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Estado, Política e Evolução Social: Uma Tendência para Este Século XXI

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doi: 10.1590/s0102-69922017.

3201004

Estado, política e evolução social: Recebido: 11.03.15


Aprovado: 24.08.16

uma tendência para este século XXI

Leno Francisco Danner* * Doutor em filosofia


(PUC-RS), professor
do Departamento
de Filosofia da
Resumo: Defenderei o argumento de que, desde a última década do século XX, se está assistindo a Universidade Federal
uma reafirmação de um Estado forte, compensatório e regulatório, diretivo em relação à evolução de Rondônia (Unir).
social. Nesse sentido, passa para o primeiro plano a política – tanto em termos de afirmação das É especialista em
teoria política,
instituições políticas quanto no que se refere à participação cidadã – como o elemento funda- particularmente em
mental para a realização de transformações em todos os âmbitos da sociedade. Contratendências Marx e no marxismo,
conservadoras na política, redivivas diante da atual crise socioeconômica, defensoras de políticas liberalismo político e
de austeridade como forma de resolver-se tal crise, e depois de um longo tempo de influência das teoria crítica. <leno_
posições neoliberais, podemos perceber a consolidação de uma cultura democrática ou de uma danner@yahoo.com.
br>.
mentalidade coletiva afirmadora desse Estado diretivo em relação à evolução social, realizador de
políticas de integração social e regulador no que tange à dinâmica econômica. É uma realidade
muito importante para nossas democracias, pois leva ao reforço de uma cultura pública defensora
de direitos sociais, à afirmação de uma política que, contraposta ao laissez-faire, assume o papel
de centro diretivo da sociedade, de espaço de reivindicações por justiça e de exercício efetivo
da cidadania, por parte de um número sempre crescente de indivíduos, grupos culturais e mo-
vimentos sociais os mais diversos. Trata-se, por isso, de uma perspectiva muito otimista no que
diz respeito ao reforço da democracia política, que coloca o Estado como instituição básica para a

Q
constituição de uma sociedade democrática contemporânea.
Palavras-chave: política, Estado, sociedade, economia, contemporaneidade.

O ocaso do conservadorismo político


uero partir do argumento de que estamos assistindo, desde meados da
década de 1990, a um enfraquecimento vertiginoso do conservadorismo
político-econômico representado pelo modelo neoliberal, situação socio-
política que contrasta com o período que, iniciado em meados da década de
1970 e chegando até praticamente o fim dos anos 1990, teria sido marcado, em
decorrência da hegemonia neoliberal, pelo ataque ao Estado de bem-estar e pela
abertura praticamente inconteste das sociedades ocidentais à globalização econô-
mica, dando a tônica dos discursos e das reformas neoliberais implementadas neste
período (Katz, 1989; Duggan, 2003; Habermas, 2003; Zurn & Leibfried, 2007). Em
certo sentido, portanto, o tempo do neoliberalismo esgotou-se ou, pelo menos,
este mesmo neoliberalismo perdeu sua capacidade (supondo que a teve em algum
momento) de responder aos desafios de governabilidade e integração – de concilia-
ção entre capital e trabalho, entre democracia e capitalismo – nas sociedades con-
temporâneas e em termos de globalização econômico-cultural, o que significa que

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mais uma vez um modelo de política e de Estado fortes são chamados ao enfrenta-
mento dos problemas sociais originados pela dinâmica econômica de acumulação e
de exploração do trabalho, agora dinamizada desde um horizonte econômico-polí-
tico globalizado que se, por um lado, é marcado pela presença de vários blocos de
poder e de centros econômicos, não necessariamente alinhados, por outro, obede-
ce a uma mesma lógica político-econômica, a saber, o crescimento econômico às
custas da exploração do trabalho aos moldes do sistema produtivo asiático (baixos
salários, parca organização sindical, altíssima exploração do trabalho) – modelo esse
fomentado em termos de transnacionalização do capital desde o âmbito anglo-a-
mericano ou euronorcêntrico e consolidado neste início de século XXI como a forma
hegemônica de relação entre capital e trabalho em termos de globalização econô-
mica (Arrighi, 2008; Boltanski & Chiapello, 2009; Bauman, 2010; Napoleoni, 2014).

Note-se, no que diz respeito aos múltiplos blocos de poder – modelos políticos e
econômicos em termos de Realpolitik –, no cenário regional-global hodierno, que
há um mesmo padrão político-organizacional que perpassa a autoconstituição e o
funcionamento das grandes economias atuais – pensemos nos Estados Unidos, na
Europa Ocidental, na China, no Japão e nos Tigres Asiáticos, para não se falar tam-
bém no Mercosul, a saber, a afirmação da lógica da globalização econômica vigente
enquanto naturalização do capitalismo transnacional que conjuga abertura direta
ao mercado internacional e a liberalização dos fluxos de capitais transnacionais, o
enfraquecimento da força política dos movimentos sociais por meio do acirramento
da tecnocracia e, de um modo mais geral, a consolidação gradativa de uma forma
de produção material que intensifica os baixos salários, a degradação dos direitos
trabalhistas e o aumento da carga laboral, ao estilo dos mercados de trabalho da
Ásia –, mercados esses que, como argumentarei ao longo do texto, servem de mo-
delo político-econômico, hoje, para a recomposição do capitalismo global contra a
consolidação dos movimentos democrático-trabalhistas contrapostos às políticas de
austeridade enquanto receituário neoconservador para a resolução da atual crise
socioeconômica, até mesmo como reação ao crescimento dos governos vincula-
dos à esquerda teórico-política, nestas duas primeiras décadas do século XXI. Nesse
sentido, não é possível nos enganarmos quanto a diferenças mais específicas em
termos de política internacional relacionada à globalização levada a efeito pelos
Estados Unidos, pela União Europeia ou, na Ásia, pela China, pelo Japão e pelos
Tigres Asiáticos: há, como defendo, um cerne comum a todos estes blocos político-
-econômicos de poder, que consiste na aceitação e na consolidação de um mercado
mundial caracterizado cada vez mais pela precarização do trabalho como um de
seus cernes centrais e enquanto o modelo hegemônico de produção econômica
material própria do capitalismo para este século XXI – um ponto central, diga-se de
passagem, na atual agenda neoconservadora, tanto no Brasil como mais além, ao

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dar prioridade absoluta à abertura econômica, ao aumento das taxas de juros (que
favorece ao regime rentista dos capitais especulativos e leva à desindustrialização
e à desnacionalização da economia) e às políticas de austeridade realizadas pelo
Estado. É nesse contexto, por conseguinte, que um modelo de política e de Estado
fortes tornam-se fundamentais para enfrentar-se o crescimento das posições neo-
conservadoras e a retomada da austeridade política (altas taxas de juros, abertura
econômica à globalização dos capitais transnacionais, redução dos investimentos
públicos em inclusão social, precarização do trabalho). É nesse contexto, ainda, que
a nova cidadania democrática surgida nas últimas décadas, caracterizada pela par-
ticipação política direta e cada vez mais incisiva, coordenada local, nacional e inter-
nacionalmente, pode fazer frente e mitigar a força das posições teórico-políticas
neoconservadoras, instaurando um modelo político alternativo de instituições pú-
blicas, de Estado e de desenvolvimento social, assim como de participação política
democrática.

Efetivamente, retomando meu argumento acerca da atualidade de um modelo de


política e de Estado fortes, bem como de crise e de ocaso do neoliberalismo, desde
fins dos anos 1990 é possível percebermos, na análise da Realpolitik de inúmeras
democracias ocidentais – da Europa ocidental, passando pelos Estados Unidos e
chegando às nossas Américas – um reforço da política social e a afirmação de um
Estado forte, interventor na esfera econômica e compensatório na esfera social,
que centraliza a condução da evolução social, colocando a política democrática,
contrariamente ao que defendia o neoliberalismo, como o baluarte da evolução
destas mesmas democracias (Esping-Andersen, 1999, 2003; Danner, 2013, 2014a).
Ora, dois dos pilares básicos da posição neoliberal – a recusa da sociedade e de suas
instituições enquanto estruturas objetivas que determinam poderosamente tanto a
evolução social quanto a atribuição do status quo e a afirmação da autorreferencia-
lidade da esfera econômica, que, devido a uma dinâmica própria, não política e não
normativa, não poderia nem sofrer intervenção política, nem ser enquadrada a par-
tir de argumentos normativos e de interesses generalizáveis próprios do âmbito so-
cial – foram implodidos pela mudança sociopolítica que desde aquele período tem
dinamizado a autoconstituição de nossas democracias e a visão política hegemônica
em nossas sociedades, formando uma nova cultura democrática que tem seu cer-
ne na defesa de um modelo de política e de Estado fortes, de instituições públicas
atuantes socialmente e de direitos sociais de cidadania universalizados, cultura de-
mocrática essa que é ferreamente contraposta ao neoliberalismo e desconfiada da
abertura ingênua da economia nacional à globalização econômica.

