Febre de Origem Indeterminada: Relato de Um Diagnóstico Inesperado
Febre de Origem Indeterminada: Relato de Um Diagnóstico Inesperado
Febre de Origem Indeterminada: Relato de Um Diagnóstico Inesperado
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456 relatosdecaso
Febre de origem
indeterminada: relato de um
diagnóstico inesperado
Cristiana Santos Antunes1, Mariana Costa Figueiredo1, Filipe Fernandes Bacalhau1, Francisco Ferreira Silva1, Maria Esmeralda Covas
Amador1, Luís Miguel Duque2
RESUMO
Introdução: A síndroma de febre de origem indeterminada (FOI) clássica é definida pela presença de temperatura corporal supe-
rior a 38,3 °C com duração superior a três semanas, sem diagnóstico definido, apesar de investigação apropriada durante três con-
sultas em ambulatório ou três dias em internamento hospitalar. Implica a realização de uma avaliação criteriosa pelo médico de
família, da qual deve resultar uma marcha diagnóstica adequada. Entre as múltiplas etiologias possíveis, a infeção pelo vírus de
imunodeficiência humana (VIH) é uma entidade a ter em conta, nomeadamente na presença de fatores de risco para a mesma.
Descrição do Caso: Mulher de 47 anos, raça caucasiana, com antecedentes pessoais de neoplasia do colo do útero submetida
a conização há quatro anos. É fumadora, sem hábitos alcoólicos ou toxicofílicos conhecidos. Divorciada, integra uma família
monoparental desde 2005, sem vida sexual ativa há cerca de oito anos. Recorre a consulta de doença aguda por quadro de mal-
-estar geral, cansaço, febre de predomínio vespertino e tosse seca com várias semanas de evolução. Após as primeiras etapas
de investigação, a etiologia mantinha-se indeterminada, apesar da recorrência dos sintomas. Perante o quadro clínico de sín-
droma de FOI foi realizada investigação etiológica mais alargada, da qual se destaca serologia positiva para VIH-1. A utente foi
referenciada para consulta de infeciologia e medicada com antirretrovirais e terapêutica dirigida a pneumocistose, uma doen-
ça definidora de síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA). Este diagnóstico teve um impacto profundo a nível pessoal,
familiar e social, com necessidade de seguimento em consulta de psicologia e psiquiatria.
Comentário: A investigação etiológica da síndroma de FOI neste caso clínico conduziu a um diagnóstico inesperado de SIDA,
o que sensibilizou a equipa clínica para a importância do rastreio atempado de VIH, para a correta abordagem da síndroma de
FOI e para a importância do acompanhamento longitudinal pelo médico de família, de acordo com o diagnóstico estabelecido.
Palavras-chave: Infeção VIH; Síndroma de imunodeficiência adquirida; Febre de origem indeterminada; Pneumocistose.
denominadas infeções oportunistas, nomeadamente Relativamente aos seus antecedentes pessoais sa-
Mycobacterium tuberculosis, Pneumocystis jiroveci, Ci- lienta-se o diagnóstico de neoplasia do colo do útero,
tomegalovírus (CMV), entre outras.4,6-9 submetida a conização em 2016 com cura, atualmente
Segundo os dados epidemiológicos de 2019 da Or- sem seguimento em consulta de ginecologia e com ci-
ganização Mundial da Saúde (OMS), o VIH afeta cerca tologia cervico-vaginal atualizada, com resultado ne-
de 38 milhões de pessoas em todo o mundo, com uma gativo para lesão intra-epitelial ou malignidade (NILM).
incidência de 1,7 milhões no referido ano.9 No entan- Dos antecedentes obstétricos destaca-se um índice
to, apesar de um aumento da prevalência da doença a obstétrico 2-0-0-2 (dois partos de termo eutócicos em
nível mundial, tem-se verificado uma diminuição da in- 1998 e 2003). Sem medicação habitual. É fumadora de
cidência e da mortalidade devido ao diagnóstico mais 20 cigarros por dia desde há 15 anos (15 unidades maço-
precoce e à eficácia das atuais terapêuticas. A SIDA cor- -ano), sem hábitos alcoólicos ou toxicofílicos. O plano
responde ao estádio mais avançado de infeção por VIH, de vacinação está atualizado. Não apresenta antece-
caracterizado por CD4+ < 200/uL e/ou doença defini- dentes familiares de relevo.
