinito. E é por isso que consideramos a superioridade, quase sempre ignorada, da linha reta
em relação ao círculo, enquanto representação simbólica daquilo que se trata.

Se agora pensarmos na Perfeição, vale dizer, se nosso pensamento faz da Perfeição Ativa a
Perfeição Passiva, reconheceremos a identidade absoluta destas entidades quanto ao fundo,
senão quanto à forma; e ligamos, apenas por pensarmos, à esta Perfeição Passiva, a idéia de
nossa multiplicidade e de nossa divisibilidade (característica específica da modificação humana
e do pensamento, específico do estado humano).

Assim, o símbolo da Perfeição Passiva deve ser em tudo o mesmo da Ativa, e deve engendrar
ainda a idéia de multiplicidade (o “mais” determinativo é um “menos” metafísico). É por isso que
o símbolo da Perfeição Passiva será a linha reta indefinida, mas com uma série indefinida de
soluções de continuidade. Tal é o significado do traço truncado do ponto de vista da
divisibilidade do Ser, ou seja do ponto de vista das ações e das formas. E assim possuímos
dois simbolizamos justos, poderosos, simples: é sobre eles que são construídos os trigramas
de Fo Hi, os  hexagramas do Yi Ching, e os sessenta e quatro arcanos da Evolução[14].

Como já dissemos, a Perfeição Ativa não age, mas ela é a “partida” de toda ação, e, do ponto
de vista humano, o princípio ação é a prova de sua perfeição, e o começo da possibilidade de
sua intelecção. É por isso que, dirigindo-se a seres humanos, e desejando fazê-los
compreender o mais alto alcance humano da Metafísica, o sábio chinês colocou na primeira
linha a atividade[15]: e a suprema marca da atividade, para a perfeição, é a faculdade de
engendrar perfeitamente, ou seja, de reproduzir a si mesma sem ajuda. Esta idéia, natural – e
que, sem o menor jogo de palavras, podemos chamar de idéia-mãe – traduz-se no simbolismo
gráfico, duplicando o signo da perfeição (ativa ou passiva, traço contínuo ou traço truncado)
com um traço semelhante. Assim se forma o digrama. Este digrama é precisamente a
representação simbólica do Pai e da Mãe, ou seja dos meios de concepção; assim os dois
traços concebem o terceiro; o Pai e a Mãe engendram o filho; e, no simbolismo, o trigrama
imediatamente sai do digrama, que não é um estado permanente, mas uma passagem da
Unidade à Tríade. Esta é a gênese dos trigramas de Fo Hi.

Guardemos este fato, de uma profunda conseqüência metafísica e moral, que é o estado
digramático não existir senão como um instante. Na obra formidável do Yi Ching e de todos os
seus comentários, a existência do digrama é mencionada uma vez, e não ocupa mais do que
uma linha em tipos ocidentais. Assim fica claro, por um silêncio voluntário, que este não é um
estado lógico, mas apenas um instante necessário entre a Unidade e a Trindade. Somente o
Pai existe, e o andrógino eterno só se separa para fecundar a si mesmo. E o instante é
matemático: o pai e a mãe não existem senão para criar: no momento da criação, eles estão
unidos e não formam mais do que um; no momento em que eles se separam, o germe já
existe, e eles são três[16]. Pode ser interessante levar este princípio a todos os mundos: assim,
não existe bem e mal fora da atividade humana; assim, não existe união da alma e do corpo
sem o espírito. Assim, para falarmos em termos católicos e cabalísticos, não existe Pai e Filho
sem Espírito Santo: o mistério da Trindade tornou-se um axioma; e as sociedades e religiões
que negligenciam o Verbo de São João e o Paráclito, não passam de ilógicas e monstruosas
aglomerações. Deixamos aos leitores, que estão evidentemente informados sobre todas estas
questões, o prazer, delicado e fácil, de tirar deste teorema metafísico todas as deduções que
ele comporta.

Naturalmente os trigramas compostos dos mesmos traços são aqueles da Perfeição.


Colocando juntos, em todas as posições possíveis, o traço comum e o traço truncado, obtém-
se oito trigramas, que são os “Trigramas de Fo Hi” e a base de todo o simbolismo metafísico
dos povos amarelos.

Destes trigramas saem os hexagramas que constituem a trama do Yi Ching. Praticamente,


mecanicamente, por assim dizer, eles “evoluem” uns para os outros. Dobrando os trigramas
iniciais, ou seja escrevendo-os duas vezes um sobre o outro, e inscrevendo-os como se
inscreve um octógono num círculo, obtém-se um quadro mágico, chamado pelo povo de Hado.
Se, ao redor deste centro único, fazemos girar da esquerda para a direita o círculo dos
trigramas exteriores, e simultaneamente, da direita para a esquerda, o círculo dos trigramas
interiores, obtemos sessenta e quatro situações de seis traços, todas diferentes entre si, que
constituem os sessenta e quatro arcanos da Evolução, sendo a sexagésima quinta situação
exatamente a primeira, reproduzindo os dois hexagramas da Perfeição. A explicação, as
fórmulas e os comentários destas séries formam precisamente o Yi Ching, que assim justifica,
mesmo graficamente, o título de “Mutações na revolução circular”, ao mesmo tempo em que
simboliza, em todas as suas modificações e na sua transformação final, o dogma fundamental
da Tradição extremo-oriental. Desenvolveremos a tempo em outra parte este simbolismo tão
simples e tão perfeito.

Existe uma razão profunda para o desdobramento dos trigramas e sua conversão em
hexagramas; esta razão, a um tempo humana e metafísica, é familiar a qualquer pessoa. O
trigrama – ou, para generalizar, a idéia ternária que ele representa – é a imagem de uma
entidade metafísica realmente existente, mas distante do horizonte da Humanidade até o
infinito, e nos confins e acima de seu horizonte intelectual. Ele reflete-se em nosso
entendimento como um objeto reflete-se na água que banha sua base, ou como, em pleno mar,
a lua reflete-se no oceano ao se por. Assim, o trigrama celeste e seu reflexo em nossa razão
produzem o hexagrama, E aqui ainda aparece o princípio ternário; pois o céu não se reflete
sobre a terra senão através do coração do homem; pois o monumento não se reflete na água
senão graças à luz do dia; pois a alma não influi sobre o corpo senão através do Espírito; pois
o Filho não comunica a graça ao Pai, e o Pai não derrama os méritos do Filho senão em virtude
do Espírito Santo – três fazem um, pelo efeito de um dois fugitivo e latente. E o hexagrama é
um eneagrama, do qual o trigrama celeste é real, o trigrama humano é um reflexo, e o trigrama
espiritual inscreve-se nos meandros tão finos e fluídos que ele não deixa traço nem
testemunho, e apenas a lógica indica a necessidade de sua existência.

Frisemos desde já, e frisaremos ainda a seguir, a quantos pensamentos universais a tradição
extremo-oriental, por distante e recuada que seja, deu origem. A cada instante, no decurso
deste estudo, que parecem mais rebarbativos do que o são na realidade, a aplicação do antigo
princípio surgirá, clara e indubitável, nos nossos próprios métodos e em nossas tradições
ocidentais, que séculos de civilização branca transformaram, acreditando aperfeiçoar ou
expurgar. E será ao mesmo tempo uma grande facilidade para a compreensão da doutrina,
como será um grande conforto para as inteligências sintéticas às quais nos dirigimos, perceber
que o laço não foi rompido, e que jamais poderá sê-lo, que ele nos religa à origem comum, de
onde viemos nós e o próprio Fo Hi, e para onde retornaremos, assim como os mais respeitosos
seguidores de Fo Hi. Nós não temos nada que criar, nada a inventar, nem mesmo a explicar
por novos meios; tudo o que temos a fazer é não perdermos o que resta, e encontrarmos o que
foi perdido. E permitam-nos dizer em alto e bom som aquilo que pensam em surdina, e que
sabem todos os metafísicos e todos os ocultistas de todos os países. No obscurecimento e no
esquecimento das ciências sagradas, existe uma questão de raça e de latitude. Os sábios da
China e da Índia jamais esqueceram nada, mas nós ficamos separados deles por bárbaros.
Somente os ninivitas, destruidores das ciências védicas, e os semitas, copistas insuficientes e
cruéis das ciências egípcias, criaram um hiato entre a antigüidade e a contemporaneidade,
entre a ciência oriental  e a busca ocidental. É passando ao lado, através ou por cima destas
raças medíocres, que reencontraremos nossa via, e que a Humanidade moderna poderá ligar-
se dignamente aos seus ancestrais do ciclo de Ram. Se a continuação desses estudos chegar
a provar estas proposições ao maior número possível de pessoas, teremos começado nossa
obra pelo melhor.

Mas agora, depois desta simples determinação dos “grafismos de Deus”, sublinhemos quão
admirável é a ciência que seguimos, quão simples é o método que empregamos. Dissemos
que o Ser-Deus, a Perfeição, é ininteligível ao homem. E ele é, na realidade. Nós constatamos
como os sistemas religiosos, honrados pelo grosso da Humanidade, buscaram desfigurar a
Deus, aproximando-o de nós, a fim de fazê-lo penetrar por nosso entendimento. Esses
sistemas destruíram voluntariamente a idéia metafísica, e não nos oferecem senão o erro;
quando não, ao estabelecer o antropomorfismo, eles nos apresentam uma tese tão grosseira
quanto o fetichismo das raças incultas. E apesar destas deformações, eles não conseguem nos
satisfazer.

Para seguirmos a Tradição Primordial, não quisemos, nem poderíamos aliás, imitar estas
transformações mediocrizantes. Deus – a Perfeição – nos é e nos será ininteligível enquanto
permanecermos homens. Mas esta perfeição que não pudemos compreender, que não
pudemos sequer discutir, nem racionalizar, nem nomear, pudemos desenhar; e ao desenhá-la,
nós não lhe demos contornos; não a fizemos finita; mas a conhecemos com os olhos. Por uma
seqüência de raciocínios lógicos e metafísicos, sem havermos estabelecido uma proposição a
priori, sem exigirmos a aceitação de um postulado, sem havermos imposto a crença no menor
mistério, nós simbolizamos perfeitamente, com seis linhas, sem a destruir nem diminuir, esta
noção de Deus que ninguém, salvo o próprio Deus, poderia nomear e compreender. Este
traçado simples, esta abstração linear, este arcano metafísico, nós sentimos profundamente
que ele é o que é, e não poderia ser outra coisa do que apresentamos aqui. E temos em mãos
este instrumento maravilhoso, com o qual podemos  colocar com segurança a representação
ideal, inteira e axiomática do ininteligível. Nós não a compreendemos; nós não a nomeamos;
nós não a escrevemos – nós a vemos.

E é ele, este símbolo mais admirável do que as mais magníficas ideias concebidas pelo
cérebro humano, que será aqui a base e a partida de todas as nossas proposições, assim
como aquilo que ele representa é o objetivo inevitável de nossa existência e de nossos
esforços.

IV
OS SÍMBOLOS DO VERBO

Como já dissemos, o  espírito de generalização, que foi o espírito filosófico da Humanidade,


antes da invenção das análises e dos métodos de dissecação pelo espírito científico e
mecânico dos modernos, este espírito permaneceu intacto entre as raças orientais; e foi o
método sintético, matemático e lógico, que conformou os livros tradicionais mais antigos, que o
respeito dos povos depositários nos transmitiu incorruptos e intangíveis até a nossa época
extremamente civilizada e individualista.

Este espírito generalizador produziu, com uma multiplicidade indefinida, aplicações de um


mesmo axioma ou de u m mesmo princípio a todas as ciências, a todos os estados sociais, a
todos os mundos intelectuais, a tudo o que podia ser feito, dito ou pensado em todos os lugares
e em todas as épocas da estase humana e universal.

E quanto mais um axioma parece fundamental, quanto mais um princípio parece eterno em seu
conceito e justo em sua tradução gráfica, mais as aplicações são pesquisadas com ardor e
determinadas com precisão.

É assim que os “Grafismos de Deus” estabelecidos com um cuidado de síntese universal no


pensamento e com rigor matemático na execução, são considerados, pelos comentadores dos
Livros Tradicionais, como a chave de todas as ideias e de todas as situações humanas, como
exórdio e conclusão de todas as ciências, e como arcano aonde é preciso buscar ao mesmo
tempo a explicação de todo o desconhecido, a solução geral de todos os problemas, as regras
de todas as políticas, as prescrições de todas as economias sociais e de todas as morais
individuais.

Os “Grafismos de Deus” não são apenas o “desenho” perfeito, de uma idéia geral abstrata e de
uma entidade  inconcebível para o homem atual. Eles constituem, com suas seis linhas
indefinidas, como que a dimensão metafísica em que se inscrevem a harmonia eterna, e aonde
vêm se colocar, para adquirir seu significado adequado no conjunto do universo, os acordos
específicos a cada conhecimento do espírito humano. Para usarmos uma comparação mais
fácil e grosseira, mas igualmente exata do ponto de vista gráfico, cada conhecimento do
espírito humano é semelhante a uma dessas correspondências diplomáticas, aonde se
escondem, em meio a inutilidades e desvios destinados a enganar e desencaminhar os
indiscretos e os vulgares, a solução de problemas do qual podem depender a vida e a glória
dos povos. Caídas em mãos de ignorantes, estas missivas permanecem incompreensíveis:
elas só tem efeito para aqueles que as escrevem e para aqueles a que são destinadas. Assim
também os conhecimentos humanos são abstrusos mesmo àqueles que os estudam
profundamente, se eles seguirem estudos individualizados e se particularizarem seus esforços.

Assim os “Grafismos de Deus” são a “grade” que, colocada sobre o texto informe, sublima as
partes úteis, destrói as partes inertes, e faz, nos seus intervalos, sempre arrumados do mesmo
modo para todos os textos, saltar aos olhos daqueles que sabem, as verdades necessárias, os
arcanos diretores de todas as ciências e motores de todas as ações humanas.

Entremos pois resolutamente neste simbolismo. Os “Grafismos de Deus” nos ajudarão


poderosamente, se soubermos relacionar tudo a este princípio, e se nos lembrarmos que todas
as interpretações, todas as imagens, todas as determinações precisas são bordados lançados
sobre a trama eterna, sobre o urdume metafísico sem o qual nenhum tecido pode ser tecido,
sem o qual nenhum sistema pode se sustentar.

Ao compormos umas com as outras as “situações” dos Grafismos de Deus, ao estudarmos,


isolada e depois paralelamente, os traços que os compõem, obtemos todas as ideias contidas
no cérebro e todas as luzes da consciência. Nas aplicações que podem ser feitas a partir deles,
estas situações se modificam, estes traços mudam de personificação e de objeto; neles e entre
eles manifesta-se o movimento perpétuo, que é o resultado da atividade primordial e a
conseqüência da atividade potencial da Perfeição. Assim este movimento contínuo representa
perfeitamente a série das modalidades transformadoras, que constituem, umas após outras, a
existência do universo tangível e perceptível, modalidades cuja causa profunda e cuja
explicação formal são dadas pela fórmula tetragramática (que estudaremos no próximo
capítulo). Assim, cada um dos ideogramas e cada traço de cada ideograma, por participar do
Princípio da Atividade, possui uma atividade própria, pela qual ele se move livremente, em
conformidade com uma via livremente consentida, da qual ele é uma das expressões (a única
expressão imediata, no momento em que falamos dela).

Resulta daí que cada um dos traços, na medida e enquanto o consideramos, adquire uma
personalidade, devida à manifestação de sua atividade específica. Parece então lógico e
sensato que o simbolismo intelectual e fonético (veremos adiante a razão destes adjetivos
justapostos) lhes tenha dado a figura expressa da Plenipotencialidade e da Pleniatividade, ou
seja a figura do DRAGÃO, “mestre onisciente dos caminhos da direita e da esquerda” (Phan-
Khoatu, I).
A lenda do Dragão. “Os dragões e os peixes têm a mesma origem; mas como o destino é
diferente para cada qual! O peixe não pode viver fora de seu elemento; mas basta que uma
ligeira nuvem desça à terra, e veremos o dragão lançar-se aos ares”. Assim canta a décima
primeira estrofe da célebre balada A Vida feliz, ao som da qual, nos Extremo-Oriente, os velhos
letrados sorriem e as criancinhas adormecem.

Ela alude à lenda do Dragão, que citamos porque nela encontraremos a origem da gênese
mosaica, a ficção sinaítica da lei, e talvez mesmo o símbolo da síntese alquímica.

A água que corre sobre a terra, dizem os velhos contadores de histórias, é semelhante à
nuvem que voa no céu: a natureza de ambas é semelhante; apenas sua aparência é diferente.
E isto é importante, porque a umidade fecunda o universo, assim como a via do céu fecunda o
pensamento dos homens. Nada é melhor, mais fugidio, mais ativo, mais universal que a água;
mas se suas ações não estão unidas, a água do céu não pode nada sobre a terra, a água da
terra não pode nada sobre a nuvem do céu. Assim, o peixe na água da terra e o pássaro
Hac[17] na água do céu vivem separados e são imperfeitos. Mas se a tempestade ergue as
águas ou se o calor do dia as evapora, ou se uma suave neblina abaixa-se sobre a terra, ou se
uma grande ventania precipita as nuvens ao chão, então a união entre as duas águas
terrestres e celestes acontece: o pássaro Hac desce à terra na forma de nuvens, o peixe eleva-
se para os céus como água de rio; quando eles se encontram, o pássaro Hac empresta suas
asas ao peixe, que empresta a ele seu corpo e suas escamas; em meio aos relâmpagos da
tempestade e entre as águas que rugem aparece o Grande Peixe sobre cujo dorso estão
escritos os preceitos secretos da Lei. E tão logo seu dorso toca as nuvens baixas, ele se torna
o Dragão Long e desaparece nos ares com as nuvens que o cobrem e carregam.

Eu fico em dúvida de fornecer uma explicação a esta lenda popular, que é mais clara que todas
as parábolas mosaicas e do que a lenda judaico-cristã da maçã. Os alunos mais novos, nas
escolas extremo-orientais, comentam-na e despojam-na de seu caráter de fábula com a maior
facilidade. Imagino que não passe de um jogo para os pesquisadores ocidentais atentos, que
ficarão mais contentes de terem sido convidado a este pequeno trabalho de apropriação
analógica, que de haverem, por esclarecimentos ociosos, duvidado injuriosamente de sua
perspicácia.

Apontarei entretanto alguns pontos dignos de meditação; o céu e a terra não formam senão
uma só coisa, na realidade. Aos nosso solhos eles estão unidos por um veículo universal; e o
sábio chinês tomou, como símbolo deste veículo, aquilo que parece ser a matéria mais sutil, ou
seja a água evaporada. Infinitamente sutil, mas sempre material, esta é a característica do
veículo universal; e o sábio chinês reencontra-se aqui com o dogma teosófico[18] (o que não é
de se estranhar, pois ambas as doutrinas são irmãs) e com a doutrina platônica, e também com
as assertivas da escola gnóstica de São Clemente de Alexandria sobre a materialidade da alma
humana.

Frisemos também que a Perfeição não existe senão pela união do Céu e da Terra, que é
apenas nesta união que o Dragão se manifesta, e que, uma vez manifestado, ele desaparece
nos ares. Este símbolo pode ser entendido de duas maneiras: uma é que o universo está
sempre numa extrema atividade; a outra é que a Perfeição não é visível aos olhos humanos
nem inteligível ao espírito humano; ela desaparece, se vista , e se compreendida por nós ela
não é mais a Perfeição. Assim o Dragão é um símbolo que o homem representa, mas que não
existe para ele. Mas que existe realmente na união total realizada graças ao veículo universal.

Tomemos então o símbolo do Dragão, mesma achando sua linguagem infantil; mas
conservemo-la como uma imagem excelente, e como uma abreviação, cômoda para nossas
proposições metafísicas.

Dissemos acima que ele era um perfeito símbolo intelectual e fonético. A explicação da lenda
aplica-se ao intelectual; a questão fonética é mais curiosa ainda, e generaliza e esclarece todos
os dados precedentes. O que é no fundo, na metafísica dos povos amarelos, este Dragão
simbólico? O que é este veículo universal, que é como a Aura do símbolo? É exatamente o
Verbo, não apenas no espírito dos sábios e dos comentadores, mas na própria demonstração
filológica.

Sabemos com efeito o que é o LOGOS platônico e alexandrino. O radical LOG é pronunciado
com acento longo. É exatamente o nome do ideograma do Dragão. Este é LONG [19], com o O
longo e o N breve e surdo, e ele se pronuncia LOGUE (E mudo) nos vice-reinos da Ásia
central.  Assim a filologia traz seu testemunho esclarecedor à metafísica. Jamais houve senão
uma verdade; os símbolos desta verdade diferem, mas a pronúncia do seu nome é por toda
parte a mesma. E tanto o Logos platônico como o Verbo do apóstolo João, que, sem
aprofundar, os cristãos exaltam ao final de todos os seus sacrifícios, não possuem
representação mais imediata, nem simbolismo mais exato por toda a Humanidade, do que este
universal e invisível dragão, que, do alto do Céu, cobre todas as filosofias orientais com sua
sombra misteriosa.

Khien: a ação do céu é a atividade. O homem dotado imita-o sem cessar (Yi Ching: Comentário
tradicional de Tsheng Tsé e Confúcio sobre o primeiro hexagrama).

O homem dotado, ou homem superior, que é mencionado ao longo de todo o Yi Ching, e para
quem os preceitos do Yi Ching foram formulados, constitui uma expressão típica das raças
amarelas. Seria fácil – e outros o fizeram – encher volumes de comentários sobre esta
expressão, para determinar seu valor exato. É assim que encontramos, em outras línguas, os
iniciados, os sábios, os grandes sacerdotes, os juizes, os santos, os bem-aventurados, os
mahatmas, e outros ainda. Mas fiquemos, no que se refere ao homem dotado, com a definição
simples e sábia da Tradição chinesa. O homem dotado, diz ela, é um termo escolástico que
corresponde a um estado de aperfeiçoamento do estágio inferior ao estágio superior e perfeito
da sabedoria. Saibamos contentar-nos, ao menos do ponto de vista da expressão, com esta
definição elástica; lembremos que existem muitas estações no estado do homem dotado; e só
indaguemos daquilo que as circunstâncias podem nos dizer, para cada caso particular, a qual
etapa, intelectual ou psíquica, o homem dotado chegou na rota da perfeição.

A razão de ser, diz Tsheng Tsé, não possui forma visível, e assim empregamos uma imagem
para esclarecer seu sentido. É assim que, como diz a lenda, o Dragão, através do veículo
universal, sobre pelos seis traços de Khien, onde ele ocupa seis posições diferentes, e fornece
a cada um, em sua passagem, um sentido, exatamente como uma série acústica, no momento
em que a inscrevemos sobre um pentagrama musical, fornece um acorde harmônico, do qual
ela é, como expressão, a única proprietária, mas de que as linhas da pauta são a tradução e o
veículo.

Existem então tantas pautas humanas quanto hexagramas, ou seja sessenta e quatro.
Examinemos em detalhe a “passagem do Dragão” através de Khien, hexagrama da perfeição
em si. Não apenas será um exemplo analógico bom para seguir nas explicações metafísicas
dos outros hexagramas, mas, sobretudo, é do primeiro hexagrama que os sábios e os filósofos
chineses tiraram, em todos os campos do saber humano, seus principais e melhores
ensinamentos[20].

O Dragão, “inteligência cujas modificações são ilimitadas, símbolo das transformações da via
racional (Tao) da atividade expressa por Khien” [21] coloca-se sobre o primeiro traço (traço
inferior e positivo, por ser, como todos do arcano, sem descontinuidade); e ele representa o
“ponto de partida do começo dos seres”. É o “Dragão oculto”.

A extrema atividade da Perfeição não se produz, não se revela ainda por nenhum ato de
vontade, sequer por um pensamento que seja; ela é oculta, ou seja ininteligível ao homem. É o
período do não-agir. E pelo o termo “período” é preciso entender a idéia do estado metafísico,
como, pelo termo “situação” é preciso entender “lugar geométrico”, sendo todas estas
concepções independentes das relatividade de tempo e espaço.