Primeiramente uma digressão sobre estes dois pilares da posição neoliberal. Ha-
yek (2008), considerado o pai do neoliberalismo, partia da ideia de que a evolução

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social possui caráter espontâneo, sendo dinamizada por indivíduos sem qualquer
visão messiânica ou filosófica do todo, preocupados basicamente com a satisfação
de suas necessidades pessoais, que é obtida em um processo correlato de oferta
dos próprios talentos aos demais e de aproveitamento dos talentos oferecidos por
estes. Para Hayek, são estas ações isoladas, levadas a efeito por indivíduos que,
como disse, querem apenas satisfazer seu bem-estar pessoal, que fazem com que
esses mesmos indivíduos instituam, ao longo do tempo, práticas, códigos e regras
que possam orientar as relações entre eles e arbitrar sobre reivindicações de justiça
surgidas a partir daquelas relações. Note-se bem que a tônica da evolução social-
-institucional é determinada por indivíduos singulares, e não pelas instituições ou
por noções abstratas e genéricas de classe social – instituições e classes sociais que
poderiam representar estruturas e macrossujeitos da evolução social, determinado-
res da dinâmica realizada em uma dada sociedade e mais além (um argumento bási-
co da teoria social de um modo geral e da teoria social de esquerda em particular).

Para Hayek, portanto, a evolução social, isto é, a consolidação de resultados objetivos


no que tange ao status quo e à formação das instituições em uma dada sociedade, e
mesmo a evolução da própria sociedade de um modo mais genérico, acontecem de
modo espontâneo e não intencional, a partir daquelas múltiplas ações individuais,
feitas com o intuito de satisfazer os próprios interesses singulares. Ou seja, essa
evolução é espontânea e não intencional porque não foi produzida conscientemen-
te, porque não foi conduzida por alguma instituição ou classe social, porque não foi
centralizada pelas instituições e classes sociais. Ela não foi pensada ou planejada,
simplesmente aconteceu por meio desse processo de inter-relação produtiva entre
indivíduos singulares que, conforme travavam relações de troca, percebiam o que
deveria ser seguido e o que deveria ser condenado em termos dessas mesmas in-
ter-relações produtivas. Três ideias importantes aparecem aqui: a importância da
esfera econômico-produtiva em termos de evolução social; a recusa de que a socie-
dade e suas instituições, correlatamente à ideia de classes sociais (no sentido a elas
dado por Marx), sejam estruturas objetivas ou macrossujeitos da evolução social; e
a recusa da política e do Estado enquanto médium basilar da evolução social e insti-
tuição planejadora dessa mesma evolução social, concomitantemente à afirmação,
por parte de Hayek, de que o mercado é uma ordem espontânea que, por sua lógica
própria, não normativa e não política, assume o papel de lugar por excelência da
evolução social (Hayek, 1985a, 1985b; Butler, 1987).

Explico brevemente cada uma dessas ideias. A primeira delas diz respeito ao fato
de que esse processo evolutivo tem seu cerne na esfera econômica, na produção
da vida material: é por meio da busca pela satisfação das próprias necessidades no
âmbito produtivo que os indivíduos singulares contribuem para a gestação de prá-

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ticas, normas e instituições sociais. Isso demonstra a importância que a esfera eco-
nômica possui para a definição da dinâmica social, para a configuração – ainda que
de forma indireta, espontânea – da sociedade: indivíduos singulares produzem sua
vida material e, a partir disso, geram códigos e práticas objetivos, que chamamos de
sociedade, de instituições, de cultura etc. A segunda delas diz respeito à recusa de
que a sociedade e suas instituições sejam estruturas objetivas que, a partir das lutas
entre supostas classes sociais e da configuração dali adquirida, definam o status
quo, o ritmo, a intensidade e a configuração da evolução social, dos processos de
socialização e de subjetivação. Afirmar a ideia de que a sociedade e suas instituições
são estruturas objetivas equivale a acreditar que a sociedade tenha um centro (ou
alguns centros diretivos, planejadores, estruturantes) e macrossujeitos por sobre
as cabeças individuais; equivale também a pressupor a possibilidade de, politica-
mente, se poder planejar os processos evolutivos, que não seriam, nesta posição,
concebidos como espontâneos, e sim como produzidos politicamente, planejados
a partir das instituições, tecnocraticamente. Da mesma forma, a afirmação de ma-
crossujeitos da evolução social implica em que sejam anuladas as ações individuais
que, como quer Hayek, são a verdadeira causa – inconsciente, não intencional e não
planejada – de uma evolução social com caráter abrangente, definidora das carac-
terísticas gerais da sociedade, de seus códigos e de suas relações. Instituições e ma-
crossujeitos não existem, a não ser como idealizações. Na prática, apenas existem
indivíduos e as relações que estes entabulam entre si com vistas ao proveito próprio
(Hayek, 1987; Butler, 1987).

Com isso, chegamos à terceira ideia central para a posição neoliberal, a saber, a re-
cusa da política democrática e do Estado enquanto elementos diretivos da evolução
social, instâncias a partir das quais essa mesma evolução social pode ser racionali-
zada, discutida, planejada conscientemente e levada a efeito praticamente. Hayek
nega esse papel diretivo e planejador da evolução social que tradicionalmente – em
particular nas posições de esquerda – a política democrática e o Estado têm assu-
mido e mesmo centralizado. As teorias de índole socialista (e, hodiernamente, sua
vertente social-democrata) apresentam exatamente essa característica de atribuir
centralidade à política democrática e ao Estado devido ao fato de conceberem a so-
ciedade e suas instituições como estruturas objetivas, macroestruturas que, devido
a esse seu caráter, influem direta e decisivamente nos processos de evolução social
e na determinação do status quo. Além disso, tais instituições não seriam imunes
aos grupos de poder ou classes sociais que, ao estilo de macrossujeitos, definiriam,
a partir de suas lutas por poder e hegemonia, configurações institucionais, práticas
culturais e dinâmicas sociopolíticas. Assim, nas teorias políticas de esquerda, a ação
política de classe e o planejamento institucional da evolução social passam para
primeiro plano, permitindo tanto a configuração adequada dos sistemas sociais,

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econômicos, políticos e culturais, quanto a racionalização da dinâmica social que,
planejada e conduzida desde as instituições, poderia adquirir um sentido mais equi-
tativo e inclusivo e menos arbitrário (porque consciente e fundado em interesses
generalizáveis e argumentos normativos).

Ora, Hayek ataca esse aguilhão da teoria social de esquerda no momento em que
não apenas concebe a evolução social como espontânea, não intencional e não pla-
nejada, senão também na medida em que, para fazer isso, estabelece a centralidade
do horizonte econômico-produtivo como motor dessa mesma evolução social. O
mercado, enquanto ordem espontânea, é uma esfera não objetiva, não estrutural,
na qual o fator básico da diferenciação entre os indivíduos e, consequentemente, da
evolução social é a meritocracia, garantida a partir da livre concorrência. Aqui, não
é o planejamento institucional centralizado ou a condução política das atividades
econômicas dos indivíduos que garantirão uma evolução social equitativa, mas a
própria espontaneidade do âmbito econômico-produtivo, isto é, a ampla mobili-
dade dos indivíduos em estabelecerem relações de troca uns com os outros, que é
responsável seja pela produção da vida material, seja pela consolidação do status
quo, seja, por fim e como consequência, pela formação de regras, práticas e códigos
intersubjetivos. Assim, as instituições de um modo geral e o Estado em particular
são importantes, na teoria de Hayek, mas o são por apenas dois motivos básicos:
garantir o respeito e o cumprimento dos contratos e dos pactos, bem como evitar
que o âmbito econômico seja afetado por poderes estruturais e por reivindicações
normativas realizadas por meio de intervenções políticas. Quanto menos controles
e intervenções políticas, mais espontaneidade. Quanto mais espontaneidade e li-
berdade, mais justiça e igualdade, que passam a ser definidas pela meritocracia do
trabalho e pela livre concorrência – posto que a normatividade é uma ilusão dos
grupos sociais perdedores em termos de meritocracia. A meritocracia do trabalho,
aliás, torna-se o único critério para a definição do status quo, o que significa que,
conforme já comentado acima, reivindicações normativas por igualdade material,
distribuição da riqueza e justiça social não passem de uma “miragem” (termo utili-
zado por Hayek) usada por grupos sociais perdedores, não podendo legitimar uma
política diretiva e um Estado forte que enquadrem o sistema econômico com base
em interesses generalizáveis. Desse modo, torna-se claro que o alvo da crítica de
Hayek, fundamental para sua posição política, consiste na centralidade da política
democrática e do Estado de bem-estar social enquanto elementos diretivos, condu-
tores e planejadores da evolução social, que, a partir de argumentos normativos e
interesses generalizáveis, e por meio de participação política permanente, incisiva
e direta, enquadram o âmbito econômico com o objetivo de se realizar valores de
uso. A boa política, conforme defendido pelo neoliberalismo, é aquela que garante
o máximo de espontaneidade à esfera econômico-produtiva, deixando a meritocra-

