Jean M
Jean M
Jean M
Sinópse:
Depois de adotada por uma tribo de neandertais, a jovem
Ayla adapta-se à vida no seu novo clã. Mas aos 14 anos, parte
em uma aventura solitária pelo mundo. Em "O Vale dos
Cavalos", segundo volume da saga "Os Filhos da Terra", a
heroína pré-histórica viaja por uma terra hostil, de frio glacial,
povoada por feras assustadoras. Depois de vagar sozinha por
muito tempo, Ayla chega ao Vale dos Cavalos, onde encontra
refúgio e felicidade. ali, o destino lhe apresenta a Jondalar, um
macho cro-magnon como ela, que a deixa com sentimentos
divididos. Não sabe se dá ouvidos a seus medos ou se atende
aos desejos de seu corpo, o que pode alterar o destino da
humanidade. "O Vale dos Cavalos" nos transporta ao passado
remoto, até as origens de nossa espécie. Um grande sucesso
que teve milhões de exemplares comercializados em todo o
mundo, chegando às principais listas de mais vendidos do
planeta.
Os Filhos da Terra 2
Jean M. Auel
Para Karen, a primeira a ler o esboço de meus dois livros, e Àsher com amor
AGRADECIMENTOS
Além dos que se acham citados em Ayla, A Filha das Cavernas, cujos préstimos
continuaram sendo de grande valia para este novo volume da série Os Filhos Da Terra -
e aos quais permaneço muito grata - devo ainda agradecer:
Ao Dr. Denzel Ferguson e a sua equipe do Malheur Field Station na alta e desértica
região das estepes do Oregon central e mais especialmente a um Riggs. Este, dentre
várias coisas, mostrou-me como se produz fogo, como se utilizam atiradores de lança,
como são tecidas esteiras de palha e lascadas pedras para a fabricação de utensílios e
também como comprimir o cérebro de um veado - quem imaginaria isto possível! - para
tornar o seu couro numa pele macia e aveludada.
A Doreen Gandy, por sua leitura atenta, acompanhada de valiosos comentários que
me fizeram crer na originalidade desta obra E a Ray Auel, pelo apoio, incentivo e ajuda,
para não falar nas pilhas de pratos que teve de lavar.
A EUROPA PRÉ-HISTÓRICA
DURANTE A ERA GLACIAL A extensão do jelo e a mudança na linha costeira
durante dez mil anos de retraimento das geleiras, provocada por uma onda de calor na
última fase da época plistocena que vai de míl a 25 mil anos antes de nossa era.
Capítulo 1
Ayla estava morta. Pouco importava se a chuva gelada fosse como agulhadas
esfolando-lhe a pele. Rajadas violentas chicoteavam a capa de pele de urso contra as
suas pernas, enquanto se dobrava sob o vento e apertava com força o capuz de carcaju
sob o queixo. Estariam aquelas árvores lá adiante? Ela se lembrava de ter visto, mais
cedo, no horizonte, uma fileira irregular de densa vegetação e desejava ter prestado mais
atenção ou que a sua memória fosse tifo boa como a das pessoas dos clfl Ainda se
considerava como uma delas, embora nunca o tivesse sido e agora estivesse morta.
Curvou a cabeça e se inclinou à força do vento. A tempestade que viera ululando do
lado norte se abatera de repente e ela procurava desesperadamen te por um abrigo. A
caverna já ficara bastante atrás e a região lhe era desco nhecida. A lua havia completado
todo um ciclo de fases desde que partira, mas ainda não tinha idéia para onde estava
indo.
Para o norte, para o continente, além da península, era tudo que sabia. Iza dissera-
lhe na noite em que morreu, que partisse, pois Broud ao se tornar chefe acharia um meio
de feri-la.
Iza tinha acertado. Broud conseguira atingi-la muito mais do que se poderia
imaginar.
"Não era justo ele ter tirado Durc de mim", pensou Ayla. "Durc é meu filho e
tampouco tinha Broud razão para amaldiçoar-me. Foi ele quem colo cou os espíritos
enraivecidos e quem provocou o terremoto." Bom, pelo me nos desta vez ela sabia o que
a esperava. Mas tudo aconteceu tifo rápido que até mesmo o clã levou algum tempo para
compreender e fechar os olhos para ela. Só não puderam impedir que Durc a visse,
apesar de estar morta para todos.
Broud, num rompante de cólera, a amaldiçoara. Quando Brun pela primeira vez a
amaldiçoou, havia preparado o espírito das pessoas e ele teve mo tivos para proceder
assim.
Era uma coisa que todos sabiam que precisava ser feita; além disso, Brun lhe dera
uma chance de viver.
Ela levantou a cabeça e uma rajada gelada fustigou-lhe o rosto. Já anoi tecia, dentro
de pouco tempo estaria escuro. Sentia os pés dormentes. A neve derretida encharcava-
lhe os calçados de couro, apesar de forrados com capim. A vista de um pinheiro baixo e
retorcido lhe trouxe algum alivio.
Desvendilhando-se da cesta, ela subiu por uma encosta escarpada que dominava a
paisagem. Do lado do mar, as ressacas haviam esculpido blocos dentados num maciço
paredão rochoso. Um bando de andorinhas e pombos es trilou raivoso quando ela
roubou-lhe os ovos, quebrando-os e engolindo-os, ainda quentes do calor dos ninhos.
Antes de descer, enfiou mais alguns nu ma dobra de sua roupa.
Na praia, retirou os calçados e foi até a rebentação para limpar a areia dos
mexilhões apanhados nas pedras ao nível do mar. Em seguida, se dirigiu às poças,
deixadas pelas vazantes das marés, para catar as anémonas, que en colheram as suas
pétalas de mentira ao se sentirem tocadas. Às anêmonas da região, entretanto, tinham
cor e forma diferentes das que conhecia, por isso resolveu deixá-las e completar o seu
almoço com alguns mariscos que se acha vam na superfície, num ponto onde a praia
fazia uma ligeira depressão. Não acendeu nenhuma fogueira, preferiu saborear ao natural
as dádivas que o mar punha à sua disposição.
Depois de se ter fartado de ovos e frutos do mar, descansou por algum tempo no
sopé do rochedo e voltou a escalá-lo novamente, querendo obter uma melhor visão da
costa e da terra firme. Chegando ao topo, sentou-se, con tornando os joelhos com os
braços e se pôs a olhar a paisagem que se esten dia para além da baía. O vento lhe batia
no rosto, trazendo o aroma da vida copiosa desenvolvendo-se nas profundezas das
águas.
A costa meridional do continente fazia uma curva suave que levava na direção
oeste. Por trás de uma pequena fileira de árvores, ela pôde enxergar uma vasta planície
que não apresentava muita diferença da fria pradaria da península, mas não percebeu o
menor sinal de habitação humana.
"Bom, aí estão", disse a si mesma, "as terras que se acham para além da península.
E agora, Iza, para onde eu vou? Você disse que os Outros se en contravam aqui, mas
não estou vendo qualquer indício de gente." Enquanto observava a vastidão das terras
inteiramente desabitadas, os seus pensamentos voltaram para a pavorosa noite em que
Iza morreu, há três anos atrás.
- Você não é dos clãs, Ayla. Você nasceu dos Outros e pertence a eles. Você tem de
ir embora, minha filha. Precisa encontrar o seu povo.
- ir embora! Mas para onde eu iria, Iza? Eu não conheço ninguém dos Outros. Nem
sei onde iria procurá-los.
- No norte, Ayla. Vá para o norte. Há muitos deles no norte daqui... no continente,
passando a península. Você não pode ficar no clã. Broud vai achar um jeito de fazer mal
a você. Vá embora e encontre os Outros, menina. Encontre a sua gente e um
companheiro para você.
Ela não fora embora naquela ocasião. Não conseguira. Bom, e agora era a única
coisa que podia fazer. Precisava encontrar os Outros. Não havia ninguém mais e ela
estava impedida para sempre de voltar. Nunca mais tornaria a ver o seu filho.
As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Até agora ainda não tinha chorado. Quando
partiu, a sua vida estava em jogo e a dor era um luxo que não se podia permitir. Mas uma
vez a barreira das lágrimas rompida, não conseguiu mais conter-se.
- Durc. . . meu bebê - soluçava com o rosto enterrado nas mãos. - Por que Broud foi
tirá-lo de mim?
Ela chorava pelo filho, pelo clã que deixara para trás e por Iza, a única mãe que se
lembrava de ter tido. E chorava também por se ver sozinha e com medo do mundo
desconhecido que a aguardava. Mas não chorou por Creb que a amara como se ela lhe
pertencesse. Ainda não chegara o tempo. A dor era muito recente e ela não estava
pronta para suportá- la.
Quando as lágrimas se esgotaram, percebeu-se olhando fixamente para a
rebentação muito lá embaixo, a uma grande distância. As ondas se quebra vam, atirando
ao alto jatos de espuma para depois fazer torvelinhos ao redor das pedras escarpadas.
Seria tão fácil...
"Não!", pensou, pondo-se de pé. "Eu disse a Broud que ele poderia tirar o meu filho,
que poderia obrigar-me a partir e a lançar sobre mim a maldição de morte, mas que
jamais ele poderia me obrigar a morrer!”
Ela sentia na boca o gosto do sal e um meio sorriso passou-lhe pelo ros to. As suas
lágrimas sempre haviam preocupado Iza e Creb. Os olhos das pessoas dos clãs não
vertiam água, a não ser que estivessem doentes. Os de Durc também não. Ele se parecia
muito com ela, inclusive fazia os sons com a boca que ela podia emitir, mas os seus
olhos castanhos eram da raça clânica.
Rapidamente tormou a descer, e enquanto suspendia a cesta nas costas, ainda
pensava no problema de seus olhos. Seriam fracos? Ou os Outros teriam também olhos
que aguavam?
Depois um novo pensamento bateu-lhe na mente: precisava encontrar a sua gente,
encontrar o seu companheiro.
Ela se pôs a seguir a costa que rumava para oeste, passando por diversos riachos e
canais que iam ter no mar interno, até que por fim chegou às margens de um grande rio.
Pegou, então, o rumo para o norte, passando a acompanhar aquele curso de água forte e
caudaloso dirigindo-se para o interior do continente. Procurava por um ponto onde desse
para atravessá-lo. No caminho, encontrou uma fileira de pinheiros e lanços de beira de
praia, formando um bosque de árvores anãs, onde vez por outra surgia alguma de porte
gigantesco, dominando as companheiras raquíticas.
Cada vez mais ansiosa com o passar dos dias, seguia todos os meandros do curso,
acompanhando cada uma de suas curvas ou desvios. O no a estava trazendo de volta na
direção do oriente, mais ou menos no rumo nordeste. Não queria ir naquela direção.
Havia clãs que caçavam na parte oriental da península. Na sua jornada para o norte, o
plano era pegar o rumo do oeste. Não queria correr o risco de encontrar alguém dos clãs,
ainda mais com uma maldição de morte pesando sobre ela. Precisava achar uma
maneira de cruzar aquelas águas.
Quando o rio repartiu-se em dois canais, separados por uma ilha, jun cada de
pedregulhos e com alguns arbustos colando-se às rochas da praia, resolveu arriscar a
travessia. Alguns grandes blocos de pedra no canal, do outro lado da ilha, lhe davam a
esperança de que aquele ponto fosse suficiente mente raso para poder atravessar. Ela
era boa nadadora, mas não queria ter a sua cesta e roupas molhadas. Levaria muito
tempo depois para secar e as noites ainda estavam frias.
Andava de lá para cá na margem, observando a velocidade das corrente zas. Por
fim, achou que sabia onde era menor a profundidade. Tirou a roupa, empilhou tudo sobre
o cesto, que suspendeu por cima da cabeça, e entrou na água. As pedras sob os pés
eram escorregadias e a correnteza ameaçava o seu equilíbrio. A água batia-lhe pela
cintura quando estava a meio caminho do primeiro canal, mas conseguiu sem maiores
dificuldades alcançar a ilha. O segundo canal era mais largo. Não tinha muita certeza se
conseguiria cruzá-lo. Já havia, no entanto, feito a metade da travessia e não desejava
naquele pon to desistir.
Passou mais da metade, quando o rio se aprofundou e ela ficou com a água batendo
à altura do pescoço e andando nas pontas dos pés. A cesta, ela a mantinha levantada
por cima da cabeça. Subitamente, faltou o chão, a cabe ça balançou e ela, sem querer,
engoliu um pouco de água. Logo depois, já não dava mais pé e teve de apoiar a cesta
sobre a cabeça, segurando-a com uma das mãos, enquanto a outra procurava
impulsionar o corpo na direção da margem oposta. Por um instante, a correnteza a
arrastou, mas logo sentiu o fundo de pedras sob os pés, e momentos depois já estava
caminhando na margem.
Deixando o rio para trás, Ayla pôs-se novamente a caminhar pelas este pes. Como
os dias de sol eram em maior número que os de chuva, o verão aca bou impondo-se e
passando à frente dela na marcha rumo ao norte. Os brotos nas árvores e arbustos
transformaram-se em folhas e os galhos e ramos nos pi nheiros expunham agora as suas
folhas tenras, num tom ainda verde-claro. En quanto caminhava ia apanhando-as para
mastigar. Gostava de sentir o seu sabor ligeiramente travoso.
Ela caíra na rotina de viajar durante todo o dia, até o anoitecer, quando então
procurava algum córrego ou riacho para acampar por perto. A água era ainda abundante
na região.
Tanto as chuvas de primavera como o degelo nos terrenos mais ao norte estavam
fazendo os riachos transbordar, enchendo as bacias e valas que posteriormente seriam
fossos secos ou, na melhor das hipó teses, pobres córregos lamacentos. A fartura de
água era passageira. A umida de rapidamente seria absorvida, mas antes dando tempo
para a planície flores cer.
Praticamente da noite para o dia a terra cobria-se de flores nos tons mais variados:
amarelo, branco, púrpura. O azulifo e o vermelho forte existiam, mas em menor
quantidade. Vistas a distância, as cores misturavam-se ao verde, predominantemente
claro, da relva recém- brotada. Ayla se encantava com a beleza da estação; a primavera
sempre fora a época do
ano de que mais gostava.
Com a planície regurgitando de vida, ela passou a depender menos do parco
suprimento que trouxera consigo, começando a retirar, cada vez mais, o seu sustento da
terra. Isso em nada atrasava a sua marcha. Todas as mulheres dos clans, quando em
viagem, sabiam como coletar - folhas de sílex, ela limpou um galho forte de suas folhas e
brotos e lhe aguçou uma das extremidades, de modo a usá-lo como pau para
rapidamente cavar da terra as raízes e bulbos. Coletar era fácil. Não tinha ninguém para
alimentar, a não ser ela própria.
Ayla, entretanto, levava uma vantagem sobre as outras mulheres dos clans. Ela
caçava. De fato, só com funda, mas até os homens - uma vez aceita a idéia de uma
mulher caçadora - eram unânimes em admitir não haver nin guém melhor do clã com uma
funda do que ela.
Aprendera a atirar sozinha e a sua destreza com a arma lhe custara caro.
Com o reverdecer da relva e o despontar dos brotos, os esquilos, hamsters gigantes,
coelhos, lebres e grandes gerbos foram atraídos para fora de suas tocas de inverno. Ayla
voltou novamente a usar a sua funda, guardada na correia que mantinha a roupa fechada
em seu corpo. O pau de cavar também era trazido enfiado na mesma correia; já a sacola
de remédios, ela a pendurava no cinto que amarrava a roupa interior.
A comida era farta, já a lenha e o fogo eram mais difíceis de ser obti dos. Contudo,
dava para acender uma fogueira. Em geral, havia mato e peque nas árvores que
conseguiram sobreviver ao longo dos riachos sazonais, onde quase sempre também se
achavam galhos espalhados pelo chão. Quando acon tecia de encontrar madeira seca ou
estrume, ela os recolhia. Mas nem todas as noites acendia a fogueira. Muitas vezes não
dispunha de material adequado, que estava verde ou molhado, ou porque se sentisse
cansada e não quisesse se dar ao trabalho.
De qualquer modo, não gostava de dormir ao ar livre sem a proteção de uma
fogueira. A imensa planície alimentava grande quantidade de animais de pastagem que,
por sua vez, eram presas dos caçadores de quatro patas. Com o fogo, ela mantinha a
bicharada a distância. Quando estavam em viagem, era costume nos clãs um homem de
alta posição social carregar uma brasa, de modo a dar partida no fogo nos lugares em
que paravam, mas não havia lhe ocorrido trazer o material necessário à fabricação de
fogo e, agora, lem brando-se, perguntava-se por que não pensara nisso antes. Só com
um pau e uma tábua para servir de base era difícil fazer fogo, sobretudo se as
acendalhas estivessem verdes ou úmidas. Quando encontrou um esqueleto de auroque,
achou que os seus problemas estavam solucionados.
A lua havia passado por outro ciclo de fases e a primavera chuvosa co meçava a
esquentar, já num clima de princípio de verão. Ela ainda continua va caminhando pela
planície litorânea que fazia uma suave descida na direção do mar interno. Vasas levadas
pelas enchentes da estação formavam freqüen temente vastos estuários, parcial ou
completamente fechados por bancos de areia que os transformavam em lagos e lagunas
salobras.
Ela havia acampado numa região seca. Ao retomar a caminhada na manhã
seguinte, com o sol já alto no céu, deu com um lago. O aspecto era de água estagnada,
insalubre, mas o seu odre estava quase vazio. Resolveu assim mesmo tentar. Mergulhou
a mão, colheu uma amostra, mas logo cuspiu. A água estava podre e teve de tomar um
gole de seu odre para lavar a boca.
"Imagino que aquele auroque tenha bebido dessa água", disse para si mesma,
olhando para a carcaça de ossos esbranquiçados e a caveira com chifres compridos e
afunilados. Deixou então, para trás, a lagoa em meio à lúgubre paisagem, mas o
pensamento continuou voltado para a ossada branca. A caveira com os seus chifres
compridos não lhe saía da mente, aqueles cornos curvos e ocados...
Quase de tarde, fez uma parada perto de um riacho, resolvida a acender uma
fogueira para assar o coelho que caçara. Sentada sob o sol quente e gi rando um
pauzinho nas palmas das mãos contra uma tábua, pensava em Grod, desejando que ele
surgisse ali com o seu carvão aceso.
De repente, ficou de pé, meteu o pauzinho, a tábua e o coelho no cesto e voltou
correndo pelo caminho. Chegando ao lago, olhou para o crânio do auroque. Grod sempre
levava um carvão aceso acondicionado em musgos e liquens dentro de um chifre de
auroque. Se tivesse um, ela também poderia carregar fogo para onde quer que fosse.
Dando puxões no chifre para arrancá-lo, sentia um certo peso na consciência. Às
mulheres dos clãs não transportavam fogo. Isso não era permitido. "Mas, se não for eu,
quem irá carregar fogo para mim?", pensou, dando um safanão forte e desprendendo o
chifre. Em seguida, foi embora depressa, como se o simples pensamento da coisa
proibida fosse capaz de fazer surgir uma multidão de olhares reprovadores.
Houve épocas em que a sobrevivência dependera da adaptação a um modo de vida
estranho à sua natureza. Agora, dependia de sua capacidade de superar os
condicionamentos da infância e pensar por si mesma. O chifre de auroque foi apenas o
primeiro passo na busca da sobrevivência.
No entanto, transportar fogo dava mais trabalho do que imaginara. Pela manhã,
procurou por musgos secos para enrolar o carvão. Mas essa coisa, que não tinha a
menor dificuldade em encontrar nos terrenos bem reflorestados da caverna, não existia
nos campos abertos e secos. Por fim, resolveu que ti nha de contentar-se com capim.
Para sua tristeza, o carvão estava apagado quando foi novamente sentar o seu
acampamento. Sabia que era possível reavivar uma brasa. Estava acostumada a abafar
as fogueiras para que estas durassem a noite inteira. O conhecimento, ela o possuía,
mas foram precisos muitos carvões apagados e muitas tentativas, até que descobrisse o
jeito de preservar o fogo e carregá- lo de um acampamento para outro. O chifre de
auroque também ia amarrado na correia em sua cintura.
Ayla sempre acabava descobrindo meios de cruzar a pé os riachos que lhe
atravessavam pelo caminho. No entanto, o rio com que agora se defron tava era
extremamente largo. Era preciso encontrar alguma outra solução. Há dias o vinha
seguindo na contracorrente. O curso, porém, dobrava, indo de volta para o nordeste e
jamais a largura entre as margens diminuía.
Embora acreditasse estar fora dos territórios freqüentados pelos clã não desejava
pegar o rumo do leste. Isso significava voltar para eles. Não po dia regressar, não queria
ir naquela direção e tampouco podia ficar acampa da ao lado do rio, em pleno campo
aberto. Tinha de atravessar, não lhe res tava nenhuma outra alternativa.
Achava que poderia conseguir - sempre fora boa nadadora - mas não com uma
cesta sobre a cabeça, onde carregava todos os seus objetos nes te mundo. Os seus
preciosos bens, esse era o problema.
Havia armado uma pequena fogueira e se sentou ao lado, abrigada por uma árvore
caída, cujos galhos desfolhados se banhavam na água. O sol da tarde cintilava no fluxo
rápido e constante das correntezas. De vez em quando, passavam boiando alguns
detritos. A cena fazia-a lembrar do riacho que corria perto da caverna e que ia
desembocar no mar interno, onde faziam as suas pescarias de esturjões e salmões.
Sentia prazer em nadar naquelas ocasiões, apesar de Iza ficar preocupada. Ela não se
lembrava de como havia aprendido a nadar, parecia-lhe que era uma coisa que sempre
soubera fazer.
"Não podia entender por que ninguém, a não ser eu, gostava de na dar", disse
consigo. "As pessoas me achavam esquisita por isso. . . bom, até o dia em que Ona
quase morreu afogada.”
Lembrava-se de que todo mundo, então, tinha ficado agradecido a ela por ter salvo a
vida da garota. Brun, inclusive, chegou a ajudá-la a sair da água. Naquele dia, teve a
grata sensação de se ver acolhida como se de fato fizesse parte do clã. Então, não
importaram pernas longas e retas, corpo es guio, cabelos louros, olhos azuis e testa alta.
Depois disso, algumas pessoas no clã resolveram aprender a nadar, mas não
conseguiam boiar direito e ficavam com muito medo quando perdiam o pé dentro da
água.
"Será que Durc conseguiria aprender? Ele nunca foi tão pesado como os bebês dos
clãs.
Também nunca será tão musculoso quanto a maioria dos ho mens. Acho que
conseguirá.
"Mas, quem iria ensinar? Eu não estou lá e Uba não sabe. Ela cuidará de Durc e
gosta tanto dele quanto eu, só que não sabe nadar. Brun também não. Caçar sim, isso
ele pode ensinar.
E também poderá protegê-lo. Não irá deixar Broud fazer mal ao meu filho. Ele
prometeu. . .
mesmo naquele mo mento em que era obrigado a não me enxergar. Brun foi um
bom chefe, mui to diferente de Broud...
"Será que Durc começou a se formar dentro de mim por causa de Broud?" Ela
estremeceu com a lembrança de Broud forçando-a. "Iza havia dito que os homens só
faziam aquilo com mulheres de que gostavam, mas Broud fez comigo porque ele sabia o
quanto eu detestava a coisa. Todo mun do diz que são os espíritos dos totens que geram
os bebês. Mas nenhum homem tinha um totem com força bastante para derrotar o meu
Leão da Caver na. Eu só fiquei grávida depois que Broud começou a me forçar e todos fi
caram muito admirados.
Ninguém podia imaginar que eu fosse ter um bebê...
"Gostaria de poder ver Durc crescido. Ele já é bem alto para a sua ida de. Nisso, me
puxou.
Irá ser o homem mais alto do clã. Tenho certeza de que. . - "Não! Não estou certa de
nada. Só sei que jamais voltarei a ver Durc. "Pare de pensar nele", ordenou-se,
enxugando uma lágrima. Em segui da, se levantou e caminhou até a beirada da água.
"De nada adianta pensar nele e não será isso que me vai ajudar a atravessar o rio.”
Achava-se tão distraída com os seus pensamentos que nem notara uma tora
parecida a uma forquilha boiando perto da margem. Com os olhos fixos e indiferentes
olhava os galhos da árvore caída aprisionarem no emaranhado de suas ramas o tronco
que por longos momentos ficou dando encontrões e lutando para desvencilhar-se.
Quando por fim teve a atenção despertada, as possibilidades de uma tora como aquela
surgiram-lhe diante dos olhos.
Ela foi até o banco de areia e arrastou a tora para a margem. Era a par te de cima
do tronco de uma árvore de porte avantajado que devia ter sido recentemente partido
pela enchente do rio, em algum ponto perto da cabe ceira. A madeira ainda não se
achava muito encharcada.
Com uma machadinha que guardava numa dobra de sua roupa, ela podou o galho
maior da forquilha, de modo a igualá-lo com o outro, e depois limpou-os das ramas
menores, deixando dois tocos relativamente compridos.
Após dar uma olhada rápida a sua volta, se dirigiu a um grupo de vidoeiros que
tinham os seus galhos revestidos de cipós. Com um puxão forte, conseguiu desprender
uma corda comprida e resistente. Enquanto voltava foi arrancando as folhas. Estendeu no
chão o pano de couro que carregava na cesta. Já era tempo de fazer o inventário de seus
pertences e dar uma nova arrumação na cesta.
Por baixo de tudo, botou as perneiras e as luvas, junto com a roupa forrada de pele,
já que agora usava o traje de verão. Até a chegada do inverno não iria precisar dessas
coisas. Por um momento, ficou parada. Onde será que ela estaria no inverno? perguntou-
se. Bom, não iria preocupar-se com isso agora. Quando pegou a manta de couro macio
que usava para firmar Durc em seus quadris, ficou novamente parada por alguns
instantes.
Ela não precisava da manta. Não era uma peça necessária à sua sobrevivência. Só
a trouxe porque era uma coisa que havia estado em íntimo contato com ele. Ela encostou
o couro no rosto, depois dobrou-o com cuidado, tornando a guardá-lo na cesta. Por cima,
botou as tiras de couro absorvente que trouxera para usar durante as menstruações. Em
seguida, guardou o par extra de calçados. Estava andando descalça, mas quando chovia
ou fazia frio, punha um outro, já velho e bastante gasto. Fora uma boa coisa ter trazido
dois pares.
O próximo passo foi fazer o levantamento da comida de que dispunha. Ainda havia
um pote com açúcar de ácer. Ela abriu e botou um torrão na boca. Será que algum dia
ainda comeria açúcar quando este tivesse acabado? Era o que se perguntava.
Ainda dispunha de uma certa quantidade de bolos de viagem, daqueles que os
homens levavam em suas caçadas e feitos de farinha de carne seca, misturada com
gordura derretida e frutas secas. A lembrança de um bom toucinho gordo botou-lhe a
boca cheia de água. Os animais que matava tinham poucas partes gordas. Se não
fossem os legumes e verduras que colhia, acabaria aos poucos morrendo de fome com
um regime quase exclusivamente à base de proteínas. Gordura e carboidratos são de
certa forma necessários.
Meteu os bolos de viagem na cesta, resistindo à tentação de comer um. Ficariam
para ocasiões mais prementes. Depois guardou algumas tiras de car ne seca - duras
como couro, mas nutritivas - umas tantas maçãs, um pu nhado de avelãs, algumas
sacolas com cereais provindos das planícies perto da caverna, e atirou fora uma raiz
podre. Por cima da comida, botou uma cuia e uma bacia, o capuz de carcaju e os
calçados velhos.
Desatou da correia de sua cintura a sacola de remédios e esfregou-a, limpando o
pêlo lustroso e impermeável do couro de lontra, sentindo sob os dedos os ossos do rabo
e dos pés. O cordão que fechava a sacola era enfia do ao redor da abertura do pescoço,
e a cabeça do bicho, singularmente cha ta, fora deixada presa atrás do pescoço, como
uma aba que servia de tampa.
A sacola tinha sido feita por Iza, que lhe deu quando ela se tornou a curandeira do
clã. Era um legado de mãe para filha.
Pela primeira vez, então, depois de muitos anos, Ayla recordou-se de outra sacola
de medicamentos, também feita por Iza, a que Creb queimou quando ela recebeu a sua
primeira maldição. Brun fora, naquela ocasião, obrigado a amaldiçoá-la. As mulheres são
proibidas de pegar em armas e ela, já há tempos, vinha atirando com uma funda. Brun,
no entanto, havia permitido a sua volta. Era uma chance que ele lhe dava no caso de que
ela sobrevivesse.
"Talvez ele tenha me dado muito mais chance do que imagina", pensou. "Não sei se
ainda estaria viva se não tivesse aprendido o quanto uma maldi ção de morte faz a
pessoa ter vontade de realmente viver. Se não fosse por Durc, acho que da primeira vez
foi mais duro.
Quando vi Creb queimando tudo que era meu, a minha vontade era de morrer.”
Até então, ela ainda não tinha podido pensar em Creb. A dor era mui to recente e o
sofrimento ainda bastante vivo. Havia amado igualmente os dois: o velho feiticeiro e Iza.
Creb e Brun eram ambos germanos de Iza. Como tivera um braço amputado e
possuísse só um olho, Creb jamais caçara em sua vida, mas assim mesmo foi o homem
mais reverenciado de todos os clãs. Ele era o Mog-ur, temido e respeitado - com o seu
rosto marcado por cicatrizes e a falta do olho - capaz de inspirar medo ao mais corajoso
dos caçadores. Ayla, entretanto, conhecia o lado gentil de sua natureza.
Creb a tinha protegido, olhado por ela e a amado como a filha da companheira que
nunca teve. No caso de Iza, ela tivera tempo para acostumar-se com a idéia de sua
morte, acontecida há três anos atrás, e quanto a Durc, embora sofresse com a
separação, sabia que ele estava vivo. Mas por Creb ainda não chorara. Subitamente,
toda a dor que vinha guardando no peito, desde o terremoto que o matara, explodiu e
gritou alto o seu nome.
- Creb! Oh, Creb, por que você foi entrar na caverna? Por que teve de morrer?
Era um soluçar forte que abafava com a sacola de pele de lontra. En tão, vindo lá do
fundo de seu ser, subiu-lhe à garganta uma lamúria aguda e sentida que a ninava,
embalando-lhe a angústia, a dor e o desespero. Mas, ali, não havia uma pessoa querida
para se juntar ao seu pranto e solidarizar-se com a sua desgraça. Sofria sozinha e sofria
por estar só.
Quando, por fim, cessaram os lamentos, se sentia esgotada, mas alivia da. Passado
algum tempo, foi até o rio e lavou o rosto. Em seguida, meteu a sacola de medicamentos
na cesta.
Não precisava vistoriar o seu conteúdo, pois sabia exatamente o que havia dentro.
Passou a mão na madeira de cavar, mas subitamente a atirou longe. No lugar da dor
surgiu a raiva que fortalecia o seu espírito de determinação. "Não! Broud não me fará
morrer.”
Respirou fundo e se obrigou a continuar a arrumar a cesta. Jogou no seu interior o
chifre de auroque e os materiais que usava como acendalhas. A medida seguinte foi
esvaziar as dobras da sua roupa, retirando uma série de ferramentas e pedras que lá
guardava. De uma das dobras, sacou uma pedra redonda que atirou ao alto e tomou a
pegar. Qualquer pedra de certo tamanho servia para ser lançada com funda, mas a
pontaria se fazia com maior precisão quando as pedras eram redondas e lisas. Guardou
as poucas que tinha.
O próximo objeto foi a funda, uma tira de couro de veado, com um bo jo no meio,
onde se firmava a pedra e com as extremidades em ponta que, no caso, estavam já
retorcidas pelo uso. Guardou-a, pois isso estava fora de qual quer cogitação. Por fim,
desatou um comprido cordão de couro que se enredava pela sua vestimenta de pele de
camurça, de modo a produzir as mui tas dobras onde carregava coisas. A roupa se
desmontou e ela ficou nua, ape nas com um saquinho pendurando-se num cordão
passado ao redor do pesco ço. Era o seu amuleto. Com um ligeiro calafrio, ela o retirou
pela cabeça. Sen tia-se mais nua sem o amuleto do que sem a roupa. Os pequeninos
objetos duros que levava dentro do saquinho lhe davam confiança.
Bom, ali se achava a soma total de seus bens. Tudo quanto precisava para
sobreviver: os seus utensílios e mais conhecimento, capacidade, experiên cia, força de
vontade, inteligência e coragem.
Rapidamente, enrolou na roupa o amuleto e as ferramentas, colocando tudo dentro
da cesta, que embrulhou na pele de urso e amarrou com o cordão comprido tirado da
vestimenta.
Para completar, envolveu a trouxa com o couro de auroque da barraca, a qual, com
o cipó, atou à tora em forma de for quilha.
Por alguns momentos, ficou olhando para o rio, pensando no seu totem, depois
chutou areia para cima da fogueira e meteu a tora, com o seu precioso patrimônio no rio,
a jusante da galhada da árvore. Alojando-se na extremidade da forquilha, ela agarrou os
dois tocos da frente e se lançou com a sua jan gada às águas, ainda geladas do degelo.
Ofegando, quase sem poder respirar, o seu corpo foi ficando insensível, à medida que se
acostumava com a tem peratura. A correnteza apoderou-se da tora, tentando cumprir a
sua missão de levá-la ao mar. As ondas a sacudiam, mas os dois galhos da forquilha não
a deixavam virar. Batendo vigorosamente com os pés, Ayla valia-se de todas as suas
forças na tentativa de varar as correntezas e dirigir-se para a margem oposta.
O avanço era de uma lentidão angustiante. Cada vez que ela olhava para o outro
lado do rio, estava mais distante do que supunha. A sua velocidade era muito maior no
sentido do rio abaixo do que no da margem pretendida.
O rio a carregava para um ponto muito distante daquele que pensava iria aportar.
Sentia-se cansada e o frio abaixava perigosamente a temperatura de seu corpo. Ela
tremia. Os músculos doíam. Era como se fosse ficar eternamente batendo pernas com
pedras atadas aos seus pés.
Exausta, ela acabou se rendendo à força inexorável da correnteza. O rio passou,
então a ter o comando das ações, arrastando-a de volta na direção da corrente, com ela
desesperada, agarrando-se aos dois tocos, sem conseguir manter o controle de seu
arremedo de jangada.
À frente, o curso do rio mudava. Deixava de seguir na direção sul para fazer uma
curva abrupta e pegar o rumo oeste, contornando uma ponta de terra. Ela já havia
percorrido três quartos do percurso, através da torrente vertiginosa, até que se deixou
vencer pelo cansaço.
Mas, então, avistando a praia rochosa do outro lado, numa atitude de firme
determinação, voltou outra vez a ter o controle da situação.
Lutava para continuar batendo as pernas e chegar em terra, antes que o curso
fizesse a volta. Ia com os olhos fechados, inteiramente concentrada nas batidas, até que,
de repente, foi despertada por um solavanco e sentiu que o tronco raspava contra o chão,
parando.
Ela não conseguia mexer-se. Meio submersa, deixou-se ficar deitada, com as mãos
agarradas aos dois tocos. Nisso, uma violenta onda veio desprender a tora das pedras,
enchendo-a de pânico. Foi, então, que se obrigou a ficar de joelhos e a empurrar o
tronco, até conseguir encalhá-lo na praia. Feito isso, voltou ao rio.
Era-lhe impossível permanecer dentro da água por muito tempo. Tremendo
convulsivamente, engatinhou até o banco de areia para tentar desatar os nós do cipó
que, depois de muita peleja, acabaram soltando-se. Com as mãos tremendo, arrastou a
trouxa na direção da praia. Os nós da correia ainda mostravam-se mais difíceis de serem
desatados.
A providência veio em seu socorro. A tira de couro desgastara-se num determinado
ponto, permitindo que ela a arrebentasse e pusesse a cesta de lado. Apanhou então a
pele de urso, enrolando-a no corpo. Quando final mente parou de tremer, já estava
dormindo.
Após a perigosa travessia, ela tomou a direção norte, desviando-se li geiramente
para o ocidente. Os dias de verão iam esquentando, enquanto ela batia os terrenos das
estepes à procura de algum indício de vida humana. As flores que haviam abrilhantado a
curta primavera murcharam e o pasto, agora, chegava à altura da cintura.
A sua alimentação se viu acrescida de alfafa, trevo e o amendoim, ligeiramente
adocicado e rico em amido, que encontrava seguindo o rastro de suas ramas espalhadas
pela superfície. Os astrágalos, além das raízes, a presen teavam com as vagens cheias
de suas sementes verdes e ovaladas, e ela não ti nha a menor dificuldade em distinguir
as variedades comestíveis das outras venenosas. O tempo do florescimento dos
hemerocales passou, mas as suas raízes continuavam tenras e suculentas. Algumas
groselhas baixas amadure cidas precocemente, começavam a mudar de cor e havia
sempre verduras frescas; mostardas, urtigas e diferentes variedades de quenopódios.
Não faltavam alvos para a sua funda. A planície estava repleta de cas tores,
esquilos, grandes gerbos, lebres marrons - no inverno brancas - e ocasionalmente algum
hamster gigante, um animal onívoro, caçador de ratos. Os galináceos de vôo rasteiro e as
perdizez constituíam-se num banquete es pecial. Ayla, entretanto, jamais conseguia
comer uma ptármiga sem se lembrar de que essa ave gorducha, de plumagem nos pés,
era a favorita de Creb.
Mas esses eram animais pequenos. Havia outros que também se regala vam com a
magnificência da planície no verão. Ela via extensas manadas de cervos: gamos
vermelhos, renas e os gigantescos veados de enormes galhadas; bandos compactos de
cavalos e de onagros - um e outro muito parecidos; imensos bisões e, de vez em quando,
uma família inteira de antílopes-saigas cruzava-lhe o caminho. O gado selvagem de
couro marrom- avermelhado - com touros atingindo dois metros de altura - vinha
acompanhado dos bezerros, nascidos na primavera e mamando nos volumosos úberes
das vacas. A boca de Ayla enchia-se de água pensando no gosto da carne tenra dos
bichi nhos ainda alimentados a leite. Mas a sua funda não era arma para matar au-
roques. Um bando de mamutes lanosos passou na sua habitual romaria ao norte e uma
falange de bois almiscarados, com as crias na retaguarda, enfren tava galhardamente
uma alcatéia de lobos. Muito cautelosamente, ela evitou uma família mal-encarada de
rinocerontes lanosos. "O totem de Broud", pensou, e muito apropriadamente.
O terreno, à medida que ela caminhava cada vez mais para o norte, começou a
apresentar mudanças. Passou a ficar mais seco e estéril. Ela havia atingido os bem
definidos limites no nordeste, das úmidas e nevoentas estepes continentais. Para além,
seguida sempre dos íngremes paredões das colossais geleiras, ficava a árida planície de
loesse, uma paisagem que existiu ao tempo das grandes massas de gelo sobre a Terra,
durante o período glaciário.
As geleiras, vastos lençóis de gelo que atravessavam o continente de la do a lado,
se difundiam pelo hemisfério norte. Quase um quarto da superfí cie da Terra achava- se
soterrado sob o peso incomensurável e esmagador do gelo. A água, então fechada em
prisões, fazia com que se abaixasse o nível nos oceanos, ampliando as costas e
modificando a forma da Terra. Nenhum rincão do globo estava isento da influência das
geleiras. As chuvas inundavam as re giões equatoriais e os desertos se encolhiam, mas
era na orla do gelo que os efeitos se faziam mais sentir.
Toda essa imensa vastidão gelada necessariamente tinha de esfriar o ar, tornando a
atmosfera úmida que se condensava e caía na forma de neve. Entretanto, mais para
perto do centro, a alta pressão se estabilizava, criando uma temperatura extremamente
fria e seca que empurrava a nevasca para os bor dos, onde se expandiam as
monumentais geleiras. O gelo se fazia praticamente uniforme em toda a sua extensão,
um verdadeiro lençol com espessura que chegava a atingir bem mais de um quilômetro e
meio.
Com a neve caindo sobre o gelo e alimentando as geleiras, a terra, ime diatamente
ao sul delas, era seca e gélida. A pressão alta e constante sobre o centro causava a
queda atmosférica, canalizando o ar frio e seco para pressões mais baixas. O vento
soprando do norte jamais parava nas estepes. Ape nas a sua intensidade variava. No seu
caminho, ele levantava o pó das rochas pulverizadas nos limites variáveis das geleiras
trituradoras. As partículas vindas no ar iam sendo peneiradas até chegar a uma textura
pouquinha coisa mais grossa do que a poeira da argila. Isso era o loesse que se
depositava por várias centenas de quilômetros e adquiria uma profundidade de muitos
metros, até que se transformava no próprio solo.
No inverno, as ventanias ululantes açoitavam espalhando a pouca neve que caía
nessas paragens frias e desoladas. A Terra, contudo, prosseguia girando em torno de
seu eixo inclinado e as estações continuavam se revezando. Bastava uma média anual
de temperatura, apenas alguns graus mais baixos, para desencadear a formação de uma
geleira.
Poucos dias de calor de nada adiantavam, se não fossem suficientes para alterar a
média.
Na primavera, a crosta da geleira esquentava e a parca neve que caía se d filtrando-
se livremente pelas estepes. A água amaciava suficientemente o solo, acima da camada
de permafrost, para que nele brotassem gramíneas e plantas de raízes pouco profundas.
O pasto crescia rápido, como se no seu coração as sementes soubessem que a vida
seria curta.
Quando o vergo chegasse pela metade, o feno já estaria alto e seco, era uma
pradaria sem fim, com uns poucos bolsões de tundra e floresta boreal, espalhados nas
cercanias dos oceanos.
Nas regiões próximas à orla do gelo, onde a cobertura de neve era peque na, havia
forragem no ano inteiro para milhares de animais de pastagem que se haviam adaptado
às temperaturas glaciais e também para os carnívoros que se adaptam a qualquer clima,
contanto que não lhes faltem presas. Assim é que se podia ver um mamute pastando ao
pé de um pared de gelo, alçando o seu brilho azulado a quase dois mil metros de altura.
Os rios e córregos alimentados pelo degelo cortavam a espessa camada de loesse
ou de rocha sedimentária, resultante dos cristais da plataforma granítica no do continente.
Profundas ravinas e desfiladeiros cortados por rios eram comuns naqueles
descampados. Os rios supriam de umidade e os desfiladeiros eram uma proteção contra
os ventos. Até mesmo na planície de loesse existiam vales verdes.
A estação esquentava, e, à medida que os dias se sucediam, Ayla cada vez mais ia
ficando cansada de sua vida itinerante, da monotonia da planície, do sol impiedoso e do
vento constante. A sua pele estava grossa, rachada e descascando. Os lábios gretados,
os olhos ardendo e a garganta sempre em poeirada. Vez por outra, ela encontrava algum
vale, atravessado por um rio, mais verde e arborizado do que as estepes, nenhum porém
a prendendo por muito tempo. Todos estavam vazios de vida humana.
Embora o céu quase sempre estivesse claro, a busca infrutífera a deixava temerosa
e preocupada. A terra era governada pelo inverno. Mesmo nos dias mais quentes de
verão, a lembrança do frio glacial estava presente no espírito. Era preciso que a comida
fosse armazenada e um abrigo encontrado para que pudesse sobreviver à longa e cruel
estação Desde o princípio da primavera que vinha caminhando, e começava a imaginar
se não estaria fadada a ficar eternamente rodando pelas estepes, ou então quem sabe,
acabar morrendo apesar de todos os esforços.
No fim de um dia exatamente igual ao de todos os outros, ela acampara numa
região sem água. Havia matado um animal, mas o carvão estava apagado e a lenha era
cada vez mais rara. Sem se dar ao trabalho de acender uma fo gueira, deu algumas
dentadas na carne crua.
Estava sem apetite. Jogou fora o resto da marmota, apesar da caça também rarear.
Talvez não tivesse reparado ainda nesse fato. A coleta também se mostrava difícil. O solo
estava duro, coberto por uma vegetação velha e emaranhada. O vento era uma
constante.
Dormiu mal, assediada por pesadelos, e acordou inquieta. Não tinha nada para
comer. Até mesmo a marmota que atirara fora havia desaparecido. Tomou um gole de
água que tinha gosto insípido, parecendo choca. Arrumou a cesta e se pôs a caminho,
rumando para o
norte.
Por volta do meio do dia, encontrou o leito de um rio com algumas po ças dágua. O
seu sabor era acre, mas encheu assim mesmo o odre. Desenterrou algumas raízes de
taboa, viscosas e molengas, e foi mastigando-as, enquanto caminhava com passos
cansados.
Não tinha vontade de prosseguir, mas não sabia o que mais poderia fazer. Sem
ânimo, inteiramente apática, não se dava muito conta da direção por que estava indo. Só
reparou num bando de leões esquentando-se ao sol, quando ouviu um rugido
ameaçador.
O medo se apossou dela, despertando a sua consciência. Retrocedeu no caminho e
tomou o rumo do leste, evitando o território dos leões. Já havia caminhado o suficiente na
direção norte. Era o espírito do Leão da Caverna que a protegia e não o animal na sua
forma concreta.
Só pelo fato dele ser o seu totem, não significava isso que ela estivesse a salvo de
seus ataques.
Na verdade, fora justamente por causa do ataque de um leão que Creb descobriu o
seu totem. Ela ainda conservava na coxa esquerda a cicatriz na forma de quatro riscas
paralelas e, volta e meia, tinha pesadelos com uma gigantesca garra de leão tentando
infiltrar-se por uma fenda, onde ela se havia escondido, quando era uma menina de cinco
anos. Lembrava-se de ter so nhado com aquela pata na noite anterior. Creb lhe dissera
que ela fora posta à prova para que soubesse se era digna ou não de seu totem e que
fora marcada pelo animal para provar que ele a escolhera.
Instintivamente, ela levou a mão à perna, sentindo o sinal na pele. "Uma coisa que
eu gostaria de saber é por que o Leão da Caverna me escolheu", pensou.
A luz do sol ofuscava-lhe a vista, enquanto vagarosamente subia por um aclive, à
procura de um lugar onde pudesse instalar-se. Outra vez, terras secas. Em todo caso,
sentia-se satisfeita por ter o odre cheio, Mas, dentro de pouco tempo, teria de encontrar
água. Estava cansada e com fome, e também aborre cida por causa de seu descuido.
Não deveria ter chegado tão perto dos leões da caverna.
Seria um aviso? Um modo de dizer que é apenas uma questão de tem po? Que no
fim acabaria morrendo? Com que direito pensou que poderia es capar de uma maldição
de morte?
A luz no horizonte era tão brilhante que ela por pouco não viu a desci da repentina
que fazia o platô onde se achava. De pé sobre a beirada e abri gando os olhos com a
mão, viu embaixo uma ravina. Era um pequeno rio de águas luminosas e flanqueado por
árvores e plantas de porte médio. Passada uma garganta de paredões rochosos,
estendia-se um vale verde, fresco e bem abrigado. Lá embaixo, a uma certa distância, no
meio do campo, os últimos raios de sol incidiam sobre uma manada de cavalos
pacificamente pastando.
xxx - IN/Jas então, Jondalar, por que você resolveu vir comigo? - perguntou um
rapaz de cabelos castanhos, enquanto des montava uma barraca feita de diversos panos
de couro amarrados uns aos ou tros. - Você disse a Marona que ia apenas visitar Dalanar
e me mostrar o ca minho. A sua intenção era só a de fazer uma pequena viagem, antes
de insta lar-se na sua casa. Esperava-se que você fosse à Reunião de Verão com os Lan
zadonii e chegasse a tempo aindapara o matrimônio. Ela vai ficar furiosa e n sou eu quem
gostaria de ter a raiva daquela mulher voltada contra mim. Tem certeza de que não está
simplesmente querendo fugir dela? - o tom de Thonolan era despreocupado, mas a
expressão séria de seus olhos estava carre gada de intenções.
- O que faz você pensar, meu irmão, que seja o único na família com vontade de
viajar? Não estava imaginando que eu iria deixá-lo ir sozinho, não é? Isso nunca. Alguém
tem de ir junto, porque senão quem na sua volta iria vigiar as lorotas e o mundo de
histórias que iria contar? Além do mais, al guém tem de ir para livrá-lo das encrencas -
falou um homem alto e louro, enquanto abaixava-se para entrar na barraca.
Dentro, havia altura suficiente para se ficar confortavelmente sentado, ou de joelhos,
mas não de pé. O espaço também era suficientemente grande para acomodar os sacos
de dormir e a tralha que carregavam. A barraca era susten tada por três paus enfileirados
no centro e, no meio, próximo do varão mais alto, havia um buraco com uma aba que
podia ser fechada quando chovesse ou aberta para deixar escapar a fumaça, se
quisessem armar uma fogueira. Jondalar arrancou os paus e saiu de rastro pela abertura,
trazendo-os para fora.
- Ora, você me livrar de encrencas. . . - disse Thonolan. - Eu é que vou precisar de
quatro olhos, dois na frente e dois at para ver o que vem vindo por aí no seu encalço.
Espere e verá o que vai acontecer quando Marona descobrir que você não foi com
Dalanar e os Lanzadonii à Reunião de Verão. Para agarrá-lo, Jondalar, essa mulher é
capaz até de transformar-se numa donii de asas e sair voando por cima das geleiras - os
dois juntos começaram a dobrar a barraca. - Não é de hoje que aquela ali anda de olho
em você. E logo agora que pensava que conseguira pegá-lo, você arruma uma viagem
para fazer, Jon dalar? Está me parecendo que arranjou essa desculpa só para não enfiar
a mão no laço que o zelandoni iria apertar. Será que o meu irmão é daqueles que têm
medo de matrimônio? - eles puseram a barraca junto dos dois baús que carregavam às
costas. - A maioria dos homens de sua idade já está com casa e um ou dois filhos -
acrescentou Thonolan, esquivando-se do soco que o ir mão fmgia querer-lhe dar. Ele
agora se abriu num amplo sorriso que lhe ilumi nava os olhos cinzas.
- A maioria dos homens de minha idade! Olha quem fala. Eu sou só três anos mais
velho do que você - falou Jondalar, fingindo raiva. Então, de modo inteiramente
inesperado, por isso mesmo ainda mais surpreendente, ele soltou uma sonora
gargalhada, franca, cheia de espontaneidade.
Ver os dois irmãos era como ver a noite e o dia. Thonolan, o mais baixo e de
cabelos castanhos, era de temperamento mais afável. Tinha natureza calo rosa e um riso
fácil e contagioso que rapidamente o tomava numa pessoa que rida. Já Jondalar, mais
sério, estava freqüentemente com a testa franzida, nu ma atitude de concentração, ou
talvez na de um homem preocupado. O seu ri so era também fácil, principalmente se
perto do irmão, só que poucas vezes 1 2 28 29 na em voz alta, mas quando o fazia, o
abandono era total e de forma comple tamente inesperada.
- E como você pode garantir que a Marona já não tem um filho para le var à minha
casa quando voltarmos? - perguntou Jondalar, enquanto os dois enrolavam um pano de
couro que tanto servia para forrar o chão como para armar uma barraca menor, só de um
varal.
- E como você pode garantir que ela não tenha resolvido que o meu es quivo irmão
seja o único homem digno de seus encantos? A Marona realmente sabe agradar um
homem. . isto é, quando ela quer. Mas aquele seu gênio... Até agora você foi o único que
já conseguiu manobrá-la. Bem sabe Dom que há uma quantidade de homens por aí que
gostaria de apanhá-la, com mau gênio e tudo - os dois achavam-se de frente um para o
outro, com o pano de couro entre eles. - Por que você não pega Marona para
companheira, Jonda lar? Há anos que todo mundo espera por isso.
Thonolan falava sério. Os olhos muito azuis de Jondalar ficaram confu sos e ele
franziu a testa.
- Talvez seja porque todo mundo esteja esperando - respondeu. - Eu não sei,
l'honolan. Para ser franco, eu também espero que isso um dia aconte ça. Quem mais
poderia eu ter para companheira?
- Quem? Ora, Jondalar, qualquer mulher que você quisesse. Em todas as cavernas
não há uma só mulher sem companheiro. Não existem muitas, mas qualquer uma, ao
primeiro aceno seu, sairia correndo para atar o nó com Jon dalar dos Zelandonii, irmão de
Joharran, chefe da Nona Caverna, para não mencionar que é irmão de 'flionolan, o
ousado e corajoso aventureiro.
- Você esqueceu de dizer filho de Marthona, a chefe anterior da Nona Caverna, e
irmão de Folara, a bela filha de Marthona, ou que ainda o será quando crescer - Jondalar
deu um sorriso. - Se você pretende citar todas as minhas relações, não se esqueça
também de falar
nos abençoados de Doni.
- E quem poderia se esquecer deles? - disse Thonolan, pegando os sa cos de
dormir. Eram feitos de duas peles cortadas de modo a servir para uru homem adulto, e
amarradas dos lados e no pé com um cordão na abertura para ser puxado. - De que
estávamos mesmo falando? Até Joplaya, eu acho que gostaria de você para
companheiro, Jondalar.
Os dois começaram a arrumar os baús. Era como se fossem caixotes du ros, com a
parte superior mais estreita, feitos de couro cru, preso em ripas de madeira e seguros por
correlas que se ajustavam ao ombro através de uma fi leira de botões esculpidos em
marfim. Os botões eram presos passando uma tira de couro por um único buraco central
e se atando a urna outra tira com um nó na frente que tornava a passar pelo mesmo
buraco e a entrar no seguinte.
- Você sabe que dela eu não posso ser companheiro. Joplaya é minha prima. E além
do mais, você não devia levá-la muito a sério. Joplaya gosta muito de provocar. Ficamos
bons amigos quando fui viver com Dalanar para aprender o meu ofício. Ele ensinava a
nós dois ao mesmo tempo. Ela é uma das melhores talhadoras de pedra que conheço.
Mas nunca lhe diga que fiz esse elogio. Nós estamos sempre competindo e ela me iria
jogar isto na cara.
Jondalar apanhou uma pesada sacola onde guardava a suas ferramentas e alguns
pedaços de silex. O seu pensamento estava em Dalanar e na Caverna que ele havia
fundado. Os Lanzadonii estavam aumentando. Cada vez mais gente se unia a eles e as
famílias começavam a expandir-se. "Dentro de pouco tempo já existirá uma Segunda
Caverna de Lanzadonil", pensou, guardando a sacola dentro do seu baú e botando por
cima os utensílios de cozinha, comi das e outros objetos. O rolo de dormir e a barraca
foram postos em seguida. Dois dos paus seriam levados num suporte do lado
esquerdo do baú. Thono lan carregaria o couro para cobrir o chão e o terceiro pau. Do
lado direito dos baús havia suportes especiais, onde levavam diversas lanças. Thonolan
foi en cher o seu odre, que era feito do estômago de um animal e revestido com cou ro.
Quando fazia muito frio, como no platô das geleiras por onde haviam aca bado de passar,
eles carregavam os odres por dentro das parkas, junto da pele, para que o calor do corpo
derretesse a neve. Numa geleira não havia combus tíveis para fogueira. No momento, era
onde se encontravam, e ainda não ti nham descido bastante no terreno para acharem
água corrente.
- Pois eu lhe digo, Jondalar - falou Thonolan, levantando os olhos. - Fico satisfeito
por Joplaya não ser minha prima. Acho que desistiria da via gem para ter aquela mulher
como companheira. Você nunca me contou que ela era tão bonita. Nunca vi ninguém
como Joplaya. Nenhum homem conse gue vê-la, sem se apaixonar por ela. Dou graças
por ter nascido de Marthona depois de sua união cqin Willomar e não enquanto ela ainda
era companheira de Dalanar. Pelo menos, isso me dá alguma chance.
- É, Joplaya é bem bonita. Isso não se discute. Há uns três anos que não a vejo.
Esperava que ela já tivesse por esse tempo arrumado um compa nheiro. Fico contente
por Dalanar ter resolvido levar os Lanzadonli à Reunião dos Zelandonii, neste verão.
Somente com uma Caverna não há muito o que escolher. Isso dará oportunidade a
Joplaya para encontrar-se com outros ho mens.
- E também deixará Marona com ciúmes. Chego a lamentar não assistir o encontro
das duas. Marona está muito mal-acostumada. Ela é sempre a bel dade das ReuniÕes.
Ela vai odiar Joplaya. E agora, sem você lá, tenho a im pressão de que a Reunião não vai
ter nenhuma graça para Marona.
- É verdade, Thonolan. Ela vai se sentir atingida. Vai ficar furiosa e eu lhe dou razão.
Marona tem um péssimo gênio, mas é boa mulher. Tudo que está precisando é de
arrumar o companheiro certo. Mas ela sabe como agradar um homem. Quando fico perto
dela, estou pronto para atar o nó, mas depois, 30 31 longe. . . n sei nao, Thonolan - ele
tinha a testa franzida, enquanto passava o cinto ao redor de sua parka, já com o odre
colocado por dentro.
- Diga uma coisa - perguntou Thonolan, novamente com expressifo séria - como
você se sentiria se ela resolvesse tomar um outro para compa nheiro, enquanto estamos
fora? Você deve saber.
Jondalar atava o cinto, pensando na resposta.
Eu ficaria sentido, ou o meu orgulho ficaria. . . bom, nifo sei direito. Mas nao iria
culpá-la por isso. Ela merece alguém melhor do que eu. Alguém que nao fosse largá-la
no último momento para fazer uma viagem. E se ela for feliz, ficarei feliz por ela.
- Foi o que pensei - disse Thonolan, abrindo-se num sorriso. - Bom, meu irmffo, se é
para manter a dianteira dessa donil que está vindo aí atrás de você, é melhor nos pormos
logo a caminho.
Thonolan terminou de arrumar o baú e levantou a parka, desvestindo o braço de
uma das mangas, de modo a pendurar o odre a tiracolo, sob o aga salho.
As parkas tinham um modelo simples, fácil de ser cortado. A parte da frente e das
costas eram duas peças mais ou menos retangulares, presas nos ombros e nos lados.
Dois retângulos menores, dobrados e costurados na for ma de tubo e presos no corpo da
roupa, faziam as mangas. Os capuzes tam bém eram presos e tinham uma franja de pele
de carcaju ao redor, de modo a não grudar nele o gelo formado com a umidade da
respiração. As par/ais cos tumavam ser belamente ornamentadas com trabalhos de
contas, feitas de ossos, marfim, conchas, dentes de animais e também com as pontas
pretas dos rabos de arminhos. Vestiam-se pela cabeça, ficando como uma túnica solta,
batendo na metade da coxa, que se ajuátava na cintura com uma correia.
Debaixo das parkas eles vestiam camisas macias de pele de gamo, corta das de
maneira semelhante, e calças de pele, cruzadas na frente e seguras por urna tira na
cintura. As rnitenes, forradas de pelúcia, estavam atadas a um comprido cordão que
passava por dentro de uma alça nas costas da par/az, de modo que se pudesse retirá-las
com rapidez, sem o risco de deixá-las cair ou perder. As botas, com solas grossas - como
mocassins - envolviam o pé intei ro e se prendiam a um tipo de couro mais macio que se
ajustava à perna com dobras e correias enroladas. Dentro, havia um forro solto de feltro -
fabrica do com lã de carneiro úmida e batida até que resultasse um tecido de fibras
emaranhadas. Em dias particularmente frios e úmidos, calçavam, por cima das botas,
intestinos de animais, uma matéria impermeável e flexível. Era, no en tanto, um material
muito fino que rasgava com facilidade e, por isso, usado só em casos de necessidade.
- Thônolan, até onde mesmo você pretende ir? Você nãà estava falan do sério
quando disse que iria até a foz do Rio Mãe, não é? - per 32 guntou Jondalar pegando
uma machadinha de pedra com o cabo curto e gros so, que pendurou numa alça em seu
cinto, onde já se achava uma faca de pe dra com cabo de osso.
Thonolan, que estava calçando uma raqueta para neve, Parou.
- Jondalar, foi exatamente o que eu quis dizer - respondeu, sem a me nor sombra de
estar brincando.
- Talvez não estejamos de volta nem para a Reunião de Verão do ano que vem.
- Está pensando em desistir? Não é obrigado a vir comigo, meu irmão. Falo sério.
Não vou ficar zangado se você voltar daqui. Além de tudo, foi uma decisão impensada
essa sua de querer viajar. Você sabe tanto quanto eu que talvez nunca mais voltemos
para casa. Mas se quiser ir, decida logo, do contrá rio, só conseguirá atravessar de volta
essa geleira depois do próximo inverno.
- Não. Não foi uma decisão impensada. Há muito tempo que venho querendo fazer
uma viagem e chegou agora a ocasião - disse Jondalar de mo do categórico, mas, como
pareceu a Thonolan, com um toque de indizível amargura. Então, como se querendo
espantar esse sentimento, Jondalar pas sou a falar num tom mais despreocupado. -
Jamais fiz de fato uma viagem para valer e, se não for desta vez, nunca mais será. Está
resolvido, irmãozinho, daqui para frente vou ficar colado em você.
O céu estava claro e o sol, refletindo na brancura virginal que se esten dia à frente
deles, ofuscava-lhes a vista. Era primavera, mas na altitude em que se achavam a
paisagem não dava nenhuma mostra da estação. Jondalar tirou um par de óculos
escuros que trazia na sacola pendurada em seu cinto. Era uma peça de madeira, talhada
de forma a cobrir os olhos e com apenas uma fenda cortada horizontalmente. Ele a
amarrou ao redor da cabeça. Em segui da, fazendo rápido movimento de torcer o pé,
enrolou o cordão do sapato de neve no engate na ponta do pé e no outro na altura do
tornozelo. Prepara do para caminhar, foi buscar o baú.
Fora Thonolan quem havia feito os sapatos de neve, mas a sua verdadei ra
especialidade era a fabricação de lanças. Ele carregava consigo o seu nivela dor,
um objeto feito do chifre de um veado, sem as pontas dos galhos e com um furo na
extremidade. A ferramenta era adornada com o intrincado dese nho de uma cena
primaveril, cheia de bichos e plantas. Em parte era para hon rar a Grande Mac Terra, na
intenção de persuadi-la a atrair os espíritos dos animais para as pontas das lanças
produzidas com aquela ferramenta, e tam bém porque Thonolan sentia prazer em
esculpir. Seria inevitável que algumas lanças se perdessem durante as caçadas, e ele
teria de fazer outras para reposi ção. O nivelador era principalmente usado na
extremidade da lança, onde não era possível segurá-la. Enfiando a haste no furo,
obtinha-se um ponto de apoio adicional. Thonolan sabia trabalhar a madeira, aquecendo-
a no vapor ou 33 com pedras quentes, de modo a desentortá-la para uma lança ou, ao
contrário, curvá..la, quando era o caso de fabricar raquetas. Eram dois aspectos de uma
mesma técnica.
Jondalar virou o corpo, querendo ver se o seu irmão estava pronto. Fa zendo um
sinal de concordância com a cabeça, os dois se puseram a caminho, descendo pela
encosta que ia dar numa pequena floresta. À direita, para além das terras baixas, bem
arborizadas, viram o promontório alpino coberto de ne ve e, muito ao longe, os picos
irregulares e gelados das montanhas setentrio nais da imponente cordilheira. Do lado
sudeste, as refulgências de um dos p1- cos pairava muito mais acima do que as dos
vizinhos.
Comparativamente, os altiplanos por que eles haviam acabado de passar não eram
mais do que uma pequena colina, um maciço sobrado da erosão de montanhas muito
mais antigas do que os altos picos do sul. Mas, assim mes mo, eram bastante altos e
bem próximos da acidentada cordilheira com as suas fantásticas geleiras - que coroavam
e envolviam as montanhas até uma certa altura - para manter uma coberta de gelo
durante o ano inteiro no seu cume relativamente uniforme. Algum dia, quando a geleira
continental retro cedesse ao seu habitat polar, aqueles altiplanos seriam sombreados por
urna floresta. Por enquanto, não passavam de uma geleira sobre um platô, uma ver são
em miniatura dos imensos lençóis de gelo que faziam uma ponte ligando o norte com o
resto da terra.
Quando os dois irmãos alcançaram a pequena floresta embaixo, retira- ram os
óculos que protegiam os olhos, mas diminuíam o campo de visão. Um pouco mais
adiante, baixando mais na encosta, encontraram um pequeno ria cho, originado do
degelo que, vazando pelas fissuras da rocha, corria sob o so lo, para depois emergir
filtrado e limpo de impurezas numa fonte espumosa. Como muitos outros córregos
igualmente nascidos de geleiras, este também corria entre margens cobertas de neve.
- O que você acha? - perguntou Thonolan, apontando na direção do riacho. - É por
aqui que Dalanar disse que ele deveria estar.
- Se for o Danlibio, logo ficaremos sabendo. Iremos ter certeza de que estamos
seguindo o Rio Mãe quando chegarmos a três rios pequenos que, de pois de se
encontrarem, correm no rumo do leste Foi isto que ele disse. Te nho a impressão de que
no fim qualquer um desses riachos acabará nos levan do ao grande rio.
- Bom, vamos ficar ao lado esquerdo. Mais tarde, já não vai ser tão fácil cruzar de
margem. - - Isso é verdade, mas os Losadunai vivem na margem direita e podería- mos
dar uma parada numa de suas Cavernas. Dizem que do lado esquerdo é território dos
cabeças-chatas.
- Jondalar, nós não vamos parar nos Losadunai - falou Thonolan, sor 34 rindo, mas
firme no seu intento. - Você sabe que eles vão querer obrigar-nos a ficar e já demoramos
demais nos Lanzadonil. Se tivéssemos ficado lá um pouco mais, já não poderíamos
atravessar a geleira. Teríamos de ter dado a volta e passar pelo território dos cabeças-
chatas que fica ao norte dali. Pre tendo ir avançando, e quanto mais ao sul menos
cabeças-chatas haverá. Bom, mas mesmo que haja, que importância tem? Você não está
com medo de um punhado de cabeças-chatas, ou está? Sabe o que dizem? Que não há
a menor diferença entre matar um cabeça-chata e um animal.
- Não sei não - falou Jondalar, franzindo a testa preocupado. - Não tenho muita
certeza se gostaria de entrar neste momento em luta com um urso. Ouvi dizer que os
cabeças-chatas têm inteligência e há pessoas que che gam a afirmar que eles são quase
humanos.
- Inteligência, pode ser que tenham, mas não falam. Não passam de animais.
- O que está me preocupando, Thonolan, não são cabeças-chatas. Se es tou
querendo ir até os Losadunai, é porque eles conhecem bem esta região e poderiam
botar-nos no caminho certo. Não precisamos ficar muito tempo com eles. . . apenas o
suficiente para determinar a nossa posição e rumo. Eles podem nos dar alguns pontos de
referência, dizer o que nos espera pela frente. E poderemos conversar com eles. Dalanar
disse que alguns falam zelandonii. A idéia é essa. Se você concordar em parar agora,
concordo em não fazer nenhu ma outra parada, a não ser quando estivermos de volta.
- Já que faz tanta questão, tudo bem.
Os dois procuraram um lugar para atravessar. As margens cobertas de gelo, agora
mais afastadas, não davam para que pulassem de um para outra. Ao verem uma árvore
tombada fazendo uma ponte natural sobre o córrego, encaminharam-se na sua direção.
Jondalar foi na frente. Segurou num galho e botou o pé numa das raízes descobertas.
Thonolan olhava ao seu redor, espe rando a vez.
- Jondalar! Cuidado! - gritou de repente.
Uma pedra passou zunindo pela cabeça de Jondalar. No mesmo momen to em que
ele se atirou no chão, alertado peLo grito, apanhou uma de suas lan ças. Thonolan
também já
tinha uma na mão e se achava agachado, olhando na direção de onde partira a
pedra. Ele percebeu movimentos atrás da galhada sem folhas de um arbusto e
arremessou a sua lança. Enquanto apanhava outra lança, seis figuras surgiram do
matagal próximo.
Eles estavam cercados.
- Cabeças-chatas! - gritou Thonolan, dando um passo para trás e fa zendo pontaria.
- Espere, Thonolan! - gritou Jondalar. - Eles estão em maior número.
- O grandão parece que é o chefe do bando. Se eu conseguir pegá-lo, o 35 resto
talvez fuja - ele tornou a levantar o braço, botando-o na posição de atirar.
- Não! Eles podem nos atacar antes que a gente consiga pegar a segun da lança.
Por enquanto estão mantendo-se à distância. Não fazem movimento.
- Jondalar, devagar, levantou-se do chão, com a arma pronta para ser usada.
- Não se mexa, Thonolan. Deixe que a iniciativa seja deles. Mas fique de olho no
grandão. Ele está vendo que você faz pontaria na sua direção.
Jondalar, confuso, examinava o grandalhão dos cabeças-chatas, sentin do que os
enormes olhos castanhos do outro também o examinavam. Até en tão, nunca estivera tão
perto deles e se via surpreso. Aqueles cabeças-chatas não correspondiam às idéias
preconceituosas que formara sobre eles. Os olhos do grandifo se achavam meio
escondidos pelos supercílios extremamente sa lientes que mais ressaltados ainda
ficavam com as sobrancelhas, fortes e espes sas. O nariz era grande, estreito, quase
como um bico, contribuindo para que os olhos parecessem profundamente enterrados no
rosto. A barba cerrada, meio encaracolada, escondia a cara. Olhando para um outro mais
jovem, com a barba apenas começando a despontar, Jondalar viu que eles não tinham
queixo, apenas mandíbulas muito salientes. Os cabelos eram castanhos e far tos, como a
barba, e era provável que fossem muito cabeludos também no corpo, sobretudo na parte
superior das costas. Ele não sabia dizer ao certo porque as roupas de pele que usavam
lhes cobriam o torso. Os braços e os om bros, apesar da temperatura gelada, estavam
descobertos. Mas a pouca vesti menta não surpreendia tanto Jondalar como o fato de se
acharem vestidos. Ja mais algum animal foi visto usando roupas e carregando armas. E
todos segura vam compridas lanças de madeira - feitas, sem dúvida, para serem
estocadas e não atiradas - de pontas agudas, parecendo bem pengosas. Alguns dos ou
tros, além de lanças, carregavam pesadas maças, feitas das patas dianteiras dos
enormes animais de pastagem.
"Não são propriamente mandíbulas de animal", pensou Jondalar. "Se riam só um
pouco mais pronunciadas. Da mesma forma, o nariz. . . poderia ser considerado
simplesmente como um nariz grande. A cabeça, aí que de fato está a diferença.”
Ao invés de uma testa alta e bem formada como a dele ou a de Thono lan, os
cabeças-chatas tinham-na baixa, que saía dos supercílios e escorregava para trás,
dilatando-se na parte posterior. Era como se o alto da cabeça - que Jondalar enxergava
por inteiro - tivesse sido amassado e puxado para trás. Quando ele se erguera, com o
seu metro e noventa, se avantajou em mais de trinta centímetros sobre o mais alto dos
cabeças-chatas. Mesmo o metro e oi tenta de Thonolan fazia com que ele parecesse um
gigante, perto daquele que aparentemente era o chefe. Mas só na altura.
Jondalar e o seu irmão eram homens fortes, mas os dois se sentiam ma 36 gricelas
ao lado dos cabeças-chatas, dotados de uma bem desenvolvida muscu latura. Eles
tinham o tórax em forma de barril, braços e pernas musculosos e arqueados, fazendo
uma curvatura para fora, mas caminhavam eretos e com facilidade como qualquer ser
humano. Quanto mais Jondalar os observava, mais eles lhe pareciam homens, só que
diferentes de qualquer outro que já co nhecera na vida.
Por um longo tempo, cheio de tensão, ninguém se mexeu. Thonolan, agachado,
tinha a sua lança em posição de atirar. Jondalar, de pé, agarrava a sua, firme, pronto
para seguir o lance do irmão. Os seis cabeças-chatas, cercan do-os, estavam imóveis
como pedra, mas Jondalar não duvidava da rapidez com que podiam a qualquer instante
partir para o ataque. Chegara-se a um im passe, os dois lados guardando distância e a
mente de Jondalar trabalhava rá pido, tentando encontrar uma saída.
De repente, o grandão emitiu um grunhido e acenou com o braço. Tho nolan por um
triz não atirou a lança, percebendo ainda a tempo o gesto de Jondalar, detendo-o. O
rapazinho dos cabeças-chatas saiu correndo na dire ção do matagal, de onde eles
haviam surgido. Instantes depois, o garoto vol tou, carregando a lança atirada por
Thonolan que, muito espantado, recebeu-a de volta. Em seguida, o rapazinho se dirigiu
ao tronco, servindo de ponte so bre o riacho, e apanhou lá uma pedra. Voltou e se
encaminhou na direção do grandalhão, diante do qual pareceu respeitosamente inclinar a
cabeça. Pouco depois, sem fazer o menor ruído, todos os seis desapareceram no meio
do ma tagal.
Ao .perceber que haviam ido embora, Thonolan soltou um suspiro de alívio.
- Pensei que não íbssemos escapar desta! Mas pelo menos um deles eu levaria
comigo. Só gostaria de saber o que significou isso tudo.
- Não tenho muita certeza - falou Jondalar - mas me dá a impressão de que o
rapazinho começou uma coisa que o grandão não quis encampar e posso garantir a você
que não foi por medo. Ele mostrou muito sangue-frio, parado ali enfrentando a sua lança,
e depois ao fazer o movimento que fez.
- Talvez não soubesse que outra coisa poderia fazer.
- Não. Ele sabia muito bem. Viu perfeitamente quando você atirou a lança. Senão,
não teria dito ao rapaz para pegar a arma e devolvê-la a você.
- Acha mesmo que ele disse ao garoto para fazer isso? Eles não falam.
- Não sei. Mas de algum modo o grandalhão disse ao rapazinho para lhe devolver a
lança e buscar a pedra. Foi como se com isso eles nos quisessem di zer que os dois
lados estavam quites. Como ninguém saiu ferido, imagino que foi isso o que aconteceu.
Sabe de uma coisa? Não tenho muita certeza se os cabeças-chatas são de fato animais.
Esses eram inteligentes. Eu não sabia que usassem roupas, carregassem armas e
andassem igual a nós.
37 - Bom, mas porque s chamados de cabeças-chatas, agora eu sei. O bando todo
era mal-encarado. Eu é que não gostaria de engalfmhar-me com um deles.
- Disso sei eu. Quebrariam o seu braço como se esse parecesse um sim- pies
galhinho de planta. Sempre pensei que fossem pequenos.
- Pequenos não, baixotes. De modo algum pequenos, meu irmão. Bom, devo admitir
que você estava certo. Vamos fazer uma visita aos Losadunai. Eles vivem tão perto
daqui, que devem saber mais coisas sobre os cabeças-cha tas. Além disso, está
parecendo que o Grande Rio Mãe é um marco de frontei ra, talvez os cabeças-chatas
não nos queiram invadindo o lado deles.
Durante vários dias, os dois caminharam à procura dos pontos de refe rência
fornecidos por Dalanar, seguindo o riacho, cujas características, naque le estágio de
fonnação, não diferiam dos outros córregos, riachos e canais que desciam pela encosta.
Havia sido meramente por convenção que se esco lhera um daqueles fluxos de água
para berço do Grande Rio Mãe. A maioria dos cursos se juntavam para formar a
cabeceira do grande rio que iria descer pe las colinas e serpentear através das planícies,
percorrendo mais de três mil qui lômetros, antes de despejar toda a carga de suas águas
e detritos no mar inter no, situado longinquamente a sudoeste.
As rochas cristalinas do maciço, que davam origem ao caudaloso rio, es tavam
dentre as mais antigas da Terra e o seu largo leito fora formado pelas numerosas
pressões que suspenderam e preguearam as montanhas de pródigas refulgências. Mais
de trezentos tributários - muitos dos quais grandes rios - drenando as encostas e
cordilheiras iam juntar-se ao volumoso caudal. Algum dia a fama deste rio ainda iria
estender-se às mais longínquas paragens desse planeta e as suas águas barrentas e
lodosas seriam vistas como azuis.
Embora atenuada pelos maciços e montanhas, a influência dos ambien tes oceânico
(a oeste) e continental (a leste) se fazia sentir. A vida animal e ve getal desenvolvia-se
nas tundras e florestas de coníferas do lado ocidental, e nas estepes na parte oriental.
Nas encostas montanhosas, viam-se íbices, ca murças e carneiros selvagens, enquanto
nas florestas o animal mais comum era o cervo. O tarpã, um cavalo selvagem que algwn
dia ainda seria domesticado, pastava nas baixadas e terrados ribeirinhos e, deslizando,
furtiva e silenciosa- mente em meio às sombras, iam os lobos, linces e leopardos
brancos. Também lá marcavam as suas presenças, acordando depois de longa
hibernação, os ur sos marrons, de regime onívoro. Já os colossais ursos da caverna,
vegetarianos, fariam a sua aparição um pouco mais tarde. Além desses, uma quantidade
de pequenos mamíferos começavam a pôr os focinhos para fora de suas tocas de
inverno.
38 Às encostas eram florestadas principalmente com pinheiros, embora se vissem
também os pinhos prateados, os abetos e vidoeiros. Os amieiros preva leciam nas
ribeiras e em geral apareciam misturados com salgueiros, choupos e, mais raramente,
com as faias de folhas pubescentes e os carvalhos, reduzi dos a alguma coisa pouco
mais que arbusto.
A margem esquerda gradualmente elevava-se no terreno. Jondalar e Thonolan
escalaram a subida até atingirem o cume de uma alta colina. De lá, contemplando a
paisagem, viram uma bela região selvagem e escarpada, cujas saliências e reentrâncias
a neve aplainava. O disfarce, entretanto dificultava- lhes a viagem.
Não viam nenhum sinal de qualquer Caverna - isto é, um grupo de pes soas,
socialmente organizadas, que não necessariamente viviam em cavernas - nada daqueles
que se autodenominavam Losadunai. Jondalar começava a achar que não iriam
encontrá-los.
- Olhe! - apontou Thonolan.
Jondalar olhou na direção indicada, vendo uma pequenina espiral de fu maça saindo
do meio de um bosque. Puseram-se a correr e, logo, foram dar com um grupo de
pessoas reunidas ao redor de uma fogueira. Os dois irmãos se introduziram no meio
delas, com as mãos erguidas e as palmas voltadas pa ra cima, na forma da saudação
entendida como amistosa e bem-intencionada.
- Eu sou Thonolan dos Zelandonii. Esse é o meu irmão Jondalar. Esta mos em
viagem. Alguém aqui fala a nossa língua?
Um homem de meia-idade deu um passo à frente com as mãos levanta das da
mesma maneira.
- Eu sou Ladum dos Losadunai. Em nome de Duna, a Grande Mãe Ter ra, lhes
damos as nossas boas-vindas - ele agarrou as duas mãos de Thonolan e, em seguida,
fez o mesmo com Jondalar. - Venham se sentar perto do fogo. Daqui a pouco iremos
comer, vocês aceitam?
- Ê muita generosidade de sua parte - respondeu Jondalar, cerimonio samente.
- Em minha viagem ao oeste, eu me hospedei numa das Cavernas dos Zelandonii.
Isso foi há muitos anos, mas os Zelandonii são sempre bem-vindos - ele os conduziu para
uma grande tora, perto da fogueira, sob uma constru ção que a abrigava dos ventos e
mau tempo. - Bom, agora descansem. Tirem os seus baús das costas. Vocês devem ter
saído da geleira há pouco tempo, não é?
- Já há alguns dias - respondeu Thonolan, livrando-se de sua tralha.
- Se fossem cruzá-la agora, já seria tarde. O xaroco chegará a qualquer momento.
- O xaroco? - perguntou Thonolan.
- Sim, o vento da primavera. Um vento quente e seco que sopra do su doeste e com
tanta força que chega a partir as árvores e arrancá-las pelas raí 39 40 41 zes. Mas é um
vento que derrete a neve rapidamente. Dentro de alguns dias tu do isso aqui vai
desaparecer e as plantas vão surgir - explicava Laduni, fazen do um amplo gesto com o
braço, indicando a neve. - Se o xaroco pegar ai.. guém durante a travessia da geleira,
pode ser fatal. O gelo vai derretendo e as fendas imediatamente começam a aparecer. As
pontes e as construções de gelo cedem, enquanto córregos e até mesmo rios passam a
correr pelo gelo.
- E isso provoca esplim - acrescentou uma moça pegando o fio da con versa de
Laduni.
- Esplim? - perguntou Thonolan, dirigindo-se a ela.
- Sim, os espíritos maus que voam no vento. Por causa deles todo mun do fica
nervoso. Pessoas que nunca brigaram antes passam a discutir. Outras, que sempre
foram felizes, ficam chorando o tempo todo. São espíritos que põem as pessoas doentes
e as que já estavam ficam para morrer. Sempre ajuda um pouco se você estiver
prevenido, mas o mau humor das pessoas é geral.
- Onde você aprendeu a falar zelandonil tão bem? - perguntou Thono lan, sorrindo e
já um tanto encantado com a jovem que era uma moça atraente.
Ela lhe devolveu o olhar com a mesma franqueza, mas, ao invés de res ponder-ilie,
olhou na direção de Laduni.
- Thonolan dos Zelandonii, esta é Filonia dos Losadunai e filha de mi nha casa -
disseLaduni que, imediatamente, percebera a intenção do olhar da moça para ele: um
pedido para que fosse formalmente apresentada. Com isso, Thonolan ficaria sabendo
que ela era urna mulher que se tinha em alta conta e que não conversava com estranhos
sem as devidas apresentações, ainda que esses estivessem só de viagem e fossem
rapazes bonitos e interessantes.
Thonolan estendeu-lhe as mãos, cumprimentando-a na forma conven cional. Os
seus olhos mostravam admiração ao mesmo tempo que a avaliava criticarnente. Por
instante, ela hesitou, como se refletindo, depois pôs as mãos nas dele. Thonolan a puxou
para mais perto de si.
- Filonia dos Losadunai, Thonolan dos Zelandonii se sente horado por ter a Grande
Mãe Terra o favorecido com a dádiva de sua presença - falou com um sorriso maroto.
Filonia enrubesceu com a insinuação atrevida. Ela sabia, embora as pala vras
fossem tão formais quanto o gesto, o que ele pretendia com a alusão à Mãe Tera e a sua
dádiva. Um frêmito de gozo passou-lhe pelo corpo quando ele a tocou e os seus olhos
brilhavam convidativamente.
- Agora me diga - prosseguiu Thonolan - onde aprendeu zelandonii?
- Numa viagem que fiz com o meu primo. Nós cruzamos a geleira e d rante algum
tempo vivemos numa Caverna Zelandonil. Antes disso, Laduni já nos tinha ensinado um
pouco. Muitas vezes, para não esquecer, ele conversa conosco na língua de vocês. De
tantc em tantos anos, cruza a geleira a negó cios. Ele fez questão que eu soubesse falar
bem a sua língua.
Thonolan ainda lhe segurava as mãos e sorria para ela.
- Não é comum mulheres fazerem viagens longas e perigosas. E se acon tecesse de
Dom abençoá- la?
- Na verdade, não foi tão longa assim - respondeu, desvanecida com o visível
encantamento de Thonolan. - Daria tempo para que eu soubesse e voltasse antes.
- Não - insistiu Thonolan - foi uma viagem longa. Uma viagem que só os homens
costumam fazer.
Jondalar, que observava o jogo dos dois, voltou-se para Laduni.
- Lá está ele novamente fazendo das suas - disse rindo. - O meu irmão sempre
escolhe a mulher mais bonita do lugar e quando menos se espera ela está caída por ele.
Laduni deu uma risadinha.
- Filonia ainda está muito jovem. Foi no verão passado que os seus ri tos de
passagem se realizaram. Mas, desde então, não têm faltado admiradores para virar a sua
cabeça. Ah, poder ser jovem!. . . Ah, poder voltar à juventude e gozar da dádiva dos
prazeres que nos concede a nossa Grande Mãe Terra. Não que tenha deixado de ter os
meus prazeres, mas eu vivo bem com a mi nha companheira e já não tenho muita
vontade de sair por aí à cata de novida des - ele se virou para Jondalar. - Somos aqui um
pequeno grupo de caçado res e não temos muitas mulheres conosco, mas você não terá
dificuldade em encontrar alguma que queira compartilhar com você das dádivas dos
prazeres. Se não se agradar de nenhuma, temos urna grande Caverna e os visitantes
são sempre motivo para um festival em honra da Mãe.
- Lamento, mas acho que não vamos poder ir com você para a sua Ca verna.
Estamos apenas começando e Thonolan está pretendendo fazer uma longa viagem. Ele
está ansioso para se pôr a caminho. Talvez na volta, se você nos der as indicações
necessárias.
- Ë uma pena que não possam visitar-nos. Ultimamente não temos tido muitos
visitantes. Até onde vocês planejam ir?
- Thonolan está falando em seguir o Danúbio até o ponto onde ele ter mina. Mas no
início todos falam em grandes viagens, isso é o que ainda vere mos.
- Pensei que os Zelandonil vivessem perto das Grandes Águas. Pelo me nos viviam
quando eu fiz a minha viagem. Nessa ocasião, percorri longo traje to para oeste e depois
rumei para o sul. Você disse que estão apenas come çando?
- Eu explico. Você tem razão. As Grandes Águas distam só alguns dias de nossa
Caverna, mas Dalanar dos Lanzadonii era o companheiro de minha mãe quando eu nasci
e a sua Caverna é como se fosse minha casa. Eu vivi lá durante três anos para aprender
o meu ofício. O meu irmão e eu estávamos com eles. Por enquanto, a nossa viagem se
resume na travessia da geleira e nos poucos dias que gastamos para chegar até aqui.
- Dalanar! Mas claro! Por isso você me pareceu conhecido. Você deve ser o filho de
seu espírito. É muito parecido com ele. E é também talhador Dalanar é o melhor talhador
que já conheci. Eu pretendo visitá-lo no ano que vem para arrumar um pouco de sílex da
mina dos Lanzadonji. São as me lhores pedras que há.
As pessoas começavam a se reunir ao redor do fogo com gamelas de ma deira, e o
cheiro delicioso que vinha delas fez Jondalar lembrar-se da sua fo me. Ele pegou o seu
baú que atravancava o caminho. Então, ocorreu-lhe uma idéia.
- Laduni, eu trouxe comigo algumas pedras dos Lanzadonii. Tinha in tenção de ir
substituindo as ferramentas que fossem quebrando durante a via gem, mas estão muito
pesadas para carregar. Seria ótimo se eu pudesse ficar li vre, pelo menos de uma parte
deste peso.
Os olhos de Laduni se iluminaram.
- Eu aceito e fico muito agradecido, mas gostaria de lhe dar alguma coi sa em troca.
Não que me importe em levar o melhor num negócio, mas não gostaria de passar a perna
num filho da casa de Dalanar.
Jondalar sorriu.
- Você já está me aliviando do peso e nos oferecendo essa apetitosa co mida.
- Ainda não é o suficiente para pagar a qualidade das pedras dos Lanza donli. Você
está facilitando muito a transação, Jondalar, e isso fere o meu or gulho.
Jondalar soltou uma risada. Às pessoas ao redor, divertidas com toda aquela
conversa, também riram.
- Está bem, Laduni. Nesse caso não vou facilitar o negócio. No momen to, não há
nada que eu queira. Só estava pensando em aliviar um pouco a mi nha carga, mas
futuramente lhe direi qual será a minha reivindicação. Ainda está disposto a fechar o
negócio?
- Agora é ele quem está querendo me passar para trás - disse Laduni, rindo para as
pessoas à sua volta. - Pelo menos diga o que será.
- Como é que vou dizer? Mas na volta eu passo aqui para pegar, con corda?
-. E como é que posso saber se vou poder dar o que me vai pedir?
- Não vou pedir nada que você não me possa dar.
- Os seus termos são duros, Jondalar. Mas, podendo, darei o que me pedir. Está
fechado.
Jondalar abriu o baú e, depois de retirar as coisas de cima, retirou a sua sacola e
deu a Laduni dois nódulos de sílex já prontos para serem trabalhados.
- Foi Dalanar quem escolheu esses nódulos e fez o trabalho inicial - fa lou Jondalar.
Laduni se achava visivelmente encantado com a perspectiva de possuir dois nódulos
de sílex, escolhidos e preparados por Dalanar para o filho de sua casa, mas ele
murmurou bastante alto para que todos o ouvissem:
- Estou provavelmente nesse instante vendendo a minha vida por dois pedaços de
pedra.
Ninguém mencionou a possibilidade de que talvez Jondalar jamais vol tasse para
pegar a sua parte no negócio.
- Jondalar, você pretende ficar aí conversando a vida toda? - falou Thonolan. -
Fomos convidados para comer e essa vitela cheira deliciosamen te - no seu rosto havia
um largo sorriso e Fionia estava ao seu lado.
- A comida realmente está pronta - disse ela - e a caçada foi tão boa que quase não
tivemos necessidade de usar a carne seca que trouxemos. Bom, agora que já não estão
carregando tanta coisa e que sobrou espaço na baga gem, vocês podem levar alguma,
não querem? - acrescentou, sorrindo timida- mente para Laduni.
- Seria um prazer. Laduni, você ainda não me apresentou a essa encan tadora filha
de sua casa - falou Jondalar.
- É horrível ter a filha de sua própria casa pondo a perder os seus bons negócios -
rosnou ele, sorrindo cheio de orgulho. - Jondalar dos Zelandonii, apresento Fionia dos
Losadunai.
Ela se virou para olhar o rapaz e, de repente, se encontrou perdida num par de olhos
muito azuis que lhe sorriam irresistivelmente. Então, tomada por um misto de emoções,
corou ao sentir-se, agora, atraída pelo outro irmão. Embaraçada, abaixou a cabeça.
- Jondalar! Não pense que não enxerguei aquele brilho nos seus olhos. Lembre-se
que eu a vi primeiro - pilheriou Thonolan. - Venha, Fionia, vou tirá-la daqui. Escute o meu
conselho, mantenha-se afastada do meu irmão. Sei o que estou dizendo, não queira
envolver-se com ele - e, virando-se para La duni, disse, fmgindo-se ofendido: - Ele está
sempre me pregando dessas pe ças. Um olhar e é tudo que ele precisa fazer. Ah, se eu
tivesse nascido com os predicados do meu irmão...
- Você está cheio de predicados, irmãozinho. Mais do que um homem precisa - falou
Jondalar, soltando a sua gargalhada calorosa e contagiante.
Fionia voltou-se para Thonolan e pareceu aliviada por achá-lo ainda tão atraente
quanto antes. Ele passou o braço ao redor do seu ombro e a condu ziu para o outro lado
da fogueira, mas ela voltou a cabeça para olhar, mais uma vez, Jondalar. Já com um
sorriso mais confiante, disse:
- Sempre que recebemos visitantes na Caverna, realizamos um festival em honra de
Duna.
42 43 - Eles não irão à Caverna, Filonia - falou Laduni.
Por momento, a moça pareceu decepcionada.
- Ah, poder ser jovem - repetiu Laduni, olhando para Thonolan e re primindo uma
risadinha. - Sabe? As mulheres que honram Duna, freqüente mente, são as que parecem
ser mais abençoadas com filhos. A Grande Mãe sorri para aquelas que apreciam as suas
dádivas.
Jondalar pôs o seu baú atrás do tronco e se aproximou da fogueira. Um ensopado
de veado cozinhava num caldeirão de couro suspenso sobre a fo gueira por uma
armação feita de ossos. O líquido fervendo, apesar de muito quente, conservava o
recipiente numa temperatura relativamente baixa que não o deixava pegar fogo, pois o
grau de combustão do couro era muito mais ele vado do que o guisado fervente.
Uma mulher entregou-lhe uma cuja de madeira, servida com o ensopado cheirando
deliciosamente. Usando a sua faca de pedra, ele comeu a carne seca e os legumes
(raízes levadas para lá pelos caçadores), que espetava dentro da cuia; depois tomou o
caldo restante. Quando terminou, a mulher lhe trouxe uma cuia menor contendo um chá
de ervas. Ele deu um sorriso de agradéci mento. Ela era mais velha do que ele, o número
de anos suficiente para já ter trocado a beleza de sua juventude por uma outra mais
verdadeira, a que só a maturidade dá. Ela lhe sorriu de volta e se sentou ao seu lado.
- Fala zelandonil? - perguntou Jondalar.
- Entendo melhor do que falo.
- Devo pedir a Laduni para nos apresentar, ou posso perguntar direta mente o seu
nome?
Ela lhe sorriu com aquele algo de condescendência, próprio de mulheres mais
velhas.
- Somente as mocinhas precisam de apresentações. Eu sou Lanalia. Vo cê,
Jondalar?
- Sim - respondeu ele. Os seus olhos revelavam a excitação que sentia com a
proximidade da perna dela. Lanalia devolveu-lhe o olhar, fitando-o cheia de ardor. A mão
dele escorregou-lhe pela coxa e ela inclinou o corpo, num movimento encorajador,
prometendo outras intimidades. Ele balançou a cabeça aceitando o convite,
desnecessariamente, aliás. Os seus olhos também a convidavam. Ela o olhou por cima
do ombro e ele seguiu o olhar, vendo La duni vindo na direção dos dois. Então ela
relaxou, assumindo uma postura tranqüila ao seu lado. A promessa ficaria para mais
tarde.
Instantes depois chegou Laduni. Thonolan, com Filonia, veio se juntar a eles perto
da fogueira. Logo todos estavam amontoados ao redor dos dois visi tantes, contando
histórias e fazendo brincadeiras que iam sendo traduzidas para os que não entendiam.
Por fim, Jondalar resolveu abordar assunto mais sério.
- Você sabe alguma coisa das pessoas que vivem na parte baixa do rio, Laduni?
- Nós costumávamos ser visitados por alguns dos Sarmunai. Eles vivem ao norte do
rio, mas isso já foi há anos. Às vezes os jovens em suas viagens, de pois de muito
passarem pelo mesmo caminho, resolvem mudar o seu trajeto que já ficou conhecido
demais e não tão interessante. Passada uma ou duas gerações, só os velhos irão
lembrar do antigo trajeto que se transforma nova mente numa emocionante aventura.
Todo jovem acha que a sua descoberta é única, pouco importa se os seus antepassados
já fizeram a mesma coisa.
- Mas para ele é - falou Jondalar, sem querer prosseguir num assunto que dava
margem para grandes digressões. Ele precisava obter informações concretas antes de se
deixar levar por alguma discussão que poderia ser agra dável, mas sem resultados
práticos e imediatos. - Você poderia contar alguma coisa sobre os seus costumes? Você
conhece a língua deles? Sabe como cum primentam? O que devemos evitar e o que
poderia ofendê-los?
- Não sei muito a respeito deles e o pouco que sei não é recente. Há al guns anos
atrás, um homem foi para o leste e nunca mais voltou. Ninguém sa be o que aconteceu,
talvez tenha até se decidido estabelecer em algum outro lugar - contou Laduni. - Dizem
que eles fazem suas dunai de barro. Mas tu do isso não passa de conversa. Não posso
entender por que alguém iria repro duzir em barro imagens sagradas da Mãe. As figuras
se quebrariam depois de secas.
- Talvez porque o barro guarde intimidade com a terra. Há pessoas que gostam de
pedra por essa razão.
Enquanto falava, inconscientemente, Jondalar levou a mão a um saqui nho atado ao
seu cinto, ali apalpando uma estatueta de pedra que representa va uma mulher obesa.
Uma figura de enormes seios, ventre grande e saliente, e volumosas nádegas e coxas.
Os braços e pernas eram insignificantes, o que importava eram os aspectos da
maternidade, por isso os membros mostravam- se apenas sugeridos. A cabeça era como
um caroço com o rosto desfigurado, meio tapado por algo sugerindo uma cabeleira.
Doni, a Grande Mãe Terra, Velha Ancestral, a Primeira Mãe, a Criadora, o Sustento
de toda a vida, Aquela que abençoava todas as mulheres com o seu poder de criar e
produzir filhos, ninguém podia ver-lhe o rosto que inspirava pavor reverente. Nenhuma
das pequeninas imagens portadoras de seu espírito jamais ousara sugerir-lhe o rosto. Até
mesmo quando ela se revelava em so nhos, as suas feições em geral se mostravam
indistintas, embora os homens vissem o seu corpo como o de uma jovem núbil. Havia
mulheres que afirma vam poder assumir a forma de seu espírito e voar como os ventos
para levar felicidade ou tirar vinganças. As vinganças da Mãe que podiam assumir pro
porções terríveis.
44 45 Se zangada ou desrespeitada, era capaz de atos monstruosos. O mais
ameaçador, porém, era a perda da dádiva do prazer, concedida quando uma mulher se
dignava a entregar-se a um homem. A Grande Mie, diziam alguns daqueles que a
serviam, podia dar ao homem o poder de usufruir de suas dá- clivas com tantas mulheres
quanto ele o desejasse e tantas vezes quanto o qui sesse, mas poderia também fazê-lo
encolher de modo a nifo dar prazer a mm guém e tampouco para ele próprio.
Jondalar, distraído, acariciava os seios pendurados da donli dentro de sua sacolinha,
pensando na viagem e desejando ser favorecido com a sorte. Era fato que havia os que
jamais regressavam, mas isso também fazia parte da aven tura. Thonolan fez uma
pergunta a Laduni que trouxe a sua atenç de volta.
- O que você sabe sobre os cabeças-chatas que vivem aqui nas redonde zas? Há
alguns dias atrás nós topamos com um bando deles. Estava certo de que íamos terminar
a nossa viagem ali mesmo, naquele lugar.
Todos imediatamente voltaram a atenção para Thonolan.
- O que aconteceu? - perguntou Laduni com a voz tensa.
Thonolan relatou o incidente que haviam tido com os cabeças-chatas.
- Charoli! - exclamou Laduni.
- Quem é Charoli? - perguntou Jondalar.
- Um rapaz da Caverna dos Tomasi e o mentor de um grupo de bader neiros que
resolveu se divertir à custa dos cabeças-chatas. Nunca tivemos problemas com eles. Nós
ficamos do nosso lado do rio e eles no seu. Quando cruzamos para o outro lado, se põem
fora de nosso caminho, a nifo ser que nos demoremos muito por lá. Ent eles deixam bem
claro que estio nos vigian do. E é o bastante. Qualquer um fica nervoso sabendo que está
sendo observa do por um bando de cabeças- chatas.
- Disso sei eu! - falou Thonolan. - Mas o que você quer dizer com se divertir às
custas dos cabeças-chatas? Eu preferia nao arrumar nenhuma espé cie de encrenca com
eles.
- Tudo começou como brincadeira. Era um desafio para ver quem cor ria e
encostava a m num cabeça-chata. Eles podem ficar bem bravos quando incomodados.
Depois, um grupo começou a reunir-se para provocar qualquer cabeça-chata que fosse
encontrado sozinho. Faziam roda em tomo dele e se punham a irritá-lo, tentando fazer
com que saísse em perseguição. Os cabeças chatas têm muito fôlego e pernas curtas.
Normalmente, um homem ganha na corrida, mas que ele trate de n parar de correr. Nifo
tenho muita certeza de como começou realmente, mas parece que o grupo de Charoli
passou a agredir fisicamente. Imagino que um daqueles cabeças-chatas que andavam
provocan do tenha conseguido pegar alguém e o bando pulou na defesa do amigo. O fato
é que a coisa se tomou um hábito, mas mesmo sendo um só cabeça-chata contra todo o
bando, eles nunca saíam sem levar uma boa surra.
46 - N5o dá para acreditar - falou Thonolan.
- E o que fizeram depois foi pior - acrescentou Filonia.
- Filonia, isso é nojento! N quero vê-la falando sobre essas coisas! - disse Laduni
realmente zangado.
- Mas o que fizeram? - perguntou Jondalar. - Se na nossa viagem va mos ter de
passar por territórios de cabeças-chatas, é melhor que fiquemos sabendo.
- Ë. Imagino que tenha razão, Jondalar. Apenas nifo gosto de conversar sobre esse
assunto na frente de Fionia.
- Eu já sou uma mulher feita - declarou ela, mas sem muita convicção na voz.
Laduni a olhou, parecendo refletir. Depois resolveu-se.
- Os machos passaram a sair só aos pares ou em grupos e dessa forma n dava para
o bando de Charoli enfrentá-los. Por isso, passaram a provocar as fêmeas dos cabeças-
chatas que nffo lutam. N5o havia graça no desafio. Elas se limitam a encolher-se de
medo e depois fogem. Foi ent que resolveram fazer uni outro tipo de brincadeira com
elas. N sei quem desafiou quem pri meiro. . . provavelmente Charoli insuflou a turma. Isso
é bem o tipo de coisa que ela faria.
- Insuflou para quê? - perguntou Jondalar.
- Começaram a violar as fêmeas dos cabeças-chatas e. . . - Laduni nifo conseguiu
concluir. Ele pulou sobre os pés, vermelho de raiva. Estava inteira mente fora de si - - Ë
abominável! Um insulto à M É debochar de suas dá divas. Pior do que animais! Pior até
do que os cabeças-chatas!
- Você está dizendo que eles obtiveram prazer com fêmeas de cabeças chatas? Que
elas foram violadas? Uma fêmea de cabeça-chata? - falou Tho nolan.
- E eles ainda se vangloriavam disso! - comentpu Fioma. - Um homem que tivesse
tido prazer com uma cabeça-chata nifo encostaria a m em mim.
- Filonia! Eu proíbo que fale dessas coisas! N quero ouvir de sua bo ca algo t sórdido
e imundo - disse Laduni, furioso e com um olhar duro como pedra.
- Sim, Laduni - respondeu ela, abaixando a cabeça envergonhada.
- N consigo imaginar o que devem ter sentido com uma coisa dessas - observou
Jondalar. - Talvez fosse esse o motivo por que o rapaz deles te nha me atacado. Percebi
na ocasi que estavam com raiva. Já ouvi dizer que talvez fossem humanos e se são..
- Também já ouvi esse tipo de conversa - falou Laduni, ainda procu rando acalmar-
se - mas nifo acredite nisso!
- O chefe do bando que encontramos era inteligente e eles caminhavam sobre as
pernas, da mesma forma que nós.
47 - Os ursos também às vezes caminhavam sobre as suas patas traseiras. Não, os
cabeças-chatas são animais. Animais inteligentes, mas animais - Ladu iii se esforçava
para controlar-se, consciente do mal-estar reinante. - Em ge ral, são inofensivos., a não
ser quando incomodados. A raiva não deve ser por causa das fêmeas. Duvido que
compreendam como urna coisa dessas possa ser um desrespeito para com a Mãe. Estão
zangados por causa das provocações e das surras. Todas as vezes que se irrita um
animal, ele se defende atacando.
- Acho que o bando de Charoli arrumou para nós alguns problemas - falóu Thonolan.
- Estávamos querendo ir pela margem direita para não ter mos o trabalho de cruzar
quando o rio se toma no Grande Rio Mãe.
Ladum sorriu. Com a mudança do assunto, a sua raiva foi embora tão depressa
quanto havia chegado.
- O Grande Rio Mãe tem tributários que são verdadeiros rios, Thono lan. Se vocês
pretendem segui-lo até a foz, precisam ir acostumando-se a atra vessar de uma margem
para outra. Vou dar uma sugestão. Conservem-se deste lado até passarem pelo grande
redemoinho. Nesse ponto, as águas se separam em canais que passam a correr por
terras planas. Os afluentes menores são sempre mais fáceis de ser atravessados do que
grandes rios. Além disso, o cli ma nessa ocasião já estará quente. Se quiserem visitar os
Sarmunai, sigam para o norte, depois de fazerem a travessia.
- Qual é a distância daqui até o redemoinho? - perguntou Jondalar.
- Eu vou riscar um mapa para vocês - falou Laduni, pegando a sua faca de silex. -
Lanalia, me traga um pedaço de cortiça. Talvez alguém mais aqui possa fornecer outros
pontos de referência. Calculando o tempo necessário para as travessias de rios e para as
suas caçadas durante a viagem, deverão che gar no lugar onde o rio dobra em direção ao
sul lá pelo verão.
- Verão - repetiu Jondalar com expressão pensativa. - Já estou tão cansado de gelo
e neve que mal consigo esperar pelo verão. Até que viria bem a calhar um pouco de calor
- ele sentiu novamente a perna de Lanalia junto à sua e pôs a mão sobre a coxa dela.
nquanto Ayla, com cuidado, ia esco lhendo onde pôr os pés para descer a íngreme
enç rochosa da ravina, no 48 céu começavam a despontar as primeiras estrelas. Mal ela
havia saído da borda do platô, o vento cessou e por momento, ficou parada, saboreando
a quietu de. Os paredões, no entanto, reduziam a claridade começava a entrar em
declínio. Ao atingir o sopé da encosta, a densa vegetação ao longo do peque no rio era
uma massa confusa, fazendo uma silhueta recortada contra o refle xo faiscante de
miríades de pontinhos no céu.
Depois de tomar no rio um bom e refrescante gole, tateando, infiltrou- se na densa
escuridão projetada pelo paredifo. Não se deu ao trabalho de ar mar a barraca, limitou-se
a se enrolar na sua pele, sentindo-se mais segura com uma parede às costas do que
dentro de uma barraca de couro em campo aber to. Antes de adormecer, ficou
observando a lua rotunda que mostrava a sua face quase cheia sobre as bordas da
ravina.
Acordou com os seus próprios gritos. Pulou sobre os pés e, tomada de terror com as
têmporas latejando e o coração disparado, ficou a olhar as va gas formas no imenso
vazio negro à sua frente. De repente, deu um salto. Um estrondo seco foi seguido de um
clarão que por instante a cegou. Tremendo, viu um alto pinheiro ser atingido por um raio.
A árvore partiu-se e, lentamen te, querendo se segurar ainda na sua outra metade, foi
tombando.
Era um espetáculo sinistro. A árvore em chamas que iluminava a cena de sua
própria morte e sombreava grotescamente o paredifo ao fundo.
A chuva chegou para pôr fim aos estalidos e ao crepitar do fogo. Ayla apertava-se
contra a parede, alheia tanto às lágrimas quentes como aos pingos frios que lhe rolavam
pelo rosto. Num distante passado, um outro trovão, re miniscência do rumor de um
terremoto, havia animado das cinzas sepultadas na memória um sonho recorrente que
nunca a largava. Era um pesadelo do qual sempre saía sem se lembrar e que a deixava
nauseada e profundamente pesarosa. Outro relâmpago, acompanhado por um estrépito
ensurdecedor, encheu momentaneamente o vazio negro com uma claridade lúgubre,
dando- lhe a rápida visão dos paredões escarpados e da árvore despedaçada, como se
fora um simples graveto, pelo assombroso facho de luz, surgido do céu.
Tiritando tanto de medo como pelo frio úmido e penetrante, ela agarra va o amuleto,
buscando alguma coisa que oferecesse segurança. A sua reação não se devia somente
ao medo que lhe inspiravam os raios e trovoadas. Não gostava muito de tempestades,
mas era uma coisa com que estava habituada. Em geral, os aguaceiros mostravam-se
mais úteis do que destrutivos. Eram ain da as seqüelas emocionais deixadas pelos seus
pesadelos com terremotos. Cataclismos significavam desgraças. Eles sempre lhe
trouxeram perdas mons truosase sofridas mudanças de vida. Nada havia que ela mais
temesse.
Por fim, se deu conta de que estava molhada e retirou da cesta o pano de couro da
barraca. Botou-o sobre a pele de dormir, como um cobertor e en terrou a cabeça debaixo.
Mesmo depois de ter o corpo aquecido, ainda tremia, 49 3 mas à medida que a noite
avançou, a tempestade foi amainando e ela acabou dormindo.
Os pássaros enchiam o ar da manM com os seus trinados, gorjeios e grasmos
estridentes. Deliciada, Ayla afastou a coberta, olhando a sua volta. Um mundo verde,
ainda molhado da chuva, resplandecia sob o sol matinal. Ela se encontrava numa larga
praia rochosa, num ponto onde o pequeno no fa zia uma virada para o leste, num dos
seus muitos volteios que acabariam con duzindo-o para o sul.
Na margem oposta, o verde-escuro dos pinheiros fazia uma fileira que chegava até o
topo do paredifo. N o ultrapassava em altura. Toda tentativa de crescimento acima do
rebordo da gaganta do rio era ceifada pelas ventanias da planície no alto. Isso dava às
árvores um aspecto peculiarmente rombudo, forçadas que estavam a expandir-se em
amplas ramificações. Um imponente gigante - de simetria quase perfeita, n fosse o cume
despontando em ângu los retos com o tronco - havia crescido junto de outro com o seu
alto tronco chamuscado e irregular que se unia à sua copa de cabeça para baixo. As ár
vores haviam crescido numa estreita faixa do outro lado do rio, entre a mar gem e o pared
algumas t perto da água que ficaram com as suas raízes descobertas, expostas sobre a
terra.
Do lado em que estava, à montanha do rio, os salgueiros flexíveis fa ziam arcos
sobre as águas do riacho, chorando nelas lágrimas compridas e es verdeadas. As ramas
achatadas nos altos pés de choupos punham um tremor nas folhas que vibravam com a
suave brisa correndo. Os vidoeiros de cortiça branca cresciam em grupos, enquanto os
seus primos, os amieiros, nifo passa vam de arbustos altos. As lianas subiam,
enredando-se nas árvores e, amonto ando junto do riacho, touceiras formadas de
espécies variadas estavam em ple no verdor.
Por tanto tempo ela caminhara pelas estepes secas e estorricadas que n se
lembrava mais do quanto era bela uma paisagem verde. O pequeno rio brilhava
convidativarnente e, já esquecida da tempestade e de seus medos, saiu em disparada
pela praia. Um bom gole de água foi o primeiro pensamento, de pois, seguindo um
impulso, desatou a comprida correia da roupa, retirou o amuleto e se esparramou na
água. Logo o fundo do rio sumiu sob os pés. Ela mergulhou e, ent nadou na direç da
margem oposta, formada pelo íngre me paredao.
A água estava fria e revigorante. Era um prazer ficar livre da sujeira m crustada e da
poeira das estepes. Nadava contra a correnteza, sentindo-se ca da vez mais forte e a
água esfriando à medida que os paredões a prumo se comprimiam, estreitando o rio.
Virou-se de costas, pondo-se a boiar embalada pela água e se deixando arrastar de volta
pela correnteza. Os seus olhos fita- 50 vam o azul forte que enchia o espaço
compreendido entre os altos penhascos. Ent percebeu um buraco escuro no pared em
frente da praia, vista à montante do rio. Seria uma caverna?, perguntou- se já
entusiasmada. O que nifo sabia é se seria difícil chegar lá.
Voltou à praia e sentou-se sobre as pedras quentes, deixando o sol secá la. O seu
olhar foi atraído pelos passarinhos que saltitavam no châ tremeli cando com as suas
cabecinhas, à cata dos vermes trazídos à superfície pela chuva da noite; outros,
revoando de galho em galho, picavam as frutas nos arbustos.
Que framboesas! Estifo enormes! A sua aproximaç foi saudada por um burburinho
de asas batendo em polvorosa, que saíram para pousar em ou tros galhos n muito
distantes. Aos punhados, ela ia levando à boca as fram boesas, doces e suculentas.
Depois de se haver fartado bem, foi lavar-se.
Pen durou novamente o amuleto no pescoço e fez uma careta reparando na sua
roupa suada e suja. Ela n tinha outra. Quando, pouco antes de partir, en trara na caverna
sacudida pelo terremoto, pensando em apanhar roupas, ali mentos e abrigo, a sua
preocupação era com a sobrevivência e n com trajes de verso para mudar.
E novamente estava pensando na sobrevivência. Os pensamentos pessi mistas que
a dominaram, enquanto atravessava as planícies secas e monótonas, se dispersaram
diante da vista do vale fresco e frondoso. As framboesas ha viam estimulado o seu
apetite ao invés de satisfazê-lo. Agora, queria alguma coisa mais substancial. Pensando
em pegar a sua funda, foi até o lugar onde dormira. Estendeu o pano de couro molhado e
a pele úmida sobre as pedras aquecidas pelo sol, depois vestiu-se com a sua roupa suja
e começou a procu rar por pedras lisas e redondas.
Um exame mais acurado da praia revelou que ali havia mais do que pe dras. Lá se
achavam pedaços dispersos de madeira acinzentados e ossos alva centos, muitos dos
quais empilhados, fazendo um monte encostado numa ponta do penhasco. Os violentos
aguaceiros da primavera tinham arrancado árvores e arrastado os animais desavisados,
carregando-os através da estreita passagem rochosa e os atirando no cul-de-sac, perto
do pared que fechava as águas se revolvendo em redemoinhos. No meio da ossada, Ayla
viu gigan tescos galhos de veados, enormes chifres de bisões e diversas presas de mar
fim, igualmente imensas e curvas. Nem mesmo os grandes mamutes escapavam da força
das correntezas. Colossais blocos de pedras também apareciam mis turados aos
destroços. Os seus olhos se estreitaram, examinando umas pedras cinzentas e gredosas,
de tamanho médio.
"Isso é sílex!", disse para si mesma, depois de olhá-las mais de perto. "Tenho
certeza de que é. Precisava de um martelo para quebrar uma e saber, mas tenho quase
certeza de que é." Animada, saiu esquadrinhando a praia à 51 cata de uma pedia oval
que fosse boa para empunhar. Quando encontrou, bateu quebrando o revestimento
gredoso do nódulo. Um pedaço do córtex esbranquiçado separou-se, revelando o interior
opaco, num tom cinza-escuro.
"É sílex! Sabia que era!" Pela sua mente, desfilava toda uma variedade de
ferramentas que poderia fabricar. "Posso até fazer algumas para ter de re serva. Daqui
por diante, já não vou precisar de me preocupar quando tiver de quebrar alguma coisa."
Ela retirou do monte algumas outras pedras, saí das de depósitos calcários, localizados
em paragens mais acima do rio e carre gados pelas correntezas até o sopé do paredão
rochoso. A descoberta a ani mou a prosseguir em suas investigações.
O paredão que, em épocas de enchentes, servia como barreira para as fortes
correntezas, se projetava para dentro do rio, num ponto onde o curso fazia uma curva.
Quando contido dentro de suas margens normais, o nível do rio era bastante baixo e,
facilmente, se podia contornar o ponto do pe nhasco. De repente, ela parou, ao dirigir os
olhos para mais além na paisagem. À sua frente estava o vale que avistara de cima.
Contornando a curva, o rio se alargava e espumava por cima das pedras
descobertas pela água. Ele corria para leste, márgeando o roc do lado oposto da
garganta. À esquerda dela, para além da barreira de pedra, o pare dão do desfiladeiro se
desviava e a sua encosta fazia uma descida gradual até fundir-se com as estepes ao
norte e a leste. Em frente, o vale era um belo cam po de feno maduro, ondulando com o
vento vindo da direção das colinas ao norte. A meio caminho da encosta, pastava uma
manada de cavalos.
Ayla, aspirando toda a beleza e tranqüilidade do cenário, quase não acreditava que
tal lugar pudesse existir no meio das estepes ventosas e secas. O vale era um generoso
oásis escondido numa fenda aberta nas áridas planí cies. Um microcosmo de abundância
e riquezas, como se a natureza, compe lida a uma economia utilitarista naquela região,
prodigalizasse seus bens onde se lhe apresentou uma oportunidade.
Intrigada com os cavalos, Ayla os observava a distância. Eram animais compactos,
vigorosos, de patas um pouco curtas, pescoços grossos e cabeças grandalhonas com
focinhos compridos. Lembravam-lhe os narizes grandes e caídos de alguns homens dos
clãs. Tinham o pêlo grosso, hirsuto, e crina cur ta e tesa. Alguns tendiam para o
acinzentado, mas a maioria era em tons de amarelo que iam desde o bege-areia até a cor
do feno quando maduro. Afasta do um pouco do grupo, estava um garanhão cor de palha
e Ayla reparou que havia vários potros da mesma tonalidade. O garanhão levantou a
cabeça, sacu diu a crina curta e relinchou.
- Orgulhoso de seu clã, hein? - disse ela por meio de gestos e sorrindo.
Pôs-se, então, a caminhar pelo campo, perto da vegetação de arbustos que ladeava
o rio. Inconscientemente, ia reparando nas plantas, notando-lhes as propriedades
medicinais ou as suas qualidades alimentícias. Quando estava sendo treinada para
curandeira, ela teve de aprender a coletar e a conhecer as plantas que serviam à
fabricação de mágicas curativas e muito poucas não sabia ali identificar. Mas, naquele
instante, o seu objetivo era comida.
Ela reparou nas folhas e nos talos com flores secas, umbeladas, sugerin do a
existência de cenouras silvestres a alguns centímetros abaixo da terra, mas passou pela
planta como se não a tivesse visto. O que não era verdade. Mais tarde, a planta estaria
naquele mesmo local e ela se lembraria do lugar com tanta precisão, como se o tivesse
marcado. Os seus olhos afiados haviam apanhado o rastro de uma lebre e era no que o
seu pensamento se concentra va: conseguir uma boa càrne para comer.
Furtiva e silenciosamente, como um experiente caçador, seguiu os excrementos
frescos, a relva amassada e as marcas de pisadas, já quase apaga das. Logo percebeu,
pouco mais à frente, a forma de um animal camuflando se no meio da vegetação. Ela
retirou a funda de sua correia na cintura e pegou duas pedras guardadas numa dobra da
roupa. No momento em que a lebre saltasse, ela já estaria a postos. Com uma graça
natural, advinda de anos de prática, lançou uma pedra, e no instante seguinte uma outra,
ouvindo o tun que-tunque desejado e gratificante. As duas deram em cheio no alvo.
Ayla pegou o animal, lembrando-se do tempo em que, sozinha, apren dera a técnica
do lançamento de duas pedras. Havia sido por causa de uma tentativa, extremamente
presunçosa de sua parte, de querer matar um lince com uma funda. Ela, então,
compreendeu o quanto se achava vulnerável ao ataque das feras. Mas foi preciso muito
treino até conseguir colocar a segunda pedra na funda após o primeiro lançamento, de
modo a fazer dois disparos consecutivos.
No caminho de volta, cortou um galho de árvore, aguçou-lhe uma das extremidades
e o usou para desenterrar as cenouras. Meteu-as dentro de uma dobra da roupa e, antes
de regressar à praia, pegou ainda dois galhos bifurca dos. Ao chegar, botou a lebre e os
legumes no chão e tirou de dentro da ces ta o pauzinho e a tábua de fazer fogo. Em
seguida foi catar, debaixo dos ossos empilhados, pedaços grandes e secos de madeira, e
os galhos caídos sob as árvores. Com o mesmo instrumento que usou para aguçar a
ponta do pau de cavar, uma ferramenta com entalhes na forma de V no lado da borda
afiada, ela raspou os espinhos e os nódulos de um pau. Isso feito, dirigiu-se a um pé de
artemísia para retirar-lhe a casca solta e aveludada e depois foi apanhar algumas fibras
nas vagens de cardo.
Procurou um lugar confortável para sentar, separou a madeira de acor do com o
tamanho e arrumou, ao redor dela, as acendalhas, os gravetos e a lenha maior.
Examinou a plataforma - uma tábua de clematite - e fez, com um furador de silex, um
entalhe numa das beiradas e ajustou a extremidade 52 53 Poderia aproveitar a pele,
achou. Nifo iria demorar mais do que um ou do pau - um galho de espadana guardado da
estação passada - no buraco para testar-lhe o tamanho. Ajuntou as fibras de cardo no
meio das cascas pe gajosas, fazendo uma espécie de ninho sob o entalhe na tábua que
escorava com o pé. Por fim, meteu a ponta do pau no buraco e respirou fundo. Para fazer
fogo era preciso muita concentração.
Pôs a parte superior do pau entre as palmas da mifo e começou a girá lo de lá para
cá, ao mesmo tempo que pressionava-o para baixo. Enquanto rodava-o, as suas mifos
escorregavam por ele, chegando quase a encostar na tábua. Se tivesse alguém para
ajudá-la, nesse instante a outra pessoa pega ria o pau das mifos dela pela parte de cima,
dando seqüência ao trabalho. Mas sozinha, tinha que chegar até embaixo e rapidamente
voltar para a outra ponta, sem deixar cair o ritmo ou diminuir a pressifo, do contrário o
calor gerado pela fricção se dissiparia, antes de acumulai em quantidade suficien te para
dar início ao processo de combustifo da madeira. Era um trabalho duro que nifo permitia
um momento de descanso.
Ayla se entregou ao ritmo do movimento, ignorando o suor formando- se na testa e
pingando nos olhos. À medida que prosseguia, o buraco se apro fundava e a serragem
da madeira acumulava-se. Ela sentia o cheiro de quei mado, vendo o buraco enegrecer,
até que, por fim, se desprendeu a primeira fumacinha, encorajando-a a continuar, apesar
da dor nos braços. Uma peque nina brasa se formou na tábua e caiu sobre o ninho de
acendalhas embaixo. O estágio seguinte era mais decisivo ainda. Se a brasa apagasse,
teria de co meçar tudo de novo, desde o princípio.
Ela se curvou, colocando o rosto muito perto do carvifo, sentindo-lhe o calor
enquanto ia soprando- o. Vigiava a brasa avivar-se com cada um de seus sopros e
parecer apagar-se quando parava para retomar o fôlego. Pegou, en tifo, as raspas de
madeira e botou junto da pequenina brasa, vendo-as ilumi nar-se e escurecer, mas ainda
sem pegar fogo. Finalmente, apareceu uma cha ma. Soprou com mais força, alimentou o
fogo com mais raspas e quando teve uma pequena pilha ardendo, acrescentou os
gravetos.
Descansou só depois que viu os grandes tocos de madeira em chamas, com o fogo
realmente atiçado. Reuniu mais alguns pedaços de lenha e os dei xou empilhados perto
da fogueira. Em seguida, com uma ferramenta denta da, pouco maior do que a anterior,
raspou a casca do galho verde que usara para desenterrar as cenouras. Fincou os galhos
bifurcados no chifo, um de ca da lado da fogueira, de modo que o galho pontudo ficasse
bem encaixado nas forquilhas. Agora, era a vez de tratar da lebre.
Quando o fogo estivesse reduzido a carvões incandescentes, era o tempo que o
animal estaria sem a pele e pronto para ser assado. Ela estava começan do a enrolar as
entranhas na pele para jogar fora, como vinha fazendo duran te a viagem, mas mudou de
idéia.
dois dias..
Ela foi até o rio limpar o sangue de suas mifos e lavar as cenouras que enrolou em
folhas de tanchagem. Eram folhas grandes e fibrosas que, além de comestíveis, davam
boas ataduras para machucados e ferimentos. Os em brulhos de cenouras foram
colocados junto das brasas.
Por um momento, permitiu-se ficar recostada. Enquanto a comida cozi nhava,
aproveitou o tempo para limpar, do lado interno do couro, os vasos sanguíneos,
membranas e folículos pilosos. O seu raspador estava quebrado e ela pensou em fazer
um novo.
Com o pensamento perdido em conjecturas, ia trabalhando e cantaro lando uma
cantiga monótona e desafinada. "Talvez fique por aqui alguns dias para terminar de curtir
esse couro. De qualquer modo, estou precisando mes mo de fazer algumas ferramentas.
Gostaria de tentar chegar naquele buraco no paredifo. - . A lebre está começando a ter
um cheirinho delicioso. Numa ca verna estaria abrigada da chuva, mesmo que o lugar
nifo sirva para morar.”
Ela se levantou e virou o espeto sobre o fogo. A sua cabeça agora traba lhava em
outra direção.
"Eu nifo posso ficar muito tempo aqui. Preciso encontrar gente, antes que o inverno
chegue." De repente, parou de raspar a pele, deixando-se levar pelo seu tumulto interior,
sempre pronto a aflorar ao nível da consciência. "Onde será que estifo eles? Iza disse
que havia uma quantidade deles no con tinente. Por que nifo consigo encontrá-los? O
que é que vou fazer, Iza?" Sem que esperasse, as lágrimas lhe encheram os olhos,
escorrendo pelas faces. "Oh, Iza, sinto tanto a sua falta. E de Creb e de Ura.. . e de Durc,
o meu filluinho, o meu bebê. Eu queria tanto o meu filhinho. . . foi tifo cruel. E ele nifo tem
nada de deformado. É apenas diferente. Igual a mim.”
"Nifo. Igual a mim, nifo. Você será um homem dos clifs. Só que será mais alto e com
a cabeça parecendo um pouco diferente. Algum dia, será um grande caçador, um grande
atirador de funda também. E vai correr mais do que qualquer outro. Irá ganhar todas as
corridas nas Reuniões de Clifs. Talvez nifo ganhe as lutas. Pode ser que nifo vá ter muita
força, mas será um homem forte.
"Mas quem irá brincar com você de fazer sons com a boca? Aqueles sons tifo
alegres?
"Tenho de parar de pensar nisso", ralhou ela consigo, enxugando as lá grimas com
as costas da mao. "Devia estar feliz por haver pessoas que gostam de você. E quando
crescer, Ura virá para ser a sua companheira. Oda prome teu educá-la para ser uma boa
mulher para você, Durc. Ura também nifo é deformada. Ela é só diferente, igual a você.
Mas e eu? Será que algum dia en contrarei um companheiro?”
54 55
ela tomou a descer e seguiu novamente pela parede do fundo e do lado leste,
voltando à entrada. A caverna só tinha uma boca. Exceto aquele nicho, não havia
qualquer outro recinto ou túnel conduzindo a lugares secretos. Parecia confortável e
segura.
Ao sair, protegendo os olhos contra a luz, encaminhou-se para a beirada do
pequeno terraço em frente e olhou ao seu redor. Ela achava-se no alto do paredão, no
lugar onde este se projetava fazendo a ponta. Debaixo dela, à di- relia, estava a pilha de
ossos misturados com o madeirame arrastado pelas en chentes e a praia rochosa. À
esquerda, ao longe, avistava o vale. Para mais além, o rio virava para o sul, contomando
a base do penhasco, enquanto o pa redão à esquerda, do lado oposto, fundia-se com as
estepes.
Ela examinou o osso na sua mão. Era a comprida titia de um gigantesco veado, já
velha e seca, com marcas de dentes muito visíveis que chegavam até a medula. A
configuração da dentada, o modo como o osso estava roído, pa recia algo já visto e, ao
mesmo tempo, não. Que se tratava de um felino, disso não tinha dúvidas. Conhecia os
animais carnívoros melhor do que qualquer pessoa. Fora com esses animais que
aprendera a caçar, embora matasse só os de porte pequeno e médio. Mas aquelas
marcas haviam sido deixadas por um bicho grande, na verdade enorme. Ela se virou,
olhando de novo pan a ca verna.
"Um 1db! Isso já foi o covil de leões da caverna, O nicho seria um lugar perfeito para
a leoa ter os seus Íllhotes", pensou. "Talvez não deva passar a noite nela. Pode ser
perigoso." Ela tomou a olhar para o osso. "Mas isso está tão velho e a caverna há anos
não é usada. Além do mais, uma fogueira perto da entrada manterá os animais
afastados.”
"É uma boa caverna. Não existem tantas assim. Bastante espaçosa, bom chão de
terra e acho que não entra água. As enchentes de primavera não vêm até cá em cima.
Até buraco para saída de fumaça tem. Bom, acho que vou buscar a milita cesta e a minha
pele. - - trazer o fogo para cá e um pouco de comida.”
Ela correu de volta à praia. Quando voltou, estendeu o couro da barraca e a pele
sobre o chão de pedra do patamar em frente e pôs a cesta dentro da caverna. Em
seguida, fez diversos carregamentos de lenha para cima. "Talvez traga também algumas
pedras para pôr na fogueira", pensou, quando se prepa rava para descer mais wna vez.
Mas, de repente, parou.
"Para que vou querer pedras de cozinhar? Vou ficar sópoucos dias. Pre ciso
continuar procurando os Outros. Tenho de encontrar gente antes que ve nha o inverno.
"E se eu não achar ninguém?" Há muito tempo essa possibilidade ron dava o seu
espírito, mas evitava encarar o problema de frente. Às conseqüên cias eram
aterrorizantes demais. "Eseoinvernochegare eu ainda não tiver en contrado gente? Vou
estar sem nenhuma comida armazenada e sem nenhum lugar para morar. Aqui é seco,
quente e bem protegido contra a neve e o ven to. Nenhuma caverna para..
Ela deu uma olhada para a caverna outra vez, depois para o belo vale bem
protegido, com a manada de cavalos pastando ao longe, e novamente voltou a olhar para
a caverna. "É o lugar perfeito para mim", disse para si mesma. "Muito tempo vai passar
até que eu tome a encontrar outro igual E também o vale. Poderia coletar, caçar e fazer
estoque de mantimentos. Há água e lenha com fartura. - - para muitos e muitos invernos.
Até silex há. E não existe vento. Tem tudo que preciso. . .menos gente.”
"Não sei se conseguirei agüentar um inverno inteiro sozinha. Mas, por outro lado, a
estação já está muito adiantada e preciso começar a fazer os meus estoques de comida.
Se até agora ainda não encontrei ninguém, quem garante que, daqui para diante, vou
achar? Se encontrar os Outros, como vou saber que eles me deixarão ficar? Eu não sei
quem são. Alguns deles são tão ruins quanto Broud. Veja o que aconteceu com Oda. Ela
disse que foi violada por homens dos Outros, da mesma maneira como Broud me forçava
a ter reta ções com ele. - . Oda disse que eles pareciam comigo. E se todos forem
maus?" Ayla tornou a olhar para a caverna e depois para o vale. Pôs-se, então, a canil
nhar em volta do terraço, deu um pontapé numa pedra que estava solta na beirada do
penhasco, olhou para os cavalos e tomou a decisão.
- Cavalos - disse ela - por algum tempo vocês vão ter-me aqui, dividin do este vale
com vocês. Na primavera que vem, começo outra vez a procurar pelos Outros. Se não
me preparar para o inverno desde agora, talvez na prima vera já não esteja mais viva.”
Esse discurso dirigido aos cavalos era expressado apenas por alguns pou cos sons
guturais e entrecortados. Os sons, ela os empregava somente para di zer nomes ou para
enfatizar a língua rica e complexa, mas perfeitamente com preensiva, que falava com
graciosos e fluídicos movimentos de mãos. Essa era a única língua de que se lembrava
haver aprendido em sua vida.
Uma vez a decisão tomada, sentiu-se aliviada. Odiava a idéia de abando nar aquele
belo vale e enfrentar novos dias de provação, caminhando pelas es tepes ressequidas e
ventosas. Abominava o pensamento de viajar, para qual quer parte que fosse. Desceu à
praia e se abaixou para apanhar a roupa e o amuleto. No que foi pegar o saquinho de
couro, reparou em algo, como um pedacinho de gelo brilhando ao sol.
"Gelo, em pleno verão? Como pode ser isso?" Perguntou-se apanhando a pedra.
Mas etitão percebeu que não era fria. Tinha as bordas duras e bem de finidas e as faces
lisas e chatas. Ela a virava de um lado para outro, observando as suas facetas brilhando
com a luz. Nisso, aconteceu de virar justamente na angulação em que o prisma separa a
luz solar nas cores do espectro. Ao ver o 1 .1 58 59 arco-íris que se projetava no chão,
parou de respirar. Aquela era a primeira vez que encontrava um cristal de quartzo em
estado puro.
Esse cristal, como o sílex e muitas outras variedades de pedras existen tes na praia,
eram blocos erráticos, estranhos ao ambiente. A pedra brilhante fora arrancada de seu
lugar de origem pelas forças do elemento com que se pa recia - o gelo - e arrastada para
os depósitos de aluvião da corrente glacial.
Subitamente, ela sentiu um frio, ainda mais gelado do que o próprio ge lo, subir-lhe
pela espinha. Sentou-se. Estava abalada demais com o seu pensa mento e o significado
daquela pedra. Lembrava- se do que Creb lhe dissera, há muitos anos, quando era ainda
uma menina. - - Era inverno e o velho Dorv havia contado algumas histórias. Ela conjec
turava sobre a lenda que acabara de ouvir, fazendo perguntas a Creb que o le varam a
falar sobre a importância e o significado dos totens:
- Os totens querem um lugar para viver. Provavelmente, eles abando nam aqueles
que ficam rondando por aí, sem ter onde morar. Você.não gos taria de ser abandonada
pelo seu totem, não é?
Ela pegou no seu amuleto.
- Mas quando ed estava sozinha e sem casa o meu totem não me aban donou.
- Isso era porque você estava sendo posta à prova por ele, O seu totem achou um
lar para você, não é verdade? O Leão da Caverna é um totem forte, Ayla. Ele a escolheu.
Talvez, por isso, ele tenha resolvido que você ficasse para sempre sob a sua proteção,
mas todos os totens ficam mais felizes quan do possuem uma moradia. Se você cuidar
dele, terá a sua ajuda. Ele lhe dirá o que é melhor.
- E como é que vou saber, Creb? Nunca vi um espírito de Leão da Ca verna. Como
é que vou saber quando um totem está contando alguma coisa para agente?
- Você não pode ver o espírito de seu totem porque ele é parte de vo cê. Mas
mesmo assim ele fala com você. Apenas a pessoa tem de aprender a entendê-lo. Se
você tiver de tomar uma decisão, ele a ajudará. Mandará um si nal para você, quando a
sua escolha for acertada.
- Que tipo de sinal?
- É difícil dizer. Em geral, é alguma coisa muito particular ou fora do comum. Pode
ser uma pedra que você nunca tenha visto antes, ou alguma raiz com uma forma especial
que faça sentido para você. É preciso aprender a entendê-lQ com o coração e com a
mente, não com os olhos ou os ouvidos. Então, você saberá. Mas quando chegar a
ocasião e você encontrar o sinal que o seu totem lhe estiver dando, guarde a coisa no
seu amuleto. Isso vai lhe tra zer sorte.
"Ó Leão da Caverna, está você ainda me protegendo? É isso um sinal? Será que
tomei a decisão correta? Está você me dizendo que devo ficar nesse vale?”
Segurando, com as mãos em concha, o faiscante cristal e de olhos fecha dos, ela
tentava meditar à maneira de Creb, procurando ouvir com o coração e a mente, querendo
acreditar que o seu poderoso totem não a havia abando nado. Pensava em como fora
obrigada a partir, nos longos e cansativos dias passados caminhando à procura de seu
povo, indo para o norte, como lhe tinha dito Iza. Indo sempre para o norte...
"Os leões da caverna. O meu totem colocou os leões no meu caminho pan que eu
tomasse o rumo do oeste. Ele estava me guiando para este vale. Queria que eu
encontrasse estas terras. Estava cansado de ficar viajando e de sejava esse lugar para
morar. Numa caverna que já foi habitada por leões. Num lugar onde ele se sente bem.
Ele continua comigo. Ainda não me abandonou.”
O alívio sentido com a revelação tornou-a consciente do estado de ten são em que
vinha vivendo. Ela sorria e batia com as pálpebras para limpar as lágrimas, enquanto
desatava os nós do cordão que fechava o saquinho. Despe jou, então, os objetos que se
achavam no seu interior e pegou-os um por um.
O primeiro foi um torrão de ocre vermelho. Todas as pessoas nos clãs traziam
consigo um pedaço dessa sagrada pedra. Era a primeira coisa a entrar nos seus
amuletos e dada pelo Mog-ur no dia que ele lhes revelava os totens. Normalmente, a
designação do totem da pessoa se fazia quando esta ainda era criança de colo, mas no
caso de Ayla, ela só veio a conhecer o seu totem aos cinco anos de idade. Não muito
depois dela ter sido encontrada por Iza, Creb fez a revelação,, quando, então, o clã a
aceitou. Ayla esfregava a cicatriz em sua perna na forma de quatro linhas paralelas,
olhando, agora, o segundo objeto: o fóssil de um gastrópode.
Parecia a concha de algum bicho do mar, mas era uma pedra. Foi o pri meiro sinal
enviado pelo seu totem e ele sacramentava a sua decisão de caçar com funda. Ela,
então, como não podia chegar na caverna trazendo animais cuja carne era usada para
comer, resolveu matar somente os predadores que eram animais muito mais astutos e
perigosos. No entanto, isso serviu para que desenvolvesse uma técnica extremamente
apurada. O objeto seguinte que pe gou foi o seu talismã de caçadora: um ovo de marfim
tingido de vermelho e dado pelo próprio Brun na fascinante e assustadora cerimônia que
a tomou na Mulher Caçadora- Ela passou a mão na minúscula cicatriz em sua garganta,
onde Creb fizera um diminuto corte para sacrificar o seu sangue em honra dos antigos
espíritos.
O próximo objeto tinha especial significado e quase trouxe novamente lágrimas aos
seus olhos. Ela segurou, apertando na mão, os três nódulos de pi rita de ferro, colados
um no outro. Este lhe foi dado pelo seu totem para que 60 61 ela soubesse que o seu
filho iria viver, O último foi um pedaço preto de dióxi do de manganês, dado pelo Mog-ur,
quando ela foi feita curandeira e, portan to, portadora de uma parte do espírito de cada
um dos membros do clã. De repente, atravessou-lhe wn mau pensamento. "Será que o
fato de Broud me amaldiçoar significa que o resto das pessoas estão também
amaldiçoadas? Quando Iza morreu, Creb teve o cuidado de retirar dela os espíritos, para
que eles não a acompanhassem ao outro mundo. E de mim, ninguém retirou espíritos.”
Uma sensação ruim, de mau agouro, apoderou-se dela. Desde a Reunião dos Clãs,
onde de maneira inexplicável Creb passou a vé-la como alguém dife rente, ela vez por
outra se sentia estranhamente desorientada, como se ele a tivesse transfonnado. Era
uma sensação de fraqueza que sobrevinha com náu sea e formigamento da pele e um
imenso pavor do que a sua morte pudesse significar para os clãs.
Ayla tentou afastar os maus pensamentos e pegou o saquinho de cou ro, guardando
de volta a pequenina coleção de objetos, agora acrescida do cristal de quartzo. Enquanto
amarrava de novo o amuleto, examinou o cor dão, procurando por sinais de desgaste.
Creb lhe tinha dito que ela morreria se o perdesse. Ao recolocá-lo, pendurado no
pescoço, sentiu a diferença de peso.
Sozinha, sentada sobre a praia pedregosa, ela se perguntava o que teria acontecido
antes de a terem encontrado. Não tinha a menor lembrança de sua vida anterior, mas era
muito diferente de todo mundo que conhecia- Alta demais, extremamente pálida, com um
rosto nada parecido com o das pessoas dos clãs. Ela tinha visto a sua imagem refletida
nas águas paradas de um lago. Era feia. Broud o dissera muitas vezes e todo mundo
achava. Era uma mu lher grande e feia e nenhum homem iria querê-la.
"Também nunca quis saber de nenhum deles", pensou- "Iza disse que eu precisava
de um homem de minha própria raça, mas por que um homem dos Outros iria me querer
mais do que um homem dos clãs? Talvez seja melhor mesmo eu ficar por aqui. Ainda que
encontre os Outros, como vou sa
ber que arranjarei um companheiro?”
Jondalar, agachado, observava a mana da através de uma cortina de relva dourada
dobrando-se ao peso das espigas ainda por amadurecer. Um cheiro forte de cavalo,
quente, morrinhento, im pregnava o ar, trazido, não pelo vento quente, batendo-lhe no
rosto, mas pe lo esterco fresco que ele havia esfregado no corpo e nas axilas, com isso
pre tendendo disfarçar o próprio odor, caso o vento mudasse de direção O sol quente
brilhava nas suas costas suadas e morenas, e os fios de suor que lhe escorriam pelas
têmporas enegreciam o cabelo descolorado e empas tado na testa. No rosto, o vento
soprava, incomodando uma mecha compri da, escapada do laço de couro amarrando a
cabeleira na nuca. Vez por outra, as moscas zumbindo ao redor picavam-lhe a pele e a
posição forçada, de cóco ras, punha um início de calbra na perna esquerda.
Eram Incómodos pequenos que quase não reparava. A sua atenção estava toda
voltada para um garanhão que empinava, bufando, estranhamen te consciente do
iminente perigo ameaçando o seu harém. As éguas pastavam, mas iam interpondo-se,
aparentemente descuidadas, entre os seus potros e os homens.
Thonolan, a poucos metros adiante, estava agachado na mesma posi ção forçada-
Tinha uma lança levantada sobre o ombro direito e outra que segurava com a mão
esquerda. Ele olhou para o irmão. Jondalar levantou a cabeça e piscou os olhos na
direção de uma égua acinzentada. Thonolan, remexendo a lança na mão para sentir-lhe o
equilíbrio, fez sim com a cabe ça e se preparou para saltar.
Como se já houvessem previamente combinado, os dois pularam ao mes mo tempo
e foram em disparada na direção da manada. O garanhão empina va, dando relinchos de
aviso. ilionolan atirou a sua lança na égua, enquanto Jondalar, aos gritos e uivos, ia direto
para o garanhão, tentando assustá-lo. A zoeira dava resultado. O animal não estava
habituado a predadores baru lhentos. Os caçadores de quatro patas eram furtivos e
silenciosos em seus ataques. O garanhão, com relinchos lamuriosos, arremessou-se na
direção do homem, mas acabou esquivando-se e galopou atrás da manada batendo em
retirada.
63 4 , 62 Os dois irmãos correram em perseguição. O garanhão percebeu que a
égua ia ficando para trás e mordiscava as suas ancas, querendo pressioná-la. Os
homens agitaram os braços, gritando, mas desta vez o garanhão fincou pé no seu
terreno. Atirando-se entre os homens e a égua, ele os mantinha a dis tância, enquanto
cutucava a fêmea, procurando incentivá-la. A égua, camba leando, deu mais uns poucos
passos, depois parou com a cabeça pendurada. A lança de Thonolan estava cravada na
ilharga, fazendo correr ifietes de san gue que manchavam o couro acinzentado e
pingavam da crina.
Jondalar veio para mais perto, fez pontaria e atirou a sua lança. O ani mal
estremeceu, cambaleou e caiu. A segunda lança foi enterrar-se no pesco ço, sob a
espessa moita da crina. O garanhão aproximou-se e, delicadamente, lhe encostou o
focinho, em seguida retrocedeu e, soltando um berro de desa fio, correu atrás da
manada. Só lhe restava proteger os vivos.
- Vou pegar os baús - falou 'flionolan, enquanto, cansados, caminha vam na direção
do animal tombado. - Será mais fácil trazer a água para cá do que levar o animal até o
rio.
- Não vamos botar toda a sua carne para secar. Podemos levar só o que queremos
até a margem do rio; assim, não precisamos trazer a água para cá.
Thonolan encolheu os ombros.
- Por que não? Vou apanhar um machado para partir ossos - falou, encaminhando-
se para o rio.
Jondalar desembainhou a sua faca de cabo de osso e fez um talho pro fundo na
garganta. Arrancou as lanças do corpo do animal e ficou observan do a poça de sangue
que ia formando-se ao redor da cabeça.
- Quando você regressar para a Grande Mãe Terra, agradeça a ela - fa lou,
dirigindo-se ao animal.
Instintivamente, ele levou a mão à sua sacola, apalpando a estatueta de pedra da
Mãe. "Zelandoni tem razão", pensou. "Se os fflhos da terra esque cerem daquela que os
sustenta, talvez algum dia, quando acordarmos, vamos descobrir que estamos sem
casa." Agarrou, então, a faca, preparando para ofertar a Doni a sua parte.
- Na volta, vi uma hiena. Parece que além de nós dois vamos ter outros convidados -
falou Thonolan.
- A Mãe não gosta de desperdícios - respondeu Jondalar, sujo de san gue até os
cotovelos. - Dessa ou daquela maneira, tudo acaba voltando para ela. Bom, ajude-me
aqui.
- É um risco e você sabe disso - dizia Jondalar, atirando mais lenha na fogueira.
Algumas fagulhas flutuaram no ar, antes de desaparecerem junto com a fumaça na
escuridzo da noite- - Que faremos quando o inverno chegar?
gente.
- Até o inverno, ainda há muito tempo. Até lá, devemos encontrar - Se voltarmos
agora, poderemos encontrar pessoas. Ainda dá tempo para chegar nos Losadunai, antes
que o inverno aperte - ele se virou, olhan do para o irmão. - Não sabemos como é o
inverno do lado de cá das monta nhas. Aqui é mais aberto, menos protegido e as árvores
são poucas para lenha. Talvez seja melhor tentarmos achar os Sarmunai. Eles podem
nos dar uma idéia do que nos aguarda pela frente e também informações das pessoas
que vivem por essas bandas.
- Você pode voltar se quiser, Jondalar. Desde o começo, a minha iriten ção era fazer
essa viagem sozinho. . - não que não goste de sua companhia.
- Não sei- - . talvez devesse - respondeu Jondalar, virando-se para olhar o fogo. -
Não fazia idéia da extensão deste rio- Olhe só para ele - falou, apontando para a água
tremeluzindo sob o reflexo do luar. - Esse rio é a Mãe dos outros e tão imprevisível
quanto ela. Quando começamos a segui-lo, ele la na direção leste, agora está indo para o
sul, dividido em diversos canais. Às vezes tenho dúvidas se estamos realmente seguindo
o rio certo. Qualquer que fosse a distância, achava que não estava falando sério, quando
disse que queria acompanhá-lo até o seu final. Além disso, mesmo que encontremos
pessoas, como você poderá saber se é gente amiga?
- São nessas coisas que está a graça de uma viagem, Jondalar. Descobrir novos
lugares, conhecer caras novas. Tem-se que confiar na sorte. Olhe aqui, meu irmão, se
quiser, volte. Falo sério.
Jondalar encarava o fogo, batendo ritmicamente com o pau na palma da mão. De
repente, saltou sobre os pés e atirou o pau no fogo, fazendo pular um mundo de fagulhas.
Deu uns passos e se pôs a olhar as tiras de carne que secavam penduradas em cordas
de fibras retorcidas e esticadas entre as esta cas que fincaram no chão.
- E por que teria eu de voltar? Aliás, o que eu espero do futuro?
- A próxima curva do rio. Um outro nascer do sol e a pró a mulher com quem irá
deitar-se - falou Thonolan.
- E isto é tudo? É só o que você quer da vida?
- E fora isto, o que há mais a esperar? Você nasce, vive o melhor que pode
enquanto está neste mundo e, algum dia, volta para a Mãe. Depois disso, ninguém
sabe...
- Há de haver mais coisa do que isso. Deve existir alguma razão para viver.
- Se algum dia descobrir, me conte - disse flonolan bocejando. - Estou esperando
pelo próximo nascer do sol, mas um de nós tem de ficar acordado, ou do contrário vamos
ter de acender mais fogueiras para manter os bichos afastados, se quisermos que essa
carne esteja aí amanhã de manhã.
1 64 65 - Vá você dormir. Eu fico acordado. De qualquer modo, não iria mes mo
conseguir pegar no sono.
- Você se preocupa muito, Jondalar. Quando ficar cansado, me acorde.
O sol já havia saído quando flonotan se arrastou para fora da barraca, esfregando os
olhos e espreguiçando.
- Você ficou acordado a noite toda? Eu lhe disse para me chamar.
- Fiquei pensando e não me deu vontade de ir para a cama. Se quiser, o chá de
sálvia está quente.
- Obrigado - respondeu Thonolan, despejando com uma concha o lí quido
fumegando dentro de uma cuja de madeira. Ele se acocorou perto da fogueira, segurando
a cuia entre as mãos. A relva estava molhada e, vestido só com uma tanga, sentia o ar
frio da manha. Ficou observando a revoada dos pássaros que cantavam barulhentamente
ao redor de um pequeno matagal e das árvores perto do rio. Um bando de garças,
aninhado numa ilha de salguei ros no meio do canal, fazia a sua refeição matinal de
peixes.
- Bom. . - e então?
-Então,o quê?
- Descobriu o sentido da vida? Não era com que estava preocupado on tem à noite,
quando fui dormir? Se bem que jamais entenderei por que ficou acordado a noite toda por
causa disso. Bom, a não ser que haja alguma mu lher por aqui. - - Será que você tem
alguma das filhas de Doni escondida no meio dos salgueiros?
- E se eu tivesse, você acha que iria dizer? - falou Jondalar, sorrindo.
- Você não precisa fazer piadas sem graça para me deixar de bom humor,
irmãozinho - acrescentou já meio sério. - Vou acompanhá-lo até o fim do rio, se é que
você quer saber. Mas, depois disso, o que vai fazer?
- Isso depende do que encontrarmos lá. Bom, eu achei que o melhor a fazer seria ir
para a cama. Você não é boa companhia quando entra numa de suas fases de rabugice.
Fico satisfeito por ter resolvido a vir. Já me acos tumei com você, com o seu mau humor
e fudo.
- E eu já disse que alguém tem de estar junto de você para impedi-lo de se meter em
enrascadas.
- Está falando de mim? Bem que gostaria de me meter numa enrasca da. Seria
melhor do que ficar aqui sentado esperando essa carne secar.
- Se o tempo continuar firme, será só põr uns dias. Mas, mudando de assunto, não
tenho muita certeza se devo ou não contar para você o que eu vi - falou Jondalar,
piscando o olho.
- Ora, deixe disso-Você sabe que de qualquer maneira vai. - - 'flionolan, há um
esturjão imenso no rio. . . mas, nem pensar em pescá-lo. Você também não iria querer
esperar que o peixe secasse.
- De que tamanho? - perguntou Thonolan. Ele se pôs de pé e olhava ansioso para o
rio.
-. É tifo grande que não sei se nós poderíamos arrastá-lo para fora.
- Nenhum esturjão é tão grande assim.
- Esse que eu vi era.
- Venha mostrar.
- Quem você pensa que eu sou? A Grande Mãe? Por acaso acha que te nho
poderes para fazer surgir um peixe e mostrá-lo para você? - Thonolan pa recia desolado.
- Mas vou mostrar o lugar onde eu vi o peixe.
Os dois se encaminharam para a margem e ficaram postados perto de uma árvore
caída, com uma parte banhada pela água- Como se só para tentá los, uma forma escura
apareceu subindo o rio e parou debaixo da árvore, per to do fundo, ondulando-se
levemente contra a correnteza.
- Esse deve ser a mãe de todos os peixes - sussurrou Thonolan.
- Mas será que conseguiremos pescá-lo?
- Podemos tentar.
- Daria para alimentar uma Caverna inteira ou até mais. O que iríamos fazer com
ele?
- Não é você quem diz que a Mãe nunca deixa que nada se desperdice? Os carcajus
e as hienas podem ficar com uma parte. Vamos pegar as lanças - disse 'flionolan, já louco
pela pescaria.
- Lanças não vão adiantar. hemos precisar de arpões.
- Até fazermos os arpões, o esturjão já terá sumido.
- Mas se não fizermos, nunca conseguiremos apanhá-lo. Escaparia fácil de uma
lança. Precisamos arrumar alguma coisa que tenha um gancho volta. do para fora. Não
levaria muito tempo para fazer. Olhe aquela á ali na frente. Se cortarmos os galhos bem
juntos de uma bifurcação resistente, não precisamos nos preocupar com reforços.
Usamos o galho tal como está - fala va Jondalar ilustrando a sua descrição com gestos
no ar - depois cortamos os galhos, afinamos a ponta e arrumamos um gancho para...
- Mas de que vai adiantar se o peixe for embora antes de você arrumar isso tudo? -
interrompeu Thonolan.
- Já vi esse peixe aqui duas vezes. Parece que o seu lugar predileto de descansar é
aqui. Provavelmente irá voltar- - Mas quem sabe quanto tempo ele vai demorar para
retomar?
- Tem alguma coisa melhor para fazer neste instante?
Thonolan deu um sorriso forçado.
- Está certo. Você venceu. Vamos fazer o arpão.
Os dois se viraram para voltar, mas pararam assustados. Diversos ho. mens, com
expressões sem dúvida alguma pouco amistosas, achavam-se lá, cercando-os.
