GARCIA-SEVERINO, Fulvio. Genealogia Dos Corpos e A Crítica Da Razão Eucórpica PDF
GARCIA-SEVERINO, Fulvio. Genealogia Dos Corpos e A Crítica Da Razão Eucórpica PDF
GARCIA-SEVERINO, Fulvio. Genealogia Dos Corpos e A Crítica Da Razão Eucórpica PDF
São Carlos – SP
Março/2022
Garcia-Severino, Fulvio Cesar
https://www.brasildefatopb.com.br/2021/07/04/cronicas-de-um-ato-contra-o-genocida
São Carlos – SP
Março/2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Folha de Aprovação
Defesa de Tese de Doutorado do candidato Fulvio Cesar Garcia Severino, realizada em 24/03/2022.
Comissão Julgadora:
O Relatório de Defesa assinado pelos membros da Comissão Julgadora encontra-se arquivado junto ao Programa de
Pós-Graduação em Educação.
Dedico esta tese à memória das duas mulheres cujas
IANSANIDADES deram possibilidade e sustentação às minhas:
minha avó, Maura (1922-1992), e minha mãe, Vera (1947-
2020).
Que as deusas e os orixás mantenham suas energias,
espíritos, vontades e consciências circulando entre nós.
No genocídio de mais de 640 mil vidas brasileiras nunca foram contabilizadas as
outras milhares de vidas, que, como minha mãe, mesmo sem covid, morreram
por falta de assistência intensiva devida à superlotação dos hospitais e UTIs.
A situação é imensamente mais trágica, porque parte do genocídio teve
mais do que anuência, teve cumplicidade dolosa de instituições dignas de
ojeriza, que deveriam prezar pela saúde das pessoas, como planos de
saúde e o próprio Conselho Federal de Medicina.
A concepção de Razão Eucórpica já havia sido pensada antes mesmo da
pandemia de covid-19. Todo o enfrentamento macabro a que vimos
assistimos e que vivenciamos só faz reforçar a tese que defendo aqui.
Que este pequeno texto-denúncia possa fazer parte de genealogias no
futuro, que ele se junte a tantos outros de outras centenas de teses e
dissertações produzidas e defendidas durante um período sombrio e
lúgubre de nossa história, cuja produção científica já é em si um
acontecimento revolucionário em meio aos escombros dos investimentos,
da ciência e das universidades públicas.
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, e mais importante, devo agradecer a todos e todas que acompanharam parcial ou
totalmente o processo da pesquisa, com incentivos, com conversas, com desabafos, com leituras
de tarô e de mapas astrológicos, os refúgios na praia e na casa de amigos e amigas; agradeço as
leituras e interlocuções do texto em processo, as sugestões de leituras; agradeço também pelos
cafés, pelos vinhos, pelas cervejas, pelas comidas, pelos sexos bons e [por que não?] pelos não
tão bons assim. Tudo isso colaborou com porções de iansanidade.
Da mesma forma, agradeço àqueles e àquelas que não fizeram parte desta etapa, que saíram de
cena antes, foram imprescindivelmente prescindíveis. C’est la vie !
Gostaria de listar todos os amigos e todas as amigas que colaboraram de uma forma ou de outra
neste percurso que é a produção de uma tese de doutorado, mas certamente não precisam ter os
nomes aqui, eles e elas estão no meu coração, na minha mente, nas minhas memórias – há
um pouco de cada um e de cada uma nos parágrafos, nas linhas e nas ideias ao longo destas
páginas. Agradeço também à Leô, minha companheira felina, pelas horas deitada ao meu lado,
pelo carinho e pela compreensão que só os gatos sabem ter.
Agradeço à minha terapeuta – sem ela tudo teria sido bem mais difícil.
Agradeço a presença, às vezes física, às vezes virtual, do meu irmão, da minha cunhada, do
meu pai e do meu sobrinho, que chegou a este mundo justamente quando minha mãe o deixou.
Agradeço às professoras e ao professor que se dispuseram a fazer parte desta pesquisa, sem
vocês esta tese não existiria.
Agradeço aos professores e professoras membros da banca examinadora pela disposição,
atenção e consideração.
Agradeço à Lara Padilha pelo profissionalismo na revisão textual, juntamente com sua amizade
e paciência.
Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Educação pela oportunidade.
Agradeço à minha orientadora pela confiança e por tudo o que pude aprender com ela.
Agradeço à Capes pelo financiamento da pesquisa na forma de bolsa.
E, finalmente, agradeço a mim mesmo por me aguentar 24 horas por dia, incessantemente, todos
estes anos... Sei que não foi fácil!
COUTINHO, L. (2020). in: Twitter, @laertecoutinho1;
publicação e acesso: 24/11/2020)
O [corpo] quase SEMPRE LACEIA
Genealogia dos corpos e a crítica da Razão Eucórpica
Esta pesquisa é resultado de um empreendimento arqueogenealógico sobre o corpo a
partir do discurso biomédico. Tratou-se mais do que produzir uma genealogia do
corpo, produziu-se uma genealogia dos corpos. Inicialmente tencionado
compreender que corpo era ensinado nas escolas, a pesquisa se voltou para o século
XVIII e XIX a fim de construir uma linha genealógica entre o corpo biomédico
Resumo
construído nesses séculos e o corpo biológico ensinado no século XXI. Entre esses
dois corpos (chamados por um mesmo nome, eucorpo) encontrou-se uma variedade
de outros corpos subsumidos e desaparecidos no discurso do corpo biomédico. O
eucorpo tornou-se o padrão de eficiência econômica e sexual para inteligibilidade
daqueles outros corpos por meio do assédio e do aniquilamento de elementos que
teriam potencialidade de compor a subjetividade: vontade, espírito, consciência,
desejo, sensibilidade. Não obstante, todos esses foram incorporados em uma
engrenagem mecânico-cibernética que menos atribui um superfuncionamento para a
“máquina corporal” do que controla e regula os corpos por meio desse
superfuncionamento. Esse modo de conceber o corpo (como instituição) condiciona
uma racionalidade, composta de discursos (enunciados e práticas), que impõe uma
semiologia para a inteligibilidade dos diversos corpos: denominei esse conjunto de
procedimentos Razão Eucórpica. Com efeito, os corpos são tornados recursos
utilizáveis, os oicorpos: somos todos oicorpos, estamos inseridos em uma engrenagem social
cuja eficiência econômica e sexual é demandada como superfuncionamento. Trata-se de uma
espécie de pacto social sub-reptício (pacto oicórpico), do qual alguns corpos não se encaixam
e, portanto, precisam ser destituídos do próprio corpo (os aneucorpos) – avaliados, vigiados e
punidos, preponderantemente, pelo sistema-dispositivo jurídico – e aqueles cujos corpos foram
tão utilizados e/ou tão reprimidos em suas subjetividades que se tornaram doentes (os
superoicorpos) – avaliados, vigiados e “tratados” pelo sistema-dispositivo médico. Eucorpo
(como corpo anátomo-metafísico produzido pela racionalidade eucórpica) e oicorpos (como
corpos anátomo-políticos) são tornados um por meio de uma sutura empírico-metafísica em que
os oicorpos tornam-se a imagem e semelhança do eucorpo (e não mais de Deus). O rompimento
dessa sutura como inteligibilidade requer iansanidade, que seria resultado da capacidade de
retirar a própria subjetividade (vontade, espírito, consciência, desejo, sensibilidade) das
profundezas da engrenagem mecânico-cibernética. Por isso, todo o sistema eucórpico produz
iansanoabjeção (evitação das iansanidades); com efeito, as iansanidades precisam ser
constantemente recalcadas, reprimidas e ressentidas para que a engrenagem eucórpica funcione,
sua principal estratégia é o fetiche eucórpico como a ilusão de se ter um eucorpo. Esta tese
apresenta o percurso genealógico que permitiu conceber toda a construção teórica que
proponho, denominada Razão Eucórpica.
PALAVRAS-CHAVE: Corpos; Discurso Biomédico; Genealogia; Iansanidade; Razão Eucórpica.
Genealogía de los cuerpos y la crítica de la Razón Eucuérpica
Esta investigación es el resultado de un emprendimiento arqueogenealógico sobre el
cuerpo desde el discurso biomédico. Más que producir una genealogía del cuerpo, se
produjo una genealogía de los cuerpos. Con la intención inicial de comprender qué
cuerpo se enseñaba en las escuelas, la investigación se ha dirigido a los siglos XVIII
y XIX para construir una línea genealógica entre el cuerpo biomédico construido en
esos siglos y el cuerpo biológico enseñado en el siglo XXI. Entre estos dos cuerpos
Resumen
cette période et le corps biologique enseigné au XXIe siècle. Entre ces deux corps
nommés de la même façon, eucorps) se trouvait une variété d'autres corps subsumés
et disparus dans le discours du corps biomédical. L'eucorps est devenu la norme
d'efficacité économique et sexuelle pour l'intelligibilité de ces autres corps par le
harcèlement et l'anéantissement des éléments qui auraient le potentiel de composer la
subjectivité : la volonté, l’esprit, la conscience, le désir, la sensibilité. Toutefois, tous
ces éléments ont été incorporés dans un engrenage mécano-cybernétique qui attribue
moins un surfonctionnement à la « machine corporelle » qu'il ne contrôle et régule les
corps à travers ce surfonctionnement. Cette façon de concevoir le corps (en tant
qu'institution) conditionne une rationalité, composée de discours (énoncés et
pratiques), qui impose une sémiologie pour l'intelligibilité des différents corps : j'ai
appelé cet ensemble de procédures la Raison Eucorpique. En effet, les corps sont
transformés en ressources utilisables, les oïcorps : nous sommes tous des oïcorps
insérés dans un engrenage social dont l'efficacité économique et sexuelle est
revendiquée comme sur-fonctionnante. C'est une sorte de pacte social subreptice (pacte
oïcorpique), dans lequel certains corps ne rentrent pas et, par conséquent, doivent être privés
de leur propre corps (les aneucorps) – évalués, surveillés et punis, principalement, par le
système-dispositif judiciaire – et ceux dont les corps ont été tellement utilisés et/ou tellement
refoulés dans leurs subjectivités qu'ils en sont devenus malades (les super-oïcorps) – évalués,
surveillés et « soignés » par le système-dispositif médical. L’eucorps (en tant que corps
anatomo-métaphysique produit par la rationalité eucorpique) et les oïcorps (en tant que corps
anatomo-politiques) sont unis par une suture empirique-métaphysique dans laquelle les oïcorps
deviennent l'image et la ressemblance de l'eucorps (et non plus de Dieu). La rupture de cette
suture comme intelligibilité requiert l'iansanité, qui serait le résultat de la capacité à sortir sa
propre subjectivité (la volonté, l’esprit, la conscience, le désir, la sensibilité) des profondeurs
de l'engrenage mécano-cybernétique. Ainsi, tout le système eucorpique produit
l'iansanoabjection (évitement des iansanités). En effet, les iansanités doivent être constamment
réprimées et pleines de ressentiment pour que l'équipement eucorpique fonctionne, sa stratégie
principale étant le fétiche eucorpique comme illusion d'avoir un eucorps. Cette thèse présente
le chemin généalogique qui m’a permis de concevoir toute la construction théorique que je
propose, appelée Raison Eucorpique.
MOTS-CLÉS: Discours Biomédical; Corps; Raison Eucorpique; Généalogie; Iansanité.
Genealogy of the bodies and the critique of the Eucorpical Reason
This research is the result of an archeogenealogical enterprise on the body from the
biomedical discourse. It has been more than producing a genealogy of the body, a
genealogy of the bodies has been produced. Though initially intended to understand
which body had been taught in schools, the research turned to the 18th and 19th
centuries to build a genealogical line between the biomedical body built in those
Abstract
centuries and the biological body taught in the 21st century. Between these two bodies
(called by the same name, eucorpus) was found a variety of other bodies subsumed
and disappeared in the discourse of the biomedical body. The eucorpus has become
the standard of economic and sexual efficiency for the intelligibility of those other
bodies by the harassment and annihilation of elements that would have the potential
to compose subjectivity: the will, the spirit, the conscience, the desire, the sensitivity.
Nevertheless, all these were incorporated into a mechanical-cybernetic gear that less
attributes a (super) functioning to the “body machine” than controls and regulates
bodies through this super functioning. This way of conceiving the body (as an
institution) conditions rationality, composed of discourses (statements and practices),
which imposes a semiology for the intelligibility of the various bodies: I have called
this set of procedures Eucorpical Reason. In effect, bodies are turned into usable
resources, the oicorpora: we are all oicorpora, we are inserted in a social gear whose
economic and sexual efficiency is demanded as over-functioning. It is a kind of surreptitious
social pact (oicorpical pact), in which some bodies do not fit and, therefore, they need to be
deprived of their own body (the aneucorpora) – evaluated, monitored, and punished, especially,
by the legal device-system – and those whose bodies were so used and/or so repressed in their
subjectivities that they became sick (the superoicorpora) – evaluated, monitored and “treated”
by the medical device-system. The eucorpus (as the anatomic-metaphysical body produced by
eucorpical rationality) and oicorpora (as an anatomic-political body) have been made one
through an empirical-metaphysical suture in which the oicorpora has become the image and
likeness of the eucorpus (and no more of God). The rupture of this suture as intelligibility
requires iansanity, which would be the result of the ability to remove one's subjectivity (the
will, the spirit, the conscience, the desire, the sensitivity) from the depths of the mechanical-
cybernetic gear. Therefore, the whole eucorpical system produces iansanoabjection (avoidance
of the iansanities); in fact, iansanities need to be constantly repressed and resentful for the
eucorpic gear to function, its main strategy being the eucorpic fetish as the illusion of having
an eucorpus. This dissertation presents the genealogical path that allowed us to conceive all the
theoretical construction that I propose, called Eucorpical Reason.
KEY-WORDS: Biomedical Discourses; Bodies; Eucorpical Reason; Genealogy; Iansanities.
LISTA DE FIGURAS
REFERÊNCIAS 271
APÊNDICE 283
Caracterização dos 31 professores e professoras que responderam ao questionário online. 283
Formulário online: questões respondidas pelos professores e professoras 285
foro íntimo
11,7 x 19,5 cm
Técnicas: maneira negra e ponta seca, duas cores
Impressa em papel Hannemühle
Álbum Cordel paulistano, de Wilson R. da Silva
Obra artesanal, sem data
[SEÇÃO 1]
Autogenealogia da pesquisa
2 Autogenealogia da pesquisa
1.1 APRESENTAÇÃO
(1)
Lembro-me de uma aula sobre Genética que eu ministrava em um dos anos do Ensino
Médio numa escola pública, em 2007. O conteúdo eram as disjunções cromossômicas que
ocorriam durante a meiose. A expressão “disjunções cromossômicas” parece inofensiva à
primeira leitura, mas ela vem associada a (e muitas vezes como sinônimo de) outra trazida pelos
livros didáticos (e livros de Genética clássicos do Ensino Superior): “aberrações
cromossômicas”.
Durante o processo de meiose, especialmente na metáfase II, todos os cromossomos
duplicados se dispõem no equador da célula para, na fase subsequente (anáfase II), serem
separados, implicando a produção de gametas “perfeitos”. Ocorre que, em alguns casos, alguns
daqueles cromossomos não se separam na anáfase II, acarretando que uma das células recebe
dois cromossomos e outra não recebe nenhum. A partir daí, caso uma dessas células seja
fecundada, as características do ser formado vão totalmente contra o esperado para um ser
humano “normal”.
A questão mais importante dessa descrição científica, talvez, passasse despercebida
por mim se em uma turma que eu lecionava não houvesse uma aluna com a chamada “Síndrome
4 Autogenealogia da pesquisa
de Turner”1. Ela, de posse de um livro didático, com o qual acompanhava minhas aulas,
questionou: Professor, eu sou uma aberração? Obviamente, muitos estudantes já haviam
percebido que ela era diferente dos demais e, naquele momento, obteriam a explicação e
descrição científica que a definiria como aberração, como abjeto. Como professor, o que eu
poderia, deveria e teria condições de fazer nessa situação? As aulas de Biologia também
deveriam tratar de diversas outras questões, como por exemplo a cor, as sexualidades, enfim,
as inúmeras diferenças. Hoje, eu me questiono: “Que discursos os professores carregam e
apresentam aos alunos para tratar dessas questões?”; “A partir de quais formações discursivas
esses discursos são reproduzidos e ressignificados?”; “Quais as consequências?”. Mas essas
questões demoraram a surgir.
No curso de graduação em Fisioterapia, entrei em contato com a obra de Foucault e a
pergunta da aluna voltou a me incomodar. Já no final do curso, em 2010, durante um estágio
profissional na Neuropediatria, quando eu atendia um menino de cerca de 10 anos diagnosticado
com mielomeningocele2, ele fez uma pergunta que novamente me desestruturou: Tio, quando
eu vou ficar bom e poder ser igual aos outros meninos da minha escola? A essa pergunta, eu
nunca pude responder, mas passei a entender que as perguntas poderiam ser outras, que nunca
foram feitas, pelo menos para mim. Por que não foram feitas? Em que lógica e em que discursos
as perguntas que são feitas se pautam? As perguntas feitas a mim desestabilizariam outro
professor, outro profissional? Desestabilizariam pelos mesmos motivos? Nos casos
rememorados, mesmo as perguntas que desestabilizariam os discursos correntes estão
carregadas da mesma lógica: a diferença como aberração (no primeiro exemplo), a igualdade
como parâmetro para a inferioridade (no segundo exemplo).
No final de 2011, fui convidado a trabalhar novamente na coordenação administrativa
e pedagógica do Núcleo de Extensão UFSCar Escola (onde eu havia trabalhado por uns seis
anos algum tempo antes), no curso pré-vestibular, cujo foco do trabalho está na formação
1
A síndrome de Turner é resultante de uma alteração cromossômica que afeta unicamente mulheres. Em vez
dos 46 cromossomos (44 autossômicos e dois sexuais, 44XX), a pessoa tem apenas 45; um dos cromossomos
sexuais é ausente. Trata-se de uma aneuploidia do tipo 2n-1, ou 44XØ. São características fenotípicas das
portadoras: esterilidade, baixa estatura, o pescoço é alado com extensão entre o pescoço e ombros, a
inteligência é quase normal, com comprometimento de algumas funções cognitivas. Cerca de um a cada cinco
mil nascimentos femininos apresenta a síndrome. (cf. GRIFFITHS et al. Introdução à Genética. 9 ed. Rio de
Janeiro: Guanabara Koogan, 2008). Os termos usados nesta nota são a expressão do autor do livro.
2
A mielomeningocele é uma malformação do tubo neural resultante de um defeito no fechamento da sua porção
caudal (final); cerca de 80% dos casos ocorrem na região lombar. A malformação caracteriza-se por herniação
da porção inferior da medula espinal e das meninges sobrejacentes. A protrusão (hérnia) consiste em um saco
meníngeo distendido preenchido por líquido cerebrospinal (ou líquor, ou cerebrorraquidiano). Há total
comprometimento sensitivo-motor abaixo da região de protrusão. (Cf. AFIFI, A.K.; BERGAMAN, R.A.
Neuroanatomia funcional. 2. ed. São Paulo: Editora Rocca, 2008).
Autogenealogia da pesquisa 5
(2)
A realidade é um tempo efêmero, dura, em termos discursivos, menos do que o tempo
de uma palavra. Enquanto dizemos uma palavra, outras já ditas tornam-se passado e só podem
ser compreendidas doravante por meio da memória. Um parágrafo, uma história contada, um
acontecimento, tudo é passado. A memória é o que nos liga do efêmero momento que representa
o presente ao que aconteceu, tudo isso nos dá a ideia da realidade. O futuro, nessa lógica, seria
apenas uma ilusão discursivamente inventada pela memória presente do passado. Nesse sentido,
não existiria um presente, nem um passado, tampouco um futuro, mas a soma de tudo isso
permitir-nos-ia conceber a realidade e, talvez, fazer algumas previsões. A memória seria a
interpretação de um discurso que expressamos enquanto dizemos, se dissermos.
A autoestima, por vezes, nos prega peças – eu acreditava, no auge dos meus 30 anos,
ser um ótimo professor. Permito-me o exercício, talvez quase ascético, de uma (auto)crítica
antes de iniciar. Este trabalho (ou eu) pretende uma análise discursiva... Lembrei-me de que há
cerca de 15 anos também me servi de objeto de pesquisa para um trabalho de mestrado. Minhas
aulas foram também gravadas, transcritas e analisadas. Uma amiga que fizera o trabalho, depois
de pronto, pediu que eu não o lesse. Havia muitas críticas e me dissera que após finalizado já
não concordava com várias delas e que eu poderia me sentir extremamente mal. Nunca li a
dissertação dela. Até agora.
Antes de iniciar as análises desta tese, me dispus a ler o trabalho dela e ver como me
sentiria na condição, não de pesquisador, mas de pesquisado. Por sorte, o afastamento temporal
daquele que eu era ajudou-me a ler com certo distanciamento pessoal. Havia verdades sobre
mim, não verdades em si, mas verdades. Ver-se discursivamente é um ato que acontece
paralelamente no presente e no passado. Olho-me e enquanto executo essa ação ela já é passado,
Autogenealogia da pesquisa 7
já se transforma enquanto executo, além disso, trago3 o passado, em memória, para o presente,
ambos acontecem simultaneamente. Mas não é um passado, é minha interpretação em um
momento presente específico de um passado também específico. Acontecem conjuntamente
uma aproximação e um afastamento. Este afastamento me permitiu olhar para as concepções
que eu tinha, completamente diferentes das que tenho hoje; a aproximação me permite olhar
para essas concepções e fazer a crítica que me proponho neste trabalho. Isso me permite
questionar sobre o que seria necessário às pessoas (e a mim) para responder às perguntas que
fiz acima. Olho para aquele que eu era e o vejo dotado de discursos científicos apresentando
verdades como se seus assujeitamentos pudessem ser evitados e neutralizados – mas eles
estavam todos lá e faziam com que as verdades do discurso científico fluíssem como verdades.
Provavelmente, no futuro, olharei para este trabalho e farei outras críticas; outros farão
críticas – isso é ciência. Uma conclusão óbvia é que possivelmente obstáculos epistemológicos
não nos acometem apenas quando pesquisamos, mas também quando pensamos, quando
ensinamos e quando experenciamos o mundo, enfim, quando vivemos.
O afastamento que o “método científico” impõe entre o pesquisador ou a pesquisadora
e o objeto, não obstante permitir enxergar coisas afastadas da emoção e próximas da
racionalidade, também produz outras racionalidades que disputam as emocionalidades. Esta
pesquisa parte do pressuposto de que os discursos podem revelar esse embate e é isso que
pretendo fazer aparecer a partir do empreendimento genealógico.
(3)
O que denomino, nesta tese, Razão Eucórpica está ligado à forma de apreender o corpo
(especialmente o humano, mas não apenas esse) como uma realidade material biológica e a
todos os efeitos provocados por essa racionalidade. Além de racionalidade, também é um
dispositivo, pois entendo que o dispositivo tem como efeito a configuração de uma forma de
pensamento que, embora seja razão, é menos racionalidade do que emocionalidade – mas essa
separação é puramente uma lógica aristotélica requentada, aqui separada como forma
pedagógica de contrapor coisas que não são contrapostas.
A nossa concepção do nosso próprio corpo está fortemente atrelada à concepção
biológica. A compreensão e a interpretação das nossas experiências corporais demandam um
conjunto de termos que estão atrelados ao vocabulário biológico (mais especificamente ao
3
Permito-me uma ambiguidade em “trago”, tanto verbo “trazer” como “tragar”, que produz uma ação de mão-
dupla, se existisse uma física vetorial na linguagem, ela seria assim representada: ↔.
8 Autogenealogia da pesquisa
médico), o qual permite inteligibilidade, e é a partir desse vocabulário que a realidade corpórea
é compartilhada.
A dor, por exemplo, embora uma condição subjetiva, pode ser reduzida a explicações
objetivadas, descritas como um conjunto de eventos fisiológicos, que, de certa forma, unifica
todas as experiências dolorosas. Esse pequeno exemplo ilustra o embate entre o discurso de
uma pessoa sobre sua experiência dolorosa e o discurso científico sobre o mesmo
acontecimento, a dor. O corpo, portanto, embora investigado, descrito e esmiuçado como
realidade, é nada mais do que uma categoria de análise das Ciências Biológicas, que, embora
tenha se transformado de categoria em objeto a partir do século XIX, não perdeu seu poder
como grade de inteligibilidade que categoriza, hierarquiza, compara, mede e atribui
significados, como nos séculos XVII e XVIII. Para Foucault (2007), a grande ruptura para o
pensamento moderno, no século XIX, foi a apropriação dos signos como objeto, em vez de
categoria, e, doravante, em uma linha histórica do tempo: a gramática como estruturação dos
enunciados torna-se filologia; a história natural, biologia; e abre-se caminho para o pensamento
evolutivo.
suas vivências são subalternizados pela comparação dentro de pares antitéticos como bom/ruim,
belo/feio, normal/anormal (SILVÉRIO et al., 2014).
Este estudo se insere no conjunto de problemas constituídos a partir das diversas
desigualdades e distinções produzidas, reproduzidas e reafirmadas na instituição escolar,
sobretudo em suas práticas discursivas. Como diversas autoras e autores queer defendem: as
questões de desigualdade e opressão não serão superadas simplesmente incluindo diversos
temas nos currículos, que já se encontram superpovoados de conteúdos e identidades, e sim
provocando a discussão, desestabilizando discursos (sobretudo os pretensamente científicos),
mudando as perguntas, os questionamentos (tão carregados da mesma lógica opressora).
Louro (2014) afirma que a escola sempre exerceu uma função distintiva dos sujeitos:
separa aqueles que têm acesso dos que não têm acesso, depois, por meio de diversos
dispositivos internos, separa melhores de piores, meninos de meninas, menores de maiores,
ricos de pobres, e produz desigualdades. Com o tempo, tais distinções tornam-se tão
naturalizadas que passam a não ser mais notadas:
Observamos, então, que eles [os meninos] parecem “precisar” de mais espaço
que elas [as meninas], parecem preferir “naturalmente” as atividades ao ar
livre. Registramos a tendência nos meninos de “invadir” os espaços das
meninas, de interromper suas brincadeiras. [...] Talvez também pareça
“natural” que algumas crianças possam usufruir de tempo livre, enquanto que
outras tenham de trabalhar após o horário escolar; que algumas devam
“poupar”, enquanto que outras tenham o direito de “matar” o tempo (LOURO,
2014, p. 64).
Sobre a precariedade, embora Butler (2015a) considere que todas as vidas sejam
precárias,
10 Autogenealogia da pesquisa
o esquema interpretativo tácito que distingue as vidas dignas das não dignas
de consideração funciona fundamentalmente através dos sentidos,
diferenciando os gritos que podemos ouvir dos que não podemos, as visões
que conseguimos enxergar das que não conseguimos [...]. Para reconhecermos
a precariedade de outra vida, os sentidos precisam estar operantes, o que
significa que deve ser travada uma luta contra as forças que procuram regular
a comoção de formas diferenciadas (BUTLER, 2015a, p. 83).
4
Os discursos do Ocidente na formação e representação do imaginário sobre o Oriente: “a cultura europeia
ganhou força e identidade ao se contrastar com o Oriente, visto como uma espécie de eu substituto e até
subterrâneo” (p. 30); “o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário
e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas,
portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma a outra” (p. 31).
5
Principalmente sobre as questões de gênero.
6
Lutas em relação à questão do feminismo negro, do racismo e, por exemplo, da construção do mito do homem
negro como violento, perigoso e estuprador.
7
Principalmente sobre as questões da sexualidade.
8
Por exemplo, relativo à questão das transexualidades.
9
Bilge (2009), a partir da leitura de Davis, K. (2008), destaca que uma das abordagens da interseccionalidade
está focada na questão do poder, inspirada por Foucault, porque, a partir dessa concepção, as identidades são
compreendidas como múltiplas e fluidas, além de permitir a desconstrução de categorias normalizadoras e
homogeneizantes. Ao mesmo tempo em que Davis, K. (2008) acrescenta os estudos pós-coloniais e a teoria
queer como importantes perspectivas pós-estruturalistas para o estudo da interseccionalidade (questionando,
Autogenealogia da pesquisa 11
por exemplo, como a raça é “generificada” e como o gênero é “racializado”), Bilge (2009) também destaca a
importância de mais pesquisas e aprofundamento teórico nessas perspectivas.
10
Donna Haraway sempre usa “deus” com letra minúscula.
12 Autogenealogia da pesquisa
condição secundária; mas o “corpo” invadiu as Ciências Humanas de forma ressentida, uma
vez que a Medicina e as Ciências Naturais já haviam produzido uma grande quantidade de
discursos – nas palavras de Foucault (2014a; p. 137), “a disciplina [tornou-se] uma anatomia
política do detalhe”. O trabalho de Foucault, especialmente em Vigiar e punir, segundo
Courtine (2013), traz o corpo como objeto pleno de direito, observado, a partir de então, como
objeto de uma tecnologia política.
O corpo anátomo-metafísico cartesiano dos discursos médicos e biológicos tornou-se
técnico-político (FOUCAULT, 2014a), no entanto, aquele primeiro corpo ainda habita os livros
didáticos de Biologia. Mas o que dá materialidade a esse corpo metafísico, se é que ele possui
de fato materialidade? Contrasta-se, assim, o corpo que habita os livros didáticos com os corpos
dos sujeitos que frequentam as escolas, corpos esses disciplinados, docilizados e tornados úteis,
provavelmente, tendo como referência um corpo inexistente, metafísico, embora anatomizado
e fisiologizado.
De acordo com a análise discursiva proposta por Altmann (2001), os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 2000) trazem discursos normalizadores acerca do
corpo e da sexualidade, sob a perspectiva biológica, atrelada a funções hormonais. Mais de uma
década depois, Bazzul e Sykes (2011) e Bazzul (2014) também encontraram essa mesma
lógica11 em materiais didáticos12 de Biologia usados em escolas de Ontário (Canadá). Os PCNs
(por exemplo, BRASIL, 2016) também propõem um incitamento ao discurso sobre o sexo nas
escolas, por meio de um dispositivo semelhante ao da confissão, do século XVII, descrito por
Foucault (2014b).
Segundo Altman (2001), esse aumento discursivo propiciaria aumento do controle e
da possibilidade de intervenção sobre as ações dos alunos, vinculando, ao mesmo tempo, o foco
do corpo e da sexualidade ao discurso epidemiológico, do autocuidado, higienista e voltado a
práticas que previnam infecções sexualmente transmissíveis e gravidez. Embora Bazzul e Sykes
(2011) e Bazzul (2014) empreendam uma análise discursiva epistemologicamente diferente13
11
O autor destaca 11 trechos do livro Biology 12, McGraw-Hill, Ryerson. However, as you will see human
reproduction does have a cyclical component, which is controlled by hormones e Oxytocin may also arouse
feelings of strong affection that contribute to the creation of adult pair bonds. In the reproductive process,
oxytocin may be a factor in male erection and female orgasm (BAZZUL; SYKES, 2011, p. 275).
12
Nelson Biology 11 College Preparation (2014); Nelson Biology 12 (2003); McGraw-Hill Ryerson Biology 11
(2010); McGraw-Hill Ryerson Biology 12 (2011) – (BAZZUL, 2014. p. 431).
13
Os autores empreenderam a Análise Crítica do Discurso (ACD), que, embora com referenciais foucaultianos,
seguem a metodologia proposta por Fairclough (cf. FAIRCLOUGH, 2012). Na ACD, não se considera o aspecto
genealógico no empreendimento da análise, mas se faz a “análise das relações dialéticas entre semioses
(inclusive a língua) e outros elementos das práticas sociais” (FAIRCLOUGH, 2012; p. 309). A “crítica” proposta
em Duggan (1995) está pautada nas possibilidades de questionamentos que o pensamento queer propõe à
14 Autogenealogia da pesquisa
da proposta nesta pesquisa, o que se destaca é a maneira como o corpo é visto – normatizado,
de forma metafísica e com um viés biológico determinista, sobretudo em livros didáticos.
Foucault sempre questionou em suas obras que para entendermos quem somos
precisamos entender de que sujeitos a sociedade precisa, ou, voltando ao corpo, de que corpo a
sociedade atual precisa (quais suas demandas e que corpo as atenderia). Trabalhos como os de
Bazzul e Sykes (2011), Bazzul (2014) e Altman (2001) permitem compreender esses
questionamentos e que tipo de sujeito – e, portanto, que corpos – a sociedade atual demanda. O
corpo anátomo-metafísico estaria mais bem associado a esse corpo produzido discursivamente
e que atende àquelas demandas. O corpo anátomo-político seria aquele corpo sujeitado às
tecnologias políticas: corpos dóceis, que podem ser (e são) submetidos, utilizados,
transformados e aperfeiçoados. A essas tecnologias, Foucault (2014a) dá o nome de “poder
disciplinar” e considera que atuam em diversas instituições: nas prisões, nas escolas, nos
hospitais, nas fábricas. Nas palavras de Machado (2016), o objetivo dessas tecnologias de poder
sobre os indivíduos é
Duggan (1995) relata a necessidade de estudos e pesquisas que façam a crítica sobre
as “verdades” obtidas em estudos empíricos para que não sejam encaradas como sendo sobre
“guetos” (ghettoized populations), que dessa forma manter-se-iam subalternizadas e sujeitadas
aos discursos dominantes e hegemônicos. A proposta deste estudo, sob o viés genealógico, é a
de expor e confrontar as “verdades” do corpo anátomo-metafísico com a dos corpos anátomo-
políticos.
Ao corpo, portanto, associam-se, basicamente, três questionamentos frutos desta
pesquisa: os discursos, a materialidade e o reconhecimento.
Recorrendo a Foucault (2013b), concluímos que o corpo é o contrário de uma utopia,
é um fragmento do espaço que com o próprio corpo se faz corpo, não se pode mover sem ele,
não se pode ir a nenhum lugar sem ele, não se pode deixá-lo para ir a outro lugar, “meu corpo
“realidade”. Nos termos de Bazzul e Sykes (2011) e Bazzul (2014) o pensamento queer aparece como
possibilidade dialética, enquanto na proposta desta pesquisa, ele aparece como questionamento crítico dentro
da perspectiva genealógica.
Autogenealogia da pesquisa 15
é o lugar sem recurso ao qual estou condenado” (FOUCAULT, 2013b; p. 8). A alma seria a
invenção que torna o corpo utópico, também efeito e instrumento de uma anatomia política: a
prisão do corpo (FOUCAULT, 2014a).
Segundo Foucault (2014b), a produção dos discursos é controlada, selecionada,
organizada e redistribuída de modo a manipular seus poderes e perigos, dominar seus
acontecimentos, esquivar sua pesada e temível materialidade. Um dos procedimentos para isso
é a interdição: nem tudo pode ser dito em qualquer lugar, em qualquer circunstância ou por
qualquer pessoa; certas pessoas têm o direito privilegiado de dizer e são autorizadas para tanto.
Os discursos que fundamentam o conteúdo sobre o objeto corpo, dentro do sistema de ensino,
são reservados a quem de direito possuiria a autoridade do saber científico – biólogos e
biólogas, docentes da disciplina de Biologia. Por exemplo, Foucault (2014b) considera que o
sexo, durante todo o século XIX, se inscreveu em dois registros de saber: uma biologia da
reprodução pautada continuamente em normatividades científicas e uma medicina do sexo.
Em relação à materialidade dos corpos, Butler (2002) os concebe como construção; no
entanto, tal construção também requereria uma significação. Para a filósofa, a materialidade
que constrói os corpos seria resultado de relações de poder e de restrições normativas
atravessadas por sistemas de inteligibilidade culturalmente violentos, e ela questiona: que
corpos importam? As normas corporais que um sujeito assume e às quais se submete estão em
disputa com as condições de abjeção dentro de uma matriz excludente, que, por ser exterior ao
sujeito, torna-se-lhe interior de forma fundacional. Embora essa relação discutida por Butler
(2002) se refira ao gênero e ao sexo, podemos interrogar como opera esse processo no sentido
de compreender o corpo como uma totalidade anátomo-política, ou técnico-política.
No sentido foucaultiano, o reconhecimento de si é limitado por um conjunto de
verdades que decide quais formas serão reconhecíveis e quais não serão: o conjunto de verdades
fornece um quadro para a cena de reconhecimento; nossas decisões não são tomadas
invariavelmente pelas normas, embora sirvam como ponto de referência. O questionamento de
si envolveria colocar em risco a possibilidade de reconhecimento por parte dos outros, porque
questionar as normas implicaria não ter reconhecimento como sujeito. Butler (2015a) afirma
que, para que haja reconhecimento, as normas devem preexistir, no entanto, considera que
certas falhas na prática do reconhecimento rompem com a normatividade e exigem a instituição
de novas normas: “o horizonte normativo no qual eu vejo o outro e, com efeito, no qual o outro
me vê, me escuta, me conhece e me reconhece também é alvo de uma ruptura crítica” (BUTLER,
2015a; p. 37). Quando o sujeito põe em questão o regime de verdades que estabelece as suas é
obrigado a adotar uma posição crítica a esse regime.
16 Autogenealogia da pesquisa
14
“La prisión llega a estar sólo en el campo de las relaciones de poder, pero más específicamente sólo llega a
existir en la medida en que se la cargue o se la sature con tales relaciones de poder, en la medida en que esa
saturación sea formativa de su mismo ser. Aquí el cuerpo no es una materialidad independiente investida por
las relaciones de poder exteriores a él, sino que es aquello para lo cual son coextensivas la materialización y
la investidura. [...] Pero esa aparición [a materialidade] es precisamente el momento en el cual más se disimula
y resulta más insidiosamente efectivo el régimen del poder/discurso” (BUTLER, 2002; p. 64). Judith Butler
escreveu, obviamente, em inglês, mas apenas tive acesso à versão/tradução em espanhol deste livro.
Autogenealogia da pesquisa 17
sem paredes, sem marcas, que tampouco é um labirinto. Não se busca um objeto, buscam-se as
práticas que tornaram o objeto um objeto; mas as práticas não podem se tornar outro objeto,
precisam ser apenas práticas; também não se constrói uma nova “história”, porque sem a
“história” sequer existiria o objeto. É preciso que ao sabermos o que sabemos não saibamos o
que sabemos: a genealogia é um dessaber. “Até agora, tudo que deu um colorido à existência
ainda não tem história” (NIETZSCHE, 2016, §7; p. 68) e bem provavelmente nunca terá.
Foucault (2008b) constrói a ideia de genealogia como a determinação de um regime
de verdade ou de veridicção: o modo como o que se diz de tal coisa torna-se verdade. A
genealogia é, portanto, uma ação política. É a verdade que se busca na genealogia, mas não a
verdade absoluta, ou a verdade como coisa em si, e sim o que tornou verdade aquela verdade
do objeto; trata-se de um regime do saber (régime du savoir) e de uma vontade de verdade por
meio de seus discursos – que tampouco são apenas o dito, são também o não dito, mas sobretudo
as práticas que tornam o dito e o não dito condições de possibilidade (ou de verdade) e de
impossibilidade. O discurso é acontecimento e reverberação de verdades, que, ao mesmo tempo,
conduzem a ordem do discurso (FOUCAULT, 2014c).
A genealogia é um trabalho de profundidade exterior e não interior; é extrair o exterior
daquilo que foi transformado como profundo internamente. É extrair o que não está visível,
porque tampouco está oculto. Digo da genealogia o que diz Deleuze (2013; p. 113), referindo-
se à filosofia e citando Valéry: “é dermatologia geral”, porque “o mais profundo [do objeto] é
a pele [a superfície]” –, mas ainda assim, estaremos apenas olhando o objeto, como se ele fosse
apenas uma estrutura material. Se um observador de dentro do objeto analisa esse objeto, quanto
mais exterior atingir o olhar, maior a profundidade. Nessa profundidade exterior, encontrar-se-
á a história, mas ao chegar nesse novo “objeto”, novamente é necessário enxergar sua
profundidade cada mais exterior: é o percurso de desobjetivar o objeto para entender como foi
objetivado. O objeto só existe porque foi objetivado. A história seria, ela própria, como diz Paul
Veyne (1998), uma genealogia nietzschiana – e “a genealogia [é] um dar à luz a prática ou o
discurso” (p. 271).
Nesta pesquisa, ao material empírico (transcrição das aulas acompanhadas e
entrevistas em grupo focal) fizeram-se perguntas; essas perguntas direcionaram o corpus da
análise genealógica, que, posteriormente, retornou ao material empírico para sua análise –
porque, segundo Foucault, não se pode partir dos universais como se fossem universais. Ele
questiona: “Qual é, por conseguinte, a história que podemos fazer [dos] diferentes
acontecimentos, [das] diferentes práticas que, aparentemente, se pautam por este suposto algo
18 Autogenealogia da pesquisa
que é o corpo?”15 (FOUCAULT, 2008b, p. 5, grifo do autor). Podemos substituir corpo por
fisiologia, ou natureza, ou doença, ou saúde. Todos esses “objetos” também estão interligados
por meio de práticas; a genealogia apresentada aqui nesta tese buscou compreender não apenas
as práticas que produziram esses objetos, mas como estão intrincados. Corpo é só uma palavra
que nada tem a ver com a coisa que pretende representar. Corpos, embora pareça o plural de
corpo, não o é; trata-se de outro objeto (no singular mesmo) que também nada tem a ver com o
objeto que a palavra tencionaria representar. Corpo e corpos têm relação quiasmática, só
existem quando se encontram, tenderiam a esvanecer ao se separarem – mas é nesse encontro
que se tornam o ancoradouro que permite os discursos um do outro.
Mas se os objetos parecem determinar nossa conduta, é primeiramente nossa prática
que determina esses objetos (VEYNE, 1998, p. 249). O corpo – como esse “objeto natural” –
somente se torna objeto por meio de determinadas práticas que o objetivam. A genealogia busca
encontrar essas práticas, que são, elas próprias, objetivadoras. Paul Veyne adverte: “o que é
feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos
quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito” (p. 257 – destaques
no original).
O discurso não é um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras sintáticas,
mas um jogo estratégico e polêmico, resultado de práticas sociais que engendram domínios de
saber capazes de fazer aparecer tanto os objetos, os conceitos e as técnicas, quanto os sujeitos
(como objetos) e os sujeitos do conhecimento (pesquisadores e pesquisadoras). Em outras
palavras, não há um sujeito em si como uma origem (Ursprung), mas uma invenção (Erfindung)
(FOUCAULT, 2002; NIETZSCHE, 1998; 2016). Do contrário, seria ontologia, que pressupõe a
existência real das coisas. De modo, também, que não se trata de se oporem realidade e
aparência, pois uma vez que a primeira é a objetivação das práticas, a segunda seria a própria
realidade.
Compreender e analisar um discurso genealogicamente extrapola a sua expressão
meramente linguística. O conjunto das coisas ditas determina o arquivo por meio do qual o
trabalho arqueológico se pauta. No entanto, o discurso está atrelado ao jogo das relações de
poder que determina todo o sistema de discursividade e suas condições de possibilidade e
impossibilidade; o dito é interrogado no nível da sua existência (FOUCAULT, 2013a). O dito do
discurso é só o acabamento, a impressão final de uma construção, o que talvez se veja mais
15
Em vez de corpo, o original traz a palavra loucura.
Autogenealogia da pesquisa 19
explicitamente, mas é preciso demolir, mantendo intacta a construção, de modo que não é a
universalidade, mas a raridade que interessa à genealogia, soma-se a ela a exterioridade do
próprio discurso, não como fundamento transcendental, e, sobretudo, substitui-se a busca das
origens pela análise dos acúmulos.
Como procedimento arqueológico, a análise não pretende definir os discursos como
pensamentos, representações, imagens, temas, mas os próprios discursos como práticas que
obedecem a regras. Ao mesmo tempo, o empreendimento genealógico se opõe ao
desdobramento meta-histórico e à busca de uma origem (Ursprung), mas procura a
singularidade dos acontecimentos em toda sua diversidade, dispersão e acidentes (Erfindung)
(FOUCAULT, 2002; 2016a).
A genealogia é desvinculada do empirismo, do positivismo e do cientificismo, mas
pretende-se heurística. É a partir dela que os saberes sujeitados (ou dominados)16 podem surgir
como lutas e memórias brutais de combates, como acoplamento entre saberes eruditos e o saber
das pessoas, como ativação de saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados,
ingênuos, hierarquicamente inferiores (cf. FOUCAULT, 2016b). Foucault resume o projeto
arqueogenealógico da seguinte maneira: “Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise
da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim
descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem dessa discursividade” (FOUCAULT,
2016b; p. 270). Em outras palavras: “a arqueologia seria o método próprio da análise das
discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades
locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem” (FOUCAULT, 2005; p.
16), “é exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico
que a genealogia deve travar combate” (FOUCAULT, 2005; p. 14). A análise genealógica expõe
a lutas discursivas, por exemplo, em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e
meu irmão (FOUCAULT, 1991), não se trata de “dar voz” a Pierre Rivière, mas confrontar os
discursos médicos e jurídicos com os discursos sujeitados do assassino de modo que
16
Foucault usa o termo “saberes sujeitados” no curso Em defesa da sociedade e “saberes dominados” em
Genealogia e poder. Trata-se dos mesmos saberes: “uma série de saberes que tinham sido desqualificados
como não competentes ou insuficientemente elaborados [...] abaixo do nível requerido de conhecimento e
cientificidade” (FOUCAULT, 2016b; p. 266). Inclusive, nos dois textos, Foucault faz as mesmas perguntas: “que
sujeito falante, que sujeito da experiência ou de saber vocês querem menorizar...?” (p. 269).
20 Autogenealogia da pesquisa
17
“Nossa empreitada justifica-se apenas por sua eficácia heurística, por sua capacidade de fazer avançar a
compreensão dos fenômenos linguísticos [...] [e de] voltar as costas a um procedimento empirista”
(MAINGUENEAU, 2008a, p. 61 – grifos meus).
18
A FD, segundo Foucault (2013a, p. 47), pode ser resumidamente definida como “um certo número de
enunciados [com] semelhante sistema de dispersão se se puder estabelecer um conjunto semelhante [de
objetos]; se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em questão aí encontra seu lugar e sua lei de
aparecimento; se se puder mostrar que ele pode dar origem simultânea ou sucessivamente, a objetos que se
excluem, sem que ele próprio tenha de se modificar” (p. 54).
Autogenealogia da pesquisa 21
Os discursos [...] constituem não o único, mas o mais maciço dos materiais da
história. Nenhum deles pode ser manejado sem ser submetido ao duplo
questionário, crítico e genealógico, proposto por Foucault, visando marcar
suas condições de possibilidade e de produção, seus princípios de
regularidade, suas imposições e suas apropriações. A tarefa é inscrever [a
análise] no centro da crítica documental, que constitui a mais durável e a
menos contestada das características da história [...] cujo objeto é, finalmente,
as imposições e os meios que regulam as práticas discursivas da representação.
Por outro lado, pensar o trabalho histórico como um trabalho sobre a relação
entre representações e práticas (CHARTIER, 1987, p. 16-17 apud COURTINE,
1999; grifos meus).
19
Positivité heureux: Positividade feliz é relativo às séries de formação efetiva do discurso, ou seja, seu poder de
afirmação, de constituir domínios de objetos a partir dos quais pode-se afirmar ou negar proposições
verdadeiras ou falsas (Foucault, 2014c). A expressão é irônica, pois, depois de conceituar positividade,
n’Arqueologia, diz – defendendo-se da crítica de ser positivista – que, fazer um estudo arqueológico dos
discursos é ser um positivista, “pois bem, eu sou um positivista feliz” (p. 153). Positividade nada tem a ver
com positivismo.
20
Segundo Revel (2005), o conceito de acontecimento (événement) para Foucault determina toda a forma como
o discurso será analisado, sendo central. O discurso é uma série de acontecimentos em que se relaciona o
discurso com outros acontecimentos de outras naturezas (econômicos, políticos, sociais, institucionais) e é
assim que o discurso se situa automaticamente na dimensão histórica.
21
Seguindo a metodologia proposta por Maingueneau (2008a), que retoma A arqueologia do saber (FOUCAULT,
2103a).
22 Autogenealogia da pesquisa
1.3 METODOLOGIA
Neste item, pretendo, mais do que apresentar o método de pesquisa, também discutir
(o logos) desse método, pois entendo que, como um trabalho genealógico, ao mesmo tempo em
que meu discurso pretende revelar um embate, ele também, inevitavelmente, se torna parte do
embate.
escolhidas quatro escolas para a realização da primeira etapa e feitos os contatos com as escolas.
Inicialmente, quatro professoras e um professor aceitaram participar da pesquisa. Uma das
professoras desistiu de participar, restando então um grupo de quatro professores.
O critério para escolha das escolas foi formar um conjunto diferente de pessoas (entre
professores e estudantes). Três escolas são públicas e uma, particular. As escolas públicas têm
as seguintes características: uma delas está localizada no centro da cidade de São Carlos e é
considerada, por essa característica, uma escola cujo acesso é para estudantes com mais
condições materiais, embora, depois de ter feito essa primeira etapa, eu não concorde com essa
associação; nessa escola, as aulas foram acompanhadas no período noturno em salas de primeiro
e segundo anos do ensino médio (foi considerada a escola 1, E1). A segunda escola é de tempo
integral, localizada em um bairro relativamente afastado do centro. Esse formato de escola
supõe dedicação maior tanto de professores quanto de estudantes. Nessa escola, as aulas foram
acompanhadas tanto no período da manhã quanto no da tarde em salas de primeiro, segundo e
terceiro anos do Ensino Médio (considerada E2). A terceira escola se localiza em um subdistrito
de São Carlos, considerada pertencente à “zona rural”, cujo acesso é para estudantes daquela
região; nessa escola, as aulas foram acompanhadas no período matutino em salas de aula dos
segundos e terceiros anos do Ensino Médio (E3). A quarta escola é da rede particular de ensino,
localizada na região do novo centro da cidade de São Carlos e frequentada por estudantes das
classes mais altas; nessa escola, as aulas foram acompanhadas no período matutino em salas de
primeiros e segundos anos do Ensino Médio (E4).
1.3.2 Primeira etapa: o corpo por meio dos discursos científicos e sujeitados
O discurso científico está associado ao corpo anátomo-metafísico (o corpo sobre o qual
o discurso científico fala), enquanto os discursos sujeitados estão associados ao corpo anátomo-
político (é esse corpo anátomo-político que diz os discursos sobre o corpo anátomo-metafísico).
Uma vez que os discursos de professores (como qualquer outra pessoa que possui um corpo
anátomo-político) mesclam elementos científicos e sujeitados, em que medida o que se
apresenta como discurso científico é constituído segundo uma perspectiva que se apresenta
como experiência e como a experiência imprime a estrutura que se constitui na forma de
compreensão do discurso científico?22 Esse questionamento se justifica porque, uma vez que o
22
Esta discussão será apresentada na Seção 4.
Autogenealogia da pesquisa 25
23
Não haveria um singular aqui como porta-voz, mesmo o singular deveria ser escrito como porta-vozes. O
professor ou a professora seria o/a porta-vozes do discurso científico sobre o corpo.
24
No singular como ironia; o discurso científico pressupõe universalidade, compactualidade, como se os porta-
vozes dissessem o mesmo discurso sobre um mesmo assunto, mas apenas tacitamente.
25
Nenhuma imagem será divulgada associada a nenhum participante, da mesma forma, nenhuma fala será
relacionada à pessoa especificamente, conforme determinam as normas éticas destinadas à pesquisa
envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de
Saúde, do Ministério da Saúde. Alunos e alunas assinaram o TALE (Termo de Assentimento Livre Esclarecido)
e pais/responsáveis e professores assinaram o TCLE (Termo de Consentimento Livre Esclarecido).
26 Autogenealogia da pesquisa
acabadas porque não são fixas por um passado essencializado, mas continuamente sujeitas ao
jogo da história, da cultura e do poder; e ainda, de acordo com Foucault (2013a, p. 31), de que
“não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de
sua instância”.