Pousado sobre o segundo traço, o Dragão emerge: a atividade começa a se fazer sentir sobre
a superfície da terra: é o “Dragão no arrozal”. A extrema atividade do céu ainda não se
manifesta, mas o homem percebe que ela existe, assim como um ser no arrozal está escondido
pelo arroz e não o vemos, mas sabemos que ele está lá pelas ondulações do arroz à sua
passagem. Frisemos aqui que o segundo traço é o traço mediano do trigrama inferior, e que ele
é, por assim dizer, o resumo de sua expressão geral; frisemos também que existe um sentido a
extrair desta comparação com o traço mediano do trigrama superior, que é seu simpático
(sistema de correspondências). Este sentido fornece a tendência geral do hexagrama. Sendo
aqui os dois traços correspondentes positivos, resulta que o sentido de Khien é reforçado, ou
seja que a atividade do céu é extrema, contínua, eterna, e que o Céu não é concebível sem a
idéia de sua atividade. É o que já havíamos ressaltado no capítulo precedente; e, aqui como
sempre, os significados da pauta simbólica dos seis traços vem corroborar os princípios, já
conhecidos, da metafísica e da experiência.

Essa segunda situação é resumida perfeitamente nesta comparação de Shiseng: “O éter


positivo começa a engendrar, assim como a luz do sol começa a clarear todas as coisas, antes
que ele apareça no horizonte”.

Colocado sobre o terceiro traço, o Dragão se manifesta: ele está sobre a situação superior do
primeiro trigrama: é o momento da lenda quando, subindo ao alto das águas tormentosas, ele
vai lançar-se, e aparecer tal como ele é. Se as escamas do Dragão saem da água, então o
homem conhece a ciência e a lei. É o “Dragão visível”. A incessante atividade, chegada ao alto
do trigrama, escala o abismo que separa do segundo trigrama. Existe aí matéria de grande
circunspecção. E aplicaremos imediatamente o conselho tal como foi dado. Existe delicadeza e
perigo em “ver o dorso do Dragão, ou seja, em conhecer a Ciência e a Lei, se não estivermos
suficientemente preparados pelos estados anteriores[22]. Esta é a vontade de expansão de
todos os seres, perfeitíssima, por ser o coroamento da atividade, mas muito perigosa, pois ela
pode desembocar na multiplicidade, ou seja nas formas e na desunião.

Colocado sobre o quarto traço, o Dragão tende a deixar o mundo, ou seja a desaparecer, pois,
tendo se manifestado, ele se tornaria, se ele permanecesse, inteligível ao homem, e não seria
mais a Perfeição em si; mas ele não voa ainda; “ele é como o peixe que salta fora d’água, com
vontade, mas ainda sem meios de desaparecer: é o “Dragão que balança”, igualmente pronto a
sumir no éter dos espaços celestes ou nas profundezas dos abismos, onde se acha seu lugar
de repouso”[23].

A incessante atividade, na iminência do salto, pode tomar as asas do Dragão e desaparecer


nas alturas, ou conservar as nadadeiras do peixe e sumir-se embaixo; existe portanto liberdade
para avançar ou para recuar. È o símbolo da liberdade e da independência com as quais o
universo se move e entra na Via (Tao). A situação é indeterminada; mas qualquer que seja sua
solução, vemos que o verdadeiro objetivo do movimento da atividade é o repouso absoluto, que
está além das forças humanas[24].

Pousado sobre o quinto traço, o Dragão, inteiramente manifestado, atua em sua plenitude e
rege o mundo. Ele deixou a terra para desaparecer, mas quase chegando ao limite, ele ainda
não sumiu , e sua influência benéfica espalha-se por toda parte; é o Dragão que voa, que,
neste instante, procura por sua visão única, a idade de ouro da Humanidade. É a expansão
feliz do Universo na Totalidade que não cessa de ser a Unidade. A extrema atividade produz
esta totalidade: a presença do Dragão produz esta unidade; e, para usarmos uma linguagem
menos metafísica, a criação toda existe, mas ela ainda não possui formas.

Lembremos aqui que o quinto traço é o traço mediano do trigrama superior, e que ele é o
correspondente simpático do segundo traço: e frisemos que o segundo traço é uma vontade de
ação não formulada, enquanto o quinto traço é esta ação não formal.

Pousado sobre o sexto traço, o Dragão desaparece; “a altura  conveniente, diz Tsouhi, foi
ultrapassada, a extrema unidade foi atingida, existe um excesso de elevação”. Bem entendido,
este comentário não deve ser visto em relação ao universo visível. É o Dragão que plana que
começa a desaparecer; e com ele começa a desaparecer também esta estação de perfeição
absoluta, que carrega com ela esta mácula pela impossibilidade de sua permanência (devido
tanto à perfeição relativa quanto à extrema atividade do céu). “O que está completamente
acabado, diz Confúcio, não pode durar muito tempo”. E assim o homem é tão imperfeito que a
própria idéia de perfeição acarreta consigo o  temor pela sua perda. Aqui está a criação
tangível, ou melhor a divisibilidade da unidade pela multiplicação das formas, e o
estabelecimento da dualidade relativa da perfeição passiva, inteligível do homem, pela
desaparição do Dragão que simbolizava a Unidade através do veículo universal.. É a estação
atual que atravessamos, no ciclo ao qual pertence nossa Humanidade. E o descontentamento
desta humanidade engendra seu desejo único, que os psicólogos podem chamar de
necessidade de idealismo, e que é em suma o desejo de reentrar no estado de unidade, de
substituir a perfeição passiva pela ativa que não compreendemos, mas cuja existência
sabemos necessária, o desejo, em uma palavra, de rever o Dragão[25].

Tal é a harmonia metafísica inscrita sobre a parte formada pelo primeiro hexagrama do Yi
Ching. Seria preciso todo um volume para deduzir dela, mesmo sobre este plano, todos os
dados das ciências derivadas, como a Gênese, a Criação, a Cosmogonia, a Teogonia, a
Teologia, a Ontologia, a Síntese universal, a origem das Leis humanas, etc. Não temos como
nos estendermos nestes assuntos . Um trabalho com este, que, uma vez estabelecida a base
do conhecimento, é relativamente fácil, deve ser deixado, como um interessante exercício e
também como uma ginástica meritória, à intelectualidade dos pesquisadores, cuja mentalidade
se tornará, com a ajuda dessas pesquisas, mais adequada à mentalidade requerida para
compreender todo o objeto, e mais apta a acompanhar, em seu método sintético, os
desenvolvimentos que virão.

Mas, como dissemos no começo, somente o entendimento metafísico pode ser aplicado ao
alcance do hexagrama da perfeição. Existem muitas ciências fora da metafísica e de suas
irmãs menores: a política, a economia social, a moral, a adivinhação; e cada uma, por um
trabalho análogo, encontra, ao longo deste alcance, e seguindo a “marcha dos seis Dragões”,
soluções próprias a satisfazer todas as necessidades intelectuais de nossa Humanidade.

Vejamos, por exemplo, em algumas linhas, como o iniciado encontra aqui as regras para sua
conduta de mago, para sua ascese particular.

Dragão oculto: o homem superior deve regrar sua conduta segundo a atividade do céu; não
sendo ainda bastante instruído, a vontade do céu não se mostra ao seu olhar insuficiente: ele
permanece encerrado em sua concha de mortal imperfeito. O homem superior deve então
meditar, conter-se, e tratar de desenvolver-se no estudo e na contemplação. Se ele agisse
enquanto o Dragão está oculto, ele não alcançaria sua medida, e cairia num erro que seria
prejudicial ao seu porvir.

Dragão no arrozal: o homem dotado está consciente de sua virtude, mas ainda não pode deixar
a terra[26]. Ele aperfeiçoa pouco a pouco os seres com seus ensinamentos; mas ainda não lhe
é permitido, nem comandar, nem manifestar-se. Ele deve apenas seguir a sorte e os exemplos
dos Sábios que o precederam.

Dragão visível: o homem dotado, colocado em uma situação que é inferior aos seus méritos,
corre perigo; ele deve agir com circunspecção; pois ele atrai com sua virtude a simpatia do
universo, e, com esta simpatia, a inveja dos superiores. Mas retirando-se ou permanecendo,
ele deve ter o cuidado de seguir sempre a via normal (Tao).

Dragão que balança: quando o homem superior age, jamais é sem relação com o momento.
Ele assim aumentou seus méritos e sua virtude para ser distinguido em um momento preciso e
determinado; ele é livre para avançar ou recuar; ele conservou toda a sua liberdade; ele pode
crescer por sua virtude brilhante, como pode rebaixar-se por uma humildade meritória; nesta
situação, ele deve inspirar-se nas circunstâncias.

Dragão que voa: o homem dotado ocupa a situação superior que lhe convém; chegado aos
altos cumes da inteligência, ele é gentil ao olhar, abaixo de si, um homem igualmente dotado
de virtude, a quem ele auxilia pelo exemplo e associa ao seu poder. Quando se está na
plenitude destes meios, é preciso atuar.

Dragão que plana: a beleza infinita é difícil de conservar. Também o homem superior deve
saber avançar e recuar em tempo para jamais expor-se à perda. Jamais se deve cometer
excessos nas ações, mesmo nas boas.

Da mesma forma, pela marcha dos Dragões, determinam-se, em política, o caminho do


Príncipe e o do vassalo. Reservamos esta explicação para considerações ulteriores. E, para
terminarmos uma exposição que poderia estender-se indefinidamente, daremos, sem
comentários, os seis apoftegmas curtos, simples e plenos, com os quais Confúcio, com sua
clareza e concisão, determina sobre a marcha dos Dragões a conduta normal do homem
comum. Esta situação dará uma idéia perfeita do modo como os sábios chineses entendem a
lei moral:

1)      Não mudar conforme o século; não se prender ao renome; fugir do mundo; não se angustiar
por não ser apreciado ou conhecido dos homens;

2)      Boa fé nas menores palavras; circunspecção nos atos; estar em guarda contra a mentira;
melhorar, sem vangloriar-se, seu século, por sua virtude transformadora;

3)      Ocupar uma posição elevada sem orgulhar-se; ocupar uma posição inferior sem reclamar ;

4)      Aperfeiçoar suas aptidões; aproveitar o momento oportuno;

5)      Agir e, com sua ação, ajudar a salvar o universo;

6)      Evitar de se tornar demasiado nobre para ter uma ocupação, e demasiado importante para ter
amigos.

V
AS FORMAS DO UNIVERSO

Eu não ignoro que, em sua extrema generalização, os “Símbolos do Verbo” podem ter parecido
ainda mais vagos do que abstratos. Mas além de que seu brilho não se manifesta se não o
provocarmos consultando o texto geral, em vista de uma adaptação específica e precisa[27],
pudemos esclarecer imediatamente o Khien e a marcha dos Dragões, pelo estudo da fórmula
tetragramática que o príncipe Wen Wang, genro de Fo Hi, instaurou no frontispício do Yi Ching,
sob o próprio ideograma Khien.

O tetragrama de Wen Wang fornece, com grande concisão, a chave do fenomenismo universal,
que se convencionou chamar “criação do mundo”. Esta denominação, que enuncia um fato[28],
prepara, às raças que a empregam, uma inconsciente petição de princípios[29] e uma
inumerável quantidade de problemas metafísicos e lógicos. Haver inventado essa palavra,
antes de provar que ela responde a uma concepção intelectual ou a um evento material, é um
sintoma característico do estado do cérebro ariano deformado pelo soco semítico, sabe Jeová
dado com que força!

Preparemo-nos imediatamente para não sacrificarmos nossa lógica a este apriorismo inédito e
totalmente discutível. O tetragrama de Wen Wang, cuja generalidade única não permite
abstração, não nega (nem tampouco afirma, aliás) o fato em si; parece que a realização ou a
não realização material da idéia importa pouquíssimo à Tradição; mas o tetragrama situa o
evento fora do tempo e do espaço; isto significa que ele lhe retira toda objetividade, e o
mantém neste domínio de onde nós, ocidentais, não tínhamos o direito de retirá-lo: o domínio
da idéia pura e da lógica metafísica.

Talvez todas a cosmogonias, inclusive a sinaítica, poderiam ser resumidas em uma só doutrina,
se nós não arrastássemos, para o plano da criação universal, o antropomorfismo com o qual
entulhamos o plano divino, e se, sob o pretexto de render homenagem a um criador que nós
fizemos homem, não instalássemos o materialismo mais concreto no coração de nossas
modernas e singulares religiões.

É preciso tratar de esquecer a mediocridade convencional que embalou a infância das nações
ocidentais. E, se seguirmos a partir de agora este conselho, é certo que extrairemos, para
aplicação, o melhor fruto da subida dos Dragões através dos Grafismos de Deus.

Mas sobretudo estaremos preparados para captar, em toda sua abstração metafísica, o
tetragrama de Wen Wang, a causa inicial, a modificação e a transformação final do Universo.

O tetragrama, arcano do Universo, possui ainda um outro alcance. E talvez ele não seja menos
considerável, do ponto de vista da unificação dos sistemas filosóficos do Oriente. É de fato do
tetragrama de Wen Wang, ou seja do próprio cerne do Yi Ching, que nasce todo o Taoísmo.
Quando estudarmos este sistema admirável de lógica e moral pura, voltaremos a esta filiação.
Por ora bastará afirmar, e inclusive frisar que, ao formular seus tetragramas, Wen Wang foi o
precursor de Lao Tsé. Toda a cosmogonia taoísta esta aí contida, e tudo o que se seguirá é
puro Taoísmo.

Já vimos por três vezes este misterioso ideograma do Tao, que há tanto tempo permanece
incompreensível. Digamos desde já, e sem entrar em desdobramentos que caberão melhor em
outra parte, que devemos entender como Tao (que se traduz comumente e com bastante
exatidão por “Caminho”) a série, a soma e o resultado de todas as modificações do Universo,
ou , se se preferir, os diversos estados de Khien manifestado, independentemente de todas as
relações objetivas.

UYAN, HENG, LI, TCHENG:

Causa inicial; liberdade; bem; perfeição.

Este é o tetragrama ideogramático de Wen Wang. E o Yi Ching acrescenta estas simples


palavras, que são o “comentário tradicional” da fórmula: “Quão grande é a causa inicial da
atividade! Todas as coisas lhe devem o começo de seu éter constitutivo; é todo o céu. As
nuvens caminham: a chuva estende seu efeito; os germes dos seres perpetuam-se na forma. A
vida universal age num movimento sem fim. O fim e o começo são iluminados por uma grande
luz. O caminho é a modificação e a transformação: cada coisa se conforma exatamente à sua
natureza e ao seu destino, e mantém, com sua concordância, a extrema harmonia; eis o bem e
a perfeição”.

A tradição explicativa destes arcanos que acabamos de expor é obra de Tsheou Kong, filho de
Wen Wang; ela foi recolhida, codificada por assim dizer, por Tsheng Tsé e por Tsouhi. Como
dissemos: a qualidade objetivamente predominante de Khien é a atividade; e a atividade irradia
a energia e a vontade, graças às quais o Ser começa a mostrar que ele é. Estão aí todo o
Universo visível atualmente em nosso círculo evolutivo e nesta estase humana a que
chamamos de “criação”.

A fórmula determinativa, assim precisada por Wen Wang em seus quatro ideogramas,
manifesta e “acompanha” o Universo, desde o germe-vontade, que foi sua Gênese, até seu
desabrochar completo.

A.     A causa voluntária (começo) de todos os seres.

B.     A possibilidade de criação (crescimento) de todos os seres.

C.     A faculdade de satisfação (ação) das condições de todos os seres.

D.     O desenvolvimento normal e perfeito (evolução) de todos os seres.

Estes quatro ideogramas, que abrem e encerram em si mesmo os ciclos do Universo, são tão
populares como o crescente na Turquia ou a cruz entre os cristãos. Eles têm, sobre os demais
símbolos da Humanidade, a vantagem de conter em si, de um modo explícito, o resumo de
toda doutrina aplicável à Humanidade atual. Eles têm sua expressão sigilar plana no símbolo
gráfico do Yin-Yang (Tai Chi ou Grande Extremo) cuja explicação daremos no capítulo que
trata da condição humana.

Os quatro estados assinalados na fórmula do tetragrama de Wen Wang são chamados de


qualidades da substância (Khien), mas qualidades inerentes, e que integram a entidade da
substância[30]. Não há nenhum inconveniente nisto, pois, segundo o excelente método chinês,
esta qualidade integrante é tomada como a própria substância e identifica-se com ela, ao
menos momentaneamente, para facilitar a compreensão: esta identificação é, de resto,
absolutamente justa.
Não utilizaremos nenhum terminologia nova no sistema cosmogônico que estudamos aqui. É
inútil tentar  familiarizar o leitor com os enunciados dos ideogramas; e, por imprecisas que
sejam, adotaremos sua tradução na linguagem comum: causa inicial: liberdade, bem,
perfeição[31].

A Causa inicial da Perfeição (Khien-yuan) é, diz Tsouhi, o Grande Princípio de onde brota a
virtude do céu; considera-se sobretudo a onipotência deste princípio; nela estão incluídas
potencialmente a Vontade e a Força. Como o princípio é ativo, a possibilidade de nascimento
de todos os seres constitui a potência e a grandeza; e é esta grandeza que constitui o começo.
O começo do Ser é o ponto de partida de seu objeto, vale dizer o princípio da causalidade,
primeira manifestação da Perfeição, gênese de tudo e em especial dos três termos seguintes
do tetragrama. Ademais, é o princípio da causalidade considerado em sua grandeza suficiente,
ou seja a Causa Universal. A partir daí, a Liberdade não é senão a livre expansão: o Bem e a
Perfeição não passam da justa conseqüência. É a um tempo a pureza da substância, a
universalidade da causa e a infinitude do efeito. Esta é a doutrina metafísica. Do ponto de vista
cosmogônico, é a posição (constatação) da possibilidade do Universo.

Haveria aqui – como em outras passagens, como se verá – volumes de deduções e


considerações a escrever. Mas não temos o tempo nem os meios, e sobretudo não temos
vontade de fazê-lo. É no espírito do leitor, repetimos, que se devem fazer estas deduções e
estas reflexões. Nós o convidamos aqui a não ser um leitor comum, mas um estudioso atento.
É preciso que ele seja, como diz a tradição o próprio mestre de sua educação pessoal, e um
colaborador para os seus guias. O trabalho que, voluntariamente, deixamos aqui de cumprir, é
uma garantia segura desta colaboração indispensável, e da frutífera excelência de suas
disposições.

Assim a causa inicial é o primeiro atributo da Perfeição (Khien), e existe identidade entre a
Perfeição e a causa inicial. Da causa inicial saem potencialmente todos os universos, que nela
estão contidos em germe. Tentemos colocar estes princípios um contra o outro: deduziremos
disto a impossibilidade metafísica da existência do mal em si. Veremos multiplicações,
divisibilidades, divisões: daí as insuficiências, as obscuridades objetivas, as ausências
relativas. Em nenhuma parte veremos o mal como princípio. E por toda parte, como prova de
nosso dado metafísico, reconheceremos que ele não existe. E assim, junto com este
vergonhoso dualismo, este erro funesto, este mal-entendido inicial, desaparecem todos os
sistemas inventados para aboli-lo, e todas as representações celestes imaginadas para puni-lo.

Não existe paradoxo nisso. Nós acreditamos ver o mal nas coisas que sofremos: é uma prova
de nosso egoísmo e uma marca de nossa insuficiência. O mal só existe na idéia que fazemos
dele, pela crença que temos nele: ele não existe senão em nós. E nós vemos o mal relativo
aonde somos incapazes de ver mais um elo na corrente do Bem universal. Todo erro provém
de nossa insuficiência e de nossa incapacidade. Esta insuficiência nasce de nossa relatividade,
ou seja de nossa forma, ou seja de nossa divisão analítica, ou seja da multiplicidade dos seres.
Veremos que esta multiplicidade escoa continuamente, que ela está no tempo, que ela é
objetiva. Todas as concepções criadas em seu meio e em seu plano não são, assim, puras
Ideias, nem aspectos da Verdade.

Elas são fugidias, instáveis, errôneas. E, dentre elas, a concepção do mal é a concepção-tipo
do estado de consciência deficiente em que nos encontramos. E, para especificar
metafisicamente um estado mental, que só é perigoso por ser muito difundido, é preciso dizer
que nosso conceito da existência do mal é criado unicamente por este non-sense intelectual e
este erro fundamental, que nós atribuímos inconscientemente ao objetivo, às relatividades, o
caráter e as funções do subjetivo e do absoluto[32].

Aplicada à Humanidade existente, a causa inicial, tal como nós a desenvolvemos em sua
expressão metafísica, não é outra coisa que a Idéia de Vida, princípio em virtude do qual os
seres são engendrados. “A idéia de vida, diz Tsouhi, é precisamente a Humanidade (Jen) no
sentido de “Solidariedade da espécie”. Este termo jen, que implica, do mesmo modo que a
perpetuidade, a comunidade da existência dos seres, é a palavra mais repetida, mesmo nas
conversas comuns.

Todos aqueles que percorreram a China lembram com espanto como esta noção impessoal,
delicada, e contrária ao individualismo, ocupa espaço no espírito de todos os chineses. Não se
deve crer portanto que se trate de uma simples observação ou de uma lembrança pessoal, sem
amparo prático.

Com seu hábito de aplicação estrita, os povos amarelos extraíram, dessa noção, sua
conseqüência imediata e mais alta, a da solidariedade humana, da qual jen tornou-se a
expressão direta, e cujos preceitos fraternais são aplicados diariamente por toda parte, como o
primeiro e mais natural dos deveres.

É assim que, de um dogma metafísico, colocado no plano psicológico e posto em prática no


plano social – de uma maneira tão contínua que esta prática tornou-se um hábito e uma
necessidade – decorre a prosperidade relativa e a fecunda estabilidade do povo e das
instituições. Seria curioso provar a constatação desta verdade aplicada até seus últimos
corolários, e demonstrar assim uma solução original, mas também tão simples e perfeita
quanto possível, dessas questões sociais que agitam o Ocidente atual.

Eis como, a este respeito, fala a Tradição[33]: “Se, diante da Idéia de Vida, apresentamos os
males de outrem, a piedade surge imediatamente; se se trata da repulsa que o vício inspira, o
dever se ergue; se se trata da modéstia, é a civilidade e a obediência aos Ritos; se se trata do
pró e do contra, é a Razão”.

Essas alternâncias, assim colocadas, dão a explicação das consequências lógicas e


maravilhosas que delas se deduzem naturalmente. Nós as estudaremos quando abordarmos a
filosofia confucionista; mas diremos por ora que a conduta geral do povo e dos cidadãos deduz-
se da seguinte maneira: estando reconhecidas as necessidades relativas da existência e da
coabitação dos seres, bem como da conexão dos interesses, aplica-se o mesmo princípio, que
se transmuta, segundo cada particularidade, em qualidades especiais, tendo todas elas por
base essencial a virtude do
tetragrama. Assim o homem sábio determina sua ação apreciando as objetividades materiais e
sociais através do subjetivo científico e metafísico. É então do Jen (ou Khien-uyan social)
colocado em face dos estados da vida humana, que dependem o nascimento e o exercício das
qualidades que tornam o homem bom, ou seja feliz.

Enquanto que o primeiro termo do tetragrama indica a “Origem ou dom do ser”, o segundo
termo (heng) exprime a “Liberdade de Ação do céu”. Os seres, diz o Grande Comentário,
começam a entrar na corrente das formas. Não existe distinção entre eles, mas eles vão
apropriar-se, primeiro da existência uniformal, depois das formas exteriores que os distinguirão
aos nossos olhos. Existe portanto uma existência uniformal, e a seguir existências multiformes;
quanto à existência informal, ela não é mencionada aqui, por estar precisamente dentro da
perfeição, e só poder ser mencionada na perfeição. É a Eternidade. A existência em si não faz
parte, nem pode logicamente fazer parte de nenhuma espécie de criação; não se pode supor,
sem cair no absurdo, uma “geração espontânea” sobre o plano metafísico, e talvez também
sobre qualquer outro plano que seja. A “raiz” do Universo é eterna, e por conseguinte
inelutável; tudo o que existe, existe fora das formas. Aqui aparece como um axioma esta
verdade, obscurecida e mal-entendida tantas vezes: tudo o que é imortal é eterno.