66 67 - De onde saíram? - perguntou Thonolan, com voz rouca sussurrada.
- Devem ter visto nossa fogueira. Talvez já estejam nos espreitando há muito tempo.
Como eu passei a noite inteira acordado para vigiar a came, eles deviam estar à espera
de um momento em que nos pegassem desprevenidos, com as nossas lanças fora de
alcance.
- Não estão parecendo muito sociáveis. Ninguém faz um gesto de sau dação. O que
vamos fazer?
- Ponha na sua cara o seu riso mais arreganhado e bonito e faça você o gesto,
irmãozinho.
Thonolan procurou mostrar-se confiante e, exibindo aquilo que imagi nava fosse o
sorriso de alguém seguro de si, encaminhou-se na direção das p€s soas com as mãos
estendidas.
- Eu sou Thonolan dos Zelan...
Os seus passos foram barrados por uma lança que ficou balançando cra vada no
chão junto aos seus pés.
- Tem alguma outra sugestão a fazer, Jondalar? Acho que agora é a vez deles.
Um dos homens disse alguma coisa numa língua desconhecida e dois ou tros
saltaram na direção deles, pondo-se a pressioná-los com as pontas das • lanças, de
modo a fazê-los ir em frente.
- Não precisa ser malcriado, amigo - falou Thonolan, sentindo uma es petada. - Nós
estávamos mesmo indo nessa direção quantlo vocês apareceram.
Eles foram levados para o lugar onde tinham o acampamento e jogados no chão
com brutalidade. Aquele que havia falado antes rosnou uma outra ordem. Alguns homens
entraram na barraca e retiraram tudo do seu interior. As lanças foram tiradas dos baús e
o conteúdo deste empilhado no chão.
- O que vocês acham que vão fazer? - gritou Thonolan, começando a levantar-se.
Ele foi obrigado a se manter no lugar e sentiu um fio de sangue escorrer-lhe pelo braço.
- Fique calmo, Thonolan - conselhou Jondalar. - Eles parecem zan gados e achá que
não estão dispostos a aceitar reclamações - Isso é modo de tratar visitas? Será que
desconhecem os direitos de trâmite dos que estão em viagem?
- Foi você mesmo quem disse, Thonolan.
- Disse o quê?
- Que se tem de confiar na sorte e que a graça de uma viagem está nisso.
- Obrigado - falou Thonolan, passando a mão na ferida em seu braço e olhando para
os dedos sujos de sangue- - Era exatamente o que eu estava pre cisando ouvir- Aquele
que parecia ser o chefe tomou a expedir algumas outras ordens e os dois irmãos foram
erguidos sobre os seus pés- Thonolan, apenas com a sua tanga, mereceu só um olhar
rápido, mas Jondalar foi revistado e ficou sem a sua faca de cabo de osso. Um dos
homens pegou-lhe a sacola presa em seu cinto e ele tentou agarrá-la. No instante
seguinte, estava sentindo uma forte dor na nuca e tombando no chão.
Ficou tonto só alguns momentos. Quando a sua cabeça clareou, encon trou-se
estendido no chão, fitando os olhos cinzas de Thonolan, com expres são preocupada. As
suas mãos se achavam atadas nas costas por correias - Foi você mesmo quem disse,
Jondalar.
- Disse o quê?
- Que eles não estão a fim de agüentar reclamações.
- Obrigado - disse Jondalar com uma careta, sentindo subitamente for te dor de
cabeça. - Era exatamente o que eu estava precisando ouvir.
- O que você acha que vão fazer conosco?
- Bom, ainda estamos vivos. Se quisessem nos matar, já o teriam feito.
- Talvez estejam nos guardando para alguma coisa mais especial.
Os dois ficaram deitados no chão, vendo os desconhecidos andarem pelo
acampamento e ouvindo- lhes as vozes. A um certo momento, eles come çaram a sentir
os seus estõmagos rosnando com o cheiro de comida cozinhan do. Quando o sol ficou
mais alto no céu, o problema tomou-se ainda pior com o calor forte e a sede. No
transcorrer da tarde, Jondalar adormeceu- Sem ter dormido na noite anterior, o sono
acabou vencendo-o. Foi acordado com o barulho de gritos e passos apressados.
Alguém havia chegado.
Os dois foram postos de pés. Inteiramente estupefatos, deram com a cena de um
homem corpulento que vinha na direção deles, carregando nas costas uma velha
extremamente enrugada e de cabelos brancos- O homem fi cou de quatro e a mulher foi
ajudada a descer da sua cavalgadura humana.
- Seja quem for, deve ser um bocado importante - falou Jondalar. Um soco nas
costelas veio calar a sua boca.
A mulher encaminhou-se para eles, apoiando-se num cajado que era um pau
nodoso, com um adorno esculpido no cabo. Jondalar não tirava os olhos dela, certo de
que nunca vira em sua vida alguém tão velho. Com a idade, a mulher encolhera, ficando
da altura de uma criança e os cabelos brancos rarefeitos deixavam à mostra o couro
cabeludo rosado. O rosto estava tão enrugado que quase não parecia mais o de um ser
humano, mas os olhos curiosamente destoavam. Em alguém tão velho, o normal seria
que fossem senis, opacos e lacrimosos. Mas não. Brilhavam com inteligência, espargindo
autoridade. Jondalar estava pasmo com a minúscula figura da mulher e um tanto
temeroso por 'flionolan. - - e por ele também- Ela não teria sido trazida se não fosse por
motivo muito importante.
68 69 Quando a mulher falou, a voz tinha as dissonãncias próprias da idade, mas
era surpreendentemente forte. O chefe apontou na direçãode Jondalar e ela lhe dirigiu
uma pergunta.
- Peço desculpas, mas não compreendo -. falou ele.
Batendo no peito com a mão, tifo encaroçada quanto o seu cajado, ela tomou a falar,
dizendo algo que foi ouvido como Haduma. Depois, apontou o seu dedo nodoso para ele.
- Sou Jondalar dos Zelandonli - disse, esperando ter entendido o que ela pretendia
dele.
A mulher levantou a cabeça como que apurando os ouvidos.
- Zelan-do-nie? - repetiu devagar.
Jondalar, nervoso, fez sim com a cabeça, passando a língua nos lábios ressequidos.
Ela ficou encarando-o, com jeito especulativo. Depois, falou, dirigindo- se ao chefe.
À resposta deste saiu brusca. Ela deu uma ordem extremamente lacônica e se virou,
encaminhando-se para a fogueira. Um dos homens que os vigiavam puxou uma faca.
Jondalar deu uma olhada no irmão. Pela sua cara, Thonolan estava sentindo a mesma
coisa que ele. Jondalar preparou-se para o que desse e viesse e, de olhos fechados,
dirigiu uma prece à Grande Mãe.
Abriu-os quando, com um suspiro de alívio, sentiu que lhe retiravam as correias,
desamarrando as suas mãos. Um homem se aproximava trazendo um odre com água.
Depois de sorver longos goles, Jondalar o passou para o irmão, também já com as suas
mãos livres. Ele ia abrir a boca para agradecer, mas se lembrando do soco nas costelas
achou melhor pensar duas vezes antes de o fazer.
Os dois foram escoltados até a fogueira por guardas com lanças amea çadoras que
os vigiavam de perto. O homem corpulento, que tinha carregado a velha, trouxe uma tora,
botou um manto de pele sobre esta e se afastou para o lado, mantendo a sua mão sobre
o cabo de uma faca. Ela acomodou. se no toco e, os irmãos foram postos sentados à sua
frente. Todos os dois tinham o máximo cuidado para não fazer qualquer movimento que
pudesse ser interpretado como agressivo à velha. Não tinham a menor dúvida sobre qual
seria o destino deles caso passasse pela cabeça dos homens ali que eles poderiam feri-
la.
Ela, sem dizer palavra, encarava Jondalar outra vez. O olhar dele encon trou-se com
o dela, mas à medida que o silêncio prolongava-se, ele começou a sentir-se
desconcertado, pouco à vontade. De repente, a mulher meteu a mão dentro de seu
vestido e, com os olhos fuzilando de raiva e soltando um mundo de imprecaçôes -. que
eles não entendiam, mas percebiam -. estendeu para ele um objeto. Jondalar, surpreso,
arregalou os olhos. Ela tinha na mão a estatueta de pedra representando a Mãe, a sua
donii.
Com o canto dos olhos, ele percebeu que o guarde ao seu lado se enco lhera
assustado. Havia qualquer coisa na donii que o perturbava.
A mulher terminou o seu palavrório e, num gesto de efeito, levantou o braço atirando
a estatueta ao chão. Instintivarnente, Jondalar deu um salto, conseguindo ainda agarrá-
la. No seu rosto se via a raiva que sentia pelo ato de desrespeito para com o sagrado
objeto. Ignorando as picadas da lança, ele pegou a imagem, segurando-a de modo a
protegê-la.
A uma palavra da mulher, a lança foi retirada de cima dele. Jondalar, surpreso, viu
um riso no rosto da velha e um brilho divertido nos seus olhos, mas estava longe de
saber se era de bom humor ou malícia.
Ela se levantou do toco, vindo para mais perto. Nãoera muito mais al ta em pé do
que sentada. Encarava-o diretamente dentro de seus olhos muito azuis, com uma
expressão de espanto. Depois, deu um passo atrás, virou a ca beça dele de um lado para
o outro, apalpou-lhe os músculos do braço e exami nou a largura dos ombros. Ela fez-lhe
um gesto para que se levantasse. Ele não percebeu imediatamente, mas a estocada do
guarda o fez logo compreender. A velha jogou para trás a cabeça, querendo avaliar
melhor o seu metro e no venta de altura. Em seguida, pôs-se a andar à volta dele, dando-
lhe cutucadas nos músculos da perna. A sensação de Jondalar era a de que estava
sendo exa minado como mercadoria posta a prêmio num negócio. Depois, enrubesceu
com o pensamento de que talvez não fosse ele de tão boa qualidade.
O próximo a ser examinado foi Thonolan. Ela lhe fez sinal para ficar de pé e, em
seguida, voltou novamente a atenção para Jondalar. Se ele já estava ruborizado, mais
ainda ficou ao perceber o sentido do gesto que a mulher lhe fazia. Ela queria ver a sua
virilidade.
Ele abanou a cabeça recusando-se e deu um olhar furioso a Thonolan que tinha na
cara um sorriso divertido. A uma ordem da mulher, um dos ho mens agarrou Jondalar por
trás, enquanto outro, visivelmente embaraçado, procurava desajeitadamente abrir a
calça.
- Acho que ela não está disposta a aceitar reclamações - disse Thono lan, abafando
um sorriso.
Jondalar, furioso, deu uni safanão no homem que o segurava e ele mes mo expôs o
seu sexo para a velha, enquanto fuzilava com os olhos o irmão que não conseguia conter
as risadas. A mulher olhou para o sexo, entortou a cabeça avaliando-o, e encostou o
dedo encaroçado.
Jondalar, ao invés de vermelho, ficou agora roxo. Então, por alguma razão
inexplicável, ele sentiu o seu membro dilatando-se. A mulher cacare jou uma risadinha,
no que foi seguida por todos os que estavam por perto, mas tudo dentro de um clima
submisso e reverente. 'flionolan ria, batendo com os pés no chão e os olhos enchendo-se
de lágrimas. Jondalar, às pressas, cobriu o seu membro ultrajado, sentindo-se idiota e
morto de raiva- 70 71 - Meu irmão, se você consegue ter uma ereção com uma bruxa
velha desta é porque está realmente precisando de mulher - falou ele, tomando rolego e
enxugando uma lágrima. Depois, tomou a soltar uma estrondosa gar galhada.
- Só espero que chegue a sua vez - disse Jondalar, lamentando não lhe ocorrer
algum dito mais mordaz que acabasse com a alegria do irmão.
A velha fez sinal para o chefe dos homens que os haviam detido e se pôs a falar
com ele- Seguiu-se uma troca acalorada e palavras entre os dois e Jon dalar escutou a
mulher dizendo Zelandonie, enquanto o homem apontava para a carne secando nas
cordas. A uma ordem imperiosa da velha, a conver sa foi abruptaniente interrompida. O
homem passou os olhos em Jondalar, fazendo, em seguida, um gesto para um rapaz de
cabelos encaracolados que, depois de ouvir algumas palavras, disparou a toda pressa-
Jondalar e flono lan foram conduzidos de volta à barraca e tiveram os seus baús
devolvidos. Mas as facas e as lanças não. Um homem foi deixado à pequena distància,
visivelmentena intenção de mantê-los sob vigilància. Trouxeram-lhes comi da e, quando a
noite caiu, os dois se meteram dentro da barraca. Thonolan achava-se alegre, animado,
mas Jondalar não estava nem um pouco para conversa com um irmão que, a cada
instante, olhava para ele e caía na gargalhada.
Ao acordarem, havia no acampamento um clima de expectativa. Quan do a manhã
ia pela metade, surgiu um enorme grupo de pessoas que foi rece bido com gritos de
saudações. Barracas foram armadas, havia homens, mulhe res e crianças andando por
toda parte e o acampamento dos dois parecia ago ra mais uma Reunião de Verão-
Jondalar e Thonolan, cheios de interesse, ob servavam a montagem de uma grande
estrutura circular, com paredes retas, feitas de couro, e um teto de palha de forma
abobadada. Muitas das partes da construção vieram pré-moldadas e a montagem se fez
numa velocidade incrível. Depois, trouxas e cestos tampados foram levados para dentro.
Durante algum tempo, fez-se uma pausa nas atividades, enquanto a co mida era
preparada- À tarde, uma multidão começou a formar-se ao redor da estrutura circular. A
tora da velha foi trazida e colocada ao lado da abertu ra de entrada, com a manta de pele
forrando-a. Logo que ela surgiu, as pes soas ficaram em silêncio e passaram a fazer um
círculo ao seu redor, deixan do livre o espaço central Jondalar e Thonolan a viram falando
com um ho mem e apontando para eles.
- Talvez a velha esteja querendo que você mostre novamente o seu grande desejo
por ela - troçou Thonolan, vendo o homem acenar-lhes.
- Terão antes que me matar.
- Pensei que você éstivesse morrendo de vontade para deitar-se com a nossa
beldade - disse l'honolan, fingindo ar de inocência- - Pelo menos foi o que aconteceu
ontem - novamente ele se pôs a rir. Jondalar se virou, diri. gindo-se para o grupo em
torno da velha.
Os dois foram conduzidos para o centro da roda e ela fez um gesto para que eles se
sentassem à frente dela.
- Ze-lan-do-nie? - perguntou a mulher, dirigindo-se a Jondalar.
- Sim - disse ele, indicando com a cabeça. - Eu sou Jondalar dos Ze landonii.
Ela deu uma tapinha no braço de um velho que se achava ao seu lado.
- Eu. - - Tamen - falou o homem, dizendo, em seguida, outras palavras que Jondalar
não conseguiu entender. - - - . Hadumai. Faz muito tempo Tamen - seguiu-se outra
palavra incompreensível - oeste. - - Zelandonii.
Jondalar esforçava-se querendo compreender, mas, subitamente achou que pescara
algumas palavras do velho.
- O seu nome é Tamen e você falou qualquer coisa sobre Hadumai. Faz muito
tempo. . . há muito tempo atrás, você. - - oeste. Quer dizer, você fez uma viagem para o
oeste e conheceu os Zelandonii, não é isso? Você fala ze landonii? - perguntou animado.
- Sim, uma viagem - respondeu o homem. - Falar não. - . faz muito tempo.
A velha agarrou o braço do homem e lhe falou qualquer coisa. Ele se vi rou para os
dois irmãos.
- Haduma - disse ele, apontando para ela. - Haduma. . - mãe - Ta men hesitava.
Depois, com um largo movimento de braços, indicou todos que se achavam ali presentes.
- Você está querendo dizer que ela é como um zelandonii, uma servido ra da Mãe?
Ele abanou a cabeça.
- Haduma. - . mãe. . . - por um momento ficou pensando, depois ace nou para
algumas pessoas e as pôs em fila do lado dele. - Haduma. - .mãe. - mãe. . . mãe. - - mãe
- falou, primeiro, apontando para a velha, depois para si mesmo e, em seguida, indicando
cada um daqueles que estavam enfileirados.
Jondalar observava as pessoas, tentando dar sentido à demonstração do velho.
Tamen era velho, mas não tanto quanto Haduma. O que vinha depois dele era um
homem aproximadamente de meia- idade. Ao lado deste, achava- se uma mulher
segurando a mão de uma criança. De repente, Jondalar estabe leceu a conexão.
- Você está dizendo que Haduma é mãe de mãe cinco vezes? - ele le vantou a mão
com os cinco dedos estendidos. - Mãe de cinco gerações? - dis se, admirado.
O homem sacudiu com veemência a cabeça.
- Sim. Mãe de mãe. - - cinco vezes - falou apontando para cada pessoa.
72 73 - Grande Mãe! Você imagina quantos anos ela possa ter? - perguntou
Jondalar, se dirigindo ao irmão.
- Grande Mãe! - repetiu Tamen. - Haduma. . . mãe -. falou, batendo na barriga.
- Filhos?
- Filhos. . . sim - disse confirmando com a cabeça. - Haduma mãe de filhos. . . - ele
se pôs a riscar linhas na terra.
- Um, dois, três. . . - ia contando Jondalar os riscos na terra. - Dezes. seis! Haduma
teve dezesseis filhos?
Tamen confirmou, apontando outra vez para os traços no cMo.
- Muitos filhos e muitos. . meninas? - ele abanava a cabeça, incerto da palavra.
- Muitas filhas? - perguntou Jondalar, querendo ajudar.
O rosto de Tamen se iluminou.
- Isso, muitas filhas. . . - ele se pôs a pensar por um instante. - Vivos todos vivos.
Todos. . . muitos filhos - dizendo isso, levantou os dedos de uma das mãos e mais um da
outra. - Seis Cavernas Hadumai.
- Não é de admirar que nos mataria se fizéssemos qualquer coisa contra ela. A velha
é mãe de todo mundo aqui. Uma "primeira mãe". E viva! - falou Thonolan.
Jondalar, muito impressionado, se achava intrigado.
- Eu me sinto muito honrado em conhecer Haduma, mas não entendo certas coisas.
Por que estamos presos e por que ela foi trazida para cá?
O velho apontou, primeiro, para as carnes secando nas cordas e depois para o
homem que os havia detido.
- Jeren. . . caçar. Jeren fazer. . - Tamen desenhou na terra um círculo com uma
abertura de onde partiam duas linhas divergentes na forma de um grande V.
- Homem dos Zelandonii fazer. . . fazer correr. . - ele parou e ficou pensando por
muito tempo, depois sorriu e disse: - Fazer correr cavalos.
- Ah, então é isso! - falou Thonolan. - Eles devem ter construído uma barreira e
estavam esperando que a manada se aproximasse e nós espanta mos os animais.
- Posso entender por que ele esteja zangado - falou Jondalar para Ta men - mas nós
não sabíamos que estávamos caçando nas suas terras. Bom, se vocês quiserem,
podemos ficar aqui e caçar para pagar essa perda. Mas, mesmo assim, não acho que
isso seja modo de tratar visitantes. Será que ele não co nhece os direitos de trâmite
daqueles que estão em viagem? - falou Jondalar, desabafando a sua raiva.
O velho não entendeu todas as palavras, mas conseguiu apanhar o senti do geral.
74 - Aqui, não muitos visitantes. Muito tempo não ir oeste. Direitos es quecidos.
- Pois bem, então faça com que ele trate de lembrar. Você já fez uma viagem em
sua vida e ele também talvez algum dia queira fazer uma - Jonda lar ainda se achava
irritado com o tratamento recebido, mas não queria fazer uma questão maior do incidente.
Além disso, não sabia o que tinha ainda de enfrentar pela frente e era melhor não
arrumar muitos problemas.
- Mas por que Haduma foi trazida? Como você foi permitir que ela, na sua idade,
fizesse uma longa viagem?
Tamen sorriu.
- Não. - . não permitir Haduma. Haduma ordenar. Jeren encontrar du. mal. Isso,
como falar?. - . Trazer desgraça?
Jondalar fez sim com a cabeça, dando a entender que a palavra estava correta, mas
continuava ainda sem compreender o que Tamen pretendia dizer.
- Jeren. . mandar mensageiro para Haduma vir espantar desgraça. lia- duma vir.
- Dumai? O que é dumai? Está falando da minha donii? - indagou Jon dalar,
retirando a estatueta de pedra da sua sacola.
As pessoas em volta soltaram exclamações horrorizadas e deram um pas so atrás.
Ouviu-se, então, um murmúrio carregado de hostilidade, mas silencia ram após Haduma
haver feito uma arenga na direção delas.
- Mas essa donii significa sorte - protestou Jondalar.
- Sim, sorte. . - para mulher, sorte. - . - Tamen procurava pela palavra - para homem,
sacrilégio.
Jondalar se via atônito.
- Mas se é sorte para a mulher, por que ela quis quebrá-la? - ele fez um gesto
brusco como se fosse jogar no chão a donii, provocando exclamações de ansiedade.
Haduma dirigiu algumas palavras ao velho.
- Haduma já muito tempo viva. . - muita sorte. Muita mágica. Haduma dizer. - -
costumes de Zelandonii. Dizer que homem zelandonii não Hadumai - - - Haduma dizer
que homem zelandonii mau? Jondalar abanava a cabeça sem entender. Thonolan se
meteu na conversa.
- Acho que ele está dizendo que Haduma queda colocá-lo à prova, Jon dalar. Ela
sabia que os costumes não eram os mesmos e, por isso, queda ver como você reagiria
diante de um ato de desrespeito.
- Desrespeito sim - interrompeu Tamen, ao ouvir a palavra. - Haduma saber. - - não
todos os homens ser bons. Querer saber se homens zelandonii respeitar a Mãe.
- Ouça aqui. Essa é uma donii muito especial - disse Jondalar, um tan 75 to
indignado. - É uma imagem muito antiga. Foi a minha mãe quem me deu 1 As rugas de
preocupação na testa de Jondalar apagaram-se e um sorriso e ela vem passando por
diversas gerações.
- Sim, sim - dizia Tamen, balançando a cabeça energicamente. - Ha duma ser muito
sábia. Viver há muito tempo. Saber muita mágica. Ela afastar desgraça. Haduma saber
Homem zelandonii ser bom. Haduma querer Homem para. . . honrar a Mãe.
Jondalar viu a cara de Thonolan se iluminando com um sorriso e estre meceu.
- Haduma querer - Tamen apontava para os olhos de Jondalar - querer olhos azuis.
Honrar a Mãe. Querer espfrito de zelandonü fazer filho. Filho de olhos azuis.
- Você conseguiu outra vez, meu irmão - falou Thonolan, deliciado, deixando
escapar um riso cheio de malícia. - Claro, com esses seus enormes olhos azuis, ela ficou
apaixonada - ele se sacudia, tentando conter o riso, com medo de ofender, mas estava
acima de suas forças. - Oh, Mãe! Estou doido para chegar em casa e contar essa para
todo mundo. Jondalar, o queri do de todas as mulheres! Você ainda quer voltar? Só para
ver essa cena, eu desisto de chegar ao fim do rio - Thonolan não agüentou continuar.
Dobra va-se em gargalhadas, batendo com os pés no chão, fazendo força para que as
risadas não fossem ouvidas.
Jondalar não parava de engolir em seco.
- Ah.. . eu. . . bom. . - Haduma acha que a Grande Mãe.. bem, pode ria ainda
abençoá4a com um filho?
Tamen, perplexo, olhou para Jondalar e depois para Thonolan contor cendo-se em
risadas. De repente, a cara do homem enrugou-se com um inien so sorriso. Ele falou
qualquer coisa com Haduma e o acampamento inteiro se pôs também a rir
estrondosamente, com as risadas cacarejadas da velha sobre- pondo-se a todas as
outras. Thonolan, aliviado, pôde por fim rir livremente, com as lágrimas invadindo-lhe os
olhos.
Jondalar nada via de engraçado.
O velho sacudia a cabeça negando, querendo falar.
- Não, não. Homem dos Zelandonii - ele acenava a alguém - para No- ria. Noda. . -
Uma mocinha deu um passo à frente, sorrindo timidamente para Sonda lar. Era quase
ainda uma menina, mas já mostrando o frescor luminoso de sua recente maturidade. As
risadas, finalmente, foram dominadas.
- Haduma saber de grandes mágicas - falou Tamen. - Haduma aben çoar. Noria
fazer cinco gerações - ele estendeu cinco dedos. - Filho de Nona fazer 6 gerações -
acrescentou mais um dedo. - Haduma querer homem Ze landonu honrar a Mãe - Tamen
deu um sorriso, lembrando-se da expres são correta. - Querer zelandonii para ritos de
passagem de Noria.
76 se esboçou nos cantos de seus lábios.
- Haduma abençoar. Fazer espírito do homem entrar em Noria. Noria fazer. - - bebê
com olhos de zelandonii.
Foi a vez de Jondalar explodir em risos, tanto de alívio, como de pra zer. Ele olhou
para o irmão. Thonolan já não ria mais.
- Ainda quer contar a todos que eu dormi com uma velha? - pergun tou. Depois,
voltou-se para Tamen e disse: - Diga a Haduma que terei grande prazer em honrar a Mãe
e compartilhar dos ritos de passagem de Noria.
Ele deu um caloroso sorriso para a moça que, timidamente, lhe sorriu de volta, mas,
depois, rendida ao carisma dos grandes olhos azuis de Jondalar, abriu-se num belo e
amplo sorriso.
Tamen falou algumas palavras para Haduma. Ela fez sim com a cabeça e acenou
para que Thonolan e Jondalar se pusessem de pé. Em seguida, fez um novo e minucioso
exame da figura alta e loura de Jondalar. Ele ainda conser vava nos lábios o seu caloroso
sorriso. Haduma olhou-lhe dentro dos olhos, deu uma risadinha e entrou na grande tenda
circular. Enquanto se dispersa varn, as pessoas ainda riam e comentavam sobre o mal
Os irmãos permaneceram lá para conversar com Tamen. Ainda que a conversa se
fizesse com dificuldade, isso era melhor do que nada.
- Quando foi que você visitou os Zelandonü? - perguntou Thonolan.
- Você se lembra de qual a Caverna em que ficou?
- Fazer muito tempo- Tamen. . . rapaz. Igual vocês.
- Tamen, este é o meu irmão Thonolan e o meu nome é Jondalar. Jon dalar dos
Zelandonii.
- Vocês bem-vindos Thonolan e Jondalar - o velho deu um sorriso. - Eu, Tamen,
geração três de Haduma. Fazer muito tempo não falar zelando nil. Esquecido. Falar mal.
Se você falar, Tamen. - .
- Se lembra da língua? - sugeriu Jondalar.
O homem sacudiu a cabeça afirmativamente.
- Mas você é a terceira geração? Eu pensei que fosse filho de Haduma - prosseguiu
Jondalar.
- Não. Para homem zelandonii saber Haduma ser a mãe.
- O meu nome é Jondalar, Tamen.
- Jondalar - corrigiu-se ele. - Tamen não ser filho de Haduma. Hadu ma fazer filha -
falou, levantando um dedo e olhando interrogativamente.
- Só uma filha? - perguntou Jondalar.
Tamen negou com a cabeça.
- A primeira filha?
- Sim. Haduma fazer primeiro uma filha. A filha fazer o primeiro filho - disse, batendo
no seu peito. - Tamen. - - companheira?
77 Jondalar confirmou com a cabeça.
- Companheira de Tamen mãe de mãe de Nona.
- Acho que entendo. Você é o primeiro filho da primeira filha de lia- duma e a sua
companheira é a ayó de Nona.
- Isso, avó. Nona significar grande honra pan Tamen. Nona. . . geração seis de
Haduma.
- Eu também me sinto honrado por ter sido escolhido para os ritos de passagem de
Nona.
- Nona. . . fazer filho com olhos de zelandonii. Isso deixar Haduma... feliz - disse
sorrindo, por se lembrar da palavra. - Haduma dizer que homens grandes zelandonii ter
espíritos. . .fortes,por isso eles fazer um hadumai forte.
- Tamen, veja bem - falou Jondalar, franzindo a testa. - Talvez Noria não faça um
bebé de meu espírito.
Tamen sorriu.
- Mágica de Haduma muito forte. Haduma abençoar e Nona fazer be bê. Mágica
muito forte. Mulher não filho - ele apontou pan a virilha de Jon. dalar.
- Tocar? - perguntou Jondalar, sugerindo a palavra e sentindo as suas orelhas
arderem.
- Sim, Haduma tocar e mulher fazer filho. Mulher não ter leite, Hadu ma tocar e
mulher fazer leite. Haduma fazer uma grande honra para Jondalar. Muitos homens querer
toque de Haduma. Fazer ficar homem muito tempo. Fazer homem ter. . . prazer? - nesse
ponto, todos os três riram. - Dar prazer para mulher muito tempo, muitas vezes. Haduma
ter mágica forte - ele fez uma pausa e o sorriso desapareceu de seu rosto. - Não fazer
raiva em Hadu ma. Haduma com raiva. . . mágica ruim.
- E eu fui rir - falou Thonolan. - Você acha que eu poderia conseguir um toque dela?
Ora, também você com esses seus olhos azuis, Jondalar...
- Deixa disso, Thonolan. A única mágica de que você precisa é a do olhar
convidativo de uma moça bonita.
- Bom, e daí? Você também nunca precisou de ajuda- Mas veja quem foi convidado
para os primeiros ritos de Noria, não é esse seu irmãozinho de olhos cinzas e tristes.
- Pobrezinho. Um acampamento cheio de mulheres e o meu querido irmão vai
passar uma noite solitária. Pois sim, jamais na vida.
A risada dos dois foi seguida pela de Tamen, que conseguira pegar o sen tido da
piada.
- Tamen, talvez seja bom que você me fale um pouco sobre os costu mes dos ritos
de passagem das moças aqui - disse Jondalar, já com ar mais sério. 1 men, que
você podia pedir para nos devolver as nossas facas e lanças? Eu tive uma idéia.
Enquanto o meu irmão estiver encantando essa bela moça com os seus grandes olhos
azuis, acho que arranjei um modo de deixar o seu caçador um pouco menos furioso.
- Como? - perguntou Jondalar.
- Com uma velha bruxa, naturalmente.
Tamen mostrava-se confuso, mas não deu importância. Deviam ser as suas
dificuldades com a língua.
Jondalar, naquela noite e no dia seguinte, pouco viu Thonolan. Estava ocupado
demais com os rituais de purificação. A língua era uma barreira, mes mo contando com a
ajuda de Tamen, e, quando ele se encontrava sozinho no meio das velhas curandeiras,
era ainda pior. Só com Haduma presente ele se sentia um pouco mais tranqüilo. Estava
certo de que ela passava por cima de muitos erros seus indesculpáveis.
Haduma não governava o seu povo, mas ninguém lhe recusava o que quer que
fosse. Era tratada com respeito e benevolência. E també com um pouco de medo. O fato
de permanecer viva há tanto tempo e de estar em seu perfeito juízo só podia ser por artes
de feitiçaria. Ela tinha o dom de sentir quando Jondalar se achava em dificuldade. Certa
vez em que ele não tinha dú vidas de haver violado um dos tabus, ela irrompeu pelo
recinto, com os olhos chispando de raiva e dando cajadadas nas mulheres que se
puseram em deban dada. Não admitia que o contrariassem. A sua sexta geração tinha de
nascer, a qualquer custo, com os olhos azuis de Jondalar.
À noite, ao ser por fim conduzido à grande tenda redonda, Jondalar só teve certeza
de que chegara o momento depois de estar lá dentro. Ao cruzar a entrada, ele parou um
instante para olhar ao seu redor. Duas lamparinas de pedra iluminavam um canto,
queimando os seus pavios de musgo mergulha dos em óleo, O chão achava-se forrado
com peles, e das paredes penduravam- se cortinados feitos de fibras de cortiça e tecidas
de modo a formar elabora dos desenhos. Por trás de um tablado coberto de peles, se
encontrava pendu rado um couro de cavalo, grosso e branco, decorado com cabeças
vermelhas de filhotes de picapaus e, sentada na borda do tablado, estava Nona, nervosa,
olhando fixarnente para as mãos apoiadas no colo.
Num outro canto, construíra-se um ambiente por meio de panos de couro,
desenhados com simbolos esotéricos e uma cortina feita de várias cor reias penduradas.
Alguém se achava atrás. Ele viu a mão de uma pessoa afastar algumas das tiras de
couro. Por instante, apareceu o rosto enrugado de Hadu ma. Jondalar suspirou aliviado.
Sempre havia pelo menos uma pessoa presente nessas ocasiões para dar o seu
testemunho de que a transformação da moça em mulher fora integral e também para
cuidar de que o homem não fosse des 79 78 - Antes que vocês entrem nesse assunto -
disse Thonolan - será, Ta necessariamente bruto. Por ser estrangeiro, ele estava
preocupado de que pu desse haver um bando de guardiões prontos para censurar-lhe o
comportamen to. Com Haduma não havia motivos para apreensões. Ele não sabia se
devia cumprimentá-la ou simplesmente ignorar a sua presença lá. Preferiu tomar o
segundo partido ao ver a cortina fechar-se.
Quando Nona o viu, se levantou. Ele, sorrindo, se encaminhou na sua direção. Ela
era uma moça um tanto miúda, com sedosos cabelos castanhos- claros que caíam soltos
ao redor do rosto. Estava descalça. Usava uma saia de tecido de fibras que amarrava na
cintura e depois caía na forma de tiras colo ridas até pouco abaixo dos joelhos. A blusa
era feita de uma suave pele de vea do, bordada com penas tingidas e se amarrava
apertada na frente. Moldavasu ficientemente o corpo para deixar entrever uma forma de
mulher feita, embo ra Nona ainda não tivesse perdido de todo alguns de seus contornos
infantis.
Ao vê-lo aproximar-se, os seus olhos ganharam uma expressão assustada, apesar
de tentar sorrir. Como ele não fez qualquer movimento brusco e se contentou
simplesmente em se sentar, sorrindo, na beirada do estrado, ela pa receu relaxar um
pouco e veio, por sua vez, se sentar ao seu lado, mas a uma distãncia em que os joelhos
dos dois não se tocassem.
"Ajudaria muito se eu pudesse falar a língua dela", pensou Jondalar. "Está tão
amedrontada. Não é para menos. Afinal, sou uma pessoa inteira mente estranha para
ela. Mas, assim tão assustada, chega a ser comovente." Ele sentia-se protetor e também
já um pouco excitado. Percebendo uma jarra com algumas cuias sobre uma bancada
perto, fez menção de ir pegar, mas No ria percebeu e se precipitou, passando-lhe à frente
para encher as cuias.
- Obrigado Nona - falou Jondalar, botando as cuias no chão.
- Jondalar? - perguntou ela, levantando os olhos.
À luz das lamparinas, ele percebeu-lhe os olhos de uma tonalidade clara, mas não
saberia dizer se eram cinzas ou azuis.
- Sim. Jondalar dos Zelandonii.
- Jondalar. . - homem zelandonii.
- Nona, mulher hadumai.
- Mulher?
- Mulher - repetiu ele, tocando num dos seios, jovem e firme.
Ela jogou o corpo para trás.
Jondalar desamarrou o laço que fechava a sua túnica no pescoço e a dei xou
escorregar para trás, pondo à mostra os cabelos alourados do peito. Com um sorriso nos
cantos dos lábios, ele bateu no próprio peito.
- Não mulher - disse abanando a cabeça. - Homem.
Ela deu um riso abafado.
- Nona mulher falou, novamente tocando-lhe o seio com suavidade.
Desta vez ela deixou-se tocar e sorriu mais à vontade.
- Noria, mulher - disse ela. Em seguida, apareceu-lhe um brilho mali cioso nos olhos
e ela apontou para a virilha dele, mas sem tocá-lo. - Jondalar, homem - subitamente,
pareceu de novo amedrontada, talvez por pensar que tivesse ido longe demais. Então se
levantou para encher outra vez as cuias. Nervosa, embaraçada, despejou o liquido,
deixando-o respingar. A mão lhe tremia quando estendeu a cuia para ele.
Jondalar segurou a mão dela para pegar a bebida. Tomou um pouco e lhe ofereceu
um gole. Ela aceitou, mas ele levou o recipiente aos seus lábios, de modo que ela tivesse
de segurar nas mãos dele para conduzir a bebida na direção da boca. Depois que tomou
a botar a cuía no chão, ele lhe tomou as mãos de novo, abrindo as palmas e beijando
levemente cada uma. Os olhos arregalaram- se surpresos, mas ela não fez menção de
retirá-las. Ele foi subindo com as mãos pelos braços dela quando, então, se curvou para
lhe beijar o pes coço- Noria estava tensa. Era o medo e a expectativa. O que iria ele fazer
em seguida?
Jondalar chegou para mais perto, beijou-a novamente no pescoço e a sua mão foi
escorregando até empalmar um dos seios. Embora continuasse assustada, ela começava
a sentir o corpo correspondendo às carícias. Ele incli nou-lhe a cabeça para trás e,
enquanto beijava o pescoço e roçava a língua pe la garganta, desatava o laço da blusa.
Em seguida, levou os lábios à orelha e veio beijando-lhe o rosto até encontrar a boca.
Pôs a língua entre os lábios de la e, quando estes se entreabriram, com brandura
pressionou de modo a faiA- la abrir a boca um pouco mais.
Com um sorriso nos lábios, ele se afastou, mas mantendo-a abraçada pe los
ombros. Nona tinha os olhos fechados e respirava apressada. Jondalar tor nou a beijá-la
e ao mesmo tempo que acariciava- lhe o seio puxou o laço da blusa, desenfiando o
cordão de um dos buracos. Ela retesou ligeiramente o corpo. Ele parou e a olhou, depois
sorriu e desenfiou intencionalmente a tira de outro buraco. Ela mantinha-se imóvel, tensa,
olhando-o no rosto, enquanto ele ia retirando o cordão de outro buraco, e depois de mais
outro e outro, até que a blusa pendurou-se solta, totalmente aberta na parte da frente.
Curvado sobre o pescoço dela, ele puxou a blusa para trás, desnudan do-lhe os
ombros e pondo à mostra os seios jovens, empinados com as aréolas intumescidas.
Sentia a sua virilidade latejando cheia de vida. Beijou-lhe os om bros- Nona tremia
enquanto ele corria com a língua sobre a sua pele. Ao mes mo tempo que acariciava os
braços, terminava de retirar a blusa. Às suas mãos corriam-lhe pela espinha e a língua
pelo pescoço e seio, rodeando a aréola e sentindo o mamilo contrair-se. Ternamente, o
chupou. Ela ofegava, mas sem retrair o corpo. Ele chupou o outro seio e correu com a
língua de volta para a boca, beijando-a, enquanto a fazia deitar-se.
Noria abriu as pálpebras e o olhava em meio às peles. Os olhos estavam 80 81
dilatados e luminosos. Os de Jondalar tão azuis e irresistíveis que ela não con seguia
desviar os dela.
- Jondalar, homem. Nona, mulher - falou ela.
-. Jondalar, homem. Nona mulher - repetiu ele com voz velada.
Jondalar se sentou e tirou a túnica pela cabeça, sentindo.se avolumar-se, com a
virilidade lutando para se libertar. Curvou-se sobre ela, tornando a bei já-la e percebendo-
lhe a boca aberta, querendo sentir o gosto de sua língua na dela. Acariciando-lhe os
selos, ele ia com a língua do pescoço ao ombro. No vamente encontrou o mamilo,
chupando-o agora com mais força, enquanto lhe ouvia os gemidos e sentia a própria
respiração cada vez mais pesada.
"Há tanto tempo que não estou com uma mulher que minha vontade era possuí1a
nesse instante mesmo", pensou. "Vá com calma, nada de assustá la. É a primeira vez da
moça, lembre-se. Você tem toda a noite pela frente, Jondalar. Espere até ter certeza de
que ela está pronta.”
Ele se pôs a acariciar-lhe o torso nu, buscando a correia na cintura que mantinha a
saia presa. Puxou o laço e enfiou a mão por dentro, pousando-a sobre a barriga. E!a ficou
tensa, depois relaxou. Ele desceu com a mão até a parte interna da coxa, roçando, antes,
os pêlos macios sobre o púbis. Ela abriu as pernas quando ele começou a explorar-lhe o
lado de dentro da coxa.
Retirou, então, a mão e se sentou. Aos poucos, foi puxando a saia para baixo dos
quadris. A saia caiu no chão. Ele se levantou e olhou para a figura de linhas suaves e
arredondadas, com as curvas ainda não perfeitamente for madas. Nona sorria-lhe,
confiante e desejosa. Ele desatou a correia de sua cin tura e desceu as calças. Ao ver o
membro ereto de Jondalar, ela prendeu a res piração, voltando a ter nos olhos uma leve
sombra de medo.
Nona já tinha ouvido de outras mulheres histórias sobre os ritos dos pri meiros
prazeres. Para algumas, estes não eram tão prazerosos assim. Diziam que a dádiva era
concedida apenas aos homens e que às mulheres nada mais era dado senão o papel de
proporcionar prazer a eles. Mas com isso os homens se afeiçoavam a elas e lhes
abasteciam quando se achavam com filhos na barri ga ou ocupadas com a casa. Noria
estava avisada de que os seus primeiros ritos seriam dolorosos. Jondalar estava tão
grosso e grande, como poderia ele caber dentro dela?
A expressão de medo não era estranha a Jondalar. Ele estava num mo mento crítico
- Ela teria de voltar a acostumar-se com ele - Jondalar gostava de despertar a mulher
para os prazeres, uma dádiva que a Mãe concedia aos seus filhos, mas para isso era
necessário delicadeza e sensibilidade. "Algum dia", pensou, "gostaria de fazer uma
mulher sentir prazer pela primeira vez sem ter que me preocupar com o fato de estar
machucando-a.”
Sabia, entretanto, que isto era impossível. Os ritos de passagem para a mulher
sempre foram um tanto dolorosos.
82 Ele sentou-se ao seu lado e esperou, dando-lhe tempo. Os olhos de No- ria
estavam sempre voltando para o seu membro, vibrando e palpitante. Ele pegou-lhe a
mão e fez com que ela o tocasse, sentindo um estremecimento. Naquele momento era
como se o sexo tivesse vida própria. Enquanto o seu membro se remexia ansioso na mão
dela, Noria lhe sentia a maciez da pele, a calentura e o vigor de sua opulência, ao mesmo
tempo que era invadida por uma sensação deliciosa e penetrante que lhe umedecia as
coxas. Ela tentava sorrir, mas o medo ainda rondava os seus olhos.
Ele se espichou ao seu lado e se pôs a beijá-la delicadamente. Ela abriu os olhos e,
olhando dentro dos dele, lhe viu a ansiedade, o desejo e qualquer coisa como uma força
impossível de descrever, mas irresistível. Sentia-se atraída, subjugada, perdida naquelas
profundezas intensamente azuis e, nova mente, se viu invadida pela mesma sensação
deliciosa e penetrante. Ela o dese java. Tinha medo da dor, mas o desejava. Estendeu os
braços na sua direção, fechou os olhos, abriu a boca e apertou o seu corpo contra o dele.
Jondalar a beijava, deixando que ela lhe explorasse a boca. Depois, devagar,
sempre beijando, movendo a língua e acariciando o ventre e as coxas, ele foi descendo
para o pescoço e a garganta. Beijando os seios, por um instan te se pós a provocá-la,
levando os lábios até perto dos mamilos para depois retroceder sem tocá-los. Ela não
agüentou e conduziu a sua boca na direção desejada. Nesse momento, ele levou a mão
para a fenda, quente e úmida, en tre as coxas, encontrando o peqiienino nódulo latejante.
Dos lábios dela esca pou um grito.
Ele prosseguia, chupando e mordiscando delicadamente o mamilo, en quanto
procurava excitá-la com o dedo. Noria gania, remexendo os quadris. Ele foi descendo,
sentia-lhe a respiração curta. A sua língua tocou no umbigo. A tensão muscular dela
aumentava à medida que ele se abaixava, já saindo com o corpo para fora do estrado. Os
joelhos bateram no chão. Abriu-lhe, en tão, as pernas, provando pela primeira vez o
sabor picante de seu sal feminino. Noria explodiu num grito fremente. Atirando a cabeça
de um lado para outro e levantando os quadris para ir ao encontro dele, ela soltava um
gemido a cada respiração.
Ele abriu-lhe mais as pernas e se pós a lamber as dobras, ardendo de de sejo, até
que a língua encontrou o nódulo e passou a explorá-lo. Os gritos e o movimento de
quadris iam deixando-o cada vez mais excitado. Ele fazia força para conter-se. Ao ouvir-
lhe a respiração arfante e acelerada, levantou-se e procurou uma posição de joelhos, de
modo a guiar a cabeça de seu sequioso órgão através da abertura virginal. Apertando os
dentes e dominando.se a cus to, ele pressionava, fazendo força para passar pela
passagem cerrada e úmida. Quando ela enrolou as pernas ao redor da cintura, ele sentiu
a barreira. Com o dedo encontrou novamente o nódulo e se pôs a fazer movimentos para
frente 83 1 e para trás com o corpo, ouvindo-lhe, a respiração arfante e lhe sentindo os
quadris levantados para recebê-lo. Trouxe, então, o corpo para trás e empur rou com
força, sentindo ter rompido o obstáculo, ao mesmo tempo que lhe escutava os berros de
dor e prazer e os seus próprios urros ansiosos, quando atingiu o climax em meio a
estremecimentos espasmódicos.
Ele ainda fez alguns movimentos para dentro e para fora, penetrando tanto quanto
lhe permitia a ousadia e esvaindo até a última gota de sua essên cia. Estava terminado.
Por um momento, ficou com a cabeça apoiada sobre os seios dela, respirando
pesadamente, depois levantou-se. Nona, sentindo-se las sa, tinha a cabeça virada para o
lado e os olhos fechados. Ele se afastou e viu a coberta de pele branca manchada de
sangue sob o corpo dela. Suspendeu-lhe as pernas para cima do estrado e veio postar-se
ao seu lado, afundando-se nas peles.
Quando a sua respiração serenou um pouco, Jondalar sentiu que algo tocava em
sua cabeça. Abrindo os olhos, deu com o rosto enrugado e os olhos brilhantes de 1-
laduma. Nona remexeu-se ao seu lado. Haduma sorriu, balançou a cabeça aprovando e
se pôs a entoar monotonamente uma cantile na. Nona descerrou os olhos, sentindo-se
contente de ver a velha lá e mais fe liz ainda ficou quando Haduma retirou as mãos da
cabeça de Jondalar e bo tou-as sobre a sua barriga. Haduma, sempre cantando, fez mais
alguns gestos sobre os dois, depois recolheu a pele manchada de sangue. O sangue que
a mu lher perdia durante os seus ritos de passagem continha especiais poderes mági cos
- A vela tornou a olhar para Jondalar, sorriu e encostou o dedo no seu membro flácido.
Por stante,ele sentiu o seu sexo querendo despontar outra vez para a vida, mas logo
aquietou-se. Haduma deu uma risadinha e saiu da tenda, deixando-os sozinhos.
Jondalar deitou-se ao lado de Nona e se deixou ficar descansando. Pas sado algum
tempo, ela sentou-se e olhou para ele. Os seus olhos brilhavam lan gorosamente - -
Jondalar, homem. Noria, mulher - falou como se realmente se sentis se mulher naquele
instante. Então, se inclinou e o beijou. Ele, surpreso, per cebeu-se excitado. Ainda estava
cedo para isso e imaginou se não teria qual quer coisa a ver com o toque mágico de 1-
laduma. O pensamento, no entanto, foi esquecido tão logo se pôs a mostrar à sua
ardorosa parceira novos prazeres e outros que ela poderia oferecer-lhe.
O gigantesco esturjão já se achava na praia, quando Jondalar se levantou. Thonolan
antes já havia enfiado a cabeça na tenda, pretendendo mostrar-lhe o par de arpões, mas
Jondalar acenou para ele despedindo-o e voltando a dormir com Nona enlaçada em seus
braços. Mais tarde, quando acordou, Nona já i havia partido. Ele enfiou as calças e se
dirigiu ao rio, encontrando Thonolan, Jeren e alguns outros rindo como bons camaradas.
Ficou a observá-los meio invejoso da pescaria.
- Olhe quem está chegando - falou Thonolan quando o viu. - Estamos aqui lutando
para pescar a velha Haduma, enquanto os olhos azuis só quer sa ber de deitar e rolar.
Jeren conseguiu pegar um pouco do sentido da frase.
- Haduma! Haduma! - gritava, às gargalhadas, enquanto apontava para o peixe e
saracoteava ao redor. Depois parou na frente do bicho, que tinha uma cabeça lembrando
a de um tubarão. Os palpos, surgindo sob as mandíbu las, revelavam-lhe os hábitos: um
peixe inofensivo e de águas profundas, cujo tamanho, no entanto, o tomava um desafio.
Media mais de quatro metros de comprimento.
E Jenen, gritando "Haduma! Haduma!", sorria marotamente enquanto fazia uma
mímica erótica na direção da carranca do peixe, jogando a pelve para a frente e para trás,
como se lhe pedisse para ser tocado. Os outros, por sua vez, também começaram a
gritar Haduma e a dançar ao redor do peixe, balançando os quadris e empurrando-se uns
aos outros, num clima de algazar ra, para pegar o lugar junto à cabeça do peixe. Um
homem foi jogado dentro do rio e ao sair agarrou o que se achava mais próximo,
puxando-o para dentro da água. Em instantes, todo mundo começoua empurrar-se, com
Thonolan no bolo da brincadeira.
Quando estava subindo, empapado, pela margem, ele deu com os olhos - Não
pense que você vai escapar dessa seco! -gritava, tentando dobrar a resist6ncia de
Jondalar. - Ajude aqui, Jeren. Vamos dar um banho nos olhos azuis!
Jeren, ouvindo o seu nome, viu a luta e saiu correndo. Os outros o seguiram.
Puxando daqui e empurrando dali, arrastaram Jondalar para a mar gem e todo mundo,
em meio a risadas, acabou caindo no rio. Pingando água e ainda com caras de riso,
vinham retomando quando um deles deu com a velha de pé,junto do peixe.
- Haduma, hein? - falou ela, encarando-os com olhar duro.
Eles se entreolharam, encabulados. De repente, ela soltou uma gargalha da
divertida, pondo-se na frente do peixe, remexendo com as suas velhas cadeiras para
frente e para trás. A risada foi geral. Todos correram na sua dire ção, ficando de quatro,
oferecendo as suas garupas.
Jondalar ria divertido. Sem dúvida, era uma brincadeira que já haviam feito antes
com ela. A tribo não só tinha grande respeito pela veneranda ma triarca, como também a
amava e ela parecia achar graça na troça deles. Hadu ma olhou à sua volta e, reparando
em Jondalar, apontou na sua direção. Os 85 no irmão.
84 I homens lhe fizeram sinal para que se aproximasse e, cheios de atenção e cari
nho, ajudaram a ve a subir em suas costas. O peso dela era quase nenhum, mas,
surpreendentemente, as suas mãos agarravam com força. A frágil velhi nha conservava
ainda um certo vigor físico.
Ele começou a andar cauteloso, mas quando os outros lhe passaram a frente, ela
começou a bater em seus ombros, instigando-o. Puseram-se, então, a correr pela praia,
parando só quando já estavam todos sem fôlego. Jondalar agachou-se para que a velha
apeasse. Ela se empertigou, apanhou o cajado e, muito digna, se dirigiu para onde
estavam as tendas.
- Você podia imaginar uma velhinha dessas? - disse Jondalar, cheio de admiração,
para Thonolan. - Dezesseis filhos, cinco gerações e forte desse jei to. Não tenho dúvidas
de que ainda verá a sexta.
- Depois de ver a sexta, ela morrer.
Jondalar voltou-se na direção da voz. Ele não havia visto Tamen apro ximar-se.
- Por que diz isso?
- Haduma dizer: Nona fazer filho de olhos azuis com o espírito dos Ze landonii,
depois Haduma morrer. Ela dizer que já está muito tempo aqui, que é tempo de ir
embora. Ver bebê e depois morrer. O nome do bebe é Jondal, geração seis dos
Hadumai. Haduma estar contente com homem dos Zelando niL Dizer que ele é bom
homem. Muito difícil mulher ter prazer. . - ritos de passagem. Homem dos Zelandonii
muito bom.
Jondalar se via assaltado por emoções variadas.
- Se for esse o seu desejo, sei que ela irá embora. Mas isso me deixa triste - falou
ele.
- Sim, todos os Hadumai vão ficar tristes, muito tristes - disse Tamen.
- Será que posso ver Nona? Não conheço os seus costumes. Não sei se é possível
ver a moça logo depois de seus primeiros ritos, mas seria só por al guns momentos.
- Costumes não, mas Haduma dizer sim. Homens Zelandonii já partir?
- Se Jeren achar que o estuijão paga os cavalos que espantamos, creio que
estamos. Mas como você sabia disso?
- Haduma dizer.
Àquela noite, o estuijão foi o banquete do acampamento. Num abrir e fechar de
olhos as tinas da carne foram cortadas e já no princípio da tarde estavam secando.
Durante um momento, Jondalar teve a rápida visão de Nona passando a distância,
escoltada por outras mulheres, indo para algum lugar próximo ao rio. Só depois de já
estar escuro é que ela foi trazida para encon trar-se com ele - Os dois caminharam juntos
na direção do rio, seguidos discre tamente por duas mulheres. O fato de encontrar-se
com ele, pouco tempo de- pois dos ritos de passagem, já significava uma quebra nos
costumes bastante grande. Sozinha, então, seria impensável.
Eles pararam junto de uma árvore, sem nada se dizerem. Noria tinha a cabeça
abaixada e Jondalar, afastando uma mecha de seu cabelo para o, lado, levantou-me o
queixo para que ela o olhasse no rosto. Noria chorava. Jondalar passou o dedo numa
gota brilhando no canto dos olhos e, em seguida, levou-a aos lábios.
- Oh. . - Jondalar - disse chorando,estendendo-lhe os braços. Ele a abraçou
delicadamente e depois com mais paixão.
- Noria. Noria mulher. Linda mulher.
- Jondalar fazer Noria mulher - disse ela. - Fazer Noria. - - fazer. . - - ela irrompeu em
soluços, lamentando não conhecer as palavras para dizer lhe o que queria.
- Eu sei, Noria. Eu sei - falou Jondalar, abraçando-a. Ele então afastou-se e,
segurando o seu ombro, sorriu para ela, acariciando-lhe a barriga.
Ela sorriu entre as lágrimas.
- Noria fazer Zelandonie - ela tocou-lhe na pálpebra. - Noria fazer Jondal. - .
Haduma...
- Sim - disse ele com a cabeça. - Tamen me contou. Jondal, sexta ge ração de
Hadumai - ele pegou na sua sacola. - Eu tenho uma coisa que gos taria de dar para você,
Noria - falou, retirando a donii de pedra que colo cou na mão dela. Ele gostaria de dizer o
quanto lhe era importante aquele objeto, que aquela era uma peça que tinha sido dada
pela sua mãe, sendo uma imagem antiqüíssima, que já vinha de muitas gerações. Então
deu um sorriso.
- Isso é a minha Haduma. A Haduma de Jondalar. Agora, fica sendo a Hadu ma de
Nona.
- Haduma de Jondalar? - disse, olhando para a estatueta. - Haduma de Jondalar. - -
Noria?
Ele concordou com a cabeça.
Ela caiu em prantos agarrando a estatueta e a levou aos lábios.
- Haduma de Jondalar - repetiu ela com os ombros tremendo pelos soluços.
Subitamente, atirou os braços ao redor dele e o beijou, depois saiu correndo na direção
das tendas, chorando tanto que mal podia ver o caminho.
O acampamento inteiro veio desperdir-se deles. Haduma se achava ao la do de
Noria e Jondalar se deteve diante das duas. Haduma sorria, balançando a cabeça em
sinal de aprovação, mas as lágrimas rolavam pelas faces de Noria. Ele pôs o dedo numa
e a levou à boca. Ela sorriu, apesar das lágrimas conti nuarem a escorrer. Jondalar se
virou para ir embora, mas não antes de ver o rapazinho de cabelos anelados que serviu
de mensageiro para Jeren, olhando para Noria apaixonadamente.
1 86 87 Ela agora era mais mulher e uma mulher abençoada por Haduma, fato que
lhe garantia uma bela criança que levaria algum dia para a casa de um ho mem. Já era
sabido de todos que Nona conhecera os prazeres em seus primei ros ritos e eram essas
as mulheres que davam as melhores companheiras. Ela estava perfeitamente aberta para
ter o seu companheiro, além de que era tam bém uma mulher muito desejável.
- Você acredita realmente que Nona vai ter um filho de seu espírito? - perguntou
Thonolan, depois de terem saído do acampamento.
- Isso eu nunca vou saber. Mas que Haduma é uma velha com muita sa bedoria, não
há como negar. Ela sabe muito mais do que se imagina. Acho que ela tem grandes
poderes mágicos. Se houver alguém para fazer com que isso aconteça, esse alguém só
poderá ser ela.
Por algum tempo caminharam em silêncio, seguindo a margem do rio. Depois,
Thonolan disse:
- Há uma coisa, meu irmão, que eu gostaria de perguntar.
- Pois pergunte.
- Qual é a sua mágica? Quero dizer, todos os homens gostam de ser escolhidos
para funcionarem nos prmeiros ritos de uma moça, mas essa é uma coisa que deixa um
bocado deles com medo. Conheço alguns que até já recu saram. Para ser sincero, eu
mesmo sou um pouco desajeitado nessas ocasiôes, se bem que nunca me recusei. Mas
você, Jondalar, está sempre sendo escolhi do e eu nunca soube de um fracasso seu.
Todas se apaixonam por você. Como é que consegue? Tenho observado o seu jeito de
fazer amor nos festivais e não vejo nada de especial.
- Eu não sei, Thonolan - respondeu ele, um tanto encabulado - ape nas tento ser
cuidadoso.
- E que homem não tenta? Não, você possui alguma coisa mais do que isso. O que
foi mesmo que Tamen disse? Ah! Que é muito difícil a mulher ter prazer nos seus ritos de
passagem. Como, então, você consegue dar prazer a uma mulher? Eu já me dou por feliz
se conseguir não machucá-la muito. E não é porque você seja menor ou que tenha algo
que facilite a coisa. Vamos lá, dê alguns conselhos ao seu irmãozinho. Eu não me
importo de ter um ban do de beldades correndo atrás de mim.
Jondalar diminuiu o passo e olhou para Thonolan.
- Pois devia. Acho que essa é uma das razões que me fez assumir o compromisso
com Marona. Simplesmente para que eu pudesse ter uma descul pa - Jondalar franziu a
testa. - Os ritos de passagem são importantes para uma mulher e para mim também.
Mas, de certa maneira, muitas moças não passam de crianças. Elas não aprenderam
ainda a diferença que existe entre correr atrás de um menino e estimular um homem.
Quando você se vê sozinho com uma mulher com quem passou uma noite especial,
como poderá dizer a ela que teria preferido a companhia de uma outra mais experiente?
Oh, Gran de Doni, Thonolan! Eu não quero ferir ninguém, mas não me apaixono por
todas as mulheres com quem passo uma noite.
- Ora, Jondalar. VocC não se apaixona por ninguém.
Jondalar apressou o passo.
- O que você quer dizer com isso? Já amei um mundo de mulheres.
- Amar pode ser. Mas isso não é o mesmo que apaixonar.
- Como pode saber? Você já esteve apaixonado?
- Algumas vezes. Talvez não tenha durado muito, mas eu conheço a di ferença.
Olhe aqui, meu irmão, eu não quero me meter na sua vida, mas você me preocupa,
principalmente quando entra numa de suas fases de mau humor. E também não precisa
correr. Se quiser eu calo a boca.
Jondalar se pôs a caminhar mais devagar.
- Bem, talvez você tenha razão. E possível que eu nunca me tenha apai xonado.
Pode ser que não esteja em mim apaixonar.
- Mas o que é que está faltando? Que coisa é essa que você está procu rando e que
as mulheres não têm.
- Se eu soubesse,você não acha. . - - começava ele a dizer, irritado. De repente se
interrompeu, fazendo uma pequena pausa. - Eu não sei, Thonolan. Imagino que queira
tudo ao mesmo tempo. Uma mulher tal como ela se en contra nos seus primeiros ritos. . -
acho que me apaixonei por todas elas, pelo menos nessa noite. Só que eu quero uma
mulher e não uma menina. Quero vê-la sinceramente ansiosa, cheia de desejos, sem
fmgimentos e não quero ter de preocupar-me em ser cuidadoso. Desejo que ela tenha
firmeza de espírito, que saiba o que quer. Também desejo que ela seja moça e madura,
ingênua e esperta. . . enfim, tudo ao mesmo tempo.
- Você está querendo demais, meu irmão.
- Bom, foi você quem me perguntou.
Por algum tempo, caminharam em silêncio.
- Com que idade você acha que a nossa Zelandoni está? - perguntou Thonolan. -
Ela poderia ser um pouco mais moça do que a mãe?
Jondalar endireitou o corpo.
-Porquê?
- Eles dizem que ela, quando mais moça, foi muito bonita e que até há algum tempo
atrás ainda era. Alguns dos homens mais velhos contam que nenhuma mulher podia
comparar-se a ela, que nem de leve as outras chega. vam aos seus pés. E difícil de se
saber, mas falam que ela é jovem demais para ser a primeira dentre as servidoras da
Mãe. Agora, me conte uma coisa, meu irmão. O que dizem de você e a Zelandoni é
verdade?
Jondalar parou e, devagar, se virou para encarar o irmão.
88 89 - Eo que dizem de mim e a Zelandoni? - perguntou por entre os dentes.
- Desculpe. Fui longe demais. Esqueça que perguntei.
J\ saiu da caverna e ficou parada no rebordo do penhasco, esfregando os olhos e
espreguiçando. O sol ainda se achava baixo no oriente. Ela protegeu os olhos contra a
luz, procurando ver onde se encontravam os cavalos. Apesar de estar lá somentehá
popcos dias, já se tornara um hábito passar em revista os cavalos todas as manhas
quando acordava, O fato de saber que estava dividindo o vale com criaturas vivas tor
nava a sua existência solitária um pouquínho menos insuportável.
Ela estava começando a conhecer os hábitos desses animais. Onde, por exemplo,
iam eles tomar água pela manha ou que sombras de árvores gosta vam de ficar debaixo
durante a tarde e também a identificá-los individual mente. Havia o potrozinho de um ano,
com a sua crina dura e em pé, de pêlo cinza muito claro, quase branco, exceto a risca ao
longo da espinha, num tom mais sombreado e as pontas das patas cinza-escuras; a égua
castanha com a sua cria de pêlo cor de palha, combinando com o do garanhão; o
orgulhoso chefe da manada, cujo lugar algum dia seria ocupado por um daqueles filho tes
de um ano que agora ele mal podia suportar, ou, quem sabe, algum potri nho ainda por
nascer neste ou no ano seguinte. O garanhão amarelo-claro, com a sua risca, crina e
patas marrom-escuras, tinha todo o jeito de que ainda estava em plena flor da idade -
Bom dia, meu c - disse Ayla, fazendo o gesto usado para saudar as pessoas. Apenas
uma leve nuance o indicava como um cumprimento. - Hoje eu levantei tarde. Vocês já
tiveram o seu gole esta manhã e acho que vou pe gar também o meu.
Ela já estava agora bastante familiarizada com o caminho para percorrE- lo com
passos firmes. Desceu-o às carreiras e foi direto para o rio. Tomou um gole, depois tirou
a roupa para nadar, como vinha fazendo todas as manhãs. A roupa era ainda a mesma,
mas ela a havia lavado e raspado o couro para tor ná1o macio outra vez. O seu gosto
natural pela ordem e limpeza fora muito reforçado por Iza que, como curandeira, tinha um
enorme estoque de ervas medicinais, precisando estar sempre muito bem arrumado para
evitar o'ao indevido de um medicamento, além de que também era Iza uma mulher cons
ciente dos males e doenças causadas pela falta de higiene e agentes infecciosos. lima
coisa era estar em viagem e ser obrigada a conviver com um certo acúrnu lo de sujeira -
isso não havia como evitar - e outra era estar vivendo nas pro ximidades de um reluzente
rio e não tomar banho.
Ela passou as mãos pela farta cabeleira loura que lhe caía em ondas até bem
abaixo dos ombros. "Essa manha vou lavar os meus cabelos", disse, gesti culando para
si mesma. No ponto onde o rio fazia a curva, ela tinha visto alguns pés de saboeiro e se
dirigiu para lá, pensando em pegar algumas raízes. Enquanto voltava, olhando na direção
do rio, reparou num grande bloco de rocha, assentado sobre um banco de areia, com
algumas cavidades rasas, em forma de pratos. Ela pegou uma pedra redonda e foi até a
rocha. Lavou as raí zes, encheu de água as cavidades e socou dentro as plantas que
começaram a desprender uma espuma rica em saponáceo. Depois de estar com uma
boa quantidade de espuma, molhou os cabelos e os ensaboou, esfregando. Em se guida,
fez a mesma coisa com o corpo e caiu na água para se lavar.
Algum tempo no passado, uma parte saliente do paredão se desprende ra, caindo
dentro do rio. Ela subiu pelas pedras que ficaram submersas e che gou a uma superfície
ensolarada, à tona da água. O canal que se formara do lado da praia, onde a água batia-
lhe à altura do peito, havia transformado a ro cha numa ilha sombreada por um salgueiro
cujas raízes à mostra eram como garras ossudas procurando deter as águas. De um
arbusto que apoiava as suas raízes numa fenda da rocha, ela pegou um pequeno ramo
que descascou com os dentes e usou para desembaraçar os nós dos cabelos, enquanto
os secava ao sol.
Olhando vagamente para a água e cantarolando baixinho, teve, de re pente, a sua
atenção despertada por um ligeiro movimento. Então, toda ela se fei alerta. Olhando para
dentro da água, viu a forma prateada de uma truta que descansava sob as raízes. "Desde
que larguei a caverna, nunca mais comi peixe", pensou, lembrando-se de que até aquele
instante ainda estava sem comer.
Indo para o outro lado da rocha, silenciosamente deslizou para dentro da água,
nadando um pequeno trecho na direção da correnteza, para depois vir caminhando até o
banco de pedras sob o rio. Meteu as mãos na água, deixando os dedos pendurarem-se
bambamente e, muito devagar, com infini ta paciência, voltou a andar contra a
correnteza. Quando chegou perto da árvore, viu a truta com a cabeça virada na direção
da corrente, ondulando com suaves movimentos para se manter sob a raiz.
Os olhos brilhavam excitados, mas ela própria mostrava-se cada vez mais cautelosa
com os seus movimentos de pés à medida que se aproxiniava 5 90 91 do peixe. Botou a
mão sob a truta, encostando muito de leve, sentindo-lhe as guelras abertas. Subitamente
agarrou o peixe e num único movimento reti rou-o da água, atirando-o à margem. Por
alguns instantes a truta saltou, se de batendo, depois ficou imóvel.
Ela sorda satisfeita. Retirar um peixe para fora da água fora uma coisa difícil de
aprender quando criança, e se sentia ainda tão orgiilhosa como da primeira vez que
conseguira realizar a proeza. Aquele lugar seria daqui por diante vigiado, certamente
ainda iria abrigar outros hóspedes. ". .É uma tru ta grande demais para uma simples
refeição matinal", pensou quando foi apa nhá-la, já saboreando o gosto de um suculento
peixe fresco assado sobre pedras quentes.
Enquanto a truta assava, ela se ocupou tecendo uma cesta com o capim- de-urso
que apanhara na véspera. Seria uma cesta comum e prática, mas, para agradar a si
mesma, fazia algumas variações na tessitura, de modo a criar um desenho delicado na
trama. Trabalhava rápido, com tanta destreza que nem água passaria pelo trançado de
fibras. A cesta poderia ser usada como uten sílio para cozinhar, botando água e pedras
quentes dentro, mas o propósito que ela tinha em mente era outro. Já pensando em tudo
de que iria precisar para se pôr a salvo durante o inverno que vinha pela frente, a cesta
seria usada como recipiente para armazenar víveres.
"Dentro de alguns dias as groselhas que colhi ontem estarão secas", pensou,
olhando as frutinhas redondas e vermelhas espalhadas sobre estei ras de capim, na
entrada da caverna. "Até lá, outras também já estarão ma duras. Vou ter também um
bocado de uvas-do-mato, mas acho que aquele pe queno pé retorcido de maçã não vai
dar muita coisa. As cerejeiras estão car regadas, quase maduras demais. Se quiser
cerejas, tenho de pegar ainda hoje. Se os passarinhos não chegarem antes, vou ter muita
semente de girassol. Acho que aqueles arbustos, perto do pé de maçã, são avelaneiras,
mas não tenho muita certeza, são tifo menores do que as que existiam perto da caver
napequenina. Está parecendo que aqueles pinheiros são do tipo dos que têm as pinhas
com umas nozes grandes dentro. Mais tarde vou dar uma olhada. - - Puxa, já queria que
esse peixe estivesse assado!”
"Já devia estar botando os legumes para secar. e também liquens, cogumelos e
raízes. Não é necessário que todas as raízes sejam postas para secar. Algumas podem
agüentar muito tempo no fundo da caverna. Será que devo pegar mais sementes de
quenopódios? São tão pequeninas, nunca pare ce haver o bastante. Vale a pena fazer
um esforço para colher cereais, e algu mas espigas já estão maduras no campo. Hoje
vou apanhar as cerejas e os ce reais, mas vou precisar de mais cestas para guardar as
coisas. Talvez eu possa fazer alguns recipientes de vidoeiro. Que bom seria se eu tivesse
um couro cru para fazer aqueles enormes caixotes. - "Quando eu morava com o clã,
sempre parecia haver couro sobrando. Agora, me dada por feliz se pudesse contar com
mais uma boa pele grossa para o inverno. Os coelhos e os hamsters são pequeno&
demais, não servem para fazer um bom manto de pele e, além disso, são bichos muito
magros. Se eu pudesse caçar um mamute, teria tanta gordura que até para fazer lampari
nas sobraria. E nenhuma carne é tão gostosa e forte como a do mamute. Será que essa
truta ainda não está pronta?" Ela pôs para o lado uma folha cobrin do o peixe e o espetou
com um pauzinho. "Só mais um pouquinho e pronto.”
"Seria bom se tivesse sal, mas não há nenhum mar por aqui. As tussila gens têm
gosto salgado e outras ervas também servem para temperar. Iza con seguia fazer com
que tudo ficasse gostoso. Talvez eu dê um pulo até as este pes para ver se apanho
alguma ptármiga. Depois, vou fazê-la do jeito de que Creb gostava."
Ela sentiu um nó na garganta pensando em lia e Creb e abanou a cabe ça como se
querendo espantar a lembrança ou, pelo menos, impedir que as lágrimas subissem aos
olhos.
"Eu preciso de um engradado para botar as ervas e as folhas para se car. . . e
também para pendurar as plantas medicinais. Posso ficar doente. Te nho de derrubar
algumas árvores para fazer as estacas, mas vou precisar tam bém de correias de couro
para a amarração. As plantas se conservam bem depois de secas e enrugadas. Com
tanta árvore caída e tanto madeirame arras tado pelas enchentes, não vou precisai de
cortar galhos para lenha; além disso há o esterco dos cavalos. Depois de seco, queima
muito bem. Hoje mesmo vou começar a subir com a lenha para a caverna. Logo vou ter
necessidade de fa bricar algumas ferramentas. Foi uma sorte ter encontrado sílex. Esse
peixe já devia estar pronto. .
Ela se serviu diretamente nas pedras quentes, onde pusera para assar a truta e
pensou que seria bom passar em revista a pilha de ossos e madeiras para ver se
encontrava ali peças achatadas de osso que pudessem ser usadas como pratos. Os
ossos dos ombros e da pelve davam bem para isso. Depois de comer, ao despejar o seu
odre na vasilha de cozinhar, lamentou não ter o estô mago de um grande animal que lhe
servisse como reservatório de água na caverna. Ela retirou algumas pedras quentes da
fogueira e jogou-as na vasilha- Depois, quando a água ferveu, despejou por cima pétalas
secas de malva que pegou em sua sacola de remédios. As malvas, ela usava no
tratamento de resfriados simples, mas davam também um saboroso chá.
A árdua tarefa de coletar, preparar e armazenar as riquezas que lhe ofere cia o vale
não a assustava, ao contrário, estava ansiando por ter o que fazer. Isso a manteria
ocupada, impedindo-a de pensar em sua solidão. A comida que armazenava era só para
ela, mas sem outra pessoa para ajudar, o trabalho não andava rápido, e Já se
preocupava com a possibilidade de não ter tempo 92 93 suficiente para armazenar tudo
que queria. E outras Coisas mais também a preocupavam.
Enquanto bebericava o seu chá e terminava a cesta, ela ia pensando no que fria
precisar para sobreviver por todo um longo e frio inverno. "Devia ter uma outra pele na
minha cama", disse para si mesma. "E, naturalmente, carne. E que tal gordura? Deveria
ter alguma para agüentar o inverno. Se ti. zesse recipientes de vidoeiros fria muito mais
rápido do que cestas. Mas para isso precisaria de cascos, ossos e pedaços de couro para
fabricar os paus do engradado? Poderia usar tendões e tripas para guardar gordura e. .
Subitamente, interrompeu a gesticulação rápida que vinha fazendo. Olhava para o
espaço como se estivesse tendo alguma visão. Tudo isso teria se conseguisse um animal
grande. Bastava um só. Mas como? Ela terminou a cesta e a colocou dentro de uma
outra maior, aquela que usava para coletar plantas e amarrava às costas. Meteu as
ferramentas nas dobras de sua roupa, apanhou o pau de cavar e a funda, tomando, em
seguida, a direção da canipi na. Ao chegar na cerejeira silvestre, colheu todas que
estavam na parte de bai xo e, depois, subiu no pé para pegar mais. Aproveitou também
para comer al gumas. Mesmo já um tanto passadas, se conservavam doces e com um
leve sabor de acidez.
Depois de descer, resolveu pegar também um pouco das cascas no tron co. Davam
bom remédio para tosse. Com uma machadinha destacou a parte dura de fora e raspou
com uma faca a camada intema, formada pelo câmbio. Isso a fazia lembrar de uma
ocasião quando, ainda criança, fora pegar cascas de cerejeira para Iza. Ela, então, ficara
espiando os homens que treinavam com as suas anuas numa clareira. Sabia que estava
fazendo uma coisa proibi. da, mas, por outro lado, tinha medo de sair e de ser vista por
eles. Depois, quando o velho Zoug começou a ensinar ao menino o manejo da funda,
fica. ra curiosa.
Ela não ignorava que mulheres não deviam pôr a mão em armas, no en tanto não
conseguiu resistir ao ver a funda que tinha ficado esquecida no chão. Ela quis também
tentar. "Se eu não tivesse pegado aquela furida, será que ain da estaria viva hoje? Será
que Broud me odiaria um pouco menos se eu não tivesse aprendido a atirar com a
funda? Talvez se não me odiasse tanto, não teria me obrigado a ir embora. Mas se não
me odiasse tanto, não teria prazer em me forçar a ter relações com ele, e, talvez, Durc
não tivesse nascido?' "Talvez! Talvez! Talvez!", pensou com raiva. "Qual o sentido de
ficar pensando no que poderia ter sido? Agora estou aqui e não é essa funda que vai me
ajudar a pegar um animal grande. Para isso, preciso de uma lança?' Ela retomou o
caminho, através de um arvoredo, pensando tomar antes um pouco de água e tirar das
Sãos o suco pegajoso das cerejas. Mas havia qualquer coisa naquelas árvores novas,
alta e bem apnimadas, que a fez parar.
Segurou o tronco de uma, iluminando-se com a idéia. "Esse aqui serviria. Da ria
para fazer uma lança perfeita.”
Por um momento, bateu-lhe o desânimo. "Brun ficaria furioso", pen sou. "Quando ele
me deu licença para caçar, disse que a única arma que me seria permitida era a funda.
Ele. - "Mas que fada ele? Aliás, o que poderia fazer? Mesmo que eles soubes sem,
poderiam fazer alguma coisa comigo? Eu estou morta. Já estou morta. Não existe
ninguém aqui a não ser eu.”
Então, como uma corda que de tão esticada acaba rompendo-se, alguma coisa
dentro dela partiu-se, fazendo-a cair de joelhos. "Oh, como gostaria de ter alguém aqui
junto de mim. Alguém. - . qualquer pessoa. Até mesmo Broud eu ficaria alegre de ver.
Nunca mais tocaria numa funda, se ele me deixasse voltar. - - e ver Durc outra vez."
Ajoelhada ao pé da árvore alta e esguia, ela enterrou a cabeça nas mãos sufocando os
soluços convulsivos.
O seu choro ia ter em ouvidos indiferentes. As pequenas criaturas viven do nas
matas e na campina simplesmente evitavam aquele estranho ser, com os seus ruídos
incompreensíveis. Ninguém se achava lá para ouvi-la, para com preendé-la. Enquanto
viajava, havia sempre a esperança de encontrar gente, criaturas como ela. Agàra, parada
num lugar só, tinha que deixar a esperan ça de lado, aceitar e aprender a conviver com a
sua solidão. A preocupação de sobreviver numa região desconhecida, cuja intensidade
do frio ela ignorava, aumentava-lhe a ansiedade - No entanto, o choro aliviou a tensão -
Quando levantou, estava tremendo, mas tomou a machadinha e se pôs a bater
furiosamente na base do pé de álamo; depois, atacou um outro. "Can sei de ver os
homens fazendo lanças", falou para si mesma, enquanto limpava o tronco das ramas.
"Nunca me pareceu uma coisa muito difícil de fazer." Ela arrastou os paus para a
campina e passou o resto da tarde colhendo trigo e centeio. Depois, arrastou tudo para a
caverna.
Já anoitecendo, começou o trabalho de retirar a casca externa dos paus e aplainá-
los. Só parou para cozinhar um pouco de cereais e comer o resto do peixe, no momento
em que foi pôr as cerejas para secar. Quando o céu ficou inteiramente escuro, ela estava
pronta para enfrentar a próxima etapa. Carre gou os paus para dentro da caverna e,
lembrando-se da maneira como os ho mens faziam, mediu o comprimento de um deles,
de modo a ficar com pouquinha coisa mais do que a sua altura, depois fez uma marca no
tamanho desejado. Pôs, então, a parte marcada no fogo e girou o pau, queimando-o ao
redor. Com uma raspadeira dentada, poliu a parte enegrecida e continuou a queimar e
polir até que o pau se quebrou, fazendo uma ponta. Para acabar, mais umas tantas
chamuscadas e outros tantos polimentos e, pronto, estava transformado numa lança com
uma boa ponta temperada a fogo. Passou, em seguida, a preparar a segunda.
94 95 Era tarde quando terminou. Sentia-se cansada, mas satisfeita com o tra balho.
O sono iria vir com mais facilidade. Os seus piores momentos eram à noite. Ela abafou a
fogueira, caminhou até a entrada, olhou o céu estrelado, tentando pensar em alguma
coisa que atrasasse a sua ida para a cama. Havia aberto uma vala no chifo que encheu
de capim seco e cobriu com a sua pele. Com passos vagarosos, dirigiu-se para o seu
buraco de dormir. Deitou-se e fi cou olhando o fraco brilho das brasas, enquanto ouvia o
silêncio.
Nenhum ruído de pessoas preparando-se para dormir. Nada sugerindo os embates
de amor nas casas próximas. Nenhum ronco ou grunhido. Ne nhum daqueles pequeninos
sons denunciadores de vida, a não ser os dela pró pria. Ela pegou a manta que usava
para carregar o filho e a embolou aperta da contra o peito, pondo-se a ninar-se,
balançando o corpo e cantarolando baixinho enquanto as lágrimas rolavam pelas faces.
Finalmente deitou-se e, enroscada na manta, chorou até adormecer.
Na manha seguinte, ao sair da caverna para fazer as suas necessidades, reparou
que tinha sangue nas pernas. Ela remexeu nas suas coisas, procuran do por absorventes
e o cinto especial para essas ocasi5es. As tiras estavam duras e lustrosas, apesar das
lavagens. Já deveriam ter sido enterradas, desde que foram usadas na última vez-
"Gostaria de ter agora um pouco de lã de carneiro para acolchoá-las", pensou. Olhou,
então, para a pele de um coelho. "Essa aí queria guardar para oinvemo, mas coelhos é
coisa fácil de se arrumar”
Antes de descer para o seu banho de rio matinal, ela cortou a pequena pele em
tiras. "Devia saber que estava na época de chegar. Podia ter me pre parado. Agora, não
posso fazer nada, a não ser. - De repente, deu uma risada- "Aqui, a maldição de mulher
não tem a menor importância. Não há nenhum homem. Não preciso ficar evitando os
seus olhares e nem eles estão correndo o risco de comer o que eu cozinhar ou pegar-
Não há ninguém aqui com quem deva preocupar-me, a não ser eu mesma.”
"Mesmo assim, devia estar prevenida, mas os dias têm passado tão rápi dos.
Pensava que ainda não estivesse no tempo. Desde quando já estou neste vale?" Ela
franzia a testa, tentando lembrar-se, mas os dias pareciam fundir.
se um no outro. 'Tinha de saber há quantos dias já estou aqui-Talvez a esta ção
esteja muito mais avançada do que imagino." Por instantes, entrou em pâ nico. "Não. Não
pode ser tanto. A neve nãõ pode chegar antes que os frutos amadureçam e as folhas
caiam, mas eu devia saber, tinha de estar observando a passagem dos dias.”
Recordou-se, então, de uma cena passada há muitos anos atrás, com Creb
mostrando-lhe como fazer ranhuras numa vara para marcar a passagem do tempo. Ele
ficara surpreso ao ver a rapidez com que ela compreendera o raciocínio. Creb lhe havia
dado as explicaçøes, exclusivamente para se ver livre das perguntas insistentes que ela
fazia. Ele não deveria estar revelando a uma menina um sacrossanto segredo conhecido
apenas dos acólitos e dos mog-urs, por isso a avisou para que nunca mencionasse o fato
a ninguém. Lembrou-se também da raiva dele, em outra ocasião, quando a surpreende ra
fazendo marcas num pau para contar os dias entre uma fase e outra da lua cheia.
"Creb, se você está me vendo do mundo dos espíritos, não fique zanga do comigo",
falou ela em sua língua de gestos silenciosos. "Você deve estar sabendo dos motivos por
que eu tenho de fazer isso.”
Ela encontrou um pau liso e comprido e lhe colocou uma marca com a sua faca.
Pensou alguns instantes e acrescentou mais duas. Então, cobriu as ranhuras com três
dedos e tomou a descobrir. "Acho que já foram mais do que isso, mas essa quantidade
eu tenho certeza. De noite, vou fazer outra marca. Cada vez que passar um dia, ponho
uma marca." Ela examinou a ma deira novamente. "Acho que vou fazer uni corte em cimi
deste aqui para mar car o dia em que comecei a sangrar.”
A metade de uma fase da lua já havia transcorrido, desde que as lanças tinham
ficado prontas, sem que Ayla houvesse encontrado a maneira para caçar o grande animal
de que estava precisando. Sentada na entrada da caver na, olhava para o penhasco em
frente e o céu começando a escurecer- O verão estava no seu auge, e ela se achava ali
gozando a fresca brisa do princípio de noite. Havia acabado de terminar o seu novo traje
de verão. A sua vestimen ta completa era muito quente para ser usada normalmente.
Embora andasse nua nas redondezas da cavema, quando saía para mais longe
precisava dos bolsos e das dobras de uma roupa para carregar os seus apetrechos.
Depois de tornar-se mulher, gostava também de usar, quando saía para caçar, uma faixa
de couro amarrada apertada ao redor do busto. Isso a fazia sentir-se mais confortável nos
momentos de saltar ou correr, além do que no vale não tinha de agüentar os olhares de
banda das pessoas que viam nesse detalhe uma de suas tantas esquisitices.
Como não dispunha de um couro grande para cortar, acabou inventan do uma
maneira de fazer com as peles de coelho, desprovidas de sua pelúcia, um traje de verão
que lhe deixava nua da cintura para cima, só com os seios cobertos pela faixa feita de
outra pele. Planejava uma ida no dia seguinte às estepes, levando as suas lanças e a
esperança de encontrar animais para caçar.
A encosta pouco íngreme do lado norte do vale dava fácil acesso às estepes a leste
do rio. Já as planícies do oeste eram muito difíceis de serem atingidas devido ao alto
paredão rochoso. Ela viu diversas manadas de bisões e cavalos, veados e até mesmo
um pequeno bando de antílopes-saigas, mas a 96 97 única coisa que conseguiu pegar foi
um casal de ptármigas e um grande gerbo. Era muito difícil chegar perto de um bicho e
lhe enfiar uma lança.
Os dias passavam e a caça de um grande animal se tomou uma constan te
preocupaçao. Já ouvira muitas vezes os homens do cl conversando sobre as suas
caçadas - aliás, praticamente, a única coisa sobre o que conversa vam - mas no caso
deles era diferente, pois que caçavam em grupo- A técni ca preferida dos homens -
semelhante à empregada pelos lobos - era a de separar um animal do resto da manada e
obrigá-lo a correr a mais nifo poder, até que o bicho, exausto, deixasse que eles se
aproximassem e dessem a esto cada fatal. Ayla, no entanto, achava-se só- Muitas vezes
eles conversavam sobre a maneira como os felinos espera vam açapados para dar o bote
ou para se lançarem num salto furioso e matar o animal com as suas presas e garras.
Mas Ayla nifo tinha presas nem garras, e tampouco a velocidade vertiginosa dos felinos.
Nem mesmo se sentia à vonta de com as lanças. Eram compridas e grossas demais-
Apesar de tudo, tinha de encontrar urna maneira.
Finalmente, numa noite de lua nova, surgiu-lhe uma idéia que talvez desse certo.
Nas ocasiôes em que a lua dava as suas costas para a terra e pas sava a banhar as
longínquas paragens do espaço nos reflexos de sua luz, era freqüente ela se ver
pensando nas reuniôes de cl Todos os Festivais do Urso da Caverna caíam numa lua
nova.
Estava pensando nas encenaçôes de caçadas feitas pelos diversos das. Fora Broud
quem conduziu a emocionante dança da caçada para o seu clff, numa teatralização
extremamente real da caçada de um mamute que é perse guido com fogo até chegar a
uma garganta sem saída. Essa representaçao fi cou com o primeiro lugar. Mas a
encenação levada pelo da anfitrião, mos trando como cavaram uma armadilha no
caminho que um rinoceronte lanoso habitualmente usava para beber água, como
cercaram o bicho, matando-o dentro do buraco, deu a este clã um segundo lugar muito
próximo do primei ro. Rinocerontes lanosos eram sabidamente animais imprevisíveis e
perigosos.
Na manhã seguinte, Ayla olhou procurando ver se os cavalos se acha vam lá, mas
não os cumprimentou. Já conhecia cada um deles em separado. Eram para ela uma
companhia, quase amigos, mas não lhe restava outra solu çao, se quisesse sobreviver.
Uma grande parte dos dias seguintes ela a consumia observando a ma nada,
estudando-lhe os movimentos, o lugar onde em geral iam os animais be ber água, onde
preferiam pastar, onde passavam a noite. Enquanto observa va, um plano começou a
esboçar-se em sua cabeça- Precoupava-se com os de- talhes, tentava visualizar todas as
possibilidades e, por fim, pôs mãos à obra.
Gastou todo um dia derrubando pequenas árvores e arbustos que arras- tou pela
campina e empilhou próximo a um espaço vazio entre as árvores, junto do rio. Pegou
cascas resinosas em árvores, cortou galhos de pinheiro e abeto, escavacou dentro de
toras de madeira podre, catando lascas duras e farinhentas que pegassem fogo com
facilidade, e arrancou grandes punhados de capim seco. Ao anoitecer, amarrou as pontas
dos galhos com as lascas de madeira misturadas com os pedaços de resina e capim
seco, fazendo tochas que pegavam fogo rapidamente, desprendendo grande quantidade
de fumaça.
Pela manhã, na véspera do dia programado para a caçada, ela retirou ocouro da
tenda e o chifre de auroque. Depois, revirou a ossada e o madei rame amontoados no pé
do paredão, onde apanhou um osso resistente, de for ma achatada, que raspou na
beirada, fazendo.lhe uma borda afiada. Cheia de esperança - e ela o precisava - apanhou
todas as cordas e correias quê encon trou, arrancou cipós das árvores e fez uma pilha de
tudo na praia para onde arrastou também troncos caídos e ramagens secas, de modo a
ter bastante ma terial para fogueiras.
Pelo final da tarde, estava com tudo pronto e andava de lá para cá na praia, indo e
voltando até a curva do paredão, vigiando o movimento da ma nada. Apreensiva, viu que
algumas nuvens se formavam do lado leste. Espera va que não fossem empanar o luar
com que ela estava contando. Cozinhou alguns cereais e pegou umas frutas, mas não
conseguiu comer muito. Volta e meia, apanhava as lanças e dava estocadas para treinar,
depois punha-as nova mente de lado.
No último momento, foi outra vez remexer na pilha de ossos e madei ras, onde
encontrou uma tíbia de veado, ligada a um osso arredondado. Ela deu uma bordoada no
osso contra a presa gigantesca de um mamute, estreme cendo-se toda com a força da
pancada. Era a maça de que estava preci sando, dura forte.
A lua apareceu antes do sol se pôr. Ela gostaria de saber um pouco mais sobre
cerimônias de caça, mas as mulheres sempre foram excluídas. Davam azar.
"Para mim mesma eu nunca dei azar, mas também nunca tentei caçar até agora um
animal grande. Queria nesse momento saber de alguma coisa que pudesse me trazer
sorte." Ela pegou no amuleto, voltando o pensamento para o seu totem, o Leão da
Caverna. Afinal, fora ele quem a levara a caçar. Foi o que Creb dissera. Senão, por que
motivo uma mulher iria manejar uma funda melhor do que qualquer homem? Além disso,
como pensava Brun, o seu totem era forte demais para uma mulher, dando-lhe traços de
caráter masculino. Ela contava com que o seu totem lhe fosse novamente trazer sorte.
As últimas luzes do crepúsculo começavam a apagar-se na escuridão, quando se
dirigiu para a curva no rio, acompanhando os cavalos que, por fim, resolveram acomodar-
se.
99 98 Ela apanhou o osso de forma achatada e o couro da barraca e correu pelo
relvado alto da campina,
indo ter na pequena clareira entre as árvores, onde os cavalos costumavam beber
água pela manhã. O verde das folhagens parecia cinza na pálida luminescência, e as
árvores mais distantes eram vistas como negras silhuetas contra a fulguração do céu.
Esperando que a lua ilumi nasse o bastante para enxergar, ela estendeu o couro no chão
e começou a ca var um buraco.
A terra estava dura, mas depois de revolvida a primeira camada, ficou mais fácil
cavar com o osso de forma achatada, transformado em pá. Quando já havia amontoado
unia certa quantidade de terra sobre o lençol de couro, arrastou-o para o meio do
arvoredo e despejou-o ali. Depois que a cova estava com alguma profundidade, ela
passou a puxar a terra para fora com o próprio couro que estendia no fundo do buraco.
Nunca antes havia cavado um bura co sozinha. As enormes coyas forradas de pedra que
usavam para assar os quartos inteiros de animais eram o resultado do esforço conjunto
de todas as mulheres do clã e esse buraco que agora cavava tinha ainda de ser mais pro
fundo e comprido do que aqueles.
Quando já havia cavado até a altura da cintura, sentiu água brotando na terra e
percebeu que não deveria ter feito a cova tifo perto do rio. Num ins tante o fundo alagou.
À lama ia pelo seus tornozelos, quando desistiu e saltou para fora, desmoronando um
pedaço da beirada, ao suspender o couro.
"Espero que esta profundidade já chegue", pensou. "Tem de chegar. - - quanto mais
cavo, mais água aparece." Olhou para a lua, surpresa por já ser tifo tarde. Tinha de
trabalhar depressa para terminar e não dava tempo para o pequeno descanso que
imaginara poderia ter.
Ao correr para o lugar onde empilhara as árvores e os arbustos, trope çou numa
raiz, esborrachando-se no chão. "Esse não é o momento para des cuidos", pensou,
esfregando a canela. Os joelhos e as palmas da mão ficaram esfolados e estava certa de
que era sangue que sentia escorrendo por uma das pernas, embora não pudesse ver.
Subitamente, percebeu o quanto se achava vulnerável e, por um instan te, entrou
em pânico. "E se eu quebrasse a perna? Se acontecer qualquer coi sa comigo, não existe
ninguém aqui para vir em meu socorro. O que vou fazer sozinha no meio dessa
escuridão? Nem fogo eu tenho. E se um animal me ata car?" A cena muito viva de um
lince saltando sobre ela passou-lhe pela lem brança, levando-a imediatamente a buscar a
funda, já imaginando olhos bri lhando em meio à escuridão. Encontrou a arma enfiada na
correia em sua cin tura. Sentiu-se mais confiante. "De qualquer modo, já estou morta.. -
ou pelo menos é como deveria estar. Se alguma coisa me acontecer é porque tem de ser
e eu nada posso fazer. Não há tempo para me preocupar. Tenho de andar depressa,
senão vai amanhecer antes que tudo esteja preparado.”
Ela encontrou o monte de galhos e arbustos e começou a arrastá-los para junto do
buraco. Sozinha, concluíra, não iria conseguir fazer o cerco dos cavalos e nem havia no
vale garganta sem saída. Então, com uma tirada genial, intuiu a solução. Era daqueles
golpes geniais de que era capaz o seu cérebro, o cérebro que a fazia mais diferente da
raça clânica do que o seu as pecto físico. Já que não havia gargantas sem saída no vale,
pensou, talvez pudesse ela criar uma.
Pouco importava o fato da idéia não ser original. Para ela, era nova. Mas não
achava que fosse uma grande invenção. Parecia-lhe apenas uma pe quena adaptação do
modo dos homens caçarem;no entanto, um fato que iria permitir uma mulher, por si só,
caçar um animal que nenhum homem dos clãs sonharia em fazer sozinho- Uma invenção
nascida da necessidade.
Ansiosa, ela constantemente olhava para o céu, enquanto entrelaçava os galhos,
construindo uma barreira que fechava enviesadamente dois lados paralelos do buraco.
Ela tapou as brechas e aumentou a altura com arbustos. No céu, as estrelas piscavam
mais fracamente no lado do oriente. Os pássa ros madrugadores já haviam começado as
suas saudações gorjeadas e a luz do dia fazia as suas primeiras aparições quando, por
fim, ela se afastou para contemplar a obra.
O buraco tinha a forma de um retângulo mal-acabado, com o compri mento apenas
um pouco maior do que a largura e se achava enlameado nas beiradas por onde haviam
passado os últimos carregamentos de terra úmida. Montes soltos da terra despejada do
couro achavam-se dispersos sobre a rel va pisoteada dentro da área triangular, definida
pelas barreiras vegétais, con vergindo na direção do buraco barrento. Através do espaço
separando as duas cercas, o rio podia ser visto refletindo o fulgor do céu no lado do orien
te. Na margem oposta, o íngreme penhasco ao sul do vale erguia-se sombria- mente,
apenas divisando-se os contornos de seu cimo.
Ela voltou para observar a posição dos cavalos. O outro lado do vale tinha uma
encosta que fazia uma subida mais abrupta para oeste, quando se erguia para formar o
paredão saliente em frente da caverna e, em seguida, nivelar-se mais adiante no vale, em
relvosas colina ondulantes. Ainda estava escuro neste trecho, mas deu para ela ver que
os cavalos começavam a movi mentar-se - Ay agarrou o couro da barraca e a pá de osso
e correu de volta à praia. A fogueira estava quase apagada. Acrescentou, então, mais
lenha e pescou, com um pau, um carvão aceso que botou dentro do chifre de auroque.
Apa nhou as tochas, as lanças, a maça e voltou às carreiras para junto do buraco.
Depositou no chão uma lança e a maça num dos lados da cova e no outro a segunda
lança. Isso feito, encaminhou-se, dando uma longa volta no terreno, de modo a se pôr
atrás dos cavalos, quando estes começassem a caminhar.
100 101 1 Ficou, então, aguardando.
A espera foi muito mais dura do que a longa noite de trabalho.
Extremamente tensa, inquieta, perguntava-se se o plano daria certo. Deu uma
olhada verificando o carvão e esperou. Lembrava-se de uni mundo de coisas que não se
recordara antes, coisas que deveria ter feito e não fez, ou que poderia ter feito
diferentemente. E esperou. Perguntava-se quando que os cavalos iriam, por fim, fazer o
seu caminho cheio de meandros até o rio. Pensou em açulá-los. Achou melhor não fazê-
lo e esperou.
Os cavalos começaram a andar sem um propósito definido. Ela achou que pareciam
mais nervosos do que o habitual, mas não tinha certeza, nunca estivera tifo perto deles.
Por fim, a égua guia começou a encaminhar- se para o rio e os outros foram seguindo-a,
parando em meio ao trajeto para pastar. Positivamente, tornaram-se nervosos quando já
estavam mais próxi mos do rio e farejaram o cheiro de Ayla e o da terra revolvida.
Quando a égua na frente pareceu querer desviar, ela resolveu que chegara o momento.
Acendeu uma tocha na brasa, depois a segunda na primeira. Vendo que já estavam
bem acesas, ela largou o chifre de auroque e se pôs a correr em perseguição da manada.
Com gritos, eias e berros, corria e agitava as tochas no ar, mas estava muito afastada da
manada. O cheiro da fumaça instinti vamente suscitava no animal o medo de fogo no
campo. Os cavalos ganharam velocidade e rapidamente distanciavam dela. Dirigiam-se
para o lugar de seu bebedouro, onde se encontravam as cercas de arbustos, mas,
pressentindo o perigo, alguns escaparam para leste. Ayla pegou o mesmo rumo, dando o
máxi mo de si na corrida e esperando desviá-los no caminho. Ao aproximar-se mais, viu
que outros se desviavam, procurando evitar a armadilha. Ela, aos gritos, correu para o
meio deles. Com as orelhas voltadas para trás, narinas flamejan tes, passavam junto
dela, desordenados, soltando relinchos de medo. Ayla também começava a entrar em
pânico, temendo que todos lhe escapassem.
Ela se achava próxima da extremidade de uma das barreiras, quando viu a égua
parda vindo na sua direção. Gritando para o animal, abriu os braços, com uma tocha em
cada mão, e disparou na direção do que parecia ser uma trombada na certa. No último
instante, a égua esquivou, mas para o lado errado, isto é, errado para ela, não para Ayla.
Vendo-se bloqueada, galopou para o interior do cercado, tentando descobrir uma
passagem. Ayla ia atrás, ofegante, sentindo os pulmões prestes a estourar.
A égua enxergou a abertura com a convidativa vista do rio e se dirigiu para lá. Foi,
então, que deu com o buraco aberto no chão. Tarde demais. Ainda juntou as patas para
dar o salto, mas os cascos escorregaram na beira- da lamacenta e ela se espatifou
dentro da cova, quebrando uma perna.
Respirando com dificuldade, Ayla correu para a beirada do buraco. Apanhou uma
lança e ficou mirando a égua que, com o olhar enlouquecido, sacudia a cabeça, berrando
e patinando na lama. Ela levantou a lança com as duas mãos, firmou-se nas pernas e
mergulhou a ponta da arma dentro do bura co. Viu, então, que tinha cravado a lança na
ilharga do animal, ferindo-o, mas não mortalmente. Correu para o outro lado, dando um
escorregão na lama e, por pouco, não caindo também dentro da cova.
Pegou a outra lança e desta vez tomou mais cuidado com a pontaria. A égua,
aparvalhada, dava relinchos de dor. Quando a ponta da segunda lan ça perfurou o
pescoço, o animal ainda num derradeiro e heróico esforço ten tou dar um passo à frente.
Depois, duplaniente ferida, com uma perna quebra. da, deixou-se cair, soltando um
relincho mais parecido a um gemido. Uma for te pancada da maça veio pôr fim ao seu
sofrimento.
A compreensão se fez aos poucos na mente de Ayla. Achava-se estupi dificada
demais, sem perceber inteiramente toda a extensão de seu feito. Na beirada da cova,
apoiando-se pesadaniente sobre a maça e ainda ofegante, olhava para a égua abatida. O
pêlo duro de tom acinzentado se encontrava riscado de sangue e coberto de lama. O
animal estava na mais perfeita imobi lidade.
Então, muito devagar, o entendimento foi se fazendo. Como uma força, qualquer
coisa que ela jamais conhecera na sua vida, nascida nas pro fundezas de seu ser,
cresceu-lhe na garganta e explodiu pela boca o seu grito primal de vitória. Conseguira!
Naquele momento, num vale perdido no meio de um vasto continente, em algum
ponto próximo às fronteiras indefinidas das desoladas estepes de loesse nas regiões
boreais e das úmidas estepes do sul, uma mulher erguia a sua maça, sentindo todo o seu
poder. Ela poderia sobreviver. E iria.
Mas a alegria durou pouco. Olhando para o cavalo, de repente, ocorreu- lhe que
jamais conseguiria arrastá-lo para fora do buraco. Teria de esquarte já-lo no local, no
meio da lama e, em seguida, levar rápido as partes para a praia, sem danificar a pele,
antes que uma quantidade de predadores sentisse o cheiro de sangue. Seria preciso
cortar a carne em tiras, retirar as outras partes que gostaria de preservar, manter as
fogueiras sempre acesas e estar de vigia durante a secagem das carnes.
Já estava exausta com o trabalho estafante da noite e o da aflitiva caça da. Ela não
era um homem dos clãs que, uma vez terminada a sua parte numa emocionante caçada,
podia dar-se ao luxo de descansar, deixando às mulheres a tarefa do esquartejamento e
do preparo das cames e da pele. O seu trabalho estava apenas começando. Soltando um
grande suspiro, pulou dentro da cova para cortar a gargantada égua.
Voltou correndo à praia para buscar o couro da barraca e os seus instru mentos.
Quando voltava, reparou na manada de cavalos movendo-se muito a distância no vale.
Depois, dentro do exíguo buraco, imundo de la e sangue, 1 I 102 103 inteiramente
esquecida dos bichos, a sua luta agora era retalhar os pedaços de carne e tentar não
danificar a pele mais do que já estava.
Depois que empilhou sobre o couro uma certa quantidade de carne que achava
poder carregar, chegaram as aves de rapina para pinçar os nacos de car ne agarrados
nos ossos jogados fora. Ela foi arrastando o pesado fardo até a praia, botou mais lenha
na fogueira e despejou as carnes no chão, o mais per to possível do calor do fogo. Voltou
então correndo, carregando o couro va zio, mas antes de chegar ao buraco as pedras de
sua funda já estavam zunindo no ar. Ela ouviu o ganido de uma raposa que se afastou
capengando. Teria ma tado uma se não lhe tivessem faltado pedras. Antes de voltar ao
trabalho, pe gou mais algumas pedras do leito do rio e bebeu um bom gole de água.
O tiro foi certeiro e fatal no carcaju que enfrentara o calor da fogueira e tentava
arrastar um grande naco de carne, quando Ayla voltou trazendo o segt carregamento.
Depositou a carne perto do fogo e foi buscar o carca ju, esperando poder ter algum tempo
para pelá-lo também. A pele desse animal era particularmente apropriada para certas
vestimentas de inverno. Ela botou mais lenha na fogueira e deu uma olhada no
madeirame empilhado per to. Já com uma hiena, não teve tanta sorte quando chegou de
volta ao local do buraco. O bicho deu um jeito de escapar, carregando um perna inteira.
Desde que chegara ao vale, nunca havia visto tantos animais carnívoros. Rapo sas,
hienas, carcajus, todos tinham sentido o gosto da égua. Os lobos e os dholes, os seus
ferocíssimos primos, parecidos com um cachorro selvagem, espreitavam, mas sempre
fora do alcance de sua funda. Os gaviões e falcões mostravam-se mais ousados. Quando
ela se aproximava, dignavam-se apenas a bater as asas e pousarem um pouquinho só
adiante. Ela esperava a qualquer momento topar com um lince ou um leopardo, e até
mesmo com um leão da caverna.
O sol ultrapassara o seu zénite e começava a declinar no céu.
Ayla puxou o couro imundo para fora do buraco e arrastou até a praia a última leva
de carne. Só então entregou-se ao cansaço, deixando o corpo cair sobre o chão. Não
dormira a noite toda e ainda não havia comido naquele dia. A sua vontade era ficar
quieta, sem se mexer. No entanto, os menores bi chinhos do vale também queriam ter a
sua parte na égua e, com os seus zum bidos, acabaram fazendo-a levantar-se. As
moscas- picando e revoando ao seu redor chamaram a sua atenção para a imundície em
que se encontrava. Com esforço, caminhou até o rio e, sem se importar de-tirar a roupa,
deixou praze rosamente a água levá-la.
O banho de rio refrescou-a. Ela subiu ã caverna, pôs as suas roupas para secar,
lamentando não ter tirado a funda da cintura antes de entrar na água. Tinha medo de que
o couro, depois de seco, ficasse duro. Não iria ter tempo para tratá-lo, devolvendo-lhe a
flexibilidade e maciez. Vestiu o seu trajtcom pleto e pegou a pele em que dormia. Antes
de descer à praia, do patamar em frente da caverna olhou a campina. A área nas
proximidades do buraco esta va tumultuada, cheia de movimentos, mas os cavalos
haviam abandonado o vale.
Subitamente, lembrou-se das lanças. Depois que as arrancou da égua, as deixara
no chão e lá haviam ficado. Estava entre ir e não ir, tendendo mais para a negativa.
Então., acabou resolvendo que era melhor conservar aquele bom par de lanças do que
ter de, mais tarde, fabricar outras. Apanhou a funda e deu, antes, uma parada na praia
para pegar pedras e deixar a pele.
Ao chegar perto da cova, olhou para aquela carnificina como se fosse pela primeira
vez. Em muitos pontos, a cerca havia sido derrubada. O buraco era uma ferida sangrenta
aberta na terra e a relva se achava amassada. Sangue, pedaços de carne e ossos
estavam espalhados ao redor. Dois lobos rosnavam disputando a cabeça da égua.
Algumas raposas ganiam em torno de uma pata cabeluda ainda com o casco preso, e
uma hiena, desconfiada, olhou para Ayla. Um bando de gaviões bateu asas com a sua
aproximação, mas o carcaju per maneceu firme no seu posto, ao lado do buraco.
Somente os felinos ainda não haviam marcado lá a sua presença.
"É melhor andar depressa", disse para si mesma, lançando uma pedra para tirar o
carcaju do caminho. 'Preciso manter as fogueiras acesas ao redor da minha carne." A
hiena cacarejou o seu grito, afastando-se apenas o sufi ciente para ficar fora do alcance
dos tiros. "Saia daqui, bicho imundo", pen sou Ayla. Ela odiava as hienas. Sempre que via
uma, lembrava-se da ocasião em que um desses bichos tinha abocanhado o filhinho de
Oga Foi quando, sem medir as conseqüências de seu ato, matou o animal. Simplesmente
não poderia deixar um bebé morrer daquele jeito.
Ao abaixar-se para pegar as lanças, a sua atenção foi atraída por algo se movendo
atrás dos buracos na cerca. Um bando de hienas tocaiava uma po tranca alazã, de
pernas compridas.
"Sinto muito, amiguinha. Não queria matar a sua mãe. Apenas aconte ceu de ser
ela." Ayla não tinha qualquer sentimento de culpa. O mundo se di vidia em caçadores e
caçados. Um dia era da caça e outro do caçador. Apesar de contar com armas e fogo,
poderia, com a mesma facilidade, ter sido ela a vítima. A caça era uma forma de vida.
Mas sabia que a pobrezinha estava condenada sem a sua mãe e ficou com pena do
animal ainda novo e indefeso. A começar pelo coelho que trou xe para ser tratado por lza,
seguiu-se, para desespero de Brun, uma longa série de bichinhos feridos, levados para a
caverna por suas mãos. Brun, entretanto, tinha os seus limites: os carnívoros eram
terminantemente barrados.
Ela ficou olhando as hienas assediarem a potranca que, nervosa, com os olhos
esgazeados, cheios de medo, tentava fugir ao cerco. "Já que não ficou 104 105 ninguém
para tomar conta de você, talvez seja melhor que tudo acabe de uma vez", pensou AyIa.
Mas quando uma das hienas saltou sobre o pobre bicho, rasgando-lhe a ilharga, ela não
hesitou. Rompeu a barreira de arbustos e come çou a disparar pedras de sua funda. Uma
hiena tombou e as outras fugiram. Ela não estava tentando matá-las, nâó lhe
interessavam as suas peles pintadas, parecendo sempre sujas. Só queria que deixassem
a potranca em paz. Esta cor reu também, mas não foi muito longe. Ayla lhe fazia medo,
mas não tanto quanto as hienas. Com as mãos estendidas e cantarolando baixinho, Ayla
foi vagarosamente se aproximando do cavalinho. Dessa maneira, já havia conquis tado a
confiança de muitos animais. Um jeito especial que tinha para lidar com bichos, uma
sensibilidade que se estendia a qualquer forma de vida e que se desenvolvera junto com
as suas aptidões para curandeira. Iza incenti vara esse seu lado, vendo aí o mesmo
sentimento de solidariedade que a mo vera a recolher uma menina estranha, ferida e
faminta.
A potranca aproximou-se para cheirar as mãos que se estendiam em sua direção.
Ayla chegou para perto do animal e o acariciou, lhe dando palmadi nhas e coçando o seu
pêlo. Então, percebendo qualquer coisa familiar nos de dos de Ayla, o bichinho faminto
pôs-se a chupá-los ruidosamente, despertan do na moça um antigo desejo
dolorosamente acalentado.
"Coitadinha, com tanta fome e sem mãe para dar de mamar", pensou. "Eu não tenho
leite para você. Nem para Durc eu tive." Ela sentiu que as lá- • grimas ameaçavam subir
aos olhos e sacudiu a cabeça. "Bom, mas assim mes mo Durc cresceu forte e sadio.
Talvez eu pense em alguma coisa que possa comer. Você vai ter de ser desmamada fora
do tempo. Venha comigo." A potranca, sempre chupando-lhe os dedos, acompanhou-a
até a praia.
Ao chegar, Ayla deu com um lince em tempo de escapar com um dos pedaços de
carne por ela tão custosarnente conseguido. Finalmente, um feli no havia dado o ar de
sua graça. Ela apanhou duas pedras e a funda, enquan to a potranca afastava-se
assustada. Quando o lince levantou a cabeça as pe dias zuniram com força.
'Pode-se matar um lince com uma funda", afirmara Zoug, certa ocasião. "Não tente
coisa maior, mas um lince é possível." Aquela não era a primeira vez que Ayla provava
que o velho estava certo. Ela foi buscar a sua carne roubada e arrastou também o
estranho bicho de orelhasempenachadas. Olhou, então, para a sua pilha de carne, o
couro enlameado da égua e os animais mortos: um carcaju e um lince. Subitamente deu
uma risada alta. Antes estava precisando de carnes e peles, agora o que lhe faltava eram
mais algumas mãos.
A risada alta e o cheiro de fogo haviam espantado a potranca que se afastou um
pouco. Ayla apanhou uma correia e, cautelosamente, se aproximou dela de novo,
passando-lhe a tira de couro pelo pescoço e a con duzindo de volta à praia. Enquanto
atava a ponta da correia num arbusto, lembrou que havia esquecido outra vez as lanças e
correu para apanhá-las, mas voltou para tranqüilizar o cavalinho que tentara segui-la. "O
que é que vou dar para você comer?", pensou, ao ver o animal querendo chupar os seus
de dos novamente. "E essa agora! Como se eu já não tivesse muito o que fazer.”
Ela tentou dar um pouco de capim, mas o bichinho parecia não saber o que fazer
com aquilo. Reparou, então, na bacia com um resto frio de ce reais cozidos. "Se a comida
for preparada de um jeito bem macio, os bebês podem comer as mesmas coisas que as
suas mães", lembrou-se. Ela botou mais água na bacia, esmigalhou os grãos, fazendo
uma papa e trouxe para a potranca, que simplesmente deu um bufado recuando com o
corpo, quan do ela lhe meteu o focinho dentro da bacia. Mas, depois, a potranquinha pas
sou a língua pela cara, parecendo gostar do sabor. Estava faminta e procura va de novo
pelos dedos de Ayla.
Por um momento, Ayla ficou pensando, depois enfiou a mão na bacia, junto com o
animal lambendo-lhe os dedos. A potranca chupou um pouco da papa e sacudiu a
cabeça. Após algumas tentativas mais, o cavalinho famin to pareceu ter compreendido a
idéia. Quando terminou, Ayla subiu até a ca verna e trouxe mais cereais que botou para
cozinhar e dar mais tarde.
"Acho que vou ter de colher mais cereais do que havia imaginado. Tal vez arranje
um pouco de tempo, se é que vou conseguir botar esse mundo de carne para secar." Por
instantes, ficou parada, pensando no que iria o clã achar se soubesse que ela matara um
cavalo para comer e que depois colhia comida para alimentar a cria desse mesmo
animal. "Bom, aqui eu posso er esquisita o quanto eu quiser", falou para si mesma,
enquanto enfiava uma vareta num pedaço de came e punha para assar para ela. Olhou,
então, o trabalho que tinha pela frente e tratou de pôr mãos à obra.
Ela ainda cortava a carne em tiras finas, quando a lua cheia apareceu no céu e as
estrelas voltaram a brilhar. Um anel de fogueiras circundava a praia e ela dava graças por
poder contar com uma grande quantidade de lenha nos arredores, trazida pelas
enchentes. Dentro do círculo de fogo, achavam-se es pichadas diversas cordas das quais
se penduravam as tiras de carne. A pele fui va do lince fazia um rolo junto do outro
menor, formado pela pele marrom e mais grossa do carcaju. As duas esperando para ser
tratadas e curtidas opor tunamente. O couro acinzentado da égua, já lavado, estava
estendido sobre as pedras, secando junto do estômago, que, depois de limpo, fora cheio
de água para conservar-se maleável. E mais: tiras de tendões para serem usadas como
cordas, filas e mais filas de intestinos lavados, uma pilha de ossos mis turados com
cascos e um monte de gordura para mais tarde ser derretida e guardada dentro das
tripas. Até mesmo um pouco da gordura do lince e do carcaju ela resolveu guardar. Seria
aproveitada em lamparinas e na impermea bilização do couro. A carne destes animais
não fazia o seu gosto.
106 107 Ayla olhou os dois últimos pedaços de carne já lavados e pegou num.
Depois, mudou de idéia. Podiam esperar. Nunca se sentira tão cansada. Pas sou em
revista as fogueiras, botou mais lenha em cada uma, estendeu a sua pele de dormir e se
enrolou nela.
O cavalinho já não estava mais amarrado. Depois de ser alimentado pela segunda
vez, pareceu ter perdido a vontade de ir embora. Ayla estava quase dormindo, quando
ele veio para perto dela, cheirou-a e se deitou ao seu lado. Ela então não pensou que se
alguma fera se aproximasse das fogueiras meio apagadas, a potranca ao seu lado
imediatamente reagiria, acordando-a. Ador mecida, passou o braço ao redor do
animaizinho quente e, sentindo-lhe as ba tidas do coração e escutando os ruídos de seu
bafo, aconchegou-se a ele.
6 Jondalar coçou a barba espetando em seu queixo e apanhou o seu baú que
estava encostado contra o tronco de um pinheiro. Ele retirou um embrulho de couro
flexível, desatou as cordas, des dobrou e, com atenção, examinou uma lâmina de sílex.
Era ligeiramente cur va no sentido do comprimento - Todas as lâminas feitas de sílex
abaulavam um pouco, uma característica da pedra, mas o gume mostrava-se igual e
afiado. A lâmina era apenas um instrumento dentre vários outros que ele levava separa
do por ser objetos de qualidade e valiosos.
Uma rajada súbita de vento agitou os galhos do velho pinheiro revesti do por uma
crosta de liquens. A portinhola da barraca levantou, deixando o vento entrar, esticando as
cordas de sustentação e dando puxões nas estacas; depois, voltou a fechar-se. Jondalar
ornou para a lâmina, abanou a cabeça e tomou a embrulhá-la.
- Está na época de deixar a barba crescer? - perguntou Thonolan.
Jondalar não reparara na chegada de seu irmão.
- A barba tem as suas vantagens no inverno e ele já vem por aí. No ve rão, pode
incomodar bastante. - - com o suor, a pele pica muito - respondeu ele - Thonolan soprava
as mãos e esfregava uma na outra. Então, se agachou junto da pequena fogueira em
frente da barraca e colocou as mãos por cima das chamas.
- Sinto falta de cor.
- Que cor?
- Vermelho. Não há vermelho. Apenas um arbusto aqui, outro ali, mas o resto é tudo
amarelo passando para o marrom. A relva, as folhas. - - - falou, virando-se e apontando
com a cabeça na direção de uma área descampada às suas costas. Depois, olhando
para Jondalar, de pé,junto da árvore, disse: - Até os pinheiros parecem pardos. O gelo já
começou a aparecer nas poças e nas beiradas dos rios. E eu ainda estava esperando
pelo outono.
- Acho bom não esperar muito - falou Jondalar, vindo também aga char-se junto da
fogueira, do lado oposto ao irmão. - Essa manhã eu vi um rinoceronte indo para o norte.
- Acho que senti cheiro de neve.
- Pode ser, mas não será muita. Pelo menos enquanto houver mamutes e
rinocerontes rondando por aí. Eles gostam de frio, mas não de neve. Esses bichos
parecem saber quando está para cair alguma tempestade e voltam às pressas para as
geleiras. Há um ditado que diz: fique na sua casa quando os mamutes estiverem indo
para o norte. Isso vale também para os rinocerontes. Mas esse que eu vi não estava com
pressa.
- Já vi muitos caçadores voltando sem atirar uma única lança só porque esses
bichos estão indo para o norte. Gostaria de saber que quantidade de neve cai nessas
redondezas.
- O verão foi seco e se o inverno também for, os mamutes e os rinoce rontes não
irão embora,
talvez agüentem a estação toda por aqui. Mas já esta mos bem ao sul. Isso, em
geral, significa muita neve. Talvez fosse melhor que ficássemos com as pessoas que nos
transportaram para esse lado do rio. Va mos precisar de um lugar para passar o inverno e
isso não pode demorar muito - - Eu não me importaria nesse instante de estar numa boa
caverna amiga, cheia de belas mulheres - falou Thonolan com um largo sorriso no rosto.
- Eu me contentaria apenas com uma boa caverna amiga.
- Ora, meu irmão, tanto quanto eu, você não vai querer passar um in verno inteiro
sem mulher.
Jondalar sorriu.
- Ë. O inverno vai ficar um bocado frio sem uma mulher. - . bonita ou feia.
Thonolan, pensativo, olhava para o irmão.
- Tenho ultimamente sempre pensado nisso.
- Em quê?
- Que você muitas vezes despreza uma mulher linda, dessas que todo homem anda
atrás, para ir buscar alguma ratinha feia, sentada escondida num canto. Sei que não é
idiota, Jondalar, e você também sabe que não é. Então por que isso?
108 109
I - Eu não sei. Às vezes a ratinha pensa que não é bonita simplesmente porque tem
a pele marcada ou um nariz grande demais. E quando você vai conversar com ela,
percebe que a ratinha tem muito mais para lhe dar do que uma mulher cheia de homens
correndo atrás. As mulheres não muito per feitas são freqüentemente as mais
interessantes. Tiveram de lutar mais e por isso aprenderam mais.
- Talvez você tenha razão. Tenho visto algumas dessas pobres criatu rinhas timidas
crescer em viço depois que alguém passa a lhes dar atenção.
Jondalar encolheu os ombros e levantou.se.
- Não é desse jeito que vamos conseguir arrumar mulher e muito me nos uma
caverna para ficar. Acho bom levantarmos logo esse acampamento.
- Então, mãos à obra - falou Thonolan, já apressado e dando as cos tas para a
fogueira. Mas então, ficou paralisado em seu lugar. - Jondalar! - gaguejou, fazendo força
para que a sua voz parecesse normal. - Não faça nada que possa chamar a atenção
dele, mas se você olhar por cima da barra ca, verá o seu amigo desta manhã, ou então
um igualzinho a ele.
Jondalar olhou.
Balançando o seu enorme corpanzil de lá para cá, ora apoiando-se so bre as patas
de um lado, ora sobre as do outro, estava a imensa massa lano sa de um rinoceronte de
dois chifres. Com a cabeça virada de banda, ele es preitava Thonolan. Quando olhava de
frente, o rinoceronte era quase cego, além do que os seus pequeninos olhos assentados
muito atrás na cabeça ti nham reduzido campo de visão. Para compensar, o sentido da
audição e do olfato eram extremamente apurados.
Toda a sua aparência era a de um animal de clima frio. Possuía o cou ro revestido
por dois tipos de pêlos: embaixo, uma felpa grossa, e por cima uma cabeleira marrom-
avermelhada. Sob o seu couro duro e grosso havia uma camada de oito centímetros de
gordura. A cabeça, saindo dos ombros, estava sempre voltada para baixo e o comprido
chifre dianteiro arqueava-se de tal modo para frente que quase varria o chão, enquanto
ele balançava a sua mas sa de pêlo e gordura. O chifre, ele o usava para espanar a neve
de cima das plantas. As pernas curtas e grossas facilmente atolavam-se nas espessas
cama das de neve. As suas visitas às planícies do sul, para regalar-se com as ricas
pastagens de lá e armazenar uma quantidade extra de gordura, se faziam no final do
outono e princípio de inverno, antes das pesadas nevascas. Com o seu grosso manto de
peles, não agüentava o calor e tampouco poderia sobreviver em regiões de muita neve, O
seu habitat era a tundra seca, de frio causticante, ou as estepes perto das geleiras.
Entretanto, o corno dianteiro, em forma de funil, podia ter uma serven tia muito mais
perigosa do que a de espanar neve e, entre o animal e Thonolan, havia apenas uma
pequena distância a separá- los.
- Não se mova - sussurrou Jondalar. Ele se enfiou dentro da barraca para pegar o
baú com as lanças.
- Essas lanças são muito fracas, não vão adiantar muito - falou flono lan, apesar de
estar de costas para o seu irmão. Por um momento, Jondalar ficou parado, perguntando-
se como poderia Thonolan saber o que ele estava fazendo. - Você tem de acertá-lo num
ponto vulnerável, como os olhos, e esse é um alvo muito pequeno. Lança para matar
rinocerontes tem de ser mui to mais pesada - prosseguiu Thonolan, fazendo Jondalar
concluir que ele es tava simplesmente conjecturando.
- Não fale muito senão vai atrair a atenção do bicho - avisou Jondalar.
- Eu posso não estar com uma lança pesada, mas você está inteiramente
desarmado.
- Espere, Jondalar! Não faça isso! Esta lança só vai botar raiva nele e você não
conseguirá feri-lo. Lembra-se do modo como costumávamos pro vocar rinocerontes
quando éramos crianças? Um corria, fazendo com que o bicho saísse em perseguição,
depois se desviava quando o outro começava a atrair a sua atenção. O negócio é obrigá-
lo a correr até que fique exausto e não consiga mais mexer-se. Eu vou começar a correr.
Fique pronto para en trar em ação e faça com que ele me persiga.
- Não, Thonolan! - berrou Jondalar. Tarde demais, Thonolan já havia disparado.
No entanto, era impossível prever as reações de um rinoceronte. Ao in vés de sair
em perseguição do homem, o animal investiu contra a barraca que se agitava com o
vento. No choque, ele rasgou um buraco no couro e, em se guida, abocanhando as
correias, acabou enroscando-se nelas. Quando conse guiu desvencilhar-se, resolveu que
não gostava dos homens ou de seu acampa mento, foi embora trotando, sem causar
maiores danos. Thonolan olhou por cima do ombro e, vendo que o rinoceronte se
afastava, correu para junto do irmão.
-. Que imbecilidade! - gritou-lhe Jondalar, batendo a lança no chão com tanta força
que a madeira se rachou logo abaixo da ponta de osso. - Es tava querendo morrer?
Santa Doni, Thonolan! Duas pessoas só não podem provocar um rinoceronte. Você tem
de cercá-lo. E se ele corresse atrás de vo cê? O que, neste mundo da Grande Mãe, faria
eu se você fosse ferido?
Thonolan, primeiro, mostrou-se surpreso, depois ficou com raiva. Mas logo o seu
rosto abriu-se num amplo sorriso - - Quem diria, o meu irmão realmente preocupado
comigo! Pode gritar o quanto quiser, Jondalar, você não me engana. Talvez eu não
devesse ter cor rido, mas não ia deixá1o fazer a idiotice de querer apanhar um
rinoceronte com uma lança de brinquedo. O que neste mundo da Grande Mãe faria eu se
você fosse ferido? - o seu sorriso alargou-se ainda mais e os olhos ilumi 111 110 1
naram-se, felizes, como os de um garoto que conseguira sair-se bem de uma travessura.
- Além disso, não foi atrás de mim que ele correu.
Jondalar, impassível, olhava para o rosto sorridente do irmão. A sua explosão fora
mais de alívio do que realmente de raiva. Ele tinha custado um pouco para compreender
que Thonolan estava fora de perigo.
- Você teve sorte. Acho que nós dois tivemos - falou, soltando um enorme suspiro. -
Não é melhor fazermos outras lanças, mesmo que arrume mos as pontas destas?
- Por aqui, não vi nenhum teixo, mas durante o caminho pode ser que encontremos
algum amieiro ou freixo. São madeiras que também servem - observou ele, enquanto
desmontava a barraca.
- Qualquer coisa serve. Até mesmo salgueiro. Devíamos fazer as lan ças antes de
sairmos daqui - Ora, Jondalar, vamos logo embora desse lugar. Temos de alcançar
aquelas montanhas, não é?
- Não gosto de viajar sem lanças. Principalmente com rinocerontes ron dando por
perto.
- Podemos acampar hoje um pouco mais cedo. De qualquer modo, pre cisamos
consertar a barraca. Enquanto estamos andando, podemos procurar por uma madeira de
boa qualidade, achar um lugar melhor do que este para pernoitar. Fora o fato de que esse
rinoceronte pode voltar de repente.
- Mas ele pode também resolver nos seguir - Jondalar sabia que Thonolan ficava
sempre ansioso para partir depressa todas as manhãs. Qual quer demora deixava-o
impaciente. - Está bem, talvez seja melhor mesmo chegarmos logo naquelas montanhas.
Mas vamos parar cedo, combinado?
- Combinado, meu irmão.
Os dois se puseram a caminhar pela margem do rio em passadas largas e
regulares, perfeitamente sincronizados um com o outro e cada qual entregue ao seu
pensamento. Haviam se tornado mais íntimos, falando-se com o cora ção e a mente e
conhecendo cada um os pontos fracos e fortes do outro. Cria ram o hábito de dividir as
tarefas entre si e no momento de perigo os dois estavam juntos se socorrendo
mutuamente. Eram jovens, fortes, sadios e espontaneaniente seguros de si, à altura de
enfrentar o que quer que fosse que lhes surgisse pela frente.
De tal forma estavam afinados com o ambiente que a percepção se fazia
sublimínarmente. Qualquer alteração representando possível ameaça os deixa va logo de
sobreaviso. Caminhavam vagamente conscientes do fraco calor enviado por um sol
distante, desafiando o vento frio que zunia através dos ga lhos desfolhados. À frente
deles, o rio correndo veloz e as nuvens negras que sombreavam as encostas nevadas
das montanhas.
As cordilheiras do vasto continente determinavam a forma do curso do Grande Rio
Mãe que brotava nas terras altas do norte, numa das monta nhas cobertas pela geleira, e
corria na direção leste.Para mais além da primei ra cadeia de montanhas, havia uma
planície que, em estágios anteriores da for mação, fora o leito de um mar interno e, mais
para leste, uma segunda cadeia circundava a região como um grande arco. Onde os
promontórios mais orien tais da primeira cadeia montanhosa encontravam a base do
extremo noroeste da segunda, o rio passava por uma barreira rochosa e dobrava
repentinamente em direção ao sul.
Após deixar as terras altas, extremamente acidentadas, o rio avançava sinuoso
através de estepes relvosas e fazendo meandros circulares, dividindo- se em canais que
tornavam a juntar-se, quando ele retomava o seu curso na direção sul. fluindo pelas
planícies, através de muitos braços, mostrava-se va garoso, dando a impressão de
uniformidade. Mas era apenas impressão. Quan do o Grande Rio Mãe alcançava as
terras altas no extremo meridional da pla nície, ele dobrava novamente para leste e os
seus canais se uniam depois de haver recebido as águas saídas do manto de gelo, nas
partes norte e leste da primeira cadeia de montanhas.
O Grande Rio Mãe, então, engordado por muitas águas, largava uma baixada e
dobrava para oeste numa grande curva na direção da ponta sul da segunda cordilheira.
Os dois homens vinham seguindo pela margem esquer da, atravessando, vez por outra,
alguns dos canais e riachos que corriam para ir ao encontro das grandes águas. Na
margem oposta, o terreno, na direção sul, se elevava de forma abrupta e irregular. No
lado em que eles se achavam a paisagem se fazia ondulada por muitas colinas que
gradualmente iam erguen do-se da margem.
- Tenho a impressão de que não vamos conseguir atingir o fim do Da- núbio antes
do inverno - observou Jondalar. - Por sinal, já começo a me perguntar se esse rio tem
realmente um fim.
- Claro que tem e logo vamos encontrá-lo. Olhe como ele está grande nesse ponto. -
Thonolan fez um largo gesto com o braço apontando para a direita. - Quem diria que
ficaria deste tamanho, hein? O fim já deve estar próximo - Mas nós nem encontramos
ainda a Irmã. Pelo menos é o que eu ima gino. Tamen falou que esse rio é tão grande
quanto a Mãe.
- Ele deve ter exagerado. Impossível haver um outro rio tão grande quantb a Mãe,
correndo por essas planícies.
- Bom, Tamen não disse propriamente que viu o rio, mas ele não errou quando disse
que a Mãe tomava a dobrar para leste e também falou cer to sobre as pessoas que nos
ajudaram a atravessar para essa margem. Tal vez ele tenha razão sobre a Irmã. Foi pena
não sabermos a língua dessa gente 1 1 112 113 que nos ajudou com a jangada. Eles
deviam conhecer um tributário tão grande quanto a Mãe.
- Você sabe que sempre há exagero quando se fala de alguma coisa que não está
perto. Acho que essa "lrmâ" de Tamen é simplesmente um dos tan tos canais rumando
para leste.
- Espero que você tenha razão, irmãozinho, porque se houver uma bmã, vamos ter
de atravessá-la antes de alcançarmos aquelas montanhas e não estou vendo nenhum
outro lugar possível para passarmos o inverno.
- Só acredito na Irmã depois de vê-la.
Um movimento aparentemente estranho à ordem natural das coisas cha mou a
atenção de Jondalar, despertando-lhe a consciência. Pelo som, ele iden tificou, à
distância, uma nuvem negra que se movia sem o menor apreço pela direção dominante
do vento. Jondalar parou para observar a formação em V do bando de gansos que se
aproximava grasnando. Os pássaros começaram a descer como um todo e numa
quantidade tão grande que chegava a enegrecer o céu. Já perto do chão,
individualizavam-se, aprontando-se para o pouso, com as patas abaixadas e batendo as
asas. Mais à frente o rio mudava de direção para contornar uma abrupta elevação do
terreno.
- Meu irmão - falou Thonolan, sorrindo e excitado -esses gansos não teriam pousado
se não houvesse qualquer coisa alagada mais à frente. Talvez um mar ou um lago. Estou
apostando como a Mãe deságua lá. Acho que che gamos na foz do rio.
- Se subirmos por essa colina, acho que poderemos ter uma vista me lhor - disse
Jondalar, num tom propositalinente indiferente. Thonolan teve a impressão de que o
irmão não acreditava nele nem um pouco.
Subiram a encosta às carreiras, chegando ao topo respirando com difi culdade.
Então, inteiramente pasmos, olharam a paisagem em volta. Eles esta vam num ponto
suficientemente alto para enxergar a uma distância bastante grande.
Após fazer a volta da encosta, a Mãe alargava-se e suas águas tornavam- se
encapeladas, formando ondas espumosas quando se aproximavam de uma outra vasta
extensão de água. O rio maior estava turvo pelo barro largado do fundo e cheio de
destroços. Galhos partidos, animais mortos, árvores inteiras boiavam em meio aos
redemoinhos formados por diferentes correntezas.
Eles não tinham chegado na foz do Grande Rio Mãe, e sim encontrado a Irmã.
O rio tributário começava nas altas montanhas que se achavam à frente deles, como
pequenos córregos e riachos, depois convertidos em fios que desciam pelas encostas,
formando corredeiras e cataratas, numa trajetória reta do lado ocidental da segunda
grande cadeia montanhosa. Sem lagos ou áreas que travassem o fluxo das águas, as
correntezas ganhavam força e impul so até se juntarem na planície. A única barreira para
a turbulenta Irmã era a Mãe, já fartamente engordada em outras paragens.
Quase do mesmo tamanho, o tributário engrossava o caudal da Mãe, empenhado
numa luta pela posse do poder das correntezas. A Mãe retroce dia e voltava a avolumar-
se, produzindo uma multidão de correntes e contra- correntes entrecruzadas, gerando por
sua vez torvelinhos temporários que su gavam os destroços boiando, para momentos
depois devolvê-los à superfície a jusante. Passado o tumulto da confluência, seguia-se
um imenso e perigoso lago, tão grande que de uma margem não se avistava a outra.
As inundações de outono já haviam atingido o seu ponto culminante e as margens
eram imensos charcos de lama, onde as águas recuaram, deixando as marcas dos
estragos recentes: árvores apontando as suas raízes para o alto, troncos encharcados,
ramagens partidas, carcaças de animais e peixes moribundos encalhados nas poças já
secando. A margem mais próxima acha va-se coalhada de pássaros que se regalavam
com uma colheita tão proveitosa e fácil. Perto, uma hiena escapava com um veado entre
os dentes, indiferen te ao bater de asas das cegonhas negras.
- Grande Mãe! - exclamou T'honolan.
- Deve ser a Irmã - disse Jondalar, impressionado demais para pergun tar ao irmão
se agora estava ele convencido.
- Como vamos fazer para atravessar?
- Não sei. Vamos ter de voltar, subindo novamente o rio.
- Até onde? Esse rio é tão grande quando a Mãe.
Jondalar não tinha resposta, limitou-se a sacudir a cabeça. Em sua tes ta haviam
aparecido rugas de preocupação.
- Devíamos ter seguido os conselhos de Tamen. A neve pode chegar a qualquer dia
desses e não vamos ter tempo para voltar muito atrás no cami nho. Não quero me ver
num campo aberto quando desabar a primeira tem pestade.
Uma rajada súbita de vento jogou para trás o capuz de Thonolan, dei xando-lhe a
cabeça descoberta. Ele tomou a agasalhar-se, apertando o capuz contra o rosto e
tremendo de frio. Pela primeira vez, desde que partiram, começou a ter sérias dúvidas se
poderiam sobreviver ao inverno que não tar daria muito mais.
- Que faremos agora, Jondalar?
- Procurar um lugar para acampar - Jondalar examinava .com atenção a área. - Ali
adiante, subindo o rio, perto daquele monte coberto de amieiros, há um riacho que
desemboca na Irmã. . - A água lá deve ser boa.
- Se amarrarmos os dois baús numa tora e atarmos uma corda em nos sas cinturas,
poderemos atravessar a nado e não nos separarmos.
114 115 - Sei que você é corajoso, irmãozinho, mas essa é uma coragem tola. Não
tenho certeza se vamos poder atravessar a nado e muito menos poder arrastar conosco
uma tora com tudo que possuímos. O rio está frio. Só não congela por causa das
correntezas. Essa manhã havia gelo nas margens. E se ficarmos presos nos galhos de
alguma árvore? Iríamos ser arrastados pelas cor rentezas e talvez chegássemos até a
afundar.
- Você se lembra daquela Caverna perto da Grande Mãe? Eles lá costu mam cavar
o centro dos troncos de árvores grandes e usam isso para atraves sar os rios. Talvez
pudéssemos.. - - Então encontre primeiro uma árvore com um tronco grande por aqui -
disse Jondalar, atirando o braço na direção da pradaria, apenas com algumas poucas
árvores, todas baixas e raquíticas.
- Bom. - . alguém me falou de outra Caverna onde fazem uma armação oca com as
cascas tiradas de vidoeiros, mas isso me j muito frágil.
- Já vi essa coisa, mas nem sei como é feita ou que tipo de cola eles usam para
vedar a entrada de água. Além do mais, os vidoeiros na região des sa Caverna são muito
maiores do que os que eu tenho visto nessas redondezas.
Thonolan olhava à sua volta, tentando pensar em alguma coisa que não pudesse ser
demolida pela lógica implacável do irmão. Reparou, então, na ele vação do terreno no
lado sul, onde se encontravam os amieiros, de troncos altos e retos e deu um sorriso.
- Que tal uma jangada? - Tudo que temos de fazer é amarrar uns tan tos troncos
juntos e amieiros é que não faltam naquela colina.
- E mais um tronco para fazer um pau forte e comprido que chegue até o fundo do
rio para guiar a jangada? Ora, Thonolan, jangada é uma coisa difí cil de controlar até
mesmo em rios pequenos e rasos.
O sorriso confiante de Thonolan murchou e Jondalar conteve uma risa da. Jamais
Thonolan havia conseguido esconder os seus sentimentos, e mesmo que quisesse não
conseguiria. Mas era justamente essa natureza ingênua e liii petuosa que o tornava tão
querido.
- Ë. Talvez a idéia não seja tão má - reformulou Jondalar, reparando no sorriso
voltando ao rosto do irmão - se voltarmos bastante no caminho e atravessarmos num
ponto onde não haja perigo de sermos arrastados pelas correntezas. Tem de ser num
lugar onde o rio se alarga, onde ele não seja mui to profundo, onde as correntezas não
sejam fortes e onde haja árvores. E, para terminar, se o tempo permitir.
Ao ouvir falar no tempo, Thonolan ficou tão sério quanto o irmão.
- Bem, então vamos logo nos pôr a caminho. A barraca já está conser tada.
- Primeiro, vou dar uma olhada nesses amieiros. Continuamos ainda precisando de
um bom par de lanças. Já devíamos ter feito isso ontem à noite.
f - Você ainda está preocupado com aquele rinoceronte? Ele já ficou muito para
trás, O que precisamos é começar de uma vez a andar para poder mos atravessar o rio.
- Pelo menos umas duas lanças eu vou cortar.
- Então corte uma para mim também. Eu fico aqui guardando as coisas.
Jondalar apanhou o seu machado, examinou-lhe o gume, balançou a cabeça
aprovando e começou a subir a colina na direção do grupo de amiei ros. Depois de
estudar bem as árvores, escolheu uma ainda nova, com o tron co alto e reto. Ele a
derrubou, cortou-lhe os galhos e foi escolher uma para Thonolan. Nisso, escutou uma
barulhada que lhe chegava aos ouvidos como bufados e grunhidos. Ouviu o grito de seu
irmão e, em seguida, o som mais aterrorizador que já escutara na vida: um berro de dor
de Thonolan, O silên cio que imediatamente se seguiu foi ainda pior.
- Thonolan! Thonolan!
Apavorado, Jondalar desceu a colina correndo, ainda segurando o tron co. Com o
coração na boca, viu um imenso rinoceronte, da altura de seus ombros, arrastando pelo
chão a forma inerte de um homem. O animal pare cia não saber o que fazer com a vítima,
agora que a tinha em seu poder. Mo vido apenas pela raiva e medo, Jondalar não pensou
duas vezes. A reação veio imediata.
Brandindo o tronco de amieiro como se fosse uma maça, investiu con tra o animal,
sem se preocupar com a própria segurança. A primeira pancada pegou no focinho, pouco
abaixo do chifre e, logo em seguida, veio a segunda. O rinoceronte retrocedeu, confuso,
diante da fúria enlouquecida de um ho mem que o fazia sentir dor. Jondalar preparou-se
para bater outra vez, levan tando o tronco, mas então o animal deu meia-volta. A paulada
pegou no tra seiro, não doeu muito, mas fez com que ele se apressasse, querendo livrar-
se daquele homem alto que vinha ao seu encalço.
Jondalar só parou quando o pau silvava no ar com o animal correndo • em
disparada. Ele então recuperou o fôlego, largou o tronco de amieiro e cor reu para
Thonolan. O seu irmão estava caído com o rosto para baixo, no lugar onde o tinha
deixado o rinoceronte.
- Thonolan! Thonolan!
Jondalar virou-lhe o corpo. As calças de couro tinham um rasgão perto da virilha e a
mancha de sangue aumentava.
- Thonolan! Oh, minha Doni!
Ele encostou o ouvido no peito de flonolan, ouvindo o coração bater, mas só teve
certeza depois de que lhe escutou a respiração.
- Oh, Doni, ele está vivo! Mas o que é que vou fazer?
Com esforço, levantou Thonolan inconsciente, permanecendo por um momento com
ele aninhado em seus braços.
L 116 117 - Doni, oh, Grande Mãe da Terra! Não leve o meu irmão ainda. Dei xe-o
viver. Oh, por favor-. . . - a sua voz foi interrompida por um sentido so luço, saído do
fundo do peito. - Mãe. . . por favor. . deixe.o viver.
Ele abaixou a cabeça, ficando por alguns momentos soluçando sobre o ombro
dependurado de Thonolan, depois carregou.o para a barraca. Deitou-o cuidadosamente
sobre o colchão e com a sua faca de cabo de osso lhe cortou a roupa. O único ferimento
visível se achava na parte superior da perna, um corte sangrando que rasgava a pele e
os músculos. Mas o peito estava verme lho e inflamado e também o lado esquerdo do
corpo se mostrava inchado e mudando de cor. Pelo tato, percebeu que diversas costelas
estavam quebra das e que provavelmente deveria haver lesões internas.
O sangue brotava do ferimento na perna, manchando o colchão. Jonda. lar revirou o
seu baú, procurando qualquer coisa que servisse para estancá lo. Pegou uma túnica sem
mangas que usava no verão e a embolou para lim par o ferimento, esperando que a
pelúcia do couro enxugasse o sangue - Só sei-viu para lambuzar mais e ele desistiu,
deixando o couro sobre a ferida.
- Doni, Doni! Não sei o que fazer. Não sou um Zelandoni. - Ele sen tou-se sobre os
calcanhares e passou a mão no cabelo, deixando manchas de sangue no rosto. - Chá de
salgueiro! Vou fazer logo um chá de salgueiro.
Ele saiu da barraca para esquentar água. Não era necessário ser um Zelandoni para
saber que cascas de salgueiro serviam para tirar dores. Era o que todo mundo usava
contra dores de cabeça ou algum outro tipo de dor não muito forte. Para ferimentos
graves, ele ignorava se iria adiantar alguma coisa, mas que mais poderia fazer?
Enquanto esperava que a água fervesse, pôs-se a andar ao redor da fogueira, espiando
dentro da barraca a cada vol ta que dava. Botou mais lenha na fogueira, queimando um
pouco a arma ção que mantinha a vasilha de couro suspensa sobre o fogo.
'Por que está demorando tanto! Mas espere. - - eu não tenho as cascas de
salgueiro. Preciso conseguir algumas antes que a água ferva." Ele meteu a cabeça dentro
da barraca e por algum tempo ficou olhando para Thonolan, depois correu para a beirada
do rio. Quando retirou as cascas do tronco de uma árvore desfolhada, com os seus
galhos roçando dentro da água, voltou.
Primeiro foi ver se Thonolan tinha acordado. A túnica estava encharca da de
sangue. Reparou, então, que a água fervia, respingando sobre o fogo. Não sabia o que
fazer, se primeiro preparava o chá, ou se atendia o irmão, ficando a olhar ora para
barraca, ora para a fogueira. Por fim, retirou com uma cuja um pouco de água fervendo
que lhe caiu na mão, queimando-a. Jogou a casca dentro da vasilha de couro, pôs mais
lenha na fogueira, espe rando que ardesse depressa, e foi apanhar o baú de Thonolan.
Ao esvaziá-lo, frustrado, não teve outro jeito senão apanhar a túnica do irmão para substi
tuir a sua, já empapada demais.
Quando ia entrando na barraca, Thonolan gemeu. Era o primeiro som que ouvia do
irmão. Ele voltou para buscar o chá, mas havia muito pouco o líquido secara quase todo.
"Talvez esteja forte demais", disse para si mesmo. Voltou para a tenda com uma cuia de
chá quente e procurou ansioso um lugar para pôr a vasilha. A túnica era insuficiente para
absorver todo o sangue que fazia uma poça debaixo de Thonolan, tingindo o colchão.
"Ele está perdendo sangue demais! Õ Mãe! Ele precisa de um Zelan doni. O que é
que vou fazer?" Jondalar se via cada vez mais ansioso e com medo. Sentia-se
completamente impotente. ". - - Preciso ir buscar ajuda. Mas onde? Onde poderia
encontrar um Zelandoni? Nem mesmo atravessar o Rio Irmã consigo. E ainda que
pudesse, como é que iria deixar Thonolan aqui so zinho? Algum lobo ou urna hiena pode
sentir o cheiro de sangue e vir aqui atacá-lo.”
"Nossa Mãe! Olha quanto sangue na túnica dele! Algum animal vai sen tfr o cheiro."
Ele agarrou a camisa empapada e a atirou para fora da barraca. "Não. Isso é pior!" Saiu e
tomou a buscá-la, procurando desesperadamente um lugar para pô-la. Que fosse longe
do acampamento, longe de seu irmão.
Estava arrasado, vencido pela dor, e no fundo do coração sabia que não havia
qualquer esperança. Thonolan precisava de uma ajuda que ele não po dia dar e também
estava impedido de sair para procurá-la. Ainda que soubes se aonde ir, não poderia. Não
fazia sentido que a túnica suja de sangue atraís se animais e o próprio Thonolan não.
Não queria enfrentar a verdade que no seu fiutimo sabia. O bom senso deixou de existir e
ele se entregou ao pânico.
E Olhou para o grupo de amieiros e, num momento de total irracionali dade, subiu
correndo a colina, espetando a camisa de couro num galho alto de uma das árvores.
Depois, correu de volta. Entrou na barraca e ficou enca rando 'flionolan, como se o poder
de sua vontade fosse capaz de botar nova mente o irmão inteiro, sadio e sorridente.
Quase como se tivesse escutado a súplica, Thonolan soltou um gemido e mexeu
com a cabeça, abrindo os olhos. Jondalar ajoelhou-se ao seu lado, vendo-lhe o olhar de
dor, apesar do fraco sorriso nos lábios.
- Você tinha razão, Jondalar. Aliás, sempre tem. Não nos devíamos ter descuidado
daquele rinoceronte.
- Eu não estou querendo ter razão, Ibonolan. Como você se sente?
- Quer uma resposta sincera? Com muita dor. Estou muito mal? - per guntou,
tentando sentar-se. O seu meio sorriso transformou-se numa careta.
- Não se mexa. Tome aqui, eu fiz um chá de salgueiro.
Jondalar apoiou-lhe a cabeça e levou a cuia aos seus lábios. Thonolan bebeu alguns
goles e voltou a deitar-se, aliviado, depois do esforço feito. Em seu olhar de dor apareceu
também o medo.
- Diga-me francamente, Jondalar. Como é que eu estou?
118 119 Jondalar fechou os olhos e respirou fundo.
- Nada bem.
- Disso eu sei, mas o que pergunto é até que ponto estou mal - os seus olhos
bateram nas mãos do irmão e se arregalaram alarmados. - A sua mão está suja de
sangue! E meu? Acho melhor você me dizer a verdade.
- Não sei direito. Você foi ferido na virilha e perdeu muito sangue. Vo cê deve ter
sido atirado para o alto pelo rinoceronte, ou então pisoteado por ele. Acho que está com
algumas costelas partidas. Mais do que isso, eu não sei. - - não sou um Zelandoni.
- Mas eu preciso de um e o único jeito de conseguir seria atravessando o rio e isso
não podemos.
-É. ..defato.
- Ajude-me a levantar, Jondalar. Quero ver o quanto eu estou ferido.
Jondalar ia opor-se, mas acabou cedendo e imediatamente se arrepen deu. No
momento em que Thonolan tentou sentar-se, soltou um berro de dor e voltou a desmaiar.
- Thonolan! - gritou Jondalar. O sangramento que tinha diminuído com o esforço
voltou outra vez a fluir forte. Jondalar dobrou a túnica do ir mão, botou-a de novo sobre o
ferimento e saiu da barraca. A fogueira estava quase extinta. Com cuidado, ele
acrescentou alguns galhos secos e o fogo tor nou a pegar. Em seguida, pôs mais água
para ferver e foi cortar lenha.
Voltou, então, para ver como ia Thonolan. A segunda túnica já estava encharcada.
Ele a pôs de lado para examinar o ferimento, contorcendo o ros to numa careta,
lembrando-se de sua subida intempestiva à colina para desfa zer-se da túnica. O pânico
inicial passara e o seu gesto agora parecia-lhe idiota. A hemorragia estava cedendo.
Apanhou outra peça de roupa - uma que usava por baixo da vestimenta no inverno - e
colocou-a sobre o ferimento, cobriu Thonolan e foi com a túnica suja de sangue para o
rio. Depois de jogá-la na água, curvou-se para lavar as mãos, ainda se sentindo ridículo
pelo pânico.
Ele ignorava que o pânico, em circunstâncias extremas, se constitui num fator de
sobrevivência. Quando tudo falha, quando se acham esgotados todos os meios racionais
na busca de uma solução, o pânico assume o controle da si tuação. Muitas vezes o ato
irracional se transforma na solução que a razão por si só jamais seria capaz de encontrar.
Ele caminhou de volta, botou mais alguns galhos na fogueira e foi procurar o pau de
amieiro, embora lhe parecesse agora sem sentido fazer uma lança. Mas sentia-se tão
inútil que precisava fazer qualquer coisa. Quando en controu o pau, foi sentar-se junto da
barraca e se pôs a apontá4o, mas sem ca pricho, defeituosamente - O dia seguinte foi um
verdadeiro pesadelo. O lado esquerdo do corpo de Itonolan tinha sido seriamente
atingido; ficara sensível ao mais leve toque.
Jondalar mal dormira. Fora uma noite difícil para Thonolan e a cada gemido ele se
levantava. Mas tudo que tinha para oferecer era chá de salgueiro e isso pouco ajudava.
Pela manhã, cozinhou alguma comida e preparou uma sopa, mas nenhum dos dois
conseguiu comer muito. No final da tarde, o ferimen to estava quente e Thonolan tinha
febre. O sol já sumira no horizonte, quando Thonolan acordou de um sono agitado,
encontrando os olhos azuis de seu irmão, cheios de ansiedade. Embora lá fora ainda
houvesse luz, no interior da barraca mal se enxergava. A penumbra, entretanto, não
impedia Jondalar de ver que Thonolan tinha os olhos extremamente febris. Em seu sono,
ele não parou de murmurar e gemer.
Jondalar tentou rir, animando-o.
- Como é que você se sente?
A dor era forte demais para que Thonolan sorrisse e o olhar preocupado de Jondalar
não era nem um pouco tranqüilizador.
- Eu me sinto como alguém que não tem muita vontade de caçar rinocerontes.