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cia definir tanto o status quo como os rumos da evolução social. A má política, por
sua vez, é aquela que assume uma função interventora em relação aos mercados e
compensatória em relação à esfera social, buscando dirigir o processo evolutivo de
maneira centralizada e com base em supostos interesses generalizáveis, com base
na fantasiosa ideia de justiça social (Hayek, 1995, 2006; Butler, 1987; Dubiel, 1993;
Harvey, 2008).

É este tipo de visão que, no meu entender, está em franco declínio, nas sociedades
democráticas ocidentais, desde meados da década de 1990. Aliás, esta visão é re-
chaçada mesmo em países comunistas atuais, como a China, nos quais a centraliza-
ção política em um Estado forte torna a evolução social algo planejado e conduzido
institucionalmente, com o objetivo claro de não apenas impedir maior democra-
tização, mas também e principalmente de evitar que capitais de alcance transna-
cional detonem a estabilidade daquelas economias nacionais (comunistas). Esta
centralização estatal, com efeito, impediu que a China fosse afetada de maneira
séria pela atual crise socioeconômica, mantendo o ritmo do crescimento econômi-
co estável, ou seja, o controle estatal da economia nacional, de modo a contrapor-
-se à abertura pura e simples do mercado interno às transnacionais, impedindo a
desnacionalização e a desindustrialização nativa, e foi o cerne do corrente sucesso
chinês em manter ritmo estável de crescimento econômico não obstante essa crise
econômica que afetou fortemente outras sociedades e, em particular, potências
mundiais como os Estados Unidos, a Inglaterra e a Alemanha (Arrighi, 2008; Bol-
tanski & Chiapello, 2009; Napoleoni, 2014). No que tange às sociedades democrá-
ticas ocidentais, que é o que me interessa neste momento, pode-se perceber que
o resultado da hegemonia neoliberal entre as décadas de 1980 e de 1990 nessas
mesmas sociedades mostrou a exaustão, para não se falar da própria fragilidade,
de um projeto político que centraliza a dinâmica social na ordem espontânea do
mercado e que recusa um modelo ampliado de política democrática calcado em
argumentos normativos e em interesses generalizáveis que se utiliza de um Estado
forte, interventor e compensatório como instituição central de condução da evolu-
ção social. Hoje, os cidadãos querem segurança social realizada por meio das insti-
tuições públicas: eles afirmam tais instituições porque creem que elas podem, por
meio do controle político dos poderes estruturais vigentes socialmente, da realiza-
ção de direitos sociais e da oferta de oportunidades educativas e trabalhistas (para
não se falar da seguridade social e dos sistemas públicos de saúde), dar-lhes um
mínimo de bem-estar pessoal, assim como um mínimo de paz e de justiça sociais.
Eles não estão mais dispostos a arriscar conseguir isso por meio da espontaneidade
do mercado e com o abandono de uma política forte e diretiva da evolução social.
Percebem que a desregulação e o enfraquecimento das instituições públicas são
causa direta da crescente pauperização e desigualdade sociais. Ou seja, eles já não

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aceitam um conservadorismo político que, conforme expresso pela posição neoli-
beral, coloque todo o peso da integração social na espontaneidade do mercado. Os
cidadãos deste novo milênio querem planejamento e centralização política, que-
rem instituições públicas atuantes socialmente, querem um Estado forte, compen-
satório e interventor – eles, contrariamente à política minimalista levada a efeito
pelo neoliberalismo, querem mais política.

Com efeito, este novo milênio teve início com a avaliação do fracasso teórico-prá-
tico do neoliberalismo e com a convicção, que cada dia ganha mais adeptos en-
tre a população em geral de nossas sociedades, de que uma política planejadora
precisa, por um lado, controlar e mesmo dinamizar a esfera econômico-produtiva,
concomitantemente, por outro lado, ao seu trabalho integrador em termos sociais,
alcançado por meio de políticas sociais calcadas na efetivação dos direitos sociais de
cidadania. A receita teórico-política hegemônica, desde o início do século XXI, por
conseguinte, pode ser sintetizada na seguinte programática: política forte, controle
e fomento da economia nacional, realização de políticas sociais, correlatamente,
no âmbito internacional, à criação de blocos político-econômicos alternativos ao
horizonte euronorcêntrico (que precisará negociar com estes mesmos blocos alter-
nativos, de modo a formar-se uma política internacional multipolar, mas concertada
em objetivos mínimos, como o controle político da dinâmica econômica interna-
cional, a realização de metas sociais e a resolução dos problemas ecológicos). E é
uma receita que ganha apoio não somente entre teóricos e autoridades políticas as
mais diversas, na medida em que estas últimas não podem abstrair da realização
de políticas sociais como condição de legitimidade partidária e apoio administrativo
por parte das camadas de eleitores; trata-se também de um apoio popular cada vez
mais intenso, exatamente por atribuir, conforme dito acima, um caráter integrador
e pacificador às instituições públicas de um modo geral e ao Estado de bem-estar
social em particular – uma cultura democrática, assim, que aponta para o reforço
e para a afirmação das instituições públicas em seu aspecto diretivo da evolução
social (Danner, 2014b). Interessantemente, o sucesso de que gozam as instituições
públicas, dada a consolidação dessa cultura democrática calcada na afirmação de
um modelo de política e de Estado fortes, bem como contraposta ao neoliberalismo,
implica em que o ideário social-democrata de conciliação entre capital e trabalho
por meio do Estado de bem-estar social ganhe nova atualidade, em nossas demo-
cracias ocidentais, hodiernamente.

A nova cultura democrática contemporânea, nesse sentido, é caracterizada pela


participação política direta e enfática de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs
os mais diversos frente às instituições políticas de um modo geral e em relação aos
partidos políticos em particular, com a apresentação e a consolidação de agendas

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vinculadas à crítica ao capitalismo transnacionalizado e à tecnocracia política en-
quanto pontos imbricados da programática levada a efeito por meio da hegemonia
das forças neoconservadoras contemporâneas. Portanto, essa nova cultura demo-
crática contemporânea, caracterizada pela participação direta e incisiva de movi-
mentos sociais e de iniciativas cidadãs, por meio de sua defesa intransigente das
instituições público-políticas e da própria ação política como o cerne da constituição
da sociedade e de sua transformação ao longo do tempo, representa o baluarte
político-normativo mais poderoso contra a ascensão do neoconservadorismo atual.
Ora, uma especificidade dessa nova cultura democrática, de nossos movimentos
sociais e iniciativas cidadãs contemporâneos, pode ser percebida pela ênfase, por
parte do grosso das ciências sociais contemporâneas, na consolidação de um fe-
nômeno político-cultural importante para entender-se a política cotidiana atual, a
saber, o fato de que essa nova cultura democrática caracterizada pela participação
política direta por parte de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs já não é mais
conduzida ou controlada tecnocraticamente, isto é, de que ela já não depende de
uma liderança política institucional ou de um partido político como a cabeça que
guia esse corpo acéfalo, utilizando tal metáfora – o partido que pensaria pelos mo-
vimentos sociais, que determinaria sua senda, o tipo de atuação, seus passos. Como
nos mostra Marcos Nobre (2013: 5-35) em seu texto Choque de democracia: razões
da revolta, os novos movimentos de protesto e de participação políticos são mar-
cados pela correlação entre espontaneidade política, ativismo político direto frente
às instituições políticas e aos partidos políticos, e pela integração local, nacional e
mesmo internacional (possibilitada, em grande medida, seja pelas alianças entre
os diversos movimentos sociais e pelo entrecruzamento de suas agendas, seja pela
utilização das mídias alternativas, fatores que lhes permitem uma práxis político-
-cultural conjugada, concertada).