Se não fosse empregar um termo impróprio para exprimir a imagem falsa de uma idéia justa,
poderíamos dizer que esta “Liberdade” representa o instante da vontade criadora que precede
imediatamente o instante da criação efetiva; entre o primeiro e o terceiro termo do tetragrama,
o segundo é humanamente impalpável, mas necessário à lógica dos conceitos.

Uma comparação grosseira mostrará melhor o valor do símbolo: a água de um canal, retida de
três lados por paredes de pedra, e pelo quarto lado pelas portas de uma eclusa, é estável e
imóvel. Se a eclusa é subitamente aberta, a água muda de equilíbrio e cai bruscamente no
nível inferior. Ora, podemos supor que a porta da eclusa seja erguida em um instante
matemático; este instante não é aquele em que a água começará a correr, mas o precederá de
um mínimo: porque a água só cai porque o obstáculo desapareceu, e o efeito não pode jamais
coincidir exatamente com a causa que o produziu. Existe assim um momento imperceptível e
fugidio, em que a água já não está em equilíbrio, mas ainda não caiu: ela vai cair. É este o
momento que, no tetragrama da Formação do Universo, constitui a Liberdade (heng) entre a
potencialidade da vontade criadora e a aparição das formas.

Mas, sobre o plano metafísico, este momento, que é ao mesmo tempo um lugar geométrico e
um “estado de consciência universal”, é ilimitado. Se nos parece curto e contido a ponto de ser
impalpável, é apenas porque a força que o preenche nos é ininteligível, e que nossos sentidos
impotentes confundem, a esta altura, as noções de ser e do tempo, separadas das
imperfeições da ação.

O terceiro termo (li) e o quarto (tsheng), bem, perfeição, parecem conexos de imediato. O
terceiro termo exprime a modificação que a forma traz aos seres; o quarto termo exprime a
vantagem que deve resultar desta modificação, se aqueles que a recebem conformam-se cada
qual com a sua via: “O caminho da autoridade, diz Tsouhi, é a modificação e a transformação
progressiva; a transformação é o cumprimento perfeito (ou o fim) da modificação”.
Antes do terceiro termo, a criação, o estado volitivo, estava identificado ao Ser (vontade
criadora, Perfeição ativa, Khien) e não saía dele; depois do terceiro termo, ela continua sendo o
Ser (Khien), mas escorre para a corrente das formas, e, por conseguinte, nos diferentes seres
que conhecemos. A vantagem que resulta da aparição das formas, segundo a vontade do céu:
aí está o quarto termo.

“A obra da criação, diz Tsouhi, é a razão de ser da vida”. A vida não é, com efeito, um corolário
inevitável mas antes apenas uma variação, um acidente da criação[34]. O ato da criação não
comporta, essencialmente ao menos, o ato de dar a vida; pois devido à Perfeição ativa (o Ser
em si) não há espaço para uma existência análoga e paralela; dar vida é uma tradução
grosseira de criar forma. Uma das formas, nas quais o Ser e os seres fluem, pode ser a vida,
tal como nós, terrestres, a entendemos. Mas ela não passa de uma das inumeráveis formas da
criação (modificações). Portanto a criação não contempla apenas todos os seres vivos: ela
compreende também todos os não-vivos, ou seja todas as formas. E notemos de passagem
que a consciência não é absolutamente inerente à vida.

A forma é o meio direto da modificação; a transformação é o objetivo definitivo, ou seja a


reintegração fora das formas (unidade). É seguindo esta via e atingindo sua culminação, que a
vontade do céu se cumpre, e que o quarto termo do tetragrama é realizado.

O sábio Shi Pingweng expressou de forma precisa, bem rara no Extremo-Oriente, toda a obra
compreendida no tetragrama. “A modificação, diz ele, é o mecanismo que produz todos os
seres; a transformação é o mecanismo pelo qual são reabsorvidos todos os seres”. Eis aí toda
a gênese oriental. Não existe criação no sentido mecânico e material normalmente ligado a
esta expressão; mas existe a produção dos Seres pela modificação do Ser, nada além disto;
uma modificação constitui o momento presente, do qual vemos uma parcela infinitesimal na
vida terrestre;  a transformação indica o retorno dos seres em modificação ao Ser imutável, e
ela é o mecanismo que preside a esta reabsorção. A via do céu compreende assim a um tempo
a emissão das formas e o retorno para fora das formas.

Do ponto de vista humano, a morte é assim um dos momentos da criação, sem que possamos
afirmar se ela é o vestíbulo da transformação, ou apenas uma modificação que, na sequência
normal da atividade, segue-se imediatamente à modificação da vida.

Do ponto de vista da “marcha” segundo a vontade do céu, o texto de Shi Pingweng estabelece
o princípio da involução e da evolução, talvez não no sentido da descida e da subida, nem
mesmo explicitamente no sentido da desintegração e da reintegração, mas no sentido de
“viagem para fora e retorno para dentro” para a corrente de formas, cuja fonte e
desembocadura se confundem – lembrando que isto não é uma circunferência, se
quiséssemos usar uma imagem matemática.

Ora, a modificação e transformação comportam, desde a emissão da vontade do céu (causa


inicial), todos os fenômenos, materiais ou imateriais, da criação: a primeira modificação é o
começo dos fenômenos; o cumprimento da transformação, pela terminação da última
modificação, é o objetivo, o fim da criação. Tudo isso está compreendido no terceiro termo do
tetragrama; e a sequência normal, conforme à causa inicial e seguindo a Liberdade, das
modificações e transformações (terceiro termo) produz a perfeição (quarto termo) prevista na
obra do céu.

O quarto termo é assim a emanação imediata, e como que iminente, do terceiro termo não
impedido, ou seja que, no plano humano, o homem não tem mais que desenvolver-se seguindo
seu caminho, para que seja feliz. É por isso que se diz que os dois últimos termos da fórmula
estão intimamente ligados um ao outro, e devem ser estudados juntos.

A consequência das palavras de Shi Pingweng é visível e desejada; aliás ela está explícita nos
textos de outros comentadores; após o cumprimento perfeito da transformação, e tendo sido
efetuada a reabsorção das modificações, ocorre o retorno ao princípio da fórmula, ou seja
antes da causa inicial. Ora, tendo todos os seres retornado à Perfeição ativa (Khien) e sendo
esta essencialmente a Atividade do céu, a Via que permitiu atravessar os termos da fórmula
continua a existir e existirá eternamente. Acontece então a partida para um novo ciclo, que se
modifica e se transforma como vimos para um ciclo qualquer tomado ao acaso; mas em
nenhuma parte é dito que os seres devem fluir para a mesma parte da corrente de formas.
Traduzido ao plano humano, esta verdade fica assim: que as formas subsistem, modificadas e
transformadas pelo mesmo mecanismo, mas que os seres formais não podem se prevalecer de
suas formas passadas ou presentes para pressentir suas formas futuras: ou que a criação não
muda, mas que as partes formais, que a revelam para nós, são objeto de mudanças, ou , se
preferirmos, de progressões; e que a essência subsiste una, sob aparências diversas, na
eterna sucessão dos ciclos, como ela era una, antes que a causa inicial abrisse às formas do
Universo as portas da Via.

Coloquemos matematicamente a fórmula, e digamos que concebemos a transformação como o


último ciclo, que os quatro termos do tetragrama franquearam, sem que em nenhum momento
saíssem do seio da Perfeição. E assim tocamos na verdade total sobre os destinos finais do
Universo e da Humanidade, suprema e triunfante aplicação da Tradição Primordial.
VI
AS LEIS DA EVOLUÇÃO

Algumas das considerações precedentes já permitiram prever em que direção deve ser
resolvido este problema dos destinos do Universo e, nestes, o destino de nossa Humanidade
presente – destino total daquilo que, na modificação atual, recebe o nome de Humanidade –
problema que não é dos mais consideráveis, mas que, do nosso ponto de vista, é o mais
interessante.

A atividade metafísica da Perfeição (Khien) estende-se a tudo; nossos destinos saem daí como
uma consequência direta. Tão estreitamente quanto as formas do Universo ou outros conceitos
e entidades, nossa sorte está regulamentada pela Via universal, e pela subida simbólica dos
Dragões, à aplicação da qual nada escapa.

Mas consideremos a seguir de que modo geral devemos entender os destinos do Universo, e
como a necessidade de nossa existência terrestre, daquilo que a precedeu e daquilo que a
seguirá imediatamente, não passa de uma necessidade específica, e uma tamanha
particularização da questão, que nem a ideia, nem o próprio termo dessa existência merece
figurar e não figurará na exposição geral.

Não existe aí mais do que uma aplicação de detalhe que estudaremos à parte, porque
atualmente dependemos da estase humana; mas isto não passa de um pequeno lado do
problema, que não merece desenvolvimentos especiais, e que só está aqui para satisfação que
acreditamos dar à curiosidade natural do ser hominal sobre o fim imediato de sua modificação
atual, e sobre sua passagem à modificação seguinte, fora e acima deste estado hominal.

Vamos repetir aqui com mais ênfase aquilo que esboçamos mais acima: o ato da criação não
comporta expressa e inelutavelmente o ato de dar a vida, seja ela terrestre ou análoga à vida
que vemos sobre esta terra. Dar a vida é uma das traduções de “fluir na corrente das formas”:
uma das formas nas quais os seres escoam, pode bem ser a vida tal como nós, terrestres,
entendemos, mas esta não passa de uma das inumeráveis faces de nossas modificações; a
vida não é assim de um corolário indispensável, mas apenas um acidente da criação.

É preciso tomar o cuidado, naquilo que se segue, de negligenciar as impressões e os


sentimentos provindos do nosso atual estado de consciência, e reportar os raciocínios à
sucessão das formas na existência geral, e não à existência particular sob uma única forma.
Somente assim será possível compreender inteiramente o valor do sistema dos sábios
chineses, e captaremos sua solução em toda sua amplitude sintética.

********

Nós vimos: a Perfeição é ativa; sua atividade é sem fim, livre (vale dizer como consequência de
seu princípio de causalidade) e boa (vale dizer regular e harmônica). Assim, todos os destinos
(passados, presentes e futuros, pois aqui a palavra “destino” não implica a noção de devir) do
Universo são compostos de atividade, perpetuidade, causa e harmonia.

A Humanidade é uma das formas da corrente por onde fluem os seres (atividade) ao se
diferenciarem do Ser, formalmente e não essencialmente. Ela é assim um dos aspectos da
Perfeição passiva, e uma das modificações pelas quais o Universo tende à Perfeição, vale
dizer ao mecanismo de reintegração. Assim a Perfeição é a geratriz da Humanidade
(causalidade) como a matéria una – e por conseguinte eterna e sem forma – é a geratriz da
matéria divisível, diversa e temporária. Trata-se aí de modos objetivos da subjetividade.

A Humanidade, considerada mesmo antes de seu nascimento e também depois de sua morte
terrestre é, com grande exatidão metafísica, uma das Formas do Universo – e a Humanidade
terrestre é uma das modificações desta forma. Do mesmo modo e tão escrupulosamente
quanto todas as outras formas, e sem a menor possibilidade de um tratamento especial, esta
forma sai da Perfeição graças ao Princípio da causalidade eficiente, atravessa todas as
modificações, e atinge a transformação, pela qual ela se reintegra na Perfeição. Nenhuma
forma escapa a esta lei geral, e aí reside a Harmonia: trata-se da harmonia da Via, do Tao, da
qual encontramos aqui a primeira e perfeita definição, e que estudaremos mais a fundo no
sistema filosófica de Lao Tsé[35].

Esclareçamos, em linguagem comum, este dado inelutável: a Humanidade vem do Infinito; a


Humanidade retorna ao Infinito. Devemos mesmo dizer que ela não o deixa jamais, e que todas
as modificações se produzem ao longo do Infinito; não apenas a lei de Harmonia, mas o próprio
bom senso, exigem que seja assim. Pois se uma parcela da Humanidade não seguisse as
demais desta maneira em toda as suas modificações, e na transformação final e comum a todo
o Universo, esta parcela não poderia senão sair fora do Infinito, existir fora dele e estar situada
a seu lado. Ora, se eventualmente é possível sair do infinito matemático, não se pode,
essencialmente, sair do Infinito metafísico, sob pena de destruir a noção e a própria idéia deste
Infinito. Esta demonstração por absurdo pode não satisfazer inteiramente a clarividência; mas
nem por isso ela deixa de ser invencível.

Somos todos como pontos na superfície de um cilindro, que podem parecer pertencer a uma
reta ou a um plano que tangenciam a sua superfície, mas que não deixam de fazer parte
integrante, não apenas da superfície, mas do volume no cilindro enquanto funções deste
volume.
Todos nós, formas visíveis e invisíveis do Universo, todos emanamos do Infinito: não podemos
sair dele, estamos para sempre ligados a ele pela essência; e permaneceremos, depois das
formas, neste Infinito, do qual jamais deixamos de ser moléculas impalpáveis, infinitesimais,
mas imperativamente necessárias.

Esta doutrina nos retém como um axioma, e nenhuma revelação poderá pretender impor uma
crença contrária; e nenhuma argúcia, empurrada pelo valor das consequências, poderá
prevalecer contra esta verdade, tão evidente que sua própria demonstração é por assim dizer
impalpável.

********

Não pretendo entrar em discussão aqui; e no entanto é preciso esclarecer um ponto, não tanto
para tentar o esforço inútil de convencer adversários resolvidos a não ceder jamais, mas para
aliviar a hesitação de certas consciências. A doutrina que expusemos não é uma doutrina
panteísta. É a objeção que a ciência, a consciência e as religiões ocidentais fazem, com
eloquência fácil, às tradições sagradas da Índia; os adeptos desta tradição sem dúvida não
terão dificuldade em se defender desses ataques passionais e desarrazoados. Mas no que nos
concerne, não nos deixaremos deter por esta acusação de um idealismo grosseiro, e vamos
rechaçá-lo desde já.

Não somos panteístas, nem temos o direito de nos proclamar Deuses, assim com o braço
perdido da Vênus de Milo não tem o direito de proclamar-se a Vênus de Milo. O Universo não
possui mais do que sua Essência; a matéria não possui mais que seu substrato; e existem
também a natureza e a qualidade; com o substrato, elas são aspectos da tríade metafísica, que
é tão verdadeira quanto a existência da Trindade terrestre, ou quanto as hipóstases da
Trindade celeste. Voltaremos a isto em detalhe quando se tratar de psicologia. Saibamos, por
ora, que a Tríade metafísica não é a Trindade celeste, menos ainda a Unidade divina, e que
não é proclamar-se Deus quando se afirma que retornaremos ao seio de Deus, sem o que
todos os cristãos seriam os mais grosseiros panteístas. Na Tríade metafísica, somente a
Essência prevalece sobre a Perfeição; mas a natureza e a qualidade dependem da corrente
das modificações; como estas, elas são temporárias e proteicas, e não podem pertencer ao
Infinito; e os seres, para os quais elas representam condições e funções contingentes, mas
objetivamente indispensáveis, não poderiam ser confundidos com o Infinito.

Assim falamos por um instante em linguagem ocidental; pois convém aqui perfeitamente ao
dogma oriental, e se torna por assim dizer a linguagem universal: o que nos distingue de Deus
não é a essência, pois somos de essência divina (e o próprio cristianismo confessa e preconiza
esta extração), mas sim a natureza e a qualidade, segundo e terceiro termos da tríade
metafísica. Esta natureza e esta qualidade são precisamente o apanágio dos seres que fluem
na corrente das formas; são estes termos que, na sucessão das modificações, especificam a
forma. Podemos dizer que, aos nossos olhos, eles são a própria forma. Mas o que é, afinal, a
forma? Geometricamente falando (e filosoficamente), ela é o contorno: é a aparência do Limite.

É o limite, como a forma, o que nos determina, nos especializa, nos divide. Esta divisibilidade
ao Infinito, que o escoamento nas formas, eis o que nos separa de Deus. Entre Deus e nós,
existe o Limite, vale dizer a própria determinação de toda a criação. E entre Deus e nós não
existe outra coisa senão o Limite, pois, se este for suprimido, toda a criação desaparece e só
permanece a Unidade Universal.

Busquemos aprofundar este teorema; pois ele contém a explicação completa do Universo, se
nos lembrarmos que o Limite ou as Formas, ou a Corrente das Formas não comporta apenas,
como pensam as crianças, os lineamentos e os contornos, mas também as funções de peso,
volume, densidade, e todas as noções e percepções que constituem as diferenciações
superficiais e aparentes das moléculas da matéria.

Empregamos voluntariamente aqui uma terminologia inferior; mas o fizemos a fim de tornar
mais evidente aquela que é a mais essencial das verdades inteligíveis ao homem.

Esta demonstração nos determinará imediatamente no espírito daqueles que querem por toda
parte as classificações, os gêneros e as espécies, e que pensam que as matérias científicas
devem ser absolutamente arrumadas por capítulos e ao longo de fórmulas. Nós não somos
panteístas; menos ainda “naturistas”. Mas, equidistantes dos místicos puros, que só veem
evidência no mistério, e dos materialistas, que só veem evidência quando sob o controle dos
cinco sentidos humanos, somos idealistas positivos.

Sabemos que nossa razão e nosso entendimento são reconhecidamente imperfeitos; e


malgrado isto, reconhecemos, no controle que eles exercem sobre as percepções e sensações
que nos dão nossa forma humana, que não devemos aceitar, como o fazem os materialistas,
aquilo que o exame dos nossos sentidos declara serem verdades ou evidências; somos mesmo
levados a declarar que estas verdades e estas evidências contingentes não podem ser
realmente nem verdades nem evidências, pela razão precisa que é assim que eles aparecem
aos instrumentos limitados e aos registradores insuficientes.

Mas, mais ainda que às experiências dos nossos sentidos, não podemos confiar a priori e
inteiramente nas afirmações de nossa razão, pois o primeiro efeito de nosso raciocínio é o de
demonstrar que nossa razão é limitada e seu desenvolvimento é incompleto. E ela é limitada
expressamente porque ela age sobre um ser que está em modificação, na corrente das formas,
ou seja dentro de limites. Não devemos nos insurgir contra aquilo que os materialistas chamam
de ininteligível, e que eles rejeitam como tal. Não existem coisas ininteligíveis, mas apenas
coisas atualmente incompreensíveis. E, a partir do momento em que nos sabemos imperfeitos,
e que estamos num escalão indeterminado, mas não superior, da evolução, sabemos que não
podemos ser universalmente compreensivos. Nosso entendimento está no nível cíclico das
outras partes do composto humano; e, por conseguinte, longe de rejeitar o incompreensível,
devemos declarar que, no estado presente de nossa estase, um incompreensível aparente é
filosoficamente necessário, e que a presença deste incompreensível relativo é um critério – e o
melhor – para reconhecermos que caminhamos conforme a verdade. Eis como não somos
materialistas, e com, ao contrário, somos essencialmente idealistas.

Mas não temos a fé dos carvoeiros nessas noções abstrusas. E sobre essas abstrações,
misteriosas por ora, nós nos recusamos a construir seja um sistema psicológico, seja uma
regra moral, seja uma religião sentimental. Este desconhecido não nos enche de esperança
nem nos desencoraja, mas apenas nos traz curiosidade e ardor. Sentimos, ou melhor
sabemos, que não há nada de temível neste desconhecido porque este mistério não jaze nele,
mas apenas em nossa contingência, e que, por conseguinte, trata-se de um mistério relativo,
destinado a ser deslindado por nós, no dia em que o órgão – que hoje é nosso olho físico – for
sublimado até alcançar a altura de sua visão. Todo nosso espírito deve tender a “diminuir as
distâncias”, ou seja a ver desaparecer o limite. Nós não dobramos o joelho diante do mistério:
nós elevamos nosso conhecimento até ele. Neste dia nós teremos nos tornado ele; e desde já
não podemos senão rir dos terrores e das ameaças que são proferidas em seu nome. E
malgrado tudo isso, pretendemos que esta audácia é o melhor meio de chegar ao
conhecimento, e que, mesmo na doutrina cristã – que nos querem vender como a doutrina da
genuflexão – o céu pertence aos violentos. Tentar penetrar o mistério é a única maneira que
nossa inteligência tem de honrá-lo. Ele não respeita seu pai, que lhe deu as costas por medo
de seu rosto e seu olhar. Nada construir sobre o mistério, mas abraçá-lo para compreende-lo,
sabendo que nossos esforços, incapazes de sucesso em nosso estado atual, contarão através
das sucessivas modificações até a transformação final – esta é a nossa regra.

Nisto não somos místicos, mas resolutamente positivos. E este método não se opõe em nada à
nossa doutrina idealista. Bem ao contrário, ele a faz caber melhor em nosso espírito. E
pensamos que, como isso acontece todos os dias nos progressos indefinidos da ciência (desde
as rãs de Volta até as ondas elétricas solares), o progresso indefinido da Humanidade – que
mudará de nome, de natureza e de qualidade, e conservará apenas sua Essência, através de
todas as modificações – a colocarão no nível de todos os desconhecidos, cuja modificação final
é o devir dos axiomas.

Assim passa o Universo, até a transformação definitiva, por todas as modificações


atravessadas pela corrente das formas. Determinemos as leis desta corrente. Elas são
conformes aos princípios da atividade, da harmonia e também por aqueles pelos quais se
manifesta a Perfeição na fórmula tetragramática de Wen Wang. E devemos aplicar estes
princípios às leis da corrente das formas, para especificar nela os dados e os elementos com
uma exatidão que provém mais da matemática do que da filosofia.

Os seres caminham, eles evoluem; este é o corolário do princípio inicial, da causalidade, que é
a manifestação única da Perfeição, ou seja a vontade do céu. Podemos conceber que eles
parem? Não, pois seria preciso, para causar esta parada, supor uma vontade do céu contrária
àquela que os mantém em movimento, pois é impossível que o céu manifeste duas vontades
opostas uma à outra. E é assim que, a partir do instante em que o movimento acontece – e
esta é uma coisa que, mesmo objetivamente, não se pode negar – o movimento prosseguirá
para sempre, e poderá ser definido como a Manifestação Eterna da Perfeição. Assim o
princípio da causalidade está satisfeito. Mas a fim de que não haja erro possível, diremos que
não se deve confundir o Movimento Eterno com uma “criação eterna” ou com uma “passagem
eterna na corrente das formas”. Definiremos adiante o que é o Movimento Eterno e o Eterno
Agir, mas seria pueril pretender dar uma direção à Totalidade do movimento, ou um móvel à
Totalidade das ações. E assim podemos compreender desde já, antes mesmo da definição, o
objetivo final ao qual leva o princípio da causalidade.

Como a lei da atividade faz evoluir os seres? A continuidade da evolução apenas satisfaz à
causalidade; a atividade pede uma ação; uma ação, qualquer que seja, satisfaz a atividade;
mas a repetição de uma ação, qualquer que seja, constitui realmente uma ação? Somos
forçados a responder negativamente; pois, do ponto de vista da própria ação, sua repetição
constitui a monotonia; e, do ponto de vista dos motores da ação, vemos que uma mesma ação
é engendrada pelos mesmos motores, agindo sob o mesmo impulso, com a mesma força; a
continuidade de uma ação não é portanto a atividade; ela é, ao contrário, depois que o
movimento começa, a imobilidade do princípio motor. Consequentemente, o princípio da
atividade fica satisfeito, não por uma ação ou pela mesma ação repetida duas ou mais vezes
indefinidamente, mas antes por uma série indefinida de ações, devidas a diferentes motores, e
que, assim, não podem ser absolutamente idênticos. Portanto, em nome do princípio da
atividade, não se passa duas vezes pela mesma corrente das formas. E não podemos crer na
metempsicose brutal e grosseira que foi extraída das doutrinas budista e pitagórica e que, na
realidade, não se encontra nelas[36].

Mas, ao contrário, depois de termos esgotado uma forma, e todas as circunstâncias de uma
modificação, passamos inevitavelmente a uma outra modificação, com a certeza lógica de que
jamais voltaremos àquela que acabamos de deixar.