Essa segunda etapa funcionaria como um grupo-controle dos discursos, embora se
partisse da perspectiva de que o discurso científico não é neutro, mas fruto de uma disputa e de
um percurso histórico; na ciência, ele é dado como dotado de objetividade porque tem o
respaldo do “método científico” e do crivo de outros cientistas. Não se tratava de atribuir a esta
pesquisa um caráter positivista, mas de uma forma de minimizar a influência dos discursos
sujeitados do próprio pesquisador na análise dos dados da primeira e terceira etapas, bem como
no conjunto da pesquisa. No entanto, o corpus desta etapa foi alterado. O material para análise
genealógica desta etapa consistiu em textos científicos, preponderantemente, dos séculos XVIII
e XIX e de autores e autoras que já discutiram alguns dos assuntos e questionamentos que
emergiram das análises preliminares das aulas.
Destaque-se que não é a verdade documental que aqui interessa, mas os jogos de poder
dos discursos26. Foucault (2005) defende que os estudos arqueológicos e genealógicos devem
proporcionar o embate entre os discursos sujeitados e os científicos e que esse embate ocorre
principalmente nos aparelhos pedagógicos na forma de disputa de efeitos e vontades de verdade.
Essa segunda etapa propõe questionar, segundo a concepção de Foucault (2005, p. 15): “quais
tipos de saber [são desqualificados] no momento em que [dizemos] ser [certo] saber uma
ciência? Qual sujeito falante, qual sujeito discorrente, qual sujeito de experiência [são
minimizados] quando [dizemos]: eu, que faço esse discurso, faço um discurso científico e sou
cientista?”.
O conjunto de análises desta etapa determinou um conjunto de questionamentos aos
professores de modo que pudessem confrontar seus discursos científicos com seus discursos
sujeitados.
26
Por exemplo, Foucault encontrou, em sua análise arqueogenealógica, em pleno século XVIII, na mesma Europa
que celebrava os ideais democráticos da Revolução Francesa, a invenção da prisão e as modernas tecnologias
da dominação (RAGO, 1995).
Autogenealogia da pesquisa 27
27
Cada arquivo de áudio é relativo a um período em que o professor ficou em uma turma sem interrupção (sem
troca de aula ou intervalo). Alguns arquivos de áudio são relativos a uma aula (que variou de 40 a 50 min.), ou
referente a uma aula dupla (entre 70 e 85 min.)
Autogenealogia da pesquisa 29
Tendo como base esses temas, outros (obtidos também nas aulas) foram a eles
associados em função de sua conexão de conteúdo e assuntos: por exemplo, mitose, meiose e
primeira Lei de Mendel (que, pelo seu caráter geral, envolveram tanto humanos quanto plantas)
e doenças humanas, com destaque para HIV/aids e protozooses (doenças causadas por
protozoários). As aulas sobre HIV/aids e protozooses não estavam inseridas no conjunto de
aulas de fisiologia, nem sobre o corpo propriamente dito, mas fazem intersecção com esse
assunto, de modo que houve um deslocamento maior do corpo anátomo-metafísico e
aproximação aos corpos anátomo-políticos. Nas aulas de ecologia, o corpo apareceu mais
revestido politicamente do que nas aulas de fisiologia. A Figura 1.3 apresenta uma
representação mental, materializada na figura apenas para representar um processo, de como os
corpos enunciados nas aulas caminhariam de um extremo a outro – do corpo anátomo-
metafísico ao anátomo-político – nunca atingindo totalmente o segundo, pois o primeiro é o
que sustentaria o discurso biológico.
A proposta inicial implicava fazer uma análise dos enunciados encontrados buscando
relacioná-los e respondendo àquelas perguntas direcionadoras. A impressão geral do conjunto
de discursos permitiu-me perceber que o corpo anátomo-metafísico se tornava realidade, mas
32 Autogenealogia da pesquisa
seria necessário descrever esse processo e não encontrava respostas diretas nas transcrições. O
que o torna realidade? Certamente, o próprio discurso sobre ele. Mas por quê e como?
Ao ler as transcrições do trabalho no qual fui objeto de pesquisa, também encontrei
esse mesmo movimento: o corpo que ensinamos é um corpo materialmente ideal e
abstratamente real – mas esse paradoxo não se apresentava nos discursos, pelo menos não de
forma explícita; os professores (incluindo-me, quando era professor e fui objeto de pesquisa)
apresentam o corpo como se descrevessem uma fotografia tirada de um corpo vivo, mas o corpo
de que falam sequer tem materialidade.
[Figura 1.3] Representação esquemática das linhas de força sobre o corpo enunciado nas aulas
de Fisiologia e de Ecologia em direção ao corpo anátomo-metafísico e ao anátomo-político
28
Chamo de “ambiente” o que popularmente e até cientificamente se chama de “meio ambiente”. Prefiro o
primeiro ao segundo porque considero que “meio ambiente” é um pleonasmo. O ambiente é um meio, tanto
ambiente quanto meio designam a mesma coisa. Tanto que, em fisiologia e em ecologia, as expressões “meio
interno” e “meio externo” são usadas como sinônimos de “ambiente interno” e “ambiente externo”; embora
interno e externo dependam de um referencial, por exemplo, o meio extracelular diz respeito ao ambiente
externo das células, ao mesmo tempo que o meio extracelular é também o ambiente ou meio interno do corpo
em comparação às condições ambientais (ambiente externo ou meio externo).
Autogenealogia da pesquisa 33
autores, mais contemporâneos, foram evocados para que a discussão genealógica chegasse aos
dias atuais de modo a compreender os efeitos do que denominei Razão Eucórpica.
Não obstante, ainda restavam perguntas – e elas nunca cessam de aparecer – e
considerei importante entender a construção do corpo produzida pelas ciências ditas biomédicas
desde o século XVIII. Foucault atribui a esse período o nascimento da biopolítica e ao século
XIX o nascimento do homem e do corpo – esses foram os critérios para considerar esses séculos
na pesquisa.
Na plataforma científica https://www.jstor.org é possível acessar periódicos científicos
desde 1660. A revista Philosophical Transactions of the Royal Society of London é a mais
antiga; sua primeira publicação aconteceu em 1660, e segue até hoje publicando artigos
científicos. Nessa plataforma, também estão disponíveis artigos da Science, Nature, The
American Naturalist desde suas primeiras publicações. A pesquisa na plataforma se deu pela
palavra physiology dentro de uma série temporal entre 1700 e 1900. Dos artigos apresentados,
foram lidos os títulos e descartados aqueles em que não havia referência à fisiologia humana
ou ao corpo humano. Os artigos nesses séculos não possuíam um resumo/abstract de modo que
apenas o título poderia servir como critério de seleção. Também optei por selecionar artigos ao
longo dos séculos e não constituir um conjunto de artigos com datas muito próximas e outros
com intervalo muito grande de tempo entre uns e outros. Inicialmente 34 artigos foram
selecionados; destes, depois de ler o artigo parcial ou completamente, cinco foram descartados
pelo fato de o corpo ou a fisiologia não ser o assunto principal. Restaram 29 artigos; o quadro
a seguir (Quadro 1.2) apresenta os artigos selecionados, com destaque para a revista, o ano de
publicação, o volume/número, o título e o autor.
[Quadro 1.2] Artigos dos sécs. XVIII e XIX selecionados para composição do corpus referente
à Seção 2 desta pesquisa
Na Seção 4, a pesquisa segue com a análise dos enunciados e dos discursos das
professoras estabelecendo as relações discursivas entre o corpo anátomo-metafísico e os corpos
anátomo-políticos sob a ótica das categorias que criei a partir do estudo genealógico (Seções 2
e 3). O objetivo dessa análise é evidenciar o funcionamento dos discursos quanto às suas
condições de emergência, às suas formas de distribuição e aos modos de seletividade dos temas
e dos conteúdos em função dos rituais das circunstâncias, que envolvem tabus, formas de
segregação e vontades de verdade.
No momento pelo qual passa o Brasil – pós-golpe de 2016 e com o avanço de um
conservadorismo necropolítico – frente à possibilidade de censura e aniquilamento dos
discursos, dos corpos e das experiências dos sujeitos por meio de técnicas e de estratégias de
ação sobre os corpos, a ciência precisa ser uma forma de resistência pela produção de
pensamentos e discussões, porque, segundo Foucault (2016c), para resistir
é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão
produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de "baixo" e se distribua
estrategicamente. [...] a partir do momento em que há uma relação de poder,
há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder:
podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e
segundo uma estratégia precisa (p. 360).
Nada do que há aqui se trata de um fechamento, mas de uma abertura, talvez como
uma flor que se prepara para a polinização – que as reflexões façam sexo e deem frutos.
38 Autogenealogia da pesquisa
Dias cinza-chumbo
19,2 x 19,2 cm
Técnicas: água-tinta e spit-bite, uma cor
Impressa em papel Hannemühle
Álbum Cordel paulistano, de Wilson R. da Silva
Obra artesanal, sem data.
[SEÇÃO 2]
Crítica da Razão Eucórpica
40 Crítica da Razão Eucórpica
Inicio esta seção com a discussão genealógica sobre o corpo a partir da noção de oikos.
A hipótese tratada aqui é a de que a apropriação da noção de oikos pela Ecologia (como
disciplina) teve afinidade eletiva (Wahlverwandtschaften) com a construção da noção do corpo
pela Fisiologia – ambas vinculadas e atreladas à noção biopolítica que a economia política
tornou possibilidade: esses dois discursos, o fisiológico e o ecológico, tiveram, com efeito,
possibilidade de coalescência vis-à-vis com o discurso econômico. O poder e a autoridade
científica das Ciências Biológicas/Biomédicas transformaram e direcionaram a concepção e a
representação do corpo como um objeto privado; não diferente, também ambiente tem caráter
de propriedade privada.
Finalizo com a constituição da razão eucórpica nos materiais científicos dos séculos
XVIII e XIX. O recorte desses dois séculos justifica-se porque é no século XVIII que Foucault
considera o nascimento da biopolítica e é no século XIX que Foucault considera o nascimento
do corpo e do homem como objeto do conhecimento. Embora o conjunto arqueológico definido
nesta seção contraponha a ideia de que o corpo tenha nascido no século XIX e proponha que o
objeto que nasce nesse século é o eucorpo.
O objetivo é perceber como o corpo se tornou objeto científico em disputa por várias
concepções filosóficas e como ele foi captado e produzido pelas Ciências
Biológicas/Biomédicas: esse objeto nunca foi o corpo que conhecemos, sempre foi o eucorpo,
e é essa apreensão – como prática e produção de verdades – que denomino Razão Eucórpica.
Nesse contexto, o corpo torna-se um emaranhado (enchevêtrement, nas palavras de Faure) entre
a ciência e a política – e, acrescento, entre epistemes e economias.
Embora o título deste tópico se refira ao termo que nomeei de eucorpo, ele, como
realidade simbólica, estava em produção, não possuía existência, exceto pela elaboração de uma
economia natural que começava agir sobre ele, enquanto o pensamento biológico do século
XIX surgia como irrupção pelo empreendimento científico de apreender a vida: o que faz do
ser vivo um ser vivo, o que é essa coisa chamada vida que dá vida aos seres vivos?
A ciência que conhecemos hoje por Biologia nasceu em 1800 com esse nome pela
publicação de Burdach1, mas ganha significado dois anos depois com as publicações de
Lamarck e sobretudo Treviranus (Biologie, oder Philosophie der Lebenden Natur – Biologia,
ou Filosofia da Natureza Viva) (SCHILLER, 1968). De filiação com a Naturphilosophie,
Treviranus pretendia que a Biologia fosse uma ciência unificadora de todas as formas vivas, o
que permitiria que as questões da existência humana fossem de interesse “biológico”
(MENDELSOHN, 1964). Esse interesse “biológico” nada se aproxima do sentido de biológico
atribuído atualmente. O que consideramos como biológico atualmente seria relacionado com a
visão da Anatomia e da Fisiologia, que durante todo o século XIX consolidou-se de forma
completamente distinta daquele que era o pensamento “biológico” da Biologia. A Biologia do
início do século XIX estava mais relacionada às raízes românticas da natureza como em Kant,
Fitche, Schelling, Goethe: haveria uma Weltseele (alma do mundo) capaz de unir forças, mesmo
que aparentemente opostas; da mesma forma que natureza e espírito teriam uma unidade
integrada, os mundos orgânico e inorgânico também teriam uma integração – esse pensamento
direcionou muitas pesquisas, desviando-se de um caminho mais metafísico (atribuído à
Naturphilosophie) para um caminho mais experimental e materialista, como o que aconteceu
com a fisiologia.
Interessante destacar que Darwin, n’A origem das espécies (de 1859), não usou
nenhuma vez a palavra Biologia, mas essa disciplina começa a ganhar os contornos que tem
atualmente a partir da sua publicação. A unificação da Biologia e seus significados atuais são
mais visíveis a partir da síntese evolucionista (Teoria da Evolução darwiniana somada às Leis
da Genética de Mendel). Assim, constata-se que a lacuna deixada por Darwin, sobre as leis que
regulariam a hereditariedade, teria sido preenchida pela genética e descrita por todos os
1
Gedanken tiber den urspriinglichen Sinn der Ausdriicke Botanik, Zoologie und Biologie [Reflexão sobre o
significado original dos termos Botânica, Zoologia e Biologia], Sutlhojfs Araki, Beiheft vii (1966) 1-10. (Nota
de Schiller, 1968).
Crítica da Razão Eucórpica 43
2
“Raça” aqui denota o que a Taxonomia biológica considera como subespécie. O conceito de espécie sofreu
modificações; foi a Genética quem permitiu chegar a um conceito mais “acabado” ‒ digo acabado porque
depois houve poucas mudanças no conceito. Diz-se que indivíduos são da mesma espécie quando são capazes
(ou têm possibilidade) de gerar descendentes férteis (capazes também de se reproduzir), para tanto, esse
conjunto de indivíduos deve habitar uma mesma região, no mesmo tempo. Indivíduos de subespécies diferentes
ainda são considerados da mesma espécie, ou seja, têm capacidade de se reproduzir e produzir descendentes
férteis. Um exemplo é a inclusão dos humanos na classificação biológica; somos classificados como Homo
sapiens sapiens (Gênero Homo; espécie Homo sapiens; subespécie sapiens). Pesquisas
paleontológicas/arqueológicas indicam que outra subespécie viveu juntamente com a nossa há milhares de
anos, a Homo sapiens neanderthaliensis. Há, pelo menos, duas hipóteses para explicar o desaparecimento da
segunda. Ou os H. sapiens sapiens foram mais adaptados que os H. sapiens neanderthaliensis e “venceram” a
seleção natural, ou ambas as subespécies se reproduziram entre si, resultando que H. sapiens sapiens atual é
uma mistura das duas. De qualquer forma, raça, biologicamente falando, é uma categoria taxonômica abaixo
de espécie na escala taxonômica, que denota simplesmente que indivíduos de subespécies (ou raças) diferentes
possuem características fenotípicas diferentes, mas não tão diferentes a ponto de evitar a reprodução. O
conceito de “raças” humanas parece ter essa noção como différance em seu rastro genealógico, o que implicaria
atribuir características diferenciadoras – por vezes com rótulos de “melhores ou piores”. Os estudos da
frenologia do século XIX e início do século XX têm muito dessa racionalidade, reforçados pela genética; o
embuste do “darwinismo social” é um efeito desse pensamento. O conceito de espécie é mais difícil de ser
empregado – e tem limitações – em espécies unicelulares, como protozoários, algas, bactérias e vírus, sobretudo
quando sua reprodução é assexuada; em plantas, o conceito também apresenta limitações.
44 Crítica da Razão Eucórpica
Algumas considerações são importantes aqui. O conceito de espécie com que Darwin
opera é diferente do conceito de espécie com que a Biologia opera pós síntese evolucionista.
Atualmente, esse conceito está essencialmente ligado à genética, pela possibilidade da produção
de indivíduos férteis. Darwin não definiu espécie, mas a relacionou a características de
afinidade entre seres vivos (ecológicas, em termos atuais, e relativas à economia natural, nas
palavras dele), a relações embriológicas, à distribuição geográfica, à sucessão geológica e a
características físicas visíveis dos corpos dos indivíduos. A Genética foi indiscutivelmente
importante para a nova concepção de espécie e de evolução (Neodarwinismo ou Teoria
Sintética da Evolução3), mas trouxe a reboque todas as outras áreas, sobretudo Anatomia e
Fisiologia – o conceito de “fenótipo” evidencia isso. Quando a Anatomia e a Fisiologia passam
a servir como elementos explicativos para preencher a lacuna deixada por Darwin, duas
correntes filosóficas que competiam por discursos para explicar o fenômeno vital (a vida)
precisam agora ajustar-se. Embora a teoria de Darwin sobre a seleção natural tenha modificado
a concepção teológica que as ciências naturais tentavam, desde Galileu, combater, abria espaço
para epistemes positivistas e materialistas ganharem espaço nos discursos científicos. Enquanto
Darwin e outros pensadores da filosofia natural e da história natural buscavam explicações
sobre a vida a partir dos mecanismos de regulação externos, a Anatomia, e, especialmente, a
Fisiologia buscavam compreender os mecanismos de regulação interna (CANGUILHEM, 1977) –
justamente a lacuna deixada por Darwin.
3
A Teoria Sintética da Evolução ou Neodarwinismo é a junção da teoria evolutiva darwiniana com as leis da
Genética. Como Darwin não conhecia os mecanismos de hereditariedade (concebidos posteriormente pela
Genética), parte da sua teoria ficou sem explicação. Embora Darwin compreendesse que certas características
eram transmitidas para os descendentes, ele não compreendia como esse processo acontecia. Foi a partir do
conceito de gene e sobretudo da concepção do DNA (por Watson e Crick, em 1953) que os conhecimentos da
Genética Mendeliana e da Genética Molecular permitiram elucidar (ou preencher) a lacuna deixada por
Darwin. É a partir dela que desenvolvo algumas concepções nesta tese associando também a noção de oikos.
Na concepção da Teoria Sintética, “evolução” não tem sentido de “progresso” como em Darwin, mas de
“mudanças”; o fator principal no processo de evolução é a seleção natural decorrente da relação ambiente-
fenótipo-genótipo.
Crítica da Razão Eucórpica 45
fala: “o interesse criado pelo trabalho recentemente publicado do senhor Darwin sobre a mesma
questão, associado ao fato de que o distinto naturalista chegou a conclusões idênticas às que
tentei estabelecer” (FREKE, 1861, p. vi), “refiro-me ao fato de nós dois – cada um na sua visão
peculiar – acreditarmos que toda criação orgânica originou de um único germe primordial”
(FREKE, 1861, p. vii).
A diferença importante entre os dois trabalhos é que Darwin apresenta a origem das
espécies por meio da seleção natural com dados geológicos, ambientais, morfológicos dos
indivíduos, típicos da linha de pensamento da história natural, Darwin não buscava encontrar
uma origem comum a todas as espécies (embora pontue esse pensamento), mas compreender o
mecanismo pelo qual cada espécie existente se formava. Por outro lado, Freke, a partir de dados
químicos e fisiológicos, pretendia concluir que, teoricamente, e por indução, a partir dos dados
apresentados, a origem das espécies a partir de uma única forma, universalmente aplicada a
todas as espécies seria sempre a transição do mundo inorgânico para o orgânico: “o que Darwin
alcançou por analogia, eu tentei estabelecer por indução” (FREKE, 1861, p. vii).
Freke apresenta interessantes concepções, por exemplo, a vida como um agente
organizador, que transforma o mundo inorgânico em orgânico; ele percebe isso na semente ao
germinar e produzir um organismo, ou nos esporos de briófitas e fungos, mas não compreende
o organismo como uma totalidade organizadora. Por exemplo, para ele, o caule (nas plantas) e
os músculos, ossos e nervos (nos animais) seriam estruturas organizadas, provenientes de um
agente capaz de organização, mas essas estruturas não teriam capacidade organizadora; o
processo de organização seria uma função fisiológica. Freke estava fortemente alinhado à
concepção segundo a qual o ser vivo é uma organização do mundo inorgânico. No entanto, as
partes do ser vivo eram organizadas pela natureza – essa natureza era divina. Contrário
totalmente às ideias dos fisiologistas, que defendiam a regulação do organismo de forma
autônoma, e contrário às ideias de Darwin, defendia um determinismo da natureza. De qualquer
forma, suas ideias já estavam em conflito com a formulação da Teoria Celular4 (de 1830), mas
o discurso teológico ainda persistia na disputa por verdades.
4
A Teoria Atômica está para a Química e a Física, assim com a Teoria Celular está para a Biologia. Ao mesmo
tempo, sem a Teoria Atômica, a Teoria Celular seria outra coisa (reflexo disso são as disciplinas Biofísica e
Bioquímica, sem as quais não seria possível conceber o funcionamento celular – e por extensão a fisiologia –
da forma como concebemos). A Teoria Celular enuncia que a célula é a unidade morfológica e fisiológica dos
seres vivos, o que implica que todos os seres vivos e suas partes são formados por células e que todo fenômeno
fisiológico ocorre devido ao funcionamento e atividade das células. Daí decorre o afastamento de Freke;
segundo a Teoria Celular, o organismo e todas as suas partes (por meio das células) comporiam um agente
organizador – ou auto-organizador, desde Claude Bernard, em termos cibernéticos, uma vez que todos os seres
vivos são capazes de homeostase, ou ainda em termos físico-químicos, capazes de gerenciar a entropia.
Crítica da Razão Eucórpica 47
5
São considerados, atualmente, análogos órgãos ou estruturas que possuem a mesma função sem a mesma
origem embrionária (p. ex. asas dos insetos e asas das aves); são considerados homólogos órgãos ou estruturas
que têm a mesma origem embrionária, sem necessariamente ter as mesmas funções (p. ex. os membros
superiores dos mamíferos, as asas das aves e as nadadeiras anteriores dos peixes).
6
A embriologia como disciplina já havia definido embrião como um período da ontogenia dos seres vivos, mas
Freke inicia o seu ensaio diferenciando o conceito de embrião daquele usado por ele, no caso do ensaio ele
considera: the earliest embryonic germ or ovule from which an organized being has originally sprung (p. 1).
(O primeiro germe ou óvulo embrionário do qual um ser organizado surgiu originalmente).
7
“[…] nothing has been advanced in this publication which is not perfectly in harmony with the Mosaic record
of Creation; [...] God forbid that I should dare to contemplate — far less insanely attempt to establish —any
result at variance with the true interpretation of His Word” (FREKE, 1861, p. 135; destaque no original).
48 Crítica da Razão Eucórpica
[...] deduzo por analogia que provavelmente todos os seres vivos organizados
algum dia existentes no mundo descendam de uma forma primordial, na qual
a vida tenha sido num determinado instante insuflada pela primeira vez (p.
348-349). [...] Dentro de meu modo de pensar, concorda melhor com o que
sabemos das leis legadas à matéria pelo Criador que a produção e extinção dos
habitantes antigos e atuais sejam devidas a causas secundárias, como as que
determinam o nascimento e a morte de cada indivíduo (p. 351). [...] E como a
seleção natural trabalha exclusivamente em prol e função de cada ser, tudo o
que cada um adquiriu, seja no que se refere ao corpo, seja no que se refere à
mente, tenderá a evoluir no sentido de alcançar a perfeição (p. 352).
8
A Biologia considera níveis hierárquicos de organização dos seres vivos, baseados na Teoria Celular. O nível
mais elementar é o da célula; do agrupamento de células (semelhantes em função e estrutura), formam-se os
tecidos. Do agrupamento de tecidos (com funções complementares), formam-se os órgãos. Do agrupamento
de órgãos, também com funções complementares, formam-se os sistemas. Ao conjunto dos sistemas (sistema
digestório, sistema excretor, sistema nervoso etc.) forma-se o organismo. Para cada um desses níveis, há uma
disciplina responsável, mas que interage com outras (Citologia, Histologia, Anatomia, Fisiologia). O
agrupamento de organismos forma o conceito de população. O conjunto de populações forma o conceito de
comunidade. Até comunidade, os conceitos são constituídos pela união dos conceitos anteriores. De
comunidade ao próximo nível de organização, o ecossistema, essa lógica muda. O ecossistema não é concebido
como o conjunto de comunidades, mas pela interação das populações que compõem a comunidade, entre elas
e o ambiente físico-químico. No conceito de comunidade são considerados somente os fatores biológicos
(bióticos, os seres vivos). No conceito de ecossistema são agregados os fatores abióticos (químicos e físicos:
temperatura, pH, umidade, área, energia). A Ecologia assume a explicação biológica de população a
ecossistema. O organismo é o nível que intersecciona Fisiologia e Ecologia – por exemplo, a Ecofisiologia
Vegetal e a Ecofisiologia Animal. Mas não há como compreender biologicamente o organismo sem
compreendê-lo tanto pelo funcionamento interno (Fisiologia) como pela interação com outros organismos e o
ambiente (Ecologia). As disputas dentro da Biologia na compreensão da vida são grandes; a Genética, por
exemplo, que estaria mais próxima da Citologia, também avança os níveis de organização e chega na Ecologia,
por meio da Genética de Populações. Na superfície discursiva do conceito de organismo, surge o corpo, que,
embora não seja um nível de organização, ocupa todos.
50 Crítica da Razão Eucórpica
biológico chega pela Ecologia preenchendo a lacuna deixada por Darwin; esse corpo é o
eucorpo.
atribui aos alemães da intelligentsia (classe média intelectual do século XIX contrária à corte)
um forte posicionamento social pois traziam às suas produções intelectuais o amor à natureza
e à liberdade, a exaltação solitária, as rendições às emoções do coração sem o freio da “razão
fria”.
Frankenstein considera que a metafísica pode tornar-se uma ciência experimental, ou,
pelo menos, traz um nítido “e se...?”: “Talvez tenha sido produto de algum milagre, mas cada
uma das etapas da descoberta ocorreu de forma distinta e verificável [...]. Depois [...] logrei
descobrir a causa da geração da vida; e mais importante, tornei-me capaz de reanimar a matéria
morta” (SHELLEY, 2015 [1818], p. 124-125 – grifos meus). Nietzsche (2017b) também
apresentou o mesmo questionamento sobre a metafísica, mas para ele, caso o mundo metafísico
existisse – e considerava ironicamente uma possibilidade verdadeira – ele apenas seria
percebido se a cabeça humana fosse cortada. No entanto, isso seria apenas um problema
puramente científico, criado pela paixão, pelo erro e pela autoilusão.
Antes, porém, da “descoberta”, Mary Shelley narra o percurso epistemológico que
Victor Frankenstein executou para chegar à questão vitalista mais importante do século XIX.
Nos trechos destacados, Mary Shelley vislumbra o embate entre diferentes concepções
que viriam a acontecer ao longo do século XIX: a Química, que era ferramenta metodológica
para o estudo da fisiologia; a Fisiologia, que ao longo do século demandou a sua separação da
Filosofia Natural; e a Biologia – que então nascia e buscava compreender a existência humana.
Todas essas concepções estavam fundadas na ideia vitalista da existência do princípio vital – a
Fisiologia compreendendo essa visão de forma materialista e mecanicista (o corpo é um objeto
material, uma máquina movida pelas leis da mecânica de Newton).
52 Crítica da Razão Eucórpica
O século XIX torna o corpo materialidade, mas precisa vencer a disputa pelos métodos
de sua apreensão como realidade. A Biologia como ciência que existia ainda em diferentes
formatos de ideias e concepções era o palco metafísico dessa disputa. Se por um lado o trabalho
de Darwin (1859) apreende o corpo de uma forma dispersa em uma linha temporal, juntando as
peças como em um quebra-cabeças que organiza diversas espécies numa mesa de autópsia
geológica; Haeckel (1866) defende, apoiado nas ideias darwinistas, que os corpos devem ser
analisados pela morfologia em sua relação com a química e a física. A mesa de autópsia de
Haeckel seria formada por caixas onde os organismos são colocados, comparados e
classificados.
Claude Bernard (1865) compõe o grupo de cientistas que estão do outro lado dessa
disputa. Enquanto ele considera o trabalho de Darwin associado à Naturphilosophie9 (ou aos
naturalistas), porque os indivíduos (e seus corpos) desapareceriam nas transformações a que
são submetidos pela evolução, Darwin nega essa aproximação, colocando-se afastado também
dessas ideias, as quais considerou místicas ou metafísicas demais. Defensor veemente do
empirismo, com profundas raízes cartesianas, sua mesa de autópsia é diferente da de Hackel e
da de Darwin, e, também, diferente da dos anatomistas. Ele se debruça sobre uma bancada em
que os corpos não são esquartejados, mas abertos e testados quanto às suas funções em prover
a vida – o olhar dos fisiologistas e médicos se volta para o interior, extraindo o que não se
enxerga no exterior, expondo o que a natureza não é capaz de mostrar. Para ele10, os naturalistas,
quando veem os animais, veem seus hábitos e sua moral; o químico e o físico entendem dos
corpos brutos (inorgânicos), enquanto todos olham para os mesmos objetos ‒ os únicos que
conseguem extrair a verdade são aqueles que, além de observarem, empreendem métodos
experimentais para fazer aparecer o que a natureza esconde: estes são os fisiologistas. Ele
também se afasta da anatomia, pois defende que, ao separar as partes dos corpos, perde-se a
totalidade dos fenômenos, ao separar o organismo em partes, estas tornam-se substâncias
mortas que perderiam sua essência. A fisiologia se transforma na explicação da lacuna
intraespecífica deixada pela explicação interespecífica do darwinismo – o corpo é esse objeto
9
« Il faut admirer sans doute ces vastes horizons entrevus par le génie des Goethe, Oken, Carus, Geoffroy Saint-
Hilaire, Darwin, dans lesquels une conception générale nous montre tous les êtres vivants comme étant
l'expression de types qui se transforment sans cesse dans l'évolution des organismes et des espèces, et dans
lesquels chaque être vivant disparaît individuellement comme um reflet de l'ensemble auquel il appartien »t
(Ibidem, p. 128).
10
« Le naturaliste qui observe des animaux dont il veut connaître les mœurs et les habitudes, le physiologiste et
le médecin qui veulent étudier les fonctions cachées des corps vivants, le physicien et le chimiste qui
déterminent les phénomènes de la matière brute ; tous sont dans le même cas, ils ont devant eux des
manifestations qu'ils ne peuvent interpréter qu'à l'aide du criterium expérimental, le seul dont nous ayons à
nous occuper ici » (Ibidem, p. 48-49).
Crítica da Razão Eucórpica 53
Darwin não usou nenhuma vez o termo Biologia em seu trabalho, enquanto em Haeckel
e em Bernard a disputa pelo termo é premente. Novamente a Ecologia resolve esse dilema entre
ambiente interno (corpo, fisiologia) e externo (ambiente propriamente dito, ecologia), ela se
põe nesse intermédio – o aspecto central do estudo da Ecologia é o organismo em contato com
o ambiente externo. Nesse caso, evoca-se a Fisiologia para compreender como é possível certos
organismos (e por extensão, seus corpos) serem capazes de suportar diferentes condições
ambientais. Os livros atuais que tratam da fisiologia12 concedem ao “grande fisiologista francês
do século XIX” (GUYTON; HALL, 2006, p. 4), Claude Bernard, a “descoberta” da homeostase
11
Claude Bernard usa exatamente este termo, no singular: science biologique.
12
Cf. GUYTON; HALL (2006), MOYES; SCHULTE (2010), RODWELL; KENNELLY (2003).
54 Crítica da Razão Eucórpica
(mas que apenas recebeu esse nome futuramente), que é justamente a capacidade (fisiológica)
de os organismos regularem seu meio interno a despeito da variação do meio externo
(ambiente).
A Ecologia também se apropriou da ideia de autorregulação (cibernética) para
compreender a natureza. Um artigo de 1988, de Lauri Oksanen, discute a influência de várias
escolas ecológicas na compreensão do ambiente e da natureza; a escola de Odum teve grande
influência nas concepções cibernéticas de natureza. A afinidade eletiva da Ecologia e da
Fisiologia se revela justamente nessa concepção e, com efeito, tornaram-se intrincadas e
inseparáveis para explicar tanto os corpos quanto a natureza: “Para um ecólogo evolucionista,
a natureza é tanto um teatro ecológico onde o jogo evolutivo acontece quanto o produto direto
desse jogo” (OKSANEN, 1988, p. 424). Evocando a escola de Odum, revela:
13
“Either the ecosystem is orderly in the [cybernetic] way we described or its lack of chaos just happened to
develop from unregulated Darwinian struggles between competing populations, all alone and uninfluenced,
except by each other, on a neutral slate of life. The latter seems implausible for us” (PATTEN; ODUM, 1981 apud
OKSANEN, 1988, p. 424).
Crítica da Razão Eucórpica 55
remetem a uma engrenagem produtiva, que traz tanto um rastro fisiocrático quanto utilitarista
– é a própria economia da natureza de que falava Darwin, mas em uma visão mais moderna e
sofisticada.
(a) NU: energia não utilizada; NA: energia não assimilada ou excretada; R: respiração (perda de energia para o
ambiente); os polígonos pintados de cinza representam os corpos dos organismos (ou biomassa, energia
assimilada). (b) em detalhe, um nível trófico de consumidor.
Fonte: Adaptado de: (A) ODUM, 1969; (B) BEGON et al., 2006.
Canguilhem (1977) faz uma genealogia dos termos “regulador” e “regulação”, cujos
conceitos considera de extrema importância para o desenvolvimento dos estudos biológicos.
Segundo Canguilhem, atualmente, o termo “regulação” é conotado por “cibernética”, o segundo
foi criado por Ampère em 1834 para designar a ciência dos meios de comando, mas ficou
adormecido por um século. Dicionários famosos como o Littré e o Oxford trazem definições
para regulação, nos séculos de XVII a XIX, somente relacionados à política e à mecânica.
Leibniz quem traz pela primeira vez a noção de regulação, contrariando a de Newton. Enquanto
para Newton a regulação do mundo por Deus é incessante, Leibniz defende a imutabilidade:
“Essa máquina de Deus [o mundo] é mesmo, segundo eles [Newton e a escola de Cambridge],
tão imperfeita, que Deus é obrigado a limpá-la de vez em quando por meio de um concurso
56 Crítica da Razão Eucórpica
extraordinário, e até de reajustar, como um relojoeiro faz com sua obra” (apud CANGUILHEM,
1977; p. 76).
Leibniz considerava que a regulação do mundo (comparando regra e regulamentação
na polícia do Estado e na regulação das máquinas) tinha uma relação originalmente estática e
pacífica: a regularidade seria uma propriedade original, não seria, portanto, conquistada a partir
de uma instabilidade ou reconquistada de uma degradação. Entre o otimismo leibniziano e as
inquietudes newtonianas, o pensamento que ganhou força durante um século e meio depois
(séculos XVII e XVIII) e funcionou como paradigma na mecânica, na fisiologia, na política, na
economia foi o de Leibniz (CANGUILHEM, 1977).
No entanto, há uma inversão no século XIX. Entre as ideias darwinianas, mais
próximas das concepções newtonianas e as ideias frekeanas, mais próximas das concepções
leibnizianas, as que ganham maior status de produção de verdade são as darwinianas.
Importante questionar o porquê da possibilidade dessa mudança no século XIX. Não existe,
como já afirmara Foucault, uma mentalidade ou espírito da época que promove uma linha de
pensamentos, mas condições de aparição e circulação dos discursos.
Para Leibniz, existe uma verdade fixa e permanente dos julgamentos que não deve ser
continuamente posta em dúvida. Não existiria uma verdade dupla, cuja verdade humana fosse
diferente da verdade divina – o conceito de Deus é o conceito de verdade: a realidade e o
conhecimento devem ser compreendidos em conjunto; não haveria ciência nem regras que
estivessem em contradição com a natureza do princípio divino (CASSIER, 1993). O mundo para
Leibniz é resultado da perfeição suprema divina, ou, como diz Nietzsche (2017a), a avaliação
superior da moral. Freke, assim como Leibniz, buscavam na metafísica (de Deus) a explicação
de seus questionamentos ‒ embora Leibniz seja platônico e Freke, aparentemente, não. A
função matemática (e não os números) é a lei de Deus para Leibniz (porque “o cálculo versa
somente sobre a ordenação e a mútua condicionalidade de relações puramente qualitativas, sem
entrar em nenhuma classe de relações quantitativas” (CASSIER, 1993, p. 91) enquanto para Freke
a produção da vida decorre da função organizadora. Ambas as concepções imprimem finalidade
e imutabilidade às leis de Deus; ambos são teleologicamente semelhantes. Darwin e Newton
pensavam opostamente diferente de Freke e Leibniz.
Entre Freke e Darwin, a “evolução” tomaria caminhos diferentes; para Freke, a
evolução seria uma “revolução” cíclica: do mineral ao vegetal, do vegetal ao animal e do animal
Crítica da Razão Eucórpica 57
novamente ao mineral, o que mantém o ciclo é a função organizadora do mundo vegetal14. Para
Darwin, a evolução é um processo contínuo de modificações rumo à perfeição – o que
implicaria tornar o humano (sobretudo o civilizado) o mais “evoluído”, ou seja, o mais próximo
da perfeição. Leibniz acreditava que a natureza era inteligível porque era o corolário de uma
progressão algébrica, portanto, plenamente descrita pela lei geral da série, de outro modo seria
absurda e indigna do sábio (CASSIER, 1993). A teoria da evolução proposta por Darwin não
caberia numa função algébrica; não que a proposta de Freke coubesse, mas, por sua condição
cíclica, permaneceria autoevidente e cumprindo teleologicamente, da mesma forma, as leis
divinas. Leibniz acreditava em um Deus ex machina que intervinha segundo leis fixas e
permanentes (CASSIER, 1993); assim como as de Freke, suas explicações eram fundadas em
uma origem metafísica.
Para Newton, “apenas as qualidades são manifestadas, mas as causas continuam
ocultas” (CASSIER, 1993, p. 377). “Newton enfatiza continuamente e com toda a energia a
existência de objetos que nosso conhecimento empírico não pode alcançar de forma alguma”
(p. 417), mas ele afirma, ao mesmo tempo, que há um ser supraempírico que não pode mais
obstruir o curso contínuo de nossa observação e de nossa análise científica dos fenômenos.
Newton não pretende a destruição ou superação da metafísica, mas a delimitação dos campos
entre essa e a matemática exata.
Na Fisiologia, a noção de regulação chega pelo termo economia, para os fisiologistas,
para os naturalistas, ou mesmo os filósofos, o termo economia animal é equivalente às
expressões máquina animal ou fábrica animal; Canguilhem (1977) se baseia nas concepções de
Buffon e Lavoisier para justificar a primeira, e nas de Hume, a segunda.
Embora Canguilhem (1977) use anacronicamente o termo “ecologia” para se referir
ao que Darwin chamava de “economia natural”, pode-se, dessa forma, intuir um caráter
mecânico ao mundo por meio da natureza. Por outro lado, apresenta o desvio darwiniano em
relação ao paradigma otimista leibniziano, pois tanto a natureza quanto os organismos são
máquinas mutáveis, dessa forma mais próximo das inquietudes newtonianas, o que conota de
certo modo também que economia natural e funcionamento do organismo (e por extensão corpo
e fisiologia) são sinônimos:
Pois como todos os seres vivos estão lutando, por assim dizer, para se apoderar
de cada lugar na economia da natureza, se alguma espécie não se tornar
14
“We have, I say, as I regard it, therein disclosed to us an example of the nature of each of the successive steps
in that circle of changes which is uninterruptedly in revolution from the mineral to the vegetable, from the
vegetable to the animal, and from the animal again to the mineral world” (FREKE, 1865, p. 106).
58 Crítica da Razão Eucórpica
[o] direito da força, ou do mais forte, [...] é um direito real, tão respeitável, tão
sagrado como todo outro direito, e [...] é sobre este direito da força, no qual a
consciência humana [...] sempre acreditou, que repousa em definitivo o
edifício social (PROUDHON apud FERNANDES , 2015).
Não é de modo algum evidente, à luz das ideias ordinariamente admitidas, por
que a estrutura do embrião deva ser mais importante para tal propósito [definir
o valor ou a função fisiológica dos órgãos] do que a do adulto, já que só esse
desempenha completamente o seu papel na economia da natureza (Idem, p.
307).
A expressão “economia natural de qualquer ser organizado” (na primeira citação) pode
ser substituída, atualmente, por “a biologia de qualquer ser organizado”; por outro lado, a
expressão “o seu papel na economia da natureza” (na segunda citação) pode ser substituída por
“seu papel ecológico”; este anacronismo permite inferir o caminho conjunto que a economia
natural e a economia animal (Ecologia e Fisiologia) trilharam, embora inicialmente estivessem
separadas epistemologicamente.
De modo a entender a recepção das ideias darwinistas, recorro à discussão e à crítica
de Nietzsche (2017a). A vida era a “coisa em si” que o século XIX buscava, sem entender que
Kant já avisara da incognoscibilidade. Haeckel, ferrenho darwinista, por exemplo, considerava
Kant apriorístico, e que “a experiência reflexiva ou o pensamento experimental [seriam] as
únicas vias e métodos para se atingir a verdade” (HAECKEL, 1904 apud FREZZATI-JR., 2003).
Nietzsche, inclusive, nega a existência da coisa em si, e, por consequência, a existência da vida,
mas a entende como vontade de potência – o que revela diversas outras camadas sobre a
concepção biológica do conceito de vida: vida é tão-somente metáfora.
Como Nietzsche é contrário à expressão da verdade das coisas em si, o que se apresenta
no trabalho de Darwin, portanto, seria resultado da moral e de uma vontade de potência que
reflete os dominadores – porque a moral, antes de ser um conjunto de prerrogativas que
determina o certo e o errado, o bom e o mau, é um movimento interpretativo de um sujeito.
Segundo Nietzsche, Darwin deu exagerada relevância para as circunstâncias externas; o
fenômeno vital seria a força que cria potência de dentro para fora; não haveria finalidade, mas
uma batalha das partes. Nietzsche atribui à escola de Darwin uma mecânica da domesticação:
os mais fortes, os melhores, os mais perfeitos, os mais robustos, os mais bem-dotados, ao
vencerem a batalha pela existência, ocultam a batalha e tem-se como resultado a definição da
moral. A moral cristã como cultura é domesticação; o que Darwin considera como selvagem
seria o retorno à natureza e a cura da cultura, “os mais fortes e os mais felizes são fracos quando
têm contra si os instintos organizados do rebanho, a pusilanimidade dos fracos e o grande
número” (NIETZSCHE, 2017a, p. 434). Domesticação nada mais é do que o controle da economia
natural de comportamentos para o uso privado de acordo com as necessidades daquele que
60 Crítica da Razão Eucórpica
Animais criados por povos selvagens de diversas regiões muitas vezes têm de
lutar por sua própria subsistência, expondo-se em certo grau à seleção natural.
Indivíduos dotados de constituição ligeiramente diferente terão maior
probabilidade de sobrevivência sob determinados climas, e há razões que nos
levam a crer serem correlatas a constituição e a coloração externa (DARWIN,
1994 [1859], p. 166-167).
Haeckel (apud FREZZATI-JR., 2003), por exemplo, considerava que não obstante a
sensibilidade ser uma propriedade fundamental da matéria, a consciência era um produto
psíquico secundário próprio dos animais superiores e do humano. Ele dividia a sensibilidade
em 12 níveis, do inferior ao superior. O primeiro nível é o dos átomos, que teriam afinidade
entre elementos; o segundo, o das moléculas, com propriedade de atração e repulsão – ambos
sensibilidade sem consciência. Das células (nível 3) e seres unicelulares (níveis 4 e 5) até os
animais inferiores (cnidários e esponjas) não haveria consciência, apenas sensibilidade; a partir
dos artrópodes e vertebrados (nível 10) haveria uma pré-consciência. O nível 11 (sensibilidade
com consciência e pensamento) é atribuído aos répteis, aves, mamíferos e aos humanos
selvagens e bárbaros; o nível 12 (sensibilidade com atividade intelectual na arte e na ciência)
é atribuído aos civilizados (leia-se: europeus).
Esta diferenciação nos níveis 11 e 12 se assemelha bastante à visão grega antiga
(aristotélica) que diferenciava o zoon do zoon politikón, em outras palavras, o animal do animal
político, ou ainda, os que vivem no oikos dos que vivem na pólis: os sujeitos-oikos e os sujeitos
políticos – ou, no sentido moderno, ambos se tornaram os sujeitos sociais; alguns mais animais
sociais, alguns mais humanos sociais. A “pólis”, na modernidade, é um grande oikos.
Darwin também diferenciava os civilizados dos selvagens, da mesma forma que os
termos “selvagens” e “civilizados” eram elementos fortes na produção intelectual europeia
Crítica da Razão Eucórpica 61
desde o século XVII: por exemplo, Hobbes, Locke (BUCK-MORSS, 2011) e futuramente Hegel,
Marx (BUCK-MORSS, 2011; MATORY, 2018; GILROY, 2017) e Darwin e Haeckel. Para Mbembe
(2016), aos olhos do europeu do século XIX, “vida selvagem” é apenas outra forma de “vida
animal”. Desses elementos emerge uma ambiguidade: uma vez que o darwinismo coloca o
humano descendente do animal, como afastar a condição humana da condição animal? A
proposta evolutiva de Haeckel para a sensibilidade e a consciência reatualiza a distinção entre
oikos e polis ateniense.
Quando não mais olharmos para um ser organizado como um selvagem olha
para um navio, ou seja, para algo inteiramente além de sua compreensão;
quando considerarmos toda e qualquer produção natural como algo que tenha
sua própria história; quando contemplarmos toda estrutura complexa e todo
tipo de instinto como o resultado final de numerosas adaptações, cada qual útil
para seu possuidor, quase que da mesma maneira que entendemos ser qualquer
grande invenção mecânica o resultado do labor (labour), da experiência, da
razão e até mesmo dos erros de um sem-número de trabalhadores; quando for
assim que enxergarmos cada ser organizado, que novo e enorme interesse não
irá adquirir – e falo por experiência própria – o estudo da História Natural
(DARWIN, 1994 [1859], p. 349-350; grifos meus).
Esse trecho de Darwin é particularmente interessante por pelo menos dois pontos e
demonstra seu pensamento em relação aos selvagens (os outros) e os civilizados (o europeu): o
navio de que Darwin fala parece se relacionar com o significado meramente de embarcação e
de todo trabalho racional e técnico que a construiu, na qual, ele mesmo, esteve quando de sua
viagem no HMS Beagle (His Majesty’s Ship Beagle). Tudo se passa como se as coisas tivessem
uma concretude tal que apenas o olhar civilizado fosse capaz de apreender por meio da razão,
do trabalho e da experiência. Darwin conclui o argumento afirmando que os seres organizados
(os seres vivos) devem ser concebidos assim, ignorando a grande metáfora europeia da
escravidão da sua época que se fazia concreta nos navios negreiros. Também é importante
pontuar que a viagem feita pelo comandante Robert FitzRoy do Beagle estava inserida no
contexto de expansão marítima que havia se iniciado no século XVIII e que a Inglaterra
pretendia conhecer as “potencialidades” do mundo cujo interesse colonial se transferia do eixo
Atlântico (já bastante colonizado) para o Pacífico (PASSETTI, 2010).
Contraponho a visão de navio apresentada por Darwin com a de Paul Gilroy em O
Atlântico negro, relativa justamente à Inglaterra do século XIX:
Deve-se enfatizar que os navios eram os meios vivos pelos quais se uniam os
pontos naquele mundo atlântico. Eles eram os meios móveis que
representavam os espaços de mudança entre os lugares fixos que eles
conectavam. Consequentemente, precisam ser pensados como unidades
culturais e políticas em lugar de incorporações abstratas do comércio
62 Crítica da Razão Eucórpica
triangular. Eles eram algo mais – um meio para conduzir a dissenção política,
e, talvez, um modo de produção cultural distinto. O navio oferece a
oportunidade de se explorarem as articulações entre as histórias descontínuas
dos portos da Inglaterra, suas interfaces com o mundo mais amplo (GILROY,
2017, p. 60).
Matory (2018) também relaciona a produção intelectual do século XIX atravessada por
diversas ambivalências. Marx e Freud representavam a ambivalência racial no fetichismo que
apresentavam. Fetisso (mais próxima de feitiço) foi a palavra portuguesa empregada aos
africanos para se referir a sua religiosidade e cultura, especialmente à magia curadora15 e aos
objetos consagrados pelos africanos no comércio. Fetichismo foi atribuído por portugueses e
holandeses às mercadorias dos parceiros africanos, que eram acusados de falsificar moedas e
supervalorizar seus próprios produtos e desvalorizar os dos europeus. O iluminismo afrancesou
o termo para fétiche e foi associado com exploração, despotismo e excesso de consumo. Marx,
nos termos de Matory, apresentou seu próprio fetiche no “fetiche da mercadoria” em relação ao
preço do produto em função do tempo gasto para a produção; nesse sentido, o trabalho
intelectual (inclusive do próprio Marx) seria impagável. Matory redefine fetiche como aquilo
que descobrimos
15
O destaque é interessante pelo termo possivelmente associado a algum tipo de medicina, embora o autor não
discorra sobre isso.
Crítica da Razão Eucórpica 63
pela vis medicatrix rei publicæ [o poder de cura do Estado] (p. 83) ganha respaldo no modelo
hipocrático da medicina.
O que Nietzsche descreve no século XIX como crítica ao darwinismo encontramos na
produção de teorias eugenistas (seleção artificial das raças) e no darwinismo social (seleção
social dos mais “fortes”/“aptos” por meio de uma mecânica social – que nada mais seria do que
um fitness econômico16) – como embasamento moral para o que o século XIX chamou de
evolução, e o que chamo atualmente de subjetivicídio, que é vida permitida sem vontade de
potência ou não vida, mesmo que se mantenham as atividades fisiológicas (independentemente
das normalidades impostas). Mesmo que, embora para a medicina houvesse o princípio vital
ainda, não haveria vida no sentido nietzschiano. Gilroy (2017) empresta o termo “racismo
científico” de Nancy Stepan17 para caracterizar esse movimento, quando, no século XIX, o
termo “raça” era empregado com o mesmo significado atual de “cultura”, e relata, por exemplo,
a invenção da doença específica de negros e negras, a drapetomania ou dysaesthesia
Aetheopsis, que seria “o desejo dos escravos [escravizados] de fugir da escravidão” (p. 68) –
uma nítida estratégia, em termos nietzschianos, de minar a vontade de potência como vida e
resistência ou de miná-la por meio do subjetivicídio, como uma relação de forças entre vontades
de potências ‒ vence aquela com maior fitness econômico. Para o tratamento dessa doença, o
médico estadunidense J. Marion Sims “aperfeiçoava” procedimentos ginecológicos –
legitimados por discursos “científicos” – em mulheres que mantinha em servidão. Da mesma
forma que J. Marion Sims comete subjetivicídio nessas mulheres, Darwin também expressa seu
subjetivicídio europeu na sua visão de navio comparada à visão cultural de Gilroy, assim como
Haeckel o faz ao classificar selvagens e bárbaros como animais, diferenciando-os dos
civilizados, pela comparação de suas capacidades de sensibilidade e consciência. O
subjetivicídio é, portanto, o efeito de um superdispositivo científico que constrói o corpo à
imagem e semelhança do eucorpo (uma biotecnoideologia).
16
Fitness é um conceito darwiniano que pode ser traduzido, em português, por “aptidão”. Segundo Darwin,
venceriam a seleção natural os indivíduos mais aptos (ou com maior fitness), ou seja, os que possuíssem
estruturas e condições que lhes possibilitassem gerar mais descendentes e, portanto, manteriam, na população,
as estruturas e condições que tornariam a espécie mais bem adaptada ao ambiente. Em uma leitura
neodarwinista, são mais aptos os indivíduos que são capazes de passar seus genes para as próximas gerações.
No uso que faço de fitness econômico, seriam mais “aptos” aqueles com maior capital simbólico, material e
científico, que lhes permite maior possibilidade de produzir e reproduzir seus discursos, reduzindo ou até
eliminando, de certa forma, o poder dos outros.