Ora, outro fator importante de tais movimentos está exatamente em sua politiza-
ção, no duplo aspecto do termo: entendem sua luta como praxis política de caráter
efetivo, emancipatório, participativo, que tem o direito de enquadrar o sistema polí-
tico como um todo e impor – não apenas apresentar – pautas e uma agenda política
às instituições públicas e aos partidos políticos; e não objetivam o fim da política,
senão sua radicalização, o que significa a consolidação da participação popular jun-
to ao sistema político, na medida em que este está submetido àquela, bem como
colocam a praxis política de um modo geral e a atuação das instituições públicas em
particular como o cerne da vida democrática, como a base, o instrumento para o
planejamento, a orientação e a condução da evolução social, sem qualquer outro
substitutivo ou alternativa à própria política (Habermas, 1991; 2005; 2009; Hon-
neth, 2003; 2007; Giddens, 2001; Piketty, 2014). É nesse sentido que, como disse
acima, essa nova cultura democrática leva a uma reconsideração da posição teóri-

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co-política social-democrata, na medida em que esta coloca a política – participação
ampliada, cidadania política efetiva e instituições público-políticas fortes, interven-
toras e compensatórias – como o núcleo e o instrumento normativo-político-meto-
dológico fundamentais para a autoconstituição da sociedade, para a definição dos
projetos e dos rumos do desenvolvimento social como um todo.

A vez de uma política forte

No ideário social-democrata pode-se perceber, de maneira genérica, três aspectos


básicos de sua posição teórico-política: (a) a afirmação da sociedade e de suas ins-
tituições enquanto estruturas objetivas que, detonando processos de socialização e
de subjetivação por sobre as cabeças individuais, definem de maneira preponderan-
te a dinâmica da evolução social, a atribuição do status quo e muito do sentido des-
ses processos; (b) a percepção de lutas por poder, de lutas de classe que definem o
sentido e a dinâmica da estruturação das instituições, na medida em que tais lutas
de classes são, em primeira mão, lutas pela definição das próprias instituições que
coordenam a evolução social e os processos de socialização e de subjetivação – lutas
de classe, portanto, direcionadas à orientação e à condução da evolução social; e (c)
a configuração do poder econômico e político a partir dos argumentos normativos
e dos interesses generalizáveis ramificados no social, o que equivale a subordinar
os valores de troca do mercado capitalista aos valores de uso próprios do mundo
da vida, por meio da afirmação da centralidade e do caráter diretivo da política de-
mocrática e, aqui, particularmente, do Estado de bem-estar social (Bernstein, 1982;
Habermas, 1991; 2005; Hook, 1999; Kolakowski, 1999; Harrington, 1999; Flora &
Heidenheimer, 2005; Flora & Alber, 2005). Com isso, a social-democracia dá ensejo
a um modelo de política forte que deve correlata e concomitantemente garantir a
viabilização do desenvolvimento econômico e de uma integração social equitativa e
inclusiva, ou seja, conciliar capital e trabalho por meios políticos. Aqui reside seja o
sentido das atividades estatais interventoras e fomentadoras em termos de âmbito
econômico, seja a ênfase político-estatal nos direitos sociais de cidadania e nas insti-
tuições públicas de caráter socializador e de proteção social (escola, sistema público
de saúde, seguridade social etc.), que têm por objetivo, no primeiro caso, impedir
uma acumulação monopolística da riqueza e propiciar condições infraestruturais
básicas para o desenvolvimento capitalista, bem como, no segundo caso, realizar a
proteção social das classes sociais dependentes do trabalho e a garantia de sua in-
clusão bem-sucedida nos processos de socialização e de subjetivação (Hicks, 1999;
Esping-Andersen, 2008). Trata-se, como se pode perceber, não apenas da afirmação
de uma política forte e diretiva da evolução social, mas também, como condição e
mesmo como consequência disso, da colocação de enormes expectativas metodo-
lógicas, programáticas e normativas às instituições políticas de um modo geral e ao

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Estado de bem-estar social em particular, na medida em que eles passam a ser o
cerne para a estabilização dos problemas sociais (tensões entre capital e trabalho)
e o baluarte para a condução da evolução social das e nas sociedades democráticas
contemporâneas, por estas sociedades contemporâneas (Habermas, 1991; 2000;
2009; Honneth & Hartmann, 2009; Hicks, 1999).

A crise do Estado de bem-estar social, em seu viés fiscal, político e psicossocial


(O’Connor, 1977; Rosanvallon, 1981; Offe, 1984; 1989; Habermas, 2002; 2005),
e o ataque neoliberal a ele desfechado mostram o quanto tais expectativas dire-
cionadas ao campo do político apresentam contradições, e não apenas sucessos.
Entretanto, o fracasso das políticas neoliberais e mesmo a consolidação de uma
globalização econômica desregulada, sob o predomínio de capitais transnacionais,
desde meados da década de 1990, mostram, por seu turno, o quanto a falta de uma
política forte, nacional e internacionalmente, acentua os problemas da desigual-
dade social, da pauperização e da desestruturação das instituições públicas (Hobs-
bawm, 1995; Arrighi, 1998; Hardt & Negri, 2004; Boltanski & Chiapello, 2009). Isso
as populações dos países democráticos, mormente aquelas camadas sociais com
perspectivas de vida mais instáveis (que, por isso mesmo, sofrem de maneira mais
aguda os problemas de desenvolvimento econômico e de mercado do trabalho – e
que são mais exploradas em termos de dinâmica econômica), aprenderam a du-
ras penas. E são essas pessoas que efetivamente consolidaram uma cultura pública
calcada na afirmação e no reforço das instituições públicas em geral e do Estado
de bem-estar social em particular, pondo como centro programático dessa mesma
política democrática os direitos sociais de cidadania, políticas sociais e atividades
interventoras que possam garantir tanto o desenvolvimento econômico, ao qual
não se pode abandonar, quanto principalmente processos de socialização e de sub-
jetivação efetivos, integrais, que não estejam determinados nem pela exploração do
trabalho por parte do capital, nem pela dinâmica sempre instável do processo de
acumulação capitalista da riqueza, que ainda é a base, no capitalismo contemporâ-
neo, para a suposta realização do desenvolvimento social. Essas populações já não
acreditam na retórica dos políticos e nos prognósticos dos especialistas acadêmi-
cos sobre as reformas institucionais ou as políticas de austeridade necessárias para
a afirmação do desenvolvimento econômico (leia-se: autovalorização do capital),
tampouco creem que a meritocracia seja o único ou talvez o melhor critério defi-
nidor tanto do status quo como da distribuição da riqueza produzida; elas querem
garantir que os direitos sociais sejam oferecidos para além de quaisquer ideologias
partidárias e suas maquinações. Essas mesmas populações, portanto, percebem e
afirmam a política como tendo a tarefa de garantir inclusão social efetiva para todos,
protegendo suas vidas das peripécias do mercado capitalista, que é desmistificado
em sua retórica de garantidor de uma integração social equitativa abrangente; o

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mercado é um lugar de exploração do trabalho com vistas à autovalorização do
capital, com tendências e dinâmicas objetivas que, não controladas, submetem o
trabalho a um processo de exploração e de deterioração permanente – o mundo do
trabalho não é apenas o mundo da valorização tecnológica e dos altos salários das
revistas de economia, senão que, de um modo geral e em perspectiva estrutural, é
o âmbito da pauperização e da desigualdade sempre crescentes, dos baixos salários
e da deterioração da qualidade de vida das classes trabalhadoras, da monopolização
da esfera econômica por grandes grupos econômicos e da grande concentração
de renda, para não se falar da consolidação de uma ordem econômica global em
que os movimentos de capital e de trabalho de índole transnacional levam a um
solapamento e a uma precarização cada vez maiores do trabalho assalariado e do
Estado de bem-estar social (Piketty, 2014). Nesse sentido, não há mais nenhum véu
dourado ou ideologia que tenham capacidade de encobrir a verdadeira face da pro-
dução material da vida no capitalismo contemporâneo: o confronto entre capital e
trabalho, isto é, a autovalorização do capital por meio da exploração intensificada
do trabalho é, nesse mesmo capitalismo contemporâneo, tão ou mais aguda quanto
no período da acumulação originária. Sobre a realidade socioeconômica contempo-
rânea, sobre a realidade da atual globalização econômica, diz Thomas Piketty:

Sabemos agora que a importância global do capital neste início de


século XXI não é muito diferente do que no século XVIII. Somen-
te a forma mudou: se antes o capital era fundiário, ele tornou-se
imobiliário, industrial e financeiro. Sabemos também que a con-
centração da riqueza permaneceu muito alta, ainda que bem me-
nos extrema do que era há um século e nos séculos anteriores. A
metade mais pobre da população continua sem posses, mas hoje
existe uma classe média patrimonial que detém entre um quarto
e um terço da riqueza, e os 10% mais ricos não possuem mais do
que dois terços, em vez dos nove décimos de antigamente (Piketty,
2014: 368).