Como pode o movimento contínuo e variado concordar com a lei de harmonia, que é o terceiro
termo da fórmula de Wen Wang? Notemos de passagem que a lei de harmonia não pode ser
satisfeita senão por ações variadas, pois não existe harmonia na repetição: as relações
harmônicas não podem se estabelecer, como as relações algébricas ou geométricas, se não
for entre quantidades diferentes. A harmonia é satisfeita pelas proporções (no sentido
matemático) das variações; ou seja que uma forma qualquer é invariavelmente distante
daquela que a precede e daquela que a sucede, e todas as modificações são invariavelmente
distantes umas das outras. Assim, a série de modificações pode traduzir-se matematicamente
por uma progressão (aritmética ou geométrica) que tende para um “lugar metafísico” que não
se pode pensar atingir objetivamente. Assim transparece verdadeiramente a lei de harmonia.

Ela tem uma outra consequência, que toca imediatamente aos seres em modificação: é a
invariabilidade do sentido e da sequência das modificações pelas quais todos os seres passam.
Pois, assim como a atividade impede que se passe duas vezes pela mesma forma, a harmonia
impede de não passar por todas as formas, de modo que existem muitas correntes de formas.
Dentro desta necessidade lógica, encontramos, entre nós humanos, uma garantia de
fraternidade de nossos espíritos e do paralelismo de nossos esforços. A união é por isso
mesmo indefectível, quer nos lembremos, quer esqueçamos, entre nós que, no decurso de
uma modificação, unimos nossas tendências; nós nos encontraremos de forma análoga lado a
lado nas modificações que virão.

Enfim, a quarta lei exige que o movimento contínuo, variado e harmônico, seja benéfico e
conduza o Universo à Perfeição. A lógica inflexível dos sábios chineses nos leva aqui à melhor
clarividência dos nossos destinos. Pretendida pela Perfeição, determinada pelas
consequências precisas desta vontade, a Evolução não pode ser senão boa, e só pode
produzir um resultado excelente para os seres que são a sua matéria. Não existe, lembremo-
nos, reintegração fora da Perfeição. Não existe assim outra coisa que a feliz reintegração final.
Esta é a necessidade da quarta lei. Mas, se casamos seus efeitos com os efeitos da terceira
lei, conceberemos imediatamente que não existe diferença essencial na sorte dos seres em
modificação, que não há lugar para quedas, quaisquer que possam ser, que contrariariam a lei
do bem, se fossem gerais, e contrariariam a lei de harmonia, se fossem parciais e temporárias.
A passagem dos seres através das modificações do Universo é portanto uma ascensão
regular, contínua, harmônica e bem-aventurada, da qual a Perfeição, de que somos parcelas
infinitesimais e emanações contínuas, não pode nos impedir de participar.

Eis, expostas de forma sumária – pois os chineses escreveram volumes a respeito, e os


ocidentais deveriam fazer o mesmo – as geratrizes da Evolução Universal. Elas são tão
características, tão inelutáveis, tão precisas que, de um lado, é impossível a um intelecto
humano leal subtrair-se a elas, e, de outro, seguindo o melhor dos métodos, torna-se tão fácil
reduzir os Destinos do Universo a um desenho geométrico, como foi fácil reduzir a seis linhas,
sem diminui-lo, aquilo a que o Ocidente chama de “incomunicável Eterno”[37].

O princípio de causalidade manifesta-se pelo movimento; todo movimento, em mecânica,


traduz-se essencialmente por uma linha; como o princípio da atividade manifesta-se por uma
diversidade indefinida, esta linha não pode ser uma circunferência, nem uma linha truncada; ela
só pode ser uma linha com elementos hiperbólicos ou parabólicos, como os cometas
descrevem no espaço e cujos lados separam-se no infinito; esta hipótese supõe é claro que
não consideremos senão um plano do espaço: mas o princípio de harmonia – que satisfaz aqui
a idéia cíclica e simboliza em todos os pontos a idéia de retorno e o princípio da reintegração –
exige que as modificações sucedam-se a intervalos iguais e sejam igualmente distantes umas
das outras: assim, toda possibilidade de uma linha plana deve ser descartada, pois existem
relações de distância entre as suas partes; a linha do movimento universal inscreve-se portanto
sobre uma superfície de revolução; as relações de distância entre os elementos desta linha
estão em progressão aritmética para satisfazer a lei de harmonia. Enfim, a lei do bem exige que
as modificações procedam a uma ascensão contínua, e assim os elementos da figura se
superpõem inevitável e invariavelmente um ao outro.

As necessidades da representação podem ser resumidas assim: uma linha (princípio de


causalidade); indefinida e que não passa jamais pelos mesmos pontos (princípio da atividade);
que determina curvas e interseções de superfícies de revolução, girando umas sobre as outras
(princípio do bem); e onde os pontos de um elemento estão igualmente distantes dos pontos
correspondentes do elemento superior e do elemento inferior (princípio da harmonia).
Não existe outra superfície que satisfaça a estes dados necessários do que uma superfície
helicoidal cilíndrica; vale dizer que a linha do movimento universal será precisamente a
interseção da hélice (superfície de revolução) com a superfície lateral do cilindro representativo
da Evolução cíclica, ao longo da qual movem-se todos os seres. Deve ficar bem entendido que
o cilindro da Evolução só é representativo do ponto de vista da necessidade que existe, para o
nosso olho, de interceptar a superfície de revolução indefinida para obter a hélice: mas a
superfície ao longo da qual a hélice se desenvolve não é um lugar nem físico nem geométrico:
ela pode ser transportada ao infinito, ou pode ser reduzida à simples altura do cilindro; assim, o
raio da base do cilindro é indiferente e, na realidade, ele é igual ao zero metafísico dos
números.

O único elemento da hélice que ainda falta determinar é o seu passo, ou seja a distância, ao
longo da altura do cilindro, entre dois pontos correspondentes da curva (a curva compreendida
entre estes dois pontos constitui uma das revoluções da hélice, e todas as revoluções são
iguais entre si); este passo da hélice é constante (princípio da harmonia) e é o único dado que
podemos determinar matematicamente, porque estamos no curso de uma revolução e
perdemos a memória da passagem ao longo das revoluções precedentes.

Vamos construir uma representação simples, e que deverá ser satisfatória. Por um ponto
qualquer da hélice passaremos, sobre a superfície lateral do cilindro, uma paralela à altura do
cilindro. Determinaremos assim um momento da Evolução e uma modificação completa.

O Universo (todos os seres) está, pelo princípio da causalidade, posto em movimento e


lançado ao longo da hélice inscrita no flanco do cilindro (cilindro hipotético, repetimos, e que
representa a vontade do céu, detida por um instante, vontade esta que inclui todos os
movimentos saídos dela), Vamos tomá-la no ponto dado acima, e suponhamos este ponto
como o começo de uma modificação. No momento em que o Universo entra nesta modificação,
se ele fosse abandonado a si mesmo, ele seguiria uma trajetória representada pela tangente à
hélice no ponto dado. Mas ele é aspirado pela vontade do céu (princípio de atividade) e
empurrado para o céu (princípio do bem): assim, ele descreve a hélice indicada, e o passo da
hélice é precisamente a medida matemática da “força atrativa da Divindade”. Não existe meio
direto de avaliar esta medida; só poderíamos conhecê-la por analogia (princípio da harmonia),
se o Universo, em sua presente modificação, se lembrasse de sua modificação passada, e se
ele pudesse assim julgar a quantidade metafísica adquirida, e, por conseguinte, medir a força
ascensional. Não se diz que isto seja coisa impossível, pois ela é facilmente compreensível;
mas ela não cabe nas faculdades da presente Humanidade[38].

Durante todo  o curso do Universo ao longo da revolução da hélice que representa sua
modificação atual, os elementos que o regem são análogos (harmonia) mas não idênticos
àqueles que o regeram nas modificações anteriores, como àqueles que o regerão em suas
modificações ulteriores. O estudo da modificação presente do Universo pode assim, se bem
empreendido, buscar, por analogia, dados preciosos sobre os destinos (passados e futuros) de
todos os seres. É um trabalho útil para aqueles que quiserem se dedicar a ele.
Chegado ao fim da revolução considerada na hélice, o Universo tende ao fim de sua
modificação, e passa para a modificação seguinte, que lhe é superior, conforme o princípio do
bem. Mas a hélice é regular, em todos os seus segmentos e todos os seus pontos; entre o fim
de uma modificação e o começo da que a segue, não existe nem desvio nem mudança brusca:
a passagem de uma modificação a outra faz-se de forma tão lógica e tão simples como a
passagem de uma situação a outra no interior de uma mesma modificação: o universo move-se
sempre normalmente e num movimento igual (lei de harmonia). A passagem é insensível; não
há nada de surpreendente nem de doloroso.

O Universo, portanto, passa para a modificação seguinte, onde ocupará sucessivamente


posições análogas (harmonia) em uma superfície de revolução superior (bem). E este
movimento dura assim ao longo de toda a Evolução; será ele eterno, ou seja as modificações
suceder-se-ão sempre umas às outras? A hélice girará sem fim suas revoluções ao redor do
cilindro sem bases? Isto está apoiado no princípio que diz que a vontade do céu, uma vez
manifestado o movimento, não pode mais detê-lo. Mas é falso conceber o movimento da
vontade celeste como sendo inerente à passagem de um lugar a outro, ou seja, a um
deslocamento, seja lá em que mundo se queira considerar este deslocamento. Veremos no
livro de Lao Tsé, explicativo do Yi Ching, que o “movimento celeste” concorda perfeitamente,
sobre o plano metafísico, com aquilo que chamamos, no plano das modificações, de repouso.
E isto não é então uma objeção séria.

Quando se esgotará a série de modificações? O Universo que as percorre o saberá, quando


souber, não apenas a medida do passo da hélice, vale dizer a força atrativa da Divindade, mas
também a distância que, do alto do cilindro, o separa da Perfeição.

Mas que importa que não possamos fazer atualmente esta determinação, se sabemos como a
iremos fazer mais tarde, pela apreciação desses elementos e pela aquisição das faculdades
que faltam à estase humana? Mais uma vez: que a lógica da matemática nos console de nossa
pouca inteligência.

O cilindro figurativo ao redor do qual gira a hélice evolutiva, segundo o mesmo princípio de
atividade, leva ao infinito. Ora, como as paralelas se encontram no infinito, a superfície lateral e
a altura do cilindro encontram-se num único ponto, e o limite do cilindro é um cone. É esta
figura que a matemática nos apresenta quando consideramos o fim das modificações, ou seja o
momento da Transformação, a Idéia de Reintegração. E a matemática é aqui de uma precisão
absoluta e gritante. É exatamente para um lugar no alto do cilindro (que agora se tornou a
ponta do cone), que convergem num único ponto todos os elementos da superfície lateral do
volume, e por conseguinte a hélice que se desenvolve aí: a extremidade hipotética no alto do
cilindro é, como vimos, o centro de atração da vontade do céu; é exatamente assim que, no
infinito, o Universo evoluído confunde-se com a Perfeição. O Universo não pode, mesmo
matematicamente, passar além, nem escapar à Perfeição por uma outra corrente de formas. A
reintegração ao seio da Perfeição é a sorte total e inevitável de todos os seres.

Se levarmos mais longe o simbolismo analógico apresentado pela figura geométrica, podemos
imaginar que, após haver se confundido com a Perfeição, o Universo se distingue dela
novamente. Pois um cone, mesmo gerado por um cilindro suposto ao infinito, comporta outra
figura cônica, oposta pelo cume à primeira; e assim o Universo parte ao longo de uma nova
hélice cônica, cujas bordas separam-se no infinito. Nada se opõe a esta verdade matemática.
Mas ela pode ser transposta simbolicamente à metafísica. Pois o infinito matemático supõe
superfícies riemanianas[39] e números transfinitos; e a cada instante, nas discussões
algébricas, somos levados a conceber noções além do infinito. É a melhor demonstração de
que o infinito matemático não é o infinito, mas apenas o indefinido metafísico; a Perfeição
celeste não se assenta no indefinido, mas no Infinito; e se podemos tomar o indefinido como
imagem do infinito, não podemos por outro lado aplicar ao infinito os raciocínios do indefinido.
O simbolismo desce, mas não sobe.

Saudemos com confiança os desígnios, desconhecido ainda, mas lógicos e inteligíveis da


vontade do céu; e sigamos sem temor a marcha e o fim, inevitavelmente felizes, dos Destinos
do Universo.

VII
OS DESTINOS DA HUMANIDADE

Se nos reportarmos ao cilindro e à hélice representativos dos destinos do Universo, regidos


pelas leis da Evolução, veremos que os destinos particulares da Humanidade são regidos pelas
mesmas leis, de modo exato e imprescritível, e que não há nada senão fazer, para a estase
humana, uma aplicação lógica e adequada destas leis, para obtermos a solução dos problemas
que inquietam nossa espécie.

O ciclo humano é um dos elementos da hélice, provavelmente uma de suas espiras; e a vida
humana pode ser determinada como começando e terminando na espira considerada, ou seja
limitada às suas extremidades pelas duas interseções da espira com a paralela à altura do
cilindro tomada em um ponto qualquer da superfície lateral.

Este corolário de nossas proposições anteriores mostra imediatamente que a modificação


humana não possui, dentre as demais modificações, nada de surpreendente ou de
maravilhoso, e que não existem soluções ou transformações particulares que lhe possam ser
aplicadas.

Pois, é preciso frisar, não há nada de extraordinário na Humanidade, assim como na sorte que
a espera; a única coisa extraordinária que poderia ocorrer seria ela não ser o que é. Ela faz
parte, em seu lugar natural, das modificações do Universo; ela é um dos elementos normais
dessa Evolução. Nada foi “criado” para o homem; nada aguarda o homem especialmente; ele
veio de onde tudo veio e vai para onde tudo retorna; e a estase em que ele se encontra não
tem importância maior do que as outras.

Nós lhe atribuímos muita importância, porque é aonde nos encontramos; e isso é bastante
razoável, se levarmos em conta apenas a curiosidade. Mas será uma vaidade ingênua, se
deixarmos esta curiosidade conduzir à exigência de um tratamento especial; é preciso nos
convencermos – o que é difícil, tanto pelo nosso orgulho quanto por aqueles que veem
vantagens nisto – de que o homem não está nem numa situação inferior, nem numa situação
privilegiada, que ele é apenas como deve ser; que ele é um ser que não é nem especialmente
feliz, nem infeliz, e que ele não merece nem as interjeições laudatórias nem as execrações
piedosas, com as quais os textos religiosos o incensaram ou rebaixaram.

O homem é o único a possuir uma alma, dizem alguns aduladores, que procuram tirar partido
disto. Esta proposição é manifestamente falsa tanto no seu sentido geral quanto na sua
pretensão. O homem possui certamente algo que lhe é específico, como veremos mais adiante:
esta é propriamente a característica da estase humana. Mas os seres modificados, que nos
precederam e que nos seguirão, possuem igualmente características pré e pós-humanas, e
ninguém tem direito de orgulhar-se disto, pois foi a lei da atividade que deu a todos aquilo que
eles não poderiam deixar de adquirir sucessivamente.

Mas a característica humana, como qualquer outra, não é composta por nenhum elemento que
só se encontre no homem. É um composto cujas quantidades só se encontram no homem em
determinados coeficientes, mas cujos elementos consecutivos acham-se em uma ou mais
estases adjacentes; elas não são do homem; é apenas a sua associação que faz o ser
humano.

O desenho matemático nos mostra de resto uma hélice perfeitamente regular e coordenada;
nenhum ponto é excêntrico; todos são regulares e decorrentes dos elementos geradores da
figura; a Humanidade está sobre um destes pontos, ou melhor sobre uma das espiras
compostas por estes pontos. Ela é assim inteiramente normal; ela não possui preferências da
Divindade, e devemos relegar ao arsenal envelhecido de nossos orgulhos e terrores os elogios
e as ameaças que nos foram solenemente impostos em nome desta situação privilegiada que
não passa de uma concepção tola e inteiramente contrária ao princípio da Evolução e da
própria Perfeição.

Coloquemo-nos sobre a hélice da Evolução em um ponto de interseção fornecido pela paralela


à altura do cilindro sobre a face lateral; esta paralela corta todas as revoluções da hélice; entre
dois pontos de interseção consecutivos está representada a espira da Humanidade; o ponto de
interseção inferior é o do início da espira, e de nossa observação atual. É o momento em que
nasce a Humanidade[40].

Ela nasce, ou seja: ela vem da modificação precedente, sem choque nem sobressalto, subindo
pela doçura da curva, por um movimento giratório contínuo, devido à força atrativa da
Perfeição. A lei da causalidade é a origem deste nascimento, e da perpetuidade deste
nascimento, ao menos enquanto durar a corrente das Formas: pois a forma humana pode
confundir-se no Universal: ela irá fundir-se aí, certamente; mas ela não pode perecer no sentido
negativo que nossa objetividade dão a este termo gramatical, ou seja que ela terminará
docemente quando sua forma expirar  e for substituída por outra, mas ela não terminará, em
plena marcha, por um brutal cataclismo que romperia o curso uniforme de seu destino.
Deixemos assim, sem mais delongas, o fim do mundo ao bom rei Roberto, e o congelamento
de nosso globo ao Sr. Camille Flammarion: estas hipóteses são gratuitas, e, mesmo que as
consideremos como material e psicologicamente realizáveis, elas não influirão em nada na
Forma humana nem nos destinos da Humanidade. O globo terrestre, enquanto veículo, só
pereceria se se tornasse inútil. Vale dizer que a Humanidade não perecerá com o planeta, mas
que o planeta perecerá quando não mais servir de teatro à Humanidade. E tudo isto não passa
de contingências supérfluas e redundantes.

A lei da atividade empurra a Humanidade, desde seu nascimento, sobre a espiral de sua
evolução particular; a Humanidade não permanece jamais imóvel sobre um ponto desta espiral,
e jamais passa duas vezes pelo mesmo ponto. Isto quer dizer que o ciclo humano se compõe
apenas da vida terrestre, e que após a morte jamais voltaremos a este planeta? Seria bom se
houvesse uma resposta definitiva, em qualquer sentido que seja, a esta questão. Certamente
não retornaremos jamais à estase humana, tal como a atravessamos hoje, pois a lei da
atividade, a lei da harmonia e a lei do bem seriam violadas simultaneamente por isso. Mas não
existem outras coisas além do “composto humano” sobre a terra? E só existe a terra, aonde
possam modificar-se os “compostos humanos”? Tentemos responder por analogia a estas
perturbadoras questões.

Nos três reinos que conhecemos sobre nosso globo, o reino animal vê e sente os reinos
vegetal e mineral; o reino vegetal pressente e não vê; o reino mineral nem pressente nem vê –
este, ao menos, o estado da ciência experimental atual. Este é o conjunto daquilo que cabe em
nossos sentidos. Mas nós pressentimos, sem ver, uma outra matéria diferente da que está
catalogada naqueles três reinos. Tudo o que é eletricidade, psiquismo, forças errantes, eis a
matéria que não cai sob nosso controle sensorial, e diante da qual a Humanidade está, como
estão as plantas diante da Humanidade. É impossível levar a analogia mais adiante. O mineral
não sente que o conformamos e que nos servimos dele: assim, podemos perfeitamente ser os
instrumentos inconscientes de seres terrestres que ignoramos, que não possuem nenhum de
nossos cinco sentidos, e que utilizam nosso espírito sem que ele o saiba, assim como nossa
vontade serve-se do mineral. Nós governamos os animais, as plantas e os minerais; porque,
senão por um orgulho ridículo, pretendemos não sermos governados por ninguém, e que não
haja nenhuma forma no Universo entre Deus e nós? Isto é ilógico, e inclusive é contrário às
recentes descobertas das ciências mentais e psíquicas. Estes entes superiores, estas
entidades indiscutíveis, embora desconhecidas, estas formas, absolutamente normais, do
Universo, são ou não são Humanidades sublimadas? Quem poderá impor que assim seja, e
quem ousará dizer que é impossível?

Por outro lado, será o ciclo humano inevitavelmente limitado ao papel que o vemos
desempenhar sobre esta terra? Será indispensável, para que o homem permaneça na
humanidade, que ele pise o solo com seus pés, que ele colha o trigo com suas mãos, que ele
corte a carne com seus dentes? Ninguém pode pretender que a essência da Humanidade
esteja na sua forma, ou, para usarmos uma linguagem mais física: na posse e uso dos cinco
sentidos, e no habitat de nosso atual planeta. A Humanidade pode desenvolver-se fora do
planeta, com uma aparência e meios apropriados às condições formais de existência que lhe
serão reservados. Isto é perfeitamente lógico e plausível.

Assim, para a Humanidade, estar sobre esta terra com outros elementos orgânicos, com uma
outra Vida, ou passar a outra modificação com órgãos análogos, mas aperfeiçoados, são duas
variações, igualmente aceitáveis, da lei dos Renascimentos. E esta é a metempsicose budista
e pitagórica, que toda a antiguidade admite, e que nós admitimos também, como um corolário,
perfeitamente lógico e demonstrado, das leis da Evolução. Esta lei dos Renascimentos afeta a
Humanidade em todo o ciclo humano; uma de suas aplicações está na espécie humana
terrestre; e é por isso que fazemos sempre a distinção entre o Homem coletivo e o individual.

A Humanidade é uma das espiras da hélice; a espécie humana atual é um dos pontos da
espira[41]. Tomemos sempre o cuidado de não confundir nem tomar a parte pelo todo, para
não cairmos nas ilusões mais nebulosas ou no transformismo mais grosseiro. A vida humana
terrestre é um dos pontos do ciclo humano; é uma das formas da Humanidade; e a
Humanidade, pela lei dos Renascimentos, atravessa a estase humana presente, sem manter-
se nela e sem retornar a ela. Mas se a espécie humana está perdida para o homem após sua
morte individual, a Humanidade pertence ao Homem coletivo. E veremos mais adiante como se
comporta o agregado humano nestas diferentes situações. E veremos também que, antes ou
depois do ciclo humano, subsiste, daquilo que caracteriza a Humanidade, um elemento
constitutivo imanente e eterno.

A lei de harmonia empurra a Humanidade ao longo de seu ciclo com um movimento geral e
uniforme. O movimento é geral, pois nenhuma das parcelas que constituem a Humanidade
poderia escapar casualmente ou subtrair-se voluntariamente; ele é uniforme, porque a causa
inicial (o movimento devido à manifestação da vontade do céu) se exerce sobre toda a
Humanidade de modo sempre igual a si mesma, e que esta se move ao longo de sua espira
sem descontinuidade ou parada. Esta lei de harmonia tem uma tripla consequência: na sorte da
Humanidade, não existe acaso; não existe diferenciação essencial; e não existem surpresas
nem exceções.

Não existe acaso: o acaso é o efeito produzido pela concordância entre a inconsciência do
elemento com a ausência de seu motor inicial. Nós admitimos de boa vontade a inconsciência
do elemento, enquanto impotência no decurso de uma modificação, e a inintelecção impotente,
se considerarmos a série das modificações. Mas como admitir a ausência do motor, ou seja o
esquecimento aonde a Vontade do céu deixasse a menor das parcelas que o princípio da
causalidade lançou no movimento, ou seja na existência objetiva? Isto é impossível; pois se o
elemento parcial considerado estivesse entregue ao acaso fora do Universo manifestado, seria
preciso negar a infinitude da Vontade do céu; e se o elemento fosse entregue ao acaso dentro
do Universo manifestado, seria preciso negar a Perfeição onisciente desta Vontade. Isto
equivale a dizer que a Vontade do céu não existe. O acaso e o céu são contraditórios e
mutuamente excludentes. E como o Universo é o céu manifestado, seria preciso negar, seja o
acaso, seja o Universo, até o mais concreto testemunho dos nossos sentidos. Somos assim
conduzidos a esta proposição verdadeira: o Acaso não existe. E ficamos felizes de constatar
que esta proposição está há longo tempo inscrita nos umbrais da alta ciência puramente
ocidental, e chancela as obras dos mestres que se ocupam dela. No Cristianismo, e em todos
os sistemas religiosos e filosóficos que dele emanam ou dos quais ele emana, esta parte
eficiente do princípio da harmonia leva o nome de Providência, termo cujo significado radical
constitui a própria negação do acaso.