17
Nancy STEPAN. The idea of race in science: Great Britain, 1800-1960. Basingstoke, Hampshire e Londres:
Macmilian, 1982. Michel Banton, Racial Theories: Cambridge: Cambridge University Press, 1987 (citado por
GILROY, 2017).
64 Crítica da Razão Eucórpica
Para Haeckel (1866, p. 237), a Ecologia deveria ser compreendida juntamente com a
Geografia como fisiologia das relações com o mundo externo (Oecologie und Geographie des
Organismus oder Physiologie der Beziehungen des Organismus zur Aussenwelt) [Ecologia e
Geografia dos organismos ou Fisiologia das relações do organismo com o mundo exterior],
fortalecendo, assim, a economia animal (Fisiologia) como explicação intraespecífica da
economia natural (Ecologia), que é por si só interespecífica.
Odum (1969) indica a formação da palavra Ecologia como proveniente do grego oikos
(οίκειοϛ), que, segundo ele, significa “casa”, definindo Ecologia como o estudo das casas, que,
por extensão, representariam os ambientes onde vivem os organismos. Interessante a
comparação que faz já nas primeiras palavras do primeiro capítulo:
Parece haver aqui uma simplificação. Haeckel não buscou diretamente na palavra
oikos a construção do termo ecologia, mas na palavra economia (natural economy ou economy
Crítica da Razão Eucórpica 65
of nature) usada por Darwin – que também deriva de oikos. Quando Darwin utilizou a palavra
economia, em 1859, essa palavra já tinha o sentido moderno, dentro da economia iluminista,
capitalista, colonial e escravagista, diferente de economia no sentido grego antigo, de onde
economia decorre. Segundo Aristóteles (em Política), oikonomikón (econômico) é relativo ao
governo doméstico ou do chefe de família. Com efeito, assim como o chefe de família ateniense
controlava a economia (doméstica) por possuir a propriedade do oikos, o cientista controla e é
proprietário da economia natural, assim como os fisiologistas controlam e têm a propriedade da
economia animal – tanto a natureza quanto os corpos foram apropriados como recursos privados
de uma θεωρία (teoria) – ou, de uma vida contemplativa, filosófica – da qual demanda Odum
(Idem) a respeito da Ecologia (embora impossível obter nessa lógica). Talvez decorra desse
raciocínio nossa dificuldade com as questões ambientais, atualmente; e, da mesma forma, nossa
relação com nossos corpos: tanto o ambiente quanto os nossos corpos seriam propriedades
privadas que não nos pertencem.
Quando entendemos que Paul Veyne (1998) denuncia a teoria econômica (ou a
economia) como uma ficção de um homo aeconomicus movido por instintos egoístas, cuja
ficção é a racionalidade mais do que o egoísmo, compreendemos, por efeito, que a Economia e
a Ecologia são irmãs siamesas e que os homines aeconomici são também aecologici ou
oikológicos.
De acordo com Collection (2003), Platão utilizava em suas obras, como referências à
ideia de oikos, as seguintes palavras: oίκειότητι (oikotéti), οίκειότητοϛ (oikotetos), com sentido
de intimidade; οίκειν (oikein), com sentido de habitar e viver; οίκειοπργία (oikopgia), com o
sentido de relação com a própria tarefa; οίκειουσθαι (oikoysthai), com o sentido de apropriar-
se; e, o principal, οίκειοϛ (oikos), com sentidos de próprio, pessoal, recursos, vida privada,
interior. O oikos, portanto, é o local do privado, da intimidade e das necessidades (ανάγκη,
anagké), com nítida “divisão fisiológica do trabalho”, cujo papel feminino era principalmente
o labor da reprodução, mas também daquele de que é possível apropriar-se.
A explicação de Darwin, está totalmente relacionada com o enunciado de Haeckel
citada por Ricklefs:
Contudo, se assim não se fizer, ou seja, se não se cogitar tanto dessa ideia [luta
pela existência por meio da seleção natural] até que ela fique por assim dizer
arraigada em nossa mente, estou convencido de que nos parecerão obscuros
ou serão completamente mal-interpretados todos os fatos relacionados com a
economia da natureza, com a distribuição, com a raridade, a abundância, a
extinção e a variação. A natureza nos parece brilhante e jubilosa quando em
situação de superabundância de alimentos; então não vemos, ou não nos passa
pela ideia, que as aves cantando alegremente ao nosso redor vivem geralmente
66 Crítica da Razão Eucórpica
[Julgando] pela forma de sua cabeça e crescer dos seus cabelos, [Lassale18]
provém de negros que se juntaram à marcha de Moisés para sair do Egito (isso
se sua mãe ou sua avó do lado paterno não tiverem de fato dormido com um
negro). Agora, essa combinação de judaísmo e germanismo com a substância
básica negroide deve produzir um produto particular. A agressividade desse
rapaz também é de negro19 (MARX apud MATORY, 2017, p. 9).
Os “povos sem escrita” do século XVI, os “povos sem história” dos séculos XVIII e
XIX, os “povos sem desenvolvimento” do século XX e os atuais “povos sem democracia” do
século XXI são efeitos dos mesmos procedimentos egopolíticos (GROSFOGUEL , 2018). Da
mesma forma, os “selvagens” do século XIX são os sujeitos-oikos que “rexistem” no século
XXI, sejam eles os povos sem escrita, sem história, sem desenvolvimento ou sem democracia.
A História Natural e a Fisiologia transformaram seus corpos em oicorpos (oikos + corpo) – em
suma, corpos relegados ao oikos simbólico da modernidade, corpos utilizáveis dentro da
economia política (na próxima seção, avanço a compreensão genealógica desse corpo).
A ambivalência moderna no que concerne ao corpo é a necessidade de se desvencilhar
da realidade de que se possui um oicorpo para a fantasia (ou fétiche/fetisso), de que se possui
um eucorpo20. Uma vez que o eucorpo é uma criação metafísica, portanto, inatingível, o oicorpo
está mais próximo da realidade material. Da mesma forma, na metáfora de Mary Shelley, o
eucorpo seria um monstro produzido a partir da produção intelectual usando-se de cadáveres
(anatomia e vivissecções), de modo que ele só poderia existir como símbolo egopolítico dentro
do que Grosfoguel (2018) chama de “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno
europeu” (em contraste à simples denominação “mundo capitalista”, que ele entende como
simplista e restrita), cujo eucorpo atual seria mais próximo do homem, cis, branco,
heterossexual, europeu, cristão – em uma reatualização do corpo burguês civilizado do século
XIX –, mas ainda assim, uma monstruosidade, que adquire tal condição pela capacidade de
dominação.
A Ecologia, portanto, parece ter se aproveitado de um éthos estratégico segundo o
qual, ao mesmo tempo em que o “eco” evoca o oikos, apaga seu rastro e reitera falsamente seu
18
Ferdinand Lassale era rival de Marx pela liderança do movimento trabalhista, e, assim como Marx, também
judeu. Matory, em seu artigo, também relata que a mãe de Marx o chamava de “mouro” sugerindo uma
identificação com africanos por uma classe de judeus assimilados à época na Europa central.
19
Trecho citado por Matory (2018) a partir de SPERBER, Jonathan. (2013), Karl Marx: a nineteenth-century life.
Londres, Livenight Publishing Corporation. Matory discute Marx e Freud como símbolos da ambiguidade da
produção científica europeia, no que também caracteriza por Schadenfreude etnológica (em tradução direta:
alegria ao dano; e que denota uma vulnerabilidade ao desprezo racial, evidente na carta de Marx a Engels).
20
Até aqui a diferença entre oicorpo e eucorpo diz respeito à diferença, respectivamente, entre corpo anátomo-
político e corpo anátomo-metafísico. Na próxima seção, os corpos anátomo-políticos ganham outras nuances.
68 Crítica da Razão Eucórpica
21
Embora use essa metáfora, que, de certa forma, pareça incoerente com a conversa entre mim e Susan Sontag,
no início do próximo item, ela se justifica porque concordo em parte com ela, e discordo justamente porque,
se essa metáfora for usada como crítica à Razão Eucórpica, adquire outro significado. Se essa metáfora for lida
do ponto de vista das iansanidades (discutida na próxima seção), adquire outro significado.
Crítica da Razão Eucórpica 69
(1996), o objeto científico é bem menos dado do que resultado de elaborações teóricas e
experimentais.
A ideia da vida é uma dessas ideias gerais e obscuras produzidas em nós por
certas séries de fenômenos que vemos suceder em uma ordem constante e se
mantêm por relações mútuas. Embora ignoremos a natureza do lugar dessas
unidades, nós sentimos que esse lugar deve existir e ela nos é suficiente para
ser designada por um nome que logo as pessoas reconhecem como o signo de
um princípio particular, embora, de fato, esse nome [vida] não permita jamais
indicar o conjunto de fenômenos que dá lugar à sua formação (CUVIER, 1835,
p. 1-2) 22.
22
« L'idée de la vie est une de ces idées générales et obscures produites en nous par certaines suites de
phénomènes que nous voyons se succéder dans un ordre constant et se tenir par des rapports mutuels. Quoique
nous ignorions la nature du lien qui les unit, nous sentons que ce lien doit exister, et cela nous suffit pour nous
les faire désigner par un nom que bientôt le vulgaire regarde comme le signe d'un principe particulier, quoique
en effet ce nom ne puisse jamais indiquier que l'ensemble des phénomènes qui ont donné lieu à sa formation »
(CUVIER, 1835, p. 1-2).
72 Crítica da Razão Eucórpica
No mesmo século, David Hume já criticava essa mesma racionalidade a respeito dos
filósofos que tentavam racionalizar a natureza humana, “eles [a] examinam a fim de encontrar
os princípios que regulam nossa compreensão, excitam nosso sentimento e nos fazem aprovar
ou condenar qualquer objeto, ação ou comportamento particular” (HUME, 2017; p. 10).
Continua: “[transformam] exemplos particulares em princípios gerais, e dirigem ainda mais
suas investigações para princípios mais gerais; e não se satisfazem até que cheguem a esses
princípios originais” (p. 10). Essa crítica, como veremos, ainda é válida e é a base da razão
eucórpica. Por exemplo, em 1919, Einstein afirmava criticamente que a Ciência operava a partir
ainda desse modelo epistemológico:
Por um lado, se Einstein falava das ciências naturais (mais especificamente da física e
da química), por outro, o que dizer das ciências biológicas, se seus processos receberam
explicações daquelas? De uma forma um pouco diferente, Foucault (2016d) – sobre o
humanismo ou as ciências do homem, na passagem do século XVIII para o XIX – diz que “o
23
“The business of natural philosophy is, to observe, and to note down facts, that are constant; and singling out
those that are similar, to collect their proper universal, by a fair and regular induction; and to acquiesce in
this, till a new collection of constant and similar facts affords an higher universal, and leads nearer the first
cause” (MORTON, 1751, p. 314).
Crítica da Razão Eucórpica 73
humanismo finge resolver problemas que não pode formular para si” (p. 148), alterando a fala
de Marx de que “a humanidade só formula problemas que ela pode resolver” (p. 148).
É na era clássica – séculos XVII e XVIII – que Foucault (2007) considera a separação
entre as palavras e as coisas. O corpo, como palavra e como coisa, também sofre essa separação.
A partir do século XVII, segundo Foucault, “perguntar-se-á como um signo pode estar ligado
àquilo que ele significa” (p. 59); em outras palavras, especialmente em relação ao corpo, buscar-
se-á qual o seu significado por meio da sua representação. A partir do século XIX, a
representação transforma-se em análise da significação. De uma outra forma, Canguilhem
também associa esse movimento representação-significação com a internalização do olhar
sobre o corpo, de uma regulação externa para uma regulação interna (economia animal). Por
outro lado, é com Darwin que esses dois olhares se somam (economia da natureza).
Enquanto o século XVIII produziu a vida de forma metafísica, ao século XIX coube a
tarefa de “desmetafizá”-la: é quando surge o eucorpo como realidade anátomo-metafísica.
Foucault (1975a) atribui à metafísica do século XVIII a representação das coisas como que
dispostas em quadros e, ao empírico do século XIX, a linguagem, que se transforma em
fenômeno, inserido não mais em quadros estáticos, mas em séries dinâmicas – daí as condições
de possibilidade de um pensamento evolutivo.
Uma diferença importante entre a razão pré-eucórpica e a eucórpica foi a materialização
que a noção de corpo adquiriu no século XIX. Ao longo do século XVIII, veem-se, associadas
ao corpo, algumas ideias que seriam consideradas, do século XIX em diante, como metafísicas.
A crítica à metafísica torna-se bastante acentuada no século XIX. Darwin precisou,
constantemente, defender-se da acusação de metafísico, sobretudo pelos fisiologistas (p. ex.
Claude Bernard). Kant era considerado também metafísico por Claude Bernard, certamente,
porque Bernard não apenas acreditava na “coisa em si fisiológica”, tinha absoluta certeza da
possibilidade de apreendê-la.
Em 2018, um artigo de cinco estudantes de medicina da PUCRS e de dois professores
discute a história da neurotransmissão24. Uma passagem desse artigo é bastante representativa
da razão eucórpica em sua arrogância positivista: “Thomas Willis (1621-1675), inglês que ficou
24
Relativo às “descobertas” sobre o sistema nervoso, da descrição dos neurônios, dos circuitos neuronais até a
concepção das sinapses mediadas por hormônios neurotransmissores. A neurotransmissão torna-se importante
na razão eucórpica porque centraliza, materializa e racionaliza qualquer evento fisiológico; o sistema nervoso
torna-se elemento central explicando pensamentos, comportamentos e ações – uma espécie de determinismo
neural, que ganha mais força com a Genética, uma vez que a produção dos neurotransmissores está atrelada às
informações contidas na molécula de DNA; com efeito, tudo o que fazemos estaria associado a ter ou não
condições neurobioquímicas.
74 Crítica da Razão Eucórpica
famoso pela descrição do Polígono de Willis25, afirmava, no ano de 1620, que existiam
‘espíritos animais’ no cérebro controlando o ser humano. Hoje se sabe que esses ‘espíritos’ são
os impulsos elétricos” (LORO et al., 2018, p. 27 – destaque meu).
Descartes, em 1637, escreveu na quinta parte de seu Discurso do método algo muito
parecido:
[...] a geração dos espíritos animais, que são como um vento sutilíssimo, ou
antes, como uma chama muito pura e muito viva, que, subindo continuamente,
em grande abundância, do coração para o cérebro, dali se dirige pelos nervos
para os músculos e dá o movimento a todos os membros (DESCARTES, 2018
[1637], p. 45).
25
O polígono de Willis é uma estrutura anatômica de vasos sanguíneos localizada na base do encéfalo, é formado
por um “polígono” ou uma conexão por vasos comunicantes de dois sistemas arteriais encefálicos, o sistema
vértebro-basilar (anterior) e o carotídeo interno (posterior). A importância atribuída ao polígono é que, caso
haja a obstrução de um dos sistemas, o outro supre as necessidades nutricionais, reduzindo os riscos e os efeitos
da isquemia no encéfalo (AFIFI, Adel K; BERGMAN, Ronald A. Neuroanatomia funcional. 2 ed. São Paulo:
Roca, 2008).
Crítica da Razão Eucórpica 75
26
“One great design of nature in the structure of this important and wonderful viscus, was to frame the vehicles
so very minute, thereby effectually to hinder the ingress of gross, feculent particles, which might be injurious
to the animal economy” (PRIESTLEY, 1776, p. 232).
76 Crítica da Razão Eucórpica
desse sistema de pensamento que o corpo produzido pela Fisiologia (em associação com a
Anatomia) é o eucorpo, que seria um corpo destituído de subjetividade, de vontade, de espíritos,
cuja sensibilidade estaria sob o comando da consciência, que passava a ser sinônimo de razão.
Em Nietzsche (1998) [1887], essa consciência estaria sob o comando da moral,
diferenciando a boa e a má consciência; a segunda é revelada pelo sentimento da culpa. Se “toda
tábua de valores [...] necessita primeiro de uma clarificação e interpretação fisiológica, ainda
mais que psicológica; e cada uma delas aguarda uma crítica por parte da ciência médica” (p.
46), não poderia ser a patologia a versão da má consciência na razão eucórpica, com efeito, a
saúde a boa consciência?
Susan Sontag escreveu dois ensaios sobre as doenças: Illness as metaphor [A doença
como metáfora], em 1978, quando recebeu um diagnóstico de câncer e passou por todo o
tratamento, e AIDS and its metaphors [A aids e suas metáforas], em 1989, durante o início da
pandemia de aids. Ela inicia o primeiro com o seguinte enunciado:
De fato, e parece ser todo o argumento de Sontag, a doença distingue o bom do ruim.
As doenças são transformadas em metáforas e avançam em diversas áreas da vida; na sociedade,
aparecem como perturbações do corpo político, ou a desordem política como doença que requer
tratamento para restabelecimento do equilíbrio; sobretudo o câncer é a metáfora prevalente, ela
exemplifica: “Trotsky chamava o estalinismo de câncer do marxismo”; “durante a Revolução
Cultural [da China], o Bando dos Quatro tornara-se, entre outras coisas, o câncer da China”
(SONTAG, 2009; p. 93) – o câncer, segundo Sontag, é sempre um “bárbaro interior” – talvez ela
não tenha percebido que “bárbaro”, nesse uso, torna-se metáfora e a insere num discurso
bastante eurocentrado, cujas origens estão lá no pensamento evolutivo do século XIX,
justificando, filogeneticamente, inclusive a escravização de indígenas e africanos. Não apenas
do câncer, mas, da tuberculose, no século XIX, produziram-se diversas metáforas ligadas a
inteligência, romantismo, sensibilidade, mas também, paradoxalmente, repressão, tristeza,
angústia. Segundo Sontag, a tuberculose sempre foi “uma metáfora ambivalente” (p. 73).
Qualquer que seja a metáfora, retornamos à questão nietzschiana da moral e da culpa, agora
relacionada às doenças, evidenciada no segundo ensaio:
Crítica da Razão Eucórpica 77
Contrair câncer é, também, visto por vezes como culpa de alguém que cedeu
a um comportamento “de risco” – o alcoólico com câncer do esôfago, o
fumante com câncer do pulmão: punições por uma vida pouco saudável. [...]
A investigação procura estabelecer cada vez mais associações entre certos
órgãos e aparelhos essenciais e determinadas práticas que se procura levar as
pessoas a abandonar [...]. Mas os hábitos perigosos associados ao câncer, entre
outras doenças – mesmo as doenças do coração, até aqui pouco culpabilizadas,
são agora vistas em larga medida como o preço a pagar pelos excessos
alimentares e pelo “estilo de vida” –, são o resultado da falta de vontade ou de
prudência, ou ainda da intoxicação com químicos legais (se bem que muito
perigosos). O comportamento de risco que conduz à aids [HIV/aids]27 é
considerado mais que uma mera fraqueza. É visto como do domínio do vício,
da delinquência – dependência de substâncias químicas ilegais e hábitos
sexuais pervertidos28 (SONTAG, 2009, p. 120).
27
Como, quando a autora escreveu o ensaio, no início da pandemia de aids e sem tratamentos efetivos, a aids era
uma doença mais aterrorizadora do que é atualmente, não havia, portanto, a diferença entre “viver com HIV”
e “desenvolver a aids” – talvez, atualmente, não apenas desenvolver a aids, mas também contrair HIV e, por
consequência, viver com HIV deva ser incluído no contexto de que a autora fala.
28
Como a edição (e tradução) do livro é portuguesa, algumas palavras e expressões no excerto foram vertidas
para o português do Brasil.
78 Crítica da Razão Eucórpica
aceitável, o que agora não é, usar o câncer como metáfora (SONTAG, 2009, p.
95 – destaque meu).
O que eu queria dizer [n’A doença como metáfora] era: Façam com que os
médicos vos digam a verdade; sejam doentes informados e ativos; procurem
tratamentos (no meio da inépcia reinante). Apesar de não existir o remédio,
mais da metade dos casos podem ser curados com os métodos existentes
(Idem, p. 109 – destaque em itálico no original).
tempo, a despeito da evidência científica de que pessoas com HIV sob tratamento antirretroviral
não transmitem HIV, mesmo em relações sexuais sem o uso de preservativos, tal condição não
se transforma em metáfora positiva – por quê? Simplesmente porque as metáforas operam
circunscritas na razão eucórpica. As pesquisas conhecidas por Partner 1 e 2 (de 2014 e 2018)
somam uma quantidade de mais de 126 mil relações sexuais sorodiscordantes (desde que a
pessoa com HIV esteja em tratamento antirretroviral) sem camisinha com zero taxa de
transmissão. Há, em tudo isso, certa quantidade de verdade, não obstante, há sempre um
assustador “porém”, de onde se ressaltam o medo e a culpa sustentados por metáforas,
explicitamente entre aspas, no trecho:
Porém, mesmo quando a carga viral é indetectável, o HIV ainda está presente
no corpo. O vírus permanece latente (“dormindo”) dentro de células no corpo.
Quando a terapia é interrompida, seja por alguns dias ou definitivamente, o
vírus volta (“acorda”) e começa a se multiplicar, tornando-se detectável
novamente e, muitas vezes, resistente aos medicamentos previamente usados
(MINISTÉRIO DA SAÚDE/BRASIL)29.
29
Disponível em: http://www.aids.gov.br/indetectavel/ Acesso: 10/09/2021.
80 Crítica da Razão Eucórpica
30
“A injeção e a faca dos anatomistas os acompanham muito bem, e a razão completa a distribuição, já que não
se pode ferir a carne de um músculo em nenhum lugar sem que sangre e testemunhe uma sensação de dor”.
31
A noção de “nervo” naquela época não era a mesma que atualmente. Tampouco se conheciam os neurônios.
Era uma visão mais macroscópica de uma estrutura. Os nervos eram concebidos como tubos (assim como os
vasos sanguíneos e linfáticos).
32
“After having made [some] observations on the natural functions of the intestines, it occurred to my thoughts
to observe the effect of cathartics therein. One does not often see the inside of the guts of a living person in
good health, and freely performing his functions: wherefore I was willing to make use of uncommon on
Crítica da Razão Eucórpica 81
occasion. First, I put a little Pulp of Cassia on several places of these two portions of gut. This medicine made
very little impression on those parts; they stirred very little, especially the upper gut. Next, I laid on Manna.
This, when somewhat dissolved; formed a sort of froth, and then the gut was agitated by vermicular motions,
and by small convulsive contractions, much more distinct than in the conditions I had examined it before. I
took off Manna, and strewed powder of Zalap on the Gut. At first, it had no effect; but, when it was moistened,
the Gut was violently agitated, discharged most serosity and the patient complaining of gripping. I removed
the powder, and under it I found great quantity of mucilage, that was already gathered there” (LE CAT, 1740,
p. 720).
33
“I thought it needless to harass this Woman by further Trials, which would prove much the same with the
foregoing ; and therefore turned my whole Attention on the Means of curing her of this Accident, and thereby
rewarding her for the Services she had rendered us” (Ibid., p. 721).
34
“The Portion, or Branch, corresponding with the Anus, must have had less Motion, and be less found; because
it is deprived of the Share of Life that would come to it from the Continuity of the Fibres that were pinched and
carried off by the Strangulation, and that it is continually exposed to the Air. The Other Portion is full of Life,
because its Continuity with the Stomach makes it enjoy all Life that this Communication can furnish it with;
82 Crítica da Razão Eucórpica
and that besides it remains within the Abdomen, while the Patient is in a recumbent Posture” (Ibid., p. 722 –
substantivos comuns com iniciais maiúsculas foram modificados na tradução).
35
« Les muscles sont sans doute, dans l'état de vie, les seuls organes capables de séparer cette matière de la
masse du sang, et de se l'approprier. (CUVIER, 1835; p. 105). L'action de la volonté sur les muscles n'est donc
pas immédiate, elle dépend d'une action du nerf sur la fibre [musculaire], qu'il est au pouvoir du moi de
déterminer, en vertu de cet empire à jamais incompréhensible que l'ame exerce sur le système nerveux : mais
si ce rapport du moi avec le nerf est au-delà des bornes fixées à nos connaissances, il n'est pas impossible que
nous découvrions un jour la nature du rapport du nerf avec la fibre qui ne peut être que purement physique, et
de corps à corps » (Idem, p. 110).
36
Essa revista, em atividade até hoje, publicação da The Royal Society, é a revista mais antiga de publicação
científica; sua primeira publicação aconteceu em 1665. No século XVIII, era bastante recorrente a publicação
de artigos sobre fisiologia, sobretudo em relação ao galvanismo.
37
“and yet it is a fact, that no muscle of voluntary motion contracts, but at the command of will, morbid cases
excepted” (MORTON, 1751, p. 309).
Crítica da Razão Eucórpica 83
em animais logo após sua morte, “imagine em animais vivos?”, cuja vontade pode se expressar.
Com efeito, a doença ou os casos mórbidos seriam a condição em que a vontade falha por não
ser capaz de manter contato com o sangue e com os nervos para determinar funções fisiológicas.
Ele tenta provar que a vontade tem poder sobre a sensação, inclusive de torná-la mais
ou menos precisa. O problema de pesquisa apresentado em seu artigo era o seguinte: “em
relação a um músculo (tanto os esqueléticos quanto o cardíaco38) em seu estado natural, no
corpo de um animal vivo, é perguntado como ou por que meios mecânicos este músculo contrai
e depois relaxa sobre o comando da vontade” (MORTON, 1751, p. 305)39. Embora pautada em
elementos anátomo-fisiológicos, a argumentação, como veremos, os extrapola. Há um
movimento do olhar para as partes internas, mas há relevância bastante considerável do mundo
externo. Morton toma como verdade o comando da vontade e sua busca está nos meios
mecânicos – esse meio mecânico, conclui ele, é o calor do sangue. Ele também acreditava que
a vontade tinha poder sobre sensação [the will hath a direct power rendering more acute the
sensation], porque a sensação seria relativa e devida à força com que os objetos impressionam
os órgãos do sentido, contudo, mesmo a presença de um objeto forte, quando se torna habitual,
não causaria mais sensação. Esse corolário permitiu compreender que o valor mecânico do
sangue está no seu calor, que ao chegar aos músculos os faz contrair e ao sair os relaxa. A
vontade atuaria permitindo que os músculos percebessem o calor e, por consequência
puramente física, se contraíssem.
Diferente de Cuvier (1835), que atribuía à alma [l’ame] a união da vontade com os
nervos, com um trabalho baseado, segundo ele, em observações e relações anatômicas, Morton
(1751), baseado em um trabalho que ele define como de síntese filosófica, utilizava dados
empíricos – seus experimentos consistiam em impedir o sangue de chegar aos músculos ao
amarrar as artérias –, mas o corolário se fazia por relações quase intuitivas:
E a experiência nos ensina que esse poder [da vontade] é maior ou menor de
acordo com o maior ou menor uso frequente e exercício que se faz dele. É
38
No artigo, apenas o músculo cardíaco era considerado músculo involuntário; os músculos lisos (de órgãos e
dos vasos sanguíneos – também chamados atualmente de involuntários) não haviam sido descritos, portanto,
nem existiam ainda como realidade fisiológica.
39
“[…] a muscle being given in its natural state, in a living animal body, it is asked how, and by what mechanical
means, that muscle contracts, and is again relaxed, at the command of the will?” (MORTON, 1740, p. 305).
84 Crítica da Razão Eucórpica
40
“And the experience teaches us, that this power is greater or less, according to the more or less frequent use
and exercise that is made of it. For it is obvious to every one, that any found man is able to feel, to taste, to
smell, to hear, and to see, more accurately when he pleases” (MORTON, 1751, p. 312).
41
“I would not have proved so, if I had injected the umbilical vein, as I generally do in all my monsters” (LE
CAT; UNDERWOOD, 1767, p. 11)
42
“In the usual structure of the embryo, nature has shortened all the ways, to bring the arterial blood of the
mother more speedily into the heart, into the very aorta inferior of her fœtus” (Ibidem, p. 12).
Crítica da Razão Eucórpica 85
conexão sanguínea com a mãe. Reforça-se ao sangue seu poder dentro da economia animal, o
qual permitiria também ao feto sensibilidade, sensação e paixão, delegados às meninges e
nervos como receptores daquele fluido conservador: há nesse raciocínio um movimento de
internalização e materialização da “vontade”, por ser possível uma explicação fisiológica.
Como, durante o parto, houve grande movimento do “monstro” para nascer, Le Cat e
Underwood concluíram que o movimento voluntário estaria ligado à sensibilidade, à sensação
e à paixão, em suma, à vontade.
Um artigo de 1799 revela-nos um detalhe importante sobre a concepção do que seria um
nervo ao longo do século XVIII: “Esses experimentos [apresentados no artigo] mostram que os
nervos não se consistem em tubos que transportam fluidos [como os vasos sanguíneos], mas
em fibras de um tipo peculiar, diferente de qualquer coisa no corpo com as quais estamos
acostumados”43 (HOME, 1799, p. 12). Dessa forma, muito dos raciocínios e conclusões sobre o
sistema nervoso estava subsidiado por uma explicação física para a qual a metáfora dos tubos
não funcionava bem, como, por exemplo, toda a relação estabelecida por Monsieur Le Cat
(1740) sobre os hidatídeos. No próximo item, sobre o corpo mecânico, essa questão será
retomada. Segundo Loro et al. (2018), a primeira descrição do neurônio só foi feita em 1836; o
primeiro neurotransmissor – a acetilcolina – foi descrito em 1921; e as sinapses, descritas em
1963.
É também nesse artigo de 1799 que uma mudança importante em relação à vontade
aparece. Everard Home pretende investigar se o brilho visto nos olhos do gato é devido a um
fenômeno puramente físico ou proveniente de uma estrutura anatômica interna que o produz.
Depois de vários experimentos, Home conclui que o olho do gato não produz o brilho, mas a
vontade tem influência sobre a íris para dilatar-se ou contrair-se, o que torna a pupila mais
aberta ou mais fechada, permitindo que a luz externa refletida de dentro passe para o mundo
externo e assim temos a impressão de vir de dentro do olho. No entanto, diz ele, “quando o
animal está atento ou perturbado, ele naturalmente dilata a pupila e o olho brilha; quando ele
está apaziguado ou recomposto, a pupila se contrai e a luz não pode mais ser vista no olho”44
(p. 4 – destaque em negrito meu). A vontade não é mais causa de algo que incide sobre o mundo
exterior, ela é doravante uma consequência natural desse mundo exterior, perde seu poder de
43
“These experiments show, that the nerves do not consist of tubes conveying a fluid, but of fibers of a peculiar
kind, different from every thing else in the body, with which we are acquainted” (HOME, 1799, p. 12).
44
“The influence which the will of the animal has over this luminous appearance, seems altogether to depend on
the contraction and relaxation of the iris. When the animal is alarmed or first disturbed, it naturally dilates the
pupil, and the eye glares; when it is appeased or composed, the pupil contracts, and the light in the eye is no
longer seen” (HOME, 1799, p. 4).
86 Crítica da Razão Eucórpica
ação e lhe é atribuída a ação menor de influenciar – posteriormente esse processo de dilatar ou
contrair a pupila é explicado por mecanismos reflexos, que nada mais seriam do que circuitos
neurais predeterminados (automatismo) nos seres vivos, mas a vontade já fora materializada,
sistematizada, hierarquizada e descrita fisiologicamente.
Evidenciam-se aqui mais elementos das relações quiasmáticas, que, no século XVIII,
separavam a normalidade da monstruosidade, e no século XIX em diante, separam eucorpo de
corpo, e, com efeito, humanos de não humanos. Foi a Georges Frédéric Cuvier delegada a
autópsia de Saartjie Baartman (também chamada de Sarah Baartman), a Vênus Hottentote,
publicada em 1817, no tomo terceiro das Memoires du Muséum d’Histoire Naturelle [Memórias
do Museu de História Natural] sob o título EXTRAIT D’OBSERVATIONS. Faites sur le
Cadavre d’une Femme connue à Paris et à Londres sous le nom de Vénus Hottentotte [Extrato
de observações. Realizadas no cadáver de uma mulher conhecida em Paris e em Londres por
Vênus Hottentote]. Depois de descrever em dez páginas a “história natural” dos Hottentotes
sob uma ótica que poderia ser considerada antropológica – se não tivesse sido escrita por um
zoólogo da anatomia comparada – Cuvier passa a fazer, nas próximas nove páginas, uma
descrição anatômica das características morfológicas internas e externas de Saartjie Baartman.
É nitidamente um trabalho com éthos zoológico, que evidenciava o humano [branco europeu]
pela enunciação da animalidade; com efeito, enunciava-se também o que não era eucorpo.
Chauveau (2012) destaca a publicação de Georges Cuvier e de Etienne Geoffroy Saint-
Hilaire sobre Saartjie Baartman intitulada Histoire naturelle de mamiféres [História natural dos
mamíferos]. O autor apresenta um cartaz afixado (Fig. 2.2) nas ruas de Londres convidando as
pessoas a assistirem à “performance” da Vênus Hottentote; trata-se de sua primeira aparição,
em 1810, nos freak shows europeus – ou o mundo das raridades biológicas – do século XIX.
Desse dia até sua morte em 1817, decorreram sete anos de sua apresentação como animal.
Frantz Fanon (2020) denuncia, no século XX, esse mesmo éthos ou pathos entre
colonizados e colonizadores, especialmente em relação à medicina e seus experimentos:
[Figura 2.2] Cartaz divulgado na cidade de Londres, em 1810, para apresentação de Saartjie
Baartman como “o maior fenômeno” [the greatest phœnomenon ou raro biológico, ou aberração
(freak)].
Joseph Priestley, em 1776, entre diversas discussões, apresenta uma espécie de estado
da arte sobre a fisiologia da respiração. Na primeira metade do artigo (cerca de 12 páginas), ele
apresenta as concepções sobre o processo respiratório desde Hipócrates até os autores
contemporâneos dele: o ar inalado pelos pulmões teria desde espíritos que provêm a vida
(vivifying spirits) até a ideia de que contém uma virtude elétrica (electrical virtue). Essas duas
concepções, com efeito, denotariam basicamente a mesma coisa, uma vez que a eletricidade,
naquela época, supunha-se dar vida ao corpo e era a principal solução para a cura das doenças.
Em 1748, Henry Baker publica na Royal Society, na forma de um artigo, uma carta enviada ao
presidente dos EUA, em que tenciona convencê-lo da eficiência da eletricidade no tratamento
45
O regime nazista, é sempre bom lembrar, não assassinou apenas judeus, também foram assassinados negros,
homossexuais, ciganos, pessoas com deficiências físicas e mentais. De fato, o grupo mais vitimado foram os
judeus.
88 Crítica da Razão Eucórpica
Outros [cientistas] dizem que o ar, ele mesmo, não é admitido no sangue, mas
apenas suas partículas ativas, espirituosas e etéreas; que esse espírito vital
passe dos pulmões para o coração e artérias, e, no caminho, torna-se os
espíritos animais por meio do ar gerado. Outros, que não admitem os espíritos
animais serem derivados do ar, ainda dizem que algum outro princípio vital
vem dele (PRIESTLEY, 1776, p. 229).46
Esse princípio vital (ou espírito vital) ganha descrições em cada um dos autores citados
no artigo: para Malpighius é um vapor salino; para Lister, um espírito quente, inflamável e
sulfuroso; para Vieussenius, um sal ácido volátil que mantém a fermentação do sangue, e para
Bryan Robinson, um ácido aéreo, que previne o sangue da putrefação, dá densidade e fortalece
as fibras animais. Espírito, nesse sentido, embora abstrato, contém alguma materialidade, assim
como força vital – ambos parecem designar quase que a mesma coisa: a vida ou o que a permite,
ou simplesmente as duas coisas.
Priestley (1776) investigava que propriedades do ar permitiam suporte à vida animal e
acreditava – e partir desse pressuposto – que a respiração seria um processo flogístico (relativo
ao oxigênio – atualmente, representado quimicamente por O2, ou O=O). O movimento
interessante que Priestley faz é retirar a abstração das explicações e propor materialidade;
discursivamente, mantém-se a mesma ideia, o mesmo processo, no entanto, os enunciados
adquirem concretude pelo uso de termos químicos mais elaborados; o conjunto de explicações
para espírito é substituído por “processo flogístico”, que contém outro conjunto de explicações
para a mesma coisa; ainda assim espírito aparece em expressões como algo “inexplicável” nas
propriedades de certos elementos, como no vinho e no nitro (spirits of wine, spirits of nitre),
ambos relativos a certas propriedades – que talvez hoje chamemos de químicas. Um possível
efeito de toda essa descrição pode ser a noção de que todo o conhecimento atual sobre química,
física e, por extensão sobre biologia, tenha se aprimorado e estejamos mais próximos da
“verdade” dos fenômenos, no entanto, apenas temos formulado problemas que [acreditamos]
saber responder – evocando Foucault e Einstein.
46
“Others say, that the air itself is not admitted into the blood, but only active, spirituous, and ethereal particles;
that this vital spirit passes from the lungs to the heart and arteries, and at length becomes the animal spirits,
which are by means generated from the air. Others admit that the animal spirits are derived from the air, still
say that some other vital principle comes from thence” (PRIESTLEY, 1776, p. 229).
Crítica da Razão Eucórpica 89
47
“As the principal use of the blood seems to be its power of receiving and discharging phlogistion, and the
degree in which it processes this power is easily ascertained by the eye, it might not, perhaps, be unworthy of
being particularly attended to by physicians” (PRIESTLEY, 1776, p. 247-8).
90 Crítica da Razão Eucórpica
48
“All the organs of sense are entire; savoury food is agreeable to his taste, but he is moderate in eating. His
sight is good, but looking with attention at objects more than half an hour, appears to strain his eyes. His head
is so heavy, that the muscles of the neck are unable to support it for many hours together: when he lies down,
the head is supported by another person. He sleeps with most ease on the right side, and the left side of the
head appears to the eye to be rather the largest. In lying down, there is, what he describes to be, a momentary
thrilling heat felt on the upper part of the brain, in the line of the longitudinal sinus. Lying on his back strains
his eyes so much, that he cannot continue in that posture; stooping forwards brings an oppression upon his
eyes. The least weight in his hand, as a tea cup, makes it tremble. When he falls down, the jar renders him
insensible; at one time this was the case for fifteen minutes, without being attended with any bad consequences.
His head aches when exposed to heat. He has had no illness since the small-pox. His sleep is easily broken: he
never dreams. He is fond of reading and writing; has a taste for poetry, and can repeat verses out of COWPER.
His memory of common things is very good. He never expressed any attachment or passion for women. He is
of a mild disposition; but when irritated, his whole frame is in a state of agitation, which, however, soon goes
off” (HOME, 1814; p. 472-3).
Crítica da Razão Eucórpica 91
objetividade, torna-se evidência material. Com efeito, “Nunca apresentou qualquer apego ou
paixão por mulheres. Ele tem um temperamento brando”, embora não apresente nada de
concreto, adquire status de referencial – ou revela a diferença entre normalidade e anormalidade
– no contexto da patologia com efeitos na terapêutica. É necessário que se distinga o que é um
sinal bom e o que é um sinal ruim. Bom e mau, com efeito, tornam-se julgamentos da razão
eucórpica – qual o referencial para dizer que o garoto come com moderação? Seria um processo
naturalmente obrigatório sentir afeto por mulheres? Disso, criam-se duas subáreas da patologia:
sintomatologia e nosografia, a primeira como o estudo do conjunto de sinais e sintomas das
doenças, e a segunda, como o conjunto da evolução dos sinais e sintomas das doenças – ambas
se constituem em conjuntos de descrições de dados “objetivos” observáveis. Se sintoma é
subjetivo, na produção da sintomatologia há uma transvaloração do subjetivo em objetivo, via
olhar médico – seria, portanto, o estudo dos sintomas, subjetivos, que os transforma em
possibilidade nosográfica. O artigo também inicia a discussão com um tipo de pensamento e
racionalidade sobre a doença que permanece até hoje; a relação hipo-hiper define, em seu
intermédio, a normalidade:
Foucault (1975) defende que a medicina mental, assim como a medicina orgânica,
buscava desvendar a essência da doença a partir da construção da sintomatologia e da
nosografia – a doença mental, assim como a orgânica, torna-se uma entidade nosográfica – no
século XX. No entanto, a despeito das citações que Foucault faz para construir sua
argumentação, datadas entre 1889 e 1930, esse movimento vinha acontecendo bastante antes.
Um detalhe importante naquele artigo de 1814 diz respeito à associação entre pressão devida
ao acúmulo de água nos ventrículos (um dado material anatômica e fisicamente explicado) com
o prejuízo material (materially impairing) do cérebro; como exemplos desses prejuízos são
apresentadas as seguintes observações: dores de cabeça, sensação de que a cabeça é muito
grande, perda de espíritos, convulsões, perda de memória recente, idiotismo, insensibilidade e
morte. “Sensação de que a cabeça é muito grande”, por definição, seria menos sinal do que
49
“I am induced to believe that pressure to a certain degree uniformly kept up, is necessary for the performance
of the healthy functions of the cerebrum; and any increase or diminution of this pressure puts a stop to them”
(HOME, 1814, p. 470).
92 Crítica da Razão Eucórpica
sintoma, no entanto, quando enunciado pelo médico tornar-se-á sinal – perda de espíritos,
juntamente com os outros sinais e sintomas, é um prejuízo material. Diria Austin que a
revelação de uma doença (pelos seus sinais) é um ato de fala que torna o indivíduo um sujeito
[à medicina], no caso, um sujeito-doente?
“Perda de espíritos”, independente do que sejam espíritos, transforma-se em sinal, em
dado objetivo, mais do que isso, transforma-se de uma causa oculta que explicava a vida para
uma consequência objetiva mais próxima da morte. Entre as definições de vida e morte, a
segunda ainda é mais objetiva do que a primeira. Atribuindo graus de comprometimento
cerebral pelo acúmulo de líquidos, o autor considera outro dado como “depressão de espíritos”,
juntamente com dor na parte posterior da cabeça e mania; outros sinais e sintomas, com lesões
mais graves, são melancolia, imbecilidade, apoplexia e paralisia de um lado; o autor considera
tudo sintoma – que está condicionado a prejuízo material. A diferença entre sinais e sintomas é
concebida posteriormente, segundo Foucault (1975a), na passagem do século XIX para o XX
– mas já subsumida nessa racionalidade.
O artigo continua suas argumentações com relatos de efeitos produzidos quando os
vasos sanguíneos do cérebro são sobrenaturalmente dilatados e adoecidos [effects produced
when the blood vessels of the Brain are preternaturally dilated and diseased (HOME, 1814, p.
477)]. Evidencia-se da discussão apresentada pelo autor o fato de que a causa – sobrenatural –
é abandonada em detrimento da evidência anatômica e de sua observação sintomatológica
(anátomo-fisiológica). Trata-se do caso de uma mulher com “espíritos desiguais” [inequal
spirits], seguidos de dupla visão, ataques de tontura e mania, delírio, mãos entorpecidas e morte.
Pela autópsia, detectou-se um aneurisma em ambas as carótidas internas. Destaque-se o
paradoxo – para nós do século XXI – do sintoma (ou sinal) relatado pelo autor: “ela tinha
consciência de estar louca” [with consciousness of being insane]. Saliente-se que não se trata
de um artigo de Psicologia, mas de Fisiologia. Nesse caso, o paradoxo some: é possível estar
louca e saber disso, talvez por isso seus espíritos sejam desiguais – mas ainda resta uma dúvida:
por que o plural? Seriam os espíritos doravante dois polos de uma mesma consciência? Não
obstante, a Psicologia nunca pôde oferecer à Psiquiatria o que a Fisiologia ofereceu à Medicina;
como a abstração em Psicologia e em Fisiologia opera de formas diferentes, a delimitação de
distúrbios patológicos orgânicos exigiria métodos diferentes da dos distúrbios mentais
(FOUCAULT, 1975a) – ou do espírito – no entanto, ambos seguiam os mesmos métodos: os
anátomo-fisiológicos – tais perguntas só puderam encontrar respostas, portanto, nos métodos
orgânicos [eucórpicos].
Crítica da Razão Eucórpica 93
Por outro lado, Foucault (em História da Loucura na época clássica, 1972) relata que
a loucura dizia respeito, nos séculos XVII e XVIII, a pessoas insanas e em demência, mas
também a pessoas com o “espírito alienado”. A diferença entre doente ou não ou entre alienado
e criminoso estava atrelada a “desarranjo nos costumes” – “furioso” ou “furor” eram os termos
citados por Foucault (1972) que uniam a loucura tanto a uma jurisprudência jurídica quanto a
um diagnóstico médico, capazes de determinar tanto um imperativo policial para a prisão
quanto moral para o internamento. “Espírito” cabe bem a esse propósito, sobretudo porque
torna-se algo “observável” e “quantificável”, atravessado por julgamentos morais com o nome
de costumes.
De alguma forma, espírito não é mais coisa oculta ou tampouco algo semelhante à
vida. Espírito parece dizer respeito a alguma entidade corpórea que, ao mesmo tempo em que
está separada do corpo, dele é uma projeção ou um funcionamento. Embora Foucault (1975)
diferencie, entre aspas, as “doenças do corpo” e as “doenças do espírito”, o artigo de Home
(1814) trata ambas como doenças do corpo. Assim como espírito demanda materialidade e
apresenta-se como algo observável, só é possível ser apreendido empiricamente e descrito,
circunscrito na noção de economia animal. Em 1829, dois autores, Robert Lee e Dr. Proust,
descreveram e analisaram as estruturas internas de 20 fetos humanos de diferentes idades,
porque “tencionavam trazer luz aos processos fisiológicos obscuros concernentes à economia
fetal”. O que a economia animal pretende fazer, ao longo do século XIX, é definir a normalidade
por meio do modus operandi da natureza. É exatamente esse o termo utilizado. Diferentemente
de Le Cat, em 1767, que lidava com “um monstruoso feto humano” [monstruous human fœtus],
a palavra “humano” aparece agora associada aos fetos sem adjetivos. Ainda assim a natureza
condicionava uma “vida” economicamente funcional e funcionalmente econômica:
Tenho sido levado a concluir [...] que a função do fígado fetal não é, como
geralmente tem sido suposto, separar do sangue um fluido de excrementos
danosos à economia da criança; pelo menos, não é bem esse seu único uso,
mas também executar outro importante ofício de assistência à nutrição fetal50
(LEE; PROUD, 1829, p. 124).
A despeito dessas diferenças, os dois artigos têm uma característica em comum: ambos
contêm basicamente descrições anátomo-fisiológicas apoiadas na economia animal, mas,
diferente de Le Cat, o humano havia irrompido como objeto de pesquisa, o que permitiria
50
“I have been led to conclude [...] that the function of the fœtal liver is not, as has generally been supposed, that
of separating from the blood an excrementitious fluid injurious to the œconomy of the child; at least that such
is not its only use, but that it also performs some other important office destined to assist in the nutrition of the
fœtus” (LEE; PROUD, 1829, p. 124).
94 Crítica da Razão Eucórpica
51
“This volume of 285 pages is largely devoted to the gross and minute anatomy of the brain. Besides the
appendix on mechanism of expression, and a short chapter on nutrition of the brain, two-thirds of the book are
devoted to anatomy and one-third to the physiology of this important organ. The work represents the results of
Meynert’s researches up to 1884, and is of first-class value as embracing the descriptions of a master in
cerebral anatomy and physiology. The text is accompanied by mostly excellent engravings, which are so
necessary to the comprehension of this abstruse subject” (THE AMERICAN NATURALIST, 1886, p. 474-5).
Crítica da Razão Eucórpica 95
52
“The latter [the brain] can be likened to a mirror which simply reflects the forms of the outer world; that the
world as it appears to the brain exists independently of the presence or absence of mind. Indeed, it seems to
me to be a crucial test of an individual's power of thought to determine whether he can conceive or not of the
unreality of the world clad in forms which our minds have bestowed upon it. It should be reiterated that the
idealistic conception of the world is supported by physiological facts, and still more positively by the facts of
cerebral architecture” (THE AMERICAN NATURALIST, 1886, p. 479).
53
“Perceptional and ideational incapacity, based on pathological conditions, no more prove the unreality (i.e.,
immensurability) of the non ego, than the perfection of our cognitions enables us to perceive all there is of the
world” (Ibidem, p. 479).
54
A primeira edição de A interpretação dos sonhos data de 1909, e a oitava (e última revista por Freud), de 1923.
Crítica da Razão Eucórpica 97
Sabe aquele chazinho milagroso da vovó? Aquele que acalma, cura gripe, faz
passar cólica... Muitas pessoas acreditam no poder medicinal das plantas e,
para os cientistas, esse é um assunto sério e com nome próprio [mas escrito
com letra minúscula]: etnofarmacologia, um ramo da biologia que estuda o
uso terapêutico de plantas e animais pelas sociedades humanas, presentes ou
passadas. [...].
55
Disponível em: https://www.ufmg.br/cienciaparatodos/wp-content/uploads/2011/05/03-
etnofarmacologiaconhecimentopopularemparceriacomaciencia.pdf, acesso 27/09/2021. O material diz: Texto
originalmente escrito por Camila Rabelo para o programa “Na Onda da Vida” da Rádio UFMG Educativa e
adaptado por Laura Barroso.
98 Crítica da Razão Eucórpica
Uma dúvida surge: a quem se refere o “nós” em “chamamos”? Uma resposta possível
seria “nós, a razão eucórpica”, formada por um conjunto de agentes que coletam e identificam
uma planta usada há tempos para tratar o corpo e doravante produzem uma droga cujo princípio
ativo está de acordo com a economia (pode-se agregar o adjetivo animal, mas também não é
necessário), verificada e “validada” por testes anátomo-fisiológicos – a etnofarmacologia, por
exemplo, é a ponte entre a “crença” e a “comprovação” científica com seus efeitos e benefícios
econômicos. O chazinho se torna princípio ativo; este último tem um fitness econômico
infinitamente maior do que o chazinho da vovó dentro da razão eucórpica – o chazinho da vovó
está para o corpo assim como o princípio ativo está para o eucorpo. O diminutivo chazinho
ganha um elíptico aumentativo em princípio ativo – e nunca mais será chá ou chazinho.
O panfleto finaliza com o seguinte texto: “Agora você já sabe que a etnofarmacologia
é muito importante, principalmente em um país como o nosso, cheio de florestas e culturas!”.
Interessante o recurso à elipse: importante para quem e para quê?
Uma publicação online da National Geographic (jun./2020)56 descreve a história da
hidroxicloroquina.
Foi preciso séculos até que os cientistas descobrissem que essa variedade
específica de Cinchona era uma fonte de quinina, que mais tarde inspiraria a
produção de drogas sintéticas, incluindo a cloroquina e hidroxicloroquina.
56
Disponível em: https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/06/cha-de-quina-coronavirus-
cloroquina-malaria-hidroxicloroquina-quinina; acesso em 12/10/2021.
Crítica da Razão Eucórpica 99
função perdida ou reduzida; sua função é suporte – são exemplos: os óculos, lentes de contato,
muletas, bengalas, peruca; diferente das próteses, que supõem restabelecimento permanente da
função perdida, cuja função é substituição, são exemplos: implantes dentários, pernas
mecânicas, próteses articulares. É nesse sentido que o uso de microscópios e lupas, e
posteriormente, ultrassonografia, tomografia, radiografia torna a razão eucórpica uma razão
ortética, cujo limite entre uma razão protética é tênue, uma vez que, embora esses equipamentos
todos não substituam fisicamente o corpo humano, tornaram-se quase imprescindíveis para o
diagnóstico. Todas aquelas dobras protusas da realidade corpórea oculta dos sentidos (físico-
químicos) humanos apenas podem ser “vistas” com instrumentos e, com efeito, tornam-se mais
do que realidades, tornam-se as “coisas em si fisiológicas” cuja anatomia microscópica revela.
Esse conjunto torna possível à razão eucórpica a prótese de Deus, torna-a um panótico capaz
de enxergar todas as trilhões de células que compõem o organismo humano – com o avanço
tecnológico, nada mais escaparia à onipresença, onipotência e onisciência da razão eucórpica.
Não obstante, ao mesmo tempo em que colocaria em grande aumento as normalidades anátomo-
fisiológicas, também põe em aumento as anormalidades e monstruosidades. Com efeito,
fisicamente, tanto normalidade quanto monstruosidade seriam exageros de uma escala visual
não humana interpretada por olhos humanos.