Portanto, as desigualdades sociais, na globalização econômica atual, mantêm-se


agudas e tornam-se cada vez mais intensas, o que mostra sua condição totalmente
problemática, bem como o correlato desafio político representado por essas desi-
gualdades e pela consequente discrepância no acesso ao poder político-econômico.
Isso fica evidente, em primeiro lugar, com a consolidação da globalização econômica
em sua configuração atual (Chesnais, 1996; Benayon, 1998; Chossudovski, 1999;
Habermas, 2003; 2006). Hoje, as grandes empresas transnacionais canalizam sua
produção para países da Ásia ou da América Latina em que a mão de obra tem
precária organização sindical ou consciência de classe, acostumada ao jugo do au-
toritarismo institucional e a uma vida de pauperização. Geralmente, pelo menos no
caso da Ásia, são sociedades nas quais o poder político, centralizado na figura de um

72 Revista Sociedade e Estado – Volume 32, Número 1, Janeiro/Abril 2017


ditador ou de um partido burocrático, impede uma maior liberdade democrática e,
com isso, consolida uma cultura cotidiana de obediência ao autoritarismo, o que fa-
cilita, no caso destas empresas, a possibilidade de se explorar mão de obra humana
a bel-prazer em troca de baixíssimos salários – os mercados de trabalho da Ásia, em
minha percepção, definirão muito das configurações globais do mundo do trabalho
e dos mercados produtivos, não apenas porque são o destino das transnacionais,
mas principalmente pelo fato de estarem instaurando em nível global um modelo
político-econômico que consolida crescimento da produção, aumento da acumu-
lação de capital e grande exploração do trabalho, definindo um tipo de globaliza-
ção econômica que, não obstante ser marcada pela existência de muitos blocos de
poder e centros econômicos, apresenta, como disse antes, uma mesma dinâmica,
uma mesma lógica, a saber, o aumento da acumulação por meio da intensificada
exploração do trabalho, que põe em perigo até mesmo as poucas conquistas traba-
lhistas, em termos de Estado de bem-estar social, conquistadas pelas democracias
ocidentais. Enfim, a globalização econômica consolidada tornou atual o problema
da exploração do trabalho, na medida em que, naqueles continentes acima citados,
aproveitou-se das condições de pobreza social, de autoritarismo institucional, de
subdesenvolvimento econômico e de profunda estratificação em termos de status
quo para arrefecer uma realidade de exploração do trabalho que permite uma lucra-
tividade em contínuo e sem qualquer problematização abrangente. Pode-se pagar
indefinidamente um dólar por dia a um trabalhador na China ou no Vietnã sem que
essa relação de exploração desumana, literalmente de escravidão (na medida em
que tal valor permite no máximo uma subsistência mínima), seja problematizada em
sua crueza, nem naquele contexto, nem no horizonte das sociedades desenvolvidas
(ou mesmo no Ocidente de um modo mais geral), no qual a proteção ao trabalhador
e a ação dos movimentos sindicais apresentam mais efetividade e impacto políti-
co (sociedades estas que estão preocupadas, basicamente, com seu protecionismo
interno, mas que sofrem, em seus sistemas de bem-estar e em seus mercados de
trabalho, os efeitos do deslocamento dos mercados produtivos e de trabalho para
a Ásia, percebendo, por outro lado, a ascensão de posições políticas conservadoras
e o discurso ideológico calcado em políticas de austeridade como forma de reso-
lução da atual crise socioeconômica, como se o problema estivesse no Estado de
bem-estar social e nos direitos sociais de cidadania, e não na própria configuração
global da economia contemporânea, determinada pelos movimentos dos capitais
transnacionais).

Em segundo lugar, a crise socioeconômica hodierna, que afeta as economias nacio-


nais ocidentais desde o início deste século, demonstra o quanto o conflito entre ca-
pital e trabalho é atual para entendermos a dinâmica da vida sociopolítica contem-
porânea. Essa crise, além disso, nos mostra que esse conflito, que por muito tempo

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permaneceu latente devido à programática do Estado de bem-estar social, retorna
com força à agenda teórico-política e à dinâmica de nossas sociedades. Com efeito,
atualmente vive-se uma queda drástica na economia produtiva e uma elevação das
atividades ligadas ao capital especulativo-financeiro, bem como o deslocamento
dos mercados produtivos e de trabalho para a Ásia (que passa a definir o tipo de
mercado produtivo e de trabalho deste século XXI), o que ocasiona novamente en-
dividamento galopante do Estado e falência da economia real, produtiva, ligada à
industrialização – pelo menos de um modelo de industrialização endógeno e autô-
nomo. Com isso, empresas reduzem suas atividades ou entram em processo de fa-
lência, o que ocasiona o aumento do desemprego estrutural, para não se falar tam-
bém da crescente desnacionalização e desindustrialização das economias nacionais
dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento devido à hegemonia, neles,
de capitais transnacionais, que adentram nessas mesmas economias pelo fato de
não haver controles políticos adequados e uma política nacionalista consistente,
mas sim abertura como que cega à globalização econômica, definida exatamente
por esses capitais transnacionais do horizonte euronorcêntrico. Ora, neste caso,
também pode ser percebido o fato de que as lutas em torno da definição do recei-
tuário teórico-político hegemônico em termos de resolução da referida crise colo-
cam novamente na ordem do dia a disputa entre a programática social-democrata
e a noção de políticas de austeridade própria da posição neoliberal. Neste segundo
caso, há a necessidade de o Estado retirar controles políticos frente à mobilidade
dos capitais, diminuindo, além disso, as políticas sociais destinadas à promoção do
trabalho e à inclusão social. Ainda como parte do receituário, há de se aceitar essa
dinâmica já consolidada da globalização econômica, que, com a entrada em cena
das formas de trabalho próprias aos contextos subdesenvolvidos (baixos salários,
jornadas laborais extenuantes, parcos direitos trabalhistas, incipiente organização
sindical), apontam para a necessidade de se racionalizar o trabalho como forma
de se adequar as economias nacionais e a organização político-institucional das
sociedades democráticas à realidade econômico-produtiva do século XXI, em que a
valorização do trabalho passa a ser determinada pela dinâmica do trabalho barato
advinda da Ásia e da América Latina, dinâmica essa instaurada, aproveitada e refor-
çada pelas empresas transnacionais (Antunes, 2005; 2009; Gorz, 2005; Kurz, 2005).
No caso da posição social-democrata, uma política forte, conforme já comentado
acima, poderia, se não retomar uma forma de desenvolvimento econômico mar-
cada por altos patamares de crescimento (isto é, de lucro), já impossível em uma
realidade de globalização econômica que prioriza mão de obra da Ásia e da América
Latina, e de economias desnacionalizadas e desindustrializadas, pelo menos garan-
tir um mínimo de crescimento econômico com a proteção e a inclusão das classes
trabalhadoras, a partir do reforço de um Estado forte e de uma economia nacional
endógena e autônoma.