Não existe diferenciação, na Humanidade, entre os destinos dos diversos elementos que a
compõem. Os elementos que, num dado ponto, entram simultaneamente – harmoniosamente –
em uma modificação, saem juntos desta modificação e entram juntos numa outra. Ademais,
todos os elementos percorrem todas as modificações na mesma ordem. Enfim, tanto quanto
sua origem, o fim será o mesmo para todos. Isto é o que manda estritamente a lei de
Harmonia; é impossível que esta lei seja violada em qualquer de seus pontos. Veremos, na
sequência destes estudos, quando tomarmos os textos do Kang-Yng, ou das Sanções, como o
dogma grosseiro das recompensas e das penas eternas se transforma, quando aqueles que os
ensinam não precisam retirar, dos terrores que ele inspira aos crentes, lucros materiais ou
influência. Devemos afirmar desde já que o Princípio, igualmente inalterável, da Justiça, fica
integralmente satisfeito. Mas é próprio dos atributos do céu conformarem-se uns aos outros e
de não se prejudicarem mesmo nas suas consequências mais longínquas; o princípio da
Justiça concorda perfeitamente com a lei de Harmonia, da qual ele é uma manifestação
metafísica; e a Harmonia, como seu corolário – a Justiça – implica que a sorte final da
Humanidade e do Universo seja um destino comum e único.

Lembremos de passagem que, pela aplicação da lei de Harmonia, tanto quanto pela aplicação
da Atividade, não é permitido admitir a brutal metempsicose dos medíocres sucessores de
Pitágoras. Alguns elementos não podem permanecer em uma modificação – conservando ou
mudando suas formas – enquanto outros elementos, que ingressaram nesta modificação ao
mesmo tempo, a atravessam e abandonam; uns não poderiam avançar, enquanto outros
recuariam, sob pretexto de sanções; pois, de uma vez por todas, sanções ligadas a atos
temporários são forçosamente objetivas, e não poderiam ser aplicadas a leis consequentes da
subjetividade. Todos os seres seguem, na corrente das formas, um movimento harmônico e
regular; e somente a lei do bem determina a direção deste movimento.

Enfim, não existe, neste movimento, descontinuidade, detenção ou imprevisto; vale dizer que a
marcha é metódica. A Harmonia afeta todos os seres em sua passividade, e regulariza sua
emissão nas formas. Não existe assim nenhuma criação imprevista; não existe geração
espontânea; todos os seres existem ao mesmo tempo, e o primeiro dia em que nós
constatamos sua existência não é o dia de seu nascimento; esta pretensão é mais uma
baforada do orgulho de cérebros humanos servidos por uma inteligência imperfeita e por
órgãos sensoriais na realidade bastante medíocres; ela não é mais sustentável do que a
opinião de um astrônomo (em honra da astronomia, creio que este astrônomo nunca existiu
nem existirá) que declarasse ter sido criada uma estrela que acabara de avistar pela primeira
vez no campo de seu telescópio, enquanto que, na realidade, este astro está tão afastado de
nosso globo que apenas a luz emitida teria nos alcançado então. Seria ridículo recusar aos
princípios da metafísica e às manifestações do subjetivo aquilo que atribuímos às leis de uma
ciência contingente. Não existe, assim geração espontânea. Mas a regularidade da emissão
das formas vai mais longe: ela pede a transmissão regular da forma, mesmo nos menores
detalhes. Assim a forma humana será sempre a forma humana; e não é possível um homem
engendrar um boi, ou um boi engendrar um homem, ou uma planta engendrar um pedaço de
metal. Este enunciado parece ridículo; ele parecerá menos, quando compreendermos que ele
pressupõe a impossibilidade de que, através de não importa quantos  aperfeiçoamentos e
escalões se queira, um macaco engendre um homem, o que condena irremediavelmente esta
bizarra teoria, à qual se deu o apelido de Darwinismo. Os últimos a sustentar estas proposições
sem sustentação possível, física ou metafísica, não admitem que um casal de negros possa ter
um filho branco, mas acham plausível que um casal de orangotangos, nos confins das selvas
de mistérios impenetráveis, tenham um dia procriado um ser humano.

Bem entendido, nós admitimos que, assim como não existe por assim dizer um limite claro
entre os mais animais dos vegetais e os mais vegetais dos animais, existem também, entre a
forma humana e as outras formas animais mais próximas, tantas formas quanto se queira, e
que elas sejam, por categorias, e organizadas em ordens, o mais semelhantes possível aos
seus vizinhos. Entre o símio mais humano e o homem mais simiesco, nós admitimos mil
formas, se quisermos, de antropoides (embora jamais se tenham encontrado, tanto na geologia
quanto na zoologia, pistas absolutamente convincentes); e assim, para maior satisfação de
alguns sábios, tão orgulhosos de si mesmos quanto modestos em relação aos seus
antepassados, a distância entre o homem e o símio será preenchida. Isto é verdade, quanto à
similitude das aparências; mas a diferenciação entre as categorias, indefinida ou infinitesimal,
subsiste com o mesmo rigor; os antropoides produzirão antropoides; os símios, símios; e os
homens, homens; e isto continuará assim, enquanto fluir, no Universo, a corrente das formas.

Enfim, a esta Humanidade, que sabemos ainda ativa, móvel, e, segundo seus movimentos,
destinada a uma sorte geral e comum, a lei do bem designa esta sorte e especifica a um tempo
a direção e o fim de sua atividade. Este fim é excelente, pois o desígnio supremo e único da
vontade do céu é essencial e invencivelmente bom. Não existem nem terrores nem sofrimentos
eternos; vamos prová-lo, na linguagem mais simples e mais infantil.

Se existisse eternamente um sofrimento, fora de Deus, Deus não conteria tudo; ele não seria
infinito; ele não seria Deus. Se existisse eternamente um sofrimento dentro de Deus, Deus não
seria infinitamente bom; ele não seria Deus. O sofrimento eterno não existe, portanto, nem em
Deus, nem fora de Deus. Significa que ele não existe, e que não pode existir. As ameaças mais
eloquentes, os vitupérios mais interessados não poderão sair deste dilema simples, onde toda
razão se acha encerrada.
De resto, é expressamente a vontade do Céu que joga os seres na corrente das formas; sem
esta vontade eterna, nem o movimento nem a forma, nem a menor parte da “criação” existiria;
como supor que esta vontade, que se exerce desde o nascimento e durante todas as
modificações dos seres, não estivesse mais presente no momento da transformação final?
Como supor que esta vontade, exercendo-se eternamente, conduziria os seres saídos dela, e
apenas por ela, a um fim de sofrimento e infelicidade? Como supor que ela não os guia? Como
supor que ela os guia para fora de si mesma, ou seja a um fim idêntico ao começo? Estas são
pretensões sem lógica, sem justiça, sem bondade, revoltantes, e que denotam precisamente
sua origem humana, ou seja medíocre e particularista. Somente um ser limitado pode conceber
uma solução contrária ao bem, ou seja negativa. E pelo fato de ser uma solução negativa e
limitada, ela não pode sair da contingência na qual foi engendrada, e ela é inaplicável aos
problemas que dizem respeito ao subjetivo.

Eis assim estão os destinos da Humanidade perfeitamente dirigidos pelas quatro leis
inelutáveis que presidiram o nascimento e que presidem a marcha do Universo. Mas o que se
torna, com tal inelutabilidade, a liberdade das coisas? Explicaremos melhor quando tratarmos
das condições do indivíduo. A liberdade humana existe: e ela existe em condições que
satisfarão à justiça subjetiva e que contemplam, do ponto de vista da sanção prevista, nossas
responsabilidades pessoais.

Mas uma vez afirmado isto que iremos desenvolver mais adiante, a liberdade dos seres não
existe, enquanto parcelas lançadas na corrente pela vontade do céu, e que serão recolhidas
por esta mesma vontade. Não esqueçamos a que mundo pertence a série da qual falamos, e
que é sobre o plano metafísico – ou seja divino – que se mantém nosso raciocínio. Estamos
aqui diante da Vontade Divina. Não há nenhuma vontade que exista que não emane desta
vontade; nenhuma vontade pode igualá-la, pois se uma vontade igualasse a Divina, seria ela a
Divina, e não sua emanação.

Toda vontade que iguala a Divina é idêntica a ela; portanto nenhuma vontade pode, com
igualdade, voltar-se contra a vontade Divina. Não existe assim vontade que triunfe sobre a
vontade Divina; portanto não existe liberdade contra a Atividade do Céu. Os desígnios do céu
não podem ser invertidos, nem atravessados, nem retardados: nada pode prevalecer contra
eles; e todas as doutrinas religiosas – e a própria doutrina de Roma, expressa no pior latim do
mundo (et portae inferi non praevalebunt, etc.) – estão aqui de acordo com a metafísica e a
lógica natural. A Liberdade Total só existe no Infinito, só age pelo Infinito e na vontade do
Infinito. Um ser fluindo na corrente das formas não pode ser dotado de liberdade total, ou ele
seria imediatamente Deus. E o Universo é regido invencivelmente, e marcha invencivelmente
para o seu destino. E assim como o homem não nasce quando quer e não escolhe o momento
de sua morte, a Humanidade nasce numa modificação e a deixa, em condições previstas pela
vontade do céu. E ela chega aonde a vontade do céu, por toda a eternidade, a encaminhou.

A Liberdade Total é ao mesmo tempo o mais perigoso e o mais ridículo presente que se
poderia dar à Humanidade: perigoso, porque ele poderia se opor a destinos felizes; ridículo,
porque aqueles que pretenderam fazê-lo, não perceberam que, ao permitirem que a
Humanidade se igualasse a Deus, criaram a Humanidade Deus. Mas esta invenção do orgulho
e da cupidez humana pouco se preocupa com tamanho contrassenso e impiedade. A
Liberdade Total, que a espécie humana aceita por orgulho, conduziria à responsabilidade total,
à falta total e à pena eterna, a única reparação possível desta falta total. E os inventores do
teorema e de suas consequências inventaram, ao mesmo tempo, que, por serem ministros   de
Deus sobre a terra, eles poderiam, por meio de preces, dinheiro e vantagens de toda espécie,
preservar da pena eterna, perdoar a falta total, dirigir a responsabilidade total, e fariam assim,
por um engenhoso choque de retorno, pagar esta liberdade total, com o qual teriam
presenteado a Humanidade benévola.

Sabemos que destruímos aqui o mais vivo preconceito da espécie, por levantarmos, com um
perigo que ele não imaginava, as proteções criadas contra este perigo, e porque, se fôssemos
entendidos, destruiríamos o fácil ganha-pão com que os protetores prosperam, e a fácil
influência com a qual eles reinam há séculos. Sabemos que estamos atacando uma convicção,
profundamente arraigada na consciência de nossos ancestrais e nossos educadores ao longo
dos anos; e nos damos conta da dificuldade desta tarefa, na medida em que, em nós próprios,
mesmo após termos atestado irrevogavelmente esta certeza, levanta-se às vezes o fermento
dos terrores antigos e se ergue o medo hereditário que assombrou nossa infância. Dificilmente
se consegue libertar o espírito e a razão dos entraves mais inaceitáveis, quando eles são
seculares e trazem a autoridade daqueles que nos ensinaram e a quem amamos. Mas na
verdade, nos é impossível admitir, mesmo uma vez, a vitória do sentimento irrazoável sobre a
lógica, e que Deus tenha consentido em igualar-se ao homem, precisamente para infelicidade
deste, e que o “criador” tenha se declarado impotente em tornar inevitavelmente feliz sua
“criatura”, nesta “eternidade”, que Ele lhe deu e que ela não Lhe pediu[42].

Claro que não discordamos de um ponto: sobre o plano relativo e no mundo das contingências,
restam muitas liberdades para agradar ao orgulho, muitas sanções para contentar a justiça,
muitas penitências para satisfazer aos amantes das piores emoções – como veremos
proximamente. Mas que a vontade do céu tenha por toda a eternidade regido e preparado as
modificações e a transformação do Universo, que todos os seres que conhecemos, da
molécula mais material aos astros que giram nas profundezas do céu, obedecem às Leis desta
Vontade Previdente, e que somente a Humanidade seja capaz de reagir, de destruir a
harmonia do plano universal, de contrapor-se à vontade do céu, com o único objetivo de
escapar ao bem geral, e de ser, em todo o Universo, a única parcela eternamente infeliz, eis o
que nem a lógica, nem a metafísica, nem a concepção ideal que fazemos de Deus, nos
permitem admitir, e nem mesmo discutir por um instante que seja.

De resto, quando estudarmos as condições da espécie humana, teremos uma prova ainda
mais decisiva a respeito disso. Mas guardemos também, como demonstração de pura moral e
bastante convincente, que não existe um único sistema teocrático que tenha incluído esta
temível pretensão entre seus dogmas primordiais. Brahmanismo, Budismo, Cristianismo, todos
foram regimes de amor e harmonia, saídos da boca de apóstolos iluminados e bem-
aventurados: somente as aplicações puramente humanas, políticas e sociais, fizeram deles
instrumentos de intimidação e dominação. Apropriados à ambição dos indivíduos, estas
adições são características da pretensiosa cooperação terrestre à obra divina; e aos olhos do
sábio, elas não tem mais valor intrínseco do que aqueles que as criaram para seu benefício
particular. Criadas por homens, elas não têm consequências para além da Humanidade.

Não insistiremos mais, diante de provas tão claras, em que a lógica deve corroborar nossas
maiores esperanças para não parecermos apaixonados. Mas lembremos que, em nome da
própria Vontade do céu, nada do que está contido no Universo tem o poder de alterar seja o
que for no Universal.

Uma vez que a Humanidade chegar, ao longo da curva sobre a qual está, à extremidade da
espira que constitui sua modificação no Universo, ela se transformará, ou seja, ela
desaparecerá – ou, numa linguagem grosseira, ela morrerá. Mas considerando a curva do
Universo em suas revoluções sucessivas, percebemos imediatamente que aí não pode haver
nem desaparição, mesmo que momentânea, nem nenhum fenômeno negativo do gênero que
chamamos de morte; existe uma passagem normal de uma estase a outra; esta passagem, nas
operações do Universo, não comporta nem descontinuidades nem imprevistos, assim como a
passagem entre dois momentos consecutivos dos seres dentro do ciclo humano. Não existe
assim nenhuma irregularidade, de espécie alguma, no movimento, assim como na lei de
Harmonia; e a passagem de uma espira a outra, ou a passagem da Humanidade à modificação
que se seguirá a ela, não é marcada senão por uma mudança na natureza da constituição dos
seres em modificação. Veremos de modo mais preciso, mais humano, e que nos toca mais de
perto, no capítulo referente às Condições do Indivíduo. Mas é preciso saber desde já que o
fenômeno da transmodificação reside essencial e exclusivamente nesta única mudança – que é
necessariamente uma melhoria – que é um aumento e não uma diminuição, e que representa
mais um nascimento do que uma morte. Na realidade, não se trata de um nem de outro; e é tão
tolo querer ver aí um fim, como seria tolo chamar de parada súbita ou descarrilamento, a
passagem de um trem expresso diante de uma estação em que o horário o impede de parar.
Estas mudanças da modificação se fazem sempre normalmente, calmamente e com benefício;
e elas devem, em decorrência desta absoluta certeza, perder aquilo que elas podem ter tido de
temporariamente doloroso para o indivíduo. A coletividade dos seres passa de uma existência
a outra, por diferentes modalidades e mecanismos sempre semelhantes a si mesmos, sem que
haja um só instante de morte, de desaparição, ou apenas de eclipse.

A essência divina que banha as parcelas do Universo e a atração divina que é o regente de
seus movimentos são as garantias de sua perpetuidade. E a Humanidade participa, como todo
o Universo, desta perpetuidade, no seu nível de modificação, e naquilo que esta transformação
comporta de Eterno.

A Humanidade, que é um dos ciclos do Universo, não é necessariamente seu último; ele nos
parece muito elevado, porque é nele que nos encontramos, e porque compreendemos melhor
os ciclos inferiores do que os superiores; mas nós percebemos muito bem, e temos mesmo a
convicção de que não somos nós os seres cuja perfeição relativa precede imediatamente à
Perfeição Total. Mesmo na mitologia antiga, existem gigantes, semideuses, e todo um time de
intermediários entre o Olimpo e nós; mesmo na hagiografia cristã, existem os Santos, os Anjos
e os nove coros celestes entre Deus e suas criaturas. As aparências de universalidade das
opiniões concorda com as prescrições do sentimento e com as deduções da lógica, para nos
fazer entender que nós compomos uma modificação qualquer na corrente das formas, e que
evoluímos ao longo de uma espira qualquer da hélice cilíndrica indefinida.

Mas, se a Humanidade não constitui a última espira, ao menos a existência desta última espira
é concebível, mesmo atualmente. A vontade do Céu que colocou os seres na corrente das
formas é a mesma que atrai todos os seres para si e, por conseguinte, tudo deve confundir-se
nela. É assim que, considerado ao infinito – que é precisamente o lugar metafísico da Perfeição
– o cilindro da criação torna-se um cone, e a espira que evolui sobre a sua superfície lateral
confunde-se infalivelmente, na extremidade do cone, com a altura do volume, sendo
precisamente esta altura, como já vimos, o lugar geométrico da atração da vontade do céu, e
seu cume o lugar metafísico da própria vontade do Céu.

Podemos então considerar, como um caso especial e supremo, o fim da última espira, ou seja
seu encontro com a altura do cilindro, vale dizer o término da última modificação, que os sábios
Chineses chamam de “mecanismo último da transformação”, e que é, como a lógica, a
metafísica e a matemática concordam, a reentrada do Universo na Vontade que o colocou em
movimento, o retorno dos seres à Perfeição que os produziu. Este retorno não é uma “vitória
sobre os elementos contrários”, assim como não é uma transformação extraordinária; ele é,
como todas as demais passagens que o precederam, uma passagem insensível e normal. Se
nos reportarmos ao capítulo sobre as Leis da Evolução, veremos que o “mecanismo
transformador” não muda em nada a essência dos seres que compõem o Universo; ele
comporta simplesmente a ablação das Formas, ou seja o Fim do Limite; e é isto que o texto
tradicional explicita ao dizer que a “corrente das formas” está terminada.

Teremos nós, neste último ciclo, o conhecimento perfeito de todos os ciclos precedentes?
Teremos a presciência da transformação final? Ou, em outros termos, os seres do último ciclo
considerarão como um bem serem privados de suas formas? Ou verão nisto uma morte, como
nós mesmos acreditamos ver uma morte no fim da individualidade humana? Não podemos
impor aqui uma opinião; mas a analogia faz pensar que a última modificação causará nos seres
a mesma impressão que o fim de todas as modificações precedentes. E nós só quisemos
colocar aqui esta questão para estabelecer mais uma vez como é falso chamar de morte a
passagem em questão e como é irrazoável temê-la.

Este retorno à Perfeição Total, que é determinado pelo Fim do Limite, tanto moral como físico,
ou seja, tanto pelo fim da corrente das formas quanto pelo fim da individualidade das parcelas,
sabemos bem, por sua própria determinação, o que é: é o “retorno ao seio de Deus”, a “Perda
no Grande Todo”, o “Céu”, o “Paraíso”. É, numa palavra que resume todo o pensamento
humano a respeito, o Nirvana, que as raças amarelas chamam de Nibban.

O maior dos místicos chineses, talvez o primeiro filósofo do mundo, Lao Tsé, diz claramente o
que é o Nirvana, lugar metafísico da Perfeição Ativa, ou da Vontade do Céu não-manifestada
(e, de fato, ela deixa de ser manifestada, quando seca a corrente de formas). Veremos, nas
profundas obras de Lao Tsé, como devemos entender o Nirvana, ou seja como o entendem os
textos antigos da Índia, que são também os nossos, e os de toda a Humanidade pensante. A
polêmica e a crítica ocidentais tentaram desfigurá-lo, e transformá-lo numa negatividade; a
compreensão e os ataques modernos teriam se arranjado melhor. Mas os sábios incompletos
não imaginaram que, ao fazê-lo, eles igualaram o Nada à atividade total; e assim eles
cometeram, em metafísica, o mesmo erro grosseiro que teria cometido o aluno de matemática,
ignorante ou inconsciente, que tomasse, voluntariamente ou não, o zero como uma ausência
de cifra, ou como uma cifra, esquecendo-se de que se trata de um número.

Podemos conceber que os seres, uma vez confundidos no Nirvana, possam sair daí
novamente, para entrar em outra corrente de formas, e eternizar assim seu movimento
particular? Vimos que a matemática responde pela afirmação necessária: pois, tomando nossa
representação gráfica, o cilindro cíclico permanece um cilindro, e a hélice do destino enrola-se
eternamente sobre sua superfície lateral; ou o cilindro, considerado no infinito matemático,
torna-se um cone, e todo cone supõe uma outra figura cônica oposta pelo cume, cujos lados
afastam-se indefinidamente nos espaços transfinitos. E assim a hélice não tem fim de um lado
como de outro. Mas esta necessidade não existe em metafísica, primeiro porque o infinito
metafísico não admite, como o infinito matemático, um além qualquer, nem em espaço, nem
em volume, nem em pensamento; depois porque a eternidade da ação (necessária para a
manifestação da Perfeição não exige irrevogavelmente uma corrente de formas; o movimento
coletivo é tanto um movimento quanto a soma indefinida de movimentos individuais; a forma
não é necessária ao movimento. Não é preciso deslocar-se para haver movimento, assim como
não é preciso agir para querer ou pensar.

Não existe assim nenhuma necessidade. Mas, no estado presente de nossa razão, devemos
declarar que a possibilidade subsiste. Pois o que é possível hoje é possível de modo indefinido.
Apenas concebemos mal que a atração da Vontade do Céu, após haver integrado tudo,
desintegre tudo novamente. E, repetimos, não é indispensável aceitar esta concepção como se
ela fosse útil à Atividade Eterna; o movimento não é mais essencial à atividade do que a forma
é essencial ao ser. E este é  o único ponto em que a Tradição primordial permanece muda,
como se fosse inútil à espécie humana ter uma opinião a respeito. É por isso que existem duas
opiniões, ambas válidas: uma que o ser reintegra-se à Unidade e aí permanece eternamente;
outra, que a emissão na corrente das formas é eterna, mas que, sendo as parcelas individuais
infinitamente numerosas, a mesma parcela jamais penetra duas vezes na corrente das formas.
Isto indica perfeitamente bem como é indiferente à espécie humana escolher entre estas duas
opiniões.

Podemos então, com toda liberdade, considerar, segundo sua sentimentalidade própria, a
“Transformação”, ou o mecanismo final do Universo. Pois todos os caminhos levam ao fim
único. E este fim, a Reintegração bem-aventurada e Total, é apontada a um tempo pela
Tradição escrita, pela razão metafísica, pela razão matemática e pela satisfação dos três
atributos que todas as religiões atribuem essencialmente aos seus Deuses: a Bondade, a
Justiça e a Glória.
VIII
AS CONDIÇÕES DO INDIVÍDUO

Vimos o que são, e o que prometem os Destinos da Humanidade, considerados como uma
espira do cilindro evolutivo, como um ciclo na modificação do Universo. Mas sabemos, por
consequência, que o ciclo humano compreende toda a Humanidade, ou seja toda a espécie
humana que conhecemos, e todas as suas variedades possíveis, anteriores e posteriores à
espécie. E determinamos as leis que regem, invariável e inexoravelmente, o ciclo humano, que
é um ciclo normal, sem nada de especial – exceto para nós, porque é nele que estamos
presentemente.

Este interesse natural que temos pelo ciclo no qual evoluímos, que conhecemos um pouco
melhor que os outros, e que desejamos conhecer profundamente, nos leva a estudar o
movimento da espécie humana no ciclo, e as condições do indivíduo na espécie.