Donna Haraway (2000) define simplificadamente ciborgue como um híbrido de
máquina e organismo cuja realidade social é também fictícia; a realidade social diz respeito a
relações sociais vividas, significa uma construção política e uma ficção capaz de mudar o
mundo. Antes de produzirmos corpos ciborgues, produzimos primeiramente diagnósticos
ciborgues pelo uso de uma parafernália maquinária tecnológica para enxergar cada vez mais o
orgânico, que, paradoxalmente, torna-se cada vez mais uma imagem proveniente de uma
impressão 2D ou 3D em exames complementares que substituem a limitação dos cinco sentidos
humanos para perceber o mundo. Essas imagens tornam-se línguas e linguagens sobre as quais
poucos profissionais têm domínio e autoridade, que, mesmo quando traduzidas de imagens para
palavras, ganham um vocabulário muito particular, dificilmente compreendido. A “fronteira
entre ficção científica e realidade social é uma ilusão ótica” (HARAWAY, 2000, p. 36) com nome,
vocabulário, linguagem, categorização – um exemplo é o Código Internacional de Doenças
(CID).
A figura 2.4 revela a estrutura microscópica dos pulmões e os autores asseveram que
“nenhuma explicação sobre a respiração de acordo com os princípios químicos pode ser
considerada sem estar de acordo com a anatomia e fisiologia dos pulmões” (HOME; BAUER,
1767, p. 58). Mas não se trata de uma anatomia e de uma fisiologia quaisquer, mas dessa
Crítica da Razão Eucórpica 101
anatomia oculta doravante revelada em detalhes, como se as funções daqueles espíritos, antes
inexplicáveis, fossem agora apresentadas e, mais do que isso, como se eles fossem explicados
anátomo-fisiologicamente e cujos vocabulário e linguagem são bastante específicos. É essa
mesma lógica que transfere os espíritos metafísicos de processos psíquicos para a anatomia e
fisiologia do cérebro (Fig. 2.8, p. 106).
A figura 2.7 exemplifica processo semelhante: ao mesmo tempo em que revela a
anatomia oculta do útero, também, e por efeito dessa revelação, “esclarece” o uso do útero
dentro da economia animal: a gestação. Essa anatomia oculta aos olhos humanos apresenta-se
com uma minuciosa descrição, inclusive a respeito de seu tamanho: a largura de uma fibra
1
muscular no órgão é de 0,000635 (ou 6,35.10-4 cm) [representam 4000th of an inch, segundo o
artigo], o comprimento não pôde ser verificado, segundo o autor; quando separada do órgão
tem cerca de 0,0635 cm (ou 6,35.10-2 cm) de comprimento por 0,00127 cm (ou 1,27.10-3 cm)
de largura – as medidas estão mesmo em centímetros, no artigo. A diferença entre a célula
olhada ao microscópio no conjunto do órgão e isolada dele tem uma diferença de tamanho de
6,35.10−4
100 vezes (6,35.10−2 ), o que implica uma considerável distorção. Além disso, nessa lógica, é
como se olhássemos para um útero humano que mede entre seis e dez centímetros e o víssemos
entre 240 e 400 metros57. Quando olhamos uma célula de um órgão ao microscópio, para que
ela seja vista, ela precisa ser aumentada, consequentemente, o órgão é [inconscientemente]
também aumentado, porque somente a célula terá o tamanho que vemos se o órgão também o
tiver proporcionalmente, no entanto, não é esse o raciocínio que fazemos, apenas aumentamos
a célula sem aumentar o órgão – o que implica uma dupla distorção (da célula e do órgão por
meio da interpretação da primeira sobre o que revela do segundo) e, com efeito, uma
hiperalienação do órgão ou estrutura analisada.
A figura 2.6 (p. 105) apresenta a anatomia da traqueia, da faringe e da laringe e, ao
lado, os instrumentos que permitem comparar todo o aparelho vocal humano a uma máquina.
A imagem da cabeça, segundo o artigo, é de um ser humano dissecado e submetido ao
experimento. Segundo o artigo, a cabeça e os órgãos vocais foram preparados para o
experimento da seguinte forma:
1
57
Considerou-se para o cálculo a escala 1:4000, a partir do dado: “ th of an inch”.
4000
102 Crítica da Razão Eucórpica
comprimento da corda, a é sua profundidade, b é sua largura e δ é sua gravidade específica. Não
importa a fórmula em si, mas a referência físico-matemática como metáfora e significação, i.e.,
a semiologia, para descrever as funções do corpo. Não obstante, não é o corpo que tem essa
semiologia, mas o eucorpo; ao corpo a semiologia é destinada ao seu uso. Aqui evidencia-se
mais uma característica da sutura: a dobra indutiva constrói o eucorpo enquanto a dobra
dedutiva condiciona o uso dos corpos, como devem ser usados econômica e funcionalmente: a
fórmula resume o design da natureza como um funcionamento economicamente eficiente; a
natureza torna-se a normativa e é revelada, por meio da anatomia e da fisiologia, assim como a
diferença entre realidade e irrealidade, tão cara à Psiquiatria e, por extensão, à Medicina.
A tabela 2.1, reproduzida do artigo de Bishop (1846), apresenta a diferença do
comprimento (em polegadas) dos ligamentos tiro-aritenoides (principal componente das pregas
e músculos vocais – chamado por Bishop de aparelho vocal) de “homens” e “mulheres” em
duas situações, em repouso e em máxima tensão. O eucorpo também ganha a diferença entre os
sexos, mas o referencial é o “sexo masculino”; segundo o artigo, homens até 14 anos possuem
as mesmas características que as mulheres. Destaque-se a “precisão” das medidas, com até
quatro, cinco e seis casas decimais.
58
“The cervical vertebræ are removed, and the œsophagus opened behind the arytenoid cartilages, which are
fixed together by a strong pin and ligature; the latter is brought through the opening, which is then firmly
sewed together, and the lower opening of the œsophagus is also closed up. The larynx is laid bare, and the
superior portion of the thyroid cartilage carefully removed so as not to injure the mucous membrane of the
larynx. The parts thus prepared are firmly fixed against the column, to which the arytenoid cartilages are also
attached by the cord which binds them together. The trachea is connected with a pipe and bellows for the
supply of air” (BISHOP, 1846, p. 571).
Crítica da Razão Eucórpica 103
[Tabela 2.1] Relação entre o comprimento (em polegadas) dos ligamentos tiro-aritenoides de
homens e mulheres, em repouso e em tensão máxima
Número de experimentos
Sujeitos do experimento
1 2 3 4 5 6
Homem em estado de repouso 0,7087 0,63 0,63 0,83 0,748 0,748
Homem em estado de máxima tensão 0,83 0,83 0,984 1,0236 0,9055 0,9055
0,4724 Garoto de 14 anos em
Mulher em estado de repouso 0,47244 0,551
4 repouso: 0,414
Garoto de 14 anos em
Mulher em estado de máxima tensão 0,63 0,59 0,63
máxima tensão: 0,571
Média do comprimento nos homens Em repouso: 0,72834 Em máxima tensão: 0,912070
Média do comprimento nas mulheres Em repouso: 0,49868 Em máxima tensão: 0,61679
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 136, 1846. “On the physiology of the human voice”, de John Bishop,
reproduzido dos experimentos de Mr. Müller (não há referência no artigo).
A figura 2.9 (de 1900) finaliza esta sequência de imagens; nela o corpo por meio do
eucorpo torna-se representação esquemática; a distância entre a corporeidade do corpo e a
materialidade do eucorpo torna-se grande e, diferente das figuras anteriores, a noção de
engrenagem e máquina torna-se bastante presente. A figura 2.10 (do século XXI) descreve a
mesma lógica mecânica, mas no nível intracelular; a semiologia e a metáfora que descrevem os
processos bioquímicos também se tornam mecânica e sobretudo cibernética.
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 41, 1740. “Two Medico-Chirurgical Observations, by Monsieur Le Cat:
Communicated in a Letter to Mr. Serjeant Amyand, Dated at Rouen” de Monsieur Le Cat and T.S.
104 Crítica da Razão Eucórpica
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 57, 1767. “A Monstrous Human Fœtus, Having Neither Head, Heart,
Lungs, Stomach, Spleen, Pancreas, Liver, nor Kidnies”, de Claude Nicholas Le Cat and Michael Underwood.
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 117, 1827. “An Examination into the Structure of the Cells of the Human
Lungs; with a View to Ascertain the Office They Perform in Respiration”, de Everard Home and F. Bauer.
Crítica da Razão Eucórpica 105
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 136, 1846. “On the Physiology of the Human Voice”, de John Bishop.
Fonte: Philosophical Transactions, vol. 136, 1850. “On the Structure and Use of the Ligamentum Rotundum
Uteri, with Some Observations upon the Change Which Takes Place in the Structure of the Uterus during Utero-
Gestation”, de G. Rainey.
106 Crítica da Razão Eucórpica
[Figura 2.8] Representação do corpo em um artigo de 1886: (a) Secção longitudinal ao longo
da terceira convolução do lobo frontal e (b) secção longitudinal do cérebro [encéfalo] de
macaco (seguindo o título do próprio artigo)
Fonte: The American Naturalist, vol. 20, n. 5, 1886; (p. 476 e 477). “Psychology”. [Os números em algarismos
romanos foram incluídos: a Anatomia considera o cérebro uma parte de uma estrutura maior chamada encéfalo.
Compõem o encéfalo: o cérebro – telencéfalo (I) e diencéfalo (II) –, o cerebelo (III) e o tronco encefálico (IV) –
composto por mesencéfalo, bulbo e ponte.
Fonte: The American Naturalist, vol. 34, n. 402, 1886. “The Neurone Theory in the Light of Recent Discoveries”,
de G. H. Parker.
Crítica da Razão Eucórpica 107
O uso dos corpos, como vimos acontecendo – uso do sangue, uso do útero, uso da
respiração, uso dos pulmões, por exemplo –, foi uma condição para a possibilidade de um ethos
ou pathos teleológico, que, com efeito, produziu condições para agregar uma concepção
cibernética (reguladora) aos corpos.
As próximas três citações percorrem a concepção sobre o corpo, do século XVIII ao
XXI, permitindo inferir, inclusive, sobre a do século XVII. Elas evidenciam um movimento
mecanicista, sobretudo quando associadas às discussões já feitas sobre a vontade, os espíritos e
a consciência, e revelam o mesmo percurso semiológico expresso nas figuras de 2.4 a 2.9.
𝜋∆𝑃𝑟 4
Equação de Poiseuille: 𝐹 = 8𝜂𝑙
, onde F é o fluxo sanguíneo, ∆𝑃 é a
diferença de pressão entre as extremidades do vaso sanguíneo considerado, r
é o raio do vaso, l o comprimento do vaso e 𝜂 é a viscosidade do sangue. Para
o cálculo da resistência dos vasos, seguem-se as Leis de Ohm; para vasos em
série e em paralelo, a resistência total do sistema é dada, respectivamente, por:
1 1 1 1
𝑅𝑡𝑜𝑡𝑎𝑙 = + + + +⋯
𝑅1 𝑅2 𝑅3 𝑅4
𝑅𝑡𝑜𝑡𝑎𝑙 = 𝑅1 + 𝑅2 + 𝑅3 + 𝑅4 + ⋯
59
“The body”, says Dr. Bostock (History of Medicine, p. 165), "was regarded simply as a machine composed of
a certain system of tubes; and calculations were made of their diameter, of the friction of the fluids in passing
along them, of the size of the particles and the pores, the amount of retardation arising from friction and other
mechanical causes, while the doctrines of derivation, revulsion, lentor, obstruction, and resolution, with others
of an analogous kind, all founded upon mechanical principles, were the almost universal language of both
physicians and physiologists towards the close of the seventeenth century” (CARPENTER, 1850, p. 727-8).
60
I consider’d all organized Bodies as Assemblages of capillary Tubes, filled with a Fluid that tends to run thro’
them, and often to issue out of them (NOLLET; STACK, 1748, p. 189).
108 Crítica da Razão Eucórpica
A última caixa preta restante era a célula, que foi aberta e revelou moléculas
– os alicerces da natureza. Mais baixo não podemos descer. Além do mais, o
trabalho já realizado sobre enzimas, outras proteínas e ácidos nucleicos lançou
luz sobre os princípios em funcionamento no nível básico da vida. [...] Desde
os dias de Aristóteles até a bioquímica moderna, uma camada após outra foi
Crítica da Razão Eucórpica 109
retirada até que a célula – a caixa preta de Darwin – foi aberta (BEHE, 1997,
p. 23).
61
“This structure has novel features which are of considerable biological interest” (WATSON; CRICK, 1953, p.
737)
Crítica da Razão Eucórpica 111
Fonte: (a, b) adaptado de NELSON, David L.; COX, Michael M. Lehninger principles of biochemistry. 6th ed.
Basingstoke: Macmillan Education, 2013; (c) Reproduzido de Raven, Peter; Johnson, George; Mason, Keneth;
Losos, Jonathan; Singer, Susan. Biology, 6th Edition Publisher: McGraw-Hill, Boston, MA, 2002 (p. 329); (d)
representação esquemática da molécula de DNA descrita por Watson e Crick (1953), reproduzida do artigo
publicado na revista Nature, n. 4356
112 Crítica da Razão Eucórpica
Uma publicação sem autoria explicitada na revista Science, em 1886, intitulada The
psychology of the reasoning [A psicologia do raciocínio] apresenta e comenta o livro de Alfred
Binet – proeminente membro da Sociedade de Psicologia Fisiológica de Paris e pesquisador do
mesmo grupo de trabalho de Charcot –, La psychologie du raisonnement, recherches
expérimentales par l'hypnotisme [A psicologia do raciocínio, pesquisas experimentais a partir
do hipnotismo]. A tese central do trabalho de Binnet é de que a percepção é como ler um livro;
atentamo-nos ao sentido e não às letras; enquanto lemos, nossas sensações são manifestadas,
não pelo que elas são, mas pelo que representam, pelo que dizem. É pela percepção que a mente
forma imagens, seus elementos fundamentais. Essas imagens seriam o estoque mental da nossa
inclinação perceptiva, que se associam, produzindo nosso raciocínio. A percepção é a conclusão
desse processo. O silogismo é o mecanismo natural principal da mente humana e do raciocínio,
a fórmula geral para se obterem deduções válidas, e conclui: “o homem é, portanto, um animal
racional e a razão é um novo sentido” – obviamente, a conclusão é em si um silogismo.
Toda essa explicação parece plausível como ideia, como possibilidade, o próprio
raciocínio como explicação dele mesmo – tanto o título da Science quanto o do livro permitem
conceber uma explicação psicológica sobre o raciocínio. No entanto, Binet é membro da
Sociedade de Psicologia Fisiológica e sua explicação precisa estar fundada em explicações
fisiológicas; é nesse ponto que vemos tornar material e físico o processo do raciocínio, seguindo
a evolução da razão eucórpica. Uma sensação diferencia-se de outra porque cada uma tem um
sinal local diferente, com diferentes grupos acessórios organizados, com sensações secundárias.
Para explicar o funcionamento das sensações, lança mão de um fenômeno biológico chamado
atualmente de tato epicrítico: dois pontos tocados simultaneamente em qualquer local da pele
podem ser sentidos como dois pontos diferentes dependendo da distância entre eles, quanto
menor a distância, maior a possibilidade de que se transformem em um único sinal, o que
implicaria uma única sensação. O nome dado por Binet para esse fenômeno é psicologia do tato
(psychology of touch), que nada mais é do que anátomo-fisiologia do tato. Embora a explicação
“psíquica” de que as imagens vindas do mundo são combinadas, permitindo sensações em nós,
precisamos perceber essas combinações, esse processo seria o raciocínio ou pensamento, que
produz novas imagens que serão novamente recombinadas. Essa explicação não serve se não
estiver apoiada em aspectos fisiológicos – foi a psicologia do tato de Binet que, segundo o
artigo, engenhosamente respondeu ao problema, tornando-o mais palpável; do contrário seria
apenas psicologismo.
Por outro lado, em 1888, uma publicação sem autoria explicitada, também da revista
Science, discute a “Ciência da mente” ou Mental Science, como diz o título do artigo, seguido
Crítica da Razão Eucórpica 113
62
Read before the joint meeting of Psychology Association and the Physiological Society.
Crítica da Razão Eucórpica 115
63
Vividness is the third dimension in system od psychical elements, and the psychologist who postulates complete
parallelism has the right to demand that the physiologist show the correspondent process (MÜNSTERBERG,
1899, p. 444).
116 Crítica da Razão Eucórpica
64
[...] every psychical sensation as element of the content of consciousness is the accompaniment of physical
process by which a centripetal stimulation becomes transformed into a centrifugal impulse (MÜNSTERBERG,
1899; p. 445).
65
The vividness would then be always the same, and yet the difference of locality in the discharge must give new
features to the psychical element. A few cases as illustrations must be sufficient. We may instance the shades
of time-direction; the same idea may have the subjective character of past, present and future. It corresponds
Crítica da Razão Eucórpica 117
to three types of discharge: the discharge which does not include action on the object any more appears as
past; that which produces action as present, and that which prepares the action as future (Ibid., p. 445).
66
Acredito que bissexualidade aqui deva ser entendida como sexualidade binária. Pré-edípico não está
relacionado diretamente ao complexo de édipo freudiano, mas ao estado de vivência no Paraíso do Jardim do
Éden antes da consumação do pecado original.
118 Crítica da Razão Eucórpica
ciborgue sempre foi o fetiche. Haraway defende três rupturas provocadas pelo mito ciborgue
criado por ela: o rompimento entre humano e animal, o rompimento entre o animal-humano e
a máquina e o último, entre o físico e não físico – no entanto, defendo que não houve
rompimento, mas forças centrípetas e centrífugas, que, quiasmaticamente, ora alargavam os
limites, ora comprimiam os lados reduzindo ou até desfazendo os limites.
O ciborgue, para ela, seria um pós-humano, mas o humano, por ser imagem e
semelhança do eucorpo, sempre foi ciborgue, embora o objetivo das ciências biológicas tenha
sido definir o modus operandi da natureza humana a partir da sua physislogia ou fisiologia.
Physis (φύσις), da experiência grega de “um surgir incessante”, de um “revelar-se”, foi
traduzido para o latim por natura, natureza (CASTELO BRANCO, 2020), o que torna, de certo
modo, a fisiologia o discurso (logos) que “faz surgir” ou “evidencia” a “natureza”.
O pós-ciborgue teria mais aproximação com o Übermensch (além-do-homem)
nietzschiano, mas apenas seria possível sem uma semiologia fisiológica eucórpica: a Fisiologia
atual tem compromisso com a sexualidade binária, com a simbiose pré-edípica e com o trabalho
alienado, pois defende o eucorpo como uma máquina econômica, funcional e sexualmente
eficiente – psiquicamente eficiente estaria circunscrito materialmente dentro do tripé economia-
funcionalidade-sexualidade67.
“O homem é uma corda esticada entre o animal e o Übermensch68 – uma corda sobre
um abismo. Uma perigosa travessia do abismo, um perigoso estar a caminho, um perigoso
voltar atrás, um perigoso tremer e parar” (NIETZSCHE, 2017, p. 21-2). Na proposta desta tese,
apropriando-me da metáfora nietzschiana, quem tem o controle da corda, esticando-a e
afrouxando-a, é a razão eucórpica; o abismo é tão-somente ilusão de ótica como consequências
punitivas de não se permanecer na corda, a altura da corda em relação ao abismo é o que chamo
de subjetivicídio (discutido na próxima seção). Sermos ciborgues também nos torna psiborgues
– uma espécie de ciborgue psíquico –, pois ao mesmo tempo em que o psíquico está circunscrito
teleológica e ciberneticamente no material como engrenagem da nossa máquina eucórpica,
também é controlado por diversos mecanismos sociais que tencionam nos manter naquela
67
O fato de a homossexualidade já ter sido considerada um transtorno mental/psíquico (com o nome de
homossexualismo) ‒ mesmo tendo sido retirada da Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde (CID-10, de 1989/90) ‒ mostra que continua sendo disputada por meio dos
corpos pelo sistema médico e jurídico e evidencia a força desse tripé eucórpico. A transexualidade, do ponto
de vista eucórpico, é ainda mais complexa e problemática, apenas na próxima edição, CID-11, possivelmente
publicada em 2022, a transexualidade não será mais considerada transtorno mental.
68
A edição e tradução de 2017 traz a palavra super-homem; optei pelo termo em alemão. Muitos comentadores
de Nietzsche preferem a tradução além-do-homem a super-homem porque o Übermensch seria a superação,
como rompimento, da condição de homem da modernidade – e eu acrescentaria, a superação como
desmantelamento do homem eucórpico.
Crítica da Razão Eucórpica 119
corda, seja por dispositivos disciplinares já tão bem descritos por Foucault, seja por novos e
mais sofisticados dispositivos produzidos pela vigilância virtual de algoritmos: somos
controlados pelo medo, mas acreditamos nos nossos desejos, não como efeito dos medos, mas
como se fossem produzidos “naturalmente” por nós – aquela coisa que um dia chamou-se de
“espírito” tornou-se mecânica, submetida e invisivelmente existente; é desse processo que, na
próxima seção, discutirei a iansanidade.
Há uma outra faceta ciborguiana, o fármaco-ciborgue, aquele corpo que requer
substâncias químicas (as drogas legalmente lícitas produzidas e vendidas nas drogarias); essas
tornaram-se as próteses químicas do funcionamento bioquímico-físico “adequado”, são aquelas
que se usam para dormir, para acordar, para ter ereção, para não ter ereção demais, para ser
feliz, para diminuir a euforia, para ter foco, para não ser triste, para emagrecer, para engordar,
para não emagrecer, para não engordar, para ficar forte, para ter coragem, para ter músculos
torneados, para menstruar, para não menstruar – o funcionamento economicamente adequado
da máquina biológica demanda manejo químico de neurotransmissores, reguladores,
hormônios, cofatores, inibidores, estimuladores, excretas, íons, sais, vitaminas, glicose, ureia,
O2, CO2 e uma infinidade de outros produtos químicos “encontrados” nos sistemas biológicos,
sobretudo no sangue – “o uso do sangue” de Priestley (1776) numa versão mais moderna e
sofisticada; é preciso verificar todas as variáveis químicas do corpo para que se tenha a certeza
de estarem dentro dos níveis de normalidade, senão... é necessária a intervenção. O fetiche da
razão eucórpica é a ubiquidade diagnóstica por meio do panótico ortético-protético que visa a
“perfeição” – econômica e produtiva.
As ciências da computação têm um conceito interessante, o de embodiment [poderia
arriscar traduzir por incorporação, mas, como veremos, não cabe], que pressupõe a
“inteligência” como dependente de um corpo (ou da matéria). Inteligência aqui diz respeito à
realização de tarefas de forma eficiente, em uma concepção bastante teleológica. Embodiment
também pode significar os efeitos provocados pela estreita interação de processos físicos e
informacionais (neurais, em humanos e controle/programação, em robôs) (PFEIFER; GÓMEZ,
2009): só existiria embodiment quando um organismo completo interage com o mundo real – o
central do embodiment é a tarefa realizada pela máquina; como realizar, com seus recursos
materiais, a tarefa no mundo real com o máximo de eficiência com o mínimo de gasto
energético.
Pfeifer e Gómez (2009) relacionam o conceito à relação hardware-software (ou corpo
físico-mente, quando considerados humanos) e, portanto, ele serve para entender a função do
cérebro (ou do controle, no caso de robôs) ‒ de que maneira o cérebro está incluído nos sistemas
120 Crítica da Razão Eucórpica
Fonte: Adaptado e traduzido de Pfeifer; Gomes, 2009, p. 78 – adaptado de Pfeifer, R. On the role of morphology
and materials in adaptive behavior. In: Sixth International Conference on Simulation of Adaptive Behavior (SAB),
pp. 23–32 (2000).
A máquina passa a ter como referencial o eucorpo, justamente porque ele “funciona”
(bio)tecnologicamente, assim como pretende-se que os robôs funcionem. Ambos se tornam o
mesmo objeto do ponto de vista funcional, não à toa, os autores (PFEIFER; GOMES, 2009)
consideram que humanos e robôs possuem o mesmo nicho ecológico. Em Ecologia, apenas
possuem o mesmo nicho ecológico indivíduos da mesma espécie que habitam um mesmo
ambiente, porque estariam aptos (e a espécie adaptada) a viver nesse local devido às suas
características fisiológicas, anatômicas e comportamentais, que garantiriam a exploração dos
recursos ambientais, mantendo estável o número populacional. Se robôs e humanos possuem o
mesmo nicho ecológico, ambos precisam ser de forma fisiológica, anatômica e comportamental
semelhantes (portanto, ambos máquinas “inteligentes” ou resolvedoras de tarefas). Nicho
ecológico é justamente a interação dos organismos com seu ambiente, o que fazem e como
executam suas atividades para viver no ambiente. Pautado na Teoria das Propriedades
Emergentes, o nicho ecológico apenas existe porque dois fatores interagem (corpos e ambiente);
retirando-se um dos fatores, o “emergente” deixa de existir; não se trata de uma materialidade,
mas de uma “relacionalidade” dependente de materialidades. Nesse sentido, embodiment passa
a ser muito semelhante a – ou a mesma coisa que – nicho ecológico. Os autores derivam dessa
relação um outro conceito, computação morfológica (morphological computation), que,
segundo os autores, é quando a morfologia e o mundo físico assumem a função do cérebro no
controle dos processos neurais, ou seja, a tarefa pode ser resolvida sem controle central
(PFEIFER; GÓMEZ, 2009). A ficção [científica] concorre com o mundo real e o mundo real –
longe de ser real – concorre com a ficção. Recorro, neste ponto, a uma citação de Nietzsche:
Nada mais errôneo que fazer dos fenômenos psíquicos e físicos as duas faces,
as duas revelações de uma mesma substância. A ideia de “substância” é
absolutamente inutilizável quando se quer explicá-la. A consciência
representa um segundo papel, indiferente quase, supérflua, destinada talvez a
desaparecer por um automatismo completo (NIETZSCHE, 2017a, p. 364).
Somos tão máquinas quanto as máquinas são tão humanas. E, de certo modo, somos
tão automatizados quanto as máquinas – e nessa automatização prevalece a vontade de potência
como uma vontade de saber às custas da vontade de potência (iansanidade) dos corpos
submetidos (oicorpos). Essa relação se revela, segundo os autores, porque para produzir e
compreender as máquinas/robôs usam-se, como referencial, a anatomia e a fisiologia
[eucórpicas] da mesma forma, esse uso em robôs permite compreender e aprofundar a fisiologia
e anatomia [eucórpicas]. “O cérebro humano é – ou torna-se – uma máquina de realizar tarefas”
‒ essa definição caberia perfeitamente à concepção da Psicologia Fisiológica do século XIX –
122 Crítica da Razão Eucórpica
69
Endotérmicos são os animais cujo controle de temperatura depende de mecanismos anátomo-fisiológicos
(internos) – são exemplos as aves e os mamíferos; os ectotérmicos são aqueles que não possuem controle
interno e dependem de comportamentos ou ações e aproveitam-se das ou estão limitados às condições
ambientais – de poríferos a répteis. Alguns grupos de répteis (os crocodilianos) são considerados
heterotérmicos, pois possuem em parte um controle de temperatura interno, mas dependem também das
condições do ambiente externo. Em vertebrados, uma condição importante presente em aves e mamíferos diz
respeito à não mistura, no sistema cardiovascular, de sangue arterial e venoso, o que lhes proporcionaria maior
disponibilidade de oxigênio para as atividades metabólicas – associada a outros controles neurais, embora os
peixes também não misturem sangue e lhes falta todo o controle neural.
Crítica da Razão Eucórpica 123
e a realidade do mundo, mas também toda a história evolutiva de todas as espécies vivas e não
vivas no mundo, um trabalho herculeamente impraticável.
O que se revela é a tentativa de transformar a doença em uma condição natural,
circunscrita na naturalidade da teoria evolutiva, assim como a importância da teoria darwiniana
na constituição da Biologia. A economia animal demanda a autoridade e o conhecimento da
economia natural para explicar melhor seus fenômenos. Mill (1888) afirma que “esses
fenômenos gerais [da reversão] preparam-nos para entender certos resultados experimentais,
que, até onde sei, os fisiologistas nunca explicaram satisfatoriamente”70 (p. 80); ao mesmo
tempo, diz que todo esse trabalho da Anatomia Comparada permitiu entender e conceber os
processos de reversão, que agora caberia aos fisiologistas explicarem, com efeito, chamando a
autoridade novamente da Fisiologia.
Entre os diversos exemplos de reversão citados pelo autor no artigo, destacam-se três:
a consciência, a vontade e as fases da vida.
A consciência, segundo o artigo, seria um fenômeno encontrado apenas no humano;
se houver em outros mamíferos ou em animais inferiores filogeneticamente seria de uma forma
obscura. Com efeito, o sonambulismo, o hipnotismo e formas afins seriam exemplos de
reversão fisiológica, o primeiro, natural, e o segundo, experimentalmente produzido; já as
neuroses e as psicoses seriam explicadas pela reversão fisiológica do adulto para um estágio
entre a infância e a animalidade das formas inferiores. Outra forma de reversão seria a
provocada experimentalmente pela remoção de partes do cérebro – poderia ocorrer
“naturalmente” em casos patológicos – que colocaria o animal [e o humano] em um estado de
verdadeiro automatismo ou de máquina, o “qual se pode manipular à vontade [de outrem]”71
(p. 82 – grifos meus), porque o animal resumir-se-ia a ações reflexas, segundo o autor, é no
sistema nervoso que se devem buscar as evidências que se associam à economia (ele não diz
economia animal aqui). Atualmente, muitos dos fármacos psicotrópicos – sobretudo
ansiolíticos e antidepressivos – executam funções semelhantes sem a remoção física de partes
do cérebro, atuando na inibição de recaptação de neurotransmissores do cérebro, como
serotonina, melatonina, dopamina, norepinefrina e tantos outros.
Entre as fases da vida, tem destaque o envelhecimento, que seria uma forma de
regressão tanto fisiológica quanto patológica, porque os sistemas fisiológicos passariam a sofrer
70
“These general phenomena prepare us to understand certain results following experiment, which, so far as I
know, physiologists have never explained satisfactorily” (MILL, 1888, p. 80).
71
“The animal becomes a sort of machine, which one may manipulate at will [...] it follows, therefore, that the
lower we pass in the scale of life, the more machine-like animals become” (Ibidem, p. 82).
124 Crítica da Razão Eucórpica
72
“Molecular Psychiatry publishes work aimed at elucidating biological mechanisms underlying psychiatric
disorders and their treatment. The emphasis is on studies at the interface of pre-clinical and clinical research,
including studies at the cellular, molecular, integrative, clinical, imaging and psychopharmacology levels”.
https://www.nature.com/mp/journal-information, acesso: 05/11/2021.
Crítica da Razão Eucórpica 125
capacidade de prever traços suicidas (Meynert novamente vibraria com a precisão matemática
de prever o comportamento humano). Foram encontrados, na pesquisa, 26 marcadores
genéticos que permitem avaliar o estado de humor, depressão e mania e prever o curso clínico
(probabilidade de futuras hospitalizações). Desses 26, 12 têm capacidade de prever fortemente
a evolução da depressão, seis, de prever tanto a depressão como a mania e, portanto, segundo
os autores, desordens de humor bipolar, inclusive de distinguir entre depressão e desordem
bipolar. Mais do que identificar as desordens, o trabalho permite considerar a eficiência do
tratamento farmacológico pelo acompanhamento dos marcadores no sangue. Não se pergunta
o que provocou tais modificações daqueles marcadores genéticos. As “desordens psiquiátricas”
são compreendidas como fatos em si, não como consequências de acontecimentos, é nesse
aspecto que, novamente, preparo o campo para compreensão das iansanidades, discutidas na
próxima seção.
Canguilhem (2009) propõe uma discussão sobre os limites do normal e do patológico
em relação às desordens psiquiátricas, evocando a discussão entre três psiquiatras (do final do
século XIX, começo do século XX): Charles Blondel, Daniel Lagache e Eugène Minkowsky,
da qual a nova “psiquiatria molecular” do século XXI não somente se afastou completamente,
como tomou caminho oposto.
Para Blondel, seria impossível que o psiquiatra compreendesse a experiência vivida
pelo doente; o que o doente expressaria não teria correlato na experiência do médico, mas uma
interpretação de uma experiência, impossibilitando atribuir conceitos adequados. Lagache,
mais próximo de Jaspers, ambos menos pessimistas que Blondel, acreditam que mesmo
havendo psicoses compreensíveis e não compreensíveis, a psicopatologia consistir-se-ia em um
conjunto de documentos capazes de lançar luz sobre a consciência dita normal, e não um
conjunto de conceitos delimitados. Também se posiciona contrário às experimentações para
compreensão das desordens psíquicas, porque, segundo ele, tanto a fisiopatologia quanto a
anatomopatologia desses processos são obscuras e “como não existem fatos psíquicos
elementares separáveis, não se podem comparar os sintomas patológicos com elementos da
consciência normal, porque um sintoma só tem sentido patológico no seu contexto clínico que
exprime uma perturbação global” (CANGUILHEM, 2009, p. 45). Para Minkowky, a vida seria
uma potência dinâmica de superações; com efeito, anomalias somáticas e psíquicas não
poderiam ser tratadas de formas iguais. Segundo o psiquiatra: “o normal não é uma média
correlativa a um conceito social, não é um julgamento de realidade, é um julgamento de valor,
é uma noção-limite que define o máximo de capacidade psíquica de um ser; não há limite
superior da normalidade” (apud CANGUILHEM, 2009; p. 45).
126 Crítica da Razão Eucórpica
[SEÇÃO 3]
Subjetivicídios
128 Subjetivicídios
I can’t breathe.
“
(George Floyd, EUA, 2020)
“
Manaus, AM, jan./2021 (não respiraram)
Subjetivicídios 129
Foucault entendia o corpo como a grande criação do século XIX. Na seção anterior,
contrapus essa tese ‒ o corpo já existia muito antes do século XIX. A própria Histoire du corps
[História do corpo] – organizada por Jean-Jacques Courtine, Alain Corbin e Georges Vigarello
– revela isso, pelo menos desde a Renascença, no volume 1, ao século XX, no volume 3 –
embora Courtine concorde com Foucault com alguma ressalva: “o corpo, de fato, é uma
invenção teórica recente: antes da virada do século XX, ele não exercia senão um papel
secundário na cena do teatro filosófico, onde, desde Descartes, a alma parecia exercer papel
principal” (COURTINE, 2013; p. 12 – destaque meu). O eucorpo é essa invenção teórica recente.
Não creio nesse papel secundário dado ao corpo em favor da alma, tampouco na fisiologia,
tentei demonstrar isso na seção anterior.
Pelo menos desde Galeno (132-200), em seu De usu partium corporis humani [em livre
tradução: O uso das partes do corpo humano], tanto o corpo quanto seu uso já haviam sido
pensados e descritos. Leonardo da Vinci (1452-1519) fez desenhos incríveis sobre a anatomia
do corpo humano, importantes para as concepções da Anatomia nos séculos seguintes. Andréas
Vesalius, em 1543, escreveu De humanis corporis fabrica [em livre tradução: Das estruturas
do corpo humano] – Figura 3.1. Desde o século XII, a dissecção de cadáveres é motivada pela
curiosidade anatômica do corpo humano (COELHO, 2020); por exemplo, as concepções de
Galeno (séc. II) se mantiveram até o século XVIII e começo do XIX como importantes
referenciais para a fisiologia. O atlas de Versalius (de 1543) representa uma mudança
importante na concepção da Anatomia, pois, até o século XV, as aulas de Anatomia eram
baseadas no modelo escolástico quodlibetano, no qual o professor lia livros clássicos de
anatomia (Galeno era um referencial importante) enquanto outra pessoa, geralmente um
barbeiro, executava os cortes, seguindo as indicações das leituras, o primeiro, sem tocar no
corpo e apresentando as estruturas enunciadas; a prática estava subordinada à teoria
(CHIARELLO, 2011).
1
This deplorable dismemberment of the art of healing has introduced into our schools the detestable procedure
now in vogue, that one man should carry out the dissection of the human body, and another give the description
of the parts. These latter are perched up aloft in a pulpit like jackdaws, and with a notable air of disdain they
drone out information about facts they have never approached at first hand, but which they merely commit to
memory from the books of others, or of which they have descriptions before their eyes; the former are so
ignorant of languages that they are unable to explain their dissections to the onlookers and botch what ought
to be exhibited in accordance with the instruction of the physician, who never applies his hand to the dissection,
and contemptuously steers the ship out of the manual, as the saying goes. Thus everything is wrongly taught,
days are wasted in absurd questions, and in the confusion less is offered to the onlooker than a butcher in his
stall could teach a doctor (VESALIUS, 1932 [1543]; no artigo (tradução do latim para o inglês), p. 43; no
original, p. 1361).
Subjetivicídios 131
[Figura 3.1] Imagens do livro de Vesalius (1543): Capa, anatomia do esqueleto e músculos, do
cérebro e dos órgãos internos
categorias está apoiado sobretudo no feminismo negro de bell hooks e nos estudos culturais de
Stuart Hall sobre os regimes de representação e de visibilidade e agrega as discussões de Frantz
Fanon, Patrícia Hill Collins e Edward Said. O aspecto performado tem apoio nas discussões de
Judith Butler sobre a performatividade, sobretudo coletiva, na discussão de Quem canta o
Estado-nação? e Corpos em aliança (GARCIA-SEVERINO; CATOIA; KAWAKAMI, 2021).
Os autores apresentam alguns exemplos, entre eles, se o sexo for considerado uma
“categoria de análise”, tanto o que Michel Foucault, Guacira Lopes ou Judith Butler falam seria
a mesma coisa do que Frantz Fanon ou Angela Davis, por exemplo, falam, e, portanto, a
différance histórico-política dos movimentos LGBTQIA+ e negro seriam desconsideradas – a
crítica dos autores se pautou na análise do voto do STF que considerou a homotransfobia2 como
uma espécie de racismo, nesse sentido, condenando também a différance histórico-política dos
dois movimentos.
É nesse sentido que “corpos” doravante será compreendido como pós-categoria,
considerando que diferentes corpos possam ser considerados corpo sem perder a différance
histórico-política de cada um. Nesse sentido, a noção de categoria é em si subjetivicida pelo
aniquilamento das différances.
Toda a genealogia dos corpos apresentada na seção anterior é também a genealogia do
subjetivicídio: a produção do eucorpo como objeto científico é o que une as duas genealogias
(dos corpos e do subjetivicídio) e as torna uma. Considero também a genealogia como uma
possibilidade de se apreender certa quantidade da différance histórico-política dos corpos,
sobretudo quando estão em aliança.
2
Este é o termo usado pelo STF; os autores propõem dois outros nomes (pós-categorias): lgbtabjeção e
legbticídios, o primeiro como evitação e o segundo como aniquilamento (não apenas dos corpos, mas de toda
a corporeidade “ininteligível” dentro do sistema de inteligibilidade da “colonialidade de gênero”). A fobia,
apoiada no discurso médico, tornaria simplesmente o agressor uma vítima do seu próprio preconceito,
tornando-o discursivamente muito menos agressor/assassino do que doente. Na mesma lógica, propõem a pós-
categoria “mariellecídios”, que, se subsumida – e, portanto, não existente – no termo racismo, ignoraria o
aniquilamento da negritude e de seus corpos na intersecção com gênero/sexo, sexualidade, classe social. Ambos
os cídios (no plural) têm potência de evidenciar e denunciar a ação necropolítica e genocida do Estado em
favor de um tipo fantasioso (e quase fantasmagórico) de família tradicional heterocisnormativa.
Subjetivicídios 133
“inexistente” caminho entre o sujeito e a sua morte (não biológica) ‒ mas o aniquilamento de
sua subjetividade antes de se tornar vontade de potência. O que permitiria a primeira ter
possibilidade de ser a segunda é a energia subjetiva, como uma espécie de ipseidade. O acúmulo
dessa energia subjetiva seria possibilitado pelo capital subjetivo. Esse é basicamente “o
conjunto de vivências e experiências3 capazes de mobilizar, no sujeito ou indivíduo, a produção
de desejos que implicam ambições (como perspectivas e projetos de futuro)” (GARCIA-
SEVERINO, 2021; p. 148).
É justamente nos corpos que o capital subjetivo se materializa e é identificável e
diferenciador: roupas, comportamentos, linguagens, atitudes. Acesso a bens culturais como
literatura, arte, ciência, lazer, ócio – em suma, fruição – são promotores do capital subjetivo;
por outro lado, o desprivilegio literário, artístico, filosófico, científico etc. – relativos às
condições materiais e socioculturais na intersecção raça-etnia-sexo-gênero-desejo-sexualidade-
religiosidade – de imensa parte da população (mundial, mas sobretudo de países com grande
desigualdade social) desloca os sujeitos para a esfera da necessidade (o oposto da política), cujo
único capital subjetivo é a sobrevivência. O capital subjetivo é, portanto, ao mesmo tempo
efeito e possibilidade da performatividade, nos termos de Judith Butler (GARCIA-SEVERINO,
2021). De uma performatividade concebida no indivíduo, em Problemas de gênero (BUTLER,
2015b), passa-se para uma performatividade concebida na ação coletiva, em Corpos em aliança
(BUTLER, 2019). É que o capital subjetivo ganharia relevância política porque, segundo Butler
(2019), a performatividade em aliança [de sujeitos e de corpos] questiona o caráter público dos
espaços e a ação política demanda o aparecimento dos corpos, e, complementando, esse
aparecimento depende do capital subjetivo para que seja expresso por meio da energia subjetiva
como vontade de potência.
Usando uma noção deleuziana, complemento dizendo que as condições materiais e
socioculturais em que operam as vivências e as experiências devêm o capital subjetivo, esse
devém a energia subjetiva, que devém a vontade de potência: em última instância, a vontade de
potência é o devir do capital subjetivo. Esse conjunto de devires é o que eu considero
subjetividade – distanciando-me de uma subjetividade empírica em Hume, na qual o sujeito
3
Diferencio vivência de experiência. A primeira está ligada ao presente, pode ou não se transformar na segunda.
Vivência é a apreensão do presente no intervalo de tempo efêmero que ele dura, são as sensações e percepções
de forma inercial. Considero experiência as vivências retomadas pela memória e que, por serem memórias, são
sempre interpretações a partir de novas vivências e de novas experiências e, portanto, elaboração e
transformação das vivências por meio de atribuição de sentidos e significados (GARCIA-SEVERINO, 2021, nota
13, p. 147).
134 Subjetivicídios
seria um devir do espírito4, mas relegado à fisiologia para sua compreensão (DELEUZE, 2020).
Subjetividade é bem menos produto do que processo.
Todos esses conceitos são operacionais e somente fazem sentido inscritos e
circunscritos na razão eucórpica. A noção nietzschiana de vontade de potência cabe
perfeitamente para fazer a crítica à racionalidade eucórpica – como crença absoluta na
substância.
Desde Descartes (1596-1650), o “penso, logo sou/existo”5 funda o sujeito pensante, que
seria nada mais do que um “algo” sujeito ao pensamento ou sujeito do pensamento. Tanto
sujeito quanto pensamento tornam-se, por conseguinte, substâncias – é nesse sentido que a
genealogia do eucorpo é tanto genealogia dos corpos quanto do subjetivicídio. Nietzsche
(2017a) refaz o cogito de duas formas para evidenciar a crença na substância: “Pensa-se, logo
existe algo que pensa” seria apenas um postulado lógico-metafísico. “Pensa-se, logo existem
pensamentos” torna-se uma tautologia. Em ambos os casos, evidencia-se a metafísica da
substância, que crê na gramática, que aquilo que se pensa são pensamentos e de que há algo
que pensa os pensamentos.
Foucault atribui às Meditações de Descartes uma espécie de meditatio, não como jogo
do sujeito com seu pensamento – que poderia descambar para uma exegese –, mas como jogo
do pensamento sobre o sujeito. Esse meditatio tem origem no verbo latino meditari, que, por
sua vez, deriva da palavra grega meléte (do verbo meletân). Meletân tem aproximação com
gymnázein, ambos são exercícios, treinamentos; o primeiro, relacionado à alma, portanto, mais
ligado à filosofia, e o segundo, ao corpo, portanto, mais ligado à medicina (esse verbo também
era empregado como prova, no mundo real, do que se aprendeu, como aplicação do
conhecimento – o treino na própria realidade). Meléte/meletân tem derivação de epimeléia,
ligada ao cuidado, epimelesthai: cuidar. As meditações cartesianas são, segundo Foucault, uma
espécie de ascese filosófica resgatada e reelaborada pelo iluminismo a partir da concepção
helenística.
Da segunda meditação de Descartes (Da natureza do espírito humano e que ele é mais
fácil de conhecer do que o corpo), recomponho o cogito: “penso, logo sou espírito”. Espírito
como entendimento e razão, segundo Descartes (2018 [1637], p. 90): “sou ou existo pelo fato
de [ver, de tocar, de ouvir, de sentir o cheiro...] [...], mas somente por serem entendidos [os
4
Hume usa a palavra mind, Deleuze (em Empirismo e subjetividade. Ensaio sobre a natureza humana segundo
Hume) usou, em francês, a palavra esprit. Segundo a nota do tradutor, os franceses traduzem por esprit a palavra
inglesa mind, dessa forma, em português usou-se espírito.
5
Em francês: Je pense, donc je suis; em latim: cogito, ergo sum.
Subjetivicídios 135
corpos/as coisas] ou compreendidos pelo pensamento, vejo claramente que nada há que me seja
mais fácil de conhecer do que meu próprio espírito”. No entanto (como discutida na primeira
meditação), é preciso estar livre de paixões e preocupações, desviar do domínio dos maus
costumes e manter-se no caminho reto, somente assim o espírito seria conduzido à verdade,
distinguindo-a da falsidade. Descartes, no seu Discurso do método, relega a poesia a “dons do
espírito” e não a “frutos do estudo”, como se a arte fosse apartada do “mundo real” e não
pudesse competir com a ciência pela “verdade” e pela “falsidade”, ou revelá-las também. Essa
nova versão “racional” da “contemplação” grega antiga somente poderia acontecer pela razão,
de forma exata e matemática, do contrário, não estaria no caminho reto. A técnica iluminista é
subjetivicida, a fruição é interditada.
A subjetividade – antes de ser subjetividade – foi substituída pela razão, do que se
conclui que subjetividade sempre foi razão ou uma condição sempre “racionalizada”. Paul
Veyne (1998) diz que “a própria consciência faz parte do objeto que se supõe explicá-la” (p.
279), da mesma forma, consciência poderia ser substituída por razão, espírito ou até mesmo
vontade. Em Nietzsche, diríamos que a vontade de potência (e o que Foucault chamou de
vontade de saber) determinaram as “verdades” ou o regime de verdade segundo a ordem do
discurso.
O sujeito que se inaugura com Descartes não é qualquer sujeito, é um sujeito (espírito
pensante) cujo corpo está separado do espírito:
soube que eu era uma substância de que toda a essência ou natureza não é
senão pensar e que para ser não precisa de nenhum lugar nem depende de
nenhuma coisa material; assim, esse eu, ou seja, a alma, pela qual sou o que
sou, é inteiramente distinta do corpo e é mais fácil de conhecer do que ele [o
corpo] (DESCARTES, 2018 [1637], p. 32).
Era esse espírito que precisava ser racionalizado para compreender o corpo; é algo desse
espírito que o século XIX – sobretudo a Fisiologia – agregou à engrenagem do corpo e submeteu
à maquinaria da economia animal. Para Nietzsche (2014), Descartes foi o primeiro que ousou
descrever os animais como machina; a Fisiologia só faz comprovar a verdade dessa doutrina;
com efeito, o “puro espírito” seria uma estupidez, se retirarmos o sistema nervoso e os sentidos
(o “envoltório mortal”); o que restaria seria um erro de cálculo, ou seja, a Fisiologia eucórpica
não encontraria mais nada. No entanto, é esse espírito que, até o século XIX, criou as condições
de possibilidade de um pensamento eucórpico, justamente por inverter a relação corpo-espírito
– não é o espírito que apreende o corpo, como em Descartes, mas o corpo com toda sua
materialidade que passa a conceber o espírito. O sujeito inaugurado pelo cartesianismo tornar-
136 Subjetivicídios
se-á o sujeito observador, contemplador numa versão moderna do sentido grego antigo, como
éthos racionalizador e categorizador dos corpos.
Para Nietzsche (2017a), entre dois pensamentos haveria todo um conjunto de paixões
que se chocariam. Pensar absolutamente não existe como estabelecem os teóricos do
conhecimento; é uma ficção absolutamente arbitrária, realizada separando um só elemento (o
que se pensa) do processo geral, pondo à margem todos os outros; um arranjo superficial para
facilitar a compreensão (NIETZSCHE, 2016). O pensamento não existe como algo apreensível,
porque assim como há um conjunto de paixões entre pensamentos, há um infinito de variáveis
entre o pensamento e sua enunciação; assim que enunciado, o pensamento já não é mais
pensamento, ele doravante adentraria e submeter-se-ia à ordem do discurso.
Essa diferença já havia sido percebida por Descartes: “muitas vezes as coisas que me
parecem verdadeiras quando comecei a concebê-las me pareceram falsas quando as quis pôr no
papel” (DESCARTES, 2018 [1637], p. 52), que também afirma que a única coisa que garante que
“pensar é ser” é o fato de que para pensar é preciso ser, embora não diga o quê; ser e pensar
tornam-se intransitividade. Como os pensamentos não são apreendidos e nunca saberemos
quando e o que pensa aquele que supostamente é, pensar só é ser se houver enunciação – se
Descartes só houvesse pensado, esta discussão não existiria. Seria mais “verdadeiro” dentro do
cartesianismo “enuncio, logo existo”; enunciar requer vontade de potência, mas antes, requer
capital subjetivo. Logo, só seria/existiria aquele ou aquela que está na ordem do discurso, só
existiria quem tem o poder da enunciação. Para Descartes, ser, nesse novo cogito, estaria
vinculado a enunciar verdades definidas pelo juízo da razão. Com efeito, o dizer poético,
literário e artístico jamais diriam verdades, somente a matemática possuiria certeza pela solidez,
firmeza e evidência de suas razões. O que importa é menos a busca da verdade do que da
certeza. Hume altera essa doutrina, a razão torna-se escrava das paixões; Nietzsche chamaria
isso, posteriormente, de ressentiment, não especificamente a partir de Hume, mas dessas
paixões subsumidas na razão (ou na moral, que, nesse caso, seriam quase sinônimos para
Nietzsche). A subjetividade guardaria algo de uma desrazão ressentida.
Lá onde estão os pensamentos – e esse “lá” é inexistente no sentido físico – também se
encontram as paixões, os desejos e as vontades, inapreensíveis se não forem enunciados. A
subjetividade também residiria naquele “lá” se não fosse efeito dessas paixões, desejos e
vontades, constituintes do capital subjetivo – utilizando uma metáfora química – como um
precipitado. Se vasculharmos esse “lá”, é bem provável que encontremos a razão gargalhando
do sujeito que lhe chama assim. Um velho clichê – quase com cara de aforismo – evidencia a
relação entre pensamento e enunciação e a expressão da subjetividade: “se critica o que falo,
Subjetivicídios 137
imagine se ouvisse o que penso” – talvez pela impotência revelada nesse “aforismo”, o ser
humano tenha inventado a tortura como uma das formas de extrair alguma subjetividade
daquele “lá”.
Segundo Deleuze (2012), a psicologia, para Hume (1711-1776), seria o estudo das
afecções do espírito (o que afeta o espírito), são elas a paixão e o social; a paixão devém o social
– esse movimento, Hume chama de entendimento –, no entanto, Hume está interessado na
natureza humana, ou seja, em como o espírito devém a natureza humana. O sujeito seria o que
ultrapassa o espírito.