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Com isso, o crescimento das mobilizações sociais no que tange à discussão das me-
didas para a resolução da atual crise socioeconômica nos mostra que as populações
ocidentais – e mesmo mais além – estão conscientes de que a luta entre capital e
trabalho, elevada agora ao cenário internacional (e determinada por este, diga-se
de passagem) por causa da globalização econômica, é atual e, se vencida pelas po-
sições conservadoras com sua receita de políticas de austeridade, pode implicar
na aceitação e na consolidação do desemprego estrutural, na desestruturação das
instituições públicas e na submissão das nações (sua estrutura sociocultural e po-
lítico-econômica) a uma economia globalizada que, hoje, põe em perigo o mínimo
de estabilidade e de direitos sociais conquistados no Ocidente e, pior, que impede a
instauração de uma forma mais justa e equilibrada de desenvolvimento econômico
e social a ser perseguido em nível mundial, que possa incluir todos os continentes
– na globalização econômico-cultural atual, pouco ou nada se fala da África; pou-
co ou nada se fala com a África –, de seu papel e de seu futuro neste século XXI.
As políticas de austeridade, propugnadas pelas posições conservadoras, represen-
tam o ocaso da política democrática, a desestruturação de um modelo de política
e de Estado diretivos em relação à evolução social e, assim, o solapamento das
instituições públicas interventoras e compensatórias, bem como a aceitação desse
tipo de globalização econômica que está calcado no modelo produtivo asiático de
exploração intensificada do trabalho e crescimento da produção e da acumulação,
com pouca ou nenhuma concessão de direitos e participação política democrática
– modelo este sustentado pela internacionalização do capital conduzida pelas trans-
nacionais do horizonte euronorcêntrico (Piketty, 2014; Arrighi, 1996). Acresce-se a
isso o fato de a globalização econômica atual, marcada pela primazia dos capitais
transnacionais do âmbito anglo-americano, levar à progressiva desnacionalização e
desindustrialização das economias nacionais, mormente das nações em desenvolvi-
mento, o que significa não apenas um processo concomitante de crise da política e
do Estado, incapazes de fazer frente àqueles capitais e de garantir desenvolvimento
(industrialização) econômico endógeno e autônomo e pleno emprego, mas também
de desestruturação das instituições públicas em suas funções de integração social,
acarretando diminuição da qualidade de vida das classes sociais menos abastadas e
crescimento da desigualdade social.

Por isso, como estou defendendo, a consolidação gradual de uma cultura política
pública, afirmada por estas mesmas populações, centra seu ideário na defesa e no
reforço das instituições públicas, na ênfase em uma política forte, nos direitos so-
ciais e em um Estado interventor e compensatório, fazendo da política a arena e o
instrumento por excelência para a resolução dos problemas sociais e para a condu-
ção da evolução social. Trata-se de uma tendência teórico-política ao lado de outras
tendências (mormente a tendência conservadora calcada na defesa de políticas de

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austeridade), mas que poderia representar uma importante alternativa para iniciati-
vas cidadãs, movimentos sociais e partidos políticos relacionados com a tradição da
esquerda teórico-política e, aqui, da política forte enquanto base para a condução
da evolução social. São esses grupos que, cada vez em maior número e conscientes
da atual contraposição entre capital e trabalho que dinamiza a crise socioeconômica
hodierna, assumem as bandeiras da esquerda teórico-política, a saber, política e
Estado fortes, controle político-estatal do capital e realização de direitos sociais de
cidadania, tudo isso desde uma participação política ampliada por parte dos mo-
vimentos sociais e dos cidadãos em geral. E a esquerda teórico-política encontra
nesses mesmos grupos a força política necessária para garantir sua hegemonia em
nossas democracias e mais além, neste início de século XXI, contra o neoconserva-
dorismo em defesa de políticas de austeridade. É essa esquerda teórico-política,
respaldada por essa nova cultura democrática calcada na afirmação de um modelo
de política e de Estado fortes, e contraposta ao neoliberalismo, que tem condições
de levar a efeito uma proposta teórico-política emancipatória capaz de controlar a
modernização econômico-social em curso e, de um modo mais geral, de oferecer
alternativas à atual globalização econômica, que acirrou os conflitos entre capital
e trabalho em escala internacional, que levou até mesmo à desnacionalização e à
desindustrialização das economias nacionais subdesenvolvidas.

Ora, tal proposta teórico-política não pode esquecer uma posição social-democra-
ta caracterizada pela conjunção entre política forte, instituições público-políticas
atuantes e participação social ampliada e direta enquanto suporte político-normati-
vo à centralidade das instituições públicas, à afirmação desse modelo de política e de
Estado fortes. Em um de seus últimos textos, Habermas chama atenção exatamente
para este ponto importante da social-democracia europeia, um ponto que, para ele,
deve ser levado em conta quando se pensa na atual situação sociopolítica de nossas
sociedades e nos desafios lançados pelo capitalismo financeiro, bem como pela he-
gemonia neoconservadora calcada na proposta de políticas de austeridade. De fato,
a época de ouro da social-democracia europeia, marcada pela ênfase no Estado de
bem-estar social, nos direitos sociais de cidadania e na cidadania política amplia-
da, permite, no entender de Habermas, uma comparação assaz importante entre
neoliberalismo e social-democracia ao delimitar a própria posição teórico-política
da esquerda frente aos desafios e às soluções próprios à modernização ocidental, a
serem assumidos por essa mesma esquerda teórico-política:

Hoje em dia, o compromisso do Estado de bem-estar social, que


aderiu às estruturas das sociedades, forma o fundamento em rela-
ção ao qual qualquer política tem de partir (Habermas, 2005: 150,
o grifo é meu).

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Ora, ainda segundo Habermas, a diferença da social-democracia em relação ao neo-
liberalismo reside exatamente no fato de conferir centralidade à política democráti-
ca e às instituições público-políticas em sua correlação com a cidadania política am-
pliada, situação que destoa da posição neoliberal, caracterizada exatamente como
sendo marcada pela autorreferencialidade e despolitização do mercado concomi-
tantemente à tecnocracia em política. Com efeito, do êxito do projeto social-demo-
crata de Estado de bem-estar social

nutriu-se também a concepção de uma sociedade que atua politi-


camente sobre si mesma mediante a vontade e a consciência dos
cidadãos democraticamente unidos (Habermas, 2000: 83).

É neste contexto que a consolidação de uma nova cultura democrática, marcada


pela participação política direta e incisiva por parte dos cidadãos e pela afirma-
ção das instituições público-políticas e de um modelo de política e de Estado fortes
como base da constituição e da evolução social, representa e origina uma profícua
praxis política que permite o enquadramento do processo de modernização oci-
dental, tal como ele é levado a efeito hoje pela crescente hegemonia conservadora,
politizando-o (contrariamente à despolitização desse mesmo processo por parte do
neoliberalismo redivivo).

Considerações finais:
uma auspiciosa perspectiva para a política democrática

Esta tendência geral que delineei ao longo destas páginas, de uma afirmação por
um número cada vez maior de pessoas da política democrática e do Estado de
bem-estar social enquanto instituições centrais para o processo de evolução social,
é importante para pensar-se o rumo da política democrática contemporânea e, em
particular, uma perspectiva teórico-política para a esquerda, até mesmo para pen-
sar-se uma alternativa à crise socioeconômica contemporânea, tanto na esfera das
democracias quanto em termos de realidade global. Com efeito, as vozes das ruas
são cada vez mais incisivas no sentido de afirmarem a política democrática como
elemento basilar para a resolução dos problemas sociais, tanto em termos de con-
trole (mas também de fomento planejado) da economia quanto no que diz respeito
à realização efetiva de políticas sociais de caráter integrador e inclusivo, de forma
a proteger as classes sociais dependentes do mercado de trabalho da ameaça de
marginalização, de exploração e de pauperização permanentes, determinadas pela
instabilidade do processo de acumulação capitalista atual, sistema capitalista que
se tornou global e que elevou a instabilidade social, política e econômica para a
esfera global.