Por iritantes, ficaram em silêncio, sem saber o que dizer. Thonolan fe chou os olhos
e deu um profundo suspiro. Estava cansado de sofrer. O peito doía a cada vez que
respirava e a dor profunda que sentia na virilha parecia ter espalhado pelo corpo todo. Se
soubesse haver alguma esperança poderia suportar com mais facilidade, mas quanto
mais ficassem ali, menos chance ha veria de Jondalar atravessar o rio antes de cair urna
tempestade. Porque ele ia morrer, isso não era motivo para que o irmão também
morresse. Ele tornou a abrir os olhos.
- Jondalar, nós dois sabemos que se não houver socorro não há qual quer
esperança para mim. Por isso não há razão para você. - - - O que é isso de não haver
esperança? Você é forte.. - vai ficar bom.
- Não vai dar tempo. Nós não temos nenhuma chance se ficarmos neste campo
aberto. Trate de ir andando, Jondalar. Ache um lugar para você...
- Você está delirando.
- Não. Eu...
- & não estivesse, não estaria falando essas coisas. Preocupe-se em sa rar e deixe
que eu me preocupe com o resto. Nós dois vamos conseguir sair desta. Eu tenho um
plano.
- Que plano?
- Eu conto depois, quando estiver com todos os detalhes resolvidos. Você quer
alguma coisa para comer? Até agora ainda não comeu quase nada.
Thonolan sabia que, enquanto ele estivesse vivo, o seu irmão não iria embora. Ele
se sentia cansado, com vontade de entregar-se, pôr fim a tudo de uma vez, dar uma
chance a Jondalar.
120 121 - Estou sem fome - respondeu, mas vendo a expressão de sofrimento do
irmão falou: - Bom,eu tomaria um gole de água.
Jondalar despejou o resto da água e segurou a sua cabeça para ajudá-lo a beber.
Então, ele sacudiu o odre, dizendo:
- Isso está vazio. Vou tornar a encher.
Precisava de uma desculpa para sair da barraca. Não agüentava ver flonolan
completamente entregue - Havia mentido quando disse ter um plano. Não podia perder
as esperanças, por mais que o irmão dissesse que já não havia nenhuma. "Tenho de
achar um jeito de atravessar esse rio e encon trar alguma ajuda.”
Subiu por uma rampa de onde tinha uma visão do rio por cima das árvores. Por um
momento, ficou
a olhar um galho meio submerso batendo contra uma pedra. Sentiu-se tão
prisioneiro e desesperançado quanto aquele pedaço de pau desfolhado. Seguindo um
impulso, foi para a beirada da água e o desprendeu. Ficou observando as correntezas
levarem o galho, imaginan do até onde iria, antes de novamente ser apanhado por outra
coisa. Um sal gueiro chamou-lhe a atenção e ele pegou na faca para retirar mais cascas
do tronco. Não que o chá fosse adiantar. Thonolan provavelmente teria outra péssima
noite -
Por fim ele se afastou, dirigindo-se para um pequeno canal que contri buía com uma
mínima parcela de suas águas para o tumultuoso caudal da Irmã. Ele encheu o odre e
começou a voltar. Não saberia dizer o que o fez olhar na direção da montanha do rio - a
única coisa que poderia ouvir seria o rumor tempestuoso do rio - o fato é que olhou.
Então o seu queixo caiu e os olhos se arregalaram sem acreditar no que viam.
Uma coisa descia o rio, dirigindo.se diretamente para a margem onde ele se achava.
Aproximava-se dele um monstruoso pássaro aquático com um comprido pescoço
arqueado que sustentava uma cabeça empenachada por uma agressiva crista e um
enorme par de olhos que se mantinha sem pestane jar. Nas costas, qualquer coisa se
mexia. Depois, quando já estava mais per to, ele viu algumas cabeças. Uma figurínha
gritou agitando o braço.
- Olá!
Jamais uma voz foi tão bem-vinda aos ouvidos de Jondalar.
j\yla passou a mão pela testa suaren ta e sorriu para o cavalinho amarelo que a
cutucava, querendo meter o foci nho em sua mão. A potranca não gostava de perdê-la de
vista e a seguia por toda parte. Ayla não se importava, estava precisando de companhia.
- Cavalinho, quanto de cereal vou ter de colher para você? - gesticu lou ela. A
pequenina potranca cor de palha, atenta, observava-lhe os movi mentos. O animal a fazia
lembrar-se dela própria, quando era criança, tentan do aprender a língua gestual dos
clãs. - Está querendo aprender a falar? Bom, sem mãos vai ficar difícil para você. Mas
parece que está querendo en tender o que eu digo.
A fala de Ayla compreendia uns tantos sons. A linguagem coloquial usada pelos clãs
não era inteiramente silenciosa. Só a língua formal era. Cada vez que ouvia Ayla emitindo
algum som em voz alta, as orelhas do animal se levantavam.
- Você está ouvindo, não é, bichinho? - ela abanou a cabeça. - Não.
Isso não parece direito. Eu não posso ficar só chamando bichinho, cavalinho.
Preciso arrumar um nome para você. É isso que está querendo escutar, não é?
O seu nome. Gostaria de saber qual era o nome que a sua mãe lhe dava. Mas
mesmo que eu soubesse, com certeza não iria saber dizer.
A potranca a observava atentamente, já sabendo que Ayla, quando movia as mãos
de determinada maneira, estava lhe prestando atenção. Ayla in terrompeu a gesticulação
e o animal relinchou.
- Está falando comigo? Huiinnii! - fez ela, imitando a voz do cavalo.
Havia qualquer coisa de familiar no som e a potranca lhe respondeu, abanando a
cabeça e soltando um novo relincho.
- É esse o seu nome? Huiin? - gesticulou ela, sorrindo.
O cavalo tomou a levantar a cabeça, recuou o corpo, e depois voltou a aproximar-se
- Ayla deu uma risada.
- Se for este, então todos os cavalos têm o mesmo nome. - - ou talvez seja eu que
não perceba a diferença.
Ela soltou novamente um relincho e o cavalo voltou a respondê-la. Por alguns
momentos a brincadéira continuou. Fazia-a lembrar do tempo em que 7 122 123
ficava com o seu filho brincando de fazer sons com a boca. Só Durc conseguia emitir
os mesmos sons que ela. Creb lhe contou que quando a acharam, ela emitia uma
quantidade de sons e sabia que nos clãs ninguém era capaz de pro nunciá-los. Foi uma
coisa que a deixou feliz, descobrir que o filho tinha tam bém a mesma capacidade.
Ela voltou novamente às espigas que estava colhendo nos altos pés de trigo. No
vale cresciam diferentes tipos de cereais, inclusive o azevém, seme lhante ao que existia
perto da caverna do clã. O seu pensamento estava no no me que daria ao cavalo. "Nunca
até hoje dei nome a alguém." Então sorriu. "Como me achariam esquisita botando nome
num cavalo. E muito mais ain da se soubessem que estou vivendo com unt" Ela olhou
para o animal corren do e saltando, cheio de vida. "Fico contente por ter o cavalinho por
perto", pensou, sentindo um nó na garganta. "Com ela por aí, isso não fica tão solitário.
Nem sei o que fada se eu a perdesse agora. Vou lhe dar um nome.”
O sol começava a abaixar, quando parou, olhando para cima. Era um vasto céu
vazio. Nem uma nuvem a delirnitá4o ou a cortar a visão de sua infi nitude. Apenas uma
distante incandescência no ocidente, brotada de um anel tremeluzente que se revelava
em pós-imagem, conspurcava a vastidão unifor memente azul. Pela incidência da luz
sobre o penhasco, ela achou que já era tempo de parar.
Percebendo que a atenção de sua dona já não estava mais no trabalho, o cavalo
relinchou é veio para junto dela.
- Será que já não é tempo de voltar para a caverna? Mas, antes, vamos tomar um
gole de água - ela passou o braço ao redor do pescoço do animal e se encaminhou para
a beirada do rio.
As folhagens junto do alto paredão rochoso eram um caleidoscópio de cores que
refletiam o ritmo das estações. No momento, dominava o verde.es. curo dos abetos e
pinheiros. pontilhado de ouro, amarelo-claro, marrom e ver melho-fogo. O abrigado vale
fazia uma nota fulgurante no meio do bege mo nótono das estepes e o sol era sentido
muito mais quente dentro das muralhas que o protegiam contra as ventanias. Apesar das
cores outonals, aquele era co mo um dia quente de verão. No entanto, isso não passava
de uma ilusão.
- Acho que devia pegar mais capim. Você agora deu para comer todas as camas
que eu arrumo - ia Ayla monologando ao lado do cavalo. Depois, sem que percebesse,
parou de gesticular e prosseguiu falando só para si. "Iza sempre pegava no outono o
capim que punha nas camas durante o inverno. Tinha um cheiro delicioso quando ela
trocava, principalmente quando a neve estava alta lá fora, com o vento soprando forte. Eu
adorava ficar deitada ou vindo o vento e sentindo o cheiro do feno fresco.”
Ao perceber que direçffo estavam tomando, o cavalinho trotou, passan do à frente.
Ayla deu um sorriso condescendente.
- Você deve estar com tanta sede quanto eu, não é, Huiin? - disse, imi tando um
relincho para responder o da potranca que a chamava. - Isso até parece nome de cavalo.
Mas um nome tem de soar perfeitamente.
- Huiin! Huiiinni!
O animal levantou a cabeça, olhou-a e trotou de volta para perto dela. Ayla lhe
esfregou a cabeça, coçando-a. A potranca começava a perder o seu pêlo de cria jovem,
substituindo-o por outro mais comprido que iria protegê la melhor no inverno. Sentia-se
feliz quando ganhava uma coçadela.
- Acho que está gostando deste nome e ele combina bem com você, mi nha
potranquinha. Precisamos fazer uma cerimônia para que você receba o seu nome de
forma apropriada. Se bem que eu não possa carregá-la nos braços e Creb não está aqui
para lhe pôr a marca. Assim, sou eu mesma quem vai fa zer o papel do mog-ur e realizar
a cerimônia - ela sorriu. "Quem diria, uma mulher mog-ur.”
Começou outra vez a caminhar para o rio, mas mudou um pouco a dire ção, ao
perceber que estava perto do lugar onde cavara a armadilha no chão. Havia tampado de
novo o buraco, mas o cavalinho sempre se espantava quan do chegava perto, pondo-se
a fuçar com bufados e a dar patadas no chio, afli to talvez com algum cheiro ou com
alguma lembrança. A manada, desde o dia em que saiu pelo vale em disparada, fugindo
do fogo e da barulhada de Ayla, nunca mais voltara.
Ela levou o cavalinho para beber perto da caverna. As águas do rio, tur vas com as
barreiras caídas, haviam retrocedido, deixando uma pasta de lama marrom na margem.
O barro esborrachava-se sob os seus pés, pondo-lhe man chas avermelhadas sobre a
pele que a faziam lembrar do ocre vermelho usado pelo mog-ur para celebrar
determinadas cerimônias, como aquela em que ele designava o nome das pessoas. Ela
passou o dedo na lama e fez um sinal na sua perna, depois, sorrindo, pegou um
punhado.
"Ia procurar ocre vermelho, mas isso também serve", pensou. Com os olhos
fechados, procurava recordar-se do que Creb fizera quando ele deu no me ao seu filho.
Via o rosto deformado, com um retalho de couro cobrindo o buraco do olho vazado, o
nariz comprido, supercfliQs salientes e uma fron te baixa que se escorregava para a parte
posterior da cabeça. A sua barba, com a idade, ficara rala e falhada e a linha dos cabelos
tínha mais para trás. No entanto, ela recordava a sua figura, tal como a vira naquele dia:
já não jo vem, mas com todo o seu grande carisma. Amava aquele velho rosto, esplên
dido, de feições duras e fortes.
De repente, ela se viu invadida por antigas emoções, lembrando-se do medo que
tivera de perder o filho e da imensa alegria sentida ao ver a bacia com a pasta de ocre
vermelho. Por mais que engolisse em seco, o nó na gar ganta persistia e, sem saber,
deixou um borrão marrom na pele quando foi en 124 125 xugar uma lágrima. O cavalinho
aconchegava-se nela, quase como se sentisse a sua imensa carência. Ela se ajoelhou e
apoiou a cabeça em seu pescoço.
"Essa cerimônia tem por finalidade dar um nome a você", pensou, fa zendo força
para controlar-se. A lama lhe havia escorrido por entre os dedos e ela apanhou outro
punhado. Dirigiu, então, a mão vazia para o céu, gesticu lando como o fazia Creb,
quando conclamava os espíritos para atender uma cerimônia, com movimentos
abreviados e se valendo só de uma das mãos. Mas, por alguns momentos, ficou
hesitante, sem saber se deveria invocar es pírítos para a cerimônia de um cavalo. Talvez
eles não aprovassem a sua idéia. Ela pôs os dedos na lama que segurava e fez uma
risca descendo pela cara da potranca, desde a testa até a ponta do focinho, tal como
Creb desenhara a li nha com pasta de ocre vermelho em Durc: partindo do ponto
mediano entre os superôílios até a ponta de seu pequenino nariz.
- Huiin - começou, falando em voz alta e terminando com os gestos da linguagem
formal. - O nome desta menina. - . quer dizer, desta égua é Huiin.
O cavalo sacudia a cabeça, tentando ver-se livre da lama em sua cara e provocando
a risada de Ayla.
- Logo vai secar e sair, Huiin.
Ela lavou as mãos, ajeitou às costas a cesta repleta de cereais e vagarosa mente foi
caminhando para a caverna. A cerimônia havia posto demasiada mente em evidência a
solidão em que vivia. Huiin era uma criatura viva e calo rosa que lhe fazia companhia,
mas sem que percebesse, quando chegaram à praia rochosa, as lágrimas corriam soltas
pelas faces.
Ela ia guiando a potranca, forçando-a a subir pelo íngreme caminho que levava à
caverna. De certa forma, isso a distraiu, esquecendo-se um pouco de sua tristeza.
- Vamos, l-Iuiin. Sei que pode. Você não é nenhum íbice ou antílope, mas é só uma
questão de acostumar-se.
Chegando ao topo do paredifo, onde se achava a caverna, entraram e Ayla foi
imediatamente reavivar o fogo meio apagado e colocar cereais para cozinhar. A potranca
agora já comia capim, não precisando mais de comidas especiais, mas Ayla continuava
preparando papas para ela, porque Huiin tam bém gostava.
Ela pegou um amarrado de coelhos que caçara no princípio do dia e veio tirar-lhes a
pele do lado de fora, aproveitando que ainda estava claro. Em seguida, botou-os para
assar e enrolou as peles que mais tarde poria para cur rir. Já havia acumulado uma
grande quantidade de peles de animais: coelhos, lebres, hamsters e tudo que
conseguisse apanhar. Não sabia ainda bem o que faria com elas, mas as punha
cuidadosamente para curtir e depois guardava. Quando chegasse o inverno veria que f
lhes iria dar. Caso fizesse muito frio, poderia simplesmente empilhá-las ao seu redor.
O inverno estava cada vez mais no seu pensamento, à medida que os dias iam
encurtando e a temperatura caindo. O que preocupava era não saber qual a sua duração
e qual a intensidade do frio naquela região. Um súbito ata que de ansiedade a levou a
passar em revista os seus estoques, embora soubes se exatamente do que dispunha.
Fez um levantamento do que se achava den tro das cestas e dos recipientes de cortiça
contendo carne seca, frutas, vege tais, sementes, nozes e cereais. No canto mais
afastado da entrada, examinou as pilhas de raízes e frutas, guardadas ali, procurando ver
se não havia algum sinal de apodrecimento.
Ao longo da parede do fundo, achavam-se montes de lenha, esterco seco de cavalo
e capim. E no canto oposto, as cestas guardando os cereais de Huiin.
Ela voltou, então, para onde se encontrava a fogueira. Deu uma olhada nos cereais
que cozinhavam numa cesta de trama apertada e virou os coelhos sobre o fogo. Depois,
foi examinar as ervas, raízes e cascas penduradas num engradado, posto contra a
parede perto de sua cama e onde também se encon travam os seus objetos de uso
pessoal. Ela fincara as estacas do engradado no chão de terra endurecida, num ponto
não muito distante da fogueira, de mo do que os condimentos e as ervas para infusões e
medicamentos recebessem calor enquanto estivessem secando.
Ayla não tinha nenhum clã para atender e nem necessitava de tantos re médios,
mas se habituara a ter sempre bem fornida a farmacopéia de lia que, depois de adoecer,
já não podia cuidar dessa parte e, além do mais, criara o hábito de catar plantas
medicinais enquanto estava coletando alimentos. Em frente ao engradado havia toras de
madeira, pedaços de pau e gravetos, cascas de árvores, folhagens secas, couros, ossos,
pedras de diferentes tipos e até mes mo uma cesta com areia trazida da praia.
Ela não queria pensar muito no inverno que tinha pela frente, pois seria uma longa
temporada, quando estaria inativa e solitária. Sabia que não teria a ajudá-la a passar o
tempo as cerimônias, festas e relatos de histórias. Nenhu ma expectativa de bebês para
nascer, de tagarelices, conversas fiadas, trocas de idéias com l e Uba sobre remédios,
tratamentos e nem homens discutin do as suas táticas de caçadas. Planejara, então,
passar o seu tempo fazendo coisas - quanto mais difíceis e custosas melhor seriam -. de
modo a mantê-la o máximo de tempo ocupada.
Deu uma olhada nas toras. Havia de diferentes larguras e comprimentos. Ela
poderia fazer cuias e bacias de diversos tamanhos. Retirar a parte de den tro, modelar
com uma faca e uma machadinha, usada como enxó, depois es fregar de leve a madeira
com uma pedra redonda e areia era trabalho de dias. Pensava fazer várias. Alguns dos
couros seriam convertidos em perneiras, luvas e forro para calçados, e outros, retirada a
pelúcia, ficariam tão absorventes e tão macios e flexíveis como a pele de um bebê.
126 127 Folhas de iucas e nolinas, talos de taboa, juncos, varas de salgueiro, dife
rentes tipos de raízes, esse era o material para os trabalhos de cestaria, feitos em tramas
largas ou apertadas e tecidos de modo a formar belos e intrincados desenhos. Seriam
recipientes para cozinhar, comer, guardar mantimentos, ou então esteiras para forrar o
chão e peneiras para joeirar ou secar cereais. Com os tendões e a crina da égua e
também com fibras vegetais, ela faria cordas de diversas grossuras. As pedras seriam
apicoadas de forma ligeiramente côncava e depois enchidas com gordura que banhavam
pavios de musgo, fazendo lam parinas limpas de fumaça. Para esse fim havia
especialmente preservado a gor dura dos animais camívoros. Não que em caso de
necessidade não os comesse; era apenas uma questão de gosto.
Com os ossos saídos dos quadris e das espáduas faria pratos e travessas e alguns
outros que usaria como conchas e para mexer a comida no fogo- Às felpas tiradas de
djferentes plantas teriam serventia como acendalhas, ou mis turadas com crinas e penas
seriam utilizadas em estofamentos. Por fim, havia os nódulos de silex e as suas
ferramentas de talhamento. Muitos invernos ela os passara fabricando objetos e
instrumentos necessários à existência, mas agora possuía também um tipo de
suprimento para a fabricação de peças com que não estava muito acostumada, embora
estivesse cansada de ver os homens fabricá-las: as armas usadas para caçar.
• Queria fazer lanças, modelar maças que fossem boas de serem empunha das e
fabricar novas fundas. Pensava, inclusive, numa boleadeira, apesar de que essa fosse
uma arma que requeria um adestramento tão grande quanto a funda. l3run era um craque
no tiro de bolas. A própria fabricação da arma já requeria grande habilidade. Tinha-se que
arredondar três pedras como bolas e depois amarrá-las com cordas de comprimento
certo, de modo a obter o equi líbrio necessário.
- Será que ele vai ensinar Durc? - perguntou-se ela.
A luz do dia estava sumindo e a fogueira apagando-se. Os cereais haviam absorvido
toda a água e já estavam macios. Ela encheu uma cuia para si e acrescentou mais água
no resto que daria a Huiin. Despejou numa cesta imper meável e levou para o lugar de
Huiin dormir, que era junto da parede do lado oposto à entrada.
• Durante os primeiros dias na praia, Ayla e o cavalinho haviam dormido ao ar livre,
mas agora resolveu que ele teria de ter o seu lugar na caverna. Ape sar de usar esterco
seco como combustível, não gostava de encontrar cocô fresco em suas peles de dormir e
parecia que Huiin também não se sentia bem com isso. Chegaria o tempo que a potranca
estaria grande demais para dormir ao seu lado. A sua cama já não daria mais para
acomodar as duas, mas por en quanto gostava de aninhar- se junto do animalzinho.
- Isso deve chegar - gesticulou Ayla. Ela criara o hábito de se dirigir ao cavalo que,
por sua vez, começava a responder a alguns de seus gestos. - Espe ro ter apanhado
bastante comida para você. Uma coisa que gostaria de saber é quanto tempo dura o
inverno aqui - sentia-se um tanto irritada e ao mesmo tempo deprimida. Se já não tivesse
escurecido, teria saído para dar uma ca minhada, ou antes uma boa corrida.
Quando o cavalo começou a mastigar a cesta, ela lhe trouxe uma braça da de feno
fresco.
- Ei, Huiin, coma isso aqui. Não é preciso comer o seu prato.
Ela sentiu vontade de fazer uma festinha especial no animal e se pôs a coçá-lo.
Quando parou, Huiin enfiou o focinho na sua mão, apresentando-lhe uma outra parte da
cabeça que também merecia a sua atenção.
- Você deve ser muito comichoso - ela sorriu e voltou a coçar. - Ei, espere, tenho
uma idéia.
Dirigiu-se então ao depósito de materiais diversos, encontrando lá uma penca de
cardos secos. Esta planta, depois das flores caírem, ficava como uma escova ovalada de
espinhos. Ela quebrou uma no talo, usando-a para coçar o lugar desejado por Huiin. Mas
um lugar foi levando a outro e quando ela pa rou a potranquinha, visivelmente satisfeita,
estava com todo o seu couro esco vado.
Em seguida, passou o braço ao redor do pescoço de Huiin e deitou so bre o feno
fresco, aquecendo- se com o calor do corpo do jovem animal.
Ela acordou sobressaltada. Cheia de pressentimentos, deixou-se ficar quieta de
olhos bem abertos. Havia qualquer coisa errada. Sentiu uma corren te de ar frio. Por
instante, prendeu a respiração. Que barulho era aquele? Pa recia como o fungar de um
animal. Mas não tinha certeza se escutava direito. Havia também o som do coração de I-
luiin batendo e o bufar de sua respira ção. Teria vindo do fundo da caverna?
Estava escuro demais e não dava para ver.
Escuro demais. . - era isso! Estava faltando a luminosidade vermelha das brasas na
fogueira. Ela perdera um pouco o sentido de orientação. A parede estava do lado errado
e a corrente de ar. . . Ah, outra vez! Qualquer coisa fun gava e tossia! "O que é que estou
fazendo no lugar de Huiin? Devo ter esque cido de abafar a fogueira antes de dormir e
agora estou sem fogo. Nunca dei xei o fogo apagar desde que cheguei a este vale.”
Ela teve um estremecimento, sentindo os seus cabelos na nuca arrepiar. Não tinha
palavras, gesto ou conceito para expressar o pressentimento que lhe atravessava o
espírito, mas sentia. Os músculos em suas costas achavam-se ten sos- Algo estava para
acontecer. Qualquer coisa ligada ao fogo. Ela sabia. Ti nha certeza disso quanto de sua
respiração.
De vez em quando se via invadida por essa sensação. Começara na noite j 128 129
em que seguira Creb e outros mog-urs a um péqueno recinto localizado no fundo da
caverna que sediou a reunião de das. Creb descobrira que ela se achava naquele lugar,
não porque a tivesse visto, mas por a ter sentido lá. E ela também sentira, de uma forma
muito estranha, a pessoa dele, sentira-o dentro de seu cérebro. Foi então que vira coisas
que não sabia como explicar. A partir desta época, vez por outra era acometida por
pressentimentos. Sabia, por exemplo, quando Broud a estava olhando, embora estivesse
ela de costas para ele. Sabia do ódio mortal que ele lhe devotava e guardava no fundo de
seu coração, e, antes de ocorrer o terremoto, sabia que haveria morte e des truição na
caverna do clã.
Mas nunca essa sensação fora tifo forte como agora. Via-se ansiosa, com medo.
Não era propriamente relacionado ao fogo ou a ela mesma, mas a qual quer coisa que
amava.
Sem fazer barulho, levantou-se e foi apalpando o caminho até chegar à fogueira, na
esperança de encontrar alguma pequenina brasa que pudesse ainda reacender. Fazia
frio. De repente, sentiu uma vontade urgente de urinar. Con seguindo encontrar a parede,
seguiu-a até dar na entrada. O vento forte joga va-lhe os cabelos para trás, enquanto os
carvões apagados retiniam na foguei ra, levantando uma nuvem de cinzas. Outra vez ela
estremeceu.
Quando saiu, o vento batia como bofetadas. Com o corpo inclinado, ca minhou,
apertando-se contra a parede até a beirada do patamar de pedra, no lado oposto ao do
caminho. Era o lugar onde costumava fazer as suas necessi dades.
Nenhuma estrela adornava o céu. As nuvens, entretanto, formando uma camada
sombria, difundiam o luar num brilho uniforme, tornando a escuridão do lado de fora
menos intensa do que no interior da caverna. Mas não eram os olhos e sim o ouvido que
lhe estava dando sinal de alerta. Antes de perceber um movimento furtivo já ouvira os
barulhos de fungadelas e de respiração.
Ela levou a mão à cintura para pegar a funda, mas não a encontrou. Não a tinha
trazido. Começara a ficar descuidada, confiando na segurança da ca verna e do fogo
para manter os intrusos à distância, só que a fogueira estava apagada e um cavalinho
jovem era presa fácil para uma boa quantidade de predadores.
Subitamente, quando se achava na entrada da caverna, ouviu um uivo alto,
cacarejado, e o relincho de Huiin. Na voz do cavalo havia uma nota de medo. A pequena
potranca se encontrava dentrq de um cercado de pedras cujo único acesso estava
bloqueado pelas hienas.
"Hienas!", pensou ela com nojo. Tudo nesse bicho a irritava. O som alu cinado das
gargalhadas, as peles grosseiras e manchadas, os lombos que abaixa vam para trás, as
patas dianteiras maiores que as traseiras e principalmente o seu ar covarde. Além disso,
jamais pôde esquecer-se do grito de Oga, assistin do impotente o seu filho sendo
arrastado por um desses bichos. Desta vez, es tavam querendo Huiin.
Ela não tinha a sua funda, mas não seria a primeira vez que se arriscaria para ir em
socorro de alguém. Correu brandindo os punhos e gritando:
- Saiam daqui! Fora! - na língua clânica, essas eram expressões orais, ditas em voz
alta.
Os animais acovardaram-se e bateram em retirada. Um pouco por causa da firmeza
com que ela investiu contra eles e um pouco por causa da fogueira que mesmo apagada
exalava um certo cheiro no ambiente. Mas havia também outra razão. O odor dela,
embora não fosse normalmente reconhecido pelos animais, começava a ser notado por
alguns. Da última vez que foi sentido, ele veio acompanhado por fulminantes pedradas.
Dentro da escuridão da caverna, Ayla tentava pelo tato encontrar a fun da, furiosa
consigo por não se lembrar do lugar onde a pusera. "Isso nunca mais vai acontecer de
novo. Vou arrumar um lugar para colocá-la e nunca mais ela sai de lá", pensou,
prometendo-se.
Quando viu que não encontrava a funda, pegou as pedras de cozinhar que sabia
onde estavam. Uma hiena mais ousada voltou, delineando a sua si lhueta na entrada da
caverna, mas logo descobriu que, mesmo sem a funda, a pontaria era certeira e as
pedras machucavam. Ao final de algum tempo, aca baram percebendo que o cavalinho
não era a presa fácil que imaginaram.
Tateando no escuro à cata de mais pedras, ela encontrou um dos paus que usava
para marcar a passagem do tempo, uma frágil vareta que ficou se gurando o resto da
noite, ao lado de Huiin, pronta para defender a potran quinha, se preciso fosse.
Mais difícil foi lutar contra o sono. Só conseguiu dormitar um pouco quando já estava
para amanhecer, mas os primeiros raios de luz já a encon traram do lado de fora no
patamar, com a sua funda na mão. Nenhuma hiena à vista. Ela entrou para vestir a sua
roupa de pele e se calçar. A temperatura havia sensivelmente abaixado. Durante a noite,
o vento tinha mudado de di reção. Quando soprava do nordeste, era cabalizado através
do vale, até que na altura da curva do rio, onde o penhasco saía do alinhamento, se
desviava e entrava na caverna vindo de diferentes direções.
Ela tomou o seu odre e desceu pelo íngreme caminho que ia ter na praia. Na
beirada do rio, quebrou uma fina película transparente formada durante a noite. A
atmosfera estava impregnada daquele enigmático cheiro de neve. En quanto partia a
crosta de gelo e enchia o odre, perguntava-se como podia es tar tão frio, quando ainda na
véspera fizera tanto calor. À mudança fora re pentina demais. Ela se havia deixado levar
por uma vida rotineira, mas bastou a primeira mudança no tempo para faz&la lembrar-se
de que não tinha o direi to de ser tão presumida.
130 131 "Iza ficaria zangada se soubesse que fui dormir sem abafar a fogueira.
Agora preciso fazer fogo outra vez. Nem imaginava que o vento entrasse em minha
caverna. Ele sempre sopra do norte. Isso deve ter ajudado a fogueira a apagar mais
depressa. Não podia ter esquecido de abafá-la, mas a madeira estava muito seca, por
isso queimou rápido demais. Madeiras de enchentes não servem para ficar abafadas na
fogueira. Talvez seja melhor que eu derrube algumas árvores verdes. São mais difíceis
de pegar fogo, mas se queimam len tamente. Devia cortar também algumas estacas para
fazer uma barreira contra o vento e trazer mais lenha. Depois que a neve cair vai ficar
mais difícil pegar. Antes de fazer fogo, vou buscar a machadinha e derrubar algumas
árvores. Não quero o meu fogo apagado por não ter uma barreira contra o vento.”
No caminho de volta, pegou um pouco mais da madeira arrastada pelas enchentes.
l-luün estava no patamar e a cumprimentou com um relincho, vin do logo em seguida
cutucá-la com o focinho, pedindo por carícias. Ayla sorriu e entrou na caverna, seguida
pela potranca tentando enfiar o nariz em sua mão.
"Está bem, l-luiin", falou ela para si mesma, depois de botar no chão a lenha e o
odre cheio com água. Depois de dar-lhe alguns tapinhas, foi despejar um pouco de cereal
na cesta de Huiin. Ela mesma comeu a sobra fria do coe- lho. A sua vontade era a de
tomar um pouco de chá quente, mas tinha de con tentar-se com água. Fazia frio na
caverna. De vez em quando soprava as mãos e as enfiava debaixo do braço para
aquecé-Ias. Resolveu, então, pegar a cesta de ferramentas que guardava perto de sua
cama.
Fizera algumas pouco depois de ter chegado, e estava pretendendo fazer outras,
mas sempre surgia qualquer coisa parecendo mais importante. Ela reti rou a machadinha
que trouxera consigo e foi examiná-la do lado de fora, nu ma luz melhor. Quando usado
corretamente, o gume de um machado afiava-se por si mesmo. Com o uso, iam
desprendendo-se diminutas lascas e isto bastava para mantê-lo amolado. Mas mal
manobrado, a pedra, muito frágil, podia las car-se em demasia e até mesmo partir-se.
Ayla não percebeu o barulho dos cascos de Hulin vindo atrás dela, tão • acostumada
já estava a este som.
A potranca tentou enfiar o focinho em sua mão.
- Oh, Huiin! - gritou ao ver a ferramenta cair no chão de pedra e que brar-se em
vários pedaços. - Essa era a única que eu tinha e estava precisando • dela para cortar
lenha.
"Não sei por que está tudo dando errado", pensou. "Primeiro o meu fo go apaga
justamente quando começa a ficar frio. Depois aparecem hienas, co mo se soubessem
que não iam encontrar uma fogueira, e agora a minha única machadinha quebra Ela
começava a ficar preocupada. "Esses sinais de azar não podiam significar boa coisa.
Agora antes de tudo o que eu tenho de fazer é um machado.”
Ela ajuntou os pedaços de pedra no chão. Talvez pudesse lapidá-los de uma outra
maneira e usá-los para outra coisa. Resolveu deixá-los junto da fo gueira. Num nicho na
parede, atrás de sua cama, apanhou um embrulho feito com o couro de um enorme
hamster e amarrado por uma corda. Em seguida, desceu para a praia.
Huiin foi atrás, mas ao ver as suas cutucadas e marradas de cabeça repelidas,
deixou Ayla com as suas pedras e foi perambular pelo vale.
Com cuidado, cheia de reverente temor, numa atitude que aprendera de Droog, o
mestre ferramenteiro do clã, ela desfez o embrulho, O primeiro obje. to que retirou foi
uma pedra oval. Quando começou a fazer ferramentas de sílex, havia procurado por um
martelo: uma pedra que tivesse boa resiliéncia e também boa empunhadura. Todas as
ferramentas utilizadas no trabalho de talhar a pedra eram importantes, mas nenhuma
tanto quanto o martelo- Era a primeira que entrava em contato com o sílex.
O seu martelo tinha apenas algumas ranhuras, diferente do de Droog,já muito
machucado pelo uso. Nada, no entanto, a faria trocá-lo por outro. Qualquer pessoa podia
delinear um instrumento de sílex, mas as boas peças eram sempre feitas pelos mestres
ferramenteiros, gente que dava calor aos seus instrumentos e que sabia conservar feliz o
espírito do martelo de pedra. Ayla também preocupava-se com o espírito do seu, embora
antes nunca tivesse da do muita importância a isso, mas agora ela tinha de ser mestre de
si mesma na fabricação de suas ferramentas. Quando um martelo se quebrava havia
certos rituais para espantar o azar e aplacar o espírito da pedra, convencendo-o a se
alojar no novo martelo. Ayla, entretanto, não sabia como processá-los.
Ela deixou de lado o martelo e examinou o osso da pata de um animal herbívoro,
procurando pelas marcas deixadas na última vez que o utilizou. Esse era o seu martelode
osso. Passou, então, ao retocador: o canino de um enorme felino que ela retirou de uma
mandíbula encontrada na pilha junto do penhasco. Por fim, vistoriou uma série de peças
de osso e pedras que havia guardado.
Foi observando Droog e praticando sozinha que aprendeu a cortar nó dulos de sílex.
Ele não se importava de mostrar-lhe a maneira de se trabalhar uma pedra. Ela não fora
sua aprendiz, apenas lhe prestava atenção e ele tinha os seus trabalhos em boa conta.
Mas não valia a pena perder tempo com mu lheres. O número de ferramentas que lhes
era permitido fabricar era bastante reduzido. A mulher estava proibida de fazer tanto
instrumentos u em ca çadas, como aqueles com que se fabricavam armas. No entanto,
ela achava que as ferramentas empregadas não diferiam muito das outras que lhes eram
vedadas. Afinal de contas, uma faca é sempre uma faca e uma lâmina dentada tanto
pode ser usada para aguçar a ponta de um pau qualquer, como a de uma lança.
132 133 JÁ Ela deu uma olhada nos seus instrumentos, pegou um nódulo de sílex,
mas, sem seguida, o botou no chão. Se estava pretendendo fazer algum corte
importante, iria precisar de uma bigorna, qualquer coisa, enfim, que servisse de suporte
para a pedra durante o trabalho. Droog não necessitava de bigor na para fazer uma
simples machadinha de mão, só a usava no caso de ferra mentas mais elaboradas. Ayla,
no entanto, achava que tinha mais controle com um suporte para os pesados blocos de
pedra, o que não significava não poder também talhar ferramentas independentemente
deste recurso. Precisava de uma superfície plana e firme, não dura demais, pois a pedra
podia espati far-se com as batidas. O osso da pata de um mamute era o que Droog usava
e ela resolveu ver se encontrava qualquer coisa semelhante na pilha de ossos.
Subindo um pouco por cima do monte de ossos misturados com pedras e madeiras,
ela enxergou uma presa. "Bom, se isso está aqui, então devem estar os ossos da pata."
Arrumou um galho comprido e passou a usá-lo como alavanca para remover os mais
pesados. Mas o pau partiu quando ela tentava levantar um bloco de pedra. Resolveu
pegar a presa de um mamute jovem, que se revelou muito mais forte. Por fim, encostado
rente ao paredão, viu o que procurava, e deu um jeito de desembaraçá-lo daquela massa
de entulhos.
Quando arrastava o osso da pata de mamute para o local de trabalho, os seus olhos
bateram numa pedra de tom cinza-amarelado, brilhando com o sol que se refletia nas
suas facetas. Parecia-lhe uma coisa conhecida, mas só quando apanhou o pedaço de
pinta de ferro reconheceu o motivo.
"O meu amuleto", pensou, tocando no saquinho de couro pendurado em seu
pescoço. "O Leão da Caverna me deu uma pedra igual a esta para avisar que o meu filho
iria viver." De repente, notou que a praia estava coalha da de pedras como aquela. Já as
tinha visto antes, sem prestar atenção, mas o fato de havê-la identificado fez com que
tomasse conhecimento da sua exis tência lá. Ela, então, reparou que as nuvens se
abriram no céu, deixando o sol brilhar. "Quando encontrei a minha, ela era única, e aqui
estão espalhadas por toda parte. - Largou a pedra e continuou arrastando o osso da pata
de mamute pela praia. Sentou-se e o colocou entre as pernas. Cobriu o colo com o couro
de hamster e pegou de novo o pedaço de sílex. Revirava-o de lá para cá, tentan do
resolver o lugar onde daria a primeira batida. Mas estava lhe faltando cal ma, não
conseguia concentrar-se. Alguma coisa a incomodava. Achou que eram as pedras que
faziam um assento frio e ençaroçado. Correu até a caver na para pegar uma esteira e
trouxe também o pau com a tábua de fazer fogo e um pouco de acendalhas. "Vou me
sentir bem melhor quando tiver um fo go aceso. A manhã já está pela metade e ainda
continua frio.”
Acomodou-se sobre a esteira, pôs as ferramentas ao seu alcance, tornou a colocar o
osso do mamute entre as pernas, e estendeu mais uma vez o couro de hamster sobre o
colo. Pegou a greda cinzenta e acertou a sua posição sobre a bigorna. Apanhou o
martelo e o levantou várias vezes querendo pegar o jei to de empunhá-lo, mas então o
deixou de lado. "O que há de errado comigo? Por que estou nervosa? Droog, antes de
começar, sempre pedia ao seu totem para ajudá-lo. Talvez seja isso o que esteja me
faltando.”
Segurou o amuleto, fechou os olhos e respirou fundo diversas vezes para acalmar-
se. Não fazia nenhum pedido específico, apenas tentava alcançar com a mente e com o
coração o Leão da Caverna. O espírito que a protegia fazia parte dela e estava nela.
Assim lhe tinha explicado o velho feiticeiro e ele era digno de fé.
O esforço para concentrar-se no espírito do poderoso animal que a esco lhera surtiu
efeito. Sentia- se relaxada. Abriu os olhos, flexionou os dedos e pegou novamente o
martelo de pedra.
Depois das primeiras batidas ter separado o córtex gredoso, ela parou para fazer um
exame crítico da pedra. A cor estava boa, com um brilho cinza- escuro, mas a
cristalização não eta das melhores. Contudo, não havia inclusões. Para uma machadinha
servia. Algumas das lascas grossas que saíam enquanto modelava o machado poderiam
ser aproveitadas para outras ferramentas. Elas tinham a extremidade abaulada, formando
um bulbo de percussão no lugar onde o martelo batera, mas afinavãm, fazendo um gume
afiado. Muitas vinham com um ondeamento circular que se repetia na cicatriz deixada no
coração da pedra. Estas poderiam ser usadas para cortar materiais duros e resistentes,
talvez podendo servir como cutelo ou foice.
Quando delineou a forma desejada, ela passou para o martelo de osso. Era mais
macio e elástico. Não danificaria - como possivelmente aconteces se com o de pedra - a
beirada fina e afiada com um leve encrespado. Toman do muito cuidado na pontaria, ela
se pôs, então, a trabalhar bem junto do gu me. A cada batida iam saindo lascas, agora
mais finas, com o bulbo de percus são mais plano e as beiradas já não tão ondeadas. A
ferramenta gastou muito menos tempo para ser feita do que ela preparando-se para a
sua confecção.
Media cerca de 12 centímetros de comprimento e o contorno era como o de uma
pêra, mas com uma extremidade plana que gradualmente afinava-se. Tinha uma seção
transversal forte, porém bastante fma, e os gumes partiam retos das laterais abauladas. A
empunhadura se fazia pela base, talhada de for ma arrendondada. Podia ser usada como
um machado para cortar madeira, ou como enxó para fazer bacias, cuias, etc. Também
serviria para cortar mar fim ou esquartejar animais. Era uma ferramenta de percussão,
forte, afiada e com muitas aplicações.
Ayla se sentia melhor, mais solta, pronta para enfrentar técnicas mais elaboradas e
difíceis. Pegou um segundo nódulo de silex e o martelou. A pri meira batida revelou que a
pedra estava jaçada. A superfície gredosa estendia- 135 1 134 se para dentro do cinza-
escuro da camada interna, atingindo o núcleo da pedra. A inclusão a tornava imprestável
e isso veio interromper-lhe o ritmo de trabalho e a concentração. Outra vez sentia-se
nervosa, tensa. Ela colocou o martelo np chão pedregoso da praia.
Mais um sinal de azar. Outro presságio ruim. Não queria acreditar nis so, nem
desistir. Olhou novamente para o nódulo de sílex, tentando ver se teria algum pedaço
aproveitável e segurou outra vez o martelo. Conseguiu tirar uma lasca, mas esta
precisaria de retoques. Deixou o martelo de lado e estendeu a mão para apanhar o seu
retocador. Ela vagamente deu uma olha da na direção de suas ferramentas. Com os
olhos fixos no nódulo de sílex, pegou sem ver uma pedra da praia e. - . então o acaso,
que viria dar uma ou tra dimensão à sua vida.
Nem todas as invenções nascem da necessidade. Às vezes o acidental in tervém. A
chave está em perceber. No caso de Ayla, todos os elementos se achavam lá, mas a
casualidade os juntou, exatamente como seria preciso. O fortuito foi o elemento
essencial. Ninguém - e muito menos a moça, sentada numa praia rochosa de um vale
perdido e desconhecido - sonharia em fazer intencionalmente tal experiência.
Quando ela estendeu a sua mão para pegar o retocador de pedra, segu rou um
pedaço de pinta de ferro com quase o mesmo tamanho do objeto que imaginava estar
apanhando. Ao martelar a parte à mostra do sílex, as acenda ffias que trouxera da
caverna por acaso se achavam perto, e a faísca produzi da pela batida de uma pedra
contra outra caiu acidentalmente num bolo de fi bras felpudas. E, mais importante ainda,
Ayla, casualmente, estava olhando nessa direção no momento em que a centelha voou e
caiu nas acendalhas, queimando-as e desprendendo um fio de fumaça, antes de se
apagarem.
Isso é o que se chama feliz acaso. Mas Ayla contribuiu com o fato de estar olhando
e com outros elementos também necessários: primeiro, por en tender o processo da
fabricação do fogo, depois por estar naquele momento precisando de fogo e, por fim, por
não ter medo de experimentar o novo. Ainda assim, custou a compreender e a se dar
conta do acontecido. Inicial- mente, espantada com a fumaça, teve de pensar um pouco
até estabelecer a sua conexão com a centelha. Mas a faísca a deixou mais espantada
ainda. De onde teria vindo? Foi nesse instante que olhou para a pedra em sua mão.
Mas como? Aquela não era a pedra. Não era o seu retocador e sim uma das tantas
pedras brilhantes que existiam espalhadas por toda a praia. De qual quer forma, o fato
continuava: o que tinha na mão era uma pedra e pedras não pegam fogo. Alguma coisa,
no entanto, havia produzido a centelha que incendiou o chumaço de fibras secas. Afinal,
ela viu uma fumaça. . . ou não?
Pegou o bolo de acendalhas, já pronta para acreditar que a fumaça não passava de
produto de sua imginação. Mas então viu no meio do chumaço um furo escuro que lhe
deixou fuligem nos dedos. Tornou a apanhar a pinta de ferro e a examinou com atenção.
Como teria saído uma faisca da pedra? O que tinha ela feito? A lasca de sílex. . . sim, ela
havia dado uma martelada no sílex. Sentindo-se um tanto idiota, bateu uma pedra contra
a outra. Nada aconteceu.
"Mas o que eu esperava?", perguntou-se. Resolveu botar mais força, ba tendo com
um movimento seco as duas pedras, uma contra a outra, fazendo saltar uma fagulha de
fogo. De repente, uma vaga idéia que vinha formando surgiu-lhe na mente com toda a
clareza. Uma estranha e interessante idéia e um pouco assustadora também.
Colocou cuidadosamente as duas pedras sobre o osso da pata de mamu te em seu
colo e ajuntou todos os materiais que usava para fazer fogo. Depois de tudo arrumado,
pegou as pedras, segurando-as perto das acendalhas e bateu uma contra a outra. Uma
faísca pulou, morrendo logo em seguida. Ela mudou de ângulo e tentou outra vez, mas
sem pôr a devida força. Bateu, em seguida, mais fortemente, vendo uma faísca cair direto
no meio do ninho de acenda lhas. Deu para chamuscar algumas fibras, que não
chegaram a pegar fogo, mas o fiozinho de fumaça foi encorajador. Na vez seguinte, ao
bater uma pedra contra a outra, o vento soprou fazendo as acendalhas chamejarem
antes de se apagarem.
"Claro! Tenho de soprar." Ela se pôs numa posição mais cômoda para soprar a
pequenina chama e tornou a bater nas pedras, produzindo uma faís ca. Era uma centelha
forte, brilhante e duradoura, que foi pousar no lugar certo. Enquanto soprava, sentia no
rosto o calor do chumaço de fibras quei mando e começando a soltar chamas que ela ia
alimentando com as lascas de madeira e gravetos. Antes que percebesse, estava com
uma fogueira acesa.
Era ridiculamente fácil. Tão fácil que não acreditava. Precisou provar a si mesma
novamente. Tornou a juntar mais lascas, gravetos e fibras, e uma se gunda fogueira foi
acesa. Depois uma terceira e quarta. A emoção sentida era um misto de medo, respeito,
alegria pela descoberta e também uma boa do se de assombro, quando se afastou e
olhou para as quatro fogueiras, todas ori ginadas de pedras.
I-Iuiin apareceu, atraído pelo cheiro da fumaça. O fogo, outrora tão assustador,
significava agora segurança.
- Huiin! - gritou ela, correndo para o cavalinho. Tinha necessidade de falar com
alguém, de comunicar a grande descoberta, ainda que fosse para um animal. - Veja! -
falou por gestos. - Veja essas fogueiras! Todas feitas com pedras. Pedras, Huiin! - O sol
havia atravessado as nuvens e, de repente, a praia inteira parecia cintilar.
"Estava errada ao pensar que não havia nada de especial nestas pedras. Devia ter
imaginado, senão o meu totem não iria me dar uma. Agora que sei, 136 137 • entendo o
fogo que existe nelas." Pôs-se, então, pensativa. "Mas por que eu? Por que foi revelado
logo a mim? Uma vez o meu Leão da Caverna me deu uma pedra dessas para me avisar
que Dure viveria, O que será que agora está ele querendo me dizer?”
Lembrou-se de seu estranho pressentimento, quando percebera que ti nha ficado
sem fogo e, de pé, no meio das quatro fogueiras, estremeceu, sen tindo-o novamente.
Mas de reprente foi tomada por uma fantástica sensação de alívio, embora nem
soubesse por que estivera antes preocupada.
- Olá! Olá! - gritava Jondalar, acenando enquanto corria para a beirada do rio.
O seu alívio não tinha limites. Já estava a ponto de desistir de tudo, mas o som de
outra voz fez renascer as suas esperanças. Não ocorreu a ele a possibilidade das
pessoas não serem de paz. Nada podia ser pior do que a total impotência em que se
encontrava. E, de fato, não pareciam hostis.
O homem que o havia chamado suspendeu um rolo de corda atado a uma das
extremidades do estranho pássaro aquático. Jondalar, ehtão, perce beu não se tratar de
uma criatura viva, mas de uma espécie de embarcação. O homem lhe atirou a corda.
Jondalar deixou-a cair e se meteu dentro da água para buscá-la. Duas pessoas,
segurando numa outra corda, saltaram a amurada do barco e vieram caminhando pela
água que redemoinhava à altura de suas coxas. Uma delas veio tirar a amarra dele. Ela
sorria da expressão de Jonda lar que era de alívio e perplexidade, diante da total
ignorância do que fazer com a corda molhada em suas mãos. Essa mesma pessoa
arrastou o barco para mais perto e, depois de amarrar a corda numa árvore, foi examinar
um outro cabo que se atava à ponta do galho de um tronco meio submerso.
Um outro ocupante da embarcação se alçou sobre a amurada e pulou para o tronco,
testando-lhe a estabilidade. Ele disse algumas palavras numa língua desconhecida e uma
prancha em forma de escada foi descida da amu rada do barco para o tronco. Em
seguida,ele voltou para ajudar uma mulher, que por sua vez ajudou uma terceira pessoa
a descer pela prancha e caminhar pelo tronco até a praia, embora parecesse não haver
necessidade disso, sendo mais uma questão de deferência.
138 Essa pessoa, sem dúvida alguma merecedora de todas as considerações, tinha
um ar sereno, quase majestoso, mas com qualquer coisa de indefinível que Jondalar não
sabia explicar, uma certa ambigüidade que o levou a encará la. O vento bateu, soltando
alguns fios de longos cabelos brancos atados na nuca, num penteado puxado para trás
que deixava à mostra um rosto muito escanhoado - seria imberbe? - já marcado pelos
anos, mas iluminado por uma pele macia e clara. Havia força na linha do maxilar, no
queixo saliente. Seria firmeza de caráter?
Jondalar se deu conta de que estava em pé, dentro da água fria, quando lhe
acenaram para sair. O exame mais de perto da figura não esclareceu o enig ma e ele
sentia que lhe escapava qualquer coisa importante. Parou, por um momento, e olhou
para um rosto sorridente, de expressão interrogadora e olhos penetrantes, num tom
indefinido que tanto podia ser cinza como cor de avelã. Jondalar, de repente, enrubesceu,
atinando com certos traços que se in sinuavam na misteriosa pessoa que, pacientemente,
o aguardava de pé à sua frente. Foi então que ele procurou por sinais que lhe sugerissem
ou identifi cassem o sexo.
A altura não ajudava: um pouco alto para mulher e um pouco baixo para homem. As
roupas soltas e informes escondiam os detalhes físicos, até mesmo a maneira de andar
deixava Jondalar intrigado. Quanto mais olhava, menos sabia e mais aliviado se sentia.
Ele sabia da existência de pessoas assim. Seres que não eram uma coisa nem outra, ou
então as duas ao mesmo tempo. Em geral, se alinhavam entre aqueles que serviam a
Mãe. Tendo con centrados em suas pessoas poderes derivados dos elementos
masculinos e femininos, eram tidos como extraordinários curandeiros.
Jondalar encontrava-se muito distante de sua terra natal e desconhe cia os
costumes daquela gente; entretanto, não tinha a menor dúvida de que a figura parada à
sua frente era um curandeiro. Talvez fosse um servidor da Mãe. . . talvez não. Bom, não
tinha importância. O que interessava é que Tho nolan precisava de um curandeiro e havia
aparecido um ou uma.
Mas como soubera que estávamos precisando de um curandeiro? E como vieram
parar aqui?
Jondalar atirou outra tora na fogueira e ficou observando as fagulhas que subiam
atrás da fumaça, perdendo-se na escuridão da noite. Ele deslizou o traseiro nu mais para
dentro do saco de dormir e apoiou as costas contra uma pedra para admirar as chispas
de fogo lançadas através do espaço. Uma figura parecendo flutuar entrou em seu campo
de visão, vedando parte do céu salpicado de estrelas. Ele levou um momento até que os
seus olhos, desajusta dos, se deslocassem das profundezas celestiais para a cabeça de
uma moça que segurava uma cuia de chá fumegante.
139 8 [ [ Rapidamente se sentou, deixando entrever um pedaço da coxa nua.
Agarrou, então, o saco de dormir, puxando-o para cima e dando uma olhada em suas
calças e botas que secavam penduradas perto da fogueira. A moça lhe sorriu, e tão
radiosamente, que ele, ao invés de ver uma mulher tímida, um tanto formal, de beleza
plácida, enxergou uma esplêndida beldade de olhos esfuziantes. Jamais vira na vida
transformação tão surpreendente e o sorriso com que devolveu o dela refletia todo o seu
encantamento. Ela, no entanto, abaixou rápido a cabeça, escondendo uma risada marota,
não querendo deixar embaraçado o desconhecido. Quando voltou a olhar para ele, os
olhos guarda vam apenas um leve brilho.
- Você tem um belo sorriso - disse Jondalar, pegando a cuia de chá.
Ela acenou a cabeça dizendo qualquer coisa, dando a entender a Jonda lar que não
o compreendera.
- Sei que não entende o que eu falo, mas mesmo assim quero dizer-lhe o quanto
estou agradecido por vocês estarem aqui.
Ela o observava com mais atenção. Ele sentia que a vontade de se comu nicar da
moça era tão grandç quanto a sua e continuou a falar, com medo de que, se parasse, ela
fosse embora.
- É maravilhoso poder falar com você e saber que estão aqui - ele to mou um gole
do chá. - Isso é muito gostoso. De que é? - perguntou, suspen dendo a cuia e balançando
a cabeça, dando a entender que estava gostando muito. - Parece com o gosto de
camomila.
Ela mexeu a cabeça, como que agradecendo, e veio sentar-se perto da fogueira,
respondendo-lhe com palavras incompreensíveis, tanto quanto as dele o eram para ela.
Mas tinha uma voz agradável e pareceu compreender o seu desejo de companhia.
- Gostaria de poder agradecer. Não sei o que faria se vocês não tivessem aparecido
- ele franziu a testa, preocupado, e ela lhe deu um sorriso com preensivo. - Gostaria
também de poder perguntar como souberam que está vamos aqui e como o seu
Zelandoni. - - ou o seu curandeiro, ou qualquer outro nome que vocês dão a ele, soube
que tinha também de vir.
Ela lhe respondeu apontando para a barraca que fora erguida ali perto e que se
iluminava com uma fogueira dentro. Ele abanou a cabeça desconso lado. A moça parecia
quase compreendê-lo e ele, simplesmente, não entendia nada do que ela falava.
- Bom, tenho a impressão de que isso não tem importância - falou ele.
- Mas gostaria de que o seu curandeiro me deixasse ficar com Thonolan. O meu
irmão precisa saber que estou aqui. Não estou duvidando da capacidade do curandeiro.
Simplesmente queria ficar com ele - Jondalar tinha o olhar tão ansioso que ela colocou a
mão sobre o seu braço, de modo a tranqüili zá4o. Ele tentou sorrir, mas o seu sofrimento
era grande demais. A sua aten ção foi então atraída para a barraca que se abriu,
deixando passar uma mulher já de certa idade.
- Jetamio! - chamou a mulher, dizendo em seguida algumas outras pa lavras.
A moça se apressou em se levantar, mas Jondalar lhe segurou a mão, de- tendo-a.
- Jetamio? - perguntou ele, apontando-a com o dedo.
Ela confirmou com a cabeça.
- Jondalar - disse, batendo no peito.
- Jondalar - repetiu ela devagar. Então olhou para a barraca e, depois de bater
levemente nele e nela, apontou na dïreção da tenda.
- Thonolan. O nome de meu irmão é Thonolan.
- Thonolan - falou ela se dirigindo apressada para a barraca.
Jondalar reparou que a moça mancava ligeiramente, mas isso parecia não
atrapalhá-la em nada.
As calças ainda estavam úmidas, mas ele as vestiu assim mesmo e, com elas sem
amarrar e descalço, deu uma corrida até um mato próximo. Desde que acordara,
Jondalar vinha contendo as suas necessidades. As mudas de roupa que possuía haviam
ficado na barraca onde o curandeiro tratava de Thonolan. A risada de Jetamio na véspera
fez com que Jondalar pensasse duas vezes antes de sair para a área escondida atrás do
mato, vestido apenas com a camiseta que usava debaixo da roupa. Além do que, não
queria correr o risco de ir contra algum tabu ou costume das pessoas que o estavam aju
dando.
Havia primeiro tentado levantar e caminhar metido no saco de dormir, mas custara
tanto resolver meter-se nas suas calças - molhadas ou não - que estava a ponto de botar
a vergonha de lado e dar uma corrida até o mato. As sim mesmo não escapou da risada
de Jetamio.
- Tamio, não ria dele. Isso não é direito - falou a mulher. As suas pala vras,
entretanto, não tinham a menor força, pois ela própria não conseguia conter o riso.
- Oh, Rosh, eu não tinha intenção de rir dele, mas não consigo evitar. Você viu
quando ele tentou caminhar dentro do seu saco de dormir? - ela tornou a rir, apesar do
esforço para conter-se. - Por que simplesmente não se levanta e anda?
- Talvez porque os costumes sejam diferentes. Eles devem ter vindo de muito longe.
Nunca vi
roupas como as que usam e a língua também é comple tamente desconhecida. A
maioria dos viajantes tem algumas palavras que são parecidas. Eles não. Há certas
palavras que nem consigo pronunciar.
141 1 140 - Tem razão. Deve ser difícil para ele mostrar o corpo. Você devia ter visto
como ficou vermelho ontem só porque eu vi um pedaço de sua coxa. Mas nunca vi
ninguém que tivesse gostado tanto de nos encontrar.
- Não é para menos.
- Como está o outro? - perguntou Jetamio, novamente séria. - O sha mud comentou
qualquer coisa, Roshario?
- Acho que a inflamação está cedendo e a febre também. Pelo menos está dormindo
agora mais sossegado, O shamud acha que ele foi atacado por um rinoceronte. Nem sei
como conseguiu escapar. Ele não iria durar muito se o outro não tivesse tido aquela idéia
de pedir socorro. Mesmo assim foi uma sorte encontrá-los. Mudo deve ter sorrido para
eles. A Mãe sempre ajuda os homens bonitos.
- Mas não muito. . - não impediu que Thonolan fosse ferido, O modo como ele foi
chifrado. . . você acha que ele volta ainda a caminhar?
- Se ele tiver a metade da força de vontade que você teve, voltará, Tamio - disse
Roshario carinhosamente, O rosto de Jetanijo ficou vermelho.
- Acho que vou ver se o shamud está precisando de alguma coisa - ela se dirigiu
para a barraca, fazendo o possível para não mancar.
- Por que você não leva para o altão o seu baú? - gritou.lhe Rosha rio. - Assim ele
não precisará de usar calções molhados.
- Eu não sei qualé o dele.
- Leve os dois, desse modo sobrará mais espaço dentro da barraca. E pergunte ao
shamud quando vamos embora. . . Ah, mais uma coisa. Qual o nome dele? Thonolan?
Jetamio fez que sim com a cabeça.
- Se vamos ficar aqui por algum tempo, Dolando vai precisar arrumar uma caçada.
Nós não trouxemos muito comida. Com o rio desse jeito, tenho a impressão de que os
ramudoi não vão conseguir pescar, se bem que acho que eles se dariam por muito felizes
se não tiverem de pôr os pés na praia. Quanto a mim, gosto de sentir chão firme debaixo
dos meus pés.
- Ora, Rosh, acho que estaria dizendo justamente o contrário se você, ao invés de
Dolando, tivesse arrumado um ramudoi para companheiro.
Os olhos de Roshario ficaram sérios.
- Por acaso um desses remadores andou fazendo gracinhas para você? Eu posso
não ser a sua mãe verdadeira, Jetamio, mas todo mundo sabe que você é como filha
para mim. Se um homem não tem nem a delicadeza de pe dir, ele não é coisa que sirva
para você. Não se pode confiar nesses homens de beira de rio.
- Não se preocupe, Rosh. Não pretendo fugir com nenhum remador... pelo menos
por enquanto - falou Jetamio, com um sorriso de mofa.
142 - Tamio, há muito homem bom shamudoi que gostaria de mudar para a nossa
casa e. . . mas de que você está rindo?
Jetamio tapava a boca com as duas mãos, querendo engolir o riso que escapava
estrangulado em meio a risadinhas abafadas. Roshario se virou na di reção em que a
outra olhava, e por sua vez tapou a boca para não cair também na gargalhada.
- É melhor eu ir buscar de uma vez esses baús - conseguiu por fim Je tamio dizer.
Depois, voltou a rir novamente. - O nosso amigo altão precisa urgente de roupas secas.
Ele parece um bebê de calças compridas - saiu cor rendo, mas Jondalar lhe ouviu o som
das risadas antes que ela entrasse na barraca.
- Alegre, queridinha? - falou o curandeiro, levantando uma sobrance. la e com olhar
zombeteiro.
- Ah, desculpe, não pretendia entrar aqui rindo. É que.
- Ou eu já estou no outro mundo, ou então você é a donii que vai me levar para lá.
Nenhuma mulher da terra poderia ser tão bonita assim. Só que não entendo uma palavra
do que diz.
Jetamio e o shamud olharam na direção do homem ferido. Thonolan, esboçando
fracamente um sorriso, tinha os olhos fixos em Jetamio. Ela ficou séria e veio ajoelhar-se
junto dele.
- Oh, eu vim perturbá-lo! Como pude ser tão estabanada?
- Não pare de sorrir, minha bela donii - falou Thonolan, segurando- lhe a mão.
- Sim, querida, você deixou o rapaz perturbado, mas não se preocupe com isso.
Imagino que ainda ficará mais perturbado com você por aqui.
Jetamio abanou a cabeça, olhando surpresa para o shamud.
- Eu vim só perguntar se você está precisando de qualquer coisa ou se posso ajudar
de alguma maneira.
- Você já ajudou.
Ela o olhou ainda mais espantada. Às vezes, achava que não entendia nada do que
o curandeiro falava.
O olhar penetrante do shamud adoçou-se, mas guardando uma ponta de ironia.
- Já fiz tudo o que podia. Agora, o resto é com ele. Nessa fase, qual quer coisa que
lhe dê vontade de viver só pode fazer bem para ele. E você, minha querida, tem esse
poder.
Jetamio ficou corada e abaixou a cabeça. Percebeu, então, que Thono lan ainda lhe
segurava a mão. Ela olhou-o, vendo os seus olhos cinzas sorri dentes, e lhe devolveu um
radioso sorriso.
O curandeiro limpou a garganta em voz alta e Jetamio, meio confusa, retirou a mão,
dando-se conta de que estava parada encarando o desconhecido.
1 143 - Há uma coisa que você pode fazer. Já que ele está acordado e lúcido, talvez
possamos lhe dar algo para comer. Se houver uma sopa pronta, acho que ele tomará, se
for dada por você.
- Ah, mas claro. Eu vou buscar - disse ela, saindo às pressas, procuran do disfarçar
o embaraço. Ao surgir lá fora, deu com Roshario tentando falar com Jondalar que, apesar
da falta de jeito, procurava ter um ar afável. Ela então tomou a enfiar-se dentro da
barraca para completar o serviço que esquecera de fazer.
- Eu vim pegar os baús deles e Roshario quer saber quando Thonolan poderá ser
removido.
- Como é que você disse que ele se chama?
- Thonolan. Foi esse o nome que o outro me falou.
- Diga a Roshario que dentro de um ou dois dias. Ele ainda não está em condiçóes
de enfrentar uma viagem por águas turbulentas.
- Como é que você sabe o meu nome, linda donii? E como é que vou perguntar o
seu?
Ela, antes de sair com os baús, virou-se para Thonolan, dando-lhe um sorriso. Ele,
sorrindo satisfeito, acomodou-se na cama. Foi então que levou um susto, reparando pela
primeira vez na figura de cabelos brancos do curan deiro, exibindo um rosto enigmático,
com um sorriso que ao mesmo tempo conseguia ser felino, inteligente, compreensivo e. .
- malévolo.
- Que coisa maravilhosa o amor jovem - comentou o shamud.
O significado das palavras Thonolan não compreendeu, mas não lhe pas sou
despercebido o sarcasmo e a ironia com que foram ditas.
O tom da voz do curandeiro não era nem alto nem baixo. Thonolan olhou para ele,
procurando alguma pista no modo de vestir e no jeito de ser que indicasse se estaria ele
diante de uma mulher com voz de tenor alto, ou se de um homem com voz de contralto
baixo. Ficou na mesma. No entanto, sem saber exatamente por que, relaxou-se,
confiante, sentindo que em melhores mãos não poderia estar.
O alívio de Jondalar ao ver Jetamio saindo da barraca com os baús foi tão visível
que ela ficou com remorsos por não ter feito isso antes. Ela não ignorava o problema
dele, mas, por outro lado, ele lhe parecia tão cômico. Jondalar, depois de agradecer com
uma profusão de palavras incompreensí veis, cujo sentido deu entretanto para perceber,
se dirigiu para o terreno atrás do matagal. Ao se ver com roupas secas, sentiu-se tão
melhor que chegou até a perdoar as risadas de Jetamio.
"Acho que estava parecendo meio ridículo com aquelas calças molha das e frias",
pensou. "Bom, a ajuda que nos estão dando compensa bem as risadinhas dela.. . mas o
que eu não entendo é como souberam que estávamos aqui? Talvez o curandeiro tenha
também outros poderes. . . isso explicaria.
Por enquanto já me dou por muito satisfeito com os seus poderes de curar." Ele se
deteve por um momento. "Pelo menos esse poder acho que ele tem. Ainda não vi
Thonolan, nem sei se ele está melhor ou não. Já é tempo de descobrir. Afinal de contas,
é meu irmão. Eles não me podem impedir se eu quiser vê-lo.”
Ele voltou ao acampamento e deixou o seu baú perto da fogueira. Com cuidado,
propositalmente devagar, estendeu as roupas para secar. Isso feito, encaminhou-se para
a barraca.
Por pouco não deu um encontrão no curandeiro que saía no instante em que ele se
agachava para entrar, O shamud passou-lhe um rabo de olho, sorriu-lhe sedutoramente,
pôs-se de lado e, com um gesto de exagerada deli cadeza, inclinou-se diante da figura
atlética de Jondalar, cedendo-lhe a passa gem.
Jondalar olhou com curiosidade para o curandeiro. Não havia a menor sombra de
humildade nos penetrantes olhos que também o olhavam curiosos, e, se outros
propósitos houvessem, estes se revelavam tão obscuros quanto a própria ambigüidade
da cor deles. O sorriso que, ã primeira vista, lhe dera a impressão de sedutor, na verdade
era sobretudo irônico. Jondalar sentiu que aquele, como muitos outros da mesma
profissão, podia ser tanto um ami go extremado como um perigoso inimigo.
Ele concordou com a cabeça, como se reservasse para si o direito de to mar a
decisão. Deu-lhe um sorriso de agradecimento, e entrou. Ficou surpre so ao ver que
Jetamio chegara na sua frente. Ela apoiava a cabeça de flono lan, ao mesmo tempo que
segurava uma cuia de osso junto aos lábios dele.
- Já devia ter previsto - falou Jondalar num sorriso que era pura ale gria, ao ver o
irmão acordado e aparentemente muito melhor. - Você conse guiu outra vez.
Os dois olharam para Jondalar.
- O que é que eu consegui, meu irmão?
- Mal abriu os olhos e já conseguiu que a mulher mais bonita do lugar fosse servi-lo.
O riso de Thonolan foi a visão mais linda que Jondalar já teve na vida.
- Você tem razão quando diz que é ela a mulher mais bonita do lugar Thonolan deu
um olhar temo para Jetamio. - Mas o que você está fazendo no mundo dos espíritos?
Veja lá, enquanto eu estiver com um pé nele, lem bre-se de que ela é a minha donii
pessoal. Guarde esses olhos azuis para você, Jondalar.
- Não se preocupe comigo, irmãozinho. Todas as vezes que ela olha para mim, a
única coisa que faz é rir.
- Para mim, ela pode rir o quanto quiser - disse Thonolan, dando para a moça um
sorriso que foi prontamente devolvido. - Você já imaginou acordar 145 1 144 do sono da
morte com um sorriso deste? - enquanto ele a fitava nos olhos, aquilo que parecera
ternura transformara-se em adoração.
Jondalar olhava ora para um, ora para outro. "O que está acontecendo aqui?
Thonolan mal acabou de acordar. Esses dois não podem ter trocado uma palavra um
com o outro, mas juro que o meu irmão está apaixonado." Ele olhou novamente para
Jetamio, agora mais objetivamente.
Os cabelos dela tinham um tom indefinido, mais para o castanho-claro, e ela era
menor e mais magra do que as mulheres por quem em geral Thono lan se sentia atraído.
Poderia quase ser confundida com uma criança: Tinha o rosto em forma de coração,
traços regulares e, na realidade, era uma moça de aparência um tanto comum. Bonita,
mas não excepcionalmente. - - bem, enquanto não sorrisse.
Então sim. Por alguma inexplicável alquimia, por algum misterioso jogo de luzes e
sombras, por alguma sutil transformação no conjunto, ela se torna va linda, bela da
cabeça aos pés. Era tão completa a transformação que o pró prio Jondalar a havia
considerado- como uma mulher bonita. Ela tinha apenas de sorrir para criar essa
impressão, embora ele pressentisse que o riso não fos se nela muito freqüente. Ele
lembrou-se que, no princípio, lhe dera a impres são de uma moça séria e tímida, no
entanto, vendo-a lá, dificilmente se acredi. taria nisso. Mostrava-se radiosa, vibrando de
vida e Thonolan a contemplava com um sorriso idiota, totalmente embevecido.
"Bom, o meu irmão já esteve outras vezes apaixonado", disse Jondalar para si
mesmo. "Espero que ela não leve a coisa muito a sério quando chegar o momento de
partirmos.”
Um dos cordões que mantinha fechado o buraco para a saída da fumaça no teto da
barraca estava arrebentado. Jondalar olhava pela abertura, mas sem prestar atenção.
Achava-se bem desperto, deitado em seu saco de dormir, perguntando-se o que o teria
tirado tão de repente das profundezas de seu sono. Estava inteiramente imóvel, mas
ouvindo e cheirando, tentando detec tar qualquer coisa fora do comum que o tivesse
alertado para um possível e iminente perigo. Passado algum tempo, escorregou para fora
do saco de dor rnir e olhou com atenção pelo buraco da barraca, mas não viu nada de
anor mal.
Algumas pessoas se reuniam ao redor da fogueira do acampamento. Ele se
aproximou, ainda sentindo-se inquieto e tenso. Alguma coisa o incomoda va, mas ele não
sabia o quê. Thonolan? Não. Este, entre os sábios cuidados do shamud e a dedicada
atenção de Jetamio, estava cada vez melhor. Não, não era Thonolan a causa de sua
inquietação. . . não propriamente.
- Olá - falou ele para Jetamio, quando ela levantou os olhos, sorrin do-lhe.
146 Ela já não o achava tão risível. A preocupação comum com Thonolan os unira e
se transformava numa boa amizade, embora a comunicação se limi tasse a uns tantos
gestos básicos e a algumas palavras aprendidas por ele.
Ela lhe deu uma cuia contendo um líquido quente. Ele agredeceu com as palavras
cujo sentido já sabia, e que expressavam a idéia de gratidão. Dese java encontrar uma
forma de retribuir a ajuda e a gentileza daquela gente. Be beu um pouco do líquido,
fránziu o rosto e depois tomou mais. Era um chá de ervas, não desagradável, mas
diferente. Em geral, tomavam pela manhã um caldo com gosto de carne, O seu olfato lhe
dizia que o caixote de madei. ra fumegando perto da fogueira continha raízes, cereais e
nada de carne. Um simples olhar bastava para explicar o porquê da mudança na
alimentação. Não havia carne, ninguém até então safra para caçar.
Ele tomou de uma só vez a beberagem, botou a cuia no chão e se apres sou a voltar
para a barraca. Durante aquele tempo em que estava à espera, ha via terminado as
lanças de amieiro, inclusive apontando-as com cabeças de sí lex. Depois de apanhá-las
no fundo da barraca e de retirar de dentro de seu baú diversas lanças de arremesso,
voltou para a fogueira. Embora não falasse, não era difícil dar a entender que estava
pretendendo caçar e, antes que o sol estivesse pouco mais alto no céu, um animado
grupo de caçadores já se havia formado.
Jetamio se sentia dividida. Queria ficar com o rapaz de olhos sorriden tes que lhe
dava vontade de sorrir todas as vezes em que ele olhava para ela e, ao mesmo tempo,
gostaria de participar dá caçada. Podendo, nunca perdia uma caçada, pelo menos desde
que se sentiu apta a caçar. Roshario a incenti vava.
- Vá, Tamio, ele está bem. Ë só por pouco tempo. O shamud dá conta de cuidar do
rapaz sozinho. E depois, eu estou aqui.
O grupo já havia partido, quando Jetamio surgiu, correndo sem fôlego, ainda
amarrando o capuz. Jondalar ficara curioso por saber se ela caçava. As mulheres
Zelandonii freqüentemnte o faziam. Era uma questão que ficava a critério da mulher ou
que se fazia segundo o costume da Caverna. Em geral, depois que tinha filhos, ela ficava
mais em casa, exceto nas caçadas de rodeio. Nesse caso, elas e todos que se achavam
em boas condições físicas eram cha mados a participar da battue, a tática usada para
tocar os animais na direção das armadilhas ou levá-los às beiradas de precipícios.
Jondalar gostava de mulheres caçadoras, aliás como a maioria dos ho mens de sua
Caverna. Ele, no entanto, sabia que este não era um gosto uni versalmente
compartilhado. Diziam que as mulheres caçadoras davam melho res companheiras por
haver aprendido a dar valor às coisas difíceis. A sua mãe fora caçadora falada,
principalmente pelas suas proezas como rastreado ra, e mesmo depois de ter tido filhos,
freqüentemente participava de caçadas.
147 Eles esperaram Jetamio alcançá-los e, em seguida, se puseram a canil nhar em
passadas largas. Jondalar tinha a impressão de que a temperatura caí ra, mas no passo
em que iam não dava para ter muita certeia. Só sentiu real mente quando pararam ao
lado de um riacho que serpenteava pela planície relvosa, em busca das águas da Mãe.
Ao encher o odre, ele notou a camada grossa de gelo que se formara na beirada do
córrego. A película ao redor do rosto limitava-lhe a visão dos lados e ele puxou o capuz
para a nuca, mas den tro de pouco tempo não era o único a puxar de volta o capuz para
cima da cabeça. O vento penetrava, entrando pela pele.
Alguém deu com o rastro de um animal, no sentido de montante, e to dos se
reuniram ao redor das marcas, enquanto Jondalar as examinava. Uma família de
rinocerontes também havia parado ali para tomar o seu gole de água há pouco tempo.
Com um pau, Jondalar desenhou na areia molhada da margem um plano de ataque. Ele
notou que os cristais de gelo começavam a empedrar no solo. Dolando, desenhando
também com um pau, fez-lhe uma pergunta que Jondalar respondeu colocando alguns
rabiscos a mais em seu desenho. Uma vez entendidos, todos se mostraram ansiosos
para se porem no vamente a caminho.
Com andar vivo e bem ritmado, começaram a seguir a trilha do animal. Logo as
passadas rápidas os aqueceram e os capuzes outra vez foram afasta dos. Os longos
cabelos louros de Jondalar estalavam com a ventania e se agar raram à pelúcia de seu
capuz. Estava custando muito mais do que ele imagi nava para alcançar os bichos.
Quando, por fim, avistaram as enormes massas de lã cor de acaju, ele entendeu por que.
Os animais se deslocavam muito mais rapidamente do que o normal, indo direto para o
norte.
Jondalar, preocupado, olhou para cima, O céu era como uma imensa taça azul
emborcada por cima de suas cabeças, apenas com algumas nuvens espaçadas ao longe
- Nada levava a crer que uma tempestade armava-se. Ele, no entanto, estava pronto para
voltar, pegar Thonolan e partir. Só que nin guém parecia com disposição de ir embora,
principalmente depois da visão dos rinocerontes. Jondalar se perguntava se faria parte do
acervo de conhe cimentos daquela gente e previsão de nevascas a partir da emigração
para o norte dos animais lanudos. Talvez fizesse, mas duvidava.
A idéia de caçar fora sua e seria difícil para ele dizer que agora estava desejando
voltar para junto de Thonolan e deixá-lo a salvo. Como explicar, sem saber a língua, que
uma tempestade estava a
caminho, quando o céu se encontrava praticamente limpo de nuvens? Abanou a
cabeça desistindo. Te riam, primeiro, que matar um rinoceronte.
Quando se aproximaram mais, Jondalar correu à frente, querendo ul trapassar um
rinoceronte que ia atrás desgarrado, tini animal ainda jovem, não de todo adulto, com
dificuldade de seguir junto com os outros. Ao saltar na frente do bicho, Jondalar gritou,
agitando os braços, tentando atrair a sua atenção, de modo a desviá-lo do caminho, ou
pelo menos atrasar-lhe a mar cha. Mas o animal o ignorou, prosseguindo em frente, rumo
ao norte, com a mesma firme obstinação que os seus companheiros. Parecia que iam ter
pro blemas se quisessem desviar um daqueles bichos. Ele estava preocupado. A
tempestade se aproximava mais rápido do que tinha imaginado.
Surpreso, viu com o rabo dos olhos que Jetamio o alcançara. O seu an dar manco
tornara-se mais visível, mais ela se locomovia com presteza. In conscientemente,
Jondalar balançou a cabeça num gesto de aprovação. O resto do grupo também se
aproximava do campo de batalha, procurando cer car um só animal e pôr os outros para
correr. Mas rinocerontes não são como certos animais de pastagem que andam aos
bandos, gregários, fáceis de serem conduzidos ou espantados, cuja segurança e
sobrevivência dependem do ta manho da manada. Os rinocerontes são animais
independentes, rabugentos, quase nunca compondo um grupo maior do que o da família,
e perigosamen te imprevisível. Com eles, o caçador inteligente sabe que tem de ser
precavido.
Por consentimento tácito, os caçadores se concentraram no animal jo vem vindo
atrás. Mas nem as suas corridas, nem os gritos o faziam alterar o rit mo da marcha rumo
ao norte. Jetamio, por fim, conseguiu atrair-lhe a aten ção, tirando o capuz e agitando-o
no ar. O bicho então diminuiu as suas passa das e virou a cabeça na direção dela,
parecendo realmente indeciso.
Isso deu ensejo para que os caçadores o alcançassem. Aqueles com lanças mais
pesadas seguiam o animal mais de perto e os outros, com dardos leves, formavam um
círculo por fora, prontos para partir, se necessário, em defesa da linha de frente. O
rinoceronte parou, parecendo não se dar conta de que os seus companheiros
rapidamente se distanciavam. Pôs-se a caminho, sem muita pressa, na direção do capuz
balançando-se ao vento. Jondalar veio para mais perto de Jetamio e reparou que
Dolando fazia o mesmo.
Um rapaz que Jondalar reconheceu como um daqueles que amarraram o barco,
acenando também o capuz, passou-lhe à frente, O rinoceronte, con fuso, interrompeu a
corrida desembestada que fazia na direção de Jetamio e deu uma guinada para partir
para cima do homem. Aquele era um alvo maior, fácil de ser seguido, mesmo com uma
visão limitada como a sua. A presença de tantos caçadores o desnorteava, atrapalhando
o seu excelente faro. No mo mento em que ele estava para chegar perto, uma outra
figura em movimento saltou à sua frente, O bicho novamente empacou, tentando resolver
qual dos dois alvos se mexendo iria seguir.
Ele mudou de direção, investindo contra o segundo, tão tentadoramen te perto. Mas
então outro caçador entrou em cena agitando uma enorme capa de pele, e quando ele ia
proximando-se mais um outro passou correndo, tão junto que chegou a dar um puxão na
lã avermelhada de sua cara-O rinoceronte, 1 l 3 148 149 cada vez mais confuso,
mostrava-se enfurecido, com uma raiva assassina. Bufa va, dava patadas no chão, e ao
ver mais uma daquelas desconcertantes figuras movediças, lançou-se a toda velicidade
contra ela.
Era o rapaz que pertencia à população ribeirinha e estava tendo difi culdade em não
se deixar apanhar pelo animal. Quando ele virou de direção, o rinoceronte também virou,
saindo velozmente em sua perseguição. Mas o bicho começava a dar sinais de cansaço.
Vinha correndo de lá para cá, atrás de uma, atrás de outra daquelas irritantes figuras que
lhe passavam pela fren te, nunca conseguindo apanhá-las. Por fim, quando mais um
caçador agitan do o capuz atravessou-lhe a frente, ele parou, de cabeça baixa, com o
imenso chifre dianteiro quase arrastando no chão. A atenção estava voltada para o vulto
que se movia capengando, pouca coisa fora de seu alcance.
Jondalar correu com a lança empunhada para o alto. Era preciso matar o rinoceronte
antes que ele recobrasse o fôlego. Dolando aproximou-se tam bém com o mesmo
propósito, enquanto os outros fechavam o cerco. Jetamio balançava o capuz, chegando
cautélosa para perto do animal, tentando manter presa a sua atenção. Jondalar esperava
que a ap%réncia de cansaço do bicho fosse verdadeira.
Todos tinham o pensamento concentrado em Jetamio e no rinoceronte. Jondalar -
sem saber por que - olhou para o norte, talvez percebendo com o canto dos olhos a
sombra de um movimento nessa direção.
- Cuidado! - gritou, correndo em frente. - Olhem para lá - dizia apontando para o
norte. - Um outro rinoceronte!
O seu comportamento, no entanto, parecia inteiramente fora de propó sito. Ninguém
entendia o que ele dizia e nem via a fúria com que o outro ri noceronte vinha, correndo
diretamente para cima deles.
- Jetamio, Jetamio! Olhe para o norte! -. gritou novamente, agitando o braço e
apontando com a lança.
Ela olhou na direção em que Jondalar apontava, dando um grito de avi so para o
rapaz que parecia ser o alvo da fêmea. Esquecendo por momento o rinoceronte que
caçavam, todos correram em socorro do outro. De repen te, o filhote de rinoceronte,
talvez por já estar descansado, ou então por se sentir encorajado pelo cheiro da fêmea
de sua espécie, arremessou-se contra a pessoa que lhe acenava com um capuz,
provocando-o tão de perto.
A sorte de Jetamio foi justamente estar tifo perto. Com isso, o animal não teve tempo
de ganhar velocidade. O seu bufado no momento em que ele partiu para o ataque trouxe
de volta a atenção dela e a de Jondalar. Jetamio lançou-se para trás, conseguindo
desviar-se da chifrada e passou a correr atrás do bicho.
O rinoceronte diminuiu a carreira, procurando pelo alvo que lhe escapa ra e sem
focalizar os olhos no vulto do homem alto que, com grandes passadas, se aproximava
dele. Então, foi tarde demais, O pequenino olho já não pôde focalizar mais nada. Jondalar
cravara a sua pesada lança na vulnerável abertu ra, enfiando-a até o cérebro. No instante
seguinte, a visão acabou de sumir completamente com a lança de Jetamio enterrada no
outro olho. O animal pareceu surpreso, depois cambaleou e caiu sobre os joelhos.
Quando a vida deixou de sustentá-lo, tombou.
Ouviu-se um grito e dois dos caçadores levantaram os olhos, correndo, em
diferentes direções. A fêmea vinha disparada para pegá-los, mas diminuiu a corrida ao
passar perto do filhote caído. Ainda deu mais uns passos adiante, depois veio para junto
do animal tombado na terra com uma lança espetada em cada olho. Ela cutucou.o com o
chifre, incentivando-o a levantar-se. Virou, então, de um lado para outro, pôs o peso do
corpo sobre as patas da direita, depois sobre as da esquerda, parecendo querer tomar
uma resolução.
Alguns dos caçadores tentavam despertar-lhe a atenção, balançando à sua frente os
seus capuzes e capas, mas ela não os via, ou talvez preferisse ignorá-los. Cutucou de
novo o filhote caído, mas então, atendendo a algum instinto superior, virou-se novamente
na direção do norte.
- Pode acreditar, Thonolan. Foi por pouco. Felizmente aquela fêmea estava mesmo
decidida a ir para o norte. . . ela não tinha a menor intenção de ficar para trás.
- Você acha que a neve está para chegar? - perguntou 'l'honolan, olhando para o
seu curativo e depois para a expressão preocupada de seu irmão.
Jondalar balançou a cabeça afirmativamente.
- O problema é que não sei como dizer a Dolando que devemos sair da qui por
causa de uma tempestade que não se vê nem sombra no céu. E mesmo que soubesse
falar, não sei se eles iriam compreender.
- Há dias que venho sentindo cheiro de neve. A tempestade que se está formando é
das grandes.
Jondalar sentia que a temperatura continuava a cair e teve certeza disso na manhã
seguinte quando partiu uma película de gelo formada em cima do chá que ficara
esquecido numa cuia perto da fogueira. Outra vez, ele ten tou expressar a sua
preocupação, aparentemente sem êxito e, nervoso, ficava vigiando o céu à procura de
indícios mais precisos sobre a mudança do tem po. Se não fosse pelo perigo iminente,
teria até ficado feliz se visse nuvens pe sadas despejar a sua carga de gelo sobre as
montanhas.
Ao primeiro sinal de que estavam levantando acampamento, ele desar mou a
barraca e arrumou os dois baús, o dele e o de Thonolan. Dolando, ao ver-lhe a presteza,
sorriu, fazendo um gesto de aprovação. Em seguida, apon tou para a margem do rio. O
sorriso, no entanto, era nervoso e o olhar de preocupação. Jondalar ficou ainda mais
apreensivo ao ver as águas se revol 150 151 vendo em redemoinhos e a barcaça
sacudindo-se com os trancos e esticando as cordas.
Alguns homens vieram pegar os baús, que foram acomodados perto da carcaça do
rinoceronte, congelada e cortada em pedaços. As suas expressões mostravam-se mais
tranqüilas, mas Jondalar não as achou também encoraja doras. Entretanto, jor mais
ansioso que estivesse para partir, não se sentia nem um pouco confiante no meio de
transporte que iam usar. Ele não tinha idéia de como fariam para colocar Thonolan dentro
do barco. Voltou, então. Talvez pudesse ser útil em alguma coisa.
Sabendo que em certas ocasiões a melhor ajuda que se pode dar é sim plesmente
não atravancar o trabalho dos outros, ele ficou apenas observan do, enquanto o
acampamento era desarmado com rapidez e eficiência. Ago ra começava a reparar em
certos detalhes no vestuário que diferenciavam aqueles que armaram as barracas em
terra, que se referiam a si mesmos como shamudoi, dos outros - os ramudoi - que tinham
permanecido no barco. No entanto, não pareciam formar duas tribos diferentes.
Havia intimidade, muita brincadeira entre os homens, nada daquelas cortesias
cerimoniosas que expressam tensões latentes quando diferentes po vos se encontram.
Pareciam falar a mesma língua, faziam as refeições em co mum e trabalhavam em
conjunto. Reparou ainda que, em terra, o encarrega do parecia ser Dolando, enquanto no
barco os homens se voltavam para um outro, quando desejavam obter instruções.
O curandeiro saiu da barraca seguido de dois homens carregando Tho nolan numa
engenhosa padiola. Dois troncos saídos do bosque de amieiros sustentavam uma rede
feita com cordas trazidas da barcaça à qual Thonolan estava firmemente atado. Jondalar
correu para eles, reparando que Roshario começara a desarmar a tenda circular. Os
olhares dela para o céu e na dire Á ção do rio convenceram Jondalar que estava tão
temerosa da viagem quanto ele.
\37J / - Aquelas nuvens parecem carregadas de neve - falou Thonolan, quan do o
seu irmão se pôs a andar junto dele, ao lado da padiola. - Não dá para 7! ver nem os
cumes das montanhas. Um pouco mais para o norte já deve estar fi nevando. Pode crer.
Nessa minha nova posição se tem outra visão do mundo.
Jondalar olhou para as nuvens que se revolviam sobre as montanhas, es condendo
os picos gelados e embolando-se umas sobre as outras na pressa de preencher todo o
espaço azul. A expressão carregada de Jondalar e o seu ce nho franzido, cheio de
preocupação, eram tão ameaçadores quanto o céu, mas ele procurava disfarçar o medo.
- L a sua desculpa para ir deitado? - falou, tentando esboçar um sorriso - Ao
chegarem ao tronco que se projetava para dentro do rio, Jondalar se afastou e ficou
observando dois barqueiros equilibrando-se com as suas cargas por cima da tora
balançando e depois subindo, com a maca levantada para o alto, a escadinha parecendo
ainda mais precária. Compreendeu, então, por que Thonolan fora tão bem amarrado. Ele
seguiu atrás, com certa dificul dade para equilibrar-se e olhou cheio de admiração para os
homens da barcaça.
Alguns flocos brancos já começavam a cair quando Roshario e o sha mud
entregaram a dois ramudoi os couros e os paus da tenda embrulha da como uma trouxa
e, em seguida, eles próprios atravessaram o tronco. O mesmo espírito do céu refletia-se
no rio: turvo, revolvendo-se em ondas vio lentas, com a umidade acumulada nas
montanhas cada vez mais se fazendo sentir nos terrenos ribeirinhos.
A tora balançava-se com movimentos diferentes ao do barco. Jondalar inclinou-se
sobre a amurada e estendeu a mão para Roshario, que a aceitou com olhar agradecido.
Por um triz ela não despencava do último degrau da prancha e caía dentro da água. O
shamud tampouco teve escrúpulos de aceitar a ajuda e também deu um olhar de
agradecimento a Jondalar, tão sin cero quanto o de Roshario.
Um homem ainda se achava na margem. Ele soltou a amarra, correu pelo tronco e
subiu a bordo. A escadinha foi em seguida rapidamente reco lhida. A barcaça ainda
ancorada tentava desprender-se para seguir junto com as correntezas. Estava contida
apenas por uma corda e os remos de cabos compridos empunhados pelos homens. Com
um puxão brusco, a corda foi solta e a embarcação depois de um sacolejo forte buscou a
sua liberdade. Jondalar se agarrava firme à amurada, enquanto ela aos trancos ganhava
a correnteza principal da bmã.
A tempestade rapidamente avolumava-se e os flocos redemoinhando em volta
diminuíam a visibilidade. Restos e objetos variados viajavam com eles, flutuando em
diferentes velocidades: pesadas toras encharcadas, rama gens enredadas umas às
outras, cadáveres inchados de água e, de vez em quando, algum pequeno monte de gelo
que fazia Jondalar pensar numa pos sível colisifo. Ele observava a margem deslizando
diante de seus olhos, quan do a sua atenção foi atraida para o grupo de amieiros no alto
do morro. Alguma coisa, amarrada a uma das árvores, balançava-se com o vento. Uma
rajada súbita desprendeu-a e a carregou na direção do rio. Enquanto voava, ele reparou
no couro duro, cheio de manchas escuras. Era a sua túnica de verão. Teria ficado todo
esse tempo balançando-se no alto da árvore? A túni ca ainda flutuou por algum tempo até
que ficou completamente encharcada e afundou.
Thonolan fora desamarrado da padiola e apoiado contra a amurada do barco.
Estava pálido, sofrendo e com medo, mas sorrindo valentemente para Jetamio, ao seu
lado. Jondalar com a expressão carregada, recordando-se de seu medo e pânico, veio
acomodar-se perto dos dois. Depois, lembrou-Se 152 153 de sua enorme alegria quando
pelaprixneiravez avistou o barco. "Como teriam sabido que ele se achava lá?", perguntou-
se novamente. De repente ocorreu-lhe uma idéia. "Teria sido a túnica voando ao vento
que lhes indicou a sua posi ção? Mas como sabiam que tinham de vir? E sobretudo de vir
com o shamud?”
A violência das correntezas sacudia a barcaça de um lado para outro. Jondalar,
intrigado com a sua solidez, pôs-se a examinar a construçffo. O fun do do barco era uma
peça sólida, mais larga na parte central e feita do tronco inteiro de uma árvore. O seu
tamanho aumentava com fileiras de tábuas imbri cadas e amarradas umas às outras, que
alargavam o fundo e subiam formando os lados juntados na proa. Ao longo das
amuradas, em espaços regulares, foram colocados suportes para as tábuas que serviam
de assentos aos remado res. Três deles achavam-se na frente, no primeiro banco.
O olhar de Jondalar, enquanto acompanhava a estrutura do barco, pas sou sem ver
por um tronco que se chocara contra a proa. Ele então voltou a olhar, sentindo o coração
bater forte. Próximo à frente do barco, em meio ao emaranhado dos galhos saídos do
tronco, estava a sua túnica de couro com manchas escuras de sangue - seja esganada,
Huiin - falou Ayla, observando a potranca lamber as últimas gotas de água no fundo de
um balde de madeira. - Se você beber tudo de uma vez só, vou ter de derreter mais gelo -
o animal relinchou, abanou a cabeça, e meteu o focinho novamente no bal de. Ayla riu. -
Se está com tanta sede assim, vou pegar mais gelo. Você vem comigo?
Já se tomara um hábito expressar os seus pensamentos para o cavalinho. Às vezes
eram simplesmente imagens mentais e quase sempre relatadas na ex pressiva língua
construída com gestos, posturas e expressões faciais, mas como o animal se mostrava
mais propenso a escutá-la quando lhe ouvia algum som, isso a encorajava cada vez mais
a verbalizar as sua conversas com ele.
Para ela, diferentemente das pessoas dos clffs, sempre fora fácil emitir uma
variedade de sons e inflexionar a voz. Apenas o seu filho tinha essa mes ma facilidade.
Constituíra-se numa brincadeira dos dois um imitar o outro nas sílabas sem sentido que
diziam. Algumas destas, inclusive, passaram a ter sig nificado para eles. Em suas
conversas com a potranca, entretanto, as verba lizações cada vez mais se tomavam
complexas. Ela imitava a voz dos animais, inventava palavras, usando novas
combinações de sons e até algumas das síla bas sem sentido das brincadeiras com o
filho foram incorporadas. Sem nin guém lá para lhe lançar olhares reprovadores - pois
sons desnecessários não eram coisas de gente educada - o seu vacabulário expandia-se
, mas construin do uma língua compreendida somente por ela e, num certo sentido, pelo
cavalo.
Ayla colocou as perneiras, enrolou-se na pele da égua, pôs o capuz de carcaju e
amarrou as luvas. Isso feito, enfiou a funda na cintura, atou o cesto às costas, e apanhou
o furador de gelo - um osso saído da pata dianteira de um cavalo, no qual ela fez uma
rachadura espiralada para retirar o tutano é, em seguida, afiado com uma pedra. Saíram,
então.
-. Vamos, Huiin - acenou para a potranca, enquanto afastava o couro de auroque
que já servira como barraca e era agora uma cortina contra o vento, sustentada por
alguns paus enfiados no chão junto à entrada da caver na. O cavalo trotou atrás dela,
descendo os dois pelo escarpado caminho que levava à praia. O vento zunia na curva do
rio, fustigando-a duramente. Ela encontrou um lugar onde o gelo parecia-lhe fácil de ser
quebrado. O cristal ali, sob o impacto de seu furador, se desfez em pequenos blocos.
- É mais fácil encher um balde de neve do que cortar gelo para água, Huiín - falou
ela, enquanto punha os pedaços de gelo dentro da cesta. An tes de subir para a caverna,
fez uma parada para pegar um pouco mais da le nha arrastada para o sopé do paredão,
dando graças por dispor daquele ma deirame que lhe fornecia calor. - Os invernos aqui
são mais secos e mais frios também. Sinto falta da neve, Huiin. Não se pode nem dizer
que isso que cai aqui seja neve. Nesse lugar o que a gente sente é muito frio.
Ela empilhou a lenha perto da fogueira e descarregou o gelo dentro de um balde,
que deixou
próximo ao fogo. Precisava antes derreter o gelo, pois sem água no seu interior o
caldeirão de couro queimaria sobre o fogo. Depois, passou os olhos pela caverna, vendo
tudo em ordem e os diversos trabalhos já começados e em diferentes estágios de
complementação. Qual deles iria pegar naquele dia? Mas se sentia inquieta. Nada a
atraía. Reparou, então, nas várias lanças recentemente feitas e já prontas.
"Talvez saia para caçar", pensou. "Já faz tempo que não dou um pulo nas estepes.
Mas não adianta levar isso", franziu o rosto, "não serviria para nada. Nunca conseguirei
chegar perto de um animal para usar as minhas lanças. Vou levar só a funda. Darei
apenas uma caminhada." Ela encheu uma das dobras de sua roupa com pedras que
trouxera à caverna, precavendo-se para o caso das hienas voltarem, depois botou mais
lenha na fogueira e saiu.
I-luiín tentou acompanhá-la quando ela começou a caminhar pela íngre me subida
que ia da caverna às estepes. Mas a égua relinchou nervosa.
155 1- 9 154 - Não se preocupe, Huün. Não vou ficar muito tempo fora. Nada vai
acontecer a você enqu eu estiver longe.
Quando chegou ao topo da montanha, o vento quis agarrar-lhe o capuz e carregá.lo
para longe. Ela tornou a apanhá.lo e o amarrou apertado. Mas tou-se da beirada do
precipfcio e parou um instante olhando ao seu re dor. A paisagem crestada e ressequida
do verão, comparada com o vazio gela do e murcho das estepes no inverno, fazia um
quadro resp de vida. As rajadas de vento uivavam um lúgubre canto dissonante, silvando
lamúrias agudas que cresciam como um grito choroso e estridente para depois diminuir e
se converter num gemido cavernoso e abafado, O vento açoitava a terra nua, revolvendo
nas cavidades esbranquiçadas a neve seca e granulosa que lançava novamente para
cima, gelando ainda mais o ar.
Ay sentia a neve como grifos de areia batendo-lhe no rosto e ferindo a sua carne.
Ela apertou mais o capuz e com a cabeça abaixada caminhou contra o vento, pisando
sobre a relva quebradiça que vergava até o chio. O ar frio e seco absorvia a umidade
natural das mucosas, deixando-lhe o nariz e a garganta doloridos. lima rajada pegou-a de
surpresa. A respiração tapou e, su focada, tossia e chiava com a garganta tomada de
catarro. Ao cuspir, o seu es carro congelou-se antes de cair e ricochetear no chão.
"O que estou fazendo aqui?", disse para si mesma. 'Vou voltar, não imaginava que
fosse fazer um frio desses.”
Ela se virou e, por um momento esquecida do frio, ficou parada. Do outro lado da
ravina, ia, a passos lentos e pesadões, uma pequena manada de mamutes, arrastando
as suas enormes massas de pêlos castanho-avermelhados, com as compridas presas
arqueando-se para o alto. Aquela terra isolada, apa rentemente nua, era o habitat desses
animais. A áspera relva, quebradiça e queimada pelo frio, constituía-se no alimento que
os sustentava para a vida e, adaptado a tal ambiente, haviam perdido a capacidade de
viver em qual quer outro meio. Os seus dias estavam contados. Viveriam enquanto
durassem as geleiras.
Ayla, fascinada, ficou observando até que aquelas massas informes su nilasem
dentro dos torvelinhos de neve. Então apres em ir embora, feliz por se ver livre das
ventanias do lugar. Lembrou-se de que teve essa mesma sensação quando, pela
primeira vez, viu o seu abençoado vale. "O que seria de mim se não tivesse encontrado
essa caverna?" Chegando ao patamar de sua moradia, abraçou-se com a potranca.
Depois, foi até a borda do penhasco e olhou o vale a distâr Lá, a neve era pouco
profunda, acumulando-se principalmente nos lugares onde havia alguma barreira para os
ventos, mas não deixava de ser igualmente fria e seca.
O vale, entretanto, oferecia proteção contra as ventanias e lhe dera uma caverna.
Sem isso, e mais peles e fogo, não teria podido sobreviver. Ela não era um animal
revestido de p€los e lã. O vento trouxe aos seus ouvidos o uivo de um lobo e os latidos
secos dos dho Embaixo, uma raposa polar cruzou o rio congelado. A sua pele branca
quase a confundiu com o gelo quando, parou um momento, parou numa pose
sobranceira. No vaie qualquer coisa se movia. Claramente, ela distinguiu a forma de um
leão da caverna. O pêlo fulvo, farto e grosso, cintilava com um brilho quase branco. Os
predadores de quatro patas adaptavam-se ao ambiente de suas presas. Ayla e os de sua
espécie adaptavam o ambiente às suas necessidades.
De repente, ela se assustou ouvindo um grito cacarejado muito próxi mo. Olhando
para cima, viu uma hiena na borda da ravina. Ela estremeceu, le vando imediatamente a
mão à funda, mas o animal, no seu galope desajeitado, se afastou da beirada do
barranco, voltando pata as planícies abertas. Huiin aproximou-se, relinchando docemente
e a cutucando com o focinho. Ela apertou a potranquinha contra a pele de égua que
vestia, passou o braço ao redor de seu pescoço e entrou na caverna.
Deitada em sua cama de peles, Ayla olhava para as já muito conhecidas formações
da rocha sobre a sua cabeça, perguntando-se por que teria ela acor dado de repente.
Levantou a cabeça, olhando para Huiin. Os olhos da potran ca também estavam abertos
e olhavam na sua direção, mas sem dar mostras de preocupaçto. Na entanto, ela tinha
certeza de que havia qualquer coisa di ferente no ar.
Tornou novamente a se enroscar no meio das peles, sem querer sair de seu
aconchego. Pôs-se então a olhar, na luz que se filtrava pelo buraco em ci ma da entrada,
o lar que construíra para si. Os seus trabalhos começados acha vam-se espalhados pelo
chio, mas a pilha de ferramentas e utensílios já pron tos tinha crescido ao longo da
parede em frente ao secador. Ela sentia fome e os seus olhos se voltaram outra vez para
o secador, Havia despejado a gordu ra derretida do cavalo dentro dos intestinos, dando-
lhes nós a intervalos re guiares e, agora, uma porção de salsichas brancas se
penduravam junto das ervas e condimentos que secavam com as suas raízes voltadas
para cima.
Aquilo a fazia pensar na sua refeição matutina. Caldo de carne seca, com um pouco
de gordura para
ficar mais substancioso, temperos, talvez um pouco de cereal e, para terminar,
algumas frutas secas. Ela atirou para o lado as coberta Estava acordada demais para
ficar na cama. Enrolou-se rápido na capa de pele, calçou e apanhou a pele de lince na
cama, ainda quente com o ca lor de seu corpo. Apressou-se, então, em sair para urinar
num canto afastado no patamar em frente da caverna. Mas quando afastou a cortina que
vedava a entrada, prendeu a respiração.
Os contornos angulosos do patamar rochoso haviam sido, durante a noite,
suavizados por um grosso tapete branco que resplandecia num brilho 156 157 uniforme,
refletindo o céu azul e transparente, adornado de flocos de pelúcia branca. Ela precisou
de algum tempo para compreender a surpreendente mu dança na paisagem. O ar estava
parado.
O vale, aninhado na região onde as estepes continentais mais úmidas cediam
terreno para as secas estepes de loesse, possuía os dois climas predo. minantes no sul.
A neve espessa parecia com a que, em gera], caía nos arredo res da caverna do clã,
dando à paisagem um sabor de coisa conhecida.
- l-íuiin - chamou. - Venha cá! Nevou essa noite. Dessa vez, nevou de verdade!
De repente, lembrando da razão por que viera para fora da caverna, cor reu pelo
patamar, deixando as primeiras pegadas na superfície imaculadamen. te branca.
Enquanto voltava, reparou em 1-iuiin que, cautelosa, procurava pisar naquela substância
imaterial. A potranquinha abaixou a cabeça para cheirar e soltou um bufado na
estranheza do chão frio. Olhou para Ayla e re linchou.
- Ora vamos lá, l-Iuiin;Isso não machuca.
O animal até então nunca vira tamanha abundância de neve e naquela
profundidade. Por enquanto estava acostumado apenas com a que o vento so prava e
amontoava em determinados locais. Tentando novamente ensaiar al guns passos, ele
afundou os cascos e relinchou como se pedindo por ajuda. Ayla ficou guiando-o até que o
sentiu mais à vontade e o soltou. Depois, pôs se a rir do cavalinho, muito desajeitado,
que, vencido pela curiosidade natural e vontade de brincar, começou a caminhar
desengonçadamente Até aquele instante Ayla não se tinha lembrado de que estava com
muito pouca roupa para ficar tanto tempo do lado de fora. Fazia frio.
- Vou preparar um chá bem quente e alguma coisa para comer. Mas es tou com
pouca água. Vou ter de buscar gelo. . - Ora, basta que eu encha um balde de neve -
falou, rindo. - Que tal ummirigau quente essa manha, l-luiin?
Depois de comerem, Ayla vestiu-se com roupas quentes e saiu de novo. Sem vento,
a temperatura era quase amena, contudo o que mais a encantava era a visão conhecida
da neve cobrindo o chão. Ela encheu baldes e cestas e levou para dentro da caverna,
depositando perto da fogueira para que se der retesse. Era tão mais fácil do que quebrar
gelo que resolveu até usar um pou co para se lavar. Tinha o costume de banhar-se
regularmente no inverno com neve derretida, mas quando dispunha só de gelo, já era
muito duro ter de que brá-lo para cozinhar e beber. Banho era um luxo há muito
abandonado.
Alimentou o fogo com lenha apanhada da pilha no fundo da caverna, depois foi
retirar a neve que se achava por cima do monte de madeira posto de reserva no patamar.
"Seria bom se pudesse guardar água do mesmo jeito que faço com a le nha",
pensou, olhando para os recipientes cheios de neve derretendo-se. "O vento vai começar
a soprar novamente e ti sei quanto tempo essa vai du rar." Ela saiu para trazer outro
carregamento, levando um balde para retirar a neve que cobria a madeira. Depois do
balde cheio, despejou perto da pilha, re parando que a neve fizera um bolo com a forma
do recipiente. Por que não poderia guardar neve desse jeito? Empilhada da mesma
maneira que a lenha? Perguntava- se.
A idéia a deixou entusiasmada e logo tinha amontoado contra a parede próxima da
entrada uma boa quantidade de neve limpa, ainda não pisada. Em seguida, começou a
catar a que estava no caminho que levava à praia. Huiin, aproveitando-se da trilha feita,
desceu para o vale. Ayla tinha os olhos brilhan do e o rosto corado quando terminou,
sorrindo satisfeita para o monte de ne ve bem à sua mão, do lado de fora da caverna,
junto da entrada. Viu, então, um trecho na ponta do patamar que ainda não estava
inteiramente limpo e, cheia de disposição, dirigiu-se para lá. Ao olhar para o vale riu de
Huiin, muito graciosamente, passando por entre os montículos de neve.
Ao voltar os olhos para a sua pilha de neve, parou por instantes, botan do um sorriso
no canto dos lábios, enquanto pensava numa idéia extravagan te que lhe ocorreu. A pilha
de neve, feita de muitos bolos da forma do balde, sugeria, de onde se achava, os
contornos de um rosto. Ela apanhou um pouco mais de neve, aplicou-a em determinados
lugares e se afastou para ver o efeito.
"Se o nariz fosse um pouquinho maior ficaria igualzinho a Brim", pen sou, tornando a
pegar mais neve. Comprimiu onde achava ser preciso, câvou um pouco mais num
determinado ponto, aplainou uma saliência e voltou a se afastar para admirar asua obra.
Os olhos brilhavam -com uma expressão marota.
- Bom dia, Brim -. falou por gestos. Mas logo se sentiu arrependida. O verdadeiro
Brun não iria gostar de vê-la dando o nome dele a um montão de neve. Os nomes das
pessoas eram muito importantes para serem atríbuídos lii discriminadamente a qualquer
coisa. "Bom, mas está parecendo mesmo c&m ele", pensou, rindo baixinho. "Deveria
talvez ter sido mais cerimoniosa. Não fica bem uma mulher cumprimentar o chefe como
se ela fosse urna germana dele. Devia pedir antes permissão", observou, querendo
prolongar umpouco mais a brincadeira. Sentou-se em frente do monte de neve, olhando
para o chão, na postura que toda mulher clânica assumia quando precisava dirigir-se a
um homem.
Achando graça de sua encenação, se deixou ficar sentada em silêncio, com a
cabeça abaixada, tal como se de fato fosse sentir um tapinha no ombro, o sinal que
autorizava a mulher a falar. Mas o silêncio começou a pesar e o chão de pedra estava frio
e duro. Pensou, então, no rid da posição em que se achava. A réplica de Brun lhe tocaria
no ombro, tanto quanto o verda deiro Brim a tinha reconhecido, quando da última vez em
que ficara sentada 158 159 em sua frente. Ela fora amaldiçoada injustamente e queria
pedir ao antigo chefe que protegesse o seu filho da ira de Broud. Brun, no entanto, lhe
dera as costas. Ela já estava naquele momento morta. Subitamente, o seu espíritojo coso
desapareceu. Levantou-se e encarou o boneco de neve.
- Você não é Brun! - gesticulou furiosa, dando murros na parte que cuidadosamente
modelara. A raiva avolumava-se nela. - Você não é Brim! Você não é Brun! - dizia,
intercalando os gestos com pontapés e murros, des truindo inteiramente a forma do rosto.
- Nunca voltarei a ver Brim. Nunca mais irei ver Durc. E nunca mais tomarei também a ver
alguém na minha vida. Nunca, nunca mais! Estou sozinha - então escapou de seus lábios
um gemido alto, seguido de soluços desesperados. - Oh, por que estou tifo sozinha?
Ela caiu de joelhos e se deitou na neve, sentindo as lágrimas quentes es friarem
sobre o rosto. Começou, então, a embrulhar-se com neve, entregando- se ao frio úmido e
paralisante. Queria enterrar-se, deixar-se cobrir e congelar para sempre a sua dor, raiva e
solidão. Quando o corpo começou a tremer, fe chou os olhos e tentou ignorar o frio que
começava a penetrar-lhe nos ossos.
Foi então que sentiu algo úmido e quente no rosto e ouviu um suave re lincho de
cavalo. Quis também ignorar Huün. O cavalinho tomou a cutucá-la. Ela abriu os olhos,
dando com os da potranca, grandes e escuros e o seu com prido focinho. Esticou o
braço, passando-o ao redor do pescoço de Huiin e enfiou o rosto no meio da crina
emaranhada. Quando a soltou, t-Iuiin tomou outra vez a relinchar carinhosamente.
- Você está querendo que eu me levante, não é, Huiín?
O cavalinho moveu a cabeça para cima e para baixo, como se tivesse
compreendido, na verdade o que Ayla gostaria de acreditar. O seu instinto de
sobrevivência sempre fora forte e não seria o sentimento puro e simples de solidão que a
faria desistir da vida. Crescida no clã de Bri apesar de em muitos sentidos ter sido
amada, durante toda a sua vida havia sido uma pes soa sozinha. Ela era diferente. No
seu amor pelos outros estava a sua maior força. Saber-se necessária. Primeiro, Iza em
sua doença, depois Creb na velhi ce e por fim o seu filho haviam dado um propósito à sua
vida.
- Tem razão, Huiin, é melhor eu me levantar. Não posso deixá-la sozi nha. E estou
ficando toda molhada e morrendo de frio aqui. Vou vestir uma roupa seca e depois fazer
um bom mingau quente para você. E o que está querendo, não é?
Ayla observava dois machos de raposa polar rosnando e mordendo-se um ao outro,
numa luta pela posse da fêmea. Apesar de estar no patamar de sua caverna, a uma
grande altura, ela sentia o forte cheiro dos animais no cio. "Eles são mais bonitos no
inverno. No verão ficam marrom, perdem a graça. & eu quiser uma pele branca, tenho de
consegui-la agora", pensou.
160 No entanto, não fez menção de pegar a funda. Um dos machos saíra vitorioso e
reclamava o seu prêmio. A fêmea proclamou-lhe o feito com um berro rou co no momento
em que ele trepou sobre ela.
"Só quando se juntam dessa maneira é que a fêmea solta esse grito. Ti. titia vontade
de saber se ela gosta de fazer isso. Ou será que não? Eu nunca gostei, mesmo depois
que deixou de doer. Mas as outras mulheres gostavam. Por que era eu tão diferente?
Será que foi simplesmente por não suportai Broud? Mas esse fato füria tanta dikrença?
Será que aquela fêmea gosta do macho? Gosta do que ele faz? Pelo visto, não pensa em
fugir.”
Aquela não era a primeira vez em que Ayla deixava de caçar para ficar observando
raposas ou outros animais carnívoros. Muitas vezes havia passado longos dias
espreitando as presas que o seu totem lhe permitira caçar, somen te para lhes conhecer
os, hábitos e o habitat. Descobrira que eram animais in teressantes e criaturas como ela.
Os homens do clã aprendiam a caçar exerci tando-se com animais herbívoros, aqueles
que comiam. Quanto aos carnívo ros, embora os caçassem quando queriam uma boa
pele, esses não eram as suas presas favoritas. Eles não haviam criado a relação multo
especial que Ayla estabelecera com as feras.
Apesar de conhecê-los bem, os carnívoros ainda continuavam a fasciná-la. No
entanto, naquele momento vendo as raposas - a sofreguidão do macho e os gritos da
fêmea - o seu pensamento se fixava em algo mais do que só ca çadas. "Todos os anos,
no fim do inverno, eles se juntam dessa forma", pen sou ela. "Na primavera, quando as
suas peles ficam marrons, a fêmea dá cria. Gostaria de saber se ela vai ficar aqui, metida
debaixo das pilhas de ossos e madeiras, ou se vai cavar uma toca em algum outro lugar.
Espero que fique. Primeiro, ela vai amamentar os filhotes, depois lhes dará comida de
bebês, bem mastigadas com a sua boca. Passada essa fase, ela começará a trazer ani
mais mortos. . ratos, toupeiras, pássaros, talvez algum coelho. Quando os filhotes
estiverem maiores, trará as presas vivas e vai ensiná-los a caçar. No ou tono, já vão estar
quase adultos, e no inverno que vem as fêmeas vão berrar igual a essa quando os
machos treparem nelas.”
"Por que fazem isso? Por que se juntam dessa maneira? Imagino que se ja para
fazer bebês. Se tudo que a raposa tivesse de fazer fosse engolir um es pírito, como dizia
Creb, então por que teria de se unir dessa maneira com o macho? Ninguém acreditava
que eu fosse ter filho. Diziam que o espírito de meu totem era forte demais. Mas eu tive.
Se a vida de Durc começou porque Broud fez isso comigo, pouco importava se o meu
totem fosse forte ou não.
"Mas as pessoas não são raposas. As mulheres não têm bebês só na pri mavera,
elas podem ter em qualquer época do ano. E nem se juntam só no in verno, fazem isso
no momento que quiserem. Talvez Creb tivesse um pouco de razão também. E possível
que o espírito do totem de um homem tenha de 161 entrar dentro da mulher. Só que não
é pela boca. Tenho a impressão de que ele entra quando um casal se junta através do
órgão do macho. Às vezes o to tem da mulher luta contra o esp frito masculino e às vezes
o órgão inicia uma nova vida.
"Acho que não quero uma pele de raposa polar. Se eu matar uma, todas as outras
irão embora e quero ver quantos filhotes essa vai ter. Ao invés disso, vou pegar o
arminho que vi no rio, antes que ele fique também marrom. A sua pele é branca, mais
macia e eu gosto da pontinha preta em seu rabo.
"Mas aquela doninha é tão pequena. A sua pele só dá para fazer uma lu. va e ela
também vai ter filhotes na primavera. No próximo inverno, provavel mente haverá mais
arminhos por aqui. Talvez eu não saia hoje para caçar e fi que terminando a bacia que já
comecei.”
Não ocorreu a Ayla perguntar-se por que pensava nos animais que esta riant no vale
no próximo inverno, quando ela planejava partir na primavera. Começava a acostumar-se
com a sua solidão, exceto à noite, quando chegava o momento de colocar mais uma
marca numa vareta que fazia parte de uma pilha, cada vez maior de outras já
inteiramente cobertas de ranhuras.
Com as costas da mão, Ayla procurou afastar do rosto uma mecha de cabelos
gordurentos e pegajosos. Naquele momento, não podia interromper o trabalho. Estava
dividindo a raiz de uma árvore, preparando as fibras para fa zer uma enorme cesta. Nos
últimos tempos andara experimentando novas téc nicas de tecer, empregando muitos
tipos de material que combinava diferente mente de modo a inovar as tramas e texturas.
Todo o processo de tecer, amar rar, laçar com cordões, fios e fibras absorvia-lhe
inteiramente o pensamento, tirando-a de tudo mais. Embora algumas vezes o resultado
final não prestasse, e às vezes ficasse até ridículo, ela havia conseguido belas criações
que a anima vam a empreender novas experiências. Constantemente supreendia-se
torcen do ou trançando quase tudo que lhe vinha às mãos.
Naquele dia, estava trabalhando desde cedo numa trama particularmen te intricada,
e só quando Huiin afastou com o focinho a cortina e entrou é que ela reparou que já
começava a entardecer.
- Como pôde o tempo andar tão depressa, Huiin? Nem água ainda bo tei no seu
balde - falou, levantando-se e esticando os músculos, cansada de estar muito tempo
numa posição só. - Devia
ter preparado alguma coisa para comermos. Bom, acho que vou fazer a minha
cama.
Pôs-se, então, em grande atividade - Pegou feno fresco para Huiin, outro tanto para
botar sob as peles de sua cama, jogou o velho pela ribanceira sob o patamar, quebrou o
gelo formado acima da neve empilhada junto da entrada, dando mais urna vez graças por
ter tido aquela idéia. Mas reparou que já havia muito pouca neve. Perguntava-se quanto
tempo ainda duraria, sem precisar buscar água no rio. Hesitava em apanhar uma
quantidade grande que desse pa ra lavar-se. Depois, achando que poderia não teT outra
oportunidade até a pri mavera, resolveu pegar assim mesmo. Iria banhar-se e lavar os
cabelos.
A neve derretia nos baldes perto da fogueira, enquanto ela preparava e cozinhava a
comida, O pensamento voltara-se para a cesta com a intricada trama de fibras que tanto
a absorvia. Já alimentada e lavada, desembaraçava os cabelos molhados com os dedos
e um pauzinho, quando os seus olhos bate ram no cardo seco que usava para pentear e
tirar os nós das fibras vegetais. Foi o fato de estar sempre penteando a crina de Huiin que
lhe dera a idéia de usar os espinhos de cardo para desembaraçar fibras, e daí a usá-los
nos pró prios cabelos foi só um passo.
Ficou encantada com o resultado. A sua farta cabeleira dourada ficou sedosa e
macia. Até então, nunca prestara muita atenção aos seus cabelos, fo ra em algumas
ocasiões quando os lavava. Quase sempre usava-os partidos mais ou menos ao meio e
puxados para trás, presos atrás das orelhas. iza muitas ve zes lhe dissera que era o que
ela tinha de mais bonito, lembrou-se escovando- os para frente, observando-os à luz da
fogueira. "A cor é bastante bonita", pensou. "Mas ainda mais atraente é a textura dos fios,
longos e macios." E sem se dar conta, tomou um punhado, fazendo uma longa corda
trançada.
Amarrou uma tira de tendão na ponta e começou a trançar outro pu nhado de
cabelos. De repente ocorreu-lhe o pensamento do quanto as pessoas a achariam
estranha se a vissem naquele instante fazendo cordas com os pró prios cabelos. Mas
nem por isso desistiu. Em pouco tempo, tinha várias tran ças compridas penduradas.
Balançando a cabeça de um lado para outro, ria com a novidade da coisa, Gostava das
tranças, mas não podia botá-las atrás da orelha de modo a ter rosto descoberto. Depois
de algumas tentativas, achou uma maneira de enroscá-la e prendê-las no alto da cabeça,
mas como gostava de sacudi-las, deixou algumas caindo soltas do lado de trás.
No começo foi o sentido de novidade que a atraiu, depois por conve niência resolveu
conservar os cabelos sempre trançados. Assim, estariam no lugar, sem incomodá-la. Não
precisava ficar a todo instante prendendo os ca chos que se soltavam. E, depois, que
importância tinha se fossem achá-la es tranha? Podia fazer tantas cordas com o seu
cabelo quanto quisesse, não ha vendo ninguém ali que precisasse agradar a não ser ela
própria.
Não demorou muito para que Ayla deixasse de contar com a neve no patamar de
sua caverna, fflas deixara também de ser necessário quebrar gelo para água. Havia
muitos montes espalhados de neve. No entanto, a primeira vez que desceu para apanhá-
la, reparou que a neve embaixo da caverna tinha resíduos de fuligem e cinzas da
fogueira. Resolveu subir o rio, caminhando pe la superfície gelada, procurando um lugar
onde pudesse pegá-la limpa. Ao pas sar, entretanto, pela estreita garganta, a curiosidade
a levou para mais longe.
162 163 Nadando, nunca chegara até aquele ponto. As correntezas eram fortes, não
havendo necessidade de arriscar-se à toa. Andar, porém, não exigia esfor ços, a não ser
tomar cuidado com os passos. Ao longo da garganta - onde a queda da temperatura
surpreendera os jatos de água ou nas áreas de alta pres são atmosférica - o gelo
fantasiosamente criou uma terra de sonhos e magia. Encantada, olhava para as
estupendas formações sem imaginar ainda o que te ria pela frente.
Já estava andando há algum tempo e pensava em voltar. O fundo da gar ganta,
extremamente sombroso, era frio e o gelo contribuía ainda mais para a queda da
temperatura ali. Resolveu que caminharia somente até a próxima curva do rio. Mas
chegando lá, parou extasiada. Para além da curva, as paredes da garganta se uniam
formando uma muralha de pedra que se elevava até as estepes em cima e,jorrando do
penhasco, uma cascata congelada brilhava com fantásticas estalactites. Geladas e
brancas, duras como pedra, faziam uma es petacular versão de uma caverna vista de
cabeça para baixo.
A gigantesca escultura de gelo era emocionante em sua grandiosidade. Toda a força
das águas apanhadas pelas garras do inverno parecia prestes a abater-se sobre ela,
pasma, inteiramente tomada pela magnificência do espetá culo. O efeito era estonteante.
Ela teve um estremecimento diante daquele poder descomunal, contido em sua força.
Antes de se afastar, achou ter vistp uma gota de água faiscando na ponta de um dos
pingentes e sentiu o corpo arrepiar-se de pavor.
Ayla acordou com as rajadas frias de vento e olhou para a parede opos ta, junto da
entrada. A cortina batia contra o varal. Ela se levantou e, depois de consertá-la, ficou
alguns instantes sentindo o vento no rosto.
- Está mais quente, Ruim. O vento já não está tifo frio, tenho certeza.
O cavalo retesou as orelhas e olhou para ela na expectativa. Mas era só conversa.
Não havia nem gestos nem sons motivando-o a uma resposta. Ne nhum sinal pedindo-lhe
para aproximar.se ou se afastar. Nenhuma indicação de que a comida estivesse para
aparecer ou de que fosse ganhar algumas coça- delas ou tapinhas carinhosos. Ayla não
havia procurado intencionalmente educar o cavalo. Para ela, Huiin era como uma
companheira, uma amiga. Mas o inteligente animal passara a perceber que certos gestos
e sons sempre vi nham acompanhados de determinados atos e, a muitos, dava uma
resposta apropriada.
Ayla, pelo seu lado, também começava a entender a linguagem de Ruim O cavalo
não precisava falar com palavras. Ela estava acostumada a ler o senti do nas infimas
variações de posturas e expressões. Os sons sempre foram um aspecto secundário da
língua clánica e, agora, durante um longo inverno que os obrigou a uma aproximação
maior, impondo uma convivência muito próxi ma, ambos consolidaram um caloroso laço
afetivo e estabeleceram um alto ní vel de comunicação e entendimento. Quase sempre,
Ayla sabia quando Ruim estava alegre, feliz, nervosa ou preocupada, e ela correspondia
a esses sinais dando o que lhe estava sendo pedido: comida, água, carícias. Mas,
intuitiva- mente, a mulher assumiu o papel dominante, foi quem começou a dar ordens e
indicações precisas que suscitavam no cavalo um determinado tipo de res posta.
Junto da entrada, Ayla examinava as condições do pano de couro e os consertos
que se faziam necessários. Ela teria de fazer outros furos na parte de cima do pano,
embaixo dos que foram rasgados e depois enfiar através deles uma nova correia para
amarrar a cortina na travessa horizontal. Inesperada mente, uma coisa molhada pegou-
lhe na nuca.
- Não, Ruim. - - - falou, virando-se. O cavalo, no entanto, não se me xera de seu
lugar. Em seguida, sentiu um novo pingo de água batendo-lhe. Olhou ao redor e depois
para cima, para o comprido caramelo de gelo que se pendurava junto do buraco de sair
fumaça. A respiração e o vapor saido das panelas de cozinhar subiam, carregados pelo
calor da fogueira, e encontravam a aragem fria entrando pelo buraco, causando a
formação do gelo. O vento se co, entretanto, chupava a umidade, impedindo que as
estalactites se formas sem muito compridas. Durante todo o inverno, apenas uma
pequena franja de gelo decorou o teto nas proximidades do buraco.
Uma outra gota se desprendeu da ponta, caindo-lhe sobre a testa, antes que ela se
recuperasse da surpresa e se pusesse de lado. Então, enxugando a gota, soltou um
enorme viva de alegria.
- Ruim! Fluiin! A primavera está chegando. O gelo começa a derreter!
- ela correu na direção da potranca atirando os braços ao redor do seu pesco- coço
cabeludo e sossegando-a também do susto que lhe dera. - Ruim, logo as árvores vão
estar brotando e o verde aparecendo. Nada é tão bonito quanto as primeiras folhas da
primavera! Espere só para sentir o gosto do capim da pri mavera. Você vai adorar!
Correu para o patamar, como se esperasse ver um mundo verde e não branco. O
vento gelado rapidamente a fez voltar para dentro e toda a excita ção com os pingos do
gelo se derretendo se transformou em desalento quando a primavera retirou as suas
promessa e a pior nevasca da estação caiu alguns dias mais tarde, silvando furiosamente
através da garganta do rio. No entanto, a primavera, apesar do manto branco gelado,
vinha firme nas pegadas do in verno e o sopro quente do sol derretia a crosta gelada da
terra. As gotas de água realmente foram um prenúncio da transformação do gelo em
água no va le, só que numa quantidade como Ayla jamais podia ima Às primeiras gotas
do degelo, juntaram-se as chuvas de primavera que ajudaram a lavai a neve e o gelo
acumulados, levando umidade aos terrenos se- 164 165 cos das estepes. Entretanto, nifo
se tratava de simples acúmulos localizados, O rio, correndo pelo vale, tinha o seu
manancial em águas provindas das geleiras, e durante a primavera ele derretia e
ganhava vários tributários, muitos dos quais n existiam quando Ayla lá chegou.
Inundações repentinas em terras antes secas apanhavam de surpresa os animais
desavisados arrastando-os pelo rio abaixo. No tumulto das correntezas os cadáveres iam
sendo rasgados, retalhados, até que restassem apenas ossos. Às vezes as corredeiras
ignoravam os leitos antigos e abriam novos canais, arrancando pelas raízes e varrendo
para longe toda uma vegetaçffo que, duran te anos, lutara para sobreviver num meio
hostil. Pedregulhos, pedaços de ro cha, até mesmo grandes blocos eram arrastados junto
com entulhos pelas águas.
A montante da caverna de Ayla, as águas da alta catarata, aprisionadas na estreita
garganta do rio, revolviam-se tumultuosamente. A resistência au mentava a força das
correntezas e o excesso elevava o nível do rio. As raposas, alojadas debaixo da pilha de
ossos e madeira formada no ano anterior, haviam abandonado o seu covil muito antes
que a praia sob a caverna ficasse submersa.
Ayla nifo conseguia manter-se dentro da caverna. Do patamar observava o rio
redemoinhar espumosamente e subir todos os dias o seu nível. Os vaga lhões passavam
pela estreita garganta e batiam contra a ponta do penhasco, deixando no sopé parte da
carga de entulhos transportada pelas águas. Final mente, ela entendia como se alojara
naquele ponto a pilha de ossos, madeiras e pedras que tantos serviços lhe prestava, mas
dava graças por haver encontra do uma caverna fora do perigo das enchentes.
Ela sentia o patamar estremecer quando alguma árvore ou um bloco de pedra mais
pesado se chocava contra o penhasco. Ficava assustada, mas passa ra a ter uma visão
fatalista da vida. Se tivesse de morrer, era porque isso tinha de acontecer. De qualquer
modo, estava amaldiçoada e se esperava que já es tivesse morta. Havia forças mais
poderosas do que ela controlando o seu desti no. Se o penhasco desabasse enquanto
estivesse habitando as suas alturas, ela nada podia contra isso, além do que a natureza
violenta, brutal, exercia sobre ela enorme fascínio.
Nunca um dia tinha o mesmo aspecto que o outro. Uma das grandes ár vores
crescendo na frente do penhasco cedeu à força das enchentes, batendo ao cair contra o
patamar, para logo em seguida ser arrastada pela avalancha. Ela viu a árvore sendo
lançada ao redor da curva pelas correntezas que se es parramavam, formando um lago
estreito e comprido nos terrenos ritais baixos e cobrindo inteiramente a vegetaçâa que
adornava as margens de um rio ou trora tranqüilo. Galhos e ramagens presos à lama do
rio por instantes agarra ram o gigante caído, mas nao conseguiram segurá-lo por muito
tempo. A ár vore foi puxada do matagal, ou talvez esse arrancado com as suas raízes.
Ay soube quando o inverno finalmente libertou de suas garras os pin gentes gelados
da catarata. Um estrondo ecoando do lado da garganta anun ciou as massas de gelo que
passaram a flutuar nas correntezas. Amontoavam. se, primeiro, no paredão, para depois
seguir o curso do rio, indo de quina e aos poucos perdendo o formato e a nitidez de seus
contornos.
A sua muito conhecida praia tinha um caráter diferente quando, por fim, as águas
retrocederam o suficiente para permitir que ela, uma vez mais, descesse pelo íngreme
caminho que levava à margem do rio. A pilha no sopé do paredão estava enlameada e
maior. Amontoadas junto com o madeirame e os ossos do ano anterior, havia novas
carcaças de animais e árvores, O pequeno pedacinho de praia rochosa estava mudado e
muitas das árvores conhecidas ti nham sido varridas de seus lugares. Ficaram aquelas
que possuíam as suas raí zes plantadas em terra seca, principalmente as que se
achavam mais distancia das das margens. Os arbustos e as árvores estavam
acostumados às inundações anuais e quase todas que conseguiram sobreviver a
algumas estações permane ciam firmemente enterradas. Quando os primeiros botões
verdes nos pés de framboesas começaram a despontar, ela passou a esperar ansiosa
pelas peque ninas frutas vermeilias. Isso, no entanto, veio precipitar um problema.
Era tolice contar com framboesas que só estariam maduras no verso. Até lá, ela já
não estaria no vale, pelo menos se a sua intenção fosse a de continuar buscando os
Outros. Os prenúncios da primavera a faziam lembrar de que uma decisão precisava ser
tomada: quando partir do vale? Estava sendo mais difícil do que imaginara.
Ela se achava sentada em seu lugar favorito, na extremidade do pata mar, do lado
que dava para o vale. Ali havia um lugar plano com um degrau perfeito para se apoiar os
pés. Naquela posição não enxergava a curva do rio, nem a praia rochosa, mas tinha uma
ampla vista do vale e se virasse a cabeça no sentido da montante enxergaria a garganta
do rio. Huiin estava lá embaixo na campínha e ela viu que o cavalo se preparava para
voltar. Ela desapareceu de sua vista quando contornou a ponta do penhasco e, pouco
depois, escutou- lhe os passos subindo pelo caminho, esperando vê-la a qualquer
instante surgir no patamar.
Ela sorriu ao aparecer a enorme cabeça do cavalo das estepes, com as suas
orelhas pretas e crina marrom. Quando Huiin finalmente surgiu de corpo inteiro, Ayla
reparou que o seu pêlo amarelo estava caindo e falhado. A risca marrom escura ao longo
da espinha dorsal terminava agora num farto e com prido rabo de cavalo. A parte superior
das patas dianteiras, quase pretas, co meçavam a matizar-se com algumas listas. A
potranca olhou para ela, relin chou mansamente, esperando para ver se Ayla queria
alguma coisa, depois en trou na caverna. Embora ainda não de todo desenvolvida, Huiin
já havia atin gido o tamanho de um cavalo adulto.
166 167 Ayla voltou outra vez os olhos para o vale. Há dias que tinha o pensa mento
ocupado só com um problema que até o sono lhe estava tirando de noite. "Não posso ir
embora agora. Preciso antes caçar um pouco e esperar que algumas frutas fiquem
maduras. E o que vou fazer com Huiin?" Aí estava o cerne do problema. Ela não
desejava viver sozinha, por outro lado nada sa bia das pessoas que os das chamavam
Outros, fora o fato de que ela própria pertencesse a esse povo. "E se as pessoas que eu
encontrar não me deixarem ficar com Hulin? Brun jamais daria licença para eu ter comigo
um cavalo adul to, principalmente um com uma carne tifo fresca e tenra. E se quiserem
matar Huiin? Ela nem fugir saberia, ficaria parada esperando que a matassem. Se eu
pedisse para que não fizessem isso, será que me atenderiam? Broud pouco se importaria
com o que eu dissesse. Ele mataria Huiin de qualquer jeito. E se os homens dos Outros
forem iguais a Broud? Ou até piores? Afinal, foram eles que mataram o bebê de Oda,
mesmo que não tivessem feito isso de propósito.”
"Algum dia vou ter de encontrar alguém, mas posso ficar por mais al gum tempo por
aqui. Pelo menos até que eu tenha feito umas tantas caçadas e que as raízes tenham
brotado. E é isso o que farei. Vou ficar até que as raí zes estejam bastante grandes para
serem apanhadas.”
Uma vez a decisão tomada, sentiu-se aliviada e pronta para enfrentar um trabalho.
Levantou-se e
foi até a outra extremidade do patamar. O novo monturo formado no sopé do
penhasco exalava uma fedentina de carne po dre que chegava até a caverna. Embaixo,
ela percebeu qualquer coisa moven do-se. Era uma hiena que partia com as suas
poderosas mandíbulas a pata dianteira daquilo que provavelmente fora um veado.
Nenhum outro animal, predador ou carnívoro, tinha tanta força concentrada nos quartos
dianteiros e nas mandíbulas, o que justamente dava a este bicho o seu aspecto despro
porcionado.
A primeira vez que Ayla deu com o traseiro de um deles, com as suas patas
posteriores curtas e tortas, escarafunchando dentro da pilha, ela teve de conter-se para
não atirar. No entanto, vendo-o sair arrastando o pedaço de uma carcaça podre, resolveu
deixá-lo em paz, agradecida, pelo menos por uma vez, ao serviço que esse odioso animal
lhe prestava. As hienas também esta vam incluídas entre os animais carnívoros que ela
estudara. Diferentemente dos felinos ou dos lobos, as hienas não precisavam, para
caçar, de uma forte musculatura nos quartos traseiros. Atacavam as suas presas
procurando pegar- lhes nas vísceras, nas partes moles do baixo-ventre e nas glândulas
mamárias. Mas do que gostavam realmente era de cante podre, em qualquer estágio de
putrefação.
Regalavam-se com corpos em decomposição. Ayla já as vira remexer até em piras
para queimar cadáveres humanos e retirar da terra corpos que não foram bem
enterrados. Chegavam inclusive a comer esterco, e fediam tanto 168 quanto os alimentos
que ingeriam. A sua mordida, quando não liquidasse no instante, matava posteriormente
por infecção. Os filhotes dos outros animais também faziam parte de suas preferências.
Ayla estremeceu com uma careta de nojo. Ela as odiava. Fazia força pa ra resistir à
vontade de espantá-las dali com a sua funda. Era irracional, mas não conseguia evitar o
nojo que lhe davam esses carnívoros de pele malhada. Para ela, eles nada tinham que se
salvasse. Os outros predadores não lhe des pertavam tanto nojo, mas geralmente
também cheiravam mal.
De seu ponto estratégico, viu um carcaju chegando para ter também a sua parte nos
despojos. O carcaju parecia um ursinho de rabo comprido, mas Ayla sabia que ele se
assemelhava mais às doninhas, com as suas glândulas de almíscar, tão pestilentas
quanto as do gambá. Os carcajus eram animais per versos. Danificavam cavernas,
lugares desvigiados, aparentemente sem qual quer motivo. Mas eram inteligentes,
predadores corajosos, capazes de atacar qualquer coisa, até mesmo um gigantesco
veado, embora se contentassem com ratos, pássaros, sapos, peixes e ovas. Ayla já os
vira tirando presas da boca de bichos muito maiores que eles. Eram animais de respeito e
além disso tinham uma pele utilissima, única para impedir o congelamento do bafo da
respiração Ela viu dois falcÕes vermelhos saírem de seus ninhos numa árvore na
margem oposta do rio. Rapidamente, se elevaram no céu e estenderam as suas imensas
asas avermelhadas e o rabo em forma de forquilha para virem pousar na praia. Os
falcÕes se alimentavam de carne podre, mas como toda ave de ra pina gostavam
também de pequenos mamíferos e répteis. Em matéria de car nívoros, Ayla estava mais
familiarizada com os mamíferos do que com as aves, mas não ignorava que as f€meas
dos pássaros normalmente são maiores do que os machos e muito mais bonitas de
serem admiradas.
O abutre, apesar da horrorosa cabeça depenada e de seu pavoroso chei ro, ela não
antipatizava de todo. O bico curvo era afiado e forte, feito a pro pósito para desmembrar e
cortar a carne de animais mortos. No entanto, havia majestade em seus movimentos. Era
incrível a facilidade com que as suas imensas asas planavam, aproveitando as correntes
de ar. Quando via a comi da, ele dava um mergulho vertiginoso e saía atrás da carniça
com o pescoço espichado para frente e as asas entreabertas.
Os animais, abaixo de sua caverna, estavam tendo um banquete, até os corvos
participavam da festança e Ayla os observava satisfeita. Para se ver livre da fedentina,
até mesmo as hienas ela não via com maus olhos. Quanto mais rápido limpassem tudo,
mais feliz ficaria. Subitamente, se sentiu abafada com a atmosfera nauseabunda. Queria
respirar ar puro, sem emanaçÕes fedorentas.
- Huiin - chamou. O cavalo, ouvindo o seu nome, meteu a cabeça do lado de fora da
caverna. - Vou dar uma volta, quer vir comigo? - Huiin, ven do o aceno convidativo,
caminhou na direção dela, mexendo com a cabeça- 169 i Desceram pelo estreito
caminho, evitando a praia com os seus ruidosos ocupantes e circundaram com cuidado o
paredão de pedra. O cavalinho pare cia mais calmo, depois que começaram a caminhar
ao longo da vegetação que margeava o pequeno rio, agora contido dentro de seus limites
normais, O chei ro de morte deixava-o nervoso e o medo que tinha das hienas vinha de
suas tristes experiências com este animal. Ambos gozavam da liberdade que lhes
permitia aquele dia ensolarado de primavera, depois do longo confinamento imposto pelo
inverno, embora o ar ainda estivesse frio e úmido. Também res pirava-se melhor no
campo aberto e nem todos os pássaros eram carnívoros e estavam naquele momento se
banqueteando. Havia outras atividades mais im portantes.
Ayla atrasou o passo para observar um casal de pica-paus - o macho com um
penacho vermelho e a fêmea com um branco. Os dois deliciavam-se com as suas
acrobacias aéreas e vinham em seguida tamborilar num velho tronco, para, então,
novamente alçarem vôo e se perseguirem ao redor das ár vores. Ela conhecia bem esses
pássaros. Os pica-paus forravam os seus ninhos com as lascas de madeira que
escavavam no interior dos troncos de velhas árvores. Em geral, encontravam-se em cada
ninho seis ovos de cascas com pin tinhas marrons. No entanto, depois de chocados e os
filhotes nascidos, os pais tomavam rumos diferentes para procurarem em seus
territórios insetos e no vos troncos de onde fariam ressoar pelos bosques os seus gritos
estridentes e cacarejados.
Bem diferentes eram as cotovias. Somente na época da procriação é que os bandos
se separavam aos pares, quando então os machos passavam a assu mir o
comportamento de um fogoso galo de briga em relação aos antigos com panheiros. Um
casal levantou vôo e Ayla escutou o seu glorioso canto. Era tal o volume da voz que ela
continuou a ouvi-la, mesmo quando já os dois esta vam muito altos e eram apenas
pontinhos no céu. Subitamente, como se fos sem duas pedras despencando-se,
baixaram e tomaram a levar o seu belo can to às alturas, Ayla chegou ao local onde
cavara a armadilha em que apanhou a égua baia. Pelo menos era onde imaginava que
fosse. Nenhum vestígio restava. A inundação da primavera aplainara a depressão no
terreno e varrera os arbustos que ela tinha cortado. Pouco mais adiante, fez uma parada
para tomar um go le de água e sorriu ao ver uma alvéloa correndo pela margem. Parecia
com a cotovia, só que mais esguia e com a barriga amarela. Ia com o corpo horizon tal,
numa ginga muito particular para não molhar as penas do rabo:
Súbito, uma cascata de notas muito límpidas atraiu a sua atenção para outro casal
de pássaros, este sem problema de se molhar. Eram dois melros in clinando-se uma para
o outro com graciosas reverências, em pleno jogo de ga lanteios. Ela sempre se sentira
intrigada como os melros conseguiam cair den 170 tro da água e sairem sem ter as
penas encharcadas. Ao voltar à campina, ela viu que Huiin pastava os novos rebentos da
primavera. Outra vez sorriu. Agora foi um par de cambaxirras que, com o seu tchique-
tchique, passou-lhe um pito por ousar chegar tão perto do arbusto que habitavam. No
momento em que se afastou, voltaram ao seu canto de gorjeios altos e cristalinos,
revezando- se nas vozes: ora se fazendo ouvir a do macho, ora a da fêmea.
Ela parou e sentou-se num tronco ouvindo os maviosos cantos dos dife rentes
pássaros. Então foi surpreendida pela voz da toutinegra que, sozinha, imitava todo o
coro, num jorrar esplendoroso de melodias. Um animal tão pe quenino e com tamanho
virtuosismo. Ayla chegou a parar de respirar e, sem perceber, surpreendeu-se com um
assovio nos lábios. Um verdelhão respon deu-lhe com o seu canto soando como um
assovio aspirado e foi logo imitado pela toutinegra.
Ayla estava encantada. Sentia-se fazendo parte daquele coro alado e ex perimentou
outra vez. Franziu os lábios e aspirou o ar, mas o assovio saiu-lhe fraco. Na vez seguinte,
já veio com mais volume,mas ela tinha enchido os pul móes demais e expeliu o ar na
forma de um assovio muito alto. O som produ zido já estava bem mais parecido com o
dos pássaros. Na tentativa seguinte, o ar saiu apenas soprado através dos lábios, e nas
outras que se seguiram tam bém não obteve grandes resultados. Resolveu voltar ao
assovio para dentro e conseg'iiu um som melodioso, embora dotado de pouco volume.
Continuou a persistir, aspirando e soprando e, vez por outra, assoviando um som
alto e forte. Estava tão envolvida que não percebia Huiin levantar as orelhas a cada vez
que o som safa agudo e penetrante-O cavalo não sabia co mo responder Aquilo, mas
ficou curioso e se encaminhou para ela.
Ayla via Huiin aproximando-se com as orelhas empinadas e um ar intri gado.
- Você não sabia que eu podia imitar os sons dos pássaros, hein Huiin? E nem eu
também sabia. Nem desconfiava que podia cantar como um passari nho. Bom, ainda não
é igual, mas se eu continuar treinando, acho que vai ficar bem parecido. Vamos ver se
consigo outra vez.
Ela aspirou o ar, franziu os lábios e, muito concentrada, deixou sair um assovio
longo e volumoso. 1-luiin mexeu a cabeça e relinchou, empinando-se. Ayla se levantou e
abraçou o seu pescoço, dando-se conta, de repente, do quanto o cavalo crescera.
- Você está tão grande, Huiin - Os cavalos crescem tão rápido, já está quase virando
uma égua de verdade. Qual seria a sua velocidade agora para correr, Huiin? Vamos,
corra junto comigo - falou, dando-lhe uma palmada na garupa e disparando pelo campo.
Huiin no mesmo instante se distanciou, indo na frente, galopando com o corpo todo
esticado. Ayla seguia, correndo apenas por prazer. Ela dava o 171 -Á máximo de si e só
parou quando já não agüentava mais, ofegante e camba leando com falta de ar. Ficou
observando o cavalo galopar pelo vale e depois virar, fazendo uma curva aberta para
voltar trotando. "Gostaria de correr igual a Huiin", pensou ela. "Nós poderíamos sair
correndo juntas por aí. Se eu fosse um cavalo, será que seria mais feliz? Pelo menos não
estaria aqui tão só.,, "Mas eu não estou sozinha. Huiin é boa companhia, mesmo que não
seja gente. Ela é tudo o que eu tenho e eu sou tudo que ela tem. Mas que bom seria se
eu pudesse correr como ela.”
A potranca chegou espumando. Ayla ria vendo-a rolar no meio do ca pim, batendo
com as pernas viradas para cima e grunhindo de felicidade. Quando se levantou, sacudiu
a cabeça e foi pastar novamente. Ayla ficou ob servando-a. "Como seria emocionante
correr como um cavalo!", pensou, vol tando em seguida a treinar os seus assovios. Ao
ouvir um som mais agudo e penetrante, l-luiin levantou a cabeça e saiu trotando outra vez
na sua direção. Ayla, feliz por ver Huiin atendendo o seu assovio, deu-lhe um abraço
aperta do. Mas o pensamento de correr com a potranca pelo vale não lhe saía da cabeça.
De repente, ocorreu-lhe uma idéia. Urna idéia que jamais lhe teria passa do pela
mente se não tivesse convivido durante todo o invemo com o animal e pensado nele
como um amigo e um companheiro. Nunca teria levado essa idéia adiante se ainda
vivesse com os clãs. Mas cada vez mais agia seguindo os seus impulsos.
"Será que Huiin se importaria? Será que me deixaria?", perguntava-se. Ela conduziu
o cavalo para junto de um tronco e subiu neste. Em seguida, passou os braços ao redor
do pescoço de Huiin e levantou uma perna. "Corra comigo, Huiin. Leve-me com você",
pensava, enquanto montava.
A égua, desacostumada a carregar peso em suas costas, abaixou as ore lhas,
pondo-se a curvetear nervosa. No entanto, se o peso era inusitado, a mu lher não. Os
braços de Ayla tinham um efeito calmante sobre ela. Huiin esta va a ponto de empinar
para jogai fora o peso de seu lombo, quando resolveu tentar se livrar dele irrompendo
num galope desenfreado com Ayla agarrada ao seu pescoço.
A potranca, entretanto, já tinha tido a sua dose de exercícios naquele dia. Para
cavalo, ela tinha uma vida sedentária. Apesar de pastar, Huiin nunca tivera uma manada
para seguir e nem predadores que a pusessem para correr. No entanto, era um animal
jovem. Não demorou muito, começdu a diminuir a velocidade e parou, ofegante, com a
cabeça pendurada.
Ayla desceu escorregando do seu lombo.
- Huiin, foi uma maravilha! - gesticulou, com os olhos brilhando de excitação. Ela
levantou o focinho de Huiin, encostando o rosto no nariz do 172 animal e enfiou o
pescoço dele debaixo do braço, num gesto de carinho que há muito não fazia. Era um
abraço reservado só para ocasiões especiais.
Ela mal se continha com as emoções da cavalgada. Já a idéia em si de correr junto
com o cavalo a deixava assombrada. Nunca pudera sonhar que tal coisa fosse possível.
Nem ela, nem ninguém.
jX_yia não conseguia desgnidar-se um instante do lombo do cavalo. Cavalgar Huiin
a toda velocidade era um prazer inexcedível. Jamais na vida alguma coisa lhe dera tanta
emoção. Huiin tam bém parecia gostar e rapidamente acostumou-se com o peso de Ayla
em suas costas- Logo o vale ficou pequeno para a moça e o seu veloz corce Freqüen
temente, galopavam pelas estepes, alcançando-as pelo lado leste do rio onde o caminho
se fazia mais fácil.
Ela sabia que muito brevemente teria de caçar, colher, preparar e arma zenar os
alimentos que a natureza lhe prodigalizava em estado bruto. Precisa va já ir pensando no
próximo ciclo de estações. Entretanto, no princípio da primavera, quando a terra estava
apenas acordando do longo inverno, as suas ofertas se mostravam ainda muito
minguadas. Alguns legumes frescos ajuda vam a melhorar um pouco a alimentação do
inverno, quase exclusivamente à base de alimentos desidratados. Mas por enquanto
raízes, brotos e tubérculos ainda não tinham brotado da terra. E com isso ela aproveitava
para andar a civalo tanto quanto podia. Quase sempre deste manhã até o anoitecer.
No princípio, apenas montava numa atitude passiva, indo onde o cava lo a levasse -
Não pensava em conduzi-lo. Os sinais que Huiin aprendera se expressavam por gestos
que não podia ver com Ayla montada em suas costas. Ayla nunca tentara uma
comunicação exclusivamente verbal. Mas o seu pro cesso de comunicação se baseava
tanto em gestos específicos como na expres são corporal e, montada no cavalo, ela
estava em íntimo contato com o corpo do animal.
Passada a fase inicial, quando tinha o corpo dolorido, Ayla começou a perceber o
jogo da musculatura de Huíin que, por sua vez, passou também a sentir o corpo de Ayla
em seus estados de tensão e relaxamento - Cavalo e ca valeira começaram, então, a
desenvolver a capacidade de perceber as necessi 173 lo dades e os sentimentos um do
outro e procuravam satisfazê-los. Se Ayla qui sesse tomar determinada direção,
instintivamente inclinava-se para o lado de sejado e os seus músculos comunicavam a
sua intenção ao cavalo. Dessa for ma, ele passou a mudar de direção ou a variar de
velocidade de acordo com a maior ou menor pressão que sentia Ayla imprimindo em seus
músculos. E, sempre que ela queria que ele reagisse do mesmo modo, repetia os
mesmos es tímulos, quase imperceptíveis.
Foi um período de treinamento mútuo, ambas aprendendo uma com a outra e com
isso aprofundaram ainda mais a sua relação. Ayla, entretanto, sem que o percebesse,
passava a assumir o controle. Os sinais transmitidos entre mulher e cavalo eram tão sutis
e a passagem da aceitação passiva à di reção ativa feita tão naturalmente que Ayla, no
princípio, não reparou, ex ceto em nível subliminar. As cavalgadas diárias se tornaram
num curso de aprendizado intensivo, extremamente concentrado. Com o aprimoramento
da relação, as respostas do cavalo ficaram de tal forma afinadas que basta va Ayla
pensar onde e em que velocidade desejava ir para que ele respondes- - se, como se
fosse uma extensão do corpo dela. Ayla não podia imaginar que os seus nervos e
músculos enviassem sinais à pele de Huiin, dotada de ex trema sensibilidade.
Não fora intenção sua educar o animal. Era o resultado de amor e dedi cação e
também das diferenças inatas entre os dois seres. Huiin era curiosa e inteligente. Podia
aprender e tinha uma memória ancestral, mas o seu cére bro era menos desenvolvido e
organizado diferentemente. Os cavalos são ani mais gregários, em geral, vivendo em
manadas, com necessidade de afeto e da companhia de seu semelhante, O sentido do
tato tomou-se particularmente desenvolvido e foi uma peça importante daquela íntima
relação. O instinto da égua, entretanto, dizia-lhe para seguir as instruções, para ir aonde
era leva da. Nas ocasiões de pânico, até mesmo os chefes fogem em debandada com as
suas manadas.