Estes dois estudos são perfeitamente análogos, e compreendem fenômenos, todos


contingentes, da mesma natureza. Precisemos aqui que, deixando o domínio da metafísica
pura, estaremos no entanto obrigados pela lógica e pelo simples bom senso, a não adotar, para
o fenomenismo objetivo, senão as soluções que estejam em concordância com as soluções
demonstradas dos problemas metafísicos. É assim que entraremos, com um guia certo e
perfeito, nas questões que parecem as mais palpitantes e mais obscuras ao ser humano. E não
nos desviaremos do caminho que nos aponta nosso guia mental, seja pela sensibilidade
pessoal, pronta a assustar-se com as soluções lógicas que parecem feri-la, seja por não
levarmos o bastante em conta o egoísmo nativo e inconsciente do indivíduo.

Ao dizermos que a espécie está para o ciclo assim como o indivíduo está para a espécie,
mostramos, com esta relação matemática, que podemos nos contentar em estudarmos as
condições do indivíduo, estudo bem mais fácil, por ser nosso estudo pessoal; bastará
generalizá-lo analogamente para permitir sua aplicação à espécie. Este é um trabalho simples
o bastante para que o deixemos ao leitor. De resto, o começo e o fim dos indivíduos, sobre os
quais estamos informados, ao menos fisicamente, nos fornecem excelentes esclarecimentos
sobre o começo e o fim da espécie. O estudo desta, encerrado entre o estudo experimental dos
indivíduos e o estudo metafísico do ciclo de modificação ao qual ela pertence, não pode ter,
para nossa lógica, nada de obscuro ou aleatório.
A espécie humana é um instante do ciclo; o indivíduo é um instante da espécie. Mas qualquer
um, do ponto de vista do estudo que empreendemos, pode ser tomado como unidade básica.

Esta unidade básica obedece, em seu plano, às quatro leis fundamentais do tetragrama, e
ocupa o lugar que correspondente ao seu momento no cilindro evolutivo. Convém situá-la
imediatamente sobre a hélice e sobre sua espira, de tal modo que o desenho, como de hábito,
nos fornecerá, por analogia, os dados ao exame.

O indivíduo que consideramos faz parte da espécie, e ele é necessário à constituição da


espécie; seus atributos relativos e suas qualidades essenciais formam as características da
espécie: apenas uma coisa não importa: é o número dos indivíduos; podemos conceber uma
espécie representada por um único indivíduo, ou por indivíduos inumeráveis; desta forma, o
número de indivíduos não conta; e, qualquer que seja o número, este pode ser maior ou menor,
sem nada modificar na espécie. É o que chamamos inumerabilidade matemática. E vemos que
o indivíduo está para a espécie como o ponto para a linha, que se caracteriza por possuir um
número indefinido de pontos. E assim a representação gráfica expressa de um indivíduo será
um ponto sobre a espira que representa sua espécie.

Se a estação do indivíduo sobre a espira é um ponto, a evolução do indivíduo, em relação ao


cilindro evolutivo universal, será representado por uma superfície.

Mas isto não é absolutamente verdadeiro; primeiro por uma razão metafísica, pois se a
evolução individual fosse representada por uma superfície, o ponto de chegada seria
semelhante ao ponto de partida, e assim não haveria atividade (mas monotonia e imobilidade
pelo recomeço) e não haveria bem, pois a atração em direção à perfeição não se faria sentir;
depois, por uma razão matemática, pois se a evolução “A” fosse uma superfície exata, ela
voltaria ao seu ponto de partida para iniciar a evolução “B”, e assim os momentos dos
indivíduos não percorreriam a espira. Vale dizer que o número de pontos que a compõem seria
infinito.

Ora, este número não é mais que indefinido, e assim a evolução que partiu do ponto “A” da
espira chega ao ponto “B”, que é o ponto seguinte, indefinidamente próximo, mas
matematicamente distinto.

Assim, na realidade, a evolução individual é uma espira, uma função da hélice, mas cujo passo
é infinitesimal. É por isso que, dado que nós vivemos, agimos e raciocinamos sobre
contingências, podemos e devemos mesmo considerar o gráfico desta evolução como uma
superfície. E, na realidade, ela possui os mesmos atributos e qualidades, e só difere da
superfície quando considerada desde o Absoluto. Assim, em nosso plano, o círculo vital é uma
verdade imediata, e o círculo é bem a representação do ciclo individual humano. Voltamos
assim aqui à concepção ocidental, que não chega a ser falsa, como fizemos prever, mas é mal
aplicada aos movimentos do Universo, embora adequada ao homem só.

O círculo do destino individual de cada um é, nas raças amarelas, representado pelo símbolo
do Yin-Yang.
Algumas breves explicações são necessárias. O Yin-Yang é um
círculo, e vamos dizer porque. Trata-se de um círculo representativo
de uma evolução, individual ou específica, e ele só participa em duas dimensões do cilindro
cíclico universal. Não possuindo espessura, ele não tem opacidade, e é representado como
diáfanos ou transparente, ou seja, os gráficos das evoluções, anteriores ou posteriores ao
momento dado, são vistos através dele.

A espiral que divide em forma de “S” o círculo do Yin-Yang não é apenas um símbolo da hélice
universal; ela é o traço descritivo, segundo a linguagem matemática, da própria hélice.
Consideremos o Yin-Yang do único ponto de vista válido, ou seja, em relação à Perfeição, e
“do alto do lugar geométrico e metafísico da vontade do céu”[43].

Um dos braços da curva em “S” é a projeção matemática, sobre o plano horizontal (geometria
descritiva) do trecho da hélice que, ao longo do cilindro universal (que se torna um cone ao
infinito) vai desde o ponto da espira tangente ao Yin-Yang até a reintegração na Perfeição. O
outro braço da curva é a projeção (devido à transparência do círculo do Yin-Yang) do trecho da
hélice que vai desde a Perfeição ativa até o mesmo ponto de tangência da espira com o círculo
do Yin-Yang. É o traçado completo da curva universal, desde a vontade que a emite até a
vontade que a reintegra.

Uma metade do Yin-Yang é negra: é a que representa a evolução abaixo do círculo; a outra é
branca: é a que representa a evolução acima do círculo considerado. Estas duas metades são
iguais: pois, como o ponto de partida e o final estão ambos no Infinito, o ponto considerado da
espira pode, em relação ao Infinito, ser considerado, sempre e veridicamente, a igual distância
entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Os dois pequenos círculos internos,, um negro
na superfície branca e outro branco na superfície negra, estão aí, primeiro para lembrar a
“transparência” do símbolo, e depois para mostrar que essas oposições de cores não
constituem uma realidade, e que tanto o branco existe sob e com o negro, como o negro sob e
com o branco, e que, na realidade, o Yin-Yang é todo branco ou todo negro, conforme o virmos
em relação à sua partida ou à sua chegada. De resto, para aqueles que ainda se deixariam
enganar pelas aparências mesmo depois deste esclarecimento, é preciso lembrar que o Yin-
Yang é o símbolo da evolução humana individual, ou seja uma atividade. Este símbolo deve
assim ser tomado como sendo ativo em si mesmo; e para considerá-lo tal como ele deve ser, é
preciso fazê-lo girar em torno do seu eixo. Veremos aí que ele é unicolor, e que portanto jamais
se deve buscar nele, ainda que superficialmente, o menor traço de dualismo.

Por existir, o Yin-Yang satisfaz o princípio da causalidade; ao mover-se ao redor de seu centro
com a velocidade da evolução humana específica, ele satisfaz à lei da atividade; por ser
circular, ele satisfaz a lei da harmonia; por ser precedido e seguido por um número indefinido
de círculos concêntricos, ele satisfaz a lei do bem. Mas lembremos aqui – e devemos refletir
sobre isto profundamente – que os três primeiros princípios são satisfeitos no interior do próprio
Yin-Yang, enquanto que a satisfação do quarto princípio (princípio do bem) acha-se fora do
Yin-Yang, ou seja que, para procurar esta satisfação, é preciso considerar a situação dos
círculos imediatamente vizinhos. No interior de um único círculo considerado, a lei do bem não
é satisfeita. Vale dizer que, no interior de uma evolução humana individual, a atração da
vontade do céu não se faz sentir. Esta espantosa constatação deriva da consideração
matemática do gráfico, e nos conduzirá a consequências metafísicas, senão imprevistas, no
mínimo de grande destaque[44].

Lembremo-nos do que foi demonstrado: a liberdade dos seres não existe, enquanto parcelas e
funções da evolução universal. A liberdade absoluta, que contém a de contrariar os desígnios
da vontade do céu, é exclusiva desta vontade, assim como de Deus. Mas nós deixamos
pressentir uma certa liberdade do indivíduo. E eis que a matemática nos mostra que dentro do
círculo vital da espécie e do indivíduo, a atração do céu não se faz sentir, ou seja que, no
interior de sua evolução particular, o indivíduo desfruta de sua liberdade de ação. Vejamos os
limites e as condições desta liberdade.

A entrada e a saída no Yin-Yang não estão à disposição do indivíduo: pois são dois pontos que
pertencem, embora também ao Yin-Yang, à espira inscrita na superfície lateral do cilindro, e
que estão submetidos à atração da vontade do céu. E na realidade, de fato, o homem não é
livre para nascer nem para morrer. Quanto ao nascimento, ele não é livre nem para aceitá-lo
nem para recusá-lo, nem para escolher o momento. Quanto à morte, ele não é livre para
subtrair-se a ela; e tampouco ele deve poder escolher o momento de sua morte, e é por isso
que o suicídio é o ato mais anormal e contrário aos interesses do indivíduo.

Em todo caso, ele não é livre em relação a nenhuma das condições desses dois atos; o
nascimento lança-o irremediavelmente sobre o círculo de uma existência que ele não pediu
nem escolheu; a morte retira-o deste círculo e lança-o invencivelmente em outro, prescrito e
previsto pela vontade do céu, sem que ele possa modificar isto em nada. Assim o homem
terrestre é escravo, quanto ao seu nascimento e quanto à sua morte, ou seja em relação aos
dois principais atos de sua vida individual, os únicos que resumem em suma sua evolução
particular em relação ao Infinito.

Mas entre seu nascimento e sua morte, sobre este círculo sem espessura, sobre esta
superfície imponderável do volume universal aonde a atração da vontade do lato não se
exerce, o indivíduo é livre. Ele é absolutamente livre, na emissão e no sentido de todos os seus
atos terrestres. Ele não tem por senhor a vontade do céu: ele tem como guia a consciência
obscura, espécie de instinto mental, que não é o mesmo para todos os indivíduos, que evolui,
espessa-se ou afina-se com cada um, e que está em relação aritmética com as faculdades
intelectuais do indivíduo e com o valor do meio social aonde ele se coloca. É esta consciência
que é a geradora dinâmica dos seus atos pessoais.

É no fenomenismo moral em que se exerce esta consciência, instrumento medíocre, que


nascem as contingências do bem e do mal. E é a crença pessoal no bem e no mal, limitados
um pelo outro, que faz, do bem e do mal, uma realidade objetiva no espírito humano. É a
consciência do homem que cria o bem e o mal, e é a liberdade do homem que, permitindo-lhe
seguir a um ou outro, cria as responsabilidades.

Nunca é demais apoiarmo-nos em evidências racionais: a consciência, que gera o bem e o


mal, é uma particularidade específica, temporária e proteica, mesmo no interior da espécie; a
liberdade de agir é extremamente limitada no tempo e nas contingências individuais; os atos
emitidos por esta liberdade e qualificados por esta consciência, são assim atos relativos,
exclusivos à espécie e ao indivíduo, que não possuem nenhum valor senão nas e pelas
objetividades de que nasceram, sendo indiferentes em relação ao Infinito. Os méritos e os
deméritos, os benefícios ou as ofensas são da mesma qualidade que os atos que os
produziram; e as sanções que são ligadas a eles pela justiça cuja essência está no Infinito, são
do mesmo valor, grau e repercussão que os atos que as motivaram.

O homem é um ser limitado e relativo; ele só pode cometer atos relativos, geradores de méritos
relativos, e capazes de sanções relativas. Aquilo que age no tempo só pode ser apreciado no
tempo: a figura que se inscreve no espaço de duas dimensões não pode possuir três
dimensões; estamos aqui encerrados na evidência axiomática da mais simples geometria.
Assim, o ato de um homem, que é um ato temporário e finito, por culpado que possa considerá-
lo a consciência geral, não pode suscitar-lhe uma punição eterna e infinita. Assim, as penas
eternas – como o inferno, não cristão, mas católico e romano – não existem.

Mas os ilógicos sentimentais insistem em que a falta, endereçada a um Ser Infinito, Deus,
necessita uma pena infinita. Este é um duplo absurdo. Uma contingência não pode afetar o
Absoluto. De que se imagina ser feito Deus, para que possa ser injuriado por um homem? É
preciso ser Deus para ofender a Deus; e aqueles que tentam nos convencer de um poder tão
terrível jamais pensaram nisto.

Mas existe ainda outra coisa. A liberdade relativa do homem, como vimos e demonstramos,
supõe o não-exercício da atração, ou seja, a indiferença da vontade do céu. E, na verdade, o
homem não poderia agir livremente se a vontade do céu não o permitisse fazer. Ela é
desinteressada do assunto: ela não pode assim ser ofendida por uma coisa da qual não se
interessa, e que ela não guia, unicamente por não querer guiá-la.

Nós não negamos a sanção, assim como não negamos a responsabilidade, ou a liberdade;
mas os limites impostos à liberdade mitigam de outro tanto a sanção, que sabemos temporária,
relativa e contingente. E agora que a sabemos objetiva sob todos os aspectos, nós a
reconhecemos necessária. Esta sanção se exerce, segundo a vontade do céu, no círculo
individual em que o ato foi cometido, ou no círculo seguinte; não importa, porque nossos atos
“vibram” e se inscrevem ao longo de nossa personalidade, de uma maneira indefinida – mas
não infinita. E a sanção, que, como o ato, se produz no tempo, pode ser retardada
indefinidamente ao longo dos ciclos. É assim que o produto dos atos de uma existência é um
dos elementos constitutivos das existências ulteriores.

Mas há um ponto que não se deve esquecer: este elemento, puramente objetivo, de alegria ou
de dor, em nada pode influir na marcha da evolução geral. Tenhamos nós agido bem ou mal, o
ciclo que nos aguarda é o mesmo para todos; uns o percorrem felizes, outros em lágrimas; mas
o degrau que iremos subir no fim de cada círculo vital é o mesmo, e nos aproxima a todos
invencível e paritariamente do Infinito a que estamos destinados.

É um problema puramente taoísta, e que estudaremos no tratado de Kan Ying, que é inteiro
dedicado a ele, determinar a soma das vibrações de nossas ações e as sanções resultantes
delas. Mas o princípio está colocado: ele satisfaz, como dissemos, nossa consciência e nossa
idéia de liberdade; ele responde a um tempo à Bondade e à Justiça do céu; e ele deixa intactas
as leis inquebráveis da tradição. Ele coloca em seu verdadeiro lugar o dualismo contingente do
bem e do mal, assim como os méritos e as sanções das ações humanas. E ele prova, de modo
tão peremptório que não precisaremos retornar, que a crença, ingênua ou interessada, em
sanções eternas, é ao mesmo tempo um barbarismo moral, um contrassenso metafísico e uma
injuriosa negação dos atributos essenciais da Divindade.

Entre seu nascimento e sua morte, o homem é, portanto, livre; vimos as razões e os modos
desta liberdade objetiva; vemos seus atos todos os dias; veremos em outra parte as
consequências, na parte correspondente da Via Racional, daquilo a que chamamos no
ocidente de Moral. Mas, fora de todo fenomenismo, veremos o que são este nascimento e esta
morte, cujas épocas, circunstâncias e resultados são independentes da vontade daquele que
os vive.

Segundo todas as fórmulas precedentes, e de acordo com a irrefutável lógica da geometria, o


nascimento é a entrada de uma parcela evolutiva no ciclo humano; a morte é a saída desta
parcela para fora do ciclo humano; mas, para entrar no ciclo humano, e surgir aí como
indivíduo dentro da espécie, é preciso que esta parcela saia fora do ciclo inferior para o ciclo
humano, ou, para empregarmos a grosseira linguagem de costume, é preciso que ele morra
para este ciclo. Mas, ao sair do ciclo humano e perder a individualidade da espécie, a parcela
em evolução entra no ciclo superior ao ciclo humano e, para empregarmos nossa linguagem
vulgar, ela nasce neste novo ciclo; o nascimento e a morte acompanham-se e complementam-
se um ao outro; o nascimento humano é a consequência imediata de uma morte; a morte é a
causa imediata de um nascimento. Jamais uma destas circunstâncias se produz sem a outra.
E, como o tempo não existe aqui, podemos afirmar que, entre o valor intrínseco do fenômeno
nascimento, e o valor intrínseco do fenômeno morte, existe uma identidade metafísica. Quanto
ao seu valor relativo, e devido ao imediatismo das consequências, a morte na extremidade do
ciclo “X” é superior ao nascimento no mesmo ciclo “X” no montante do valor de atração da
vontade do céu sobre o ciclo sobre o ciclo “X”, ou seja, matematicamente, do valor do passo da
hélice evolutiva[45]. Isto pode parecer paradoxal porque, para nos fazermos entender,
empregamos os termos nascimento e morte para designar as passagens entre os ciclos, e que
a tola vaidade humana atribui um sentido de aumento à entrada na Humanidade (nascimento)
e um sentido de diminuição à saída desta Humanidade (morte), como se esta ocupasse o ápice
de uma parábola, além da qual não se pode senão descer. Não existe erro mais funesto nem
mais ridículo. Nós vimos que, metafisicamente, a morte é um avanço em relação ao
nascimento, porque a entrada no ciclo “X+1” é superior à entrada no ciclo “X”. Nós o vimos
geometricamente sobre a curva evolutiva do Universo. Vamos vê-lo psicologicamente,
considerando, no espécime humano, os elementos trazidos pelo nascimento e aqueles tocados
pela morte[46].

Não é o tempo de indicar quais são os sete elementos que a tradição reconhece como
pertencentes à espécie humana. Nós o veremos na parte destes estudos que dirá respeito às
ciências fisiológicas e psíquicas, saídas diretamente da doutrina de LaoTsé. Mas desde já
podemos afirmar – e esta afirmação não espantará aqueles que perscrutaram os arcanos do
ternário e do septenário hindus – que os sete elementos humanos da Tradição Primordial
podem ser resumidos em um ternário, no qual cabem perfeitamente: corpo, alma e espírito, tais
como os conhecem e definem os adeptos da Alta Ciência. E é sobre este ternário, familiar a
todos, e que o próprio catolicismo romano reconhece – de acordo com os seus textos
fundamentais – que faremos nossas investigações e nossa demonstração.

O ser humano não é uma entidade: ele é um agregado, e, na realidade, um agregado de


elementos bastante díspares entre si, por diferirem em essência uns dos outros. Estes três
elementos, que fazem o homem que conhecemos, existem independentemente uns dos outros:
existem corpos sem alma nem espírito, como a matéria terrestre; existem almas, sem espírito
nem corpo, como os fluídos invisíveis emanados pelos corpos físicos, celestes ou errantes; e
existem espíritos sem corpos, como aquilo que os católicos chamam de “coro dos anjos”, e que
correspondem a uma realidade absoluta.

Não estamos dizendo nada de novo, mas apresentamos, sob um novo ângulo, a percepção
das coisas arcaicas. Os elementos que compõem o homem não precisam estar juntos para
existir; mas é a sua reunião que constitui o homem. Antes de sua reunião, não havia ainda
Humanidade; depois de sua dissociação, não haverá mais Humanidade. A Humanidade é
formada pela sua coerência temporária.

É, portanto, não sobre os elementos em si mesmos, mas sobre seu conjunto e sua coesão, que
se exercem os fenômenos do nascimento e da morte, específica de nossa espécie. Lembramos
que estes elementos, tomados em particular, são indiferentes ao nascimento e à morte, que
não podem afetar suas modalidades – ou suas qualidades proteicas.

Esta verdade já pode ser entrevista e sentida – senão demonstrada – para o espírito e a alma.
Ela não é menos precisa no que diz respeito à matéria. Seria tolo dizer que o ato da geração
cria a matéria da qual o corpo é formado: pois o germe apenas fecunda, ou seja, provoca o
desenvolvimento da forma humana sobre parcelas condensadas de matéria. É tolo dizer que o
ato da morte destrói a matéria: ele a desagrega, ou seja, libera-a do composto humano, retira-
lhe a forma com a qual ela fazia parte de um homem, e a devolve à corrente das formas, aonde
ela não ficará ociosa, enquanto o Universo estiver sob o reinado do Limite.

O nascimento humano é, portanto, a fórmula da composição de um agregado (diríamos


quimicamente: a fórmula de produção de um precipitado).  Como estamos em evolução, ou
seja, falando segundo as contingências, em progresso, por meio de círculos, ao longo das
revoluções da hélice que nos conduz à vontade do céu, este nascimento é benéfico, ou seja, o
agregado assim formado contém elementos superiores àqueles do agregado precedente, cuja
dissociação foi provocada pelo nascimento na estase humana. A saída da estase pré-humana
corresponde à dispersão, na corrente universal, de um elemento inferior ao último elemento
humano, ou da parte mais massiva e mais rudimentar da matéria. A entrada na estase humana,
que coincide com esta saída, corresponde à aquisição de um elemento superior, o Espírito, ou
de uma parte do Espírito que a outra estase não possuía. Estamos sempre falando, bem
entendido, de uma maneira contingente, pois se torna a cada dia mais provado pela ciência, e
mais indispensável à metafísica, que os diversos elementos dos quais são compostos os seres,
são diferentes estados de uma só e mesma Coisa (coloquemos: de uma única Matéria)
depurada e sublimada, através dos indivíduos, sob a atração benfazeja da vontade do céu,
pelos esforços contínuos da personalidade.

O fenômeno da morte é idêntico, absolutamente, e parece determinar em nós fenômenos


análogos, mas em sentido inverso, apenas porque temos o mau hábito de tudo considerar sob
o ponto de vista da estase humana. A saída deste estado (morte) corresponde à dispersão do
corpo, à perda da forma material humana, que é a parte mais baixa de nosso composto. Mas a
entrada na estase supra-humana (nascimento), que coincide com a morte humana, comporta o
acesso a um elemento espiritual, cujo valor não conhecemos, mas que é melhor do que o
melhor dos nossos elementos humanos, É por isso que a morte humana, coincidindo com um
nascimento melhor, é metafisicamente superior ao nascimento humano.

Eis assim colocado o agregado humano. Nenhum de seus elementos pertence-lhe


propriamente, pois todos fazem parte de outros agregados, superiores e inferiores. Nenhum
deles é essencialmente afetado pelos fenômenos humanos. O agregado é assim constituído
apenas pela associação temporária destes elementos independentes. E a característica
humana é que em nenhum outro lugar estes elementos se acham reunidos assim, na ordem e
com os coeficientes que eles possuem em nossa estase. A especialização humana não é,
portanto, uma especialização de essência, nem de natureza: é uma especialização de grau e
de método. Este grau e este método, em uma palavra, este agenciamento particular, é
o indivíduo.

Mas isto não é tudo quanto ao homem; e aqui tocamos no fundo da questão metafísica no que
concerne ao nosso estado presente. Os elementos do agregado humano, para cuja
condensação consideramos três principais, são independentes uns dos outros, e revestem, na
evolução do Universo, qualidades diversas e mesmo díspares, cujo balanço tende a afastar uns
dos outros; já vimos isto antes. Entretanto, o agregado humano, se não é tão coerente quanto
desejamos, é sólido; ele possui assim internamente uma força de coesão à qual ele obedece.

Poderíamos dizer que esta força de coesão seria a vontade divina; poderia ser, evidentemente,
como uma consequência dela; mas não a vontade do céu em si mesma. Lembremo-nos das
concepções geométricas indiscutíveis dos capítulos precedentes; veremos que, na estase
humana, a vontade do céu não se faz sentir, e que é precisamente por isso que o homem
possui uma liberdade relativa, e que o símbolo gráfico desta estase pode ser um círculo e não
uma revolução da hélice. Esta força não é a vontade do céu; e tampouco é a força dos
elementos constitutivos da Humanidade, a qual é uma força pessoal, independente, e por
conseguinte centrífuga, em relação ao composto humano.