Diferente de Descartes – em que sujeito e espírito (o sujeito é o que pensa e que,
portanto, existe se e quando pensa, mas sobretudo se e quando enuncia o que supostamente
pensa) são os mesmos, embora espírito e corpo não –, em Hume, espírito e sujeito são dois
processos (o sujeito é o devir do espírito) e ambos seriam o corpo. O sujeito cartesiano tem um
corpo que não é possível conhecer como se conhece o espírito: “creio que o corpo, a figura, a
extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções do meu espírito” (DESCARTES, 2018 [1641];
p. 83). O empirismo de Hume não desloca o problema para a origem do espírito, mas para a
constituição do sujeito; a subjetividade é o que se desvela a partir das afecções no espírito e “a
psicologia das afecções será a filosofia de um sujeito constituído” (DELEUZE, 2012, p. 20). É
justamente nesse ponto que a fisiologia corroborou o subjetivicídio: parte-se de um sujeito
constituído cujo corpo, e não mais sua natureza humana – e tampouco suas afecções –, é o
objeto da ciência. A afirmação de Hume de que “toda percepção é uma substância [...] e cada
parte distinta de uma percepção é uma substância distinta” (apud DELEUZE, 2012) parece ter
sido apropriada pela fisiologia eucórpica, e chegamos, inclusive, a uma “psiquiatria molecular”,
cujas “afecções do espírito” foram totalmente descartadas e transformadas em evidências
moleculares. A afirmação de Hume de que o sujeito é o que ultrapassa o dado foi invertida: o
dado ultrapassou o sujeito, o dado condiciona, classifica, hierarquiza, determina o sujeito e sua
subjetividade (ou sua suposta racionalidade?).
O sujeito, dessa forma, seria o ponto de onde decorreria a existência da substância (como
verdade e certeza), porquanto o sujeito é uma ficção, mas, interpretado por um “eu” substância,
torna-se efeito e causa de toda a ação. Nietzsche conclui disso que nossas categorias da razão
são todas de origem sensualista, deduzidas de um mundo empírico – em que o mundo interno
comportar-se-ia (e incluo aqui mecânico-ciberneticamente) como o externo. É a vontade de
potência desse agente-sujeito que se “apossa de uma quantidade de realidade para se tornar
senhor dessa realidade, para pô-la ao seu serviço” (NIETZSCHE, 2017a, p. 370), e torna,
inclusive, o sujeito possibilidade. Com efeito, produzem-se sujeitos que estão submetidos
138 Subjetivicídios
3.2 A VIDA DOS OICORPOS: « Il faut défendre les oïcorps » (ou pacto oicórpico)
O corpo, antes do século XIX, era apenas o instrumento instituído para se entender a
vida. Ao longo de todo o século XIX, o século XX e até o XXI não se chegou a uma definição
biológica de vida; talvez porque a vida seja um fenômeno metafísico, o qual a ciência
racionalista não consegue conceber com seus instrumentos materialistas – que apenas sabe
conceber o mundo com seus sete6 sentidos clássicos. Éla (2016) discute que o racionalismo
científico foge da realidade colocando o cientista dentro de uma “gaiola de ferro”,
negligenciando o poder da imaginação no processo científico. Ele cita uma fala de Einstein
(1879-1955) sobre a vida: “O mistério da vida causa-me a mais forte emoção. É o sentimento
que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência” (apud ÉLA, 2016, p. 42).
Nelson e Cox (2013), em Lehninger principles of biochemistry, apresentam uma
definição de vida como habilidade dos seres vivos em extrair energia de materiais orgânicos e
da luz do sol, mas a primeira vida teve a capacidade de produzir moléculas orgânicas a partir
de elementos simples e compostos (ambos inorgânicos) encontrados na superfície da Terra. As
moléculas dos seres vivos tornam-se biomoléculas sem vida (lifeless biomolecules) quando
isoladas e examinadas, e ainda assim confirmam as leis físicas e químicas do comportamento
da matéria inanimada. Esse discurso é bastante semelhante à teoria de Freke, ‒ exceto pelo
distanciamento da teologia natural, a vida seria uma integração de fenômenos físicos e
químicos. Nesse sentido, o fenômeno vital ainda continua um mistério, como afirmava Einstein,
e, também, se aproxima da ideia nietzschiana de vontade de potência, que extrapola a condição
humana.
No entanto, como o século XIX foi incapaz de concretizar o fenômeno vital, o corpo
assumiu esse fardo definindo o que é normal e o que é patológico – em outras palavras, o que
seria eucorpo e o que não seria.
Se o objetivo inicial da biologia (compreender filosoficamente a natureza humana)
tivesse se mantido ou se a ele fossem associados os critérios de normalidade e patologia, talvez
a representação dos corpos, da saúde, da doença fosse completamente diferente. Talvez essa
6
Além dos cinco sentidos mais comumente conhecidos (visão, olfato, paladar, tato e audição), incluo outros
dois, equilíbrio e propriocepção. Esses dois últimos, incrivelmente pouco conhecidos, nos fazem perceber e
nos posicionar no mundo. O equilíbrio está localizado na orelha interna (antigo ouvido interno) e nos aparelhos
coclear e vestibular (o labirinto, de onde decorre a labirintite); a propriocepção é uma percepção ampla do
próprio corpo, seu sentido está localizado nas articulações, especialmente nos tendões e ligamentos, de onde o
cérebro e a medula espinhal percebem nossas posições e enviam respostas para nos manter no ambiente –
torções do tornozelo seguidas de quedas, por exemplo, seriam devidas a falhas nesse sentido. Não à toa, a
propagação e concepção de cinco sentidos (os que tornam a ciência funcionante) são os mais conhecidos do
público leigo às ciências biomédicas.
140 Subjetivicídios
seja uma questão que poderia emergir do Frankenstein de Mary Shelley: e se o eucorpo fosse
mesmo uma experiência metafísica que se apresenta mais humano e mais vivo do que o humano
biológico inventado pela Fisiologia, pela medicina? Na emergência do eucorpo, os corpos vivos
foram transformados e vivem como “monstros do Frankenstein” que ocupam os espaços e com
os quais a ciência, assim como na metáfora de Mary Shelley, não sabe o que fazer. No fetisso
europeu, o eucorpo frankensteiniano se transforma em monstro porque o eucorpo é produzido
a partir dos cadáveres dos oicorpos – literalmente, em Frankenstein –, e, intelectual e
abstratamente, pela ciência.
Entendo corpo como uma criação intelectual produzida pelas ciências biológicas. Corpo
é a metáfora e a metonímia (portanto, concebido como categoria, mas que proponho ser lido
como pós-categoria) que tenta padronizar e universalizar as diferentes experiências corpóreas;
numa metáfora, o corpo é camisa-de-força criada para conter a vontade de potência. As
categorias corpóreas não existem como realidades que andam e vivem pelos espaços, mas
performam, muitas vezes, compulsoriamente, seus papéis corpóreos, indicando o quão frouxa
ou apertada está a camisa-de-força na contenção da vontade de potência – ou da vida. Oicorpo
é, assim, o corpo que mantém controlada sua energia subjetiva para o uso de outrem. É nesse
sentido que a razão eucórpica está “em defesa dos oicorpos”. Em última instância, o corpo
sempre foi uma categoria, mas investido de ciência e de positivismo.
A diferença entre labor e trabalho (ARENDT, 2007) é essencial para compreender a
produção dos oicorpos. O labor está relacionado à atividade ligada ao processo biológico do
corpo humano, está relacionado ao metabolismo e, portanto, às necessidades vitais; a condição
humana do labor seria a própria vida. O trabalho é relativo ao artificialismo da existência
humana, que produz um mundo “artificial”; sua condição humana seria a mundanidade. A
diferença entre os dois é que labor está associado à atividade realizada com o próprio corpo
para satisfazer as necessidades próprias ou de outrem, enquanto trabalho é a produção de coisas.
Em outras palavras, o labor tem repercussão no espaço privado, enquanto o trabalho, no espaço
público. Nesse sentido, um corpo que executa labor performaria um oicorpo, enquanto aquele
que executa trabalho estaria mais deslocado dessa realidade e mais próximo da idealização de
um eucorpo – como máquina que funciona perfeitamente, outro éthos propagandístico,
resultante, nesse caso, da economia animal. O labor seria parte de um conjunto de
procedimentos subjetivicidas imposto ao corpo, que o torna oicorpo pela contenção da
criatividade produtora de trabalho ou de coisas como expressão da vontade potência.
A escravização de negros e negras foi o exercício de maior subjetivicídio e produção de
oicorpos; nas palavras de Mbembe (2016, p. 131), a escravidão moderna resultou na “perda do
Subjetivicídios 141
lar, dos direitos sobre o corpo e do status político”, pela posse privada do corpo para produção
do labor na manutenção das “necessidades” dos escravizadores.
Fanon escreve Condenados da Terra em meio ao processo de descolonização no século
XX e diferencia a geopolítica da divisão de dois tipos de corpos, o do colonizado (com suas
oicorporidades) e a do colono (com sua eucorporidade), ao que ele atribui uma lógica
aristotélica em que ou se é uma coisa, ou se é outra:
A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos
colonos. Estas duas zonas se opõem, mas não em função de uma unidade
superior. Regidas por uma lógica puramente aristotélica, obedecem ao
princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é
demais (FANON, 1968, p. 28).
Outra distinção que encontramos entre pólis e oikos parece também presente e
reatualizada nas relações modernas senhor-escravo, colono-colonizado, civilizado-
bárbaro/selvagem, ciência-corpo (economia animal) e ciência-ambiente (economia natural). A
pólis era o espaço do discurso (lexis7, λέξη; logos, λόγοϛ; e ainda rhêthorikê, ρητορική) enquanto
o oikos era o espaço onde a violência podia ser aplicada sobre os “objetos” privados ou pessoais
do chefe, visando sempre atender às suas necessidades às expensas do labor de quem é
“utilizado” (ARENDT, 2007). Tomás de Aquino, nas palavras de Hannah Arendt, afirmou que,
comparando a lei doméstica com a lei política, “o chefe de família tem certa semelhança com
o chefe do reino, mas seu poder não é tão perfeito quanto o do rei”.
Aristóteles, em Política, defende que as associações entre homem e mulher e entre
senhor e escravo se formaram inicialmente na família (oikía), sendo a primeira delas formada
entre a mulher e o boi, feito para o labor, porque esse último exerceria a função de escravo para
o pobre e para a mulher – é o uso do corpo, de sua energia subjetiva, com efeito, de sua vontade
de potência, que prevalece. Entre mulheres, bárbaros e escravos8 não haveria relação porque
não haveria quem os comandasse, e cita uma frase de Eurípedes: “os helenos têm, por direito,
o poder de comandar os bárbaros”. Da junção de várias famílias formam-se as aldeias (komé),
e das aldeias, as cidades. As famílias teriam a função de atender às necessidades do homem do
dia a dia.
Fanon também descreve os corpos dos colonizados e dos colonos relacionados ao local
onde vivem:
7
Para os gregos antigos, lexis tem relação com a forma, e logos, com o conteúdo – a palavra “discurso” que
usamos atualmente, para os gregos antigos, seria uma junção de ambos (cf. FOUCAULT, 2006).
8
Mulheres, bárbaros e escravos têm uma concepção para um ateniense diferente daquela que tem para a
modernidade; no entanto, mantêm semelhança no que se refere ao domínio/controle de outro sobre eles.
142 Subjetivicídios
A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade
iluminada, asfaltada, onde caixotes do lixo regurgitam de sobras
desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas. Os pés do colono nunca
estão à mostra, salvo talvez no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo
deles. Pés protegidos por calçados fortes, enquanto as ruas de sua cidade são
limpas, lisas, sem buracos, sem seixos. A cidade do colono é uma cidade
saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas.
A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros.
A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a
médina, a reserva, é um lugar mal-afamado, povoado de homens mal-
afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não
importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os
homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do
colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de
carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade
ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes
(FANON, 1968, p. 28-29).
para a seleção natural e para a seleção sexual; a tendência evolutiva de progresso seria a
produção de dois sexos com funções e papéis diferenciados:
Federici (2004) também relata que durante os cercamentos (na Inglaterra do século XVI
e sobretudo no XVII), enquanto as terras comuns de camponeses eram desapropriadas e
cercadas para fins privados e monetários, as mulheres tiveram grande atuação em motins para
a derrubada dos cercos. Enquanto a terra era privatizada e começava a dominar a vida
econômica, as mulheres passavam a ser confinadas ao trabalho reprodutivo. A divisão sexual
(ou fisiológica, em termos darwinianos) do trabalho atinge o auge no século XIX, com a criação
da dona de casa em tempo integral – o corpo da mulher se torna “naturalmente” oicorpo, ao
qual a atividade reprodutiva é atribuída. Enquanto isso, o corpo masculino é o corpo do
trabalhador, que não deixa de ser oicorpo, porque também se torna privado para a produção de
mercadorias e força de trabalho – agora, com uma diferença oicórpica sexual e fisiológica,
legitimada também pelo discurso científico das ciências biológicas.
“É ‘o corpo’ ou ‘o corpo sexuado’ a base sólida sobre a qual operam o gênero e os
sistemas da sexualidade compulsória?” (BUTLER, 2015b, p. 223). Butler tenta responder a esta
pergunta ao longo de seu livro Problemas de Gênero e suspeita que a distinção sexo/gênero e
as categorias sexuais pressupõem um corpo que preexiste ao significado sexual. No entanto, o
corpo, antes do vitalismo do século XIX, era uma matéria inerte impregnada de cristianismo e
cartesianismo (BUTLER, 2015b) e se transforma, a partir do século XIX, como diz Foucault
(2007), em uma superfície onde os acontecimentos se inscrevem. Dessa forma, de acordo com
Foucault (2007), o corpo teria um éthos passivo, o que parece ter acontecido (e continua
acontecendo) é que a inscrição da história é feita sobre um simulacro (o eucorpo) com efeito
144 Subjetivicídios
Tais plantas, que produzem somente óvulos ou somente pólens, são chamadas
dioicas, do grego, indicando “duas casas”. [...] Em outros tipos de plantas,
como os carvalhos, bétulas, milho, abóboras, flores separadas, masculinas e
femininas, encontram-se na mesma planta. São chamadas monoicas,
significando “uma casa”10. A maioria das esponjas são monoicas – ambos os
sexos ocorrem no mesmo indivíduo11.
Nesse caso, não apenas o corpo, mas o “sexo” é alocado no oikos e apropriado e
dominado; uma vez que os seres humanos são biologicamente dioicos, a divisão fisiológica (ou
sexual) para o trabalho é mais uma vez legitimada. Mas somente o eucorpo, que é a produção
9
MARQUEZ, C. C. Tratado Elemental de Botánica. Adaptado al estudio de la Flora de América Equinoccial.
Bogotá: Imprenta Elécirica, 1918, 532 p. [Tratado elementar de Botânica: Adaptado para o estudo da flora da
América Equinocial].
10
“Such plants, which produce only ovules or only pollen, are called dioecious, from the Greek words for ‘two
houses’ [...] In other kinds of plants, such as oaks, birches, corn (maize), and pumpkins, separate male and
female flowers may both be produced on the same plant. Such plants are called monoecious, meaning ‘one
house’” (RAVEN, P. H.; JOHNSON, G.B., Biology. 6. ed. Boston, MA: McGraw-Hill, 2002, p. 846).
11
“Most sponges are monoecious (both sexes occur in the same individual”. (MILLER, S. A.; HARLEY, J. P.
Zoology. 5. ed. The McGraw-Hill Companies, 2001, p. 126).
Subjetivicídios 145
científica, é dioico, e isso faz toda a diferença. Por isso a transexualidade é tão ininteligível ao
olhar da Fisiologia eucórpica.
Não obstante serem corpos, os oicorpos não são eucorpos, por isso precisam ser
eucorpicamente disciplinados.
Disciplinar é uma forma de subjetivicídio, que implica a produção de um
comportamento esperado ou “adequado”, uma espécie de treinamento, contrário a ações da
subjetividade movidas pela vontade de potência. Nesse sentido, o oicorpo é um corpo que se
comporta, um corpo em constante disciplinamento. Ser disciplinado/comportado não implica
perda total de vontade de potência, mas uma redução de sua energia subjetiva, que é criadora,
executora e produtora. O oicorpo é tornado um corpo privado, privado em dois sentidos:
destituído, parcialmente, de sua energia subjetiva e pertencente, total ou parcialmente, a outros,
por outros interesses, que não os seus próprios (compõe o capital subjetivo de outrem). Segundo
Foucault, corpo dócil é aquele “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2014a, p. 134) – ou em francês, originalmente, Est
docile un corps qui peut être soumis, qui peut être utilisé, qui peut être transformé et
perfectionné (FOUCAULT, 1975, p. 138, grifos meus). Nesse sentido, o oicorpo não é um corpo
dócil, mas um corpo docilizado, pelo fato de que, em vez de poder ser submetido, é preciso
torná-lo possível de ser submetido. Embora evoque essa categoria de Foucault, distancio-me
pela sua ambivalência e pelo seu possível fetiche (nos termos de Matory). “Que pode ser” (“qui
peut être”) implicaria já estar disponível para ser. Para que um corpo possa ser docilizado, é
preciso, antes, que se reduza seu capital subjetivo, sua energia subjetiva e sua vontade de
potência para ser, então, realocado dentro do oikos (simbólico) como privado e como fonte
realizadora de “necessidades” ou “vontades”.
Foucault parece não ter superado a ambivalência europeia do século XIX no que diz
respeito à escravidão negra – condição que considero central para a construção das pós-
categorias que aqui apresento (por exemplo, o oicorpo) – e às relações ambivalentes que vieram
a reboque. Foucault (2104a) afirma que a escravidão não era uma forma de disciplina porque
implicava apropriação dos corpos, assim como na vassalagem, na domesticação e no ascetismo,
diferentemente da disciplina dos corpos dóceis, que não se apropriava do corpo, mas
esquadrinhava o tempo, o espaço, os movimentos para um controle minucioso de suas
operações. Em The subject and power (escrito originalmente em inglês), afirma que a
escravidão não se constitui como uma relação de poder, porque “o poder só pode ser exercido
146 Subjetivicídios
sobre sujeitos livres, desde que livres” (FOUCAULT, 1982, p. 790)12, mas uma relação de coação
(constraint); no entanto, poder e liberdade seriam mutuamente excludentes (haveria aqui uma
lógica aristotélica da qual sempre pretendeu fugir?); onde o poder se exerce, a liberdade
desaparece. Ora, se a escravidão não é uma relação de poder, então, haveria liberdade: Liberté-
Egualité-Fraternité? Também diz que uma sociedade sem relações de poder é uma abstração13.
Restam, então, duas, e somente duas, alternativas: Seria a sociedade escravocrata uma
abstração? Ou a liberdade não existe? A não superação dessa ambivalência europeia em relação
à escravização negra por parte de Foucault também se revela ao longo de todo seu polêmico
livro As palavras e as coisas: todo seu trabalho argumentativo sobre a separação das palavras
das coisas desde o Renascimento até a modernidade e todo o entrelaçamento entre economia,
biologia e linguística não considera em nenhum momento o período de escravização negra que
a Europa empreendeu do século XVI ao XIX.
Antes de ser docilizado, o corpo precisou ser socializado, ou seja, oicorporificado. Os
corpos precisavam se comportar socialmente (no espaço público) como se estivessem no
ambiente doméstico, o oikos. Esse oikos é simbólico e idealizado, um oikos moderno, teórico,
mas experimentalmente investigado e dissecado na sua “economia animal natural”. O novo
oikos é qualquer espaço privado (e privatizado) onde os corpos são utilizados e gerenciados
pelo controle da vontade de potência.
O Quadro 3.1 resume a discussão da relação entre espaços privado e público modernos
em comparação ao mundo grego antigo, de modo a mostrar a transformação do oikos, cujo
processo de différance mantém a memória do corpo privado como rastro; o oikos grego se
desloca, na sociedade, para a esfera íntima e se expande para a propriedade privada.
Elias (1994) descreve a mudança dos comportamentos em relação ao corpo perante
outros desde o século XVI até o século XVIII, inicialmente nas classes altas e na aristocracia
da corte. O controle do comportamento era feito pela emoção, despertando a ansiedade, o medo
e a vergonha no sentido de reprimir o prazer. As “razões higiênicas” e de saúde passaram com
o tempo a receber maior ênfase, determinando o que era civilizado e racional e destacando o
que era repugnante e abjeto, que passavam a ser retirados do convívio social e alocados para a
intimidade do privado. Esse controle, ainda nas cortes feudais e depois nas monarquias
absolutistas, era imposto às classes mais altas, depois foi imposto pelos elementos de alta
12
“Power is exercised only over free subjects, and only insofar as they are free” (FOUCAULT, 1982, p. 790).
13
“A society without power relations can only be an abstraction” (Ibidem, p. 791).
Subjetivicídios 147
categoria social aos seus semelhantes e aos seus inferiores. Com a ascensão da burguesia, todo
esse controle é imposto para as famílias (a nova oikía).
[QUADRO 3.1] O oikos grego antigo e o “oikos moderno” na comparação com público e privado
ÍNTIMO PRIVADO PÚBLICO
OIKOS GREGO “OIKOS POLIS GREGA SOCIEDADE
- SOCIEDADE
ANTIGO MODERNO” ANTIGA MODERNA
Propriedade
- Casa/Família Casa/Família privada; Política Social
Natureza
Comportamento vs.
- Necessidade Necessidade Lucro Liberdade
ação
Ação, discurso, Comportamento
- Labor Labor Labor, trabalho
contemplação (éthos)
Oicorpos*
Homem/
Oicorpos Aneucorpos*
- Oicorpos Oicorpos Humano
(zoon) Superoicorpos*
(zoon politikon)
Corpos iansânicos*
Trabalhadores
Escravos, Trabalhadores,
- domésticos, Homem Sujeitos
mulheres Escravizados
Escravizados
Economia natural e
Economia
- Economia animal, - Economia política
doméstica
Economia política
(*) Considero todos esses o que Foucault denominou corpos anátomo-políticos.
Elaborado pelo autor.
A transferência do político (do zoon politikon) para o social (do animal socialis)
acontece no mundo romano: homo est naturaliter politicus, id est, socialis [o homem é
naturalmente político, isto é, social]; embora a palavra “social” não tenha nenhum significado
para os gregos antigos, adquire, inicialmente nos romanos (societas), o sentido de aliança entre
pessoas para um fim específico. O bios politikos do zoon politikon incluía necessariamente duas
atividades, a ação (praxis) e o discurso (lexis/logos). Arendt (2007) defende que a tradução
latina de político para social foi um erro de interpretação, da mesma forma que de zoon logon
ekhon (ser vivo dotado de fala) para animal rationale (animal racional). Os gregos não
pretendiam definir o homem, e não era o logos (palavra/discurso) e sim nous/theoria
(contemplação) a principal característica da vida política, e essa última não poderia ser reduzida
a palavras. O que chamamos de social, para os gregos antigos, não implicaria a vida política,
uma vez que a convivência entre homens sem ação, sem palavra e sem contemplação poderia
ser ainda deslocada ao oikos/oikía (onde a violência podia ser empregada como forma de
controle). Na polis era a posse do oikos que permitia a ação no espaço público (político). Na
sociedade, é a posse da propriedade privada que permite a ação no espaço público (político) –
porque “os interesses privados assumem interesse público” (ARENDT, 2007, p. 45).
A economia (doméstica) torna-se economia política propriamente dita. A esfera da polis
era a da liberdade, a qual era também o espaço da igualdade, enquanto a família (oikía/oikos14)
era o lugar da desigualdade. O espaço privado da polis era o espaço em que o indivíduo se
privava de algo, especialmente da sua humanidade (era zoon em vez de zoon politikon). No
espaço privado da societas (sociedade), o indivíduo se priva da sua vontade de potência, da
energia subjetiva criadora, produtora e executora – de modo que o espaço público se transforma
em um Grande Oikos. No Grande Oikos, os indivíduos devem se comportar, são domesticados
(oicorporificados) para viver no social, para isso são constantemente tornados dóceis e
disciplinados por diversos dispositivos da felicidade. Para a sociedade, segundo Arendt, não
importa se seus membros são iguais ou desiguais, importa que “se comportem como uma grande
família” (ARENDT, 2007, p. 50), com uma opinião e um interesse – representados pelo “chefe”.
Do governo despótico monárquico passa-se ao governo burocratizado dos Estados nacionais
(ARENDT, 2007), o oikos apenas muda de dimensão porque “o suposto interesse único da
sociedade como um todo em questões econômicas e a suposta opinião única da sociedade
educada nos salões não deixa de governar por ter perdido a personalidade” (ARENDT, 2007, p.
50).
14
Oikía como os integrantes; oikos como o espaço, o lugar.
Subjetivicídios 149
A biopolítica encerra a explicação do Quadro 3.1 sobre como com a instauração do pacto
oicórpico a população se transforma em recurso oicórpico. Para os fisiocratas do século XVIII,
a política e a economia são, cada uma, uma física (menos como materialidade do que realidade),
e agir na ordem da política é agir na ordem da natureza (FOUCAULT, 2008a), um laisser-faire
de um liberalismo (francês) que não aceita a liberdade, mas que a fabrica, a suscita e a produz;
nesse processo, física, natureza e realidade tornam-se aproximadas e, com efeito, quase
sinônimos (FOUCAULT, 2008b). Era necessariamente isso o que, por um lado, a fisiologia
eucórpica tinha feito – e de certo modo continua fazendo: o modus operandi da natureza é a
realidade fabricada pelo eucorpo. Ao mesmo tempo, inseria-se também na filosofia utilitarista
“descobrindo” a utilidade dos corpos via utilidade dos órgãos e estruturas que o compõem. O
liberalismo utilitarista (inglês) estava focado na utilidade do trabalho (mão-de-obra da
população), de um trabalho que era um cálculo de tempo e esforço, que também é a vida como
o que se gasta com o trabalho para produzir algo (FOUCAULT, 2008a, 2008b).
A Figura 3.2 resume essa relação, a separação fisiocratas-utilitaristas é meramente
didática de modo a evidenciar o foco de ambos, mas operavam o mesmo circuito cibernético
econômico sobre a população. A Figura 3.3 insere a economia animal e a economia natural
nesse contexto. Há dois campos, o da necessidade e o do desejo; o primeiro fora do campo da
política, mas dentro do campo e ação da economia política. O campo do desejo seria aquele que
move a população para “que [ela] tenha um motor de ação, e um só. Esse motor é o desejo”;
essa frase, segundo Foucault (2008b) é de François Quesnay, um economista e médico francês.
Estaria aqui o mesmo movimento da fisiologia eucórpica em retirar a vontade/desejo do corpo
sob autonomia do indivíduo para a natureza – tanto como economia natural quanto como
economia animal, e uma dependente da outra. Quando espírito, vontade e consciência fazem
parte de uma engrenagem eucórpica, podem ser fabricados, controlados, esquadrinhados,
investigados, manipulados, ou seja, utilizados a partir de um modus operandi da natureza
fabricado com aparência de realidade.
150 Subjetivicídios
escassez-carestia. O sistema mercantilista do século XVII e início do século XVIII era, portanto,
um sistema de antiescassez. Ao mesmo tempo, essa regulamentação jogava a questão dos
preços para o lado dos camponeses: quando houvesse abundância, o preço seria muito baixo,
muitas vezes inferiores ao do cultivo, o que tem como efeito que a próxima colheita será menor
pela falta de incentivo financeiro: quanto menos lucro, menos poderão semear. Some-se a isso
as instabilidades climáticas e o problema da escassez sempre foi uma questão para os séculos
XVII e XVIII. É no século XVIII que se iniciam tentativas de destravar esse sistema. É nesse
ponto que surgem os fisiocratas com seus ideais liberais, pela liberdade de comércio e de
circulação de cereais, destituindo toda a regulamentação jurídico-disciplinar. Para os
fisiocratas, o problema da escassez não era um problema ou um mal a ser eliminado, mas um
fenômeno natural que seria preciso considerar na economia do Estado (FOUCAULT, 2008a).
É nesse contexto que Foucault (2008b) considera o nascimento da economia política e,
por consequência, a biopolítica como uma tecnologia sobre a população em que “o governo dos
homens [torna-se] uma prática que não é imposta pelos que governam aos que são governados,
mas uma prática que fixa a definição e a posição respectiva dos governados e dos governantes
uns diante dos outros e em relação aos outros, [trata-se, portanto, de] ‘regulação interna’”.
(FOUCAULT, 2008b; p. 17). Essa regulação interna delimitaria a ação do governo tornando-o
não mais legítimo ou ilegítimo, mas doravante bem-sucedido ou fracassado.
Nessa delimitação do governo (bom/bem-sucedido–mau/fracassado) há uma relação
entre excesso e falta: quem determina isso é a economia política. A lei do máximo/mínimo
controle do governo impõe o regime de verdade na arte de governar como sua autolimitação. A
pergunta que o governo deverá se fazer é: “será que [eu] governo bem no limite desse demais
e desse pouco demais, entre esse máximo e esse mínimo que a natureza das coisas fixa para
mim, quero dizer, as necessidades intrínsecas às operações de governo?” (FOUCAULT, 2008b;
p. 26). Foucault considera a economia política o instrumento intelectual que implica uma forma
de cálculo e racionalidade do governo – a governamentalidade. Da mesma forma, vai ser a
economia animal que determina isso na Fisiologia – podemos pensar em corpos como recursos
oicórpicos –, e a economia natural que determina isso na Ecologia – podemos pensar em
recursos naturais. Ora, se a população é feita de pessoas, que possuem corpos, logo, os corpos
são os “recursos naturais” – que se transformam em “recursos humanos” – da produção e da
mão-de-obra para modificar o ambiente “natural”. E se a economia política “se propõe como
objetivo o enriquecimento do Estado” (p. 19), tem como estratégia a biopolítica, cujos
tributários são a economia animal e a economia natural: “[A economia política] se propõe como
objetivo o crescimento simultâneo, correlativo e convenientemente ajustado da população, de
152 Subjetivicídios
um lado, e dos meios de subsistência do outro” (p. 19). A primeira economia política foi a dos
fisiocratas, cujo foco estava nas condições naturais.
A economia política não vê mais, como nos séculos XVI e XVII, a natureza como direito
natural, mas como exercício da governamentalidade, como naturalidade própria da prática
governamental; é essa naturalidade que a economia política vai estudar pelos efeitos dessa
prática.
Não é a legitimidade ou ilegitimidade do Estado que importa – como nos séculos XVI
e XVII – mas o sucesso e o fracasso segundo sua prática a partir do conhecimento da
naturalidade – e não mais da natureza – dos objetos e operações da governamentalidade. Esse
conhecimento é a economia política – o fracasso do governo está no desconhecimento dessa
naturalidade (como leis da natureza em sua existência, mecanismos e efeitos).
É na explicação também daqueles mecanismos e efeitos que a economia natural de
Darwin se insere, como regime de verdade em disputa pela apropriação de um poder explicativo
da natureza – Darwin foi leitor de Malthus e a base de sua teoria da seleção natural toma como
verdade a explicação malthusiana da relação entre população humana e recursos alimentares:
A luta pela existência que se trava entre todos os seres vivos espalhados pelo
mundo [...] resulta inevitavelmente de sua alta taxa de crescimento, que se
verifica em progressão geométrica. Trata-se da doutrina de Malthus aplicada
ao reino animal e vegetal. Como, de cada espécie, nascem muito mais
indivíduos do que o número capaz de sobreviver, e como, consequentemente,
ocorre uma frequente retomada pela existência, segue-se daí que qualquer um
que sofra uma variação, mínima que seja, capaz de lhe conferir alguma
vantagem sobre os demais, dentro das complexas e eventualmente variáveis
condições de vida, terá maior condições de sobreviver, tirando proveito da
seleção natural (DARWIN, 1994 [1859], p. 37, grifo no original).
Thomas Malthus era um economista inglês, portanto, mais ligado aos utilitaristas,
Foucault (2008b) define o utilitarismo como uma tecnologia de governo; os limites de ação do
governo, nessa visão, são definidos pela utilidade da intervenção governamental: É útil? Útil
para quê? Dentro de que limites? A partir de quê se torna inútil? A partir de quê se torna
Subjetivicídios 153
Essa distinção que Foucault cita de um autor pouco conhecido e adepto aos ideais
fisiocráticos revela a distinção entre aqueles que fazem parte da população (oicorpos) e os que
rompem com o pacto oicórpico.
Subjetivicídios 155
Foucault inicia Vigiar e punir com o trecho acima descrevendo o suplício de Damiens,
acusado de parricídio. Na elaboração que faço aqui, esta seria a descrição material da
transformação do corpo em aneucorpo (aneu-, do grego: sem, destituído de). O corpo de
Damiens com sua iansanidade “ingovernável” foi, paulatinamente e sob um espetáculo,
destituído do próprio corpo para que fosse demonstrado a outros possíveis corpos iansânicos
que deveriam se comportar como oicorpos – ou, nas palavras de Nietzsche (1998), produzir o
sentimento de “promessa” nos outros; nos meus termos, promessa como contrato social e
compromisso simbólicos de ser oicorpo, de ser um sujeito-oikos.
Que conjuntos de discursos estão subjacentes ao “Comporte-se!” quando um pai ou uma
mãe diz isso ao seu filho ou a sua filha? O que eram as “notas” de comportamento que
estudantes recebiam de docentes no século XX? O que significa um aluno ou uma aluna ser
considerado indisciplinado ou malcomportado?
Corpo iansânico é o corpo que se recusa a se comportar conforme as normas sociais
estabelecidas, independentemente de quais são elas; nesse sentido, é o corpo que tem ação, que
tem vontade de potência e que, segundo sua energia subjetiva, atua de modo a criar, executar e
produzir – o corpo que rompe a promessa. Iansanidade é uma metáfora apoiada na entidade
orixá Yansan16 de matriz religiosa africana. De forma a descolonizar, desnortear e
15
Trecho de: Pièces originales et procédures du procès fait à Robert-François Damiens. 1757, t. III, p. 372-4,
apud FOUCAULT, 2014a, p. 9.
16
Segundo BASTIDE, R. (1961) (O candomblé da Bahia, rito Nagô), Yansan é a principal esposa de Xangô,
juntamente com Oba e Oxum, mas Yansan é aquela que o ajuda no trabalho de “lançar raios”. Xangô possuía
a magia de lançar fogo pela boca; Yansan roubou essa capacidade de Xangô e passou a exercê-la. No entanto,
ela não lança fogo, mas “traça no ar círculos cintilantes”, com sua espada imitando o raio. Yansan mobiliza os
ventos e as tempestades, as chuvas torrenciais e os vendavais; com sua espada, risca o ar e produz os trovões e
relâmpagos. Yansan representa uma das forças da natureza, a força das tempestades; é dessa descrição que
156 Subjetivicídios
desocidentalizar o conhecimento, optei por desviar das tantas nomenclaturas que abundam o
conhecimento ocidental – praticamente todas apoiadas em termos/conceitos gregos (éthos,
édipo, eros, oikos, Dionísio) – porque atrelam e fixam o significado ao significante.
Iansanidade também joga com duas possibilidades léxicas e discursivas, insanidade e sanidade,
sendo que se transforma nas duas coisas e em nenhuma delas ao mesmo tempo e, portanto, em
outra, deslocando a lógica binária entre o certo e o errado, entre o normal e o patológico para
outra noção, pós-categórica, que deixa de definir o bom/bem e o mau/mal, mas permite
provocar a dúvida entre comportamento e ação, também deslocando de uma lógica aristotélica
que poderia surgir nas conceituações que propus entre comportamento e ação. Iansanidade,
nesse sentido, é a possibilidade de agência dos oicorpos. Iansanidade é quando o capital
subjetivo devém a vontade de potência. Nesse sentido, o poder é essencialmente iansânico,
todavia egopolítico também.
São exemplos de corpos iansânicos os corpos transgêneros que rompem com a
promessa da dualidade dos gêneros; os corpos femininos que recusam a promessa da
maternidade (tanto pelo aborto quanto pela recusa da gestação) e da feminilidade forjada; dos
corpos masculinos que negam a promessa da masculinidade e da virilidade; os corpos negros
que negam a promessa da branquitude como civilidade e da negritude como
selvageria/barbaridade; dos corpos gordos que negam a promessa de saúde estabelecida pelos
critérios médico-científicos, que também perpassam os critérios estéticos; os corpos artísticos
que superam a limitação imposta ao seu oicorpo; os corpos indígenas que rompem com a
promessa colonial dos “neocolonizadores-ex-colonizados”; os corpos queer (de LGBTQIA+)
que rompem com a promessa da heterossexualidade compulsória, mas sobretudo aqueles que
rompem a promessa e precisam pagar com a ação do próprio corpo17. Destaque-se que antes
retiro a metáfora para iansanidade, da força que tem o poder (potência) de romper e destruir, como uma
tempestade, as condições de falsa calmaria estabelecida pelo status quo.
17
Embora atribua como corpos iansânicos os corpos trans, negros, queer, gordos etc., todos os corpos (também
os cis, brancos, héteros, magros etc.) podem – e devem – exercer suas iansanidades no rompimento das
promessas (morais e civilizatórias); assim, em linhas gerais, o racismo e a lgbtabjeção existem porque os corpos
que fenotipicamente expressam as promessas também precisam romper com elas. Descrevi o início desse
processo (sem a crítica que trago aqui) no que chamei de “dispositivo fenotípico” em Garcia-SEVERINO (2018)
[Disputas por vontades de verdade sobre os corpos na escola: o dispositivo fenotípico da homofobia e do
racismo. Revista Eletrônica de Educação. v. 12, n. 3, p. 867-883, set/dez, 2018]. A partir de um trecho de
Pele negra, máscaras brancas, em que Fanon argumentava que quando o colonizado retornava da metrópole,
percebia-se que seus fenótipos haviam sofrido uma mutação definitiva, analisei algumas reportagens que
traziam discursos sobre os corpos negros e os corpos queer em que se criavam características estereotipadas
como se fossem imanentes aos sujeitos, como se fossem fenótipos, e, portanto, fixavam identidades. Uma vez
que, biologicamente, fenótipo não sofre mutação, Fanon remonta o sentido de fenótipo ironizando-o como pré-
discursivo, de onde os dispositivos fenotípicos atuam e, consequentemente, “o poder atua sobre os corpos,
sobre seus órgãos e sistemas; além disso, pensar num dispositivo fenotípico acrescenta a ideia de que,
Subjetivicídios 157
dos “ques” não há vírgula, de modo que não basta terem os corpos citados como exemplos, são
necessárias ações que rompam com as promessas. A ação é o rompimento com a promessa da
oicorporidade, é o descompromisso, o contrário é comportamento; no entanto, não existe uma
substância iansânica, oicórpica, ou aneucórpica, “não existe um ‘ser’ por trás do fazer, do
atuar, do devir: o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo” (NIETZSCHE, 1998,
p. 36). É a partir dessa construção nietzschiana, também, que Butler (2015b) produz o corolário
sobre a performatividade de gênero. Nesse sentido, os corpos são performativos (e
contraperformativos) porque tornam-se identidades: iansânicas, oicórpicas, aneucórpicas,
eucórpicas – construídas por uma matriz eucórpica cientificista, que desde o século XIX produz
teorias sobre os corpos a partir da economia natural e animal. São identidades e são différances,
por isso também performativas e não fixas. Nietzsche também contrapõe o cogito cartesiano da
fixidez e da racionalidade sub-reptícias porque, pela crença na palavra e na gramática, nos
esquecemos de que
Em seu curso Os anormais, Foucault (2014d) descreve o que chamou n’A vontade de
saber de dispositivo da confissão, por meio do qual se deve contar tudo ao diretor da consciência
(padre, psiquiatra, médico) sobre a totalidade da existência de modo a passar pelo filtro do
exame. O que Foucault atribui ao controle do corpo pela carne é relativo a “um mecanismo do
poder que comporta uma discursividade obrigatória e permanente” (FOUCAULT, 2014d, p. 174),
em que “a carne é aquilo que se nomeia, a carne é aquilo de que se fala, a carne é o que se diz”
(FOUCAULT, 2014d, p. 174); o que aparece como objeto de um discurso cujo “aparelho de
controle difícil e sutil, [é] esse corpo de desejo e de prazer que nasce em correlação com ele”
(FOUCAULT, 2014d, p. 175; grifos meus). Também descreve o que chamou de teatro fisiológico-
teológico18 (dos séculos XVII e XVIII), no caso das possessões pelo diabo, em cujas confissões
uma freira de Loudun relatava: “O diabo me enganava frequentemente com um pequeno deleite
que eu tinha com as agitações e outras coisas extraordinárias que ele fazia em meu corpo”
metaforicamente, o poder atua em nível celular e molecular, como se fosse capaz até de provocar uma ‘mutação
definitiva’ no material genético” (p. 880-881).
18
Junção de sinais clínicos (verdadeiros ou performados) associados aos ideais ou explicações religiosas; algo
semelhante ao que observamos atualmente nas “performances” religiosas de igrejas neopentecostais onde as
pessoas são curadas pelo pastor em espetáculos de exorcismos.
158 Subjetivicídios
(FOUCAULT, 2014d, p. 181; grifos meus). Com base no Methodus expeditae confessionis
[Método de confissão expressa, do século XVII], Foucault relata o manual de confissão para o
diretor da consciência, no caso das mollities [polução voluntária sem conjunção dos corpos, na
explicação de Foucault, ou, a própria masturbação, ou ainda, em latim, “suavidade”], aquele a
quem se confessa deve extrair do penitente informações sobre em que pensara para praticar o
ato, o que usara para praticar, se fora devido a um motivo utilitário, ou se por um affectus
particularis, se era uma forma de explenda libido (descarregar a libido), se houvera afeição pelo
mesmo sexo, se houvera desejo por sodomia (perfeita ou imperfeita, a primeira entre homens,
e a segunda, por desejo da parte posterior, sendo praticada entre homem e mulher).
É justamente também no século XVII que Descartes (em As paixões da alma) atribui à
razão um nível superior ao das paixões, moralizando-se assim as percepções, o que implica ao
intelecto – se o entendimento for bem conduzido por meio de um método – a capacidade de
dominá-las (KRIEGER, 2018).
Embora Foucault (2014d) associe seus dados ao controle e à apropriação do corpo pela
carne, parece haver aqui preocupação com as iansanidades dos sujeitos por meio de suas
vontades de potência, especialmente sexuais, com as ações movidas pelo desejo e pelo prazer
para redução da energia subjetiva que cria, produz a ação e executa (que devém a vontade de
potência). É a partir das iansanidades (expressas pelo corpo) que se definiram as verdades do
patológico e determinou-se o normal. O corpo assumiu o papel de materializar e racionalizar as
iansanidades (ou pelo menos tentar), a qual a economia natural e a economia animal, a partir
do século XIX, puderam, embora com suas ambivalências e dupla consciência, justificar com
“autoridade científica” – a drapetomania ou dysaesthesia Aetheopsis é um bom exemplo (cf.
Seção 2).
As doenças tornam-se o controle médico das iansanidades, assim como as leis tornam-
se o controle jurídico – é o que está, por exemplo, representado na homossexualidade como
doença e como crime – o que Foucault constatou na forma como o sistema jurídico cria os
sujeitos que pretende representar e proteger e como produz e gera o desejo que pretende
reprimir. Quando se tornam subsumidos espírito, vontade e consciência na concepção de um
eucorpo mecânico-cibernético, as iansanidades são objetificadas e destituídas de suas
relacionalidades corpo-mundo. Tornam-se elementos contraeucórpicos, portanto,
patologizáveis e criminalizáveis, com efeito, precisam ser tratadas e reabilitadas, porque vão de
encontro ao modus operandi da natureza, desafiam o modelo funcional-econômica-
sexualmente eficiente; os sujeitos deixariam de ser recursos oicórpicos úteis. A razão eucórpica
Subjetivicídios 159
vive “em defesa da sociedade” ou “em defesa dos oicorpos”: Il faut défendre les oïcorps! As
iansanidades não são prerrogativas dos “hoi polloi modernos”.
Freud (2011) também relata um caso de possessão demoníaca em Uma neurose do
século XVII envolvendo o demônio [1923] a partir da análise de manuscritos religiosos19, do
Tropheum Mariano-Cellense20 e do diário do pintor Christoph Haitzmann, quando de sua
possessão pelo demônio. Segundo Freud (2011), o diabo apareceu ao pintor depois de ele ter
perdido o pai, sofrido por um longo tempo de melancolia e ter se entregado longamente à
penitência e à oração: “[o diabo disse] que eu deveria buscar diversão e espantar a
melancolia”21, “sentindo-se prostrado com o andamento de sua arte e de seus emolumentos
futuros” e “sendo tomado de prostração pela morte do pai”22. Em Goethe, Freud encontra a
resposta sobre o que o diabo tem a oferecer ao homem (no caso, a Dr. Fausto), “muitas coisas
que o homem estima: riqueza, proteção dos perigos, poder sobre os semelhantes e as forças da
natureza, também sobre as artes da magia e, sobretudo, prazer, prazer com mulheres bonitas”
(FREUD, 2011, p. 234).
Em Fausto (GOETHE, 2002 [1749-1832], também encontramos a possessão do demônio
Mefistófeles sobre o Dr. Fausto, provocando-lhe suas iansanidades (o que Goethe descreve não
são o que considero as iansanidades, mas o que as faria aparecer como movimento e como
ação):
MEFISTÓFELES
Queres, sem freio ou mira estreita,
Provar de tudo sem medida,
Petiscar algo de fugida?
Bem te valha, o que te deleita!
Porém, agarra-o, sem pieguice!
FAUSTO
Não penso em alegrias, já to disse.
Entrego-me ao delírio, ao mais cruciante gozo,
Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do saber curado,
A dor nenhuma fugirá do mundo
19
Santuário de Mariazell, um conhecido local de romaria, localizado a 130 km de Viena; o manuscrito foi
encontrado pelo Hofrat Dr. R. Payer-Thurn na Fiedeikommiβbibliothek régio-imperial (uma biblioteca em que
se registravam os bens hereditários, que agora faz parte da Biblioteca Nacional Austríaca (informações da nota
de Freud).
20
Trata-se de uma obra de um compilador religioso que assina P.A.E. com uma conclusão do abade Kilian de S.
Lambert (escrito entre 1719 e 1724 sobre um caso ocorrido em 1678) atestando um milagre da Virgem Maria
sobre a possessão demoníaca do pintor Christoph Haitzmann.
21
FREUD, 2011, p. 236; transcrição do diário do pintor.
22
FREUD, 2011, p. 236; as duas últimas, citadas por Freud a partir do Tropheum.
160 Subjetivicídios
(...)
Mas quero!
(GOETHE, 2002 [1749-1832], p. 85)
Freud conclui que C. Haitzmann sofria de uma fantasia neurótica devida à sua
melancolia por não ter superado a morte do pai; o demônio seria o próprio pai, que também
seria o próprio Deus, como um traço mnemônico de uma imagem infantil que reflete uma
ambivalência do pai como terno e submisso e ao mesmo tempo hostil e desafiador. Tudo o que
o diabo oferecia ao pintor era consequência, possivelmente, de o pai não aceitar a vida de artista
do pintor. Para os relatos dos sinais físicos como visões, convulsões, perdas de consciência e
sensações dolorosas, Freud atribui significado de patologia, transformando em causa o que seria
consequência, ou em essência o que seria aparência – circunscritas na lógica eucórpica, entre
causas e consequências, “essência” e “aparência”, as iansanidades desaparecem como logos e
se transformam em locus (células, tecidos, órgãos, sistemas, enfim, corpo).
O próprio “delírio neurótico” de que fala Freud já pode ser considerado uma
iansanidade, ou seja, relacionalidade corpo-mundo, um movimento ou ação que pretende retirar
o sujeito da sua oicorporidade, ou condição de submissão. Os processos que Foucault descreve
nos dispositivos da confissão são formas de apreender as iansanidades e classificá-las do ponto
de vista da moral, determinando e distinguindo as que são normais das que são patológicas; o
que Freud descreve são as formas como são consideradas discursivamente como normais e
patológicas, a partir de uma moral médico-científica, que também é etnocêntrica e cristianizada.
Por exemplo, em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari denunciam o complexo de Édipo
como tentativa de alocar o desejo dentro da relação pai-mãe-filho (FOUCAULT, 2002), ou seja,
dentro da família (oikía) ou da casa (oikos). Em outras palavras, não seria nada mais do que a
tradução de iansanidade como desejo aprisionada no gerenciamento do oikos (ou seja, da casa,
do íntimo). O complexo de Édipo é estratégia oicorporificadora. Para Butler (2015b), o
complexo de Édipo é efeito reificador dos tabus do incesto e da homossexualidade; recorre à
discussão de Lévi-Strauss para afirmar que “o incesto não é um fato social, mas uma fantasia
cultural muito difundida” (p. 82). Nas palavras de Deleuze e Guatarri (2020), o complexo de
Édipo é uma edipianização em que “o psicanalista torna-se o diretor de um teatro privado” e
Subjetivicídios 161
“as máquinas desejantes passam a funcionar somente atrás das paredes do consultório” (p. 78):
“entra e deixa-te edipianizar” (p. 79).
Freud (2013 [1913]) inicia Totem e tabu evocando a teoria darwinista e buscando
reconstruir o percurso do homem pré-histórico por meio de seus resquícios arqueológicos. No
entanto, julga que existem seres humanos contemporâneos [de Freud] próximos desse homem
pré-histórico; seriam eles os selvagens ou semisselvagens, “se for lícito reconhecer [neles] um
estágio prévio bem conservado de nossa evolução” (p. 37). Como não pode voltar no tempo,
ele usa como objeto de pesquisa os estudos etnográficos dos “selvagens mais atrasados e mais
miseráveis”, os aborígenes australianos, a fim de reconhecer um estágio prévio bem conservado
da evolução [psíquica] humana. Ele acreditava que na comparação entre a psicologia dos povos
naturais e a do neurótico [o europeu civilizado], encontraria respostas evolutivas. O que Darwin
fez com os corpos é o que Freud, com efeito, fez com a psiqué em Totem e tabu: uma estratégia
de diferenciação e gradação intraespecífica dos humanos.
Freud encontrou neuróticos e psicóticos entre os primitivos? Ele explica que os
primitivos possuem um pensamento sexualizado e disso proveria “a crença na onipotência dos
pensamentos, a confiança inabalável na possibilidade de dominação do mundo e o fechamento
em relação às experiências fáceis de fazer que poderiam instruir o homem sobre sua real posição
no mundo” (p. 143 – destaques meus). Já nos neuróticos (os “não primitivos”), uma parte
considerável dessa atitude primitiva manteve-se e o recalcamento sexual produziu “uma nova
sexualização dos sistemas de pensamento” (p. 144). Os “primitivos” queriam dominar o
mundo? Com efeito, seria isso que todo o processo colonialista (Ásia, Oceania, América,
África) e a escravização africana e dos indígenas das américas quiseram evitar?
Fanon (2008) escreve que
23
Na hipostasia, uma realidade empírica é transformada por dedução em algo superior; a tautologia da linguagem
lhe dá a existência e permite à ciência um formato dedutivo que ainda reflete a hierarquia e a coerção. A
linguagem, assim, se torna imparcial; o impotente perde a força para que possa ser expresso e o existente
encontraria seu signo neutro, mas “tal neutralidade é mais metafísica do que a metafísica” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1986, p. 35).
24
« Je suis persuadé que les obstacles qui entourent l'étude expérimentale de phénomènes psychologiques sont
en grande partie dus à des difficultés de cet ordre ; car, malgré leur nature merveilleuse et la délicatesse de
leurs manifestations, il est impossible, selon moi, de ne pas faire rentrer les phénomènes cérébraux, comme
tous les autres phénomènes des corps vivants, dans les lois d'un déterminisme scientifique » (BERNARD, 1865,
p.128).
Subjetivicídios 163
decorrentes de processos que ocorrem em um órgão específico – em outras palavras, uma forma
de tornar material algo que estaria em outra esfera, ou, como Nietzsche diria, “a aparência quase
sempre torna-se essência e atua como essência” (2016, p. 127, grifo no original); o órgão
transforma-se na essência e na sede da iansanidade, deslocando-a à mera aparência, como sinal
ou sintoma, ou elemento nosográfico iansonoabjeto que precisa ser extirpado. A crença no
eucorpo tornou as iansanidades melancólicas e, portanto, psiquicamente patológicas naqueles
que acreditam possuir um eucorpo, e que, agora recalcadas, confirmam a crença na aparência
do eucorpo: Dorian Gray se finge de Narciso ao enxergar seu retrato, o fetiche fisiológico.
