Fetch #4
Fetch #4
Fetch #4
Fazbear do Terror #2
Fetch
P
uro Osso nem sempre estava lúcido.
Na verdade, mentir não é algo muito legal. O fato era que Puro
Osso raramente estava lúcido. Ficar lúcido fazia seus dentes doerem.
Seus dentes doíam quando seus olhos e ouvidos doíam. Quando estava lúcido,
o mundo tinha esse jeito de agredir seus olhos e ouvidos. Era tudo muito
intenso, demais. Puro Osso preferia ficar de boa em seu próprio mundo, onde
as vozes em sua cabeça governavam, mesmo quando sabia que eram loucura.
Os dentes de Puro Osso doeram naquela noite.
Nas sombras, recostado na lateral de ferro de um galpão junto aos
trilhos do trem, Puro Osso puxou sua coberta de acrílico cor-de-rosa para
mais junto do corpo. Embora a coberta estivesse úmida e não fornecesse nada
de calor, ela o confortava. Além disso, como não estava só suja — estava tão
imunda que era preciso descascar a coberta com a unha para encontrar algum
vestígio do rosa, — ela o camuflava. Camuflagem era bom. Desde que
abandonara sua vida, ele vinha fazendo tudo o que podia para ser invisível: se
curvava de forma que seus 1,72 de altura ficassem bem menores; comia só o
suficiente para manter a pele presa aos ossos; cobria seus cabelos castanhos
longos e oleosos com um chapéu de aba cinza; escondia seu rosto embaixo de
uma barba emaranhada. E desistiu de seu nome pelo apelido que lhe fora
dado. Tornou seu objetivo passar despercebido.
Especialmente agora, ele não queria ser visto. De jeito nenhum. Nem
pensar.
Não queria ser visto porque não gostava das pancadas ruidosas. E não
gostava do que estava vendo. Estava vendo coisas sinistras, coisas que faziam
seus dentes doerem.
Pelos últimos cinco minutos, o olhar de Puro Osso estivera voltado para
os trilhos do trem. Ou melhor, — a verdade era importante, — não para os
trilhos em si, mas para o que estava nos trilhos. O que estava nos trilhos o
estava perturbando fortemente.
Nos trilhos, iluminado pelo brilho periférico da luz de um poste, uma
figura encapuzada estava mexendo numa série de objetos bizarros. A figura
estava ligeiramente arcada e se mexia num estranho movimento mecânico que
lembrava Puro Osso de como as pessoas andavam após desembarcarem de um
barco. Puro Osso estava apenas a uns cinco metros do sujeito encapuzado,
mas podia ver claramente tanto a figura quanto o que estava coletando.
A pessoa parecia alheia a Puro Osso, como se não o tivesse notado, e
Puro Osso pretendia que continuasse assim. Os dentes de Puro Osso queriam
bater, seu corpo queria tremer, mas ele se forçou a permanecer totalmente
imóvel enquanto observava a figura misteriosa batendo em alguma coisa com
o que parecia um pé-de-cabra de trinta centímetros com um cabo amarelo
brilhante. O cabo amarelo ficava soltando peças de alguma coisa que Puro
Osso não conseguia identificar. Até então, ele o vira coletar um maxilar
articulado, uma fileira irregular do que pareciam dentes humanos cheios de
sangue, olhos humanos mutilados, vários parafusos, o conector de um
computador e pedaços de metal com tufos de pelo verde escuro.
Agora, ele continuou observando enquanto a figura pegava um e então
dois objetos verdes alongados. O que era aquilo?
Como se respondendo à pergunta interna de Puro Osso, a figura ergueu
as peças. Mesmo na luz parca, Puro Osso imediatamente conseguiu discernir
o que eram. Em sua vida anterior, ele costumava ser professor e, mesmo com
a velocidade com que seus neurônios vinham se deteriorando, ainda tinha
muitos à disposição.
Orelhas de coelho verdes.
Ah, seus dentes.
A figura voltou a mexer nos trilhos, até que tirou deles um grande pé de
coelho de metal.
Puro Osso teve que admitir a si mesmo que estava ligeiramente curioso
com relação ao que a figura estava fazendo. Seu senso de autopreservação, no
entanto, era mais forte. Então continuou ali sentado, os dentes doendo, tão
inerte quanto os pedaços de detrito que a figura estava coletando, até que a
figura pôs as peças escavadas numa sacola e desapareceu em meio à
escuridão.