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Hoje, a globalização econômica imbricou de maneira profunda dois problemas gra-
ves de nossa realidade social, a saber, a desvalorização do trabalho e a desestrutu-
ração das instituições públicas. No primeiro caso, conforme desenvolvido acima, a
ênfase nos mercados de trabalho da Ásia e mesmo da América Latina, por parte dos
capitais transnacionais, implica em um severo golpe às organizações trabalhistas
em sua luta pela valorização do trabalho e pela domesticação social do capitalismo
mundial, na medida em que aqueles capitais enfatizam exatamente um modelo eco-
nômico-político de exploração do trabalho que possui poucos freios e compensa-
ções – o modelo de trabalho hegemônico, neste início de século XXI, é o dos baixos
salários, jornadas laborais extenuantes e parcos direitos trabalhistas e que nega até
mesmo a força política e o poder de barganha das organizações trabalhistas. No
segundo caso, a ênfase naqueles mercados de trabalho, correlatamente à mobilida-
de internacional dos capitais transnacionais, leva à impossibilidade de se controlar
de maneira consistente, desde as instituições públicas sediadas no Estado-nação,
os fluxos de capital (fundamentais para a promoção dos direitos sociais e do ple-
no emprego), que, ao contrário, acabam determinando os ajustes políticos desse
mesmo Estado-nação, em particular a desnacionalização da economia, que leva di-
retamente à sua desindustrialização. Conjugado a isso, a paulatina prevalência do
capital especulativo em relação ao capital produtivo também reforça a destruição
da possibilidade de crescimento das economias reais, levando à progressiva desin-
dustrialização de muitas economias nacionais por meio da ênfase na especulação
e na prática rentista, contribuindo ainda mais para a consolidação do desemprego
estrutural, para a desestruturação das instituições públicas e para o crescimento
da marginalização e da pauperização das classes sociais dependentes do merca-
do de trabalho. Assim, em consequência, as instituições públicas são submetidas a
um processo de desestruturação avassalador, em suas capacidades interventoras e
compensatórias.

Apostarei as minhas fichas, a partir destes diagnósticos genéricos (que, de todo


modo, encontram respaldo em vasta literatura nas ciências sociais – aqui citada),
nos grupos sociais e nas forças políticas que, na minha compreensão, contrapõem-
-se às políticas de austeridade como forma de resolução da crise socioeconômica
atual. Estes, conforme acredito, já vivenciaram, ao longo das décadas de 1980 e
1990, tanto a hegemonia das posições neoliberais como seus impactos sociais, po-
líticos, culturais e econômicos em nossas sociedades, de modo que, ao perceberem
o fracasso do neoliberalismo, também puderam aprender com aquela situação. São
esses grupos que, hoje, defendem com unhas e dentes uma política forte, um Es-
tado interventor e compensatório e direitos sociais de cidadania, a partir de uma
contraposição às forças teórico-políticas neoconservadoras e de uma suspeição ge-
neralizada tanto ao neoliberalismo quanto ao modelo de capitalismo globalizado

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atualmente em voga. Esses grupos entendem que o conflito entre capital e traba-
lho, na política e na economia, não cessa e, no caso da atual crise socioeconômica,
acirrou-se, devido à globalização econômica. Por isso, para eles, não políticas de
austeridade, conforme querem os conservadores, mas um modelo de política e de
Estado fortes, diretivos em relação à evolução social, interventores e compensató-
rios, podem garantir a resolução desta crise socioeconômica com base na afirma-
ção e na promoção do trabalho, permitindo a domesticação – ainda que sempre
instável – das economias capitalistas, primeiramente em âmbito de cada nação e,
depois, como passo necessário, do atual modelo de globalização econômica. A nova
cultura democrática gestada pelos grupos sociais críticos do neoliberalismo, assim,
reafirma e reforça as instituições políticas e a atividade política enquanto elemento
diretivo da evolução social, como a forma por excelência de se orientar a esfera
econômica com base em argumentos normativos e interesses generalizáveis. Na
medida em que cresce o número de indivíduos e movimentos sociais que defendem
esse modelo de política forte, interventora e compensatória, transforma-se a cultu-
ra democrática cotidiana, que passa a substituir a meritocracia e o laissez-faire, base
da programática teórico-política conservadora, pela política, pelo Estado e pelos
direitos sociais de cidadania como bases da evolução de nossas sociedades e mais
além. Politicamente, já não se pode mais fugir destes três pontos, que se tornaram
fundamentais para a estruturação das instituições políticas democráticas e, de um
modo ainda mais impressionante, para a hegemonia dos partidos políticos (incluin-
do os partidos políticos conservadores): política forte, Estado de bem-estar social e
direitos sociais de cidadania.

Ora, o crescimento de iniciativas cidadãs, de grupos culturais e de movimentos so-


ciais contrapostos ao neoliberalismo permitiu a consolidação de uma nova cultura
democrática, que é marcada exatamente, como venho dizendo, pela valorização de
um modelo de Estado e de política fortes, diretivos em relação à evolução social,
interventores e compensatórios, pela afirmação da política democrática, realizada
no concerto entre partidos políticos e movimentos sociais, como o centro e o cerne
da evolução social, pela realização universalizada dos direitos sociais de cidadania
e pela colocação das instituições públicas como a base da integração social (e não
mais o livre mercado nem a meritocracia pura e simplesmente). Essa nova cultura
democrática permite uma resposta consistente à afirmação neoliberal da inexistên-
cia de movimentos sociais ampliados e mesmo de uma mentalidade sociocultural
homogênea que pudessem sustentar macrossujeitos da evolução social com força
política para, enquanto corpo coletivo, realizarem transformações abrangentes nas
várias dimensões estruturais da sociedade e mesmo mais além. Hoje, esses grupos
afirmadores da política, do Estado e das instituições públicas já são hegemônicos,
consolidando essa nova cultura democrática que se contrapõe diretamente às posi-

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ções conservadoras em sua defesa do laissez-faire, da meritocracia e de um Estado
guarda-noturno, contrapondo-se também à crescente globalização econômica dos
capitais transnacionais anglo-americanos. Nossas democracias foram inundadas por
estes movimentos e é por isso que assistimos a uma crescente hegemonia de parti-
dos políticos de esquerda comprometidos com a afirmação de um modelo de políti-
ca e de Estado fortes, que centralizam e orientam a evolução social. Essa esquerda,
calcada nessa nova cultura democrática e apoiada nessas iniciativas cidadãs, grupos
culturais e movimentos sociais, pode enfrentar com coragem e consistência as for-
ças neoconservadoras, estabelecendo também, conforme sua orientação clássica,
um projeto teórico-político de alcance internacional (na interação com forças teó-
rico-políticas e movimentos sociais de outros países) que enfrente a descontrolada
globalização econômica atual e que ofereça um projeto de futuro para nossas socie-
dades e para o mundo como um todo.

Ora, o neoconservadorismo atual, fundamentado na defesa de políticas de austeri-


dade como forma de resolução da atual crise socioeconômica, precisa ser enfrenta-
do em seu cerne teórico-político, a saber, a defesa da autorreferencialidade da esfera
econômica em relação ao âmbito normativo próprio da sociedade civil e ao âmbito
político próprio ao Estado e às instituições públicas. No conservadorismo, por con-
seguinte, a economia possui lógica imanente, interna, autorreferencial, e somente
pode ser dinamizada de modo legítimo desde dentro, por suas elites econômicas e
seus técnicos – a economia como monopólio dos donos do capital e dos economis-
tas. Aqui, a economia está não apenas desligada do social, senão que também é tor-
nada independente dele. Por isso, as políticas de austeridade atacam não a dinâmica
interna da economia (já que não se pode interferir desde fora na economia, que é
autorreferencial), mas sim as próprias instituições públicas e as condições de repro-
dução da força de trabalho. Com isso, o capitalismo perde sua vinculação social e,
por outro lado, subsome a reprodução do entorno social e natural aos seus imperati-
vos, recusando qualquer equacionamento político-institucional do próprio processo
de autovalorização e de acumulação do capital, mantido ideologicamente encoberto
por conta dessa defesa intransigente da autorreferencialidade econômica enquanto
argumento central das políticas de austeridade, aceita até mesmo por muitas posi-
ções políticas de esquerda como o elemento básico da política econômica.