No caso da mulher, as ações tinham propósito. Elas eram comandadas por um
cérebro no qual a previsão e a análise estavam interagindo com o co nhecimento e a
experiência. A sua posição nilnerável mantinha apurados os seus reflexos de
sobrevivência e forçava uma constante vigilância do ambiente que havia precipitado o
período de aprendizado. A visão de uma lebre ou de um hamster gigante a levava
imediatamente a pegar na funda e a querer sair à caça do animal, mesmo se em cima do
cavalo. Huiin rapidamente interpretava- lhe os desejos nesse sentido e o primeiro passo
que deu para atendê-la acabou por levar Ayla a ter o firme controle da égua, embora tudo
se desse a nível in consciente, Só quando matou um hamster gigante é que se deu conta
do fato.
Foi ainda no início da primavera. Inadvertidamente haviam espantado o bicho, mas
Ayla no momento em que viu o hamster correr jogou o corpo para a frente, levando Huiin
a persegui-lo, enquanto ela apanhava a funda. Ao chegarem perto, Ayla mudou de
posição, como pensamento de apear, e o ca valo estancou ainda a tempo dela saltar e
atirar a pedra.
"Vai ser bom comer carne fresca essa noite", pensou, enquanto voltava para montar
o cavalo. "Devia estar caçando mais, mas é tão divertido montar Huiin. - "Ora. - . mas eu
estava montada em Huiin! Foi Huiin quem saiu atrás do hamster. E parou justamente
quando eu quis!" Os seus pensamentos voltaram para o dia em que pela primeira vez
montou o cavalo e que envolvera nos seus braços o pescoço da potranca. Huiin se havia
distanciado para uma moita de capim novo e tenro.
- l-luiin - chamou Ayla.
O cavalo levantou as orelhas e a cabeça, pondo-se na expectativa.
Ayla estava pasma. Não sabia explicar. A idéia de montar um cavalo já era
assombrosa, mas que o cavalo fosse para onde ela pretendesse era muito mais difícil de
entender do que fora para os dois o processo de aprendizado.
O cavalo aproximou-se.
- Oh, Huiin. . . - falou Ayla. A sua voz foi interrompida por um solu ço. Abraçou-se
com o pescoço do cavalo sem entender a razão por que chorava.
Ruim bufava pelas narinas e inclinou a cabeça, apoiando-a sobre o om bro de Ayla.
Quando ela foi montar outra vez se sentia desajeitada. O hamster pare cia
atrapalhar-lhe os movimentos. Procurou, então, uma pedra para subir. Há muito que não
se valia mais desse recurso e parou um instante para pensar. Lembrou-se de que até
agora sempre pulara e passara a perna por cima do cavalo, montando com a maior
facilidade. Depois de alguma confusão inicial, Huiin começou a andar de volta à caverna.
No entanto, tentando agora cons cientemente governar a potranca, os seus comandos
inconscientes perderam um pouco da antiga firmeza. E o mesmo se dava com as
respostas de Huiin.
Ela só voltou novamente a confiar em seus reflexos quando descobriu que Ruim lhe
respondia melhor se estivesse com o corpo relaxado, mas então já enviando comandos
intencionais. À medida que a estação avançava, Ayla foi caçando cada vez mais. No
princípio, parava o cavalo e descia para mane jar a funda, mas não custou muito para
que tentasse atirar montada. O fato de errar o tiro foi uma razão para voltar a treinar. Era
um novo desafio a ven cer. Ela aprendera o manejo da arma sozinha, treinando por ponta
própria. Foi um jogo que se propusera na época. Não tinha ninguém a quem pudesse
recorrer. Não lhe era permitido caçar. Mas aconteceu então que um lince a apanhou
desarmada, depois de haver perdido o tiro. Esse fato a levou a pensar na técnica do tiro
duplo que passou a treinar até ter o completo domínio do arremesso simultâneo de duas
pedras.
175 174 Achava distante o tempo em que tivera necessidade de treinar com a sua
funda, e agora novamente a arma se tomara um desafio divertido, mas nem por isso
menos sério. No entanto, era uma atiradora tão exímia que em pouco tempo estava
arremessando tão bem em cima do cavalo como quando estava em terra sobre os seus
pés. No início, apesar da facilidade com que cite gava perto de um bichinho ligeiro como
a lebre, não afinou - e nem podia - com todo o alcance dos possíveis benefícios e
vantagens de que passara a dispor.
Ainda levava para casa os animais que matava como sempre o fizera:
numa cesta amarrada às costas. Mas daí a montar com a presa diante dela,
atravessada no lombo de Huiin, foi um pulo. Imaginar um cesto apropriado para ser
levado por Huiin, preso em seu lombo, foi o passo seguinte e uma de corrência lógica.
Custou um pouco mais a idéia dos dois cestos, seguros por uma correia grossa de couro,
amarrada ao redor do corpo do animal. Com a adição da segunda cesta, entretanto, ela
começou a perceber algumas das van tagens que poderia tirar da força de sua amiga de
quatro patas. Pela primeira vez pôde levar à caverna um peso maior do que agüentava
carregar.
Uma vez percebido o que poderia realizar com a ajuda do cavalo, os seus métodos
mudaram e também mudou o padrão de sua vida. Passava mais tempo fora, explorava
novos campos e regressava com um volume muito maior: tanto de vegetais que colhia,
como de carne dos animais que matava. Então passava alguns dias na caverna,
cuidando do que lhe rendiam as saídas.
Quando viu os morangos silvestres começando a amadurecer, deu busca numa
vasta área para trazer tantos quanto achasse, Os maduros eram raros no princípio da
estação e nasciam muito espaçados. Ao regressar, começava a escurecer. Ela tinha bons
olhos para distinguir os pontos de referência na pai' sagem, mas antes de chegar ao vaie
já estava escuro demais para enxergar. Re solveu, então, confiar nos instintos de Huiin
para guiá-la de volta e, daí por diante, este trabalho quase sempre ficou por conta da
potranca.
Em todo o caso, por precaução, passou a levar em suas saídas uma pele para se
abrigar. Certa noite, resolver dormir fora, em pleno campo aberto. Já estava tarde demais
e achava que fosse gostar de novamente voltar a dormir sob um céu estrelado. Acendeu
uma fogueira, mais para espantar os animais notívagos, pois ela se sentia aquecida,
aninhada em sua pele, ao lado de Huiin. Não havia animal nas estepes que não temesse
o cheiro de fumaça. O fogo nas planícies, às vezes incontrolável, durava dias,
afugentando ou assan do qualquer coisa por onde ia alastrando-se.
Depois da primeira vez, as outras ficaram mais fáceis e ela costumava passar uma
ou duas noites longes da caverna, aproveitando para explorar a região a leste do vale.
Ela não queria admitir, mas na realidade procurava pelos Outros. Ao mesmo tempo
que acalentava esperança de encontrá-los, tinha também medo 176 de que isso
acontecesse. Num certo sentido, era uma maneira de adiar a decisão de abandonar o
vale. Sabia que se fosse empreender a busca, teria de já estar pensando nos
preparativos para a viagem, e o vale se transformara em sua casa. Ela não queria ir
embora e Huiin continuava sendo uma preocupa ção. Não sabia o que esses
desconhecidos Outros poderiam fazer com a potranca. Se houvesse alguma população
vivendo nas vizinhanças do vaie, a cavalo poderia observar as pessoas e aprender um
pouco sobre elas, antes que a sua presença fosse notada.
Os Outros eram o seu povo, mas ela não se lembrava de nada do que lhe
acontecera antes de sua vinda para o clã. Sabia que fora encontrada com pletamente
inconsciente na beirada de um rio, faminta e ferida por um leão da caverna. Estava à
morte quando Iza a apanhou e a levou junto com a sua gente que, então, procurava uma
nova caverna para habitar. Mas sempre que tentava lembrar- se de alguma coisa anterior
à sua vida no clã, era dominada por um medo indefinido que sobrevinha com náuseas e
uma angustianté sen sação de ter a terra tremendo sob os seus pés.
O terremoto que deixou sozinha uma menina de cinco anos num mun do deserto, à
mercê de seu destino e entregue à compaixão de pessoas inteira mente diferentes dela,
fora um golpe doloroso demais para a sua mente infan til. Ela perdeu por completo a
memória, esquecendo-se de tudo que se referia ao acontecimento e às pessoas que
haviam feito parte de sua vida. A sua idéia delas era igual à de todo mundo nos clãs:
aqueles que designavam como "Outros".
Tal como a primavera indecisa com as suas rápidas mudanças, ora mos trando-se
chuvosa, ora quente e ensolarada, os desejos de Ayla também passa vam de um
extremo a outro. Os seus dias, de certa forma, transcorriam bem. A solidão não era uma
coisa nova em sua vida. De pequena, freqüentemente saía para as matas perto da
caverna para colher as plantas de Iza e, depois já um pouco mais velha, para fazer as
suas caçadas. Assim, pela manhã e pela tarde, quando estava ocupada e ativa, a única
coisa que queria era ficar sosse gada em seu vale, na companhia de Huiin. De noite,
porém, dentro da peque na caverna, apenas com uma fogueira e um cavalo por
companhia, ela ansiava por ter alguém junto que a ajudasse a não se sentir tão sozinha.
Estava sendo mais difícil de suportar a sua solidão na quente primavera do que no
inverno, apesar de todos os seus dias longos e gelados. O pensamento não saía da vida
no clã e das pessoas que amava e os seus braços ansiavani por envolver o filho. Todas
as noites resolvia que no dia seguinte começaria os preparativos para a viagem, mas
chegando de manhã os adiava e ia com Huiin para as planícies 4p leste. De tanto
esquadrinhar a região acabou conhecendo bem não só o território como a vida que
habitava a vasta pradaria. Os animais de pastagem haviam começado a emigrar, dando-
lhe novamente a idéia de caçar um deles.
177 À medida que o pensamento ia tomando forma, foi esquecendo-se um pouco de
sua solitária existência:
Via cavalos, mas nunca mais algum deles voltara ao vale. De qualquer maneira, não
tinha intenção de caçá-los. Tinha de ser outro animal. Embora não soubesse como
poderia usá-las, passou a levar as lanças em suas saídas- Os compridos paus eram
incômodos de carregar, mas ela acabou descobrin do um modo- Cada um ia amarrado a
uma das cestas levadas por Huiin.
Foi somente quando ela reparou num bando de renas fêmeas que a sua idéia
começou a concretizar- se. Quando era menina, no tempo em que estava aprendendo a
caçar ás escondidas, sempre achava desculpa para trabalhar per to dos homens quando
estes estavam trocando idéias sobre problemas e téc nicas de caçadas, por sinal o
assunto favorito de suas conversas. Nesta época, estava interessada na caça com funda
- a sua arma - mas de modo geral tudo que dizia respeito a caçadas a deixava curiosa. À
primeira vista, achou que fos se uma manada de veados de chifres curtos. No entanto,
reparando nos filho tes, lembrou-se de que dentre todas as variedades de cervos,
somente as renas fêmeas possuíam chifres, O fato desencadeou uma série de
lembranças, inclu sive a do gosto da carne de rena.
Lembrou-se, então, que os homens haviam dito que as renas quando emigravam
para o norte na primavera seguiam sempre o mesmo trajeto, como se fossem por um
caminho que só elas conheciam e que andavam em grupos separados. A emigração
começava, primeiro, pelas fêmeas e os filhotes, depois vinha a dos machos ainda não-
adultos e, por fim, mais tarde na primavera, é que passavam os velhos machos em
pequenos grupos.
Ayla ia num trote lento atrás da manada de renas com os seus filhotes. Os enxames
de moscas e mosquitos que gostavam de aninhar-se nas peles dos cervídeos -
principalmente nas zonas dos olhos e orelhas, estimulando-os ainda mais a procurar
climas frios, onde os insetos não são tão abundantes - estavam começando a aparecer.
Ayla, distraída, espantava com a mão alguns dos mosquitos zunindo ao redor de sua
cabeça. Quando saiu pela manhã, uma neblina fina ainda colava-se às depressões e
cavidades do terreno. O sol, no entanto, chegara para levantar o vapor dos bolsões,
pondo uma umidade no ar, rara nas estepes. As renas estavam acostumadas à
companhia de outros ungulados e ignoravam a presença de Huiin e Ayla, desde que as
duas se man tivessem a uma certa distãncia.
Enquanto observava os animais, Ayla pensava em um meio para caçá los. "Se, de
fato, os machos seguem as fêmeas, logo estarão vindo pelo mes mo caminho. Talvez
consiga caçar um deles, um que seja ainda novo. Bom, eu sei o caminho por onde vão
vir, só que isso de nada me vai adiantar se não conseguir chegar perto o suficiente para
enfiar as lanças. Talvez possa cavar 178 um buraco outra vez. Mas os animais iriam
simplesmente contorná-lo e seguir em frente. Além do mais, por aqui não existem muitos
arbustos para fazer uma cerca que eles não possam saltar. Talvez eu possa botá-los
para correr e um caia dentro. Mas, ainda que consiga isto, como é que vou retirá-lo
depois? Esquartejar um animal dentro de um buraco lamacento é o que eu não quero
nunca mais. E vou ter de secar a carne aqui mesmo, a não ser que consiga le vá1a para
a caverna.”
Ela seguiu a manada o dia inteiro, até que as nuvens se tomaram rosadas num céu
minto azul. Só parava o tempo necessário para comer e descansar. Nunca havia chegado
tão ao norte e a região lhe era inteiramente desconfie- • cida. Havia visto ao longe uma
linha de vegetação. À medida que o céu se foi tornando rubro, as águas mais adiante de
uma densa massa de arbustos passa ram a refletir a sua cor. As renas se puseram em
fila para passar pelas estrei tas aberturas do matagal e chegar até o riacho. Antes de
atravessá-lo se ali nharam ao longo da margem para beberem um gole de água.
O crepúsculo acinzentava o verde das folhagens, enquanto o céu ardia em brasa,
como se a noite roubasse a cor da terra para devolvê-la no dia se guinte em tons ainda
mais brilhantes. Ayla desconfiava de que aquele rio fos se o mesmo que já por diversas
vezes havia cruzado. Nem sempre os córregos, canais e riachos contribuíam para a
formação de uma grande massa de água. Freqüentemente o mesmo curso era cruzado
várias vezes, enquanto serpen • teava pelas planícies para voltar a se encontrar após
fazer muitos meandros e se djvidjr em canais. Se os seus cálculos estivessem certos, ela
poderia che. gar ao vale, pela outra margem, sem precisar atravessar nenhum curso de
água maior.
As renas puseram-se a pastar, mas parecendo que se preparavam para passar a
noite na margem oposta. Ela decidiu fazer o mesmo. O caminho de volta era longo e teria
de cruzar o rio em algum ponto. A noite se aproxima va e não queria correr o risco de
ficar molhada e com frio. Escorregou do lom bo do cavalo, retirou as cestas e deixou
Huiin solta, enquanto preparava o acampamento. Galhos secos e lenhas trazidos pelas
enchentes logo estavam ardendo em brasa, acesos com pedra-de-fogo e sílex.
Amendoins torrados dentro de folhas e um hamster recheado de legumes foi a sua
refeição. Depois de ter comido e a barraca estar armada, assoviou chamando Huiin para
ficar perto. Enrolou-se na sua pele de dormir e se meteu dentro da barraca, deixan do a
cabeça do lado de fora da abertura de entrada.
As nuvens tinham se acumulado no horizonte. Em cima, as estrelas eram tantas que
davam a impressão de uma luz intensíssima, filtrada através de uma infinidade de
ranhuras na barreira noturnal. Creb dizia que as estrelas são fogueiras no céu, as
moradias no mundo dos espíritos, onde também vi- vem os espíritos dos totens. Os seus
olhos ficaram vasculhando o firmamento 1 179 4 até encontrar a formação que
buscavam. "Ah, lá está. A morada de Ursus e também a do meu totem, o Leão da
Caverna. £ estranho que mudem constan temente de lugar no céu e o desenho que
formem continue sempre o mesmo. Gostaria de saber se os espíritos também saem para
caçar e depois voltam para as suas cavernas.”
"Mas o que estou precisando mesmo é apanhar uma rena. E tenho de descobrir
uma maneira de fazer isso o quanto antes. Logo os machos estarão chegando. Eles vão
também atravessar o rio nesse ponto.”
Nisso, Huiin sentiu o cheiro de um animal carnívoro e veio para mais perto da
fogueira.
- Há alguma coisa por ali, Huiin? - perguntou Ayla por meio de sons e gestos. As
suas palavras eram inventadas, nunca tinham feito parte da lín gua dos das. Ela podia
relinchar tal como Fluiin, latir como as raposas e uivar como os lobos.E agora,
rapidamente, aprendia a assoviar como os passarinhos. Muitos desses sons haviam sido
incorporados à sua língua p;rticular. Pratica mente já se esquecera de que não era de
bom-tom emitir sons desnecessários. A facilidade de vocalizar, própria de sua espécie,
começava a impor-se.
O cavalo veio ficar entre Ayla e a fogueira, querendo a segurança das duas coisas.
- Sai daí, Huiin. Você está tapando o calor.
Ela levantou-se para botar mais lenha na fogueira e abraçou o pesco ço de Huiin,
sentindo a inquietação do anima!. "É melhor eu ficar acordada e manter esse fogo
aceso", pensou.
- Seja o que estiver por aí, minha amiga, vai achar mais interessante uma rena do
que você, perto do fogo. Por isso, é bom que a gente tenha por enquanto uma boa
fogueira acesa.
Ela ficou agachada perto do fogo, olhando as chamas. De vez em quan do, remexia
na lenha soltando um mundo de faíscas que sumiam na escuri dão. Alguns sons vindos
da outra margem lhe disseram que uma ou duas re nas haviam sido apanhadas,
provavelmente por um felino. Os seus pensa mentos voltaram-se para a rena que ela
própria tinha de apanhar. De repente, ao empurrar
Huiin para o lado a fim de pegar mais lenha, lhe surgiu uma idéia. Mais tarde,
quando a potranca já estava mais calma, ela voltou para a sua pele de dormir. A sua
cabeça estava um turbilhão. A idéia expandia-se, aparecen do-lhe com inúmeras
possibilidades cada vez mais interessantes. Quando, por fim, adormeceu, já tinha um
plano básico formado na cabeça e fundamenta do num conceito tão incrível que ela
própria sorria de sua audácia.
Pela manhã, ao cruzar o rio, a manada, diminuída de uma ou duas re nas, já havia
partido, mas Ayla não precisava mais segui-la. Ela disparou num galope de volta ao vale.
Tinha muito que fazer, se quisesse estar com tudo pronto a tempo.
- Pronto, Huiin. Vê? Não é tão pesado assim - dizia Ayla, encorajan. do. O cavalo
que ela pacientemente conduzia tinha ao redor do peito e do lombo uma série de correias
e cordas amarradas a um tronco que ele arrasta va. No início, Ayla tinha posto a correia
que agüentava o peso atravessada na testa de Huiin, tal como a tira de couro que às
vezes ela própria usava para carregar nas costas volumes mais pesados. Mas logo viu
que o cavalo precisa. va de ter livres os movimentos da cabeça e que puxaria melhor se
as correias fossem passadas ao redor do peito e dos ombros. A potranca das estepes,
contudo, não estava acostumada a arrastar pesos e os arreios lhe inibiam os
movimentos. Ayla, no entanto, çstava firmemente decidida. Essa seria a úni ca maneira
de pôr o seu plano para funcionar.
A idéia lhe ocorrera quando estava colocando lenha na fogueira. Ela, então,
afastando Huiin de seu caminho para pegara madeira, olhou tema. mente para aquele
cavalo tão grande que, apesar de toda a sua força, a procu rava para protegê-lo. "Ah, se
eu pudesse ser forte como Huiin , pensou, de repente iluminando-se. A solução tão
procurada parecia estar ali. "Talvez um cavalo possa puxar uma rena para fora de um
buraco.”
Depois, pensando no modo como poderia preparar a carne para conser vá-la, a idéia
foi naturalmente desenvolvendo-se. Se ela fosse esquartejar o ani mal nas estepes, o
cheiro de sangue era inevitável e atrairia as feras, inclusive algumas que ela nem
conhecia. Talvez não fosse um leão da caverna que ouvi ra atacando as renas, mas um
outro felino: tigre, pantera, leopardo. - .Eram animais que podiam não ser do tamanho dos
leões, mas por outro lado não eram bichos que se matasse com funda. Até um lince
ainda ia, mas felinos de grande porte era coisa bem diferente, sobretudo em campo
aberto. Perto da caverna, entretanto, protegida por uma parede nas costas, seria possível
botá los para fugir. Uma pedra voando com força talvez não fosse fatal, mas dava para
machucar. Se l-luiin tinha possibilidade de arrastar uma rena para fora de um buraco, por
que não também até o vale?
Mas para isso teria antes de transformar Huiin num cavalo de tração.
Havia achado que a única coisa que precisaria fazer era atar a rena a Huiin com
cordas e correías. Não lhe ocorreu que a potranca pudesse não aceitar.
Aprender a montar fora um processo tão inconsciente que ela ignorava ser
necessário treinar Huiin para puxar uma carga. Mas, tão logo botou os arreios, percebeu.
Após algumas experiências que a levaram à total reformulação da idéia inicial e feitas as
adaptações necessárias, o cavalo começou a aceitar a idéia e ela achou que a coisa
poderia funcionar.
Quando viu a potranca puxando o tronco, Ayla lembrou-se do clã. "Se já me
achariam esquisita por viver com um cavalo, imagine então se os homens À me
vissem agora. Só que eles eram muitos e tinham as mulheres para preparar acame e
carregá-la para a caverna. Nenhum homem tentou fazer isso sozinho.”
180 181 .4 Espontaneamente, ela deu um abraço em Huiin, apertando a sua testa
contra o pescoço da potranca.
- Você é uma sorte na minha vida, Huiin. Não sei o que faria sem você. E se os
Outros forem iguais a Broud? Nunca deixarei que ninguém lhe faça mal. Gostaria de
saber o que fazer da minha vida.
As lágrimas subiram aos olhos, depois as enxugou e desatou os arreios.
- Bom, nesse instante eu sei. O que tenho a fazer é não deixar escapar a manada
dos machos que deve estar vindo por aí.
A manada das Qmeas estava com uma vantagem de apenas poucos dias sobre a
dos machos. Eles caminhavam a passos vagarosos. Logo que os avis tou, não foi difícil
para Ayla observar-lhes os movimentos e saber que, de fato, seguiam pela mesma trilha.
Deu perfeitamente tempo para ela apanhar os seus apetrechos e galopar, passando-lhes
à frente. Ela acampou perto do rio, um pouco mais abaixo do ponto onde as fêmeas o
haviam cruzado, e se dirigiu para o lugar da travessia carregando o pau de cavar, o osso
do ilíaco que lhe servia de pá, e um pano de couro para arrastar a terra.
Havia duas trilhas mais marcadas e duas outras menos pisadas. Todas passando
pela moita de arbustos. Ela escolheu uma das trilhas maiores para cavar a sua armadilha,
suficientemente perto do rio, de modo a surpreender as renas caminhando em fila única
e, ao mesmo tempo, longe bastante para que o buraco não se enchesse de água antes
de estar terminado. Quando aca bou de cavar, o sol se aproximava do horizonte. Ela
assoviou chamando Huiin e foi ver a que dist5ncia se achava a manada. Calculava que
no dia seguinte estaria chegando na beirada do rio.
Ao voltar para o rio, a luz era pouca, mas mesmo assim a fenda aberta no terreno
estava demasiadamente visível. "Nenhum animal vai cair nesse bu raco. Facilmente vai
vê-lo e passar ao redor", pensou desanimada. "Bom, de qualquer modo está muito tarde
para fazer algumã coisa. Amanhã verei o que posso arranjar.”
Mas o amanhã chegou sem que nenhuma idéia brilhante lhe ocorresse. O céu à
noite ficara encoberto. Ela acordou com pingos de água batendo. lhe no rosto. O dia
amanhecia trazendo uma luz difusa e triste. Na noite . tenor não armara o velho couro na
forma de barraca, já que o céu estava claro quando fora dormir, e agora ele se achava
úmido e enlameado. Ela o estendera para enxugar, mas no momento ainda estava mais
úmido ainda. As gotas que a tinham acordado foram apenas as primeiras de muitas. Ela
se enrolou na pele de dormir e, depois de remexer inutilmente em suas cestas, viu que se
esquecera de trazer o capuz de carcaju. Puxou, então, uma ponta da pele para cima da
cabeça e se enroscou junto do que restava de uma fogueira.
Um relâmpago cortou a planície iluminando a terra até o horizonte. Momentos
depois, vindo de longe, ouviu-se um rugido de advertência. Foi como um sinal para que
as nuvens se despencassem num novo dilúvio. Ayla apanhou o couro molhado e o
enrolou ao redor de seu corpo.
Gradualmente, a luz do dia foi deixando entrever a paisagem, tirando das sombras
as fendas da terra. As estepes desabrochavam numa palidez cinzenta, como se as
nuvens que se despencavam sobre elas desbotassem as suas cores. Até o céu se
mostrava num tom indefinido: nem azul, nem cinza, nem branco.
A água começou a émpoçar, quando a fina camada de terra permeável por cima do
nível de permafrost ficou saturada. No entanto, a terra congela da embaixo era tão dura
quanto as montanhas geladas ao norte. No verão, quando o calor penetrava no solo um
pouco mais profundamente, o nível congelado abaixava, mas a camada de permafrost
permanecia impenetrável. Não havia drenagem. Sob certas condições, a terra saturada
transformava-se em traiçoeiros pântanos de areia movediça, capazes de tragar um
gigantesco mamute. Se tal ocorresse nas proximidades de uma geleira, de deslocamento
imprevisível, esse mamute poderia conservar-se congelado lá por todo um mi lénio.
De um céu cor de chumbo eram despejados pingos imensos que caíam numa poça
negra que fora antes uma fogueira. Ayla observava as gotas caí rem, criando crateras
que se estendiam em anéis de lama. Naquele momento tudo o que queria era estar em
sua boa e confortável caverna. Um frio que chegava aos ossos atravessava os seus
calçados encharcados, mesmo estes ten do sido impermeabilizados com gordura e
estando forrados com capim. Todo aquele pantanal de terra empapada esfriava o seu
entusiamo pela caçada.
Ela se dirigia a uma área onde o terreno se mostrava mais elevado, quan do as
poças começaram a extravasar, abrindo canaletas de água lamacenta que corria na
direção do rio, carregando galhos, paus, capim e folhas velhas. "Por que simplesmente
não vou embora daqui?", perguntava-se, enquanto subia a ladeira, carregando as suas
cestas para o alto.Ela levantou.lhe as tampas, espiando dentro. À chuva corria pelo
trançado de folhas de taboa, mas o conteúdo no interior estava seco- "Não vai adiantar.
Devia deixar Huiin carregar isso e ir embora de uma vez. Nunca vou conseguir pegar uma
rena. Nenhuma vai cair no buraco, só porque eu desejo. Talvez possa apanhar um velho
macho retardatário. Mas a carne é horrível de dura e o couro sempre já está muito
estragado.”
Soltando um suspiro, enrolou-se mais apertada no manto de pele e no velho couro
da barraca. "Mas não é possível! H4 tanto tempo que estou plane jando e trabalhando
para essa caçada, que não vou permitir que uma chuvazi nha boba estrague tudo. Talvez
não pegue a rena, mas afinal essa não será a 182 183 primeira vez que um caçador volta
de mãos abanando. E se não tentar, aí mesmo é que nunca vou conseguir nada.”
Ela subiu numa formação rochosa quando as corredeiras ameaçaram minar a
pequena elevação onde se achava. Com os olhos semicerrados, ten tava enxergar
através da chuva, procurando ver algum sinal de melhoria do tempo. Nenhuma árvore,
nenhum bloco grande de pedra para abrigá-la na quele chapadão descampado- Ao seu
lado, em meio ao aguaceiro, Huiin, com a crina pingando, também esperava
pacientemente a chuva passar. A esperança era a de que as renas também estivessem
esperando. Ela ainda não tinha tudo pronto. Quando a manhã ia pela metade, a sua
disposição come çou novamente a fraquejar, mas então não tinha vontade de se arredar
do lugar.
Por volta do meio do dia, as nuvens, com a habitual imprevisibilidade da primavera,
começaram a abrir-se e rajadas de vento se incumbiram de espa lhá-las. Em pouco
tempo, já não se via nenhum sinal delas no céu e as cores primaveris luziam numa
cintilação úmida e fresca sob a luz de um glorioso sol. A terra, revigorada, soltava seus
vapores, devolvendo a umidade à atmos fera que os ventos secos sugavam com avidez,
como se soubessem que as geleiras iriam confiscar-lhes uma parte - Se não a confiança,
pelo menos a disposição voltou. Ela sacudiu o pesado couro de auroque e o dependurou
num arbusto alto, esperando que desta vez ele secasse um pouco. Os pés estavam
úmidos, mas não molhados. Ela re solveu não fazer caso. Aliás, tudo estava úmido.
Dirigiu-se então para o lugar onde as renas iriam cruzar o rio. Mas o coração dela foi lá
embaixo quando não viu o seu buraco. Olhando mais de perto, viu uma poça
transbordando de lama e atolada com folhas, galhos e entulhos.
Cheia de determinação, foi buscar a cesta para esvaziar o buraco. No seu caminho
de volta, tinha de olhar com muita atenção para poder ver de longe o lugar onde se
achava a armadilha. De repente, sorriu. "Se para mim é difícil ver o buraco no meio de
toda essa galharia e emaranhado de folhas, uma rena durante a corrida talvez não possa
enxergá-lo também. Mas a água eu não posso deixar dentro. - - Deve haver uma outra
maneira. .
- - Galhos de salgueiro são bastante compridos, dariam para ser atra vessados por
cima do buraco. Ora, por que eu não poderia fazer uma cobertu ra com varas de
salgueiro e folhas? Teria de ser pouco resistente para se partir com o peso da rena e ao
mesmo tempo bastante forte para agüentar a carga de galhos e folhas." Subitamente, ela
deu uma risada alta. O cavalo relinchou res pondendo e se aproximou.
- Oh, Fluiin! Talvez essa chuva não tenha sido de todo má.
Ela começou a esvaziar o buraco, sem se incomodar de estar fazendo um serviço
sujo e nojento. A cova não era multo profunda, mas cavando, per cebeu que o nível da
água ficara mais alto. Só estava conseguindo enchê-lo ainda mais. Ao olhar para o rio,
agitado e lamacento, reparou que também ele estava mais cheio. Embora não o
soubesse, a chuva quente havia amolecido algo da camada subterrânea gelada que
formava a base rochosa subjacente à superfície.
Camuflar o buraco também não foi tão fácil como imaginara. Teve de andar boa
distância, batendo o terreno atrás de galhos de um salgueiro atarra cado para conseguir
ajuntar alguns caniços.
A larga camuflagem trançada afundou no meio quando ela foi colocá la, obrigando-a
a estaqueá-la ao redor do buraco. Depois de ter espalhado as folhas e ramas, pareceu-
lhe que ainda continuava bastante visível. Não estava muito satisfeita, mas contava com
que fosse dar certo.
Coberta de lama, voltou a caminhar rio abaixo, olhando ansiosa para o curso d'água.
Assoviou para l-luiin. As renas estavam mais longe do que tinha pensado. Se o terreno
estivesse seco, estariam correndo para chegar rapida mente ao rio, mas com tanta água
empoçada e canaletas abertas, não tinham pressa, podiam beber no momento em que
quisessem. Ela estava certa de que só chegariam no costumeiro lugar de cruzar o rio na
manhã seguinte.
Voltou para seu acampamento e tirou com prazer a roupa e os calça dos para se
meter dentro do rio. Estava frio, mas ela não se importou. Acos tumara-se. Lavou-se da
lama, depois estendeu a roupa e os calçados sobre uma pedra. De tanto ficar fechados
dentro do couro molhado, os pés estavam brancos e enrugados. Até a calosidade nas
solas havia amolecido. Dava graças por existir aquele bloco de pedra ali. Estava quente
do sol e era um lugar seco onde podia acender uma fogueira.
As ramas mortas na parte inferior dos pinheiros em geral se conserva vam secas,
mesmo sob forte aguaceiro, e o pinheiro, perto do rio, apesar da al tura de um arbusto,
não era exceção. Em instantes, com a ajuda das acenda lhas que sempre carregava e de
suas pedras de fazer fogo, tinha uma pequena fogueira ardendo. Inicialmente, alimentou
o fogo apenas com gravetos e pe quenas lascas de madeira, até que desse para usar a
lenha maior - de combus tão mais lenta - que armou de uma forma cônica. Ela conseguia
acender o fogo e conservá-lo vivo, mesmo sob chuva, desde que não fosse muito forte.
Era apenas uma questão de dar partida e fazer com que o fogo estivesse bem pegado
para então usar toras grandes que queimavam à medida que iam se cando.
Ela deu um suspiro de felicidade ao sorver o primeiro gole de chá quen te, depois de
haver comido os seus bolos de viagem. Os bolos eram nutritivos e matavam a fome, além
de práticos para serem levados em viagem, mas o chá quente ëra muito mais gratificante.
O couro ainda estava molhado, mas ela armou assim mesmo a barraca, perto da fogueira
para que ele se secasse en 184 185 quanto dormisse. No céu, as nuvens a oeste
tapavam as estrelas. A sua espe rança era a de que não fosse chover outra vez. Depois
de dar umas palma dinhas carinhosas em Huiin, meteu-se debaixo da pele, enrolando-a
no corpo.
Estava escuro. Ayla, completamente imóvel, tinha os ouvidos alertas. Huiin se
remexeu relinchando baixinho, e ela ergueu um pouco o corpo para olhar à sua volta.
Uma luz fraca começava a surgir no oriente. Então ouviu um som que lhe eriçou os Ølos
na nuca, compreendendo o que a fizera acordar. Poucas vezes o havia ouvido, mas sabia
que o rugido vindo da margem oposta era o de um leão da caverna. Huiin relinchou
nervosa e Ayla levantou-se.
- Está tudo bem, Huiin. É um leão, mas ele está longe - ela pôs mais lenha na
fogueira. - Deve ter sido o rugido de um leão da caverna que ouvi mos quando
acampamos aqui há uns tempos atrás. Parece que vivem no outro lado do rio. E
certamente vão apanhai uma rena também. Dou graças por ser de dia quando formos
atravessar o território deles e espero que estejam bem cheios com a rena enquanto
estivermos passando por lá. Bom, vou fazer um chá. - , depois, teremos que nos
aprontar.
A luz no céu já começava a ficar rosada quando ela terminou de arru mar as cestas
e foi amarrar os arreios em liuiin. As lanças, atou-as firme mente nos suportes dentro das
duas cestas e montou, sentando na frente des tas, com um pau de cada lado, apontando
as suas afiadas cabeças para o ar.
Partiu, então, ao encontro das renas, mas dando uma volta grande de modo a se
colocar por trás da manada. Só depois que a avistou é que inter rompeu o galope de
Huiin, pondo-se numa marcha mais lenta. A potran ca pegou facilmente o passo da
manada. Observando as renas de cima do cava lo, Ayla notou que o chefe delas, nas
proximidades do rio, pôs-se a andar mais devagar, farejando de longe a estranheza
daquela lama e folhas cobrindo a ar madilha. Ela sentia que um nervosismo de alerta
corria entre os animais.
Quando a primeira rena, usando a trilha alternativa, perfurou a compac ta barreira de
arbustos para chegar ao rio, Áyla resolveu que chegara o mo mento de agir. Respirou
fundo e, soltando um berro alto, inclinou o corpo para a frente, ordenando a Huiin que
disparasse na direção da manada.
As renas que iam atrás saltaram, passando adiante das que estavam à frente,
empurrando-as para o lado. Apavoradas, todas queriam pular à fren te, fugindo do assalto
daquele cavalo com uma mulher aos berros em seu lombo. No entanto, pareciam evitar a
trilha que conduzia à armadilha. Ayla, com o coração nas mãos, via os animais contornar,
pular por cima ou arrumar umjeito de se esquivar do buraco.
Então reparou um tumulto acontecendo em meio à confusão da corri da, achando ter
visto unia das galhadas afundando-se, enquanto as outras se agitavam, formando um
redemoinho ao redor de umespaço vazio. Às pres sas, arrancou as lanças dos suportes
nas cestas, apeou do cavalo e se pôs a correr. Uma rena, com olhar desesperado, estava
atolada no lamaçal do bura co, tentando sair. Desta vez, a pontaria foi certeira. A pesada
lança cravou no pescoço, rompendo uma artéria. O belo animal tombou no fundo do
buraco, deixando de lutar.
Estava terminado. Tudo acabado. Muito mais rapidamente e fácil do que ela tinha
imaginado. Respirava ofegante, mas não de cansaço. Tan tas energias foram gastas no
planejamento - as preocupações, o nervosismo, o esforço de pensar - que a caçada em
si, de tão fácil execução, não deu para extenuá-la. Ayla estava ainda tensa, mas não
tinha como expandir as suas emoções e nem alguém com quem comemorar.
- l-Iuiin! Conseguimos, conseguimos!
Os gestos e os gritos espantavam o animal. Ela saltou sobre ele, dispa rando numa
esfuziante galopada pelas planícies. As tranças voavam às suas costas, os olhos ardiam
febris, e um sorriso alucinado sombreava-lhe o rosto. Era uma mulher selvagem. Mais
impressionante ainda tornava-se - se lá hou vesse alguém para impressionar-se -
montada num animal selvagem cujo olhar esgazeado e orelhas para trás davam-lhe,
embora de natureza algo dife rente, uma expressão francamente frenética.
Ela voltou fazendo uma curva muito aberta e parou o cavalo uru pouco antes para
fazer a pé a distância que restava. Desta vez, olhando para a rena morta dentro do
buraco lamacento, soltou um profundo suspiro de alívio e tinha boas razões para isso.
Já mais calma, retirou a lança do pescoço do animal e deu um assovio. Huiin
mostrava-se desconfiada e, antes de colocar-lhe os arreios, Ayla tentou sossegá-la com
carícias e pahriadinhas encorajadoras. Sem o cabresto para conduzi-la, era preciso ir
com jeito instigando e adulando ao mesmo tempo. Quando por fim Hulin acalmou-se,
Ayla atou as cordas do arreio aos chifres da rena.
- Agora puxe, Huiin - dizia, animando. - É igual ao tronco.
O cavalo deu um passo para a frente, mas ao sentir o peso retrocedeu. Então,
respondendo a expressões de encorajamento, veio à frente outra vez, inclinando o corpo
contra os arreios e esticando as cordas. Vagarosamente, com Ayla ajudando de todos os
modos possíveis, Huiin foi trazendo a rena para fora do buraco. - Ayla exultava. Isso já
significava pelo menos não ter de trinchar o ani mal no fundo de um buraco barrento. Não
sabia ao certo até que ponto Huiin estava disposta a colaborar. Contava com que o
animal fosse usar a sua força para trazer a rena até o vale. Mas era preciso ir devagar,
cada coisa de uma vez. Conduzia a potranca até a beirada do rio e retirou as plantas
emaranhadas no chifre da rena. Em seguida, fez nova arrumação nos cestos, de modo a
colocar 186 187 um dentro do outro e os amarrou às costas. A carga era incômoda,
principal mente com as duas lanças apontando para cima, mas com a ajuda de um bloco
de pedra deu um jeito de montar. Os pés estavam descalços e a capa de pele ia
embalada no colo para que não se molhasse. Por fim, tocou Fluiin para dentro do rio.
Era uma parte larga e rasa que podia ser atravessada a pé - uma das ra zões por
que instintivamente as renas haviam escolhido aquele trecho para fa zer a travessia -
mas com a chuva o nível das águas havia subido. Huiin con seguiu firmar o seu passo em
meio às correntezas, e a rena logo que entrou na água facilmente flutuou. Passar pelo rio
teve uma vantagem que Ayla não pensara. Quando chegou à outra margem a rena
estava lavada, limpa da lama e do sangue.
Ao sentir o peso da carga novamente, Ruim por instantes quis emperrar, mas Ayla já
havia apeado e a ajudou a rebocar a rena até a praia. A distância era pequena. Ela
desatou as cordas. A rena agora já estava um pouquinho mais perto do vale, mas antes
de prosseguirem havia alguns serviços a fazer. Com a sua afiada faca de sílex ela fez um
talho na garganta da rena, e, em seguida, um corte reto que ia do ânus, passava pela
barriga e o peito, e chegava até a garganta. A faca, ela a segurava pondo o indicador ao
longo do lado cego, com a parte afiada voltada para cima e inserída logo abaixo da pele.
Se o pri meiro corte fosse bem-feito, sem cortar a carne, a retirada da pele depois fica va
muito mais fácil.
O corte seguinte já foi mais profundo, era para remover as entranhas. As partes
aproveitáveis - estômago, intestinos e bexiga - ela lavou-as e tornou a guardá-las na
cavidade abdominal, junto com as outras comíveis.
Uma esteira larga estava enrolada dentro de uma das cestas. Ela a esten deu sobre
o chão e, bufando com o esforço, puxou a rena para cima do tran çado de fibras. Dobrou-
o sobre a carcaça do animal, fazendo um embrulho amarrado com cordas, que atou às
outras presas ao arreio de Ruim. Refez, em seguida, as cestas, apertando firmemente as
lanças em seus lugares. Sentindo- se satisfeita, tornou a montar no cavalo.
Na terceira vez que apeou para retirar os bolos de capim, pedras e ga lhos que
tinham amontoado na esteira, já não se sentia muito satisfeita. Aca bou resolvendo
caminhar ao lado de Ruim para animá-la, mas o embrulho da rena ficou engastalhado em
alguma coisa e ela foi soltá-lo. Somente quando paroi,i para vestir os seus calçados é
que reparou num bando de hienas perse guindo-a. As primeiras pedradas serviram para
mostrar àqueles bichos ardilo sos e sanguinolentos o alcance de seus tiros. Que eles
tratassem de manter-se a distância.
'Porcaria de animal fedorento", pensou com um arrepio de nojo, fran zindo a cara.
Ayla sabia que as hienas também caçavam e bem demais, infeliz- mente. Ela já matara
uma delas com a sua funda. Foi quando dera a conhecer o seu segredo e o clã ficou
sabendo que caçava. Na ocasião, Brun não teve ou tro remédio senão castigá-la, assim
exigiam as tradições dos clãs.
As hienas também deixavam Ruim nervosa. E não era por causa do me do instintivo
que lhe despertavam os animais carnívoros. Jamais esquecera do bando de hienas que a
atacou quando Ayla matou a égua. E, agora, a potran ca mostrava-se bastante indócil.
Levar a rena até a caverna estava tornando-se um problema bem maior do que Ayla
previra. Contava que fossem dar conta do trabalho antes do anoitecer.
Ela parou para descansar num lugar onde o rio, após muitos volteios, tornava a
encontrar-se. Todas aquelas paradas e retomadas do caminho eram muito cansativas.
Encheu de água o seu odre e uma grande cesta impermeá vel que levou para Ruim,
ainda amarrada à trouxa enlameada que continha a rena. Ela sentou-se sobre uma pedra
para comer um bolo de viagem e olha va para o chão sem enxergá-lo. Pensava apenas
numa maneira mais fácil de botar a rena no vale. Levou bom tempo até que percebesse
certas alterações no terreno. A terra estava pisada, a relva amassada e as pegadas eram
fres cas. Algum acontecimento convulsionando a ordem das coisas se passara ali e muito
recentemente. Ela levantou-se para examinar de perto os rastos e aos poucos as peças
foram juntando-se.
Pelas pegadas na lama seca perto do rio concluiu que se achava num território há
muito ocupado por leões da caverna. Imaginava que houvesse um pequeno vale nas
redondezas, com algum paredão rôchoso dotado de uma caverna bem abrigada, onde
uma leoa teria parido dois saudáveis leõe zinhos no princípio do ano. E aquele era o lugar
preferido dos animais des cansarem. Os filhotes estariam disputando algum pedaço
sangrento de car ne, mordiscando pequeninos nacos com os seus dentes de leite,
enquanto os machos, saciados, se regalavam ao sol da manhã e as mamães de pélos
lustro sos observavam com indulgência a brincadeira dos filhos.
Os majestosos leões eram senhores absolutos de seus domínios. Nada tinham a
temer, nenhuma razão para esperar um ataque de animais que eram suas presas. Em
circunstâncias normais, as renas jamais chegariam tão perto de seus caçadores, mas
aquele ser humano berrando loucamente em cima de um cavalo as tinha posto em
pânico. O rio não foi suficiente para interromper o estouro da manada. Os animais
dispararam através das águas e se depararam com uma família de leões. Os dois lados
foram tomados de surpresa. As renas quando perceberam que haviam escapado de um
perigo para se lançarem a um outro ainda maior se espalharam em todas as direções.
Pelos rastos, Ayla conseguiu reconstituir toda a história. E, agora, ali estava um
filhote de leão que, ainda muito novinho e lento, não tinha conse guido pôr-se a salvo do
tropel de cascos fugindo em disparada.
188 189 .2 Ayla se ajoelhou ao lado do leãozinho e, como boa curandeira, procu rou
por sinais de vida, O
corpo do animal se achava quente e talvez esti vesse com algumas costelas
quebradas. Estava à morte, mas ainda respirava. Pelas marcas na terra, ela deduzira que
a leoa vira o filhote e tentara reanimá lo. Como não conseguiu, foi embora, seguindo a lei
que rege todos os animais (exceção feita para aquele que caminha sobre as suas duas
pernas): que morram os fracos, se a vida está destinada para alguns.
Apenas no animal dito humano a sobrevivéncia está na dependência de algo mais
do que na força e capacidade de adaptaçãa. Comparativamente fraco em relação aos
seus rivais carnívoros, a sobrevivência do homem necessi ta da cooperação e
solidariedade de seu semelhante.
"Pobre bichinho", pensou Ayla. "Sua mãe não conseguiu ajudá-lo, não é?" Aquela
não era a primeira vez que o seu coração se apiedava de animais feridos e indefesos.
Por um momento, pensou em levar o leãozinho para a caverna, mas rápido descartou a
idéia. No tempo em que estava aprendendo o seu ofício de curandeira, Brun e Creb lhe
haviam dado licença para tratar de pequenos animais dentro da caverna. Mas Brun não
lhe permitira trazer um filhote de lobo e aquele leifozinho já era quase como um lobo
adulto. Algum dia teria o tamanho de Huiin.
Ela se levantou e abanou pesarosa a cabeça olhando para o animal mo ribundo.
Encaminhou-se na direção de Huiin, fazendo votos para que o fardo que levava arrastado
não fosse encalhar tão cedo. Ao se pôr a caminho, notou que as hienas estavam
preparando-se para segui-la. Ela pegou uma
pedra, mas ao virar-se viu que o bando tomava outra direção. Era de se esperar.
Assim se passava a vida no nicho que a natureza lhes havia reservado. As hienas ti
nham encontrado o filhote de leão. Ayla, entretanto, quando se tratava des se animal, se
tomava completamente irracional.
- Vão embora, suas fedorentas! Deixem o bichinho em paz!
Ela correu de volta, lançando pedras. Pelo ganido de dor de uma, viu que acertara
em cheio. As hienas trataram de correr, pondo-se fora do alcan cc das pedradas, mas
Ayla, tomada de raiva, partiu para cima delas.
"Bom, dessa vez vão ficar sabendo do seu lugar", disse para si mesma, protegendo
o filhote, aninhado entre as suas pernas abertas. Um sorriso de descrença passou-lhe
pelo rosto. "Mas o que estou fazendo? Por que estou afastando essas hienas de um
bichinho que de qualquer modo vai morrer? Além disso, se ele ficasse para as hienas,
elas me deixariam em paz.”
"Não posso levar esse leão comigo. Não agüentaria carregá-lo durante todo o
caminho. A única coisa que tenho de fazer é dar com a rena no vale. É ridículo o que
estou pensando.”
"Será que é? E se lia tivesse me abandonado? Creb disse que eu fui pos ta no
caminho dela pelo espírito de Ursus, ou talvez pelo Leão da Caverna, pois ninguém, a
não ser ela, iria parar para me pegar. lia nunca pôde ver nin guém ferido ou doente sem
tentar dar urna ajuda. Foi isso que fez dela uma boa curandeira.
"E eu também sou uma curandeira. Aprendi com lia. Quem sabe se esse filhote de
leão não foi posto em meu caminho para que eu o encontrasse? Quando peguei aquele
coelhinho, o primeiro animal que levei para a caverna, Iza disse que isso significava que
eu tinha jeito para curandeira. Bem, e agora tenho aqui esse bichinho ferido. Não posso
simplesmente abandoná-lo a essas feras nojentas.
"Mas como vou conseguir dar com esse bebé na caverna? Uma costela quebrada
pod perfurar um pulmão, se eu não tiver cuidado. Ele precisa ser enfaixado para que eu
possa removê-lo daqui. A correia que uso para puxar Huiin deve servir. Trouxe algumas
comigo.”
Ayla assoviou chamando o cavalo. Excepcionalmente, a carga que Fluiin arrastava
não bateu em nada, mas a potranca estava inquieta. Ela não gostava de estar no
território dos leões da caverna. A sua espécie também era presa natural dos leões.
Desde a caçada que estava nervosa e as paradas constantes para livrar a sua pesada
carga dos obstáculos no caminho só faziam irritá-la ainda mais.
Ayla, no entanto, toda concentrada no filhote de leão, não prestava atenção às
necessidades de Huiin. Depois de envolver as costelas do animal fe rido,a única maneira
que estava vendo de transportá4o seria no lombo de Huiin.
Mas isso era demais para a potranca. Quando percebeu a intenção de Ayla, ela deu
para trás. Tomada de pânico, bufava, empinando-se, querendo a todo custo livrar-se da
tralha acorrentada nela. Então, aos pinotes, saiu pelas estepes. A rena, embrulhada na
esteira de palha, ia sacolejando comos tran cos, até que acabou engastada numa pedra.
O freio veio aumentar ainda mais o pânico, provocando um novo surto de frenéticos
pinotes.
De repente, as correias se partiram e as cestas se inclinaram, desequili bradas pelas
pesadas lanças. De boca aberta, Ayla via, pasma, o cavalo inteira mente possesso
disparar numa carreira furiosa. Todo o conteúdo das cestas, exceto as lanças, foi
despejado no chão. Os dois comprido paus, por estarem muito seguros nas cestas
amarradas à cilha, saíram arrastados, insuficientes pa ra travar a corrida desembestada
de Huiín.
Ayla, que dava tratos à bola para descobrir uma maneira de. levar a rena e o filhote
de leão, subitamente viu o que buscava. Foi preciso esperar algum tempo até Huiin se
acalmar. Ela estava preocupada, com medo da égua se ma chucar. Assoviou chamando-
a. A sua vontade era ir atrás de Huiin, mas não queria largar a rena e o leãozinho à santa
misericórdia das hienas. O assovio surtiu efeito. O som em Huiin estava associado a
carinho, segurança e resposta 190 191 a estes estímulos. Fazendo uma curva aberta, o
cavalo voltou na dire o de Ayla.
Quando finalmente a potranca, exausta, coberta de espuma, aproximou- se, a única
coisa que fez Ayla foi, aliviada, abraçá-la. Depois de desatar os arreios e a cilha,
examinou com cuidado para ver se não havia ferimentos. Huiin, ofegante, relinchando
baixo e tristemente, encostou-se nela com as patas dianteiras separadas e trementes.
- Descance, Huiin - falou Ayla quando o cavalo parou de tremer, pa recendo mais
calmo. - Vou precisar mesmo de tempo para arrumar essas coisas.
Não passou pela cabeça de Ayla se zangar com o animal por ter ele em pinado,
fugido e derramado no chão as suas coisas. Ela não pensava nele como propriedade
sua, ou como qualquer coisa que estivesse às suas ordens. l-Iuiin era antes de tudo uma
amiga, uma companhia. Se o cavalo entrara em pânico, teve boas razões para isso. Ela
exigira demasiado dele. Ayla sentiu que não era o caso de querer dar uma lição e sim de
que ela devia conhecer os seus li. mites. No seu pensamento, a ajuda que tinha de Huiin
se fazia por livre e es pontânea vontade, e ela cuidava do cavalo simplesmente por amor.
Ayla apanhou o que deu para encontrar dos objetos espalhados pelo chão e, em
seguida, foi arrumar o conjunto formado pela cilha, arreios e ces tas. As lanças, ela as
prendeu do modo como haviam caído: com as pontas voltadas para o chão. Atou a
esteira, com que enrolara a rena, às lanças, for mando uma plataforma entre os dois
paus, como se fosse uma carroceria que não tocava no chão. Amarrou a rena à esteira e,
por último, com muito cuida do, o leãozinho desmaiado. Só então descansou. Huiin
parecia estar aceitando melhor a cilha e os arreios, permanecendo quieta, enquanto Ayla
fazia as arru mações.
Uma vez as cestas colocadas nos devidos lugares, eta deu uma última olhada no
filhote de leão e montou no lombo de Huiin. No caminho para o vale, admirava-se da
eficiência do novo meio de transporte. Somente com as pontas dos paus arrastando no
chão, sem a carga estar a todo instante chocan do contra obstáculos, o cavalo puxava o
peso muito. mais facilmente. Ayla, no entanto, só soltou realmente um suspiro de alívio
quando se viu no vale e em sua caverna.
Antes ela ainda fez uma parada para que Huiin descansasse e tomasse um pouco
de água, enquanto examinava o filhote. Ele respirava, mas ela tinha dúvidas se viveria.
"Por que teria sido posto um leãozinho no meu caminho?", perguntava-se. Mal havia ela
batido os olhos no animal, pensara no seu totem. Será que era desejo do Leão da
Caverna que ela tratasse do filhote?
Então um outro pensamento ocorreu-lhe. Se não tivesse resolvido trazer o
leãozinho, nunca teria pensado naquele meio de transporte tão cômodo. Se- ria o modo
usado pelo seu totem para lhe fazer essa revelação? Seria, então, uma graça que estava
recebendo? Bom, sendo ou não, ela estava convencida de que o leffozinho fora posto em
seu caminho por alguma razão e faria o que estivesse ao seu alcance para salvar a vida
dele.
11 - Jondalar, você não é obrigado a per manecer aqui só porque eu quero ficar.
- E o que faz você pensar que estou aqui só por sua causa? - respon deu Jondalar,
com mais irrita o do que pretendia deixar transparecer. Não era intenção sua parecer
melindrado com o assunto, mas no comentário de Thonolan havia mais verdade do que
gostaria de admitir.
Ele já esperava por isso. Apenas não queria acreditar que o seu irmão fosse
realmennte querer ficar e tomar Jetamio para companheira. Se bem que ele próprio se
surpreendeu com a sua pronta decisão de também querer ficar com os Sharamudoi. Não
gostaria de voltar sozinho. Era uma viagem longa demais para fazer sem Thonolan e
havia também qualquer coisa mais do que isso. Aquilo que o movera a dar uma pronta
resposta quando decidiu fazer pe la primeira vez essa viagem com o seu irmão.
- Você não devia ter vindo comigo.
Por momento, Jondalar ficou imaginando como o seu irmão podia saber tão bem de
seus pensamentos.
- Eu tinha o pressentimento de que nunca iria voltar para casa. Não que esperasse
encontrar a única mulher que poderia amar na vida, mas eu sen tia que ficaria viajando
até encontrar uma razão para parar - Os Sharannidoi são boa gente. - . aliás, acho que a
maioria das pessoas é, depois que se passa a conhecê-las. Eu não me importo de ficar
aqui e me tornar um deles. Mas você, Jondalar, você é um Zelandonii, Seja lá onde você
estiver, será sempre um Ze landonii. Você nunca se sentirá perfeitamente bem em outro
lugar. Volte, meu irmão. Faça feliz uma daquelas mulheres que andavam atrás de você.
Ins tale-se definitivamente num lugar e forme uma grande família e conte aos fi lhos de
sua casa da grande viagem que fez e do irmão que não voltou. Quem sabe algum dos
seus, ou dos meus, resolva talvez um dia fazer também uma longa viagem para encontrar
os parentes?
192 193 -Por que eu sou mais Zelandonii do que você? O que o faz achar que não
posso ser aqui tão feliz quanto você?
- Por uma razão muito simples. Você não está apaixonado. E ainda que estivesse,
estaria fazendo planos para levar a mulher com você e não para ficar aqui com ela.
- Por que você não leva Jetamio conosco para casa? Ela é competente, tem força de
vontade e é uma pessoa que sabe tomar conta de si mesma. Daria urna boa mulher
Zelandonií. Inclusive caça com os melhores caçadores. há se entender muito bem com
todo mundo.
- Eu não quero perder tempo. Seria um ano inteiro perdido na viagem. Encontrei a
mulher com quem quero viver. Pretendo colocar a minha cabeça no lugar, me estabelecer
e dar uma oportunidade a Jetamio para constituir fa mília.
Mãe?
- Onde está aquele meu irmão que iria viajar até a foz do Grande Rio - Algum dia
chegarei lá. Não há pressa. Você sabe que não fica tão lon ge assim. Talvez vá com
Dolando na próxima vez em que ele for buscar sal. Poderia levar Jetarnio comigo. Acho
que ela gostaria, mas sei que não irá que rer ficar muito tempo longe daqui. A casa
significa muito para ela. Jetamio nunca conheceu a sua mãe verdadeira, e quase morreu
de paralisia. O seu povo é importante para ela. E eu entendo,Jondalar, afinal tenho um
irmão parecido.
- Por que você está tão certo de tudo isso? - Jondalar abaixou os olhos, evitando o
olhar do irmão. - Por que acha que não estou apaixonado? Sere nio é urna bela mulher e
Darvo. . . - ele sorriu, fazendo desaparecer um pou co as rugas de preocupação em sua
testa - precisa ter um homem por perto. Talvez algum dia se tome até um bom cortador
de sílex, - Ora Jondalar, não é de hoje que eu o conheço. Mesmo vivendo com uma
mulher, isso não significa que esteja apaixonado por ela. Eu sei que você gosta do
garoto, mas não é razão para ficar aqui e se comprometer com a mãe. Até que esse é um
bom motivo para tomar Serenio como companheira, mas não uma razão para ficar aqui.
Volte e, se quiser, ache uma mulher mais velha e cheia de filhos para transformar todos
em cortadores de sílex. Mas vá para casa, Jondalar.
Antes que Jondalar pudesse responder, entrou correndo, ofegante, um garoto, perto
de seus dez anos. Era alto para a sua idade, mas magro, com um formato de rosto
comprido e os traços delicados e finos demais para um meni no. Os cabelos castanho-
claros eram lisos e não muito espessos, mas os olhos cor de aveia eram vivos e
brilhando com inteligência.
- Jondalar! - exclamou ele. - Estive procurando-o por toda parte. Do lando já está
pronto e os homens do rio estão esperando.
- Diga que já estamos indo, Darvo - falou Jondalar em shararnudoi.
Ele se virara para seguir o garoto que tinha saído correndo na frente, mas pa rou. -
Acho que a praxe manda que eu expresse os meus votos de felicidade - disse com um
sorriso no rosto que não deixava dúvidas quanto à sua sinceri dade. - De uma certa
forma, eu já esperava que você fosse formalizar a sua união. Mas quanto a se ver livre de
mim, pode esquecer. Não é todo o dia que um homem tem um irmão encontrando a
mulher de seus sonhos. Não perde ria por nada no mundo a sua cerimônia de núpcias.
O sorriso de Thonolan iluminou todo o seu rosto.
- Você sabe, Jondalar, a primeira coisa que eu pensei quando vi Jeta mio foi que ela
era um belo espírito da Mãe que tinha vindo para tomar agra dável a minha viagem para
o outro mundo. E eu iria com ela sem a menor he sitação.. . e ainda vou.
Enquanto Jondalar se punha atrás de Thonolan para sair, ele tinha a tes ta franzida.
Não gostava de pensar no seu irmão como um homem capaz de seguir uma mulher até a
morte.
O caminho, passando por uma densa floresta, ia em ziguezague, cheio de altos e
baixos, de modo a suavizar a descida da íngreme encosta. Enquanto os dois subiam para
o alto da montanha, a passagem se estreitava, fechada por um paredão rochoso que os
punha à beira do precipício, quando, então, con tornava o penhasco, numa estradinha
laboriosamente cavada na pedra, que mal dava passagem para dois. Jondalar ia atrás de
Thonolan. Ele ainda sentia um aperto na virilha cada vez que passava por ali e olhava
embaixo o largo e profundo Grande Rio Mãe, apesar de já estar lá desde o último
inverno, mo rando com os Shaxnudoi, da Caverna de Dolando. Contudo, aquele acesso
ain da era melhor do que os outros.
Nem todas as pessoas designadas pelo nome da caverna viviam em caver na. Era
comum encontrar cabanas erguidas nos campos. Mas os abrigos natu rais nas rochas
eram procurados e valorizados, sobretudo nas épocas mais du. ras do inverno. Uma
caverna ou uma pedreira em balanço podia ser uma loca lizaflo desejável, que em outras
condições seria rejeitada. Dificuldades apa rentemente insuperáveis tinham de ser
sobrepujadas para se conseguir uma dessas moradas permanentes. Jondalar já vivera
em cavernas situadas em ín gremes penhascos com estreitas passagens, beirando
precipícios, mas nenhuma como esta dos Shamudoi.
Em estágios anteriores, a crosta da terra composta de rochas sedimenta res,
calcárias e xisto erguera-se na formação das montanhas de picos nevados. Mas os
cristais de rocha de maior dureza, expelidos durante as erupções vul cánicas - causadas
pelas convulsôes da terra - foram misturados ãs rochas menos consistentes. Toda a
planície por onde haviam passado os dois irmãos, no verão anterior - que já fora a bacia
de um vasto mar interno - estava cer cada de montanhas. Ao longo das eras, o canal do
mar cavou sua passagem 194 195 através de uma serra -. outrora ligada à grande cadeia
de montanhas do norte passando por uma série de patamares, até encontrar o rio
embaixo. Certos tre - e secou a bacia.
As montanhas, entretanto, somente recuaram onde a matéria se mostra va
inconsistente, permitindo nada mais do que uma estreita garganta limitada por rochedos
impenetráveis. O Grande Rio Mãe mais a Irmã e muitos canais e riachos passavam
todos, formando um fabuloso caudal, pela mesma garganta. Em seu curso de mais de
150 quilômetros, havia uma série de quatro gargan tas que faziam o portal para os
terrenos baixos, quando então o rio encontra ria o seu destino. Em certos pontos, o rio
chegava a ter um quilómetro de lar gura, em outros nem 200 metros havia a separar os
penhascos.
No lento processo de abrir um caminho de mais de uma centena de qui lômetros,
atravessando cadeias montanhosas, as águas do mar em recuo for maram rios,
cataratas, lagunas e lagos, muitos dos quais deixariam marcas. No alto do penhasco à
esquerda, próximo à primeira das estreitas gargantas, acha va-se um vasto recôncavo:
uma larga plataforma com uma superfície supreen dentemente plana. Lá existira uma
pequena baía, o recôncavo de um lago, formado pela ação constante das águas e do
tempo. O lago há muito desapare cera, deixando um terraço em forma de U, muito acima
do atual nível das águas, e tão alto que nem mesmo durante as enchentes de primavera,
que al teravam enormemente o nível do rio, esse se aproximava de sua borda.
Um grande campo coberto de relva circundava o íngreme terraço, em bora a
camada de terra não fosse profunda, como se podia ver por alguns bu racos rasos
usados para cozinhar. A uma certa distância começavam aparecer, em meio ao relvado,
arbustos e árvores que se agarravam aos paredões escar pados, subindo por estes.
Próximo à face posterior do penhasco, as árvores atingiam tamanho respeitável e o
matagal tornava-se mais denso, cobrindo a encosta. De lado, chegando perto da muralha
do fundo, estava o melhor do terraço: uma pedreira de arenito que projetava-se em
balanço, deixando um vão embaixo. Ali encontravam-se cabanas de madeira, dividindo a
área em unidades habitacionais, posicionadas ao redor de um espaço mais ou menos
circular, com uma
casa principal e algumas outras menores. Era a entrada e o lugar de reuniões.
Do lado oposto, o terreno apresentava outra valiosa característica: uma cascata alta
e fina que descia do rebordo do penhasco, desenhando-se pelas pedras para bater sobre
uma rocha saliente e, dali, cair num gracioso lago, fluindo ao longo do paredão, até a
extremidade do terraço, onde Dolando e mais alguns homens esperavam por Thonolan e
Jondalar.
Dolando, ao ver os dois surgindo na curva da pedreira, acenou para eles e, em
seguida, começou a descer o caminho rente ao precipício. Jondalar ia- atrás do irmão.
Quando ele chegou ao paredão do fundo, Thonolan já estava descendo por uma precária
trilha margeando o riacho que rolava pela encosta, chos da trilha seriam intransitáveis se
não fossem os degraus pacientemente esculpidos nas rochas e uma grossa corda para
servir de corrimão. Só o borrifar cohstante da água já bastava para tornar o caminho
perigosamente escorrega dio, até mesmo no verão. No inverno, era uma massa
intransponível de pin gentes congelados.
Na primavera, apesar de mudado pelas corredeiras e haver fragmentos de gelo
dificultando a passagem, os Sharamudoi - tanto os Shamudoi, caça dores de camurças,
como os Ramudoi, a população ribeirinha-subiam e des ciam por lá como os antilopes
que habitavam a região. Enquanto observava o seu irmão fazendo a descida com ar
displicente, como se tivesse andado por ali toda a sua vida, Jondalar pensava que pelo
menos numa coisa Thonolan tinha razão. Ele, ainda que passasse lá o resto de sua vida,
jamais se acostumaria com aquele caminho que levava ao terraço no alto da montanha.
Deu uma olhada para o rio, revolvendo-se tumultuosamente lá embaixo, e voltou a sentir
o cos tumeiro aperto nas virilhas. Então respirou fundo, cerrou os dentes, e avançou pelo
caminho.
Diversas vezes deu graças por haver ali a corda, quando sentia o seu pé
escorregando sobre algum pedaço de gelo invisível. Só quando chegou lá em baixo é que
soltou, aliviado, a respiração. O ancoradouro, feito de troncos amarrados uns aos outros,
boiando e se sacudindo com a correnteza, era de uma estabilidade reconfortante. Sobre
a plataforma que o cobria em mais da metade havia uma série de construções de
madeira, parecidas às que existiam debaixo da pedreira no terraço da montanha.
Ao passar pela plataforma, Jondalar foi cumprimentando os moradores das casas
flutuantes, enquanto na ponta do ancoradouro Thonolan preparava- se para entrar num
dos barcos lá estacionados. Logo que Jondalar entrou, sol taram as amarras e
começaram a subir o rio, tocando o barco com remos de cabos compridos. Conversava-
se o mínimo. As correntezas com o degelo da primavera tornavam-se ainda mais fortes e
profundas - Os homens de Dolando limitavam-se a vigiar os escombros flutuando,
enquanto os Ramudoi remavam. Jondalar instalou-se na parte traseira do barco e ali ficou
pensando naquela singular relação que os Sharamudoi mantinham entre si, Os povos
que havia conhecido tinham se especializado segundo crit diferentes, e ele muitas vezes
se perguntava o que levava as pessoas a se decidi rem por uma determinada forma de
trabalho. Em algumas populações, os ho mens estavam habituados a realizar certos tipos
de serviços e as mulheres ou tros. Com o decorrer do tempo, as funções foram ficando
tão associadas ao sexo que nenhuma mulher faria aquilo que era considerado como
trabalho de homem, e nenhum homem faria qualquer coisa tida como uma atribuição fe
minina. Já em outras, as obrigações e -os serviços domésticos, a tendência era 196 197
basear-se no critério da idade. Aos jovens, caberia os trabalhos mais pesados, deixando-
se aos velhos as ocupações mais sedentárias. Em certos grupos, a educação das
crianças estava totalmente a cargo das mulheres, enquanto em outros, grande parte da
responsabilidade de orientar e educar cabia às pessoas de idade, sem distinção de sexo.
Com os Sharamudoi, a especialização se fez de uma forma que determi nou a
formação de dois grupos distintos, mas ligados por relação de parentes co. Os shamudoi
caçavam camurças e outros animais nos altos picos das mon tanhas e penhascos,
enquanto os ramudoi especializaram-se na caça - pois o processo empregado era mais
ode uma caçada do que o de uma pescaria - do enorme esturjão que chegava a medir
nove metros de comprimento. Também pescavam grandes carpas, percas e lúcios. A
divisão do trabalho os levou a ser duas tribos distintas, mas as necessidades mútuas os
conservavam unidos.
Os shamudoi haviam desenvolvido grandemente a técnica de tratar o couro da
camurça. As belas peles, macias e aveludadas, que produziam eram únicas e muitas
tribos vinham de longe exclusivamente para negociá-las. O se gredo de sua fabricação,
eles o mantinham rigorosamente guardado, mas Jon dalar conseguiu saber que usavam
no processo de curtição o óleo de certos peixes. Com isso os shamudoi precisavam
manter estreito relacionamento com os ramudoi. Por outro lado, os barcos feitos de
carvalho, com encaixes de pi nho e faia e manchões laterais, presos por estilhas de teixo
e salgueiro, faziam com que a população ribeirinha precisasse se valer dos
conhecimentos dos mo radores das montanhas para achar-lhes as madeiras adequadas.
Cada família shamudoi tinha a sua contrapartida ramudoi e o relaciona mento entre
as duas tribos fundamentava-se numa complexa relação de paren tesco que podia ou
não se fazer através de laços de sangue. Jondalar ainda não sabia ao certo como se
processavam essas relações, mas depois que o seu irmão e Jetamio se tomassem
companheiros, T'honolan seria aquinhoado com uma infinidade de "primos" pertencentes
aos dois grupos, embora Jetamio não ti- vesse nenhum parente vivo que fosse
relacionado a ela pelo sangue. Havia al gumas obrigações mútuas que se esperava dos
dois; apenas no caso de Thono lan isso envolvia pouca coisa mais do que o uso de
certas formas de tratamen to quando ele se dirigisse aos membros de sua nova família.
Como não estivesse selada a sua união, ele ainda tinha toda a liberdade de partir,
se assim o desejasse, mas se ficasse seria muito bem acolhido. No en tanto, os laços
que uniam os dois grupos eram tifo fortes que, caso as mora- aias se tornassem
demasiadamente pequenas e uma ou duas famílias dos sha mudoi resolvessem mudar
pan iniciar uma nova Caverna, as contrapartidas ra mudoi teriam também de ir junto.
No caso de uma das famílias querer mudar e a outra não, se fazia neces sário a
celebração de certos ritos sacramentando a troca de laços. Em princí pio, os shamudoi
poderiam insistir e os ramudoi seriam obrigados a segui-los, pois em questões
relacionadas à terra a decisão ficava com os shamudoi. Os ramudoi, entretanto, tinham
também o seu peso. Poderiam, por exemplo, re cusar a transportar os seus parentes
shamudoi ou não querer ajudá-los a pro curar um bom lugar para morar, uma vez que
tudo que se referisse à água era da competência deles. Na prática, porém, as decisões
de questões importantes, como a mudança de moradia, eram em geral tomadas em
conjunto.
Havia ainda outros laços - referentes tanto à vida prática como espiri tual - que
fortaleciam a relação, muitos dos quais centrados nas embarcações. Apesar de que as
decisões nesse campo fossem prerrogativa dos ramudoi, os barcos, como bem,
pertenciam aos shamudoi e, como tal, eles tinham uma participação nos produtos obtidos
com o seu uso, mas proporcionalmente ao que davam em troca. Novamente, na prática,
a questão se passava de forma menos complicada do que regiam as regras para resolver
disputas. A participa ção subentendida do produto e o respeito pelos territórios, direitos e
a com petência do outro faziam com que fossem raras as disputas.
A construção dos barcos eram o resultado do esforço conjunto, pois os shamudoí
entravam com os produtos da terra e os ramudoi com a sua expe riência do rio. Isso dava
aos shamudoi o legítimo direito de reivindicar o uso da embarcação. Os rituais
reforçavam ainda mais os laços, já que nenhuma mulher, fosse ela de qualquer dos dois
grupos, poderia ter como companheiro um homem que não pudesse reclamar os seus
direitos sobre uma embarcação. Thonolan, desta forma, teria de ajudar na construção ou
nos reparos de um barco para poder unir-se à mulher que amava.
Jondalar também aguardava ansioso a construção do barco. Achava-se curioso
sobre o inusitado meio de transporte, querendo saber como era fabri cado, impulsionado
para dentro da água e conduzido. No entanto, preferia que a sua curiosidade fosse
satisfeita por algum outro motivo e não pelo fato de seu irmão ter resolvido se ligar a uma
mulher shamudoi. Mas desde o prin cípio aquele povo o interessara. A facilidade com que
navegavam pelo rio e com que caçavam o gigantesco esturjão demonstrava um lado de
desenvolvi mento que nunca encontrara em nenhum outro povo, e tampouco ouvira falar.
Eles conheciam o rio em todos os seus aspectos. Jondalar só conseguira atinar com
o seu real volume quando viu as águas dos outros cursos reunidas num mesmo caudal e,
assim mesmo, sem que estivessem no seu ponto mais al to. Contudo, não foi olhando do
barco que o tamanho do rio se tornou claro que ele. Durante o inverno, quando a trilha da
catarata se cobria de gelo, tor nando-se intransitável, mas com os ramudoi ainda
embaixo, sem precisar de subir para viver com os seus parentes montanheses, a
comunicação se fazia por meio de cordas e enormes tabuados pendurados na borda do
terraço dos shamudoi e abaixados até o ancoradouro dos ramudoi.
198 199 Quando ele e Thonolan chegaram, a cascata ainda não estava congelada,
mas o seu irmão não tinha condições de subir pela precária trilha, de modo que foram os
dois içados dentro de uma cesta.
Foi então que ele viu pela primeira vez o rio em perspectiva e começou a entendê-lo
em toda a sua magnitude. O sangue sumira-lhe do rosto e o cora ção batia forte, olhando
para baixo e vendo a água e as montanhas contornan do-a na margem oposta. Ele se viu
maravilhado, profundamente reverente diante da Mãe que se formava de muitas
nascentes num portentoso ato da criação.
Ele não demorou a saber da existência de outro caminho para o terraço. Esse era
mais fácil, mas com a desvantagem de ser mais comprido e não tão es petacular. Fazia
parte de uma trilha que seguia do oeste para leste, sobre os passos das montanhas, e
levava á vasta planície junto ao rio no extremo orien tal do desfiladeiro. Aparte ocidental
da trilha nas fraldas das montanhas, ainda em terras altas, conduzindo à série de quatro
gargantas, era mais acidentada, mas em alguns pontos descia até a margem do rio. E
naquele momento eles justamente se dirigiam para um desses trechos de terreno. A
barca começava a largar o centro do rio para ir ao encontro de um grupo de pessoas que,
enfilei radas na praia de areia cinza, lhes acenavam com gestos largos. Foi então que
Jondalar, ouvindo uma exclamação, se viu despertado de seus pensamentos e olhou ao
redor.
- Jondalar! Olhe ali - falou Thonolan, apontando para frente.
Com sinistra refulg€ncia, vinha vindo para cima deles, trazido pela cor rente central,
a massa farpada e faiscante de um colossal icebe Ao refletir- se, as facetas de cristal nas
bordas translúcidas criavam em volta do monolito um halo de vibrações fantasmagóricas.
Nos sombrios recessos de um tom azul- esverdeado, o carne indestrutível. Os homens,
com a mestria de experimenta dos remadores, mudaram a direção e a velocidade do
barco. Depois, levantan do os remos da água, pararam para observar a luminosa muralha
de gelo desli zar a sua fria indiferença.
- Nunca dê as costas para a Mãe - ouviu Jondalar um dos remadores dizendo.
- Acho que foi trazida pela Irmã - comentou um outro ao lado.
- Como o. - . gelo chegou aqui, Carlono? - perguntou Jondalar.
-Jceberg - respondeu Carlono, ensinando-lhe apalavra. -Talvez tenha vindo
daquelas montanhas, de alguma geleira se mexendo por lá - falou, apontando com o
queixo por cima do ombro na direção dos cumes brancos e voltando, em seguida, a
remar. - Ou, quem sabe, se de algum lugar bem mais ao norte e trazido para cá pela Irmã
que é muito mais profunda e não tem tantos canais. . . principalmente nesta época do
ano. Esse iceberg é muito maior do que imaginamos. Uma grande parte dele vai debaixo
da água.
- Incrível. . . um iceberg com este tamanho e vindo de tão longe - fa lou Jondalar.
- Todas as primaveras eles surgem. Nem sempre tão grandes como es te. Mas não
demoram muito para se derreterem. O gelo está poído e basta uma boa trombada para
se espatifarem inteiramente. Mais para frente há uma pedra bem no meio do rio, pouca
coisa acima da superfície. Não acredito que esse icerberg chegue a ultrapassar a
garganta - acrescentou Carlono.
- Uma boa trombada e somos nós que vamos espatifar - disse Markeno.
- Por isso é que nunca se deve dar as costas para a Mãe.
- Markeno tem razão- falou Carlono. - Nunca faça pouco caso dela. Esse rio acaba
sempre achando uma maneira desagradável de se fazer notado.
- Conheço algumas mulheres assim. E você também, não é, Jondalar?
Jondalar logo se lembrou de Marona. Pelo sorriso de seu irmão, deduziu de quem
Thonolan estava falando. Já há algum tempo que ele não pensava na mulher que
contava tornar-se sua companheira na Reunião de Verão. Algum dia ainda voltaria a vê-
la? Pensou com uma pontinha de saudade. Marona era uma bela mulher, mas Serenio
também. Talvez ele devesse pedi-la. Sob certos aspectos, Serenio era até melhor do que
Marona. Ela era mais velha do que ele, mas mulheres mais velhas sempre o haviam
atraído. Por que não tomá-la para companheira na mesma ocasião em que Thonolan
fosse unir-se a Jetamio e também ficar por aqui?
"Há quanto tempo já estamos fora? Mais de um ano. - - foi na primave ra passada
quando partimos da Caverna de Dalanar. E Thonolan agora não pretende voltar mais.
Está todo mundo muito empolgado com o caso dele e Jetamio. Mas talvez você deva
esperar, Jondalar, não queira roubar a festa dos dois. . - Além disso, Serenio poderia
achar que estou fazendo isso só por espí rito de imitação. . - Talvez mais tarde. - - Por
que demoraram tanto? - perguntou alguém da praia. - Já faz tempo que estamos
esperando e viemos pelo caminho mais comprido.
- Tivemos de procurar por esses dois. Acho que eles estavam tentando esconder-se
- respondeu Markeno, rindo.
- Tarde demais para esconder-se, Thonolan. Você já foi pescado por essa aqui -
disse um homem que vinha caminhando pela água atrás de Jeta mio, para ajudar a trazer
o barco à praia. Ele fazia gestos de estar arremessan do um arpão e puxando-o para
encaixar o anzol.
Jetamio corou, mas depois sorriu.
- Bom Barono, você tem de admitir que apanhei um peixão.
- Você é boa pescadora. Antes, ele sempre conseguiu escapar - falou Jondalar.
Todos riram. Ainda não dominava bem a língua, mas as pessoas gosta ram de vê-lo
participando da conversa. Ele entendia melhor do que falava.
200 201 - E o que se precisa para pescar um graridão como você, Jondalar? -
perguntou Barono.
- A isca certa - gracejou Thonolan, sorrindo para Jetamio.
O barco foi trazido à estreita praia de cascalho e, após os ocupantes te rem saltado,
suspenderam a embarcação, carregando-a por uma encosta até chegarem a uma grande
área cercada por uma densa floresta de carvalho. Vi sivelmente o lugar era utilizado há
muitos anos. Toras, tocos e fragmentos de madeira espalhavam-se pelo chão. A fogueira
ficava em frente a uru galpão erguido num dos lados da clareira, e combustível ali era o
que não faltava. Alguns troncos, por permanecerem tanto tempo lá, haviam aprodecido.
Per cebia-se atividade por toda pai-te. Várias áreas do terreno estavam ocupadas por
barcos em diferentes estágios de fabricação.
Aquele que os trouxera foi posto no chão, e logo os recém-chegados se dirigiram
para a beirada da fogueira, acenando-lhes convidativamerite com o seu calor. Alguns dos
que já se achavam lá pararam para se juntar ao grupo. Um perfumado chá de ervas
fumegava num cocho, cavado numa tora, que rapidamente se esvaziou com as cuias que
se iam mergulhando dentro. Perto, uma pilha de pedras redondas para cozinhar, trazidas
da margem do rio e, atrás do cocho, jogado no meio de um charco lamacento, um bolo de
folhas encharcadas que já não se sabia mais de que planta foram.
Terminado o chá dentro do cocho, prepararam-se para enchê-lo outra vez. Dois
homens rodaram a grossa tora para esvaziá-la da borra no fundo, enquanto um terceiro
colocava pedras para esquentar na fogueira. O chá era mantido no cocho, à disposição
de quem quisesse se servir e as pedras estavam sempre quentes para aquecer as cujas
quando estas se esfriassem. Depois de fa zer muitas troças do futuro casal, as pessoas
resolveram deixá-lo em paz e ca da uma largou de lado a sua cuia de madeira au fibra
impermeável, voltando ao que fazia antes. A Thonolan, para iniciá-lo nos mistérios da
construção de barcos, deram um trabalho que não exigia habilidade: dernibar árvores.
Jondalar, engajado numa conversa com Carlono sobre o assunto favori to do chefe
dos ramudoi - barcos - encorajava-o com perguntas.
- Qual a melhor madeira para barcos?
Carlono, satisfeito consigo e com o interesse de Jondalar, um rapaz visi velmente
inteligente, passou, animado, a dar explicaçôes.
- A madeira verde de carvalho é a melhor. Ë resistente, flexível e, ao mesmo tempo,
forte, sem ser pesada. Quando seca, perde a flexibilidade, mas se pode cortá-la no
inverno e guardar as toras dentro de poças ou nos brejos, por um ano ou até mesmo
dois. Mais tempo do que isso ficará muito enchar cada e difícil de ser trabalhada. O barco
depois de pronto poderá ter proble mas de equilíbrio na água. Mas o importante é saber
escolher a árvore certa - enquanto falava, Carlono tomava o rumo da floresta.
202 Pelo tamanho, não é? - perguntou Jondalar.
- Não só pelo tamanho. Ë necessário que a árvore seja alta e tenha o tronco reto
para a construção do fundo e dos pranchôes laterais. - Carlono conduziu Jondalar ao
bosque formado por uma massa compacta de carvalhos.
Nas florestas muito densas as árvores crescem procurando pelo sol.
- Jondalar! - era a voz de Thonolan, chamando-o. Surpreso, ele levan tou os olhos
vendo Thonolan e alguns outros ao redor de um imenso carvalho, cercado de outras
árvores altas e retas, cujos galhos começavam a abrir-se no alto do tronco. - Que bom
vê-lo por aqui! O seu irmãozinho anda precisando de um pouco de ajuda. Você sabe que,
enquanto não for feito um novo barco, Jetamio não poderá ser a minha companheira e
isso aqui - falou apontando para aárvore - tem de ser derrubado para os "cintados". Só
que eu não sei o que seja isso. Veja o tamanho desse mamute! Não sabia que árvores
podiam crescer tanto assim. . . vai levar uma eternidade para cortá- la. Quando este
barco ficar pronto,já vou estar velho demais para ter uma companheira.
Jondalar sorria, sacudindo a cabeça.
- Cintados são as tábuas com que se constrói as laterais dos barcos maiores. Se
pretende ser um sharamudoi, devia já estar sabendo dessas coisas.
- Vou ser um shamudoi. Negócio de barco eu deixo para os ramudoi. Caçar camurça
é uma coisa de que entendo. Já cacei muitos íbices e carneiros nos altos das montanhas.
Como é? Vai ajudar agora, ou não? Estamos preci sando de braços fortes.
- Para não ver a pobre Jetamio esperando por um velhinho encarquilha do, acho que
vou. Além disso me interessa saber como se faz - falou Jonda lar. Em seguida, virou-se
para Carlono e disse em sharamudoi: - Eu ajudar Thonolan. Mais tarde, conversar outra
vez, certo?
Carlono sorriu concordando e se afastou para observar as primeiras las cas de
madeira saltarem. Mas ele não se demorou lá. Levariam quase todo o dia para abater o
gigante da floresta e, quando isso acontecesse, estaria todo mundo reunido ao redor da
árvore.
Começaram a saltar os estilhaços arrancados da árvore pelos golpes que partiam do
alto e desciam quase perpendicularmente para encontrar os cortes horizontais, feitos
mais embaixo. O machado de pedra não fazia cortes pro fundos. A lâmina tinha de ser
forte, por isso era um tanto grossa e não pene trava fundo na madeira. Ao passarem a
trabalhar nas proximidades do centro do tronco, a madeira parecia mais carcomida do
que propriamente cortada; no entanto a cada lasca saída, um pouquinho mais perto iam
ficando do cora ção do velho gigante.
O dia já chegava ao seu f quando deram um machado a Thonolan. Todos pararam
com o que estavam fazendo para se postar perto da árvore. A Thonolan cabia a honra de
dar os últimos golpes. Então, ouvindo os estalidos 203 denunciadores e vendo a imensa
árvore balançando, ele deu um pulo para trás. Primeiro, lentamente, depois pegando
impulso, o magnífico carvalho tombou, estraçalhando os galhos das velhas árvores
vizinhas e carregando consigo as menores, O colosso rachado perdera a resistência e
caiu estrondosamente, ri cocheteando no chão, por alguns instantes ainda tremendo, até
jazer imóvel.
O silêncio invadiu a floresta. Mesmo os pássaros calaram-se como que tomados de
profunda reverência. O velho e majestoso carvalho, separado de suas raízes vitais, fora
vencido e, em meio às sombras da floresta muda, a vi. são da chaga viva em seu toco.
Então, solene e em silêncio, Dolando ajoelhou. se e, com as mãos, cavou um buraco no
toco, onde depositou uma bolota.
- Que Mudo, a nossa abençoada Mãe Terra, aceite essa oferenda e dê vida a uma
nova árvore - falou, cobrindo a semente com terra e despejando em cima uma cuia de
água.
Quando começaram a subir a longa trilha que levava ao terraço na mon tanha, o sol
já ia no horizonte pondo rajas de ouro nas nuvens. Depois, antes de alcançarem o velho
platô, as cores no espectro transmudavam do ouro para bronze e, por fim, para o malva-
escuro. Ao fazerem a curva do paredão rocho. so, Jondalar sentiu-se tocado pela beleza
sem limites do panorama à sua fren te. Deu alguns passos junto da borda do penhasco,
pelo menos uma vez sem reparar no precipício, tão emocionado estava com a vista. O
Grande Rio Mãe, sereno e copioso, espelhando as oscilações do céu e as sombrias
montanhas arredondadas na outra margem, via-se animado em sua superfície luminosa-
mente acetinada pelos movimentos das correntezas em seu interior.
- É bonito, não é?
Jondalar se virou na direção da voz e sorriu para a mulher que se acerca ra dele.
- Muito bonito, Serenio.
- Essa noite haverá um banquete em honra de Jetamio e l'honolan. Eles estão
esperando. Você deve ir.
Ela se voltou para ir embora, mas ele segurou a sua mão, prendendo-a, observando
as últimas luzes do sol refletindo em seus olhos.
Nela havia uma plácida gentileza, um sentido de intemporalidade que nada tinha a
ver com a sua idade. Era apenas alguns anos mais velha do que ele. Tampouco seria
alguma coisa relacionada à renúncia, antes à falta de exi gência e esperança. A morte do
primeiro companheiro, depois a de seu segun do amor, antes mesmo de se unir a este, e
por fim a perda do filho que aben çoaria a segunda união a haviam afinado com a dor. E,
aprendendo a conviver com as suas tristezas, desenvolveu a capacidade de absorver a
dos outros. Quaisquer que fossem as mágoas ou decepções, as pessoas as levavam
para Se renio, que nunca as deixava sem algum alívio ou consolo, pois que o seu gesto
de compreensão nada pedia em troca.
Pelo efeito calmante que exercia nos doentes ou nas pessoas aflitas por causa de
seus entes queridos, Serenio era freqüentemente chamada para aju dar o shamud. Com
isso, acabou adquirindo alguns conhecimentos médicos. Foi assim que Jondalar veio a
conhecê-la, quando ela ajudava o curandeiro no tratamento de Thonolan. Quando o seu
irmão começou a andar, já suficiente mente recuperado para poder ir viver na casa de
Dolando e Roshario, e sobre tudo na companhia de Jetamio, Jondalar foi morar com
Serenio e o seu filho Darvo. Ele não havia pedido e nem ela esperava que o fizesse.
"Os seus olhos parecem sempre pensativos", falou ele para si mesmo, enquanto se
curvava para cumprimentá-la com um beijo, antes de se dirigirem à fogueira. Ele jamais
conseguira penetrar nas profundezas daquele olhar. "Sou-lhe grato por isso", pensou,
afastando imediatamente a idéia indesejada. Era como se ela o conhecesse melhor do
que ele próprio se conhecia. Como se ela soubesse de sua incapacidade de se dar por
inteiro, de apaixonar-se, tal co mo Thonolan fora capaz. Chegava inclusive a dar a
impressão de saber que seu modo de suprir a deficiência no plano afetivo era fazendo
amor com uma pe rícia tão consumada que a fazia sempre sair exausta das relações Ela
não era propriamente reservada. Sorridente, comunicava-se com facilidade e não de todo
inacessível. As únicas vezes que ele surpreendia alguma expressão mais reveladora era
quando a via olhando para o filho.
- Por que demoraram tanto? - falou o garoto, vendo-os chegar. - Já estamos prontos
para comer, mas ninguém quer começar sem vocês.
Darvo havia visto Jondalar com a sua mãe na borda do penhasco, mas preferiu não
interferir. De início, ficara ressentido por não ter mais a atenção exclusiva da mãe.
Depois, porém, descobriu que, ao invés de estar dividindo com um outro o tempo da sua
mãe, ganhara mais uma pessoa para atendê-lo. Jondalar conversava com ele, contava-
lhe as suas aventuras de viagem, falava- lhe sobre caçadas, sobre os costumes de seu
povo e também sabia ouvi-lo com sincero interesse. E o melhor, Jondalar começara a
mostrar-lhe algumas técni cas de fabricar instrumentos que o garoto pegava com grande
facilidade, para surpresa de todos os dois.
Darvo ficou felicíssimo quando Thonolan resolveu tomar Jetamio para companheira
e se estabelecer definitivamente lá, pois o seu grande desejo era o de que Jondalar
fizesse o mesmo em relação à sua mãe. Muito consciente de seu papel, tratava de
colocar-se fora do caminho dos dois sempre que os via juntos, fazendo o possível para
não atrapalhar a relação. Não imaginava que com isso, positivamente, estava
fomentando-a.
De fato a idéia estivera no pensamento de Jondalar o dia inteiro. Volta e meia
percebia-se avaliando Serenio. Cabelos mais para louro do que casta nho, um pouco
mais claro do que o do filho. Sem ser magra, dava essa impres são devido à altura. Era
das poucas mulheres que conhecia que lhe batia pelo 204 205 queixo. E ele gostava.
Achava confortável a altura dela. A semelhança entre mãe e filho era grande, até mesmo
nos olhos cor de avelã, embora faltasse ao garoto a expressão de placidez. E nela os
traços finos ficavam bonitos.
"Poderia ser feliz com ela", pensou. 'Por que não pedi-la?" E naque le momento
mesmo realmente desejava-a, queria viver com Serenio.
- Serenio?
Ela o olhou, sentindo-se cativa daqueles olhos inacreditavelmente azuis,
expressando necessidade e desejo. A força de seu carisma - inconsciente, por isso
mesmo mais poderoso - apanhou-a desprevenida, rompendo a muralha que
laboriosamente erguera para defender-se do sofrimento. Estava aberta, vulnerável, quase
que contra a vontade, sentindo-se atraída.
- Jondalar. - . - A aceitação estava implícita no timbre da voz.
- Eu. . . pensar muito hoje - ele lutava com os problemas da língua. A maioria dos
conceitos podia expressá.los, mas estava tendo dificuldade em transmitir o pensamento. -
Thonolan. . . meu irmão. - - viemos de longe.
sempre juntos. Agora, ele ama Jetamio, deseja ficar. Se você. - - eu quero.
- Ora vocês dois aí. Todo mundo está com fome e a comida. - - era Thonolan, mas
logo se interrompeu ao perceber os dois muito juntos, perdi dos um nos olhos do outro. -
Desculpe, irmão. Acho que estou atrapalhando.
Eles se afastaram, o momento tinha passado.
- Tudo bem, Thonolan. Não devíamos estar deixando todo mundo es perar.
Podemos conversar depois - disse Jondalar.
Quando voltou a olhar para Serenio, ela parecia surpresa e confusa, co mo se não
compreendesse o que lhe acontecera, esforçando-se para escudar-se outra vez em sua
serenidade.
Eles foram para a área abrigada pela pedreira de arenito, sentindo o ca lor da
grande fogueira armada na casa principal. À chegada dos dois, todas as pessoas se
acomodaram em tomo de Thonolan e Jetamio, que se postavam de pé no espaçocentrai
vazio, atrás da fogueira. A festa de compromisso dava início a um p marcado por uma
série de rituais que culminariam com a cerimônia matrimonial. Neste meio tempo, a
comunicação e o contato entre Thonolan e Jetamio seriam extremamente vigiados.
Um caloroso sentido de comunidade permeava a atmosfera envolvendo o novo
casal. Thonolan e Jetamio se deram as mãos, vendo apenas perfeição nos olhos um do
outro, nada querendo senão proclamarem a sua felicidade ao mundo e selarem o seu
compromisso de uma vez. O shamud deuum passo à frente. Os dois se ajoelharam para
que o curandeiro e guia espiritual lhes colo casse na cabeça uma coroa de pilriteiros
floridos. O casal foi, então, sempre de mãos dadas, dar três voltas ao redor das pessoas,
contornando a fogueira, para depois ser trazido ao seu lugar que fechava com o amor
deles o círculo que unia a Cavermi dos Sharamudoi.
206 lou:
O shamud voltou-se para os dois e, com os braços dirigidos ao alto, fa - O círculo
começa e termina no mesmo ponto. A vida também é como o círculo. Começa e termina
na Grande Mãe. a Primeira Mãe que em sua soli dão criou todas as formas de vida - era
uma voz vibrante que se fazia ouvir em meio ao silêncio das pessoas e estalidos das
chamas. - Abençoada seja Mu do, começo e fim de nossas vidas. Dela viemos, para ela
voltamos. De tudo e em tudo, ela nos abastece. Somos os seus filhos e dela emana as
riquezas, que prodigaliza generosamente. De seu corpo obtemos o nosso sustento:
comida, água e abrigos. Do seu espírito, a graça da sabedoria e do amor, da habilidade,
da inteligência, da inspiração e da amizade. Mas a maior de todas as suas dádi vas nos
advém de seu infinito amor. A Grande Mãe Terra regozija-se com a feli cidade de seus
filhos. Comprai-se com as nossas alegrias, por isso nos conce deu a maravilha da graça
do prazer. Nós a honramos e reverenciamos quando compartilhamos desta sublime
graça. Mas às filhas abençoadas, ela concedeu o maior de todos os seus bens,
contemplou- as com o seu próprio poder: a fa culdade de criar vida.
Nesse ponto, o shamud olhou para a moça.
- Jetamio, você está entre aquelas que são abençoadas. Se honrar Mu do, sob todos
os seus aspectos, você será contemplada com o dom da Mãe, o dom de gerar vida e dar
à luz. Mas o espírito da vida que você gera é uma gra ça que vem da Grande Mãe.
E continuou:
- Thonolan, você ao assumir o compromisso de sustentar alguém torna- se como a
Mãe que todos abastece. Por honrá4a desta maneira, ela poderá também contemplá.lo
com o poder da criação, de modo que possa ser de seu espírito o filho nascido da mulher
sob a sua guarda, ou de uma outra que tam bém haja sido abençoada por Mudo.
O shamud levantou os olhos, dirigindo-se agora a todos.
- Sempre que cada um de nós estiver cuidando ou provendo com o sus tento do
outro, estará honrando a Mãe e será por isso abençoado com os fru tos de suas dádivas.
Após o shamud afastar-se, Thonolan e Jetamio, sorrindo um para o ou tro, foram
sentar sobre uma esteira. Era o sinal esperado para que o banquete fosse iniciado. Os
dois foram os primeiros a serem servidos com uma bebida alcoólica suave, feita de flores
de dente-de-leão e mel, e posta em fermentação na última lua nova. Em seguida a bebida
foi passada de mão em mão para que todos se servissem.
Os aromas apetitosos deu-lhes a consciência do quanto fora duro aquele dia.
Mesmo para os que permaneceram no terraço havia sido também um dia trabalhoso,
como se podia constatar pelo primeiro prato a surgir, deliciosa- 207 mente cheirando. Um
magnífico salmão, apanhado naquela manhã e assado sobre pranchas perto da fogueira,
foi trazido a Thonolan e Jetamio por Markeno e l'holie, a contrapartida familiar deles do
lado ramudoi. Como tempero, foi servido um molho feito de labaça silvestre, cozida e
triturada até o ponto de pasta.
Jondalar imediatamente apreciou aquele gosto travoso, novo ao seu pa ladar. Dava
um toque perfeito ao peixe. Para acompanhamento, foram trazi das umas pequeninas
sementes servidas em cestas que eles iam passando ao redor. Quando Tholie sentou-se,
ele perguntou o que eram.
- São de faias que apanhamos no outono passado - respondeu ela. De pois pôs-se a
explicar em detalhes como, com pequeninas lâminas de pedra, se removiam as cascas
de fora, extremamente duras, para se retirar as sementes que eram torradas em peneiras
com brasas e passadas depois no sal marinho. O segredo estava em revolvê-las
constantemente de modo a não se deixar que as peneiras se queimassem e nem as
sementes.
- O sal foi um dos presentes de noivado de Tholie. Ela quem o trouxe.
- explicou Jetamio.
- São muitos os mamutoi que vivem perto do mar, Tholie? - pergun tou Jondalar.
- Não, O nosso acampamento era um dos que se achavam mais perto do Mar
Beram. A maioria dos mamutoi vivem mais ao norte. É um povo caça dor de mamutes -
disse ela, orgulhosa. - Todos os anos, viajamos ao norte para caçar.
- Como foi você conseguir uma companheira niamutoi - indagou Jon dalar a
Markeno.
- Eu a raptei - respondeu ele, dando uma piscadela para a companhei ra, uma moça
rechonchuda.
Tholie sorriu.
- É verdade - falou ela. - Mas naturalmente tudo se arranjou.
- Nós nos encontramos quando eu fiz uma viagem ao leste para negó cios. Eu e ela
fomos juntos até o deIta do Rio Mãe. Era a minha primeira via gem. Pouco estava ligando
se Tholie era shararnudoi ou mamutoi, só sabia que não voltaria para casa sem ela.
Markeno e Tholie contaram, então, as dificuldades que tiveram de en frentar para
poder unirem-se. Foram necessárias muitas negociações até que se chegasse a um
acerto, mas assim mesmo ele teve de raptá-la para contornar al guns obstáculos. Ela
estava firmemente decidida e a união não se realizaria sem o seu consentimento. Havia
precedentes. São raras, mas uniões semelhan tes às vezes acontecem.
Os povoados não eram muitos e tão distanciados uns dos outros que, praticamente,
não havia violação de territórios. Isso fazia com que se consti 208 tuísse numa novidade
os pouquíssimos contatos com os estrangeiros que vez por outra apareciam. Embora
desconfiadas, no início, as pessoas de modo ge ral não se mostravam hostis e o comúm
era ser bem recebido. Quase todos os povos caçadores estavam habituados a viajar
grandes distâncias, normalmente para acompanhar as manadas em suas migrações
sazonais e havia também aqueles que tinham já uma velha tradiçffo de empreender
viagens individuais.
Os atritos quase sempre se originavam da proximidade. A hostilidade, se existisse,
tendia a ser intramuros, passada dentro da comunidade. As persona lidades violentas
eram controladas por códigos de comportamento e, na maio ria das vezes, se viam
reprimidas pelbs costumes de caráter ritualístico, ape sar destes não estaret muito
enraizados. Os sharamudoi e os mamutoi manti nham boas relações de negócios e entre
os dois povos havia semelhanças de língua e costumes. Assim, por exemplo, para os
primeiros, a Grande.Mãe Ter ra era chamada Mudo, enquanto que o segundo a conhecia
como Mut, mas tratava-se da mesma deusa, a antepassada primordial, a primeira Mãe.
Os mamutoi tinham um alto conceito de si mesmos que transparecia em suas
atitudes calorosas e francas. Como grupo, não temiam nenhum outro, afi nal eram eles os
destemidos caçadores de mamute. Atrevidos, confiantes, um tanto ingênuos e
convencidos de que o resto do mundo os via segundo a fina gem que faziam de si
mesmos. Apesar de que as discussões parecessem a Mar keno intermináveis, os ajustes
necessários à união dos dois não se constituí ram num obstáculo intransponível.
Tholie era uma típica representante de seu povo: expansiva, amiga, cer ta de que
todos gostavam dela. E, com efeito, dificilmente se podia resistir à sua natureza sincera e
expansiva. Tampouco as pessoas se ofendiam com o ca ráter pessoal de suas
perguntas, pois sabiam não haver intenção de malícia. Era simplesmente interesse e ela
não via por que reprimir a sua curiosidade.
Uma garota aproximou-se carregando um bebê.
- Shamio acordou, Tholie. Acho que que ela está com fome, A mãe agradêàeu com
a cabeça e deu o seio ao bebê, sem interromper a conversa ou deixar de comer.
Enquanto isso, foram servidos outros tipos de nozes: amendoins fresáos e sementes de
olmo em salmoura. Os amendoins eram uns tubérculos adocicados e pareciam um pouco
com as cenouras silves tres, Jondalar os conhecia. À primeira mordida, tinha-se a
impressão de uma castanha, em seguida o gosto de rabanete surgia como uma surpresa.
O seu sa bor picante era muito apreciado pela Caverna. Jondalar estava em dúvida se
gostava ou não, O segundo prato, apresentado ao jovem casal, foi trazido por Dolando e
Roshario: um esplêndido cozido de camurça que tinha a acompa nhá-lo um generoso
vinho de uva-do-monte.
- Estava achando o peixe delicioso, mas esse cozido está soberbo - fa lou Jondalar
para o seu irmão - 209 - Jetamio disse que é um prato tradicional da cozinha deles. O
tempe ro é feito com folhas de murta-de-cheiro. A casca da planta é usada para tin gir a
pele da camurça, é o que dá ao couro o seu tom amarelado. Essa murta cresce nos
brejos. Há muitos pés nos terrenos alagadiços onde a Mãe se junta com a Irmã. A minha
sorte foi justamente eles estarem lá colhendo murta, no outono passado, senão nunca
nos teriam achado.
Jondalar tinha a testa franzida com as lembranças daquele tempo de aflições.
- Tem razão, foi muita sorte nossa. Ainda continuo querendo achar uma maneira de
agradecer a essas pessoas - subitamente, lembrando-se de que o seu irmão estava para
tomar-se numa "dessas pessoas", aprofundou ainda mais as rugas da testa.
- Esse vinho é um presente de noivado para Jetamio - disse Serenio.
Jondalar pegou a cuia e sorveu um gole, aprovando com a cabeça.
- É bem. Muito bem.
- Bem, não. Bom. Muito bom - corrigu Tholie. - É muito bom - ela não possuía
qualquer escrúpulo em corrigi-lo. Ela própria ainda tinha problemas com a língua e dava
como certo que ele também gostaria de falar corretamente - - Muito bom - repetiu
Jondalar, sorrindo para a mulherzinha baixo ta e gorducha com um bebê colado ao seu
enorme seio. Ele gostava de flo lie que, com a sua franqueza e o seu temperamento
extrovertido, desarmava a natureza tímida e reservada dos outros.
Virando-se, então, para o irmão, disse:
- Ela tem razão, Thonolan. Esse vinho é muito bom. Até mesmo nossa mãe iria
concordar e ninguém faz melhores vinhos do que Marthona. Acho que ela também iria
gostar muito de Jetamio - dizendo isto, arrependeu-se. Thonolari jamais iria levar a
companheira para conhecer a sua mãe. Prova velmente nunca voltariam a ver Marthona.
-. Jondalar, você precisa falar sharamudoi. Ninguém entende zelando- nu aqui. Além
disso, iria aprender mais depressa se você se obrigasse a falar sharamudoi o tempo todo
- disse Tholie, inclinando o corpo para a frente, cheia de sincero interesse. Falava por
experiência própria.
Jondalar ficou confuso, mas não zangado. Tholie era tão sincera, além do mais fora
indelicadeza sua falar numa Língua que ninguém entendia. Ele enrubesceu, dando um
sorriso encabulado.
Tholie notou-lhe a falta de jeito. O fato de ser franca nao significava que fosse
insensível.
- Por que não aprendemos todos a língua um do outro? Vamos aca bar esquecendo
até a nossa, se de vez em quando não treinarmos um pouco. zelandonii é uma língua tão
melodiosa, adoraria aprendê-la - falou, sorrindo 210 na direção de Thonolan e Jondalar. -
Todos os dias podemos tirar um tempi nho para treinar - proclamou, como se todos
estivessem perfeitamente de acordo.
- Tholie, você pode estar querendo aprender zelandonii, mas talvez eles não tenham
interesse em aprender mamutoi. Será que não pensou nisso?
- disse Markeno.
Desta vez, foi ela quem ficou vermelha.
-. Não. Realmente não - respondeu, ao mesmo tempo surpresa e de. cepcionada,
dando-se enfim conta de sua presunção.
- Bom, eu quero aprender mamutoi e zelandonli. Acho uma boa idéia - falou Jetamio
com ar decidido.
-. Eu também acho uma boa idéia, Tholie -. disse por sua vez Jondalar.
- Ora, que salada estamos nós aqui arrumando. A metade ramudoi tem uma parte
mamutoi e a metade sharnudoi vai ter uma parte zelandonii - falou Markeno, sorrindo com
ternura para a sua companheira.
Era visível a afeição que um tinha pelo outro. Os dois formavam uma boa dupla,
achava Jondalar, sem conseguir deixar de dar um sorriso. Marke. no era um homem tão
alto quanto ele, apenas um pouco menos musculoso. Quando estava perto da
companheira, as características físicas se acentuavam ainda mais. Tholie, baixota e
gorda, e ele alto e magro.
- Há lugar para mais alguém? - perguntou Serenio. - Seria interessan te aprender
zalandonii, e acho que pode ser bom para Darvo se ele aprender mamutoi. Quem sabe
se algum dia talvez queira fazer viagens de negócios?
- Por que não? - falou Thonolan, rindo. - Para qualquer canto que se vai, saber
outras línguas sempre ajuda - ele olhou para o irmão. - Mas não será por isso que se vai
deixar de entender uma linda mulher, não é, Jondalar? Principalmente quando se tem um
belo par de olhos azuis - disse rindo, em zelandonii.
Jondalar sorria, ouvindo a pilhéria do irmão.
- Você devia estar falando em sharamudoi - disse Jondalar, dando uma piscadela
para Tholie. Com uma faca na mão esquerda, ele espetou um legu me dentro de seu
prato, à maneira corno via os sharamudoi fazendo e que para ele era um gesto meio
forçado. - Como se chama isto?- perguntou a ela. .- Em zelandonii é cogumelo.
Tholie disse-lhe o nome tanto em sua língua como em sharamudoi. Ele então fincou
um talo verde e o suspendeu, indagando-a com os olhos.
Isso é talo de bardana - falou Jetamio, logo percebendo que o no me significaria
pouco para ele. Ela se levantou para pegar numa pilha de lixo, perto da área de cozinhar,
algumas folhas murchas, mas ainda reconhecíveis.
- Bardana - repetiu, mostrando-lhe o pedaço de uma folha sem talo de cor cinza-
esverdeado, grande e peluda.
211 -t Jondalar balançou a cabeça dando a entender que conhecia, e Jetamio
estendeu em sua direção uma outra verde, também grande e larga, que tinha um cheiro
inconfundível.
- Claro! Sabia que estava reconhecendo o gosto - falou ele para o ir mão. - Mas
nunca tinha visto a folha. Como se chama? - perguntou, voltan do-se novamente para
Jetamio.
- Trambo - respondeu ela. Tholie não tinha na língua mamutoi nenhu ma palavra
para designar a planta, mas a folha, mostrada em seguida por Jeta mio, ela a conhecia.
- Isso é um tipo de alga - disse. - Eu a trouxe comigo. Dá no mar e é muito bom para
engrossar o caldo dos cozidos - tentava explicar, sem mui ta certeza de estar sendo
compreendida. As algas foram usadas porque, além de dar consistência e um certo sabor
exótico ao tradicional prato dos shamu doj, expressavam a estreita relação de Tholie com
o novo casal. - Já estão quase acabando. Foram dadas também como presente de
noivado - ela fir mou o bebê, com a cabecinha contra o seu ombro, e se pôs a dar-lhe
palma dinhas nas costas. - Você já fez a sua oferenda à árvore sagrada, Tamio?
Jetamio abaixou a cabeça, sorrindo pudicamente. Era uma pergunta que em geral
não se fazia tão abertamente, no máximo poderia ser insinuada.
- Espero que a Mãe abençoe a minha união com um bebê tão forte e saudável
quanto o seu, Tholie. Shamio já acabou de mamar?
- Ela gosta de sugar só pelo prazer de chupar. Se eu deixar, fica agarra da no seio o
dia inteiro. \ quer segurá-la? Preciso sair um pouquinho.
Quando Tholie voltou, o assunto da conversa havia mudado. A comida fora retirada
e se serviu mais vinho. Alguém ensaiava um ritmo num tambor de uma só face, ao
mesmo tempo que improvisava a letra de uma canção. Tholie pegou de volta o bebê e
Thonolan e Jetamio se levantaram para ten tar sair às escondidas, mas logo um bando
de pessoas, todas rindo muito, se aproximou fazendo um círculo ao redor dos dois.
Era costume os noivos largarem a festa mais cedo para que pudessem ter alguns
momentos só para eles, antes do período de separação que antecedia o matrimônio. Mas
como convidados de honra não podiam sair com as pes soas ainda presentes. Isso seria
indelicadeza. Embora todo mundo soubesse, tinham de escapar num momento em que
ninguém estivesse vendo. Era uma brincadeira, e se esperava que eles representassem
o seu papel, fazendo men ção de estar saindo, enquanto os outros fingiam não perceber,
para depois surpreendê-lcis em pleno ato, obrigando-os a pedir desculpas. No fim, depois
de muita troça e pilhérias, acabavam deixando os dois sair.
- Você não está com pressa nenhuma de ir embora, não é, Jondalar? - perguntou
alguém.
- Já está ficando tarde - respondeu Thonolan, sorrindo.
- Ora, está cedo. Sirva-se de um pouco mais, Tamio.
- Não agüento comer mais nada.
- Então tome um copo de vinho- Thonolan, você não iria fazer a desfei ta de recusar
esse esplêndido vinho de Tamio.
- Bem.. . nesse caso, aceito um golinho.
- E para você, Tamio, um pouquinho mais?
Ela se inclinou para Thonolan, olhando significativamente numa direção.
- Tudo bem, só mais um gole. Mas nós estamos sem cuias, alguém vai ter de buscá-
las.
- Claro. Vocês esperam aqui, não? - falou um deles, se levantando para pegar as
cuias, enquanto as outras pessoas fingiam observá-la, dando oportuni dade para que
Thonolan e Jetamio corressem e fossem esconder-se nas som bras atrás da fogueira.
- Thonolan. . - Jetamio, vocês aqui? Pensei que fossem beber um pouco de vinho
conosco.
- Ah. - . e vamos. Só estamos dando uma voltinha. Bom, você sabe co mo é, depois
de termos comido tanto... - explicava Jetamio.
Jondalar, perto de Serenio, sentia vontade de prosseguir a conversa an teriormente
começada. Os dois estavam divertindo-se com a farsa. Ele incli nou o corpo para perto
dela, pedindo-lhe em segredo que saísse logo que a brincadeira cansasse e que
Thonolan e Jetamio houvessem saído. Se tivesse de comprometer-se, teria de ser
naquele momento, antes que as suas dúvidas vol tassem e o fizessem recuar.
Estavam todos alegres, meio tontos. As uvas-do-monte da última colhei ta estavam
especialmente doces e o vinho ficara mais forte do que de costume. As pessoas
rodopiavam ao redor de Thonolan e Jetamio, rindo, pilheriando com os dois. Alguns
haviam começado a cantar uma canção em forma de per guntas e respostas, enquanto
alguém punha o cozido para requentar e um outro, depois de despejar o resto de chá na
cuia, foi botar mais água para fer ver. As crianças, ainda muito despertas, corriam umas
atrás das outras. As ati vidades se revezavam e a confusão reinava por toda parte.
Então uma criança, aos berros e correndo, deu um encontrão num ho mem, não
muito bem das pernas, que cambaleou e se chocou contra uma mu lher carregando uma
cuia de chá quente.
Aconteceu no exato momento quando era maior a algazarra e em meio aos gritos
das pessoas acompanhando a corrida do casal que fugia.
Ninguém ouviu o primeiro choro, mas os insistentes gemidos de dor do bebê fizeram
com que rapidamente se pusessem em silêncio.
- Meu bebê! Meu bebê se queimou - gritava Tholie.
- Oh, santa Doni - murmurou Jondalar, precipitando-se com Serenio na direção de
Tholie, que soluçava com o bebê aos prantos no seu colo.
1 212 213 .
Todos ao mesmo tempo queriam ajudar. A confusão era ainda pior do que antes.
- Afastem-se, deixem o shamud passar - o efeito calmante da presença de Serenio
se fazia sentir.
O shamud, rápido, tirou a roupa da criança.
- Água fria, Serenio. Depressa! Não! Espere. Darvo, você busca a água e Serenio
traz cascas de tília. . - sabe onde estão?
- Sei - respondeu e correndo.
- Roshario, há água quente? Se não houver, ponha para esquentar. Pre cisamos
preparar uma tisana de tília e um chá mais fraco para dar como seda tivo. As cascas de
tua têm de ser escaldadas para fazer as duas coisas.
Darvo chegou trazendo um recipiente derramando pela borda a água que pegou do
lago.
- Ótimo, meu filho. Você foi rápido - falou o shamud com um sorriso de aprovação.
Em seguida, borrifou com água fria as partes vermelhas e infla madas que já começavam
a empolar. - Precisamos de alguma coisa macia para pôr um curativo em cima, enquanto
a tisana nãotficar pronta - ele viu uma folha de bardana no chão. - Jetamio, o que é isso?
- Bardana. Havia no cozido - respondeu ela.
- Sobrou alguma? Isto é, folhas?
- Só usamos os talos. Há um montão delas.
- Então traga.
Jetamio correu até a pilha de lixo, voltando com as mãos cheias de fo lhas rãsgadas.
O shamud as mergulhou dentro da água, colocando-as em segui da sobre os lugares
queimados, tanto da mãe como da filha. À medida que os efeitos calmantes da planta
foram fazendo-se sentir, o choro da criança come çou a amainar, convertendo-se em
soluços intercalados com espasmos.
- Isso ajuda a passar a dor - disse Tholie, que só percebera estar quei mada depois
do shamud haver a1ado. No momento em que o chá despejou, ela estava sentada e
conversando, com o bebê satisfeito, tranqüilamente ma mando e, então, não viu mais
nada do que a dor de sua filha. - Shamio vai ficar boa?
- A queimadura vai empolar, mas não ficará qualquer cicatriz.
- Oh Tholie, eu sinto muito - disse Jetamio. - Coitadinha de Shamio e de você
também.
Tholie tentava fazer com que o bebê voltasse a mamar, mas ele, agora associando
esse ato com a dor, resistia. A lembrança daquele prazer, por fim, acabou prevalecendo,
e Shamio parou de chorar, agarrando novamente o seio, para alívio de Tholie.
- Por que você e Thonolan ainda estão aqui? - perguntou ela. - Essa é a última noite
em que vão poder ficar juntos.
- Não posso ir embora sabendo que você e Shamio não estão bem. Eu gostaria de
ajudar em alguma coisa que fosse preciso.
O bebê voltara a ficar inquieto. A bardana melhorava apenas um pouco e a
queimadura ainda doía bastante.
- Serenio, a tisana está pronta? - perguntou o curandeiro, substituindo as folhas por
outras mais empapadas de água fria.
- As cascas de tília já ferveram bastante, mas vai levar algum tempo para esfriar.
Acho que vou levar para fora, assim irá mais rápido.
- Esfriar! Esfriar! - gritou de repente Thonolan, saindo do abrigo sob a pedreira.
- Aonde ele vai? - perguntou Jetamio.
Jondalar sacudiu os ombros, abanando a cabeça. A resposta veio quando Thonolan,
ofegante, entrou de volta correndo. Ele tinha nas mãos alguns pedaços de gelo
gotejando, tirados no caminho que levava ao rio.
- Isso serve? - perguntou, mostrando.
O shamud olhou para Jondalar.
- O rapaz é brilhante - disse o shamud ironicamente, como se não es perasse tanta
genialidade da parte de Thonolan.
As propriedades da tília serviam ao mesmo tempo para amortecer a dor e fazer
dormir. Tanto Tholie como o bebê adormeceram. Thonolan e Jetamio foram, por fim,
convencidos a retirarem-se e terem os seus momentos sozi nhos. Mas a alegria
despreocupada da festa de compromisso dos dois havia desaparecido. Ninguém queria
dizer, mas o acidente deixou uma sombra de tristeza na união deles.
Jondalar, Serenio, Markeno e o shamud permaneceram sentados nas proximidades
da maior das casas, aproveitando o resto do calor das brasas já quase apagadas e
bebendo vinho enquanto conversavam num meio tom de voz. Todos tinham ido dormir e
Serenio insistia com Markeno para que fizes se o mesmo.
- Não há nada que você possa fazer, Markeno. Não há por que ficar de pé. Eu fico
com as duas e você vai dormir.
- Ela tem razão, Markeno - falou o shamud. - As duas estão passando bem. E você,
Serenio,vá também descansar.
Ela se levantou para ir, mais para encorajar Markeno do que propria mente porque o
desejasse. Os outros também se levantaram. Serenio pôs de la do a sua cuia e tocou de
leve no rosto de Jondalar, encaminhando.se, em seguida, com Markeno na direção das
casas.
- Se precisar, eu o acordarei - falou ao sair.
Depois de ter ido embora, Jondalar despejou as últimas gotas da borra do vinho em
duas cuias, oferecendo uma à enigmática figura do shamud que o 214 215 aguardava,
meio encoberto pelas sombras silenciosas. O curandeiro aceitou-a, dando por implícito
que os dois tinham o que se dizer. Jondalar raspou da beirada da fogueira as últimas
brasas, amontoando-as no centro, e acrescen tou mais lenha até ter uma fogueira bem
acesa. Por alguns momentos, em si lêncio, e sorvendo goles de vinho, ficaram de
cócoras, batidos pelo calor trê mulo das chamas.
Ao olhar para cima, Jondalar viu que estava sendo examinado por aque les olhos de
cor indefinida e que à luz da fogueira eram simplesmente escuros. Havia força e
inteligência neles, mas com a mesma intensidade ele lhe devolvia o exame. As chamas
crepitando com estalidos sombreavam o velho rosto, dando certa indistinção aos seus
traços, mas mesmo à luz do dia Jondalar nunca pôde perceber-lhe quaisquer
características específicas, fora a idade. E até essa era misteriosa.
Havia personalidade naquele rosto enrugado. Isso lhe emprestava um to que de
juventude, apesar da longa cabeleira branca e desgrenhada. Talvez a figura sob aquelas
vestes soltas e largas fosse magra e frágil, no entanto o an dar se mostrava lépido, cheio
de elasticidade. Somente as mãos não deixa vam margem para dúvidas quanto à idade.
Mas mesmo com todos os nós de reumatismo e as veias azuis marchetando a pele
pergaminhosa, não se via qualquer tremor na cuia que elas levavam aos lábios.
O movimento partiu o contato de olhos. Jondalar achou que o shamud o tivesse feito
intencionalmente para aliviar a tensão crescente. Ele também tomou um gole.
- O shamud, bom curandeiro. Pessoa de muito talento.
- Essa é uma graça que recebi de Mudo.
Jondalar procurava descobrir algum traço no timbre ou no tom da voz capaz de
revelar um lado mais preponderante da androgenia do curandeiro. Apenas para satisfazer
a curiosidade que há tempos lhe remofa o espírito. Ainda não conseguira chegar a uma
conclusão se seria o shamud homem ou mulher. A sua impressão era a de que, apesar
da neutralidade do gênero, o curandeiro não havia levado uma vida celibatária. Os seüs
ditos sarcásticos quase sempre vinham acompanhados de olhares carregados de malícia.
Ele queria perguntar, mas não sabia como abordar o assunto em termos delicados.
- A vida do sharnud não é fácil. Ser preciso renunciar muitas coisas - ensaiou
Jondalar. - O curandeiro nunca quis ter companheira?
Por um instante aqueles olhos inescrutáveis arregalaram-se. Então ou viu-se um
sardônica gargalhada. Jondalar, confuso, sentiu subir-lhe no rosto uma onda de calor.
- Que pessoa é essa, Jondalar, você acha que poderia unir-se a mim? Bom, se você
tivesse
aparecido nos meus anos de juventude, talvez eu ficasse tentado. Ah. - - mas teria
você sucumbido aos meus encantos? Ainda que ti- vesse ofertado à árvore sagrada um
colar de contas, poderia eu tê-lo na minha cama? - falou abaixando a cabeça, numa
atitude um tanto recatada.
Por um momento, Jondalar estava convencido de que conversava com uma moça.
- Será que eu deveria ser mais prudente nas minhas palavras? Você é um homem
com apetites muito apurados. Será que eu conseguiria aguçar-lhe a curiosidade para
novos prazeres?
Jondalar enrubesceu, certo de que se enganara. No entanto, via-se stranhamente
atraído pelo olhar libidinoso do shamud e a graça felina que ele projetava nos
movimentos sinuosos de seu corpo. Claro, o curandeiro era homem. Só que nos seus
prazeres era um homem com os gostos de uma mu lher. Muitos curandeiros reuniam em
suas pessoas a origem feminina e mascu lina, ao mesmo tempo. Isso lhes dava maiores
poderes. Novamente fez-se ouvir a risada sardônica.
- Mas se para o curandeiro a vida já é difícil, quanto mais então não seria para o
companheiro ou a companheira dele? A primeira preocupação de um homem deve ser
com a sua cara-metade. Por exemplo, seria difícil aban donar alguém como Serenio no
meio da noite para ir tratar de um doente. Além disso, os períodos de abstinência podem
ser muito longos..
O shamud inclinava-se para a frente, falando de homem para homem. Os seus olhos
brilhavam com o pensamento de uma mulher encantadora como Serenio. Jondalar,
estupefato, abanava a cabeça sem compreender. Mas então um movimento de ombro
revelou uma forma de masculinidade de natureza diferente. Algo inexistente nele.
- - - . e não sei se gostaria de deixá-la exposta à voracidade dos homens que
estariam rondando por perto.
O shamud era mulher. Mas não uma mulher que pudesse sentir-se atraí- da por ele
ou ele por ela, como qualquer coisa mais do que uma simples ami zade. Com efeito, o
poder do curandeiro advinha de seus dois sexos originais, mas esse era o de uma mulher
com gostos masculinos.
O shamud voltou a dar uma sonora gargalhada. Na voz, nenhum sinal mais
indicativo de seu sexo. Um pedido de compreensão humana no mudo diálogo de olhos
nos olhos. O velho curandeiro, então, prosseguiu:
- Diga-me, Jondalar, qual dos dois sou eu? Com qual você poderia unir- se? Alguns
tentam, de um modo ou de outro, encontrar uma relação, mas raramente estas são
duradouras. Os nossos dons não nos chegam simples mente como bênçãos. Um
curandeiro não tem identidade, exceto em sentido muito lato. Ele perdeu o seu nome
pessoal e oblitera o seu eu para assumir a essência de todos. Há recompensas, mas
normalmente nessas não se acha in cluído o prazer de uma vida em família. Quando se é
jovem, nascer predesti nado não é necessariamente algo desejável. É difícil ser diferente.
Às vezes 216 217 não se deseja perder a identidade. Mas pouco importa. . . esse é o seu
destino. Não há outra alternativa para aquele que leva ao mesmo tempo em seu corpo a
essência do homem e da mulher.
À luz mortiça da fogueira, o shamud parecia tão velho quanto a própria terra. Com
os olhos perdidos nas brasas, era como se estivesse vivendo num outro tempo, num
outro lugar. Jondalar levantou-se para reavivar o fogo. Quando as chamas se
desprenderam, o curandeiro endireitou o corpo, reassu mindo a expressão irônica.
- Isso foi há muito tempo. . mas houve suas compensações. Principal mente as que
estão ligadas à descoberta do talento e da aquisição do saber. Quando a Mãe chama
alguém para o seu serviço, nem tudo é sacrifício.
- Com os Zelandonii é diferente. Nem todos que servem à Mãe saber coisas na
juventude. Diferente do shamud. Uma vez pensei também servi Dc Mas não todos são
chamados - falou Jondalar. As rugas em sua testa e os lábios contraídos, sugerindo um
amargor ainda não superado, deixavam o shamud curioso. Havia mágoas profundamente
enterradas no peito daque le belo rapaz, parecendo tão privilegiado da sorte.
• - É verdade, nem todos aqueles que desejam são chamados e nem to • dos os que
são chamados têm o mesmo talento ou vocação. Quando não se tiver certeza, há meios
para descobrir-se. São aqueles que usamos para pôr à prova a nossa fé e força de
vontade. Isso pode ser bastante esclarecedor, a pes soa acaba conhecendo-se a si
mesma, mais do que desejaria. O meu conselho • para os que querem entrar no serviço
da Mãe é o de que, primeiro, vivam sozinhos. Se não conseguirem isto, jamais passarão
pelas povas mais duras.
- Que espécie de provas?
O shamud nunca se mostrara tãp franco e Jondalar se via fascinado.
- Por exemplo, os períodos de abstinência, quando devemos renunciar a todos os
prazeres. Os períodos de silêncio, quando não podémos falar a nin guém. Os períodos de
jejum, quando passamos o máximo de tempo possível sem dormir. Há ainda outras.
Aprendemos a usar esses métodos na busca de respostas e de revelações da Mãe - São
usados principalmente por aqueles que estão sendo iniciados. Após algum tempo,
aprende-se a submeter a mente à vontade, mas é salutar recorrer-se a estes métodos de
vez em quando.
Houve um longo silêncio. O shamud conseguira levar a conversa, contor nando as
questões que Jondalar realmente gostaria de abordar. Contudo, ele não pôde deixar de
perguntar:
- O shamud, que sabe de muitas coisas, poderia dizer o que significa... tudo isto? -
disse, abrindo os braços num gesto amplo e vago.
- Sim. Entendo o que está querendo dizer. Você está preocupado com o seu irmão,
depois do que aconteceu esta noite e, de modo geral, com ele e Jetamio. - . e também
com você.
Jondalar confirmou com a cabeça.
- Nada é certo.. . você sabe disto.
Jondalar tomou a balançar a cabeça.
O shamud o examinava, tentando decidir-se até que ponto poderia abrir-se e se
aprofundar em suas revelações. Então o velho rosto enrugado se voltou para a fogueira,
com uma expressão perdida nos olhos. Jondalar sen tiu-o distanciar, como se houvesse
surgido um imenso espaço entre os dois, embora nenhum deles se tivesse arredado do
lugar.
- É forte o amar que você tem pelo seu irmão - a voz ecoava abafa da, lúgubre,
como ressoando do além. - Você tem medo de que esse senti mento seja demasiado e o
faça viver a vida dele e não a sua. Mas você se engana. É ele quem o conduz para onde
você tem de ir, para lugares onde por si mesmo jamais iria. Você está seguindo o seu
destino, não o de seu irmão. Vocês seguirão juntos apenas por uns tempos. As suas
forças, Jondalar, são de naturezas diferentes. Quando suas necessidades forem muito
grandes, a sua força também o será. Senti que você estava precisando de mim, antes até
de acharmos a sua camisa ensangüentada na tora que me foi enviada.
- Eu não enviei a tora. Foi sorte. Foi simplesmente por acaso.
- Não foi por acaso que eu senti a sua necessidade. Outros também sentiram. Não
se pode negá-lo, Jondalar. Nem mesmo a Mudo o negaria. Esse é um dom seu. Mas
cuidado com as graças que provêm da Mãe, pois elas o tomam seu devedor. Para ser tão
bem-dotado como é, Jondalar, Mudo deve ter algum propósito em relação a você. Nada é
dado sem retomo. Nem mesmo a dádiva do prazer se constitui numa simples graça. Nela
há uma intenção, embora possamos não saber qual seja. Lembre-se disso: você está
apenas obe decendo os desígnios da Mãe. Não precisa ser chamado, você nasceu para
o seu destino. Mas será posto à prova. Você irá causar dor e sofrerá por isso.
Subitarnente os olhos de Jondalar arregalaram-se, surpresos.
- Você será ferido. Na busca da satisfação, encontrará muitas desilu sões, e na
procura da verdade só achará a dúvida. Mas há compensações. Você nasceu
privilegiado: física e mentalmente. Você tem grande capacidade, excepcionais talentos e
é dotado de extraordinária sensibilidade. Os seus tor mentos resultam de seus privilégios.
A você foi dado demasiadamente, irá aprender com o próprio sofrimento. E lembre-se
também disso: servir à Mãe não é só sacrifício. Você encontrará o que busca. Lo seu
destino.
- Mas.. . Thonolan?
- Eu sinto uma ruptura. O destino dele se faz diferente. Ele deve seguir o seu próprio
caminho. É um agraciado de Mudo.
Jondalar franziu o rosto. O Zelandonii já dissera algo semelhante e isso não
significava necessariamente fortuna. Dizem que a Grande Mãe tem ciúmes de seus filhos
diletos e que não tarda a chamá de volta. Ele ficou esperando, 218 219 mas o shamud
nada mais disse. Toda a parte da conversa referente à "necessi dade", "força" e
"intenções da Mãe" ele não entendera muito bem. Aqueles que servem à Mãe
freqüentemente falam por meias palavras, mas ele sentia que não gostava do que havia
por trás.
Quando o fogo apagou, levantou-se para ir embora. Começou a andar na direção
das casas atrás do ressalto na pedreira, mas o shamud não havia ter minado.
ridão.
- Não! A mãe e o bebê não! - gritou uma voz súplice em meio à escu Jondalar,
apanhado de surpresa, sentiu um calafrio passar-lhe pela espi nha. Perguntou-se se
Tholie e a filhinha estariam pior do que ele imaginava. E por que ficou ele tremendo, se
não fazia frio?
12 Jondalar! - era Markeno chamando-o, e ele parou, esperando que o outro o
alcançasse. - Essa noite, ache um jeito de não subir de volta tão depressa. Desde o dia
do compromisso que Thono lan não vive senão de regras e rituais. Já é tempo de ele ter
uma folga - com um sorriso maroto, Markeno retirou a tampa de um odre, fazendo com
que Jondalar desse uma cheirada no vinho de uvas.do-nionte.
Jondalar fez sim com a cabeça, dando por sua vez um sorriso. Havia di ferenças
entre o seu povo e esses sharamudoi, mas alguns costumes, sem dúvi da, estavam bem
difundidos. Ele ficara curioso, querendo saber que "ritual" seria este que os rapazes
estariam preparando só para eles. Os dois se puseram a descer juntos pela trilha.
- Como vão passando Tholie e Shamio?
- Tholie está com medo de que Shamio possa ficar com alguma cicatriz no rosto.
Mas as duas se encontram em franca recuperação. Serenio acredita que a queimadura
não deixará marca, mas nem mesmo o shamud é capaz de afirmar isto.
Caminharam os dois por algum tempo com a mesma expressão preocu pada. Numa
curva da trilha, deram com Carlono examinando uma árvore. Ao vê-los, o seu rosto se
iluminou com um amplo sorriso, tornando ainda mais visível a sua semelhança com
Markeno. Ele não era tão alto quanto o filho de sua casa, mas tinha a mesma constituição
magra e vigorosa. Deu mais uma olhada e balançou a cabeça.
- Não. Não serve.. - - Não serve?
- Para cavernas - falou Carlono. - Não vejo um barco nesta árvore. Nenhum dos
galhos seguirá a linha da curva. Nem mesmo aplainando.
- Como sabe? O barco ainda não está pronto - falou Jondalar.
- Ah, mas ele sabe - interpôs Markeno. - Carlono sempre acaba en contrando os
galhos apropriados. Se você quiser, fique aqui conversando so bre barcos. Eu vou descer
para a clareira.
Jondalar observou-o afastar-se, depois se dirigiu a Carlono, perguntando:
- Como escolher árvores boas para fazer barcos?
- E uma questão de prática. Com o tempo, adquirimos sensibilidade es pecial para
perceber. No momento, não estamos à procura de árvores altas e retas. Queremos as
que possuam galhos curvos e em forma de gancho. Então procuramos vê-las como
ficariam na formação do piso e das laterais, abaula das. Para isso, temos de achar as
árvores que crescem isoladas, com espaço à vontade para expandir-se. Como os
homens, algumas crescem melhor agru padas, lutando para dominar as companheiras.
Já outras precisam crescer ao seu modo, sozinhas. Mas as duas têm a sua serventia.
Carlono largou a trilha principal e foi por uma passagem pouco usada. Jondalar ia
atrás.
- Às vezes encontramos duas árvores que cresceram juntas - prosseguiu o chefe
ramudoi - e são curvas, uma beijando a outra. Como aquelas ali - ele apontou para duas
árvores entrelaçadas. - Um par de namorados, como nós chamamos. Freqüentemente
acontece cortarmos uma delas e a outra morrer - falou Carlono, enquanto Jondalar o
escutava franzindo a testa.
Eles chegaram a uma clareira e Carlono subiu com Jondalar por uma encosta
ensolarada na direção de um compacto carvalho de galhos retorcidos e nodosos.
Enquanto se aproximavam, Jondalar olhava, imaginando ver estra nhos frutos brotando
da árvore, mas já perto, com surpresa, viu que se trata va de urna decoração
extremamente inusitada, feita com uma série de obje tos. Havia delicadas cestas
adornadas com plumas coloridas, pequenas saco las de couro bordadas com conchas de
moluscos e cordôes trançados artisti camente. Um comprido colar de tanto tempo estar lá
pendurado acabou in crustado na madeira. Ao examinar melhor, Jondalar viu que era um
cordão de conchas intercaladas com espinhas de peixe. Os furos nas conchas, fina
mente esculpidas, eram produzidos, enquanto os dos ossos eram naturais. Dos galhos
ainda se penduravam: miniaturas de barcos, dentes caninos pre sos por tiras de couro,
penas de pássaros, rabos de esquilos. Jondalar jamais vira uma coisa como aquela na
vida.
220 221 Carlono deu uma risada diante da sua reação de espanto.
- Essa é a árvore sagrada. Imagino que Jetamio já tenha feito a sua ofe renda. As
mulheres em geral fazem isso quando querem que Mudo as abençoe com filhos. Elas
pensam na árvore como uma propriedade sua, mas muitos ho mens penduram aqui
também as suas oferendas. Costumam pedir para terem sorte nas caçadas, proteção
para um novo barco e felicidade quando tomam uma nova companheira. Não se faz
pedidos para qualquer coisa, eles são reser vados para ocasiões especiais.
- É enorme a árvore!
- Essa árvore é a própria Mãe. Mas não foi por isso que eu o trouxe aqui. Você
reparou como estão curvos e dobrados os galhos? É que ela seria imensa, mesmo que
não fosse a árvore sagrada. São de árvores como esta que se tem de retirar a madeira
para os suportes. Depois, entâó, é que se examina os galhos para ver se eles servem
para a construção do interior dos barcos, Os dois tomaram um caminho diferente para
descer à clareira onde fa bricavam as embarcaç&s Lá encontraram Markeno e Thonolan
trabalhando numa enorme tora, tanto no sentido da circunferência como no do compri
mento. Os dois tinham em suas mãos uma enxó. No atual estágio, o tronco se parecia
mais com o cocho que usavam para preparar chá do que com as em barcações de linhas
elegantes dos sharamudoi, mas a forma geral já estava • esboçada. Posteriormente, a
proa e a popa seriam modeladas, mas antes o in terior precisava receber acabamento -
Jondalar passou a ter grande interesse nas construções de nossos barcos - falou
Carlono.
- Talvez devêssemos arrumar uma mulher da ribeira para ele, assim te ríamos mais
um ramudoi. Seria justo, já que o irmão vai ser um shamudoi - pilheriou Markeno. - Sei de
duas que andam espichando o rabo do olho para ele. Uma delas facilmente seria
persuadida.
- Com Serenio por perto, acho que elas não têm muita chance - falou Carlono,
dando uma piscadela para Jondalar, - Mas nâõ faz mal, os melhores fazedores de barco
são shamudoi. Não 6 o barco na terra e sim na água que torna o homem ramudol, - Se
está querendo tanto aprender a construir barcos, por que não passa a mao numa enxó e
ajuda? - disse Thonolan. - Tenho a impressão de que o meu irmão está mais a fim de
conversar do que de trabalhar - ele tinha as mãos e aS bochechas manchadas de preto. -
Posso até emprestar a minha enxó - acrescentou, atirando a ferramenta na direção de
Jondalar, que a apa nhou no ar, A enxó, uma resistente lâmina de pedra assentada
perpendicular. mente no cabo, lhe pôs uma mancha preta na mab.
Thonolan pulou para fora do tronco e foi verificar uma fogueira perto. Estava
reduzida a umas poucas brasas vivas, das quais, vez por outra, despren diaru-se
labaredas cor de laranja. Com um pau, ele arrastou alg? acesos para cima de uma tábua
já cheia de buracos chamuscados. Ca\ então, para o tronco e os despejou, em meio a
uma chuva de faíscas na cavidade que haviam aplainado. Markeno, depois de botar mais
let fogueira, trouxe um recipiente com água. Os carvões acesos deveriam que us. a tora,
mas não estorricá-la, l'honolan, com uma vareta, remexeu as brasas e, depois, despejou
águ em alguns pontos estratégicos. O chiado do vapor e o cheiro forte da madei ra
queimando-se revelavam-lhes as forças elementares em luta: água versus fo go. A água
venceu e Thonolan atirou fora os pedaços molhados de carvão. Pulou então novamente
para dentro do cocho, pondo-se a raspar a madeira chamuscada, alargando e ao mesmo
tempo aprofundando o buraco.
- Deixe-me experimentar fazer isso - disse Jondalar, após observar por alguns
instantes.
- Estava mesmo me perguntando se você iria ficar parado aí o dia in teiro - observou
Thonolan, sorrindo. Quando falavam entre si, os dois irmãos acabavam deixando-se
arrastar pela Jffigua materna. A intimidade com ela e a despreocupação para falar era
relaxante. Ambos começavam a dominar o sha. ramudoi, mas Thonolan estava falando
melhor.
Dep de usar um pouco a ferramenta, Jondalar parou para examinar a cabeça dk
enxó e, em seguida, experimentou usá-la numa posição diferente. Novamente tornou a
parar para examinar o gume, e então encontrou ojeito de empunhá-la. Os três se
puseram a trabalhar e, enquanto não fizeram uma pausa para descansar, a conversa era
pouca entre eles.
- Nunca tinha visto usar fogo para cavar madeira - disse Jondalar en quanto
caminhava para o galpão. - Sempre vi esse trabalho feito só com enxó.
- E pode ser feito só com enxó, mas o fogo faz com que ande mais rápido. O
carvalho é uma madeira dura - observou Markeno. - Às vezes usa mos os pinheiros que
dão mais no alto da montanha. A madeira é macia e mais fácil de ser cavada, mas
mesmo assim o fogo sempre ajuda.
- Leva muito tempo para se fazer um barco? - perguntou Jondalar.
- Isso depende do quanto você trabalhar e de quantos estão metidos no trabalho.
Esse, por exemplo, não vai demorar muito. Bom, você sabe, essa é uma reivindicação de
Thonolan. O barco precisa ficar pronto o quanto antes para ele poder unir-se a Jetamio -
Markeno deu um sorriso. - Nunca vi nin guém trabalhar tanto e também pressionar tanto
os outros. Mas, uma vez co meçado, 6 sempre bom que não se interrompa o trabalho.
Assim a madeira não terá tempo para secar demais. Essa tarde vamos cortar as
pranchas para as fileiras. Você gostaria de ajudar?
- Claro que ele vai ajudar - falou Thonolan.
1 222 223 O imenso carvalho que Jondalar ajudara a abater fora levado, sem as
ramagens da parte superior, para o outro lado da clareira. Para carregá-lo foi preciso
arregimentar todos os braços fortes disponíveis e quase outro tanto para cortá-lo.
Jondalar não precisou ser pressionado pelo irmão. Não iria per der a oportunidade.
Primeiro, com malhos de pedra, introduziu-se urna série de cunhas de osso ao longo
dos veios, em toda a extensão do tronco. A compacta massa de madeira começou a
ceder relutante, mas depois as cunhas acabaram por abrir uma rachadura. À medida que
as grossas extremidades das cunhas iam sendo marteladas para dentro do coração da
madeira, as estilhas de ligamento sol tavam-se, até que, com forte estrépito, as duas
partes caíram para os lados, partidas habilmente pela metade.
Jondalar, maravilhado, balançava a cabeça- No entanto, estava apenas começando.
As cunhas foram novamente colocadas no centro de cada uma das metades e o
processo repetido, dividindo-se outra vez pela metade. E assim se foi fazendo
sucessivamente com as seções que se iam separando, sem pre cortadas pelas suas
metades. Ao final do dia, o colossal tronco estava reduzido a uma pilha de tábuas,
cortadas radialmente, todas afinando-se na direção do centro e com uma beirada mais
fina do que a outra. Algumas pran chas saíram mais curtas do que outras, devido aos nós
da madeira, mas seriam igualmente aproveitadas, O número de tábuas era muito maior
do que o necessário às laterais do barco, de modo que as sobras iriam para a cabana a
ser construída para o novo casal, no vão embaixo da pedreira, no alto da montanha. A
moradia seda vizinha de Roshario e Dolando, e suficientemente espaçosa para alojar
Markeno e Tholie com o bebê durante os rigores do inver no. Acreditava-se que se a
madeira usada na construção do barco e da cabana fosse da mesma árvore, isso
fortaleceria o vínculo do casal com a força do car valho.
Quando o sol começou a descer no céu, Jondalar reparou que alguns rapazes se
metiam dentro das matas. Markeno deixou-se persuadir por flono lan e continuou no
serviço de cavar a base do barco, até que já não houvesse mais ninguém lá, fora eles.
Foi Thonolan que, por fim, concordou que estava realmente escuro para continuar
trabalhando.
- Isso aqui está muito claro. Você ainda não sabe o que é escuridão - falou uma voz
atrás dele.
Antes que Thonolan tivesse tempo para se virar e ver quem falava, uma venda lhe
foi posta sobre os olhos e os seus braços seguros.
- O que está acontecendo? - gritou, lutando para se desvencilhar.
Apenas risos abafados foram ouvidos como resposta. Ele se viu suspen so e
carregado para um outro lugar. Quando novamente foi colocado no chão, sentiu que lhe
estavam retirando a roupa do corpo.
- Parem com isso! O que estão fazendo? Está frio.
- Não vai sentir frio por muito tempo - falou Markeno, depois da ven da ser desatada.
Thonolan viu, então, uma meia dúzia de rapazes sorrindo, todos nus. O lugar onde
se achavam lhe era desconhecido, principalmente ao lusco-fus co do anoitecer, mas ele
ouviu o barulho de uma água correndo por perto.
Ao redor dele, a floresta se mostrava uma densa massa negra. Contudo, o negrume
numa certa área se dilufa, deixando entrever as silhuetas das árvo res, delineadas contra
um céu arroxeado. Para mais além, um largo caminho reluzia sinuosamente com os
reflexos prateados da superfície acetinada do Grande Rio Mãe. Perto, uma luz brilhava
fracamente através das fendas de uma pequena construção de madeira, baixa e
retangular. Os rapazes subiram no teto e entraram na cabana por um buraco, valendo-se
de um tronco esca lonado que se encontrava encostado num canto da parede.
Dentro da cabana, num buraco central, fora armada uma fogueira em cima da qual
se achavam algumas pedras esquentando. As paredes dos fundos projetavam no chão
um ressalto que estava revestido por tábuas finamente lixadas com areia. Logo que todos
entraram, tamparam o buraco no teto com uma coberta móvel. A fumaça safa pelas
gretas. As brasas brilhando sob as pedras quentes, depressa fizeram com que Thonolan
desse razão a Markeno. Ele já não sentia frio. Alguém atirou água por cima das pedras,
fazendo levan tar uma nuvem de vapores que embaçou ainda mais o recinto fracamente
ilu minado.
- Você conseguiu arrumar, Markeno? - perguntou um homem sentado ao lado dele.
- Está aqui, Chalono - respondeu Markeno, suspendendo o odre cheio de vinho.
- Bom, então vamos bebê-lo. Você é um homem de sorte por ter uma companheira
capaz de fazer um vinho como este, Thonolan - disse Chalono em meio à concordância
geral e passando adiante o odre. Então com um sorri so safado, mostrou um embrulho de
couro dentro de uma sacola. - Eu tenho aqui comigo uma outra coisa.
- Agora estou entendendo por que você passou o dia inteiro rondando as matas -
observou um dos rapazes. - Tem certeza de que são mesmo dos bons?
- Não se preocupe, Rondo. Eu conheço cogumelos. Pelo menos esses aqui eu
conheço - assegurou Chalono.
- E deve conhecer mesmo. Você não perde uma chance de apanhá-los.
A observação maliciosa provocou novas risadas.
- Talvez ele esteja com intenções de ser o shamud, Tarluno - acrescen tou Rondo
com ar de zombaria.
224 225 - Mas veja lá, Chalono. Esses não são os cogumelos do shamud, são?
- perguntou Markeno. - Os dele são vermeilios, com pintas brancas, e podem ser
mortais, se não se souber prepará-los direito.
- Não. Estes aqui são pequeninos, deliciosos e inofensivos, Só fazem a gente se
sentir bem. Eu não gosto de brincar com os do shamud. Não quero ter uma mulher dentro
de mim.. . Prefiro entrar numa mulher - falou Chalo no, dando uma risadinha.
- Quem pegou o vinho? - perguntou Tarluno.
- Entreguei o odre para Jondalar. Grandão como ele é, vai acabar bebendo tudo.
- Mas eujá passei o odre para Chalono - falou Jondalar.
- Ainda não vi nenhum cogumelo. Será que você vai ficar com o vinho e os
cogumelos? - perguntou Rondo, - Ora, vamos com calma, Estava tentando abrir essa
sacola. Tome, flonolan, você é o convidado de honra, Merece ser servido primeiro.
- Markeno, é verdade que os mamutoi tiram de uma planta uma bebida melhor do
que vinho ou cogumelo? - indagou Tarluno.
- Não sei se melhor, mas já tomei dela uma vez.
- Que tal um pouco mais de vapor? - falou Rondo, atirando uma cuia de água sobre
as pedras, sem esperar pela resposta.
- No oeste, se usa colocar alguma coisa no vapor - comentou Jondalar.
- E numa das Cavernas, as pessoas têm o hábito de respirar a fumaça feita por uma
certa planta. Eles deixaram que a gente experimentasse, mas não quiseram contar qual
era a planta - acrescentou Thonolan.
- Vocês dois já devem ter experimentado de quase tudo nessa viagem que estão
fazendo - observou Chalono. - Isso é o que eu gostaria de fazer, experimentar de tudo o
que existe neste mundo.
- Ouvi dizer que os cabeças-chatas tomam uma coisa. - . - ia Tarluno dizendo.
- Eles são animais e por isso bebem qualquer coisa - interpâs Chalono.
- Mas não foi exatamente o que você acabou de dizer? Que gostaria de
experimentar de tudo? - falou Rondo, num tom escarnecedor e arrancando uma risada
geral.
Chatono reparou que os comentários de Rondo sempre provocavam risos e quase
sempre à sua custa. Para não ficar atrás, começou a contar uma piada que sabia já ter
produzido sucesso.
- Vocês conhecem a do velho que era tão cego que apanhou uma cabe ça-chata
pensando que era uma mulher e.
- E que o seu pau pendurou-se num outro lugar? Ora, essa é nojenta, Chalono -
falou Rondo. - Qual homem que iria confundir uma cabeçachata com uma mulher?
- Alguns não confundem. Fazem de propósito - disse Thonolan.
A oeste daqui, os homens de uma Caverna gostam de ter prazeres com fêmeas de
cabeças-chatas. Isso causar muitos problemas para as outras Cavernas de lá.
- Está brincando!
- Não. Não brincando. Nós fomos cercados por um bando de cabeças chatas -
confirmou Jondalar. - Eles estavam muito zangados. Depois as pessoas da Caverna
contaram para nós que estava havendo confusão por causa disso.
- Como vocês conseguiram escapar?
Eles deixaram - respondeu Jondalar. - O chefe do bando. . . inteli gente. Cabeças-
chatas muito mais inteligentes do que as pessoas pensam.
- Soube de um rapaz que fez uma aposta que ia pegar uma cabeça-cha ta e pegou
mesmo - disse Chalono.
- Quem? Você, Chalono? - troçou Rondo. - Afinal, você disse que queria
experimentar de tudo.
Chalono procurava defender-se, mas as risadas não o deixavam falar. Quando, por
fim, serenaram um pouco mais, ele tentou novamente.
- Não. Eu não estava querendo dizer isso, quando falei que gostaria de experimentar
de tudo. Estava falando de vinho, cogumelos, só coisas desse ti po - ele já se sentia meio
alto e a língua começava a ficar um tanto pastosa.
- Mas uma porção de garotos, que ainda não conhecem uma mulher, falam de
cabeças-chatas como se conhecessem.
- Ora, conversas de garotos - falou Markeno.
- E sobre o que vocês acham que garotas conversam?
- Talvez sobre os machos dos cabeças-chatas - disse Chalono.
- Não quero mais falar sobre esse assunto - cortou Rondo.
- Mas bem que você participava dessas conversas quando éramos garo tos, Rondo -
falou Chalono, começando a se sentir ofendido.
- Bom, mas eu cresci e esperava que você também. Estou já farto dessas suas
histórias nojentas.
Chalono, meio bêbado, se sentiu insultado. Se estava sendo acusado de nojento,
então daria realmente motivos para isso.
- Ah, é assim, Rondo? Pois eu sei de uma mulher que teve prazer com cabeça-chata
e mais tarde nasceu um filho da mistura dos espíritos...
- Chega! - Rondo encolheu os ombros e apertou os lábios numa ex pressão de nojo.
- Chalono, isto não é coisa com que se brinque. Quem o convidou para essa reunião?
Vão com ele daqui! Eu me sinto como se um monte de merda tivesse sido atirado na
minha cara. Um pouco de brincadeira ainda passa, mas ele foi longe demais.
- Rondo tem razão - falou Tarluno. - Por que você não vai embora, Chalono?