Esta força, que é uma emanação da vontade do céu, nos pertence propriamente: esta força
que mantém o agregado humano, e que faz nascer e anima o indivíduo, é a Personalidade.

Individualidade e Personalidade: estados diferentes, que não estão no mesmo plano, que não
possuem a mesma organização, a mesma existência, e dos quais o segundo é superior ao
primeiro assim como a eternidade é superior ao tempo: termos os quais, no entanto, o hábito
tornou sinônimos, ou em todo caso análogos, e cuja confusão criou, nos raciocínios científicos
e na imaginação popular, os mais detestáveis erros; quando virmos que a pessoa é a fonte de
todos os indivíduos sucessivos que representaram a força de coesão de que falamos,
compreenderemos como se harmonizam e se arranjam as proposições e os sistemas
completos, que parecem adversos, devido a uma falta de definição, ou a uma confusão de
objetos.

A individualidade é, na aparência, a personalidade considerada num ciclo; na realidade, ela não


é sequer isto; pois a personalidade existe inteira independente do indivíduo, e não é afetada
nem pelo seu nascimento, nem pela sua morte, nem por nenhuma mudança no interior do ciclo.
A individualidade é exatamente a resultante de um esforço da personalidade sobre um
composto, o composto humano por exemplo. Em consequência, a individualidade é
estritamente ligada ao composto, e se transforma com ele; a personalidade subsiste sempre
igual a si mesma.

Assim, o indivíduo humano, que é o resultado das influências fisiológicas e psicológicas dos
elementos do composto humano uns sobre os outros, aparece, desenvolve-se e desaparece
junto com o composto do qual ele é a expressão. A personalidade, na medida em que se
exerce sobre este composto, é chamada de personalidade humana; mas ela não passa de um
avatar, uma medida temporária de seu valor; ela aplica-se hoje ao composto humano, ontem
ao composto que o precedeu, amanhã ao composto que o seguirá; e ela é sempre igual a si
mesma, pois a natureza e as determinações de uma força são independentes de seu ponto de
aplicação. O indivíduo é assim protéico e contingente; a personalidade é imortal: e ela contém
a indefinida sucessão dos indivíduos.

Vemos assim claramente do que se compõe a “personalidade humana”, parcela da


personalidade universal. Ela se compõe de um agregado humano, que constitui o indivíduo; ela
se compõe também dos movimentos gerados entre si pela aproximação dos elementos do
indivíduo; ela se compõe enfim dos movimentos que a personalidade imprime, em seu esforço
de coesão sobre o indivíduo.

Podemos, por uma analogia aceitável, inferir que, desta trindade humana, o primeiro termo
corresponde ao corpo, o segundo à alma, o terceiro ao Espírito, não em sua essência, mas em
sua manifestação. Mas não se deve, sob pena de erro, levar muito longe as consequências
desta analogia, feita sobretudo com o objetivo de simplificação, nem criar novas categorias.

Assim fica esclarecida, provada e vingada de todas as injúrias a lei búdica e pitagórica dos
Renascimentos, que muitos de seus adeptos interpretam mediocremente. Não se deve aplicá-
la aos indivíduos, pois ela é contrária à sua condição; é preciso colocá-la para a personalidade,
a qual, uma vez desaparecido um indivíduo (ou um campo de aplicação e de esforço), toma
outro indivíduo, ou seja que um indivíduo morto renasce em outro indivíduo. Notemos que a
escolha do indivíduo é tal que satisfaça sempre as quatro leis primordiais de atividade,
liberdade, harmonia e bem, de modo que a metempsicose animal aparece, aqui também, como
um ridículo contrassenso e uma verdadeira barbaridade. E assim a personalidade – que em um
dado momento foi, é ou será a personalidade humana, segundo o momento dos ciclos que for
considerado – irá de existência em existência até a “reintegração na existência suprema, em
Deus”. Em nenhuma outra parte, melhor do que aqui, poderia ficar demonstrado como, uma
vez acordadas as definições, só existe uma maneira de expressar a verdade; em nenhuma
outra parte ficaria melhor colocada esta frase que sublinho de bom grado, de um ocultista que
foi exclusivamente ocidental, meu caro amigo e irmão Stalislas de Guaita.

É nesta imutabilidade da pessoa que fica satisfeito nosso vago desejo do infinito; e é a ela que
se deve confiar a bem mais precisa afeição que temos por nós mesmos, através dos nossos
semelhantes: ela nos bastará, se soubermos sublimar estas afeições, e nos separar das
aspirações inferiores, que são por demais pesadas para nos seguir na ascensão indefinida da
hélice evolutiva. É ela que está presente no cristianismo, a imortalidade da alma. É ela que é, a
um tempo, o testemunho e a garantia de nossa eternidade.

Assim como esta distinção, tão profunda e necessária, e que só parece sutil por ter estado
tanto tempo esquecida, nos esclarece a lei dos Renascimentos, da qual podemos ser os fiéis
dentro de qualquer culto tradicional, também ela nos esclarecerá o fenômeno racional da morte
humana, e a causa do trágico sofrimento e do horror que ela nos inspira.

Já demonstramos amplamente como toda morte (e a morte humana não é exceção) é uma
passagem benéfica de um estado qualquer a um estado superior. Muitos pensadores
profundos desejaram esta morte como o único meio de seu aperfeiçoamento. Mas toda a
Humanidade, e mesmo estes pensadores, revoltam-se com todo seu ser no momento da
passagem. E, quando vemos morrer diante de nós um dos nossos, malgrado todos os
raciocínios metafísicos que possamos fazer, somo tomados de horror e tristeza; e choramos
tanto pelo desaparecido quanto por nós, que no entanto o seguiremos. Como explicar esta
impressão universal, que seria uma demência, se outros fatores, além dos que assinalamos,
não entrassem em jogo?

É precisamente porque somos afetados, nesta passagem, pelos elementos que ela toca e afeta
da maneira mais considerável. E consideremos psiquicamente o papel da morte humana na
evolução de nossa personalidade.

O corpo – ou seja a forma, a forma característica da espécie – não tem mais razão de ser, e
com efeito desaparece, mais ou menos rapidamente, para esposar outros contornos, para
tornar-se uma outra forma, que nos é indiferente, assim como nos é indiferente uma forma
humana qualquer não animada. Não é aí que nasce o transe e a causa da dor.

A personalidade – já vimos – subsiste: e ela subsiste, aumentada e aperfeiçoada através das


existências que ela percorreu e dos indivíduos que ela animou; ela cresceu por seu próprio
esforço, que a individualidade na qual ela se esforçou lhe proporciona no momento da
dissociação. E esta bagagem que a personalidade leva consigo para os outros ciclos, é a
herança sagrada de nossas ideias, de nossas concepções, de nossos trabalhos e nossos
sofrimentos. E, como a personalidade sobe um degrau para individualizar-se novamente, não é
aí, também, que reside a tristeza.

Mas nós demonstramos que o composto humano compreende ainda os movimentos causados
entre si pela colocação em cena dos seus elementos constitutivos, e da soma de seus
elementos em face de sua personalidade.

Estão aí – não suas ideias, que são as filhas de sua personalidade e da vontade do céu – suas
impressões, seus afetos, numa palavra, os sentimentos do homem. Serão levados com a
personalidade? Não, porque são do homem. Nós os encontraremos algum dia? Sentiremos
algo semelhante algum dia? Não. Seria preciso, para tanto, reencontrar todos os elementos
constitutivos destas impressões, ou seja os elementos do composto humano, associados da
mesma forma e com os mesmos coeficientes; vale dizer que seria preciso reencontrar, em um
outro ciclo, as características do ciclo humano. Eis o que é impossível. Alguns elementos
humanos poderão se encontrar, mas não todos, e não no mesmo valor; eles não influirão assim
da mesma forma uns sobre os outros; e a personalidade não se exercerá sobre eles com os
mesmos resultados. Os “sentimentos do homem” são assim específicos do homem e
desaparecem com ele. E, enquanto que seu corpo retorna à matéria para entrar novamente na
corrente das formas, enquanto seu espírito inalterável conduz a personalidade em sua
ascensão, sua alma, que é a mais tênue das matérias – mas que é matéria, no próprio dizer
dos príncipes da Igreja católica[47] – sua alma dissolve-se no mundo psíquico, no éter das
vibrações, no domínio das forças errantes, que conhecemos tão mal, mas cuja energia
sabemos ser literalmente astral. Isto, que era a característica anímica do homem, não
reencontraremos jamais.

Razoavelmente, não poderíamos lamentar este fato, pois sua desaparição é imediatamente
compensada por um elemento de essência análoga e de qualidade superior. Mas,
impulsivamente, preferimos o que temos e conhecemos ao que ignoramos; e estamos ligados a
este feixe de impressões e de sentimentos tanto mais na medida em que são característicos de
nosso estado de homens. Esta sensibilidade exclusivamente humana, cordão afetivo pelo qual
estamos ligados uns aos outros, é o que temos de mais caro. E é isto, apenas isto que se
funde, sem retorno possível à individualização, no universal.

E notemos que este sofrimento é tanto mais grave na medida em que o lugar do sofrimento
pela perda deste elemento está neste mesmo elemento. Não é nem com nossa sensualidade,
nem com nossa razão, é com nossa sensibilidade que deploramos a desaparição da soma
sentimental que era representada pelo homem que morreu junto a nós. E isto é tão mais
verdadeiro na medida em que nossas maiores lamentações se dirigem, não ao homem de
gênio, que nos cativava pelo cérebro, nem aos nossos parentes, que nos estavam ligados pelo
sangue, mas àqueles cujas vidas foram paralelas à nossa, cujas ações foram vizinhas de
nossas ações, e cuja sensibilidade, por conseguinte, penetrava a nossa, e nela determinava a
maior parte dos movimentos.

Desta dor irracional mas natural, que é o altruísmo humano, vale dizer o egoísmo generalizado,
bem poucos podem se dizer imunes: pois a própria razão se diz impotente. E os anseios de
nossa sensibilidade não podem ser vencidos sequer pelo freio da vontade mais poderosa. Mas
a coisa ainda não está aí. Contentemo-nos de haver dissecado a morte, e de tê-la dissecado
de modo exato, até os próprios sentimentos que ela provoca em nós.

Entretanto, após havermos dito o que é o nascimento e o que é a vida humana, não deixemos
assim o estudo da última condição do indivíduo. Pois, como dissemos, a personalidade eterna
gira sobre a hélice evolutiva acrescida, em seus modos, da soma sublimada das ideias
conhecidas e das impressões percebidas. E assim, mesmo no que concerne ao estado
humano sensível, este não perece por inteiro, tanto quanto os estados que o precederam.
Nossa personalidade, individualizada humanamente, com seus movimentos próprios, é a
herança, da qual somos inconscientes, de ciclos anteriores. Como não temos memória deles,
não os podemos negar. Temos um claro apetite pelo porvir: temos lembranças obscuras, como
brilhos velados, do passado: este apetite e estas vagas lembranças são próprios do nosso
estado humano. É lógico que, subindo através dos ciclos, o conhecimento do futuro e a
memória do passado iluminem nossa inteligência. E podemos conceber agora como axiomas
estas verdades profundas, cuja concepção temos que atribuir hoje à síntese analógica.

Saibamos então que, não apenas para nossa evolução, mas para a formação definitiva da
nossa entidade, a passagem pela estase humana nos é proveitosa, e que o melhor nos fica,
através destes renascimentos, cuja lei antiga corroboramos. Saibamos que nada do que
fazemos, dizemos, pensamos, será perdido de modo absoluto. Saibamos que, mesmo esta
sensibilidade, que nos faz considerar como o pior dos males nossa partida da estase terrestre,
encontrará, ao final, sua plena satisfação. Pedimos perdão, ao término deste estudo tão
rigoroso, por este retorno voluntário ao domínio sentimental. Não tivemos outro objetivo do que
provar a excelência da lógica tradicional, e a previdente onipotência da Vontade do céu.

Uma vez que o objetivo da Evolução é a unidade, todos os sentimentos suscitados pelas
belezas físicas, todas as ideias suscitadas pelas belezas sentimentais, inscritas na série das
modificações, tendem ao lugar metafísico aonde todas as belezas tornam-se esplendor, e
todas as ideias, tornadas Verdade, desaparecem, conscientes, na Perfeição.

Assim, as personalidades, que, através de tais individuações, aproximaram-se no decurso dos


ciclos, aproximam-se a cada instante desde o princípio: estas uniões terrestres, como quer que
as chamemos, que acreditamos não serem dissolvidas com a morte, juntam-se cada vez mais 
através das modificações, à medida em que nossos elementos se aperfeiçoam; de tal modo
que – e embora nossos laços humanos nos pareçam estreitos – estamos agora mais afastados
uns dos outros do que jamais o seremos nos ciclos futuros. Nossa seca e severa lógica nos
conduz assim a um resultado inevitável, que satisfaz a sentimentalidade, desembaraçada, bem
entendido, de seu egoísmo nativo, melhor do que todos os sonhos e mistificações. As
afinidades que constatamos no meio humano são o resumo dos esforços de outros ciclos que
precederam ao nosso; elas são, também, a preparação e a promessa de laços futuros mais
estreitos e desinteressados entre aqueles mesmos que os formaram, e deles fizeram os modos
de sua personalidade. Assim as ideias puras, aqueles que as conceberam, aqueles que as
provocaram, e que se deliciaram com elas, todos, sublimados e levados pela corrente da
Evolução benfazeja, subimos, eternamente reunidos, para o Universal[48].

Terminamos aqui este resumo da Via Metafísica, que foi seguida e guardada pela Tradição
extremo-oriental, que é – a menos de novas descobertas – a única Tradição conservada até os
nossos dias sem interpolação, supressão ou obnubilação. Teríamos sido mais sucintos, se não
fosse o temor de obscurecer a compreensão destas matérias delicadas. Em outros estudos
veremos, com a filosofia de Lao Tsé, a Via Racional, e, com a filosofia de Confúcio, a Via
Social, todas saídas direta e estreitamente da mesma Tradição.

Mas gostaríamos de deixar, nestas últimas linhas, um corolário prático da perspectiva


metafísica que esboçamos. Gostaríamos de extrair deste ensinamento um método
consequente e adequado de trabalho para os que tiveram a curiosidade, não apenas de ler as
linhas precedentes, mas de começar o trabalho que elas preconizam e deixam em aberto.

Este método de trabalho deduz-se logicamente dos princípios que estabelecemos: vamos
colocá-lo em rápidas palavras.

O destino da atividade do homem aparece na atividade que lhe dá a modificação cíclica da qual
a Humanidade atual faz parte. Não somos os mestres desta atividade, nem de sua finalidade,
nem mesmo de seus meios. Ora, para obedecer à vontade do céu, devemos conformar nosso
movimento ao seu, e assim, como diz expressamente Tsheou Kong, fazer calar os desejos
humanos que se contrapõem ao bem resultante da atividade. Este movimento pessoal e
cerebral do ser humano não pode consistir em nada melhor do que no estudo da atividade do
céu, nosso modelo, estudo que nos fará participar, na medida do possível, desta atividade.

A atividade do céu faz com que tudo se modifique e se transforme; o estudo jamais poderá ser
completo; ele não poderá ser exato, dificilmente poderá ser expresso, mesmo que tenha sido
por um instante. O estudo do céu jamais será terminado; ele nem ao menos começou. E não
devemos temer consagrar a ele todos os movimentos de nossa razão.

Como deve ser feito este estudo? Ele deve ser feito com um objetivo de atividade, em paralelo
e sob a atividade do céu; este é o corolário da grande fórmula simbólica; vale dizer com todos
os princípios, toda a liberdade, toda a harmonia, todo o bem. Com todos os princípios, ou seja,
apoiando-se sobre o princípio da atividade do céu e sobre aqueles que decorrem dele; com
toda a liberdade, ou seja, despojando-se de todas as cadeias da paixão; com toda a harmonia,
ou seja deduzindo logicamente e normalmente todas as consequências de todos os princípios;
com todo o bem, ou seja seguindo a regra da razão perfeita que nos vem do céu. Nestas
condições, o trabalho do homem esclarecido lhe será favorável. De resto, não existem, neste
estudo, erros dos quais possamos ser inteiramente culpados diante do céu; e as
responsabilidades que poderíamos ter sobre eles remontarão a outros momentos do que o
momento atual; elas não poderão nos ser imputadas, se não vierem de nossa vontade
imediata, ou seja se, ao estudarmos, observarmos os princípios segundo os quais o céu se
move, e se elas vierem apenas da imperfeição relativa de nossa modificação presente.

A esta altura, toda concepção, mesmo falsa, mesmo tola, é um mérito, e uma homenagem
prestada. Ideias insuficientes, termos detestáveis, eis do que são feitos nossos estudos, devido
à nossa natureza e à mediocridade de nossos meios. Isto significa que devemos renunciar a
eles, e nos contentarmos com a fé das crianças e das pessoas simples? Certamente não: a
inteligência separada do homem, da qual ele não pode orgulhar-se se não se servir dela, o
acusaria de crime de imobilidade, condenando-o por sua indiferença. Ou então poderia ser que,
buscando a verdade, temeríamos não encontrar nada além do erro, e ligando-nos a ele, perder
a confiança no céu e no destino que ele nos conferiu. A visão, sem tremores, daquilo que está
acima de nós, é o dever da modificação de nosso espírito, para que ele atinja sua
transformação definitiva.

Para este centro, que é Um e Tudo, não existem erros; diante da Essência, não existe
divergência apreciável entre duas afirmações opostas pronunciadas por nós, nem entre aquilo
a que chamamos verdadeiro ou falso. O verdadeiro e o falso humanos estão tão longe da
Verdade que, considerando-os em relação a esta, eles confundem-se no infinito numa única e
mesma inexatidão, que nos é meritório cometê-la, se o fizermos com o coração puro e ardente,
segundo a vontade do Céu.

Seja qual for o caminho tomado, caminhamos sempre para o Centro, inevitavelmente. Todo
passo dado, em qualquer direção, pelo estudo, nos aproxima dele. Os conceitos, naturalmente
falsos, que emitimos hoje, vibram por toda nossa personalidade, além dos limites que nossos
sentidos impõem ao mundo atual. Ao subirmos, de espira em espira, através das modificações
que nos aguardam, eles se despem do erro, ao mesmo tempo em que rejeitam os termos
ridículos com os quais os havíamos vestido.

Todo trabalho, todo pensamento, todo sonho são propícios. Não devemos temer passos em
falso nem perturbações, dos quais só somos responsáveis por causa de nossa natureza e
nosso destino atuais. E não é senão acumulando erros que o homem esclarecido chegará um
dia à altura da verdade.

IX
OS INSTRUMENTOS DE ADIVINHAÇÃO

Venho dar aqui alguns textos e documentos extraídos do Yi Ching e de diferentes comentários
ou paráfrases filosóficas dos apoftegmas de Fo Hi e de Wen Wang. Vimos que o Yi Ching
abarca todas as condições da existência humana, assim como todas as ciências contingentes e
o próprio estudo da metafísica e do subjetivo. O Yi Ching possui ainda um sentido divinatório.
Juntamente com o simbolismo político, é certamente esta parte do texto primordial a mais
popular.

Digamos desde já que é a parte mais mal interpretada e mal compreendida. Pois os sábios e
filósofos do Extremo-Oriente jamais se interessaram por empirismos, e jamais conduziram seus
estudos favoritos à face divinatória do Yi Ching. Somente os monges ambulantes,
denominados taosse, e que vivem no século – embora nem sempre no justo meio – entre
mendicantes e ilusionistas, fizeram deste estudo sua paixão, e também seu ganha-pão.
Abandonado aos espíritos medíocres, a tradição divinatória do Yi Ching não tardou a
obscurecer-se, e podemos dizer que hoje em dia ela está completamente perdida.

Não seremos nós a ter a ingênua audácia de tentar reconstituí-la; pois os textos do Livro são
quase ininteligíveis sem a Tradição Oral, no mínimo, e seu sentido é tão vago, que deles é
possível tirar todas as interpretações que se queira. E devemos reconhecer que, depois de
alguns séculos (podemos precisar melhor, dizendo em torno de vinte e um séculos), a Tradição
Oral faz falta.

Lao Tsé e Confúcio conheceram a parte divinatória; Lao Tsé a desdenhou, como sendo um
jogo inferior. Confúcio a transmitiu aos seus discípulos; mas não encontramos mais nenhum
traço dela depois da destruição dos Livros e da execução dos Letrados, ordenadas pelo
Imperador Tshin Chi Hoang-ti (213 a.C.).

Nossa necessidade de precisão nos leva a confessar que não encontramos em parte alguma
explicações escritas nem comentadores autorizados da adivinhação. Se eles existem, estão
ocultos no fundo dos santuários, ou guardam tão zelosamente seu depósito que mesmo os
iniciados extremo-orientais do mais alto grau sequer suspeitam de sua existência.

Esta opinião era também a de Philastre, de quem eu emprestei, por não poder fazer melhor,
algumas passagens de sua excelente tradução do Yi Ching, que já assinalei. Não se deve
estranhar que, nessas condições, apresentemos textos quase incompreensíveis e tabelas
quase indecifráveis; é entretanto útil que estes textos e estas tabelas não desapareçam
inteiramente da memória dos homens; talvez algum cabalista ou algum sábio, profundamente
versado nas ciências ocidentais, poderá encontrar aí pontos de semelhança e traços comuns
com a adivinhação, tal como a Grécia e a Idade Média nos transmitiram. Em todo caso, não
acreditamos que a luz se faça, pelos raios extremo-orientais, aonde o próprio Philastre declarou
estar perdido nas trevas.

Philastre, de fato (e é esta a razão pela qual escolhemos suas traduções sempre que não
precisamos traduzir um texto em primeira mão), não era apenas um emérito sociólogo, como
raramente se vê em nossos diversos Institutos. Ele passou uma grande parte de sua vida na
China e na Indochina: bom oficial de marinha, filósofo distinguido, ele aproveitou sua longa
permanência entre o povo amarelo para penetrar seu espírito, sua tradição e sua sociedade.
Ele chegou, graças à sua alta cultura e a uma força de assimilação pouco comum, a vencer a
desconfiança dos prudentes mandarins do Império, e franquear os umbrais que são
normalmente fechados, e que pouquíssimas vezes se abriram a homens de outras raças. Ele
recolheu assim os mais preciosos ensinamentos; e, ao mesmo tempo que recebeu algumas
sérias vantagens, ele recebeu instruções e cooperou com seus interlocutores de tal modo que
sua tradução da “Tradição Primordial” é o melhor monumento que se pode imaginar erguer em
honra dos filósofos chineses numa língua ocidental.

Estas vantagens não vieram sem alguns deveres para com a raça que o acolheu, e para com
os sábios que elevaram assim seu espírito.

Estes deveres tomaram, no Extremo-Oriente, uma forma particularmente expressa e coercitiva.


Philastre percebeu tarde demais, quando, após a morte do heroico Garnier no Tonkin, ele
aceitou a missão de tratar como agente plenipotenciário, em nome da França, com o Império
de Annam. As obrigações de seu coração estavam em contradição com seu cargo; ele tentou
em vão conciliá-los, e foi vítima de uma situação inextricável. Por um espírito de veneração e
obediência aos seus mestres, ele tentou concluir um tratado que não lhes fosse desvantajoso.
Assim, ele deu a impressão de desconhecer os interesses de seu país e, ao mesmo tempo,
malgrado seu, acabou por trair os desejos mais secretos de sua consciência. Ele foi destituído
de suas funções, deixou o Extremo-Oriente sem o menor espírito de retorno, e teve que se
contentar, na França, com um posto pedagógico ínfimo, onde acabou por falecer, pobre,
ignorado, não tendo retirado de seus trabalhos e de sua ciência nada além da constância de
sua resignação.

Eu quis dar relevo a estes traços de uma existência verdadeiramente trágica, a fim de ressaltar
este ensinamento: engajar-se num impasse intelectual leva à ruína social do indivíduo.