É contra essa defesa ferrenha da autorreferencialidade do sistema econômico capi-


talista, conforme significado pelas políticas de austeridade neoconservadoras, que
as forças políticas de esquerda, em conjunção com essa nova cultura democráti-
ca afirmadora e defensora das instituições públicas, podem centrar sua atividade
teórico-política. Afinal, a atual crise socioeconômica acirra no seio das sociedades
ocidentais feroz luta entre capital e trabalho que Habermas, por exemplo, erronea-

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mente julgou silenciada ou mitigada pelo modelo do Estado de bem-estar social,
quando, na verdade, analisando em perspectiva internacional ou mesmo para além
do contexto da Europa ocidental, essa mesma luta sempre esteve evidente e intensa
(na própria Europa ocidental), como o pormenoriza Thomas Piketty, ao mostrar que
desde a década de 1980 a desigualdade entre capital e trabalho e a desigualdade
na posse do capital cresceram vertiginosamente, de modo que o décimo por cento
mais rico de cada país passou a monopolizar em torno de 65% da riqueza nacional,
contra no máximo 5% da metade pobre da população, além de, no mesmo diapa-
são, a contribuição do trabalho para a riqueza nacional ter diminuído sensivelmente
diante da concentração do capital em poucas mãos. Ora, é evidente, neste contexto,
que a desigualdade de riqueza influi diretamente do tipo de estrutura sociopolítica,
cultural e econômica hegemônicas, bem como no modo como elas realizam a es-
tratificação social ao longo do tempo. O que Piketty (2014) esqueceu de dizer, em
O capital no século XXI, é exatamente que a manutenção e até o acirramento da
desigualdade entre capital e trabalho e na divisão do capital é consequência de lutas
sociopolíticas de classe cujo resultado é representado por tais desigualdades extre-
mas. Essa desigualdade não é um ponto de partida ou uma constatação que pode
ser feita sem que se possa estudar também as lutas de classe em torno à definição
das estruturas sociais – do mercado capitalista e do Estado em particular.

A conclusão de Piketty: o capital é sempre muito concentrado. E o que fazer, en-


tão? Note-se que o enfrentamento dessa questão, acirrada diante da atual crise
socioeconômica, traz à tona não apenas um sensível fracasso do capitalismo en-
quanto sistema-mundo capaz de garantir justiça, liberdade, igualdade, democracia,
promoção do meio ambiente etc., mas também a óbvia constatação de que as lutas
de classe dinamizam o horizonte sociopolítico hodierno, em nossas sociedades e
mais além, tendo de ser afirmadas como base do tipo hegemônico de estrutura
sociopolítica, cultural e econômica que se consolida ou que deve ser consolidada
como condição para a realização daqueles ideais. Certamente não é mais um atraso
às teorias políticas – mormente às teorias políticas de esquerda – perceberem no
reconhecimento e na afirmação das lutas de classe tanto o móbil da evolução social,
da transformação das estruturas sociais ao longo do tempo, quanto o futuro do tipo
hegemônico de resposta à crise socioeconômica que afeta as nossas sociedades e a
realidade global deste século XXI. As lutas sociopolíticas de classe mostraram mais
uma vez sua atualidade e, como o estou dizendo, são a questão-chave para pen-
sarmos uma resposta consistente à incessante teimosia neoconservadora em re-
solver tal crise por meio da promoção do capital e do enquadramento do trabalho.

E essas lutas de classe contam com condições sociopolíticas e normativo-culturais


muito favoráveis, hodiernamente. A mais importante delas consiste na consolidação

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dessa nova cultura democrática que é ferreamente crítica das políticas de austeri-
dade em particular e das posições neoliberais de um modo mais geral. Essa nova
cultura democrática, consolidada e afirmada por diferentes movimentos sociais,
grupos culturais e iniciativas cidadãs, centra-se na defesa de um modelo de política
e de Estado fortes, de instituições públicas vinculadas e atuantes socialmente, bem
como de um conjunto ampliado de direitos sociais, em uma clara tomada de partido
pelo trabalho em relação ao capital. Essas forças sociopolíticas estão conscientes da
permanente luta entre capital e trabalho, estão conscientes das lutas de classe em
torno à definição das estruturas sociopolíticas, culturais e econômicas, e não estão
dispostas a abdicar desse modelo de política e de Estado fortes que centralizam e
orientam o processo de evolução social. Trata-se de um novo patamar político-cul-
tural para nossas sociedades, que permite uma consistente ação política de esquer-
da, e a afirmação de seu projeto teórico-político de socialismo ou de democracia
radical (ainda que isso signifique, em um primeiro momento, fortalecimento das
instituições públicas, afirmação de um modelo de política e de Estado diretivos em
relação aos mercados e mesmo em relação à evolução social).

E esse novo patamar possibilitado pela consolidação dessa nova cultura democráti-
ca, crítica do neoliberalismo e defensora desse modelo de política e de Estado for-
tes, possibilita, por fim, uma contraposição aos discursos que, desde fins da década
de 1980, com a crise e o esfacelamento da União Soviética, apontaram para uma
crise da esquerda de um modo geral, que estaria sem um projeto teórico-político
e sem sujeitos políticos ampliados que poderiam realizar transformações estrutu-
rais e abrangentes em termos de sociedade. Com efeito, esses mesmos discursos
chamavam a atenção para o permanente pessimismo da esquerda, agora sem pro-
jeto teórico, sem propostas alternativas ao próprio capitalismo então hegemônico,
bem como sem macrossujeitos da evolução social. Como o estou dizendo, a nova
cultura democrática constitui um bloco homogêneo de movimentos sociais, de gru-
pos culturais e de iniciativas cidadãs que defendem de maneira efetiva um modelo
de política e de Estado fortes, que centralizam, que canalizam a evolução social. E
esses grupos assumem o projeto da esquerda, que, de todo modo, não se confun-
de necessariamente com a esquerda partidária, senão que apresenta esse caráter
amplo de ser dinamizado desde forças políticas as mais diversas, para além dos
partidos políticos. A nova cultura democrática, enfim, na medida em que afirma a
centralidade de um modelo de política e de Estado fortes como solução à crise so-
cioeconômica atual, na medida em que é crítica do neoliberalismo, traz novamente
para o centro da arena política a esquerda e seu projeto, constituindo-se em uma
espécie de macrossujeito da evolução social que, se, por um lado, é multifacetado,
por outro, responde como bloco político à luta de classes atual, à contraposição
entre política e livre mercado, entre capital e trabalho, entre instituições públicas

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e laissez-faire. Ao responder como bloco político a esta luta, reafirma um projeto
teórico-político de esquerda e torna novamente atual e intensa a luta de classes
que dinamiza a crise socioeconômica hodierna, permitindo uma consistente ação
política que ataca diretamente o capital em sua tendência a subsumir na dinâmica
de sua autovalorização o trabalho e a reprodução social. Esta nova cultura democrá-
tica consolidou uma ideia que é central para a esquerda, o fundamento de toda sua
posição teórico-política, a saber: de que tudo é política. Como diz Thomas Piketty,

[...] a democracia real e a justiça social exigem instituições específi-


cas, que não são apenas as do mercado e que também não podem
ser reduzidas às instituições parlamentares e democráticas formais
(Piketty, 2014: 413).

Da mesma forma, agora segundo Habermas, a prossecução reflexiva do projeto so-


cial-democrata de Estado de bem-estar social, em sua correlação entre um modelo
de política e de Estado fortes, cidadania política ampliada e direitos sociais univer-
salizados, torna-se, para a esquerda teórico-política e para essa nova cultura demo-
crática contemporânea de que venho falando, “[...] o único buraco de agulha por
meio do qual tudo há que passar” (Habermas, 2005: 156). Eu acrescentaria aos dois
posicionamentos: uma democracia efetiva e justa necessita da radicalização dessa
cultura democrática politizada e atuante, que enquadra e determina configurações
institucionais, projetos políticos e da atuação dos partidos políticos. Sem essa cul-
tura democrática politizada e explosiva, a condução tecnocrática da evolução social
e sua definição sistêmica e autorreferencial das instituições político-econômicas,
bases da atuação conservadora, darão a tônica sem qualquer contraposição impor-
tante, mantendo hegemonia inconteste.

Abstract: I will defend the argument that since the last decade of XX century it is possible to per-
ceive a reaffirmation of a strong, compensatory, and regulatory State, which is directive concern-
ing social evolution. In this sense, politics turns to foreground, both in terms of affirmation of the
public institutions and referring to citizen participation, as the core to the performing of transfor-
mations in all sides of the society. Against conservative tendencies in the politics, assumed again
with the current social and economic crisis, and after a long time of influence of the neoliberal
theory advocating for politics of austerity, we can perceive a consolidation of a democratic culture
or collective mentality that affirms this directive State concerning social evolution, realizing politics
of social integration and regulating economic dynamic. It is a very important reality to our democ-
racies, because it conducts to the reinforcement of a public culture of defense of the social rights,
to the affirmation of a politics that, opposed to neoliberalism, assumes the vocation of directive
center of society, space of claims for justice and effective exercise of citizenship, by an always grow-
ing number of individuals, cultural groups and social movements. It is an optimistic perspective to
reinforce of the political democracy that puts the State as the basic institution to the constitution
of a contemporary democratic society.
Keywords: politics, State, society, economics, contemporaneity.

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