226 227 - Não - disse Jondalar. - Lá fora está frio, muito escuro. Melhor não sair. É
verdade, bebê nascido de mistura de espíritos não é assunto para brin cadeiras. Mas por
que todo mundo sabe da existência deles?
Meio gente, meio animal. Uma aberração da natureza murmurou Rondo. - Não
quero falar nessa coisa. Aqui está muito quente. Bom, antes que eu fique enjoado, vou
para fora.
- Esperava-se que essa fosse uma reunião para deixar Thonolan rela xado -
observou Markeno. - Por que não vamos todos dar um mergulho e depois voltamos para
começar tudo de novo? Ainda há uma boa quantidade do vinho de Jetainio. Eu não contei
para vocês, mas trouxe dois odres comigo.
- Acho que as pedras ainda não estão bem quentes - falou Markeno. A sua voz era
calma, mas só aparentemente.
- Não é bom deixar a água permanecer muito tempo dentro do barco. A madeira não
deve ficar encharcada demais, apenas o bastante para amacíá Ia e torná-la flexível.
Thonolan, as escoras estão à mão para quando precisar mos delas? - perguntou Carlono,
franzindo o rosto, preocupado.
- Estão aqui - respondeu, indicando os postes de amieiro que se en contravam no
chão, perto da canoa cheia de água.
- É melhor começarmos logo, Markeno. Faço votos para que essas pedrasjá estejam
quentes.
Jondalar, apesar de ver o barco aos poucos ganhando forma, continua va ainda
assombrado com a sua transformação. O tronco do carvalhojá dei. xara de ser uma
simples tora. O seu interior fora ocado e polido, enquanto o exterior tinha agora o
elegante contorno de uma canoa longilínea. O cas co não chegava a ter a grossura de
um dedo, fora a proa e a popa, duas par tes trabalhadas mais solidamente. Ele vira
Carlono, com uma enxó de pedra, parecida a um cinzel, raspar a camada externa de um
pedaço de madeira, já fina como uma vara, e dar.lhe a espessura que a embarcação teria
no final. Quando ele próprio foi tentar, mais admirado ainda ficou com a habilidade e
perícia do homem. O barco afinava-se na proa, fazendo um talha-mar pon tiagudo, tinha
o piso razoavelmente plano e uma popa não tão pronunciada. Proporcionalmente, era
bastante comprido em relação à largura.
Os quatro se puseram a transportar, rápido, as pedras que esquentavam na fogueira
pata a canoa, fazendo a água que se achava dentro soltar vapores e ferver, O processo
era o mesmo que o da fervura da água com pedras quen tes para preparar o chá no
cocho, perto do galpãó, só que aqui levado em grande escala e com outro propósito. O
calor não era para cozinhar, e sim para remodelar o recipiente.
Markeno e Carlono, de frente um para o outro, na parte mediana da embarcação,
começaram a pôr à prova a flexibilidade da madeira, pressionan 228 do-a com extremo
cuidado, de modo a alargar o casco, mas sem rachá4o. Toda a obra de escavar e
modelar, executada a duras penas, iria por água abai xo se durante o trabalho de
expansão a madeira partisse. Era um momento tenso. Enquanto era feita a pressão no
meio do barco, Thonolan e Jondalar estavam a postos, aguardando que a largura
atingisse o ponto desejado, para então encaixar a caverna central, a mais larga de todas,
o que lhes custou um grande esforço. O casco resistiu.
Instalada a escora central, passou-se ao encaixe das demais cavernas, cada vez
menores quanto mais próximas dos extremos da embarcação. Eles retiraram parte do
volume da água quente até ser possível, entre os quatro, levantar o casco, jogar fora as
pedras, e virar o barco para esvaziar o que res tava da água. Finalmente o barco foi
escorado com toras para secar.
Os homens respiraram mais aliviados ao afastarem-se para admirar o belo feito, O
barco tinha uns quinze metros de comprimento, por dois e meio de largura, mas o
trabalho de expansão da madeira alterara o desenho em ou tro aspecto importante: com
o alargamento do meio, as áreas da proa e popa se levantaram, dando à embarcação
uma graciosa curvatura nas extremidades. Além de proporcionar uma largura maior para
o aumento da estabilidade e capacidade, a expansão da madeira, ao arrebitar as
extremidades, ajudava o barco a enfrentar o embate das ondas e águas revoltas.
- Agora está um perfeito barco de preguiçoso - disse Carlono, enquan to
caminhavam para outro recanto da clareira.
- Preguïçoso?!. . . - exclamou Thonolan, pensando na dureza que fora o trabalho.
Carlono sorriu. Já esperava a reação.
- É uma longa história que se conta de um preguiçoso e sua compa nheira ranzinza,
com um barco que ficou esquecido por todo o inverno. Quando o pobre coitado foi ver, o
gelo e a neve, que se acumulàrarn lá dentro, fizeram a madeira expandir-se. Todos
acharam que o barco estava arruinado. Mas como era o único que ele tinha, esperou que
secasse e o lançou na água:
descobriu que navegava muito melhor. Moral da história: daí por diante, todos os
barcos passaram a ser construídos desse jeito.
- É uma história engraçada, se é que foi mesmo assim - disse Markeno.
- Tem a sua dose de verdade - atalhou Carlono. - Se estivéssemos fa zendo um
barco pequeno, teríamos praticamente terminado, fora alguns reto ques finais - disse, ao
mesmo tempo que se aproximavam de uni grupo de pessoas que, com verrumas de
osso, estavam fazendo furos ao longo das bei radas de algumas pranchas. Era um
trabalho difícil e tedioso, mas que, em grupo, saía mais rápido e alegre.
- E eu já estaria muito mais perto de juntar os meus trapinhos - falou Thonolan,
reparando na presença de Jetamio.
229 - Vocês todos estão com cara de riso. Isso deve significar que o traba lho de
expansão da madeira saiu direito - falou Jetamio, dirigindo-se a Car lono, mas voltando,
rápido, os olhos para Thonolan.
- Ao certo mesmo, só saberemos depois que o barco secar - respon deu Carlono,
precavidaniente, não desejando tentar o destino. - Como estão andando as fileiras?
- Já estão prontas. Agora estamos trabalhando nas tábuas a serem usa das na casa.
- respondeu uma mulher de idadeS Ela, na maneira de ser, pare cia com Carlono, tanto
quanto Markeno, principalmente sorrindo. .- Um bar co não é tudo na vida de um casal.
Neste mundo há mais coisas para serem vividas, querido irmão.
- Ora, Carolio, estou tão doido para ver esses dois juntos quanto vo cé - falou
Barono, sorrindo para Thonolan e Jetamio que, em silêncio, tres passavam um ao outro
com os seus sorrisos desejosos. - Mas de que adianta uma casa sem um barco?
Carolio olhou-o ofendida. Barono estava apenas repetindo um velho aforisma
ramudoi, pretensamente espirituoso e já tão gasto que não tinha a menor graça.
- Raios! - exclamou Barono. - Outra vez se quebrou.
- Hoje ele está completamente desarvorado - disse Carolio. - Ë a terceira verruma
que quebra. Acho que está farto de fazer buracos, por isso estraga as verrumas para se
ver livre desse serviço cacete.
- Não seja tão impiedosa com o seu companheiro - falou Carlono.- Todo mundo
quebra verrumas. Não se pode evitar que isso aconteça.
- Numa coisa ela tem razão: serviço cacete. Não conheço nada mais chato do que
este trabalho - comentou Barono, com um largo sorriso para as pessoas que
murmuravam em volta.
- Que engraçadinho! O que pode haver de pior do que um companheiro que se julga
espirituoso? - disse Carolo, como se buscando o apoio das ou tras pessoas. Todos riram.
Afinal, sabiam que sob aqueles gracejos existia um grande afeto.
- Se você tiver uma verruma disponível, posso tentar fazer alguns - falou Jondalar.
- O que é que há com esse rapaz? O único aqui que quer fazer bura cos - falou
Barono, aproveitando imediatamente a chance para levantar-se.
- Jondalar está interessadíssimo na fabricação de nossos barcos - respondeu
Carlono. - Em quase tudo ele mete a mão para experimentar.
- Mas, neste caso, podemos fazer dele um ramudoi - falou Barono.
- Sempre achei que ele fosse um rapaz inteligente. Já o outro, eu tenho as minhas
dúvidas - acrescentou, sorrindo para Thonolan, que só tinha olhos para Jetamio. - Tenho
a impressão de que uma árvore podia despencar sobre 230 a cabeça dele neste
momento que não se daria conta. Não temos nenhum trabalho melhor para ele fazer?
- Talvez ele pudesse pegar lenha para a caldeira ou limpar galhos de salgueiro para
costurar as pranchas - falou Carlono. - Logo que a canoa estiver seca e com os buracos
feitos ao redor do casco, já estaremos com as pranchas na curvatura certa para serem
encaixadas. Quanto tempo você acha, Barono, que ainda vai levar para o barco ficar
pronto? Temos de comunicar isso ao shamud para que ele comece a tratar da cerimônia.
E Dolando tam bém precisa ser avisado. Ele tem de enviar os mensageiros às outras
Cavernas.
O que ainda está precisando ser feito? - indagou Barono, enquanto caminhavam na
direção do lugar onde se achavam algumas pesadas estacas afundadas no chão.
- Ainda está faltando abrir os encaixes na popa e na proa e. - . você vem conosco,
Thonolan?
- Hein? Ah. - - sim.
Logo que saíram, Jondalar apanhou uma verruma com um cabo de osso e observou
a maneira de Carolio usá-la.
- Para que os buracos? - perguntou, depois de haver feito alguns. Apesar das
implicâncias, o interesse por barcos de irmã gémea de Carlo no não ficava a dever o do
irmão. Se ele era um perito em goivaduras e na mo delagem de cascos, ela o era nos
encaixes e amarrações. Prontamente se pós a dar explicações, mas então preferiu
conduzir Jondalar a um outro recanto da clareira, onde se encontrava um barco
parcialmente desmontado.
Diferente da jangada, que dependia da força ascensional dos materiais usados na
construção, o princípio da embarcação dos sharamudoi era o do fechamento de uma
bolsa de ar no casco de madeira. Esse foi um importan te invento que não só tornou as
embarcaç&s mais manobráveis, como tam bém lhes deu uma maior capacidade para o
carregamento de cargas. As pran chas, usadas para transformar a piroga inicial num
barco de maiores dimen sões, eram abauladas para ajustar-se à convexidade da
estrutura básica, valen do-se do calor e dos vapores, e depois literalmente costuradas,
em geral com galhos de salgueiro e aproveitando os furos previamente feitos, e por fim
presas com cravelhas aos sólidos suportes de popa e proa. Posteriormente,
acrescentavam-se escoras, em intervalos certos, ao longo de ambos os lados, para
reforçar o barco e fixar os assentos.
Quando bem-feitas, o resultado era um casco impermeável, capaz de resistir a
pressões resultantes de um uso intensivo de muitos anos. No entanto, acabada chegando
o dia em que o desgaste e o deterioramento das fibras de salgueiro tornariam
imprescindível que se desmontasse completamente o bar co para reconstruí-lo em
seguida. Na ocasião, as pranchas enfraquecidas eram também substituídas, o que
prolongava consideravelmente a vida útil do barco.
231 - Veja onde as pranchas defeituosas foram removidas - disse Carolio,
mostrando a Jondalar o barco em reparos. - Há furos ao longo da beirada su perior da
piroga - indicou-lhe uma tábua cuja curvatura se adaptava ao casco.
- Esta foi a primeira das fileiras. Os furos ao longo da beirada mais fina estão em
perfeita correspondência com a base. Veja só: ficou sobreposta assim, e costurada à
parte superior da piroga. Em seguida, costurou-se a prancha de ci ma a esta.
Passaram para o outro lado do barco, que ainda não havia sido desman telado.
Carolio mostrou as fibras cortadas e desgastadas em alguns dos furos.
- Este barco estava mesmo precisando de reparos. Veja como as fileiras estão se
superpondo. Para barcos pequenos, de uma ou duas pessoas, não são necessárias
laterais, basta a piroga. Se bem que em águas agitadas a manobra é bem mais difícil.
Antes que se perceba, lá se vai o controle do barco.
- Algum dia eu gostar de aprender - disse Jondalar. Ele reparou na prancha
abaulada e perguntou: - A prancha é curvada como?
- Com vapor e tensão, da mesma maneira como se expandiu a base. Os suportes lá
adiante, onde se encontram Carlono e o seu irmão, são para fazer as guias de retenção
para não deixarem sair do seu lugar as fileiras, enquanto estão sendo costuradas. Uma
vez os furos feitos, não é coisa que leve tempo, se houver, claro, muitas mãos
trabalhando juntas. Fazer furos é que é o grande problema. Afiamos tanto as verrumas de
osso, que elas se quebram com a maior facilidade.
Já anoitecendo, quase todos estavam subindo de volta ao terraço no al to da
montanha, quando Thonolan reparou que o seu irmão estava mais si lencioso que de
costume.
- Em que está pensando, Jondalar?
- Fazer barcos. É muito mais complicado do que pensei. Nunca ouvi falar antes de
barcos como estes, nem vi povo que tivesse tanto domínio sobre as águas como os
ramudoi. As pessoas parecem mais à vontade dentro de seus barcos do que andando. . .
E que perícia para manejar os instrumentos!.
Thonolan percebeu os olhos do irmão iluminar-se, cheios de entusiasmo.
- Andei examinando as ferramentas. A enxó, por exemplo, que Carlo no está
usando, me dá a impressão de que ficaria muito mais cómoda se tives se uma boa lasca
retirada de seu gume, de modo a produzir uma superfície interna côncava e lisa. Tenho
certeza também de que poderia fabricar um bril de sflex que faria andar muito mais
depressa esse serviço de abrir furos.
- Ah, então é isso! Por um momento cheguei até a acreditar que você estivesse
mesmo interessado na fabricação de barcos. Mas eu devia ter descon fiado. Não se trata
de barco e sim das ferramentas usadas para construí-lo. Jondalar, você no fundo nunca
deixará de ter alma de ferramenteiro.
Jondalar deu um sorriso, sabendo que Thonolan estava certo. O proces go de
construção dos barcos era curioso, mas o que realmente o estava interes sando eram as
ferramentas. Havia, dentre os sharamudoi, bons ferramenteiros, mas ninguém fizera
disso uma especialidade. Não havialá nenhuma pessoa com discernimento para perceber
que umas tantas modificações dariam muito mais eficácia às ferramentas. Sempre lhe
dera prazer produzir instrumentos adequa dos aos usos que lhe eram destinados, e a sua
mente, criativa por natureza, já visualizava uma série de possibilidades que iriam
melhorar aqueles usados pe los sharamudoi. E talvez fosse uma maneira de ele, com os
seus conhecimen tos e prática, começar a retribuir àquele povo que tanto devia.
- Mãe! Jondalar! Está chegando mais gente! Já existem tantas barracas, nem sei
como vai dar espaço para todo mundo - comunicou Darvo, entrando esbaforido na
cabana. Em seguida, saiu correndo novamente. Viera só para trazer notícias. Impossível
ficar sossegado dentro da casa, quando um mundo de coisas interessantíssimas estava
acontecendo lá fora.
- Há mais convidados agora do que na cerimônia de Markeno e Tholie, e eu já
achava que aquela tinha sido uma festa imensa - falou Serenio. - Tal vez seja porque a
maioria das pessoas, mesmo sem nunca ter visto um mamu toi, sabia que eles existiam,
e dos zelandonii jamais alguém ouviu falar.
- Será que estão achando que não somos gente com dois braços, duas pernas e
dois olhos, como todo mundo?
Ele se sentia meio soterrado pelo número de convidados. Em geral, nu ma Reunião
de Verão dos Zelandonii, havia até mais gente, mas agora, fora os residentes da Caverna
de Dolando e os da Doca de Carlono, as pessoas eram todas desconhecidas. A notícia
se difundira com tanta rapidez que outros po vos, além dos sharamudoi, haviam
comparecido. Os primeiros a chegar foram os mamutoi, não só parentes e amigos de
Tholie, mas também aqueles que por curiosidade vieram junto. Depois, foi a vez das
populações vivendo em terre nos mais acima, às margens da Mãe e da Irmã.
Além do mais, muitos dos costumes da cerimônia nupcial ele não os co nhecia.
Entre os zelandonii, o usual era todas as Cavernas se reunirem num de terminado local
previamente estabelecido, e lá realizar a cerimônia que uniria diversos casais ao mesmo
tempo. Para Jondalar, tudo aquilo era inteiramente novo. Jamais vira tanta gente
concentrada por causa de um só casal. Como único parente de flonolan, ele tinha um
papel de proeminência nas cerimô nias e estava sentindo-se nervoso.
- Jondalar, sabe que a maioria das pessoas se surpreenderia se soubesse que você
não é tão seguro quanto aparenta? Não se preocupe, você irá sair-se otimamente - falou
Serenio, chegando-se para junto dele e rodeando-o com os braços. - Aliás, você sempre
se sai...
Ela fizera o que tinha de fazer. A proximidade física de seu corpo o dei- 1 232 233
xava deliciosamente inebriado. As suas palavras tinham o dom de acalmá-lo e, sem se
impor, sabia como distrair-lhe o pensamento. Ele a puxou para mais perto e apertou os
seus lábios quentes contra os dela, num prolongado beijo, permitindo-se um momento de
sensualidade, antes de novamente se ver to mado pelas apreensões.
- Você acha que estou bem, desse jeito? Essa é uma roupa de viagem e não para
ser usada em ocasiões especiais - disse Jondalar, subitamente dando- se conta de que
estava com um traje típico dos zelandonii.
- Aqui ninguém sabe disso. Ë uma vestimenta diferente, muito especial. Perfeita para
a ocasião, acho eu. Poderia passar por uma vestimenta comum, se fosse conhecida, mas
não é. As pessoas irão estar de olhos em cima de você e também em Thonolan. Foi por
isso que vieram. Se puderem v&lo de longe, talvez não sintam necessidade de chegar
perto. Além disso, nessa roupa, você se sente à vontade. Ela cai bem e assenta muito
com você, Jondalar.
Ele a soltou e foi olhar através de uma fenda a multidão do lado de fo ra. Em
seguida, caminhou até a parede do fundo, onde o teto inclinado impe diu-o de ir mais
adiante. Depois voltou, e novamente tornou a olhar pela fresta.
- Jondalar, deixe-me preparar um chá para você. Ë feito de uma mistu ra especial de
erva, que aprendi com o shamud. Ele vai acalmar os seus nervos.
- E eu estou parecendo nervoso?
- Não. Mas tem todo o direito de estar. Em poucos instantes o chá es tará pronto.
Ela despejou água numa caixa retangular e, em seguida, pôs pedras quentes dentro,
enquanto Jondalar, perdido em seus pensamentos, veio sen tar-se num banquinho baixo
de madeira. Os seus olhos observavam distraida mente o desenho esculpido na caixa:
uma série de linhas inclinadas, sobrepon do-se a uma outra riscada em direção oposta,
lembrava uma padronagem do tipo espinha- de-peixe.
Às laterais da caixa foram fabricadas com uma única tábua. Os entalhes feitos na
madeira e o vapor permitiam que ela se dobrasse nas caneluras, de modo a formar os
cantos e tivesse apenas uma juntura presa com cravelhas. Na beirada inferior da tábua
havia também outros entalhes que serviam de en caixe para o fundo do recipiente. Eram
caixas impermeáveis, principalmente depois que a madeira estava bem encharcada.
Cobertas com tampas soltas, ti nham muitas serventias, podendo funcionar como panelas
de cozinha ou reci pientes para armazenar víveres.
A caixa fazia-o pensar em seu irmão. O seu desejo era o de estar com ele naquele
momento, antes da cerimônia nupcial. Thonolan havia compreendi do, rápido, a técnica
dos sharamudoi de curvar e modelar a madeira. Ele, tam bém no seu ofício, se valia do
mesmo processo. Na fabricação de lanças, onde se servia do vapor para endireitar a
madeira e nos sapatos de neve, ao contrá rio, para lhe dar uma curvatura, O pensamento
levou-o de volta ao inicio da viagem dos dois. Saudoso, se perguntava se algum dia ainda
tornaria a ver a sua terra e a sua gente. Desde que vestira o traje zelandonii se via,
quando me nos esperava, atacado por nostálgicas recordações: algumas vívidas e
alegres, outras pungentes e acerbas. Desta vez a causa fora a caixa de Serenio.
Ele se levantou bruscamente, tropeçando no tamborete. No que foi en direitá-lo, por
pouco não esbarrou em Serenio que chegava trazendo-lhe a cuia de chá quente. O
quase acidente o fez lembrar do infeliz episódio ocorrido durante a festa de compromisso.
Tanto Tholie como Shamio pareciam estar passando bem, e as queimaduras
praticamente haviam sarado. Mas então, re cordando-se da conversa que se tinha
seguido com o shamud, sentiu-se mal, como se qualquer coisa o incomodasse.
- Jondalar, beba o chá, tenho certeza de que vai sentir-se melhor depois. Ele havia
se esquecido da cuia em sua mão e deu um sorriso. Em segui da, tomou um gole. O chá
tinha sabor agradável. Ele achava que havia distin guido o gosto da camomila em meio
às ervas usadas para prepará-lo. A sua temperatura cálida produzia um efeito calmante.
Passado algum tempo, sen tiu que um pouco de sua tensão desaparecera.
- Tem razão, Serenio. Estou melhor. Eu não saber o que está errado.
- Nem todos os dias há uma cerimônia nupcial para um irmão querido. Um pouco de
nervosismo é perfeitamente compreensível.
Ele a tomou nos braços e a beijou com tal paixão que sentiu desejos de ficar lá por
mais tempo.
Encontrar você esta noite, Serenio - sussurrou-lhe no ouvido.
- Jondalar, essa noite haverá o festival em honra da Mãe - disse ela, lembrando-o. -
Acho que com a presença de tantos visitantes, nenhum de nós deveria assumir
compromissos. Por que não deixar os acontecimentos transcorrerem naturalmente? Nós
dois sempre que quisermos podemos ter um ao outro.
- Eu ter esquecido - falou ele, confirmando com um movimento de ca beça, mas
sentindo-se, de certo modo, rejeitado. Estranho, nunca se sentira assim antes. Durante
festivais, ele é quem procurava se manter livre de com prornissos. Por que ficar magoado
com o fato de Serenio lhe facilitar as coi sas? Num impulso de momento, resolveu que iria
passar a noite com ela. Pou co importava que fosse um festival da Mãe.
- Jondalar! - era Darvo que entrava novamente correndo. - Eles me mandaram
avisá-lo. Estão esperando por você - disse sem fôlego e envaideci do por lhe ter sido
confiada missão tão importante. - Corra, Jondalar! Estão precisando de você lá - repetia,
saltando em volta de Jondalar e cheio de im paciência.
234 235 - Calma, Darvo - pediu Jondalar, sorrindo. - Não vou perder matri mônio do
irmão meu.
Darvo deu um sorriso encabulado, concluindo que, na verdade, não co rneçariam
sem a presença de Jondalar, mas nem por isso se viu menos impa ciente. Ele saiu
correndo. Então Jondalar respirou fundo e foi atrás.
No momento em que apareceu, uma onda de murmúrios passou pela multidão.
Aliviado, viu que Roshario e Tholie aguardavam por ele. As duas o conduziram até uma
pequena elevação, próxima à muralha lateral, onde ou tras pessoas também o
esperavam. De pé na parte mais alta do terreno, acima das cabeças, estava uma figura
de cabelos brancos, com o rosto parcialmente coberto por uma meia máscara de
madeira, representando um pássaro.
Ao chegar perto, Thonolan lhe dirigiu um sorriso nervoso. Jondalar sor riu para ele
de volta, tentando transmitir-lhe o seu sentimento de solidariedade. Se ele estava
nervoso, como então não deveria estar Thonolan? Uma pena os costumes dos
sharamudoi os haver impedido de ficarem juntos. Mas então, sentindo uma pontada de
tristeza, percebeu como Thonolan já estava bem adaptado àquele povo. Enquanto
viajavam, ninguém fora mais unido do que eles dois, mas agora começavam a tomar
rumos diferentes. Jondalar sentia o distanciamento e por momento uma enorme mágoa
se apossou dele.
Com os olhos fechados e cerrando apertadamente as mãos, lutava para se manter
sob controle. Parecia que escutava as palavras "alto" e "roupas" em meio ao vozerio que
lhe chegava aos ouvidos. Ao abrir os olhos, descobriu que uma das razões de Thonolan
parecer tão bem adaptado era o fato de se achar vestido à moda shamudoi.
"Não é de admirar que minhas roupas estejam provocando tantos co mentários",
pensou. Chegou quase a lamentar ter preferido se apresentar com trajes tão exóticos
para aquela gente. Mas, na verdade, Thonolan era agora um deles, havia sido adotado
para facilitar os trâmites de sua união com Jetamio. Jondalar continuava ainda zelandonii.
Ele foi juntar.se ao grupo dos novos parentes de seu irmão com os quais teria um
parantesco de primeiro grau, mesmo não sendo formalmente um sha. ramudoi. Ele e os
parentes de Jetamio foram os que contribuíram com a co mida e os presentes a serem
distribuídos entre os convidados. Como veio mais gente do que o esperado, eles tiveram
as suas obrigações muito aumentadas. O grande número de convivas fazia o novo casal
crescer em importância e lhe dava uma posição social elevada, de modo que seria
extremamente humilhan te se as pessoas saíssem de lá insatisfeitas.
Subitamente fez-se silêncio. Todas as cabeças se voltaram para um gru po de
pessoas caminhando na direção deles.
- Você está enxergando alguma coisa? - perguntou Thonolan, pondo- se na ponta
dos pés.
- Não, mas você sabe que ela está vindo - respondeu Jondalar.
Ao chegar onde se encontrava Thonolan com a sua parentalha, a falange protetora
se abriu como uma cunha, pondo à mostra o tesouro que escondia. Com a garganta
seca, Thonolan parou extasiado diante da bela moça, vestida com um manto de flores,
que lhe dirigia o mais radioso de quantos sorrisos ele já vira na vida. Era tão aparente a
felicidade dele que Jondalar discreta mente sorriu divertido. Como uma abelha que é
atraída por uma flor, Thono lan foi arrastado para a mulher amada, levando atrás dele o
seu séquito que se juntou ao outro grupo, formando um único bloco. Em seguida, as
pessoas se separaram aos pares, quando o shamud começou a tirar de um flajolé uma
sé rie de assovios repetitivos. O ritmo era marcado pelas batidas de um enorme tambor
de uma só face, tocado por alguém com o rosto semicoberto por uma máscara com as
feições de um pássaro. "Um segundo shamud", pensou Jonda. lar. Era uma mulher que,
apesar de ele não conhecer, lhe pareceu familiar, tal. vez pelo simples fato de também
ser alguém que estava a serviço da Mãe. Olhando para ela, os seus pensamentos o
levaram de volta ao perdido lar.
Enquanto os dois grupos de parentes se dispunham em diferentes for mações,
fazendo e refazendo figuras, aparentemente complicadas, mas na ver dade simples
variações de uma série de passos, o shamud prosseguia tocando a sua pequena flauta,
um instrumento feito com um pedaço de madeira oca, re ta e comprida. Possuía bocal,
furos no sentido do comprimento, e uma aber tura na extremidade, onde se achava
esculpida a cabeça de um pássaro. Alguns de seus sons imitava com extrema precisão o
canto de certas aves.
Os dois gnipos, por fim, se postaram em duas filas, uma diante da ou tra, com cada
pessoa segurando as mãos levantadas da que se achava em fren. te, formando uma
longa arcada de braços, sob a qual passaram Thonolan e Je tamio. À medida que os dois
iam avançando, os pares que se encontravam mais atrás largavam os lugares para
acompanhá-los até se formar um extenso cortejo, com o shamud à frente, se dirigindo
para o fundo do terraço e con tornando o paredão de pedra. Jetamio e Thonolan iam
atrás do tocador de flauta, seguidos primeiro por Markeno e Tholie, depois por Jondalar e
Rosha rio, na qualidade de parentes mais próximos do casal. Após, então, vinha por
ordem: o restante da parentalha, seguido pelos que não eram parentes, mas pertenciam
à Caverna Sharamudoi, e, por fim, os convidados fechando o cor tejo. A shamud,
tocadora de tambor, ia com as pessoas de sua Caverna.
Eles desceram pelo caminho que levava, à clareira onde eram construí dos os
barcos e viraram a uma certa altura para pegar uma trilha que ia dar na árvore sagrada.
Ali, enquanto as pessoas iam chegando e acomodando-se em volta do velho carvalho, o
shamud, com voz calma e pausada, se dirigiu aojo vem casal: primeiro, dando conselhos
e ensinamentos sobre como deveriam proceder para que aquela fosse uma união feliz e
duradoura; depois, invocan 236 237 do para os dois as bênçãos e proteção da Mãe.
Apenas os parentes mais próxi mos e os que se encontravam a uma pequena distância
podiam ouvir-lhe a voz. Os demais começaram a conversar entre si, mas se
interromperam, percebendo que o shamud parara e aguardava silêncio.
Fizeram-se, então, sinais para calar, mas o silêncio que se seguiu estava carregado
de expectativas. Nisso, em meio a um clima de quietude nervosa, ressoou pelo bosque o
grasno rouco de um gaio juntamente com as batidas em staccato de um pica-pau. Uma
cotovia alçou vôo, enchendo o ar com o seu canto doce e sonoro.
Como se esperasse apenas por esse sinal, a figura mascarada fez um ges to ao
novo casal para que desse um passo à frente. Na mão do shamud, de re pente, surgiu
uma corda na qual ele deu um nó corrediço. Com olhos apenas um para o outro,
Thonolan e Jetamio se deram as mãos, passando-as por den tro da laçada.
- Jetamio para Thonolan. Thonolan para Jetamio. Com este nó, eu ligo um ao outro.
- Falou o shamud, enquanto puxava o laço, amarrando-os fir memente pelo pulso. - Por
este nó, não só estão unidos e comprometidos um com o outro, mas também ligados à
linha de parentesco um do outro e à nossa Caverna. Com a união dos dois, se fecha a
quadratura iniciada por Markeno e Tholie - esses, ao ouvirem os seus nomes, deram
também um pas so à frente e os quatro juntaram as mãos. - Como shamudoi, vocês irão
gozar das riquezas da terra; e como ramudoi, dos bens ofertados pelas águas. Portan to,
serão para sempre sharamudoi, tanto nos bons como nos maus momentos.
Markeno e Tholie voltaram aos seus lugares e, enquanto o shamud tira va da flauta
o som de um assovio agudo, Thonolan e Jetamio começaram a ca minhar lentamente ao
redor do velho tronco de carvalho. Na segunda volta, os espectadores, fazendo votos de
felicidades, lhes atiravam plumas de pássaros, pétalas de flores e folhas de pinheiro. Na
terceira, numa grande algazarra de gritos e risadas, todos se juntaram a eles. Algumas
pessoas começaram a en toar uma velha e tradicional canção, acompanhada, agora, por
uma quantida de maior de flautas, enquanto outras se puseram a tocar tambores de
diferentes formas. Então uma mulher mamutoi surgiu com a clavícula de um mamute que
ela tocava com um malho. Por um momento, todos pararam para escutar. O som claro e
vibrante surpreendeu a maioria das pessoas e, à medida que a mulher continuou a tocar,
mais surpresas ainda foram ficando. Conforme o lugar em que o osso era batido, os sons
iam variando em altura e tom, de mo do a se afinar com o canto da flauta e dos cantores.
Ao terminarem a terceira volta, o shamud passou novamente a encabeçar o cortejo,
conduzindo-o à cla reira perto do rio.
Jondalar não havia visto a fase final de acabamento do barco. Embora tivesse
trabalhado, praticamente, em todas as etapas da construção, o resulta- 238 do era uma
visão fantástica. Parecia muito maior do que se lembrava, e ele, desde o princípio,
sempre achara a embarcação grande. Era que agora os 15 metros de comprimento do
barco se achavam contrabalançados pelo alto cos tado de tábuas ligeiramente curvas e
por um esguio poste que se levantava da popa. Mas foi a parte da frente que mais
arrancou gritos de admiração. A proa em curva alongava-se elegantemente para formar
um pescoço que sustentava por meio de cravelhas a cabeça de uma ave aquática,
esculpida em madeira.
A parte dianteira estava pintada de vermelho-escuro, amarelo, preto e branco. As
duas primeiras cores foram obtidas do ocre terroso, a terceira do manganês e o branco
de rochas calcárias. Os olhos do pássaro foram pintados mais abaixo no casco, para que
ele enxergasse os perigos ocultos sob a água. Seguiam-se, então, desenhos geométricos
que iam da proa à popa. Os assentos dos remadores estavam colocados
transversalmente e os remos de cabo com prido e pés largas também lá se achavam,
prontos para serem empunhados. Na parte central, haviam armado um toldo amarelo de
camurça para proteger contra a chuva e a neve e, finalmente, a embarcação inteira
estava enfeitada com penas de pássaros e flores.
Era glorioso e digno de respeito. O pensamento de que contribuíra para a sua
criaç5o enchia Jondalar de orgulho e o deixava emocionado com um nó na garganta.
A exigência de um barco - novo ou reformado - fazia parte da cerimô nia de núpcias,
mas nem todos os casais se viam contemplados com uma em barcação daquele porte e
ostentando tamanha magnificência. Foi por simples coincidência que, na época em que
l'honolan e Jetamio declararam as suas in tenções, a Caverna resolvesse estar
necessitando de um barco de grandes di mensões. No entanto, naquele momento, nada
parecia mais apropriado, espe cialmente depois de tantos convidados terem
comparecido. Tanto a Caverna como o casal eram merecedores de toda a consideração
pelo grande empreen dimento.
Thonolan e Jetaniio, um tanto encabulados, com os seus pulsos ainda amarrados,
subiram na embarcação e foram sentar-se no banco do meio, sob o toldo. Atrás deles
subiu uma boa parte dos parentes mais próximos, caben do a alguns a tarefa de
empunhar os remos. Para manter-se em equilíbrio, o barco estava escorado entre duas
filas de toras que chegavam até a beirada da água. Entre risadas e gemidos de esforço, o
pessoal da Caverna, ajudado pelos convidados, se pôs a empurrá-lo e, garbosamente, a
embarcação ganhou as águas.
Por algum tempo a mantiveram perto da margem, só depois de terem certeza de
que estava em perfeitas condições, sem qualquer rachadura séria e capaz de manter-se
sobre as águas, sem adernar, é que empreenderam a via gem inaugural, descendo o rio
até a doca dos ramudoi. Diversos barcos, de 239 Í diferentes tamanhos, foram lançados
ao rio, pondo-se a rodear como patinhos o enorme pássaro.
Aqueles que não foram pelo rio subiram o caminho que levava ao platô na
montanha, esperando chegar lá, antes de Thonolan e Jetamio. Na doca, as pessoas
tomaram a trilha da catarata e fizeram baixar a imensa cesta que car regara Thonolan e
Jondalar quando pela primeira vez subiram ao terraço. Des ta vez levaria Thonolan e
Jetamio, ainda amarrados um ao outro. Era por von tade deles que se achavam ligados,
por isso não seriam separados, pelo menos durante aquele dia.
A comida foi servidaem abundância, fartamente regada por vinho de dente-de-leão,
colhido na lua nova. Os convidados receberam, então, os seus presentes, e quanto mais
valiosos fossem, maior seria o prestígio de Thonolan e Jetamio. Quando a noite começou
a cair, a moradia construída para o novo casal passou a ser visitada pelos convidados
que lá entravam furtivamente pa ra deixar com os seus votos de felicidades "uma
pequena lembrancinha". Os presentes eram deixados anonimamente, de modo a não
diminuir a opulência ostentada pela Caverna anfitriã. Mas na realidade o valor dos
presentes dados e recebidos era posto em confronto e mentalmente se tomava nota,
tirando um pouco o caráter de anonimato - A forma, o desenho, a pintura, os motivos
esculpidos denunciavam cla ramente a procedência, tanto quanto se o presente tivesse
sido dado à vista de todos. Não que se identificasse o autor da obra - o que, aliás, não
tinha mui ta importância - mas sim a sua origem, ou seja, de que família, grupo ou Ca
verna provinha. Por um sistema de valor bem conhecido e compreendido por todos, os
presentes dados e recebidos pesavam significatívainente no prestígio, na honra e no
status relativo dos diferentes grupos. Embora não violenta, a competição nesse campo
era renhida e duramente disputada.
- Não há dúvida de que todas as atenções são para ele - disse Jetamio a Thonolan,
reparando num pünhado de mulheres que rondavam Jondalar, en costado
displicentemente contra uma árvore perto do vão da pedreira.
- É sempre assim. Os seus grandes olhos azuis atraem as mulheres, tal como a luz
da fogueira chama as mariposas - falou Thonolan, ajudando Jeta mio a retirar de uma
caixa de carvalho o vinho de uvas-do-monte que iam ofe recer a alguns convidados
especiais. - Você nunca tinha reparado? Nunca esteve atraida por ele?
- Você sorriu para mim primeiro - o rosto de Thonolan se iluminou com um grande
sorriso, provocando imediatamente uma beta resposta. - Mas eu acho que posso
entender por quê. Não são só os olhos. A figura dele so bressai muito, sobretudo vestido
como está. A roupa lhe assenta muito bem. Mas há alguma coisa mais do que isso. Acho
que as mulheres sentem que ele 240 está. . - como dizer, procurando por alguém. E ele
parece um rapaz tão afe tuoso, tão sensível. - .alto, bem-apanhado. De fato é um homem
bonito. Eos olhos têm um certo quê. - . já reparou como ficam cor de violeta quando ele
está perto da fogueira?
- Pensei ouvir você dizer não ter atração por ele - observou Thonolan, desconsolado.
Ela piscou-lhe os olhos com gaiatice.
- Você está com inveja? - perguntou carinhosamente.
Thonolan fez uma pausa antes de responder.
- Não. Jamais na vida. Não sei por que eu não, mas outros homens têm. Olhe só
para ele, parece ter tudo, não é? Como você diz, bem.apanhado, boni to. Olhe todas
essas lindas mulheres ao redor dele. E não é só isto. - . muito habilidoso com as mãos.
Melhor fazedor de ferramentas que conheço. Muito boa cabeça também, mas não
conversar muito. As pessoas gostar dele. - . ho mens, mulheres, todo mundo. Devia ser
feliz, mas não é. Ele precisar encon trar alguém como você, Tamio.
- Não sei se como eu, mas uma mulher precisa. Eu gosto de seu irmão, Thonolan.
Espero que ele encontre o que está procurando. Quem sabe não se rá uma daquelas que
estão lá perto dele?
- Acho que não. Já vi isto antes. Talvez ele agradar de uma.. - ou mais até. Mas não
encontrar o que deseja - eles encheram os odres, tendo o cuida do de deixar ainda no
caixote uma certa quantidade de vinho para os mais farristas, e se encaminharam na
direç de Jondalar.
- E que tal Serenio? Jondalar parece gostar dela e eu sei que ela simpa tiza com ele
muito mais do que confessa.
- Ele gostar de Serenio e de Darvo também. Mas talvez não como mu lher para ele.
Acho que Jon4alar está atrás de um sonho.. - de uma donii, quem sabe? - falou
Thonolan, dando-lhe um sorriso amoroso. - A primeira vez que você riu para mim, pensei
estar vendo uma donii.
- Nós, sharamudoi, costumamos dizer que o espírito da Mãe foi trans formado num
pássaro. Uma linda ave que acorda o sol com os seus cantos e que traz a primavera do
sul. No outono, sempre ficam algumas aves para nos fazer lembrar de sua presença - um
cordão de crianças passou na frente deles, impedindo-os de andar. - Crianças,
principalmente as levadas, não gostam de pássaros. Acreditam que a Mãe está vendo e
sabe de tudo que fazem. É a ma neira que algumas mães arranjam para ameaçar os
seus filhos quando estão fa zendo o que não devem. Já ouvi falar de homens,
perfeitamente adultos, que ao ver certos pássaros se sentem compelidos a confessar as
coisas erradas que fizeram. Há também gente que diz que a Mãe ensina as pessoas que
se perdem a encontrar o caminho de volta para casa.
- Nós zelandonii dizer que o espírito da Mãe está transformado numa 241 i
donii voando no vento. Talvez ela parecer pássaro. Nunca pensei nisso antes - falou
ele. Então, transbordante de amor, apertou as mãos dela e lhe sussurrou com a voz
embargada: - Mas também nunca pensei encontrar você - ele ten tou enlaçá-la, n se viu
atado a ela pelo pulso. - Estou feliz por nós dois ter dado o nó, mas quando ficar soltos?
- Quem sabe se isso nâb é para nos acostumarmos com a idéia de que estamos
para sempre juntos um ao outro? - ela deu uma risada. - Daqui a pouco já vai dar jeito
para escaparmos. Mas antes que o vinho acabe, vamos le var um pouco para o seu
irmão.
- Talvez ele não querer. Jondalar finge beber, mas na verdade não gos tar muito.
Tem medo de perder o controle e fazer bobagens.
Eles haviam saído da sombra dapedreirae, subitamente, foram notados.
- Ah, aí estão os dois. Estava à sua procura para lhe desejar felicidades, Jetamio -
disse uma moça ramudoi de outra Caverna, jovem e cheia de vida.
- Você teve tanta sorte. Em nossa Caverna, nunca aparecem rapazes bonitos para
passar o inverno - ela lançou a Jondalar o que achava fosse um sorriso sedutor, mas ele
estava com os belos olhos voltados na direção de outra moça.
- Tem razão. Tive uma grande sorte - falou Jetamio, sorrindo terna- mente para o
seu companheiro.
A moça olhou para Thonolan e soltou um suspiro.
- Os dois são bonitos, acho que eu não saberia escolher qual deles.
- E aí ficaria sem nenhum, Cherunio - falou outra moça. - Se você quiser um
companheiro, tem de decidir-se por um homem só.
As risadas que se seguiram deixaram Cherunio feliz. Ela estava justa mente
querendo chamar atenção.
- Isso é porque ainda não encontrei o homem certo para ser o meu companheiro -
falou com um sorriso coquete na direção de Jondalar.
Cherunio era a mais baixa das moças ali, e Jondalar realmente ainda não a tinha
notado. Mas agora a via. Apesar de baixinha, era muito feminina e aquele seu jeito
alegre, cheio de vida, a tornava atraente. Era o oposto de Se renio. Os olhos de Jondalar
mostravam-se interessados. Percebendo que conse guira despertar atenção, ela chegou
a estremecer de tanto prazer.
De repente, atraída pelo som das batidas de tambor, virou a cabeça.
- Estou ouvindo o ritmo. - - eles vão fazer a dança dos pares. Vamos dançar,
Jondalar?
- Eu não saber os passos - respondeu ele.
- Eu ensino. Não é difícil - falou, apressada, arrastando Jondalar na di reção da
música. Ele se deixou levar.
- Esperem, nós também vamos - disse Jetamio.
Quem não gostou de Cherunio ter conseguido tão depressa a atenção de Jondalar
foi a outra moça, Radonio.
242 - Ora, não vai ser difícil - Jondalar ouviu-a dizendo, mas os quatro es tavam
afastando-se e ele não escutou os sussurros ditos em tom de conspi ração que se
seguiram.
- Esse é o último odre de vinho, Jondalar - falou Thonolan. - Jetamio disse que
soitios nós que temos de iniciar a dança, mas que depois não é preci so ficarmos. Logo
que der jeito, vamos escapar.
- Você não quer levar o odre com você para os dois festejarem sozinhos?
- Bom, na verdade esse não é o último. - .temos um outro escondido. Mas acho que
não vamos precisar. Estar com Jetamio já é uma festa.
- A língua deles é tão sonora, não acha, Jetamio? - comentou Cheru. nio. - Você
entende alguma coisa?
Um pouquinho. Mas pretendo aprender e mamutoi também. Foi idéia de Tholie nós
todos aprendermos a língua um do outro.
Tholie dizer que melhor modo de aprender sharamudoi é falar o tem po todo a
língua. Ela tem razão. Desculpe, Cherunio, não educado conversar numa língua
estrangeira - desculpou-se Jondalar.
- Oh, não tem importância - respondeu Cherunio. Mas, na verdade, ti nha. Ela não
gostava de se ver excluída das conversas. As desculpas de Jonda lar, no entanto,
serviram para tranqüilizá-la. Além do que, estar na companhia do belo zelandonii e se ver
participando do seleto grupo de Thonolan e Jeta mio tinha as suas compensações. Ela
estava perfeitamente consciente dos olhares de inveja que despertava nas outras moças.
Fora do vão da pedreira, já perto do lugar onde começava o campo, ar dia uma
fogueira. Eles entraram nas sombras e fizeram circular entre os qua tro o odre de vinho.
Enquanto os pares se formavam, Cherunio e Jetamio mostraram aos dois rapazes os
movimentos básicos da dança. Uma melodia começou a ser tocada pelas flautas,
acompanhadas por tambores e matracas. Logo a tocadora de osso de mamute se juntou
e as possibilidades tonais de seu instrumento, lembrando um xilofone, imprimiu à música
um tipo de som ex tremamente original.
Depois da dança iniciada, Jondalar reparou que se poderia variar os pas sos básicos
de acordo com a imaginação e o talento do dançarino. De vez em quando alguém ou um
par causava tamanho entusiasmo que todos paravam para bater o ritmo com os pés e
gritar palavras de incentivo. A música e a dan ça eram contínuas. As pessoas - músicos,
dançarmos, cantores - entravam e saíam quando lhes davam vontade, sempre criando
uma variedade sem fim de passos, ritmos e melodias que se iam desenvolvendo
enquanto houvesse gen te para dar prosseguimento.
Cherunio era urna parceira alegre e Jondalar, bebendo mais vinho do que de
costume, entrara no espírito da festa. Alguém começou a cantar uma canção dialogada
cujo primeiro verso era conhecido. Logo, no entanto, ele 243 descobriu que os versos
passaram a ser improvisados de acordo com as cir cunstâncias e o momento. As alusões
às dádivas e aos prazeres eram constan tes e a intenção era provocar risos. Depressa a
brincadeira se tornou num de safio entre aqueles que procuravam fazer graça e os outros
que se esforçavam para não rir. Alguns chegavam inclusive a apelar para caretas na
tentativa de obter a resposta desejada. Então um homem foi para o centro da roda forma
da pelas pessoas que se balançavam ao ritmo da música.
- Ei, Jondalar tão grande e altão / Que todas as moças deixou na mão / Mas para ter
os beijos de Cherunio / Ele bem gostaria de ser anão.
Os versinhos surtiram efeito. As risadas explodiram por todos os lados.
- Afinal, como é que você vai fazer, Jondalar? - gritou-lhe alguém. - Está querendo
mesmo ser anão?
Jondalar riu para Cherunio.
- Não precisar ser anão - falou ele, suspendendo a moça e beijando-a,. para alegria
da multidão que aplaudia às -gargalhadas, batendo com os pés no chão. Cherunio,
sentindo-se verdadeiramente no céu, passou os braços ao re dor do pescoço dele e lhe
deu um ardoroso beijo. Ele reparou, então, que al guns casais saíam na direção das
cabanas ou das esteiras espalhadas em lugares estratégicos. Justamente era o que
também vinha pensando fazer. O apaixo nado beijo de Cherunio lhe dera idéias. A moça
poderia ter os seus encantos.
Não seria possível sair imediatamente, isso só iria provocar mais risadas, mas talvez
pudessem ir aos poucos afastando-se. O passo da dança estava mu dando. Algumas
pessoas aproximavam-se juntando-se ao grupo dos cantores ou daqueles que só
observavam. Seria o bom momento para sumirem no meio das sombras. Enquanto ele
procurava discretamente passar com Cherunio, sur giu
de repente Radonio na frente deles.
-Você já teve o zelandonií a noite inteira, Cherunio. Não acha que já é tempo de
dividi-lo um pouco com a gente? Afinal de contas, esse é um festi val para honrar a Mãe e
se espera que todo mundo participe das dádivas.
Radonio insinuou-se entre os dois e beijou Jondalar. Apareceu, então, uma outra
moça e o abraçou, depois mais uma outra e outra, até que ele se viu cercado de
mulheres. No princípio, chegou a corresponder-lhes os beijos e carícias, mas quando
uma quantidade. de mãos passaram a boliná-lo intima- mente, já não sabia se estava
gostando. Supunha-se que os prazeres fossem de livre escolha da pessoa. Ele ouvia o
barulho abafado de alguém se debatendo, mas estava muito ocupado tentando desviar-
se das mãos que procuravam desa tar-lhe as calças para alcançá-lo por dentro delas.
Aquilo já era demais.
Ele contorceu o corpo, repelindo-as, não muito delicadainente. Quando, finalmente,
entenderam que o rapaz não iria deixar-se tocar, afastaram-se sor rindo, despeitadas. De
repente, Jondalar reparou que faltava alguém.
- Onde está Cherunio? - perguntou.
4 Elas se entreolharam, abafando os risos.
- Onde está Cherunio? - tornou a perguntar. Vendo que a única res posta seriam
apenas as risadinhas cochichadas, ele, rápido, deu um passo à frente, agarrando
Radonio. Ele a machucava, mas mesmo assim ela não que ria confessar.
- Achamos que ela devia dividi-lo conosco - admitiu por fim Radonio, com um sorriso
forçado. - Todas nós estávamos querendo o zelandonii gran dão.
- Mas o zelandonii não quer todas. Onde está Cherunio?
Radonio virou a cabeça para o lado, recusando-se a responder.
- Você diz que quer o zelandonii grandão? - a sua raiva transparecia na voz. - Pois
aqui você tem ele - disse, obrigando-a a ajoelhar-se.
- Você está me machucando! Por que vocês não fazem alguma coisa? - as outras se
mostravam indecisas, sem querer chegar perto.
Jondalar, segurando-a pelos ombros, empurrou-a para o chão perto da fogueira. A
música tinha parado e as pessoas amontoavam-se ao redor sem sa ber se deviam ou
não intervir. Ela lutava para levantar-se, mas ele a conservava presa sob o seu corpo.
- Você não estava atrás do gigante zelandonli? Agora você ter o que queria. Então,
onde está Cherunio?
- Estou aqui, Jondalar. Elas me prenderam ali adiante com a boca tapa da. Disseram
que estavam apenas fazendo umabrincadeira.
- Brincadeira sem graça - falou ele se levantando e ajudando também Radonio a se
pôr de pé.
Ela tinha lágrimas nos olhos e esfregava o braço.
- Você me machucou - disse, choramingando - De repente, Jondalar compreendeu
que a intenção havia sido apenas a de pregar-lhe uma peça e que ele se conduzira sem o
menor senso de humor. Afinal, nem ele nem Cherunio estavam feridos. Não devia ter
machucado Ra donio daquela maneira. A sua raiva se foi e no lugar ficou só o sentimento
de vergonha.
- . não queria machucar. Você. - - eu. -.
- Você não machucou, Jondalar. Não deu para tanto - falou um ho mem que havia
observado a cena. - Além disso, foi ela quem provocou. Ra donio está sempre inventando
coisas e arrumando encrencas.
- Bem que você gostaria que ela inventasse coisas com você - disse uma moça,
saindo em defesa de Radonio, agora que os ânimos já estavam mais frios.
- Vocês talvez pensem que um homem tem prazer em ser assediado por muitas
mulheres ao mesmo tempo, mas não é assim.
- Isso não é verdade - contestou Radonio. - Estamos cansadas de sa 244 245 ber o
que conversam quando estão sozinhos. Eu ouvi quando você disse que gostava de ter
uma porção de mulheres ao mesmo tempo e que também acha va graça em menininhas
antes dos primeiros ritos e todo mundo sabe que não se pode tocarnuma garota, mesmo
que ela já esteja preparada pela Mãe.
O pobre do homem ficou vermelho e Radonio, percebendo que estava levando
vantagem, aproveitou.
- Sei até que muitos de vocês falam em pegar fêmeas de cabeças.chatas.
Subitamente, avultando-se das sombras, surgiu uma enorme figura de mulher
caminhando para junto da fogueira. Ela não era t alta quanto gorda. Na verdade, era
obesa. A dobra epicántica em seus olhos e a tatuagem em seu rosto lhe revelavam a
origem estrangeira, embora estivesse usando uma túnica de couro shamudoi.
- Radonio! - disse ela. - Não é necessário falar porcarias num festival em honra da
Mãe.
Jondalar agora a reconhecia.
- Desculpe, shamud - respondeu Radonio, abaixando a cabeça. Ela ti nha o rosto
vermelho de vergonha e o seu arrependimento era sincero.
Jondalar, de repente, reparava que Radonio ainda era muito criança. Aliás, todas
eram quase meninas. Ele se comportara aboitrinavelmente.
- Minha querida - falou com doçura a mulher - um homem gosta de ser convidado e
não invadido.
Jondalar olhou para a mulher, interessado. Era mesmo o que ele pensava.
- Mas nós não íamos machucá-lo. Pelo contrário, pensávamos até que ele ia gostar.
. - depois que tivéssemos começado.
- E poderia, se tivessem sido mais sutis. Ninguém gosta de ser forçado. Você
mesma não gostou quando pensou que ele fosse violentá-la, não é?
- Mas ele me machucou!
- Será mesmo? Ou não foi porque ele estava fazendo uma coisa que você não
queria? Acho que isso machuca ainda mais. E quanto a Cherunio? Por acaso alguma de
vocês pensou que ela também poderia ficar machucada? Não se pode forçar ninguém a
gozar dos prazeres. Isso não honra a Mãe. Ao contrá rio, é abusar da graça que ela nos
concedeu.
- Shamud, está na sua vez - ouviu-se alguém dizer.
- Bom, Radonio, eu estou atrasando o jogo deles. Mas lembre-se, esta mos num
festival. Mudo quer que os seus filhos estejam felizes. Tudo isso não passou de um
incidente sem importância. Não deixe que esta bobagem estra gue a sua festa, querida. A
dança está outra vez começando. Agora vá divertir-se.
Depois que a mulher voltou para o seu jogo, Jondalar segurou as mãos de Radonio.
-Eu arrependido. Eu não pensar direito. Não querer machucar você. Por favor, estou
envergonhado, perdoa?
O primeiro impulso de Radonio foi o de retirar-se com a cara amarrada, mas então
deu com aqueles olhos cor de violeta que a fitavam cheios de an siedade.
- Foi uma idiotice. - . uma brincadeira infantil e tola - falou ela e,já quase vencida
pelo impacto viril da presença dele, começou a tombar na sua direção. Ele a amparou,
curvou-se e a beijou. Um beijo longo, de um homem experiente.
- Obrigado, Radonio - ao dizer isso, deu as costas e se afastou.
- Jondalar! - gritou-lhe Cherunio. - Onde você vai?
Subitamente, com uma pontada de remorso, ele percebeu que se havia esquecido
dela. Deu meia- volta e se encaminhou na direção da pequenina Che runio, tão bonitinha
e vivaz. Ela era realmente uma graça. Ele a suspendeu e lhe deu um beijo apaixonado, já
quase arrependido de estar indo embora.
- Cherunio, eu tenho uma promessa. Tudo isso não era para acontecer. Mas você
fez eu esquecer muito rápido de um outro compromisso meu. Eu es pero. - . talvez em
outra ocasião. Não ficar zangada, por favor - falou ele, di rigindo-se logo em seguida para
as cabanas abrigadas sob a
pedreira.
- Por que você tem sempre de aparecer para estragar tudo, Radonio? - falou
Cherunio, observando-o afastar-se.
A aba de couro na porta de entrada da moradia que ele dividia com Se renio estava
abaixada, mas não havia nenhuma trave barrando-lhe a passagem. Ele suspirou aliviado.
Pelo menos ninguém se achava com ela. Dentro, estava tudo escuro. Talvez Serenio não
estivesse lá. Talvez tivesse ido com alguém para um outro lugar. Na verdade, desde que
terminaram as cerimônias, ele não a tornara a ver. E foi ela quem não quis saber de
compromissos. Fora ele quem se prometera passar a noite com ela. Talvez Serenio
tivesse outros pla nos ou, quem sabe, não teria ela visto Cherunio com ele?
Tateando conseguiu chegar até o lugar onde havia um tablado coberto com um
colchão de penas e forrado com peles. Era a cama de Darvo,junto de uma parede lateral,
e estava vazia. Já se esperava. Gente de fora era um acon tecimento, sobretudo para
garotos da sua idade. Provavelmente havia feito and zade com alguns outros meninos e
estava passando a noite com eles. . - e com certeza todos fazendo força para se
manterem acordados.
Ao aproximar-se do fundo da cabana, os seus ouvidos ficaram alertas. Teria
escutado o rumor de uma respiração? Estendeu a mão sobre o tablado, apalpando um
braço. O seu rosto imediatamente se iluminou com um sorriso de alegria.
Saiu da cabana outra vez, pegou da fogueira central um carvão aceso e voltou,
carregando-o sobre uma tábua. Acendeu o pavio de uma lamparina e foi colocar duas
traves cruzadas na porta, o sinal de que não queriam ser inco modados. Pegou a
lamparina e silenciosamente se encaminhou para a cama, fi 246 247 cando a observar
Serenio dormindo. Deveria acordá-la? Sim, resolveu, mas de vagar e muito
carinhosamente - A idéia excitava-o. Ele tirou a roupa e se meteu na cama, deixando-se
envolver pelo calor que emanava dela. Serenio murmurou qualquer coisa e se virou para
a parede. Suave e lentamente, ele começou a acariciá-la, sentindo- lhe a calidez do corpo
adormecido, aspirando o seu cheiro de mulher e expio. rando cada contorno de forma: o
braço até as pontas dos dedos, as reentrân das dos ombros, a espinha dorsal, chegando
às sensíveis cavidades dos rins, depois seguindo o alteamento
das nádegas. As áoxas. As juntas atrás dos joe lhos. A barriga da perna. Os
tornozelos. Ao tocar na sola do pé, ela instintiva- mente o recolheu. Ele rodeou-a então
com o braço para empalmar o seio, per cebendo o mamilo enrijecer e contrair-se. Teve
ímpetos de chupá mas pre feriu cobrir as costas dela com o seu corpo e começou a
beijar-lhe os ombros e a nuca.
Ele adorava acariciar o seu corpo, explorá-lo e descobri-lo sempre como algo de
novo. Adorava os corpos de todas as mulheres. Adorava as sensações que eles
produziam no seu. A sua virilidade já estava ereta, latejava ansiosa, mas ainda
controlável. Era sempre melhor quando não se deixava levar mui to depressa.
- Jondalar? - falou uma voz sonolenta.
- Hein.
Ela se virou para deitar de costas e abriu os olhos.
- Já de manhã?
- Não - ele soergueu-se, apoiado sobre um dos braços, e ficou fitan do-a, enquanto
apalpava-lhe o seio. Curvou-se para chupar o mamilo que havia desejado sentir em sua
boca. Acariciou-lhe o ventre, e veio com a mão procu rando pelo calor guardado entre as
coxas. Pousou-a sobre os pélos do monte de-vênus. Aqueles eram os pélos púbicos mais
sedosos e macios que já vira numa mulher. - Eu quero você, Serenio. Essa noite quero
honrar a Mãe com você - - Mas antes você precisa me dar tempo para acordar - falou ela
com um sorriso brincando nos cantos dos lábios. - Será que há um pouco de chá frio?
Quero lavar a minha boca. - . o vinho sempre deixa um gosto horrível.
- Vou ver - respondeu ele, levantando-se.
Quando chegou com a cuia, ela sorria languidamente. Às vezes gostava de ficar
apenas olhando para ele, admirando-o. Era tão esplendidamente más culo: as costas
largas, ressaltadas com os movimentos dos músculos, o peito viril, ornado de caracóis
louros, estômago rígido e pernas musculosas e fortes. O rosto quase perfeito demais:
queixo quadrado, vigoroso, nariz reto, boca sensual - e ela o sabia como. As suas feições
eram tão proporcionais e bem modeladas que se ele não fosse tão másculo e caso o
adjetivo se aplicasse a um homem, se diria que era lindo. Até mesmo as mãos traduziam
a sua força e sensibilidade. E os olhos - expressivos, magnéticos, fantasticamente azuis -
eram capazes de pôr em disparada qualquer coração feminino, inclusive en cM-la de
desejos, antes mesmo de haver visto a sua esplêndida virilidade, du ra, soberba,
projetando-se para ela.
A primeira vez que o viu naquele estado, chegou a assustar-se um pou co, até
constatar a perícia com que ele sabia conduzir-se. Jamais a forçava, dava-lhe o que ela
podia absorver. Dir-se-ia, talvez, que era ela quem procura va forçá-lo, querendo
açambarcar toda aquela virilidade, desejando poder pos suí-la em sua totalidade - Estava
feliz por tê-la acordado. Ao pegar a cuia de chá, ela se levantou, mas não o bebeu logo.
Abaixou-se e pôs em suá boca a ponta do pênis latejante. Ele fechou os olhos,
deixando.se percorrer pela on da de prazer.
Ela sentou-se para tomar um gole e, em seguida, levantou-se.
- Precisõ sair - disse. - Ainda há muita gente lá fora? Não estou que rendo vestir-me.
- Estão dançando. Ainda é muito cedo. Talvez melhor usar caixote.
Enquanto ela caminhava de volta para a cama, ele ficou observando-a. "Oh, Mãe,
que linda mulher! Que feições encantadoras, que cabeleira macia!" As pernas eram
longas e elegantes, as nádegas pequenas, mas bem torneadas, os seios miúdõs, rígidos,
bem modelados, com os bicos ressaltados - ainda seios de menina. Umas poucas estrias
na barriga eram os únicos indícios de sua maternidade e algumas pequeninas riscas
junto dos olhos, a única marca da passagem dos anos.
- Achei que ia voltar tarde. - - afmal há um festival acontecendo - fa lou ela.
- Por que você aqui? Não dizer "compromisso nenhum"?
- Não encontrei ninguém interessante e me sentia cansada.
- Você interessante. - - Eu não cansado - falou ele, sorrindo. Depois tomou-a em
seus braços e, puxando-a para junto de si, pôs-se a explorar-lhe a boca quente e úmida
com a língua. Invadida por uma torrente de desejos, ela sentiu de encontro à barriga o
sexo duro e palpitante.
A intençio dele era a de prolongar, de manter-se sob controle até que ela, por sua
vez, não se agüentasse mais. Ele, no entanto, atirou-se, voraz, à sua boca, ao seu
pescoço e aos mamilos que chupava e sugava, enquanto ela lhe apertava a cabeça
contra o seio. A mão viril procurou o púbis encontrou o quente e molhado. Um gritinho
escapou dos lábios de Serenio quando ele tocou o pequeíi.ino órgão duro dentro das
dobras intumescidas. Ela ergueu o corpo pressionando-o contra o dele, deixando-o
afagá-la no ponto que ele sa bia dava-lhe prazer.
Jondalar percebeu o que ela estava desejando. Os dois mudaram de posi 248 249
ção: ele ficou de lado e ela se pôs de costas, com uma perna passando-lhe por cima do
quadril e a outra enfiada entre as dele. Enquanto tinha o centro de seu prazer
massageado e acariciado, esticou a mão para pegar no fogoso pênis e guiá-lo através
das profundezas de sua abertura. Ao sentir-se penetrada, dei xou escapar um grito
apaixonado, logo seguido do intenso gozo de dois praze res vividos ao mesmo tempo.
Movimentando-se dentro dela, ele se sentia envolvido pelo seu calor, en quanto ela
o cerrava fortemente, querendo absorvê-lo por inteiro. Por instan te, ele emergiu para
voltar a penetrá-la até onde desse para alcançar. Sentindo- a altear-se ao encontro de
sua mão, pôs mais intensidade nas carícias e voltou a mergulhar. A tensão aumentava.
Ela já gritava. Ele estava repleto, estouran do. Os seus rins apertaram-se quando ela o
estreitou, puxando-o para baixo. Ele massageava-a com mais força e a penetrava cada
vez mais. Então, uma avalan che de ondas orgásticas arrastou os dois juntos a um climax
exasperante. Mais alguns movimentos e estremeceram, ambos sob o impacto da
completa satis fação. Imóveis, respirando com dificuldade, deixaram-se ficar deitados
com as pernas entrelaçadas. Ela o puxou para si. Somente agora, antes de sobrevir a
flacidez do membros já não mais em toda a sua pujança, tinha ela a possibili dade de
possuí-lo inteiro. Sempre saía com a impressão de não poder dar.lhe tudo quanto
recebia. Ele não desejava mover-se, talvez estivesse quase a pon to de dormir. Mas
tampouco era isso o que queda. Por fim, retirou o membro contraído e se enroscou junto
dela. Serenio continuava deitada, imóvel, mas ele sabia que ela não estava dormindo.
A sua mente se pôs a divagar e se surpreendeu, de repente, pensando em Cherunio
e Radonio e em todas as outras moças. Como seria se fosse com to das elas ao mesmo
tempo? Com todos aqueles corpos ardentes, núbeis, ro deando-o com as suas coxas
quentes, os seus traseiros roliços e as suas vaginas molhadas? Sentindo o hálito de uma
mulher na boca, enquanto as suas mãos estivessem explorando diferentes corpos?
Começava a sentir novamente uma pontada de excitação. O que teria dado nele para
despedi-las? Às vezes conse guia realmente ser um perfeito idiota.
Ele olhou para a mulher ao seu lado. Quanto tempo seda necessário pa ra despertá-
la novamente? Ela sorriu, sentindo-lhe a respiração em seu ouvido. Ele a beijou no
pescoço e depois na boca. Desta vez teria de ir devagar, com calma e metículosamente.
aa&.Ç1B i; uma linda mulher, maravilhosa. Por que não conseguia apaixonar-se por ela?
1 quando chegou ao vale, teve um problema. Ela havia planejado partir e pôr a
carne para secar na praia e lá dor mir èomo fizera antes. No entanto, o leifozinho ferido
só poderia ser devida- mente tratado na caverna. O animal era maior do que uma raposa
e bem mais pesado também, mas ela tinha força para carregá4o. O que não conseguiria
era transportar uma rena de qualquer tamanho. As pontas das lanças, usadas como
suportes da padiola que viera arrastando atrás de Huiin, estavam afasta das numa
abertura que não
dava para passar pelo estreito caminho que levava à caverna. Ela não sabia como
iria conseguir colocar a rena - obtida com mui to esforço - lá em cima e, por outro lado,
não tinha coragem de deixá-la na praii à mercê das hienas.
Ayla tinha razão em estar preocupada. O pouco tempo que gastou para carregar o
leão até a caverna foi suficiente para que as hienas se aproximassem e se pusessem a
rosnar junto da carne amarrada ao jorrão e coberta por uma esteira de capim, apesar das
batidas de pé nervosas de Huiin. Antes mesmo de ter chegado à metade do caminho, a
funda já estava em ação e uma de suas possantes pedradas acertou em cheio. Embora
abominasse tocar em hienas, ela arrastou o bicho por uma das patas traseiras e
contornou a pedreira, levan do-a para a campina. A hiena cheirava à última carniça que
comera. Antes de voltar a atenção para Huiin, deu uma parada no rio para lavar as mãos.
Huiin suava, tremendo e abanando o rabo, num estado deplorável de agitação. Já
fora'demais para ela ter de agüentar a proximidade do cheiro de um leão da caverna e
muito pior era ter o fedor de hienas acompanhando-lhe o rasto. Ela tentara andar em
círculos, mas os paus do jorrão ficaram presos a um buraco e, então, a pobre entrou em
pânico.
- Esse foi um dia duro para você, hein, Huiin? - gesticulou Ayla, pas sando os braços
ao redor do pescoço da potranca e a abraçando como se faz com uma criança
assustada. Huiin encostou-se nela e abanava a cabeça, resfo legando pesadamente pelo
nariz. O contato de Ayla, no entanto, acabou acal mando-a. O animal sempre fora tratado
com amor e paciência e em troca Ayla tinha a sua confiança e a ajuda inestimável que ele
lhe prestava.
Ela começou a desmantelar o jorrão, ainda sem saber ao certo como iria 13 250
251 subir com a rena para a caverna, quando um dos paus se soltou pendurando-se
perto do outro, com as duas pontas quase juntas. O problema estava resolvi do. Ela
voltou a amarrá-los nessa posição e conduziu Hulin na direção do ca ininho. A carga ia
um tanto instavelrnente, mas a distância a percorrer era curta.
O trabalho não significava um esforço qualquer para o cavalo. Ele e a re na tinham
praticamente o mesmo peso e a subida era íngreme. A façanha per mitiu a Ayla ter uma
nova avaliação da força do animal e a perceber as vanta gens 9e que ela passara a
dispor. Quando chegaram ao pórtico da caverna, ela retirou toda a tralha e, agradecida,
abraçou Huiin. Em seguida entrou,esperan do que a potranca a seguisse, mas um
relincho ansioso fez com que se voltasse.
- O que está acontecendo? - gesticulou.
O filhote de leão estava exatamente onde ela o deixara. "Ah, o leifozi nho", pensou.
"Huiin está sentindo o seu cheiro?' Ela tomou a sair.
- Está tudo bem, Huiin. Esse bebezinho não vai poder fazer mal a você - ela
acariciava a pele macia do nariz da potranca, enquanto cc um dos braços passado ao
redor de seu pescoço musculoso puxava-a delicadamente para dentro. A confiança na
mulher mais uma vez venceu o medo. Ayla con duziu Huiin até onde se achava o filhote
de leão. O cavalo cheirou o animalzi nho imóvel, retrocedeu em suas patas, relinchou e
se abaixou para dar nova cheirada, O cheiro do predador estava lá, mas o pequeno leão
não oferecia pe rigo. Novamente Huiin voltou a focinhar o animal. Por fim pareceu aceitar
a idéia de ter um novo agregado à caverna e se dirigiu ao seu lugar, onde se pôs a comer
feno.
Ayla, então, voltou a sua atenção para o filhote ferido. Era um pobre animalzinho
peludo, com algumas malhas fulvas sobre um fundo bege-claro. Parecia ainda bem novo,
mas ela não tinha muita certeza. Leões da caverna eram animais predadores das estepes
e ela estudara apenas oscarnívoros que viviam nas regiões florestais próximas à caverna
do clã. Até então jamais havia caçado em campo aberto.
Procurava lembrar-se das conversas dos caçadores do clã, de tudo que já ouvira
deles sobre leões da caverna. Esse parecia ser um pouco mais claro do que os outros
que vira. Lembrava-se de te-los escutado dizer que leões da caverna eram animais muito
difíceis de ser enxergados. Eles se mesclavam de tal modo com a cor da relva seca e da
terra no chão que se podia até dar um tropeção em algum. Quando dormindo às sombras
de arbustós ou sobre pe dras ou aforamentos de rocha, ficavam como blocos petrificados,
mesmo vistos de bem perto.
Ao pensar sobre isso, pareceu-lhe que as estepes nessa região eram de um bege
um tanto mais claro do que o usual e que certamente os leões que as ha bitavam
fundiam-se com a paisagem de fundo. Ela nunca parara para pensar nisso antes, mas
parecia haver certa lógica no fato da pele desses animais, ali, ser mais clara do que a
daqueles vivendo no sul. Talvez ela devesse dedicar um pouco de seu tempo ao estudo
dos leões da caverna.
Com a perícia de alguém que sabe o que está fazendo, a jovem curandei ra apalpou
o animal, sondando até onde iam as suas lesões. Uma das costelas estava quebrada,
mas não era motivo para maiores preocupações. As contra ções espasmódicas e uns
fracos ganidos indicavam-lhe os lugares machucados. Deveriam existir também algumas
lesões internas, O pior era a ferida aberta na cabeça, sem dúvida causada pela violenta
patada de um possante casco.
A fogueira há muito se apagara, mas isso deixara de ser problema. Ela agora tinha
as suas pedras- de-fogo e rapidamente podia acender uma fogueira, desde que contasse
com boas acendalhas. Colocou água para ferver. Enquanto esperava, enrolou uma faixa
de couro bem esticada e apertada ao redor das costelas do leão. Em seguida, pegou as
raízes de confrei que colhera no carni nho de volta e lhe retirou as cascas marrons,
deixando escorrer da planta uma mucilagem gelatinosa. Jogou na água fervendo um
punhado de cravos-de- defunto e mergulhou na infusão uma macia pele absorvente para
lavar a ferida.
Ao retirar o sangue seco, o ferimento voltou a sangrar. Ela viu que o crânio estava
fraturado, mas não esmigalhado. Picou em pedaços as raízes de confrei e aplicou
diretamente sobre a ferida a substância viscosa - estancava o sangue e ajudava na
calcificação dos ossos - e enrolou a cabeça com outra macia faixa de couro.
Sem saber com que finalidade, ela havia posto para curtir o couro de quase todos os
animais que matava, mas nunca poderia imaginar, por mais ab surdos que fossem os
seus pensamentos, que esses um dia ainda seria usados num leão da caverna.
"Como Brun iria ficar surpreso se visse o que estou fazendo", pensou, sorrindo. "Ele
jamais tolerou animais carnívoros. Nem mesmo um filhotinho de lobo me permitiu ter na
caverna. E agora, veja só! Aqui estou eu com um filhote de leão! Acho que dentro de
pouco tempo estarei sabendo um bocado sobre esses bichos, se é que esse aí vai viver.”
Ela pôs mais água para ferver, pensando em preparar um chá de confrei com
camomila, embora ainda não soubesse como faria para dar o medicamen to ao
leãozinho. Resolveu deixá-lo por algum tempo e foi tratar de tirar a pele da rena. Depois
que as primeiras fatias de carne - parecendo umas finas lin güetas - estavam cortadas e
prontas para serem penduradas, ela se viu emba tucada sem saber o que fazer. O
patamar em frente à caverna era de pedra, sem nenhuma terra onde pudesse fincar os
varais de segurar cordas. Tão preo cupada estava em trazer a carcaça do animal lá para
cima que nem chegara a pensar no problema. Por que estava sempre às voltas com
pequeninas insignifi cãncias? Nada na vida pode ser dado como certo.
252 253 JJr Em sua frustração, não conseguia ver nenhuma saída. Quando chegou,
estava tão cansada, tensa e ansiosa, que só pensou em levar o leãozinho para casa. E
agora nem sabia se fizera bem em trazê- lo, O que iria fazer com ele? Ela atirou as
estacas no chão e se levantou. Foi até a extremidade do patamar e ficou olhando o vale
embaixo, enquanto o vento lhe soprava no rosto, O que dera nela para trazer um
leãozinho doente para casa, quando devia estar preparando-se para partir e continuar
com a sua busca? Talvez devesse levá-lo de volta às estepes e deixá-lo entregue ao
destino que a natureza reserva aos fracos. Será que o fato de viver sozinha fez com que
perdesse o juízo? Além do mais, ela nem sabia como poderia cuidar do animal. Como iria
alimentá-lo? E se ele sarasse, o que iria acontecer? Já não poderia devolvê-lo às
estepes. A sua mãe não o aceitaria de volta e ele morreria. Se fosse ficar com o filhote,
seria obrigada a permanecer no vale. Não havia outro jeito. Para continuir com a sua
busca teria de levá-lo novamente às estepes.
Ela entrou na caverna e ficou parada junto do leãozinho que continuava no mesmo
lugar. Botando a mão no seu peito viu que o animal estava quente e respirava. O seu
pêlo lembrava o de Huiin quando ainda muito novinha. Era um bichinho mimoso e, com
aquela faixa na cabeça, estava muito engraçado. Ayla não pôde deixar de dar um sorriso.
"É, mas essa gracinha de bebê vai crescer e se tomar num enorme leão", pensou,
avisando-se. Ela levantou-se e olhou de cima o animal. Bom, paciência. Era impossível
largar aquele bebê nas estepes para que morresse.
Voltou a sair e ficou olhando para a carne. Já que iria ficar no vale, de veria ir
tratando de armazenar comida, Principalmente ago?a com mais uma boca para
alimentar.
Apanhou a estaca, tentando pensar em alguma maneira de firmá-la. Re parou num
monte de pedregulhos junto do paredão na extremidade do pata mar e procurou fincá-la
ali, O pau ficou reto, mas jamais agüentaria o peso das cordas com as cames. No
entanto, teve uma idéia. Voltou à caverna, pegou uma cesta e correu à praia.
Depois de algumas tentativas, viu que se arrumasse as pedras em forma de
pirâmide seria possível firmar as estacas. Mas, até que conseguisse ter uma certa
quantidade de cordas atravessadas na área do patamar e pudesse nova mente voltar ao
trabalho de cortar carne, foram precisas muitas idas e vindas à praia para catar pedras e
arrumar os troncos para fazer os varais. Ela armou uma fogueira perto do lugar onde
trabalhava e preparou o seu jantar, botando para assar no espeto uma fatia de carne, O
seu pensamento estava no leão. Co.
mo iria conseguir alimentá-lo? Como fazer para que tomasse o remédio? Ti nha de
ser comida de bebê, mas de bebê leão.
Lembrou-se de que as crianças podem comer as mesmas coisas que os adultos,
desde que sejam pastosas, fáceis de serem mastigadas e engolidas.
Quem sabe se uma sopa com carne cortada bem fininha? Ela já fizera isso pá ra
Durc. Por que não também para um leãozinho? Ora, e por que não misturar na sopa o
chá medicinal?
Imediatamente pôs mãos à obra, já cortando bem miúdo o próximo pe daço de carne
que pegou. Entrou na caverna e colocou as partes cortadas den tro de uma tina de
madeira que usava para cozinhar. Resolveu acrescentar um pouco das raízes de confrei
que sobraram. O filhote ainda não se mexera, mas lhe parecia que repousava tranqüilo.
Algum tempo depois, achando ter ouvido um barulho, foi outra vez dar uma olhada.
O leãozinho estava acordado, miando fracamente, sem condições de se mover ou
levantar, mas, com a aproximação de Ayla, rosnou, tentando retroceder com o corpo.
Ayla sorriu e se agachou ao seu lado.
'Pobre coisinha", pensou. "Você tem toda razão, metido aqui numa co va estranha,
todo machucado e sem ver ninguém parecido com a sua mãe e os seus irmãozinhos." Ela
esticou a mão na sua direção. "Vem cá, eu não vou fa zer mal a você. Ai - .Seus
dentinhos são bem afiados, hein? Vamos, pequeni no, prove a minha mão, sinta o meu
cheiro. Isso vai ajudá-lo a acostumar-se comigo. Daqui por diante eu vou ter de ser a sua
mãe. Mesmo que eu descubra onde mora, a sua mãe de verdade não vai saber tratar de
você. - - se é que ela vai aceitá-lo de volta. Não entendo muito de leões da caverna, mas
também eu não entendia de cavalos. Mas um bebê é sempre um beb€, não é? Você está
com fome? Eu não posso lhe dar leite. Espero que você goste de sopa de carne cortada
fininha. E com o remédio, você vai se sentir bem melhor.”
Ela se leva e foi dar uma olhada na tina de cozinhar. A consistência muito grossa da
sopa depois de fria surpreendeu-a. Remexendo o mingau, en controu um bolo de carne
no fundo da tina, que a custo pescou para fora na ponta de um espeto, com um líquido
grosso e viscoso escorrendo dos fiapos de carne grudados um no outro. De repente
entendeu, soltando uma gargalha da. O leãozinho assustou-se tanto com o barulho da
risada que quase arranjou forças para se levantar e sair correndo.
"Não é de admirar que as raízes de confrei sejam tão boas para tratar ferimentos.
Afmal grudou tão bem essa carne que deve também servir para co lar a nossa.”
- Neném, você acha que consegue tomar um pouco dessa coisa? - gesti culou ela
para o animal, despejando em seguida um pouco do líquido gosmen to num prato menor,
feito de casca de vidoeiro. O leaozinho conseguira sair da esteira de capim e fazia força
para ficar de pé. Ele rosnou para ela, procu rando afastar-se - Ayla ouviu o barulho de
cascos subindo pelo caminho e momentos de pois Huiin estava entrando. O cavalo
reparando no leão, agora bem acordado e se mexendo, foi iz Abaixou a cabeça e cheirou
aquela coisinha pelu 254 255 da. O pe4uenino leão da caverna, que adulto poderia
infundir pavor a qual quer cavalo, estava aterrorizado com o outro animal desconhecido
que surgia, enorme, à sua frente. Ele bufava, rosnava, e tanto foi retraindo.se que quase
acabou no colo de Ayla. Sentindo, então, o calor da perna dela e um cheiro já um pouco
mais conhecido, resolveu aninhar-se ali. Era muita coisa estra nha e nova naquele lugar.
Ayla o suspendeu para botá-lo no colo e começou a niná-lo, murmu rando baixinho
alguns sons, da maneira como faria com qualquer bebê. Assim fazia com o seu filho
quando ele era pequeno.
- Tudo bem, você vai acabar se acostumando conosco.
Huiin, relinchando, balançava a cabeça. O leão no colo de Ayla não lhe parecia
perigoso, embora os seus instintos lhe dissessem que o cheiro dele era. Por causa da
mulher, ela já mudara muito os padrões de seu com portamento, e talvez fosse possível
tolerar aquele leão da caverna.
O animalzinho correspondeu às carícias de Ayla procurando nela um lugar para
aninhar-se.
Você está com fome, não é, neném? - ela esticou o braço para pe gar o prato de
sopa e o segurou sob o seu focinho. O leão cheirou, mas não sabia o que fazer com
aquilo. Ayla meteu dois dedos dentro da papa e os pôs em sua boca. Agora ele sabia o
que devia fazer. Como qualquer bebé, chupou.
Sentada em sua pequena caverna, com o leãozinho no colo, ninando-o de cá para
lá, enquanto ele lhe lambia os dedos, ela estava tão absorta nas lem branças de seu filho
que nem reparava nas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto e pingavam sobre o pêlo do
animal.
Naqueles primeiros dias, quando Ayla punha o leãozinho em sua cama, com ele
chupando-lhe os dedos e ninando-o, se estabeleceu uma relação única entre os dois.
Uma relação que seria impossível entre a leoa e o seu filhote. Os procedimentos da
natureza eram cruéis, particularmente para as crias do mais poderoso dos predadores.
Apesar de que a leoa amamentasse os seus fi lhotes
durante as primeiras semananas e de que, em alguns casos, lhes permi tisse mamar
nela por uns seis meses, no momento em que os bichinhos abris- sem os olhos, já
passavam a comer carne. E quando se tratava de comida, o sentimentalismo não existia
numa familia de leões. Quem caçava era a leoa e, diferente dos outros felinos, ela o fazia
em grupo. Três ou quatro leoak for mavam uma equipe imbatível que facilmente
derrubava um gigantesco cervo em pleno vigor ou um auroque macho na flor da idade.
Apenas o mamute adulto ficava livre de seus ataques, mas os velhos e as crias novas já
não esta vam tão a salvos. A leoa, entretanto, não caçava para os filhos, o macho é que
era a sua preocupação. Ao chefe todo- poderoso cabia a "parte do leão". Tão logo
surgisse, a leoa se retraía e somente depois de vê-lo bem fartado é que vinha ela buscar
o seu quinhão. Em seguida era a vez dos filhos adolescentes e, por fim, se ainda
houvesse sobras, chegavam os leõezinhos para disputar as migalhas.
Se algum filhote, no auge da fome, tentasse abocanhar algum naco fora de sua
vez,•muito provavelmente seria agraciado com urna patáda fatal. Jus tamente para evitar
esse perigo, a mãe, muitas vezes, punha as crias, por mais famintas que estivessem,
longe das presas que matava. Cerca de três quartos dos leões nascidos não chegavam à
maturidade. A maioria dos que o conse guiam seriam afastados do bando para tornar-se
nómades, e nómades não eram bem recebidos em nenhum lugar, principalmente se
fossem machos. Já as fêmeas tinham mais aceitação. Às vezes, quando o bando se
achava des provido de caçadores, se lhes permitia ficar rondando pelas periferias.
O único modo do macho se ver aceito era lutando, e essa quase sempre era uma
luta de morte. No caso do chefe da família estar velho ou ferido, um membro mais jovem -
ou, mais provavelmente, um valente macho erran te - o expulsaria para assumir o lugar. A
função dele era a de guardar o terri tório de sua família - delimitado pelo cheiro provindo
de suas glândulas e pelo odor da urina da fêmea - e assegurar a continuidade da família
como grupo reprodutor.
Ocasionalmente, um macho e uma fêmea errantes se juntavam para for mar o
núcleo de uma nova família, mas teriam de construir o seu nicho lon ge dos territórios
vizinhos. Era uma existência precária.
Ayla, entretanto, não era mãe leoa, era humana, e os humanos não só protegem,
como ganham o sustento para os seus rebentos. Neném, como ela continuava a chamá-
lo, era tratado como nenhum leão da caverna jamais o fora. Ele não precisava disputar
restos de comida com os seus germanos e nem de fugir das patadas dos mais velhos.
Ayla o sustentava, caçava para ele. No entanto, se uma parte da caça era dele, ela
jamais admitiu dispor da quela que lhe era devida. Deixava Neném, sempre que sentisse
necessidade, chupar os seus dedos e geralmente o levava para a sua cama.
Neném foi naturalmente domesticado. Por ele mesmo saía da caverna, sempre que
tinha necessidade, exceto no princípio, quando ainda não esta va em condições. Mas
mesmo então era tal a sua careta de nojo quando se su java que Ayla acabava rindo.
Essas não eram as únicas vezes que ele a fazia rir. As brincadeiras de Neném quase
sempre lhe arrancavam boas risadas. O leão zinho adorava ficar espreitando-a, e mais
ainda pstava se ela fingisse não perceber a sua intenção, simulando surpresa quando ele
de repente saltava sobre as suas costas. Algumas vezes, no entanto, era ela quem o
surpreendia, virando-se no último instante para apanhá-lo no colo.
As crianças dos clãs sempre foram tratadas com condescendência. O castigo que se
lhes dava consistia geralmente em ignorar aquilo que estavam 256 257 fazendo de
propósito para chamar a atenção dos adultos. À medida que cres ciam e tomavam
consciência do status dos germanos e das pessoas mais ve lhas, iam começando a
desdenhar os paparicos e mimos como coisa de bebés e passavam ao mesmo tempo a
imitar-lhes as atitudes, incentivadas imediata mente com os inevitáveis gestos de
aprovação. Com isso elas procuravam se comportar cada vez mais como adultas.
Ayla, principalmente no princípio, mimava o leãozinho da mesma for- ma. No entanto
ele começou a crescer e as suas brincadeiras às vezes a machu cavam sem querer. Se
ele estouvadamente a arranhava ou a derrubava num ataque de mentira, ela parava de
brincar e fazia o gesto usado na língua dá nica para dizer "basta!". Neném era sensível
aos estados de ânimo de Ayla. Quando percebia que ela se recusava a entrar em suas
brincadeiras, como na disputa de um pedaço de pau ou de um velho pano de couro, ele
tentava cap tar-lhe as boas graças com qualquer coisa que quase sempre a fazia rir ou
en tão chegava para perto dela, procurando simplesmente chupar-lhe os dedos.
Ao gesto de "basta", ele passou a dar sempre o mesmo tipo de respos 3 ta. Ayla,
com a sua habitual finura para apreender movimentos e posturas de 4 corpo, logo
reparou no fato e passou a usar sempre o gesto que, sabia, poria paradeiro em alguma
coisa que ele estivesse fazendo e que ela não queria. Não era tanto uma questão de
treinamento, mas de sensibilidade, dele e dela. Além do que, o leãozinho era rápido para
aprender. Ao sinal de Ayla, ele parava no meio de uma passada ou desviava um pulo em
pleno ar. Como se soubesse que fizera algo que a desagradava, Neném, em geral, após
o "basta" firme e deter • minado, vinha chupar-lhe os dedos para recuperar a confiança.
Por outro lado, Ayla era sensível às alteraç de ânimo do animal e não lhe impunha
nenhuma restrição física. O leão, como ela ou Huiin, tinha liber dade de entrar e sair
quando bem entendesse. Nunca ocorreu a Ayla prender ou amarrar os seus
companheiros bichos. Eles formavam a sua família, o seu clã. Eram criaturas vivas que
compartilhavam de sua caverna e de sua vida. No seu mundo solitário, os únicos amigos
que possuía.
Bem cedo deixou de preocupar-se com o que o clã poderia achar do fato de ela
estar vivendo com animais, mas ficava intrigada com a relação que se estabelecia entre o
cavalo e o leão. Os dois eram inimigos por nature za: caça e caçador. Talvez se ela
tivesse lembrado disso, quando encontrou o leãozinho ferido, não o teria trazido para a
caverna, onde vivia com um ca valo. Jamais poderia supor que os dois pudessem viver
juntos e muito menos que fossem se dar bem.
No princípio, Huiin apenas tolerava o filhote de leão, mas depois que o bichinho se
levantou e começou a rondar por toda parte, era difícil ignorá4o. Quando via Ayla
puxando de uma das extremidades um pano de couro en quanto o leãozinho, abanando a
cabeça e rosnando, puxava da outra, o cavalo não se continha em sua curiosidade, e
vinha ver o que estava se passando. En tão chegava, farejava o couro e o agarrava com
os dentes, fazendo um puxa- daqui-puxa-dali de três. Após Ayla se retirar, a brincadeira
prosseguia entre os dois. Com isso, Neném, querendo atrair Huiin para o seu brinquedo,
aca bou pegando o hábito de arrastar o couro que ia sob o seu corpo, passado entre as
patas dianteiras, tal como mais tarde iria fazer com as suas vítimas. Huiin quase sempre
condescendia. Na falta de irmãos para brincadeiras de leões, arranjava-se com aqueles
dois bichos que tinha à mão.
Havia outra brincadeira. Essa Huiin já não achava tanta graça, mas para Neném ela
parecia irresistível: era a de pegar no rabo, mais particularmente no da potranca. Neném,
agachado, ficava à espreita dele, observando-lhe as raba nadas tentadoras. Então,
silencioso, sorrateiramente, estremecendo-se de go zo, levantava-se e se apoderava do
rabo para, em seguida, ficar se deliciando com os punhados de pêlos que lhe enchiam a
boca. Às vezes Ayla era capaz de jurar que Huiin fazia o jogo do leãozinho, que a
potranca sabia perfeitamen te que o seu rabo estava sendo intensamente cobiçado, e
simplesmente fingia não perceber. Também ela gostava de brincar, apenas até então não
tivera com quem. Ayla não era dada a inventar brincadeiras, nunca lhe haviam ensi nado.
Depois de algum tempo, Huiin se cansava e virava contra o seu atacante, passando
a mordiscar-lhe o traseiro. A potranca também sabia ser indulgente, mas não era pelo
fato de Neném ser um leão da caverna que se deixaria domi nar. Afinal, Neném não
passava de um simples bebezinho. Se Ayla transfor mou-se na mãe do leão, Huiin
converteu-se em sua babá. À medida que o tempo passava, com os dois cada vez mais
brincando juntos, o que era sim ples tolerância se transformou em desvelo e atenção,
graças principalmente a uma certa particularidade de Neném: ele adorava
esterco.
Os excrementos de carnívoros não tinham grande interesse. Neném só gostava
daqueles largados pelos animais de pastagens e herbívoros. Quando os três saíam
juntos para os campos, Neném deitava e rolava sobre qualquer esterco que achava.
Como a maioria das brincadeiras, essa também já visava as suas futuras caçadas. O
esterco disfarçava-lhe o cheiro de leão, mas isso não impedia Ayla de dar boas risadas
sempre que o via descobrindo uma nova pi lha de porcarias. A do mamute era
particularmente apreciada. Ele tomava entre as patas as enormes bolotas que espatifava
para depois rolar por cima.
Mas nenhuma era tão maravilhosa quando a de Huiin. A primeira vez que encontrou
o monte de excremento seco que Ayla guardava para ajudar a acender o fogo, Neném
não cabia em si de contente. Carregava-o de um lado para outro, brincando, rolava e se
chafurdava na bosta. Quando Huiin entrou na caverna e sentiu o seu próprio cheiro, era
como se o leãozinho fos se uma extensão de seu corpo. A partir daquele momento todas
as prevenções 258 259 contra Neném desapareceram e a potranca o tomou sob a sua
guarda. Guia va-o, protegia-o, e mesmo que Neném se saisse com alguma, isso não
diminuía as solícitas atenções da potranca.
Desde que abandonara o clã, Ayla nunca se sentiu tão feliz quanto na quele verão.
Huiin, além de fazer companhia, era uma verdadeira amiga. Se não fosse a potranca, ela
não sabia o que teria feito durante o longo e solitá rio inverno. Mas a inclusão de Neném
ao seu redil trouxe uma nova dimensão de vida. Alegria. Sempre estava acontendo algo
de divertido entre o dedicado cavalo e o leãozinho brincalhão.
Num dia quente e ensolarado, já em pleno verão, ela estava na campi na,
observando os dois numa nova brincadeira. Um perseguia o outro, dando longas voltas
em cfrculo. Primeiro, Neném diminuía a corrida, dando tempo para Huiin alcançá-lo.
Depois, ele lhe saltava à frente, enquanto a potranca atrasava-se para que o leãozinho
desse toda a volta e se pusesse atrás dela, quando, então, ela disparava e ele freava
para permitir Huiin pegá-lo. Ayla achava nunca ter visto nada tão engraçado na vida.
Encostada numa árvore, segurando a barriga com a mão, ria a mais não poder.
Quando as risadas cessaram, ela por alguma razão tomou consciência do riso. Que
som era aquele que emitia, sempre que achava alguma coisa engra çada? Por que fazia
aquilo? Vinha tão espontaneamente quando não tinha alguém por perto para lembrá-la de
que era algo impróprio. Mas por que im próprio? A não ser ela e o seu filho, não se
recordava de ter visto alguém dos dás rindo ou pelo menos sorrindo. No entanto, eles
conheciam o humor, sabiam de histórias engraçadas a que reagiam com movimentos
aprovadores de cabeça e uma expressão divertida, centrada principalmente nos olhos.
Pelo que ela se lembrava, quando faziam uma careta, qualquer coisa parecida ao seu
riso, era no sentido de exprimir medo ou apreensão, nunca felicidade.
Mas se rir era algo que brotava nela com tanta facilidade, que a fazia sentir-se tão
bem, por que seria errado? Será que as pessoas como ela também riam? Os Outros? De
repente toda a alegria foi embora. Não gostava de pen sar nos Outros. A consciência de
que não estava mais procurando-os a enchia de emoções desencontradas. Iza lhe
dissera para procurá-los, e além do mais era perigoso viver sozinha. Se por acaso
adoecesse ou sofresse um acidente, quem viria em seu socorro?
Mas se sentia tão feliz com a sua família de bichos. . . Podia soltar-se, correr à
vontade, que nem Huiin nem Neném iriam lançar-lhe olhares de cen sura e tampouco lhe
diriam para não rir, não chorar, que animais podia caçar, quando, com que armas. - - As
decisões eram suas e isso a fazia sentir-se imen saniente livre. O fato de grande parte de
seu tempo ser consumido no atendi mento de suas necessidades - alimentos, agasalhos,
abrigos - ela não contava.
Não era o que lhe restringia a liberdade, embora fossem nessas coisas que con
centrasse quase todas as suas energias. Ao contrário. Saber que podia manter- se
sozinha lhe dava confiança em si.
Com o decorrer do tempo, principalmente depois da vinda de Neném, a dor pela
perda das pessoas amadas foi aplacando. O vazio e a necessidade de convívio com
outras pessoas eram um sofrimento tão constante que passou a parecer um sentimento
normal. Qualquer coisa que a distraísse era motivo de alegria e os dois animais
contribuíam muito para encher o seu vazio. Ay la gostava de pensar neles como
formando o arranjo familiar que conhecera com lia, Creb e ela, quando menina, só que no
caso de Neném havia Huiin e ela para tomar conta dele. E quando de noite, com as
garras retraidas e as patas dianteiras enroscando-se nela, na sua imaginação o leãozinho
era quase como Durc.
Ela se via relutante em partir e procurar pelos Outros, gente de costu mes e
proibições de que nem podia fazer idéia. Talvez até lhe tirasse essa sua faculdade de rir.
"Não. Isso não vão", falou para si mesma. "Nunca voltarei a viver com pessoas que me
impeçam de rir.”
Já cansados da brincadeira, Huiin foi pastar, enquanto Neném deitou perto,
ofegando, com a língua pendurada do lado de fora da boca. Ayla assoviou. A potranca se
aproximou com o leãozinho atrás.
- Preciso sair para caçar, Huiin - gesticulou Ayla. - Esse leão come de mais e está
ficando muito grande.
Depois que se recuperou dos machucados, Neném sempre acompanhava Ayla e
Huiin nas suas saídas. Os filhotes de leões nunca eram deixados sozi nhos nos covis, tal
como os bebés dos clãs que também jamais ficavam desa companhados, por isso o seu
comportamento parecia a Ayla perfeitamente normal. Mas lhe trouxe um problema. Como
iria ela caçar com um leão da caverna andando no seu rasto? O problema solucionou-se
quando Huiin teve os seus instintos protetores despertados. Entre leões, a mãe, ao sair
para caçar, deixava a sua prole aos cuidados de uma fémea mais nova, de modo que Ne
ném não teve maiores dificuldades em aceitar Huiin nesse papel. Ayla sabia que
nenhuma hiena ou outra fera de igual porte ousaria enfrentar os pesados cascos da
potranca, se fosse o caso de sair em defesa do leão, só que isto signi ficava que ela teria
de voltar a caçar a pé.
No entanto, batendo os terrenos das estepes próximos da caverna á pro cura de
animais adequados à sua funda, ela deparou com uma oportunidade com que não
contava.
Até então, sempre evitara o bando de leões que habitava o território a leste de seu
vale. A primeira vez, porém, que viu alguns deles, descansando à sombra de uns
pinheiros baixos e atrofiados, resolveu que já era tempo de aprender alguma coisa sobre
esses seres que encarnavam o seu totem.
260 261 r Era uma ocupação perigosa. Embora caçadora, facilmente poderia con
verter-se em presa. Ela, entretanto, já observara antes outros predadores e sabia como
fazer para passar despercebida. Os leões notaram que eram observados, mas depois de
algum tempo resolveram ignorá-la. Isso não afas tava o perigo. A qualquer momento que
algum deles quisesse, talvez pela sim- pies razão de estar mal-humorado, poderia partir
para cima dela. Ayla, no entanto, quanto mais observava, mais fascinada ficava.
Os leões passavam a maior parte do tempo descansando ou dormindo, mas quando
caçavam eram fulminantes nas suas ações. Uma leoa sozinha po dia muito mais
rapidamente dar cabo de um enorme cervo do que um bando de lobos, atacando juntos
ao mesmo tempo. Os leões só caçavam quando ti nham fome e podiam ficar vários dias
sem comer. Não tinham necessidade como ela de armazenar comida. Caçavam o ano
inteiro.
Ayla observou que no verão, com os dias quentes, a tendência deles era caçar à
noite. Já no inverno, quando a natureza engrossava-lhes a pele, clareando o seu tom de
marfim, de modo a confundi-la com a paisagem in vernal, ela os vira caçando de dia. O
frio intenso evitava que a tremenda ener gia dispendida durante as caçadas os
aquecesse. À noite, quando a temperatu ra baixava vertiginosamente, dormiam
amontoados em alguma caverna ou no vão de uma pedreira que os defendesse contra o
vento. Ou senão nos terrenos de algum desfiladeiro, por entre as pedras espalhadas pelo
chão que absorviam durante o dia um pouco do calor do sol distante para acalentá-los na
escuridão.
Após passar um dia no seu posto de observação, Ayla voltou ao vale com novo
respeito pelo animal que levava o espírito de seu totem. Ela vira uma leoa jogar por terra
um velho mamute com presas tão compridas que che gavam a cruzar-se na frente da
cabeça. Nesse dia, o bando inteiro se fartou. Perguntou-se como teria conseguido
escapar, aos cinco anos de idade, das garras de um leão. Agora entendia um pouco a
razão do espanto das pessoas dos clãs. "Por que teria o Leão da Caverna me
escolhido?" Por um instante, um pressentimento atravessou-lhe o espírito. Nada
específico,. mas qualquer coisa que a deixou pensando em Dure.
Já aproximando-se do vale, uma pedrada certeira derrubou uma lebre para Neném.
Subitamente, visualizando-o crescido, transformado num imen so macho, se viu em
dúvidas. Teria sido uma decisão acertada levar o filho te de leão para a caverna? Seus
temores duraram apenas o tempo de ver o leãozinho correndo ansioso ao seu encontro,
feliz por tê4a de volta, doido para chupar-lhe os dedos e lambê-la com a sua língua
áspera.
Mais tarde, já anoitecendo, depois de ter tirado a pele da lebre e corta do a carne em
pedaços para dar a Neném, depois de haver limpado o lugar de Huiin e trazido feno
fresco, e depois de ter preparado e comido o seu jantar, ela se sentou com os olhos fixos
no fogo, enquanto saboreava uma cuia de chá quente e pensava nos acontecimentos do
dia. Neném dormia próximo ao fundo da caverna, afastado do calor direto da fogueira.
Revendo em pensa mento as circunstâncias que a levaram a adotá-lo, não encontrava
outra res posta para a .sua atitude, fora a de que agira por vontade de seu totem. Ela não
sabia por que, mas o fato era que o espírito do Grande Leão da Caver na havia enviado
alguém de sua família para que fosse criado por ela.
Com a mão no amuleto pendurado em seu pescoço e apalpando os objetos do
saquinho, ela se dirigiu ao seu totem na silenciosa língua dos clãs:
- Não foi dado a essa mulher compreender o quão poderoso é o Leão da Caverna.
Essa mulher, no entanto, está agradecida por ter sido iluminada em seu pensamento.
Talvez ela nunca venha a saber por que foi escolhida, mas essa mulher se sente grata
por ter consigo o filhote de leão e o cavalo.
Ela fez uma pausa e depois prosseguiu:
- Algum dia, O Grande Leão da Caverna, essa mulher saberá por que lhe foi enviado
o filhote.. - se assim for do desejo de seu totem.
O habitual volume de trabalho de Ayla em todos os verões -nos prepa rativos para o
inverno seguinte - se viu aumentado com a introdução do leão zinho em sua vida.
Carnívoro puro e simples, Neném tinha necessidade de grande quantidade de carne para
satisfazer as exigências de seu crescimento, fazendo-se a olhos vistos. A caça miúda
consumia muito tempo e Ayla estava precisando sair atrás de animais maiores, não só
pelo leãozinho, como por ela. Mas para isso tinha de contar com a ajuda de Huün.
Neném percebeu que Ayla estava programando algo especial. Ela havia retirado os
arreios da caverna e chamado Huiin para ajustar no animal as duas pesadas traves que
ele puxava arrastando. O jorrão fora aprovado, mas ela queria arranjar um jeito melhor de
prender os paus, de modo que lhe fosse possível também carregar os cestos. Além disso,
uma das traves precisava con servar-se meio solta para que Huiin pudesse subir com a
carga até a caverna. O patamar como local para secar as carnes também fora aprovado.
Ela não tinha noção de como faria para caçar com Neném ao seu lado e nem do que
ele poderia aprontar-lhe. Mas tinha de tentar assim mesmo. De pois de tudo pronto,
montou Huiin e se pôs a caminho. Neném seguiu atrás, tal como teria feito com a sua
mãe. O acesso às terras a leste do rio se fazia muito mais facilmente, por isso ela nunca
pegava outro rumo, salvo quando empreendia suas excursões exploratórias. O íngreme
penhasco do lado ociden. tal continuava por vários quilômetros até transformar-se numa
encosta abrup ta e pedregosa que, por fim, abria caminho para as planícies. Uma vez que
a cavalo ela podia percorrer grandes distâncias, passou a conhecer bem as este pes
orientais, onde tinha mais facilidade para caçar.
263 262 Ayla aprendera muito sobre as manadas que freqüentavam esses terre nos:
os seus hábitos migratórios, os caminhos que percorriam e os lugares em que
atravessavam os rios. Mas ela continuava ainda tendo de cavar armadilhas no caminho
dos animais e esse não era um trabalho fácil com um leíozinho travesso rondando por
perto. Ele simplesmente achava que o buraco que Ayla cavava era mais outra brincadeira
que ela estava inventando para diverti-lo.
Neném ora escavava a terra com as suas patas, desmoronando as bordas do
buraco, ora pulava por cima, ora para dentro, quando então tranqüila- mente voltava a
sair. Depois ia rolar-se no monte de terra sobre o velho couro da barraca que ela ainda
usava para fazer os seus buracos. Quando foi arrastar o couro, Neném resolveu também
puxá-lo à sua maneira, fazendo daquilo a brincadeira do puxa-daqui-puxa-dali. A terra
acabou esparramando pelo chão.
- Neném! Como é que vou conseguir fazer esse buraco? - falou Ayla, exasperada,
mas rindo, o que só serviu para animá-lo ainda mais. - Venha cá, vou dar uma coisa para
você arrastar - ela remexeu dentro das cestas, que retirara do lombo de Huiin para deixar
a potranca pastar à vontade,
e pegou a pele da rena que trouxe para cobrir o chio, no caso de chover. - Tome, vá
arrastar isso - disse, colocando o couro à sua frente. Era tudo que ele queria. Não
conseguia ver um pedaço de couro sem arrastá-lo pelo chio. Estava tio encantado
puxando-o por entre as suas patas dianteiras, que Ayla teve de rir.
Apesar de Neném, ela conseguiu fazer o buraco e cobri-lo com o o velho pano de
couro e uma camada de terra por cima. A cobertura estava precaria mente fixada com
quatro pregos e, quando pronta, Neném não pôde deixar de vir investigar. Acabou caindo
na armadilha e pulou para fora com expres são indignada. Depois disso, resolveu manter-
se afastado.
Novamente arrumada a armadilha, Ayla assoviou para Huiin e foi pos tar-se atrás de
uma manada de onagros. Nunca mais tivera coragem de caçar cavalos, e mesmo
onagros a deixavam com uma sensação de desconforto. Esies burros selvagens eram
parecidos demais com cavalos. A manada, no entanto, estava numa posição tão perfeita
para ser levada na direção da ar madilha que ela não podia dar-se ao luxo de perdê-la.
Após as travessuras de Neném junto do buraco, as suas preocupaçóes ainda
aumentaram mais. Certamente ele seria um entrave durante a caçada. No entanto,
quando se puseram atrás da manada, o leãozinho assumiu outra atitude. Ele espreitava
os onagros tal como fazia com o rabo de Huiin, como se de fato não importasse o seu
tamanho de bichinho novo e pudesse derru bar um daqueles animais. Ayla compreendeu
então que as brincadeiras de Neném eram uma versão em escala menor dos movimentos
de um leão adul to, daquilo que no futuro ele viria a precisar. Era um caçador de
nascença, instintivamente compreendendo a necessidade de um comportamento matrei
ro e silencioso.
Para sua surpresa, Ayla descobriu que Neném podia ser de grande valia. Quando a
manada estava bastante perto da armadilha, o seu cheiro e o do leão começaram a ser
sentidos, desviando os animais da trilha. Ela, então, aos urros e berros fez com que Huiin
disparasse de modo a provocar o estouro dos animais. Neném, tomando isto como um
sinal, lançou-se, por sua vez, na perseguição. O seu cheiro ajudava a aumentar o pânico
dos onagros que se puseram a correr direto para a armadilha.
Ayla, com a lança na mão, escorregou do lombo de Huiin e a toda velo cidade partiu
na direção de um dos onagros que, grunhindo em desespero, tentava escapar da
armadilha. Mas Neném já havia passado à frente. Ele pulou no dorso do animal, mas
desconhecendo ainda a sua capacidade de sufocar a vítima com um abraço fatal, se pôs
a lhe dar mordidas no pescoço com os seus dentes de leite, pequeninos demais para
surtir efeito. A experiência ha via chegado muito prematuramente para o leiozinho.
Se ele ainda vivesse no seu meio, junto de leões, nenhum adulto teria deixado que
se imiscuísse na caçada. Qualquer tentativa seria imediatamente rechaçada com um
bofetão assassino. Apesar de toda a sua velocidade, os leões eram corredores de pouco
fôlego, enquanto as suas presas podiam
correr longas distâncias. Se não conseguissem apanhar de saída a caça., muito
prova velmente a perderiam. Não podiam, por isso, se dar ao luxo de deixar um fi ifiote
treinar os seus dotes de caçador - a não ser em suas brincadeiras - enquanto não
estivessem beirando a idade adulta.
Mas Ayla era humana. Ela não possuia a velocidade nem da caça, nem do caçador,
além de que lhe faltavam garras e presas. A sua arma era o cére bro, e por meio dele
criou os meios para suprir a falta dos predicados naturais em seus concorrentes. A
armadilha - que permitia à sua espécie mais fraca e vagarosa caçar - dera ao leâozinho
igual oportunidade.
Quando ela, ofegante, chegou, o onagro - preso dentro do buraco - olhava
apavorado, com o filhote de leão rosnando montado em seu pescoço e tentando com os
pequeninos dentes de leite abocanhá-lo numa mordida fa tal. Um firme golpe de lança
pôs fim à luta da besta. Com o filhote pendura do, rasgando-lhe a pele do pescoço, ela
tombou. Somente quando todo o mo vimento cessou, Neném soltou a sua caça. Ayla
tinha um sorriso encorajador de mãe orgulhosa, enquanto o filhote, altivo, de pé sobre um
animal muito maior do que ele, tentava rosnar, convencido de que era o autor da façanha.
Ayla pulou para dentro do buraco e o cutucou para o lado.
- Vamos, Neném, afaste-se. Tenho de amarrar essa corda ao redor do pescoço do
bicho. Huiin precisa retirá-lo.
O leãozinho era um feixe de nervos, entrando e saindo do buraco, en quanto Huiin
puxava o onagro para fora. Quando, por fim, o trabalho foi realizado, Neném pôs-se a
pular para cima e para baixo do animal. Ele não 264 265 sabia o que fazer. Entre leões, o
primeiro pedaço da caça cabia ao matador. Filhotes nunca participavam de caçadas e
pelas normas vigentes eram os últi mos a se servirem.
Ayla estendeu o corpo do onagro para fazer um corte abdominal que ia do ânus à
garganta. Um leão o teria aberto de maneira parecida, rasgando em primeiro lugar o
ventre, a parte mais macia. Neném olhava gulosamente, enquanto Ayla cortava a parte
inferior para, em seguida, abrir as pernas do animal e cortar o resto.
Neném não conseguiu mais conter-se. Meteu-se pela abertura do abdô men e
abocanhou as entranhas sanguinolentas que se estufavam. Os seus dentes fmos,
parecendo agulhas, dilaceravam as partes tenras do intestino. Ele conseguira agarrar
algo. Pulou para fora e se pôs a puxar como se esti vesse num jogo do puxa-daqui-puxa-
dali. Ayla tinha terminado de cortar e se virou, levantando a cabeça. Imediatamente
explodiu numa estrondosa gargalhada. Neném tinha cravado os seus dentes num pedaço
do intestino e, inesperadamente, ao puxar não encontrou resistência. A coisa ia saindo,
saindo. - - Aflito, ele continuava a desenroscar uma comprida corda de tri pas que já se
estendia com vários metros de comprimento. A sua expressão de surpresa era tão
engraçada que Ayla não conseguia conter-se. Deixou-se cair no chão, rindo até as
lágrimas e fazendo força para controlar-se.
O leãozinho, sem entender o que ela fazia no chão, largou o rolo de tripas para
observar o que estava acontecendo. Quando ele saltou na sua di reção, ela sempre rindo
agarrou-lhe a cabeça e esfregou o rosto nos seus p€ los. Depois, com ele no coto
lambendo as suas mãos, coçou-lhe atrás das ore- fitas e as bochechas meio sujas de
sangue. Ele se pôs a chupar os seus dedos enquanto rosnava baixinho, apoiando as
patas dianteiras sobre as coxas dela.
"Não sei por que você me foi enviado, Neném", pensou. "Mas fico con tente por isso
ter acontecido.”
Já pelo outono, o leãozinho da ca verna já estava maior do que um lobo e o seu jeito
de bebé rechonchudo co meçava a desaparecer com as pernas já encompridando-se e o
corpo mostran do-se forte e musculoso. Apesar de seu enorme tamanho, ele continuava
ainda 266 filhote de lego e Ayla vez por outra exibia as marcas dos machucados e arra
nhões com que saia das brincadeiras. Ela nunca lhe batia, ele era um bebé. Fazia apenas
o gesto de "basta, Neném" e o afastava para o lado dizendo:
- Chega, vocé está muito bruto.
Isso era suficiente. Neném, arrependido, vinha atrás dela em atitude submissa, a
mesma que num bando teriam os leões mais fracos para com os outros, seus superiores.
Ayla não resistia. O perdão chegava, mas com Neném já mais contido em suas
demonstrações de carinho. Antes de saltar e botar as patas sobre os seus ombros - para
abraçá-la e não derrubá-la - ele enco lhia as garras de suas patas dianteiras. Ela tinha de
retribuir o abraço e ele, com os dentes à mostra, abocanhando os braços ou os ombros,
tal como ainda iria fazer com a sua fêmea, procurava ser delicado, nunca ferindo a pele.
Ela aceitava e retribuia as investidas e os gestos carinhosos, mas nos clãs um filho,
enquanto não houvesse matado o seu primeiro animal e atingido a maioridade, obedecia
à mãe. Ayla agia com o filhote da mesma maneira. Ele a tinha aceitado como mãe; era,
portanto, natural que ela tivesse o seu domínio.
Por outro lado, a mulher e o cavalo formavam a família de Neném. Os dois eram
tudo que ele possuía. As poucas vezes em que se encontrara com outros leões, nas
saidas para as estepes com Ayla, as suas tentativas de aproximação foram belamente
rechaçadas, como provavam as cicatrizes que agora ostentava no nariz. Depois desse
corpo-a-corpo que lhe enviou de volta Neném com o nariz sangrando, ela, quando estava
com ele, passou a evitar o território dos leões mas, sozinha, continuou ainda com as suas
observações.
Ela se percebeu comparando Neném com os filhotes que cresciam jun to de suas
famílias. Uma das primeiras coisas que reparou foi que Neném era grande para a idade.
Diferente dos outros, ele nunca havia passado fome, por isso jamais teve o seu pêlo sem
brilho e esfiapado ou as costelas desenhando- se sob a pele. E muito menos ainda se viu
ameaçado de morrer de fome. Com Ayla para alimentá-lo e tendo os seus constantes
cuidados, nada lhe faltava para que atingisse o máximo de suas potencialidades físicas.
E ela, como uma boa mulher dos clãs que tem o seu bebé saudável e bem alimentado,
sentia-se orgulhosa vendo o seu filhote crescer lustroso e grandão.
Havia outro aspecto que ela também reparou que o punha na dianteira dos outros
leõezinhos de sua idade. Neném era um tremendo caçador. Depois daquela primeira vez,
quando se mostrou tão encantado com o onagro, passou sempre a acompanhar Ayla. Ao
invés de ficar brincando de caçar como outros filhotes, ele de fato estava treinando com
presas de verdade. Uma leoa jamais teria permitido, mas com Ayla se dava o contrário,
ela o encorajava e até agra decia a ajuda que ele lhe dava. Os métodos de Neném caçar
se revelaram tão compatíveis com os dela, que era como se os dois atuassem em
equipe.
267 14 Somente uma vez Neném saiu fora de tempo na perseguição da manada,
dispersando-a antes que os animais estivessem perto da armadilha. Foi tama nho o
desgosto de Ayla, que ele compreendeu que fizera uma grande boba gem. Na vez
seguinte, observava-a atentamente, refreando-se. Só depois que ela deu a partida é que
ele se soltou. Apesar de que ainda não tivesse consegui do matar um animal, Ayla sabia
que isso não iria demorar a acontecer.
Neném também descobriu que era muito divertido caçar pequenos ani mais com
Ayla e a sua funda. Enquanto ela colhia plantas - uma coisa desin teressante - ele, se não
estivesse dormindo, estava correndo atrás de tudo que se mexesse. Mas, caçando junto
dela, havia aprendido a ficar tal como ela, imóvel, pertrificada à vista de alguma caça.
Silenciosamente, ele observava-a arrumar a pedra na funda para só correr depois da
pedra ter sido lançada. Quase sempre ela ia ao seu encontro quando ele já estava
voltando, com a presa arrastada por entre as patas. Outras vezes ia encontrá-lo, parado,
com os dentes ferrados na garganta do animal. Ela ficava sem saber se fora a sua pedra
que matara o bicho ou se havia sido ele, à maneira dos leões, que estrangulara a jugular
da presa, terminando o que ela começara. Com o passar do tempo, Ayla aprendeu a
reparar nas atitudes de Neném, quando ele parava, farejando algum bicho que ela própria
ainda não tinha visto.
A primeira caça que talvez pudesse ser tributada a ele foi a de um ani mal de
pequeno porte.
Neném, depois de brincar sem muito interesse com um pedaço de carne que Ayla
lhe dera, foi dormir. Acordou faminto, ouvindo os passos dela, su bindo o caminho que
passava por cima da caverna e levava às estepes. Huiin também não estava à vista.
Filhotes desprotegidos naqueles ermos eram um prato fácil para hienas e outros
carnívoros. Ele cedo aprendera essa lição. Disparou atrás de Ayla e chegou ao topo do
penhasco na frente dela. Depois, pôs-se a caminhar ao seu lado, mas então parou. Ayla
ainda nãõ tinha visto o hamster gigante que, no entanto, já notara a presença dos dois.
Antes que a sua pedra tivesse sido atirada, o hamster já estava correndo a toda
velocidade - Ela não tinha muita certeza se o acertara.
No instante seguinte, Neném partiu em busca do hamster. Quando che gou para
encontrá-lo, ele já estava com o focinho enterrado no meio das en tranhas esguichando
sangue. Quem seria o autor da façanha? Ela o empurrou para o lado, querendo ver se
descobria alguma marca de pedra. Por um mo mento ele resistiu - apenas o tempo dela
lhe lançar um olhar duro - então cedeu sem discussão. Já havia comido bastante da mão
de Ayla para saber que era ela quem o alimentava. Mesmo depois de examinar o
hamster, Ayla ainda continuou incerta sobre qual dos dois teria matado o animal, mas o
de volveu a Neném, fazendo-lhe muitas festas e elogios. O fato da pele estar ras gadajá
era para ser considerado uma bela proeza.
Uma lebre foi o primeiro animal que ela teve realmente certeza de que fora ele quem
havia matado. Aquela foi uma das raras vezes que Ayla perdera um tiro- Ela sabia que o
seu lançamento tinha saído defeituoso. A pedra caí ra a poucos passos de onde se
achava, mas Neném lhe vira os movimentos que ele entendia como uma ordem para
atacar. Quando ela chegou, o leffozinho já estava estripando o animal.
- Que maravilha, Neném! - disse ela efusivamente naquela estranha mistura de
gestos e sons, tal como se o leãozinho fosse um menino do clã, merecedor de todos os
elogios por ter conseguido matar o seu primeiro ani mal. Neném não entendia o que ela
falava, mas sentia que Ayla estava con tente com ele. O sorriso, a atitude, a postura, tudo
nela comunicava alegria. Mesmo que fosse pequeno para isso, ele havia satisfeito uma
necessidade de caçar instintiva e agora recebia os cumprimentos do membro mais
importan te de sua familia. Ele sabia que se portara bem.
Os primeiros ventos frios do inverno trouxeram uma baixa de tempera tura, placas
de gelo nas bordas do rio e preocupações para Ayla. Ela havia feito um grande
suprimento de comida e mais uma provisão extra de carne seca para Neném, mas
achava que não fosse suficiente para durar até o final do inverno. Também tinha feito um
suprimento de cereais e feno para Huiin, mas neste caso era um luxo e não uma
necessidade. Os cavalos não deixavam de pastar durante o inverno. Somente quando a
neve estava muito alta no chão, sem vento para limpar os terrenos, é que passavam
fome. Na verdade, nem todos sobreviviam ao frio da estação.
Também os camívoros conseguiam a sua comida no inverno, eliminan do os fracos
e deixando mais alimento para os fortes. O número de caçadores e caçados aumentava
ou diminuía de forma cíclica, mas mantendo-se, de cer to modo, equilibrado entre uns e
outros. Nos anos em que rareavam os ani mais de pastos e herbívoros, havia maior
mortandade de carnívoros que pas savam fome. O inverno era uma estação dura para
todos.
Com a chegada do frio, as preocupações de Ayla se tomaram mais pre mentes. Ela
não podia caçar animais de porte com os terrenos congelados, du ros como pedra. O seu
método pressupunha buracos cavados no chão. Uma grande quantidade de animais
estavam hibernando, escondidos em suas tocas com os alimentos que armazenavam.
Eles eram difíceis de ser achados, prin cipalmente por não se poder localizá-los através
do faro. Ayla não acreditava que pudesse conseguir uma quantidade suficiente de caças
para manter o leffozinho bem alimentado.
No princípio do inverno, quando a temperatura conservava os alimentos frios - só
mais tarde é que se congelavam - ela procurou matar o maior nú mero possível de
animais de porte e estocá- los nos esconderijos que construía 268 269 embaixo de
pedras empilhadas. Os movimentos das manadas no inverno lhe eram desconhecidos e,
como havia imaginado, não estava tendo muito suces so em suas caçadas. As suas
preocupações de vez em quando a deixavam sem dormir, mas nunca lamentou ter
abrigado o leãozinho. Com ele e Huiin, rara mente sentia a solidão introspectiva que, em
geral, suscitamos longos invernos. Ao contrário, as suas risadas estavam constantemente
enchendo a caverna.
Sempre que saía para pegar carne em um de seus esconderijos, Neném estava por
perto, pronto para abocanhar algum naco congelado, mal ela co meçava a remover as
pedras.
:1. - Neném, saia daqui, vamos! - dizia rindo para o leaozinho que, con torcendo o
corpo, tentava passar por entre as pedras. Depois, agarrado à car caça congelada,
levava-a arrastando pelo caminho e entrava em casa. Como se soubesse que o nicho no
funda da caverna já fora usado anteriormente por leões, fez dali um lugar privativo dele.
Era onde punha as caças apanhadas nos esconderijos que ficavam descongelando
enquanto ele, deliciado, roía um dos pedaços endurecidos de gelo. Já Ayla esperava que
a sua carne, pri meiro, descongelasse para depois cortá-la.
À medida que via o suprimento de carne nos esconderijos abaixando, cada vez mais
ela passou a vigiar o tempo. Quando por fim amanheceu um dia frio, mas claro e
brilhante, resolveu que já era tempo de sair para caçar, ou pelo menos tentar. Ela não
tinha nenhum plano particular em mente, em bora não fosse por falta de pensar.
Esperava que alguma idéia surgisse ou que a vista do local lhe sugerisse alguma
possibilidade ainda não imaginada. O que não podia era ficar esperando até que se
esgotasse toda a carne estoca da para então agir.
Logo que viu Ayla retirando os cestos que iam no lombo de Huiin, Ne ném
compreendeu que estavam de saída para caçar. Excitado, rosnando, en trava e saía da
caverna sem parar. Huiin, também feliz com a pespectiva, balançava a cabeça
relinchando. Ao chegarem às estepes, frias e ensolaradas, a tensão e as preocupações
de Ayla aos poucos foram desaparecendo, dando lugar à esperança e ao prazer de
novamente estar em atividade.
As estepes estavam brancas com uma fina camada de neve fresca que o vento
levemente agitava. No ar, sentia-se os estalidos de estática de tifo inten so era o frio, e o
sol, não fosse pela sua luz, bem podia não estar lá. A cada respiração, eles exalavam um
fiozinho de fumaça e o gelo que se formava ao redor da boca de Huiin transformava-se
numa nuvem de cristais quando ela bufava resfolegando.
Ayla dava graças por ter o seu capuz de carcaju e por todas as suas caça das que
lhe renderam as peles extras que estava usando.
Ela olhou para o leifozinho que se movia silenciosamente, com a graça sinuosa dos
felinos. Súbito, Ayla levou um susto, O corpo de Neném estava 270 quase do mesmo
comprimento que o de Huiin e ele já estava aproximando- se da altura de um cavalo. A
sua juba avermelhada também começava a for mar-se. Ayla se perguntava como pôde
tudo isso lhe ter passado despercebido. De repente Neném se pôs alerta, tenso, com o
corpo esticado para frente e o rabo apontando teso atrás dele.
Ela não estava acostumada a pegar rastos de animais no inverno, mas mesmo a
cavalo podia ver as pegadas de lobos sobre a neve. As marcas das patas estavam bem
nítidas e definidas, nem um pouco desfiguradas pelo vento ou pelo sol. Sem dúvida feitas
muito recentemente. Neném pulou à frente. Eles estavam perto. Ela pôs Huiin para
galopar e emparelhou com Neném no momento justo em que um bando de lobos cercava
um velho macho que se guia distanciado de sua manada de antílopes-saiga.
Neném também tinha visto. Sem conseguir conter a sua ânsia, correu para o meio
da alcatéia dispersando-a. Vendo a cara de decepção e surpresa dos bichos, Ayla teve
vontade de rir, mas ela não queda encorajar Neném. "Ele está agitado demais", pensou,
"faz muito tempo que não caçamos.”
Os antílopes, com os seus saltos colossais, saíram em debandada pela planície. Os
lobos tomaram a reagrupar-se e se puseram novamente em mar cha, num passo que
rapidamente os aproximaria de sua presa, mas que os deixada cansados antes de
alcançá-la. Ayla, outra vez calma, lançou um olhar firme de desaprovação a Neném. Ele
voltou a caminhar a seu lado. Não estava arrependido; havia se divertido bastante.
Enquanto seguiam a alcatéia, um pensamento foi se formando na cabe ça de Ayla.
Ela não sabia se conseguiria matar um antílope com a sua funda, mas um lobo tinha
certeza de que podia. Pessoalmente, não gostava da carne de lobo, mas já que Neném
estava com tanta fome, por que não para ele? Afinal, estavam caçando para satisfazê-lo.
Os lobos haviam apressado o passo. O antílope velho, exausto demais, não
conseguira manter-se junto da manada e estava novamente atrás. Ela jo gou o corpo
para frente, fazendo Huiin aumentar a velocidade. Os lobos, precavendo-se contra os
chifres e os cascos, cercavam o velho macho. Ayla tomava posição para atacar.
Enquanto procurava por pedras na dobra de sua roupa, ela escolheu um determinado
lobo. Quando os cascos de Huiin já esta vam perto, ela atirou violentamente uma pedra,
logo seguida de outra. A mi ra fora perfeita. Um dos lobos caiu. No princípio, ela pensou
que o rebuliço que se seguiu fosse causado pelas suas pedradas. Mas não. Era Neném
que, to mando os movimentos da funda como sinal para atacar, disparara atrás dos
animais. Só que pouco estava interessado em lobos quando tinha à sua frente um
apetitoso antílope-saiga. A alcatéia preferiu deixar o campo às corajosas investidas de
Neném e à galopada desenfreada de Huiin, com uma mulher em seu lombo brandindo
furiosamente uma funda.
271 Mas Neném não era o perfeito caçador que ele se imaginava. Ainda não.
Faltava ao seu ataque a força e a astúcia do leão adulto. Ayla precisou de um momento
para compreender a situação. "Não, Neném! Você está atacando o animal errado", disse
para si mesma. "Ora", corrigiu-se, "claro que ele está pe gando o certo." Neném,
empenhado numa luta de morte, aferrava-se ao antílope que, compelido pelo medo, havia
encontrado novas forças para fugir a toda pressa.
Ayla agarrou a lança na cesta atrás dela, enquanto Huiin, atendendo à sua
premência, correu atrás da caça. A força para correr do velho antílope, porém, não
passou do primeiro ímpeto. Ele começou a fraquejar. Huiin iogo estava cobrindo a
distância que os separava. No momento em que ficaram lado a lado, Ayla suspendeu a
lança e a arremessou, sem se dar conta da fúria de seus berros.
Ela fez a volta e retornou trotando para encontrar Neném de pé sobre o cadáver do
velho antílope. Pela primeira vez, o leão poclamava o seu feito. Embora ainda não
fossem os rugidos tonitruantes de um macho em toda a sua plenitude, o urro triunfante de
Neném já trazia a marca de sua futura força. Até Huiin assustou-se.
Ayla escorregou de seu lombo e lhe acariciou o pescoço, tranqüilizan do-a.
- Não é nada, Huiin. Você está desconhecendo Neném?
Sem pensar que o leão talvez não fosse gostar e pudesse atacá-la, Ayla empurrou-o
para o lado e se pôs a estrípar o antílope antes de carregá-lo. Ele se inclinou diante de
uma autoridade maior e também diante de alguma coi sa mais que era exclusivo a Ayla: a
confiança que o seu amor pelo animal lhe dava.
Em seguida, ela resolveu procurar o lobo para pelá-lo. Valia a pena, era uma pele
boa e quente. Ao voltar, deu com Neném arrastando a caça. Percebeu que a sua
intenção era levar o antílope até a caverna, apesar deste ser um animal adulto, bem
maior do que ele. Isso lhe deu uma nova visão de sua força e da que no futuro teria. No
entanto, se o antílope fosse arrastado por todo o caminho, a sua pele acabaria estragada.
Os antílopes-saiga, embo ra bastante difundidos, vivendo tanto nas montanhas como nas
planícies, não eram numerosos. Até então, Ayla nunca havia caçado algum e esse era
um animal que tinha para ela especial significado. Havia sido o totem de lia. Por isso
queria conservar o seu couro.
- Pare! - gesticulou para Neném. O leão hesitou apenas um momento antes de soltar
a "sua" caça. Depois foi, durante todo o caminho de volta, vigiando ansiosamente o
jorrão, onde Ayla a havia posto. O seu interesse, en quanto ela retirava a pele e os
chifres, era maior do que o costumeiro. Quando por fim lhe entregou o animal sem a pele,
ele o carregou para o seu nicho e, 272 mesmo depois de bem fartado, ainda ficou
vigilante, dormindo junto da car caça.
Ayla achou graça. Compreendia que Neném estava protegendo uma caça que lhe
era devida. Ele parecia sentir que havia algo de especial naquele antílope. Ela também,
mas por outras razões. Ainda encontrava-se excitada. A velocidade, a perseguição, a
caçada, tudo fora emocionante, mas o princi pai era que, daqui por diante, possuía uma
nova modalidade de caçar. Com a ajuda de Huiin e agora de Neném, tinha possibilidade
de caçar o ano inteiro, fosse no verão ou no inverno. Sentia- se poderosa e agradecida.
Não teria problemas em manter Neném berh alimentado.
Então, por qualquer razão que não saberia explicitar, foi dar uma olhada em Huiin. O
cavalo estava deitado, perfeitamente confiante e tranqüi lo, apesar da proximidade do
leão da caverna. Com a chegada de Ayla, Huiin levantou a cabeça. Ela afagou o animal
e, sentindo necessidade de aconchego, se deitou perto. Huiin resfolegou com brandura,
soltando uma baforada pelas narinas, feliz por ter a mulher a seu lado.
Caçar no inverno com Huiin e Neném, sem precisar cavar armadilhas, se tornou
uma diversão, um esporte. Desde os primeiros tempos, quando trei nava com a funda,
Ayla sempre adorou caçar. Cada nova técnica que vencia - rastreamento, tiro duplo,
armadilha, lançamento de lança - era uma sensação de tarefa cumprida. Mas nada
igualava às alegrias de uma caçada com um cava lo e um leão. Os animais pareciam
gostar tanto quanfo ela. Durante os prepa rativos, Ruim balançava-se sobre os cascos,
abanando a cabeça com as orelhas empinadas, enquanto Neném entrava e saía sem
parar, rosnando baixinho, impaciente. O inverno só começou a afetá-la depois que Ruim
a trouxe para casa sob uma pesada nevasca que não a deixava ver nada à sua frente.
A trinca normalmente saía pouco depois de romper o dia. Em geral, quando
acontecia avistarem logo a caça, estavam de volta antes do meio do dia. O método usado
era o de seguir a provável vítima até estarem em boa posição para atacar. Então, Ayla
dava o sinal com a funda e Neném, ansioso, já preparado, disparava à frente. Huiin,
sentindo a preméncia de Ayla, galo pava atrás. Com o leão aferrado ao lombo do animal
em pânico - sangran do-o com as suas garras e dentes, algumas vezes até matando-o - a
corrida quase nunca era muito longa. Ao chega perto, a lança de Ayla cravava na caça,
ferindo-a num golpe mortal.
No princípio, nem sempre tiveram sucesso. Ou porque o animal esco Ibido era
rápido demais, ou por Neném não conseguir agarrar firme a caça, ou então pelo fato de
que Ayla, a cavalo e galopando, ainda não ter aprendido a empunhar corretamente a sua
pesada lança. Muitas vezes ela errava o alvo e cravava a lança defeituosamente, e Ruim,
por sua parte, nem sempre conse í 273 guia uma boa aproximação. No entanto, mesmo
fracassando, o esporte era emocionante e sempre havia uma possibilidade de uma
próxima vez.
Com o tempo todos melhoraram. À medida que foram percebendo os respectivos
pontos fracos e fortes, a trinca - tão díspar em suas figuras - se tornou numa bem
entrosada equipe de caçadores, tanto que, quando Neném matou o seu primeiro animal,
a sua façanha quase passou despercebida.
Enquanto avançava a todo galope, Ayla viu que o veado que estavam caçando
cambaleava e em seguida caía. Huiin diminuiu a velocidade ao passar pelo animal
tombado. Ayla saltou do cavalo ainda andando e correu de vol ta, com a lança levantada,
pronta para terminar o serviço começado por Ne. ném, mas então se deu conta de que
nada tinha a fazer. O leão havia feito tu do sozinho. Distraidamente, ela se pôs a preparar
o veado para levá-lo à ca verna.
De repente lhe deu o estalo. Como?! Neném tão novinho e já caçador? Se
estivessem num clã isso daria a ele a condição de adulto. Tal como ela que, antes de se
tornar mulher, foi chamada "Mulher Caçadora", Neném também ficara adulto antes de
atingir a sua maturidade física. "Ele deveria ter uma cerimônia de passagem", pensou.
"Mas que tipo de cerimônia poderia Neném entender?" Ela sorriu.
Desamarrou o veado do jorrão e pôs a esteira e as traves dentro das ces tas. Já que
Neném fora o matador, a caça era dele. No início, o leão não en tendeu. Ora ia para junto
do veado morto, ora para junto de Ayla. Quando ela partiu, Neném pegou o animal pelo
pescoço e foi com ele
arrastando sob as patas por todo o caminho de volta. Primeiro até a praia, depois
pela íngreme subida no penhasco e por fim à caverna.
Após a façanha de Neném, não se notou imediatamente qualquer mu dança
significativa. Os três continuaram a caçar como sempre o fizeram. No entanto, cada vez
mais as galopadas de Huiin passavam a ser meros exercícios e a lança uma arma
desnecessária. Quando Ayla queria ficar com um pouco da carne ou guardar o couro, ela
pegava o animal antes de Neném, embora na selva a maior parte sempre fosse devida ao
macho da família. Mas Neiiém ainda era novo. Nunca passara fome, como bem atestava
o seu vigor, além do mais estava acostumado a submeter-se a ela.
Por volta da primavera, Neném começou a ausentar-se da caverna e a empreender
as suas excursões sozinho. Raramente ficava fora muito tempo, mas as saídas iam
ficando cada vez mais freqüentes. De uma destas voltou com as orelhas sujas de
sangue. Ayla imaginou que ele tivesse encontrado ou tros leões. Ela já não lhe bastava.
Neném procurava por criaturas semelhantes a ele. Depois que ela limpou-lhe as orelhas,
o leão passou o resto daquele dia seguindo-a, de tal forma que acabou incomodando. De
noite, se meteu dentro da cama de Ayla e lhe procurou os dedos para.chupar.
274 "Dentro de pouco tempo ele estará indo embora", pensou ela. "Vai querer
constituir a sua família, arrumar companheiras que cacem para ele e ter filhotes para
mandar. Bom, é disso que ele precisa." A figura de Iza veio- lhe à lembrança. ". . Você é
moça, Ayla, precisa de um homem, de alguém como você, de uma pessoa da sua
espécie. Encontre o seu povo. Encontre o seu companheiro", dissera Iza. "Logo
estaremos na primavera, eu devia estar pensando em partir. Mas ainda é cedo. Neném
vai ficar enorme, será grande até mesmo para um leão da caverna. Ele já está muito
maior que os leões de sua idade. Mas ainda não crescido de todo. Por enquanto não
conseguiria so breviver sozinho.”
A primavera seguiu-se imediatamente após uma pesada tempestade de neve. Às
inundações restringiam-lhes as saídas e as de Huiin ainda mais. Ayla podia subir às
estepes e Neném facilmente também galgava o caminho, mas para o cavalo a subida era
forte demais. Por fim, as águas retrocederam. A praia e a pilha de ossos ganharam os
seus novos contornos, e Huiin mais uma vez desceu o caminho que levava à campina.
Mas mostrava-se nervosa, irrita diça. Ayla notou que algo fora do comum estava
acontecendo quando Neném soltou um gemido por causa de um coice de Huiin. Ela ficou
surpresa. Nunca o cavalo se mostrara impaciente com o leão. No máximo umas mordidas
de vez em quando para mantê-lo na linha, mas coices jamais. Ela imaginou que o
estranho comportamento de Huiin fosse conseqüência de um longo período forçado de
inércia. No entanto, Neném à medida que crescia cada vez mais se mantinha afastado do
lugar do cavalo na caverna, consciente dos domínios de seu companheiro. Ayla ficou
curiosa, O que teria atraído o leão para lá? Quando foi verificar, percebeu um cheiro forte
que vagamente vinha sentin do por toda a manhã, sem prestar atenção. Huiin tinha a
cabeça abaixada, as patas traseiras afastadas e o rabo voltado para o lado esquerdo - A
sua abertu ra vaginal mostrava-se intumescida e latejante.
Ela levantou os olhos para Ayla, soltando um relincho agudo.
Ayla se viu tomada por um mundo de emoções que a levavam de um extremo a
outro. A primeira foi a de alívio. "Bom, então é esse o problema", disse para si mesma.
Ela conhecia os períodos de cio dos animais. Em alguns, a época de acasalamento se
fazia com mais freqüência, já para outros, como os de pastagem, o normal era se dar
uma vez por ano. Estavam justamente na estação quando os machos brigam pelo seu
direito de acasalar e quando eles se misturam com as fêmeas, mesmo que os seus
hábitos, fora deste período, fossem o de viver separadamente.
A estação de acasalamento era um dos aspectos de comportamento ani mal que
mais a intrigavam, tal como o dos cervos que perdem os seus chifres para tê-los todos os
anos crescendo cada vez maiores e resistentes. Era sobre 275 este tipo de coisa que ela,
quando criança, costumava fazer um mundo de per guntas a Creb. Ele se queixava dela
por isso. Mas Creb também não sabia por que os animais se acasalavam. Certa vez, no
entanto, condescendeu em responder dizendo-lhe que assim o faziam porque nessa
época os machos fazem valer a sua superioridade sobre as fêmeas, ou talvez, disse ele
também, porque como as pessoas, os machos tivessem de aliviar as suas necessidades.
Ruim já havia tido uma época de acasalamento na primavera passada, mas então
não pôde ir ao encontro do garanhão que relinchava nas estepes, acima da caverna.
Desta vez, a necessidade de Fluiin parecia mais premente. Ayla nunca a vira tão inchada
e ganindo tanto. Ruim se deixou abraçar, tor nou a abaixar a cabeça, pondo-se outra vez
a ganir.
Subitamente, Ayla sentiu o estômago embrulhado, apertando-se num nó de
ansiedade. Ela apoiou- se em l-Iuün, tal como quando se sentia triste ou com medo. Ruim
fria deixá-la! Era tão inesperado. - - no entanto, ela deveria estar contando com uma
coisa desta. Ficara pensando no seu futuro, no de Neném, e se esquecido de que a
época de acasalmento de l-Iuiin estava para chegar. A égua precisava de um garanhão,
de ter o seu companheiro.
Com muita relutância, saiu da caverna e fez sinal para que Huiin a seguisse. Ao
atingirem a praia abaixo, Ayla montou. Neném tentou segui-la, mas ela lhe deu ordem
para ficar. Não queria o leão por perto naquela situa ção. Não estava saindo para caçar,
mas Neném não podia saber disso. Foi pre ciso que lhe desse uma segunda ordem, num
gesto firme e incisivo para que ele se mantivesse no lugar, olhando-a se distanciar com a
égua.
Nas estepes fazia frio e calor ao mesmo tempo. De meio-dia em diante o sol das
profundezas de um céu azul-pálido ardia cingido por um halo nebu lento, O azul parecia
esmaecer-se, esbranquiçado com a intensidade da luz. A neve derretida vaporizava-se
numa fina camada de neblina que, se não tirava a visibilidade, suavizava as abruptas
angulosidades, enquanto nas sombras frias e úmidas o ruço se adensava aplainando
contornos. A perspectiva era inexistente. Toda a vista achava-se compactada,
emprestando à paisagem um imediatismo, um sentido de presente, de aqui e agora,
como se não houvesse outros tempos, outros lugares. Objetos distantes pareciam estar a
poucos passos; no entanto, para alcançá-los, seria uma eternidade.
Ayla não gi.iiava o cavalo, deixava-se conduzir, apenas inconscientemen te ia
tomando nota do rumo e de certas indicações do terreno. Pouco lhe im portava para onde
estava indo e nem tomava conhecimento de suas lágrimas salgadas que tornavam mais
nebuloso ainda o ambiente à sua volta. Ela se sentava bambamente, com o corpo
sacolejando e os pensamentos todos vol tados.para dentro de si. Lembrava-se da
primeira vez que avistara o vale e da manada de cavalos pastando na campina. De
quando ela tomara a resolução de lá permanecer e de sua necessidade de caçar.
Recordou-se, então, do dia em que levara Ruim para viver com ela, dando-lhe a
segurança de ijma fogueira e de uma caverna. Doía-lhe pensar que isto não iria durar
muito, que mais dia menos dia Ruim voltaria para o seu meio, como ela própria teria de
fazer.
Ruim mudou de passo, despertando a atenção de Ayla. A égua tinha achado o que
procurava. Mais à frente,estava uma pequena manada de cavalos.
O sol derretera a neve que cobria uma pequena colina, deixando à mos tra os brotos
verdes que começavam a despontar da terra. Os animais, loucos para trocar o capim
seco da última safra por um outro tipo de comida, mordiscavam os rebentos frescos e
suculentos. Ruim parou, quando os outros cavalos olharam na sua direção. Ayla ouviu o
relinchar de um garanhão. Olhando para o lado, ela o avistou numa pequena elevação do
terreno. Era num tom escuro de marrom- avermelhado, com a crina, o rabo e as pontas
das patas pretos. Nunca vira um cavalo com cores tão escuras. A maioria possuía
tonalidades claras, quase sempre de cinza, marrom e bege. Ou então como Ruim,
amarelo cor de palha.
O garanhão relinchou e levantou a cabeça encrespando o lábio superior. Então
galopou na direção de Ruim, parando à pequena distância, pondo-se a escavar o chão
com as patas. O pescoço estava arqueado, o rabo levantado. A ereção era esplêndida.
Huiin relinchou em resposta. Ayla escorregou de seu lombo e lhe deu um abraço,
afastando-se em seguida. A égua voltou a cabeça, olhando para a mulher que havia
cuidado dela desde que era uma pobre potranquinha indefesa.
- Vá com ele, Ruim. Você encontrou o seu companheiro. Vá!
Ruim sacudiu a cabeça, relinchou timidamente e encarou o magnífico garanhão. Ele
se pôs atrás dela e, mordiscando-lhe as ancas, conduziu-a para perto de sua manada,
como se ela fosse uma fujona impenitente. Ayla, sem conseguir mover-se do lugar, ficou
observando. Quando o garanhão trepou sobre Ruim, ela não pôde deixar de pensar em
Broud, lembrando-se da dor horrível que sentira. Com o tempo deixou de doer, ficou só
desagradável, mas sempre odiou as trepadas de Broud. Deu graças por ele ter acabado
can sando-se e desistindo.
No entanto, lá estava Ruim que, apesar de todos os seus gemidos, não procurava
escapar do garanhão. Ayla, observando-os, sentia estranhas vibra ções dentro de seu
corpo, sensações que não sabia explicar. Não conseguia tirar os olhos do cavalo baio
que, com as patas passadas por cima do lombo de Ruim, bombeava, retorcia-se e
berrava. Ela se percebia quente, molhada en tre as coxas, palpitando ao ritmo dos
movimentos do garanhão e incompreen sivelmente desejosa. Com a respiração ofegante
e o coração ecoando-lhe na ca beça, ansiava ardentemente por alguma coisa que não
conhecia.
Depois de haverem terminado, Ruim espontaneamnente seguiu o seu ma cho, sem
ao menos voltar a cabeça para Ayla. Ela achava que não fosse agüentar 276 277 o vazio
imenso que sentia dentro de si. Percebeu, então, a fragilidade do mun do que construíra
no vale, o quão efêmera fora a sua felicidade e que existên eia precária levava. Deu as
costas e começou a correr de volta ao vale. Correu até que o coração parecesse estourar
e que a dor nas ilhargas ficassem como punhaladas. Esperava que, de alguma forma,
correndo, a sua imensa tristeza e solidão ficassem para trás.
Na encosta que levava ao vale tropeçou e rolou pelo morro abaixo. On de parou,
ficou, exausta e arquejante. No entanto, não se moveu depois que a respiração serenou.
Não desejava sair do lugar. Para que? Ela estava amaldi çoada, não estava?
'Por que eu não posso simplesmente morrer? Como de fato deveria es tar? Por que
tenho de perder sempre tudo o que eu amo?" Ela sentiu um há lito quente e uma língua
áspera lambendo o sal das lágrimas em suas boche chas. Abriu os olhos, dando com um
enorme leão dzcaverna.
- Neném! - gritou, estendendo os braços.
O leão escarrapachou-se ao seu lado e apoiou as patas dianteiras sobre ela. Ayla
virou-se e abraçou seu pescoço, enterrando o rosto na juba.
Quando chorou tudo o que tinha de chorar, quis levantar-se, mas sentiu as
conseqüências do tombo. Mãos escalavradas, joelhos e ombros arranhados, o queixo e o
quadril machucados e o rosto do lado direito inflamado. Capen gando, voltou para a
caverna. Enquanto tratava dos machucados, a razão aos poucos foi voltando. "E se eu
tivesse tido uma fratura? Sem ninguém para me socorrer, isso seria pior do que a morte.”
"Mas eu não tive. Se o meu totem quer que eu viva, ele deve ter um mo tivo para
isso. Talvez o espírito do Leão da Caverna me tenha enviado Neném porque sabia que
um dia Huiin fria embora.
"Mas Neném também irá. Não levará muito tempo para que queira ter a sua
companheira. E ele encontrará uma, mesmo que não tenha sido criado no meio de outros
lenes. Será tão grande e forte que vai poder defender um bom território para ele. Além
disso, Neném é bom caçador. Nunca irá passar fome enquanto estiver procurando pela
sua família... ou por uma leoa.”
Ela esboçou um leve sorriso irônico, "Quem me visse, pensaria que eu sou uma
mamãe dos clãs, preocupada com que o filho cresça para se tornar num forte e valente
caçador. Ora, mas afmal Neném não é meu filho. Ele é só um leão, um leão qualquer.. .
qualquer não. Ele está quase do tamanho de um leão adulto, já caçou, e os outros de sua
idade nunca fizeram isto. Mas vai embora. - - vai me deixar também.”
'Durc já deve estar grande. Ura também está crescendo. Oda vai ficar triste quando
a sua filha se tornar a companheira de Durc e for viver no clã de Brun. De Brun, não.
&ora, clã de Broud. Quanto tempo será que ainda falta para uma nova reunião de clãs?”
Ela pegou, atrás de sua cama, um feixe de varas cobertàs de ranhuras. Ainda
continuava colocando todas as noites uma marca assinalando a passa gem do tempo.
Tomara-se um hábito, um ritual. Ela desatou o feixe e esparra mou as varas no chão.
Tentou contar os dias, desde que chegara ao vale. Pro curava ajustar os dedos às
ranhuras, mas eram marcas demais, muitos dias que haviam passado. Ela sentia que as
marcas se deviam juntar e somar de uma maneira que não sabia como. Era tão
frustrante. . . Percebeu, então, que não precisava das marcas. Poderia pensar nos anos,
contando as primaveras passa das. "Dure nasceu na primavera que antecedeu a última
reunião de clãs", dis se para si mesma. "A primavera seguinte fechou o ano de seu
nascimento." Ela fez uma marca no chão. "O outro ano foi aquele em que ele andou." Ela
pôs mais outra marca no chão. "A primavera seguinte seria o fim do período de sua
amamentação e o inicio do ano em que ele foi desmamado. - - só que já não estava mais
mamando." Ela fez o terceiro traço na terra.
"Foi quando eu parti", pensou, engolindo em seco e pestanejando os olhos
lacrimosos. "Nesse verão, achei o vale e Fluiin. Na primavera seguinte, encontrei
Neném." Ela riscou no chão a quarta marca. "E nesta primavera agora..." Ela não queria
pensar na partida de Huiin como um acontecimento que lembrasse o ano, mas era um
fato. Fez a quinta marca.
"Esses traços são todos os dedos de uma das mãos", pensou, suspenden do a mão
esquerda. "E essa quantidade é a que Durc tem agora." Ela juntou o polegar e o indicador
da direita aos dedos da esquerda. "E é também. a quanti dade para a próxima reunião de
clãs. Quando eles voltarem para casa, Ura virá junto para ser a companheira de Durc. Os
dois ainda não terão idade para se juntarem, mas todo mundo quando olhar para ela vai
ver que Ura foi feita para ele. Será que o meu filho ainda se lembra de mim? Será que
Durc nasceu com as memórias das pessoas dos das? Até que ponto ele se parece
comigo? E de Broud, o que terá? Será que vai ficar mais parecido com a gente dos elas?”
Ela tomou a juntar as varas e reparou na regularidade do número de marcas entre
as ranhuras adicionais que fazia quando o seu espírito entrava em luta, causando o seu
sangramento. "Qual espírito de homem viria aqui lu tar com o meu? Mesmo que o meu
totem fosse um ratinho, jamais eu ficaria grávida. Para se formar um bebê é preciso que
haja um homem com o seu ór gão. É isso que eu penso.”
"Fluiin! Será que era isso o que o garanhão estava fazendo com você? Será que ele
vai formar um bebê em você, }-luiin? Talvez algum dia vá encon trá-la com a sua manada
e então saberei. Oh, Huiín, vai ser maravilhoso. .
O pensamento da égua com o garanhão fé-la estremecer e a sua respi ração ficou
um pouco apressada. Mas logo a figura de Broud se interpôs, ter minando com as suas
boas sensações de prazer. ". - - Foi o órgâo dele que for-
278 279 mou Durc. Se Broud soubesse que iria dar um beM para mim, jamais teria
fei to isso. E Durc formará um em Ura. Ela também não é deformada. Acho que Ura foi
começada pelo homem dos Outros que forçou Oda a ter relações com ele. Ura é perfeita
para Durc. Ela tem uma parte dos das e uma parte desse homem dos Outros. Um homem
dos Outros Ayla se via inquieta. Neném saíra e ela sentia necessidade de se movi
mentar. Saiu, então, e caminhou até a linha de arbustos junto ao rio. Nunca fora tão
longe, embora com Huiin já houvesse estado naquele lugar. Ela tinha de se acostumar
novamente a caminhar e também a carregar a sua cesta nas costas. Chegando à outra
extremidade do vale, passou a seguir o rio que con tornava o alto do penhasco para
seguir na direção do sul. Logo após a curva, as águas redemoinhavam ao redor de
pedras tão perfeitamente espaçadas na forma de um caminho que pareciam ter sido
postas lá de propósito. Naquele ponto, o íngreme paredifo rochoso era apenas uma
elevação no terreno. Ela subiu e olhou do alto as estepes do lado ocidental.