Da mesma forma, o desenvolvimento de uma linha de pensamento da pesquisa
psicológica, o behaviorismo, traduz os “comportamentos” humanos em pesquisa experimental,
com forte fundamento na fisiologia – nessa perspectiva, as iansanidades poderiam ser testadas
e controladas por meio da pesquisa experimental. Nesse sentido, passariam a ser consideradas
comportamentos, e não mais movimentos e ações; talvez não sem coincidência, os mecanismos
desse controle sejam chamados de recompensa e punição – (reward e punishment) por Guyton
e Hall (2006) – ou com nomes mais “moralistas” (reforço positivo e negativo). A lei do Efeito
de Thorndike, base do behaviorismo, enuncia que um ato pode ser alterado em sua força pelas
consequências (BOCK, et al., 1992), mas pode também sub-repticiamente enunciar a forma
como as iansanidades se constituem como boas ou ruins e podem ser manipuláveis. Nietzsche
(1998) faz uma contundente crítica ao racionalismo e ao empirismo dos “psicólogos ingleses”
do século XIX, sobretudo direcionada a Herbert Spencer – que era, na verdade, biólogo, mas
que iniciou os estudos do comportamento associando-os à Fisiologia (outra disciplina que
causava a ira de Nietzsche e à qual fez diversas críticas, sobretudo em nome de Claude Bernard).
Ele acusa Spencer de associar em suas pesquisas o termo bom com o termo útil, de modo a
exemplificar como a humanidade sempre sancionou as experiências inesquecidas e
inesquecíveis – e retomamos a função de utilidade dos corpos que a economia animal enuncia,
pelo menos desde o século XVIII.
À nossa animalidade, em Nietzsche (2017b), associo o que chamo de iansanidade,
reconhecendo (anacronicamente) o que Matory e Buck-Moss consideraram ambivalência.
Nossa iansanidade teria sido aprisionada pela moral, na distinção entre bom e mau (ou entre
útil e descartável), e no afastamento dos “civilizados” de sua ancestralidade animal – o que
Darwin “descobriu”, mas precisava afastar pela invenção da evolução como progresso,
inclusive da humanidade – e o que, ao mesmo tempo, como afinidade eletiva
(Wahlverwandtschaften), permitiria justificar a escravidão no século XIX. Haveria,
“evolutivamente”, humanos que seriam mais próximos da animalidade e outros que seriam mais
164 Subjetivicídios
25
Cf. GARCIA-SEVERINO, 2018.
Subjetivicídios 165
doenças no que diz respeito à interação de fisiologia, patologia e ambiente. Para Nietzsche
(2017a, p. 87), tudo isso é ascetismo, que, “para os fisiologicamente deformados e desgraçados
[referindo-se aos fisiologistas do século XIX] [...] [seria] uma tentativa de verem-se como ‘bons
demais’ para este mundo, uma forma abençoada de libertinagem, sua grande arma no combate
à longa dor e ao tédio”.
O diabetes é um exemplo interessante de como esse “acontecimento” foi investigado e
produzido como doença. Claude Bernard, embora atribua à medicina e à fisiologia um caráter
extremamente experimental para obtenção das “verdades” sobre o processo vital, destoa do
conjunto de médicos de sua época no que diz respeito à conceituação de saúde e doença – a
despeito da importância de suas pesquisas relatada nos livros atuais de fisiologia, essa relação
entre saúde e doença foi silenciada ‒ Bernard não diferenciava saúde de doença, mas
considerava como dois estados da mesma coisa: “fisiologia e patologia se confundem e são, no
fundo, a mesma coisa”(BERNARD apud CANGUILHEM, 2009, p. 25).
A medicina (ocidental) fundamentou-se na diferença entre o normal e o patológico a
partir da comparação quantitativa entre ambos os estados. Canguilhem (2009), por exemplo,
relata que o patológico (ou a doença) foi construído como aumento ou diminuição de certas
variáveis em relação ao estado dito fisiológico (o investigado).
A partir da concepção de Broussais26 de “que todas as doenças aceitas como tal são
apenas sintomas, e que não poderiam existir perturbações das funções vitais sem lesões de
órgãos, ou melhor, de tecidos” e de que todas as doenças consistem “no excesso ou falta de
excitação dos diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal”
(CANGUILHEM, 2009, p. 16), Comte (em 1828) propõe uma lei geral ou axioma geral
nosológico, o qual se mantém até hoje na medicina, cujo fundamento sistemático da patologia
(positiva/positivista) é de que o estado patológico se diferencia do fisiológico pela intensidade.
Para Comte (segundo Canguilhem, 2009), os cientistas teriam a obrigação de determinar todos
os limites de variação do normal antes de explorar o patológico. Um reflexo desse pensamento
está no fato de prefixos como hipo e hiper encherem as classificações nosológicas dos tratados
de patologia (hipotireoidismo, hipertireoidismo, hiperglicemia, hipoglicemia, hiponatremia,
hiperventilação etc.).
Nas pesquisas do século XIX, os termos estado normal, estado natural e estado
fisiológico foram usados como sinônimos e intercambiáveis, da mesma forma que anormal,
26
Canguilhem (2009) encontrou na publicação de Broussais, de 1828 (De l’irritation et de la folie) a fonte do
pensamento nosológico positivo de Augusto Comte.
Subjetivicídios 167
patológico, mórbido e doentio; os últimos, sempre na comparação entre excesso e falta relativos
aos primeiros. Sejam as pesquisas e suas conclusões mais vitalistas (com tentativas qualitativas
de diferenciar) ou mais mecanicistas (tentativas mais quantitativas), o normal é tido como
caráter normativo, que deixa de ser apenas uma disposição detectável e explicável como um
fato e se transforma em apego a um valor (CANGUILHEM, 2009) ‒ Nietzsche diria a uma moral.
Entre as abordagens qualitativa e quantitativa para determinação do estado patológico,
Claude Bernard27, mais qualitativamente, atribuiu a estados anormais termos como poliúria,
polifagia e glicosúria (até hoje utilizados). No entanto, Canguilhem (2009) destaca uma
armadilha discursiva: ao evitar os prefixos hipo- e hiper-, Claude Bernard utiliza outros que,
semanticamente, dizem a mesma coisa. Poliúria tem o mesmo significado de hiperúria (ambos
os termos se referem ao aumento do volume de urina); polifagia, o mesmo de hiperfagia (ambos
os termos se referem ao aumento da ingestão de alimentos).
A glicosúria é relativa à eliminação de glicose pela urina, que no estado fisiológico
supostamente não aconteceria. Nesse aspecto, Claude Bernard faz, de fato, uma avaliação
qualitativa: a detecção de glicosúria apenas seria patológica caso fosse permanente, uma vez
que no estado fisiológico ou normal também pode haver fenômeno glicosúrico. Embora essa
condição ainda apresente controvérsias, Canguilhem (2009) questiona uma outra condição que
desloca a relação entre o normal e o patológico, que é o estado experimental, que seria mais
real que o normal e que o patológico, mas é em si uma intervenção. De qualquer modo, o
diabetes foi estudado a partir da condição experimental, o que permite algumas discussões.
Desde von Mering e Minkowski, em 1889, com a produção experimental do diabetes,
depois a identificação da função endócrina do pâncreas por Laguesse até o isolamento da
insulina nas ilhotas de Langerhans, em 1920, por Benting e Best, considerou-se o diabetes como
hipoinsulinemia (baixa produção de insulina) que ocasiona uma diminuição da capacidade de
utilização da glicose em função da glicemia (CANGUILHEM, 2009). Assim como a histeria estava
relacionada ao útero, o diabetes se relaciona à porção endócrina do pâncreas. Em 1930-1931,
Houssay e Biasotti mostraram experimentalmente que outra estrutura estava também ligada ao
diabetes, a hipófise: com a ablação completa do pâncreas, um cão sadio não viveria mais do
que cinco semanas, morrendo dos sintomas clássicos do diabetes. Caso fosse aplicada além da
pancreatectomia, também uma hipofisetectomia, o diabetes era revertido, e sintomas como
glicosúria e poliúria eram suprimidas e a glicemia voltava a níveis considerados normais – o
27
Em Leçons sur le diabète et la glycogenèse animale [Aulas sobre o diabetes e a glicogênese animal], de 1877;
segundo Canguilhem, 2009.
168 Subjetivicídios
diabetes não poderia ser clinicamente detectado. Em 1937, Young produz experimentalmente
o diabetes, mantendo intacto o pâncreas, mas alterando o lobo anterior da hipófise. L. Hédon e
A. Loubatières reproduziram os experimentos de Young e concluíram que “uma superatividade
temporária do lobo anterior da hipófise [adeno-hipófise] pode causar não apenas um distúrbio
transitório da glicorregulação, mas também um diabetes permanente, e que persiste durante um
tempo indefinido depois do desaparecimento da causa que o provocou” (CANGUILHEM, 2009,
p. 30; grifos no original).
Destaco um trecho que talvez tenha passado despercebido por Canguilhem: persiste
durante um tempo indefinido depois do desaparecimento da causa que o provocou.
A hipófise é uma glândula localizada no interior do encéfalo, dentro da região chamada
de sistema límbico, associada morfologicamente com o hipotálamo, a porção mais importante
do sistema límbico no controle das funções vegetativas e autonômicas e do comportamento
emocional. O hipotálamo é especialmente interessante porque é o único local do encéfalo que
possui células neuroendócrinas (GUYTON; HALL, 2006); segundo Kandel (2009), elas se
parecem neurônios, mas em vez de emitir sinais para outras células via mecanismo sináptico28,
elas liberam hormônios na corrente sanguínea; também são fortemente afetadas por doenças
depressivas. O hipotálamo é a estrutura essencial para a expressão corporal do medo e tem
conexões com o córtex cingulado que está envolvido na avaliação consciente do medo,
enquanto a amídala (juntamente com o cerebelo e estriado) coordena as respostas autonômicas
e endócrinas relacionadas aos estados emocionais, e o mais importante, está associada à
memória implícita (ou inconsciente).
Uma das possibilidades de entender a emoção (KANDEL, 2009) é de que ela seja a
interpretação inconsciente do estado fisiológico, ou seja, o sistema límbico interpretaria as
condições autonômicas (por exemplo, as condições cardíacas, de pressão arterial) e provocaria
um “significado” (emoção) – mas esse significado poderia atuar em feedback positivo29; aqui
estaria um problema (o que passou despercebido por Canguilhem). Uma vez que o sistema
límbico interpreta as condições autonômicas, como, por exemplo, medo, essa interpretação
28
Guyton e Hall (2006) dizem que essas células também emitem sinais via mecanismo sináptico.
29
Feedback é o nome dado a uma resposta fisiológica de retroalimentação. A fisiologia atribui dois tipos de
feedback, o positivo e o negativo. O tipo negativo é aquele que mantém a estabilidade; por exemplo, quando
níveis de glicose estão altos no sangue, a produção de insulina é ativada mantendo os níveis plasmáticos de
glicose dentro de um “normal”; quando a concentração de glicose está baixa, inibe-se a produção de insulina e
estimula-se a secreção de glucagon, decompondo glicogênio em glicose. Outro exemplo é quando a
concentração de gás carbônico está alta no sangue, é estimulada a ventilação pulmonar, de modo a eliminar o
gás carbônico pela expiração. O feedback positivo estimula a produção daquilo que já está em alta quantidade
e inibe aquilo que está em baixa quantidade; os fisiologistas descrevem o feedback positivo como um “ciclo
vicioso” (vicious cycle) (GUYTON; HALL, 2006).
Subjetivicídios 169
geraria mais medo (com consequências fisiológicas autonômicas), que seria interpretado como
mais medo – nesse caso, a adeno-hipófise seria constantemente afetada, e, segundo as pesquisas
de L. Hédon e A. Loubatières poderia haver o desencadeamento de diabetes – a despeito de
quaisquer outras variáveis bioquímicas possivelmente detectáveis por meio diagnóstico (apud
CANGUILHEM, 2009).
Darwin (2009 [18--]) parece ter se rendido à Fisiologia na publicação de The expression
of the emotion in man and animals [A expressão da emoção no homem e nos animais]. As
citações de Claude Bernard como o “grande fisiologista” ressaltam essa hipótese e indicam que
ele mesmo (Darwin) passou também a preencher a lacuna deixada n’A origem das espécies.
Confirmando a relação da emoção como interpretação das condições autonômicas, como
Kandel (2009), mas em feedback positivo, estão aqui duas citações de Claude Bernard n’A
Expressão: “a influência do cérebro tende, portanto, a entravar os movimentos reflexos, a
limitar sua força de extensão” (p. 39) e o mais explícito:
apesar de normais, são dificilmente visíveis no estado normal" 30. Recordemos o exemplo da
Figura 2.7, na seção anterior.
Dois detalhes no bojo dessa discussão se sobressaem, a explicação fisiológica de
“emoção” e de “consciência”: a emoção é uma representação da ordem superior das reações
corporais; a consciência, um conjunto distinto de processos biológicos cujo conjunto é mais do
que a soma de suas partes. A fisiologia as trata como coisas em si apreensíveis ao intelecto
humano. “Embora tenham que lutar com as dificuldades de definir os fenômenos da consciência
experimentalmente, [os neurocientistas] não encaram essas dificuldades como uma obstrução
de todo estudo experimental sob os paradigmas existentes”, Kandel (2009, p. 412) entende essa
condição, mas ressalta que a neurobiologia fez progressos no entendimento da percepção da
memória sem precisar dar conta do elemento individual e defende que é necessária a “redução
de algo subjetivo a algo físico e objetivo” (p. 411).
De Broca e Wernicke, passando por Pavlov e Claude Bernard, chegando aos dias atuais,
os métodos de microscopia eletrônica, ressonância magnética e tomografia computadorizada,
que assim como todas as técnicas de visualização31, vêm produzindo, nas palavras de Haraway
(1995), o truque de deus que fode o mundo e cria tecno-monstros.
Um desses tecno-monstros produzidos pela ciência biológica é o eucorpo, destrinchado
em mínimos detalhes em sua anatomia e fisiologia; funciona como a referência do olhar agora
tecno-panótico que invade os corpos intracelularmente – dão materialidade à vida como coisa
em si, e, com efeito, o poder passa a se exercer molecularmente nas células e retira a vontade
de potência por meio de diagnósticos que têm o poder de prescrever o futuro. A arquitetura
panótica das prisões ganha contornos diagnósticos; o truque de deus expressa sua ubiquidade
de forma tecno-panótica. Por outro lado, o autoconhecimento é um fetiche, assim como a saúde,
a beleza e a perfeição o são. Como seria conceber o conhecimento constante de cada célula do
nosso corpo e saber que cada uma executa perfeitamente seu trabalho biológico? Talvez esteja
aí a metonímia da “paz de espírito” e “bem-estar” das buscas das dietas, estilos de vida, práticas
do corpo perfeitos. Por outro lado, como diz Haraway (1995), não é necessário abandonar as
teorias, mas pensar em como elas podem permitir um futuro aos diferentes corpos. O ponto da
30
(La volonté de puissance, § 533, trad. Bianquis, N.R.F., I, 364). (p.15) apud Canguilhem (2009). A edição de
Vontade de Potência, de 2017, que usei de referência, não possui esse aforismo.
31
Haraway (1995) cita diversos outros instrumentos de visualização: sistemas de manipulação gráfica vinculados
à inteligência artificial, técnicas de avivar cores, sistemas de vigilância via satélite, vídeos domésticos e no
trabalho, câmeras para todos os fins, desde a filmagem da membrana mucosa do estômago de um verme
marinho vivendo numa fenda entre plataformas continentais até o mapeamento de um hemisfério planetário
em outro lugar do sistema solar (p. 19).
Subjetivicídios 171
crítica não está exatamente apenas nessa produção, mas o que se encontra antes e depois dela.
A doença é produto de quê? Essa poderia ser a pergunta da Biologia que nascia em 1800 feita
hoje.
As emoções foram estudadas e descritas como mecanismos neurais, que já em Darwin
eram definidas, algumas, como universais e semelhantes em quaisquer raças (sic) de humanos,
“confirmadas” pelo trabalho de Ekman (2011), também citado por Kandel, novamente
transformadas em coisas em si, seriam elas: medo, raiva, felicidade, desprezo, surpresa, repulsa
e tristeza32. Mas são palavras. Não seria uma forma de racionalizar tecnicamente as
iansanidades? Qual a diferença entre raiva, ira, irritação? Alegria, felicidade, prazer? Tristeza,
mágoa, melancolia? Surpresa, espanto, susto? Medo, temor, suspeita? Aversão, repulsa, nojo?
O motivo de essas emoções serem universais é atribuído à evolução, na resposta filogenética,
que se transforma na alternativa científica à metafísica divina (de Leibniz ou Newton, por
exemplo): “Parecia provável que o hábito de expressar nossos sentimentos por meio de certos
movimentos, apesar de agora inato, foi de alguma forma adquirido gradualmente” (DARWIN,
2009 [18--], p. 25).
A fisiologia parece, de fato, considerar as emoções como coisas em si descritas como
processos neurais anatomizados e fisiologizados, com efeito, tornam-se condições pré-
discursivas que a capacidade intelectual humana foi capaz de apreender; existiria um
mecanismo neural estabelecido que funcionaria exata e precisamente, por exemplo, na raiva:
Alguns detalhes são importantes para a análise. Os dados coletados são referentes a um
animal em situação experimental; a correlação com o humano é uma alternativa argumentativa
filogenética, com efeito, “ataques de raiva” são relacionados a pessoas não civilizadas e não
32
Cf. Fig. 2.2, no item 2.6.
33
“Strong stimulation of the punishment centers of the brain, especially in the periventricular zone of the
hypothalamus and in the lateral hypothalamus, causes the animal to (1) develop a defense posture, (2) extend
its claws, (3) lift its tail, (4) hiss, (5) spit, (6) growl, and (7) develop piloerection, wide-open eyes, and dilated
pupils. Furthermore, even the slightest provocation causes an immediate savage attack. This is approximately
the behavior that one would expect from an animal being severely punished, and it is a pattern of behavior
that is called rage” (GUYTON; HALL, 2006, p. 736 – grifos no original).
172 Subjetivicídios
normais. Ademais, os testes aplicados nos animais experimentais para estimulação neural e
contração muscular das diversas pesquisas fisiológicas do século XIX foram feitos pelo uso do
galvanismo, que, segundo Canguilhem (2009), não foi estudado nas quantidades reduzidas em
que se apresenta na natureza, mas multiplicado pela experimentação, a fim de se executarem as
pesquisas com maior facilidade, implicando que as leis estudadas nesse estado exagerado
tornaram-se as do estado natural, chamado de fisiológico. A despeito disso, as emoções tornam-
se propriedades.
As características do transtorno de oposição desafiante (CID-10: F91.3), doença mental
(sic) descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-5 (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014) toma, como em outras doenças, a raiva como parâmetro de
critério diagnóstico (Fig. 3.4). Segundo a descrição, uma criança que apresentou dois episódios
de raiva (por meio de comportamento malvado ou vingativo) nos últimos seis meses pode ser
diagnosticada com esse transtorno, sobretudo se desafiou e/ou criticou alguma autoridade.
Sobre o grupo no qual se encaixa esse transtorno (Transtornos disruptivos, de controle
de impulsos e de conduta), pode-se ler o seguinte:
uma lista surgiu em 1662 (em Londres) e continha 83 doenças, mas tratava-se de uma
nosografia e não de uma classificação (LAURENTI, 1991).
Considero a medicalização um dispositivo que mantém a posse privada do oicorpo não
mais como utilidade laboriosa ou de trabalho produtivo, mas como fonte de renda; a doença se
transforma em commodity, cria-se o superoicorpo: o corpo insidiosamente tornado doente,
corpo sem vontade de potência, incapaz de iansanidade. Segundo os dados da World Health
Organisation (WHO, 2019), em 1929, quando da quarta edição da CID, existiam catalogadas
390 doenças; a décima edição, de 1989, continha cerca de 14 mil. A última CID (CID-11, de
2018, que será publicada em 2022) contém 55 mil doenças descritas. O Quadro 3.2 apresenta a
evolução da CID, desde sua criação em 1900 até a última edição de 2018/2022. As doenças são
distribuídas dentro de grupos (coluna 3); na coluna 4, estão apresentadas as condições
observadas pela medicina para ampliar a “detecção” das doenças. A ampliação e o
desenvolvimento de recursos tecnológicos para diagnóstico e tratamento certamente têm
implicação no aumento, ao mesmo tempo também que produzem, por exemplo, a inclusão, em
1975, de doenças relativas a procedimentos médicos e, em 1989, doenças relativas a desordens
pós-procedimentos34.
A produção da doença pode ser devida à contenção das iansanidades. O oicorpo que
mantém contidas as energias subjetivas da sua vontade de potência e não as executa de forma
a fluir suas iansanidades se transforma em superoicorpo. O que significa iansanicamente
receber diagnósticos de HIV, de câncer, de uma doença neurodegenerativa ou de qualquer
doença cujo estigma social é muito forte e/ou cujos prognósticos são discursivamente terríveis?
(Lembremo-nos da discussão com Sontag na Seção 2). Acredito que há dois caminhos,
estimular as iansanidades ou reduzi-las; nesse caso, produziremos superoicorpos.
Superoicorpos não são corpos que receberam um diagnóstico, mas corpos que se tornaram
doentes porque o diagnóstico retirou sua iansanidade minando sua vontade de potência.
34
A partir do CID-10, as doenças são classificadas e identificadas por uma letra e um número (relativas a um grupo
de doenças) seguida de um ponto e outro número (relativos às subclasses das doenças).
Subjetivicídios 175
Parece-me que a patologia sempre foi o estudo das iansanidades por meio das paixões
(de pathos, πάθος), mas foram transvaloradas para sua contenção e transformadas em
materialidade, relegadas aos “sinais e sintomas” das doenças. Em O Banquete35, Platão
apresenta o discurso do médico Erixímaco, que diferenciava os corpos sãos dos doentios.
Doentios eram aqueles que não cediam aos intemperantes, e a arte médica, com os seguintes
nomes (ίατρικἠ, ίατρικἠϛ, ίατρικόν - iatroké), nada poderia fazer com eles de modo a torná-los
sãos, mas apenas seria capaz de diferenciá-los. A arte de curar significava a arte de gratificar
35
A edição que serviu de referência (2017) é bilíngue; a relação estabelecida entre as palavras em grego e em
português foi analisada pela busca em diversos dicionários grego-português, de livros que discutiam as
concepções de Platão em relação a alguns termos e de outros textos que também apresentam uma discussão de
alguns termos, como Nietzsche e Hanna Arendt. Algumas dúvidas foram sanadas com pessoas que conhecem
o grego. (PLATÃO. O banquete. Tradução Donaldo Schüler. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017 [427-347 a.C.],
176 p.). Dicionários consultados: DICIONÁRIO grego-português. Cotia: Ateliê Editorial (2007, 2008, 2009,
2010); BEEKS, Robert. Etymological Dictionary of Greek. Leiden: Brill, 2010, 885 p.; COLLECTIONS DES
UNIVERSITES DE FRANCE. Platon, œvres complètes. Tome XIV. Lexique de la langue philosophique et
religieuse de Platon. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
176 Subjetivicídios
os corpos eróticos (que são íntegros e sadios). A saúde era a posse do deus Eros produzindo o
corpo erótico (σώματοϛ ερωτικων – somatos erotikon); a medicina era erótica. Para a diferença
entre o sadio e o doente, as palavras usadas foram κακόϛ e ἀγαθοῖϛ – kakós/ágathos. Segundo
Nietzsche (1998), a primeira traz a ideia de mau e feio e está em oposição à segunda, bom.
Ambos os termos também apresentam oposição (μεταβάλλειν - metabángein) entre plebeu e
nobre. No discurso de Erixímaco, a palavra ἀγαθοῖϛ – ágathos é usada juntamente com καλὸν
(kalón – honesto). Outras duas palavras destacam a relação entre os corpos doentios: ἀκολάοιϛ
(ákoláos) e αἱσχρόν (aiskhrón), que, respectivamente, significam intemperança/indisciplina e
fraco psíquica e moralmente. Ganguilhem (2009) atribui à medicina o nome de iatrocracia (de
ίατρικἠ iatroké), que talvez nada mais seja do que a arte de diferenciar o bom, o belo e o sadio
(que também são nobres e honestos) do seu oposto, e, embora Nietzsche atribua a Spencer o
fato de associar o termo bom também ao útil, com efeito, determina a utilidade dos maus, feios
e doentes; sua utilidade é a sua superoicorpidade. Esse corpo erótico (bom, bonito, sadio, forte,
honesto e nobre) transformou-se na modernidade em Eucorpo.
Entrego a senha à atendente, ela me pede pra esper... Não, venho dizer que
vou interromper o tratamento. Ela se esforça para não deixar transparecer sua
surpresa ou talvez incompreensão, “Vou falar com a enfermagem”. A reação
maior foi da cliente na baia ao lado, ela ouviu. Ela estava preenchendo um
formulário, cravou os olhos em mim e sua mão ficou em suspenso. A
atendente me pede que vá à enfermaria. Elas já assimilaram a surpresa; vou
passar pela triagem (!), uma auxiliar de enfermagem mede pressão e
temperatura, me pergunta o porquê da decisão. Explico: a idade, a quase
cegueira, a agressividade do tratamento, os efeitos colaterais. Ela aperta minha
mão com insistência, “Eu entendo”. É a primeira vez que sinto um contato
entre pessoas naquele hospital. Ela diz que vai abrir uma queixa. Reajo, não
quero me queixar com ninguém. “Mas é uma queixa, é assim que se chama”.
Sou encaminhado a um médico de plantão. Conto minha história. Ele advoga
em favor da manutenção, os riscos, a disseminação do câncer; o tratamento é
temporário. Me mantenho firme. Ele se levanta e informa que precisa falar
com seu superior. Volta e repete o que já havia dito. Pergunto se é o que o
superior mandou me falar. Resposta afirmativa. “Isso não muda a minha
decisão”. Ele sai de novo e volta com o superior, que me repete o que o
plantonista já me falou duas vezes. Sobre as diarreias: não há a menor
possibilidade de que as primeiras aplicações provoquem esse efeito. “Talvez
uma virose. Teve febre?”, “Não”. “Fezes malcheirosas?”, “Normal”.
Acrescento que na quarta estava bem – sem virose – e no sábado idem. O caso
da diarreia me deixa encafifado, sinto que no fundo até eu tenho dúvidas. O
superior acaba concluindo que o convenci (!) e que aceitaria minha decisão
(que bom!), só que não pode. “Por quê?”. Não sou paciente dele, ele não pode
passar por cima da autoridade do “meu” médico. Então vai “suspender” o
tratamento e me pede para pensar melhor uns dois ou três dias – mas admite
em última instância que a decisão será minha. Digo que agendarei consulta
com o médico R. para encerrar o processo.
Talvez nossa forma de olhar o corpo não tenha mudado muito desde os gregos antigos,
apenas produzimos novas palavras para explicar as mesmas coisas; produziram-se métodos
diagnósticos altamente tecnológicos e invasivos, mas filosófica e epistemologicamente pouca
coisa mudou.
Há um grupo de doenças que merecem destaque, as chamadas doenças idiopáticas, de
idion + pathos, que em tradução médica representa doenças particulares, ou em outras palavras,
aquelas a que a medicina não foi capaz de atribuir uma causa científica dentro dos critérios
estabelecidos para as doenças semelhantes. Poderiam ser elas causadas por um feedback
positivo do sistema límbico, assim como o diabetes testado e descrito por L. Hédon e A.
Loubatières? Em outra leitura, as doenças idiopáticas são aquelas em que as iansanidades não
foram possíveis de serem materializadas. Na leitura do rastro da différance, a patologia deveria
ser (e em alguma essência é) o estudo ou o discurso (o logos) das iansanidades, que o “truque
de deus” não foi capaz de apreender ou sobre o qual o fetiche fisiológico executou seu fetisso.
Da mesma forma que a ecologia escondeu o oikos, a patologia (de pathos, πάθος) escondeu as
paixões e as iansanidades. Ambas expressaram seus objetos de pesquisa nos corpos,
Subjetivicídios 179
produzindo fetissos e escondendo seus fétiches. O Quadro 3.3 as apresenta como uma lista, sem
presunção de descrever cada uma, o que se ressalta aqui é inadequação delas aos critérios
médicos que definem as doenças como causa-consequência; talvez revelem algo
desconsiderado nas demais, cuja “causa” não é idiopática.
Segundo o DSM-5:
36
Consulta realizada no site https://www.cid10.com.br/ (Acesso 16/10/2019).
180 Subjetivicídios
Destaque-se que, para este último, é solicitado ao médico que especifique se o problema ocorre
na ortografia, na gramática, na pontuação, na clareza de expressão. Essa avaliação excederia
totalmente a competência médica para avaliar esses parâmetros. Os dois transtornos descritos
podem ser compreendidos como opostos (hiperatividade frente a uma hipoatividade), no
entanto os dois diagnósticos podem ser atribuídos a uma mesma criança. Ao mesmo tempo,
pressupõe-se um padrão normal de aprendizagem e impõe às crianças conviver com um
diagnóstico rotulado (que contém um conjunto de discursos ditos e não ditos e sobretudo de
práticas) ao longo da vida. Evocando a Fisiologia, como esses diagnósticos implicariam a
leitura do sistema límbico sobre as consequências autonômicas do corpo delas? Que circuitos
neuronais de sensibilização provocariam? Quais as consequências para a aprendizagem se esses
mecanismos agirem em feedback positivo? O que acontece com as iansanidades dessas
crianças?
Outros dois pares que operam no sistema hipo-hiper podem ser verificados no
Transtorno da Interação Social Desinibida [F94.2] e no Transtorno da Personalidade
Antissocial [F60.2]. O primeiro marcado por “desinibição e comportamento externalizante”37,
“comportamento verbal ou físico excessivamente familiar (não compatível com limites sociais
culturalmente aceitos ou apropriados à idade)”38, “quando o transtorno persiste na infância
intermediária, as características clínicas manifestam-se como excesso de intimidade verbal e
física, além de expressão não autêntica de emoções”39. Qual seria o critério para “excesso de
intimidade verbal”? Por outro lado, as pessoas com Transtorno da Personalidade Antissocial
“apresentam ataques de agressividade impulsivos, recorrentes e problemáticos”40 e estão
associados a três outros transtornos pelos seus sintomas, “aqueles [também] com história de
transtornos com comportamentos disruptivos (p. ex., TDAH, Transtorno da Conduta,
Transtorno de Oposição Desafiante), apresentam um risco aumentado para transtorno explosivo
intermitente comórbido”41. Na comparação desses transtornos, o normal seria representado por
aqueles que mantêm o pacto oicórpico, que se mantêm oicorpos, do contrário, precisam ser
medicados, assumindo seu diagnóstico e se transformando em superoicorpos. Há ainda os
37
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 265.
38
Ibidem, p. 268.
39
Ibidem, p. 269.
40
Ibidem, p. 469.
41
Ibidem, p. 469.
Subjetivicídios 181
42
Ibidem, p. 724.
182 Subjetivicídios
Aneucorpos são os corpos que foram destituídos simbolicamente do seu próprio corpo
na esfera social. Ser destituído do corpo biológico implicaria morte biológica e, também, social.
Aneucorpo é o corpo punido pelo próprio corpo para contenção das iansanidades com caráter
reabilitador, mas reabilitação é apenas um eufemismo. No entanto, o aneucorpo precisa ser
primeiramente produzido, ou seja, seu corpo precisa ser destituído do corpo.
Destaco três conceitos manejados por Butler (2016c) para seguir a discussão aqui
proposta sobre os corpos: apreensão, reconhecimento e inteligibilidade. Apreender seria captar,
marcar, registrar ou mesmo reconhecer sem pleno conhecimento. No entanto, o que
apreendemos é facilitado pelas normas de reconhecimento, mas não nos encontramos
totalmente limitados por essas normas. A inteligibilidade é o esquema que estabelece, histórica
Subjetivicídios 183
concepção e representação do rosto, cujo corpo (mesmo sem a visão do rosto) também
reconheceria as emoções, porque o rosto operaria como catacrese.
Embora, em Levinas, o rosto seja “o outro que me pede para que não o deixe morrer só,
como se o deixar seria se tornar cúmplice de sua morte” (BUTLER, 2011, p. 16), é pelo rosto que
se apreenderia a precariedade da vida. Nosso vínculo moral se dá pela forma como o discurso
do outro nos atinge, contra nossa própria vontade, ou até mesmo antes de produzirmos uma
vontade. Mas, se a precariedade apreendida no rosto do outro me diz para não o matar, ao
mesmo tempo torna possível o homicídio como discurso e como vontade. Somos capazes de
43
LEVINAS apud BUTLER, 2011; p. 17. Notas do tradutor do artigo de Butler: Emmanuel Levinas. Ethics and
Infinity. Tradução para o inglês de Richard A. Cohen, Pittsburgh: Duquesne University Press, 1985, p. 87.
Citada no texto como El. [Nota do tradutor: Para a versão em português deste excerto foi utilizado o trecho
correspondente que está em “Ética e Infinito”. Biblioteca de Filosofia Contemporânea. Lisboa: Edições 70, p.
79]
Subjetivicídios 185
apreender ou reconhecer as emoções no rosto ou no corpo das pessoas? Nesse sentido, tanto a
CID quanto o DSM configurar-se-iam como enquadramentos pelos quais as emoções são
reconhecidas por um esquema de inteligibilidade. O dado novamente ultrapassa o sujeito.
Foucault (2014a) localiza na passagem do século XVIII para o século XIX o nascimento
da prisão; a passagem do suplício para o encarceramento apenas minimizaria economicamente
o espetáculo da punição, mas produziria doravante aneucorpos. Uma vez que Damiens foi
esquartejado e morto, seu corpo foi punido, mas não suas iansanidades, que precisariam de
outras tecnologias para punição (e readequação). Dessa forma, o suplício não implicaria
“reabilitação”, mas exemplo por meio do qual o medo agiria nas outras pessoas, ou, refazendo
as palavras de Butler, a forma como o espetáculo discursivo dos suplícios atingiria os outros –
produzindo discursos e vontades. Dessa forma, Claude Bernard tinha razão no seguinte detalhe:
quando os corpos são esquartejados (como nos estudos anatômicos), sucumbem-se, junto com
ele, os fenômenos da vida, incluindo aqui as iansanidades. Numa metáfora: os suplícios eram
o “experimento” socioanatômico das iansanidades; as prisões aperfeiçoaram-no,
transformando em “experimentos” sociofisiológicos.
Embora Foucault aproxime a prisão com uma escola, uma fábrica e um quartel,
considero que são diferentes quando da inserção dessas instituições dentro do pacto oicórpico.
A escola, a fábrica e o quartel são instituições mais do que disciplinares, são educadoras e
reprodutoras do pacto; as prisões, nas palavras de Foucault, são corretivas, com função de
retreinar, de reeducar e de reabilitar sob privação de liberdade. Todas são ensaios e
experimentos sociofisiológicos asceticamente pavlovianos, mas as primeiras são instituições de
“treino”, de educação e de habilitação sob o dispositivo da liberdade, onde vivem os oicorpos.
Segundo os Motifs du Code d’instruction criminelle, de 1808-1810,
a ordem que deve reinar nas cadeias pode contribuir fortemente para regenerar
condenados; os vícios da educação, o contágio dos maus exemplos, a
ociosidade [...] originaram crimes. Pois bem, tentemos fechar todas essas
fontes de corrupção; que sejam praticadas regras de sã moral nas casas de
detenção (apud FOUCAULT, 2014a, p. 226).
que os divide é a expressão das iansanidades, cujo controle faz toda a diferença na aplicação
de tecnologias sobre os corpos.
A descrição de Julius (Leçons sur les prisons, 1831) citada por Foucault revela menos
as funções reabilitadoras da prisão e mais as características éticas e estéticas que distinguiriam
oicorpos de aneucorpos:
cria-se a Biografia, ao mesmo tempo que cria o delinquente, com efeito, cria o não delinquente
– da mesma forma que o civilizado criou o selvagem, que o senhor criou o escravo, que o
“homem” criou a “mulher”, que a cis-heterossexualidade produziu as sexualidades dissentes,
porque o eucorpo criou o oicorpo, e, a partir deste, o aneucorpo e o superoicorpo. Trata-se,
portanto, mais do que biografia, é uma espécie de biofisiografia: a vida é lida pelo
enquadramento fisiológico, utilizado também pelo sistema jurídico. Poderíamos agregar
prefixos, por exemplo, biopsicofisiográfico, mas seria apenas tautologia. Por exemplo, Pierre
Rivière fora destrinchado biográfica, psicológica e fisiologicamente.
Iansanidades são os instintos, as pulsões, as tendências, os temperamentos, os hábitos,
os costumes, mas não revestidos de moral – algo semelhante à agressividade iansânica na
citação que abre este item, expressa na letra da música Bixa preta, de Linn da Quebrada, que
condensa a aneucorporiedade em sua transexualidade, em sua orientação sexual, em seu
gênero, em sua cor e em sua condição de favelada. A “cura” do transtorno mental classificado
pela CID como “baixa renda” se deu pela sua iansanidade. Ela é aneucorpo, mas é também
iansânica, nunca superoicorpo – porque “bota pra fuder”. O que a iansanidade faz é questionar
o estatuto ontológico pelo qual certas regras de inteligibilidade foram produzidas.
Angela Davis (2016), em Mulheres, raça e classe, descreveu a construção do homem
negro como violento e estuprador e da mulher negra como promíscua e imoral. Durante o
período de escravidão nos EUA, o uso do estupro (praticado por homens brancos) como
instrumento de terror era mais comum que os linchamentos – estes implicariam perda da
propriedade (os escravizados como res). O açoitamento assim como os estupros de homens
negros e mulheres negras eram fortes instrumentos de controle. Contra os abolicionistas brancos
eram aplicados os linchamentos, uma vez que estes não tinham valor de mercado.
Diversas pesquisas do século XX demonstravam que eram mais violentos e mais
propensos ao estupro os homens de minorias étnicas – quando não estes, os pobres ou da classe
trabalhadora. Davis destaca The politics of rape [As políticas do estupro], de Dianna Russell,
com o subtítulo The Victim’s Perspective [A perspectiva da vítima], de 1975. Baseado em
entrevistas sobre estupro com as vítimas, a autora publicou 22 casos, dos quais 12 aconteceram
por homens negros, mexicanos ou indígenas. Futuramente, foi descoberto que, das 95
entrevistas realizadas, 26% envolviam tais grupos de homens – 70 entrevistas tiveram como
relato estupro por homens brancos. Um outro trabalho, de Michel Melstner, intitulado Cruel
and unusual: The Supreme Court and the Capital Punishment [Cruel e incomum: A Suprema
Corte e a Pena de Morte] apontava que entre 1930 e 1967, dos 455 homens condenados por
estupro, 405 eram negros (DAVIS, 2016). Das duas possibilidades que essa enunciação traz,
188 Subjetivicídios
entre o sistema jurídico ser tendencioso e homens negros serem violentos e estupradores, a
segunda prevaleceu como explicação e verdade.
No Brasil, seguindo os ideais iluministas, as penas supliciantes contra os escravizados
foram abolidas pela Constituição de 1824 (artigo 179), mas o Código Criminal de 1830 tornava
o escravizado humano e coisa ao mesmo tempo. Quando era vítima de um ato ilícito, era
considerado juridicamente como coisa (res), por ser propriedade de um senhor. Por outro lado,
quando considerado ator de um ato ilícito, réu em um processo jurídico, era-lhe atribuído status
de “humanidade”, sendo, portanto, condenado e “confirmando” sua condição de “naturalmente”
criminoso. A prisão, também como forma de “recuperação”, era o meio punitivo pelo qual o
Estado intervinha de modo a reduzir a quantidade de crimes (CATOIA, 2018). Mesmo quando
sua condição oicórpica era evocada, era para, na sequência, ser destituída: seu enquadramento
como aneucorpo pela prerrogativa jurídica respaldada pela “economia natural”. Mas o
Aufklärung à brasileira seguiu o caminho colonial como colônia. Os escravizados com seus
oicorpos de trabalhadores e trabalhadoras aneucoporificados foram “libertados” e tornaram-se
os monstros frankensteinianos nas ex-colônias, cujos “criadores”, assim como na história de
Mary Shelley, lutam para exterminar; o mito da convivência harmônica das raças foi uma
apaziguadora tentativa – fracassada.
O reflexo desse enquadramento de aneucorporificação dos escravizado pode ser visto
atualmente na forma como o sistema carcerário assumiu a função de gerenciamento de pessoas,
como um depósito de indivíduos “indesejáveis”, um verdadeiro campo de concentração para
pobres, depósito de dejetos sociais (MONTEIRO; CARDOSO, 2013; WACQUANT, 2004), além de
ser lento, ineficaz e parcial em favor dos ricos e poderosos (AZEVEDO; CIFALI, 2015). O
encarceramento é marcado, sobretudo, pela desproporcionalidade racial, etária e de gênero e a
incapacidade da instituição em “reeducar”, visto que o aumento da população carcerária
aumenta espantosamente, assim como os “crimes” (Quadro 3.4).
O seguinte trecho, publicado por Flauzina e Pires (2018), extraído do projeto Cartas do
Cárcere44, denuncia as linhas de força formadas entre a aneucorporificação dos encarcerados
e suas iansanidades latentes. A medicalização dos “indesejáveis” (superoicoporificação) tem
função quando as iansanidades precisam ser controladas e a punição física já não produz
44
“Cartas do Cárcere” foi um projeto firmado entre o PNUD e a PUC-Rio que analisou 8.818 cartas endereçadas
às instituições públicas no ano de 2016. As narrativas das pessoas privadas de liberdade serviram como a
principal chave de análise do sistema de justiça criminal brasileiro e da crítica às matrizes violentas do Estado
(FLAUZINA, PIRES, 2018; p. 2118).
Subjetivicídios 189
Destaque-se também que os dois motivos maiores de encarceramento são “crimes contra
o patrimônio” (evocando o oikos moderno da propriedade privada) e os entorpecentes, sendo
que a guerra contra as drogas acontece (pelo enquadramento midiático) nas favelas, cuja
população é coincidentemente formada de pessoas de “baixa renda”, considerada um transtorno
mental, digno de reconhecimento pela CID e pelo DSM. Aparece aqui o enquadramento de
criminoso via distinção étnico-racial.
Outro destaque importante, que aparece apenas em 2017 (sob o governo federal de
Michel Temer, pós-“impeachment” – [golpe]), é a caracterização da população carcerária
segundo “estado civil”:
Embora os dados apresentem inconsistência – uma vez que 60% (de solteiros) somado
aos 37% (de união estável ou casados) não atingem os 100% da amostra considerada e que esse
critério não havia sido considerado anteriormente45 – a vinculação ao oikos via discurso
enunciado do “estado civil” aparece e produz outro, não enunciado: pessoas que não constituem
família têm 60% mais chances de cometerem crimes, o que justificaria o enquadramento de
criminoso via família ou economia doméstica, por extensão, via divisão fisiológica do trabalho
e sexual.
A noção de oikos se mostrou central na genealogia aqui descrita: permitiu deslocar via
economia natural pelo critério étnico-racial os indivíduos que se deslocavam da condição “mais
evoluída” de humano, com efeito, mais animais, justificando sua apropriação para o labor
dentro do “oikos moderno”, cujas necessidades básicas apenas precisariam ser atendidas em
detrimento daquelas dos “mais evoluídos”, menos animais ou civilizados. Permitiu também
deslocar pelo critério sexual aqueles indivíduos que recusam a reprodução da espécie humana
e/ou que rompem com a regra da divisão fisiológica do trabalho. Estes parecem ser os
enquadramentos pelos quais se produziram ontologias: dos aneucorpos, dos oicorpos e dos
superoicorpos.
45
Cf. BRASIL/Infopen, 2014.
Lição de anatomia do médico Nicolaes Tulp, Rembrandt, 1636.
(Fonte: https://www.mauritshuis.nl)
[SEÇÃO 4]
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
192 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
com os olhos semicerrados e a boca entreaberta), havia pouco sido condenado e enforcado por
assalto a mão armada, é o ponto fulcral da cena cuja luminosidade revela o contraste com a
penumbra ao redor (NABAIS, 2009). As demais persongens ou são assistentes do médico, ou
médicos em formação, ou pessoas da classe média alta que pagavam para serem eternizadas no
quadro.
Alguns autores os diferenciam pela disposição na cena, os três centrais estão mais
atentos à aula (na cena, atentos ao livro disposto aos pés do cadáver), os demais parecem mais
preocupados em ser eternizados na pintura (seus olhos estão direcionados a Rembrandt).
Embora com intenções diferentes, todos esses estão vestidos da mesma forma – destaque para
o colarinho branco e as roupas marrom-escuro quase como um uniforme de acesso à burguesia.
Além da cena pintada, há toda a audiência não presente no quadro, mas na cena, que pagava
para fazer parte do teatro anatômico, circular e ser vista naquele lugar de prestígio social – esse
quadro, especialmente, foi pintado na sala de conferência da associação.
O livro representado à frente dos pés do cadáver é o Atlas de Anatomia de Versalius,
com o nome De Humanis Corporis Fabrica [Das estruturas do corpo humano]. A edição de
1543 desse livro também apresenta na capa a dissecção do músculo flexor superficial dos dedos
por Vesalius (Figura 4.1). Alguns autores destacam que a representação do quadro de
Rembrandt possui uma estranheza: a dissecção sempre se iniciava pelo abdome e tórax (onde
as vísceras sofrem decomposição e deteorização rápidas), seguida pela cabeça e por último
ocorreria a dissecção dos membros. Não parece revelar um erro, mas algo intencional sobre o
qual ainda há muita especulação. O quadro Lição de anatomia do médico Joan Deyman (de
1656, também de Rembrandt – Figura 4.2) revela essa metodologia anatômica – neste quadro,
a dissecção do crânio é apresentada e percebe-se que o tórax já havia sido dissecado. Outra
estranheza é a representação do músculo por Rembrandt: na Lição de Nicolaes Tulp, sua
origem1 está no epicôndilo lateral (ROSLER; YOUNG, 2011), enquanto na representação de
Vesalius, está no epicôndilo medial (justamente onde os dedos da mão esquerda de Vesalius
seguram o antebraço dissecado). A estranheza, segundo os autores, é devida à incoerência
anatômica somada à permissão de sua propagação artística por parte da Associação dos
Cirurgiões. Como a intenção é inapreensível, Rembrandt, com efeito, tensiona o real e o ideal.
1
A Anatomia considera que todo músculo tem uma origem e uma inserção (na verdade, tratam-se ambas de
inserções das porções tendíneas do músculo no osso). Chama-se de origem a inserção proximal do músculo
(mais próxima do centro do corpo), e inserção propriamente dita, a inserção distal (mais distante do centro do
corpo).
194 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
[Figura 4.1] Imagem de Andrea Vesalius estampada na primeira edição da Fabrica, de 1543.
Há uma distinção, pelo menos já no século XVII, entre corpos que importavam e os que
não importavam, corpos que podiam ser utilizados e corpos que utilizavam os corpos
utilizáveis. Ao corpo [cadáver] era outorgado o privilégio de ser interrogado pelo médico com
indiferença a qualquer outro aspecto (da alma, do social, das emoções, dos afetos e de “um
largo et cetera”) que não o biológico (ROSLER; YOUNG, 2011, p. 540). No entanto, o que se
revela é que todos esses aspectos considerados “negligenciados” pelos autores, na verdade, já
haviam sido considerados de antemão para determinar quem (e que corpos) serviriam ao
propósito da dissecção.
É interessante como o éthos eucórpico se manifesta de diversas formas. A icônica
fotografia da apresentação do corpo (cadáver) de Che Guevara (de 1967, Figura 4.3) foi
associada à imagem de Jesus, sobretudo por ser comparada à tela de Andrea Mantegna
denominada Lamentação de Jesus Cristo (1475-8). No entanto, a observação atenta de sua
composição revela mais semelhança com a tela de Rembrandt, não há lamentação pelo corpo
de Che, mas a representação de heroismo militar estadunidense a uma audiência mundial.
Destacam-se na fotografia dois generais estadunidenses que apresentam o corpo; seus
uniformes militares, em comparação às vestimentas dos demais personagens da cena, revelam
a autoridade, da mesma forma que a vestimenta de Nicolaes Tulp o diferenciava dos demais. O
general à direita aponta para o tórax de Che Guevara (provavelmente um local onde Che fora
atingido) sob o olhar atento de quatro integrantes da composição, dois deles militares bolivianos
(considerados inferiores aos dos Estados Unidos, embora tenham sido eles que capturaram e
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 195
executaram Che) e outros dois com roupas sociais sem gravata – representantes possivelmente
de uma classe média “anticomunista”. Um terceiro desse grupo, no momento da foto, olha por
trás do general para fora da cena. Outro general, à esquerda, compartilha a autoridade ao
apresentar a um fotógrafo a cabeça de Che. A imagem lembra a pintura Lição de anatomia do
médico Joan Deyman (1656), também de Rembrandt (Figura 4.2).
Da mesma forma que Aris Kindt, Che Guevara havia sido considerado criminoso e
executado. Seus olhos também aparecem abertos e tem seu corpo exposto a uma audiência –
tem-se a impressão de que está vivo e submetido à exposição. Richard Gott (2005, em matéria
online no Le Monde Diplomatique Brasil), jornalista da Universidade de Santiago do Chile e
colunista do The Guardian, escreveu sobre a cena: “as pessoas que estavam em volta do corpo
revelavam-se bem mais repugnantes que o cadáver”. Nessa composição, embora distante do
Realismo do século XVII, há certo efeito do real em primazia ao ideal; o real como a imagem
da submissão de Che e o ideal como a representação de sua pretendida revolução fracassada.
Parte da América do Sul já vivia sob ditaduras, assim como países da Europa (p. ex. Portugal e
Espanha), todas financiadas pelo militarismo e pela “inteligência” estadunidenses durante a
Guerra Fria.
[Figura 4.3] Corpo de Che Guevara examinado em hospital boliviano, em outubro de 1967,
(hospital Nosso Senhor de Malta, na aldeia de Vallegrande, Bolívia)
encenada. Importa menos que o membro superior ao chão não era de Che; em outras imagens,
ele se encontrava pendurado pelo vão da mesa improvisada onde o corpo era apresentado. Não
importa a verdade, ela é inapreensível; importam as “mágicas”, os enquadramentos e os efeitos
– são esses que mimetizam o simulacro da verdade.
[Figura 4.4] Fotos do exame e apresentação do corpo de Che Guevara em outras perspectivas
O discurso aqui é de quem produz a guerra, de quem financia a guerra, e não do lado de
quem sofre a guerra; nas nações que foram/são palco de guerra, morrem todos: homens,
mulheres, crianças, recém-nascidos, idosos, adolescentes – Mbembe (2016) descreve
brilhantemente isso em Necropolítica, tanto nos processos de colonização quanto nos de guerra.
A soberania implica ocupação, no caso da colonização, relega o colonizado a uma zona entre
sujeito e objeto; também é a condição para definir quem importa e quem é descartável. Nesse
sentido, a razão eucórpica torna-se soberana; os corpos tornam-se subjetos, com efeito, essa
condição de subjeto [subjetividade?] condiciona sua descartabilidade explícita ou implícita
(pelo jogo aparecimento-silenciamento), inclusive enunciativa.
Embora a professora tenha uma visão que tenta desconstruir muitos dos discursos
hegemônicos, possui discursos com posicionamentos políticos fortes e contundentes; estamos
saturados de infinitos discursos, por muito tempo, e, muito embora tentemos firmar um
2
Pierre Rivière fora condenado ao suplício de parricídio, no entanto, como alegada loucura por seu advogado
de defesa, sua pena foi comutada à prisão perpétua (12 de novembro de 1836). Pierre Rivière suicidou-se na
prisão enforcando-se, em 20 de outubro de 1840.