dora de SIDA.8-9 A utente recorreu à consulta de doença aguda na sua
Segundo as normas de orientação clínica da Direção- unidade de saúde familiar (USF), em janeiro de 2020,
-Geral da Saúde (DGS), o rastreio laboratorial de VIH por um quadro com cerca de uma semana de evolução,
está recomendado para todos os indivíduos com idade caracterizado por mal-estar geral, cansaço, temperatu-
compreendida entre os 18 e 64 anos (pelo menos uma ra corporal vespertina subfebril (temperatura máxima
vez na vida) ou em certos grupos de risco, nomeada- 37,5 °C), tosse seca e, por vezes, dispneia associada. Não
mente indivíduos a quem foi diagnosticada uma infe- apresentava alterações de relevo ao exame objetivo. Op-
ção sexualmente transmissível (IST).10 tou-se por iniciar terapêutica sintomática e antibiote-
A escolha deste caso clínico foi motivada pelo facto rapia com azitromicina 500mg (um comprimido por
de a investigação da síndroma de FOI ter conduzido a dia durante três dias), assumindo como hipótese diag-
um diagnóstico inesperado de uma patologia atual- nóstica uma pneumonia atípica. Foi ainda requisitada
mente cada vez mais rara (SIDA). O médico de família uma radiografia torácica.
apresenta um papel essencial na prevenção primária e Reagendou consulta após duas semanas, referindo
na prevenção secundária de IST (designadamente atra- melhoria da dispneia, mas mantendo queixas de
vés da realização de rastreios, quando indicado). Além mal-estar geral, cansaço, tosse, picos febris vespertinos
disso, perante um quadro clínico de FOI é importante (temperatura máxima de 38,5 °C) e hipersudorese de
manter um elevado grau de suspeição clínica e realizar predomínio noturno. Apresentava ainda queixas de
uma abordagem diagnóstica sistemática, orientada anorexia e perda ponderal de 4kg desde a última con-
pela história clínica e pelo exame objetivo e dirigida às sulta. Negava hemoptises e contexto epidemiológico
possíveis causas, das mais para as menos prováveis. conhecido de relevo. A radiografia torácica não apre-
Este relato de caso pretende, portanto, sensibilizar para sentava alterações. Atendendo à clínica, e colocando
a importância do rastreio de VIH, para a correta abor- como principal hipótese de diagnóstico o diagnóstico
dagem diagnóstica da síndroma de FOI e para a im- de tuberculose pulmonar, optou-se por pedir avaliação
portância do acompanhamento longitudinal, de acor- analítica (com hemograma e marcadores inflamató-
do com o diagnóstico estabelecido. rios) e tomografia computorizada (TC) pulmonar, man-
tendo medidas gerais e de controlo sintomático.
DESCRIÇÃO DO CASO Após três semanas agendou nova consulta de reava-
Mulher de 47 anos, de raça caucasiana, residente na liação para mostrar o resultado dos exames pedidos, re-
zona de Setúbal. Tem como habilitações literárias o 12º ferindo encontrar-se assintomática há uma semana. Ao
ano de escolaridade e trabalha como administrativa. exame objetivo apresentava aspeto emagrecido, sem
Divorciada há 15 anos, tem dois filhos de 22 e 18 anos, outras alterações. Dos MCDT pedidos na consulta
integrando uma família monoparental. Sem vida se- anterior destacava-se, na avaliação analítica, anemia
xual ativa nos últimos oito anos. normocítica normocrómica, leucopenia, elevação da
por outro lado, se realizem exames complementares cia, dada a maior prevalência de cancro relacionado
invasivos e/ou desnecessários. com HPV em pessoas seropositivas, associado aos há-
A utente cumpriu critérios de síndroma de FOI na bitos tabágicos conhecidos.11-12 Segundo a Norma de
terceira consulta, por ter apresentado febre com cerca Orientação Clínica n.º 058/2011, da DGS, o diagnósti-
de quatro semanas de evolução, de etiologia desco- co de IST constitui critério para rastreio de infeção por
nhecida após investigação etiológica inconclusiva diri- VIH.10
gida às causas mais prováveis (pneumonia atípica e tu- O facto de não ter sido realizado o rastreio de infe-
berculose pulmonar). No entanto, atendendo à melho- ção por VIH aquando do diagnóstico de infeção por