Não havia nenhuma diferença marcante entre a planície do leste e a do oeste, salvo
o fato do terreno a oeste ser ligeiramente mais acidentado e ela não estar tifo
familiarizada com este lado. Fez, então, a volta, cruzou o rio e caminhou toda a extensão
do vale para subir à sua caverna.
Já era quase noite quando chegou. Neném ainda não estava lá. A foguei ra achava-
se apagada, e a caverna fria e solitária. Parecia mais vazia ainda do que quando entrou
lá pela primeira vez. Acendeu a fogueira e ferveu água para tomar chá. Não tinha vontade
de cozinhar. Pegou um pedaço de carne seca, algumas passas de cereja, e foi sentar-se
na sua cama. Há muito tempo não fica va sozinha na caverna. Então se levantou e foi
remexer na sua velha cesta de viagem, onde acabou encontrando a manta de carregar
Durc. Embrulhou-a co mo um bolo e ficou apertando contra o peito, enquanto olhava
fixamente para o fogo- Ao se deitar enroscou-se nela.
O sono foi perturbado por pesadelos. Sonhou com Durc e Ura,já cres cido e vivendo
juntos. Sonhou com Huiin num outro lugar, acompanhada por um cavalinho baio. Depois
acordou suando, cheia de medo. Só quando estava perfeitamente acordada é que se deu
conta de que tivera o seu pesadelo de sempre: a terra tremendo e espalhando pânico.
Por que volta e meia lhe sobre- vinha esse sonho?
Levantou-se, remexeu na fogueira atiçando o fogo, e botou o chá para esquentar.
Depois ficou bebericando. Neném ainda não estava lá. Pegou a manta de Durc,
lembrando-se outra vez da história de Oda com o homem dos Outros. ". - Oda disse que
ele se parecia comigo. Um homem como eu, como seria?'' Tentando visualizá-lo, ela
procurava recordar-se de suas próprias feições que uma vez vira refletidas num lago,
mas tudo que conseguia lembrar era do cabelo emoldurando-lhe o rosto. Ela, naquela
ocasião, os usava soltos, sem as tranças que agora fazia para ficar com o rosto livre. Era
um cabelo amarelo, como o pêlo de Huiin, só que num tom mais forte, mais dourado.
Sempre que tentava pensar no rosto de um homem dos Outros, apare cia-lhe diante
dos olhos a cara de Broud com o seu sorriso cruel e escarnece- dor. Não. Era impossível
imaginar o rosto de um homem dos Outros. Os seus olhos começaram a pesar e ela
voltou a deitar-se. Desta vez sonhou com Huiin junto do garanhão baio. Depois com um
homem. As suas feições eram indis tintas, estavam escondidas por sombras. Apenas
uma coisa aparecia nítida: ele tinha os cabelos amarelos.
- \Jocê está indo muito bem, Jondalar.
Ainda vamos fazer de você um homem do rio - falou Carlono. - Num barco grande
não tem muita importância se você perder uma remada. O pior que po de acontecer é
atrapalhar o ritmo dos outros, já que você não é o único re mador. Agora, em barcos
pequenos como este, o controle é importante. Fa lhar uma remada pode ser muito
perigoso e até fatal. Nunca deixe de prestar atenção no rio. Não se esqueça de que ele é
imprevisível. Aqui parece calmo porque é profundo. Mas basta você mergulhar um pouco
o remo para perce ber a força da correnteza. É difícil lutar contra ela, precisa-se de jeito.
Enquanto manobravam a pequena piroga de dois homens nas proximi dades da
doca dos ramudoi, Carlono prosseguia nos seus comentários. Jonda lar ouvia
vagamente. Estava mais preocupado com o manejo de seu remo e em levar o barco na
direção certa. Os seus músculos, entretanto, estavam atentos ao sentido da conversa de
Carlono.
- Você pode pensar que seja mais fácil descer o rio porque não precisa lutar contra a
correnteza. Mas aí é que está justamente o problema. Quando você vai contra o fluxo das
águas, você tem a sua atenção constantemente presa ao barco e ao rio, pois sabe que,
se esmorecer, perde tudo o que ganhou. Além disso você tem tempo para desviar de
alguma coisa que de repente sur ja na sua frente. Já descendo, é fácil você afrouxar o
ritmo e se deixar levar pelos seus pensamentos ao mesmo tempo que as águas vão
arrastando-o. Mas o leito do rio está cheio de pedras e muitas assentadas bem no fundo.
A cor- 15 280 281 renteza pode atirá-lo para cima de uma delas, antes mesmo que você
se dê conta. Outras vezes são toras encharcadas, meio submersas, que podem dar um
encontrão no barco quando menos se está esperando. "Nunca dê as cos tas para a Mãe
Essa é uma regra que não pode ser esquecida. A Mãe é cheia de surpresas. Quando
você mais acha que tem tudo sob controle, que está tu do certo, é que ela se sai com
alguma coisa inteiramente inesperada.
O velho relaxou o corpo e pôs o remo para fora da água. Com ar pensa tivo,
examinava Jondalar, reparando na concentração do rapaz. Os cabelos louros estavam
puxados para trás e amarrados na nuca por uma tira de couro, se revelando uma boa
medida. Jondalar havia adotado os trajes dos ramudoi, igual aos dos shamudoi, apenas
com algumas modificaç de modo a torná lo mais apropriado à vida na ribeira.
- Por que você não vai para a doca e me deixa lá, Jondalar? Acho que já é tempo de
você experimentar sozinho. É diferente quando está só a pessoa e o rio.
- Você acha que já estou preparado para isto?
- Para alguém que não nasceu nisso, até que aprendeu muito depressa.
Jondalar estava doido para pôr à prova as suas habilidades de remador. Os garotos
raxnudoi geralmente tinham as suas pirogas antes de se tomarem homens feitos. Entre
os zelandonii, há muito ele já se provara como homem. Quando era pouco mais velho do
que Darvo, antes mesmo de haver aprendido o seu oficio e de se tomar rapaz, já tinha
matado o seu primeiro cervo. E ago ra era capaz de atirar uma pesada lança mais longe
do que a maioria dos ho mens. No entanto, ali não se sentia à altura dos outros, se bem
que na planí cie fosse bom caçador. Nenhum ramudoi podia considerar-se
verdadeiramente homem enquanto não houvesse arpoado um bom esturjão, tal como na
terra nenhum shamudoi seria digno de ser chamado homem se não tivesse matado uma
camurça nas montanhas.
Jondalar decidira que só tomaria Serenio para companheira depois que tivesse
provado a si mesmo que tinha condições de ser tanto um shamudoi co mo um ramudoi.
Dolando tentara convencê-lo de que não havia necessidade de nenhuma das duas
coisas. Ninguém duvidada dele. Se alguém quisesse al guma prova, a caçada do
rinoceronte era mais do que suficiente. Jondalar fica ra sabendo que até então eles nunca
haviam caçado rinocerontes. A planície, em geral, não era o terreno deles.
Jondalar não sabia e nem procurava entender o porquê dessa sua neces sidade de
se provar melhor do que alguém. Até então nunca se sentira obriga do a sobrepujar os
efeitos dos outros caçadores. O seu maior interesse eram instrumentos de pedra e, na
verdade, a única coisa em que gostava de sobres sair era no seu ofício de ferramenteiro.
Mas não num sentido competitivo. En contrava imensa satisfação pessoal em trabalhar e
desenvolver a sua técnica.
Mais tarde, numa conversa particular com Dolando, o shamud comentou com esse
que o homem dos zelandonii agia dessa maneira devido à sua necessidade de se ver
aceito.
Há tanto tempo já estava vivendo com Serenio, que ele sentia necessida de de
formalizar a sua união. Praticamente ela já era sua companheira. A maioria das pessoas
pensava nos dois nesses termos. Ele a tratava com conside ração e afeto e, para Darvo,
era o homem da casa. Mas depois da noite em que Tholie e Shamio se queimaram,
sempre surgia uma coisa ou outra que parecia interferir, além de que lhe estava faltando
um certo estado de espírito. Fera tão fácil ir levando a vida com ela. Será mesmo que
precisava? Perguntava-se ele.
Serenio não pressionava. Continuava sem exigir nada e como sempre mantendo-se
em sua reserva defensiva. Entretanto, nos últimos tempos, Jon dalar surpreendia-a
olhando para ele, de forma persistente, com um olhar pa recendo brotado nas
profundezas de sua alma. Era ele quem ficava desconcer tado e o primeiro a desviar a
vista. Resolveu, então, impor-se a tarefa de pro var que poderia ser um perfeito
sharamudoi e deixou que suas intenções ficas sem conhecidas de todos. Alguns viram
isso como um anúncio de compromis so, embora nenhuma festa fosse dada para
celebrar o acontecimento.
- Não vá muito longe por enquanto - avisou Carlono quando saía da pequena canoa.
- Primeiro procure aprender a manobrá-la sozinho. Dê essa chance a você.
- Vou levar o arpão comigo. Já que estou nisso, não faria mal se apren desse
também a usá-lo - falou Jondalar, indo buscar a arma que se achava na doca. Ele a
acomodou no fundo da canoa, debaixo dos assentos e junto enro lou a corda. Em
seguida, a ponta farpada do osso no suporte fixado na amura da, amarrando-a por baixo.
A extremidade de um arpão com sua afiada ponta provida de farpas não era coisa que se
deixasse solta num barco. Em caso de acidente, seria tão difícil arrancá-la das carnes de
um peixe como das de uma pessoa. Raramente as pirogas que viravam iam ao fundo,
mas a tralha que le vavam ia.
Jondalar instalou-se no assento traseiro, enquanto Carlono segurava o barco.
Quando sentiu que o arpão estava amarrado bem firme, ele pegou o re mo de duas pás e
deu a partida. Sem o lastro de outra pessoa sentada à frente, a pequenina embarcação
navegava mais à superfície - Era difícil manobrá-la, mas uma vez acostumado com o
novo empuxo de flutuabilidade, ele rapida mente deslizou pelo rio abaixo, usando o remo
apenas como leme, posto do lado de fora, perto da popa. Resolveu, então, remar rio
acima. Seria mais fá cil lutar contra a correnteza enquanto estava ainda descansado e
depois deixar que ela o arrastasse de volta.
Ele havia descido o rio, bem mais do que imaginara. Quando viu a doca .t.
282 283 aproximando-se, por pouco não se dirigiu para lá, mas mudou de idéia e se
guiu adiante. Estava decidido a vencer todos os desafios que estabelecera para si, e
esses eram muitos. Com isso ninguém - sobretudo ele mesmo - poderia acusá-lo de estar
ganhando tempo e protelando o compromisso que prometera assumir. Sem diminuir o
ritmo, sorriu para Carlono que lhe acenava.
Mais acima o rio alargava e a correnteza perdia um pouco de sua força, ficando mais
fácil remar. Ele avistou na- margem oposta uma faixa de areia e se dirigiu para lá. Era
uma pequena praia sombreada por salgueiros. Remou para perto, passando com o seu
barco facilmente sobre os bancos de areia. En tão relaxou um pouco, permitindo que o
barco deslizasse de costas, governan do-o com o remo. Distraidamente observava a
água quando, subitamente, teve a atenção despertada para uma forma grande e
silenciosa sob a superfície.
Ainda estava cedo para esturjões. Normalmente subiam o rio no princí pio do verão,
mas a primavera chegara quente e prematuramente, com pesa dos aguaceiros. Ele olhou
mais de perto e enxergou outros peixes, enormes, deslizando suavemente sob a água.
"Eles estão emigrando!" Era a sua grande chance. 'Poderia pegar o primeiro esturjão do
ano!”
Levantou o remo e pegou as partes do arpão para armá-lo. Sem contro le, a canoa
volteou, levada ligeiramente de banda pela correnteza. Quando ele amarrou a corda na
proa, a piroga estava enviesada na correnteza, mas firme. Impaciente, aguardou a
chegada dos próximos peixes. Não ficou desapontado. Uma enorme forma escura
ondulava na sua direção. Agora sabia de onde viera o "peixe Haduma" e do tamanho do
Haduma havia uma quantidade ali.
Pescando com os ramudoi, Jondalar aprendeu que a água desvirtua a verdadeira
posição do peixe. O animal nunca está onde parece estar. Essa foi uma maneira que a
Mãe usou para esconder os peixes, até que um dia teve o seu segredo revelado. Quando
o esturjão se aproximou, ele ajustou bem a sua pontaria de modo a compensar a refração
da água. Jogou o corpo um pouco para o lado, esperou e lançou o arpão da proa.
Com igual força, o pequeno barco foi jogado na direção oposta: da posi ção
enviesada em que se achava para a correnteza central. Mas Jondalar acer tara no alvo. A
ponta do arpão ficara enterrada no gigantesco esturjão. . - só que um tanto
duvidosamente. O peixe estava longe de se dar por vencido. Ele procurou as águas mais
profundas do meio do rio, nadando contra a corrente. A corda rapidamente se
desenrolou, até que, com um forte puxão, se retesou na água.
A canoa sacolejou, quase atirando Jondalar para fora. Enquanto ele ten tava
agarrar-se à amurada, o remo pulou, ficou por instante balançando e caiu na rio. Jondalar
soltou as mãos e foi debruçar-se para apanhá-lo. A canoa vi rou. Neste momento, o
esturjão, encontrando a corrente central para subir o rio, miraculosamente dá um
encontrão na canoa, endireitando-a e jogando Jondalar - agarrado ao casco - para
dentro. Ele se sentou, esfregando um fe rimento em seu queixo, enquanto a piroga era
rebocada, águas acima, numa velocidade que jamais ele conhecera na vida.
Agarrado na amurada, chegou para frente, vendo as margens desfilarem pelos seus
olhos esbugalhados, pasmos de admiração e medo. Ele apanhou a corda esticada dentro
da água e lhe deu alguns puxões, achando que poderia arrancar o arpão. Ao invés disso
conseguiu que a proa fosse para baixo, mer gulhando tanto que chegou a entrar água
dentro da canoa, O esturjão saraco teava, jogando a pequenina embarcação de lá para
cá, enquanto Jondalar, pre so à corda, gingava o corpo de um lado para outro.
Ele não viu quando passaram pela clareira onde se achavam os barcos em
construção e nem enxergou as pessoas na praia, olhando, de boca aberta, a piroga
subindo o rio no rasto de um enorme peixe, com Jondalar agarrado a uma corda e
lutando para desvencilhar o arpão.
- Vocês viram aquilo? - perguntou Thonolan. - O meu irmão indo atrás de um peixe
fugindo? Acho que não me falta mais nada para ver nesse mundo - o seu sorriso
transformou-se numa gostosa risada. - Vocês viram Jondalar pendurado naquela corda,
tentando soltar aquele peixe? - dizia dan do tapas nas coxas, sem se agüentar de tanto
rir. - Ele não pegou um peixe. O peixe é que o pegou.
- Thonolan, isso não tem graça nenhuma - falou Markeno, fazendo força para se
manter sério. - O seu irmão está em dificuldade.
- Disso sei eu. Mas vocês viram? Ele, subindo o rio, arrastado por um peixe?
Thonolan, ainda rindo, ajudou Markeno e Barono a suspender um barco para colocá-
lo dentro da água. Também Dolando e Carolo entraram. Eles de ram a partida e se
puseram a remar o mais rápido que podiam no sentido da montante. Jondalar estava em
dificuldade. Podia estar realmente em perigo.
O esturjão já não se mostrava com muita força. O arpão estava consu mindo-lhe a
vida, e mais o barco e o homem que ele arrastava junto. Avertigi nosa corrida começava
a perder a sua impetuosidade. Isso deu tempo para Jondalar pôr as idéias em ordem. Ele
continuava sem qualquer controle. Não tinha noção do lugar em que poderia parar. Havia
subido demasiadamente o rio- Achava que nunca havia ido tão longe, desde que lá
chegara em meio a uma tempestade de neve e ventos ululando à sua volta. De repente
ocorreu-lhe que poderia cortar a corda. Não tinha cabimento ser arrastado para terrenos
tão distantes.
Ele soltou a mão da amurada para pegar a faca. Enquanto tirava-a da bainha, o
esturjão, reunindo as suas últimas forças, tentou livrar-se das dolo rosas farpas cravadas
em sua carne - O peixe se debatia e lutava com tamanha violência que a proa o
acompanhava em cada um de seus mergulhos. Embor 284 285 cada, a canoa ainda
flutuaria, mas virada para cima e cheia de água iria ao fun do. Em meio a balanços,
mergulhos e sacolejos, Jondalar se esforçava para cortar a corda. Com isso só foi ver a
tora enchatcada que vinha na direção de le, arrastada a toda velocidade pela correnteza,
quando ela se chocou contra a canoa, arrancando-lhe a faca da mão.
Ele logo se recuperou. Procurou dar um puxão na corda, de modo a afrouxá-la.
Assim talvez a canoa não mergulhasse tifo perigosamente. Num derradeiro e
desesperado esforço para se libertar, o esturjão arremessou-se na direção da margem,
conseguindo finalmente expulsar o arpão de sua carne. Mas era tarde demais. Os últimos
vestígios de vida escoaram pelo rasgão aber to em seu flanco. A enorme criatura foi ao
fundo do rio para, em seguida, vol tar à tona e, de barriga para cima, ainda estremecer-se
pela última vez, dando testemunho da prodigiosa luta travada pelos primitivos peixes.
O rio, em seu longo e sinuoso curso, fazia uma pequena curva no lugar em que o
esturjão escolheu para morrer, lá criando um conflito de correntezas na curva e no
remanso redemoinhoso perto da praia, para onde o último mer gulho do esturjão o levara.
A canoa, puxando uma corda bamba, balançava batendo contra o peixe e a tora que com
ele dividia a última morada no espa ço entre o remanso e o fluxo das águas.
Nesse meio tempo Jondalar pensava na sorte que tivera por não haver cortado a
corda. Sem remo, não conseguiria controlar a canoa se ela começas se a descer o rio. A
praia estava perto: uma estreita faixa rochosa que se enco lhia ao redor da curva para
formar um íngreme barranco com árvores tifo per to da margem que as raízes nuas
irrompiam pela terra, como se quisessem agarrar o ar para suporte. Talvez ele pudesse
arrumar lá qualquer coisa que lhe servisse de remo. Preparou-se para mergulhar.
Respirou profundamente e sal tou para fora da canoa.
Era mais fundo do que esperava. O seu corpo estava todo mergulhado e, com os
seus movimentos na água, a canoa se mexeu pegando o rumo da cor rente central,
enquanto o peixe veio para mais perto da praia. Jondalar come çou a nadar atrás da
pirga, tentando agarrar a corda. Mas a barquinha, muito leve, mal roçava a superfície,
indo embora com rodopios, saltitante, numa ve locidade muito maior do que a dele.
A água gelada deixava o seu corpo dormente. Ele se virou na direção da praia e se
dirigiu para o esturjão que, batido pelas correntes, era atirado con tra o barranco. Ele o
agarrou pela boca e o arrastou. Não havia motivos para que fosse abandoná-lo. Puxou-o
só um pouco para dentro da praia, pois estava muito pesado, mas esperava que a água
não chegasse lá. "Bom", pensou, "sem barco não preciso mais de remo, mas talvez
possa arranjar um pouco de lenha para fazer uma fogueira" Ele estava encharcado e
morrendo de frio.
Quando foi pegar a sua faca só encontrou uma bainha vazia. Esquecera que a havia
perdido no rio e outra não possuia. Tinha o costume de carregar uma faca extra na sacola
que levava amarrada à cintura, mas isso no tempo em que usava os seus trajes
zelandonii. Desistira da sacola quando passou a vestir- se à maneira rarnudoi. Talvez
conseguisse uma tábua e um pau para fazer fogo. Mas como cortar madeira sem uma
faca? E gravetos? E acendalhas, co mo raspá-las nas plantas? Estava tremendo de frio.
"Bom, pelo menos ajuntar um pouco de lenha eu posso.”
Ele olhou ao seu redor, escutando o banilho de qualquer coisa correndo no meio do
mato. O chão era musguento, coberto de folhas e madeira podre. Nenhum galho seco por
ali. "Mas você pode conseguir lenha miúda", pensou, enquanto olhava procurando por
pinheiros para pegar os galhos secos que fi cam presos sob as ramagens verdes. Mas
aquela não era uma floresta de pinhei ros como as que existiam em sua terra. O clima ali
era mais ameno. Não sofria tanto as influéncias das geleiras do norte. Era frio, mas
úmido. Uma floresta de clima temperado e não boreal. As árvores eram aquelas com que
se fabrica vam os barcos: de madeira dura.
Ao redor dele encontrava-se uma floresta de carvalhos e faias com uns tantos p de
salgueiros e carpas: árvores de grossos troncos cascudos e mar rons, ou, se fossem
mais finos, com cascas cinzentas e macias. Mas lenha miú da mesmo não havia
nenhuma por ali. Era primavera, até mesmo os brotos es tavam cheios de seiva, deitando
botões. Ele já havia aprendido um pouco e sa bia que não era fácil 'cortar aqueles galhos
rígidos e resistentes, mesmo com um bom machado de pedra. Novamente estava
tremendo e batendo com os dentes. Procurava aquecer-se esfregando as palmas das
mãos uma na outra, mexendo com os braços e correndo sem sair do lugar. Outra vez
escutou o ba rulho no matagal perto. "Deve ser algum animal que estou incomodando", •
disse para si mesmo.
Foi, então, que pensou na seriedade de sua situação. "Sem dúvida irão sentir a
minha falta e virão me procurar. Thonolan iria reparar que não estou lá. Ou será que
não?" Os seus caminhos cada vez se cruzavam menos, princi palmente porque Jondalar
estava mais envolvido com o modo de vida dos ra mudoi, enquanto Thonolan cada vez
mais se transformava num autêntico sha mudoi. Jondalar nem sabia por onde andava o
seu irmão naquele dia, talvez caçando camurça.
"Bom, Carlono viria. Viria mesmo? Afinal, ele me viu subindo o rio na canoa. - - Hi, a
canoa! Ela escapuliu!", pensou, estremecendo-se, mas não de frio. "Se encontrarem a
canoa sozinha, vão pensar que eu me afoguei. Por que me viriam procurar se estão
achando que morri afogado?" Novamente ele se pôs a pular, batendo com os braços e
correndo sem sair do lugar. Nada o fazia parar de tremer e ele já começava a ficar
cansado. Não era possível continuar pulando indefinidamente.
286 287 Sem fôlego e tiritando violentamente, sentou-se no chão com o corpo
enroscado, tentando manter- se aquecido. Outra vez ouviu o mesmo barulho, agora mais
perto. Preferiu ignorar. Mas então surgiu-lhe diante dos olhos um par de pés, sujos,
descalços e. . - humanos.
Ao levantar os olhos, foi tamanho o susto que quase deixou de tremer. Em frente
dele, a uma pequena distância, estava uma criança com dois enor mes olhos castanhos
escondidos pelos supercilios extremamente salientes. Um cabeça-chata! Um garoto
cabeça-chata!
Ele se via alvoroçado com a surpresa e quase esperava que o animalzi nho corresse
e voltasse para o mato, já que fora surpreendido. Mas não. Conti nuava de pé, sem se
mexer. Por alguns instantes, ficaram os dois se examinan do, até que Jondalar percebeu
algo como gestos de aceno, pelo menos era o que lhe pareciam os movimentos
contrafeitos que a coisa fazia na sua direção. O cabeça-chata tomou a repetir os gestos,
agora fazendo menção de dar um passo para trás.
"O que será que ele estava querendo? Será que deseja que eu o acompa nhe?"
Quando o cabeça- chata voltou a fazer os mesmos gestos, Jondalar se encaminhou na
sua direção, certo de que ele ida fugir. Mas não. Ele apenas deu mais um passo para
trás, repetindo mais uma vez o gesto. Jondalar pôs- se a segui-lo, no princípio devagar,
depois num passo mais rápido, intrigado e ainda tremendo de frio.
Instantes depois, estavam passando pela moita de arbustos que encobria uma
pequena clareira. Ali ardia uma fogueira da qual se desprendia muito pouca fumaça. Uma
fêmea levantou os olhos, assustada. Cheia de medo, ela se afastou quando Jondalar
procurou pelo calor trêmulo da fogueira. Agrade cido, sentou-se agachado junto do fogo-
Com o canto dos olhos percebia as duas criaturas agitando as mãos enquanto emitiam
alguns sons guturais. A sua impressão era a de que conversavam, mas ele estava mais
interessado em aque cer-se e o seu único desejo naquele momento era possuir uma boa
pele para cobrir-se.
Não prestou atenção quando a fêmea sumiu atrás dele e, de repente, apanhado
inteiramente desprevenido, sentiu uma pele sendo colocada sobre os seus ombros. Antes
que a fêmea abaixasse a cabeça e saisse de gatinhas, ele surpreendeu-lhe um pálido
brilho nos olhos castanhos. Sentia que ela tinha medo dele.
Por fim, ajudado pelo fogo, a pele e a sua roupa de camurça que, apesar de
molhada, sempre esquentava um pouco, Jondalar conseguiu aqüecer-se o suficiente para
deixar de tremer. Foi então que se deu conta do lugar onde se encontrava. "Nossa Mãe!
Isso é um acampamento de cabeças-chatas!" Subita mente, atinando com a procedência
daquela fogueira, recuou as mãos que mantinha estendidas na direção das chamas,
como se as sentisse queimando.
"Fogueira! Eles usam fogueiras?" Hesitante, estendeu outra vez as mãos na direção
do fogo, como se não acreditasse no que os seus olhos viam e tives se de tocar para
crer. Reparou na pele pendurada em seus ombros. Segurou uma ponta e esfregou-a
entre os dedos. "E de lobo", concluiu. "E está muito bem curtida. Como é macia. O lado
de dentro, então, é perfeito. Duvido que os sharamudoi fizessem melhor." A pele parecia
não estar cortada em nenhum feitio especial. Era o couro inteiro do animal.
Finalmente o calor penetrara suficientemente no seu corpo para que se levantasse e
se pusesse de costas para a fogueira. Viu que o macho o observa va. Jondalar não sabia
por que resolvera que se tratava de um macho. Envolvi do numa pele, amarrada por uma
comprida correia, não era tifo óbvio assim. Embora desconfiado, o garoto tinha o olhar
direto e não aparentava medo como o da fêmea. Ele se lembrou dos Losadunai dizendo
que as fêmeas dos ca beças-chatas não lutavam, que ficavam inteiramente passivas,
sem a menor graça. Por que iria alguém querer uma fêmea destas?
Observando melhor o macho, Jondalar começou a achar que não era tão novo como
pensara. Seria um adolescente, não uma criança. A estatura baixa o havia enganado,
mas agora, olhando mais atentamente, via que ele tinha uma musculatura forte,bem
desenvolvida, e a barba que começava a despontar.
O cabeça-chata rosnou qualquer coisa e a fêmea, às pressas, correu até uma pilha
de lenha onde pegou algumas toras para botar na fogueira. Ele vi rou a cabeça para olhá-
la. Ela era mais velha, talvez fosse mãe do macho. Pa recia pouco à vontade, evitando
levantar os olhos. Afastou-se de cabeça abai xada e, quando chegou no fundo da
clareira, continuou andando, de modo a ser pôr fora do alcance de sua vista. Ela fazia
tudo com discrição e Jondalar, sem que se desse conta, tinha a cabeça toda virada para
trás. Por instante ele desviou os olhos e quando voltou a olhar ela se escondera tão bem
que custou a enxergá-la. Se não soubesse que a fêmea se achava lá, não a teria visto de
forma alguma. "Ela está assustada. Eu me admiro", pensou Jõndalar, "que não tenha
fugido quando o outro a mandou buscar lenha.”
"Mandou buscar?! Mas como? Cabeças-chatas não falam, como poderia ele lhe ter
dado esta ordem? Com todo este frio, eu devo estar ficando malu co. Não posso estar
raciocinando direito.”
Apesar de recusar-se a acreditar, Jondalar continuava com a sensação de que o
macho havia de fato dado uma ordem à fêmea. De alguma maneira ele tinha falado com
ela. A atenção de Jondalar voltou-se outra vez para o macho e, agora, teve a nítida
impressão de que havia qualquer coisa de hostil nele. Não saberia dizer onde estava a
diferença, mas percebia que o cabeça-chata não havia gostado de que ele tivesse ficado
observando a fêmea. Não tinha dú vidas de que se houvesse feito algum movimento em
relação à fêmea, ele esta ria em maus lençóis. A prudência e a experiência mandavam
que não se olhas- 288 289 se para fêmeas de cabeças-chatas, não às vistas de um
macho, seja lá que ida de tivesse este.
Como Jondalar não fizesse qualquer movimento e tivesse parado de olhar para a
fêmea, a tensão diminuiu. Mas, face a face com o cabeça-chata, ele sentia que ambos se
mediam, e o mais embaraçoso era que ali se achavam dois homens se encarando. No
entanto, nunca em sua vida vira alguém com uma figura semelhante. As pessoas que
encontrara em todas as suas viagens eram reconhecíveis como seres humanos. Podiam
falar línguas diferentes, ter outros costumes, viver em moradias estranhas, mas
continuavam sendo seres humanos.
O cabeça-chata parecia diferente. Mas chegaria a ser um animal? Era mais baixo,
atarracado, e os seus pés descalços não faziam a menor diferença dos dele. As pernas
mostravam-se um pouco arqueadas, mas ele caminhava tão ereto quanto qualquer
homem. Possuía um pouco mais de pêlo do que a média, principalmente nos braços e
ombros, mas poderia ser considerado co mo alguém cabeludo. Ele mesmo conhecia
homens com tanto cabelo quanto este cabeça.chata. O peito era rotundo, já bastante
musculoso e, por mais criança que fosse, o melhor a fazer era não se meter com este
garoto. Ele já vira homens adultos, dotados de tremenda musculatura, e nem por isso
deixa vam de ser considerados como seres humanos, O rosto. . . não, a cabeça. Essa
sim se mostrava diferente. Mas até que ponto diferente? As sobrancelhas eram pesadas
e grossas, a testa não se erguia bastante, inclinava para trás; a cabeça, entretanto, era
grande. Pescoço curto, a falta de queixo via-se compensada pelas mandíbulas
ressaltadas e o nariz era grande e adunco. "Um rosto huma no, não como os das
pessoas que conheço", disse para si Jondalar, "n'ias de qualquer forma aquelas eram
feiçôes humanas. E eles.., usam fogo.”
"No entanto, não falam. Será que conseguem mesmo comunicar-se? Oh, Doni! Ele
chegou até a comunicar-se comigo! Como sabia que eu estava que rendo uma fogueira?
E por que um cabeça- chata ajudaria um homem?" Jon dalar se via desconcertado. Além
do que, o rapazinho cabeça-chata muito pro vavelmente tinha salvo a sua vida.
Por fim, o garoto pareceu ter tomado uma decisão, Inesperadamente, acenou para
Jondalar como fizera antes e começou a dirigir-se para fora da clareira pelo mesmo
caminho por onde haviam passado. Ele esperava que o homem o seguisse e foi o que
Jondalar fez, dando graças quando saiu de perto da fogueira por ter ainda aquela pele de
lobo pendurada nos seus ombros. Ao se aproximarem do rio, o cabeça-chata correu à
frente, agitando os braços e soltando uns berros agudos e fortes. Um pequeno animal
correu em disparada e o esturjão estava um pouquinho menor. Era claro que, grande
como era e desvigiado, o peixe não poderia ficar ali por muito tempo sem ser tocado.
Vendo a raiva que o cabeça-chata teve do animal, Jondalar de repente pensou em
algo que ainda não lhe ocorrera. Seria o peixe o motivo por que ele estava recebendo
aquela ajuda? Estaria o cabeça-chata pretendendo um pe daço do esturjão?
O cabeça-chata enfiou a mão numa das dobras da pele que vestia e re tirou uma
lasca de sfiex extremamente afiada. Passou.a sobre o esturjão como se fosse cortá-lo,
fazendo, em seguida, gestos indicando que um pedaço seria para ele e outro para
Jondalar. Então, esperou. Estava mais do que claro. De. sejava ficar com urna porção do
peixe. Um mundo de perguntas passava pela cabeça de Jondalar.
Onde o cabeça-chata teria arrumado a ferramenta? Ele queria olhá-la de perto, mas
de antemão sabia não ser um instrumento tifo refinado quanto os seus. Fora feito de uma
lasca grossa, não de uma lâmina fina, mas sem dúvida era uma faca afiada,
perfeitamente utilizável. Havia sido fabricada por alguém, feita intencionalmente para
atender um fim específico. Mas não era só a ferra menta que o intrigava, havia outras
perguntas incomodando.o. O rapaz não ti nha falado, no entanto, indiscutivelmente, se
fizera entender. Jondalar não sa bia se ele próprio seria capaz de tornar os seus desejos
conhecidos com tanta clareza e facilidade.
O cabeça-chata aguardava uma resposta. Jondalar fez sim com a cabeça, sem
muita certeza se o seu gesto seria compreendido. Mais do que o gesto, a intenção foi
comunicada. Imediatamente o rapaz se pôs a cortar o peixe.
Enquanto observava, a cabeça de Jondalar era um turbílhão de pergun tas que
abalavam profundamente velhas convicçoes arraigadas. O que é um animal? Um animal
chegaria ali, abocanhada um pedaço do peixe e sairia cor rendo. Se fosse um bicho mais
inteligente, iria considerar o homem perigoso e esperar que ele fosse embora. Um animal
não poderia saber que alguém, quase morto de frio, precisa do calor de uma fogueira.
Muito menos teria fogo e le varia essa pessoa para junto do calor. Jamais iria pedir por
um pedaço de pei xe - Isso é comportamento de gente, mais até, um comportamento
verdadeira mente humano - As estruturas de crenças que cresceram com os seus ossos
e eram o San gue de sua vida naquele instante balançavam-se. ". - . Ora, bobagem, os
cabe ças-chatas sempre foram animais. Não havia quem não o dissesse. Isso era evi
dente, não? Eles não falam. Mas só por isso? Era essa a única diferença?”
Jondalar pouco se importava se o rapaz levasse um pedaço ou o peixe inteiro, mas
ele estava curioso. Que quantidade irá pegar? De qualquer modo o peixe teria de ser
retalhado. Era um animal pesado demais para ser transpor tado. Até mesmo quatro
homens juntos teriam dificuldade para levantá-lo.
Subitamente, esqueceu-se do cabeça-chata. O seu coração bateu apressa do. Será
que ouviu direito?
- Jondalar! Jondalar!
290 291 O cabeça-chata pareceu assustado, mas Jondalar já estava passando por
entre as árvores para ter uma melhor visão do rio.
- Aqui, Thonolan! Estou aqui!
O seu irmão tinha vindo procurá-lo. No meio do rio estava um barco lo tado de
gente. Ele acenou. As pessoas o viram e acenaram de volta, remando na sua direção.
O gemido de alguém fazendo esforço trouxe outra vez a sua atenção pa ra o
cabeça-chata. Na praia, o esturjão estava partido pela metade - no senti do do
comprimento, com um corte que ia da espinha dorsal até a barriga - e o rapaz colocando
uma das bandas sobre um pano de couro estendido do la do. Jondalar observou-o ajuntar
as pontas do couro, formando uma trouxa, que colocou às costas. Então, com as
metades de cabeça e rabo apontando para fora da saca, ele desapareceu no mato.
- Espere! - gritou Jondalar correndo atrás. Ele o alcançou quando en trava na
clareira. Com a sua aproximação a fêmea, que carregava um grande cesto às costas,
escondeu-se nas sombras. Não havia qualquer sinal que indi casse a clareira ter sido
usada, nem mesmo os vestígios de uma fogueira apare ciam. Se ele não sentisse um
resto de calor não acreditaria que naquele lugar tivesse existido uma.
Jondalar tirou a pele de lobo dos ombros e a estendeu, querendo devol vê-la, O
macho soltou um grunhido e a fêmea prontamente veio buscá-la. Em seguida, os dois
silenciosamente entraram pela mata, indo embora.
Enquanto caminhava de volta para a margem, Jondalar sentia-se gelado com as
suas roupas molhadas. Quando chegou junto ao tio, o barco estava atracando. Ele sorriu
ao seu irmão que saltava. Os dois se atiraram um nos braços do outro, estreitando-se
num forte e caloroso abraço.
- Thonolan, que bom vê-lo aqui! Estava com medo de que quando vis sem o barco
vazio, eu fosse dado como morto.
- Ora, quantos rios já cruzamos juntos, meu irmão! Estou cansado de saber que
você nada. Quando encontramos o barco, deduzimos que você tives se vindo para esse
lado e que poderia ter distanciado muito.
- Quem pegou a metade deste peixe? - perguntou Dolando.
- Fui eu quem dei.
- Você deu? A quem? - perguntou Markeno.
- Mas para quem você poderia ter dado? - indagou Carolio.
- Para um cabeça-chata.
- Um cabeça-chata? - exclamaram uma porção de vozes ao mesmo tempo.
- E por que você fria dar a metade de um peixe deste tamanho para um cabeça-
chata? - perguntou Dolando.
- Primeiro ele me deu urna ajuda e depois pediu um pedaço do peixe.
- Que maluquice é esta? Como é que um cabeça-chata vai pedir um pe daço de
peixe? - falou Dolando com raiva. Jondalar ficou surpreso. O chefe dos sharamudoi
raramente se deixava encolerizar. - Onde está ele?
- Ele já foi embora. Meteu-se pelo meio da mata. Eu estava empapado e tremia tanto
que achava que nunca mais iria conseguir esquentar o meu cor po. Foi então que o
garoto cabeça-chata apareceu e me trouxe para a sua fo gueira. - - Fogueira? E desde
quando eles têm fogueiras? - perguntou Thonolan.
- Já vi cabeças-chatas junto de fogueiras - disse Barono.
- Eu já andei vendo alguns deles deste lado do rio. - . mas só de longe - observou
Carolio.
- Não sabia que estavam de volta. Quantos deles havia aqui? - indagou Dolando.
- Apenas o garoto e uma fêmea mais velha. Talvez a mãe dele - respon deu
Jondalar.
- Bom, se estão com as fêmeas, deve haver mais deles por aqui - falou o chefe,
passando os olhos pelas matas perto. - O que devíamos fazer era ca çar todo esse bando
de cabeças-chatase limpar de uma vez o lugar desta praga.
Havia um tom sério de ameaça na voz de Dolando. Jondalar o olhou com atenção.
Ele já percebera em outros comentários anteriores do chefe esse sentimento de
animosidade em relação aos cabeças- chatas, mas nunca tão car regado de rancor.
A liderança entre os sharamudoi era uma questão de competência e de força de
persuasão. Dolando fora tacitamente reconhecido como chefe, não só porque era o
melhor em todos os sentidos, mas também por ser um homem competente que, além de
saber atrair as pessoas a si, era extremamente hábil para tratar dos problemas que
porventura surgissem. Ele não mandava. Con vencia, coagia, usava de artifícios e fazia
acordos. Em geral, era quem apazi grava os conflitos inevitáveis entre pessoas vivendo
juntas. Politicamente astu to, convincente, as suas decisões quase sempre eram aceitas,
mas ninguém era obrigado a segui-las.
Quando sentia que o seu julgamento era correto, ele tinha bastante con fiança em si
para pressionar as opiniões a seu favor, ou senão passar a respon sabilidade da questão
para outro com mais experiência e saber. A sua tendên cia era não se envolver em
dispustas pessoais, a não ser que fosse expressamen te convocado. Apesar de ser
normalmente calmo, a raiva era capaz de torná lo uma pessoa cruel, estúpida, que tanto
podia prejudicar um pobre coitado sem condições de se defender como pôr em risco os
interesses de toda a Ca verna. Quanto aos cabeças-chatas, odiava-os. Para ele, não
passavam de sim ples animais. Animais perigosos, ruins, que deviam ser eliminados.
- Eu estava gelado - contrapôs Jondalar - e o cabeça-chata me ajudou.
292 293 Ele me levou até a sua fogueira e ainda me deu uma pele para usar. Por
mim, ele poderia ter levado o peixe inteiro, mas pegou só a metade. Eu não estou nem
um pouco disposto a sair por aí à caça de cabeças-chatas.
- Em geral, eles não trazem grandes problemas para nós - falou Baro no. - Mas é
sempre bom saber quando estão por perto. São muito espertos. Não é nada agradável
pensar que de repente você pode ser apanhado por um bando deles.
- São umas bestas assassinas - cortou Dolando.
Barono ignorou a interferência.
- Você provavelmente teve sorte de haver sido um cabeça-chata novo e uma fêmea
velha. Elas não lutam.
Thonolan não estava gostando do rumo que a conversa tomava.
- Como é que vamos fazer para carregar essa esplêndida metade de pei xe pescado
pelo meu irmão? - disse ele, sorrindo com a lembrança de Jonda. lar puxado pelo
esturjão. - Depois do trabalho que o bicho lhe deu, estou ad mirado de que tenha deixado
escapar uma metade dele.
O seu riso contagiou todos, aliviando a tensão.
- Será que isso quer dizer que Jondalar é uma metade ramudoi? - fa. lou Markeno.
- Quem sabe s& nós não o levamos para caçar e ele consiga a metade de urna
camurça? - disse Thonolan. - Assim a sua outra metade fica sendo sha mudoi.
olho.
- Qual das metades irá querer Serenio? - pilheriou Barono, piscando o - Uma metade
dele já é mais do que suficiente - troçou Carolio, com uma expressão no rosto que dava
perfeitamente a entender que ela nâb estava referindo-se à altura de Jondalar. No
estreito convívio da Caverna, as proezas de Jondalar nas peles não haviam passado
despercebidas. Ele ficou corado, mas o gracejo picante acabou por diminuir a tensão,
tanto no que dizia respeito a Jondalar quanto a Dolando com a sua intempestiva raiva.
Eles trouxeram uma rede de fibra e estenderam ao lado da metade do esturjão. Com
esforço e soltando gemidos, puseram o peixe sobre a rede e a carregaram para a água,
amarrando-a à popa do
barco.
Enquanto os homens pelejavam com o peixe, Carolo virou-se para Jon dalar e disse
disfarçadamente.
- O filho do Roshario foi morto por cabeças-chatas. Ele era ainda muito moço. Nem
noivo chegara a ficar. Um rapaz cheio de alegria, corajoso, o orgu lho de Dolando.
Ninguém sabe como aconteceu, mas Dolando pôs a Caverna inteira caçando cabeças-
chatas. Alguns foram mortos - . . depois disso, desapa receram. Antes ele nunca se
incomodou muito com os cabeças-chatas, mas desde.. - 294 Jondalar balançou a
cabeça, num gesto de compreensão.
- Corno conseguiu esse cabeça-chata levar a outra metade do peixe? - perguntou
Thonolan, enquanto entravam no barco.
- Ele simplesmente pegou e carregou - falou Jondalar.
- Hein? Pegou e carregou?
- Sozinho, e olhe que ele ainda não era de todo adulto.
Thonolan aproximou-se da cabana de madeira onde vivia o seu irmão com Serenio e
Darvo. Era uma construção feita de tábuas assentadas obliqua mente contra a viga-
mestre do teto que, por sua vez, fazia também uma linha inclinada até o chão. A moradia
lembrava o feitio de uma tenda, mas só que de madeira. Tinha a parede da frente
triangular, mais alta e larga do que as laterais de forma trapezóide. Às tábuas eram
assentadas como os pranchôes dos cascos das embarcações, isto é, com uma borda
mais grossa sobrepondo a borda mais fina da tábua vizinha e nesta costurada.
Eram constru fortes, bem acabadas, com o tabuado tão cerrado que apenas nas
mais antigas se via a luz passando através das frestas feitas na ma deira seca e
empenada. Com a pedreira para protegê- las dos temporais, as jun tas das tábuas não
precisavam ser tão vedadas como nos barcos. A iluminação se fazia principalmente pela
fogueira armada por cima de uma forração de pe dras, ou então pela abertura na parede
frontal.
Thonolan olhou para o seu interior, querendo saber se o seu irmão ainda estava
dormindo.
- Entre - falou Jondalar, fungando. Ele se achava sentado no tablado, coberto de
peles e com outras tantas ao seu redor. Na mão, segurava uma cuia com qualquer coisa
fumegando dentro.
- Como vai o seu resfriado? - indagou Thonolan, sentando na beirada do tablado.
- O resfriado está pior, mas eu estou melhor.
- Ninguém pensou nas suas roupas molhadas e na ventania que soprava pela
garganta do rio.
- Já me dou por feliz por terem me achado.
- Bom, e eu fico feliz por você estar sentindo-se bem - Thonolan, es tranhamente,
falava parecendo procurar pelas palavras. Irrequieto, levantou- se, foi até a entrada e
voltou. - Você está precisando de alguma coisa que eu possa fazer?
Jondalar abanou negativamente a cabeça e esperou. Havia algo incomo dando
Thonolan, que ele tentava colocar para fora. Precisava apenas de tempo.
- Jondalar. - - - começou ele - você já está vivendo com Serenio e o fi lho dela há
bastante tempo.
Por um momento Jondalar achou que o seu irmão fosse fazer algum co- 295
mentário sobre o fato dele ainda não ter formalizado a sua relação, mas estava
enganado.
- Como é que a pessoa sente quando se é o homem da casa?
- Você tem uma companheira, Thonolan. Você é o homem da casa.
- Eu sei, mas faz alguma diferença ter um filho de sua casa? Jetamio quer tanto ter
um bebê e agora. . . ela perdeu mais uma vez.
- Eu sinto muito.
- Eu não me incomodo se ela nunca tiver um filho. A única coisa que não quero é
perdê-la - falou Thonolan com a voz embargada. - Gostaria que ela parasse de tentar.
- Acho que ela não tem outra alternativa. A Mãe dá.
- Então por que a Mãe não deixa que ela conserve a criança? - gritou Thonolan,
saindo e passando por Serenio que entrava naquele instante.
- Ele lhe falou de Jetamio? - perguntou Serenio.
Jondalar confirmou com a cabeça.
- Esse, ela conseguiu conservar por mais tempo. Doeu-lhe muito perdê lo. Fico
satisfeita por Jetamio ser feliz com Thonolan. Ela merece isso.
-Elavaificarboa?
- Não é a primeira vez que uma mulher perde uma criança, Jondalar. Não se
preocupe. . . Jetamio dentro de pouco tempo estará ótima. Vejo que encontrou o chá. É
de hortelã, borragem e lavanda, caso queira saber. O sIm mud disse que seria bom para
o seu resfriado. Como você está passando? Vim até aqui só para ver se ainda estava
acordado.
- Estou muito bem - ele deu um sorriso, querendo aparentar saúde.
- Neste caso, acho que vou voltar para ficar com Jetamio.
Depois que Serenio saiu, Jondalar pôs de lado a cuia e se deitou nova mente. Tinha
o nariz entupido e estava com dor de cabeça. Não sabia exata mente por que, mas a
resposta de Serenio o havia perturbado- Não queria mais pensar no assunto, isso lhe
punha uma dor aguda na boca do estômago. "Deve ser do resfriado", pensou.
primavera se fez verão e a mudança se estendeu a todos os frutos da terra. À
medida que amadureciam, Ayla os 296 colhia, mais por hábito do que por necessidade.
Poderia se poupar deste traba lho. Estava mais do que abastecida. Havia, inclusive,
sobrado alimentos do ano passado. Mas ela não estava habituada a ficar parada e nem
tinha como encher o seu tempo.
Mesmo com as caçadas de inverno, mais uma atividade para a sua vida, ela não
conseguia manter- se suficientemente ocupada. No entanto, curtia a pele de quase todos
os animais que matava, continuava tecendo cestas e estei ras, esculpindo gamelas e já
acumulara tantas ferramentas, acessórios e objetos domésticos que os tinha em
quantidade para abastecer um clã inteiro. Assim é que, ansiosa, aguardava pelas coletas
de verão.
Igualmente ansiosa esperava pelas caçadas de verão. Descobrira que o método que
imaginara para caçar com Neném - com algumas adaptaçôes para compensar a falta de
Huiin - continuava ainda dando certo. O leão caçando cada vez melhor restabelecia o
equilíbrio da equipe. Se ela quisesse, podia abs ter-se de caçar. Além de colocar para
secar toda a carne que sobrava, ficava também uma parte das caças que Neném pegava
sozinho e ele praticamente saía sempre vitorioso em seus ataques. Entre a mulher e o
leão formou-se uma relação única. Ela era a mãe, portanto a parte forte. Era parceira nas
caçadas, portanto um igual, e Neném era tudo que ela tinha para amar.
Observando os outros leões, Ayla chegara a algumas interessantes con clusões
sobre os seus hábitos de caça. Durante o verão, eram caçadores notur nos; no inverno,
diurnos. Embora houvesse renovado o seu pêlo na primavera, Neném conservara uma
grossa manta de pêlos que seria quente demais para ele caçar num dia de verão. Às
energias dispendidas durante as perseguições o deixavam extremamente acalorado.
Tudo que Neném queda era dormir, de preferência nos recessos frescos e sombrios da
caverna. No inverno, quando as geleiras ao norte faziam rugir as
suasventanias,astemperaturas, durante a noi te, caíam a tal ponto que o frio era de matar
mesmo com uma pele nova e pe sada. Os leões da caverna, então, sentiam-se felizes em
poder enroscar-se no interior de um bom abrigo, bem protegido dos ventos. Eram animais
carnívo ros e adaptáveis. Tanto a grossura e a coloração da pele como os seus hábitos
de caça se adaptavam às condições climáticas. O importante é que não faltas sem
presas para eles.
Na manhã do dia seguinte em que Huün partiu, Ayla tomou uma impor tante decisão
quando acordou e deu com Neném dormindo ao seu lado,jun to do cadáver de um
veadinho malhado. Iria partir. Não procurou opor ne nhum argumento contrário ao seu
pensamento. Era caso resolvido, mas não naquele verão. Neném ainda precisava-dela.
Era muito novo ainda para ser dei xado sozinho. Nenhum bando de leão iria aceitá-lo.
Enquanto não tivesse ida de para ter uma companheira e formar a sua família, ele
precisava da seguran ça da caverna, tanto quanto ela.
297 16 l lhe havia dito para procurar a sua gente e encontrar o seu compa nheiro e
era o que ela iria fazer. Algum dia prosseguiria na sua busca. Mas sen tia-se aliviada por
não ter, por enquanto, de trocar a sua liberdade pela com panhia de pessoas com hábitos
desconhecidos. Embora não o admitisse, havia outra razão. Ela não queria partir
enquanto não tivesse absoluta certeza de que Huiin não voltaria. Sentia uma terrível
saudade da égua. Adorava aquele animal que, desde que chegara ao vale, fazia parte de
sua vida.
- Ande, acórde preguiçoso - falbu Ayla. - Vamos dar um passeio e ver se arrumamos
alguma coisa para caçar. Você não saiu ontem à noite - ela deu uma cutucada no leão e
se retirou da caverna, fazendo-lhe sinal para que a seguisse. Ele levantou a cabeça,
soltou um imenso bocejo, pondo à mostra os afiados dentes, ergueu-se e começou a
caminhar, relutante, atrás dela. A sua fome e a de Ayla eram iguais, quase nenhuma. Por
ele, teria ficado dor mindo.
Na véspera, ela havia colhido plantas medicinais. Um trabalho que lhe dava prazer e
de gratas recordações. Em seus tempos de criança, vivendo com o clã, colher plantas
medicinais para lia significava escapar de olhos sempre vigilantes e prontos para
censurar o seu comportamento. Era quando tinha um pouco de tempo para respirar e
seguir as suas inclinações naturais. Mais tarde, as colhia pelo prazer que tinha em
estudá-las e, hoje, possuía um apreciável conhecimento da matéria.
Para Ayla, as propriedades medicinais estavam tão associadas às plantas que as
distinguia mais pelo uso que podia fazer delas do que pela sua aparên cia. Assim, os
molhos de agrimõnia, pendurando-se de cabeça para baixo no interior quente e sombrio
da caverna, os conhecia mais como uma infusão boa para tratar machucados e lesões
internas do que como uma planta perene, alta e esguia, de folhas dentadas e minúsculas
flores amarelas dando em ca chos afunilados.
As unhas-de-cavalo, cujas folhas lembravam o nome e que ocupavam uma pequena
parte da armação de secar, tinham aplicações diversas: secas e postas para queimar, a
fumaça desprendida era um bom alívio para asma; pre paradas como chá ao lado de
outros ingredientes, serviam como remédio para tosse; por fim, constituíam um saboroso
tempero de comida. Ao ver as gran des folhas peludas de confrei, junto deraízes que
estavam secando ao sol,ime diatamente lembrou-se de fratura de ossos e compressas
para machucados. As cravinas de tons luminosos eram para ser usadas em ulcerações,
feridas abertas e escoriações da pele. A camomila ajudava na digestão e servia como
uma sua ve loção para machucados. As pétalas de rosa trepadeira que boiavam numa
gamela com água se destinavam a preparar um líquido adstringente para a pele.
Todas essas plantas ela as havia colhido para repor as que ficaram ve 298 lhas sem
ter sido usadas. Não tinha necessidade de ter uma famacopéia tão completa, mas era
uma coisa que lhe dava prazer, além de que a ajudava a es tar sempre com os seus
conhecimentos em dia. No entanto, com a quantidade de folhas, flores, raízes e cascas -
em vários estágios de preparação - espalha das por toda parte da caverna, não era o
caso de pensar em colher novas plan tas. Não havia lugar para tanto. Ela estava sem o
que fazer e se sentia enfas tiada.
Desceu à praia, deu a volta do penhasco e passou a caminhar ao longo dos
arbustos que margeavam o rio. Neném vinha atrás rosnando de uma ma neira que ela
sabia ser a sua voz habitual quando conversava. Os outros leões faziam sons parecidos,
mas cada um tinha a sua particularidade. De longe ela reconhecia a voz ou os fortes
rugidos de Neném. Eles começavam nas profun dezas de seu peito com uma série de
grunhidos que iam em crescendo até ter minar no sonoro trovejar de um estupendo baixo,
que lhe deixava os tímpa nos vibrando, quando era solto muito perto dela.
Ao chegar a uma pedreira, onde em geral descansava, Ayla parou. Não estava
muito interessada em caçar, por outro lado não sabia o que gostaria de fazer. Neném
encostou-se nela, procurando chamar-lhe a atenção. Ela coçou as suas orelhas e depois
o pescoço, enfiando a mão lá no fundo da juba. A pe le dele estava agora mais escura do
que no inverno, embora continuasse ainda bege e a juba havia crescido fulva, num forte
tom de ferrugem, quase da cor de ocre. Ele levantou a cabeça para que Ayla o coçasse
sob o queixo, deixan do escapar um rosnado de satisfação. Ela esticou o braço para
coçá-lo do ou tro lado. Foi então que, olhando-o com atenção, o percebeu sob um novo
as pecto. O lombo de Neném batia pouco abaixo de seu ombro. Ele estava quase da
altura de Huiin, só que bem mais corpulento do que a égua. Ela não se dera conta do
quanto crescera.
Os leões da caverna que habitavam as estepes daquelas frias regiões, vi zinhas às
geleiras, viviam num ambiente ideal para o estilo de caça ao qual es tavam mais afeitos.
Ali era um continente de terras de pastagem, povoado su perabundantemente de caças
das mais variadas. Boa parte dos animais era de porte avantajado: bisões e bovinos, com
quase o dobro do tamanho que no fu turo teriam as suas contrapartidas; gigantescos
veados com chifres de três me tros de comprimento, além dos mamutes e rinocerontes
lanosos- As condições eram favoráveis para que as espécies carnívoras se
desenvolvessem de modo a poder caçar essa fauna de animais colossais. O leão da
caverna fazia parte des se nicho e o compunha admiravelmente. Os seus futuros
descendentes teriam a metade de seu tamanho, insignificantes comparativamente. Foram
os leões da caverna os maiores felinos que a natureza conheceu.
Neném se constituía no mais alto exemplo desse que era o supremo re presentante
dos predadores - enorme, fortíssimo, envolvido por uma pele lu 299 zindo de vigor e
saúde juvenil - no entanto totalmente subjugado pelas delí cias dos afasgos de Ayla.
Caso resolvesse atacá-la, ela não teria como defen der-se, mas não pensava nisso, não
o via como alguma coisa perigosa. Aos seus olhos, Neném não passava de um gatinho e
essa era a sua defesa.
O domínio que ela exercia sobre o leão se fazia inconscientemente e era dessa
forma que ele o entendia. Ao levantar e pôr a cabeça de lado para mos trar-lhe o ponto
em que queria ser coçado, Neném se entregava por inteiro aos prazeres das carícias, e
Ayla, por sua vez, gostava de afagá-lo porque sabia que ele tinha satisfação com isso.
Querendo alcançar o outro lado do seu corpo, ela subiu numa pedra e, enquanto se via
debruçada sobre as suas costas, ocor reu-lhe uma idéia. Não parou para pensar um
instante, simplesmente passou a perna por cima do lombo de Neném e o montou, como
tantas vezes fizera com Huiin.
Para o leão, aquilo era inesperado, mas os braços ao redor de seu pesco ço eram
conhecidos e o peso dela insignificante. Por algum tempo não fizeram qualquer
movimento. Quando es dois haviam passado a caçar juntos, Ayla adaptara o seu gesto
de atirar com a funda a um movimento de braço seguido de uma ordem de comando: vá!
No momento em que se lembrou disto, sem hesitar fez o movimento e gritou a palavra
chave.
Sentindo junto ao seu corpo o feixe de músculos do animal, agarrou-se à juba no
instante em que ele se arremessou à frente. Com a graça sinuosa dos felinos e uma
mulher colada ao seu lombo, o leão disparou pelo vale. O vento batia no rosto de Ayla,
esvoaçando os cabelos escapados das tranças. Faltava- lhe o controle sobre o animal.
Ela não o conduzia, tal como fazia com Huiin. Ia
para onde ele a levasse, mas se sentia exultante, inebriada com a velocidade que
nunca conhecera na vida.
O ímpeto da carreira durou pouco. Foi igual às corridas de seus ataques. O leão
diminuiu a velocidade e fez uma curva muito aberta para, então, seguir trotando na
direção da caverna. Com Ayla ainda montada, subiu o íngreme caminho e parou no lugar
que era o dela na caverna. Sem saber como expres sar as emoções indescritíveis que
estava sentindo, ela apeou do lombo e o abraçou. Depois que o soltou, Neném, com o
rabo abanando, dirigiu-se para o. fundo, indo se espichar no seu lugar predileto. Instantes
depois estava dor mindo.
Sorrindo, ela o observava. "Com esse passeio de hoje o dia já acabou pa ra você,
não é? Bom, depois do presente que me deu, você pode dormir à von tade, Neném.”
Lá pelo fim do verão, Neném passou cada vez mais a ausentar-se da ca verna. A
primeira vez em que ele desapareceu por mais de um dia, Ayla ficou tão aflita que, na
segunda noite quando ele não voltou, não conseguiu dormir.
300 Por fim, Neném surgiu na manhã seguinte, tão cansado e desgrenhado quanto
ela própria estava. Ele não havia trazido nenhuma caça. Ela lhe deu alguns pedaços de
carne seca que foram engolidos avidamente. Não ficou brincando com as tiras de carne
quebradiças, como em geral costumava fazer, antes de engoli4as. Apesar de cansada,
Ayla saiu com a sua funda e voltou trazendo duas lebres. Neném acordou de seu sono
exausto e veio ao encontro dela na entrada. Pegou uma das lebres e voltou para o seu
canto. Ayla, então, carre gou a outra para o fundo da caverna e veio também para o seu
canto dormir.
Na vez seguinte, quando ele ficou três dias fora, ela já não ficou tão preocupada,
mas a sua vida se tornou vazia e era como se trouxesse um peso no coração. Neném
sempre chegava machucado, cheio de arranhões, e ela imaginava que andasse em
escaramuças com outros leões. Talvez já estivesse suficientemente maduro para pensar
em fêmeas. Diferente das éguas, as leoas não tinham uma estação especial para
reproduzirem. O período do cio se dava em qualquer época do ano.
À medida que o outono avançava, as prolongadas ausências de Neném cada vez
iam ficando mais freqüentes, e quando voltava quase sempre era para dormir. Ayla tinha
certeza de que ele devia dormir também em outros lugares, mas saudoso da segurança
de sua caverna acabava voltando. Ela nunca sabia quando esperá-lo ou de que direção
ele iria surgir. Simplesmente chegava. Às vezes pelo estreito caminho que levava à praia,
outras com um salto impres sionante sobre o patamar em frente da caverna.
Ayla sempre ficava feliz de vê-lo e os cumprimentos de Neném eram também
calorosos, de vez em quando calorosos demais. Se ele se mostrasse muito entusiástico
em suas expansões de afeto, atirando-a ao chão quando lhe punha as pesadas patas
dianteiras sobre os ombros, ela imediatamente fa zia o seu gesto de "basta".
Em geral, Neném ficava alguns dias. Ocasionalmente, os dois saíam para caçar e
ele ainda continuava lhe trazendo algumas caças, mas não com a assiduidade de antes.
Então voltava a ficar irrequieto. Ayla tinha certeza de que ele estava caçando sozinho e
tendo que defender as suas presas dos ata ques de aves de rapina, hienas e lobos.
Quando Neném começava a andar de lá para cá, ela já sabia que dentro de pouco tempo
ele iria desaparecer. A ca verna, então, se mostrava tão vazia que começou a temer a
chegada do inver no. Seria uma temporada triste e solitária.
Fazia um outono diferente, seco e quente. As folhas ficaram amarelas, depois
marrons, sem mostrar os matizes brilhantes das pinceladas de gelo. Agarrados às
árvores, eram cachos murchos e escuros farfalhando com o vento numa época em que
há muito já deveriam estar revestindo o chão. O tempo estava louco: outono devia ser
úmido, frio, com rajadas de vento e súbitos aguaceiros. Ay não conseguia evitar uma
sensação de medo, como se o verão 301 estivesse retendo as mudanças do tempo para
que o inverno investisse furiosa mente.
Todas as manhãs ela saía da caverna esperando encontrar uma drástica mudança
no clima, e então, quase decepcionada, via um sol quente levantam do-se num céu
irrepreensivelmente azul. Os fins de tarde passava-os no pata mar observando o sol
baixar no horizonte, iluminado por uma bruma aver melhada - ao invés de nuvens
pesadas e carregadas - compondo um glorio so espetáculo de cores. Depois, as estrelas
começavam a faiscar, enchendo a escuridão tão profusamente que era como se o céu
estivesse estilhaçado em in finitos pedacinhos.
1-lá dias ela não saía das proximidades do vale e, quando amanheceu mais um dia
quente e claro, pareceu-lhe tolice desperdiçar aquele tempo tão lindo. O inverno logo
estaria chegando para trancaflá-la em sua solitária ca verna.
"Pena Neném não estar aqui", pensouela."Seria um bom dia para caçar. Talvez eu
faça isso sozinha. Não. Sem Neném e l-luiin, eu tenho de arrumar um outro jeito de
caçar", disse para si mesma, desistindo de pegar a lança. "Levarei só a minha funda.
Será que devo carregar uma pele? Está tão quen te. Iria morrer de calor. Podia levá-la
dentro de minha cesta. Ora, mas eu não preciso de nada. Já tenho de tudo, em
quantidade mais do que suficien te. O que quero é dar um bom passeio. Para isso não
preciso de cesta. - - e nem de pele. Só a caminhada já vai me esquentar.”
Enquanto descia o caminho da caverna, ela se sentia estrarihamente le ve e
desembaraçada. Não tinha fardos para carregar, animais com que se preocupar, e a sua
caverna estava bem sortida. Mas gostaria que não fosse assim. A falta absoluta de
responsabilidade lhe enchia de sentimentos contra ditórios: era uma estranha sensação
de frustração que se misturava com uma desacostumada liberdade.
Chegando á campina, tomou a direção que levava às estepes do lado les te quando,
então, se pôs a andar em passos mais apressados. Não tinha qual quer destino em
mente, caminhava para onde o seu capricho a levasse. Nas estepes, a seca da estação
se fazia mais acentuada. A relva estava tão murcha e amarfanhada que uma folha de
gramínea que machucou entre os dedos es farinhou-se completamente. O vento se
incumbiu de carregar o pó da palma da mão. O chão sob os seus pés, compactado com a
dureza de uma rocha, par tia-se na forma de um xadrez. Ela tinha de estar atenta onde
pisava para não tropeçar nos torrões empedrados ou torcer os tornozelos em algum
buraco ou sulco no terreno. Nunca vira a terra tão árida. A atmosfera parecia sugar a
umidade de sua respiração. Ela trouxera apenas um pequeno odre, contando enchê-lo
nas aguadas ou riachos conhecidos, mas muitos se achavam secos. A manhã nem ia
pela metade e a sua bolsa de água já estava quase vazia.
302 Quando chegou a um riacho, certa de que acharia água e só encontrou lama,
resolveu voltar. Esperando ainda poder encher o odre, pôs-se a caminhar ao longo da
margem, indo dar numa poça lamacenta, tudo que restava de uma outrora profusa
cisterna. Assim mesmo resolveu provar. Talvez estivesse bebí vel. No que se agachou,
percebeu marcas frescas de cascos. Sem dúvida passa ra por lá, não há muito tempo,
uma manada de cavalos. Qualquer coisa numa das marcas lhe chamou a atenção. Ela
era excelente rastreadora e, não fosse isto, já vira demais as marcas largadas pelos
cascos de Huiin para não conhe cer as mínimas variações de contomos no desenho de
suas pegadas e o modo como a égua calcava a terra que tomavam aquelas impressões
únicas. Depois de examiná- las, teve absoluta certeza de que Huiin passara por lá, e não
fazia muito tempo. A manada devia estar por perto. O coração de Ayla batia forte.
Não foi difícil pegar o rasto. A beirada quebrada de um ressalto no chão, onde uni
casco resvalara, as pisaduras na relva amassada, a terra solta, não ainda assentada,
tudo indicava a direção que os cavalos haviam tomado. Ayla, excitada, mal respiráva
enquanto seguia os pequeninos indícios. Até mesmo a atmosfera parada parecia prender
o seu ar em ansiosa expectativa. Já fazia tanto tempo. . . l-luiin ainda se lembraria dela?
Só em saber que a égua estava viva já era uma grande coisa.
A manada estava muito mais longe do que ela imaginara. Alguma coisa havia posto
os cavalos a correr, obrigando-os a sair em disparada pela planície. Antes mesmo de
avistar o bando de lobos dando em cima da carcaça de um animal, Ayla já lhes ouvira os
rosnados e o barulho do tumulto que provo cavam. Ela não pretendia chegar perto, mas
não pôde resistir. Precisava se cer tificar de que o animal tombado não era I-luiin. A visão
de um pêlo castanho- escuro deixou-a aliviada. Uma cor fora do comum, a mesma do
garanhão que vira com Huiin. O cavalo morto certamente fizera parte da manada.
Com o pensamento nos cavalos que viviam soltos na natureza, tão vul neráveis aos
ataques das feras, ela prosseguiu no rasto da manada. Huiin era nova e forte, mas
sempre podia acontecer alguma coisa. O melhor seria levar de volta a égua com ela.
Já estava quase na metade do dia quando fmalmente Ayla avistou os ca valos. Eles
ainda estavam nervosos por causa da perseguição sofrida. Ela se achava a favor do
vento. Logo que os animais lhe sentiram o cheiro, começa ram a andar, obrigando-a a dar
uma longa volta para se pôr em posição con trária. Quando chegou a uma certa distância
que dava para vê-los individual mente, reconheceu Huiin. Com o coração disparado,
engolindo em seco, procurava conter as lágrimas que teimavam em vir aos olhos.
"lluiin parece saudável", pensou Ayla. "Está gorda... gorda não. Pre nhe. Oh, Hulin,
que maravilha!" Ela mal conseguia conter-se de tanta alegria. Então não pôde resistir
mais. Tinha de ver se ainda era lembrada. Assoviou.
303 Imediatamente Huiin levantou a cabeça olhando na sua direção. Ao se gundo
assovio, veio andando para encontrá-la. Ayla não agüentou e saiu cor rendo. De repente,
apareceu galopando, interpondo- se entre as duas, uma égua bege que, mordiscando as
ancas de Huiin, conduziu-a de volta. Era a égua madrinha tratando de arrebanhar os
cavalos e pó-los a salvo daquela figu ra desconhecida e provavelmente perigosa.
Ayla estava de coração partido. Ela não podia acompanhar indefinida mente os
cavalos. Já se afastara do vale muito mais do que havia pretendido, além do que eles
podiam locomover-se rapidamente e se perder dela. Mesmo dali, se quisesse chegar à
caverna antes do anoitecer, teria de correr. Por uma última vez, ainda deu um assovio
alto e demorado, mas sabia de que nada adiantaria. Então, triste e desalentada, puxou a
roupa de couro mais para o al to do ombro, abaixou a cabeça defendendo-se contra o
vento, e se virou para voltar.
O desamparo era tão grande que não prestava atenção a nada. Tudo que sentia era
mágoa e desapontamento- Um rosnado subitaniente a fez voltar a si. Havia topado com o
bando de lobos que, mergulhados em sangue, ban queteavam o garanhão baio, fartando-
se a mais não poder.
"É melhor que eu veja por onde vou", pensou, retrocedendo nos pas sos. "Foi tudo
por minha culpa. Se não tivesse sido tão afoita, talvez aquela égua não afastasse a
manada de mim." Ao fazer a volta, deu ainda uma olha da no animal caído. "É uma cor
muito escura. Parece a mesma do garanhão da manada de Huiin." Ela olhou com mais
atenção. "Um certo jeito na cabe ça, a cor, a conformação. - . sim, era o garanhão baio!",
pensou, estremecen do-se. "Como é que um garanhão em pleno vigor de seus anos foi
deixar-se apanhar por lobos?”
A pata esquerda dianteira, dobrada numa estranha posição, deu-lhe a resposta.
Mesmo um cavalo novo e forte podia quebrar a perna quando cor rendo em terrenos
traiçoeiros. Uma grande rachadura no chão havia permi tido aos lobos sentirem o gosto
de sua carne jovem. "Que pena", pensou Ayla, abaixando a cabeça. "Ainda poderia ter
bons anos de vida." Já longe dos lobos, acabou por fim percebendo o perigo que ela
própria corria.
O céu, que estivera tão claro pela manhã, era agora uma massa com pacta de
nuvens ameaçadoras. A alta pressão atmosférica, que vinha conten do o inverno a
distãncia, por fim cedera e a frente fria que se mantivera à espera se precipitou
violentamente sobre a região. O vento achatava a relva seca, ao mesmo tempo que lhe
açoitava os pedaços no ar. A temperatura descia rapidamente. Ela sentia o cheiro da
neve a caminho e se achava muito distante da caverna. Olhou ao seu redor,
procurando orientar-se, e desatou a correr. E tinha de ser uma corrida para valer a
fim de tentar chegar antes da tempestade desabar.
304 Mas não teve sorte. Em passadas largas, levaria mais da metade de um dia
para alcançar o vale e o inverno já havia esperado muito para fazer a sua entrada. Ao
atingir o riacho seco, grandes flocos de neve úmida começaram a cair. Eram, quando o
vento soprava mais forte, agulhas de gelo penetrando-lhe na pele, depois foram ficando
secos, soprados como uma pavorosa nevasca. Os montes cresciam na base sólida da
neve úmida, enquanto os ventos em rede moinho se digladiavam em contracorrentes,
açoitando-a, ora numa ora em outra direção.
Ela sabia que a sua única salvação seria se continuasse caminhando, mas não tinha
certeza se estava no rumo certo. As indicações conhecidas na paisa gem mostravam-se
difusas. Ela parou, procurando localizar-se e também para controlar o pánico que
começava a invadi-la. Como fora idiota em sair sem a sua pele. Poderia ter trazido a sua
barraca, pelo menos abrigada agora estaria. As orelhas ficaram geladas, os pés
dormentes, e os dentes rangiam batendo com força. Toda ela estava fria. Ao seu redor
ouvia o vento zunindo furiosa mente.
Então, prestou atenção. "Mas esse barulho não era vento, ou era?" No vamente
procurou ouvir. Protegendo a boca com as palmas das mãos, ela asso viou alto, o mais
forte que podia, e se pôs à escuta.
O relinchar agudo e esganiçado de um cavalo se fez ouvir. Mais uma vez, ela
assoviou. Em meio à tempestade, tal como uma assombração, avultou-se a figura de um
cavalo amarelo. Com as lágrimas congelando no rosto, Ayla cor reu ao seu encontro.
- Huiin, Huiin. . . oh, Huün! - dizia repetidamente, abraçada ao vigo roso pescoço da
égua e com o rosto enterrado no meio da crina. Quando mon tou, inclinou-se toda sobre o
pescoço, procurando aquecer-se com o calor do animal. Huiin, seguindo os seus
instintos, se dirigiu à caverna. Era para onde estava indo- A inesperada morte do
garanhão havia desnorteado a manada, apesar da égua madrinha manter os animais
juntos, sabendo que algum dia surgiria outro garanhão. Ela teria conservado Huiin
fazendo parte da mana da, não fosse o som do conhecido assovio e a lembrança de Ayla,
sugerindo calor e proteção. Como Huiin não fora criada livre na natureza, não estava tão
sujeita às influências da égua madrinha. A tempestade trouxera-lhe à lem brança a
caverna, um lugar que a abrigava das ventanias e nevascas e onde era tratada com
amor.
Quando chegaram, Ayla tremia tanto que foi um custo para ela conse guir acender o
fogo. No entanto, depois que o teve aceso, não foi para perto da fogueira; agarrou as
suas peles de dormir e se deitou junto de Huiin, acon chegando-se ao calor de seu corpo.
Mas Ayla, nos dias que se seguiram, pouco pôde apreciar a volta da ado rada
amiga. Ela acordava com febre e tossindo secamente. O que a sustenta- 305 va eram os
seus chás medicinais, quando se lembrava de levantar para prepa rá-los. Fluiin salvara a
sua vida, mas não podia ajudá-la na pneumonia.
O tempo quase todo ela passava delirando. Foi o momento da confron tação de
Neném com l-luiin que lhe deu forças para levantar-se, O leão chegou à caverna, pulando
das estepes, acima, para o patamar, mas foi barrado na e trada pelo grito de alarme de
Huiin. O relinchar defensivo e apavorado da égua tirou Ayla de seu estupor. Ela viu Huiin,
com as orelhas caídas para trás e, em seguida, empinando-se nervosamente, enquanto o
leão, mostran do os dentes e rosnando na garganta, preparava-se para dar o bote.
Imediata mente, ela pulou da cama e se pôs entre a presa e o predador.
- Pare, Neném! Isso assusta Huiin. Você devia estar contente de vê-la outra vez aqui
conosco.
Depois, virando-se para a égua, disse:
- Huiin, é Neném quem está aí. Você não precisa ficar com medo de. le. Todos os
dois parem com isso de uma vez! - falou ralhando. Ela não acre ditava que houvesse
qualquer perigo, afinal aqueles animais foram criados jun tos na caverna e eram como
uma parte daquele lugar.
Os cheiros eram conhecidos de ambos os animais, principalmente o da mulher.
Neném correu para cumprimentar Ayla, esfregando-se nela, enquan to Hulin relinchava
agora não de medo ou raiva, mas da maneira como o fa. zia quando Neném não passava
de um mero filhote de leão. Foi, então que ele reconheceu a sua antiga babá.
- Eu não lhe disse, Huiin, que era Neném quem estava aí - falou, di rigindo-se à
égua e logo tomada por um acesso de tosse.
Quando foi atiçar o fogo, ela esticou o braço para pegar a bolsa de água. Estava
vazia. Enrolada na pele de dormir, saiu para encher uma gamela com neve. Enquanto
esperava a água ferver, procurava controlar os espasmos que a obrigavam a tossir.
Sentia a garganta dilacerada. Por fim, graças a um cozimento de raízes de õnulas
misturadas com cascas de cerejas silvestres, a tosse aquietou-se e ela voltou para a
cama. Neném foi instalar.se no canto do fundo da caverna e Huiin acomodou-se em seu
lugar junto à parede.
O vigor e a vitalidade natural de Ayla acabaram prevalecendo sobre a doença, mas
ela ainda levou muito tempo para ficar boa inteiramente. Estava felicíssima em ter de
volta a sua família de bichos, embora já não fosse a mes ma coisa. Os dois haviam
mudado. Huiin estava pesada da prenhez e tinha vivido com cavalos selvagens que viam
os carnívoros como uma ameaça a suas vidas. Mostrava-se reservada com o leão que já
fora para ela um companheiro de brincadeiras. Por seu lado, Neném já não era o mesmo
leãozinho gracioso e divertido. Ele deixou a caverna tão logo passou a tempestade e, à
medida que o inverno avançava, cada vez menos foi aparecendo por lá.
306 A estação já tinha transcorrido mais de sua metade e Ayla continuava com
acessos de tosse, principalmente quando fazia algum esforço mais forte. Mas se cuidava.
E também de Huiin, que era alimentada com cereais e levada para pequenos passeios.
Finalmente, quando surgiu uma manhã clara e fria, ela levantou-se cheia de energia,
achando que um bom exercício faria bem às duas.
Amarrou os balaios em Huiin, pegou as compridas lanças, as traves que formavam o
jorrão, comida, um odre extra de água, roupas, cestas, a barraca, enfim tudo que se
lembrava e que servisse para atender qualquer caso de emergência. Não queria
novamente ser apanhada desprevenida. A vez em que se mostrara displicente, havia
quase morrido. Antes de montar, estendeu sobre o lombo de Hulin um macio pano de
couro, Era uma inovação que ado. tara desde que a égua tinha voltado. Depois de tanto
tempo sem montar, as coxas ficavam doloridas e a pele ferida. A manta de couro fazia
uma grande diferença.
Feliz por se ver ao ar livre e sentindo-se bem por não estar mais tossin do, Ayla uma
vez mais se dirigiu às estepes, deixando que Hulin escolhesse a sua própria andadura.
Montava tranqüilaniente, sonhando como próximo fim do inverno, quando sentiu os
músculos da égua retesarem. Imediatamente a sua atenção foi despertada. Alguma coisa
vinha em sua direção, locomovendo- se com a furtiva sutileza de um carnívoro, I-Iuiin, já
perto da época de parir, estava mais vulnerável do que nunca. Ayla passou a mão na
lança, embora até então nunca houvesse tentado matar um leão da caverna.
Quando o animal aproximou-se, viu uma juba fulva e uma muito conhe cida cicatriz
no focinho, Escorregou do lombo do cavalo e correu ao encontro do gigantesco leão.
Neném parecia tão emocionado com o encontro que as suas costumeiras
esfregadelas de cumprimento por pouco não a derrubaram. Ela envolveu-lhe o pescoço
num abraço e passou a coçá-lo nas orelhas e debaixo do queixo à ma neira que ele
adorava. Neném soltava roncos de gozo. Nisso, não muito distan te, um outro leão rugiu.
Neném interrompeu os seus rosnados e se pôs teso, numa postura que Ayla ainda não
lhe conhecia. Atrás dele surgiu uma leoa que se aproximava cautelosa. A um rugido de
Neném, ela parou.
- Você tem uma companiieira, Neném! Sabia que isto ia acontecer. Sa bia que algum
dia você teria a sua própria família - Ayla olhou para ver se ha via mais leoas. - Por
enquanto só uma, não é, Neném? Ela deve ser nômade igual a você. Agora, vai ter de
lutar pelo seu território, mas isso já é um bom começo. Algum dia você terá uma linda
família.
O leão relaxou-se um pouco e outra vez chegou para perto de Ayla, dan do-lhe
marradas. Ela o afagou na testa e deu-lhe um último abraço. Havia re parado que HUÜn
estava nervosíssima. O cheiro de Neném podia ser conheci- 307 1 do, mas o da leoa
não. Ayla voltou a montar e, quando ele quis aproximar- se, ela lhe fez sinal para ficar no
lugar. Por um instante o leão ficou parado, depois, rugindo baixo, deu as costas e foi
embora seguido pela companheira.
"Bom, Neném se foi. Partiu para viver com bichos iguais a ele", pensou Ayla,
enquanto retornava. "Talvez ele apareça para fazer uma visitinha, mas nunca voltará para
mim como fez Huiin." Ela esticou o braço para acariciar a égua. "Que bom que você tenha
voltado..
Ver Neném com uma leoa deixou-a pensando nela própria, no seu futu ro tão
incerto. "Neném tem agora a sua companheira, você também já teve o seu companheiro,
Huiin. E eu? Será que ainda vou ter alguém?
Jondalar saiu do vão sob a pedreira e olhou o terraço coberto de neve que terminava
abruptamente num precipício. Os altos paredões laterais emolduravam os contornos
brancos e arredondados das colinas do outro lado do rio. Dano, que já esperava por ele,
acenou-lhe. O rapaz se achava ao lado do toco de uma árvore, próximo à pedreira, a uma
certa distância do ponto onde começava o campo, no lugar em que Jondalar havia
escolhido para fazer as suas ferramentas. Era em pleno céu aberto, com boa luz e longe
do caminho das pessoas que, assim, não corriam o risco de pisar em alguma lasca de
pederneira. Ele se encaminhou na direção de Dano.
- Jondalar, espere um momento.
- Thonolan?! - disse Jondalar sorrindo e esperando o seu irmão alcan çá-lo. Eles se
puseram a caminhar juntos pela neve endurecida. - Eu prometi a Dano que esta manhã
iria lhe ensinar algumas técnicas especiais. Como está Shamio?
- Agora está bem. Começa a sarar de sua gripe. Mas ela nos deixou preocupados.
Jetamio nem conseguia dormir por causa da tosse dela. Temos pensado em alargar o
espaço de nossa casa. Queremos ver se no próximo inverno já estamos com tudo pronto.
Jondalar sondou Thonolan com os olhos. Será que as responsabilidades com uma
companheira e com uma família que estava crescendo haviam muda do o seu jeito
folgazão? Mas a sua expressão de felicidade era uma constante. Subitamente Thonolan
enrubesceu e se abriu num grande sorriso de satisfaçâó.
308 - Meu irmão, eu tenho uma coisa para lhe contar. Você reparou como Jetamio
está com as formas mais arredondadas? Eu pensava que fosse só um jeito de quem está
com saúde e bem instalado na vida. Mas não. Jetamio foi outra vez abençoada.
- Isso é ótimo, Thonolan. Eu bem sei o quanto ela deseja ter um filho.
- Ela já sabia há muito tempo, mas não me quis dizer. Não queria que eu ficasse
preocupado. Desta vez parece que ela vai conservar a criança. O shamud falou para não
darmos a coisa como certa, mas se tudo correr bem, o bebê nascerá na primavera.
Jetamio disse que tem certeza de que é uma criança de meu espírito.
- E ela deve saber. Mas quem diria, o boa.vida do meu irmão com casa e
companheira esperando filho!
O riso de Thonolan se alargou ainda mais. A felicidade nele era tão visí vel que
Jondalar não pôde também deixar de dar um sorriso. "Está tão satis feito que parece até
que é ele quem vai ter a criança", pensou Jondalar.
- Ali, à esquerda - falou Dolando em voz baixa. Ele apontava para um bloco de pedra
erguendo- se da crista de um penhasco que lhes tomava todo o campo de visão. Jondalar
olhou, mas estava emocionado demais para focali zar os olhos em qualquer coisa que
não fosse de extrema grandiosidade. Atrás deles estava a floresta pela qual haviam
passado. Na parte mais baixa, ela era formada por carvalhos que a certa altura
começavam ceder terreno às faias. No alto, dominavam os pinheiros e abetos, árvores
que eram mais familiares a Jondalar. Ele já havia visto de longe a crosta da terra elevar-
se em picos até mais grandiosos, mas ao deixarem para trás as árvores, a inesperada
imponên cia do espetáculo o fazia prender a respiração. Apesar da vista já lhe ser
bastante conhecida, ela ainda o emocionava como se a estivesse vendo pela primeira
vez.
A proximidade dos cumes montanhosos o assombrava. Havia um senti do de
imedjato, como se lhe bastasse estender o braço para tocar no tempo. Em reverente
silêncio, o presente falava da sublevação das forças naturais da terra prenhe, parindo a
rocha nua. Sem a floresta, o arcabouço da Grande Mãe ficava exposto, nu, naquela
vertiginosa paisagem. Para mais além, o céu, de um azul forte e uniforme, era um pano
de fundo para os ofuscantes refle xos do sol que fragmentavam os cristais de gelo
colados às rachaduras e bre chas da pradaria alpina, batida pelos ventos.
-Estou vendo! -_ falou Thonolan. - Um pouco mais para a direita, Jondalar. Viu?
Naquela ponta do penhasco...
Jondalar mexia com os olhos até que por fim enxergou a pequenina e graciosa
camurça equilibrando-se na beirada do precipício. O animal ainda conservava um pouco
de sua pele de inverno, mas em alguns pontos ela já 309 17 ri começava a ficar com os
tons acinzentados de verão, que a fazia confundir-se com a rocha. Dois pequenos chifres
saíam retos de sua testa e se curvavam nas pontas para trás. Era como um antílope que
lembrasse um cabrito.
- Estou vendo agora - disse Jondalar. - Lá está ele.
- Talvez não seja ele. As fêmeas também têm chifres - corrigiu Dolando.
- Lembra muito um íbice, não, Thonolan? Só que menores.. . e os chi fres também
são. Mas, assim, de longe.
- Como fazem os Zelandonii para caçar íbices, Jondalar? - perguntou uma moça.
Nos seus olhos havia um brilho de interesse e curiosidade e tam bém de amor.
Ela era apenas uns poucos anos mais velha do que Darvo e, no momen to, estava
vivendo uma paixão juvenil por Jondalar. Nascera shamudoi, mas fora cridada no rio pelo
fato do segundo companheiro de sua mãe ser ramu doi. Agora a mãe terminara a sua
relação de forma intempestuosa, trazendo-a de volta aos shamudoi. Ela não estava tão
acostumada às escarpadas monta nhas como a maioria das meninas shamudoi e só
recentemente mostrara von tade de caçar camurças, depois de descobrir a admiração de
Jondalar pelas mulheres que caçavam. Para sua surpresa, se viu extremamente
interessada.
- Na verdade, não sei muito, Rakario - respondeu Jondalar, dando-lhe um sorriso
gentil. Ele já percebera a paixão da garota. Nada podia fazer senão responder
delicadamente, embora não desejasse encorajá-la. - Havia íbices nas montanhas que
ficavam ao sul de onde morávamos e também em outras mais a leste, mas nós não
caçávamos em terrenos altos. Ficavam muito distan tes. De vez em quando, nas reuniões
de verão, formava-se um grupo para sair numa expedição de caça, mas eu ia junto
apenas para me divertir, já me dando por satisfeito em seguir as instruções dos
caçadores mais experimentados. Es tou ainda aprendendo, Rakario. Pergunte a Dolando
que é exímio na caça de animais monteses.
A camurça saltou para um lugar mais elevado, pondo-se calmamente a olhar a vista
de seu novo posto de observação.
- Como se pode pegar um animal que dá um salto deste? - Rakario suspirou em
muda admiração, vendo a graça natural e a segurança com que o animaizinho firmava os
seus pés. - E se segurar num lugar tão pequeno?
- Quando pegarmos um, Rakario, dê uma olhada nos pés - falou Do lando. -
Somente o contorno deles é duro. A parte de dentro é flexível como a pahna de sua mão.
Por isso é que não escorregam ou se desequilibram. A parte macia, do lado de dentro,
agarra, e a do lado de fora firma. O importan te, quando se caça camurças, é lembrar que
elas olham sempre para baixo. Estão sempre vigiando o lugar por onde caminham e
sabem o que há sob os seus pés. Os olhos são muito afastados um do outro e situados
mais para trás na cabeça, desse modo enxergando o que se passa dos lados, mas não o
que vem do alto. Essa é a vantagem que a gente leva. Quando se consegue aproxi mar
por cima delas, é possível agarrá-las por trás. Mas para isto é preciso mui ta cautela e
paciência.
- E se elas se mexerem antes de você conseguir chegar perto? - pergun tou Rakario.
- Olhe para cima. Está vendo o tom de verde daquela relva? Aquilo é um verdadeiro
banquete depois das forragens de inverno. A camurça que está lá é a vigia. As outras,
machos, fêmeas e filhotes, estão metidas entre as pedras e folhagens. Se a comida
estiver boa, elas não se mexem muito, pelo menos enquanto não sentirem nenhum
perigo por perto.
- Por que estamos aqui parados conversando? Vamos logo - falou Darvo. Ele estava
irritado com Rakario, que o tempo todo se mantinha pendu rada em Jondalar e também
impaciente, querendo que começassem logo a ca çar. Já acompanhara alguns caçadores
de outras vezes, mas só para pegar o rasto, observar e aprender. Jondalar sempre o
levava quando saía com os sha. mudoi
para caçar. Desta vez, no entanto, Darvo havia recebido licença para tentar pegar
um animal. Se o conseguisse, seria o primeiro a matá-lo e, por isso, merecedor de
atenções especiais. Mas ele não estava obrigado a fazê-lo, poderia ser naquele ou em
outro dia qualquer. Haveria mais ocasiões. Pegar uma camurça, um animal ágil e
extremamente adaptado àquele meio, era empresa das mais difíceis. Qualquer um que
conseguisse aproximar-se do animal deveria tentar. Se fossem assustadas e se
pusessem a correr, seria im possível seguir as camurças num terreno cheio de buracos e
esconderijos.
Dolando começou a subir por uma formação rochosa, cuja estratifica ção se fazia
obliquamente em linhas paralelas. As camadas mais moles de de pósitos sedimentários
da parte externa se haviam desgastado, deixando muito convenientemente alguns
degraus para que eles firmassem os pés. A subida que os levaria a se pôr à retaguarda
das camurças seria cansativa, mas não perigosa. Não era preciso ter grandes habilidades
de alpinista.
O bando de caçadores seguia atrás de seu chefe. Jondalar esperava para se pôr ao
fim da fila. Quase todos já haviam começado a subida, quando ele ouviu a voz de Serenio
chamando-o. Surpreso, virou-se. Serenio não gostava de caçar. Raramente ultrapassava
os limites do terreno onde ficavam as mora dias. Jondalar não podia imaginar o que a
teria levado lá, mas, vendo-lhe a expressão do rosto, sentiu um calafrio passando pelo
seu corpo. Ela viera cor rendo e teve de dar algum tempo até poder respirar e falar.
- Ainda bem. - - que consegui alcançá-los. Preciso encontrar Thono lan. - - Jetamio. -
- trabalho de parto. - - -ela conseguiu recompor-se, depois de alguns momentos.
Jondalar tampou os cantos da boca e gritou:
- Thonolan! Thonolan!
t 310 311 Uma das figuras que ia mais à frente na fila virou-se. Jondalar acenou-lhe.
O silencio que se seguiu entre os dois, enquanto esperavam, era embara çoso. Ele queria
perguntar se Jetamio estava bem, mas qualqueT coisa o impe dia.
- Quando começou o trabalho de parto? - perguntou por fim.
- Ontem à noite, ela estava sentindo dores nas costas, mas não falou nada com
Thonolan. Ele estava querendo muito vir a essa caçada e ela tinha medo de que, se
contasse, ele desistisse. Falou apenas que não tinha muita certeza se já eram as dores
do parto. Tenho a impressão de que queria fazer para ele uma surpresa. Quando
Thonolan chegasse, o bebê já teria nascido - explicava Serenio. - Jetamio não queria
preocupá-lo e nem que ele ficasse nervoso enquanto ela estivesse no seu trabalho de
parto.
"Isso é bem de Jetamio, não querer preocupar Thonolan e ele é louco por ela", disse
Jondalar para si mesmo. De repente, lhe ocorreu um pensa mento sombrio. "Mas se
Jetamio queria fazer uma surpresa, por que Serenio teria vindo aqui procurar Thonolan?”
- Está acontecendo algum problema, não é?
Serenio abaixou a cabeça, fechou os olhos e respirou fundo antes de responder.
- O bebê estava em posição errada e ela era muito estreita para que ele passasse -
O shamud acha que foi por causa da paralisia que ela teve há uns anos atrás. Ele me
pediu para buscar Thonolari. . - e você também para ajudar o seu irmão nesse momento.
- Oh, não! Santa Doni, não!
- Não! Não pode ser! Por que isso? Por que ida a Mãe abençoá-la com um filho para
depois levar os dois?
Thonolan, dando murros na palma da mão, andava feito um louco de uni lado para
outro, na casa onde vivera com Jetamio. Jondalar se via inteiramente impotente, não
tendo nada a oferecer, fora o consolo de sua presença. E ninguém podia fazer alguma
coisa também. Thonolan, na sua ter rível dor, expulsava todo mundo que se aproximasse
dele.
- Jondalar, por que logo ela? Por que a Mãe teve de levá-la? Jetarnio teve tão pouca
coisa neste mundo e sofreu muito. . . Era pedir tanto assim? Ter um filho? Alguém que
fosse de sua carne e sangue?
- Não sei, Thonolan. Nem mesmo um Zelandoni saberia responder suas perguntas.
- Mas por que isso? Por que tanto sofrimento? - Thonolan havia para do em frente
ao irmão e falava suplicante. - Ela quase não me reconheceu quando eu cheguei.
Jondalar, ela estava tão sentida. Eu via isto nos seus olhos. Por que tinha de morrer?
- Ninguém sabe por que a Mãe dá e tira a vida.
- A Mãe! Ora a Mãe! Ela pouco está se importando. Eu e Jetamio, nós dois a
honrarnos, e de que adiantou? Nem por isso deixou de levá-la. Eu odeio a Mãe! -
novamente ele voltou a andar de lá para cá.
- Jondalar. . . - era Roshario quem chamava, hesitando em entrar.
Jondalar saiu.
- O que é?
- O shamud abriu para tirar o bebé, depois que ela. . - - Itoshario pes tanejava,
querendo conter as lágrimas. - Ele achava que talvez pudesse salvar a criança. . . isso às
vezes é possível. Mas já não dava mais. Era um menino. Não sei se você vai querer ou
não dizer para Thonolan.
Obrigado, Roshario.
Jondalar percebia que ela estivera chorando. Jetamio era como se fosse sua filha.
Fora Roshario quem a criara, quem cuidara dela na doença e depois durante o longo
período de convalescença. E agora havia acompanhado toda a agonia do malfadado
parto. De repente, Thonolan passou pelos dois, esbar rando neles com 9 seu velho baú
de viagem. Ele se dirigia para o caminho que contornava o penliasco.
- Acho que agora não é uma boa ocasião. Eu falo com ele depois - disse Jondalar,
correndo atrás de seu irmão. - Onde você está indo? - inda gou, quando conseguiu
alcançáio.
- Vou embora. Nunca deveria ter parado aqui. Ainda não cheguei ao fim de minha
viagem.
- Você não podepartir agora - disse Jondalar, segurando.o pelo braço.
'flionolan contorceu-se com força, desvencilhando-se.
- Por que não? O que me prende aqui? - falou, soluçando.
Jondalar novamente segurou-o, obrigando-o a girar com o corpo. O ros to estava tão
transtornado pela dor que Jondalar quase não o reconhecia. Era um sofrimento profundo
demais que lhe dilacerava a própria alma. No entan to, houve ocasiões que ele chegou a
invejar a felicidade de Thonolan no seu amor por Jetamio que o fazia pensar em sua
inaptidão para amar. Teria vali do a pena? Será que o amor valia tantas dores e aflições?
Um pesar tão amargo?
- Você vai deixar que Jetamio e o filho dela sejam enterrados sem você estar
presente?
- Filho? Como você sabe que era um filho?
- O shamud tirou a criança. Achou que talvez desse para salvar o bebê, mas
infelizmente foi impossível.
- Não quero ver a criança que matou Jetamio.
- Thonolan, Thonolan. Foi Jetamio quem pediu para ser abençoada. Ela queria
engravidar e se sentia feliz com isto. Você teria coragem de impedir ri 1 312 313 essa
felicidade? Teria preferido que Jetamio tivesse uma vida longa e triste? fico sempre
esperando vê-la a todo instante. Cada dia que amanhece eu me Uma vida sem filhos e
sempre ansiando por tê-los? Ela conheceu o amor e a felicidade. Primeiro por ter se
unido a você e depois por ser abençoada pela Mãe. Foi por pouco tempo, é verdade, mas
ela me disse que jamais poderia ter sonhado em ser tão feliz como foi junto de você.
Falou também que nada lhe dava tanta alegria como você saber que estava esperando
um filho- Um filho seu, como ela dizia, Thonolan. Um filho de seu espírito. Talvez a Mãe
soubesse que tinha de ser Úm ou outro, e por isso preferiu dar a ela esta ale gria.
- Jondalar, ela nem me reconheceu - falou Thonolan, com a voz em bargada.
- O shamud deu qualquer coisa para que ela tomasse quando o fim já estava
próximo. Não havia esperança da criança nascer e deste modo Jeta mio não sofreria
tanto. Mas ela sabia que você estava lá.
- A Mãe, quando levou Jetanilo, carregou tudo. Eu, que estava cheio de amor, agora
estou vazio. Nada sobrou em mim. Como pode ter ela morri do? - Thonolan começou a
cambalear. Jondalar estendeu as mãos para ampará-lo no momento em que ia cair,
depois o apoiou contra o ombro, enquanto ele chorava o seu imenso desespero.
- Por que não para casa, Thonolan? Se formos agõra, lá pelo inverno teremos
chegado à geleira e na primavera já estaremos em casa. Por que você quer ir para o
leste? - dizia Jondalar com um tom saudoso na voz.
- Você vai, Jondalar. Já devia ter feito isto há muito tempo. Eu sem pre disse que
você sempre foi e será um Zelandonii. Quanto a mim, sigo para o leste.
- Você dizia que a sua viagem seria até a foz do Grande Rio Mãe- Mas depois que
chegar ao Mar Beran, o que pretende fazer?
- Quem sabe? Talvez eu prossiga, contornando o mar. Talvez vá para o norte caçar
mamutes com o povo de Tholie. Os mamutoi dizem que há uma outra cadeia de
montanhas, bem longe, a leste. A palavra casa não tem a menor significaçffo para mim,
Jondalar. Prefiro bem mais sair à cata de coisas novas. Já é tempo de pegarmos
caminhos diferentes, meu irmão. Você segue para oeste e eu para leste.
- Se você não quer voltar, por que então não ficar aqui mesmo?
- Sim, por que não ficar aqui, Thonolan? - falou Dolando, que apare ceu para se
juntar a eles. - E você também, Jondalar. - . seja como shamudoi ou ramudoi, tanto faz.
Vocês agora pertencem a este lugar. Aqui têm família e amigos. Vai nos dar muita pena
ver os dois partirem.
- Dolando, você sabe que eu estava disposto a passar o resto de minha vida aqui,
mas agora não posso. Tudo aqui está cheio demais de Jetamio. Eu lembro que nunca
mais vou tê-la. Desculpe, Dolando, vou sentir saudades de todo mundo, mas tenho de Ir
embora.
Dolando concordou com a cabeça. Não desejava forçá-los a ficar, mas queria que
eles soubessem que lá poderiam contar sempre com uma família.
- Quando vão partir?
- No máximo dentro de alguns poucos dias - respondeu Thonolan.
- Eu gostaria de acertar ainda um negócio, Dolando- Não vou levar nada comigo,
fora roupa e certas coisas necessárias à viagem, mas queria ver se dava para conseguir
um pequeno barco.
- Tenho certeza de que isso pode ser arranjado. Vocês vão descer o rio. . - e
depois? Para leste? Nunca mais vão voltar para Zelandonii?
- Quanto a mim, eu vou para o leste - falou Thonolan.
- E você, Jondalar?
- Ainda não sei. Há Serenio, Darvo. - - Dolando balançou a cabeça, dando a
entender que compreendia. Jon dalar não chegara a formalizar a sua união com Serenio,
mas Dolando sabia que, nem por isso, a decisão seria mais fácil. Ele tanto podia ir para
leste, oes te, ou ficar. Que rumo iria tomar era o que todos se perguntavam.
- Roshario está cozinhando o dia inteiro. Acho que faz isso para se manter ocupada
e não ter tempo de pensar - disse Dolando. - Dará grande prazer a ela se vocês forem
comer conosco. Ela gostaria que Serenio e Darvo também fossem. E mais prazer ainda
teria se comesse um pouco, Thonolan. Roshario está muito preocupada com você.
"Deve estar também sendo muito duro para Dolando", pensou Jonda lar. Ele estivera
tão absorvido com Thonolan que se esquecera da dor da Caverna. Ali fora o lar dela.
Dolando a tratara como se fosse uma filha de sua casa. Jetamio era chegada a muitas
pessoas. Tholie e Markeno eram a sua fa mília. Ele sabia que Serenio havia estado
chorando e Darvo mostrava-se triste, sem querer falar.
- Vou perguntar a Serenio - disse Jondalar. - Tenho certeza de que Darvo gostaria
de vir. Talvez vocês devam contar só com ele. Eu preciso ter uma conversa com Serenio.
Os três caminharam de volta e pararam por alguns instantes junto da fo gueira na
casa central. Tinham falado pouco, mas gostaram de ter estado jun tos. Haviam sido
alguns momentos tristes e saudosos e sabiam que logo esta riam ocorrendo mudanças
que os impediriam de voltar a se juntarem.
A sombra do penhasco começava a pôr um frio de tarde no terraço, embora do lado.
da frente se visse o sol incidindo sobre a garganta do rio. Ali, junto da fogueira e à luz do
lusco-fusco, era quase como se nada houvesse mudado, como se estivessem quase
esquecidos da terrível tragédia. Os três 314 315 se deixavam ficar, querendo segurar o
tempo, cada um entregue ao seu pensa mento que, se fosse exposto, iria surpreendê-los
por se saberem pensando nas mesmas coisas. Eles reviam os acontecimentos que
levaram os dois Zelandoníi para a Caverna e todos se perguntavam se algun dia ainda
voltariam a se encontrar.
- Vocês não vão resolver entrar? - perguntou, por fim, Roshario, sem agüentar
espeiar mais. Ela não queria perturbá-los. Sentia-lhes a necessidade daqueles últimos
momentos de silenciosa comunhão. Nisso, o shamud e Sere nio saíram de suas cabanas
e Darvo largou a companhia de alguns meninos que se agrupavam a uma pequena
distância. Outras pessoas também se apro ximaram da fogueira. O clima estava
irremediavelmente quebrado. Roshario, então, conduziu todos para a sua moradia,
inclusive Jondalar e Serenio, que não se demoraram muito.
Os dois, em silêncio, caminharam para a borda do penhasco e depois fizeram a
volta do paredifo, dirigindo-se a um tronco caído que fazia um ban co confortável para se
observar o pôr-do-sol a montante do rio. A natureza, com um panorama de matizes
metálicos, conspirava, na pura beleza do ocaso, para o silêncio deles. Ao brilho dos raios
descendentes, o cinza plúmbeo das nuvens, iluminando como prata, esparramava um
fulgor de ouro que se estilhaçava no rio. Então, os tons de fogo transformavam o ouro em
cobre brunido que o bronze obscurecia para desaparecer novamente em meio à prata.
Quando os tons prateados já estavam esmaecidos, apenas levemente manchando
as sombras, Jondalar chegou a uma conclusão. Ele virou a cabeça, encarando Serenio.
"Sem dúvida é uma mulher bonita", pensou. ' conví vio fácil e agradável." Ele ia abrir a
boca para falar, mas. - - Vamos voltar? - disse Serenio.
- Serenio. . - eu. - - bom, nós temos vivido juntos e. . - Ela tapou-lhe a boca com um
dedo, silenciando-o.
- Agora não. Vamos voltar.
A voz tinha uma nota de insistência e os olhos revelavam desejo. Ele segurou-lhe a
mão e beijou primeiro os dedos para depois abri-la e beijar a palma. A boca, sequiosa
para explorar outras áreas, encontrou o pulso e per correu o braço, querendo tocar nas
dobras da parte interna do cotovelo, es condido pela manga que ele afastou.
Suspirando, olhos fechados, cabeça jogada para trás, toda ela era con vite. Com
uma das mãos apoiando-lhe a cabeça, ele beijou a garganta palpi tante. Depois a orelha,
a boca. Ela estava expectante, ávida. Beijava-a deva gar, com amor, saboreando a
maciez sob a língua, as pregas do palato, e atraindo-lhe a língua para a sua b6ca.
Quando se separaram, ela ofegava pesa damente. A mão tocou nele, sentindo-lhe a
resposta quente e latejante.
- Vamos voltar - repetiu ela, numa voz rouca.
- Por que voltar? Por que não aqui?
- Se ficarmos aqui, irá terminar muito depressa. Quero o calor das pe les e da
fogueira para não precisarmos correr.
Nos últimos tempos, o amor deles era feito não com fastio, dir-se-ia, an tes, de forma
maquinal. Sabiam como dar prazer um ao outro e tendiam a cair numa rotina, explorando
e inovando apenas rararamente. Essa noite, Jonda lar percebeu, Serenio não estava
querendo o trivial. E ele estava ansioso por satisfazê-la. Segurando a sua cabeça entre
as mãos, beijou-a nos olhos, na pon ta do nariz, nas faces e na orelha, que bafejou
levemente com o seu hállto quentç. Depois, mordiscou-lhe o lóbulo e procurou
novamente a garganta. Quando a sua boca encontrou mais uma vez a dela, ele a beijou
apaixona damente, ao mesmo tempo que lhe puxava o corpo para mais perto.
- Acho que devemos ir, Serenio - disse, suspirando em seu ouvido.
- Era o que eu dizia.
Com o braço passando-lhe por cima do ombro e o dela ao redor de sua cintura, os
dois caminharam de volta, contornando o penhasco. Desta vez, ele não se pôs atrás para
permitir a passagem de um de cada vez. Nem mesmo re parou no precipício que se
despencava abruptamente ao seu lado.
Estava escuro no terraço, tanto pelo negrume da noite como pelas som bras que o
alto paredão projetava, impedindo a luz do luar de filtrar-se para lá. No céu, apenas
algumas poucas estrelas despontavam por entre as nuvens. Quando eles atingiram o vão
embaixo da pedreira, era mais tarde do que ima ginavam. Ninguém se achava junto da
fogueira central, embora a lenha ainda estivesse queimando com altas labaredas. Viram
Dolando e Roshamio e mais algumas outras pessoas dentro de suas casas. Na entrada
da deles, Darvo e Thonolan jogavam um jogo feito com peças esculpidas de osso. Nas
longas noites de inverno, ele e o irmão costumavam jogá-lo, o que podia levar a metade
de uma noite. Era absorvente e ajudava a esquecer as preocupaçôes.
A casa em que vivia com Serenio estava escura. Ele empilhou alguma lenha no
lugar da fogueira e foi buscar uma brasa na casa central para acendê la. Feito isto,
atravessou duas tábuas na entrada e estendeu de lado a lado um pano de couro,
construindo um ambiente aconchegante e privado.
Enquanto Serenio buscava as cuias de beber, ele tirou a roupa que usa va
externamente. Em seguida, apanhou o odre com suco de uva-do-monte e serviu aos dois.
A premência para satisfazer os seus desejos havia passado. A caminhada de volta dera
tempo para ele pensar. "Ela é a mulher mais en cantadora e ardente que já conheci",
pensava, soboreando o suco caloro so. "Já devia há muito tempo ter fomializado a nossa
união. Talvez ela e Darvo gostassem de voltar comigo para casa. Bom, seja aqui ou lá,
quero Serenio para minha companheira.”
(ti 316 317 Sentia-se aliviado com a decisão. Era menos um problema a ser resolvi
do. Mostrava-se feliz pela decisão. Era o certo, o devido. Por que demorara tanto a tomá-
la?
- Serenio, eu tomei uma decisão. Não sei se já lhe disse o quanto vo cê significa
para mim.
- Agora não - falou ela, pondo de lado a cuia e lhe rodeando o pesco ço com os
braços. Levou, então, os lábios para junto dos dele, pressionan do com força. Foi um
beijo longo, demorado, vagaroso, que devolveu o ar dor perdido.
"Ela tem razão", pensou Jondalar, "a conversa pode ficar para depois." Quando o
calor da paixão voltou a se impor, ele a conduziu ao tabla do de dormir, coberto de peles.
A fogueira esquecida punha uma fraca luz no ambiente, enquanto ele lhe explorava a
redescobria o corpo. Serenio jamais deixara de corresponder, mas desta vez ela se abria
parâ ele de uma maneira como nunca o fizera. Repetidamente, encontrou a sua
satisfação, em bora não conseguisse absorvê-lo em sua totalidade. Os auges se
sucediam, um atrás do outro, e quando Jondalar pensava ter atingido o seu limite, ela, va
lendo-se das técnicas dele, aos poucos tomava a reanimá-lo. Num último es forço
extasiante, alcançaram o prazeroso alívio e, exaustos, se deixaram ficar deitados, por fim
satisfeitos.
Como estavam dormiram, nus, por cima das peles. Quando a fogueira apagou, o frio
da madrugada os acordou. Enquanto ela fazia uma outra fo gueira, acesa nas últimas
brasas, ele vestiu uma túnica e saiu para encher o odre. Na volta, o calor dentro da casa
era reconfortante, principalmente de pois do rápido mergulho que dera no lago gelado.
Sentia-se revigorado, bem- disposto, e tifo perfeitamente satisfeito que estava pronto para
qualquer coisa que surgisse. Serenio pós algumas pedras para esquentar e, em seguida,
saiu para fazer suas necessidades. Ao voltar, estava tão molhada quanto ele.
- Você está tremendo - falou Jondalar, embrulhando-a numa pele.
- Você pareceu gostar tanto de seu mergulho que eu também resolvi dar um. Mas
que frio! - disse sorrindo.
- O chá está quase pronto. Vou lhe trazer uma cuia. Fique aqui senta da - disse ele,
forçando-a a reclinar-se no tablado e empilhando uma quanti dade de peles ao seu redor,
até que ela ficasse apenas com o rosto do lado de fora. "Não seria nada mal se eu
resolvesse levar a minha vida com uma mulher como Serenio", pensou. "Será que
conseguiria convencê-la a ir comigo para casa?" A lembrança de Thonolan veio deixar
uma nota triste em seus pensa mentos. ". - - Ah, se eu pudesse convencê-lo também a vir
comigo. Não posso entender essa sua mania de querer ir para o leste.”
Ele entregou a Serenio uma cuia contendo chá de betônica, pegou ou tra para si e
veio se sentar na beirada do tablado.
- Serenio, você algum dia já pensou em fazer uma viagem?
- Você está se referindo a uma viagem para algum lugar que eu não co nheço? Para
um lugar onde as pessoas falam uma língua que eu não entendo? Não, Jondalar, nunca
senti muita vontade de fazer esse tipo de viagem.
- Mas você entende zelandonii e muito bem. Quando resolvemos com Tholie e os
outros aprender línguas, fiquei surpreso da rapidez com que você aprendia. Não será
como se tivesse de aprender uma língua inteiramente desconhecida.
- O que você está querendo dizer, Jondalar?
Ele sorriu.
- Estou querendo tentar persuadi-la a ir comigo para minha casa, de pois que
tivermos formalizado a nossa união. Você irá gostar dos Zelandonii.
- O que você quer dizer com "depois de formalizarmos a nossa união"? O que o leva
a pensar que faremos uma coisa dessas?
Ele ficou confuso. "Claro, deveria ter consultado Serenio antes. Não poderia ter
posto esta idéia de viagem assim tão de supetão. As mulheres gos tam de ser
consultadas, não querem que as coisas sejam apresentadas a elas como fato
consumado." Ele deu um sorriso sem graça.
- Eu resolvi que já era tempo de formalizarmos esse nosso arranjo. Já devia ter feito
isso antes, Serenio. Você é uma linda e encantadora mulher e Darvo também é um ótimo
garoto. Ficaria muito orgulhoso de tê-lo como um filho legítimo de minha casa. Mas
estava esperançoso que você pudesse considerar a idéia de viajar comigo. - - de ir viver
com os Zelandonii. Natural mente, se você não quiser. . - - Jondalar, você não pode
decidir sozinho essa questão de formalizar o nosso arranjo. Eu não pretendo ser a sua
companheira. Há muito tempo que já resolvi sobre isto.
Jondalar ficou vermelho, sentindo-se extremamente embaraçado. Nunca lhe passara
pela cabeça o fato de Serenio não querer tornar-se sua companhei ra. Ele vira só o seu
lado, preocupado apenas com os seus sentimentos, sem imaginar que ela talvez não o
considerasse digno.
- Eu. - - eu peço. - - desculpas, Serenio. Pensei que você também gos tasse de mim.
Não deveria ter sido tão presumido. Você me deveria ter dito para ir embora. - - eu
acharia um outro lugar - ele se levantou e começou a reunir algumas de suas coisas.
- Jondalar, o que está fazendo?
- Pegando as minhas coisas para mudar daqui.
- E por que vai querer mudar?
- Não é que eu deseje, mas você não me quer aqui e...
- Depois de uma noite como essa, como pode dizer que eu não o dese jo? O que
tem isso a ver com a formalização de nossa união?
4 1 4 318 319 Ele voltou e veio sentar-se na beirada do tablado, ficando a olhá-la
den tro dos olhos, enigmáticos como sempre.
-Por que não quer ser a minha companheira, Serenio? Será que eu não sou. . -
bastante homem para você.
- Você. . - não ser bastante homem. . .? - disse com a voz embargada. Ela tinha os
olhos fechados, pestanejando. Por fim, deu um profundo suspiro e falou: - Oh, Jondalar!
Você não ser suficientemente homem! Se não for, quem mais poderá ser nesta terra? E
este é justamente o problema. Você é homem demais, tudo em você é demais. Eu não
agüentaria conviver com essa idéia.
- Eu não entendo. Se estou querendo que seja a minha companheira, por que me
vem dizer que
sou bom demais para você?
- Realmente não pode entender, não é? Você me deu demais, Jonda lar. - já me deu
mais do que qualquer outro homem. Se fosse sua compa nheira, eu teria demasiado,
mais do que qualquer outra mulher já teve na vida. Elas ficariam invejosas. Iriam querer
que os seus homens fossem tifo ge nerosos, bons e afetuosos quanto você. Elas já
sabem que uma simples carícia sua é capaz de fazê- las sentir-se mais vivas, mais. - .
Oh, Jondalar, você é tudo que uma mulher pode desejar.
- Se eu sou tudo isto que você diz, por que então não se toma minha companheira?
- Porque você não me ama.
- Serenio. - . mas eu. . - - Sim, eu sei. À sua maneira, você me ama. Gosta de mim,
jamais faria uma coisa que me magoasse e seria bom e maravilhoso o tempo todo. Mas
eu estaria sempre sabendo que você não me ama. Ainda que chegasse a conven cer-me
do contrário, lá no fundo eu saberia. E, então, começaria a perguntar- me o que há de
errado comigo, o que está me faltando e por que você não pode amar-me.
Jondalar ouvia de cabeça baixa.
- Serenio, um homem pode ser o companheiro de uma mulher sem amar desta
maneira como você fala - ele olhou ansioso para ela. - Quando há outras coisas entre um
homem e uma mulher, quando os dois têm um afe to sincero um pelo outro, eles podem
levar uma vida feliz.
- É verdade. Algumas pessoas conseguem isto. Algum dia eu tomarei a me unir a
alguém e se houver mais coisas entre mim e o meu companheiro, pode ser que não seja
necessário que um ame "outro. Mas, com você, isto não é possível, Jondalar.
- Por que comigo não?
Era tão grande a tristeza que via nos olhos dele que ela quase resolveu reconsiderar
tudo o que havia dito.
-Por que eu iria amá-lo, Jondalar. É uma coisa que não posso evitar. Iria amá-lo e
todos os dias estaria morrendo um pouco, sabendo que você não me ama do mesmo
modo. Nenhuma mulher consegue ficar sem amá-lo, Jondalar. E cada vez que
fizéssemos amor, como esta noite, por exemplo, mais espedaçada eu estaria por dentro.
Com todo esse meu amor e desejo, e sabendo que por mais que você quisesse não
poderia correspondé-lo, de pois de algum tempo eu estaria ressequida, vazia, e acabaria
achando um jei to de tomar a sua vida tão desgraçada quanto a minha. E, no íntimo, você
continuaria a mesma pessoa maravilhosa, dedicada e generosa porque conhe ce os
motivos que me levaram a uma tão grande transformação. Você iria se odiar por isto,
Jondalar. No fim, todo mundo estaria se perguntando o porquê de um homem como você
estar agüentando uma velha amarga e rabu genta. Não, Jondalar, não gostaria de fazer
este maL. - nem a você, nem a mim.
Ele se levantou, foi até a entrada e voltou.
- Serenio, por que eu não consigo amar? Os outros homens, eu vejo, se apaixonam.
O que há de
errado comigo? - o seu olhar era tão angustiado que sofria por ele, amando-o até
mais e desejando que, de alguma forma, ele pu desse amá-la.
- Eu não sei, Jondalar. Talvez você ainda não tenha encontrado a mu lher certa.
Quem sabe se a Mãe não lhe está reservando alguém especial? Ela não costuma fazer
muitos iguais a você. Realmente, arcar com um homem como você é dificílimo. A maioria
das mulheres não conseguiriam. Se todo o seu amor for concentrado numa só, ela não
resistirá, a não ser que seja uma mulher favorecida pela Mãe com predicados iguais aos
seus. Ainda que me amasse, eu não sei se poderia conviver com o seu amor. Se você
amar uma mulher tanto quanto ama o seu irmão, ele terá de ser muito forte.
- Ora veja, eu não consigo me apaixonar, mas mesmo que isto aconte cesse,
nenhuma mulher agüentaria o meu amor - falou ele, dando um riso amargo e irônico. -
Com isto, é para ficarmos desconfiados das graças que a Mãe nos concede - os seus
olhos à luz rubra da fogueira mostravam-se num tom escuro de violeta e cheios de
apreensão. - O que você quer dizer com "se amar uma mulher tanto quando ama o seu
irmão?" Se nenhuma mulher é forte bastante para arcar com o meu amor, você está com
isso pretendendo dizer que eu preciso. - . de um homem?
Serenio deu um sorriso, depois acabou rindo.
- Absolutamente- Eu não estou dizendo que ama o seu irmão como um homem ama
uma mulher. Você não é o shamud que tem o corpo de um sexo e inclinações do outro. A
essas alturas, você já saberia, já teria atendido os apelos de sua verdadeira vocação e,
tal como o shamud, teria encontrado aí um amor. Não - prosseguiu ela, sentindo uma
onda de calor com o seu pen 320 321 sarnento - você gosta muito do corpo de uma
mulher. Mas isto não impede que você ame o seu irmão mais do que tudo neste mundo.
Foi por esta ra zão que desejei tanto tê-lo esta noite. Quando Thonolan partir, você irá
junto e eu nunca mais vou vê-lo, Jondalar.
Logo que Serenio acabou de dizer isso, percebeu que ela tinha razão. Pouco
importava o que antes havia decidido: quando chegasse a ocasião, iria embora com
Thonolan.
- Como sabia disso, Serenio? Eu jamais poderia desconfiar. Quando cheguei aqui,
estava certo de que seria a minha companheira e que eu fria instalar-me definitivamente
com os sharamudoi, no caso de você não querer voltar comigo.
- Acho que todo mundo sabe que você sempre acompanhará Thonolan para
qualquer lugar que ele for, O shamud disse que esse é o seu destino.
A curiosidade de Jondalar sobre o shamud nunca fora satisfeita. De re pente, ele
perguntou:
- Diga-me uma coisa, Serenio. O shamud é homem ou mulher?
- Você quer realmente saber?
Ele pensou melhor.
- Não. Acho que não tem importância. O shamud não quis dizer-me... talvez o
mistério seja importante para. - - ele?
Seguiu-se, então, um silêncio. Jondalar olhava para Serenio, querendo reter a
imagem dela naquele instante. Os cabelos ainda estavam molhados e em desalinho, mas
ela já se sentia aquecida e afastara as peles para o lado.
- E quanto a você, Serenio? O que pretende fazer?
- Eu o amo, Jondalar - disse simplesmente, como se apenas constatas se um fato. -
Não vai ser fácil esquecê-lo, mas você me deu algo. Eu tinha medo de amar. Foram
tantas as coisas que eu amei e perdi que acabei afastan do o amor de minha vida. Sabia
que iria perdê1o também, mas mesmo assim eu o amei. Agora sei que posso voltar a
amar e, se outra vez perder, nem por isso o amor deixará de existir para mim. Isto foi
você quem me deu e. - . tal vez tenha dado outra coisa também - surgiu um sorriso
misterioso. - Pode ser que daqui a uns tempos alguém que eu vá amar muito entre na
minha vida. Ainda está cedo para se ter certeza, mas acho que fui abençoada pela Mãe.
Depois que perdi o meu último filho, pensava que isso não fosse mais possí vel. - - afinal,
tantos anos sem receber a sua bênção. Deve ser uma criança de seu espírito, Jondalar.
Se o bebê sair com os seus olhos, eu saberei.
A testa de Jondalar vincou com as suas costumeiras ruga.
- Serenio, neste caso eu devo ficar. Na sua casa não há um homem pa ra sustentar
a criança e você.
- Jondalar, não precisa preocupar-se. Jamais uma mãe e o seu filho dei xaram de
ser amparados. Mudo disse que todas as mulheres que ela abençoa devem ser ajudadas.
Por isso, criou os homens, para que eles levem, às mies, as dádivas da Grande Mãe
Terra. A Caverna, tal como a Mãe, mantém os seus filhos. Ela irá cuidar de mim e do meu
bebê. Você deve seguir o seu destino, e eu o meu. Não quero esquecê-lo, Jondalar, e se
tiver um filho de seu espíri to, pensarei em você da mesma forma como penso no homem
que amei quan do Darvo nasceu.
Serenio havia mudado, mas continuava a mesma mulher que nada pedia, que
nenhuma obrigação impunha. Ele a abraçou. Ela o olhou dentro de seus irresistíveis
olhos azuis. Os dela nada escondiam: o amor, a tristeza por per dê-lo, e ao mesmo tempo
a alegria pelo tesouro que carregava em seu ventre. Através de uma fenda na parede
viram uma luz pálida anunciando o novo dia. Ele se levantou.
- Onde você vai, Jondalar?
- Só um instantinho lá fora. Bebi muito chá .- ele deu um sorriso que lhe iluminou os
olhos. - Mas não deixe a cama esfriar, a noite ainda não aca bou - disse, enquanto se
inclinava para beijá- la. - Serenio. - . - a voz era em bargada pela emoção - você significa
para mim mais do que qualquer outra mulher que já conheci em minha vida.
Não era o bastante. Ele iria partir, mas ela sabia que, se pedisse, ele fica ria. Só que
não o fez e, em troca, ele lhe deu o máximo que conseguia dar de si. No entanto, era
mais do que qualquer mulher já recebera.
ver.
18 - minha mãe disse que você queria me Pela postura dos ombros e o olhar
preocupado, Jondalar percebeu o es tado de tensão de Darvo. O garoto vinha evitando-o
e ele imaginava qual fos se a razão. Embora sorrisse, tentando parecer natural, as suas
atitudes, que sempre foram calorosas e amigas, se mostravam hesitantes. Com isto, mais
nevoso ainda ficou Darvo, cujo medo era justamente ver confirmadas as suas suspeitas.
Pelo seu lado, Jondalar vinha protelando a conversa com o garoto. Ele retirou da
prateleira uma roupa cuidadosamente dobrada e sacudiu-a.
- Acho que dentro de pouco tempo isto estará servindo para você. Que ria que
ficasse com esta roupa, Darvo.
322 323 Por instantes os olhos do menino se iluminaram, olhando cheio de pra zer
para a camisa zelandonii com os seus ornatos intricados e exóticos. Mas então o ar de
preocupação tornou a aparecer.
- Você vai embora, não é? - disse em tom de acusação.
- Thonolan é meu irmão, Darvo, e.
- E eu não sou nada.
- Isso não é verdade. Bem sabe o quanto eu gosto de você. Mas flono lan está
sofrendo muito e parece completamente fora de seu juízo. Eu fico com medo por ele. Não
posso deixá-lo sozinho e, se eu não cuidar do meu ir mão, quem fará isso? Por favor,
tente entender. Não estou fazendo esta via gem para o leste porque quero.
- Você voltará?
Jondalar fez uma pausa.
- Não sei. Não posso prometer. Não sei para onde estamos indo e nem por quanto
tempo vamos ficar viajando - ele estendeu a camisa na direção de Darvo. - Queria que
você ficasse com isso. É uma lembrança do homem dos zelandonii. Darvo, escute, quero
que saiba que você sempre será o primeiro fi lho de minha casa.
O menino, com as lágrimas ameaçando cair, olhou para a túnica recama da de
contas.
- Eu não sou filho de sua casa! - gritou. Em seguida deu as costas e saiu correndo.
Jondalar quis ir atrás dele, mas desistiu. Foi até o tablado e lá colocou a camisa.
Depois, devagar, saiu.
Carlono, de sobrolho franzido, olhava para as nuvens baixas.
- Acho que o tempo vai manter-se firme, mas se vier algum temporal, encostem na
margem, apesar de que, enquanto não passarem pela garganta, não vão encontrar
muitos lugares para aportar. Quando chegarem à planície do outro lado da garganta, a
Mãe se divide em diversos canais. Lembrem-se: vo cês devem sempre conservar-se
perto da margem esquerda. O rio dobra para o norte antes de atingir o mar e, em
seguida, para leste. Logo depois da curva ele se junta, à esquerda, a outro grande rio,
que é o maior dos tríbutários. Um pouco mais adiante já é começo do deita, a saída para
o mar. Mas até chegar lá há muita água para correr. O deita é imenso e perigoso. Muitos
pântanos, brejos e bancos de areia. A Mãe, então, novamente se separa, quase sempre
em quatro canais que dão origem a muitos pequenos cursos e a um ou dois gran des
rios. Conservem-se no canal da esquerda que segue para o norte. Há um acampamento
mamutoi perto da foz.
O experiente barqueiro já fizera antes essa viagem, inclusive havia dese nhado na
terra um mapa para mostrar-lhes como chegar à foz do Grande Rio Mãe, e agora estava
apenas repetindo as informações. Os dois precisavam ter tubo bem guardado na
memória, principalmente porque as decisões às vezes tinham de ser tomadas com
rapidez. Ele não se sentia muito confiante vendo Jondalar e Thonolan viajando por um rio
desconhecido sem terem ao lado um bom barqueiro para guiá-los, mas haviam insistido,
ou melhor, Thonolan insis tira, e Jondalar, para não deixá.lo ir sozinho, o acompanhava.
Esse pelo me nos tinha adquirido uma certa experiência no manejo das embarcações.
Agora estavam eles no cais, já com a bagagem dentro de um pequeno barco.
Entretanto faltava à despedida dos dois o clima de excitação que em geral acompanha
aventuras daquele tipo. Thonolan viajava unicamente por não agüentar ficar com eles e
Jondalar teria preferido muito mais estar voltan do para a sua casa.
Thonolan perdera o seu brilho. A sua natureza franca e calorosa havia desaparecido
e ele era hoje um homem macambúzio, quase sempre mal-humo rado, dado a rompantes
de raiva que, freqüentemente, o levavam a atitudes impensadas e imprudentes. A
primeira discussão séria entre os dois só não ter minou em socos porque Jondalar
recusou-se a lutar. Thonolan acusava o ir mão de estar tratando-o como criança. Ele
queria ter o direito de levar a vida como bem entendesse, sem ter Jondalar sempre nos
seu calcanhares. Quando soube da possibilidade de Serenio estar grávida, ficou furioso.
Era impensável que Jondalar fosse abandonar uma mulher que, talvez, carregasse um
filho de seu espírito para segui-lo em seu destino incerto. Ele insistiu para que Jonda lar
ficasse e fizesse o que qualquer homem decente faria: responder pelo sus tento da
mulher.
Mesmo Serenio recusando-se a ser sua companheira, Jondalar não deixa va de
sentir que Thonolan tinha razão. Desde que nascera, ele fora educado na crença de que
a responsabilidade do homem e o seu único propósito era o de prover às necessidades
das mães com os seus filhos, sobretudo o de uma mu lher que tinha sido abençoada com
uma criança que, por misteriosas vias, ha via absõrvido o seu espírito. Mas Thonolan
estava resolvido a partir e ele insis tira em acompanhá1o, temendo que o irmão pudesse
praticar algum desatino. A relação entre os dois continuava tensa e difícil.
Jondalar não sabia muito bem como despedir-se de Serenio, quase tinha medo de
encará-la. No entanto, no momento em que se curvou para beijá-la, ela tinha um sorriso
no rosto. Não se permitiu qualquer demonstração maior de sentimentos, apenas os olhos
estavam um pouco inchados e vermelhos. Ao procurar por Darvo, ele ficou desapontado
por não vê-lo entre as pessoas que vieram até o cais. Quase todo mundo se encontrava
lá. Quando Jondalar entrou no barco e se sentou no banco traseiro, Thonolan já estava
instalado. Carlono desatou a corda e ele suspendeu o remo. Ao dar uma última olhada
para o terraço em cima, viu um menino perto da beirada do penhasco, usando 324 325
uma camisa que ainda levaria alguns anos para servir-lhe, mas de modelo inconfundível.
Uma camisa zelandonii, sem dúvida. Jondalar sorriu e ace nou com o remo. Darvo
retribuiu-lhe, e ele então mergulhou o remo de duas pás na água.
Os dois irmãos ganharam a corrente central e viraram a cabeça, olhando pela última
vez o cais e os amigos que lá haviam deixado. Será que algum dia ainda tornariam a ver
os sharamudoi, ou pelo menos algum deles? Perguntava- se Jondalar quando
começaram a descer o rio. A viagem que se tinha iniciado como uma aventura - um
pouco contra a sua vontade - cada vez mais perdia interesse e mais ele se via afastado
de casa. O que esperava Thonolan en contrar nessa sua caminhada para o leste? E o
que o estaria aguardando nessas paragens?
A grande garganta do rio foi prenunciada por um céu pesado e sombrio. Blocos de
rocha nua brotavam da água, fazendo altas bordas-falsas dos dois la dos da embarcação.
Na margem esquerda uma série de muralhas rochosas e pontiagudas formava um relevo
acidentado que se alteava até os longínquos picos gelados. Na da direita, as montanhas
de topos arredondados - erodidos e sem vida - davam a ilusão de meras colinas, mas que
vistas do pequeno bar co pareciam de uma altura formidável, Os enormes blocos e
pontas de pedra vinham à superfície, dividindo o rio que redemoinhava em caracóis de
água cristalina.
Os dois estavam lá como se fizessem também parte do meio em que via javam,
impulsionados tal como os detritos flutuando sobre as suas cascas ou as vasas nas
profundezas silenciosas. Eles não controlavam nem a velocidade nem a direção. Quando
muito, contornavam algum obstáculo à frente. No ponto em que o rio se alargava, com
quase dois quilômetros entre as margens, ele era como um mar com ondas altas que
jogavam a embarcação para o fun do. Depois, voltou a estreitar- se e os dois sentiram
uma mudança na força quando o fluxo das águas começou a encontrar resistência, A
correnteza fica ra muito mais forte já que o mesmo volume de água era agora obrigado a
pas sar por uma estreita garganta.
Eles já haviam feito mais de um quarto do caminho, quando a chuva que há algum
tempo ameaçava despencou num tremendo temporal, açoitando as ondas para o interior
da pequena embarcação. Não havia nenhuma praia à vista, apenas rochedos íngremes e
molhados.
- Eu posso dirigir, enquanto você retira a água do barco, Thonolan - falou Jondalar.
Até então haviam conversado pouco, mas a animosidade entre os dois desaparecera
depois que passaram a remar ritmicamente para manter o barco no rumo certo.
Thonolan recolheu o seu remo e, com um recipiente de madeira, pareci do a uma
caçamba, se pôs a esvaziar o barco.
- Entra mais água do que a que consigo tirar - falou gritando, com a cabeça voltada
para trás.
- Essa chuva não deve demorar. Se você conseguir manter um certo equilíbrio, acho
que podemos sair dessa - respondeu Jondalar, lutando con tra o tumulto das águas.
O temporal cedeu. As nuvens continuavam ameaçadoras, mas consegui ram passar
pela garganta sem maiores atropelos.
Igual a um cinto muito apertado que é desamarrado, o rio lamacento e regurgitando
se espalhava ao atingir a planície. Canais serpenteavam ao redor de ilhas de salgueiros e
juncos, formando esplêndidos viveiros de gansos, gar ças, cegonhas, patos e um número
infindável de outros pássaros.
A primeira noite eles acamparam em meio à relva da pradaria à margem esquerda.
A base dos picos alpinos começava a afastar-se da margem, mas as montanhas
arredondadas da margem direita continuavam a dirigir o curso do Grande Rio Mãe para o
leste.
Jondalar e Thonolan entraram tifo rapidamente na rotina da viagem que era como se
não tivessem vivido aquele número de anos com os sharamudoi. No entanto, o clima já
não era o mesmo. Desaparecera o alegre espírito de aventura que antigamente os
animava, quando iam procurar qualquer coisa que estivesse atrás de uma curva, movidos
simplesmente pelo prazer de uma descoberta. O dinamismo de Thonolan era agora
qualquer coisa que chegava às raias do desespero.
Jondalar tentara uma segunda vez falar na possibilidade de voltarem, mas acabaram
numa acirrada discussão, e depois disso preferiu não tocar mais no assunto.
Quando conversavam era quase exclusivamente para troca de informa ções. Só
restava a Jondalar esperar que o tempo aplacasse a dor de Thonolan. Algum dia talvez
ele resolvesse voltar para casa e, então, seria possível reas sumir a sua vida. Enquanto
isto não acontecesse, Jondalar estava firmemen te decidido a permanecer ao seu lado.
Eles viajavam multo mais rapidamente descendo o rio na piroga do que se tivessem
vindo caminhando pela margem. Levados pela corrente, facilmen te ganhavam
velocidade. Tal como Carlono dissera, o rio virava para o norte quando chegava à
barreira formada pelas montanhas de topo arredondado, muito mais antigas do que a
cadeia ao redor da qual o rio fluía. Mesmo dimi nuídas pela avantajada idade, essas
montanhas representavam um obstáculo para o rio no seu afi de alcançar o mar interno.
Inibido no seu curso, ele procurava outro rumo. A estratégia para o nor te
funcionava, pelo menos até o ponto onde fazia a última de suas curvas na direção do
leste, quando então mais outro grande rio vinha dar a sua contri buição de água e limo
para a já sobrecarregada Mãe. Com o caminho, por fim, 326 327 desimpedido, um só
curso não lhe era mais suficiente. Embora ainda tivesse muitos quilômetros a percorrer, o
grande rio novamente tornava a dividir-se em vários canais num delta em forma de leque.
O deita era um pântano de areia movediça, charcos de água salgada e pe quenas
ilhas instáveis. Algumas dessas ilhotas lodosas permaneciam lá um cer to número de
anos, o tempo para que pequeninas árvores pusessem algumas raízes de fora que
seriam minadas pelas infiltrações no terreno ou carregadas pelas inundações sazonais.
Quatro canais - dependendo da estação e das cir cunstâncias - seguiam para o mar, mas
os seus cursos eram variáveis. Sem qualquer razão aparente, a água, subitamente, safa
de um leito estabelecido para um novo curso, destroçando a vegetação e deixando atrás
um sumidouro de areia movediça.
O Grande Rio Mãe, depois de percorrer cerca de 1.200km, havia prati cainente
chegado ao seu destino. No entanto, o deIta com suas centenas de quilômetros de lama,
vasas, areia e água era o ponto mais perigoso ao longo de todo o percurso.
Enquanto seguiam pelas partes mais fundas dos canais à esquerda os dois não
tiveram muita dificuldade de manobrar a piroga. A correnteza os levou ao redor da curva
e botou a pequenina embarcação no rumo do norte. Mesmo quando surgiu o último dos
grandes tributários, este os arrastou para a cor rente central. Mas eles não perceberam a
tempo que o rio logo se dividiria em canais e, antes que se dessem conta, foram varridos
para um canal do meio.
Jondalar conseguira uma certa perícia no manejo do pequeno barco. Thonolan,
menos, mas os dois estavam muito aquém dos experientes barquei. ros ramudoi. Eles
tentaram virar a piroga e retroceder na contracorrente para entrarem no canal desejado.
O certo seria se tivessem invertido a direção em que vinham remando, pois a forma da
proa e da popa não diferia muito, mas nem chegaram a pensar nesta possibilidade.
Ficaram com o barco atravessado na corrente. Jondalar gritava para Thonolan, cada
vez mais impaciente, que ele fizesse força para mudar a dire. ção da proa. Nisso, um
enorme tronco encharcado, com uma parte submersa e cheio de raízes, veio descendo
pelo rio. As raízes arrebanhavam tudo que houvesse em seu caminho. Quando os dois
perbeceram, já era tarde demais.
Com estrondo, a ponta dentada do enorme tronco - quebradiça e ene grecida no
ponto onde um raio a partira - enterrou-se na fina amurada da pi roga. A água logo
começou a entrar pelo furo feito no costado. No momento em que foram atingidos, uma
das raízes que se achava pouco abaixo da super fície bateu nas costas de Jondalar,
derrubando-o. Ele ficou lívido de dor. Uma outra raiz, que por pouco não pegou os olhos
de Thonolan, lhe deixou um arranhão no rosto.
Subitamente, imersos na água fria, os dois agarrados ao tronco, viram, desolados, o
pequeno barco com todos os seus pertences afundar-se em meio às bolhas de água.
Thonolan, que ouvira o gemido de dor de seu irmão, perguntou:
- Você está bem, Jondalar?
- Uma raiz me pegou nas costas e está doendo um bocado, mas acho que não é
nada sério.
Com Jondalar atrás, seguindo vagarosamente, Thonolan começou a abrir caminho
por entre as raízes, mas a força da correnteza os arrastava, jun to com os entulhos, de
volta para o centro do tronco. Inesperadamente, o enorme toco chocou-se contra um
banco de areia submerso. As águas fluin do ao redor e por entre as aberturas da teia de
raízes trouxe à tona os objetos que se achavam presos, sob o tronco. O cadáver de uma
rena, inchado de água, surgiu na frente de Jondalar. Morto de dor, ele tratou de sair de lá.
Uma vez desvencilhados do tronco, nadaram para uma ilhota no meio do canal. Lá
havia alguns pés de salgueiro, pelo menos enquanto as inunda ções não os arrancasse.
As árvores próximas da margem já estavam parcial- mente submersas, afogadas, sem
nenhum broto primaveril nos galhos e com as raízes se desprendendo, dobrando-se
sobre as corredeiras. O chão era um charco esponjoso.
- Acho que devemos prosseguir para ver se arrumamos um lugar mais seco - falou
Jondalar.
- Você está sentindo um bocado de dor. Não me venha dizer que não, porque sei
que está.
- Mas nós não podemos ficar aqui - disse Jondalar, admitindo.
Eles se meteram dentro da água fria, pondo-se a atravessar o estreito banco de
areia junto da ilhota. A correnteza estava mais forte do que tinham imaginado e só depois
de serem arrastados para um ponto bem baixo no ca nal é que foram encontrar terra
seca. Mas então, desapontados, sentindo frio e cansaço, perceberam que tinham ido dar
numa outra ilhota. Era mais larga e comprida, apenas pouco acima do nível do rio, mas
igualmente encharcada e sem lenha seca.
- Não vamos poder fazer uma fogueira aqui - falou Thonolan. - Te mos de ir em
frente. Onde Carlono disse que era mesmo o acampamento ma mutoi?
- Na ponta norte do deIta, perto do mar - respondeu Jondalar, olhando, ansioso,
nessa direção. A dor em suas costas aumentara e ele não tinha muita certeza se
conseguiria nadar através de outro canal. Tudo que se achava à vista eram cursos de
água encapelada, montes de detritos e alguns punhados de ár vores formando uma
pequenina ilha aqui e ali. - Impossível dizer a que dis tância está daqui - acrescentou.
Eles começaram a patinar pelo lamaçal indo no rumo do norte e depois 328 329
afundaram outra vez dentro da água. Jondalar reparou num grupo de árvores mais abaixo
no canal e se dirigiu para lá. Cambaleantes, respirando com difi culdade, subiram para
uma praia de areia cinzenta, situada na extremidade do canal. A água escorria-lhes das
longas cabeleiras e caía sobre as vestes de cou ro, encharcadas.
O sol da tarde filtrava-se por uma rachadura nas nuvens escuras, pondo um brilho
dourado na paisagem, mas pouco servia para aquecer. Uma súbita rajada de vento
soprada do norte rapidamente atravessou-lhes as roupas mo lhadas, deixando-os
gelados. Até então a atividade mantinha-os aquecidos, mas o esforço despendido acabou
desgastando-lhes as reservas. Tremendo com o vento frio, arrastaram-se até o mirrado
bosquete de amieiros.
- Vamos acampar aqui - falou Jondalar.
- Ainda está claro, prefiro continuar.
- Até conseguirmos arrumar um abrigo e fazer uma fogueirajá vai ser de noite.
- Se continuarmos, há probabilidade de encontrarmos o acampamento mamutoi
antes que escureça.
- Thonolan, tenho a impressão de que não vou conseguir.
- Como é que está este machucado?
Jondalar suspendeu a sua túnica de couro. O ferimento nas costas co meçava a
mudar de cor ao redor de um talo que sem dúvida tinha sangrado e depois fechado com a
água fria. No couro, havia um furo. Ele não sabia se estaria ou não com alguma costela
partida.
- Até que eu gostaria de descansar um pouco e acender uma fogueira.
Olhando à volta, viram uma grande extensão de água lamacenta, bancos de areia
movediça e uma vegetação profusa e emaranhada. Os galhos enreda dos uns nos outros
procuravam apoiar-se em qualquer coisa que existisse no chão escorregadio, tentando
resistir à correnteza que os arrastava para o mar. A certa distância de onde se achavam,
havia alguns arbustos verdes e um pe queno arvoredo plantado em ilhotas estáveis.
Caniços e vegetação de brejo prendiam-se em qualquer lugar onde fosse possível
enraizamento. Perto, uma moita de juncos com um metro de altura, cujas folhas
graminiformes pareciam mais resistentes do que de fato eram, equiparava-se em
tamanho aos cálamos de folha reta e em forma de espada, crescendo entre espigas de
gramíneas que mal tinham dois centímetros de comprimento. No pãntano perto da
beirada da água, cavalinhas, taboas e jun cos, com mais de três metros de altura,
sobrepunham-se aos homens e, pairan do acima de tudo, os caniços de folhas duras e
penachos vermelhos.
Thonolan e Jondalar tinham apenas a roupa que vestiam. Haviam perdi do tudo
quando o barco afundou, até mesmo os baús que os acompanhavam desde o início da
viagem. Thonolan adotara a vestimenta dos shamudoi e Jon dalar a variação que os
ramudoi davam ao traje. No entanto, desde que ele afundara no rio, à ocasião de seu
encontro com os cabeças-chatas, passara a trazer, atada ao cinto, uma sacola com
ferramentas. Agora dava graças por ter tido a idéia.
- Vou ver se consigo um pedaço de junco velho para uma verruma de fazer fogo -
falou Jondalar, tentando esquecer-se de sua dor nas costas. - Veja se consegue pegar
alguma lenha seca.
Havia juncos velhos em quantidade mais do que suficiente para um pau de
verrumar. Folhas compridas, entrelaçadas ao redor de uma armação de amieiro, fizeram
uma coberta que ajudava a guardar o calor da fogueira. A folhas verdes da parte de cima
da vegetação e raízes novas, assadas junto com os rizomas adocicados dos cálamos,
serviram de entrada para o jantar. O tron co de um amieiro novo, afiado numa das pontas
e atirado com a precisão que a fome impunha, lhes rendeu dois patos. Em seguida eles
teceram, com os ta los compridos e macios da taboa, esteiras flexíveis que usaram para
aumentar a cobertura em cima deles e para se cobrirem enquanto as roupas secavam.
Mais tarde, usaram-nas para forrar o chão e dormir.
Jondalar não dormiu bem. Sentia as costas doendo. Sabia que por den tro alguma
coisa estava quebrada, mas não lhe era possível pensar nisso agora. Primeiro, eles
tinham de encontrar um caminho que os levasse a alguma terra fmne.
Pela manhã, pescaram peixes com cestas feitas de folhas de taboa, ga lhos de
amieiro e cordas de Libras vegetais. Depois de alimentados, enrolaram os materiais de
fazer fogo e as cestas dentro das esteiras, ataram-nas com cor das, puseram a tralha nas
costas, apanharam as lanças e se puseram a caminho. As lanças não passavam de
pedaços de paus pontudos, mas já haviam garanti do a eles uma refeição e as cestas de
pescar uma outra. A sobrevivência depen dia da sabedoria e também de como se
achassem equipados.
Os dois irmãos tinham uma pequena divergência de opinião a respeito de que
direção tomar. Thonolan achava que haviam atravessado o deita e que ria ir para o leste,
no rumo do mar- Jondalar para o norte. Estava certo de que ainda havia um outro canal a
ser atravessado. Concordaram em seguir na dire ção nordeste. Jondalar provou estar
certo, embora ele tivesse preferido que, desta vez, estivesse errado. Por volta do meio do
dia eles chegaram ao canal que se localizava mais ao norte do grande rio.
- Vamos ter de nadar outra vez - falou Thonolan. - Será que consegue?
- E que mais posso fazer?
Eles se encaminharam para a água. De repente, Thonolan parou.
- Por que não amarramos nossas roupas como costumávamos fazer? Assim não
vamos ter de ficar esperando que sequem depois.
- Tenho minhas dúvidas. Ainda que molhadas, as roupas sempre aju 330 331 dam a
aquecer um pouco - Thonolan vinha se mostrando mais razoável, em bora a sua voz
denotasse irritação e amargura. - Mas se é como você quer.
- disse Jondalar, encolhendo os ombros e condescendendo.
Nus, de pé, sentiam-se gelados com o ar frio e úmido. Jondalar ficou tentado a atar
a sua sacola de ferramentas ao redor da cintura, mas Thonolan já estava enrolando-a na
túnica e amarrando tudo numa tora que encontrara. Nunca ele sentira tanto frio como
quando a água lhe tocou no corpo nu e, se não cerrasse fortemente os dentes, teria
gritado no momento em que se viu mergulhado. No entanto, a água gelada de certa
forma amortecia a sua dor. Enquanto nadava, procurava proteger as costas, seguindo
devagar atrás de Thonolan, que se encarregara de puxar a tora.
Ao saírem da água, arrastando-se para um banco de areia, a foz do Grande Rio Mãe
- o destino inicial da viagem - ficou à vista. Lá estavam as águas do mar interno. Mas não
houve a emoção esperada. A viagem perde ra o propósito e o fim do rio há muito deixara
de ser o objetivo. Além do mais, eles não estavam ainda em terra firme, O deita ainda
não fora vencido. Eles se encontravam num banco de areia que, em outros tempos, havia
sido o leito de um canal deslocado para um outro lugar. Faltava-lhes ainda cruzar aquele
antigo rego de água.
Uma ribanceira arborizada, cheia de raízes pendurando-se da terra, no ponto onde
outrora as águas escavaram a margem, acenava-lhes convidativa- mente. No entanto,
não fazia muito tempo que aquele canal desaparecera. A água ainda enlameava a terra
no meio do leito vazio e a vegetação mal tinha enraizado. Os insetos já haviam
descoberto as poças de água estagnada e um enxame de mosquitos atacava os dois.
Thonolan desamarrou as roupas do tronco.
- Ainda temos de passar por esse charco e a margem está muito enla meada. £
melhor atravessarmos primeiro para depois pormos a roupa.
Jondalar balançou a cabeça concordando. A sua dor era muito forte para pensar em
discutir naquele momento. A sua impressão era a de que, en quanto nadava, alguma
coisa se havia deslocado dentro dele.
Thonolan desceu a pequena rampa que anteriormente fazia o declive da margem
para o rio, batendo nos mosquitos que o mordiam.
Os dois haviam sido bastante avisados para jamais dar as costas ao Gran de Rio
Mãe. Aquele canal, embora estivesse abandonado, ainda pertencia à Mãe. Mesmo
ausente, ela se fazia notar pelas surpresas que largava atrás de si. As centenas de
toneladas de vasas que todos os anos eram carreadas para o mar se espalhavam pela
área do deita de mais de mil quilômetros quadrados. O canal vazio, sujeito às inundações
causadas pelas marés, era um pântano de água salgada de pouca drenagem. A relva e o
junco, recém-brotados, achavam- se enraizados no bano úmido e lodoso.
Os dois escorregaram pela rampa, patinando na lama de torrões finos e pegajosos.
Ao tocarem o chão plano, os seus pés nus sumiam no meio do bar ro. Thonolan corria à
frente, esquecido de que Jondalar não estava em condi ções de dar as suas costumeiras
passadas largas. Podia andar, mas a descida pe la lama escorregadia fora muito penosa.
Com cuidado, procurava onde pôr os pés, sentindo-se um tanto tolo em estar andando nu
pelo pântano, oferecendo a sua delicada pele à gana insaciável dos insetos.
Thonolan distanciara-se tanto que Jondalar estava prestes a gritar, cha mando-o.
Então, justo no momento em que ia fazê-lo, ouviu um grito pedin do socorro e Thonolan
afundando no chão. Esquecendo-se da dor, correu a acudi-lo. O medo tomou conta dele
ao dar com o seu irmão se debatendo den tro de um pântano de areia movediça.
- Thonolan! Oh, Mãe! - gritou Jondalar,precipitando-se na sua direção.
- Maste-se, senão você vai afundar também!
Quanto mais Thonolan lutava para sair do lodaçal, mais depressa se en terrava.
Jondaiar, inteiramente desvairado, olhava ao redor, pràcurando por qualquer coisa
que servisse para puxar flonolan. "A camisa! Podia atirá-la pa ra que Thonolan agarrasse
numa das suas extremidades", pensou. Mas lem brou-se então que era impossível. A
trouxa de roupas sumira. Ele abanou a ca beça. Os seus olhos bateram no toco de uma
velha árvore, meio enterrada no barro. Correu para arrancar urna das raízes, mas as que
poderiam servir há muito foram arrancadas pela violência das águas a caminho do mar.
- Thonolan, onde está a trouxa de roupas? Preciso de uma coisa para puxá-lo daí.
O desespero na voz de Jondalar teve efeito contraproducente. F.coou no pânico de
Thonolan de modo a lembrá-lo de seu sofrimento, levando-o a uma atitude de plácida
aceitação.
- Jondalar, já que a Mãe está querendo me levar, vamos deixar que ela satisfaça o
seu desejo.
- Não! Thonolan, não! Você não pode desistir. Você não pode morrer. Oh, Mãe, oh,
Grande Mãe, não o deixe morrer assim - Jondalar caiu de joe lhos e estendeu a mão com
o corpo todo esticado. - Pegue a minha mão. Por favor, Thonolan, segure a minha mão -
implorava.
Thonolan, surpreso, viu a dor e o sofrimento estampados no rosto de seu irmão e
também enxergou alguma coisa mais, algo que já vislumbrara de for ma breve e
passageira. Naquele momento conscientízou o amor de seu irmão por ele, um amor tão
grande quanto o dele por Jetamio. Não era a mesma coi sa, mas um amor igualmente
forte. O entendimento se fez a nível do incons ciente, por intuição. Sabia que, mesmo que
não conseguisse sair do atoleiro, tinha de apertar a mão de Jondalar.