3
Sempre será usado “professora”, no feminino. Compuseram o grupo focal de pesquisa três professoras e um
professor.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 199
posicionamento, muitos outros discursos nos pregam armadilhas; a razão eucórpica está
entranhada nos nossos enunciados, nos nossos pensamentos, nos nossos raciocínios e, portanto,
nas nossas práticas.
Inserir-se na razão eucórpica é como ser pintado nas lições de anatomia de Rembrandt
ou ser fotografado na cena de apresentação do corpo de Che Guevara: requer capital (financeiro)
como investimento, ganha-se capital simbólico e científico e modifica-se e “encorpa”-se o
próprio capital subjetivo. Atualmente, não precisamos mais de Rembrandts para nos
eternizarmos, temos as redes sociais, abundantes de corpos perfeitos e felizes que demonstram
sua pretensa eucorporiedade ao tentar apagar os resquícios de suas oicorporiedades e revelam
mais suas iansanidades ressentidas e recalcadas do que propriamente perfeição e felicidade.
o corpo de que falava nas aulas e, nesse corpo, ela não reconhecia nem o seu, nem o dos
estudantes, nem de nenhuma outra pessoa que ela já tinha visto ou com que tenha tido contato.
A sutura empírico-metafísica havia temporariamente se rompido. Acredito que essa seja uma
manobra intelectual importante e fundamental, encontrar zonas de escape da razão eucórpica,
vias de pensamento e de informações que saiam da ordem do discurso, que confrontem as
informações prévias cientificamente inteligíveis. No entanto, esse rompimento só é possível
com a reflexão do rompimento, do contrário, a sutura pode se tornar mais forte, mais resistente,
mais dura, porque será necessária uma cicatrização dela, justamente por onde haveria uma zona
de escape.
Chamo de sutura empírico-metafísica a noção que resume a discussão genealógica
proposta nas Seções 2 e 3 e que, como matriz de inteligibilidade, permite pensarmos a realidade,
sobretudo dos corpos. A sutura seria uma região ou um espaço do pensamento como um
intermédio que pretende conectar duas abstrações: o real, mesmo que ele não exista como tal,
e a abstração desse real. Ora essa sutura é rígida, quando as duas abstrações coincidem, ora é
frouxa, quando a aparência delas destoa. Foucault defende que
Quando [no século XIX] a história natural se torna biologia, quando a análise
das riquezas se torna economia, quando sobretudo a reflexão sobre a
linguagem se faz filologia e se desvanece esse discurso clássico em que o ser
e a representação encontravam seu lugar-comum, [...] o homem aparece com
sua posição ambígua de objeto para um saber e de um sujeito que conhece:
soberano submisso, espectador olhado [...] mas donde, durante longo tempo,
sua presença real foi excluída (FOUCAULT, 2007; p. 430).
O efeito disso, segundo Foucault, é que se pode ver o transcendental repetir o empírico,
o cogito repetir o impensado e o retorno da origem repetir seu recuo. Dessa consideração,
Foucault tece o corolário de que o homem é um duplo empírico-transcendental, pois “à
experiência é dado um corpo que é seu corpo” (p. 433); à experiência também são dados o
desejo e a linguagem. Aqui faço uma modificação no enunciado de Foucault, que é central para
a compreensão da sutura: à experiência é imposto o eucorpo, que é a representação (e
encenação) dos corpos, que é também o fundamento do desejo e da linguagem. Ao fabricar o
eucorpo, o homem produz o truque de deus, de que fala Donna Haraway (1995) porque não
mais o homem “foi criado” à imagem e semelhança de Deus (como nos séculos XVI, XVII e
XVIII), doravante o corpo tem a imagem e semelhança do eucorpo: o truque de deus
frankensteiniano, que, parafraseando Donna Haraway, “fode com o mundo”.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 201
Interessante pensar onde estaria localizado o que chama de externo: pensamento, ações,
atitudes, sentimentos, experiências, imaterial? O “padrão externo” é extracorpóreo ou apenas
apartado do eucorpo como “padrão interno que superfunciona”? Uma resposta possível: estaria
mais bem relacionado à oicorporidade, que está deslocada da materialidade eucórpica. Não
obstante, corpo e eucorpo são inteligivelmente a mesma coisa. A razão eucórpica implica um
éthos eucórpico como expressão:
a gente precisa de um modelo pra que a gente não tenha que estudar toda a
variedade logo de cara [...] mas o corpo, na verdade, ele é uma expressão
do restante que a biologia nos traz e é justamente uma das opções, uma das
possibilidades dentro de um universo gigantesco de biodiversidade (Pro1)
A razão eucórpica é esse modelo que “facilita” a compreensão dos corpos para não ter
de “estudar toda a variedade logo de cara”. Essa variedade não seria simplesmente as variedades
corpóreas, os tipos corpóreos, mas também se incluem aí as expressões das subjetividades, dos
desejos, dos pensamentos, das vontades; tudo isso torna-se amalgamado e subsumido no
modelo eucórpico: se não vai estudar a variedade logo de cara, vai estudar quando? Uma
202 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
resposta possível é: depois que o modelo de inteligibilidade for produzido e a variedade tornar-
se, com efeito, um desvio da regra. Eucorpo e oicorpo estão unidos pela razão, são a própria
relacionalidade com o nome de “corpo”; embora diferentes, são enunciados como reflexo um
do outro: modelo e expressão, essa como um retorno àquele, e aquele como um recuo dessa.
Se dependêssemos da ciência, sobretudo da biomédica, para sermos capazes de
entender, por exemplo, a transexualidade, a homossexualidade e mesmo a heterossexualidade,
essa compreensão não seria possível; o eucorpo é heterocisnormativo e branco. O discurso
biológico segue a razão eucórpica; as outras corporiedades são variações, apenas possuem
cientificidade como desvios da normalidade, são apresentadas como “outros”, vivem na zona
subjeta, que, além de intermediária entre sujeito e objeto, é também a zona entre eucorpo e
oicorpo – é a zona de conflito e de ocupação dos corpos onde a sutura opera.
Suponhamos um caso hipotético como exemplo para reflexão. Considero hipotético
porque nunca soube que esse caso tenha existido, mas não duvido que possa ser possível, ou
até que já existam casos parecidos – embora acredite que a medicina imporia restrições
eucórpicas para este caso.
Pensemos em um sujeito que tenha nascido com a genitália eucórpica masculina (digo,
com pênis e testículos “normais”). Esse sujeito, que podemos chamar de homem, identifica-se
com o gênero masculino, porque performa esse gênero por meio de roupas, atitudes,
comportamentos. Ele também tem atração por mulheres, de modo que podemos considerá-lo
heterossexual.
No entanto, por alguma “explicação” que apenas ele possuiria – como se fosse
necessária alguma explicação –, ele decide por uma cirurgia que retire seu pênis e seus testículos
produzindo uma vagina no lugar. A despeito dessa cirurgia, ele segue se identificando com o
gênero masculino e sendo atraído apenas por mulheres; se fizéssemos uma análise
cromossômica, seria eucorpicamente considerado homem, por ser XY.
Emergem algumas reflexões: ele seria uma pessoa transexual ou transgênera? Ele
“nasceu homem” e continua se concebendo como homem, no entanto, não tem pênis. Nesse
caso, não haveria a dificuldade comum das pessoas em usar ele/ela e se referir a “ele” como um
“ela” passado ou “ela” como um “ele” passado. Isso torna o fato de que “ter pênis” não é
característica definidora de homem, e, ainda assim, não o podemos considerar transexual ou
transgênero. Ele não “transitou” seu gênero nem seu sexo. “Transitar” soa agora tão sem
sentido, o que mostra que a “transição” tem menos a ver com a anatomia ou a fisiologia do que
com o capital subjetivo. Pela razão eucórpica, nada retiraria dele a condição “natural” de
homem: nasceu homem (com pênis e testículos), cromossomicamente é homem, performa o
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 203
gênero masculino, sempre foi tratado como homem, é atraído por mulheres, só não tem [mais]
pênis, tem agora uma vagina. A única coisa que talvez precise é de uma prótese hormonal para
manter seu gênero/sexo masculino, o que denota que tampouco a questão hormonal é definidora
do gênero/sexo. De qualquer forma, há inúmeros casos de homens e mulheres que fazem
reposição hormonal sem nunca terem “transitado” de gênero ou de sexo. Este homem não é
transexual nem [mais] cis-sexual, o que torna o termo “cis” também uma abstração.
Esse seria um caso emblemático e simbólico para o desfalocimento (que é
desfalecimento) do falocentrismo. Não é de se estranhar que a disfunção erétil nos “homens” é
chamada de impotência; se Aquiles vivesse na modernidade, não seria seu calcanhar sua
fraqueza, seria seu pinto. “Mulheres” também têm disfunção erétil, mas não é dado o nome de
impotência.
A seguinte fala de uma professora tem relação com o exemplo hipotético acima; parece
haver aqui um deslocamento da razão eucórpica; compreender o corpo como “veículo de
expressões das mais diversas possíveis” pode ser uma forma de enunciar um deslocamento
intuitivo da razão eucórpica e contém potencialmente iansanidade:
A experiência pessoal imprime oicorporiedade ao eucorpo, mas não o altera; por quê?
Para dar aula sobre o corpo, a razão eucórpica é fundamental – é nítida a elaboração nas
contradições provocadas pela oicorporiedade sobre a razão eucórpica, mas as professoras
parecem não conseguir prescindir dela; ela é a base e a segurança. Embora não saibam desta
elaboração que proponho nesta tese, há expressão da diferença entre oicorpo e eucorpo – e esse
pode ser um aspecto importante de elaboração, em um percurso menos intuitivo e mais
epistemológico dessa diferença.
A formação tem como princípio a razão eucórpica, mas, por outro lado, a experiência
imprime-lhe oicorporiedade e há embate dessas duas compreensões, que não são opostas,
embora também não sejam complementares – há um embate entre os discursos científicos e os
sujeitados, é esse embate que produz a concepção de corpo; o corpo estaria nesse intermédio,
é, portanto, menos materialidade do que relacionalidade: a sutura empírico-metafísica é sempre
tensionada, não obstante, não se rompe.
204 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
Esses corpos “mais oprimidos” provavelmente são aqueles com mais expressões
oicórpicas evidentes, cuja aparência revela maior distanciamento do eucorpo; com efeito, são
os corpos mais inclinados à zona subjeta, que podem ser mais utilizáveis, ou quando (já) não é
possível, mais descartáveis, mais marginalizados. “Eu sinto a evolução em mim” e “a gente vai
percebendo os diferentes corpos” pode ter como efeito certa diferença intraespecífica entre os
humanos pelos seus corpos; a evolução é a principal estratégia eucórpica para diferenciação dos
corpos: por exemplo, entre selvagens e civilizados (com efeito, entre pretos e brancos,
homossexuais e heterossexuais). O trânsito pela sutura sempre nos desloca conflituosamente
entre oicorporiedade e eucorporiedade; precisamos (e nesse nós, me incluo) nos afastar da
primeira e nos relacionar mais com a segunda. A elaboração de uma tese, a inserção na ciência
e na academia é uma expressão de eucorporiedade em relação a uma oicorporiedade, tornamo-
nos mais hoi prôtoi e menos hoi polloi4.
Não digo que essa foi a expressão pretendida e intencional no enunciado da professora,
mas subjaz aí uma relacionalidade cuja expressão só é possível como efeito da razão eucórpica.
Não se trata de individualizar os discursos e culpabilizar pessoas, trata-se de enfrentar nosso
éthos eucórpico como forma de nos deslocarmos na sutura, não pela escolha de um lado nela,
mas pela assunção de que ela nos provém as relacionalidades. É somente a partir desse conflito
que a sutura pode ser fraturada, não para defender que o conhecimento anátomo-fisiológico não
serve, mas para entendermos que ele não pode ser a inteligibilidade única dos corpos.
É sobretudo quando há o reconhecimento dos componentes da sutura – que tanto são
empíricos e metafísicos, quanto são oicórpicos e eucórpicos ‒ que o deslocamento é possível.
Trata-se, portanto, não de julgar, mas de encontrar as zonas de escape, nos discursos, de um
pensamento eucórpico. Os seguintes trechos exemplificam essas zonas de escape,
especialmente quando a oicorporiedade quase serve de parâmetro para compreender a
eucorporiedade:
4
No período helenístico, havia uma diferença entre hoi prôtoi – “os poucos”, aqueles que têm o privilégio da
educação, que têm condições econômicas, em suma, a aristocracia – e os hoi polloi – o povo, a massa, “os
muitos”.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 205
Quando você aprende com a sua sexualidade [é] que você pode ensinar
sexualidade pro outro [...] quando você se sente mais à vontade com o teu
[corpo], com a sua sexualidade, com a sexualidade do outro, aí você
consegue desmistificar o negócio (Pro2)
O eucorpo não tem vida, não tem emoção, não tem sentimento, não tem experiência,
não tem sexualidade como expressão, é um ser inanimado, um modelo, uma semiologia. Por
isso falar dele é mais fácil; mas há diferença em falar do oicorpo e de suas experiências
corpóreas, somos formados para lidar com o eucorpo, pois ele é uma “realidade” “que
superfunciona”. Ele também é o padrão das ciências biomédicas, é o padrão de tratamento e da
terapêutica; é como referencial desse “superfuncionamento” que se pretende fazer a
intervenção; a cura o tem como referência. É justamente esse “super” a questão: o eucorpo
funciona mais do que os oicorpos; ele funciona biomecânico-ciberneticamente para além do
funcionamento dos oicorpos. É esse superfuncionamento que impõe automatismo maquinário
à mecânica social dos oicorpos. Os oicorpos (utilizáveis) precisam superfuncionar, ou seja,
precisam dar conta econômica, funcional e sexualmente de suas demandas, que são nada mais
do que ficções.
É justamente no conflito oicorpo-eucorpo que as iansanidades emergem (ou poderiam,
ou deveriam). É lidar com essa emergência a dificuldade; o conflito oicorpo-eucorpo é a própria
iansanidade.
206 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
O exemplo a seguir suscitado por uma das professoras no grupo focal sobre ensinar sexo
nas aulas de biologia é expressão do que vimos falando; a confusão dos pronomes revela a
dificuldade devida à fluidez na determinação do que são “homem” e “mulher”; ela usa o
exemplo como forma de “desmistificar o negócio”, o que revela também que a razão eucórpica
enxerga o amplo aspecto da sexualidade humana; não obstante, fora dessa grade de
inteligibilidade, quase como mística, o conflito oicórpico-eucórpico é evidente:
A Edinanci tem vagina, mas é do sexo masculino. A atleta do judô, não sei
se vocês lembram. Ela teve que tirar os testículos porque senão não podia
competir no feminino. Aí eu falo, então me diz você aí, “você é homem?”.
“Sou!”. Ah, então como que é ser homem? Aí, eles [estudantes] travam, né
(risos). Porque aí eu falo assim [como provocação, na aula], votar é ser
homem. Ser homem é votar, ser homem é dirigir... (Pro1)
5
Diz-se, em genética, que uma condição é ligada ao sexo quando o gene que determina essa condição está
localizado no cromossomo X. Dessa forma, as “mulheres”, como têm dois X, teriam dois genes (na verdade,
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 207
curioso também nas questões de genética nesse formato “vestibular”, quando é proposto pensar
os mecanismos de hereditariedade sempre há casamento, ninguém transa e tem um filho sem
estar casado. As primeiras enunciações logo após a apresentação da questão foram:
Genial (Pro1)
Também adorei, só que pra resolver o problema, rapidamente na minha
cabeça, bom, o homem cis, aliás, o homem trans é mulher, é XX, na minha
cabeça é isso, né, eu vou resolver o problema, não vou ter a sensibilidade
com a família <??> [vou resolver de forma] ligeira, de simplificação e de
resolver problema de genética, né. A frieza de resolver uma questão de
genética. É foda perceber isso (Pro4)
“A frieza de resolver uma questão de genética. É foda perceber isso”. A sutura fraturou
totalmente nessa fala. É se dar conta de que o corpo tratado nas aulas de Biologia tem pouca
relação com os corpos que vivem no mundo, é a evidência do eucorpo como falha de
inteligibilidade: “O homem trans é mulher, é XX”, a frieza revela a falta da subjetividade na
razão eucórpica – intuitivamente, ela se dá conta de que a racionalidade é subjetivicida por estar
apartada do mundo das experiências; o modelo destoou da realidade experenciada.
O seguinte trecho de conversa é interessante porque evidencia a razão eucórpica como
uma rede cuja relacionalidade entre dito e não dito reforça as práticas no jogo de silenciamento-
enunciação:
– Você pegou onde essa questão? (Pro3)
– Eu inventei. (Pesq.)
– Da cabeça... (Pro2)
– Ah, você nem vai achar isso... (Pro1)
Nenhum vestibular irá abordar esse tema dessa forma nas questões; nenhum material
didático apresentará esse tema nesse formato para discussão em aula, no entanto, se
apresentarem, como seria a resolução da questão? Provavelmente com a mesma frieza
enunciada e percebida pela professora, mas sem o constrangimento. Conseguimos imaginar a
resolução dessa questão divulgada na internet pelos tantos cursos pré-vestibulares?
alelos) e os “homens” apenas um. Gene diz respeito à localização no DNA de uma região que contém
informações para a produção, generalizando, de uma proteína, cujo efeito é uma função biológica. Alelo diz
respeito à “informação” contida nessa região (gene), por isso há os chamados genes recessivos e dominantes –
que, na verdade, são alelos. Há um pequeno erro conceitual na “questão” proposta por mim e apresentada às
professoras, o correto, dentro dessa conceituação, seria dizer “alelo” em vez de “gene”, mas é comum
aparecerem enunciados desse tipo nos vestibulares; quando se lê gene recessivo ou gene dominante entende-
se que diz respeito aos alelos. Em contraposição, a herança ligada ao cromossomo Y é chamada de restrita ao
sexo (teoricamente, apenas homens [eucórpicos] possuem).
208 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
6
De acordo com a fisiologia moderna, o sistema renina-angiotensina-aldosterona promoveria o controle da
volemia (volume de sangue), com efeito, também da pressão arterial. Os rins são órgãos principais no controle;
ao ser detectada uma hipovolemia ou hipotensão, secretariam o hormônio renina, que desencadearia os
processos descritos no trecho pela conversão do angiotensinogênio (inativo) em angiotensina (ativo). Grande
volemia inibe a produção de renina; baixa volemia estimula sua produção. Todos os “mecanismos” fisiológicos
são homeostáticos, evitam a falta e o excesso, tendendo à “normalidade”.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 209
“É maravilhoso como essa coisa funciona”. Coisa é tanto corpo quanto fisiologia. É
também mecanismo, funcionamento, máquina. A economia é fundante no raciocínio. “Todos
os corpos têm isso como regra, isso é o que nos une”, une todos os seres vivos, porque segundo
a biologia, a homeostase ocorre em todos os seres vivos, dos vírus, dos unicelulares ao humano.
“Todos expressam alguma coisa, mas isso é expressado em todos”, esse “mas” valida a razão
eucórpica em detrimento de qualquer outra coisa que possa ser expressa pelos corpos, o sentido
de igualdade/equidade desloca as diferenças e, com efeito, as subjetividades, e parece inverter
o sentido dado pela Pro3 [então, eu acho que [o corpo] seria um veículo de expressões das mais
diversas possíveis, né, inclui-se aí o corpo humano, né, porque a gente tá vivendo] quando de
sua enunciação. O corpo de que Pro1 fala é, no conjunto teórico desta tese, totalmente eucorpo.
No próximo trecho, ela quase rompe a sutura, o eucorpo quase ganha tons oicórpicos, mas são
apenas tons:
Por outro lado, eu acho que tem essa aridez [de] que a gente falava agora
há pouco sobre o que que você tá discutindo ali, que é o que eu falava
também, que é chato, porra, você lê um troço desse, a gente tá falando de
pessoas, cara, pessoas [com] pressão alta; a história da descoberta da
pressão alta, eu vi recentemente, eu li uma divulgação científica a respeito
de múmias, cara, é genial isso, assim, múmias do antigo Egito, tem muitas
múmias que não são só dos reis, assim, então tem várias castas mumificadas
e um monte de gente morreu de infarto e é muito louco isso assim <?> e, só
que aí, eles faziam um recorte de idade e de classe social e descobriram que
a frequência era a mesma. Dessas mortes (Pro1)
Em vez de pautar sua conclusão nas diferentes expressões e possibilidades dos corpos,
retoma a razão eucórpica no seu controle pelo determinismo genético; seria mesmo possível
que diferentes castas que não se intercruzavam tivessem os mesmos genes/alelos, nas mesmas
frequências, para pressão alta? Antes, a “pressão alta” é resultado apenas de características
genéticas? O membro superior de Che não foi encontrado, tampouco sua ausência foi percebida.
Como ela relata o que foi lido em um artigo científico, o relato reproduz (e precisa reproduzir)
210 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
mimeticamente a razão eucórpica, pois essa dita a ordem do discurso. Ratifica-se o poder e a
autoridade médicos pelo tratamento e prevenção. O infarto seria uma consequência direta da
pressão alta, independente da classe social e do que comiam, do estilo de vida; é uma resposta
fácil porque a razão eucórpica não olha além da evidência material biológica, falta-lhe
relacionalidade. Destaque-se a expressão “descoberta da pressão alta”, que torna, com efeito, a
pressão alta menos um fenômeno, um acontecimento, um processo do que uma coisa em si.
E aí eu falei “puta, essa história é mais velha que andar pra frente”, quer
dizer, a gente vive isso, os rins têm que ser parte da sua vida, não é um troço
que você aprende pra passar no vestibular, e nesse sentido que eu falo que é
assim. [...] eles [estudantes] não vão [se] lembrar de nada disso, cara, mas a
hora que ele fizer um prato de comida, o rim dele vai estar ali, na mesa, com
ele, se você fizer o rim fazer sentido, quer dizer, tá dentro de você, faz parte
do que você faz todo dia, cara, e você faz xixi, meu chapa, você olha pra cor
do seu xixi, é isso aí que importa. Se teu xixi tá amarelo, você tá
desidratado, “Zé, vai tomar água”. Aí alguém fala assim, “ai, eu passei a
minha vida inteira desidratado”. Falei “Provavelmente”. Ajuda o rim aí, ó,
você já viu, ó, ele dá o maior trampo, cara, ajuda o cara. É o que eu sinto
quando eu vejo isso aí, é quase uma obrigação de traduzir esse blá-blá-blá
aí pra alguma coisa mais real (Pro1)
É... que é no sentido do que a [pro3] tava falando, a gente deveria ajudar
mais, talvez, as pessoas lidarem com essas questões que são muito reais
[referindo-se à sexualidade de um aluno], o corpo é muito real, ele dói,
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 211
viver dói. [...] E é isso que acho, porque... essa questão [a de genética] eu
achei genial porque... pro4, eu pensei igual a você logo de cara, vamos
resolver esse problema de genética, cadê o gene mesmo? Quem tem XX,
tatatá... mas eu achei genial porque pra quem nunca discutiu isso, como
assim trans, dois homens terem filho, vai ser assim uma puta abertura de... o
universo abre ali, uma série de discussões que precedem o resolver a
questão de genética, que eu acho que é a grande sacada, eles [estudantes]
não vão lembrar esse negócio de [gene] recessivo, dominante, ligado ao
sexo, não vai ficar. Agora essa coisa que a gente tá falando aqui, vai fazer
parte da vida de todo mundo, de um jeito ou de outro, a gente não tem
controle sobre isso, tem que ser humilde nesse sentido, né, a gente tem que
fazer o melhor possível, que é só o que a gente pode fazer, não é, e trabalhar
essa diversidade permite àqueles que não estão se sentindo, não estão se
vendo ali, possam se ver, né, mas eu acho que em parte, controlar esse
ímpeto Guyton de ser [de ser eucorpicamente técnico], né, pra coisa mais
árida, né, mais técnica possível, é um desafio da gente, né, que em parte é o
que a gente tá discutindo aqui... (Pro1)
Essa mesma professora disse o seguinte no início da conversa no segundo grupo focal:
... eu vejo assim, o discurso biológico, ele é socialmente aceito, pelo menos
ele é majoritariamente aceito, então quando eu digo que nós estamos, que
vamos conversar a respeito de cromossomos sexuais [em oposição a discutir
sexualidade, gênero, orientação afetivo-sexual], ninguém se assusta,
nenhuma mãe vem falar que a criança dela vai falar de cromossomos
sexuais, então, acho que isso me protege, acho que nesse sentido, e aqui
entre nós, a gente carrega esse discurso [...] o discurso biológico carrega
um certo, uma certa respeitabilidade construída nos últimos séculos, a gente
usa isso de um certo... de um, de um palanque ali, né, você tem um status
por trás desse discurso (Pro1)
Se você não usar isso, porque isso [o discurso biológico] é uma ferramenta,
se você não usar isso pra martelar a cabeça dos coleguinhas, eu acho que
okay, porque a ferramenta é neutra, aí que eu vejo que daí em diante a
escolha é muito ideológica. Então, eu posso, sim, transcender o discurso
212 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
biológico no meu discurso, partindo dele, então, uma estratégia que eu uso
é, até pra me proteger, porque eu não sou tonta também, eu sei que isso7
tudo acontece
A ferramenta neutra de que ela fala é o conteúdo do discurso biológico, de fato, ele tem
a aparência de neutralidade, porque é entendido como expressão de uma verdade nua e crua,
como se não houvesse julgamento, como se não fosse intermediado por paixões, por desejos,
como se a razão não fosse escrava das paixões. Apenas seria possível transcender o discurso
biológico partindo dele – e isso seria uma escolha ideológica – no sentido de importante. A
razão eucórpica produz esse éthos, porque o corpo que possuímos tem a imagem e semelhança
do “corpo verdadeiro” (eucorpo) – quando, na prática, é o contrário: o eucorpo é a imagem
(distorcida) e semelhança (apagada) do oicorpo e, por vezes, do aneucorpo, como no caso das
lições de anatomia.
A ferramenta de que fala fica mais evidente quando associamos a um outro enunciado
dessa professora a respeito de conteúdos tratados nas aulas. Ao final de um ano letivo, ela iria
finalizar o conteúdo de ecologia em uma das séries:
a gente construiu todo aquele monte de conceito e tal, chegou [o] final do
ano, a gente tinha que falar de sustentabilidade, e aí eu tive um choque,
assim, acho que foi a primeira [vez] que eu fiquei realmente, é, com
problema pra trabalhar o conceito.
7
O primeiro encontro do grupo focal aconteceu em 12/08/2020, sob o segundo ano do governo fascista do
inominável, quatro meses depois do início da pandemia do coronavírus (Sars-cov-2). Os anos de 2018 e 2019
foram tempos difíceis para os professores e professoras de Biologia; vários foram acusados de doutrinação de
gênero, tiveram suas aulas invadidas, foram vigiados em suas aulas; essa discussão foi relatada por uma das
professoras (Pro4), que passou por esses tipos de constrangimento e violência durante o exercício de sua
profissão.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 213
[talvez houvesse ironia nesse trecho]. E aí, como é que você faz, então? Aí a
gente deu um jeito lá. Dei uns passos atrás, trabalhei essas questões de
como que você lida com sentimentos, você acredita em função do que você
sente pra depois chegar em sustentabilidade. Quer dizer, a gente nem
conversou muito sobre os conceitos (Pro1)
Então, quando você pensa no corpo, não é juntar um monte de órgão que
você tem um corpo, que é a ideia de Frankenstein, <??> é o que acontece
entre as partes conectadas, é o que, como que as partes interagem entre si e
ao redor delas [não poderia estar aqui a empatia? Nesse conjunto de
relacionalidades?] <??> mas não é fácil de trabalhar isso não, porque a
ideia de ecologia também é essa. O que tá entre as partes é o que importa,
eu costumo dizer pra eles assim, dois mais dois em ecologia nunca dá
quatro. Dá 75, mas nunca dá quatro. Porque [são] as interações que fazem
as coisas serem como são. Agora como que você enfia isso na cabeça de
uma molecada que foi treinada pra separar água da geografia, água da
biologia, água da química? Mecanicista pra caramba, é ou não é? Então,
haja conversa, entende?
– Então, gente, mas o dialeto gay que foi colocado ali, eles colocam um
texto pra vocês...
– Ihhh, o que que é dialeto gay?
– Eles colocaram lá no próprio texto, eles colocaram uma frase desse
dialeto, se você entendeu quer dizer que você está em contato com essas
culturas, eu comecei rir no meio da prova.
– Ah se eu vejo um bagulho desse lá...
– Mas eles colocaram que é porque você está em contato com essa cultura?
– Ah, não foi essa palavra, mas foi mais ou menos isso.
– Mas qual o problema?
– Contato, mais ou menos assim. Eu achei engraçado.
- Mas qual o problema de você estar em contato?
– Ahhhhh, dona. Eu só racharia o bico, só. Como isso aqui pode cair numa
prova?
– Mas por que é engraçado?
– Engraçado porque o pessoal na prova parecia que <??>, ela levou
bolacha, bolo, fruta, parecia que, cinco horas não ia matar se não comesse
nada... Tem uma que levou bis, chocolate, barra de chocolate... [...] Eu tô
com dor nas costas até agora... Saí de lá até torto. É verdade, travou minhas
costas. Não é só o cansaço mental.
Lembremo-nos de que o ano era 2018; estava ocorrendo uma eleição bastante difícil no
Brasil, e, nesse mesmo ano, professores e professoras estavam sendo perseguidos por ensinar
aos alunos “temas que comprometiam a instituição família tradicional brasileira” e
comprometiam a “moral e os bons costumes”, e, sobretudo, “Deus estava prestes a estar acima
de todos” – em outras palavras, aquele oikos/oikía estava sendo quixotescamente ameaçado.
Essa mesma professora (Pro3), em conversa no primeiro encontro focal, relatou sua
angústia se referindo a um aluno de uma das salas em que lecionava, que cometera suicídio. As
perguntas que ela propõe para o grupo são bastante fortes e revelam a distância da razão
eucórpica como prática educacional em relação aos corpos dos alunos:
Pô, aí eu me senti uma bosta, sabe, eu me senti uma merda ali na hora,
porque eu, porque a hora que soube que esse menino tinha se suicidado, eu
falei “puta merda, pra que que serviram minhas aulas?”, eu me senti muito
mal, pô, enquanto professora de biologia, de ciências, né, que eu dei aula
216 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
pra ele, eu falei “o que que faltou?”, né, eu me senti mal, eu me senti mal
com isso, porque às vezes você aborda tantas coisas desnecessárias, né, eu
acho que você acaba tendo que seguir um currículo, né, esse currículo que
impõem pra gente [...] eu fico me questionando se eu não teria que pegar
esse currículo e moer ele muito mais, transformar muito mais pra poder
fazer sentido na vida desses alunos, porque, pro aluno chegar ao ponto
desse, acho que faltou muita coisa, né? (pro3)
A Figura 4.6 mostra a distribuição das respostas 8; a média das pontuações atribuídas
é 8,32 – algo como “o corpo que ensinamos é cerca de 83,2% idêntico à realidade material”.
No entanto, não se trata de um trabalho quantitativo aprofundado; esse valor serviu para
comparação qualitativa. Praticamente metade das pessoas que responderam ao questionário
acreditam que o corpo de que tratam nas aulas é idêntico à realidade material.
[Figura 4.6] Distribuição das respostas sobre o quanto o corpo que os professores e
professoras ensinam em suas aulas é idêntico à realidade material (N = 31)
8
Não estão consideradas as quatro professoras desta pesquisa.
218 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
[Figura 4.7] Relação entre o corpo que é ensinado com o conjunto de áreas do conhecimento
da própria Biologia e com outras que podem ser interseccionadas
Esse corpo “igual à realidade material” talvez seja menos fisiológico ou anatômico,
mas também é menos ainda econômico, filosófico, político, psicológico, sociológico. Poder-
se-ia, com efeito, prescindir de todo esse conjunto de conhecimentos para compreender o
corpo? Ciência é o termo/assunto que mais consideram dominar, sentem mais confiança e
conforto para discutir em suas aulas, embora a confiança em tratar de filosofia ou das ciências
humanas é relativamente baixa. Importam menos os valores e mais a relação estabelecida
entre o quanto conhecem cada assunto e o quanto conhecem o corpo que ensinam. Há aqui
uma discussão importante para reflexão: qual seria essa realidade material da qual o corpo
que ensinamos é idêntico? Imagino as respostas caso médicos, médicas e tantos outros
profissionais da saúde respondessem a esse questionário. O corpo que ensinamos,
pesquisamos, tratamos é um corpo completamente apartado de alguma realidade material. A
Figura 4.8 compara a distribuição entre todas as áreas do conhecimento questionadas.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 219
Esta distribuição das respostas permite propor alguns questionamentos. Tanto Ciência
quanto Educação possuem uma distribuição parecida, que, de alguma forma, também se
assemelham à distribuição sobre o quanto o corpo que ensinam é igual à realidade material –
todos esses gráficos possuem uma base maior. Nesse mesmo padrão, também se aproximam
Ecologia e Evolução. Como as áreas do conhecimento mais voltadas para as Humanas (que
provavelmente têm uma concepção de corpo menos eucórpica) apresentam uma distribuição
mais uniforme entre a escala de 0 a 10 (como em Economia, Filosofia, Geografia, Mídia,
Política e Sociologia), infere-se que a Ciência que concebem está mais próxima de um
positivismo, com efeito, a Educação que concebem também está mais próxima de uma ciência
positivista, portanto mais eucórpica. Ao mesmo tempo, as disciplinas biológicas com que
mais sentem confiança são Ecologia e Evolução, que, embora aparentemente as menos
positivistas, demandam conhecimento das outras, mais positivistas.
Como tudo isso impacta a “educação do corpo”? Recorro à discussão de Foucault em
A hermenêutica do sujeito sobre duas formas de atenção ao corpo: o cuidado-se-si e o
conhece-te a ti mesmo para dar continuidade à discussão.
Antes, finalizo este item com um trecho de uma conversa do primeiro encontro do
grupo focal, que servirá de ponte entre este e o próximo item. Na conversa sobre o que é o
corpo e sobre ser visto como “veículo das mais diversas expressões”, a Pro3 lança o seguinte
questionamento:
outra reflexão que eu fiz, né, aliás, outro dia, eu fiquei pensando nisso, é por
que que quando uma pessoa morre né, aí assim, quando vai ter o velório, vai
ter a cerimônia, não se refere à pessoa pelo nome dela, mas sim, a “o corpo
está sendo velado”, né, vocês já prestaram atenção nisso? “O corpo está
sendo velado”, “o corpo vai ser sepultado”, “o corpo vai ser cremado”, e o
corpo é o mesmo corpo que a pessoa tinha quando estava viva, não é? É o
mesmo corpo, então por que não se referir “fulano vai ser...”, eu fiquei
outro dia meio encanada com isso... (Pro3)
A Pro1 tenta refletir sobre o que a Pro3 questionou, conta sobre o trabalho que faz na
escola sobre prevenção do suicídio e continua:
nessa etapa da vida, que são os adolescentes, que existem muitas demandas
e pressões, né, e todas as questões, inclusive em relação à própria
construção de corpo de adulto deles, né, e dos conflitos todos que surgem
em função dos modelos que são impostos, dessa conversa toda aí, e, a isso,
quando a gente discute suicídio, aparece essa questão da morte muito
fortemente, né, que é um tabu, e é desconfortável [...] Agora, tem uma
questão com o, eu acho que, com a alma, que no fundo é o que a gente tá
discutindo aqui, o corpo é o suporte, é a expressão do quê, né? O corpo
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 221
existe, sim, mas tem corpos de muitas espécies e o nosso corpo é a expressão
do quê, efetivamente? Que não é a expressão das outras espécies e na
medida em que ele não tá expressando mais nada, eu devo chamá-lo ainda
pelo nome que ele tinha? Quer dizer, imagino que tem alguma coisa aí que
vem por trás né, justamente da construção da ideia que é estar vivo, né, o
que é que esse corpo carrega... (Pro1)
Não fica evidente de que conflitos e de que modelos a Pro1 fala, não nomeia de ou
associa ao conflito oicórpico-eucórpico. Acredito que esse conflito é de extrema importância
para refletir a falha de inteligibilidade da razão eucórpica como visão única sobre os corpos;
acredito estar aí uma importante zona de escape: ou as iansanidades aparecem ou são
recalcadas. Embora a discussão que eu propunha era sobre o corpo, ela diz “Agora, tem uma
questão com o, eu acho que, com a alma, que no fundo é o que a gente tá discutindo aqui” ‒ o
corpo sai de cena e aparece a alma. Parece-me revelar-se uma perspectiva cartesiana, mas é o
corpo que apreenderia a alma ou a alma que apreenderia o corpo? E a empatia, estaria onde?
Possivelmente, na alma, mas a Biologia trata dos corpos, seria por esse motivo a necessidade
de “dar um passo atrás” e recorrer à Psicologia? O corpo de que a Psicologia trata não seria o
mesmo de que a Biologia trata? “A água da química, da biologia e da geografia” seria a mesma?
Certamente, sim e não para todas as perguntas.
9
Retomo aqui especialmente o que Foucault sintetiza no curso O governo de si e dos outros (1982-3), mas
também aparece em outros cursos como Em defesa do sociedade (1975-6), Segurança, território, população
222 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
(1977-8), Nascimento da biopolítica (1978-9), A hermenêutica do sujeito (1981-2) e ainda no seu último curso
antes de sua morte, A coragem da verdade (1983-4).
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 223
Cristo); depois, no que ele chama de modelo helenístico (sécs. I e II d.C.); e no modelo cristão
(sécs. III e V d.C.) – cf. Quadro 4.1 (p. 224), que resume alguns aspectos desses modelos.
Na antiguidade grega, o “conhece-te...” era puramente um preceito délfico que
demandava do consulente uma autoavaliação para fazer a pergunta certa ao oráculo (examine
suas questões), estava associado a outros dois preceitos: “não perguntes em demasia” (medén
ágan) e “não prometas nada [aos deuses em troca]” (engýe). Foucault atribui uma importante
mudança em Alcibíades (de Platão): para que Alcibíades pudesse de fato governar a cidade,
precisaria cuidar dele mesmo, mas antes, precisaria primeiramente conhecer-se. Alcibíades está
em uma idade em que precisa começar a se envolver na política, no governo da cidade, no
entanto, passou toda a sua vida orgulhoso e arrogante de sua beleza e de seu vigor; ele se dá
conta de que descartou todos seus pretendentes e que nenhum de seus enamorados de fato
preocupou-se com ele – apenas com o seu corpo –, não lhe ensinaram algo de útil na vida,
tampouco como ocupar-se consigo mesmo, mas agora envelhecera. Foucault destaca que esse
“si” que se deve conhecer e se ocupar não é, portanto, o corpo. Chamarei esse acontecimento
descrito por Foucault de Crise de Alcibíades.
Nesse aspecto, Foucault ressalta o componente educativo do erotismo grego. Alcibíades
era filho adotivo de Péricles e havia sido cuidado por um escravo, de modo que não teve
educação, embora fosse rico e de uma família com status. Sócrates diz a Alcibíades: “queres
entrar na vida política, queres tomar nas mãos o destino da cidade, mas não tens a mesma
riqueza que teus rivais [espartanos e persas] e não tens, principalmente, a mesma educação [que
seus rivais]” (FOUCAULT, 2006; p. 46). Depois de uma sequência de perguntas diante das quais
Alcibíades se desespera por não ter respostas, Sócrates conclui que Alcibíades precisa de tékhne
(técnica, arte) para compensar seu déficit de educação a despeito de sua riqueza. O “conhece-
te” torna-se uma questão metodológica cuja busca está no psykhês epimeleteón, ou seja, no
“ocupar-se com a alma”. Disso, Foucault conclui que o cuidado-de-si não é nem médico, nem
econômico, nem amoroso (erótico), porque todos esses estão ligados ao corpo. Esse “si” com o
que se deve preocupar é um “eu” cujo resgate se daria pela sua reminiscência. Aqui Foucault
destaca o uso, em Platão (ou Sócrates), do verbo khrêsthai – e de seu substantivo khrêsis –, que
é “servir-se de”; a alma se serviria do corpo para executar seu trabalho de cuidado de si, o corpo
seria apenas um meio pelo qual a alma atuaria.
Foucault cita uma passagem de um texto de Plutarco em conversa com Alexândrides,
um espartano (lacedemônio): “[Plutarco pergunta] – Mas afinal, vós, espartanos, sois um tanto
estranhos; tendes muitas terras e vossos territórios são imensos ou, pelo menos, muito
importantes; por que não os cultivais vós mesmos, por que os confiais a hilotas? [Responde
224 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
Alenxândrides] – Simplesmente para podermos nos ocupar com nós mesmos” (p. 42). Não há
nada de filosófico no cuidado de si espartano, diferente do ateniense, mas ambos se
assemelhavam por ser uma atividade destinada a poucos, exclusivamente a quem tinha
condições, ou seja, a expressão de um privilégio.
constituição de si, que dura a vida toda. Em Marco Aurélio, Foucault encontra uma descrição
simbólica dessa perspectiva: “A arte de viver parece-me mais com a luta do que com a dança,
na medida em que se deve sempre manter-se alerta e ereto contra os golpes imprevistos que
caem sobre nós” (apud FOUCAULT, 2006, p. 388). Trata-se doravante de uma ascese filosófica,
de um exercício da verdade e da constituição de si (“plena, completa, acabada, autossuficiente
e suscetível de produzir uma transfiguração de si que consiste na felicidade que se tem consigo
mesmo”, p. 386) – diametralmente oposta à ascese cristã (ou mesmo à concepção de ascese
para a modernidade, tão impregnada de cristianismo ascético), cujo objetivo final é a renúncia
completa de si (FOUCAULT, 2006).
No Tratado das paixões, de Galeno, Foucault (2010) encontrou fundamentalmente o
princípio do cuidado-de-si como algo contínuo e permanente, que contrasta totalmente com o
Alcibíades, de Platão. No caso de Galeno, o cuidado de si é penoso e não pode prescindir do
juízo dos outros.
Na ascese estoica, é preciso dotar o sujeito de algo que ele não possui de modo a proteger
o eu e chegar até ele. Diferente da cristã, a ascese antiga não reduz, ela dota e equipa o sujeito.
A palavra grega que Foucault destaca é paraskeué, traduzida em latim por Sêneca como
instrutio – que para nós modernos seria uma espécie de preparação para os imprevistos da vida.
Os cínicos, diz Foucault, chamarão essa preparação de “exercícios” e a comparam com o
treinamento dos atletas. Essa preparação (ou exercícios) consiste em dotar-se de equipamentos,
seriam eles os lógoi (discursos, plural de logos). Eles constituem o conjunto de discursos (de
conhecimentos) do mestre que são evocados no enfrentamento dos acontecimentos da vida, mas
não sem antes terem sido escutados, escritos, lidos, relidos, decorados para que façam parte da
constituição do sujeito de modo que se possa tê-los às mãos – é preciso que o logos seja
incorporado e que seu efeito seja a ação, dessa forma, se transforma em éthos. Foucault atribui
a essa preparação (como ascese, askesis) um conjunto produtor de uma moral rígida, austera,
exigente e restrita, a qual a ascese cristã aclimatou, reelaborou e trabalhou.
A ascese estoica considera a audição o sentido mais importante; é pela escuta que o
mundo externo entra em contato com a alma. No entanto, a audição é ambiguamente o sentido
mais pathetikós (passivo) e mais logikós (de acesso aos lógoi). Plutarco descreve essa
ambiguidade em Perì toú akoúein (Tratado da escuta); o corpo é sujeito à audição mais do que
a qualquer outro sentido, não é possível não ouvir como se fecham os olhos para não ver ou
como se evita sentir se recusando a tocar um objeto; um barulho repentino estremece todo o
corpo. A audição está sujeita à retórica e à lisonja, que enfeitiçam a alma; ao mesmo tempo, é
preciso saber deixar o logos atingir a alma e é por meio da filosofia que isso se torna possível.
226 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
Em Epiteto, Foucault encontra respostas para esse processo ascético: não há uma tékhne para
escutar como há para falar, a escuta demanda empeiría (experiência/habilidade), que pode e
deve ser desenvolvida.
A Crise de Alcibíades é interditada a partir do modelo helenístico; como a verdade se
desloca do sujeito para o mundo, também é interditada a subjetividade, cujos referenciais para
reflexão vêm de fora. No entanto, no modelo helenístico, o sujeito ainda é o objetivo, como
uma constituição forte e pronta para a luta. O ascetismo cristão executa essa crise não para
encontrar uma verdade no sujeito, mas para forjar e sujeitar essa verdade à moral. Essa crise
não busca mais a força e a constituição potente, mas a fraqueza e a submissão. A confissão de
si (falar de si) não tem mais caráter instrumental ou metodológico, torna-se uma operação, não
destinada mais ao cuidado, mas ao controle (FOUCAULT, 2006); torna-se uma exegese de si cuja
consciência é externa e forjada em um deus purificador das almas, das paixões, dos vícios (a
luta contra as iansanidades). Produz-se um exército (Nietzsche chamou de rebanho) cuja
fraqueza ganha o nome de força na resignação (de si); com efeito, a modernidade nos fez
doentes, porque encontramos a “felicidade” em um labirinto do qual desconhecemos tanto a
saída quanto a entrada (NIETZSCHE, 2014). Nessa mesma modernidade, dos suplícios, como
práticas anátomo-sociológicas, ao encarceramento, como prática fisiológico-sociológica, a luta
contra as iansanidades prevaleceu.
A razão eucórpica nasce no século XIX e, mesmo impregnada de cristianismo ascético
e buscando fugir de uma espiritualidade, produz uma racionalidade que invade internamente o
oicorpo, transformando-o em eucorpo. Não se volta para dentro de si para encontrar a verdade
do sujeito, mas para encontrar a verdade material; esse “si” é toda a engrenagem que
“superfunciona”. É o cuidado voltado a essa engrenagem que se torna cuidado-de-si – mas só
pode funcionar econômica, eficiente e sexualmente às expensas da renúncia das iansanidades
por meio do recalcamento e do ressentimento: a moral eucórpica vestida de ascetismo que
produz aneucorpos (os desviantes, gerenciados pelo sistema jurídico) e superoicorpos (os não
mais utilizáveis, mas que, com efeito, tornam a “economia” funcionante, gerenciados pelo
sistema médico); a modernidade nos transformou em subjetos, muito menos sujeitos do que
objetos. Nas palavras de Foucault (2006):
Enquanto a ascese antiga era um movimento que buscava a constituição de si, a ascese
cristã tencionava a renúncia de si, com efeito, a ascese eucórpica – impregnada de cristianismo
– tenciona a renúncia das iansanidades. A psiquiatria molecular parece ser o auge dessa
renúncia: troca-se totalmente a compreensão dos estados emocionais, sociais, afetivos por uma
detecção de moléculas circulantes no sangue (o dado ultrapassou completamente o sujeito). Ao
nos tornarmos ciborgues, fármaco-ciborgues e psiborgues, entregamos toda nossa iansanidade
nas mãos de um sistema-labirinto mecânico-cibernético que assumiu o controle de nossa
“máquina” corporal, passamos a ser controlados a distância e nos encontramos naquele labirinto
de que falou Nietzsche: se e quando percebemos estar dentro dele, não sabemos como sair,
tampouco sabemos como entramos: seria a Crise de Alcibíades moderna, a qual a razão
eucórpica busca evitar, porque é dela que surgiriam as iansanidades.
O Quadro 4.2 resume as técnicas de si na modernidade, corolário do conjunto
genealógico desta tese.
os corpos de negros e negras, gays e lésbicas vivem lutas em que são expostos,
silenciados, debatidos, acusados, humilhados, violentados, como se
estivessem em uma mesa de autópsia para serem dissecados; como se, nesse
processo, se averiguasse não a causa de sua morte, mas sim a causa de sua
vida, (por que e como vivem) essa vida precária, subalternizada, abjeta (p.
871).
É no século XIX que surge, por exemplo, a frenologia, uma “área da ciência” que
relacionava a anatomia dos crânios com características morais, comportamentais, propensão ao
crime; foi a principal fonte do racismo científico, permitiu, inclusive, a apropriação do
darwinismo, no século XX, no denominado darwinismo social. Embora bastante rechaçadas, os
efeitos dessas epistemologias se mantêm. No artigo citado, destaca-se, numa matéria online, o
bilhete de uma professora à mãe de dois meninos negros: “Olá! Mamãe Débora, peço-lhe se
possível aparar ou trançar o cabelinho dos meninos, eles são lindos, mais (sic) eu ficaria mais
feliz com o cabelo deles mais baixo ou preso. Beijos, Fran”. Em outra matéria, era descrita a
estratégia de uma escola para combater o racismo ‒ havia sido organizada uma exposição em
que os corpos negros foram fotografados perto de uma mata da escola com pinturas em seus
corpos que capturavam e expunham o imaginário de um africano “nativo”; nela, os corpos
marcam e evidenciam a diferença entre primitividade e civilidade, social e natural e humano e
não humano. Mais do que marcar e evidenciar, essas marcas e evidências são expostas. Salta à
vista a relação com a exposição do corpo de Sarah Baartman nos freak shows europeus do
século XIX.
As biografias, argumenta Foucault (1991, 2005, 2006), foram documentos importantes
de produção de dados (jurídicos e médicos) que associavam características físicas (anatômicas
e fisionômicas) a “desvios” morais e de conduta. Apareceram preponderantemente no século
XIX e se tornaram sobretudo material documental para os processos jurídicos subsidiados por
dados médicos (a medicina-legal) – esses dados médicos são tornados objetivos pela assunção
dos “sinais e sintomas” como expressão da verdade revelada pela enunciação da autoridade
médica. Pierre Rivière foi um importante exemplo analisado por Foucault (1991) em Eu, Pierre
Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 229
Pierre Rivière foi desde a infância motivo de aflição para sua família. Era
obstinado e taciturno; a companhia, mesmo de seus pais, era-lhe aborrecida.
Jamais mostrou por seu pai ou sua mãe a afeição de um filho. Sua mãe mais
do que ninguém era-lhe odiosa. Ele experimentava às vezes, ao aproximar-se
dela, como que um movimento de repulsa e frenesi.
Pierre Rivière tinha de resto, em todos os hábitos da vida, essa dureza de
caráter que desesperava sua família. Havia quem se lembrasse de tê-lo visto,
em sua infância, ter prazer em esmagar passarinhos entre duas pedras, ou
perseguir crianças de sua idade com instrumentos com que as ameaçava de
morte. [...]
Notou-se sempre sua aversão pelas mulheres.
Em dados momentos falava sozinho, animava-se e exaltava-se.
[...]
Solitário, feroz e cruel, eis Pierre Rivière encarado sob seu aspecto moral; é
de certa maneira um ser à parte, um selvagem que escapa às leis da simpatia e
da sociabilidade, pois a sociedade era-lhe tão odiosa quanto sua família, e ele
perguntava a seu pai se não seria possível ao homem viver no mato, de ervas
e raízes.
O estudo do físico de Pierre Rivière oferece alguns traços dignos de nota: ele
é de pequena estatura, a testa é estreita e achatada, as sobrancelhas negras são
arqueadas, sua cabeça está sempre inclinada para baixo, e o olhar oblíquo
parece temer encontrar um outro olhar, como se tivesse medo de trair o
segredo de seus pensamentos; seu andar é sacudido e saltitante, mais
parecendo estar pulando que andando. (apud FOUCAULT, 1991; p. 9-10)
Seguem as conclusões dos pareceres de dois médicos que à época avaliaram o estado de
saúde de Pierre Rivière. O primeiro declara de antemão: “Não fiz pesquisas frenológicas, pois,
além de esta ciência estar ainda muito pouco adiantada, devo confessar também que, sobre este
assunto, meus conhecimentos são muito imperfeitos para querer aplicá-los em circunstância tão
grave”, e conclui, depois de descrever a história de vida (biografia) de Pierre, que:
Este homem tem vinte anos, sua altura é média, suas formas são arredondadas,
sua constituição é fleumática, seu rosto é sem expressão, sua cabeça, de
volume comum, fica habitualmente inclinada sobre o peito, sua testa é baixa
e estreita, as sobrancelhas cerradas, o olhar não é firme, é tímido, oblíquo, a
230 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
voz tem qualquer coisa de infantil e pouco viril; suas respostas são lentas, um
sorriso tolo lhe vem frequentemente aos lábios, sua atitude é constrangida, o
andar bizarro, sacolejante (Idem, p. 116).