OS NÚMEROS
A.     O céu é um, três, cinco, sete, nove. A terra é dois, quatro, seis, oito, dez. Estes são os
números do céu e da terra. A posição dos números 1 e 6 é embaixo; 2 e 7, no alto; 3 e 8, à
esquerda; 4 e 9, à direita; 5 e 10, no centro.

B.     O número cinco indica a extensão daquilo que engendra; o número dez, a extensão do que é
engendrado. Um, dois, três, quatro, representam a situação dos quatro símbolos: seis, sete,
oito, nove, são os números que lhes correspondem.

C.     Existem cinco números celestes e cinco números terrestres; em cada série os números
concordam dois a dois. A soma do primeiro é vinte e cinco; a soma do segundo é trinta; seu
total é cinqüenta e cinco. É o que cumprem as estases de expansão e de contração. Os
números celestes são ímpares; os números terrestres, pares. 1 e 2, 3 e 4, 5 e 6, 7 e 8, 9 e 10,
formam grupos concordantes. Do mesmo modo nas cinco situações, dois números
correspondentes concordam, ou seja: 1 e 6, 2 e 7, 3 e 8, 4 e 9, 5 e 10. A unidade se modifica e
engendra a água; 6 a transforma; 2 engendra o fogo; 7 o transforma; 3 engendra a madeira; 8 a
transforma; 4 engendra o ouro; 9 o transforma; 5 modifica a terra; 10 a transforma. Assim os
cinco agentes e os cinco planetas sofrem os fenômenos de contração e de retomada, de ir e de
voltar.

D.     Segundo o centro secreto da tábua do rio, o número cinco multiplica o número terrestre, e dele
obtém cinqüenta. Mas quando se consulta a sorte por meio deste número, seu emprego é
limitado a quarenta e nove.

A ADIVINHAÇÃO PELO EMPREGO DA ERVA SHI

Suspenda um entre o dedo mínimo da mão esquerda e o dedo seguinte; separe o que resta
após haver contado de quatro em quatro. Reuna nos dois intervalos do dedo médio da mão
esquerda. Assim que a operação estiver terminada, deixe o todo; reuna e separe como depois
da primeira vez, de modo a fazer agrupamentos nas duas mãos, e recomece a mesma
operação.

E.      As sortes relativas à positividade são duzentas e dezesseis, as relativas à negatividade são
cento e quarenta e quatro: o total é trezentos e sessenta, equivalente aos dias de uma
revolução.

F.      A tábua do rio tem quatro faces: a grande positividade é 1, seguida do número 9; a pequena
positividade é 3, seguida de 6; a pequena negatividade é 2, seguida do 8. A regra para contar e
eliminar as hastes (as hastes da erva shi, que representam os traços dos hexagramas na
adivinhação) consiste em contar junto o que resta após três modificações, em descartar a
unidade desde o início, em contar cada grupo de 8 como uma dualidade. A unidade é envolvida
circularmente por 3; a dualidade é envolvida em quadrado por 4; 3 emprega a totalidade; 4
emprega a divisão. Reunindo tudo, isto dá os números 6, 7, 8, 9, e depois de três eliminações
tudo se acha ainda reunido. Restam de sobra três unidades que, repetidas três vezes, dão 9.
As hastes são então 4 x 9 = 36, número que constitui a extrema positividade =1.   36 = 3 + 6 =
9; 9 + 1 = 10.
Se, ao contrário, restam três dualidades, isto faz 6, e o número de hastes será de 4 x 6 = 24,
que constitui a extrema negatividade – 4.  24 = 2 + 4 = 6; 6 + 4 = 10.  Este é o mistério da
transformação; isto tem o intuito apenas de mostrar a transformação dos números.

Os hexagramas contém 192 traços positivos e outros tantos negativos. Ora,   192 x 36 =
6.912,  e 192 x 24 = 4.608,  num total de 11.520 fórmulas de adivinhações. Fazer as quatro
operações: divisão em dois grupos:: suspensão de uma haste: eliminação por quatro: recolher
o resto. Três modificações determinam uma fórmula; dezoito determinam um hexagrama.

Estando os seis traços completos, e considerando uns como movimento e outros como
repouso, resulta disto que um único hexagrama pode se tornar sucessivamente qualquer dos
sessenta e quatro traços, e servir para determinar presságios. Estas modificações apresentam-
se de 4.096 modos diferentes, pois 4.096 = 64 2.

Todas estas questões estavam completas e desenvolvidas nas instruções de Tcheou Li, hoje
perdidas, aos funcionários encarregados da adivinhação; atualmente, é impossível
controlar[49].

AS PROVAS

A.     O homem pergunta; é pelos signos que ele recebe a resposta; ele recebe, como por um eco, a
ordem que prescreve seu destino. Não há para ele nada distante, nada obscuro, nada
escondido. Ele tem conhecimento e consciência dos seres que chegam.

B.     Após haver contado de três em três para a modificação, conta-se ainda de cinco em cinco:
buscam-se os números 7, 8, 9, 10, para determinar o símbolo do movimento e do repouso. É
preciso perscrutar as analogias e as diferenças nas palavras, a fim de conhecer as distinções
entre os membros das associações; depois vêm a prova por três e por cinco, a fim de comparar
os seres e as palavras (estes dois textos são extraídos das obras de Wei Fei).

OS SIGNOS

A.     Yi comporta a extrema origem, é aí que está o que engendra as duas regras: os dois
engendram os quatro símbolos, que engendram os oito trigramas. Assim a ordem é sempre
bem traçada, quando se trata de adivinhação.

B.     Os instrumentos de adivinhação são as hastes da erva e a tartaruga; por elas são
determinados os presságios felizes ou infelizes do universo. O céu mostra os símbolos, o sábio
deduz deles os presságios. Do rio sai a tábua, do lago sai o livro, e o santo formula suas
regras. As fórmulas anexas aos símbolos servem para determinar a advertência

C.     Os presságios felizes ou infelizes são sempre o resultado do destino traçado pelas fórmulas; é
pelo movimento das modificações que os presságios se tornam evidentes. Fo Hi viu os
símbolos no céu, e as fórmulas sobre a terra. Quando dois olhos trocam olhares, os seres
existem.
D.     Fo Hi fez nós de corda para a caça e a pesca. Ele tirou isto do trigrama Ii. Shen Nong cortou a
madeira para fazer uma carroça; ele tirou isto do trigrama Yi. Ele constituiu o mercado para que
os homens de todo o universo aí fizessem suas trocas; ele tirou isto do trigrama Shi Ho. Hoan
Ghi, Yao e Shouen Shi governaram; eles dirigiram o povo para que este não se tornasse
ocioso; eles o esclareceram a fim de que o povo se conformasse ao bem; eles tiraram isto dos
dois trigramas da Perfeição. Eles cortaram uma árvore para fazer uma piroga, eles talharam a
madeira para fazer um leme; eles tiraram isto do trigrama Hoan. Eles amarraram os bois para o
transporte; eles montaram os cavalos; eles tiraram isto do trigrama Souei. Eles reforçaram as
portas para acolher hóspedes perigosos; eles tiraram isto do trigrama Yu. Eles cortaram uma
árvore para fazer uma mão de pilão e cavaram a terra para fazer um pilão; eles tiraram isto do
trigrama Siae Kio. Eles cortaram e talharam a madeira para fazer um arco e flechas; eles
tiraram isto do trigrama Kouei. Eles ergueram colunas e inclinaram as formas, para construir
habitações; eles tiraram isto do trigrama Tatsheng. Eles utilizaram círculos interiores e
exteriores; eles tiraram isto do trigrama Tae Kuo. Eles inventaram os caracteres da escrita e as
tabuinhas; eles tiraram isto do trigrama Koue[50].

AS CONCORDÂNCIAS

Outrora, o homem santo percebeu secretamente as causas misteriosas da luz, e criou a


adivinhação. Ele triplicou o céu, duplicou a terra, e apoiou-se nos números; ele esgotou a razão
de ser, e abarcou completamente a natureza do homem, a fim de chegar ao destino. O céu e a
terra determinam as situações; a montanha e o pântano misturam livremente seus éteres; o
raio e o vento entram em contato, a água e o fogo não se destróem. Conhecer o que se passou
é conforme ao caminho comum; conhecer o que virá está acima do caminho comum.

O raio estremece; o vento dispersa; a chuva embebe; o sol vaporiza; o obstáculo detém; a
satisfação diverte; o céu rege; a passividade abraça.

O ser supremo resulta do movimento; ele se iguala no universo; ele se vê na transformação;


ele age na passividade; ele fala na satisfação; ele combate na atividade; ele se esforça no
deslocamento; ele termina a palavra na detenção final (ver Anexo 1).

O movimento, que é o Dragão, eis a causa misteriosa de todos os seres.

Khien, atividade; khouen, passividade; tshen, movimento; souen, entrada; khan, queda; li,
vibração; ken, detenção; touei, satisfação.

Khien, cavalo; khouen, jumento; tshen, Dragão; souen, galinha; ken, porco; li, faisão; ken,
raposa; touei, carneiro. Tomamos os exemplos distantes. Khien, cabeça; khouen, ventre; tshen,
pés; souen, coxa; khan, orelha; li, olho; ken, mão; touei, boca. Tomamos os exemplos do corpo.
Khien, o céu é o pai; khouen, a terra é a mãe; tshen, princípio masculino; souen, princípio
feminino; khan, esposo; li, esposa; ken, filho; touei, filha.
Khien: é o sol, o que é redondo, a pedra preciosa, o príncipe, o ouro, o frio, o gelo, o vermelho,
o cavalo rápido, o cavalo branco, a árvore seca, o que é reto, a vestimenta, a palavra.

Khouen: é a terra, o tecido, o machado, a economia, a igualdade, a mãe do boi, o carro, a


aparência, o povo, o cabo do utensílio, o negro, o que é quadrado, a obscuridade, o saco, o
cachimbo, a mosca.

Tshen: é o dragão, o raio, o amarelo, a influência causadora, o grande caminho, o filho mais
velho, o machado, o bambu, o canto harmonioso, a crina, o retorno à vida, a repetição, o corvo.

Souen: é a madeira, o vento, a filha mais velha, a trama, o branco, o trabalho, o comprimento, a
elevação, o ramo, o odor, a frente ampla, o benefício, a árvore, a busca.

Khan: é a água, o segredo escondido, o teto, a corda do arco, a doença, a circulação do


sangue, o vermelho pálido, o ardor, o pé, o baixeiro, a calamidade, a lua, o ladrão, a dureza do
coração, o antro, a música, o cacto, a raposa.

Li: é o fogo, o sol, o raio, a filha mais nova, a posteridade, a arma, a tartaruga, o ventre, o réptil,
o fruto, o cálice da flor, a vaca.

Ken: é a montanha, o atalho, a pedra, a porta, o religioso, o dedo, o sorriso, a solidez, o nariz, o
tigre, o lobo.

Touei: é o pântano, a criança, o adivinho, a língua, a ruptura, a dureza, a concubina, o carneiro,


a permanência[51].

Nota: podemos inferir dos textos precedentes:

1)      que a adivinhação foi, de fato, determinada por Wen Wang e Tsheou Kong;

2)      que as regras da adivinhação estão na ciência dos números e que a numeração se faz com as
hastes da erva shi;
3)      que a manipulação das hastes da erva shi conduz ao exame de qualquer um dos sessenta e
quatro hexagramas;

4)      que este exame deve ser feito tomando como diretriz mental uma das posições
hexagramáticas, segundo a fórmula da pergunta, e que assim existem 64 maneiras de fazer o
exame do hexagrama indicado pela manipulação, e que existem 4.096 maneiras de responder
a uma questão dada;

5)      enfim, que, segundo a pergunta feita, o sentido de cada um dos trigramas que compõem os
hexagramas, é indicado nas concordâncias.

Podemos, analogamente, encontrar outras coisas nos textos que precedem. Mas o estado da
Tradição, apenas do ponto de vista divinatório, não nos permite apreciar senão o que podemos
encontrar nestes textos, que é verdadeiramente aquilo que queriam que fosse encontrado
aqueles que os escreveram.

[1]              Matgioi refere-se frequentemente aos povos orientais simplesmente como “amarelos”, sem
precisar suas nacionalidades. (N.T.)
[2]              Astrônomo francês (1842-1925), um dos fundadores da Sociedade Astronômica da França
(1887). Converteu-se ao espiritismo em 1861, tornando-se grande amigo de Allan Kardec. (N.T.)
[3]              Matgioi utiliza o termo “sábio” no sentido da expressão chinesa “homem dotado” ou “homem
superior”, conforme esta se encontra no I Ching. (N.T.)
[4]              Convém frisar desde já que Fo Hi não é um homem nem um mito, mas a designação de uma
agregado intelectual, como o foi aliás Hermes.
[5]              A palavra Céu e a tradução do caracter metafísico Tien, com o qual a escrita ideográfica
representa a idéia total que o Ocidente chama de Deus.
[6]              Os chineses tem isto em comum com os hindus, os egípcios e todos os povos que, detentores
de uma Tradição, quiseram conservar dela um cronologia séria.
[7]              Georges Cuvier (1769-1835), filósofo, naturalista, anatomista e zoólogo francês. (N.T.)
[8]              A Cordilheira Pamir, situada na Ásia Central, é formada pela união das cordilheiras Tian
Shan, Karakorum, Kunlun, e Hindu Kush. Os Pamir estão entre as montanhas mais altas do mundo. Também são conhecidas
pelo nome chinês Congling (N.T.).

[9]              Embora esta seja um pouco a opinião de Paul-Louis-Félix Philastre (1837-1902),


aproveitamos a ocasião para recomendar sua tradução do Yi Ching, que é única, devido ao conhecimento
que o autor possuía da escrita e do caráter dos chineses. A causa profunda que deu a ele uma imensa
erudição foi a mesma que destruiu sua carreira diplomática.
[10]             A inscrição de Yu contém coisa bem diferente, se soubermos lê-la como convém, em três
planos sucessivos. Voltaremos a isto mais tarde, num artigo especial em que analisaremos, fora desta
observação sobre o dilúvio bíblico, as instruções do imperador Yu aos seus conselheiros e discípulos, nos
três mundos.
[11]             Khien e Khouen. Estes dois termos genéricos são empregados para designar a idéia de
Deus; continuamos empregando para ela a Perfeição, termo inferior. Mas não queremos carregar a
metafísica transcendental com uma nova terminologia, lembrando que as terminologias são objeto de
discussões, erros e descrédito; aqueles que as criam, pela necessidade aparente de suas
demonstrações, lotam com elas seus textos de forma incompreensível, e agarram-se a elas com tanto
amor que muitas vezes estas terminologias, áridas e inúteis, acabam por ser a única novidade do sistema
proposto.
[12]             Pois, se a verdade é perfeita e nós a possuímos, nós então participamos da perfeição, e
somos deuses; esta suposição parece ridícula; ao contrário, se somos imperfeitos e possuímos a
verdade, então é a verdade que não é perfeita; e, desta vez, a suposição é verdadeiramente ridícula.
[13]             Melhor seria: “dualismo anti-metafísico”, pois não há dualidade na metafísica (N.T.)
[14]             Matgioi utiliza o termo “evolução” no sentido de “transmutação”, sem absolutamente nenhuma
ligação com o “evolucionismo” de Darwin e sucessores. (N.T.)
[15]             O caracter Khien que representa ideogramaticamente a Perfeição traduz-se, na linguagem,
pelo termo: Atividade do Céu.
[16]             E na prática, os amarelos calculam sua idade acrescentando dez meses ao dia do seu
nascimento.
[17]             O grou simbólico e lendário.
[18]             Não confundir com o Teosofismo, doutrina inventada e difundida por Helena Blavatsky e
seguidores a partir do século XIX.
[19]             Recomendo aos curiosos de filologia o próprio texto do Yi Ching, na tradução de Philastre
(Annales du Musée Guimet) e os gráficos e gramática do Pe. Couvreur, S.J., missionário em Tcheou-Li,
impressos em Hokien-Fu em 1884.
[20]             A cada situação do Dragão, lembremo-nos da viagem da Lenda.
[21]             Yi Ching: cap. I, #8, comentário de Tcheng Tsé.
[22]             Cf. o estado edênico e a lenda do fruto proibido.
[23]             Yi Ching, cap. I, #14; comentário de Tsouhi.
[24]             É o Nirvana, inteligível, mas inacessível ao ser humano que conhecemos.
[25]             Fique claro que o simbolismo do Dragão, tal como explicado aqui, está fora do tempo e do
espaço, acima dos indivíduos, e só pode ser aplicado às sínteses. O próximo capítulo indicará o
simbolismo de sua marcha, em relação àquilo que no Ocidente é chamado de criação do Universo visível.
[26]             Podemos dar a esta proposição o valor psíquico que se quiser.
[27]             É preciso lembrar esta frase, pois ela é o começo de toda a ciência divinatória do Yi
Ching entendida naturalmente do ponto de vista mágico [N.T.: ver Nota 3 a respeito do sentido que
Matgioi dá ao termo sábio e correlatos] , e não do ponto de vista “horoscópico”, do qual os praticantes do
Extremo-Oriente, assim como seus confrades no Ocidente, extrair bons rendimentos.
[28]             A criação, ou seja, vulgarmente, a saída a partir do nada.
[29]             Petição de princípios: raciocínio no qual se toma como ponto de partida aquilo que deve ser
demonstrado., ou seja, a verdade da conclusão é assumida pela premissa.
[30]             Nisto elas diferem do sentido ocidental atribuído à palavra qualidade, que entretanto não
pode ser substituída por nenhuma outra.
[31]             Toda vez que estas expressões indicarem uma das partes do tetragrama, elas serão grafadas
em itálico.
[32]             Trataremos disto no estudo sobre o confucionismo. Mas vamos repetir aqui uma comparação
grosseira, medíocre mesmo, mas muito clara. A luz existe; nós a vemos; as trevas não existem: existe
mais ou menos luz, mas não existe obscuridade. Nas noites mais profundas, existe um termo de
comparação com as noites menos profundas. Este termo de comparação é precisamente a luz que
subsiste, difusa, mesmo na pior opacidade. Mas as trevas absolutas não existem; elas são mesmo
inconcebíveis, pois só poderiam existir se não as víssemos, ou seja se elas escapassem ao único sentido
que as poderia conhecer; e isto é um contra-senso no domínio objetivo.
[33]             Tsouhi, Temas de dissertações.
[34]             Ver os intuitivos ocidentais: “...e o mal que se dizia vivo foi vencido” (Edgard Poe).
[35]             Convém lembrar desde já que a doutrina de Lao Tsé é extraída diretamente do Yi Ching e da
Tradição Primordial.
[36]             A lei dos renascimentos é outra coisa, mas não queremos afirmar agora que ela é real e
lógica, com todas as consequências felizes que a Humanidade pode esperar dela, tanto do ponto de vista
do seu fim quanto do ponto de vista da sua personalidade.
[37]             Será fácil, mais adiante, demonstrar como o livre arbítrio da espécie humana acompanha
estas leis gerais estabelecidas acima.
[38]             Vemos assim que aqueles que tomam o círculo como símbolo da Evolução apenas
esqueceram-se da causa primeira.
[39]             Georg Friedrich Bernhard Riemann (Breselenz, 1826 - Selasca, 1866) foi um matemático alemão que
fez contribuições importantes para a análise e a geometria diferencial, algumas das quais abriram caminho para o
desenvolvimento da relatividade geral, mais tarde. O seu nome está ligado à função zeta, à integral de Riemann, ao lema de
Riemann, à dobra de Riemann e às superfícies de Riemann.

[40]             Dizemos Humanidade e não homem; nós estudamos aqui o homem coletivo. É o livre arbítrio
da espécie que, do homem coletivo, faz os indivíduos.
[41]             É ela, assim, que pode ter como símbolo o círculo da vida, caracterizado pelo Yin-Yang.
[42]             Empregamos voluntariamente aqui a linguagem mais concreta, a fim de tornar claro aos olhos
de todos o que queremos dizer.
[43]             Ver esta frase no capítulo sobre as “Leis da Evolução”.
[44]             É preciso não perder de vista jamais que, se, tomado à parte, o Yin-Yang pode ser
considerado como um círculo, ele é, na sucessão das modificações individuais, um elemento da hélice:
toda modificação individual é essencialmente um vortex de três dimensões; não há mais do que uma
estase humana; e jamais se passa duas vezes por ela pelo caminho já percorrido. Isto é para cortar
desde já qualquer tentativa de adaptação da Tradição Primordial a certas teorias panteístas ou mesmo
espiritualistas (no sentido particular que dão a este termo alguns experimentadores ocidentais).
[45]             Repetimos que só sabemos o valor essencial deste elemento geométrico, porque não temos
lembrança dos estados cíclicos pelos quais já passamos, e que não podemos medir a altura metafísica
que nos separa hoje daquele de onde saímos.
[46]             Vejamos um pequeno jogo algébrico. Representemos os dados da seguinte maneira:
morte=M; nascimento=N; o ciclo humano=H...; o ciclo inferior ao ciclo humano=H-1; o ciclo superior ao
ciclo humano=H+1. Isto pode ser feito para qualquer ciclo. Coloquemos algebricamente numa equação as
proposições enunciadas acima, e teremos:
                M.H = N(H+1) e N.H = M(H-1)
                Desenvolvendo o raciocínio, teremos:
                M.H = N.H+N E N.H=M.H-M
                Vamos substituir M.H por seu valor, teremos:
                M.H = M.H-M+N
                Ou seja,
                M=N
                Ou seja, como todos os coeficientes e índices eliminam-se mutuamente, os fenômenos de
nascimento e morte, considerados em si mesmos e fora dos ciclos, são perfeitamente iguais.Suponhamos
ainda que X é igual ao valor desconhecido do aperfeiçoamento obtido no decurso de uma modificação
qualquer, e teremos:
                M(H-1) + N.H + X = M.N + N(H+1)
                ou
                M.H – M + N.H + X = M.H + N.H + N
                donde
                X=M+N
                Também aqui os coeficientes se eliminam; e obtemos que X (o aperfeiçoamento) é devido
expressamente à soma de um nascimento e uma morte e à coincidência entre este nascimento e esta
morte. E, coisa estranha, percebemos que, mesmo algebricamente, este X, do qual conhecemos a
substância e o funcionamento, é impossível de ser quantificado.
[47]             Anima: materia prima (São Tomás de Aquino: cap. 75). Cf. também a bula do papa Clemente
V sobre o mesmo tema.
[48]             Lembremos que, neste estudo metafísico, tratamos da estase humana, considerando-a à
parte de todas as demais estases. Aquilo que dissemos dela pode ser generalizado para qualquer outra
estase particular, para qualquer outro vortex individual Frisaremos apenas, uma vez mais, que o indivíduo
não passa senão uma vez pela mesma espécie, e que seu vortex não passa da aplicação, ao seu
indivíduo, da espira figurativa da evolução da espécie. Quanto ao estudo das relações dos vortex entre si
e das estases entre si, a Tradição chinesa envia a outra parte de sua filosofia. De fato, a sucessão das
estases tem algo de regular e coordenado, que é do domínio da Razão. As modificações que emanam do
ser, a transformação que reintegra os seres, e o Nirvana, que é o coroamento e o fim das séries, devem
ser estudados de acordo com seus movimentos e suas influências recíprocas. O próprio texto de Wen
Wang afirma expressamente: “A modificação e a transformação são a Via Racional da atividade”; nós o
encontraremos na exposição sobre a Filosofia da Via Racional, ou seja no sistema taoísta de Lao Tsé.
[49]             Os parágrafos A, C e E foram traduzidos das fórmulas determinativas de Wen Wang e de
Tscheou Kong; o parágrafo B, do comentário de Tcheng Tsé; os parágrafos D e F, da obra de Tsou Hi,
intitulada A Dissipação das Trevas.
[50]             Os parágrafos B e D foram traduzidos das fórmulas de Wen Wang e de Tsheou Kong; o
parágrafo A, do Kimong de Tsou Hi; o parágrafo C, do comentário do mesmo autor.
[51]             Todo este texto foi extraído do Capítulo VI dos “Dez golpes de asas” de Confúcio.

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