332 333 Sem o saber, quando ele parou de debater-se, passou a afundar mais
lenta- mente. Ao esticar o corpo para alcançar a mão de Jondalar ,se pusera em posição
mais horizontal, espalhando o peso sobre a areia molhada e solta, ficando quase como
se flutuando. Ele esticou o braço até tocar os dedos de Joridalar que, por sua vez,
avançou com o corpo até conseguir agarrar a mão de Thonolan.
- Por aqui! Segure-o direito! Já estamos chegando - falou alguém em mamutoi.
Jondalar soltou a respiração, deixando a tensão esvair-se dele. Percebeu que
tremia, mas viu que tinha Thonolan firmemente preso. Em poucos instan tes, uma corda
lhe foi passada para que a atasse à mão do irmão.
- Agora, reine - disse alguém para Thonolan. - Estique o corpo como se estivesse
nadando. Você sabe nadar?
resto.
- Sei.
- Ótimo! Muito bem! Deixe o corpo bem relaxado que nós fazemos o Algumas mãos
arrastaram Jondalar da beijada do pântano e momentos depois Thonolan também já
estava do lado de fora. Todos, então, passaram a seguir uma mulher que caminhava
fincando o chão com uma longa vara, de modo a evitar buracos traiçoeiros. Só depois
que chegaram a um terreno firme é que alguém notou que os dois homens estavam
inteiramente nus.
A mulher que conduzira a operação de resgate jogou a cabeça para trás,
examinando-os. Ela era grande, não tanto pela altura ou gordura, mas, antes, pelo físico
corpulento e a aparência majestosa.
- Por que estão nus? - perguntou ela, depois de algum tempo. O que estariam
fazendo aqueles dois homens por ali, inteiramente nus?
Jondalar e Thonolan olharam paraosseuscorposnuse borrados de lama.
- Entramos no canal errado e uma tora chocou.se contra o nosso barco - começou
Jondalar. Ele se sentia desajeitado, sem conseguir manter uma cer ta dignidade.
- Depois disso, tivemos de tirar as roupas para que elas secassem, então achei que
o melhor seria se vestíssemos depois de havermos atravessado o ca nal e passado por
esse pântano de lama. Eu ia na frente, carregando a trouxa, porque Jondalar estava
ferido e. - - Ferido? Quem está ferido? - perguntou a mulher.
- Meu irmão - respondeu Thonolan.
Ouvindo isto, Jondalar lembrou-se de seus machucados, que passaram a latejar
dolorosamente.
A mulher reparou na sua palidez.
- Ele precisa ser examinado por um mamut - falou ela, dirigindo-se a um de seus
acompanhantes. - Vocês não são ntantutoi. Onde aprenderam a falar a nossa língua?
334 - Com uma mulher rnamutoi que está vivendo com os sharamudoi. Ela é minha
parenta.
- Tholie?
- Você a conhece?
- Ela também é minha parenta. É filha de um primo meu. Se você é pa rente de
Tholie, então é meu parente também - disse a mulher. - Meu nome é Brecie dos Mamutoi,
chefe do Acampamento dos Salgueiros. Os dois são bem-vindos.
- Eu sou Thonolan dos Shararnudoi e esse é o meu irmão, Jondalar dos Zelandonii.
- Ze-lart-do-ni.i? - repetiu Brecie. - Nunca ouvi falar desse povo. Se são irmãos,
como é que um é sharamudoi e outro. - . zelandonii? Ele parece estar passando mal -
disse ela, deixando a conversa para outra ocasião. - Aju dem o rapaz, não sei se ele pode
andar - acrescentou, se dirigindo a alguns companheiros.
- Acho que posso - falou Jondalar, subitamente tonto de dor. - Se não for muito
longe daqui...
Mas ele deu graças quando um dos homens mamutoi se adiantou para segurá-lo por
um braço e Thonoian pelo outro.
- Jondalar, eu já teria ido embora há muito tempo se não tivesse pro metido a mim
mesmo que iria esperar até que você estivesse em condiç de viajar. Bom, eu estou de
partida e acho que você deveria voltar para casa. -. mas não quero discutir.
- Por que você quer ir para o leste, Thonolan? Já chegou à foz do Gran de Rio Mãe
e o Mar Beran está a dois passos daqui. Por que não voltamos agora?
- Eu não estou indo para o leste e sim para o norte, ou mais ou menos nesta
direção. Brecie falou que em breve eles vão para o norte caçar mamutes. Vou prosseguir
em frente. Pretendo bater num outro acampamento mamutoi. Não voltarei para casa,
Jondalar. Seguirei até que a Mãe resolva me levar.
- Não fale assim! Parece que deseja morrer - disse Jondalar gritando e já
arrependido do que dissera, temendo que essa possibilidade pudesse concre tizar-se só
pelo fato de ele admiti-la.
- E se for assim? Por que eu vou querer sem.. . Jetamio -falou com a voz embargada
e o nome soluçando baixinho.
- Antes de encontrá-la, porque queria viver? Você é moço, Thonolan. Tem uma
longa vida pela frente, novos lugares para conhecer e muitas coisas diferentes ainda para
ver. Dê a você uma segunda chance de conhecer uma ou tra mulher como Jetamio -
disse Jondalar, implorando.
- Você não pode entender. . porque nunca esteve apaixonado. Não há outra mulher
como Jetamio.
335 1 - Então pretende segui-la até o mundo dos espíritos e me arrastar com você,
não é? - ele não gostava de falar assim, mas apelava para o sentimento de culpa de
Thonolan, o que talvez fosse uma maneira de mantê-lo vivo.
- Você está me acompanhando porque quer. Por que não volta para casa e me
deixa em paz?
Thonolan, todo mundo sofre quando perde uma pessoa que amamui to, mas
ninguém vai para o outro mundo por causa disto.
- Algum dia você vai passar por isto também. Algum dia você vai saber que quando
se ama muito uma mulher é melhor passar para o outro mundo do que viver neste sem
ela.
- Mas se isto acontecesse comigo, você me largaria sozinho? Se eu qui sesse
morrer porque perdi alguém que amava, você me abandonaria? Agora me diga uma
coisa: você seria capaz de voltar para casa, sabendo que eu estava sofrendo e passando
por um momento dificílimo na vida?
Thonolan olhou para o chão e depois dentro dos olhos azuis e preocu pados de seu
irmão.
- Não. Acho que se soubesse que você estava passando por um momen to muito
difícil eu não o abandonaria. Mas entenda, Jondalar - ele tentou es boçar um sorriso que
ficou como uma careta em seu rosto amargurado - se eu resolver passar o resto de
minha vida viajando, você vai querer fazer isto tam bém? Você já está farto de viajar e um
dia terá de voltar para casa. Agora, me diga: se fosse eu quem quisesse ir para casa e
você não, acho que iria querer que eu fosse, não é?
- Sim, iria. Quero que você vá para casa logo, Thonolan. Não porque algum de nós
queira, mas porque você precisa de sua Caverna, de sua família e das pessoas que o
amam e que conheceu a vida inteira.
- Você não entende. Essa é uma das coisas que nos fazem diferente um do outro. A
Nona Caverna dos Zelandoníi é o seu lar e sempre o será, mas quanto a mim, o meu lar
é onde eu estiver. Sou tanto sharamudoi quanto já fui zelandonii. Deixei a Caverna e as
pessoas que amava, da mesma forma que a minha família zelandonii. Isso não quer dizer
que não fique imaginando se Joharran já tem crianças em sua casa ou se Folara cresceu
tão bonita quanto prometia. Bem que gostaria de voltar para contar a Willomar as nossas
aventu ras e saber quais os planos dele para a próxima viagem. Ainda me lembro da
minhã excitação quando ele voltou de uma delas. Fiquei ouvindo as suas his tórias e
sonhando em poder também viajar. Você se lembra que ele trazia um presente para cada
uma das pessoas quando chegava das viagens? Para mim, para Folara e para você
também. E sempre alguma coisa muito bonita para a mãe. Quando você voltar leve
também um presente bonito para ela.
Ouvindo esses nomes familiares, Jondalar foi invadido por saudosas re cordaç 336 -
Por que você mesmo não leva alguma coisa bonita para ela? Não acha que a mãe
gostaria de vê- lo outra vez, Thonolan?
- A mãe sabia que eu não iria voltar. Ela, no momento de partirmos, me desejou só
boa viagem e não disse até à volta. Mas você, Jondalar, deu mais aborrecimentos para
Marona do que eu.
- Por que iria ela estar mais aborrecida comigo do que com você?
- Porque sou filho da casa de Willomar e ela sabia que eu deveria ser um viajante.
Talvez não gostasse da idéia, mas compreendia. Ela conhecia bem os filhos que teve. - .
Foi por isso que designou Joharran para sucedê-la como chefe. Ela sabe que você é um
zelandonii. Se fizesse a viagem sozinho, ela não teria dúvidas de sua volta, mas você
partiu comigo e não vou voltar. Eu não sabia disto quando iniciamos a viagem, mas acho
que ela sim. A mãe gostaria de vê-lo de volta, Jondalar. Você é o filho da casa de
Dalanar.
- E que diferença faz isso? Há anos que os dois romperam os laços. O que não
impede, é verdade, de serem bons amigos quando se encontram nas reuni6es de verão.
- Agora pode ser que sejam simplesmente amigos, mas as pessoas ainda falam de
Marthona e Dalanar. O amor dos dois deve ter sido qualquer coisa de muito especial para
ser lembrado tanto tempo depois e você, como filho da casa dele, é tudo que ela tem
para recordar desse período. Você tem de voltar, porque nunca deixará de ser um
zelandonii. Ela sabe disso e você tam bém. Prometa que um dia voltará, meu irmão.
Era difícil prometer o que Thonolan pedia. Tanto se continuasse a via gem ou se
resolvesse voltar, estaria se dando por vencido. Enquanto não se comprometesse, a sua
sensação era a de que ainda poderia conseguir as duaí coisas. Na promessa de
regressar estava implícito que Thonolan não voltaria com ele.
- Prometa, Jondalar.
- Prometo - condescendeu. - Algum dia voltarei para casa.
- Afinal, meu irmão - falou Thonolan, sorrindo - alguém tem de con tar para eles que
conseguimos atingir o ponto final do Grande Rio Mãe. Co mo não estarei lá, isso terá de
ficar a seu cargo.
- Por que não vai estar lá? Você poderia vir comigo.
- Acho que a Mãe teria me levado naquele pântano se você não estives se lá para
implorá-la. Não posso fazer com que compreenda isso, Jondalar, mas sei que ela em
breve virá me buscar e eu quero ir.
- Você está tentando um jeito de se matar, não é?
- Não, irmão - Thonolan sorriu. - Tentando não. Simplesmente eu sei que a Mãe não
irá demorar para vir à minha procura e queria que você soubes se que estou preparado
para quando chegar o momento.
Jondalar sentiu um nó apertando-se na garganta. Desde o acidente no 337 pântano
de areia movediça, Thonolan tinha uma absurda certeza de que não viveria por muito
mais tempo. Ele sorria, mas não com o mesmo sorriso de an tigamente. Jondalar preferia
antes vê-lo com raiva do que nessa atitude de cal ma aceitação. Não havia desafio nele,
nenhum desejo de viver.
- Você não acha que estamos em dívida com Brecie e com o Acampa mento dos
Salgueiros? Eles nos têm dado comida, roupa, armas, tudo enfim. Está pretendendo
aceitar todas essas coisas sem dar nada em troca? - Jonda lar queria provocar raiva no
irmão e saber se ainda lhe restava alguma manifes tação de vida. Ele se sentia ludibriado
com a promessa que livrara Thonolan de sua última obrigação. - Você está certo de que a
Mãe lhe reservou um des fino e que por isso pode parar de pensar nos outros e em tudo
mais, não é? Só você tem importância, apenas a vontade de Thonolan importa.
'flionolan sorriu. Compreendia a raiva de Jondalar e não tinha por que culpá-lo.
Como teria ele próprio reagido se Jetamio houvesse anunciado ante cipadamente a sua
morte?
- Jondalar, eu quero lhe dizer uma coisa. Nós éramos muito amigos e..
- E não somos mais?
- Claro que somos. Comigo você pode desabafar e dizer tudo o que pensa, mas não
precisa ser perfeito durante todo o tempo, sempre tão obse quioso e. -.
- Sei, eu sou tão bom que nem Serenio me quis para companheiro - falou com
sarcasmo e amargor.
- Ela sabia que iríamos partir, por isso não quis afligir-nos ainda mais. Se você a
tivesse pedido a mais tempo, ela teria aceitado ser a sua companhei ra. E mesmo quando
a pediu, Jondalar, se você tivesse insistido um pouco mais, ela não teria recusado,
mesmo sabendo que não a amava. Foi você quem recusou e não ela.
- Então como você pode dizer que sou tão perfeito? Juro, Thonolan, eu queria amar
Serenio.
- Eu sei que queria. Aprendi uma coisa com Jetamio e gostaria que vo cê também
soubesse disto. Quando uma pessoa quer apaixonar-se, ela não po de ter reservas, tem
de estar aberta e assumir todos os riscos. Às vezes pode mos nos machucar, mas se não
for assim nunca seremos felizes. Talvez a mu lher que encontrou não fosse aquela por
quem esperava apaixonar-se. Mas não importa, você deveria amá-la exatamente pelo
que ela é.
- Eu estava querendo saber por onde andavam - falou Brecie, aproxi mando-se dos
dois. - Programei uma pequena festa de despedida para vocês, já que estão decididos a
partir.
- Eu me sinto em dívida com você, Brecie .- disse Jondalar. - Afinal, vocês cuidaram
de mim e nos deram tudo. Não está direito irmos embora sem deixarmos alguma coisa
em retribuição.
338 - Já fomos mais do que pagos pelo seu irmão. Enquanto você ficou pa rado
convalescendo de seus ferimentos, ele não deixou de caçar um só dia. Ele é um caçador
de sorte, apesar de se arriscar demais. Vocês vão embora sem nos dever coisa alguma.
Jondalar olhou para o irmão, que sorria para ele.
primavera no vale era uma flamejante explosão de cores, onde predominava o verde
vernal. No entanto, uma mu dança no tempo chegara para alarmar e diminuir o
costumeiro entusiasmo de Ayla pela estação. Depois de fazer uma entrada tardia, o
inverno se impôs du ramente, com pesadas nevascas. E agora as primeiras inundações
da primavera, com uma violência desmedida, carregavam o gelo derretendo-se.
Emergindo pela estreita garganta a montante do rio, a torrente de água chocava-se
com tamanha força contra a ponta do penhasco que, em cima, a caverna de Ayla
chegava a sacolejar. O nível das águas estava prestes a atin gir o patamar. Ayla
preocupava-se com Huiin. Ela, se necessário, poderia ir até as estepes, mas para um
cavalo, sobretudo para uma égua prenhe, a subida era pesada demais. Ansiosa, passava
os dias observando o rio cada vez mais al to, revolvendo-se em ondas que batiam no
paredão para depois voltarem rede moinhando ao redor da parte exterior da borda. A
jusante, metade do vale achava-se submerso e o matagal ao longo do curso usual do
pequeno rio esta va completamente inundado.
Certa noite, quando as inundações estavam no seu auge, Ayla pulou da cama,
acordada por um barulho surdo, parecido a um trovão, vindo do chão da caverna. Ela
ficou petrificada. Só depois, quando as enchentes começa ram a ceder, é que soube
explicar. Um enorme bloco de pedra, colidindo con tra o penhasco da caverna,
desencadeara uma avalanche de ondas que penetra ram pela rocha. Com o impacto,
uma parte da barreira rochosa rompera-se, jogando um enorme pedaço do paredão
dentro do rio.
Obrigado a achar um novo caminho de modo a contornar a obstrução de suas
águas, o rio mudou o seu curso. A fenda na rocha trouxe uma passa gem bastante
conveniente, mas a praia agora estava mais estreita. Uma imensa pilha formada de
ossos, madeiras e pedras tinha sido varrida de lá. O bloco de 339 19 pedra, que parecia
formado da mesma rocha que a garganta, fora alojar-se não muito distante do paredão da
caverna.
Apesar de toda essa nova redistribuição da paisagem e das inúmeras plantas
arrancadas pelas raízes, só as mais fracas sucumbiram. Quase toda a vegetação perene
subitamente brotou de suas bem assentadas bases e novos rebentos passaram a encher
os buracos vazios. Depressa, as feridas na rocha nua e na terra estavam cobertas, dando
uma ilusão de perenidade. Não tardou muito a nova paisagem estar com um aspecto que
parecia ter sido sempre o dela.
Ayla adaptou-se às mudanças em seu vale. Para cada pedaço de pedra ou de
madeira a que estava acostumada dar um determinado uso, ela encontrou um substituto.
No entanto o acontecimento deixou-a marcada. A sua cavema e o vale já não lhe
inspiravam a mesma segurança. Em todas as primaveras ela passava por um período de
indecisão, pois se tivesse de abandonar o vale e sair em busca dos Outros, isso teria de
ser feito durante essa época do ano. Preci sava, no caso de não encontrar ninguém, se
dar tempo para a viagem e achar um novo lugar para passar o inverno.
Nessa primavera a decisão parecia mais difícil do que nunca. Após a doença, temia
ser apanhada de surpresa pelo frio do final do outono ou do princípio do inverno e, por
outro lado, a sua caverna já não lhe parecia tão se gura quanto antes. A doença a tornara
mais consciente dos perigos a que se achava exposta e do quanto necessitava da
companhia de seres humanos. Mes mo depois de ter os seus animais de volta, sentia que
eles não bastavam para preencher o vazio de sua vida. Eram amigos e lhe respondiam,
mas a comuni cação não deixava de ser muito limitada. Ela não podia compartilhar idéias,
relatar experiências, contar histórias, expressar admiração por alguma desco berta ou um
novo feito. Ali não havia ninguém para lhe dar uma olhada de aprovação. Ninguém para
aplacar os seus medos ou consolá-la de suas triste zas. No entanto, até que ponto estaria
disposta a trocar a sua independência e liberdade pelo conforto da segurança e da
companhia de outras pessoas?
Ela se dera conta da vidalimitada que tinha levado, depois que provara o gosto da
liberdade. Gostava de tomar as suas próprias decisões e nada sabia sobre o seu povo de
origem, nada a respeito de sua vida antes de ir para o clã. Ignorava o quanto os Outros
iriam exigir-lhe, sabia apenas que havia certas coisas que não estava disposta a ceder.
Huíin era uma delas. Não iria pela se gunda vez desistir do cavalo. Caçar não sabia se
poderia tão facilmente deixar de fazê-lo, e rir? Será que iriam impedi-la disto?
Havia um problema bem maior que tornava todos os outros insignifi cantes. Mas
deste ela procurava não tomar conhecimento. E se os Outros não a aceitassem? Um clã
formado pelos Outros talvez não estivesse disposto a ter em seu meio uma mulher que
insistia em possuir uma égua como companheira e que gostava de caçar e rir. No
entanto, se ela desistisse de tudo e, ainda assim, eles a recusassem? Enquanto não os
encontrasse, sempre havia alguma esperança. Mas o que seria dela se tivesse de viver
toda a sua vida sozinha?
Estes pensamentos passaram a atormentá-la desde que os primeiros blo cos de
neve começaram a derreter-se. Agora, graças às circunstâncias, podia protelar a sua
decisão. Não tiraria Huiin do vale, um lugar que ela tão bem co nhecia, enquanto a égua
não tivesse parido. Ela sabia que, em geral, as crias de cavalos nascem em determinada
época da primavera. Como curandeira, estava sempre de olho em Huiin. Já assistira
diversos partos de mulheres para saber que a égua poderia entrar em trabalho de um
momento para outro. Por isso nenhuma expedição de caça era empreendida, e só saía
para pequenas cavalgadas, no intuito exclusivo de fazer um pouco de exercício.
- Acho que saímos do rumo daquele acampamento maniutoi, flono lan. Andamos
demais para
leste - falou Jondalar. Eles seguiam o rasto de uma manada de gigantescos veados,
pensando em refazer as suas provisões, que co meçavam a escassear.
- Eu não. - - Olhe! - disse Thonolan, apontando para um animal des confiado. Era
um enorme veado de chifres palmados que fazia uma armação de mais de três metros.
Sem saber se o veado pressentira o perigo, Jondalar ficou à espera para ver se o animal
soltava o seu bramido de alarme. Mas, an tes que o animal tivesse tempo de emitir
qualquer som, surgiu uma corça cor rendo diretamente para cima deles. Thonolan atirou
a sua lança de ponta de pedra à maneira dos mamutoi, de modo a cravar a lâmina entre
as costelas. A pontaria foi perfeita. A corça tombou quase junto de seus pés.
No entanto, antes que pudessem reivindicar o feito, descobriram o mo tivo do veado
estar tão nervoso e porque a corça praticamente se oferecera à lança deles. Tensos,
ficaram observando uma leoa da caverna galopando na direção de onde se achavam. Por
um momento a fera pareceu confusa com o animal tombado no chão. Era algo inusitado.
Um animal morto e não por ela. Mas não hesitou por muito tempo. Farejou a corça para
se certificar de que estava realmente morta e a abocanhou pelo pescoço, passando a
arrastá-la.
Thonolan ficou indignado.
- Essa leoa miserável roubou a minha caça!
- Essa leoa miserável também estava atrás do mesmo animal que você. E se acha
que a corça lhe pertence, eu é que não vou discutir com ela.
- Pois eu vou.
- Não seja ridículo - falou Jondalar com desdém. - Você não vai con seguir tirar um
veado da boca de uma leoa.
- Não vou desistir sem pelo menos tentar 340 341
Esqueça essa corça, Thonolan. Podemos encontrar uma outra caça - disse
Jondalar, acompanhando o seu irmão que já ia em busca da leoa.
- Só quero ver para onde ela levou o animal. Deve ser uma leoa desgar rada, do
contrário toda família já estaria aqui dando em cima do bicho. Acho que é nômade e que
está arrastando a corça para algum lugar escondido dos outros leões. Podemos ver para
onde ela foi. Em algum momento vai ter de afastar-se e, então, podemos pegar um pouco
de carne fresca para nós.
- Eu é que não quero carne fresca tirada da boca de uma leoa da ca verna.
- Mas essa carne não é dela. Eu é que cacei a corça. Além disso, a mi nha lança
ainda está cravada no animal.
Inútil discutir. Eles seguiram a leoa até uma garganta sem saída. O chão estava
coalhado de pedras caídas dos paredões. Ficaram observando. Como Thonolan havia
previsto, a leoa pouco depois se afastou. Ele, então, se di giu para a garganta.
- Thonolan, não vá! Você não sabe quando essa leoa'vai voltar.
- Vou apenas pegar a minha lança e um pouco de carne - ele se pôs a engatinhar
por cima da beirada do penhasco, desprendendo cascalhos que caíam dentro da
garganta. Jondalar, com relutância, ia atrás.
O território a leste do vale tomara-se tão conhecido que Ayla começou a fartar-se de
estar lá, principalmente depois que deixara de caçar. Há dias fa zia um tempo feio e
chuvoso. Assim,
quando, já pronta para montar, viu um sol quente dissolvendo as nuvens, não
suportou a idéia de novamente estar ba tendo pelos mesmos terrenos.
Depois de amarrar as cestas e os paus que lhe serviam de jorrão, desceu com Huíin
pelo íngreme caminho que ia dar na praia e contornou o penhas co. Ao invés de ir para
as estepes, preferiu percorrer todo o vale. Ao chegar ao fim da campina, onde o rio virava
para o sul, ela reparou na abrupta colina cascalhosa que uma vez escalara para ter uma
visão do lado oeste. Para o cava lo, entretanto, era uma subida perigosa. Isso a animou a
ir mais adiante para ver se havia alguma saída mais acessível para a parte oeste do vale.
Enquanto prosseguia na direção sul, olhava ao seu redor, com ávida curiosidade, O terri
tório era novo para ela. "Por que nunca viera para aquelas bandas?" O alto pa redão
rochoso gradativamente convertia-se numa colina já menos alcantilada. Ao ver um ponto
raso no rio, ela instigou Huiin a fazer a travessia.
A paisagem era a de um campo aberto, diferindo apenas em alguns de talhes que a
tornavam mais interessante. Seguiu a cavalo até encontrar-se nu ma região um tanto
acidentada com gargantas pedregosas e altiplanos abrup tos e escarpados. Havia ido
mais longe do que planejara. Estava perto de uma garganta pensando em voltar quando
ouviu qualquer coisa que a deixou gela- da, fazendo o seu coração disparar: o rugido
trovejante de um leão da caverna e. - . um grito humano.
Ela parou, ouvindo as batidas de seu coração ressoar em seus ouvidos. Fazia tanto
tempo que não escutava um som humano, Sim, era humano e qualquer coisa mais. Um
som emitido por alguém de sua espécie. Tão assom brada estava que não conseguia
raciocinar. Havia apelo no grito. - . um grito de socorro. Mas ela não podia enfrentar um
leão da caverna e nem expor a vida de Huiin.
Apesar de que a ordem dada a Huiin fosse, quando muito, um leve sinal sugerido
pelo corpo, a égua lhe sentiu a aflição e se virou na direção do desfi ladeiro. Ayla se
aproximou devagar, desmontou e olhou dentro da garganta. Não havia saída, apenas
uma muralha cascalhenta na outra extremidade. O leão rosnou, exibindo a sua juba
avermelhada. Foi, então, que ela percebeu a atitude de Huiin, sem demonstrar nem um
pouco de nervosismo. Ela sabia por que.
- Ora, é Neném! Aquele é Neném, Huiin! - imediatamente começou a correr para a
garganta, esquecida de que talvez lá se achassem outros leões. Tampouco se lembrou
de que Neném deixara de ser o seu jovial companhei ro de caçadas e era agora um
enorme e perigoso leão. Desse leão da caverna, não tinha medo.
Ela subiu por umas pedras salientes e foi ao seu encontro. Neném virou- se e
rosnou.
- Pare com isto, Neném! - ordenou por meio de gestos que enfatizava com alguns
sons. O leão ficou quieto e logo ela estava ao seu lado, tirando-o do caminho para ver o
que ele apanhara. O animal estava mais do que acostu mado com Ayla e a atitude dela
era firme demais para que ele pensasse em resistir-lhe. Afastou-se, como sempre o fizera
quando Ayla queria tirar-lhe da boca algum animal em cuja pele estava interessada, ou
por desejar ficar com uma parte da carne para ela. Além do mais, Neném não estava com
fome, pois já havia comido a gigantesca corça que a leoa lhe trouxera. Havia atacado ape
nas para defender o seu território e, mesmo assim, hesitara. Os humanos não faziam o
seu género de caça. Tinham o cheiro muito parecido ao da mulher que o criara, um cheiro
que era tanto de mãe como de um bom companheiro de caçadas.
Havia dois deles lá, viu Ayla. Ela ajoelhou-se para examiná-los. Estava
principalmente preocupada como curandeira, mas o seu espanto e curiosida de eram
também enormes. Sabia que eram homens dos Outros, embora fos sem os primeiros que
se lembrava de haver visto. Nunca conseguira visualizar- lhes as figuras, mas no
momento em que bateu os olhos nos dois soube por que Oda dissera que os homens dos
Outros eram parecidos com ela.
Imediatamente viu que não havia esperanças para aquele que tinha cabe- 1 7
342 343 los mais escuros. Ele estava caído numa posição desconjuntada, com o
pesco ço partido. As marcas de dentes na garganta explicavam tudo. Embora ela nunca o
tivesse visto, a sua morte a entristecia. Lágrimas de pesar lhe enche ram os olhos. Não
porque o amasse, mas sentia que perdera qualquer coisa de muito valiosa, antes de ter
tido a oportunidade de apreciá-la. Estava arrasa da. A primeira vez que via alguém de
sua espécie, esse estava morto.
Ela gostaria de conhecer-lhe a história e honrá-lo com um funeral, mas um exame
mais atento no outro a fez compreender que isto era impossível. O que tinha cabelos
amarelos ainda respirava, mas a sua vida estava esvaindo através de um rasgão aberto
na perna. A única esperança seria levá-lo o mais rapidamente para a caverna, onde ela
poderia tratá-lo. Não havia tempo pa ra fazer um enterro apropriado.
Neném farejava o homem de cabelos escuros, enquanto Ayla estanca va o sangue
da perna do outro com um torniquete feito de couro da funda e uma pedra lisa. Ao
terminar, tirou o leão de perto do cadáver. "Sei que es tá morto, Neném, mas ele não é
para você", disse para si mesma. O leão sal tou da borda do paredão e foi verificar se a
corça ainda permanecia num bura co na rocha onde ele a deixara. Pelos seus rosnados,
Ayla sabia que estava pre parando-se para comer.
Depois que o sangue passou a jorrar em menor quantidade, ela assoviou chamando
Huiin e desceu da borda do penhasco para armar o jorrão. A égua agora estava mais
nervosa e Ayla lembrou-se de que Neném tinha uma compa nheira. Ela a abraçou,
fazendo-lhe algumas carícias para acalmá-la e, em se guida, foi examinar a esteira
amarrada entre os dois paus que iam arrastados atrás do cavalo. O trançado estava forte,
daria para agüentar o peso do homem de cabelos amarelos. Mas havia o outro e ela não
sabia o que fazer com ele. Não queria deixá-lo para os leões.
Ao subir de volta pelas pedras, reparou que uma rocha no fundo da gar ganta estava
solta, numa posição desequilibrada com unia parte assentada so bre um enorme bloco
que, por sua vez, parecia também em desequilíbrio. Su bítamente se lembrou de como
Iza fora enterrada. O corpo da velha curandei ra havia sido colocado numa cavidade do
chão da caverna e coberto por pe dras e cascalhos. Isso lhe deu uma idéia. Ela arrastou
o cadáver para o fundo da garganta, deixando-o junto do escorregamento de pedras.
Neném, com o focinho sujo do sangue da corça, chegou para ver o que Ayla fazia.
Depois seguiu-a, farejando o homem que ela arrastava para a borda da pedreira, onde
Huiin, desconfiada, esperava com o jorrão já atado ao seu lombo.
- Agora saia do caminho, Neném!
Com cuidado, Ayla procurou acomodar o homem no jorrão. As pálpe bras tremeram
e ele soltou alguns gemidos de dor. Depois, voltou a fechar os olhos- Felizmente estava
desacordado. Era um homem pesado e o esforço que Ayla tinha de fazer para removê-lo
seria muito doloroso se ele estivesse cons ciente. Quando, por fim, viu que o homem
estava bem seguro na padiola, pe gou uma comprida e pesada lança e se dirigiu outra
vez para o fundo da gar ganta. Pesarosa, olhou para o homem morto no chão. Apoiou a
lança contra uma pedra e, na língua formal dos clãs, se dirigiu com gestos silenciosos ao
mundo dos espíritos.
Ela vira como Creb, o velho mog-ur, com os seus gestos fluídicos e elo qüentes,
havia encomendado o corpo de Iza aos espíritos extraterrenos. Esses mesmos gestos ela
os usara quando encontrou o corpo do feiticeiro na caver na, em meio aos escombros
provocados por um terremoto. No entanto, nunca entendeu o sentido daquela
gesticulação. Isso não era importante, conhecia- lhe a intenção. Enquanto realizava os
ritos, belos e silenciosos, que poriam aquele estranho desconhecido no caminho do
mundo espiritual, velhas lem branças desfilavam diante de seus olhos cheios de lágrimas.
Então, fazendo da lança uma alavanca, do mesmo modo como usava o seu pau de
cavar para remover pesadas toras ou levantar raízes, ela deslocou o enorme bloco e
saltou para trás, pondo-se ao abrigo da chuva de pedras que despencou sobre o morto.
Antes que a poeira houvesse assentado, já tinha conduzido Huiin para fora da
garganta. Montou e começou o longo trajeto de volta. As paradas fo ram apenas para ver
como passava o homem e colher algumas raízes de con frei. Ela, entretanto, sentia-se
dividida. Ao mesmo tempo que tinha pressa de levá-lo para a caverna, não queria exigir
muito de I-luiin. Só depois que con seguiu passar com o homem pelo rio e ver a ponta do
penhasco é que relaxou um pouco. E só quando parou para trocar a posição dos paus do
jorrão, an tes de iniciar a subida para a caverna, é que se permitiu acreditar que havia
conseguido chegar em casa com o homem ainda vivo.
Ela conduziu Huïin para dentro, acendeu uma fogueira para ferver água, desamarrou
o homem e o arrastou para o lugar que era o dela na caverna. Ti rou os arreios da égua e
a abraçou cheia de gratidão. Passou em revista o es toque de ervas medicinais,
separando as que iria precisar. Então, antes de dar seqüência aos preparativos, segurou
no amuleto e respirou profundamente.
Os pensamentos estavam tumultuados demais para que pudesse formu lar uma
prece especial ao seu totem. Via-se tomada por inexplicáveis desejos e esperanças
vagas e confusas, mas queria ajudar aquele homem. Queria a for ça de seu poderoso
totem para auxiliá-la no trabalho de salvá-lo. Não podia deixá-lo morrer. Não sabia
exatamente por que, mas jamais alguma coisa fora tão importante. Fosse lá o que tivesse
de fazer, aquele homem não podia morrer.
Ela pôs mais lenha na fogueira e verificou a temperatura da água dentro de um pote
de couro, suspenso diretamente sobre o fogo. Quando viu que es- 344 345 tava soltando
fumaça, jogou pétalas de cravina dentro. Por fim, dirigiu-se para o homem ainda
inconsciente. Pelos rasgões na roupa deduziu que, além do fe rimento na coxa direita,
havia outros. Ela precisava despi-lo, mas o traje que o homem usava não era a manta
amarrada por correias com que estava acostu mada.
Ao examinar com mais atenção para ver como iria fazer, descobriu que o couro da
roupa havia sido cortado em peças separadas que se juntavam por meio de cordões, de
modo a vestir os braços, as pernas e o corpo. Ela estudou as junturas com cuidado.
Resolveu que, para tratar a perna, o melhor seria se cortasse as calças. Mais surpresa
ficou quando, depois de cortar a roupa de fo ra, encontrou uma outra diferente de tudo
quanto já vira na vida. Pedaços de conchas, ossos, dentes de animais e penas coloridas
estavam nela presos numa forma bem odenada. Seria uma espécie de amuleto? Não
gostava da idéia de cortá-la, mas não havia outro jeito. Ela o fez com cuidado,
procurando seguir o desenho e conservá-lo tanto quanto possível.
Sob a vestimenta enfeitada havia outra, cobrindo a parte inferior do corpo. As pernas
estavam vestidas com peças separadas e costuradas com cor dões. Depois, as duas se
juntavam numa só peça que era amarrada ao redor da cintura à maneira de uma sacola
que se fechava com um cordão de puxar, mas com uma aba sobrepondo-se à outra na
parte da frente, de modo a deixar uma abertura. Essa também ela cortou e, de
passagem, viu que realmente estava diante de um homem. Removeu o torniquete e
retirou devagar o couro duro e empapado de sangue da perna dilacerada. Durante o
caminho, havia parado algumas vezes para afrouxar o torniquete e comprimir as artérias
com a mão, tanto para controlar o sangramento como para permitir a circulação da perna.
Quando certas medidas e precauções não eram devidamente tomadas, um torniquete às
vezes podia provocar a perda de um membro.
Quando chegou a vez dos calçados, novamente ela se surpreendeu. Tam bém estes
eram cortados e costurados de modo a tomar a forma dos pés. Re solveu tirá-los,
cortando entre os cordões e correias de enrolar. A ferida na perna outra vez sangrava,
mas não muito. Ela fez um rápido exame para sa ber da extensão dos outros
machucados. Eram ferimentos e arranhões super ficiais, mas sempre havia a
possibilidade de infecções. Todo ferimento causa do por garras de leão tinha tendência a
inflamar-se perigosamente. Isso acon tecia até mesmo com os pequenos arranhões que
Neném lhe deixava na pele. Masinfecções não eramasua primeira preocupação. A perna
sim. Um outro fe rimento, uma feia inchação na cabeça, provavelmente causada pelo
tombo no momento em que foi atacado, ela olhou só por alto. Não sabia dizer se era ou
não grave, mas não tinha tempo para pensar nisto agora; a perna começara a sangrar.
Ao mesmo tempo em que apertava a virilha, limpava o ferimento com uma pele de
coelho - raspadae espichada até tornar-se numa pelica macia e absorvente - que
mergulhava na infusão morna de cravinas. O líquido era ads tringente e anti-séptico.
Seria depois usado também para conter o sangue dos ferimeatos menores. Ela limpou o
machucado por dentro e por fora. Sob a pele, via uma parte da musculatura da coxa
rompida. Pegou pó de raiz de ge rânio e esparramou em quantidade sobre a ferida. O
efeito coagulante foi imediato. Enquanto mantinha apertado o ponto de compressão da
artéria com uma das mãos, com a outra ela enxaguava as raízes de confrei. Depois
mastigou-as até tomá-las numa pasta que cuspiu dentro do pote contendo a solução de
cravinas. Seria usada num curativo a ser aplicado diretamente so bre a ferida aberta. Ela
repôs os músculos no lugar e procurou fechar o feri mento, apertando-o. No entanto, ao
retirar as mãos, a ferida voltou a abrir-se e os músculos escorregaram, saindo da
posição.
Novamente ela tornou a fechar, mas sabendo que a ferida não se mante ria assim.
Não acreditava que uma faixa enrolada firme ao redor da coxa fosse funcionar, além
disso não queria que a cicatrização se fizesse defeituosamente e mais tarde fosse trazer
problemas irremediáveis para o homem. "Se ao me nos pudesse ficar ali sentada
mantendo aquele corte fechado até que se desse a cicatrização", pensou, sentindo-se
impotente e desejando que lia estivesse ao seu lado. Tinha certeza de que a velha
curandeira saberia o que fazer, ape sar de que ela própria nunca aprendeu a tratar um
caso como aquele.
Mas então se lembrou de uma coisa. Foi quando perguntou a Iza como poderia se
tornar uma curandeira de sua linha. "Eu não sou sua filha, lia", disse ela naquela ocasião.
"Para dizer a verdade, nem sei o que significam estas memórias de que vocês falam. .
lia explicou-lhe, então, que a elevada posição social das curandeiras de sua linha se
devia ao fato de serem elas as melhores. As mães passavam às fi lhas o conhecimento
com que nasciam e mais alguns outros advindos da ex periência. Ayla fora treinada por
lia que lhe ensinara tudo o que podia, tal vez não tudo o que soubesse, mas o bastante
para que ela fosse uma boa curandeira, pois Ayla possuía algo mais. Era uma espécie de
dom, disse lia.
Você não tem as memórias, minha filha, mas possui uma maneira parti cular de
pensar, de entender. - - uma maneira de saber como ajudar. . 7 "Se ao menos pudesse
pensar numa maneira para ajudar este homem", pensou Ayla, olhando para a pilha de
roupas que cortara para despi-lo. Uma idéia lhe ocorreu. Ela soltou a perna e pegou
numa das peças de roupa- Eram partes cortadas separadamente e depois juntadas com
um fio de ten dões. Ela separou os pedaços da vestimenta, examinando como eles se
amar ravam uns aos outros. O cordão passava por um furo de uma peça e depois se
enfiava pelo furo da outra, juntando as partes.
Para fabricar travessas de cascas de vidoeiro, ela fazia algo parecido, 346
347 furando buracos e ligando as extremidades com um nó. Será que seria possível
fazer a mesma coisa na perna do homem? Amarrar aquele rasgão até que a pele se
fechasse?
Rapidamente ela se levantou e trouxe o que parecia ser uns gravetos marrons e
secos que, na verdade, eram tendões ressequidos tirados de uma corça. Usando uma
pedra lisa e arredondada como martelo, bateu na tira seca, até reduzi-la a compridos fios
de fibras de colagénio. Separou-os e pegou um fio fino e duro do tecido conjuntivo, que
mergulhou na solução da cravina. Igual ao couro, o tendão ficava flexível depois de
molhado e quando seco, não tratado, era duro e teso. Uma vez os fios preparados, ela
passou em revis ta as suas facas e furadores, escolhendo qual instrumento seria melhor
para fazer furos na carne do homem. Lembrou-se, então, de que guardava algumas
estilhas de uma árvore atingida por um raio. Era o que lia usava para furar bo lhas,
furúnculos e inchações que precisavam ser drenadas. Para o que ela tinha em mente, as
estilhas deviam servir.
Lavou o sangue escorrido, sem saber ainda direito como começar. Quando fincou a
estilha fazendo o primeiro furo, o homem se mexeu resmun gando. O trabalho precisava
ser feito rapidamente. Ela enfiou o fio no furo e, depois de passá-lo no buraco oposto,
puxou as duas pontas, amarrando-as com um nó.
Resolveu que não devia dar muitos nós, pois não tinha certeza se con seguiria
removê-los mais tarde. Fez apenas quatro ao longo do corte e mais três para firmar os
músculos no lugar. Ao terminar, sorriu olhando para os nós amarrando a carne do
homem. Havia dado certo, O corte não se abriu mais e os músculos tinham parado no
lugar. Se a ferida cicatrizasse normalmente, sem inflamar, ele poderia no futuro usar a
sua perna sem maiores problemas.
Ela fez uma compressa com raízes de confrei e enfaixou a perna com um couro
macio. Em seguida, cuidadosamente, limpou os outros machucados e arranhões, quase
todos no peito e ao redor do ombro direito, O galo na cabe. ça incomodava-a, mas não
havia ferimento, apenas inchação. Preparou uma solução de flores de arnica, fazendo
uma compressa que fixou sobre o lugar inchado com uma tira de couro amarrada em
volta da cabeça, Por fim, permitiu-se relaxar, sentando sobre os calcanhares, Quando ele
acordasse, havia remédios que ela lhe poderia dar, mas por enquanto havia fei to tudo o
que podia, E então, endireitando uma pequenina ruga no couro en faixando a perna, pela
primeira vez olhou realmente para o homem.
Ele não era robusto como os homens dos clãs. Musculoso sim e com pernas
incrivelmente compridas. Os cabelos dourados que se encaracolavam no peito ficavam
como uma penugem brilhante sobre os braços. A pele era pálida. O pêlo do corpo era
menos abundante e mais fino do que o dos ho mens que conhecera. Ele era mais
comprido e delgado, mas não que fosse di- ferente. O membro flácido repousava em
meio a macios caracóis dourados. Ela esticou a mão para sentir-lhes a textura, Nisso,
recuou, reparando numa cicatriz recente e num machucado sobre as costelas,
começando a desapare cer. Ele devia ter sofrido outros ferimentos há pouco tempo.
Ela se aproximou, querendo ver-lhe o rosto. Era chato em compara ção com os dos
homens dos clãs. A boca de lábios carnudos estava relaxa da. As mandíbulas não eram
tão acentuadas, mas o queixo era forte, com uma risca no meio. Ela tocou no dela,
lembrando-se de que o do seu filho também era partido. Ninguém nos clãs tinha este tipo
de queixo. A forma do nariz não se mostrava muito diferente. O nariz da raça clãníca era
adunco e comprido. O do homem era menor. Os olhos fechados pareciam muito sepa
rados e salientes no rosto. Mas, então, ela percebeu que lhe faltava as pesa das
sobrancelhas para sombreá-los. A testa, vincada com ligeiras rugas de preo cupação, era
alta e reta. Aos olhos dela, acostumados apenas com as pessoas dos clãs, parecia muito
ressaltada. Ela tocou para senti-la e depois levou a mão na dela. Eram iguais. Como
devia parecer estranha às pessoas dos clffs.
Os cabelos do homem eram longos, lisos e amarelos. Uma parte deles ainda se
achava presa na nuca por uma tira, mas no geral fazia uma massa emaranhada. "Como
os meus, só que mais claros", pensou ela. Pareciam com alguma coisa que já vira antes.
Subitamente, estarrecida, lembrou-se. O so nho! O séu sonho com o homem dos Outros.
Ela não conseguira ver-lhe o rosto mas os cabelos no sonho apareceram amarelos.
Cobriu-lhe o corpo e, em seguida, saiu rápido para o patamar. Surpresa, viu que
ainda era dia, com a tarde começando a cair. Tanta coisa havia aconte cido, tanta energia
concentrada - mental, física e emocional - fora expandi da tão intensamente que
imaginara que fosse muito mais tarde. Ela tentava arranjar os pensamentos, mas eles se
enredavam confusamente, Por que teria resolvido justamente neste dia ir para o lado
oeste das estepes? Por que estaria ela lá no momento preciso em que o homem gritou?
Por que, com tantos leões nas estepes, fora exatamente Neném que o atacou? Só podia
ter sido o seu totem que a conduzira para lá; E o que dizer de seu sonho com um homem
de cabelos amarelos? Seria esse o homem? Por que te ria sido ele levado para lá? Ela
não sabia que significação poderia ter esse ho mem em sua vida, mas percebia que esta
jamais seria daqui por diante a mes ma. Finalmente havia visto o rosto dos Outros.
Sentindo Huiin atrás fuçando a sua mão, ela se virou. A égua pôs a cabe ça sobre o
seu ombro. Ela estendeu os braços enlaçando-lhe o j,escoço, depois encostou a cabeça
nele. Por algum tempo deixou-se ficar colada ao animal, querendo preservar a intimidade
e o conforto daquela sua vida, sentindo-se um pouco temerosa do futuro. Então, pôs-se a
afagar Huiin com tapinhas, percebendo os movimentos do potxjnho dentro da barriga.
348 349 1 - Já não deve demorar muito, não é, Huiin? Graças a vocé pude trazer o
homem hoje para cá. Sozinha, nunca teria conseguido.
"Bom, é melhor eu entrar e ver se ele está bem", pensou, nervosa, com medo de
que pudesse acontecer alguma coisa se o deixasse sozinho, ainda que por apenas um
momento. Ele não se havia mexido. Assim mesmo, ela plan tou-se ao seu lado,
observando-lhe a respiração, sem conseguir desviar os olhos dele. Foi então que notou
algo estranho. Ele não tinha barba! Todos os ho mens que já vira possuíam barba
cerrada e escura. Será que os homens dos Outros eram imberbes?
Ela encostou a mão no seu queixo, sentindo o pêlo áspero e espetado começando a
crescer. "Alguma barba ele tinha, mas tão curta", concluiu es pantada e abanando a
cabeça. Apesar de grande e musculoso, subitamente a figura dele pareceu-lhe ser mais a
de um menino do que a de um homem adulto.
Ele virou a cabeça, gemeu e murmurou qualquer coisa. Eram palavras ininteligíveis,
embora houvesse algo nelas que a fazia sentir como se devesse entendê-las. Ela pôs a
mão na sua testa e depois na face. A febre subia. "E melhor ver se consigo que ele tome
um pouco de chá de salgueiro", pensou.
Enquanto esperava a água do chá ferver, ela fez uma nova vistoria no seu estoque
de ervas medicinais. Nunca soube o motivo que a levara a fazer uma farmácia tão
completa como a que tinha, quando não havia ninguém ali, fora ela, para ser tratado.
Fizera-o simplesmente por hábito. Agora, no entan to, dava graças por isso. Havia muitas
plantas que ela não tinha achado no va le ou nas estepes e que nas cercanias da antiga
caverna eram facilmente encon tradas. Mas as que se achavam lá bastavam, além de
que estava colhendo algu mas outras que não existiam nas regiões mais ao sul. lia lhe
ensinara como testar nela própria uma planta desconhecida - fosse para ser usada como
re médio ou comida - mas ela ainda se achava um tanto insegura de suas novas
aquisições, pelo menos para usá-las no homem.
Além das cascas de salgueiro, ela separou uma outra planta de uso bem conhecido.
Tinha um caule peludo que, ao invés de ter as folhas prendendo-se a ele, parecia brotar
do meio de grandes folhas de duas pontas. Quando ela a colheu, a planta estava
carregada de flores brancas que agora eram murchas e marrons. Lembravam tanto a
agrimônia que Ayla sempre achou que fosse uma variedade desta erva, até que, na
reunião dos clãs, soube por urna curan deira do seu verdadeiro nome: eupatório. A
mulher a usava com o mesmo fim que ela. A planta era posta para ferver até se obter um
xarope espesso e isso levava tempo. Fazia suar muito e era um medicamento forte. Ayla
não tinha vontade de usá-lo no homem, enfra4uecido pela perda de sangue, a não ser
que fosse necessário. No entanto, era melhor estar prevenida.
Lembrou-se de folhas de alfafa. Quando embebidas em água quente, ajudavam na
coagulação do sangue. Ela vira algumas no campo.. . e um bom 350 caldo de carne
também ajudaria o homem recuperar as suas forças. A curan deira que existia nela havia
voltado a pensar, já não estava mais tão perdida em suas confusões anteriores. Desde o
princípio uma só idéia a movia: aquele homem precisava viver.
Ela conseguiu, aninhando a cabeça dele em seu colo, lhe dar um pouco de chá de
salgueiro. As pálpebras tremeram e ele murmurou qualquer coisa, mas continuava
desacordado. Os cortes e arranhões tinham ficado quentes e vermelhos. A perna
visivelmente estava mais inchada. Ela substituiu o curativo e fez uma nova compressa
para o machucado na cabeça. Pelo menos a incha ção começava a ceder. Ao anoitecer,
a sua preocupação aumentou. O seu de sejo era o de que Creb estivesse lá invocando
espíritos para ajudá-la no tra tamento, tal como ele fazia quando ela cuidava de lia em
sua doença.
Depois que escureceu o homem começou a ficar agitado, se sacudindo e gritando.
Uma palavra era constantemente repetida em meio a outras que ela suspeitava fossem
avisos de alarme. Ayla achava que talvez fosse o nome de alguém, possivelmente do
outro homem.
Por volta do meio da noite, ela, com uma colher de osso, lhe deu em pe quenos
goles o xarope de agrimônia. Era amargo e ele procurou repelir o me dicamento
abrindo'de repente os olhos, mas não havia qualquer sinal de reco nhecimento vindo Lde
suas profundezas obscurecidas. Passado algum tempo, ela lhe deu um chá de datura, e
foi mais fácil. Ele tomou-o como se quisesse lavar a boca do outro gosto ruim e amargo.
Ayla dava graças por ter encontra do datura perto do vale, uma planta que tanto servia
para aliviar as dores como para fazer dormir.
Àquela noite ficou de vigília, esperando a febre ceder, mas somente pouco antes do
amanhecer é que ela, depois de atingir o seu máximo, come çou a baixar. Então lavou-
lhe o corpo, empapado de suor, com água fria, tro cou as cobertas da cama e os
curativos. A partir daí, ele dormiu mais sossega do, enquanto ela cochilava sobre uma
pele ao seu lado.
De repente, ela se encontrou olhando para o sol brilhante que chegava pela boca da
caverna. Por que estaria tão alerta? Ao se virar para o lado, deu com o homem, e todo o
dia anterior desfilou pela sua mente. Ele parecia tran qUilo e dormindo normalmente. Ela
se deixou ficar deitada quieta. Então, ou viu a respiração pesada de Huiin. Rápido, se
levantou, indo para o outro lado da caverna.
- Huiin - disse excitada - chegou o momento?
A égua não precisava responder.
Ayla já ajudara nos partos de muitas crianças e ela própria tinha um fi lho, mas no
caso de uma
égua aquela era a primeira vez. Huiin, no entanto, sabia o que fazer, o que não
impedia de parecer agradecida por ter a presença confortadora de Ayla ao seu lado. Foi
somente já no fim, com o potro quase LI Ii 351 todo expelido, é que ela ajudou a puxá-lo.
Então, feliz, sorriu vendo Huiiri lamber o pêlo marrom e esfiapado do seu rebento.
- Essa é a primeira vez que eu vejo uma mulher servindo de parteira parã uma égua
- falou Jondalar.
Ayla imediatamente girou o corpo e olhou para o homem que, apoia do sobre um
dos cotovelos, a observava.
20 la olhava diretamente para ele. Não conseguia evitá-lo, mesmo sabendo que
estava tendo um procedimento des cortês. Uma coisa era vê-lo dormindo inconsciente e
outra bem diferente era tê-lo diante de si completamente desperto. O homem tinha olhos
azuis!
Ayla sabia que os dela eram também azuis. Era um dos traços por que se fazia
freqüentemente notada, além de que já havia visto os seus olhos re fletidos nas águas de
um lago. Os olhos das pessoas dos das eram castanhos. Nunca vira alguém de olhos
azuis e, ainda por cima, naquele tom de azul tão forte. Ela mal podia acreditar que fosse
verdade.
Via-se presa àqueles olhos, parada, sem conseguir mexer-se, até que, por fim,
notou que tremia e olhava diretamente para o homem. Sentiu o san gue lhe subindo no
rosto e, embaraçada, desviou rápido os olhos. Encarar era uma descortesia, além do fato
de que uma mulher jamais devia olhar direta mente para um homem, sobretudo tratando-
se de um estrangeiro.
Ela abaixou os olhos, esforçando-se para poder dominar-se. "0 que irá ele pensar de
mim?" Mas fazia tanto tempo que não via gente. - . além do mais, era a primeira vez que
encontrava alguém dos Outros, pelo menos que ela se lembrasse. A sua vontade era
encará-lo e fartar a sua visão com a figu ra de um ser humano, de alguém tão fora do
comum. Mas era importante tam bém que ele tivesse boa opinião dela. Não podia
começar errando desde o pri meiro momento, agindo inconvenienternente e parecendo
curiosa.
- Desculpe, eu não pretendia perturbá-la - falou ele, sem saber se a ti nha ofendido
ou se ela era apenas tímida. Não obtendo resposta, ele deu um sorriso forçado, dando-se
conta de que falara em zelandonii. Mudou, então, para mamutoi. Outra vez nenhuma
resposta - Resolveu tentar sharamudoi, e também nada.
Ela o observava, lançando olhares furtivos, á maneira das mulheres dos clãs quando
se achavam à espera do sinal que lhes dava licença para se aproxi marem. Mas ele não
esboçava nenhum gesto, pelo menos algum que ela enten • desse. Só dizia palavras e
nenhuma se parecia com os sons que integravam a • língua gestual dos das. Eram
palavras guturais, com sílabas articuladas, que se emendavam uma na outra. Ela nem
sabia dizer onde uma começava e a outra terminava. A voz dele ribombava em seus
ouvidos num tom grave e agradável, mas a deixava frustrada. Ela sentia que num
determinado nível básico deveria entendê.lo, no entanto lhe era impossível.
Continuou aguardando algum sinal. A espera tomava-se embaraçosa.
Foi então que se lembrou dos seus primeiros tempos no clã, quando Creb te ve de
ensiná-la a falar. O feiticeiro contou-lhe que ela só sabia fazer sons. Tal vez, como ele
pensasse, fosse esse o modo de comunicação utilizado pelos Outros. Mas será que esse
homem não conhecia nenhum gesto? Por fim, quando ela chegou à conclusão de que ele
não faria qualquer sinal, viu que precisava arrumar uma maneira de comunicar-se -
Quanto mais não fosse, para que ele tomasse os remédios, já preparados.
Jondalar se via confuso, sem saber o que pensar. Nada do que ele dizia provocava
alguma reação na mulher. Começava a achar que talvez ela fosse muda. Mas não.
Prontamente se tinha virado na sua direçXo quando lhe falou pela primeira vez. "Que
mulher estranha", pensou, sentindo-se pouco à vonta de. "Aonde estariam as outras
pessoas, o povo dela?" Ele passou os olhos pela caverna, vendo a égua cor de palha
com o seu potrinho baio. Subitamente, ocorreu-lhe outro pensamento. "Mas o que está
fazendo uma égua dentro de uma caverna?" Ele nunca tinha visto o nascimento de um
cavalo, nem mesmo nas planícies. "Será que a mulher possuía poderes especiais?”
Toda a coisa começava a lhe parecer irreal, numa atmosfera de sonho, embora não
acreditasse que estivesse dormindo. "Talvez seja pior. Talvez seja ela alguma doníi que
veio para me buscar", pensou, arrepiando-se, sem muita certeza se estava ou não diante
de um espírito do mal. - - se é que ela era mes mo um espírito. Com alívio, viu Ayla
movendo-se, caminhando, hesitante, pa ra a fogueira.
A postura dela era a de uma mulher acanhada. Movia-se como se não quisesse ser
vista por ele. Ela lhe lembrava. - - alguma coisa já vista. A roupa também era bastante
esquisita. Parecia ser simplesmente um couro enrolado no corpo e amarrado por uma
correia. Onde ele já vira isso antes? Não conse guia lembrar-se - Ela tinha arrumado um
jeito interessante de usar os cabelos. Estavam divididos em partes bem ordenadas na
cabeça e trançados. Ele já vira cabelos trançados, mas nunca naquele feitio. Não que
fosse feio, apenas diferente. Logo que a viu achou que fosse bastante bonita. Pareceu-
lhe jovem - havia 352 353 inocência no olhar - mas agora, tanto quanto podia perceber
sob aquela ves timenta disforme, achou que o corpo era o de uma mulher madura. Ela
pare cia evitar o seu olhar inquiridor. Por quê? Ele começava a ficar verdadeira mente
intrigado. A mulher era um enigma.
Ele não havia percebido a sua fome, até sentir o cheiro do suculento caldo que ela
lhe trouxe. Uma dor aguda na perna direita, que o impediu de sentar-se, lhe deu
consciência de seus ferimentos. Todo o corpo doía. Então, pela primeira vez, ele se
perguntou onde estava e como teria chegado àquele lugar. Subitamente lembrou-se de
Thonolan indo para a garganta. . - do rugido e do maior leão da caverna que já vira em
toda a sua vida.
- Thonolan! - gritou, olhando em pânico pela caverna. - Onde está Thonolan? - não
havia ninguém lá, exceto a mulher. O seu estômago embru lhava-se. Ele sabia, mas não
queria acreditar. Talvez Thonolan estivesse em outra caverna das redondezas. Talvez
uma outra pessoa estivesse cuidando dele. - Onde está o meu irmão? Onde está
Thonolan?
Ayla reconhecia uma das palavras. Era a que ele repetia seguidamente quando, das
profundezas de seu sono, gritava aflitamente. Imaginando que o homem estivesse
perguntando pelo companheiro, ela baixou a cabeça em si. nal de respeito pelo morto.
- Onde está o meu irmão, mulher? - gritou Jondalar, agarrando-lhe os braços e
sacudindo-a. - Onde está Thonolan?
Ayla estava chocada com aquela explosão. A altura da voz, a fúria, a frustração, as
emoções incontidas, tudo a perturbava. Os homens dos clãs jamais deixavam
transparecer suas emoções tão abertamente. Eles podiam sen tir intensamente, mas a
hombridade se media pela capacidade de autodomínio.
Os olhos dela transmitiam tristeza. Ela podia ver pelos músculos em seu ombro e
pelas mandíbulas fortemente cerradas que ele estava lutando para não aceitar uma
verdade já sabida. O povo que a havia criado não se comuni cava apenas por meio de
simples sinais e gestos de mãos. Também atitudes, expressões faciais, posturas, tinham
significados e faziam parte do vocabulário da língua. A flexão de um músculo, por
exemplo, podia ser reveladora de alguma leve nuança do estado de espírito. Ayla estava
acostumada a decifrar a linguagem corporal. Além do mais, a perda de uma pessoa
amada era dor universal.
Os olhos dela também comunicavam sentimentos, revelando pesar e compaixão.
Ela abanou a cabeça, depois tomou a baixá-la. Ele já não podia mais negar o que sabia.
Soltou-a. Os ombros caíram resignados.
- Thonolan. . . Thonolan. - . por que você tinha de prosseguir nesta via gem? Oh,
Doni, por quê? Por que foi você levar o meu irmão? - dizia alto e soluçando. Ele
procurava resistir àquele sofrimento atroz e não se deixar le var pela dor, mas nunca
conhecera desespero tão grande. - Por que foi levá lo e me deixar sozinho? Você sabia
que ele era a única pessoa que eu amava. Oh, Grande Mãe, ele era o meu irmão.. - o
meu irmão. Thonolan. . . Thono lan...
Ayla sabia o que era a dor. Ela ainda carregava as marcas de seu sofri mento.
Solidária, sofria por ele, desejando poder consolá-lo. Sem saber como se deu, encontrou-
se abraçada ao homem, ninando-o, enquanto ele dava vazão à sua angústia gritando o
nome do companheiro. Jondalar não conhecia Ayla, mas sentia que ela era uma mulher
compreensiva e generosa. Via o seu sofri mento e se solidarizava com ele.
Agarrado a ela, a dor avolumava-se em seu peito tal como as forças de um vulcão
que, depois de liberadas, não podem ser contidas. Um soluço forte sacudiu-lhe
convulsivamente o corpo. Depois, os gritos lancinantes, arranca dos do fundo da
garganta, quando cada ato de respirar era um doloroso esfor ço. Desde criança que não
se soltava daquela maneira. Não era de sua nature za revelar a intimidade de seus
sentimentos. Esses eram demasiadamente for tes e, cedo, ele aprendeu
a controlá-los. No entanto, a explosão ocasionada pela morte de Thonolan reavivou
certas chagas que se encontravam profun damente sepultadas.
Serenio tinha razão. O amor dele era demasiado para que o comum das pessoas
pudesse arcar com o seu peso. E assim era também ele na raiva que, uma vez
desencadeada, não seria contida enquanto não fosse inteiramente es gotada. Certa vez,
quando rapazinho, tomado de justa indignação, distribuiu tamanha pancadaria que uma
pessoa saiu gravemente ferida. Todas as suas emoções eram desmedidas e violentas.
Até mesmo a sua mãe sentira a neces sidade de pôr um certo distanciamento entre os
dois. Ela via com tristeza e em silêncio os amigos se afastarem por causa do seu
temperamento: obses sivo, apaixonado ao extremo e exigindo demais de todos. Esses
mesmos tra ços ela tinha visto no homem que fora, em outros tempos, o seu companhei.
ro e na casa de quem Jondalar havia nascido. Apenas o irmão parecia saber lidar com
este amor, aceitá.lo com tranqüilidade e dispersar com uma risa da as tensões que ele
provocava.
Quando Jondalar passou do limite, não sendo mais possível a mãe li- dar com ele -
o tumulto espalhara-se pela Caverna inteira - ela o despa chou para Dalanar. Foi uma
medida inteligente. Na volta, Jondalar não só tinha um ofício, como também havia
aprendido a controlar o seu gênio. Era, então, um homem excepcionalmente bonito, alto,
musculoso, com uns olhos extraordinários e dono de um carisma inconsciente que lhe
vinha da alma. Às mulheres, em particular, pressentiam qualquer coisa a mais do que
aquilo que ele estava disposto a revelar. Tornou-se um irresistível desafio. Ninguém
conseguia ganhá-lo. Por mais que elas penetrassem em seu interior, nunca con seguiam
tocar nos seus sentimentos mais profundos e, ainda que conseguissem 354 355 tê-lo, a
posse nunca era plena. Logo ele aprendeu até onde podia chegar com cada uma delas,
mas a relação lhe parecia superficial e insatisfatória. A única mulher que se entendeu
com ele em pé de igualdade estava comprometida com a sua verdadeira vocação. De
qualquer forma, a união não teria dado certo.
A dor era tão intensa como o resto de sua natureza, mas a moça que o abraçava
havia conhecido dor igual. Ela perdera tud'cS e não foi só uma vez.
Ela sentira o bafo gelado do mundo dos espíritos e não foi só uma vez. No entanto,
perseverara. Sentia que aquela explosão apaixonada era mais do que uma simples
lamentação de pesar, e, pensando em suas próprias experiências, pôde compreendê-lo.
Quando começou a amainar aquele penoso soluçar, ela se percebeu can tarolando
baixinho, abraçada com ele. Esse cantarolar já havia servido para acalmar Uba, a filha de
Iza, e era com essa mesma cantilena monótona e desa finada que ela via o seu filho
fechando os olhos e que também já lhe servira para embalar a sua própria dor e solidão.
Era o que o momento pedia. Por fim, exausto, ele relaxou o abraço e se deitou com a
cabeça voltada para o lado, fitando as pedras da parede. Ela, então, virou-lhe o rosto
para limpar as lágrimas com água fria. Ele fechou os olhos. Não podia ou não queria
olhar para ela. Pouco depois o seu corpo reinou, adormecendo.
Ela foi ver como estava passando I-Iuiin com o seu filhote. Em seguida, saiu da
caverna. Também se sentia esgotada, mas aliviada. Indo para a extre midade do
patamar, pôs-se a olhar o vale embaixo, lembrando-se da angustian te volta com o
homem preso ao jorrão arrastado por Huiin. Quanta esperan ça então! O pensamento
deixava-a nervosa. Mais do que nunca sentia qub aquele homem tinha de viver. Correu à
caverna para se certificar de que ele estava respirando. Depois, levou de volta o caldo frio
para a fogueira - ele não havia precisado do caldo e sim de apoio e amparo - e foi passar
em revis ta mais uma vez os remédios, querendo ver se estava tudo pronto para lhe dar
quando acordasse. Por fim se sentou sobre a pele ao seu lado.
Não se cansava de olhar para o homem. Ficava examinando-o, como se quisesse,
de uma só vez, compensar todos aqueles anos que passara ansian do pela visão de uma
figura humana. Agora, já mais acostumada com as par ticularidades dele, via o rosto mais
como um todo e não os traços individua lizados. Queria tocá-lo, correr com os dedos pelo
contorno do rosto, sentir a textura das sobrancelhas e. - - de repente se lembrou.
Os olhos dele aguavain! Ela lhe havia limpado o rosto. Os ombros dela ainda
estavam até molhados da água saída de seus olhos. "Creb nunca pôde entender por que
brotava água de meus olhos quando eu ficava triste e nin guém sabia explicar isto. Ele
achava que eu tinha olhos fracos. Mas os olhos do homem também soltam água quando
ele fica triste. Neste caso, todos os Outros devem também ter olhos que soltam água.”
A vigília de uma noite inteira e as intensas emoções vividas acabaram por vencê-la.
Embora ainda fosse dia, caiu dormindo na pele ao lado dele. Quando começava a
anoitecer, Jondalar acordou. Tinha sede e procurava por alguma coisa para beber. Não
desejava acordar a mulher. Ouvia o barulho da égua com o seu potro, mas só via o pêlo
amarelo de l-luiin, deitada junto da parede oposta, perto da entrada.
Olhou para a mulher. Estava dormindo de costas, com o rosto virado para o outro
lado. Dava apenas para enxergar a linha do pescoço e um pouco do formato do queixo e
do nariz. Lembrando- se da cena de sua explosão, sentiu-se envergonhado. Fora a sua
dor que desencadeara os outros senti mentos. Sentia os olhos se enchendo de lágrimas
e os fechou apertados. Pro curou não pensar em Thonolan, não pensar em nada. E o
conseguiu. Pouco depois voltou a dormir. Acordou no meio da noite, mas agora os seus
gemidos haviam despertado Ayla.
Estava escuro e a fogueira se apagara. Ayla foi tateando pela escuridão. No lugar
onde guardava os
seus suprimentos pegou lenha, iscas e as pedras de fazer fogo.
A febre de Jonoalar havia outra vez subido, mas ele estava bem acorda do. No
entanto, achava ue devia estar meio dormindo. Era impossível que a mulher tivesse
produzido fogo com tamanha rapidez. Não havia um só carvão aceso quando ele
acordara e em instantes uma fogueira aparecera.
Ela lhe trouxe o chá de salgueiro que tinha feito mais cedo. Ele ergueu o corpo para
pegar a cuia, o gosto era amargo, mas ele bebeu assim mesmo para matar a sede.
Imediatamente reconheceu o sabor. Parecia não haver nin guém neste mundo que não
conhecesse as propriedades do salgueiro. Agora estava desejando um pouco de água
pura. Também tinha vontade de urinar. Mas como dizer uma coisa e outra para a mulher?
Pegou na cuia vazia do chá e a virou, mostrando que não havia nada dentro; depois a
levou à boca.
Ayla imediatamente compreendeu e surgiu com um odre. Encheu a cuia e deixou a
bolsa de água perto dele. A sede estava aliviada, mas o seu outro problema com isto se
agravou ainda mais. Ele se pôs a remexer com o corpo, numa atitude de desconforto.
Ayla logo compreendeu também. Ela tirou da fogueira um pedaço de lenha para servir
como tocha e se dirigiu para a parte da caverna onde tinha o seu estoque de utensílios
diversos. Precisava de um recipiente de determinado tipo, mas ali chegando encontrou
outros objetos que lhe podiam também ser úteis.
Ela havia feito algumas lamparinas. Eram pedras em que tinha talhado um fundo
que enchia de gordura derretida banhando um pavio de musgo. Não as utilizava muito.
Em geral, a iluminação da fogueira lhe bastava. Pegou uma das lamparinas, encontrou os
pavios e procurou pelas bexigas cheias de gordura congelada. Ao ver uma que estava
vazia, apanhou-a também. Botou 356 357 uma bexiga cheia de gordura perto da fogueira
para que o calor derretesse o conteúdo e levou a vazia para Jondalar. Mas como lhe
explicar para o que era? Desdobrou-a e apontou para a parte do saco com uma abertura.
Ele olhava perplexo. "Não há outra maneira", pensou Ayla. Ela puxou a coberta e pro
curou colocar o odre entre as suas pernas. Rápido, ele percebeu, tirando ore cipiente de
suas mãos.
Sentia-se ridículo, deitado de costas, sem poder levantar-se para urinar
normalmente. Ayla, percebendo-lhe a falta de jeito, foi encher a lamparina, perto da
fogueira. "Ele nunca deve ter estado doente antes, ou pelo menos com alguma doença
que o deixasse de cama", pensou. Quando veio pegar o odre, ele lhe deu um sorriso sem
graça. Ela saiu, esvaziou o saco e o devolveu para ele usar sempre que precisasse. Em
seguida foi terminar de encher a lam parina. Depois de acendê-la, veio com a luz para
perto da cama e retirou a co berta de cima da perna Mesmo doendo, ele tentou sentar-se
pata ver. Ela escorou-lhe o corpo. Quando os seus olhos bateram nos ferimentos no peito
e nos braços, ele com preendeu por que estava sentindo mais dor no lado direito. Mas o
que real mente o incomodava era a dor forte na perna. "Até que ponto seria compe tente
essa mulher? Só chá de salgueiro não faz um curandeiro “
Depois de removida a compressa de raízes, ele se preocupou ainda mais. A
lamparina não iluminava como a luz do dia, mas dava para ver a gravidade do ferimento.
A perna estava inchada e com uma ferida em carne viva. Olhan do mais de perto, achou
ter visto alguns nós amarrando a carne. Ele não sabia nada sobre a arte de curar. Até há
pouco tempo, o seu interesse não era nem maior nem menor do que o que qualquer
pessoa que goza de boa saúde. Mas teria alguma vez um Zelandonii amarrado a carne
de alguém?
Enquanto ela preparava um novo curativo - agora com folhas - ele a observava com
atenção. Queria lhe perguntar que folhas eram aquelas, conver sar, enfim tentar ter uma
medida de sua capacidade. Mas ela não sabia nenhu ma das línguas que ele falava. De
fato, pensando melhor, ainda não a ouvira falar nada. Como poderia ser curandeira se
não falava? Mas ela parecia saber o que fazia e, seja lá o que estivesse botando na sua
perna, a coisa havia melho rado bastante a dor.
Ele se relaxou. Que mais poderia fazer? Ficou olhando-a limpar o seu peito e braços
com uma esponja molhada nun ;k refrescante. Só então, quando a viu desamarrando a
tira de couro que prendia a compressa em sua cabeça, é que percebeu que estava
também aí mãthucado. Antes que fosse atada uma nova faixa, ele tocou no ferimento,
sentindo o galo e um ponto mais dolorido Ayla foi à fogueira para esquentar a sopa. Ele
continuava observando-a, tentando descobrir quem era ela.
- Isso cheira bem - falou, sentindo o aroma da sopa chegar até ele.
O som de sua voz parecia deslocado naquele lugar. Ele não sabia ao certo por que,
mas era qualquer coisa mais do que saber que não seria enten dido. Quando havia
encontrado os sharamudoi, ninguém falava a língua um do outro, no entanto houve uma
conversa, imediata e fluente, com os dois lados se esforçando para trocar algumas
palavras que pudessem dar início a um processo de comunicação. Mas aquela mulher
não fazia a menor tentati va para estabelecer alguma forma de entendimento. Aos seus
esforços, respon dia apenas com olhares de perplexidade. Parecia que não só não
compreendia as línguas que ele falava, como também não tinha a menor vontade de
comu nicar-se "Não", disse ele a si mesmo. "Isso não é verdade." Eles se haviam co
municado. Quando sentiu sede, ela lhe dera água; quando quis urinar, lhe trouxera o
odre, embora não pudesse dizer como teria ela adivinhado essa sua necessidade. Sobre
a comunicação que se estabelecera entre os dois, quando ele se deixou levar por sua dor
- o sofrimento ainda era muito recente - mas a pergunta estava incluída dentre as outras
indagações.
- Sei que você não pode me entender - falou um tanto hesitante. Não tinha idéia do
que dizer a ela, mas sentia necessidade de falar. E uma vez que começou, as palavras
se soltaram. - Quem é você? Onde está a sua gente? - fora do circulo de luz feito pela
fogueira e pela lamparina, ele pouco enxerga va, mas não tinha visto ninguém mais ali a
não ser ela e não havia qualquer evidência de outras pessoas na caverna. - Por que você
não quer falar?
Ela olhou para ele, muda.
Um estranho pensamento começou a insinuar-se na mente de Jondalar. Ele se
recordou da noite em que estivera sentado com um curandeiro diante de uma fogueira. O
shamud falara-lhe então sobre certas provas por que têm de passar aqueles que servem
à Mãe. Ele não havia dito qualquer coisa como pessoas que passam temporadas
sozinhas? Períodos vividos em silêncio, sem poder falar com ninguém? Períodos de
abstinência e de jejum?
- Você vive aqui sozinha, não é?
Ayla outra vez olhou para ele, surpreendendo-se com o seu ar admira do, como se a
estivesse vendo pela primeira vez. Por uma razão qualquer, ela tomou consciência de
que novamente estava sendo descortês e, rápido, abai xou os olhos para a sopa. No
entanto, ele parecia não prestar a mínima aten ção à sua atitude indiscreta, continuando
a olhar ao redor da caverna, produ zindo sem parar aqueles sons com a boca. Ela
encheu uma cuia e ficou segu rando-a, sentada diante dele, de cabeça baixa,
aguardando o tapinha em seu ombro que indicaria o reconhecimento de sua presença.
Nenhum tapinha veio. Ela levantou os olhos. O homem a olhava com ar indagativo, ainda
falando, falando.
358 359 "Ele não sabe! Não vê o que eu estou dizendo. Tenho certeza de que não
conhece um só sinal." Subitamente, lhe deu o estalo. "Mas se ele não conhece os meus
gestos e eu não sei o que quer dizer as suas palavras, como vamos poder falar um com o
outro?”
Ela se estremeceu com a lembrança de Creb tentando lhe ensinar falar e ela sem
ver que ele estava falando com as mãos. Nunca lhe passara pela cabeça que se podia
falar por gestos e ela, nesta época, só falava com sons! Mas agora, depois de tanto
tempo se expressando somente na língua dos clts, estava completamente esquecida do
sentido das palavras.
"Mas eu não sou mais uma mulher dos elas. Estou morta. Fui amaldi çoada. Nunca
poderei voltar para eles. Daqui por diante devo viver com os Outros, por isso tenho de
aprender a maneira deles falarem. Preciso voltar a entender o que quer dizer as palavras
e aprender a dizê-las, do contrário nun ca me farei entender. Mesmo que eu tivesse
encontrado um clã dos Outros, eu não poderia falar com as pessoas. Seria por isso que o
meu totem me fez ficar aqui, até que esse homem aparecesse para me ensinar a falar?"
Ela estremeceu, sentindo de repente frio, mas nenhuma corrente de vento passara por lá.
Jondalar divagava, fazendo perguntas. Não esperava nenhuma respos ta. Falava
simplesmente para se ouvir. A mulher não dava mostra de qualquer reação e ele achava
que sabia o motivo. Estava certo de que ela ou permane cia ainda em treinamento, ou já
estava a serviço da Mãe. Isso explicava urna série de coisas: o seu ofício de curandeira,
o domínio dela sobre o cavalo, o motivo de estar vivendo sozinha e não querer falar e
talvez até mesmo como ela o encontrara e o levara para lá. Ele se perguntava em que
lugar estada, mas isso não tinha no momento muita importância. Já era muita sorte estar
vivo. No entanto, uma outra coisa dita pelo shamud o incomodava.
Agora percebia que se tivesse prestado mais atenção ao velho curandei ro de
cabeça branca saberia que o seu irmão estava fadado a morrer. E tam bém não foi ele
avisado de que seguiria Thonolan porque o seu irmão o con duziria a lugares que ele, por
si só,jamais iria?
Ayla pensava numa maneira de iniciar o seu aprendizado de palavras. Creb,
lembrou-se, havia começado com o som dos nomes das pessoas. Ar mando-se de
coragem, ela olhou diretamente nos olhos de Jondalar e, baten do no peito, disse:
- Ayla.
Os olhos dele se arregalaram.
- Com que então resolveu falar? É esse o seu nome? - disse apontando para ela. -
Diga outra vez.
Ela acentuava a palavra de forma estranha, dividindo-a em duas partes, com os
sons saindo do fundo da garganta, como se os engolisse. Ele já ouvi- ra pessoas falando
diferentes línguas, mas nenhuma com as características sonoras que ela conseguia
imprimir à voz. Era-lhe quase impossível repetir o nome, mas ele procurou dizê-lo da
forma mais aproximada que podia.
- Âai-laá?
Aos ouvidos dela, o seu nome soou de uma maneira quase irreconhecí vel. Havia
pessoas nos das que tinham grande dificuldade de pronunciá-lo, mas nenhuma delas o
dizia como ele: com os sons encadeados e uma altera ção na altura da voz que fazia a
primeira sílaba soar mais forte do que a se gunda. Ela não se lembrava de ter alguma vez
na vida ouvido o seu nome di to daquela maneira, no entanto lhe parecia muito correto.
Então apontou para ele e inclinou a cabeça esperando.
- Jondalar. Meu nome é Jondalar dos Zelandonii.
Era demais. Impossível pegar todas aquelas palavras de uma vez só. Abanou a
cabeça e apontou novamente na direção dele. Jondalar via que ela estava confusa.
- Jondalar - disse, repetindo mais devagar.
Ela se esforçou para copiar-lhe os movimentos da boca.
- Dun.daá - foi o melhor que conseguiu como aproximação.
Ele percebia que ela estava tendo problemas para emitir os sons corre tamente e o
esforço que fazia para superar a dificuldade. "Será que tinha algu ma deformidade na
boca impedindo-a de falar? Seria essa a razão por não ter ainda falado? Por que não
podia?" Ele novamente tornou a repetir o nome, devagar, pronunciando cada som com o
máximo de clareza possível, como se falasse para uma criança ou alguém desprovido de
inteligência.
- Jon-da . - Jo-onn-daa-la-ar.
- Dun-da-laá - tentou Ayla outra vez.
- Bem melhor! - falou, aprovando com a cabeça e sorrindo. Havia sido urna façanha.
Ele já não estava tão certo se seda Ayla alguém buscando os serviços da Mãe.
Tampouco ela lhe parecia muito inteligente. Mas continuou a sorrir e a aprovar com a
cabeça.
"Ele faz a cara de felicidade! Fora Durc, ninguém nos clãs sorda desse jeito." E nela
era uma coisa tão natural. "Agora ele também está fazendo a mesma coisa.”
A cara de surpresa dela era tão cômica que Jondalar se viu obrigado a conter uma
risada, mas o seu sorriso se acentuou e os olhos se iluminaram, di vertidos. Um sorriso
contagiante. Os cantos da boca de Ayla se levantaram e, encorajada pelo riso franco
dele, ela lhe respondeu com um amplo e prazeroso sorriso.
- Oh, mulher - falou Jondalar - você pode não falar muito, mas quan do sorri é
encantadora - o homem que existia nele começou a vê-la como mu lher e un mulher
muito atraente. E era assim que a olhava.
360 361 Alguma coisa estava diferente, O sorriso ainda continuava, mas os seus
olhos. - eram à luz da fogueira como duas violetas escuras e existia qual quer coisa neles
além da expressão divertida. Ela podia não saber o que havia naquele olhar, mas o seu
corpo sabia e respondia, palpitante, com contrações sentidas em suas profundezas, as
mesmas sensações que experimentara vendo Huiin com o seu garanhão. Os olhos dele
se mostravam tão irresistíveis que ela se viu obrigada a fazer um movimento de cabeça
para se impedir de olhar para eles. Pôs-se a remexer nas cobertas da cama,
endireitando, depois pegou a cuia e se levantou, evitando encará-lo, Acho que você é
tímida - disse Jondalar, suavizando a intensidade de seu olhar.
Ela lhe lembrava uma mocinha durante os seus primeiros ritos, fazen do-o sentir-se
excitado, mas
contido em seus desejos. Os seus anseios refleti ram-se na virilha e a coxa
machucada doeu.
- Bom, tudo bem - falou, dando um sorriso irônico. - Não estou mesmo em
condições.
Ele se deitou e pôs de lado as peles que Ayla tinha usado para escorar- lhe a
cabeça, nivelando a cama. Estava exausto. O corpo lhe doía e, lem brando-se do motivo,
a dor ainda aumentou mais. Não queria nem lembrar nem pensar. Queria apenas fechar
os olhos e apagar tudo da mente, mergulhar num esquecimento que pusesse fim a toda a
sua dor. Sentindo um leve toque no braço, abriu os olhos, vendo AyIa com uma cuia na
mão. Bebeu o líqui do que ela lhe trouxe e não muito depois sentiu a dor diminuindo e
uma sonolência ir tomando conta dele. Sabia que o seu torpor se devia a alguma coisa
que ela lhe dera e a agradecia por isso, mas como poderia a mulher sa ber o que estava
querendo, se não lhe dissera uma só palavra?
Ayla percebera as suas caretas de dor e sabia o quanto ele se achava ma chucado.
Como boa e experiente curandeira, já tinha o chá de datura pronto antes que ele tivesse
acordado. Quando as rugas da testa se aplainaram e o corpo se relaxou, ela apagou a
lamparina, abafou a fogueira e arrumou a pek para dormir ao seu lado. Mas estava longe
de querer dormir.
Enquanto se dirigia, na penumbra mal-iluminada pelas luzes das brasas, para a
boca da entrada, ela ouviu o relinchar baixinho de Huiin e foi ter com o animal. Ficou feliz
por ver Huiin deitada. A égua, depois de ter tido o seu potrinho, estava nervosa com o
cheiro do homem na caverna. Mas se agora mostrava-se relaxada, a ponto de se deitar,
era porque estava aceitando a pre sença dele lá. Ayla sentou-se junto de Huiin, em frente
ao seu peitoral, de mo do a poder afagar-lhe a cara e coçar atrás de suas orelhas. O
potrinho, deitado junto das tetas da mãe, ficou curioso e saiu do lugar para se meter entre
as duas. Ayla concedeu-lhe também algumas carícias e coçadelas. Depois esten deu os
dedos para ele. O bichinho começou a chupá-los, mas logo soltou, descobrindo que ela
não tinha nada para lhe dar. Só a sua mãe podia satisfa zer a sua necessidade de
mamar.
"Ele é um lindo bebê, Huiin. E vai crescer forte e sadio, igual a você. Agora, você
tem alguém e eu também. E difícil acreditar que isso aconteceu. Depois de todo esse
tempo e agora não estar mais sozinha. Quantas e quantas luas já passaram desde que
recebi a minha maldição e que nunca mais vi nin guém. E um homem, Huiin. Um homem
dos Outros e eu acho que ele vai vi ver." Ela limpou as lágrimas nas costas da mão. "Os
olhos dele também pro duzem água, iguais aos meus. Ele sorriu para mim e eu para ele,
Huiin.”
"Eu sou alguém dos Outros, como disse Creb. Iza me falou para que eu encontrasse
a minha gente, para que achasse o meu companheiro. Huiin, será que esse homem é
quem vai ser o meu companheiro? Será que ele foi enviado aqui para isto?”
"Neném! Ele me foi dado por Nenén. Foi escolhido do mesmo modo que eu. Foi
testado e marcado por Neném, pelo filhote de leão da caverna que o meu totem me
enviou. E, agora, o totem dele é também o Leão da Caverna. Isso significa que ele pode
ser o meu companheiro. Um homem com o totem do Leão da Caverna é forte o suficiente
para ter uma mulher com o mesmo totem. Eu poderia até ter mais filhos.”
Ela franziu a testa. "Ora, mas os bebês não são feitos por totens. Sei que foi Broud
quem gerou Durc quando ele colocou o seu órgão dentro de mim. São os homens que
fazem os bebês e não os totens. Dun-da-laá é um ho. mem. - Subitamente ela pensou em
seu órgão endurecido pela vontade de uri nar e nos seus olhos azuis com uma expressão
de embaraço. Sentia-se pertur bada, com uma estranha palpitação dentro dela. Por que
teria essas sensações tão esquisitas? Havia começado quando viu Huiin com o cavalo de
pêlo mar. rom-escuro.
"Um cavalo marrom-escuro! E, agora, Huiin teve um potro da mesma cor. Foi aquele
garanhão quem fez o bebê nela. Dun-da-laá pode fazer um bebê em mim. Ele pode ser o
meu companheiro..
"E se ele não me quiser? lia disse que os homens fazem isso quando gostam da
mulher. Mas nem todos. Broud não gostava de mim. Eu não iria odiar se Dun-da-lai.." De
repente, ela ficou vermelha. "Sou tão grande e tão feia! Por que iria ele querer fazer isso
comigo? Por que iria me desejar para companheira? Ele talvez já tenha uma. E se ele
quiser ir embora?”
"Mas ele não pode. Tem de me ensinar a falar novamente com palavras. Será que
ele ficaria se eu pudesse entender a sua língua?”
"Eu vou aprendê-la. Vou aprender todas as palavras dele Assim talvez ele fique,
mesmo que eu seja grande e feia. Ele n pode partir agora. Há tan to tempo que estou
sozinha.”
362 363 Ayla deu um salto, quase em pânico, e correu para fora da caverna, O
negrume no céu já começava a matizar-se num tom aveludado de azul-escuro.
A noite estava quase findando. Ela ficou observando as árvores e alguns conhecidos
pontos da paisagem irem aos poucos ganhando forma. Quis entrar e olhar o homem
outra vez, mas dominou a vontade. Então pensou em lhe trazer alguma carne fresca para
a primeira refeição e foi buscar a funda, "E se ele não gostar que eu cace? Bom, eu já
havia decidido que nunca mais admitiria alguém me impedindo de fazer as coisas que me
dão prazer." No entanto,, ela não entrou para pegar a funda, e preferiu descer à praia e
tomar um banho de rio. A água estava especialmente boa e pareceu lavar o mundo de
emoções que a confundia. Depois da inundação da primavera, o seu lugar preferido de
pescar havia desaparecido, mas ela descobrira um ou tro, pouco mais abaixo no rio, e se
dirigiu para lá.
Jondalar acordou com o cheiro de comida cozinhando que o fez lem brar a fome que
vinha sentindo. Usou o odre para urinar e deu um jeito de aprumar o corpo para que
pudesse ver ao seu redor. A mulher havia saído e também a égua com o potro. A parte
que os animais ocupavam era o único canto na caverna que parecia, ainda que
remotamente, um lugar de dormir. Havia apenas uma casa. A mulher realmente vivia ali
sozinha. Havia também os animais, mas estes não contavam.
Neste. caso, onde andava o povo dela? Haveria outras cavernas nas re dondezas?
Na área reservada aos utensílios ele via peles, couros, plantas pen duradas em
engradados, carnes e comida, tudo em quantidade para abaste cer uma imensa Caverna.
Todas essas coisas seriam só para ela? Se vivia so zinha, para que tanto? E quem o teria
levado para lá? Talvez fosse o povo dela que o tivesse encontrado e o levado para
aquela caverna.
"Sim, deve ter sido isto. Ela deve ser a Zelandonii deles e eu fui trazi do aqui para
que ela cuidasse de mim. Ela é moça, pelo menos na aparência, mas é competente.
Disso, não tenho dúvidas. Provavelmente está aqui por causa de alguma prova que
resolveu impor-se. Talvez para se aperfeiçoar em algum tipo especial de arte. . - Quem
sabe se animais? Sim, certamente deve ser isto. A gente dela me encontrou e como não
havia ninguém mais para cui dar de mim, ela permitiu que eu ficasse aqui. Para ter um tal
domínio sobre os animais, ela deve ser uma Zelandonii dotada de grandes poderes.”
Ayla entrou na caverna carregando uma travessa esbranquiçada - fei ta do osso da
bacia de um animal - onde se achava uma enorme truta, acaba da de assar. Ela sorriu
para ele, surpresa de vê- lo acordado. Botou a travessa de lado e veio arrumar as peles e
o co de palha, de modo que ele pudesse sentar-se confortavelmente. Para começar, deu-
lhe um chá de salguei ro. Seria para baixar a febre e aliviar a dor. Depois, colocou a
travessa sobre o 364 colo dele, serviu e voltou trazendo uma gamela com cereais
cozidos, talos frescos de cardo, salsa e os primeiros morangos da estação.
A fome de Jondalar era bastante para comer qualquer coisa que lhe apa recesse
pela frente, mas após as primeiras mordidas passou a comer devagar, querendo
saborear melhor o gosto. Ayla havia aprendido com Iza a lidar com ervas, não só no
sentido medicinal, mas também no do preparo de temperos. Tanto a truta como os
cereais tinham sido preparados por mão de mestre. Os talos frescos estavam crocantes e
macios na medida certa, e os morangos, apesar de poucos, contribuíam com uma pitada
de doce que vinha deles, próprios e do sol que os amadureceu. Jondalar estava
impressionado. Sua mãe era conhecida como excelente cozinheira, embora os sabores
da comida dela fossem diferentes, e ele entendia as sutilezas da boa cozinha.
Ayla ficou feliz por vêdo saboreando com prazer a sua comida. Depois que ele
terminou, trouxe-lhe uma cuia de chá de hortelã e começou a se pre parar para trocar os
curativos. Retirou, primeiro, a compressa da cabeça. A inchação desaparecera, restando
apenas um ligeiro ferimento. Os machucados no peito e nos braços também saravam.
Talvez ficassem pequeninas cicatrizes, mas nada que fosse prejudicá-lo. O problema era
a perna, Iria cicatrizar-se da forma correta? Iria ele poder usá-la normalmente?
Parcialmente? Ou ficaria aleijado para sempre?
Ela removeu o curativo, dando um suspiro de alívio ao ver que as fo lhas de couve
selvagem haviam reduzido a ulceração, tal como havia espera do. Sem dúvida tinha
melhorado, embora ainda não se pudesse dizer até que ponto ficaria perfeita. Os nós
dados com fios de tendão pareciam estar dando bom resultado. Para o tipo de lesão que
era, a perna estava indo muito bem, quase já com o seu formato normal, apesar de que
talvez ficasse com uma enorme cicatriz e um pouquinho deformada.
Era a primeira vez que Jondalar olhava de fato a sua perna e não gosta va nada do
que estava vendo. Parecia muito mais sério do que imaginara. Ele ficou pálido e por
diversas vezes engoliu em seco. Percebia a intenção daque les nós amarrando a sua
carne e achava que talvez pudessem dar certo. Mas será que algum dia voltaria a
caminhar?
Ele conversava com ela, perguntando-lhe onde havia aprendido o seu ofício, mas
sem esperar por qualquer resposta. Ayla apenas distinguia o seu nome e nada mais.
Queria pedir a ele para que lhe ensinasse o significado das palavras, mas não sabia
como. Sentindo-se frustrada, saiu para buscar lenha. Estava morrendo de vontade de
aprender a falar, mas como poderiam eles fa zer para ter um simples início de
comunicação?
Jondalar pensava na comida que acabara de comer. Fosse quem fosse que a
estivesse abastecendo, a mantinha bem fornida, mas não restava dúvida de que a mulher
sabia como cuidar de si mesma. Os morangos, a truta e os ta 365 los de cardo eram
frescos. Já os cereais deviam ser do outono passado, sobra dos do estoque de inverno.
Havia, portanto, um planejamento ali. Nada de passar fome no final do inverno e no
princípio da primavera. Isso provava também que a região era bem conhecida e habitada
há algum tempo. A fuli gem negra ao redor da abertura e, em particular, a terra socada no
chão eram indícios que levavam a crer que o uso que se fazia da caverna não era
recente.
Com efeito, era uma caverna muito bem equipada, cheia de instrumen tos e
utensílios. No entanto, quando se observava melhor os objetos, eles cha mavam a
atenção pela total ausência de adornos e enfeites lapidados, de certa forma bastante
primitivos. Ele olhou a cuia de madeira em que tinha bebido o chá. "Na verdade, não é
que seja uma peça rústica ou grosseira", disse a si mesmo. "De fato, muito bem-feita. A
julgar pelo desenho dos veios da madei ra, a cuia fora esculpida de um nó." Examinando
mais atentamente, pareceu a Jondalar que a peça fora modelada de modo a aproveitar
as figuras sugeri- das pelos veios. Não era difícil imaginar o rosto de um pequeno animal
nos nós e curvas. Teria ela feito intencionalmente? Era muito sutil. Ele gostava bem maM
daquela peça do que de outras que já vira, exageradas em ornatos.
A cuia era funda, de forma simétrica, alargando-se na borda e muito bem-acabada.
A madeira estava lisa e macia. Mesmo dentro, não se percebia nenhuma saliência ou
ranhura. Um nó de madeira é muito difícil de ser tra balhado, e seriam precisos dias para
se fabricar uma peça daquelas. Quanto mais a olhava mais convencido ficava de que a
cuia disfarçava em sua simpli cidade um magnífico trabalho de artesanato. "Marthona iria
apreciar isso", pensou, lembrando-se do gosto que a sua mãe tinha para arranjar os seus
objetos, mesmo os mais simples e prosaicos.
Quando Ayla entrou trazendo o carregamento de lenha, ele levantou os olhos e
abanou a cabeça, desaprovando a sua vestimenta de couro extrema mente grosseira.
Então reparou no colchão em que estava deitado. Como a roupa dela, o colchão era
simplesmente um pano de couro, sem forma, que envolvia o feno fresco posto numa vala
no chão. Ele puxou uma ponta para examinar. Bem na beirada, o couro estava
ligeiramente duro e com alguns pêlos de veado ainda presos, mas era maleável e
aveludado. Tanto o grão duro de fora como o de dentro haviam sido raspados junto com
os pêlos, dando ao couro aquela sua textura macia. Mas o que mais impressionava
Jondalar eram as peles. Uma coisa era puxar e esticar o couro sem o grão para lhe dar
flexi bilidade, e outra bem diferente era o tratamento de peles, já que aqui apenas o grão
de dentro era removido. As peles sempre tinham tendência a endure cer mais, embora as
que forrassem a sua cama fossem extremamente maleáveis.
O tato delas lhe lembrava algo que ele não sabia direito onde localizar.
"Nada de ornatos esculpidos e enfeites, mas tudo feito com o maior capricho e
lavor", pensou. Peles e couros curtidos com a maior perícia e cui dado, mas roupas sem
corte, costuras ou amarrações. Nada de bordados com contas ou penas. Nada de tinturas
colorindo. Nenhum adorno de qualquer tipo que fosse. No entanto, ela havia recomposto
e costurado a sua perna. Es trarihas contradições. A mulher era um mistério.
Jondalar, sem prestar muita atenção, observava Ayla preparando a fo gueira. Ele já
vira fazer fogo inúmeras vezes. "Por que ela simplesmente não pegava um carvão aceso
na fogueira em que faz a comida?" Imaginou, então, que essa se tivesse apagado.
Distraído, olhava sem ver para o que a mulher fa. zia. Primeiro, ela arrumando as
acendalhas; depois, pegando duas pedras e ba tendo uma contra a outra e, por fim,
soprando uma pequenina chama que logo se avivou. Tudo feito com tanta rapidez que,
antes de que se desse conta, a fogueirajá estava acesa, ardendo com labaredas.
- Nossa Mãe! Como você conseguiu fazer essa fogueira tão depressa?!
- vagamente, ele se recordava de um fogo feito muito rápido durante a noite, mas
tomou a coisa como uma ilusão de seus sentidos.
Ouvindo aquele vozerio intempestivo, Aylase virou,olhando.o perplexa.
- Como você fez esse fogo? - perguntou outra vez, levando o corpo à frente. - Oh,
Doni! Ela não entende uma palavra do que eu digo - falou de sesperado, atirando a mão
para o alto. - Ao menos você sabe o que fez? Venha cá, Ayla - pediu, acenando-lhe.
Imediatamente ela se dirigiu para ele. Era a primeira vez que o via fazer um gesto
com uma intenção definida. Percebia que alguma coisa, o deixara extremamente agitado.
Ayla tinha a testa franzida, concentrada nas palavras dele, desejando com todas as
forças poder entendé4as.
- Como você fez esse fogo? - perguntou Jondalar mais uma vez, agi tando a mão na
direção do fogueira e pronunciando as palavras muito devagar e com cuidado, como se
dessa forma ela pudesse entender.
- Fo. - .7 - disse ela, procurando repetir a última palavra. Era alguma coisa
importante. O esforço para concentrar-se no que ele dizia deixava-a tremendo e
procurava entendê-lo, como se fosse algo que dependesse só de sua força de vontade.
- Sim, fogo! Fogo! - gritava Jondalar, gesticulando na direção das cha mas. - Você
tem uma idéia do que pode significar produzir fogo com essa rapidez?
- E. Como aquele - dizia, fmcando o ar com o dedo na direção da fogueira.
Ela se levantou e foi até a fogueira e apontou.
- Foco? - falou.
Ele soltou um suspiro e se reclinou sobre as peles, subitamente perce bendo que a
havia forçado a entender palavras que ela não podia saber.
366 367 - Desculpe, Ayla. Foi estúpido o que eu fiz. Como você pode dizer o que fez
se não sabe o que estou falando?
A tensão se esvaíra. Ele fechou os olhos, sentindo-se exausto e frustra do. Ayla,
entretanto, estava excitada. Tinha fmalmente uma palavra. Uma só, mas já era um
começo. Bom, mas como fazer com que o processo prosse guisse? Como dizer a ele que
queria aprender mais? Que tinha de
aprender muito mais?
- Dun-da-laá.
Ele abriu os olhos.
Ela apontou novamente para a fogueira.
- Foco?
- Sim, fogo. Aquilo é fogo - falou, confirmando com a cabeça. Depois fechou os
olhos, sentindo-se cansado e um tanto idiota por ficar tão excitado e se torturar
demasiado, física e emocionalmente.
Ele não estava interessado. O que poderia ela fazer para ser entendida? Sentia-se
desapontada, furiosa por não conseguir pensar em alguma coisa que expressasse a sua
necessidade. Tentou mais uma vez.
- Dun-da-laá - ela esperou que ele abrisse os olhos novamente. - Foco? - falou com
os olhos suplicantes e esperançosos.
"O que significa isso?", pensou Jondalar. A sua curiosidade fora desper tada.
- O que é que há com esse fogo, Ayla?
Ela sentiu, pela expressão do rosto e pela postura dos ombros, que ele estava
fazendo uma pergunta. Jondalar lhe prestava atenção. Ela olhava ao seu redor,
pensando numa madeira de lhe falar, quando os seus olhos bateram num pedaço de pau
perto da fogueira. Foi buscá-lo e, com a mesma expressão súplice e esperançosa, se
postou na frente dele, segurando o pau para o alto.
Jondalar enrugava a testa, estupefato. Depois, achando que começava a entender,
as rugas foram suavizando-se.
- Você quer saber o nome disto? - perguntou, admirado pelo súbito interesse dela
em querer aprender a sua língua, quando até aquele momento se havia mostrado
completamente desinteressada em falar. Falar? Mas ela não estava querendo aprender
uma língua e sim querendo aprender a falar. Podia ser essa a razão por que estivera
muda até aqui? Por não saber falar?
Ele tocou no pedaço de madeira.
- Pau - disse.
O ar no peito dela explodiu. Ayla não sabia que o vinha prendendo du rante todo
aquele tempo.
-Pau?
- Pau - repetiu ele devagar, exagerando na forma da boca, de modo a pronunciar
com clareza.
368 - Pa-u - disse ela procurando imitar-lhe o movimento dos lábios.
- Muito bem - disse Jondalar, balançando a cabeça.
O coração de Ayla dava saltos. Teria ele compreendido? Afobada, olha. va
novamente ao seu redor, procurando alguma coisa que desse prosseguimen to à
comunicação dos dois. Viu a cuia e a pegou, estendendo o objeto na dire ção dele.
- Você, por acaso, está querendo que eu lhe ensine a falar?
Ela não entendeu. Abanou a cabeça e apontou para a cuia.
- Quem é você, Ayla? De onde vem? Como pode fazer todas essas coi sas e não
saber falar? Você é um enigma. Bom, mas se quiser saber alguma coi sa sobre você,
acho que tenho de começar por ensinar-lhe a falar.
Ela se sentou na pele ao lado dele, ansiosa, esperando com a cuia ainda na mão.
Estava com medo de que, depois de todas aquelas palavras ditas, ele se esquecesse
daquela que lhe perguntara. Novamente estendeu a euia na sua direção.
- O que você quer? Cuia ou beber? Acho que isso não tem importância.
Ele tocou na vasilha e disse:
- Cuia.
- Cuu-ia - repetiu. Depois sorriu aliviada.
Jondalar deu prosseguimento à idéia dela. Pegou no odre que ela lhe deixara e
derramou um pouco de água dentro da cuia.
-Água-falou ele.
- A-ga.
- Tente outra vez - disse animando-a. - Água.
- A-coa.
Ele fez sim com a cabeça e levou a cuia aos lábios, tomando um gole.
- Beber. Beber água.
- Be-be - disse com clareza, omitindo apenas o r da silaba fmal. - Be be acoa.
- j&_yla, não agüento mais ficar dentro dessa caverna. Olhe para o sol. Eu já posso
me movimez pelo menos para ir até lá fora.
369 21 L Ela não entendeu tudo que ele disse, mas percebeu que era uma queixa e
teve pena de seu sofrimento.
- Pontos - disse, tocando num dos nós. - Cortar pontos. Manha ver perna.
Ele sorriu, como se tivesse acabado de vencer uma batalha.
- Com que então vai tirar os pontos e amanhã de manhã vou poder sair da caverna,
não é?
Falando ou não a língua, Ayla não iria comprometer-se mais do que pretendia.
- Ver - disse com veemência. - Ayla ver. . . - ela lutava com o seu re duzido
vocabulário. - Perna. - - não pronta. Dun-da-laá não sair.
Jondalar voltou a sorrir. Sabia que tinha forçado o sentido das palavras dela,
esperando que Ayla fosse concordar com ele, mas ela não caíra na sua conversa e
insistira para fazer-se entendida. Ele se sentia satisfeito. Podia não sair da caverna no dia
seguinte, mas isso demonstrava que finalmente ela co meçava a aprender um pouco.
Ensinar Ayla a falar tomou-se um desafio e os progressos dela davam- lhe prazer.
No entanto os avanços se faziam de forma desigual. Ele estava in trigado com o seu
processo de aprender. Era espantosa a extensão do vocabu lário que Ayla já possuía. Ela
parecia ter a capacidade de memorizar as pala vras tão logo ele lhe fosse dando o
significado. Um dia ficou uma tarde quase inteira dizendo-lhe os nomes de tudo que ele e
ela pudessem lembrar e, quan do terminaram, Ayla repetiu todas as palavras com as
suas associações corre tamente. Mas a pronúncia lhe era difícil. Ela não conseguia
reproduzir, por mais que se esforçasse, determinados sons. E realmente esforçava-se.
Mas ele gostava de seu jeito de falar. Ela tinha uma voz grave e agradá vel, com
uma sonoridade exótica que vinha de seu estranho modo de acen tuar as palavras.
Jondalar preferiu, por enquanto, não corrigir a maneira co mo ela juntava as palavras. A
correção do discurso ficaria para mais tarde. As dificuldades dela tomaram-se mais
visíveis quando começaram a passar das palavras que designavam coisas específicas e
ações. Os mais simples conceitos abstratos eram problemas. Ela, por exemplo, queria
uma palavra para cada matiz de cor. Não podia entender como o verde-escuro dos
pinheiros e o cla ro dos salgueiros fossem os dois escritos pela mesma palavra. Quando
conse guia perceber uma forma de abstração do pensamento, parecia que a idéia lhe
chegava como uma revelação ou algo há muito tempo esquecido.
Certa vez ele fez um comentário elogioso sobre a sua fantástica memó ria. Ela
achou difícil entendê-lo ou acreditar.
- Não, Dun-da-laá. Ayla não lembrar bem. Ayla, menina pequena, tentar muito. Não
boa memória. Tentar, tentar. Todo tempo tentar.
Jondalar abanava a cabeça, desejando ter tão boa memória quanto ela 370 ou a sua
persistência e imensa vontade de aprender. Todos os dias ele notava progressos, mas
ela nunca estava satisfeita. Contudo, quanto mais aumentava a possibilidade de
comunicação entre os dois, mais se aprofundava o misté rio de Ayla. Quanto mais ele
sabia sobre ela, mais perguntas iam ficando sem respostas. Para certas coisas, era uma
mulher extraordinariamente capaz e in teligente, para outras, ingênua e ignorante ao
extremo. Com isto ele nunca ti nha muita certeza como julgá-la. Algumas de suas
técnicas - como a de fazer fogo - eram das mais avançadas que já vira na vida, enquanto
outras eram tão primitivas que ele quase não acreditava que houvesse alguém usando-
as.
De uma coisa, porém, Jondalar não tinha dúvida: estivesse ou não o p0- vo dela
vivendo nas redondezas, Ayla era perfeitamente capaz de tomar conta de si mesma. E
dele também, confirmou, vendo-a colocar de lado as cobertas para examinar-lhe a perna
ferida.
Ela já tinha pronta a solução anti-séptica, mas estava nervosa enquanto se
preparava para tirar os pontos. Não achava que a ferida fosse abrir, a cica trização estava
tendo um encaminhamento normal, mas era uma técnica nova, nunca usada, por isso se
via insegura. Há dias já vinha pensando em retirar os pontos, e agora a queixa de
Jondalar a fez resolver-se.
Debruçou-se sobre a perna, olhando com atenção os pontos. Com cuida. do, puxou
a ponta de um dos fios, feitos do tendão de uma corça. A pele cres cera agarrada à linha
e se suspendeu junta. Ela se perguntava se deveria ter es perado tanto tempo. Bom, era
tarde para pensar nisso agora. Segurou entre os dedos o nó e, com a faca mais afiada
que possuía - uma que nunca fora usa da - cortou o mais próximo possível do nó. Depois
de dar uns puxões para experimentar, viu que o ponto sairia facilmente. Botou, então, o
nó entre os dentes e deu um puxão rápido, de uma só vez. A linha saiu.
Jondalar estremeceu, recuando com o corpo. O corte não se abriu. Ela apenas
lamentava estar causando-lhe aquele pequeno desconforto. Um fio de sangue escorreu
do lugar onde a pele se rompera ligeiramente, mas os múscu los e a carne estavam bem
cicatrizados. Desconforto era um pequeno preço a pagar. Ela resolveu retirar os outros
pontos o mais depressa possível para aca bar de uma vez com aqueles instantes
desagradáveis. Jondalar apertava os den tes e cerrava as mãos cada vez que sentia um
dos puxões. Por fim, os dois se inclinaram sobre a perna, querendo ver o resultado.
Ayla decidiu que se tudo corresse bem daria licença para que ele se fir masse sobre
a perna e saísse um pouco da caverna. Pegou a faca, a vasilha com a solução anti-
séptica, e se levantou. Jondalar reteve-a.
- Posso ver essa faca? - perguntou, apontando.
Ela lhe deu o objeto e ficou observando-o, enquanto ele o examinava.
- Mas isto é silex! Não é uma simples lâmina. Foi feita com uma certa técnica, mas
só que muito primitiva. Nem mesmo cabo tem, apenas um reto- 371 A que de um lado
para não ferir a pessoa. Onde você conseguiu isso, Ayla? Quem fez a faca?
- Ayla fazer.
Ela sabia que ele estava comentando sobre a qualidade do trabalho do objeto.
Queria explicar-lhe que não era tão boa ferramenteira como Droog, mas que havia
aprendido a talhar com o melhor dos talhadores de pedra dos clãs. Jondalar examinava a
faca minuciosamente e, segundo parecia, com cer ta surpresa. Ayla gostaria de discutir
as qualidades do instrumento, as proprie dades do sílex, mas infelizmente lhe era
impossível. Faltava-lhe o vocabulário específico e a compreensão necessária para
formular conceitos. Era desalen tador.
Estava louca de vontade de falar, de conversar sobre qualquer coisa com ele. Há
tantos anos que não trocava idéias com uma pessoa. Só agora, depois da chegada de
Jondalar, é que realmente se dava conta do 9 isto lhe fa zia falta. Sentia-se como se
estivesse diante de um banquete, provando só de suas migalhas, ao invés de estar
devorando as iguanas.
Jondalar devolveu-lhe a faca, balançando a cabeça espantado. Era afia da e, sem
dúvida, bastante satisfatória. Entretanto, mais curioso ainda havia ficado. Ayla era tão
competente quanto qualquer zelandonii, com conheci mentos de técnicas
avançadíssimas, como essa dos pontos. No entanto, que faca mais primitiva! Se ele ao
menos pudesse lhe fazer algumas perguntas, fazê-la entender e ela lhe contar. . - E por
que não conseguia falar? Estava aprendendo agora rapidamente. Então, por que não
teria aprendido antes?
Fazer Ayla falar tornara-se uma suprema ambição, para ele e para ela.
Jondalar acordou cedo. A caverna ainda estava escura, mas já se via, pe la entrada
e pelo buraco no teto, os primeiros alvores da madrugada. A luz, perceptivelmente, ia
ficando mais clara, enquanto ele observava as reentrân cias e saliências na parede
ganharem forma. Vez por outra, fechava os olhos para continuar vendo as formas que
ficaram gravadas em seu cérebro. Precisa va se levantar e ir lá fora para olhar outras
coisas. Sentia-se cada vez mais ex citado, certo de que aquele seria o grande dia.
Impaciente, estava a ponto de sacudir a mulher que dormia ao seu lado. Ia tocá-la, mas
parou .com a mão no ar, mudando de idéia.
Ayla dormia com o corpo enroscado e as peles empilhadas ao seu redor. Ele sabia
que estava ocupando o lugar dela dormir na caverna. As peles de Ay la se achavam
sobre uma esteira colocada ao seu lado e não numa cavidade no chão - como a dele -
revestida por um colchoado de palha. Ela dormia vesti da, pronta para pular ao primeiro
chamado. Subitamente, virou-se, ficando deitada de costas. Jondalar a examinava com
atenção, procurando ver se havia nela algum traço marcante que desse uma pista sobre
a sua origem.
372 A forma do rosto, com a estrutura óssea das maçãs, se comparada com a das
mulheres zelandonii, tinha um quê particular, mas não havia nada fora do comum em
Ayla, anão ser o fato de ser extraordinariamente bonita. "Não. Não era uma questão só
de beleza", pensou ele, concluindo, agora que a olha va em profundidade. "Havia algo em
suas feiçôes que seria reconhecido como belo por qualquer padrão de beleza.”
Quanto ao feitio dos cabelos - presos em tranças regulares, deixadas soltas dos
lados e atrás, e na frente embutidas umas sob as outras - não era comum, mas ele já vira
outros arranjos de modo até mais estranho. Algumas das tranças se haviam desfeito e o
cabelo fora puxado para trás da orelha, caindo em desalinho. Uma das bochechas estava
manchada de carvão. Então ele se deu conta de que, desde que recobrara a consciência
- e provavelmente isso já devia estar acontecendo antes - ela só o largava por alguns
instantes. Nada escapava aos seus cuidados e. - - O fio de seus pensamentos foi
interrompido por Ayla que abriu os olhos, soltando um gritinho de surpresa.
Ela não estava acostumada a abrir os olhos e dar com uma cara na sua frente,
sobretudo uma com um par de brilhantes olhos azuis e uma barba lou ra desgrenhada.
Rapidamente se sentou. Tão depressa, que por um momento se sentiu meio tonta, mas
logo recuperou o domínio de si e se levantou para atiçar o fogo. Estava apagado.
Novamente ela se esquecera de abafar a foguei ra. Foi buscar o material para fazer um
novo fogo.
- Você podia me mostrar como faz fogo, Ayla? - perguntou Jondalar quando a viu
apanhando as pedras.
Desta vez ela compreendeu.
- Não difícil - disse, trazendo as pedras e as acendalhas para perto da cama. - Ayla
mostrar - ela bateu uma pedra contra outra. Em seguida, fez um montículo de fibras
vegetais e felpa de cardo, e lhe deu a pirita de feno e o pedaço de sílex.
O sílex, Jondalar imediatamente o reconheceu. A outra, achava já ter visto também,
mas jamais lhe teria ocorrido usar as duas para qualquer coisa que fosse, sobretudo para
fazer fogo. Ele bateu uma contrã outra como viu Ayla fazendo. Nada, apenas duas pedras
se chocando uma contra outra e sol tando, segundo lhe pareceu, uma minúscula faísca.
Bateu novamente, já qua se não acreditando que pudesse produzir fogo com pedras,
apesar de ter visto Ayla fazê-lo diversas vezes. Uma faísca grande, agora, pulou das
pedras. O seu espanto logo se transformou em interesse. Após algumas tentativas mais,
ajudado por Ayla, ele tinha uma pequena fogueira crepitando ao seu lado. Olhou, então,
outra vez para as pedras.
- Quem lhe ensinou a fazer fogo desta maneira?
Ayla sabia o que ele lhe perguntava, mas como explicar?
373 À A - Ayla fazer - respondeu.
- Sim, eu sei que você faz. Mas quem lhe mostrou?
- Ayla mostrar - como lhe contar sobre aquele dia em que descobrira as pedras-de-
fogo, quando ela se vira sem fogueira e com a machadinha que brada? Por um momento,
meteu a cabeça entre as mãos, tentando ver se con seguia explicar. Depois, triste, olhou
para ele, abanando a cabeça. - Ayla não saber falar.
Ele percebeu toda a sua frustração.
- Irá saber, Ayla, e então me di Isso não vai demorar muito. Você é uma mulher
surpreendente - ele deu um sorriso. - É hoje que vou sair, não é?
- Ayla ver. . . - ela afastou as cobertas para examinar a perna. No lugar dos pontos
formaram-se pequeninas cascas e o estado geral da perna ia indo bem. Já era tempo de
fazê-lo levantar e tentar saber de suas verdadeiras con dições. - Sim. Dun-da-laá sair.
O sorriso que se estampou no rosto dele foi o maior que Aylajá vira em toda a sua
vida. Jondalar se sentia como um rapazinho indo para a Reunião de Verão depois de um
longo inverno.
- Bom, então vamos lá, mulher - ele empurrou as peles, louco para se levantar e
sair.
O entusiasmo era contagioso. Ela devolveu o sorriso, mas havia ainda uma
restrição.
- Dun-da1aá comer comida.
Não demorou muito a ficar pronta. Ela só teve de fazer o chá, a comida fora
preparada na véspera. Ela levou cereais para Huiin e ficou alguns momen tos
escovando.lhe os pêlos com uma escova de cardo, O potrinho não foi es quecido, e
também ganhou as suas carícias e escovadelas. Jondalar observava-a. Já tinha reparado
antes em Ayla com a égua, mas aquela era a primeira vez que a via fazendo certos sons
parecidíssimos com o relinchar de um cavalo e outros guturais com as sílabas mutiladas.
Os gestos e sinais que ela fazia com as mãos nada lhe diziam, era como se não os visse.
Ele não sabia que também faziam parte da língua que Ayla usava para se comunicar com
o animal, mas, por uma razão qualquer, sentia que ela estava conversando com a égua e
que esta a entendia.
Enquanto Ayla fazia festinhas nos seus bichos, ele se perguntava que mágica teria
ela usado para cativar os animais daquela maneira. Ele própriojá se sentia também
cativo. Foi então que, surpreso e encantado, viu Ayla tra zendo a égua e o potro na sua
direção. Jondalar nunca tinha acariciado um cavalo, nem chegado tão perto de um
potrinho felpudo. A total confiança e falta de medo dos animais conquistaram-no.
Principalmente o cavalinho pare cia ter simpatizado com ele depois das primeiras
cautelosas palmadinhas, logo transformadas em afagos e coçadelas nos indefectíveis
lugares de sempre.
374 Ele se lembrou de que ainda não dissera a Ayla o nome do animal. En tão falou,
apontando:
-Cavalo.
Mas Huiin tinha um nome próprio e Ayla fez não com a cabeça.
- Huiin - replicou.
Para ele, os sons que ela emitiu não expressavam nenhum nome. Eram apenas
uma perfeita imitação da voz do cavalo. Jondalar estava perplexo. Ela não era capaz de
falar uma língua, mas sabia falar como um cavalo. Conversar com um cavalo, seria isso
possível? Só podia ser mágica e das grandes.
Pensando que a expressão de perplexidade dele era por não estar enten dendo,
Ayla bateu no peito dela e disse o seu nome. Depois apontou para Jondalar e disse o
dele. Por fun para Huiin e mais uma vez relinchou.
• - É esse o nome da égua, Ayla? Eu não consigo fazer sons assim. Não sei falar
com cavalos.
Depois de uma segunda demonstração mais paciente, ele fez uma tenta tiva, mas
soou como uma palavra lembrando a voz do cavalo. Mas ela pareceu ficar satisfeita e
conduziu os animais de volta ao lugar deles na caverna.
- Ele está me ensinando a falar com palavras, Huiin. Vou aprender to das as suas
palavras. Eu tinha de dizer o seu nome para o homem. Agora te mos de pensar num para
o seu filho. Será que você gostaria de que Dun-da1aá escolhesse o nome de seu bebê?
Jondalar já havia ouvido falar de certos zelandonii que tinham a capaci dade de
atrair animais para os caçadores. Havia inclusive homens que sabiam imitar a voz de
alguns animais para fazê-los chegar perto. Mas nunca soube de ninguém que
conversasse com um animal e muito menos que o convencesse a morar junto com ele.
No entanto, por causa dela, uma égua selvagem havia pa rido bem na frente de seus
olhos e deixado que ele tocasse no seu filhote. Su bitamente, cheio de admiração e
também com um pouco de medo, atinara com o que a mulher tinha feito. Quem era ela?
Que tipo de magia possuía? Entretanto, observando Ayla, com um sorriso feliz no rosto,
vindo na sua di reção, ele nada via de extraordinário nela. Uma mulher como qualquer
outra, só que podia falar com cavalos e não com gente.
- Dun-da-laá ir lá fora?
Ele já quase havia se esquecido. O seu rosto iluminou-se cheio de impa ciência.
Antes que ela tivesse tempo de alcançá-lo, ele já estava tentando le vantar-se. Todo o
entusiasmo de repente desaparecera. Tal eraa sua fraqueza que qualquer movimento lhe
causava dor. Por um inomento, achou que fosse ficar nauseado e tonto, depois melhorou.
Ayla viu o seu sorriso entusiasmado tTansformar-se numa careta de dor e ele
empalidecer. - - Acho que vou precisar de um pouco de ajuda - disse Jondalar, aflito,
forçando um sorriso.
375 - Ayla ajudar - falou, oferecendo-lhe o ombro para servir de apoio, ao mesmo
tempo que estendia a mão para auxiliá-lo. No início, ele não.quis jogar muito peso sobre
Ayla, mas ao ver que ela o agüentava bem, que tinha força e sabia como puxá-lo para
levantar-se, lhe aceitou a ajuda.
Finalmente ficou de pé, firmando-se sobre a perna boa e escorando-se num dos
paus do engradado. Ayla olhou para ele e os seus olhos se arregala ram e o queixo caiu.
Ela sabia que o corpo de Jondalar era mais comprido do que o de qualquer homem dos
clãs, mas ainda não havia visualizado o compri mento no sentido da altura, nem como
seria ele de pé. Nunca vira ninguém tão alto.
Desde que deixara de ser criança, não se lembrava de alguma vez ter de le vantar
os olhos para olhar alguém. Mesmo antes de ficar adulta, já era mais al ta do que
qualquer pessoa dos clãs, inclusive mais alta do que qualquer ho mem. Sempre fora
grande e feia. Muito alta, pálida e de rosto achatado. Ne nhum homem a queria, nem
mesmo depois que o seu poderoso totem foi der rotado, apesar de que todos houvessem
gostado de ser o possuidor do totem que vencera o seu Leão da Caverna, permitindo que
ela engravidasse. Nem mesmo sabendo que o seu filho seria infeliz, se ela não tivesse
companheiro antes do seu nascimento, eles a quiseram. E Dure foi infeliz. Iam matá-lo.
Dis seram que era uma criança deformada. Foi Brun quem o aceitou. Mas o seu filho
havia triunfado sobre a sua má fortuna. Agora teria forças para sobrepu jar a desgraça de
haver perdido a mãe. Ele seria alto - ela já havia notado isto antes de partir - mas não
tanto quanto Jondalar.
Perto daquele homem ela se sentia realmente pequena. A primeira im pressão que
teve de Jondalar foi a de que ele era muito jovem, e jovem para ela tinha a conotação de
pequeno. Olhando-o nessa nova perspectiva, reparou que a sua barba crescera. Não
sabia por que ele antes estava sem barba quan do o encontrara. Agora, reparando nos
pêlos duros e dourados que lhe des pontavam do queixo, via que não era nenhum
menino, mas um homem. Um homem alto, forte e plenamente adulto.
Jondalar, sem entender o motivo, sorria vendo a expressão de espanto no rosto de
Ay Também ela era mais alta do que tinha imaginado. A manei ra dela se locomover e
portar-se dava a impressão de alguém de estatura muito mais baixa. Realmente era bem
alta e gostava de mulheres altas. Eram as que em geral atraíam os seus olhares, se bem
que Ayla atrairia o olhar de qualquer homem, achava ele.
- Bom, vamos. Já esperamos muito. - Ela havia tomado consciência da
proximidade do corpo nu de Jondalar.
- Dun-da-laá precisar vestido - disse Ay usando a palavra que Jonda. lar lhe dera
para designar a roupa que ela usava, embora estivesse se referindo a um traje para ele. -
Precisar cobrir - ela apontou para o seu membro. Essa palavra também ele ainda não
tinha ensinado. Então por qualquer razão inex plicável, ela corou.
Não por acanhamento, pois já vira muitas vezes homens e mulheres nus. Também
não era por qualquer coisa ligada à preocupação. Ele precisava estar protegido neste
local, porque tinha de precaver não contra acidentes ou in setos, mas contra os espíritos
malignos. Embora as mulheres dos clãs não par ticipassem dos rituais masculinos, ela
sabia que os homens não gostavam de ter os seus membros descobertos quando saíam.
Mas por que realmente o seu rosto estava corado e quente e o interior de seu corpo
palpitante, isso ela não Jondalar olhou para o seu corpo. Ele também era supersticioso
em rela çao ao seu membro, só que as suas superstições não envolviam uma peça de
roupa. Se um inimigo seu induzisse algu zelandonii a fazer baixar as forças do mal sobre
ele ou se alguma mulher lhe lançasse uma praga, seria preciso muito mais do que um
simples trapinho para protegê4o.
A sua preocupação era no sentido de que talvez estivesse cometendo al guma gafe
social, que como estrangeiro poderia ser perdoada, mas a prudência mandava que, qua
se estivesse vi se prestasse o máximo de atenção a todo e qualquer detalhe das normas,
de modo a evitar possíveis ofensas. Ele vira para onde Ayla tinha apontado e percebera o
seu rubor, deduzindo ime diatamente que ela achava impróprio que saísse com o seu
membro descober to. De qualquer forma, sentar nu sobre uma pedra dura era algo muito
des confortável e acabaria restringindo-lhe os movimentos. De repente surgiu o
pesamento dele, apoiado sobre uma perna só, agarrando-se a um poste e tão louco para
sair que nem percebeu estar nu. O grotesco da situação arrancou- lhe uma estrondosa
gargalhada.
Jondalar não podia saber do efeito de suas risadas sobre Ayla. Para ele, rir era tão
natural quanto respirar. Ayla, no entanto, havia crescido entre pes soas que não riam;que,
inclusive, encaravam o seu riso com tal estranheza que ela se viu obrigada a cortá-lo de
sua vida para poder adaptar-se mais facilmen te. Era uma das tantas coisas que ela teve
de pagar para ter a sua sobrevivência garantida. Só depois que o seu filho nasceu é que
voltou a descobrir o prazer de rir. Essa era uma das características que ele herdara dela.
Embora soubesse que, incentivando as risadas de seu filho, estava cometendo algo de
censurá vel, ela, quando se via sozinha com ele, não conseguia resistir à vontade de fa
zer-lhe cócegas para vê-lo soltar as suas gostosas risadinhas de bebê.
Para Ayla o riso comportava unia carga de significado muito maior do que a de uma
simples e espontânea resposta a um estímulo. Representava o único elo que tinha com o
seu filho, a parte dela que via nele e que era expres são de sua própria identidade. O
filhote de leão que ela adorava lhe havia fei to dar boas risadas que muito contribuíram
para fortalecer essa expressão. Rir sabia.
1 376 377 era qualquer coisa de que não estava disposta a abdicar. Isso seria
abdicar da lembrança do filho e desistir do seu próprio eu.
Ela nunca pensara na possibilidade de que alguém mais no mundo pu desse rir.
Fora ela e Durc, não se lembrava de ninguém mais rindo. A risada muito particular de
Jondalar - calorosa, exultante, franca - era um convite ao riso. Quando ele ria havia um
prazer irrefreável. Ayla adorou as suas risadas do primeiro momento que as escutou.
Contrariamente, aos homens dos das, para quem o riso era motivo de censura, o próprio
som do riso de Jondalar já o sancionava. Era mais do que um riso. Um convite impossível
de ser re cusado.
E Ayla não recusou. Passado o primeiro momento de surpresa, sorriu. Depois, riu
francamente. Não sabia o que estava havendo ali de engraçado. Ria porque Jondalar ria.
- Dun-da-laá - falou quando já estava mais serena - qual a palavra para esses ha,
ha, ha, que fazemos?
- Rir? Riso?
- Qual. - - palavra certa?
- Todas as duas. Quando fazemos isso é rir. Por exemplo, nós rimos. E quando
falamos sobre a coisa é riso - explicou ele.
Ayla ficou por um instante pensativa. A palavra não expressava tudo o que ele havia
dito. Falar não é só dizer palavras. Ela já conhecia muitas pala vras, mas sempre ficava
frustrada quando tentava exprimir os seus pensamen tos. Havia um modo de arrumá-los
e um certo sentido que não conseguia pe gar. Apesar de entender a maior parte do que
Jondalar dizia, as palavras para ela serviam apenas para dar uma pista. A compreensão
se fazia muito mais pe la sua capacidade de ler a linguagem não intencional do corpo
dele. Ayla sen tia que faltava precisão e profundidade em suas conversas. Pior ainda era
a sensação de que sabia falar se pudesse lembrar e a tensão insuportável que lhe
sobrevinha - tal como um doloroso nó que precisava desfazer - sempre que estava
prestes a consegui-lo.
- Dun-da-laá, rir?
- Sim, correto.
- Ayla rir. Ayla gostar rir.
- Mas agora "Jondalar gostar sair". Onde estão as minhas roupas?
Ayla foi buscar as roupas que cortara no corpo dele. Além de mancha das, haviam
sido feitas em farrapos pelas garras do leão. As contas e os outros motivos bordados na
camisa estavam despencando.
- Devo ter ficado muito ferido mesmo - falou Jondalar suspendendo as calças e
olhando para o couro duro com o sangue coagulado nelas. - Não dão para ser usadas.
Ayla pensava a mesma coisa. Ela foi até onde tinha o seu depósito de mantimentos
e voltou trazendo algumas compridas correias e um pano de couro ainda não usado, que
começou a enrolar na cintura dele, à moda dos homens dos das.
- Eu faço isso, Ayla - disse Jondalar, passando o pano por entre as pernas e o
suspendendo na frente e atrás, de modo a arrumar uma tanga. - Mas se você me der
uma ajúdazinha, seria bom - acrescentou, enquanto pro curava prender a correia na
cintura.
Ela o ajudou na amarração, depois ofereceu-lhe o ombro como suporte e fez sinais
para que ele se apoiasse sobre a pema. Jondalar firmou o pé no chão e, cautelosamente,
fez menção de andar. Doía mais do que imaginara. Começava a duvidar se iria consegui-
lo. Mas, armando-se de coragem, apoiou- se pesadamente sobre Ayla e deu um pequeno
passo arrastando o pé, depois um segundo. Quando atingiram a entrada, deu um
luminoso sorriso para Ayla. Então, olhou para o patamar de pedra e os pinheiros
crescendo próximos ao penhasco do outro lado do rio.
Ela o deixou ali, amparando-se na parede da caverna, enquanto buscava uma
esteira e uma pele para colocar na beirada do patamar de onde ele pode- ria ter a bela
vista do vale. Voltou, então, para ajudá-lo novamente. Ele estava cansado e cheio de
dores, quando, por fim, acomodou-se sobre as peles, vendo pela primeira vez a
paisagem que o rodeava, mas inteiramente feliz consigo mesmo.
Huiin e o seu potrinho estavam na campina embaixo. Os animais haviam saído da
caverna pouco depois que Ayla os levara para cumprimentar Jonda lar. O vale era um
frondoso paraíso encravado no meio das áridas estepes. Ele jamais poderia imaginar a
existência daquele lugar. Virando o corpo, viu a es treita garganta a montante do rio e um
pedaço da praia rochosa. A sua aten ção, entretanto, foi outra vez atraída para o verdoso
vale que se estendia ao longo do rio até ser cortado por uma curva muito ao longe.
A primeira conclusão a que ele chegou foi a de que Ayla vivia ali sozi nha. Não havia
o menor sinal de outra habitação. Por alguns momentos ela fi cou sentada junto dele,
depois entrou na caverna para voltar trazendo um pu nhado de sementes. Então franziu
os lábios, soprando melodiosos gorjeios tre mulados, ao mesmo tempo que atirava as
sementes ao seu redor. Jondalar, es pantado, viu chegar um passarinho que se pôs a
picar os grãos. Logo um ban do de cores e tamanhos diversos estava rodopiando em
volta dela, com bater de asas e picando saltitantes as sementes no chão.
Os diferentes cantos - gorjeios, trilos, grasnados - enchiam o ar, en quanto na terra a
disputa se fazia num espetáculo de plumas que subiam leva das pelo vento. Jondalar
custou a acreditar nos seus ouvidos quando desco briu que muitos daqueles cantos
saíam dos lábios da mulher. Ela podia produ zir toda uma gama de sons. Às vezes
detinha-se num determinado canto, cha 1 1 378 379 mando um pássaro que vinha
pousar-lhe no dedo para fazer com ela um due to. Alguns, AyIa os levou até Jondalar que
os tocava, antes que eles batessem as suas asas e voassem.
Quando as sementes acabaram, quase todos foram embora, menos um, de
plumagem negra, que lá ficou para continuar trocando o seu canto com Ayla. Era um
tordo que ela imitava à perfeição nas múltiplas varíaçôes de seu sonoro canto.
Quando o passarinho se foi, Jondalar respirou fundo. Ele vinha pren dendo a
respiração, sem querer perturbar o espetáculo de pássaros montado por Ayla.
- Onde você aprendeu isso? É lindo, Ayla. Nunca tinha conseguido che gar tão perto
de passarinhos.
Ela lhe sorriu, sem saber direito o que ele dizia, mas notando o seu ar
impressionado. Então assoviou novamente um outro canto, esperando que ele dissesse o
nome do pássaro. Mas Jondalar apenas sorriu, cumprimentando-a por aquele magnífico
talento. Ela tentou mais umavez e, depois de tentar mais uma segunda, resolveu desistir.
Ele não entendia o que ela queria e sua testa franzia- se com o pensamento voltado para
alguma outra coisa. "Ela podia imi tar com muito mais perfeição os cantos dos pássaros
do que o shantud o fazia com a sua flauta! Será que a mulher comungava com os
espíritos da Mãe, atra vés dos pássaros?" Um passarinho baixou do céu, aterrissando
nos pés de Ayla. Jondalar olhou-o desconfiado.
Mas a apreensão logo desapareceu na alegria de estar ao sol, sentindo a brisa
fresca e olhando para o belo vale à sua frente. Ayla também se via trans bordante de
felicidade na companhia dele - Era tão difícil acreditar que Jonda lar estivesse sentado no
patamar de sua caverna, que ela tinha medo de fechar os olhos e não encontrá-lo lá
quando tornasse a ãbri-los. Finalmente, conven cida da realidade dele, fechou-os só para
saber quanto tempo agüentaria sem olhar para ele e pelo prazer de vê-lo ainda lá quando
voltasse a descerrá-los. E se acontecesse de ele falar enquanto ela estivesse de olhos
fechados, o som grave e trovejante de sua voz seria mais uma dádiva caída do céu.
Depois que o sol estava alto, fazendo-se notar com o seu calor, as águas cintilantes
do rio atraíram a atenção de Ayla. Ela, desde que ele chegara, te merosa de deixá-lo
sozinho, havia abandonado os seus banhos matinais. Mas agora via que ele estava bem
e se precisasse dela teria apenas que lhe gritar.
- Ayla ir para água - falou, gesticulando com os braços como se nadasse - - Nadar -
disse Jondalar, repetindo-lhe os gestos. - A palavra é nadar e bem que eu gostaria de
poder ir com você.
- Nadá - tentou ela, devagar.
- Nadar - corrigiu-a Jondalar.
- Nadar - tomou a repetir Ayla. Ele confirmou com a cabeça e ela co- meçou a
descer para a praia. "Ainda vai custar um pouco até que Dun-da-la possa andar por esse
caminho.. . na volta vou levar para ele um pouco de água fresca", pensou Ayla. "Mas a
perna está indo bem. Acho que vai poder cami nhar normalmente. Talvez fique mancando
um pouco, mas nada que vá preju dicá-lo. Tomara?' Na praia, depois que desatou a
correia da roupa, ela resolveu que lavaria também os cabelos. Saiu, então, à procura de
raízes de saboeiro. Olhando para cima, viu Jondalar e lhe acenou. De volta à praia, se
dirigiu para um lu gar, fora do campo de visão dele, sentando-se na beirada de um
enorme bloco de pedra que, até a primavera, havia feito parte do penhasco. Ali começou
a desfazer as tranças. Um novo lago, formado depois da recomposição da paisa gem,
tornara-se o seu lugar predileto para tomar banho. Era profundo e a pe dra perto tinha
uma cavidade que ela usava para socar as raízes de saboeiro, de modo a desprender-
lhes a substância saponácea.
Jondalar tomou a vê-la quando, já com os cabelos lavados, nadava su bindo o rio.
As suas braçadas eram fortes e regulares. Na volta, ela preguiçosa mente, deixou-se
arrastar pela correnteza até o bloco de pedra, onde se sentou para secar ao sol,
enquanto desembaraçava os cabelos com um pauzinho e os escovava com espinhos de
cardo. Quando finalmente enxugaram, o calor já estava forte: Embora Jondalar não a
tivesse chamado, ela começava a preocu par-se. "Ele já deve estar cansado...", pensou.
Então, dando uma olhada na roupa, achou que já era tempo de trocá-la por uma limpa.
Pegou-a do chão e subiu, carregando-a na mão.
Jondalar estava sentindo o sol multo mais do que Ayla. Era primavera quando ele e
l'honolan haviam começado a viagem. O pouco bronzeado que adquirira depois de haver
saído do acampamento mamutoi sumira durante o tempo em que esteve encerrado na
caverna de Ayla. A sua cor era ainda a do inverno, ou pelo menos fora até ele sair para
sentar-se no patamar. A queima dura do sol o incomodava, mas Ayla não se achava à
vista. Resolveu, então, ignorar o desconforto, não querendo importuná-la naqueles
poucos momen tos que ela se dava, após tanto tempo de dedicada atenção. Ele
começava a se perguntar por que estaria Ayla demorando tanto. Louco para vê-la voltar,
olhava ora para o lado do caminho, ora para o rio, imaginando que talvez ela tivesse
resolvido entrar novamente na água.
Ele tinha os olhos postos em outra direção, quando Ayla surgiu na pon ta do
patamar. Um único olhar para as costas vermelhas e irritadas foi o bas tante para enchê-
la de vergonha. "Olhe só que queimadura! Que curandeira sou eu para deixar um doente
tanto tempo debaixo do sol!" Ela correu para ele - Jondalar, ao ouvir o barulho dos
passos, virou-se. Dava graças por Ayla estar de volta, mas não deixava de se sentir
também um pouquinho contraria- 1 1 1 380 do por ela não ter chegado antes. Mas então,
pouco importavam as queimadu ras. De boca aberta, sem respirar, olhava pasmo para a
mulher nua que, à luz do sol brilhante, caminhava na sua direção.
Enquanto ela andava, a pele morena e dourada ondulava com uma mus culatura lisa
e forte, desenvolvida por toda uma vida dura de trabalho. As per nas magnificamente
modeladas eram maculadas na sua perfeição apenas por uma pequena cicatriz na coxa
esquerda. De onde se achava, dava para ele ver as nádegas firmes e arredondadas, e,
acima da penugem castanha do púbis, a curva de um ventre marcado por ligeiras estrias
de gravidez. Gravidez? Os seios amplos, mas belamente formados, eram empinados
como os de uma me nina e com aréolas cor-de-rosa e mamilos pontudos. Os braços
longos, bem proporcionados, revelavam a sua força latente.
Ayla fora criada entre pessoas, tanto homens como mulheres, fortes por natureza.
Para dar conta dos trabalhos exigidos das mulheres clânicas - levan tar e carregar pesos,
cortar lenha, curtir couro - o seu corpo foi obrigado a desenvolver a força muscular
necessária. A caça dera elasticidade aos seus mo vimentos e a sobrevivência no seu
mundo solitário dependia da força de seu trabalho.
Era provavelmente a mulher mais forte que Jondalar já vira. "Não é de admirar que
tenha conseguido me levantar e agüentar'com o meu peso", fa lou ele para si mesmo. E
sem dúvida também era a mulher de corpo mais es cultural que ele já vira. Mas não era
só o corpo. De início, ele a julgara como simplesmente uma mulher bonita, mas então
ainda não a tinha visto em ple na luz do dia.
Ayla tinha pescoço longo - com uma minúscula cicatriz na garganta - maxilares
delicados, lábios canudos, nariz fino e reto, maçãs altas e olhos azuis-acinzentados. As
feições fmamente cinzeladas se casavam todas em per feita harmonia. As longas
pestanas e as sobrancelhas em arco eram num tom castanho-claro, um pouco mais
escuras que as ondas caindo soltas de seus ca belos dourados, brilhando ao sol.
- Oh, Mãe! - disse Jondalar suspirando.
Ele não tinha palavras para descrevê.la. O efeito total era deslumbrante. Era
encantadora, estonteante, magnífica. Nunca vira mulher mais bela. Por que ela escondia
aquele corpo espetacular sob uma roupa enorme, sem forma? Por que prendia aquela
gloriosa cabeleira com tranças? E ele que pensara que ela fosse apenas bonita. Por que
não a teria visto antes?
Enquanto ela cruzava a distãncia que os separava, ele sentiu o início de uma
ereção, logo tomada numa exigência palpitante, premente. Desejava-a com uma urgência
que nunca sentira por outra mulher. As suas mãos ansia vam por acariciar aquele corpo
perfeito, para descobrir os seus lugares secre tos. Ele queda explorar, provar, dar-lhe os
prazeres. Sem se perguntar se teria condições, já estava pronto para possuí-la quando,
respirando-lhe o cheiro da pele quente, ela se debruçou, aproximando. Por outro lado,
sentia que ela não era uma mulher que se pudesse abordar facilmente.
- Dun-da.laá! Voltar. Estar. . . fogo. . . - falou Ayla procurando por uma palavra que
expressasse a vermelhidão de sua queimadura. Então, ela he sitôu, freada pelo
magnetismo animalesco de seu olhar, atraída para as pro fundezas daqueles olhos
intensamente azuis. O coração batia forte, os joelhos fraquejavam, o rosto ardia e o corpo
lhe tremia com aquela súbita umidade • entre as coxas.
Não sabia o que havia de errado com ela. Virou a cabeça para o lado, desviando à
força os seus olhos dos dele. O olhar caiu sobre o membro empi nado, desenhando-se
sob a tanga. Súbito, uma vontade irreprimível de esten der a mão, de tocar. . - Ela fechou
os olhos, respirando fundo, tentando do.
minar o tremor. Ao abri-los, procurou evitar-lhe o olhar.
- Ayla ajudar Dun-da1aá entrar na caverna.
4, A queimadura doía e ele se sentia cansado, depois de tanto tempo do lado
de fora, mas mesmo assim o seu fogoso desejo se manteve inflamado en quanto fazia a
curta e penosa caminhada, apoiado sobre ela, em contato com a sua nudez. Depois de
acomodá-lo na cama, Ayla correu até onde estava o seu estoque de ervas medicinais e,
em seguida, saiu.
Ele se pôs a imaginar onde poderia ter ido. Compreendeu, ao vê-la en trar trazendo
um punhado de folhas grandes e peludas, de tom verde-acinzen tado. Eram bardanas.
Ayla retirou-lhes o grosso veio central e as rasgou dentro de uma vasilha. Acrescentou
água e, com uma pedra, as macerou como papa.
O desconforto era grande ea queimadura parecia arder ainda mais. Sú bito, ele
sentiu o mingau frio e refrescante em suas costas, dando mais uma vez graças por Ayla
ser curandeira.
- Ahhh. - - que coisa boa. . . - gemeu ele, enquanto ela com as mãos espalhava as
folhas úmidas. Jondalar estava consciente da sua nudez. Até aquele momento Ayla ainda
não parara para se vestir e, agora, ajoelhada ao seu lado, ele lhe sentia a proximidade
como uma emanação palpável. O cheiro da pele quente e de outros misteriosos odores
femininos o excitavam. Ele es ticou o braço, correndo com a mão pela coxa, até encontrar
as nádegas.
Ayla empertigou-se, imediatamente parando o que fazia. Com os senti dos todos
voltados para a mão que a acariciava, mantinha-se rígida sem saber o que ele fazia e o
que se esperava dela. Apenas sabia que não queria que ele interrompesse. Ele subiu
com a mão querendo tocar-lhe no mamilo. Um arre pio forte correu-lhe pelo corpo,
fazendo-a suspirar.
Jondalar ficou surpreso, vendo-lhe a expressão de espanto. Não era per feitamente
normal um homem querer tocar numa bela mulher? Principalmen te que, juntos como
estavam, já ficavam tocando um no outro? Ele retroce 382 383 deu com a mão, sem
saber o que pensar. "Ela se comporta como se nunca ti vesse sido tocada por um
homem. No entanto é uma mulher e não uma garo tinha ingénua. Afinal, aquelas estrias
na barriga eram um indício claro de que já devia ter tido algum filho, embora por lá não se
visse o menor sinal de crian ça. Bom, ela não era a primeira mulher a perder o seu filho e,
para ter sido abençoada pela Mãe, certamente deveria ter tido os seus ritos de
passagem.”
O corpo dela ainda vibrava de suas carícias. Ela não sabia por que ele parara. Então
se levantou e afastou-se.
"Talvez ela não goste de mim", pensou Jondalar. Nesse caso, por que fi cara tão
colada a ele, quando era tão óbvio que a desejava? Mas ela não podia satisfazer-lhe,
pois estava tratando de sua queimadura. Além disso, nada em suas maneiras sugeria
qualquer coisa nesse sentido. De fato, parecia comple tarnente alheia ao efeito que tinha
causado sobre ele. Estaria assim tão acostu mada com esse tipo de resposta à sua
beleza? Por outro lado, não era a indife rença fria de uma mulher experiente. Mas como
uma mulher com aquela apa rência podia não saber o efeito que exercia sobre os
homens?
Jondalar pegou o pedaço de uma folha macerada que caiu de suas cos tas. Os
sharamudoí também usavam bardana em queimaduras - "Ela sabe das coísàs. Mas claro!
Ah, Jondalar, como pode você ser tão imbecil? O shamud não lhe contou sobre as provas
por que passam aqueles que servem à Mãe? Ela deve ter renunciado aos prazeres. Não
é de admirar que esconda a sua beleza sob aquela pavorosa roupa sem forma. Ela nunca
teria se aproximado se vo cé não estivesse com essa queimadura, seu idiota. E aí você a
agarra como qual quer adolescente descarado.”
A sua perna latejava e, apesar do medicamento ter melhorado um pou co, a
queimadura ainda incomodava. Ele se deitou, procurando uma posiçffo de lado, e fechou
os olhos. Estava com sede, mas não queria virar-se para pe. gar o odre justamente
quando encontrara uma posição mais suportável. Sen tia-se miserável, pelas dores e pela
grosseria que achava ter cometido. Estava realmente envergonhado.
Ele não se sentia humilhado por cometer gafes há muito tempo, desde que era um
garotinho. Havia se educado no autocontrole até que isto se toma ra numa verdadeira
arte. Agora ultrapassara os limites e fora rejeitado. Aquela bela mulher que tinha
desejado mais do que qualquer outra o rejeitara. Ele sabia como se passariam as coisas
daqui por diante. Ela agiria como se nada houvesse acontecido, mas iria evitá-lo sempre
que pudesse. Quando Mo lhe fosse possível manter-se afastada, saberia pôr uma
distância entre os dois. Se ria fria e arredia. A sua boca poderia sorrir, mas os olhos
estariam dizendo a verdade. Não haveria calor neles; pior ainda: mostrariam piedade.
Ayla, depois de vestir uma roupa limpa, foi trançar os cabelos, enver gonhada por ter
deixado Jondalar pegar uma queimadura de sol. Era culpa dela. Ele não tinha condições
para se pôr ao abrigo do sol. Ela se divertia, to mando banho de rio e lavando os cabelos,
quando deveria estar prestando atenção ao doente. "E espera-se que eu seja uma
curandeira, uma curandeira da estirpe de Iza, da mais prestigiosa linha de curandeiras
dos clãs. O que diria Iza de tamanha desatenção, de tanta falta de cuidados com um
doente?"Ayla se sentia acabrunhada. Ele havia passado tão mal, sofrido tanto e ela ainda
lhe fora arrumar mais sofrimentos.
Mas não era só por isso que Ayla se sentia aflita. Jondalar a havia tocado. O calor
da mão dele ainda estava na sua coxa. Sabia exatamente onde tinha sido tocada. Era
como se as suaves carícias a tivessem marcado a fogo. Por que teria ele tocado no
mamilo? Aquele ponto ainda ardia com o seu to que. O membro dele havia estado na
plenitude de sua virilidade e ela sabia o que isto significava. Quantas vezes já vira os
homens fazendo o sinal conven cionado quando queriam aliviar as suas necessidades?
Broud lhe fazia o sinal, mas ela - lembrou-se, estremecendo - odiava ver o seu membro
duro e in tumescido.
No entanto agora se sentia diferente. Teria até gostado se Jondalar lhe houvesse
feito o sinal.
"Não seja ridícula. Como poderia ele com aquela perna? Mal se agüenta nela.”
Mas o seu sexo estava duro quando ela voltara do rio e os seus olhos. - - À
lembrança dos olhos de Jondalar, ela estremeceu. Estavam tão azuis, reve lando a sua
necessidade, mõstrando. - - Ela não soube completar. Parou de fazer as tranças,
entregando-se às lembranças de Jondalar. Ele a havia tocado e - - Subitaniente, ela
interrompeu o fio de seus pensamehtos e se sentou com o corpo reto. Não teria ele feito
o sinal? Será que parou por ela não se mostrar receptiva? Uma mulher deve sempre
estar disponível para atender às necessidades do homem. Essa era uma das regras
básicas que toda mulher dos clãs aprendia quando o seu espírito entrava pela primeira
vez em luta e sangra va. Do mesmo modo como aprendia também as posturas e os
gestos, quase imperceptíveis, que animavam o homem a querer aliviar as suas
necessidades. Ela nunca havia entendido por que uma mulher iria querer ter uma atitude
dessas, mas agora sabia.
Queria que aquele homem aliviasse as suas necessidades com ela, mas qual seria o
sinal dele? "Se, por um lado, eu não conheço o seu sinal, por ou tro ele tambem
desconhece os meus gestos. E se eu recusá-lo s saber? Tal vez ele nunca mais tome a
tentar. Mas será que realmente ele me quis? Eu sou tão feia e grande. !' Depois de
prender a última das tranças, ela foi atiçar o fogo para prepa rar um remédio contra dor.
Quando chegou trazendo-o, ele deitava-se de lado 1 1 384 385 na cama. Bom,já que
conseguira acalmar-se sozinho, ela nio iria incomodá-lo. As tranças contribuíam para
essa lmpressffo, bern como a roupa cheia de Sentou-se de pernas cruzadas ao lado da
cama e esperou que ele abrisse os olhos. Jondalar não se mexia, mas ela sabia que não
estava dormindo. A sua respiração não era regular e a testa contraía- se, revelando um
certo mal-estar.
Jondalar, ao ouvir-lhe os passos, fechara os olhos fmgindo dormir. Ele esperava,
com os nervos tensos, reagindo contra a vontade de abri-los e ver se Ayla se achava lá.
"Por que está ela tão quieta? Por que não vai embora?" Ele estava deitado sobre um
braço que começou a ficar dormente com a fal ta de circulação. Se não mudasse logo de
posição, ficaria insuportável. A per na latejava. Tinha vontade também de mexê-la, pois já
estava cansado de man tê-la na mesma posição. O rosto comichava com a barba
crescendo e as cos tas pegavam fogo. Talvez ela já não estivesse mais lá. Talvez tivesse
ido em bora, sem que ele lhe percebesse os movimentos. Ou será que ficara ali, olhan do
para ele?
Ayla observava com toda a atenção. Havia olhado para aquele homem mais do que
para qualquer pessoa em sua vida, Não era de bom-tom as mulhe res dos dE olharem
diretamente para os homens, mas ela já se havia permiti do uma série de outras
infrações. Teria se esquecido das regras de boas manei ras que Iza lhe ensinara? Já não
se lembrava mais dos cuidados devidos a um doente? Ela olhava para o chão, segurando
sobre o colo a cuia de chá de datu ra. Aquela era a forma correta de uma mulher abordar
o homem: sentada no chão, de cabeça baixa, esperando que ele lhe desse um tapinha no
ombro co mo sinal do reconhecimento de sua presença. Já era tempo de que ela voltasse
a lembrar-se das regras da boa educação.
Jondalar abriu ligeiramente os olhos, tentando ver se Ayla se achava lá, mas sem
querer que ela soubesse que estava acordado. Ele viu um pé e, rapida mente, tomou a
fechar os olhos, Sim, ela estava, Por que ficava ali sentada? Que poderia estar
esperando? Por que não ia embora e o deixava sozinho com as suas mágoas e
humilhações? Ele tomou a espiar por entre as pálpebras semicerradas. O pé não saíra do
lugar. Ela estava sentada de pernas cruzadas e segurava uma cuia. Oh, Doni, ele estava
morto de sede, Seria para ele aquela cuia com um líquido? Será que ela estava
esperando que acordasse para lhe dar algum remédio? Mas se quisesse poderia sacudi-
lo. Não precisava ficar es perando.