ria clínica, optou-se nesse momento por não prosseguir HPV conduziu a que o diagnóstico de VIH permane-
a investigação etiológica, assumindo-se patologia au- cesse desconhecido até ao estádio de SIDA, altura em
tolimitada, facto que terá contribuído para um atraso que o desenvolvimento de infeção oportunística a
no diagnóstico. Perante o reinício dos sintomas foi ne- Pneumocystis jirovecii motivou investigação etiológica
cessário reavaliar a utente, revendo cuidadosamente a e, deste modo, o estabelecimento do diagnóstico. O de-
anamnese e o exame objetivo, alargando o leque de hi- senvolvimento de doença definidora de SIDA, mesmo
póteses diagnósticas e consequente investigação. que cada vez mais raro, associa-se a um estado de imu-
A investigação diagnóstica inicial da FOI implica a nodeficiência grave, com múltiplas complicações as-
realização de uma anamnese completa, exame objeti- sociadas. Deste modo, é fundamental desenvolver pro-
vo detalhado, avaliação analítica e imagiológica seleti- tocolos de atuação, tanto ao nível dos cuidados de saú-
vas. Não existe uma abordagem consensual relativa- de primários como secundários, que incluam a pes-
mente aos MCDT recomendados. Numa primeira fase, quisa de outras IST perante utentes com resultado
os MCDT a realizar devem incluir: hemograma com- positivo para infeção por HPV no rastreio de cancro do
pleto, creatinina, fosfatase alcalina (FA), aspartato ami- colo do útero.
notransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT), Atualmente as serologias do VIH são um exame rá-
VS, proteína-C reativa (PCR), LDH, creatinina cinase pido e pouco dispendioso, com testes rápidos de quar-
(CK), ferritina, anticorpos antinucleares (ANA), fator ta geração bastante sensíveis e específicos,13 embora
reumatoide (FR), eletroforese de proteínas, análise su- não estejam disponíveis em muitas das unidades de
mária de urina, hemoculturas, radiografia do tórax e saúde do país.
ecografia abdominal.1-5,7 As serologias para VIH devem Após o estabelecimento do diagnóstico, o médico de
também ser incluídas na abordagem inicial em doen- família tem o papel de gestor dos cuidados prestados,
tes com fatores de risco para a infeção (como era o caso recorrendo ao apoio dos cuidados de saúde secundá-
da utente deste caso clínico).5 rios sempre que indicado. No presente caso clínico, a
Os restantes MCDT deverão ser orientados pelas po- rápida articulação com o serviço de infeciologia do hos-
tenciais pistas diagnósticas e os resultados das avalia- pital de referência, através da discussão do caso clíni-
ções laboratorial e imagiológica iniciais. Estes poderão co por contacto telefónico e agendamento de consulta
incluir as restantes serologias (hepatites B e C e VIH, hospitalar para o dia seguinte, permitiu assegurar um
caso esta não tenha sido incluída na avaliação inicial), seguimento célere e adequado em contexto hospitalar.
ecocardiograma, teste de tuberculina, TC toraco-abdo- Atendendo ao impacto do diagnóstico nesta doen-
mino-pélvica, tomografia por emissão de positrões te, não só a nível pessoal como também a nível familiar
(PET), biópsia de adenopatias, biópsia medular, biópsia e social, foi fundamental manter uma abordagem mul-
hepática, entre outros.1-5,7 tidisciplinar, articulando não apenas com o serviço de
No caso clínico descrito, apesar de ter realizado ras- infeciologia, mas também com o serviço de psiquiatria
treio para VIH com resultado negativo durante as gra- e psicologia, sendo esta uma das características do mé-
videzes, a doente apresentava como fator de risco para dico de família, que tem um papel privilegiado tam-
esta infeção o diagnóstico de infeção pelo vírus do pa- bém no seguimento longitudinal de cada utente, numa
piloma humano (HPV). A neoplasia do colo do útero perspetiva holística e centrada na pessoa e no seu con-
pode corresponder a um indício desta imunodeficiên- texto familiar, social e comunitário.
ABSTRACT
Keywords: HIV infection; Acquired immunodeficiency syndrome; Fever of unknown origin; Pneumocystosis.