Toda a biografia também repercute nos textos midiáticos da época, por exemplo, no
Journal de Falaise, em 8 de julho de 1835):
10
Psicologia USP, v. 31, e190113, 2020; p. 1-9.
11
Movimento (Porto Alegre), v. 27, e27019, 2021; p. 1-20.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 231
quando a eficiência física já não é mais possível, ainda assim mantidos dentro da engrenagem
econômica.
Das confissões de si passamos para a encenação de si, com efeito, futuramente,
poderíamos incluir no CID algo como Transtorno de Alcibíades, embora acredite que esse
“transtorno” já exista com tantos nomes: ansiedade, depressão, hiperatividade – resultado da
insustentabilidade da personagem criada nas encenações. Não obstante, eucórpica (e
economicamente) é melhor que esse transtorno se mantenha com outros tantos nomes mesmo.
Como não suportamos nossa oicorporiedade, forjamos e encenamos uma eucorporiedade, que
é emocionalmente insustentável. Na tentativa de fugirmos da oicorporiedade, colocamos como
ideal a eucorporiedade, mas, no percurso, tornamo-nos apenas superoicorpos; ao acreditarmos
que fugimos do sistema, tornamo-nos mais ainda suas engrenagens.
O objetivo aqui é pensar nos dois dispositivos vistos a partir da razão eucórpica. Como
“conhecer-se” se o que se conhece não é o que está próximo da própria realidade material da
experiência? Conhecer-se-ia via eucorpo; a sutura empírico-metafísica está deslocada para o
metafísico como se fosse empírico às expensas do empírico como se ele fosse metafísico. A
sutura também é oicórpico-eucórpica. Na razão eucórpica, o oicorpo é a parte metafísica,
embora ele exista como experiência corpórea, mas ela precisa ser confrontada com e passada
pelo filtro da realidade atribuída ao eucorpo.
Na tentativa de fazer as professoras pensarem e refletirem acerca do tema tratado aqui,
propus duas imagens como representação12 da sutura empírico-metafísica ‒ os corpos são vistos
inscritos no discurso biológico (Figura 4.10a) ou o discurso biológico é uma parte do que
representa os corpos (Figura 4.10b)? Em outras palavras, os nossos corpos estão circunscritos
dentro da inteligibilidade do corpo biológico ou o contrário? Essas duas representações também
permitiriam compreender como as professoras concebem a relação oicorpo-eucorpo. A figura
da esquerda (Figura 4.10a) representa a preponderância do eucorpo sobre os corpos, e a da
direita (Figura 4.10b), dos corpos sobre o eucorpo. Na da esquerda, a compreensão do corpo
estaria totalmente circunscrita na noção biológica; os corpos seriam um aspecto do biológico e
apenas poderiam ser concebidos, analisados e compreendidos dentro de uma matriz biológica
12
As representações estão baseadas na Teoria dos Conjuntos.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 233
(com efeito, eucórpica); na da direita, o corpo biológico seria um aspecto de uma totalidade
maior que os corpos representariam.
[Figura 4.10] Representações sobre a relação entre corpo e corpo biológico apresentada às
professoras no grupo focal: (a) os corpos estão circunscritos no corpo biológico; (b) o corpo
biológico é parte da noção de corpo
Doido, pra mim é tão doido que eu não consigo entender nem qual é a
proposta. Eu não consigo entender o que é olhar a partir do corpo
biológico, que teoricamente é mais amplo, né, então como é que ele pode
estar dentro do corpo biológico se ele é mais amplo, que seria a primeira
imagem, a da esquerda, né? (Pro4)
Eu vou explicar o que que eu quero dizer, que eu acho que vai na direção do
que a P4 tava falando, então, ó, é verdade, a gente tem um corpo biológico,
que a gente constrói os conceitos, e parte daí, então, esse corpo biológico
que a gente conversa, a gente usa pra inserir os corpos de verdade da
molecada que tá ali junto com a gente, na base do exemplo, ou na base da,
da história, quer dizer, a gente vai envolvendo a molecada no corpo
biológico, que tem o corpo real, né, o corpo que as pessoas usam, que
transita pelo mundo, que acaba sendo descrito dentro desse corpo biológico,
mas você deveria ter que puxar esse círculo interno uma parte pra fora do
corpo biológico [Figura 4.11]. Eu acho que é justamente esse outro lado que
[tem relação com] as coisas que a gente fala sobre o corpo, que tem a ver
com as sensações, que tem a ver com a cultura e que então todas as aulas
têm, de alguma maneira, isso e que transcende o corpo biológico, então o
corpo biológico acaba sendo a referência, que é de onde a gente parte, só
que, a hora que a gente fala do corpo, ele não fica só no corpo biológico...
(Pro1)
234 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
[Figura 4.11] Representação alternativa proposta pela professora em conversa do grupo focal
é, eu acho que a gente faz muito mais esse [Figura 4.10a], né, porque, é,
naquele meu pensamento do porto seguro, né, que eu posso sair um
pouquinho, mas eu tenho o respaldo da ciência me segurando. E eu acho
que o outro [Figura 4.10b], a gente teria que ser, assim, desprender muito,
né. Eu acho bem difícil, pro ensino médio, pro ensino fundamental, eu acho
bem difícil. É... na nossa conversa [no grupo focal] é mais tranquilo. Mas é
porque assim, a gente não tem aquele compromisso de cumprir nada, a
gente tá livre aqui pra falar, acho bem difícil na escola fazer esse
movimento (Pro2)
eu também pensei nisso, né, que é um desafio, que é tanta coisa que dá um
pouco de medo e no fim, assim, eu sinto um alívio grande, “que bom que
esse é um problema do Fulvio, e não meu”. Sério, agorinha me peguei
nessa. Nossa! Na verdade, não, eu me peguei ansiosa, agoniada por não ter
uma resposta e depois em seguida veio um alívio de “que bom que esse é um
problema pro Fulvio” (Pro4)
Usando ainda a Teoria dos Conjuntos e o diagrama de Ven, proponho uma forma de
olhar para o corpo (Figura 4.12) e a comparo com a visão preponderante da razão eucórpica
(Figura 4.10a). Na Figura 4.12, os corpos estariam representados pela somatória (como
potencialidade) de possibilidades de apreensão ‒ toda a área pintada da figura (incluindo a
amarela) –, quanto mais centrais, mais intersecções, quanto mais externas, mais restrita a visão
sobre o corpo, o que chamarei de uma visão idiopática (no sentido de uma “paixão”
racionalizada e individualizadora sobre o corpo, portanto, uma visão idiossincrática). Chamo
aquela apreensão mais ampliada de semiologia iansânica; nela destacam-se as relacionalidades,
que, conforme as visões interseccionam-se, tornam-se mais amplificadas. Na semiologia
iansânica não é necessária a união de todas as possibilidades para apreender o corpo, é uma
236 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
noção semiológica que tenciona refletir sobre o corpo como algo muito mais amplo, em
oposição ao que o modelo eucórpico restrito permite considerar (hachurado de amarelo). Trata-
se de uma utopia não no sentido de inviável, mas no sentido de um objetivo cuja potencialidade
demanda outros discursos, outras práticas, para outros efeitos. Não há uma verdade definitiva
sobre o corpo ou sobre os corpos que, da intersecção de várias epistemologias/semiologias, se
deveriam atingir.
[Figura 4.12] Representação do modelo semiológico iansânico como apreensão dos corpos
13
O termo pandemia diz respeito a uma doença que atingiu amplitude global, diferente de endemia, que, em
termos gerais, se refere a uma doença restrita a determinada área ou região. O termo sindemia não substitui
pandemia devido a sua amplitude, uma sindemia pode ser global ou endêmica. Em termos epistemológicos,
administrar um momento de pandemia diz respeito à autoridade do conjunto de conhecimentos das Ciências
Biomédicas; por outro lado, para administrar uma sindemia, é necessário recorrer também à autoridade do
conjunto epistemológico das Ciências Humanas.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 237
A verdade de que fala Foucault no trecho acima é, no conjunto desta tese, a verdade
eucórpica; ela não “salvará” o sujeito porque o dado ultrapassou o sujeito.
Distante do pensamento grego antigo, o cuidado-de-si moderno está muito vinculado a
conhecer o próprio corpo – e não a alma –, embora o que se conheça é o eucorpo. De certa
forma, próximo da ascese filosófica helenística, o cuidado-de-si moderno está voltado à
constituição física vigorosa do corpo, no entanto, não para se preparar para o confronto com a
realidade e com os acontecimentos, mas para tornar o superfuncionamento eficiente econômica
e sexualmente. Próxima bastante da ascese cristã, na ascese eucórpica, é preciso renunciar às
iansanidades para fortalecer a máquina corporal. Não é o corpo forte para o enfrentamento,
vigoroso para o embate, é o corpo eficiente que é demandado: é esse corpo que é preciso
conhecer, é desse corpo que é necessário cuidar.
O conflito do ensino, supondo como prerrogativa o cuidado-de-si, é entre a
oicorporiedade e a eucorporiedade. Seguem dois trechos da mesma professora em aulas
diferentes; o primeiro refere-se a uma aula de fisiologia do sistema circulatório em que a
professora explicava/descrevia a grande circulação ou circulação sistêmica:
Nesses trechos, o corpo aparece como conflito: corpo é diferente de coração e cabeça.
Entendo que a divisão é geográfica/didática: coração é o referencial para baixo e para cima para
se descrever a circulação e a força do sangue para cima (contra a gravidade) e para baixo (a
favor da gravidade). Da mesma forma, sexo e corpo são separados, sexo quase ganha um éthos
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 239
de “espírito”. Embora pênis, vagina, testículos, útero e ovários sejam estruturas anátomo-
fisiológicas que compõem o corpo, estão desvinculados dele (os cromossomos sexuais
formariam “o sexo” enquanto os cromossomos autossomos formariam “o corpo”), não pelo seu
caráter corpóreo, mas por algo que finalmente “transcenderia” o corpo.
De certa forma, ser homem e mulher transcenderia o corpo, no entanto, ser homem ou
mulher está vinculado à razão eucórpica (sobretudo pela sua binaridade), diferente de uma
filosofia ou pedagogia ou semiologia iansânica. Tanto cabeça quanto sexo estão desvinculados
enunciativamente do corpo; a primeira, onde os pensamentos ocorreriam, e o segundo,
vinculado a um desejo afetivo-sexual, evidenciando o conflito oicórpico-eucórpico: a
maquinaria mecânico-cibernética do corpo está de certa forma apartada dos pensamentos e dos
desejos. Conhece-se via eucorpo, mas o cuidado-de-si demandaria ser executado via oicorpo;
corpo é a pós-categoria que os une pelas suas diferenças. É como Foucault descreve o “cuidado-
de-si” na nossa cultura atual14, como uma espécie de dandismo, uma “afirmação-desafio de um
estádio estético e individual intransponível” (FOUCAULT, 2006; p. 16), o que eu chamo de
fetiche eucórpico dos hoi polloi modernos.
14
Foucault estava em 1982, na França, dando um curso no Collège de France, “nossa cultura atual” possui apenas
caráter genérico neste trecho.
240 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
a introdução de discussões das questões étnico-raciais e das questões queer teria possibilidade
de causar esse efeito.
Visitei, como disse no início desta tese, um trabalho de pesquisa em que fui objeto de
pesquisa; vendo-me retrospectivamente, eu estava bastante inserido na razão eucórpica. As
mesmas ideias de corpo-cabeça-coração, cromossomos autossomos e sexuais estavam
presentes. Embora eu tivesse reflexões sobre transexualidade, homossexualidade [eu sou gay],
esses temas até apareciam nas aulas, mas sufocados – eu também partia da noção eucórpica de
corpo para chegar nos “outros corpos”, muito embora eu mais tangenciava do que, de fato,
chegava – o foco era nos conteúdos que seriam exigidos nos vestibulares, sobretudo da forma
como seriam – há aí um grande dispositivo que também mantém os conteúdos científicos
enlatados. Nas palavras de Foucault (2014), em Vigiar e punir, o exame seria uma técnica de
vigia e de normatização e objetivação – não apenas sanciona o aprendizado, mas sustenta-o
segundo um ritual de poder, conecta a formação do saber com o exercício do poder. Além dos
vestibulares, o currículo está engrenado a eles; a fala de Pro2 denuncia [embora o tom dela não
fosse de denúncia] o sistema panótico-cibernético de controle dos conteúdos que devem ser
trabalhados nas aulas; como “moer o currículo”, como dito pela Pro3, se ele faz parte de uma
engrenagem vigilante?
porque a gente cumpre todo o material que vem do estado, e a gente faz um
negócio que chama guia de aprendizagem, a gente põe lá os dias da semana,
divide o conteúdo certinho e a gente controla junto com os alunos, se eu
conseguir [cumprir] tudo o que eu planejei, eu ponho objetivo, habilidade,
estratégia, tudo lá fechadinho, e tem o líder da sala, ele vai ticando, fica na
parede, ele vai ticando o que a gente trabalhou e se a gente não consegue
trabalhar o que a gente pensou, a gente discute no final do bimestre o que
que atrasou, o que que adiantou, tãrãrã, por que que aconteceu, reprograma
e a gente tem que dar conta de tudo no final, [...] ela [a direção da escola]
tem um monitoramento, então, meu coordenador de área vai, monitora o
que eu fiz, passa pra coordenadora geral, parãrã, e se eu não conseguir, ele
vai lá tentar me ajudar a fazer (Pro2)
Este item é também uma forma de me redimir com as professoras, caso tenham se
sentido atacadas; o foco da pesquisa não é individualizar discursos, condutas, práticas (e
responsabilidades por eles), mas enxergar os efeitos da razão eucórpica e como seria possível
minimizá-los.
Cheguemos à pergunta feita no grupo focal:
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 241
“Estou lutando contra ela”, contra essa função reprodutora imposta. É também a luta
contra a eucorporiedade, contra a concepção [sim, com duplo sentido mesmo] de que depois do
climatério, com a menopausa, o corpo da mulher não serve mais. Não serve mais
eucorpicamente, mas pode superfuncionar insanicamente, o sexo é liberado sem o risco da
gravidez indesejada, sem o uso de pílulas anticoncepcionais, sem métodos; o que era antes um
aparelho reprodutor torna parte de um sistema iansano-afetivo, que não está apenas localizado
nos “órgãos reprodutivos ou reprodutores”, é todo o corpo, é todo o afeto, todo o desejo, todo
o pensamento, livre da amarra reprodutiva. Como reflete a Pro2:
Se a gente for pensar, mesmo a Pro4, que tem três periquitas, ela fez muito
mais sexo do que periquita, né. Deveria ter outro nome mesmo.
Isso, essa coisa, uma certa área de lazer do corpo, e... porque eu penso, e aí
eu acho que tem um recorte evolutivo que às vezes eu brinco com a
molecada, assim, eu falo, somos todos descendentes de bons reprodutores,
agora para e pensa, por que que você come todo dia? “Ah, porque eu tenho
fome”. Não, não é nada disso, não. É porque é gostoso comer. Quem não
gostava de comer, não sobreviveu, galera. Agora, por que que você acha
que tanta gente tem filho? Ah, porque é gostoso fazer filho, criar, às vezes,
nem tanto, mas... pergunta pra sua mãe, filho é bom, mas dura muito.
Pergunta pra sua mãe, eu brinco assim. E eu penso que esse lado, essa coisa
de, puta, cara, eu tenho um negócio que, assim, eu gosto muito de ditos
populares, por isso que eu gostei dessa outra definição de parquinho, a
ideia de que alguém tá chato pra caramba, você fala pra pessoa “vai
cagar”. E aí a pessoa volta melhor mesmo. Porque no fundo a gente é um
conjunto, né. Não é uma parte só do que tá acontecendo. E aí tem o outro
lado pejorativo disso também, que é a história da mal-amada, e no fundo é a
pessoa que não tá se expressando sexualmente de alguma maneira e de
repente tá descontando de outro jeito, enfim, nesse sentido que eu acho que
reprodutor, o caramba, né, na verdade, em grande medida, é isso que a P4
falou, em grande medida o que a gente busca não é ter um monte de filho,
não, é justamente se expressar de outras maneiras, né, então acho que
reprodutor seria quase secundário essa opção (Pro1)
Eu, por exemplo, não encaixo em nada disso, sou, resolvi não ter filhos, sou
solteira, e pra mim, ele nunca reproduziu, né, então é assim, até quando a
gente brinca do que é vida, né, a gente fala que o ciclo vital é organismos
que nascem, crescem, reproduzem – aí eu falo, ou não – e morrem, né? Que
você não precisa se reproduzir pra estar vivo, né? Então, pra mim,
pensando, né, eu nunca tinha pensado, né, em mudar de nome, mas pra
mim, não faz sentido nenhum, né, ser chamado de reprodutor. Deveria ser
chamado sistema sexual. Né, faria muito mais sentido. Ou parquinho, que
é muito mais simpático, né (Pro2)
Ainda assim, não é tão fácil fugir da semiologia eucórpica, porque a forma de construir
e atribuir significados é fortemente eucórpica, mas há zonas de escapes e elas estão justamente
naquilo que a eucorporiedade não possui: desejos, afetos, experiências, dores, vontades – desde
que não enxergadas dentro de uma engrenagem. O próximo trecho é quase um déjà vu
weberiano, o cientista desencantado preso na gaiola de ferro da ciência (ou mesmo no labirinto
de Nietzsche), mas a gaiola começa a ser visível. A razão eucórpica é vigorosa! Ainda que
saiamos do sistema reprodutor, corremos o risco de tombar no sistema endócrino (hormonal).
Não que ele não possa fazer parte, mas poderia ser apenas parte (retomemos a Figura 4.11).
Esse [o sistema reprodutor], esse a gente teria que mudar de nome mesmo,
que ele reproduz muito menos do que ele faz sexo, né. (Pro2)
Eu queria falar só mais uma coisinha, que também me ocorreu por causa
da... da... da pílula do dia seguinte, né, eu fui olhar a bula dela. E eu já
tinha discutido na farmácia com a farmacêutica, na verdade, não é bula, é o
protocolo de utilização disponibilizado pelo Ministério da Saúde. Ele diz
assim: toma, mas se vomitar, você toma outro. Se você vomitar de novo... aí
você introduz o comprimido na vagina, que a eficácia é a mesma. Agora, se
é um produto que dá desconforto estomacal e causa vômito, por que que a
via principal de administração não é a introdução na vagina? Por que as
mulheres não tocam seu próprio corpo? Será que é isso? E eu tenho refluxo,
então, quando eu pensei em consumir, em usar agora, eu já pensei como
primeira alternativa a via vaginal, porque eu não tenho... eu lido muito bem
com o meu corpo, eu consigo colocar um comprimido no fundo da minha
vagina sem nenhum problema, agora quantas mulheres conseguem fazer
isso? Quantas mulheres sabem que seu fundo da vagina não vai dar num
buraco negro e que ela [não] vai ter problemas se ela introduzir o dedo lá
dentro? Então o corpo da mulher ainda é um tabu. A gente mesma tem é... e
é isso é hoje com 48 anos. E mesmo assim, eu vou falar disso agora com a
Pro1, o Fulvio e a Pro2. Eu posso falar disso? Quais os limites eu tô
ultrapassando se eu resolver abordar esse assunto com esses colegas, né?
[...] Então, isso é uma construção de 48 anos. Mesmo assim, eu fiquei na
dúvida, sabe, eu tô lendo lá, né, tá escrito, “tem a mesma eficácia”, só que
eu pensei, puta, será que tem a mesma eficácia depois de você já ter
absorvido um pouquinho da primeira dose, um pouquinho da segunda dose
pra aí ser considerado que absorção vaginal vai ter a mesma eficácia?
Fiquei na dúvida. E imagina só, se a gente que tem toda a formação que tem
e fica na dúvida, e as outras pessoas? (Pro4)
Que corpos de mulheres são esses a que ela se refere? São, provavelmente, corpos que
lutaram a vida toda contra um “sistema reprodutor”, melhor seria dizer, evocando Foucault,
contra um “dispositivo reprodutor”. São corpos que não “conheceram-se a si mesmos”, que
apenas “cuidaram de si” dentro deste dispositivo: Quantas mulheres sabem que seu fundo da
vagina não vai dar num buraco negro e que ela [não] vai ter problemas se ela introduzir o dedo
lá dentro?
Trata-se menos de um sistema do que de um dispositivo mesmo; tanto o corpo da mulher
é um tabu quanto o próprio assunto: Quais limites eu tô ultrapassando se eu resolver abordar
esse assunto com esses colegas, né?. De fato, “quem” ou “o quê” impôs esses limites? Esses
mesmos limites impediriam tratar desse assunto em sala de aula? Talvez sejam limites morais,
medo de julgamentos, mas quando compreendemos que os corpos possuem um sistema
244 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
reprodutivo/reprodutor e que, portanto, essa é a função dele, qualquer ação que se faça contra
essa função é imoral, é errada, é criminosa.
Recupero algumas aulas cujo tema tem relação com essa constituição corporal. Nas
aulas acompanhadas, apenas uma professora tratou de temas ligados ao corpo do homem e da
mulher, no entanto, não se trata de direcionar os discursos a uma pessoa, mas entendê-los dentro
da operação da razão eucórpica. O conteúdo das aulas, incluindo os discursos, são encontrados
em livros didáticos, em livros para o ensino superior de biologia; as aulas apenas mimetizam (e
precisam mimetizar) os livros; a própria professora também revelou que precisa “cumprir os
conteúdos” e há todo um sistema de vigilância para que isso seja feito.
Inicio com uma aula de fisiologia vegetal. O material didático provido pelo estado de
São Paulo, o qual professores precisam seguir, solicita que os “aparelhos sexuais” das plantas
angiospermas15 sejam comparados anatômica e funcionalmente com os “aparelhos
reprodutores” humanos. Da perspectiva de uma semiologia iansânica, essa aproximação seria
perfeita. Encontramos nas plantas angiospermas uma variedade de possibilidades sexuais. Há
plantas cujas estruturas florais são ou apenas masculinas ou apenas femininas. Há plantas que
têm estruturas florais femininas e masculinas na mesma flor. Mais do que isso, ainda, há
indivíduos que são apenas masculinos (possuem flores apenas com estruturas masculinas), há
indivíduos apenas femininos (possuem flores apenas masculinas). Há espécies que possuem
dois tipos de flores diferentes no mesmo indivíduo e outras que possuem, no mesmo indivíduo,
flores hermafroditas. A variabilidade sexual é gigantesca. Por que essa variabilidade sexual das
plantas nunca serviu de referência para olharmos a natureza, e com efeito, a natureza humana?
Se ainda as plantas são tão afastadas evolutivamente de nós humanos, podemos olhar também
o reino animal e encontraremos tanta variedade quanto nas plantas.
Por outro lado, atribuir “feminino” e “masculino” às plantas, considerando a variedade
de formas, talvez seja binarizar o que se apresenta não binarizável.
Não obstante, o material didático com que professoras do estado de São Paulo trabalham
se restringe apenas a fazer a comparação das estruturas sexuais de plantas e seres humanos,
simplesmente em nomear as estruturas masculinas e femininas. O quadro 4.3 destaca o conjunto
didático-pedagógico a que se refere o conjunto de aulas de acordo com a “recomendação” do
material didático do estado de São Paulo – destaco em azul a situação de aprendizagem a que a
sequência de aulas se refere. Há um detalhe interessante na recomendação do material: Emitir
opiniões quando solicitadas, argumentando. O aluno e a aluna só devem emitir opiniões
15
Plantas angiospermas são aquelas que produzem flor e fruto.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 245
quando solicitadas. Que bom que essa professora não segue literalmente essa “recomendação”,
alunos e alunas participam muito da aula e ela dá conta de dialogar e propor discussões.
[Quadro 4.3] Proposta curricular do material didático do Ensino Médio, governo do estado de
São Paulo
tudo sequinho, e aí o grão de pólen vai lá dentro do ovário, esse ovário aqui
que eu vou passar [tratava-se de uma aula prática], dá pra vocês enxergarem
que ele tá por cima, eu vou até tirar a sépala...
16
As plantas possuem um ciclo de vida com alternância de gerações, uma fase da vida é diploide (2n), que é o
esporófito (planta que produz esporos), que é justamente a árvore que vemos. Outra fase é o gametófito (planta
que produz gametas), haploide (n). Nas angiospermas a fase gametofítica é reduzida tanto em tamanho quanto
em tempo. Por exemplo, o grão de pólen é um conjunto de esporos, da germinação dos esporos forma-se o tubo
polínico (o gametófito masculino) – cf. Figura 4.12.
17
É extremamente comum, em livros didáticos de Biologia, enunciados que relacionem a meiose à reprodução
sexuada e a mitose à reprodução assexuada.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 247
plantas] são várias, várias células que sofreram meiose que formaram a
oosfera. Aí também o grão de pólen solta as células masculinas, por que o
grão de pólen eu não enxergo? Aquele amarelinho bem petitiquinho, lá
dentro é que estão as células masculinas [o grão de pólen é um conjunto de
esporos, que produz o gametângio (o tubo polínico), este, por mitose, produz
os gametas]. Então quando ele entra aqui, ele libera os anterozoides, eles
vão lá, fecundam a oosfera, e cada uma vai virar o quê?
“machos” e “fêmeas”. Outro detalhe que convergiria para uma reflexão nos nomes e estruturas
como forma menos de revelar verdades do que processos seria a comparação de alguns termos:
o ovário nas plantas faz mais o papel do útero nos humanos do que o dos ovários, o que
deslocaria a relação fixa entre signo e significante condicionada pelo discurso biológico. Os
signos revelariam menos uma verdade do que uma arbitrariedade.
[Figura 4.13] Ilustração de flores em corte longitudinal com a identificação da anatomia das
estruturas sexuais
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 79.
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 80.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 249
[Figura 4.15] Esquema anatômico dos sistemas reprodutores masculino e feminino humanos,
em material escolar
Esquema para preenchimento dos estudantes; os retângulos estão nomeados porque se trata do caderno do
professor (com respostas).
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 81.
Quadro para preenchimento dos estudantes; os espaços estão preenchidos porque se trata do caderno do professor
(com respostas).
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 81-2.
O que chamo de Sistema Iansano-afetivo não seria uma substituição ao nome sistema
reprodutor. A pergunta feita no grupo focal teve mais o intuito de mobilizar o conflito oicorpo-
eucorpo, de trazer a oicorporiedade para a leitura dos corpos. A simples mudança no nome
poderia ter algum efeito, mas não é essa a proposta, o próprio termo sistema nesse contexto é
irônico. É mais sobre o corpo que poderia ser visto como um sistema integrado, menos como
um conjunto de sistemas (engrenagens) que superfuncionam do que um conjunto de afecções e
afetos de modo a permitir que suas iansanidades aflorem, ou minimamente que sejam
consideradas nesse “superfuncionamento”.
O sistema iansano-afetivo é tudo aquilo que foi subsumido no fisiológico: trata-se do
aspecto mais sociológico, mais artístico, mais literário, mais filosófico, mais político dos corpos
– desse que nenhum diagnóstico, por mais investido de ubiquidade sobre os corpos, detecta. É
um direcionamento de perspectiva em um contramovimento daquilo que sobretudo a
modernidade, impregnada moralmente de cristianismo, fez com o olhar dos corpos, ou uma
busca, de certa forma, “daquele ponto de iluminação, aquele ponto de completude, aquele
momento da transfiguração do sujeito pelo ‘efeito de retorno’ da verdade que ele [conhecia]
sobre si mesmo, e que transita[va], atravessa[va], transfigura[va] seu ser” que não pôde mais
existir (FOUCAULT, 2006; p. 23).
Para encerrar, recorrerei a outra sequência de aulas, que embora tenha sido anterior, é
um efeito daqueles efeitos, e compreenderemos um pouco mais sobre como o “conhece-te”
implica um cuidado-de-si mais oicórpico. Pensar o sistema iansano-afetivo mobilizaria um
cuidado-de-si mais iansânico, mais preocupado com a constituição de um capital subjetivo, cuja
atenção está menos voltada para os órgãos do que para os efeitos do conflito oicorpo-eucorpo
252 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
– O que vocês acham que a gente, pra manter a gente funcionando, annnn,
gasta mais caloria? Homem ou mulher? O que vocês acham?
– O homem gasta mais caloria, certeza.
– O homem gasta mais caloria, certeza, por que que você acha isso?
– Ah, nem sei, na verdade, professora.
– Porque ele come muito mais que a gente e não engorda, né, tenho uma
raiva de homem. Pra manter, o homem tem a musculatura maior por conta
da testosterona e aí pra manter essa musculatura ele já tem um gasto mais
elevado que a gente [mulher].
As atividades do material didático que a professora deve seguir traz concepções rígidas
sobre homem e mulher; o próprio material apresenta uma atividade em que alunos e alunas
devem calcular o metabolismo basal de seis pessoas seguindo uma fórmula que distingue
homens de mulheres; o cálculo é sobre o gasto energético basal (GEB) ‒ o termo basal se refere
à manutenção das funções vitais. Outro cálculo que estudantes devem fazer é sobre a
necessidade enérgica total (NET), referente a quanto cada pessoa gasta de energia segundo sua
profissão e seu sexo/gênero (eucórpicos). A Figura 4.16 apresenta as fórmulas para GEB e NET
e as características das pessoas.
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 253
[Figura 4.17] Informações para atividade de cálculo de metabolismo, proposto por material
didático da rede pública do estado de São Paulo
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 70-1.
Os alunos devem fazer os cálculos para cada uma das seis pessoas e responder a algumas
questões. Seguem duas questões com as respostas sugeridas pelo material didático aos
professores e professoras:
A resposta à questão I somente poderia ser “há diferença”, uma vez que a fórmula para
cálculo de homens e mulheres é diferente e os valores atribuídos ao fator atividade também o é
em relação aos sexos/gêneros, no entanto, a resposta à questão II é inconsistente em relação à
resposta à questão I: a primeira atribui à maior musculatura do homem seu maior gasto
energético enquanto a questão II enuncia que o gasto basal é referente a funcionamentos que
tanto homens quanto mulheres têm iguais. Estranhamente, a mulher, em trabalho leve, requer
mais energia que o homem no mesmo trabalho: a mulher deve multiplicar o GEB por 1,56
enquanto o homem multiplica por 1,55; nos demais, moderado e intenso, para as mulheres
multiplica-se, respectivamente por 1,64 e 1,82, enquanto para os homens, multiplica-se por 1,78
e 2,10, respectivamente.
Destaque-se que o cálculo do GEB, diz o material, é de dois pesquisadores, Harry e
Benedict, que propuseram essas fórmulas em 1919. Segundo Wahrlich e Anjos (2001), as
fórmulas foram concebidas a partir de dados coletados de 333 pessoas estadunidenses
saudáveis. Os autores destacam que Benedict admitiu posteriormente que os cálculos estavam
superestimados e, apresentando uma série histórica das metodologias para os cálculos do
metabolismo, afirmam que, até a data da publicação do artigo, em 2001, ainda não havia uma
fórmula “correta” para o cálculo, embora na prática clínica da nutrição algumas fórmulas
tenham importância.
Como a professora estava discutindo com alunos e alunas sobre metabolismo,
alimentação, uma aluna pergunta sobre um tipo de dieta que ela não sabe nomear; o diálogo
remonta à associação do cuidado-se-si àqueles privilegiados, que podem demandar tempo e
dinheiro para o cuidado, além também de ressaltar o éthos de ubiquidade no conhece-te a ti
mesmo: “faz quinhentos exames para descobrir exatamente o que seu corpo precisa”.
[Figura 4.18] Passo 4 para uma dieta saudável, segundo material didático para o ensino médio
Fonte: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – Secretaria de Educação. Manual de apoio ao currículo do estado de
São Paulo. Caderno do professor, Biologia, 3º ano do Ensino Médio, volume 1, 2014-2017; p. 72.
Destaque para o uso do imperativo: siga, não exceda, consuma, não ultrapasse, alcance
e finaliza evocando o oikos: a saúde da família. Nesse caso, o imperativo some, embora ao
corpo seja imposta diretamente uma normatividade, à família ela é imposta indireta e sub-
repticiamente. Não importam as condições materiais para acesso aos alimentos, importa a
“responsabilidade” em seguir as normas; é de um cuidado-de-si individualizador e normativo,
portanto, eticamente ascético, que se trata.
A próxima sequência de aulas é relativa ao conteúdo de ensino “vírus”, cujo tema foi a
infecção pelo HIV. Depois de falar sobre a biologia dos vírus, sobre os tipos de ciclos virais, a
professora inicia o tema do HIV e da aids, tratando das formas de contágio e prevenção:
256 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
– É bom lembrar que ó, qual tipo de sexo que transmite HIV? Qualquer um
que não seja virtual, beleza?
(risos da classe)
– É claro que existe maior risco em determinados tipos de sexo, mas a
lógica é que, a lógica é que sexo inseguro transmite HIV. Sexo oral, anal,
vaginal, tanto faz. Se não for com camisinha, você, potencialmente transmite
HIV. Beleza? Era isso?
Dois detalhes aparecem: se apenas o sexo virtual não transmite HIV, o melhor seria ou
praticá-lo ou exercer a abstinência, no entanto, o uso da camisinha é uma estratégia, porque sem
ela a pessoa tem potencial para transmitir – apenas faltou um detalhe, somente irá
potencialmente transmitir se ela tiver HIV, em dois casos: se não souber da sua condição ou se
não estiver em tratamento antirretroviral.
Na continuação, um aluno questiona sobre a estratégia de profilaxia pós-exposição
(PEP), mas sem saber o nome técnico:
– Aquela pílula do dia seguinte pra HIV, você tinha falado que...
– Não é pílula do dia seguinte, cara. É o coquetel antiaids.
– Pílula do dia seguinte é pra não engravidar, né?
– Pílula do dia seguinte antecipa a menstruação, tudo bem? É uma
cacetada, é um tijolo de hormônio e tal, tem sérios..., pode ter
consequências graves, entre outros casos, mas um fato é que, a outra coisa
é, um casal tem HIV, ou alguém do casal tem HIV e aí tem um preservativo
rompido lá, e aí...
– Que é o que você tava falando lá da pílula do dia seguinte, entre aspas,
que não é pílula do dia seguinte coisa nenhuma, é o protocolo de
emergência que o Ministério da Saúde criou há uns 3, 4 anos atrás.
– E é funcional?
– Funciona, mas nada [destaque na fala] funciona 100%. Portanto, não há
nada que substitua a camisinha. Se o método falhar, você pode ter outro,
entendeu? É isso.
– (...?) não usar a camisinha que depois tem outro...
– Não, nem pensar, porque existe uma probabilidade de funcionar, portanto,
tem uma probabilidade de não funcionar também. E é bom lembrar, por
enquanto, HIV é pra sempre, tá? Mas tem tratamento, e é isso que quero que
vocês pesquisem, que é o coquetel antiaids, que o Brasil é referência
internacional em combate a pandemia de HIV, beleza? É obrigação de você
brasileiro saber como isso funciona.
– Se uma pessoa tem o vírus HIV, só que ela toma todos os remédios e aí ela
tem relação com outra pessoa, ela pode pegar aids assim?
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 257
– É, é possível, porque funciona assim, ó. Ninguém pega aids, né, você pega
HIV, né?
18
A professora chama a atenção para o fato de que portadores de HIV, mesmo em tratamento antirretroviral e
carga indetectável têm pró-vírus “escondidos” nas células, são os chamados reservatórios ou santuários, que
até então são o foco das pesquisas científicas em direção à cura. Não são vírus, mas DNA do vírus inserido no
DNA da célula que podem ser transcritos e traduzidos em vírus.
258 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
O próximo trecho de diálogo entre a professora e alunos vai mais em direção a uma
semiologia iansânica, quando o cuidado-de-si (individual) passa para um cuidado-de-nós,
evocar o cuidado coletivo é um caminho mais iansânico – tão necessário para o enfrentamento,
por exemplo, da Covid-19. HIV/aids e Covid-19, por exemplo, são pandemias ou sindemias?
significado às realidades, que são mais oicórpicas do que eucórpicas, é, portanto, possível
transitar entre as semiologias. A sutura é todo esse movimento e trânsito: no entanto, o conflito
tende a deslocar a semiologia para onde ela é, individualmente, mais confortável, mais segura,
menos frágil.
A iansanidade é o rompimento da sutura, não uma escolha de um lado ou de outro,
porque, ao tombar para um lado, é-se mecânico-ciberneticamente jogado para o outro. Não
obstante, o rompimento não é o descarte das semiologias, é a superação da falha na
inteligibilidade, é o dar-se conta do labirinto, não para encontrar a saída ou entender como se
entrou nele, é mais do que encontrar o antebraço de Che, mais do que perceber sua ausência, é
perceber-se enquadrado em certas molduras, é perceber-se ininteligível nesse enquadramento.
É dar-se conta da oicorporiedade sem aprisionar-se nem tampouco buscar exílio na
eucorporiedade, ambas são ficções, a primeira só existe porque a segunda também existe, a
primeira alimenta a segunda da mesma forma que a segunda alimenta a primeira. Trata-se de
um autoconfronto que se exerce na coletividade.
Judith Butler (2021), em A força da não violência, propõe uma forma de olhar para o
corpo – o corpo como limiar – e, assim, destrói-se a ideia de corpo como unidade. A demarcação
corporal não é a finalidade, mas o contorno, a passagem e a porosidade, a evidência de uma
abertura para a alteridade, que, essa, sim, seria definidora do corpo em si: quando os corpos
formam uma barreira humana, estariam bloqueando uma força ou empregando uma força?
Para dar pistas de como respondermos a essa pergunta, lançarei mão de um exemplo
iansânico coletivo dado por Butler (ela não usa o termo iansânico e nem tentou responder à
pergunta com esse exemplo), trata-se do caso do “homem de pé”, na praça Taksim, Istambul-
Turquia.
Durante os protestos, em junho de 2013, contra o governo de Recep Tayyip Erdoğan,
suas políticas de privatização e seu autoritarismo, Erdem Gündüz, um artista, obedeceu ao
decreto do Estado promulgado imediatamente após os protestos: não se reunir nem falar com
pessoas em assembleias. Erdoğan pretendia acabar com as premissas democráticas básicas:
liberdade de circulação, de reunião e de discurso. Então, um homem se levantou e ficou de pé
à distância exigida de outra pessoa, que por sua vez ficou de pé à distância exigida de outra, e
assim por diante (Figura 4.19). Legalmente, eles não constituíam uma assembleia, não falavam
um com o outro e tampouco se moviam, cumpriram literalmente o decreto submetendo-se, ao
mesmo tempo que o expunham e o desafiavam. A manifestação tinha ao menos dois
significados: a proibição foi mostrada, incorporada e encenada com o corpo, iansanicamente,
Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática 261
pois foi também enfrentada e contestada. Em uma mesma ação, a performance se submeteu e
desafiou.
Foi o oicorpo-subjeto (Butler usa sujeito subjugado) expondo e enfrentando sua própria
oicorporiedade – coletiva e iansanicamente.
262 Razão eucórpica como sistemas de pensamento e de prática
[SEÇÃO 5]
Considerações finais
Seria possível uma semiologia iansânica?
264 Seria possível uma semiologia iansânica?
As imagens que abrem esta Seção são da exposição “Human Bodies: Maravilhas
do Corpo Humano”1. São corpos reais dissecados e submetidos à técnica de
plastinação. As imagens [os corpos representados] cumprem a função, nesta
Seção, de revelar o conflito eucorpo-oicorpo e mostram-se iansânicas, como se
o eucorpo fosse iansanicamente desmascarado em sua oicorporiedade fundante.
As imagens são a representação anatômico-eucórpica das estruturas do corpo,
no entanto, em posições que, ou revelam sua oicorporiedade (o eucorpo ao
telefone), ou a extrapolam: há o anatomista revelado e desnudado
anatomicamente da mesma forma que o corpo por ele dissecado; há o eucorpo
expressando afeto e fazendo sexo e/ou amor; há o eucorpo executando
movimentos artísticos além da oicorporiedade. Nessas imagens, o eucorpo tem
mais a imagem e semelhança do oicorpo do que o contrário, como demandaria a
razão eucórpica. É a sutura empírico-metafísica que se apresenta dissecada
nessas imagens.
O estudo genealógico desta pesquisa permitiu assumir que a noção de oikos grego antigo
passou a reverberar de uma forma intensa no pensamento do século XIX. Não que a apropriação
do oikos pela Biologia (na palavra ecologia) tenha desencadeado como ocorrência a instituição
da razão eucórpica, mas refletiu a possibilidade e a necessidade de um discurso que pudesse
estabelecer o pacto social de forma a representar os interesses burgueses que nasciam da
Revolução Francesa. O nascimento da Ecologia por meio do oikos permitiu a subversão da
economia como local da dominação e a expansão do oikos como casa (espaço privado) para a
propriedade privada, que assume o lugar da dominação, deslocando, com efeito, a casa para a
esfera do íntimo. A família ganha contornos burgueses de local de controle das emoções
assépticas e higienizadas. O corpo se constrói dentro das famílias reforçado pelas pesquisas
fisiológicas, que, além de determinar o certo e o errado via normal (o corpo “verdadeiro” ou
eucorpo) e patológico, também resolve a lacuna deixada por Darwin sobre a evolução das
espécies, colocando o humano como o nível máximo de progresso, diferenciando os civilizados
dos bárbaros e selvagens – o que Foucault chamou de “zoologia das subespécies sociais” –,
1
Fonte das fotos: Google imagens (acesso fevereiro/2022).
Seria possível uma semiologia iansânica? 265
Poucos talvez confessariam em “sã consciência” numa tarde de qualquer dia da semana
em meio a atividades de trabalho ou cotidianas que se sentiriam felizes tocando, sentindo o
cheiro e o sabor dos diversos fluidos e secreções humanas como saliva, suor, lubrificação
vaginal, lubrificação peniana, porra, umidade anal e tantas outras, no entanto, durante o sexo
essas mesmas condições são, na maioria das vezes, agradáveis e excitantes, talvez estimulem
muitas das iansanidades reprimidas, ressentidas ou recalcadas que interditam a possibilidade
de ações desenfreadas em sentir o próprio corpo, em ter a consciência inconsciente dele.
Pergunto: seria possível, concebível e plausível a produção de um experimento que avalie e
analise fluidamente todas as variações fisiológicas, anatômicas, filosóficas, religiosas,
psicológicas envolvidas nas transformações que nem supomos existir no ato de se excitar e
fazer amor e/ou sexo (amorais/imorais)? É talvez, no sexo e no amor (e por isso tão perseguidos)
que o corpo seja o corpo sem utopias (ou a busca da eucorporiedade), sem fisiologias, sem
anatomias, sem economias, que o corpo se desfaça de suas camisas-de-força – o que Foucault
escreveu poeticamente e que considero a essência [poética] da iansanidade [ou da vida]:
Seria talvez necessário dizer que fazer amor é sentir o corpo refluir sobre si, é existir,
enfim, fora da utopia, com toda densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do
outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis do nosso corpo põem-se a existir,
com os lábios do outro os nossos se tornam sensíveis, diante de seus olhos
semicerrados, nosso rosto adquire uma certeza, existe um olhar, enfim, para ver nossas
pálpebras fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como a morte, sereniza a
utopia de nosso corpo, silencia-a, acalma-a, fecha-a como se numa caixa, tranca-a e a
sela. É por isso que ele é parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça de
morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o cercam, amamos tanto fazer
amor, é porque no amor o corpo está aqui (FOUCAULT, 2013b, p. 16).
espécie de energia libidinal (não somente erótico-sexual, mas também erótica e sexual) foram
contidos às custas de uma eficiência econômica e sexual, tornamo-nos recursos humanos – a
maioria menos humanos do que oicórpicos, alguns mais animais oicórpicos. Em outras
palavras, os corpos tornaram-se propriedades privadas não de um oikos como oikía
(casa/família), mas de um grande oikos em que se tornou a sociedade ou os Estados-nação. A
oikía foi deslocada para a propriedade privada, que, de certa forma, como na pólis antiga,
determina quem “governa” os outros, quem tem o poder da economia (oikonomikón). A
economia política é nada mais do que a economia doméstica, apenas o oikos que se expandiu.
O “uso dos corpos” defendido pela Anatomia e pela Fisiologia dos séculos XVIII e XIX
transformou-se em controle e vigilância dos corpos, sobretudo o “uso do sangue” foi o elemento
que ganhou contornos mais controladores e vigilantes associado a um maquinário diagnóstico
panótico. A órtese médico-diagnóstica transformou-se em prótese, cujo fetiche de ubiquidade
invadiu microscopicamente os corpos e revelou uma realidade monstruosamente perfeita cuja
estabilidade é mantida por inúmeros mecanismos cibernéticos moleculares, bioquímicos,
celulares, fisiológicos – mas que nenhum deles considera as diversas propriedades iansânicas.
As iansanidades foram paulatinamente transformadas em abjeções, o corpo se tornou um
aparelho hermeticamente fechado.
Afinal, seria possível uma semiologia iansânica? Ou seja, seria possível uma forma de
enxergar a realidade – de se apropriar de uma quantidade de realidade – e, com efeito, olhar as
corporiedades a partir de uma perspectiva não eucórpica? Quando Butler olha para os corpos
em aliança/em assembleia e nela encontra o corpo como limiar e não uma unidade (na teoria,
hermeticamente eucórpico, mas na prática, eficientemente oicórpico), abre caminho para uma
perspectiva iansânica.
O conjunto teórico produzido nesta tese permite contemplar o conflito oicorpo-eucorpo
como uma estratégia intelectual e cognitiva capaz de mobilizar as iansanidades. A
eucorporiedade é fundante da oicorporiedade. Não pretendo dar uma resposta à pergunta desta
seção; a genealogia aqui apresentada não se propõe a responder prescritivamente, propõe
corroborar o conjunto de tantas outras genealogias e pesquisas ao fornecer um diagnóstico
possível da realidade, um possível caminho para reflexão, para aberturas, para burilamentos.
Aproximações interessantes podem ser feitas com a psicanálise. Nesse campo, que tem
um amplo aspecto de semiologias, destaca-se o sujeito menos visto a partir do referencial
eucórpico. A tese de exercício recusada de Frantz Franon (Peau noire, masques blancs – Pele
negra, máscaras brancas) é um exemplo de semiologia iansânica porque critica justamente a
visão eucorporificada e ocidentalizada do sujeito dentro da psiquiatria; usa-se o próprio discurso
268 Seria possível uma semiologia iansânica?
eucórpico para criticá-lo em sua suposta universalidade. Sua tese precisou ser “medicalizada”
com doses alopáticas de positivismo, mecanicismo e disciplinamento e foi defendida com o
título Troubles mentaux et syndromes psychiatriques dans l’hérédo-dégénération spino-
cérébelleuse. Un cas de maladie de Friedreich avec délire de possession (em Lyon, 1951) [livre
tradução minha: Transtornos mentais e síndromes psiquiátricas na heredodegeneração cerebelo-
espinhal. Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão].
Pele Negra, Máscaras Brancas foi, posteriormente, publicada como livro; nele Fanon
escreve na introdução: il y a trop d’imbéciles sur cette terre [há muitos imbecis na Terra] e
continua:
Il y a trois ans que ce livre aurait dû être écrit… Mais alors les vérités nous
brûlaient. Aujourd’hui elles peuvent être dites sans fièvre. Ces vérités-là n’ont
pas besoin d’être jetées à la face des homes. Elles ne veulent pas
enthousiasmer. Nous nous méfions de l’enthousiasme.2 [Este livro deveria ter
sido escrito há três anos... Mas então as verdades nos queimavam. Hoje elas
podem ser ditas sem excitação. Essas verdades não precisam ser jogadas na
cara dos homens. Elas não pretendem entusiasmar. Nós desconfiamos do
entusiasmo3].
2
Prefácio de Pele negra, escrito por Lewis R. Gordon, p. 13.
3
Tradução de Renato da Silveira à edição brasileira de 2008, UFBA.
Seria possível uma semiologia iansânica? 269
movimento idiopático foi apresentado pelas professoras ao longo das conversas do grupo focal,
e, de certa forma, evidenciado nas respostas ao questionário online.
A despeito dos confrontos, a semiologia eucorporificada se mantém, embora com
deslocamentos. Digo idiopático porque é um modelo apaixonado, ou seja, cuja paixão e apego
a uma semiologia se mantêm; é o éthos eucórpico que condiciona a ética eucórpica, que também
é estética: a ética estética da substância, ou, em termos mais nietzschianos: uma moral
eucórpica – que julga, a partir desse éthos, tanto a ética quanto a estética. A estética aqui
entendida também como o gênero, o sexo, a cor, os desejos, ou, em outras palavras, as
iansanidades eclipsadas pela ética. Onde se veriam as iansanidades, veem-se (ou enunciam-se)
gênero, sexo, cor, desejos, enfim, corpo.
Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão
móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de "baixo" e se
distribua estrategicamente [...] a partir do momento em que há uma relação de
poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo
poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas
e segundo uma estratégia precisa (p. 360).
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APÊNDICE
Caracterização dos 31 professores e professoras que responderam ao
questionário online.
*Obrigatório
1. E-mail *
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 1/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
não possuo.
sim, especialização.
sim, mestrado.
sim, doutorado.
ensino fundamental.
ensino médio.
ensino superior.
pública.
particular.
9. Das disciplinas de Biologia apresentadas a seguir, marque, numa escala de 0 a 10, o quanto você se
sente confortável/confiante em lecionar: (0: nada confortável/confiante; 10
superconfortável/superconfiante). Começando por BOTÂNICA. *
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 2/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 3/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
15. Pensando no tema "corpo", com quais áreas da Biologia ele está associado em suas aulas? (pode
assinalar quantos itens quiser) *
Botânica
Fisiologia
Genética
Ecologia
Citologia
Bioquímica
Biofísica
Zoologia
16. Entre as diferentes áreas da Biologia que assinalou na pergunta anterior, você considera que se
trata sempre da mesma concepção de "corpo"? *
Sim, completamente.
Talvez sim, mas também talvez não (ou seja, não tenho certeza).
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 4/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
17. Você concorda que o "corpo humano" existe como realidade material? *
Sim, absolutamente.
Não, o corpo só pode ser concebido a partir do discurso biológico e a partir daí
extrapolado.
18. Nas perguntas anteriores a que você respondeu sobre o corpo, qual era a ideia que você tinha? *
Não sei dizer se para responder às perguntas considerei um corpo vivo ou não
vivo.
Pensei num modelo que não fazia diferença se estava vivo ou não para responder
às perguntas.
Outro:
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 5/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
19. Pensando nos níveis de organização de que a Biologia trata, em qual ou quais o "corpo" está
presente? *
Átomos.
Moléculas.
Células.
Tecidos.
Órgãos.
Sistemas.
Organismo.
População.
Comunidade.
Ecossistema.
Biosfera.
20. Em uma escala de 0 a 10, quanto que o corpo humano que você ensina em suas aulas você considera
que exista como realidade material? (considere 0 para "nenhuma realidade material" e 10 para "o
corpo que ensino é idêntico à realidade material". *
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
21. Das seguintes áreas, que podemos considerar transversais à Biologia, avalie numa escala de 0 a 10 o
quanto você sente segurança/confiança para propor relações e discussões nas suas aulas (0: nada
confortável/confiante; 10 superconfortável/superconfiante). Começando por ECONOMIA. *
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 6/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 7/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 8/9
23/02/2022 16:02 ** Sobre a sua experiência docente e sobre alguns conteúdos de ensino **
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
31. Se quiser escrever algo, alguma impressão sobre as perguntas, fique à vontade. Se não quiser, sem
problemas.
Formulários
https://docs.google.com/forms/d/1QP_xTw0prGt6Y3g-FsdbyvvI5ddCzlGQeTDxbsJjM28/edit 9/9