Ele abriu os olhos, Ayla se achava sentada, de cabeça baixa, olhando pa ra o chão,
Vestia uma de suas roupas sem forma e os cabelos estavam presos por uma série de
tranças. A sua aparência era limpa e esfregada. Desaparecera a mancha de carvão da
bochecha. A roupa estava limpa, feita de uma pele ain da não usada. Sentada, de cabeça
baixa, ela tinha um jeito tão natural, tão simples. Nenhum artifício, nenhuma falsa
modéstia e nada de olhares de es guelha, maliciosos, dobras e papos que lhe
camuflavam o corpo. Esse era o truque, o artifício que usava para esconder o seu corpo
de mulher adulta e os belos e sedosos cabe los. Não podia esconder o rosto, mas essa
sua maneira de olhar para baixo e para os lados desviava a atenção dela. Por que se
mantinha escondida? Devia ser pela prova que se havia imposto. A maioria das mulheres
que ele conhecia estariam se pavoneando com aquele magnífico corpo, tirando o melhor
parti do daquela gloriosa cabeleira dourada e dariam tudo para ter um rosto tão belo.
Observando-a em sua imobilidade, Jondalar se esquecera de seus incô modos. Por
que estaria tão quieta? Talvez não quisesse olhar para ele, cogitou novamente, sentindo
vergonha e se lembrando de sua dor. Já não agüentava mais, precisava mudar de
posição.
Ayla olhou para cima quando o viu mexendo com o braço. Afmal, por mais
comportada que se mostrasse, se ele não conhecia a significação de sua postura, como
iria dar-lhe o tapinha no ombro? Jondalar estava surpreso de ver-lhe a expressão
envergonhada e compungida, com os olhos sinceramente suplicantes. Nada de
condenação, piedade ou rejeição. Parecia, antes, embara çada. Mas que motivo teria
para estar envergonhada?
Ela lhe deu a cuia. Ele tomou um gole, fazendo uma careta pelo amar gor, e em
seguida bebeu o resto e pegou o odre para lavar o gosto da boca. Sem conseguir ajeitar-
se direito, voltou a deitar. Então, ela tornou a sentá-lo e endireitou as peles na cama. Ele
não voltou a deitar imediatamente, - Ayla, há tanta coisa sobre você que eu gostaria de
saber e que não posso. Ignoro onde aprendeu a sua arte de curar. - - nem sei como vim
parar aqui. Tudo que sei é que lhe sou grato. Você salvou a minha vida e, o mais
importante, salvou a minha perna. Sem ela, mesmo que tivesse vivido, jamais poderia
voltar para casa. Desculpe ter me comportado como um idiota, mas você é tão linda,
Ayla, Eu não sabia. Você disfarça muito bem a sua beleza. Nem sei por que faz isso, mas
deve ter os seus motivos. Você está aprendendo depressa, Talvez, quando souber falar
um pouco mais, me possa contar.. - se você quiser e puder falar, Se não, aceito as coisas
como estão. Sei que não en tende tudo o que estou dizendo, mas quero, assim mesmo,
falar. Nunca mais voltarei a incomodá- la, Ayla.
386 387 na cama. Bom,já que conseguira acalmar-se sozinho, ela não iria
incomodá-lo. As tranças contribuíam para essa impressão, bem corno a roupa cheia de
Sentou-se de pernas cruzadas ao lado da cama e esperou que ele abrisse os olhos.
Jondalar não se mexia, mas ela sabia que não estava dormindo. A sua respiração não
era regular e a testa contraía- se, revelando um certo mal-estar.
Jondalar, ao ouvir-lhe os passos, fechara os olhos fingindo dormir. Ele esperava,
com os nervos tensos, reagindo contra a vontade de abri-los e ver se Ayla se achava lá.
"Por que está ela tão quieta? Por que não vai embora?" Ele estava deitado sobre um
braço que começou a ficar dormente com a fal ta de circulação. Se não mudasse logo de
posição, ficaria insuportável. A per na latejava. Tinha vontade também de mexê-la, pois já
estava cansado de man tê-la na mesma posição. O rosto comichava com a barba
crescendo e as cos tas pegavam fogo. Talvez ela já não estivesse mais lá. Talvez tivesse
ido em bora, sem que ele lhe percebesse os movimentos. Ou será que ficara ali, olhan do
para ele?
Ayla observava com toda a atenção. Havia olhado para aquele homem mais do que
para qualquer pessoa em sua vida. Não era de bom-tom as mulhe res dos clãs olharem
diretamente para os homens, mas ela já se havia permiti do uma série de outras
infraçôes. Teria se esquecido das regras de boas manei ras que Jza lhe ensinara? Já não
se lembrava mais dos cuidados devidos a um doente? Ela olhava para o chão, segurando
sobre o colo a cuia de chá de datu ra. Aquela era a forma correta de uma mulher abordar
o homem: sentada no chão, de cabeça baixa, esperando que ele lhe desse um tapinha no
ombro co mo sinal do reconhecimento de sua presença. Já era tempo de que ela voltasse
a lembrar-se das regras da boa educação.
Jondalar abriu ligeiramente os olhos, tentando ver se Ayla se achava lá, mas sem
querer que ela soubesse que estava acordado. Ele viu um pé e, rapida mente, tomou a
fechai os olhos. Sim, ela estava. Por que ficava ali sentada? Que poderia estar
esperando? Por que não ia embora e o deixava sozinho com as suas mágoas e
humilhaç6es? Ele tomou a espiar por entre as pálpebras semicerradas, O pé não saíra do
lugar. Ela estava sentada de pernas cruzadas e segurava uma cuia. Oh, Doni, ele estava
morto de sede. Seria para ele aquela cuia com um líquido? Será que ela estava
esperando que acordasse para lhe dar algum remédio? Mas se quisesse poderia sacudi-
lo. Não precisava ficar es perando.
Ele abriu os olhos. Ayla se achava sentada, de cabeça baixa, olhando pa ra o chão.
Vestia uma de suas roupas sem forma e os cabelos estavam presos por uma série de
tranças. A sua aparência era limpa e esfregada. Desaparecera a mancha de carvão da
bochecha. A roupa estava limpa, feita de uma pele ain da não usada. Sentada, de cabeça
baixa, ela tinha um jeito tão natural, tão simples. Nenhum artifício, nenhuma falsa
modéstia e nada de olhares de es guelha, maliciosos.
dobras e papos que lhe camuflavain o corpo. Esse era o truque, o artifício que usava
para esconder o seu corpo de mulher adulta e os belos e sedosos cabe los. Não podia
esconder o rosto, mas essa sua maneira de olhar para baixo e para os lados desviava a
atenção dela. Por que se mantinha escondida? Devia ser pela prova que se havia
imposto. A maioria das mulheres que ele conhecia estariam se pavoneando com aquele
magnífico corpo, tirando o melhor parti do daquela gloriosa cabeleira dourada e dariam
tudo para ter um rosto tão belo.
Observando-a em sua imobilidade, Jondalar se esquecera de seus incô modos. Por
que estaria tão quieta? Talvez não quisesse olhar para ele, cogitou novamente, sentindo
vergonha e se lembrando de sua dor. Já não agüentava mais, precisava mudar de
posição.
Ayla olhou para cima quando o viu mexendo com o braço. Afinal, por mais
comportada que se mostrasse, se ele não conhecia a significação de sua postura, como
iria dar-lhe o tapinha no ombro? Jondalar estava surpreso de ver.lhe a expressão
envergonhada e compungida, com os olhos sinceramente suplicantes. Nada de
condenação, piedade ou rejeição. Parecia, antes, embara çada. Mas que motivo teria
para estar envergonhada?
Ela lhe deu a cuia. Ele tomou um gole, fazendo uma careta pelo amar gor, e em
seguida bebeu o resto e pegou o odre para lavar o gosto da boca. Sem conseguir ajeitar-
se direito, voltou a deitar. Então, ela tomou a sentá-lo e endireitou as peles na cama. Ele
não voltou a deitar imediatamente.
- Ayla, há tanta coisa sobre você que eu gostaria de saber e que não posso. Ignoro
onde aprendeu a sua arte de curar. . - nem sei como vim parar aqui. Tudo que sei é que
lhe sou grato. Você salvou a minha vida e, o mais importante, salvou a minha perna. Sem
ela, mesmo que tivesse vivido, jamais poderia voltar para casa. Desculpe ter me
comportado como um idiota, mas você é tão linda, Ayla. Eu não sabia. Você disfarça
muito bem a sua beleza. Nem sei por que faz isso, mas deve ter os seus motivos. Você
está aprendendo depressa. Talvez, quando souber falar um pouco mais, me possa
contar. - . se você quiser e puder falar. Se não, aceito as coisas como estão. Sei que não
en tende tudo o que estou dizendo, mas quero, assim mesmo, falar. Nunca mais voltarei
a incomodá- la, Ayla.
386 387 - Querer falar direito.
- Mas você diz o meu nome perfeitamente.
- Não! Ayla falar errado - ela abanou a cabeça. - Falar certo.
- Jondalar. Jon-dadar.
22 -Zon...
- Zon, não. Jon. . - Jondalar - disse ele articulando muito devagar.
- Zon. . . Jon - continuou ela, pelejando com aqueles sons desconheci dos. - Jon-da-
larr - conseguiu por fim dizer, enfatizando o som gutural do r.
- Bem. Muito bem.
Ayla sorriu, triunfante. Depois, com um sorriso meio de mofa, falou:
- Jon-da-lar du Zelan.do.nii.
Ele lhe havia dito o nome de seu povo mais vezes do que o seu nome propriamente
e ela vinha treinando escondido.
- Ótimo! - Jondalar estava sinceramente surpreso. Ela ainda não o pro nunciara
perfeitamente, mas só um zelandonii perceberia a diferença. A calo rosa aprovação valeu
os esforços feitos e ela deu um belo sorriso de vitória.
- O que é zelandonii?
- É a minha gente. O povo que nasceu da Mãe e que vive em terras mui to distantes
a sudoeste daqui. Doni significa a Grande Mãe da Terra. Os Filhos da Terra, acho que
essa é a melhor forma de explicar. Na verdade todos cita mam a si mesmos, cada qual
em sua língua, Filhos da Terra, que é a mesma coisa que "povo".
Eles estavam de frente um para o outro, encostados contra dois troncos opostos de
vidoeiros, pertencentes a um grupo de árvores cujos caules se de senvolveram em
diversos troncos grossos provindos de uma base comum. Em bora usando um bordão e
mancando ainda bastante, Jondalar dava graças por estar na verdosa campina do vale.
Desde os primeiros passos vacilantes, ele não parara um só dia de se esforçar e fazer
progressos. A primeira descida fora um penoso sacrifício e também um triunfo. A volta
acabou tomando-se até mais fácil.
Ele ainda não sabia como Ayla, sem ajuda nenhuma, dera com ele na ca verna.
Afinal, se alguém a tinha auxiliado, onde estava essa pessoa? Era uma pergunta que há
muito queria fazer, mas primeiro ela não iria entendê-lo, de pois lhe pareceu impróprio
perguntar só por perguntar, no sentido de mera mente satisfazer a sua curiosidade.
Esperava pelo momento propício, que pa receu por fim ter chegado.
- Quem é o seu povo, Ayla? Onde vive?
O sorriso sumiu de seu rosto. Ele estava quase arrependido de haver per guntado.
Depois de um longo silêncio, quando já achava que a pergunta não havia sido entendida,
ela falou:
- Nenhum povo. Ayla de nenhum povo - respondeu, desencostando da árvore e
saindo da sombra. Jondalar pegou o bastão em que se apoiava e foi mancando atrás
dela.
- Mas você tem de ter um povo. Deve ter tido a sua mãe. Quem cuidou de você?
Quem a ensinou tratar das pessoas? Onde está o seu povo nesse mo mento, Ayla? Por
que você está sozinha?
Ela caminhava na frente, olhando para o chão. Não estava evitando as perguntas. . -
precisava responder-lhe. Nenhuma mulher dos clãs podia recu sar-se a responder uma
pergunta feita por um homem. Na verdade, nos das, todas as perguntas eram
respondidas, fossem elas feitas por um homem ou por uma mulher. No entanto, no caso
das mulheres, estas não faziam perguntas de caráter pessoal ao homem e eles
raramente se questionavam entre si. Em geral só a mulher era indagada. As perguntas de
.londalar lhe traziam lembranças, mas algumas Ay não sabia como responder e para
outras não tinha resposta.
- Se você não quiser contar...
- Não - ela olhou para ele e abanou a cabeça. - Ayla contar - os seus olhos pareciam
confusos. - Não saber palavras.
Jondalar novamente ficou em dúvida se deveria ou não ter levantado o assunto, mas
estava curioso e ela, por seu lado, parecia disposta a responder. Pararam junto ao bloco
de pedra que se desprendera do penitasco para alojar- se no meio da campina. Ele se
sentou numa beirada onde a pedra partira, fa zendo um banco com encosto e um assento
de boa altura.
- Como chama a sua gente, Ayla? - perguntou Jondalar.
Ayla pensou por um momento.
- Gente.. - homem, mulher. . . criança. - . - ela novamente abanou a cabeça, sem
saber como explicar. - Os clãs - disse, enquanto fazia um gesto que expressava o
conceito.
- Como uma família? Uma família é composta por um homem, uma mulher e os
filhos, todos vivendo numa casa. . - bom, em geral.
Ela confirmou com a cabeça.
- Família. - . maior.
- Seria um pequeno grupo? Diversas famílias vivendo juntas formam uma Caverna -
explicava Jondalar - mesmo que não morem numa.
388 389 - Sim. Como um cia pequeno. Muita gente, como os das.
Quando ela disse a palavra pela primeira vez, ele quase não a ouviu e nem
percebeu o gesto que Ayla fez com a m Era uma palavra gutural, dita em tom baixo,
pronunciada, segundo pareceu a Jondalar, engolindo o miolo da sílaba. Nunca imaginaria
aquele som como correspondendo a uma pala vra. Até então as únicas palavras que
ouvira da boca de Ayla foram as que ele lhe ensinou. Jondalar estava interessado.
- Glun? - falou, tentando imitá-la.
A pronúncia parecia, mas não estava inteiramente correta.
- Ayla não dizer direito palavras de Jondalar. Jondalar não dizer direito palavras de
Ayla. Jondalar falar bonito.
- Eu pensava que você não conhecesse nenhuma palavra, Ayla. Nunca a ouvi falar
em sua língua.
- Não conhecer muitas palavras. Os elas não falar com palavras.
Jondalar não entendeu.
-. Se não falam com palavras, então como fazem?
- Eles falar. . . com mãos - disse ela, sabendo que, de certa forma, não era bem
assim.
Ayla reparou que, inconscientemente, gesticulava enquanto se esforça va para
encontrar as palavras. Ao ver a cara de espanto de Jondalar, pegou-lhe as mãos e as
guiou num certo tipo de movimento, enquanto mais uma vez dizia:
- Os das não falar com muitas palavras. Os clãs falar. . . com mãos.
A testa de Jondalar foi aos poucos perdendo as rugas. Ele, por fim, co meçava a
compreender.
- Você está querendo me dizer que o seu povo fala com as mãos? Mos tre como.
Diga alguma coisa na sua língua.
Ayla pensou por um instante.
- Tenho tantas coisas para dizer a você, mas preciso antes aprender a falar a sua
língua. Agora, a sua forma de vida é a única que me resta. Como posso lhe dizer quem é
o meu povo? Eu não sou mais uma mulher dos clãs. Como posso explicar que estou
morta? Que eu não tenho um povo? Para os clãs, estou caminhando no outro mundo, tal
como o homem que viajava com você. O seu germano, acho eu. O seu irmão.
"Gostaria de lhe dizer que fiz os sinais sobre a sua sepultura, para que aliviasse um
pouco a dor em seu coração, Jondalar. Gostaria de lhe dizer tam bém que, apesar de não
conhecê-lo, eu lamentei a sua morte.
"Eu não sei quem eu sou e nem de que povo venho. Devo ter tido mãe e uma família
que se pareciam comigo.. - e com você também. Mas só conhe ço essas pessoas como
os Outros. Iza é a única mãe de que me lembro. Foi ela quem me ensinou as mágicas de
curar e fez de mim uma curandeira. Agora, es tá morta. E também Creb.
"JQndalar, sinto uma enorme vontade de conversar com você sobre Iza, Creb e
Dure." Ela neste ponto fez uma pausa para pegar o fôlego. "Meu filho também foi
separado de mim, mas ele vive. Esse é o meu único consolo. E agora, também você,
depois que o Leão da Caverna o trouxe para cá. Eu ti. nha medo de que os homens dos
Outros fossem iguais a Broud, mas você é pa recido com Creb, gentil e paciente. Quero
pensar em você como sendo, um dia, o meu companheiro. Quando eu o encontrei, achei
que tinha sido trazido para cá por essa razão. Imagino que quis acreditar nisso porque eu
me sentia muito sozinha, desejando imensamente ter alguém para companhia e você é o
primeiro homem dos Outros que eu vejo.. - pelo menos que eu me lembre. Pouco
importava quem você fosse, eu apenas estava querendo um companhei ro. Agora é
diferente. Cada dia que passa, mais eu gosto de você. Sei que exis tem várias pessoas
dos Outros vivendo não muito longe daqui, e que há, além de você, outros homens. Um
deles talvez pudesse se tomar o meu companhei ro. Mas eu não quero e tenho medo de
que depois de você sarar, não vá querer permanecer aqui comigo. Também tenho medo
de perdê-lo. Gostaria de poder lhe dizer que eu me sinto muito. - - muito agradecida por
você estar aqui.”
Ela se interrompeu, mas sentindo que ainda havia mais coisas a dizer.
Jondalar a observava e não era de todo incompreensível o que ela dizia. Os
movimentos - não só os gestos que fazia com as mãos, mas ojogo facial, os olhos, a
postura - eram tão expressivos que ele se sentia profundamente co movido. Ela fazia
lembrar uma dançarina silenciosa, exceto pelos sons ásperos que, estranhamente, se
harmonizavam com os delicados movimentos. Ele per cebia unicamente através do plano
emocional. De forma alguma poderia acre ditar que o que sentia fosse o expressado por
ela. No entanto, quando Ayla se interrompeu, sabia que ela tinha passado algo. Também
percebera que aquela língua de movimentos e gestos não era, como imaginara, uma
extensão da ges ticulação que ele às vezes usava para enfatizar o seu discurso. No caso
dela, antes, dava a impressão de que os sons eram o que enfatizava os movimentos.
Ao terminar, Ayla por alguns momentos ficou parada, pensativa, de pois,
graciosamente, deixou-se cair aos pés dele, permanecendo de cabeça bai xa. Jondalar
ficou esperando. Vendo que ela não se mexia, começou a se sen tir embaraçado. Ayla
parecia estar aguardando por ele, fazendo-o sentir como se ela estivesse lhe prestando
uma homenagem. Tal deferência, dirigida à Gran de Mãe Terra, seda perfeita, mas a
Mãe, sabia-se, era ciumenta e não veria com bons olhos um filho receber uma
homenagem que só a ela era devida.
Por fim Jondalar abaixou-se e lhe tocou no braço.
- Levante-se Ayla. O que você está fazendo?
Um toque no braço não era exatamente um tapinha no ombro, mas era o mais
próximo que ela poderia imaginar como o sinal que se usava nos clãs para permitir à
mulher falar. Então, ergueu os olhos.
391 390 - Mulher dos clãs sentar quando querer falar. Ayla querer falar com
Jondalar.
- Mas você não precisa ficar sentada no chão para falar comigo - ele se gurou-a,
procurando levantá-la. - Se está querendo falar, pois então fale nor malmente.
Ayla insistia em permanecer onde se achava.
- É costume dos clãs - os seus olhos se mostravam suplicantes, pedin do-lhe que a
entendesse. - Ayla querer falar. - - - a frustração era grande e as lágrimas começaram a
brotar. Novamente ela tentou. - Ayla não falar direito. Ayla querer contar. Jondalar dar fala
para Ayla. . . querer contar...
- Está você tentando dizer obrigado?
- Obrigado? O que é isto?
Ele fez uma pausa.
- Bom, Ayla, voçé salvou a minha vida, tem cuidado de mim, tratado dos meus
ferimentos e me dado comida. Por tudo isto eu digo: muito obri gado.
Ela franziu o rosto.
- Ser diferente. Quando homem estar ferido, Ayla tomar conta. Ayla tomar conta de
todo homem. Jondalar ensinar Ayla falar. - - é mais. É mais que obrigado - ela olhava,
aflita, ansiando por que ele pudesse entendê-la.
- Você pode não falar direito, mas se comunica muito bem. Agora le vante-se, senão
vou ter também de ficar abaixado junto de você. Sei que é curandeira e que o seu ofício é
o de cuidar de todos que estejam precisando de ajuda. Você pode achar que não seja
nada de mais ter salvado a minha vi da, mas isso não me faz menos agradecido. Para
mim, não custa nada ensinar a minha língua, ensiná-la a falar, mas começo a perceber
que isso é uma coi sa muito importante para você e que se sente assim agradecida. O
meu costu me é dizer muito obrigado. O seu, eu acho mais bonito. Por favor, agora le
vante-se.
Ayla sentiu que ele entendera. O sorriso dela transmitia mais gratidão do que
poderia imaginar. Aquela era uma idéia difícil de ser comunicada e que lhe era muito
importante. Sentia-se exultante com o seu sucesso. A sua alegria precisava se expandir e
para isso nada como se pôr em ação. Huiin e o potro não estavam longe. Ela soltou um
assovio forte e estridente. A égua le vantou as orelhas, vindo galopando na sua direção.
Ayla saiu correndo e deu um salto, indo aterrissar suavemente no seu lombo.
Com o potro seguindo de perto, deu uma longa volta pela campina. Tão grande era
a atenção que vinha dedicando a Jondalar que desde que o encon trara pouco tinha
montado. E agora aquela cavalgada era uma deliciosa sensa ção de liberdade. Voltando
ao ponto de partida, encontrou Jondalar esperan do-a. A sua boca já não estava mais
aberta como quando a vira partir em cima da égua, mas sentia um frio percorrendo pela
sua espinha, enquanto imagina va se não seda aquela mulher um ser sobrenatural ou,
quem sabe, até mesmo uma donii. Vagamente ele se lembrava de um sonho no qual
aparecia um espí rito protetor na forma de uma moça afastando dele um enorme leão.
Mas então se lembrou da frustração muito humana de Ayla quando não conseguia
se fazer entender. "Certamente nenhuma forma de espírito da Grande Mãe Terra teria
problemas dessa ordem. Contudo, não restava dúvida de que tinha um jeito fora do
comum para lidar com animais. Passarinhos que atendiam o seu chamado para comer
em suas mãos, uma égua que, lhe ouvin do o assovio, corria para se deixar montar. . - e
agora mais essa desse povo que não fala com palavras, mas por gestos. "Ayla, neste dia,
dera muito o que pen sar", dizia a si mesmo Jondalar, enquanto coçava o potrinho.
Quanto mais pensava nela, mais misteriosa ela lhe parecia.
Se o seu povo não falava, ele podia agora entender por que ela não sabia falar. Mas
que povo era esse? Onde estaria vivendo? Ayla disse que não per tencia a nenhum povo
e que vivia sozinha no vale. .Mas, neste caso, com quem aprendera o seu ofício de
curandeira? E esse seu fantástico dom para lidar com animais, de onde vinha? Onde teria
ela conseguido as pedras-de-fogo? Era jovem demais para ser uma Zelandoni com
tamanhos poderes. Em geral, se le vava muitos anos, quase sempre vividos em retiro,
para se obter o domínio de tais artes. Seria essa a gente dela? Ele sabia da existência de
certos grupos de servidores da Mãe que se devotavam ao conhecimento dos profundos
misté rios da vida. Eram pessoas altamente respeitadas. Zelandoni havia passado muitos
anos com um desses grupos. O shamud também lhe falaria sobre certas provas que os
servidores da Mãe se impõem para alcançarem sabedoria e o do mínio de suas artes.
Será que Ayla teria vivido com um dessis grupos que fala vam só por gestos? E que
agora morava sozinha para aperfeiçoar.se nos seus conhecimentos?
"E você, Jondalar, pensando em gozar dos prazeres com ela. Não é de admirar que
tivesse reagido daquela maneira. Mas que desperdício, bonita co mo é e abdicar dos
prazeres. Mas, bonita ou não, Jondalar, você vai respeitar. lhe a vontade “
Enquanto isso o potrinho dava marradas, esfregando-se contra ele, pro curando ter
carícias mais caprichadas daquelas mãos que sempre acabavam encontrando os lugares
certos para coçar-lhe os comichões em seu cou ro trocando de pêlo. Jondalar ficava
encantado de se ver procurado pelo po tro. Até então, cavalos para ele não tinham outra
significação que a de alimen to. Nunca lhe ocorrera que pudessem ser animais amigos e
sensíveis e que gos tassem de suas carícias.
Ayla, feliz, sorriu, vendo a amizade que se formava entre os dois. Ela lembrou-se de
urna idéia que tivera e naturalmente a explicou para Jondalar.
392 393 - Jondalar poder dar nome para potro?
- Dar um nome para o potro? Você quer que eu dê um nome para o animal? - ele
não sabia direito o que pensar, mas estava encantado. - Eu não sei, Ayla. Nunca pensei
em dar nome a nada e muito menos a um cavalo. Como se dá nome a um cavalo?
Ayla percebia o seu ar confuso. Era uma idéia que ela própria não havia aceitado de
imediato. Os nomes tinham um certo peso, uma significação espe cial. Era o que
identificava. Identificar Huiin como indivíduo único, separado do conceito de cavalo, tinha
suas conseqüências. Com esse nome não mais a égua era um mero animal fazendo
parte das manadas que rondavam pelas este pes. Estava associada aos humanos,
confiada a uma pessoa da qual dependia a sua segurança. Eta era única em sua espécie,
a única a ter um nome.
No entanto, isso impunha obrigações a Ayla. O conforto e o bem-estar do animal
não só exigiam- lhe bastante trabalho, como também era motivo de preocupações. A
égua estava sempre presente em seu pensamento. As suas vi das estavam
inextricavelrnente enredadas.
Foi principalmente após a volta de Huiin que Ayla se dera conta da rela ção que se
tinha estabelecido entre ela e a égua. Agora, embora não calculada- mente ou de forma
planejada, o pedido a Jondalar não era destituído de in tenção. Eta desejava que
pennanecesse lá. Se Jondalar se afeiçoasse ao cavali nho era mais uma razão para que
ele ficasse onde o animal tinha de estar, isto é, no vale com Huiin e ela.
Mas não havia necessidade de pressioná-lo. Por algum tempo ele não iria a nenhum
lugar, pelo menos enquanto a sua perna não estivesse totalmente curada.
Ayla acordou sobressaltada. A caverna estava às escuras. Ela ficou deita da de
costas, fitando a densa escuridão e procurando novamente dormir. De pois, resolveu sair
da cama - havia cavado uma cova rasa no chão de terra, ao lado da outra que era usada
por Jondalar - e ir até a entrada da caverna. No meio do caminho, ouviu o bufado de
Huiin reconhecendo a sua passagem por lá.
"Outra vez deixei a fogueira apagar", pensou ela, enquanto caminhava ao longo da
parede. "Jondalar não conhece direito a caverna, e isso tem de estar mais iluminado para
ele poder se levantar no meio da noite.”
Chegando à entrada, ela resolveu ficar um pouco do lado de fora. A lua, numa fase
de quarto, por enquanto se achava bem por cima da borda do penhasco da margem
oposta, mas logo estaria desaparecendo atrás das rochas. O meio da noite já havia
passado e a madrugada não poderia tardar muito. Embaixo, a escuridão era apenas
quebrada pelo brilho prateado das estrelas refletindo-se no rio rurnorejante.
A mudança da cor no céu se fazia quase imperceptivelmente, mas era sentida em
algum nível do inconsciente. Sem saber por que, Ayla resolveu não voltar para a cama.
Ficou observando a lua apagando-se, antes de ser tragada pelo paredão da margem
oposta. Quando os últimos vislumbres de luz foram eclipsados, ela se estremeceu com
um arrepio de mau agouro.
Aos poucos, o céu clareava, enquanto as estrelas iam perdendo-se den tro de um
azul luminoso. Ao longe, na outra extremidade do vale, o horizon te já estava vermelho.
Um sol em brasa, dilatando-se na forma de um arco perfeito, lançava, das fronteiras da
terra, chispas de fogo sobre o vale.
- Deve estar havendo um incêndio nos campos do lado leste - falou Jondalar.
Ayla virou-se. A figura dele estava banhada pelo brilho pálido da orbe incandescente
que lhe punha nos olhos uma cor de lavanda, nunca consegui da pela luz da fogueira.
- Sim. Incêndio grande. Grande. Muita fumaça. - .Não saber você acor dado.
- Eu já estou acordado há muito tempo. Estava esperando que você voltasse e,
como não apareceu, resolvi levantar. A fogueira está apagada.
- Eu sei. Outra vez Ayla esquecer. Não fazer direito para durar toda a noite.
- Abafar. Você não abafou o fogo, por isso a fogueira apagou.
Ele a seguiu de volta à caverna abaixando a cabeça ao passar pela porta de
entrada. Era mais por precaução do que por necessidade. A abertura da entrada, embora
não fosse das maiores, tinha altura suficiente para que ele passasse. Ayla pegou as duas
pedras de fazer fogo e as acendalhas.
- Você disse que encontrou essa pedra-de-fogo na praia? Ainda existe mais delas
lá?
- Sim. Não muitas. Água carregar. - . levar.
- Alguma inundação? Isto é, o rio transbordou e carregou as pedras fogo? Talvez
devêssemos apanhar todas as que sobraram.
Ayla, com ar vago, concordou com a cabeça. Tinha outros planos para aquele dia.
Desejava poder contar com a ajuda de Jondalar, mas não sabia co mo levantar o
assunto. A carne começava a rarear e ela não sabia se ele tinha objeções a fazer se ela
saísse para caçar. De vez em quando caçava com a sua funda e Jondalar não
perguntava de onde haviam saído os hamsters e jerbos gigantes que trazia para a
caverna. Mas eram caças pequenas que matava com funda, e estas até mesmo os
homens dos clãs permitiam. O que estava preci sando, entretanto, era de um bom e
grande animal e isso significava sair com Huiin e cavar uma armadilha.
Não que ela estivesse ansiando pela caçada. Teria preferido caçar com Neném, só
que o leão não estava mais lá. Mas a falta de seu companheiro era, 394 395 de suas
preocupações, a menor. Jondalar a preocupava mais. Sabia que mesmo que ele se
opusesse, ela não deixaria de caçar. Afinal não pertencia ao clã de Jondalar. Ela estava
em sua caverna e ele não se achava inteiramente curado. No entanto, Jondalar parecia
estar gostando do vale, de Huiin, do potrinho e até dela. Não tinha vontade de atrapalhar
as coisas. Por outro lado sabia, por experiência própria, que os homens não gostavam de
mulheres caçadoras, mas que outra alternativa tinha?
Ela queria mais do que a simples concordância de Jondalar. Estava precisando de
sua colaboração. Não desejava levar o potro à caçada, pois no momento do estouro da
manada o animaizinho poderia machucar-se. Mas ela tinha certeza de que o potro não a
seguiria se Jondalar lhe fizesse compa nhia. Não seria por muito tempo. Ela podia
localizar a manada, cavar a arma dilha e voltar no dia seguinte para pegar a caça. Mas
como pedir a um homem para ficar fazendo companhia a um potrinho, enquanto ela
estivesse fora ca çando?
Ao preparar a sopa para a refeição matinal, um olhar para o seu mingua do
suprimento de carne seca convenceu-a de que alguma coisa tinha de ser feita o quanto
antes. Resolveu que um bom modo de abordar o assunto seria se, primeiro, expusesse
de forma atenuada o seu gosto por caçadas, dando-lhe uma bela demonstração de sua
perícia com a funda. Conforme a reação, sabe ria ou não se poderia pedir-lhe ajuda.
Os dois haviam criado o hábito de todas as manhãs darem uma caminha da ao
longo da vegetação bordeando o rio. Era um bom exercício para ele e o passeio
encantava Ayla. Naquela manhã, ela enfiou a funda na correia de sua cintura. Tudo que
necessitava era da cooperação de algum animalzinho pondo-se ao alcance de sua
pontaria.
As suas esperanças se concretizaram quando, afastando-se da margem e entrando
na campina, o barulho dos seus passos fez levantar vôo um casal de pássaros. Ao vê-los,
ela imediatamente passou a mão na funda e em algu mas pedras. Enquanto derrubava o
primeiro, o outro ganhou velocidade, mas a segunda pedrada acertou-o também em
cheio. Antes de ir buscá-los, Ayla deu uma olhada em Jondalar. A cara era de espanto,
mas o importante é que havia nela um sorriso.
- Isso é fantástico, mulher. £ assim que você vem apanhando os ani mais? Pensava
que fizesse armadilhas com laços. Que arma é esta?
Ayla lhe entregou a tira de couro e foi pegar os pássaros.
- Acho que o nome disto é funda - disse Jondalar, depois que ela vol tou. - Willoniar
me falou de uma anna como esta. Na ocasião não cheguei a imaginar direito como era,
mas deve ser esta. Você é uma grande atiradora, Ayla. Mesmo que a pessoa leve jeito,
essa é uma arma que requer muito trei no e perícia.
- Você não importa de eu caçar?
- Sé você não caçar, quem iria fazer isto?
- Homens dos clãs não gostar mulheres caçadoras.
Jondalar a examinava. Ela estava preocupada, ansiosa. Talvez os homens não
gostassem de mulheres que caçassem, mas isso não a impediu de aprender a caçar. Por
que teria escolhido precisamente aquele dia para lhe dar aquela demonstração de sua
pontaria? Por que estaria querendo a sua aprovação?
- A maioria das mulheres Zelandonii caçam, principalmente najuventu de. Minha
mãe era conhecida por ser uma excelente rastreadora. Não sei por que uma mulher não
possa caçar, desde é claro que ela queira. Eu gosto de mulheres caçadoras, Ayla.
Ele percebeu a sua tensão desaparecer. Sem dúvida havia dito o que ela desejava
ouvir. E era a pura verdade. No entanto, não sabia por que isso parecia tão importante
para ela.
- Precisar sair para caçar. Precisar ajuda.
- Bern que eu gostaria, mas acho que ainda não tenho condições.
- Você não ir, você tomar conta do potro. Eu levar Huiin.
- Ah, então é isso! Você quer que eu fique com o potro para que possa sair com a
égua, não é? - ele deu uma risada. - Bom, não deixa de ser uma inversão de costumes.
Em geral, depois de uma mulher ter filhos, é ela quem fica com as crianças. Ao homem
cabe caçar para eles. Mas, claro, eu fico com o potro. Alguém tem de caçar e eu não
quero que o pobrezinho seja ferido.
O sorriso dela foi de alívio. Ele não se importava. Realmente não dava a mínima
importância.
- Antes de planejar a sua caçada, você deveria dar uma olhada no lado das estepes
que pegou fogo. Com um incêndio desse, é capaz de nem ter ne cessidade de caçar.
- Caçada com fogo? - perguntou ela.
- Às vezes manadas inteiras morrem intoxicadas pela fumaça e a pessoa nada mais
tem a fazer do que ir lá buscar a sua carne já cozinhada. Existe uma história engraçada
sobre um homem que encontrou uma caça depois de um incêndio nos campos e os
problemas que ele teve de enfrentar na Caverna para provar que a carne tinha sido
assada por ele mesmo. Essa é uma velha histó ria. -.
Um sorriso se esboçava no seu rosto. Ela havia compreendido. "De fa to um
incêndio que rapidamente se propagasse nas estepes podia dar cabo de uma manada
inteira, e eu não precisaria cavar uma armadilha", pensou Ayla.
Quando ela retirou as traves e os arreios que amarravam as cestas, Jon dalar ficou
intrigado, sem entender a finalidade daquela complicada tralha.
- Huiin trazer carne para a cavema - explicou ela, apontando para os paus e as
correias. - Huiin trazer você para a caverna - acrescentou.
396 397 - Ah, então foi assim que eu vim parar aqui! Há tempos que queria sa ber
como tinha sido isso possível. Achava que outras pessoas me tivessem en contrado e
trazido para cá.
- Não outras pessoas. - - Eu encontrar você e o outro homem.
O rosto de Jondalar tomou-se tenso e sombrio. Ele não esperava que ela fosse
mencionar Thonolan e, de repente, se sentiu tomado de dor e saudade.
- Você tinha de deixá-lo lá? Não podia ter trazido também o meu ir mão? - falou ele,
investindo contra ela.
- Homem morto, Jondalar. Você ferido. . . muito ferido - disse AyIa, novamente
lamentando não poder expressar-se. Ela gostaria de contar que ha via enterrado o
homem e que sofrera com a sua morte, mas como dizer? Quando muito conseguia trocar
informações; jamais poderia discorrer sobre um assunto. Queria falar sobre certos
pensamentos que nem mesmo sabia se eram possíveis de serem traduzidos em
palavras. Era como se estivesse asfixia da. No primeiro dia, ela o amparara na dor, mas
se via agora impossibilitada de compartilhar de seu sofrimento.
Gostaria de ter o desembaraço dele com as palavras, de poder dispô-las em ordem
tão naturalmente como ele o fazia, de possuir a sua liberdade de expressão. Mas havia
uma barreira que não conseguia cruzar, uma lacuna que, quando estava prestes a
vencer, lhe escapava. A intuição lhe dizia que poderia fazê-lo, que era apenas uma
questão de encontrar a chave que abria o conheci mento fechado nela.
- Desculpe, Ayla. Não devia ter gritado com você dessa maneira, mas Thozjolan era
meu irmão - disse quase chorando.
- Irmão. - - você e o outro homem. . ter mesma mãe?
- Sim, eu e ele tínhamos a mesma mãe.
Ela fez que sim com a cabeça e se virou na direção da égua. Desejava poder dizer-
lhe que sabia o que era a afeição entre germanos, da afeição especial que unia dois
homens nascidos da mesma mãe. Creb e Brun haviam sido irmãos.
Depois de amarrar as cestas aos arreios, ela entrou para buscar as lanças que, por
serem grandes demais para passar pela entrada, tinham de ser arru madas do lado de
fora da caverna. Enquanto observava, Jondalar percebeu que o cavalo não representava
apenas uma companhia para a mulher. Era-lhe sem dúvida de grande valia. Ele jamais
havia imaginado o quanto podia um cavalo ser útil. Mas, ali, estava outra das espantosas
contradições de Ayla. Era capaz de usar o animal de uma maneira que ele nunca vira
outrd povo fazer, um verdadeiro progresso, mas por outro lado a sua lança não podia ser
mais priniit iva.
Ele já caçara com muitos povos. Cada um tinha a sua forma particular de lança que,
entretanto, não chegava a variar muito de uma para outra. Já a 398 de Ayla erq.
radicalmente diferente de todas as outras. Contudo, havia algo na lança que não lhe
parecia de todo desconhecido, O pau era liso e reto com uma ponta iguda e temperada a
fogo, mas não deixava de ser um instrumento tosco e grosseiro. Visivelmente não fora
construído para ser arremessado, sen do mais grosso do que a lança que ele tinha usado
para matar o rinoceronte. Como conseguiria aproximar-se de um animal empunhando um
pedaço de pau pesado como aquele? Quando Ayla voltasse, ele perguntaria. Agora, seria
tomar muito tempo. Ela estava aprendendo a língua, mas ainda falava com muita
dificuldade.
Antes de Ayla partir com Huiin, Jondalar conduziu o potro para den tro da caverna, lá
ficando a conversar com o animal, coçando-o e paparican do-o até ter certeza de que
Ayla e a égua já estivessem longe. Parecia estranho estar sozinho na cavema, sabendo
que a mulher ficaria fora quase todo o dia. Com a ajuda de seu bordão, ele se levantou.
Então, cedendo à curiosidade, pe gou uma lamparina e a acendeu. Deixou o bordão de
lado - dentro da caver na não precisaria dele - empalmou a lamparina e se pôs a
caminhar ao longo das paredes, querendo saber até onde conduziam e também para ter
uma idéia da dimensão da caverna. Não houve surpresa quanto ao tamanho: era o que
ele imaginara e, fora o pequeno nicho, não havia nenhuma outra passagem. O nicho,
porém, o intrigava. Tudo indicava que o lugar fora recentemente ocupado por um leão da
caverna, guardando, inclusive, as suas pegadas.
Depois de exaMinar o restante, ficou convencido de que Aylajá habita va o lugar há
alguns anos. Mas os vestígios de um leão lá lhe pareciam incom preensíveis. Deveria ter-
se enganado. Voltou a examinar o nicho com mais atenção. Não. Não havia dúvida, um
leão morara naquele canto e não há mui to tempo.
Mais um mistério. Será que algum dia ainda conseguiria decifrar todos estes
desconcertantes enigmas?
Ele apanhou uma das cestas de Ayla - pelo visto, nunca usada - resol vido a descer
à praia para procurar pedras-de-fogo. Podia, pelo menos, tentar ser útil a ela. Com o
potro saltando adiante dele e ajudado pelo cajado, des ceu a custo o caminho da
caverna. Chegando embaixo, encostou o cajado con tra o paredão rochoso, próximo à
pilha de ossos. Ficaria feliz quando não pre cisasse mais daquele pedaço de pau.
Por um momento parou para coçar e afagar o potrinho que fuçava a sua mão.
Depois, soltou uma gargalhada vendo o cavalinho correr para dentro de uma poça de
terra solta, onde ele e a mãe costumavam chafurdar-se deliciados. Ali, ficou a contorcer-
se de patas para o ar e soltando ganidos de prazer. Quando se levantou, sacudiu-se,
atirando terra em todas as direções e, em se guida, foi para um dos seus lugares
prediletos, à sombra de um pé de salguei ro, onde se deitou para descansar.
399 Sem pressa, Jondalar se pôs a caminhar pela praia, com a cabeça abai xada,
examinando as pedras no chão.
- Achei uma! - gritou excitado, assustando o potrinho. Depois se sen tiu meio idiota. -
Aqui está mais uma - falou sorrindo, encabulado. Então se abaixou para pegar a pedra de
cor cinza- amarelada. Mas parou ao ver uma outra maior. - Há sílex nesta praia.
"Ora veja! Ela consegue as pedras para suas ferramentas bem aqui. Vo cê também
poderia arrumar um martelo de pedra e um furador e fazer deter minadas ferramentas,
Jondalar! Algumas boas e afiadas lâminas e também um buril Ele tomou a ficar de pé e
examinou a pilha de ossos e pedras que o rio havia atirado contra o penhasco. "Ë
possível que eu encontre tam bém um bom osso e um chifre de veado. Você podia
inclusive fazer uma lança mais decente para ela.”
"Só que talvez ela não queria uma lança 'mais decente'. Pode ser que tenha os seus
motivos para usar as que fabrica. Mas isso não quer dizer que não faça uma para você,
Jondalar. Isso é melhor do que ficar sentado o dia inteiro. Você, se quisesse, podia
também esculpir um pouco. Antigamente até que tinha uma boa mão para entalhar.”
Ele revirou a pilha, depois pôs-se a remexer na parte debaixo do mon turo, por entre
o mato crescido, à procura de pedaços de ossos soltos, cavei ras e chifres. Deu com
dezenas de pedras-de- fogo, enquanto procurava por um bom martelo de pedra.
A primeira batida no córtex do nódulo de sílex encontrou-o com um sorriso nos
lábios. Ele não sabia o quanto estava saudoso de seu trabalho. Agora que dispunha de
pederneira, pensava em um mundo de coisas que po deria fabricar. Queria uma boa faca
e um machado, ambas as ferramentas com cabo. Também desejava fabricar algumas
lanças e um furador para consertar as suas roupas. Ayla talvez gostasse de seus
instrumentos. Iria mostrá-los a ela.
O dia, afinal, não se tinha arrastado tão enfadonho como ele temera. Antes que
tivesse ajuntado e embrulhado as suas novas ferramentas num pano de couro
emprestado de Ayla, o sol já começava a baixar no céu. Ao chegar a caverna, o potrinho
o cutucava, pedindo-lhe atenção. Imaginava que o animal estivesse com fome. Ayla havia
deixado uma papa de cereais cozi dos. O cavalinho primeiro recusou, depois acabou
comendo. Mas isto foi no meio do dia. Onde estaria ela?
Quando a noite baixou, Jondalar ficou realmente preocupado. O potro estava
precisando de Huiin. Ayla já devia estar de volta. Foi aguardá-la no patamar. Resolveu
fazer uma fogueira para orientá.la no caso de estar perdida. "Ora, ela não iria perder-se",
pensou mas ainda assim fez a fogueira.
Já era bem tarde quando Ayla finalmente voltou. Jondalar ouviu os pas SOS de
Huiin e desceu ao seu encontro com o potrinho saltando na frente dele.
400 Ayla ap4ou na praia e arrastou a carcaça de um animal para fora do jorrão.
Ajeifava paus para subir pelo estreito caminho, quando Jondalar chegou ao sopé do
penhasco. Ela tinha uma tocha na mão, acesa no fogo das estepes. Jondalar a segurou
para que ajeitasse uma segunda caça no jorrão. Ele capen gou na sua direção, querendo
ajudar, mas não foi preciso. Observando-a ma nobrar com o peso daquela imensa massa
morta, não só sentiu-lhe a força, co mo também percebeu como Ayla a tinha adquirido. O
cavalo e o jorrão aju davam, talvez fossem até indispensáveis, mas ela continuava sendo
uma só.
O potrinho procurava, ansioso, pelas tetas da mãe, mas Ayla o afastou durante a
subida.
- Você certo, Jondaiar - falou ela, depois que chegaram ao patamar.
- Incêndio grande. Nunca ver antes incêndio tão grande. Longe daqui. Mui to, muito
animal morto.
Alguma coisa na voz de Ayla fez com que ele a olhasse atentamente. Ayla estava
exausta e a carnificina que presenciara lhe deixara os olhos fun dos e extenuados. Tinha
as mãos negras e a cara e a roupa manchadas de fuli gem e sangue. Após desatar os
arreios e ojorrão, abraçou-se a Huiin, com a ca beça encostada em seu pescoço,
entregando-se ao cansaço, enquanto a égua, com a cabeça abaixada e as patas
dianteiras afastadas, deixava a sua cria se saciar em seus úberes intumescidos. Também
o animal estava cansado.
- Esse incêndio deve ter acontecido muito longe dali. Já é tarde. Você levou o dia
inteiro andando a cavalo? - perguntou Jondalar.
Ela levantou a cabeça e se virou para ele. Por um momento quase se havia
esquecido da presença de Jondalar.
- Sim, dia inteiro - ela respirou fundo. Ainda não podia deixar-se levar pelo cansaço.
Tinha muito o que fazer. - Muito animal morto. Outros tam bém querer comida. - . muito
lobo, hiena, leão. Tinha um, eu não conhecer ainda. - . dentes grandes - falou, pondo os
dedos indicadores na boca aberta como se fossem dois longos caninos.
- Mas então você viu o tigre-dos-dentes-de-sabre! Achava que este ani mal não
existisse. Um velho, que costumava contar histórias nas reuniões de verão, dizia ter visto
um animal deste na sua mocidade, mas ninguém acredi tava. Você viu mesmo um? - ele
já começava aiamentar não ter podido ir.
Ela confirmou com a cabeça. Depois fechou os olhos, estremecendo com os
ombros.
- Botar medo em Huiin. Tigre ficar na espreita, mas funda espantar e eu fugir com
Huiin.
Os olhos de Jondalar se arregalaram com aquela descrição em termos simples,
expressados de forma sincopada.
- Você conseguiu botar para correr um tigre-dos-dentes-de-sabre com a sua funda. .
.? Nossa Mãe, Ayla!
401 1 1 1 - Muita carne. Tigre não precisar de FJuün. Funda espantar - ela tinha
vontade de contar, de relatar como foi e de falar e compartilhar do medo que sentiu, mas
lhe faltavam os meios. Estava cansada demais para pensar nos ges tos e tentar
sintonizá-los com as palavras que sabia.
"Não é de admirar que esteja tão cansada", pensou Jondalar. "Talvez eu tenha feito
uma bobagem sugerindo que ela fosse pegar animais nas terras in cendiadas. Bom, de
qualquer maneira ela trouxe duas corças. Mas haja nervos para enfrentar um desses
tigres assassinos. Que mulher!”
Ayla deu uma olhada nas mãos, pegou a tocha que Jondalar deixara fim. cada no
chão e se voltou para descer outra vez à praia. Chegando à beirada do rio, suspendeu a
mão, iluminando ao redor. Arrancou um pé de caperiçoba e esmigalhou as folhas e as
raízes junto com areia e água. Depois de esfregar as mãos e o tosto com essa papa,
limpando a sujeira da viagem, tornou a subir.
Chegando à caverna, sentiu-se feliz ao ver que Jondalar havia posto pe dras de
cozinhar para esquentar. Era exatamente o que estava querendo, uma boa cuia de chá
quente. Antes de ter saído pela manhã, havia preparado aI. guma coisa para comer e
esperava que agora ele não a fizesse cozinhar. Não era o momento para se preocupar
com comida. Tinha duas corças para pelar e cortar em pedaços e serem postos para
secar.
Havia procurado por dois animais que não estivessem chamuscados, pois queda
guardar-lhes os couros. Ao começar o trabalho, lembrou-se de que ainda não fizera as
novas facas que pretendia. Com o uso, diminutas lascas iam se soltando das beiradas e
as facas acabavam ficando cegas. Sempre era melhor fabricar novas e deixar as velhas
para tipos de serviços que não reque riam um fio amolado, como o de raspar, por
exemplo.
A faca cega punha.lhe os nervos à flor da pele. Enquanto cortava o couro, lágrimas
de desânimo e cansaço escorregavam pelo seu rosto.
- Ayla, o que está acontecendo? - perguntou Jondalar Ela, sem responder, pôs-se a
cortar o couro ainda com mais raiva. Não podia explicar. Ele tirou a faca da mão e a
examinou.
- Você está cansada. Por que não se deita e descansa um pouco?
Ela disse não com a cabeça, embora desejasse desesperadamente fazer o que
Jondalar dizia.
- Ter de tirar a pele, pôr carne para secar. Não poder esperar. Hienas vir roubar.
Ele não se deu ao trabalho de sugerir que poderiam trazer a carne para dentro da
caverna. Não valia a pena argumentar com ela.
- Eu fico vigiando - falou Jondalar. - Você está precisando de um des canso. Entre e
vá se deitar, Ayla.
Ela não podia estar mais agradecida. Ele vigiando a carne! Nem chega ra a pensar
em pedir uma coisa desta, pois não estava acostumada a ter gente 402 ajudando-a.
Entrou meio cambaleante na caverna e, com uma imensa sensação de alívio, caiu na
cama. Queria dizer a ele o quanto se sentia agradecida, mas os seus olhos encheram-se
mais uma vez de lágrimas. Sabia que qualquer ten tativa neste sentido seda em vão. Ela
não sabia falar!
Durante a noite, Jondalar entrou e saiu seguidamente da caverna. De vez em
quando ele ficava parado ao lado da cama de Ayla, observando-a dormir. Ela estava
inquieta, batendo com os braços e balbuciando em sonho coisas ininteligíveis.
Ayla caminhava em meio à neblina chorando e pedindo por ajuda. Uma mulher alta,
de feições indistintas e com a figura envolta pela névoa, surgiu para tomá-la nos braços.
- Eu disse que tomaria cuidado, mãe. Mas para onde você foi? Por que não veio
quando eu chamei? Chamei, chamei e você não apareceu. Onde vo cê estava, mãe?
Mãe! Não suma outra vez! Não me deixe!
A visão da mulher alta desapareceu. A neblina clareava, deixando entre- ver a figura
de uma outra mulher, essa baixa e atarracada. As suas pernas, musculosas e fortes,
eram ligeiramente arqueadas para fora, mas ela caminha va reta, erguida sobre os seus
pés. O nariz, largo e adunco, ficava como um arco alto por cima da boca. A ausência de
queixo era compensada por mandí bulas muito acentuadas que se projetavam para a
frente do rosto. A testa baixa escorregava para trás, mas a cabeça era grande. Pescoço
curto e grosso. Os supercílios salientes com espessas sobrancelhas sombreavam os
grandes olhos castanhos, inteligentes e cheios de amor e tristeza.
- Iza! - gritou Ayla, acenando-lhe. - Iza, me ajude! Por favor, me aju de! - mas lia
olhava-a com ar zombeteiro. - Iza, você não me ouve? Por que não me entende?
- Ninguém pode entendê-la, se você não falar direito - respondeu uma outra voz.
Ayla viu um homem caminhando com a ajuda de um cajado. Era velho e aleijado. Um
braço fora amputado na altura do ombro. O lado esquer do do rosto estava desfigurado
por uma hedionda cicatriz e pela falta do olho, mas o olho do lado direito transmitia força,
inteligência e bondade. - Você precisa aprender a falar, Ayla - disse Creb por meio dos
gestos que fazia só com uma das mãos. No entanto, ela o ouvia. Ele falava com a voz de
Jon dalar.
- Como eu posso falar, Creb? Não consigo me lembrar. Ajude-me, Creb!
- O seu totem é o Leão da Caverna - disse o velho mog-ur.
Nisso, em meio a um clarão alaranjado, um tigre saltou sobre um auro que,
engalfinhando-se com o imenso bisão de pele castanho-avermelhada, que foi ao chão,
berrando apavorado. Ayla, ofegante, observava o tigre-dos-dentes- de-sabre rosnar para
ela, com as pernas e o focinho pingando sangue. A besta 403 avançava na sua direção
mostrando as afiadas presas que cada vez se torna varri mais longas e pontudas. Ela
estava metida dentro de uma minúscula gru ta, espremendo o corpo contra a parede de
pedra em suas costas. Um leão da caverna rugiu.
- Não, não! - gritava ela.
Uma gigantesca pata com as garras de fora alcançou-lhe a coxa esquer da,
rasgando a sua carne com quatro riscos paralelos.
- Não! Não! Eu não posso. - - não posso! - gritava, perdida no nevoei ro
redemoinhando à sua volta. - Eu não posso lembrar!
A mulher alta surgiu estendendo-lhe os braços.
- Eu vim para ajudá Por instantes, a neblina dissipou, permitindo que Ayla visse um
rosto, não muito diferente do seu. Então, tomada de uma terrível náusea, viu o chão abrir-
se e de dentro brotar emanações com o cheiro azedo de coisas úmidas e podres.
- Mãe! Mãeee!
- Ayla, Ayla! O que é isto? - dizia Jondalar, sacudindo-a. Ele estava no patamar
quando lhe ouviu gritando palavras numa língua desconhecida. Correu para dentro
mancando, numa rapidez que não se imaginava capaz.
Ayla se sentou e ele a tomou nos braços.
- Oh, Jondalar, foi um sonho horrível. Um pesadelo que sempre me vem - falou ela
aos soluços.
Já passou, Ayla. Está tudo bem agora.
- Foi um terremoto. Foi assim que ela morreu. . - num terremoto.
-Quem?
- A minha mãe. E Creb também. Oh, Jondalar, tenho horror de terre motos - disse
tremendo, com ele abraçando-a.
Jondalar segurou-lhe nos ombros e a fastou para olhá-la de frente.
- Conte sobre este sonho, Ayla.
- Desde que eu me entendo por gente que tenho esses sonhos. Eles estão sempre
voltando. Num, eu estou dentro de uma pequena gruta, queren do escapar de uma
enorme pata que me quer pegar. Acho que foi assim que o meu totem me marcou. Do
outro, nunca pude lembrar-me. Mas, todas as ve zes que eu acordava dele, era tremendo
e enjoada. Hoje, pela primeira vez, consigo lembrar do que sonhei. Eu vi, Jondalar. Eu vi
a minha mffe.
- Ayla, você está se ouvindo?
- O que quer dizer?
- Você está falando, Ayla. Falando!!
Ayla já soube falar. Não na língua em que estava expressando-se, mas a
compreensão, o ritmo e o sentido da língua falada já fizeram parte de sua vida. Havia
esquecido porque a sua sobrevivência passara a depender de um outro modo de
comunicação e também porque quis apagar da memória a tra gédia que a pusera sozinha
no mundo. Inconscientemente, vinha memorizan do mais do que o simples vocabulário
que Jondalar lhe ensinava. A sintaxe, a gramática e a acentuação integravam os sons
que lhe ouvia saindo da boca.
Como toda criança começando a falar, Ayla, da mesma forma, tinha a aptidão e o
desejo de aprender. Faltava-lhe apenas o exercício da fala. A sua motivação, porém, era
mais forte do que a de uma criança, bem como possuía uma memória mais apurada. Ela
aprendia mais rapidamente. Embora não conseguisse reproduzir exatamente algumas
das entonações e inflexões de Jondalar, falava como uma verdadeira nativa da língua
dele.
Estou mesmo! Eu posso, Jondalar! Posso pensar por palavras!
Foi então que os dois tomaram consciência de que se achavam abraça dos e
Jondalar deixou cair os braços.
- Já amanheceu? - perguntou Ayla, reparando na luz que se filtrava pela boca da
entrada e pela abertura no teto. Ela afastou as cobertas. - Nos sa Mãe! Tenho de botar
logo essa carne para secar - também as expressões mais particulares de Jondalar
haviam sido aprendidas.
Ele sorriu. Era qualquer coisa de impressionante ouvi-la tão de repen• te falando,
mas não deixava de ser cômico escutá-la dizendo as suas frases de uma forma
extremamente original.
Ela correu à entrada. Mas então ficou paralisada. Esfregou os olhos e olhou outra
vez. A carne, muito bem cortada em forma de lingüetas, esta va pendurada numa série
de cordas estendidas de fora a fora do patamar, com diversas pequenas fogueiras
armadas em meio aos varais. Será que estava ainda sonhando? Teriam as mulheres do
clã se juntado lá para ajudá-la?
- No caso de estar com fome, há um pedaço do quarto traseiro assando na fogueira
- falou ele com displicência e sorrindo orgulhoso.
- Como?! Foi você quem fez isso?
- Foi - o sorriso ampliou-se ainda mais. A reação dela à pequenina sur presa que
pretendera ultrapassava em muito as suas expectativas. Podia não estar ainda em
condições de caçar, mas tirar a pele e cortar a carne dos ani mais que ela trazia era uma
coisa que poderia perfeitamente fazer, sobretu do agora com as suas novas facas.
- Mas você é homem! - falou ela espantada.
A pequenína surpresa era muito mais surpreendente do que ele poderia supor. Nos
povos clânicos, a aquisição dos conhecimentos necessários à sobre vivência era extraída
da memória. Neles, o instinto havia evoluído na forma de lembranças das realizações e
feitos de seus antepassados, um tipo de memória que armazenavam na parte posterior
do cérebro e que se transmitia por herança. Como homens e mulheres haviam
atravessado gerações fazendo 404 405 trabalhos diferentes, as memórias de uns e
outros acabaram,por sua vez, tam bém diferenciadas. Cada sexo tinha as suas funções
específicas e um não sabia realizar a do outro.
Um homem dos clãs poderia achar ou caçar uma corça e trazê-la à ca verna. Podia
até tirar a pele do animal, embora não tão eficientemente como uma mulher. Se
realmente fosse pressionado, conseguiria cortar a carne em nacos, mas nunca lhe
ocorreria fatiá-la para secar e, mesmo que lhe ocorresse, não saberia como fazê4o. Sem
dúvida alguma jamais cortaria aqueles pedaços de carne que Ayla tinha diante de seus
olhos; finos e fatíados de modo a seca rem uniformemente.
- Será que um homem não pode cortar uma carne? - Jondalar não ig norava que
alguns povos tinham costumes diférentes no que dizia respeito à divis de trabalho entre
homens e mulheres, mas ele pensara só em ajudá e nunca ofendê-la.
- Nos clãs, as mulheres não caçam e os homens não preparam comida - tentou Ayla
explicar.
- Mas você caça.
A observação pegou-a de surpresa. Sem perceber, ela havia assumido a posição de
uma verdadeira mulher dos clãs.
- Mas. . - eu não pertenço realmente aos das - falou Ayla, confusa. - Eu sou como
você, Jondalar. Pertenço aos Outros.
J\_ freouFluiin, saltou e deu o odre pingando água para Jondalar. Ele o pegou e
sedentamente bebeu alguns goles. Estavam bem longe do vale, quase nas estepes e um
tanto distanciados do rio.
A relva dourada, batida pelo vento, ondulava ao redor dos dois. Haviam colhido
sorgo e centeio silvestre numa área onde cresciam vários cereais, inclu. sive trigo de
duas espécies diferentes e os pés de cevada que se inclinavam ao peso de suas espigas
ainda verdes. Era um serviço duro e tedioso o de colher espiga por espiga e retirar-lhes
as pequeninas e duras sementes. Os grãos redondos do sorgo iam sendo postos numa
cesta com uma divisória dentro e pendurada no pescoço, de modo a deixar as mãos
livres. O sorgo era separado com facilidade, mas mesmo assim seria necessário um
segundo joeiramento.
406 Já o centeio, no outro lado da divisória, se desprendia com apenas algumas
sacudidelas.
AyJa pendurou a cesta no pescoço e se pôs imediatamente a trabalhar. Jondalar
logo depois seguiu- lhe o exemplo e ficaram os dois lado a lado co lhendo. Passado
algum tempo, ele se virou perguntando:
- Como é andar a cavalo, Ayla?
- Ë difícil explicar - respondeu, fazendo em seguida uma pausa para pensar. -
Quando se corre é emocionante. Mas também não deixa de ser quando se anda devagar.
Montar Fluiin me faz bem.
Ela voltou a trabalhar, mas logo depois parou outra vez.
- Você gostaria de experimentar?
-O quê?
- Montar em Fluiin.
Jondalar examinou-a, procurando saber se realmente estava sendo sin cera no seu
oferecimento. Já há algum tempo ele vinha querendo montar, mas Ayla parecia manter
uma relação tão pessoal com o animal que lhe era di.
fícil abordar o assunto.
- Bem que gostaria, mas será que Huiin vai deixar?
- Não sei - ela olhou para o sol querendo ver em que momento do dia 'estavam. Em
seguida rodou o cesto para as costas. - Mas poderemos saber.
-Agora?
Ela confirmou com a cabeça, já preparada para voltar.
- Pensei que você tivesse ido buscar água para continuarmos depois com a nossa
colheita.
- Realmente, mas eu me havia esquecido de como anda rápido o servi ço quando
ele é feito a quatro mãos. Estava só dando uma olhada na minha cesta. Não estou
acostumada a ser ajudada.
Jondalar estava sempre surpreendendo-a com os seus múltiplos talentos. Além de
ter boa vontade, era capaz de fazer qualquer coisa que ela fazia. E se ele não soubesse,
aprendia. Não só tinha curiosidade, como se mostrava inte ressado em tudo. Ayla se via
nele. Isso a fazia sentir como devia ter ela pare cido estranha às pessoas dos das.
Contudo elas a aceitaram e procuraram ajus tá- la aos seus padrões.
Jondalar deu um piparote na cesta, jogando-a às costas, pondo-se a caminhar ao
seu lado.
- Estou pronto para dar esse dia por encerrado. Você já está mais do que
abastecida, Ayla. Além disso, a cevada e o trigo ainda não estão no ponto. Não entendo
por que quer tanto cereal.
- É para Huiin e o potrinho. Os dois também vão precisar de capim. Huiin sai para
comer no inverno, mas quando a neve está muito alta, uma quantidade de cavalos morre.
407 23 "4 A explicação foi suficiente para que ele não fizesse qualquer outra obje
ção. Voltaram caminhando pela relva crescida, e, como não estavam mais em serviço,
gozando o calor do sol batendo diretamente sobre as suas peles nuas. Jondalar usava
apenas uma tanga e tinha a pele tão bronzeada quanto a de Ayla, agora vestida com o
seu traje de verão: um pano de couro que ia da cintura às coxas, cuja finalidade maior era
a de provê-la com muitas do bras e bolsos para carregar a funda, ferramentas e outros
objetos. Fora isso, a única outra peça que levava no corpo era o pequeno saquinho de
couro pen durado no pescoço. Por diversas vezes Jondalar se surpreendeu admirando-
lhe o físico forte e flexível, mas não fez nenhum gesto para tocá-la e nem ela en corajava
qualquer coisa nesse sentido.
Montar Huiin era o que o mobilizava no momento, O que fatia o cava lo? Se
necessário, saberia como se safar. Não fosse por ainda mancar um pou quínho, a sua
perna poderia ser dada como curada e, com o tempo, ele achava que não iria ficar
nenhum defeito. O tratamento de Ayla fora miraculoso. Ele não tinha como agradecer-lhe.
Já estava pensando em ir embora, não havia mais razão para prolongar a sua estadia,
mas ela parecia não ter pressa em vê- lo partir, e assim ia protelando a viagem. Queria
ajudá-la a preparar-se para o próximo inverno, pelo menos isso lhe devia.
E ela tinha também de pensar nos cavalos. Era uma coisa que não havia ocorrido a
ele.
- Estocar comida para os cavalos lhe dá muito trabalho, não é?
- Não muito.
- Eu estive pensando. Você disse que precisa guardar capim também, não é? Será
que não daria jeito de cortar os pés inteiros dos cereais e levá-los para a caverna? Assim,
ao invés de colher só as sementes - ele apontou para as cestas - você sacudiria os grãos
numa cesta e ficaria depois com a palha.
Ayla parou. O seu rosto franzia-se, enquanto ela pensava na idéia.
- Talvez. - - Se cortarmos os pés inteiros e colocá.los depois para secar, os grãos
quando forem sacudidos vão soltar-se. - - É, vale a pena tentar - um belo sorriso
espalhou-se pelo seu rosto. - Jondalar, acho que vai dar certo!
O entusiasmo dela era tanto e tão sincero que ele não pôde deixar de também. A
admiração e a atração que sentia por Ayla, o prazer que só de olhá-la, tudo isto se
espelhava em seus olhos maravilhosamente sortir tinha sedutores.
A resposta veio franca e espontãnea.
- Jondalar, gosto tanto quando você sorri para mim. - . com a boca. -. com os olhos.
Ele soltou a sua inesperada risada, exuberante, divertida, franca. "Ela é tão natural",
pensou. "Acho que não conseguiria ser outra coisa senão essa pessoa direta e sincera
que é. Que mulher fantástica!”
1 Ayla acompanhou-o na explosão de alegria. Contagiada pelo bom humor de
Jondalar, o seu sorriso foi alargando-se até explodir numa expressão de total júbilo
incontido.
Quando conseguiram controlar-se, os dois estavam arquejantes, enxu • gando as
lágrimas em meio às risadas que ameaçavam voltar. Nenhum deles saberia dizer o que
havia de tão prodigiosamente engraçado. Era um riso que se auto-alimentava, que lhes
servia para aliviar as tensões acumuladas.
• Quando novamente voltaram a caminhar, Jondalar passou o braço ao redor da
cintura de Ayla, num reflexo carinhoso da alegria que haviam com partilhado. Sentindo-a
retesar, imediatamente soltou-a. Havia prometido a si e também a Ayla - mesmo que na
ocasião ela não tivesse compreendido - que jamais a forçaria. Se Ayla fizera votos de
abster-se dos prazeres, ele não iria criar uma situação embaraçosa em que ela se visse
obrigada a recusá-lo. Até agora vinha mantendo.se extremamente respeitoso.
No entanto, sentindo exalar-lhe da pele quente o forte perfume femini n6 olhando os
seus seios fartos e iritumescidos, pensou subitamente no lon go tempo que já fazia que
não se deitava com uma mulher e o formato de sua tanga denunciava-lhe a natureza dos
pensamentos. Ele apressou o passo, que rendo disfarçar a intumescência que estava
visível demais. Era tudo que podia fazer para conter o ímpeto e se impedir de avançar
sobre Ayla. Suas passadas foram alargando-se até estar praticamente correndo.
- Oh, Doni, como desejo essa mulher! - murmurou em voz baixa.
As lágrimas se comprimiam nos cantos dos olhos de Ayla, enquanto o observava,
disparado na frente dela, cada vez se afastando rnals. "O que eu fiz de errado? Por que
ele foge de mim? Por que não faz o sinal? Está tifo claro que está precisando. Por que
não quer aliviar as suas necessidades comigo? Se rá que sou tão feia assim?" Ela
estremeceu lembrando-se do braço cíngindo-a pela cintura. Ele exalava pelas narinas o
seu cheiro de homem. Não querendo encará-lo, sentindo-se tal quando era criança e
fazia alguma coisa que sabia errada - só que desta vez não tinha noção do que fizera -
ela se pôs a andar devagar, arrastando os pés.
Chegando ao matagal perto do rio, Jondalar procurou por uma sombra fresca, O seu
desejo era tanto que não conseguia reprimir-se. Logo que se viu atrás da espessa cortina
de folhas, fora da vista de Ayla, jatos de um líquido branco viscoso derramaram-se em
espasmos sobre o chão e, ainda segurando o seu membro intumescído, encostou a
cabeça numa árvore, tremendo. Esta va simplesmente aliviando-se, nada mais do que
isso. Pelo menos agora já p0- derla olhar para Ayla sem atirar-se a ela e violentá-la,
Apanhou um pau para desprender a terra no chão e cobrir a essência de seus prazeres
com um produto da Mãe, O Zelandoni lhe dissera que derramar as dádivas da Mãe, como
ele acabara de fazer, era desperdício, mas que, se 408 409 necessário, as dádivas
deveriam ser devolvidas a ela: despejadas no chão e de pois tapadas com terra. O
Zelandoni tinha toda razão. Era mesmo um desper dício, e não tivera o menor prazer.
Ele caminhou ao longo do rio, com vergonha de aparecer na frente dela. Ayla
esperava junto do enorme bloco de pedra, abraçada com o potro e a ca beça enterrada
no pescoço de Huün. Parecia
tão desamparada, assim abraçada aos animais, buscando neles consolo e apoio. No
entanto, seria ele quem deve ria estar dando-lhe este apoio. Tinha certeza de que fora o
causador de suas tristezas e estava envergonhado como se houvesse cometido algum
ato repreen sível. Relutante, saiu do matagal. - - Há ocasiões em que um homem não
consegue esperar para fazer pipi - mentiu Jondalar, sorrindo sem graça.
Ayla ficou surpresa. Por que diria ele palavras que não correspondiam com a
verdade? Ela sabia o
que havia feito. Tinha se aliviado.
Um homem dos clãs, no caso de querer aliviar-se, para isso pediria até a
companheira do chefe. Se Jondalar não podia controlar a sua necessidade e se lá não
havia outra mulher, deveria ter-lhe feito o sinal, por mais feia que fosse ela. Nenhum
homem adulto se aliviava sozinho, Só adolescentes, que ti nham alcançado a maturidade
física e não haviam ainda matado o seu primei ro animal, pensariam em tal coisa. Mas
Jondalar, ao invés de fazer-lhe o sinal, preferiu resolver o seu problema sozinho. Ela
estava mais do que magoada. Sentia-se humilhada.
Ayla ignorou-lhe as palavras e evitou olhá-lo de frente- - Se quiser montar, eu fico
segurando Huiin, enquanto você sobe na pedra para poder passar a perna por cima do
seu lombo. Vou falar com Huiin que você quer dar uma volta. Talvez ela deixe.
Jondalar se lembrou que fora por isso que haviam interrompido a co lheita. O que
teria acontecido com o entusiasmo dele? Como poderiam as coi sas ter mudado tanto
durante esse pouco tempo que gastaram para ir de um lado ao outro do vale? Tentando
dar a impressão de que tudo continuava na mesma, subiu na pedra, enquanto Ayla trazia
a égua para perto. Ele tam bém evitava olhar diretamente para ela.
- Como você faz para Huiin entender a direção que está querendo ir?
Ayla teve de pensar um pouco antes de responder.
- Não sou eu quem faço Ruim ir numa determinada direção. Ela quer ir para onde eu
tenho vontade de ir.
- Mas como o animal sabe para onde você quer ir?
- Não sei.. . - realmente ela não. sabia. Nunca pensara nisso antes.
Jondalar resolveu desistir. Estava disposto a ir onde a égua o levasse, se é que ela
estivesse disposta a isso. Ele apoiou a mão sobre o fio do lombo de Ruim para se firmar
e com muita cautela montou.
Huimn empinou as orelhas. Sabia que não era Ayla. A carga estava mais pesada e
faltava aquela sensação imediata de comando dada pela tensão mus cular das coxas e
pernas de Ayla. Mas a mulher estava perto, segurando-lhe a cabeça e o homem não era
um desconhecido. Incerta, ensaiou curvetas, mas logo se acalmou.
- O que faço agora? - perguntou Jondalar, sem noção do que fazer com as mãos e
sentado sobre o animal, com as suas compridas pernas escan chadas, balançando no ar.
Ayla afagava Huiin, tranqüilizando-o. Depois, dirigiu-se a ele numa lín gua que era
um misto de gestos da língua clânica e palavras em zelandonii.
- Jondalar gostaria que você o levasse para um passeio, Huiin. - O tom instigador da
voz e as mãos exercendo uma leve pressão eram indicações sufi cientes para que o
animal, muito afmado com o comando de Ayla, se pusesse a andar. - Se você precisar
segurar, passe os braços ao redor do pescoço de Uuiin - aconselhou ela.
Acostumada a levar peso no seu lombo, a égua não deu pinotes, nem einpacou,
mas sem alguém para guiá-la, caminhava hesitante. Jondalar levou o corpo à frente para
acariciar-lhe o pescoço, pensando em tranqüilizar não só ela como a si próprio. O gesto
era parecido com o que Ayla fazia quando que ria apressar a andadura do animal. Um
súbito sacolejão fez com que Jondalar imediatamente seguisse o conselho de Ayla. Ele
se abraçou ao pescoço do ani mal com o corpo todo jogado à frente. Para Huiin, esse era
o sinal de correr.
O cavalo disparou num galope desenfreado pelo campo afora. Jondalar agarrava-se
ao seu pescoço com todas as forças. A sua longa cabeleira voava para trás. Ele sentia o
vento batendo forte contra o rosto. Quando, por fim, ousou abrir um pouquinho os olhos,
viu a terra passando por ele numa veloci dade vertiginosa. Era assustador e
emocionante! Entendia agora por que Ayla não soube descrever a sensação. Era como
deslizar por uma colina gelada no inverno ou como quando o imenso esturjão o havia
arrastado pelo rio acima. Os seus olhos foram atraídos por uma mancha indistinta
movimentando-se ao seu lado. Era o potrinho halo que corria emparelhado com a mãe.
Um assovio fino e penetrante chegou aos ouvidos de Jondalar. Imediatamente a égua fez
uma curva fechada e galopou de volta.
- Ei, sente-se direito! - gritou ela para Jondalar quando Huiin já estava mais perto.
Ele se sentou reto. A égua começou a diminuir a velocidade e veio num meio galope até
o bloco de pedra, onde parou.
Jondalar tremia ligeiramente ao desmontar, mas os seus olhos brilhavam excitados.
Ayla afagou os flancos suado.s de Huün que, em seguida, foi trotan do para a praia perto
da caverna. Jondalar e ela foram atrás.
- Você viu o potro correndo junto de Huiin o tempo todo? Ele é um verdadeiro
campeão!
1 4 410 411 Pelo modo como Jondalar falava, Ayla percebia que a palavra tinha um
certo sentido que ela não estava pegando.
- O que você quer dizer com campeão?
- Nas reuniões de verão há diversas modalidades de competições, mas as mais
emocionantes são as corridas - explicava ele. - Dentre os participan tes, há alguns
corredores que realmente se esforçam e estes, de alguma forma, acabam sempre sendo
campeões. A palavra, por extensão, passou a designar toda pessoa que luta para vencer
em alguma coisa, aquela que tem por objeti vo alcançar um determinado tipo de vitória. É
uma palavra de aprovação, de incentivo. - - dita como um elogio. O potrinho é um
campeão. Ele gosta de vencer.
Continuaram a caminhar. O silêncio, entre eles, foi ficando cada vez mais
constrangedor. Por fim, Jondalar, querendo romper o mutismo, pergun tou:
- Eu não entendi direito. Pensei que você não tivesse uma maneira de se comunicar
com Huiin. Quando eu sentei com o corpo reto, ela começou a diminuir a velocidade.
- Nunca havia pensado nisto antes. Foi só quando eu vi os dois se apro xirnarido é
que me ocorreu que você tinha de endireitar o corpo para Huiin parar de correr. Não
soube explicar isto antes. Só percebi naquele momento em que era preciso que
diminuísse a sua velocidade.
- Mas, neste caso, exïste uma maneira de você se fazer entendida pelo cavalo. São
sinais. . . certos tipos de sinais que você passa para ele. Será que o potrinho conseguiria
também aprender estes sinais?
Ao contornarem o penhasco na parte onde este fazia a ponta para den tro do rio,
encontraram Huiin rolando na lama da beirada do rio. Junto dela estava o potrinho de
pernas para o ar. Jondalar, sorrindo, parou para obser var, enquanto Ayla, de cabeça
baixa, continuou a caminhar. Ele a alcançou na subida da caverna.
- Ayla..
Ela se virou. Ele não soube como prosseguir.
- Ayla. . - eu. - eu gostaria de lhe dizer muito obrigado.
Essa era outra palavra que ela tinha certa dificuldade em compreender. A língua
clânica não possuía nenhuma expressão de sentido correspondente. Para ter a sua
sobrevivência garantida, os membros de cada um dos pequenos clãs dependiam tanto
uns dos outros que a ajuda mútua passou a ser um fato normal da vida. Dizer obrigado
seria o mesmo que uma criança agradecer à mâé pelos cuidados que tinha com ela ou
que a mã esperasse isto de seu fl lho. Favores ou presentes impunham obrigações.
Deviam ser retribuídos com algo da mesma espécie e valor que aquilo que fora dado ou
feito, e nem sempre eram recebidos com prazer.
412 Nos clãs, o que mais se aproximava do sentido de "obrigado" era um tipo de
gratidão que uma pessoa devia a outra que lhe era superior na hierar quia social. Como,
por exemplo - e este era ocaso mais comum - a gratidão que uma mulher sentia por um
homem que a dispensasse de algum serviço ou obrigação. A Ayla, pareceu que Jondalar
a estava agradecendo pelo passeio que dera no cavalo.
Jondalar, Huiin deixou que se sentasse no seu lombo. Por que você diz "muito
obrigado" para mim?
- Porque foi você quem me proporcionou este passeio, Ayla. E não é só isso. Eu
tenho que lhe agradecer por muito mais coisas. Você tem feito de mais por mim. - - você
me tratou e. - - - Será que o potro de Huiin iria agradecê-la por ela tomar conta dele? Por
que obrigado?
- Mas você salvou a minha vida.
- Eu sou uma curandeira, Jondalar - ela procurava lhe explicar que quando alguém
salva a vida de uma pessoa, essa dá em troca uma parte de seu espírito para o seu
salvador, que fica para sempre obrigado a protegê-la. De fato, as duas pessoas ficam
mais ligadas do que se tivessem nascidas gerrnanas. Mas ela era uma curandeira. Uma
parte do espírito de cada pessoa lhe tinha sido dada junto com o pedaço de dióxido de
manganês negro que carregava no seu amuleto. Ninguém estava obrigado a lhe dar mais
nada. - Não há por que agradecer, Jondalar - falou Ayla.
- Sei que não é necessário. Sei também que é uma curandeira, mas é importante
para mim que saiba como eu me sinto. As pessoas agradecem pela ajuda que recebem.
Diz-se muito obrigado por uma questão de corte sia. - - de costume.
Eles subiam o caminho da caverna um atrás do outro. Ayla não respon deu, mas o
comentário de Jondalar a fez lembrar-se de Creb lhe explicando que era falta de
educação olhar para além das pedras que delimitavam dentro da caverna a casa de um
homem. Ela havia tido mais dificuldade em apren der os costumes do que a língua dos
clãs. Jondalar, agora, lhe dizia que era costume as pessoas expressarem a gratidão que
sentiam uma pela outra, uma cortesia, mas isso a confundia ainda mais.
Como poderia ele querer expressar gratidão, quando há bem poucos instantes a
estava envergonhando? Se um homem dos clãs lhe tivesse demons trado tamanho
desprezo, ela deixaria de existir para ele. Ia ser muito difícil entender os costumes de
Jondalar. De uma certa forma ela percebia, mas nem por isso se sentia menos
humilhada.
Ele tentou romper a barreira que se levantara entre ambos. Deteve-a no momento
em que ela ia entrar na caverna.
- Desculpe-me se de algum modo a ofendi.
413 1 1 - Ofendi? Não entendo esta palavra.
- Acho que,por minha causa, você ficou zangada e se sentiu mal.
- Não. Eu não fiquei zangada, mas é verdade que me senti mal.
A admissão o deixou desconcertado.
- Perdoe-me - disse ele.
- Perdoe-me? Isso também é cortesia? Um costume? Isso não me faz sentir melhor,
Jondalar.
Ele passou a mão pelos cabelos. Ayla estava certa. Fosse o que fosse que havia
feito - e ele sabia que fizera alguma coisa - desculpas de nada adianta. vam. Também de
nada resolvia ele fugir da questão, evitando encarar o pro blema de frente, apenas por
estar com medo de criar novos embaraços.
Ela entrou na caverna, pôs de lado a sua cesta e atiçou a fogueira para começar a
preparar a refeição da noite. Jondalar a seguiu, colocou a cesta de le ao lado da dela,
puxou para perto do fogo uma esteira e se sentou para observá-la.
Ayla costumava usar algumas das ferramentas que ele lhe dera de pois de haver
cortado a corça. Na verdade gostava delas, mas para alguns tra balhos preferia servir-se
da faca sem cabo a que estava habituada e Jondalar via que ela a manejava - uma lasca
de sílex muito mais grossa do que as suas lâminas - com a mesma destreza que tinham
as pessoas habituadas às finas lâminas providas de cabo. Experimentado cortador de
sílex, julgava, avaliava e comparava os méritos de um e outro tipo. Não que um
instrumento fosse mais fácil de usar do que o outro, pois afinal toda faca afiada era capaz
de cortar. A questão é a enorme quantidade de sflex no estado bruto que cada um
desses instrumentos gasta na sua fabricação, além de que carregá-los não deixa também
de se constituir num outro problema..
Ayla se sentia nervosa com ele observando-a nos mínimos detalhes. Fi nalmente ela
se levantou e foi buscar camomila para fazer chá, esperando que isso a acalmasse e que
fosse um meio de desviar a atenção de Jondalar. Ele se deu conta de que mais uma vez
estava evitando enfrentar o problema. Resolveu criar coragem e abordar diretamente o
assunto.
- Você tem razão, Ayla. Pedir desculpas não significa muito, mas não sei que outra
coisa lhe possa dizer. Não sei o que fiz para deixá-la tão ofendi da assim. Diga-me, por
favor, por que se sentiu mal?
"Ele devia novamente estar falando palavras falsas. Seria possível que não
soubesse? Mas parecia realmente confuso." Ela baixou os olhos, desejan do que aquela
pergunta não tivesse sido feita. Já era ruim demais ter de sofrer semelhante humilhação.
Discutir o assunto, pior ainda. Mas a pergunta fora feita.
- Sinto-me mal porque.. . porque não sou aceitável - disse, sem erguer os olhos que
estavam fixos na cuia de chá em seu colo.
1 - O que você quer dizer com "não aceitável"? Não entendo.
"Por que fazia ele essas perguntas? Para que se sentisse ainda pior? Ayla encarou-
o. Jondalar tinha o corpo curvado para a frente. A postura e os olhos evidenciavam
sinceridade e falavam também de sua angústia.
- Nenhum homem dos clãs, tendo uma mulher aceitável por perto, pen saria em se
aliviar sozinho - ela corou com a confissão do próprio fracasso. Abaixou os olhos e ficou
olhando para as mãos. - Você estava cheio de neces sidade e assim mesmo fugiu de
mim. Ainda acha que eu não tenho motivos para me sentir mal?
- Você está dizendo que se sentiu ofendida por não ter eu.. . - ele jo gou o corpo
para trás, levantando os olhos para o teto. - Oh, Doni! Como po de você ser tão idiota,
Jondalar?
Ela o olhou surpresa.
- Achava que não queria ser incomodada, Ayla. Estava procurando res peitar a sua
vontade. O meu desejo era muito forte naquele momento. Não pude Mas todas as vezes
que eu a tocava, sentia o seu corpo estre mecer. Como pode pensar que um homem não
a ache aceitável?
Subitaniente foi.se fazendo o entendimento, derretendo o gelo em seu dolorido
coração. Jondalar a queria! Ele pensava que era ela quem não o que. ria! Novamente os
costumes atrapalhando. Costumes diferentes.
- Jondalar, bastava você ter feito o sinal.. Que importância tem o fato de eu querer
ou não?
- Claro que tem importância o que você quer. Você não. . - - ele ficou subitamente
vermelho - você não me quer? - o seu olhar se mostrava insegu ro, temeroso de uma
rejeição. Ela conhecia o sentimento. Apenas estava sur presa de vê-lo num homem. Mas
era algo que serviu para dissipar qualquer dú vida que ainda restasse e que fez despertar
uma onda de calor e ternura.
- Eu o desejo, Jondalar. Desejei-o desde a primeira vez que o vi. Na ocasião em que
estava doente, muito doente, quando ainda não sabia se iria viver, eu ficava olhando-o; e
sentia. - . dentro de mim crescendo esse senti mento. Mas você nunca fez o sinal para
mim - ela abaixou os olhos outra vez. Havia falado mais do que pretendia. As mulheres
clânicas eram mais su tis em seus gestos convidativos.
- E eu, todo esse tempo pensando. . . Mas que sinal é este de que você tanto fala?
lheres.
- Nos clãs, quando um homem deseja uma mulher, ele faz o sinal.
- Mostre.
Ela fez o gesto e corou. Normahnente não era um sinal feito por mu - Isso é tudo?
Basta que eu faça isso? E depois o que faz você? Espantado, ele viu Ayla levantar- se,
ajoelhar-se e se pôr à sua disposição.
414 415 - Você está dizendo que basta um homem fazer esse sinal para que a
mulher se ponha assim? Só isso e os dois já estão prontos?
- Um homem nunca faz o sinal se já não estiver pronto. E hoje, você es tava pronto,
não é?
Foi a vez dele corar. Havia se esquecido de que "estava pronto" e co mo! E também
do que tinha feito para se impedir de cometer uma violência. Teria dado tudo, então, para
saber desse sinal.
- E se a mulher não quiser o homem? Ou se ela ainda não estiver pronta?
- Quando o homem faz o sinal, a mulher tem de se colocar em posição - ela se
lembrou de Broud. O seu rosto anuviou-se com a lembrança de uma época marcada pelo
aviltamento de sua pessoa.
- Em qualquer momento, Ayla? - a expressão de sofrimento no rosto dela o fazia
pensar. .- Mesmo que seja a primeira vez para a mulher?
Ela confirmou com a cabeça.
- Foi assim que aconteceu com você? Algum homem lhe fez um sinal?
Ela fechou os olhos, engoliu em seco e tomou a confirmar.
Jondalar estava indignado e estupefato.
- Você está querendo dizer que não há ritos de passagem? Que não há ninguém
para tomar conta e impedir um homem de se exceder? Que espécie de povo é esse?
Será que eles não ligam para a primeira vez de uma menina? Que deixam qualquer
homem no auge de seu calor pegar uma inocente moci nha? Violentá-la, sem que ela
esteja ainda pronta? Pouco importando se vai ou não machucar? - ele se havia levantado
e andava furioso de um lado para outro. - É cruel! Desumano! Como pode alguém
permitir tal coisa? Será que não têm compaixão? Que absolutamente não se importam
com coisa alguma?
A explosão era tão inesperada que Ayla deixou-se ficar sentada, de olhos
arregalados, vendo-o cada vez mais exaltado em sua cólera esbravejante. Mas, então,
ela começou a abanar a cabeça, negando-lhe a veracidade das pala vras que se
tomaram extremamente insultuosas.
- Não! - disse por fim com voz firme. - Isso não é verdade, Jondalar. Eles se
importam sim! Iza me encontrou e tomou conta de mim. Eles meado taram. Trouxeram-
me para o clã, mesmo eu pertencendo a um outro povo. Eles não eram obrigados a me
aceitar e aceitaram. Creb não podia saber que Broud me machucava. Ele nunca teve
companheira. Não podia entender deste tipo de problema de mulher. Além disso, Broud
estava no seu direito. Quando fiquei grávida, lia cuidou de mim. Ela chegou a ficar doente
para conseguir um remédio de que eu precisava para não perder o meu filho. Se não
fosse l eu teria morrido quando o meu filho nasceu. E Brun aceitou a criança, apesar de
todos acharem que ela era deformada. Mas isso não é verdade. O meu filho é forte e
sadio. . . - ela se interrompeu, percebendo Jondalar olhan do-a fixamente.
- Você tem um filho? Onde está ele?
Ayla ainda não falara de seu filho. Apesar de já ter passado muito tem po, era-lhe
doloroso falar dele. Sabia que qualquer menção ao assunto acaba ria levantando
perguntas.
- É verdade. Eu tenho um filho. Ele ainda vive com os clãs. Quando Eroud me
obrigou a partir, eu o deixei com Uba.
- Obrigou-a a partir? Como assim? - perguntou Jondalar, voltando a sentar-se.
Então, Ayla tinha um filho. Ele estava certo quando imaginara que ela já havia estado
grávida. - Por que alguém obrigaria uma mulher a abando nar o seu filho? Quem é esse
Broud?
Como poderia ela explicar? Por um momento, fechou os olhos para pensar.
- Ele é o atual chefe. Antes dele, na ocasião em que fui encontrada, o chçfe era
Brun, o homem que deu licença para que Creb me incorporasse ao - clã. Mas Brun ficou
velho e passou para Broud o seu lugar de chefe do nosso clã. Broud sempre teve ódio de
mim. Já me odiava desde que eu era menina.
- Foi esse homem quem a machucou, não é?
- Quando eu me tornei mulher, lia me falou do sinal, mas ela me disse também que
os homens não costumam se aliviar com mulheres de que não gostam. Broud fazia isto
comigo porque sentia- se feliz com uma coisa que sa bia ser abominada por mim. Mas eu
tenho a impressão de que ele agia a man do do meu totem. O espírito do Leão da
Caverna sabia o quanto eu queria ter um filho.
- O que tem esse Broud a ver com o seu filho? A Grande Mãe Terra só abençoa
quando for de sua vontade. O seu filho foi do espírito dele?
- Para Creb, são os espíritos que fazem os bebês. Ele dizia que quando uma mulher
engole o espírito de um totem masculino, se esse for suficiente mente forte para vencer o
espírito do totem feminino e lhe retirar a força vi tal, uma nova vida começará a crescer
dentro da mulher.
- Essa é uma estranha maneira de tratar a questão. É a nossa Mãe que mistura o
espírito de um homem com o de uma mulher quando a Mãe deseja abençoar uma de
suas filhas.
- Eu não acredito que sejam os espíritos que fazem os bebês. Nem os espíritos dos
totens, nem nesta mistura de espíritos feita por essa sua Grande Mãe. Acho que a vida
começa porque um homem põe o seu órgão cheio den tro de uma mulher. É por isso que
os homens sentem tanta necessidade de se aliviarem e porque as mulheres querem tanto
os homens.
- Isso não pode ser, Ayla. Você sabe quantas vezes é possível um ho mem botar a
sua virilidade dentro de uma mulher? Ela jamais poderia ter ta manha quantidade de
filhos. Um homem faz uma mulher com a dádiva do prazer que lhe concede a Mãe. Ele
abre a mulher para que os espíritos possam E 1 416 417 entrar. Mas a dádiva da vida, a
mais sagrada de todas as dádivas da Mãe, essa só é concedida às mulheres. S vocês
que recebem os espíritos, criam vida e se tomam mães, do mesmo jeito que a Grande
Mãe Terra. O homem que nun ca deixa de honrá-la, que sabe ser reconhecido pelas
dádivas que lhe são con cedidas e que assume o compromisso de cuidar de uma mulher
com os seus fi lhos, o espírito dele, Doni talvez escolha para as crianças nascidas em sua
casa.
- O que é a dádiva do prazer?
- Ah, então é isso! Você nunca conheceu os prazeres, não é? - falou Jondalar,
espantando-se quando pensou na idéia. - Não é de admirar que não entendesse quando
eu. . . Bom, Ayla, você é uma mulher que foi abençoada com um filho sem ter conhecido
os primeiros ritos. Esses cI de que você tan to fala são muito estranhos. Em toda a minha
vida nunca encontrei uma pes soa que não tivesse conhecimento da Mãe e de suas
dádivas. A dos prazeres, Ayla, é concedida quando um homem e uma mulher sentem que
se querem e se entregam um ao outro.
- Quando um homem está cheio e precisando aliviar as suas necessida des, não é
assim? É isto que você chama de dádiva do prazer, quando o ho mem pôe o seu órgão
no lugar por onde passam os bebês? - disse ela.
- É. Mas não é só isto, existem mais coisas.
- Pode ser. Mas todo mundo dizia que por causa do meu totem forte demais não
poderia ter filho e eu tive. Não houve quem não ficasse surpreso. E o meu filho não
nasceu defeituoso. O que acontece é que ele tem alguns tra ços meus e outros da gente
dos clãs. Agora veja bem, Jondalar: eu só fiquei grávida depois que Broud começou a
fazer o sinal para mim. Nenhum homem me queria. Eu sou muito grande e feia. Nem
mesmo na reunião dos cia en contrei um homem que me quisesse tomar, apesar de que
fosse reconhecida como filha de lia e tivesse o conceito dela.
Qualquer coisa na história de Ayla começava a inquietar Jondalar, sem que ele
pudesse atinar por quê.
- Você disse que foi encontrada por uma curandeira. - qual é mesmo o nome dela?
Iza, não? Onde ela a encontrou? De onde você vinha?
- Eu não sei. lza falava que eu pertencia aos Outros. . - de outras pes soas
parecidas comigo. Como você, Jondalar. Tudo que sei de mim é depois de já estar
vivendo no clã. Da minha vida anterior eu não tenho qualquer lem brança. Nem mesmo
de minha mãe eu me lembro. Você é o único homem que já vi parecido comigo.
Enquanto ouvia, Jondalar sentia o estômago revolvendo-se.
- Na reunião dos ciãs, uma mulher me contou uma história sobre um homem dos
Outros. Eu passei a ter medo deles até que, então, eu o conheci, Jondalar. Essa mulher
era mãe de um bebê, uma menina muito parecida com Durc. Poderia até ser minha filha.
Oda queria arranjar o meu filho para com- panheiro de sua filhinha. Eles, no clã dela,
também diziam que o seu beb€ era defeituoso, mas a minha opinião é que o seu bebê foi
formado quando um homem dos Outros forçou Oda. le quis aliviar as suas necessidades
nela.
- O homem forçou a mulher?
- E também matou uma filha que ela já tinha. Oda estava na compa nhia de mais
duas mulheres quando surgiram vários homens dos Outros. Mas eles não fizeram o sinal.
Quando um deles agarrou Oda, a filhinha dela caiu e bateu com a cabeça numa pedra.
De repente Jondalar lembrou-se do grupo de rapazes pertencentes a uma Caverna
em terras do oeste. Ele não queria tirar conclusões apressadas, mas se havia uma turma
daquele tipo, por que não haveria outras?
- Ayla, você está a todo instante dizendo que não se parece com a gen te dos ciãs.
Por quê? Como são essas pessoas diferentes de você?
- Elas são bem mais baixas. Daí eu ter ficado tão espantada quando vo cê e
levantou. Eu sempre fui mais alta do que qualquer pessoa. Inclusive mais alta que os
homens. Por isso eles não me quiseram. Sou alta demais e também muito feia.
- E o que mais? - ele não queria perguntar, mas não conseguia impe. dir.se.
Precisava saber.
- Os olhos são castanhos, lia achava que havia qualquer coisa de errado com os
meus por eles serem da cor do céu. Durc saiu com os olhos deles e as - não sei como
explicar. As sobrancelhas são grossas, mas a testa de meu filho é igual à minha. As
cabeças são mais chatas...
- Cabeças-chatas! - disse Jondalar com os lábios se contraindo numa careta de
nojo. - Nossa Mãe, Ayla! Você esteve vivendo com esses animais! Você deixou que um
daqueles machos. - . - ele teve um estremecimento. - Você é mãe de uma aberração,
nascida da mistura de espíritos. . - meio huma no, meio animal! - como se tivesse tocado
em alguma coisa repelente, ele deu um salto, recuando com o corpo. Era uma reação
preconceituosa, baseada em pressupostos cruéis e irracionais, nunca questionados pelas
pessoas de seu meio.
Ayla, de início, não compreendeu. Olhava para Jondalar, espantada, franzindo o
rosto. Mas lhe via a expressão de repugnância, igual à dela quando pensava em hienas.
Subitamente, as palavras ganharam sentido.
Animais?! Ele estava chamando as pessoas que ela amava de animais? Então o seu
adorável e bondoso Creb - que dentre os sagrados homens dos clãs era simplesmente o
mais temido e poderoso de todos - não passava de um animal? E lia, que a tinha criado,
lhe servido de mãe e ensinado o seu ofí cio, também Iza não passava de uma hiena
fedorenta? E Durc?! O seu filho?
- O que você quer dizer com animais? - falou Ayla gritando, de pé, en carando-o.
Nunca antes havia levantado a voz. Ela própria se surpreendia com 419 418 o seu
volume e a agressividade com que falava. - Então Creb e lia são ani mais? O meu filho,
metade bicho, metade gente? As pessoas dos clffs não pas sam de hienas fedorentas?
"Por acaso animais costumam recolher uma menina que estava à beira da morte?
Iriam aceitá-la em seu meio? Iriam tratar desta criança e criá-la? Onde você acha que eu
aprendi a achar alimentos? E a cozinhar, quem você pensa que me ensinou? Onde
poderia eu ter aprendido o meu ofício de curan deira? Se essas pessoas fossem animais,
hoje eu não estaria viva, e nem você também, Jondalar.
"Você diz que as pessoas dos clffs são animais e que os Outros são hu manos, não
é? Pois então lembre-se disto: esses animais salvaram uma criança dos Outros,
enquanto que esses que você diz que são humanos mataram uma das deles. Se eu
tivesse de escolher entre os dois, ficaria com os que você cha ma de hienas fedorentas.
Ela saiu intempestivamente da caverna e desceu à praia, onde assoviou chamando
Huiin.
24 Jondalar estava estarrecido. Ele acom panhou-a e se pôs a observá-la do
patamar. Com um salto acrobático, ela pu lou no lombo da égua e saiu galopando pelo
vale. O fato de Ayla ter sido sem pre uma pessoa serena e dócil tornava ainda mais
surpreendente aquele súbito rompante de cólera.
Por outro lado, Jondalar sempre se acreditara justo, sem preconceitos em relação
aos cabeças- chatas. Achava que se devia deixá-los em paz e, tanto quanto possível,
evitar incomodá-los. Jamais matada um deles propositalmente. Mas a idéia de um
homem usando uma fêmea de cabeça-chata para os seus prazeres ofendia-lhe a
sensibilidade, e o contrário, que um macho pudesse fa zer a mesma coisa com uma
mulher, era algo de impensável que resolvia to dos os nervos de seu corpo. Era a
profanação da mulher.
E ele que tanto a desejara. Lembrando-se das histórias contadas entre risadinhas
por garotos e rapazes, sentiu um aperto nas virilhas, como se tivesse sido contaminado e
o seu membro já estivesse murchando e caindo de podre. Por alguma especial graça da
Grande Mãe, ele fora poupado.
E pior ainda, ela parira uma aberração, uma cria de espíritos malignos. Coisa que,
entre pessoas decentes, era imprópria até para falar. A própria exis tência de um ser
desses era veementemente negada por alguns, apesar dos in sistentes falatórios a
respeito.
Ayla, certamente, jamais negada a sua história. Ali ficara de pé, admi tindo com toda
a franqueza, defendendo o seu filho. . tão veementemente como qualquer mãe que visse
o seu filho caluniado. Ela se sentira insultada, furiosa por ele ter falado em termos
depreciativos. Teria realmente sido criada por um bando de cabeças-chatas?
Ele havia encontrado alguns durante a viagem. Chegara mesmo a se per guntar se
de fato seriam animais. Houve inclusive aquele incidente com o ma cho e a fêmea mais
velha. Agora, voltando a pensar na coisa, a faca que o ma cho tinha usado para cortar a
sua batida de peixe não era igual à de Ayla? E a mãe dele? Ela usava um couro enrolado
no corpo, tal como Ayla. Tinha até os mesmos maneirismos de Ayla. Principalmente no
princípio, com aquela sua mania de olhar para o chão, como se querendo esconder-se
dele. As peles na cama dela tinham a mesma textura que a pele de lobo que lhe haviam
empres tado. E a lança! Aquela lança pesada e primitiva de Ayla não era igual àquelas
carregadas pelo bando de cabeças-chatas que ele e Thonolan encontraram na saída 4a
éeleira?
Dufante todo esse tempo estava tudo ali, bem à sua frente. Bastava ele ter olhado.
Por que teria inventado essa história de Ayla ser uma servidora da Mãe? De alguém que
se estava pondo à prova para aperfeiçoar-se em suas vir tudes? Será que Ayla teria de
fato aprendido o seu ofício com uma curandeira cabeça-chata?
Ele a via cavalgando ao longe no vale. Ela esteve magnífica em sua raiva. Ele
conhecera muitas mulheres que, por qualquer razão, levantavam a voz. Marona era uma.
Podia ser uma verdadeira megera de voz estridente, briguen ta e mal-humorada,
lembrou-se pensando na mulher à qual fora prometido. Eram pessoas voluntariosas que
tinham um tipo de força que o atraía. Ele gos tava de mulheres fortes. Constituíam-se
num desafio. Sabiam manter-se firmes e não se curvavam facilmente quando ele tinha
um de seus rompantes de rai va, por sinal agora rarôs. Em Ayla, apesar de sua
serenidade, suspeitava um in terior de ferro. "Lá está ela no seu cavalo", disse para si
mesmo. "Uma mu lher notável. . - linda.”
Subitamente, como se tivesse recebido um jato de água fria, ele se deu conta do
que fizera. O sangue fugiu-lhe do rosto. Afmal, Ayla havia salvo a sua vida e ele a repeliu
como algo asqueroso. Apagara com uma sórdida repul sa os cuidados que lhe foram
dispensados generosamente. Havia chamado o seu filho de aberração, uma criança que
sem dúvida ela amava. Sentia-se mor tificado por tanta insensibilidade.
420 421
Ele entrou na caverna e se atirou na cama. Na cairia dela. Esse tempo to do havia
dormido na cama da mulher que acabara de vilmente desprezar.
- Oh, Doni! - gritou. - Como foi me deixar fazer isso? Por que não veio em meu
socorro? Por que não me impediu?
Enterrou a cabeça nas peles, sentindo-se um desgraçado, de uma manei ra como
há muito tempo não sentia. Pensava que isso já não fosse mais acon tecer-lhe. Havia
agido sem pensar, tal como fazia quando era um rapazinho. Será que nunca iria
aprender? Por que não usara de discrição? Logo estaria indo embora. A sua perna já
estava curada. Por que não se tinha controlado até o momento de partir?
Com efeito, o que estava ele fazendo ainda ali? Por que já não teria agradecido a
ela e se mandado? Nada mais o impedia. Por que tinha ele de ficar lá e crivá-la com
perguntas sobre coisas que não eram de sua conta? Então po deria lembrar-se dela no
futuro como a bela e misteriosa mulher que vivia so zinha num vale. A mulher que
encantava animais e lhe salvara a vida.
"Ora, Jondalar, porque você bem sabe que não consegue resistir a uma bela e
misteriosa mulher.
"E por que tudo isto o estava incomodando tanto? Que diferença fazia se ela tinha
vivido com cabeças-chatas?
"Porque queria essa mulher, Jondalar, e depois pensou que ela não fosse bastante
boa para você, por ter ela. - . permitido..
"Que imbecil! Você não ouviu? Ela não permitiu. Foi violentada. Não teve ritos de
passagem. E você a culpa! Ela estava lhe contando, abrindo-se com você e aliviando a
sua dor e, então, o que faz você, seu idiota?
"Você é pior do que o cabeça-chata, Jondalar. Pelo menos esse ela sabia como ele
se sentia. Ele a odiava, Só pensava em feri-la. E você? Ela confiava em você. Ela lhe
disse como se sentia a seu respeito. Você, Jondalar, que quis tanto essa mulher, só não
a teve por medo de ver o seu orgulho ferido.
"Se prestasse mais atenção a ela e não se preocupasse tanto com você, deveria ter
reparado que Ayla não se comportava como uma mulher experien te. Agia como uma
mocinha amedrontada. Será que já não teve muitas gaio- tinhas em sua vida para saber a
diferença?
"Só que Ayla não se parece com uma mocinha amedrontada. Não. Ela é
simplesmente a mulher mais linda que você já viu. Tão bela, tão inteligente e tão segura
de si que ficou com medo de se ver recusado. Você, o grande Jon dalar, o querido de
todas as mulheres! Mas pode estar certo de que ela não vai querer mais saber de você.
"E você a pensar que ela fosse uma mulher segura, quando nem mesmo sabe que é
bonita. Pensa realmente que é grande demais e feia. Como pode a!. guém achá-la feia?
"Você se esqueceu de que ela cresceu entre cabeças-chatas? Quem pode.
422 ria imaginar que eles se dessem conta da diferença que existe entre eles e nós?
Mas quem poderia imaginar também que eles fossem criar uma menina? Será que nós
faríamos o mesmo com uma criança deles? Quantos anos teria, então, Ayla? Devia ser
muito novinha. A cicatriz na perna é antiga. Deve ter sido pa voroso. Imagine, perdida
sozinha nesse mundo e ainda ferida por um leão.
"E tratada por cabeças-chatas! Como é que um cabeça.chata poderia sa ber tratar
de alguém? Mas Ayla é uma ótima curandeira e aprendeu com eles. Tão boa que chegou
a pensar que ela fosse uma servidora da Mãe. Você devia, Jondalar, era trocar o seu
ofício de ferramenteiro pelo de contador de lorotas. Não quis enxergar a verdade clara
diante de seus olhos. Mas, agora, que sabe da história, isso faz alguma diferença? Você
está menos vivo porque ela apren deu o seu ofício com cabeças- chatas? É ela menos
bonita porque. - . pariu uma aberração? Mas o que faz com que o filho dela seja uma
aberração da na tureza?
'Você ainda quer essa mulher, Jondalar.
"Tarde demais. Ela nunca mais iria acreditar e confiar em você." Ele se viu invadido
por uma nova onda de vergonha. Com as mãos fechadas, pôs-se a dar murros nas peles.
"Seu idiota! Oh, seu estúpido, estúpido idiota! Você estragou tudo, seu cretino. Por que
não vai embora?”
'Porque não pode. Você vai ter de enfrentá.la, Jondalar.
"Você não tem roupas, não tem armas, não tem comida. Você não pode viajar de
mãos abanando.
"Onde vai conseguir víveres? E todas as outras coisas? Esse lugar é de Ayla. Terá
de conseguir com ela. Pelo menos alguns pedaços de sílex terá de lhe pedir. Se tiver
ferramentas, você poderá fazer algumas lanças. Só assim po derá caçar para ter comida,
peles e roupas. E também fazer um saco de dormir e um baú para carregar as coisas.
Mas isso tudo leva tempo. Depois, um ano viajando ou até mais.. . vai ser triste sem
Thonolan.”
Ele enterrou-se no meio das peles. "Por que Thonolan teve de morrer? Por que
aquele leão não me matou no seu lugar?" As lágrimas se comprimiam nos cantos de seus
olhos. "Thonolan não teria agido tão estupidamente como eu. Queria saber onde fica
esse desfiladeiro. Pobre irmão. Espero que um ze landonii o tenha ajudado no seu
caminho para o outro mundo. É horrível pensar que os seus ossos estejam por aí
jogados, roídos pelas feras.”
O barulho de cascos vindo da direção do caminho da praia o fez pensar que Ayla se
aproximava. Era apenas o potrinho. Ele se levantou, saiu para o patamar, e ficou olhando
o vale embaixo. Ayla não estava à vista.
- O que há, meu amiguinho? Você ficou para trás? A culpa é minha, mas elas logo
vão estar de volta. . . não por mim, mas por você. Além disso, Ayla vive aqui. . - sozinha.
Há quanto tempo já estaria morando nesse lugar? Só, sem ninguém. Não sei se eu
conseguiria fazer o mesmo.
423 "AÍ está você, chorando pela sua imbecilidade, e olhe só pelo que ela tem
passado. E não está chorando. £ uma mulher fantástica. Linda. Esplêndi da. E você,
Jondalar cretino, perdeu tudo isso, Oh, Doni, daria tudo para po der endireitar as coisas.”
Jondalar estava enganado. Ayla chorava. Chorava de uma maneira como nunca o
fizera. Mas o seu choro não a fazia menos forte, apenas a ajudava no so frimento. Ela
pusera Huiin para galopar até que o vale tivesse ficado muito para trás. Então parou na
curva de um rio que era tributário do outro perto da caver na, O terreno na parte interna
da curva freqüentemente se via inundado pelas enchentes que deixavam uma camada de
aluvião fazendo uma fértil base para as plantas que cresciam lá. Era um lugar onde ela
costumava caçar ptárrnigas, além de outros tipos de galináceos e animais que iam desde
a marmota até gi gantescos cervos que iam para aquela área de irresistível verdume.
Ela deu a volta com a perna por cima do lombo de Huiin e apeou. Be beu um gole de
água e lavou o rosto sujo, riscado de lágrimas. Sentia-se como se estivesse acordando
de um pesadelo. O dia inteiro se constituíra numa sé rie estonteante de altos vertiginosos
e baixos angustiantes, em vôos e mergu lhos cada vez mais extremados. Achava que
não conseguiria agüentar mais nada, fosse numa ou noutra direção.
A manhã tinha começado bem. Jondalar insistira em ajudá-la a colher cereais e ela
ficara surpresa com a sua rapidez para aprender. Tinha certeza de que era a primeira vez
que ele fazia aquele trabalho, mas bastou mostrar lhe para que, imediatamente, pegasse
o jeito. No entanto, melhor do que o par extra de mãos para ajudá-la, era a companhia.
Mesmo que não se falas sem, a presença dele ao seu lado a fazia sentir o quanto estava
saudosa do convívio de pessoas.
Depois, houve um ligeiro desentendimento. Nada sério. Ela queria con tinuar
colhendo e ele parar. O odre havia ficado vazio. Quando voltou do rio, percebeu a
vontade dele de montar em Huiin. Havia pensado que isto pode ria conservá-lo mais
tempo no vale. Jondalar gostava do potro e, se
tivesse prazer em montar, era possível que permanecesse até o filhote de Huiin fi
car maior. Imediatamente aceitara o seu oferecimento. Então ficaram muito alegres e se
puseram a rir. Desde que Neném fora embora que ela não ria tan to. Adorava as risadas
de Jondalar. Só de ouvi-las já ficava com outro ãnimo.
"Depois, ele tocou em mim", pensou. "Ninguém nos clãs tinha aquele jeito de tocar,
pelo menos fora das fronteiras de pedras de suas casas. De noi te, talvez. Afinal,
ninguém sabe o que um homem faz com a sua companheira debaixo das peles. Era bem
possível que até tocassem nas mulheres como Jon dalar. Será que todos os Outros
fazem isso do lado de fora de suas casas? Eu gostei de ser tocada. Por que teria fugido?”
•424 Quando ele se aliviou sozinho, ela teve vontade de morrer, tanta era a sua
vergonha. Estava certa de ser a mulher mais feia do mundo. Depois na ca verna, ele
disse que a queria, que pensava que era ela quem não o quisesse. Quase chorou de
tanta felicidade. Pelo modo como ele a olhava, percebia a sua paixão ir em crescendo,
num sentimento de desejo e atração cada vez mais forte. Havia ficado tão zangado,
ouvindo-a falar de Broud, que ela chegou a se convencer, naquele instante, de que era
amada. "Quem sabe se numa outra vez quando estiver precisando aliviar-se. - Mas nunca
se esquecerá da maneira como Jondalar a olhou. Parecia que ele estava diante de um
pedaço de carne nojenta e podre. Chegou até a estre mecer-se.
"Iza e Creb não são animais! São pessoas. Pessoas que me amavam e que
cuidaram de mim. Por que Jondalar os odiaria tanto? A terra havia sido antes deles. A
espécie de Jondalar. - - a minha espécie veio depois. Será que é assim a minha gente?
"Dou graças por ter deixado Durc com o clã. Poderiam pensar que ele é deformado.
Broud pode odiá-lo por ser meu filho, mas nunca ele será tratado como animal. - - como
uma aberração. Foi essa a palavra usada e ele não pre cisava explicar o significado para
mim.”
As lágrimas voltaram-lhe aos olhos. "Meu bebê, meu filhinho. . - você não é
deformado. É forte e saudável. E tampouco é animal ou. . . aberração.”
"Como poderia ele ter mudado tão depressa? Estava olhando para mim com os seus
olhos azuis, olhando. - - e, então, deu um pulo como se eu fosse queimá ou como se eu
fosse um daqueles espíritos malignos com nomes conhecidos só pelos mog-urs. Chega a
ser pior do que uma maldição de morte. Na maldição, as pessoas apenas se afastam e
deixam de me enxergar, como se eu já estivesse morta e não pertencesse a este mundo.
Mas não olham para mim como se eu fosse. . . uma aberração?' - O sol abaixava no céu,
trazendo o frio da tarde. Mesmo no mais quente do verão, fazia frio nas estepes durante a
noite. Na sua roupa de verão, ela tre mia. "Se eu tivesse me lembrado de trazer a barraca
e peles. . . Não. Huiin fi cana indócil por causa do potro. Além disso, ela precisa de dar de
mamar pa ra ele.”
Ayla se levantou para voltar. Huiin ergueu a cabeça da relva e veio tro tando na sua
direção, espantando, no caminho, um casal de ptármigas. A rea ção de Ayla foi quase
incontinenti. Ao mesmo tempo que puxava a funda da cintura, se abaixava para pegar
pedras. Os pássaros mal haviam saído do chão, quando voltaram a cair, um depois do
outro. Ela foi buscá-los e procurar pelo ninho. Mas nisso, parou.
"Ora, para que estou querendo ovos? Será que vou fazer o prato predi leto de Creb
para Jondalar? Por que iria eu cozinhar para ele? Principalmente 425 1 esse prato, o de
que Creb mais gostava?" Mas, ao dar com o ninho - um pe queno buraco na terra onde
encontravam sete ovos - ela encolheu os om bros e os pegou com cuidado.
Depositou-os ao lado das ptármigas, perto do rio, e foi pegar a palha de algumas
plantas que cresciam na beirada da água. Em poucos instantes teceu uma cesta que,
depois de usada para carregar os ovos, seria jogada fora. Apro veitou também a palha
para amarrar as patas do casal de pássaros. Os seus pés já começavam a se revestir de
uma plumagem mais espessa que faria para eles um sapato de inverno.
Inverno. Ela estremeceu. Não queria pensar nisso. Seria frio e triste. Mas o inverno
nunca estava inteiramente fora das cogitações. O verão era apenas o tempo de se
preparar para ele.
E Jondalar estava indo embora. Ela sabia disso. Uma idiotice pensar que fosse ficar
no vale. Por que iria? Se ela tivesse um povo, ficaria? Sem ele, ago ra seria muito pior. - .
mesmo tendo olhado para ela daquela maneira.
- Por que teve Jondalar de aparecer na minha vida?
Ela se assustou com a sua própria voz. Não estava acostumada a se ouvir falando
sozinha.
- Mas agora eu posso falar. Pelo menos isso Jondalar fez por mim. Se eu encontrar
pessoas vou poder conversar. E eu sei que existe muita gente vi vendo a oeste daqui. Iza
tinha razão. Deve haver uma quantidade de gente, um mundo de Outros.
Ela colocou as ptármigas no lombo de Huiin, pendurando uma de cada lado, e
ajeitou a cesta de ovos entre as coxas. ". . . Eu venho dos Outros.
'Encontre um companheiro', me dizia Lza. Pensei que Jondalar tivesse sido en viado
para mim pelo meu totem. Mas alguém enviado pelo meu totem me olha ria daquela
maneira?”
- Como pôde ele ter olhado assim para mim? - gritou em meio a um profundo e
sentido soluço. - Oh, Leão da Caverna, eu nunca mais quero ficar sozinha. - . - ela se
deixava levar pela égua, com o corpo mole, desolada, no vamente abandonando-se Às
lágrimas. I-luiin reparava na falta de comando, mas não tinha importância. Sabia o
caminho. Passado algum tempo, Ayla en direitou o corpo. - Ninguém vai me fazer ficar
aqui. Já devia há muito tempo estar procurando por gente. Agora eu posso falar. Posso
dizer às pessoas que Huiin não é um cavalo para ser comido - continuava ela a falar em
voz alta. - Vou estar com tudo preparado e na primavera que vem eu parto - sabia que
desta vez não iria protelar a sua saída do vale.
"Jondalar ainda não está indo embora. Ele vai precisar de roupas e ar- mas. Talvez
esteja aqui para me ensinar, a mando do Leão da Caverna. Neste caso, eu tenho de
aprender tudo, antes que ele vá embora. Vou ficar obser vando-o, fazendo-lhe perguntas.
Estou pouco ligando para o seu jeito de me olhar. Nesses anos todos que eu vivi no clã,
Broud não deixou um dia de me odiar. Saberei agüentar, mesmo Jondalar... me odiando."
Ela fechou os olhos, querendo reprimir as lágrimas.
Então, lembrando-se do que Creb lhe dissera há muito tempo, segurou no amuleto:
"Quando você encontrar um sinal enviado pelo seu totem, guar de-o no amuleto. Isso lhe
trará sorte." E estavam todos eles ali guardados den tro daquele saquinho. "Oh, Leão da
Caverna, tenho estado tão sozinha nesses anos todos! Ponha um pouco de sorte no meu
amuleto.”
O sol já se pusera atrás da garganta na montante do rio, quando ela che gou ao
vale. Dentro de pouco tempo estaria escuro. Jondalar viu-a e correu para a praia. Ayla
havia instigado l-Iuiin a galopar e por um triz não esbarrou nele na curva do penhasco.
Por pouco não caiu, com o susto da égua. Jondalar quis ampará-la, mas retirou
rapidamente a mão ao tocar-lhe no corpo nu. Es tava certo de que ela o desprezava.
"Ele me odeia", pensou Ayla. "Não suporta nem tocar em mim." Ela engoliu um
soluço e ordenou que Huíin prosseguisse. O cavalo atravessou a praia cascalhenta e
subiu para a caverna com Ayla montada. Na entrada, apeou e correu para dentro,
desejando ter um outro lugar para ir. A sua vonta de seria esconder-se. Deixou os ovos
perto da fogueira e apanhou um monte de peles, que levou para a área onde tinha os
seus mantimentos. Botou as pe les em meio às cestas, esteiras e bacias e se meteu
dentro delas com a cabeça coberta.
Momentos depois ouviu o barulho do casco de l-Iuiin seguido pelo do potro. Estava
tremendo, lutando contra as lágrimas e toda ouvidos para os movimentos de Jondalar
dentro da caverna. Queria que ele saísse para poder chorar.
Jondalar aproximou-se. Ela sabia que ele estava lá, embora não lhe ou visse o
barulho dos passos de pés descalços pisando no chão de terra.
- Ayla - chamou ele.
Ela não respondeu.
- Ayla, eu lhe trouxe um pouco de chá.
Ela se mantinha imóvel.
- Ayla, você não precisa vir para cá. Eu me mudo para o outro lugar da fogueira.
"Ele me odeia. Não suporta nem ficar perto de mim", pensou ela.
- Sei que isso de nada adianta, mas eu preciso falar com você. Perdoe me, Ayla.
Não tenho palavras para expressar o quanto estou sentido. Você não merecia o que eu
fiz. Não precisa me responder, mas eu tenho que falar, Ayla. Você sempre foi honesta
comigo. Para mudar um pouco, já é tempo de eu também me mostrar franco e leal com
você.
427 426 "Não faço outra coisa senão pensar desde que você saiu com Huiiri. Não
sei por que eu fiz. . . enfim, agi daquela maneira, mas vou ver se consigo expli car.
Depois do ataque daquele leão, quando eu acordei aqui, não tinha noção de onde me
encontrava. Não entendia por que você não falava comigo. Você era um mistério. Que
estaria uma moça fazendo aqui sozinha? Foi então que comecei a inventar uma história a
seu respeito. Imaginei que fosse uma zelan doni que se estava submetendo a um tipo de
provação. . - que fosse uma mu ler sagrada atendendo ao chamado da Mãe. Quando me
vi recusado nas gros seiras tentativas que fiz para compartilhar dos prazeres com vocé,
pensei que a abstinência fosse também uma das provas que se havia imposto. Passei, en
tão, a formar uma idéia de que os clãs se constituíam num estranho grupo de zelandoni
do qual você fazia parte.
Ayla, apesar de que ainda permanecesse imóvel, havia parado de tremer e
escutava.
- Eu só pensava em mim, Ayla - ele se agachou, sentando-se sobre as pernas. - Não
sei se você vai acreditar, mas eu. - - bom, sempre fui considera do como. - . digamos, um
homem atraente. Era eu quem escolhia as mulheres e no seu caso me vi rejeitado. Não
estava acostumado a isso. Sentia o meu or gulho ferido e não queda admitir a
possibilidade de uma reõusa. Acho que foi por isso que inventei essa história sobre você.
Precisava me dar uma desculpa, já que parecia não querer nada comigo.
"Mas se eu tivesse prestado mais atenção, veda que você não era ne nhuma mulher
vivida que estava me rejeitando e sim qualquer coisa como urna mocinha antes de seus
primeiros ritos.. - insegura, um pouco amedronta da e querendo agradar. Se alguém tinha
de saber disso, seria.. - bom, não in teressa.
Ayla afastou as cobertas e tão grande era a sua tensão que escutava as batidas de
seu coração.
- Tudo que via era Ayla, uma mulher feita. Acredite em mim, você tem uma
aparência muito diferente da de uma menina. Achei que brincava comigo quando me
disse que era grande e feia. E estava falando sério, não é? Real mente você se acha
assim. Talvez para os cabe. - para as pessoas que a cria ram, você fosse muito alta e
diferente. Mas Ayla, precisa saber que não é gran de e nem feia. Você é linda. A mulher
mais linda que já vi em toda a minha vida.
Ela se havia virado e estava sentada.
Eu? Linda? - falou. Mas subitarnente, sem acreditar nas palavras de le, se meteu por
entre as peles, temendo outra vez ser magoada. - Você está zombando de mim.
Jondalar estendeu a mão para tocar nela, mas desistiu, tomando a abai. xá4a.
- Você tem razão em não querer acreditar em mim. Principalmente de pois. . - de
hoje. Mas eu tenho que aceitar isso e tentar assim mesmo expli car. E difícil que alguém
possa imaginar todas essas coisas por que você tem passado. Órf criada por. - - pessoas
diferentes, separada do filho, e por fim obrigada a abandonar o único lar que conheceu
para vir morar aqui sozinha. Isso é uma provação que nenhum servidor da Mãe seria
capaz de imaginar. Poucas pessoas conseguiriam sobreviver à vida que teve. Você, Ayla,
tem um espírito forte, O seu interior é forte, mas vai precisar ser mais forte ainda. Você
tem de saber o que pensam as pessoas sobre esse povo a quem dá o no me de clãs. E
eu pensava como todo mundo, também achava que se tratassem de animais.
- Não são animais!
- Mas eu não sabia, Ayla. 1-lá gente que tem ódio desses clãs de que vo cê fala. Eu
não sei por quê. Quando penso sobre isso, vejo que animais, isto é, animais de verdade,
daqueles que caçamos, não são odiados. Talvez seja por que no fundo de seus
corações, Ayla, as pessoas sabem que os cabeças-chatas - . - é assim que os
chamamos, sejam humanos. Eles são tão diferentes que chegam a ser assustadores. - -
ou, quem sabe, ameaçadores. Mas, mesmo assim, alguns homens violentaram mulheres
cabeças-chatas para terem os seus praze res com elas. Nem sei se seria justo falar deste
modo, talvez melhor seja como você diz: "aliviar as necessidades". Não posso entender
por que se fala deles como animais, principalmente sabendo que há misturas de espíritos
e que crianças nascem...
- Você tem certeza de que são espíritos? - perguntou Ayla. Ele falava com tanta
certeza que era possível que tivesse razão.
-, Seja o que for, você não é a única, Ayla, que teve um filho nascido da mistura de
gente com cabeça-chata, apesar das pessoas não falarem. - - Eles são clánicos e
humanos - interrompeu ela.
- Você vai ouvir muitas vezes essa palavra, Ayla. E bom que saiba. Também deve
saber que um homem violentar uma mulher "clânica" não é um ato tão pavoroso quanto
seria o da mulher que compartilha dos prazeres com um macho cabeça-chata. Isso, para
muita gente, é indesculpável.
- Uma aberração?
Jondalar ficou pálido, mas não recuou.
- E, Ayla, uma aberração.
- Eu não sou uma aberração - falou ela, corada. - E Durc também não é uma
aberração. Não gostava do que Broud fazia comigo, mas aquilo não era uma aberração.
Se fosse um outro homem quem tivesse feito, que estivesse querendo apenas aliviar
suas necessidades e não fazendo por ódio, eu teria aceitado como qualquer mulher dos
clãs; Se pudesse eu teria ficado com eles. Mesmo na qualidade de segunda mulher de
Broud. Faria qualquer coisa 428 429 para poder ficar junto de meu filho. Pouco estou
ligando para essas pessoas que não aprovam.
Ele tinha de admirá-la, mas sabia que a vida não seria fácil para ela.
- AyIa, não estou dizendo que você deva sentir vergonha. Estou apenas lhe
avisando o que a espera. Quem sabe se você contasse que vinha de um ou tro povo e.
- Jondalar, por que você me diz para falar palavras que não são verda deiras? Não
entendo por quê. Nos clãs, ninguém fala inverdades. Logo seria sabido. Seria visto.
Mesmo que a pessoa evite mencionar alguma coisa, fica.se sabendo. Às vezes por
cortesia é permitido, mas se sabe. Eu posso ver quando você diz palavras que não são
verdadeiras. O seu rosto me diz e também os seus ombros e as suas mãos.
Ele ficou vermelho. As suas mentiras eram tão visíveis assim? Dava gra ças por ter
usado sempre da maior sinceridade. Ayla tinha muito o que lhe en sinar. A honestidade e
a retidão de caráter eram parte dessa sua força interior.
- Não é que você tenha de aprender a mentir, apenas achei que deveria saber
dessas coisas antes da minha partida.
Ela sentiu um nó formando-se no estômago e a garganta apertando.se. "Então ele
vai embora." A sua vontade era a de voltar e mergulhar dentro das peles e esconder a
cabeça.
- Eu já imaginava que você fosse, mas não há nada ainda preparado para viajar. De
que vai precisar?
- Se você pudesse me arrumar algumas de suas pedras de sílex, poderia fazer umas
ferramentas e lanças. E se me dissesse onde estão as roupas com que cheguei, eu
gostaria de consertá-las. Não sei se trouxe para cá, mas talvez a minha mochila ainda dê
para ser usada.
-Mochila? Oqueé?
- É um bauzinho que eu carrego pendurado nas costas. Não existe uma palavra em
zelandonii para isso. Mochila é o nome em mamutoi. Aquelas rou pas que estava usando
são mamutoi...
Ayla abanava a cabeça.
- Por que uma palavra diferente?
- Mamutoi é uma outra língua.
- Uma língua diferente? Mas que língua você me ensinou?
Jondalar sentiu um aperto no coração.
- Eu lhe ensinei a minha língua. - - a dos Zelandonii. Não pensei. . - - Zelandonii. . .
eles vivem para o lado do oeste? - Ayla se sentia in quieta.
- Bem. - . é. Mas bem longe no oeste. Os mamutoi vivem perto.
- Jondalar, você me ensinou uma língua falada por um povo que vive longe daqui e
não a que falam as pessoas que moram perto. Por quê?
430 - Eu. - - não pensei sobre isso. Limitei-me a ensinar a minha língua - disse ele,
de repente sentindo-se pessimamente. Nada que fazia dava certo.
- E você é a única pessoa que pode falar essa língua por aqui?
Ele confirmou com a cabeça.
O estômago dela dava voltas. Havia pensado que Jondalar fora enviado para
ensinar-lhe a falar e, quando acabava, ela só podia conversar com ele.
- Jondalar, por que você não me ensinou a língua falada por todo mundo?
- Porque não existe esta língua.
- Eu me refiro à língua que você usa para falar com os seus espíritos ou, quem sabe,
com a sua Grande Mãe.
- Não temos uma língua especial para falar com ela.
- Como você conversa com as pessoas que não sabem a sua língua.
- Aprendendo a nova língua. Eu sei três línguas e algumas palavras de outras.
Ayla voltara a tremer. Pensava que poderia sair do vale e falar com as pessoas que
encontrasse. E, agora, o que faria? Ela levantou-se e ele fez o mesmo.
- Eu quero saber todas as palavras que você conhece, Jondalar. Preciso aprender a
falar. Você tem de me ensinar. . . Você tem!
- Ayla, eu não posso lhe ensinar mais duas línguas. Isso leva tempo. Na verdade,
nem sei falá-las direito. Uma língua não é feita só de palavras.
- Mas podemos começar por elas. Temos de começar desde o princípio. Qual é a
palavra pa,ra fogo em mamutoi?
Ele lhe disse e, antes que tivesse tempo para fazer outras objeções, ela já estava
perguntando uma série de palavras, na ordem em que tinha aprendido na língua
zelandonií. Depois de já haver passado por uma longa lista, Jondalar voltou a interrompê-
la.
- Ayla, de que adianta ficar dizendo um mundo de palavras. Você não vai conseguir
lembrar-se de todas elas.
- Eu sei que a minha memória podia ser melhor. Mas vamos ver. Diga as palavras
que eu não acertar.
Começando pela palavra fogo, ela repetiu nas duas línguas, de trás para diante,
todas as palavras que tinham sido ditas. Quando terminou, Jondalar olhava pasmo para
ela. Lembrou-se de que quando Ayla estava aprendendo zelandonii, a sua dificuldade
não era a de memorizar o sentido das palavras, mas de aprender a estrutura e o conceito
da língua.
- Como consegue fazer isto?
- Deixei de dizer alguma?
- Não. Absolutamente nenhuma.
Ela sorriu aliviada.
431 - Quando eu era menina, era muito pior. Tinha de ficar repetindo tudo muitas e
muitas vezes. Nem sei como Iza e Creb tiveram paciência comigo. Sei que havia pessoas
que achavam que eu não fosse muito inteligente. Agora es tou melhor, mas foi preciso
muito treino e exercício. Qualquer um lá nos clãs tinha melhor memória do que eu.
- Você está dizendo que a capacidade de memorizar do pessoal dos clãs é ainda
maior do que a sua?
- As pessoas dos clãs não se esquecem de coisa alguma, mas já nascem sabendo
de quase tudo de que precisam, de modo que não têm muito o que aprender. Tudo que
têm de fazer é lembrar-se. Elas possuem as memórias.
não sei como você chamaria isto. As crianças quando estão crescendo vão
aprendendo a recorrer às suas memórias. Basta que sejam lembradas uma vez. Os
adultos não precisam. Sabem como puxar pelas memórias. Como eu nasci sem as
memórias da gente dos clãs, lia era obrigada a repetir seguidamente tu do aquilo que me
ensinava, até que eu conseguisse di±er as minhas liçôes sem um erro.
Jondalar estava perplexo com a capacidade mnemônica de Ayla. Quan to às
memórias, ele não havia entendido direito do que se tratava.
- Havia pessoas que não acreditavam ser possível eu me tomar uma cucandeira já
que me faltavam as memórias de Iza. Mas ela dizia que não tinha importância. Achava
que, mesmo sem as memórias, eu daria boa curandeira porque encontrava outras
qualidades em mim. Era qualquer coisa que ela dizia não entender direito como se
processava, mas que me fazia descobrir os tratamentos corretos para as doenças. Como
eu não possuía a memória do uso das plantas medicinais, ela me ensinou a testá-las
para que eu pudesse, por mim mesma, descobrir o modo de empregá-las.
"As pessoas dos clâs também possuem uma antiga língua que é formada só de
gestos, sem o emprego de qualquer som. Todos conhecem esta língua. É a que usam
para celebrar cerimônias, se dirigirem aos espíritos e também para r se comunicarem
quando não se entenderem. Eu também sei essa língua.
'Porque tive de aprender coisa por coisa, fui obrigada a desenvolver o meu poder de
concentração e também a prestar muita atenção a tudo, para evitar de que tivesse de ser
"lembrada" mais de uma vez e as pessoas não se mostrassem impacientes comigo.
- Será que estou entendendo direito? Você está dizendo que todos. -. esses clãs,
além de possuírem a sua própria língua, têm uma outra, numa velha forma, que é
entendida por todo mundo? Que todos podem falar. - - se comu q nicar entre si?
- Na reunião dos clãs todos puderam.
- Será que estamos falando do mesmo povo? Dos cabeças-chatas?
- Se for este o nome que você dá às pessoas dos clãs, acho que estamos.
432 ____j Eu já lhe disse qual a aparência delas - falou Ayla abaixando os
olhos. - Foi quando você me disse que eu não passava de uma aberração.
Ela se lembrou dele estremecendo-se cheio de nojo e de seu olhar calo roso
trarismudando.se numa expressão fria de desprezo. Foi justamente quan do lhe estava
falando sobre os clãs e achando que os dois se estavam enten dendo. Agora ele parecia
não querer aceitar o que ela dizia. Subitamente se sentiu constrangida. Havia falado de
uma maneira muito franca e aberta. Com passos rápidos, se dirigiu para a fogueira.
Vendo as ptármigas e os ovos, postos lá por Jondalar, começou a depená-las para estar
fazendo alguma coisa.
Jondalar havia percebido que a desconfiança dela havia aumentado. Ele a tinha
magoado demais, nunca recuperaria outra vez a sua confiança, embora por um momento
chegasse a pensar que ainda fosse possível. O desprezo que agora sentia era por ele
próprio. Apanhou as peles de Ayla e as carregou de volta para a cama dela. Em seguida,
pegou as que usava e as levou para um lu. gar do outro lado da fogueira.
Ayla pôs os pássaros de lado e correu para a cama. Não tinha vontade de ficar
arrancando penas naquele instante e nem queria que ele lhe visse os olhos molhados.
Jondalar procurou arrumar as peles ao redor dele, de um jeito confortá vel. ". - -
Memórias, foi o que ela disse. Com que então cabeças-chatas pos suíam um tipo
especial de memória! E esta língua feita de gestos, conhecida por todos? Era fantástico.
Difícil de acreditar, não fosse por um detalhe: Ayla não mentia.”
Acostumada ao silêncio e à solidão, Ayla sentia a presença de outra pes soa na
caverna. Apesar de reconfortante, lhe era necessário um certo espírito de adaptação e
ajustamento às novas circunstâncias. Além do mais, todos aqueles altos e baixos do dia
acabaram por deixá-la esgotada, inteiramente exausta. Não queda sentir, pensar, reagir.
Nada que tivesse a ver com o ho mem com quem dividia a sua caverna. Só queria
descansar.
No entanto, o sono não vinha. Estava se sentindo tão confiante depois de ter
aprendido a falar, concentrara-se, empenhara-se tanto para conseguir isto e, agora, era
como se tivesse sido tapeada. Por que teria ele lhe ensinado a sua língua, sabendo que
já estava de partida? Ela nunca mais o veria. Na pri mavera estaria largando o vale para
sair em busca das pessoas que viviam per to de lá, e, quem sabe, também em busca de
outro homem.
Mas não desejava outro homem. Queria Jondalar com os seus olhos e aquele seu
jeito de tocar nela. Lembrou-se de como se sentira quando ele che gara. Jondalar era o
primeiro homem do povo dela que via e, aos seus olhos, a sua figura representava a de
todos os outros. Não era exatamente a de um iii divíduo. Depois, ela não sabia quando
ele deixara de ser um exemplo para se tomar unicamente Jondalar. Tudo que sabia é que
sentia falta do som de sua 433 respiração e do calor dele ao seu lado. A sua cama vazia
casava-se perfeitamen te com o vazio dentro dela.
O sono também não chegava para Jondalar. Não conseguia sentir-se con fortável.
Parecia frio o lado que estava acostumado a ter a proximidade de Ayla. A culpa que
sentia era um tormento constante. Não se lembrava de um dia tão ruim na vida. Nem
mesmo a língua havia ensinado certo. Quando iria Ayla precisar de zelandonii? Para se
chegar à terra de seu povo era todo um ano de viagem e isso se não houvesse paradas
maiores durante o caminho.
Ele pensou na viagem com o seu irmão. Tudo parecia tifo inútil. Quanto tempo já
fazia que teriam partido? Três anos? Isso significava pelo menos uns quatro anos fora de
casa. Quatro anos de vida perdidos. - sem nenhum pro pósito. O seu irmifo morto.
Jetamio e o filho do espírito de Thonolan tam bém mortos. O que sobrou?
Desde os seus témpos de criança que procurava manter as suas emoções sob
controle, mas ele também estava naquele momento enxugando os olhos nas peles. As
lágrimas não eram só pelo irmão, mas por ele também. Pela oportunidade maravilhosa
que perdera.
25 Jondalar abriu os olhos. O sonho com a sua casa fora tão real que as paredes de
pedra pareciam desconhecidas, como se o que sonhara fosse a realidade e a caverna de
Ayla uma ficção. Os últimos vestígios fantasiosos se iam dissipando, mas as paredes
continuavam parecen do fora do lugar. Quando, por fim, acordou, percebeu que olhava
de um ângu lo diferente. Ele se achava do outro lado da fogueira.
Ayla não estava lá. Perto da fogueira se encontravam duas ptármigas de penadas e
um cesto onde ela guardara as penas. Já devia ter saído há algum tempo. A cuia que ele
normalmente usava - a que fora esculpida de modo a ter o veio da madeira esboçando a
figura de um animal - estava à vista. Junto, a cesta impermeável em que ela preparava o
seu chá todas as manhãs e um ga lhínho limpo de vidoeiro. Ayla, sabendo que ele
gostava de esgarçar com os dentes as fibras de um graveto para limpar o sarro
acumulado durante a noite, criara o hábito de ter um pronto para ele usar, quando
acordasse pela manhã.
Jondalar se levantou e se espreguiçou, sentindo os músculos doloridos da cama
dura a que não estava habituado. Ele já dormira antes sobre o chão limpo, mas uma
forração de palha podia fazer uma bela diferença para o con • forto, além de que
proporcionava um cheiro agradável. Ayla trocava a palha regularmente, não dando para
que se acumulassem odores desagradáveis.
O chá estava quente na cesta. Ayla não devia ter saído há muito tempo. Ele
despejou um pouco e sentiu o reconfortante aroma de hortelã. Todas as manhãs
apostava consigo mesmo para ver se adivinhava que ervas ela havia usado. Hortelã era
uma de suas favoritas e quase sempre entrava na composi ção com outras. Depois de
provar achou que tinha percebido o gosto de fo lha de framboesa e talvez o de alfafa.
Dirigiu-se, então, para fora da caverna, carregando a cuia e o graveto.
De pé, na beirada da parte do terraço que dava para o vale, enquanto mastigava o
graveto, ele olhava o arco de sua urina regando a rocha do penhas co. Ainda não estava
totalmente acordado. As suas ações eram movimentos mecânicos, criados pela força do
hábito. Quando terminou, esfregou os den tes com o pedacinho de pau esgarçado e
enxaguou a boca com o chá. Era um ritual que o deixava refrescado e lhe dava tempo
para pensar na programação do dia.
Só depois de beber a última gota é que se sentiu acordado, mas então toda a sua
alegria desapareceu. Aquele não seria um dia qualquer. As ações da véspera não o
permitiriam. Ele reparou no graveto que ia pôr fora e ficou ro dando-o entre os dedos.
Aquele pedacinho de pau dizia muito.
Havia sido muito cômodo de sua parte entregar-se aos cuidados de Ayla. Tudo que
ela fazia era de uma delicadeza tão sutil, que ele jamais tinha de lhe pedir. Ela sempre se
antecipava aos seus desejos. O graveto era um bom exem plo. Sem dúvida, Ayla se
levantara cedo, saíra e fora buscar aquele pauzinho de vidoeiro que limpara e pusera lá
para ele. Quando foi que começou a fazer isso? Ele se lembrou de que logo que havia
começado a andar, certa manhã pegara um gravetinho e que, na manhã seguinte, se
tinha sentido muito satis feito por dar com um palito perto de sua cuia. Mas, nesta época,
ainda tinha dificuldade de enfrentar o íngreme caminho da caverna.
E o chá quente? A qualquer momento que acordasse pela manhã o chá já estava
preparado. Quando ela o fazia? A primeira vez que Ayla lhe trouxera a cuia, ele
agradecera efusivamente. E depois disso? Qual a última vez que lhe dirigiu uma palavra
de agradecimento? E quantas outras pequeninas atenções, feitas sempre na maior
discrição? Jamais ela fazia alarde. Marthona era assim, tão delicada em suas atenções e
em seus gestos que ninguém se sentia obriga do. Sempre que se oferecia para ajudar
Ayla, ela se mostrava tão surpresa e agradecida que era como se, de fato, nunca
esperasse qualquer retribuição por tudo que vinha fazendo por ele.
E eu nunca lhe dei nada. - - pior ainda do que nada! - falou em voz 434 435 alta. -
Mesmo antes do que aconteceu ontem - ele olhou para o graveto, gi rou-o entre os
dedos, e lhe deu um piparote, jogando-o fora.
Huiin e o potro estavam no vale, correndo em círculos, cheios de anima ção. De
repente, Jondalar se viu interessado.
- Como corre o danadinho! Numa corrida, acho que venceria a sua mãe.
- Numa corrida curta sim, mas nunca numa longa - falou Ayla apare cendo no alto do
patamar. Jondalar, com os olhos brilhando e sorrindo orgu lhoso do potrinho, virou-se na
direção dela. Difícil resistir ao entusiasmo dele. Ayla devolveu o sorriso, apesar das
desconfianças. Tinha esperado que ele criasse amizade pelo filhote de Fluiin, mas agora
isto já não interessava mais.
- Estava mesmo imaginando por onde você andava - falou Jondalar, sentindo-se
desajeitado na sua presença. O sorriso lhe desaparecera do rosto.
- Eu acendi cedo o forno de terra para assar as ptármigas e fui ver se estava tudo
pronto. "Ele não parece muito contente de me ver", pensou Ayla, dando as costas para
entrar na caverna. O seu sorriso também desaparecera.
- Ayla! - chamou Jondalar, correndo atrás. Quando ela se voltou, ele parecia não
saber o que dizer. - Eu. . . eu estava pensando. . . se não poderia fazer algumas
ferramentas. Bem, se você não se importar. Não quero acabar com as suas pedras de
sílex.
- Tudo bem. Todos os anos as enchentes carregam e trazem sílex.
- Deve vir de algum depósito de greda localizado num ponto qualquer na montante
do rio. Se eu soubesse onde fica e se não fosse muito longe da qui, iria buscar. A pedra é
melhor quando apanhada diretamente na mina. As de Dalanar saem de um depósito
perto da Caverna dele. Não há quem não co nheça a qualidade do sílex dos Lanzadonii.
O brilho de entusiasmo voltara aos seus olhos, como sempre acontecia quando
falava de seu ofício. "Droog também era assim", pensou Ayla. "Ado rava ferramentas e
tudo que estava ligado à sua fabricação?' Ela sorriu pensan do em Droog no dia em que
ele viu o filho de Aga - o que nasceu depois que os dois se tomaram companheiros -
batendo uma pedra contra outra. "Droog ficou tão orgulhoso que chegou mesmo a dar ao
garoto um martelo de pedra. Ele tinha enorme prazer em ensinar a sua técnica; até para
mim, que era meni na, havia ensinado.”
Jondalar viu-lhe o olhar vago e o leve sorriso que sombreava o rosto.
- Em que está pensando, Ayla?
- Em Droog. Era um ferramenteiro que costumava me dar licença para vê-lo
trabalhando. A sua única exigência era que eu ficasse em silêncio e não atrapalhasse a
sua concentração.
- Você pode, se quiser, ficar me observando - falou Jondalar. - Inclu sive eu gostaria
que me mostrasse a técnica que emprega para fazer as suas fer ramentas.
436 - Eu não sou muito boa. Faço apenas as ferramentas de que preciso. As de
Droog são muito melhores que as minhas.
- Os seus instrumentos dão perfeitamente para serem usados. A sua téc nica é que
eu gostaria de ver como é.
Ayla condescendeu com a cabeça e entrou na caverna. Jondalar se pôs à espera.
Como ela não voltou logo, ele ficou sem saber o que exatamente Ayla havia querido
dizer. Seria para fazerem as ferramentas agora ou mais tarde, em outra ocasião?
Resolveu entrar para procurá-la justamente no momento em que ela saía. Não querendo
ofendê-la com algum toque inadvertido, saltou para trás, por pouco não perdendo o
equilíbrio.
Ayla respirou fundo, aprumou os ombros e levantou o queixo. Se ele não suportava
ficar perto dela, não iria deixá-lo saber o quanto isso a magoa va. Logo Jondalar estaria
indo embora. Ela começou a descer, carregando as ptármigas, a cesta de ovos e uma
enorme trouxa de couro amarrada com uma corda.
- Deixe-me ajudá-la a canegar alguma coisa - disse ele apressando-se a segui-la.
Ela parou, hesitando. Depois lhe entregou a cesta.
- Primeiro as ptármigas - falou Ayla ao botar a trouxa na praia. Era apenas uma
declaração, mas pareceu a Jondalar que ela esperava pelo seu con sentimento ou, então,
que ele tomasse conhecimento do que fazia. Não estava inteiramente errado. Apesar de
todos aqueles anos de independência, os cos tumes clânicos ainda continuavam
comandando muitas de suas ações. Ela es tava habituada a cumprir em primeiro lugar as
tarefas ordenadas pelo homem.
- Claro, faça isso. Preciso pegar as minhas coisas antes de começar a tra balhar -
falou ele.
Ela pegou as aves e se dirigiu para o buraco que, cedo pela manhã, havia cavado e
forrado com pedras. O fogo estava apagado no fundo, mas as pedras soltaram um chiado
quando a água respingou nelas. Ayla dera uma batida pelo vale e encontrara a
combinação ideal de ervas e legumes para preparar as ptár migas: unha-de-cavalo pelo
leve sabor salgado; urtiga, caperiçoba e azedinhas para dar o toque picante; cebola
silvestre, alho e sálvia para tempero e perfu me. Fora isso, a fumaça acrescentaria ainda
um pouco de seu sabor e as cinzas da madeira poriam mais um toque de sal.
As ptármigas foram recheadas com os seus próprios ovos, aninhados em meio aos
legumes e ervas - três ovosnumae quatro em outra. Ayla costumava envolvê-las em
folhas de uva antes de bem para o forno, mas fio vale não da vam uvas, por isso,
lembrando-se de que os peixes eram às vezes assados envol vidos no feno fresco,
resolveu proceder da mesma maneira. Depois de colocar as aves no fundo do buraco, ela
as cobriu com mais uma camada de feno, que tampou com pedras e por último com
bano.
437 1 A Jondalar havia espalhado pelo chão uma série de objetos de chifres, ossos
e sílex. Alguns destes, Ayla já os conhecia, outros nunca os vira antes. Ela desatou a sua
trouxa, arrumou as ferramentas, de modo a ficar ao seu al cance, e se sentou com o
couro estendido sobre o colo. Isso a protegeria dos perigosos estilhaços que pulavam da
pedra enquanto trabalhava. Deu, então, uma olhada para Jondalar. Ele examinava
interessado as ferramentas dela. De pois, trouxe diversos nódulos de sílex para perto.
Ayla se fixou principalmen te em dois, O bom ferramenteiro se conhecia já no momento
em que selecio nava as suas pedras, lembrou-se pensando nas recomendações de
Droog. Esta va querendo uma pedra de veio fino. Optou pela menor. Jondalar balançou a
cabeça inconscientemente aprovando.
- Você sempre soube que iria ser ferramenteiro? - perguntou ela, lem brando-se
agora do garotinho que mostrara a sua vocação quando mal havia começado a andar.
- Durante algum tempo, achei que fosse ser escultor e, talvez, até mc tomar num
servidor da Mãe ou, pelo menos, trabalhar junto daqueles que de dicani as suas vidas ao
seu serviço - uma sombra de tristeza e de dolorosa sau dade anuviaram-lhe o rosto. -
Mas, então, me mandaram viver com Dalanar, com quem aprendi o meu ofício. Foi uma
escolha acertada. Gostei muito de ter ido. Hoje eu faço bem o meu ofício e como escultor
não sei se seria gran de coisa.
- O que é um escultor, Jondalar?
- Ah, era isso o que estava faltando!
Ayla assustou-se, sentindo-se confusa, sem entender de que ele estava falando.
- Nenhuma escultura, nada de pinturas, bordados ou qualquer tipo de decoração.
Nem mesmo cores.
- Não estou entendendo.
- Oh, desculpe, Ayla. Como é que poderia saber do que estou falando? Um escultor
é uma pessoa que produz animais de pedra.
Ayla franzia a cara, ainda sem entender.
- Como pode alguém produzir um animal de pedra? Todo animal é fei to de carne e
osso. É uma coisa que vive e respira.
-Não estou falando de um animal de verdade. Estou me referindo a imagens e
representações. O escultor modela figuras, faz com que a pedra adquira uma certa
semelhança com o animal. Há escultores que, quando têm uma visão da Mãe, esculpem
a sua figura.
- Figuras. . .? Feitas de pedra?
- Não somente de pedra. Podem ser feitas de outros materiais também. De marfim,
osso, madeira, chifre. Ouvi dizer que existem até de barro. Aliás, já vi algumas figuras de
neve muito bem-feitas.
AyIa abanava a cabeça, procurando visualizar o que ele falava, até que ouviu a
palavra neve. Lembrou-se, então, daquele dia de inverno, quando havia feito uma pilha
de neve junto da parede próxima da entrada da caverna. Ela não havia visto a figura de
Brun naquele monte de neve?
- Uma figura de neve? Acho que estou entendendo - disse, confirman. do com a
cabeça.
Jondalar não estava muito convencido se de fato Ayla entendera, mas lhe era
impossível explicar melhor, sem dispor de nenhum exemplo para ilus trar o que dizia.
"Que vida triste Ayla deve ter levado no meio desses cabeças chatas", pensou. "Até as
roupas são simples, feitas apenas para cobrir o cor po. Será que só sabem caçar, comer
e dormir? Que não conseguem nem mes mo apreciar as dádivas da Mãe? Nenhuma
beleza, mistério ou imaginação? Não sei se ela poderá compreender o que tem perdido
da vida.”
Ayla pegou o bloco de pedra e o examinou com atenção, tentando re solver por
onde começar. Não faria uma machadinha. Era um instrumento útil, mas, como dizia
Droog, simples demais. Também não achava que fosse uma técnica que Jondalar
gostasse de ver. Ela pegou um objeto que não fazia parte dos instrumentos utilizados por
Jondalar: o osso da pata de um mamu te. Utilizava-o como suporte, pois a resiiência do
osso evitava que a pedra se fragmentasse enquanto estivesse sendo trabalhada. Ela o
revirou de um lado para outro, até encontrar o melhor jeito de posicioná-lo entre as
penas.
Em seguida, apanhou o martelo de pedra. Esse instrumento, os dois ti aliam iguais.
Apenas o dela era menor para poder se ajustar mais comodamen te à sua mão. Firmando
o bloco de pedra sobre a bigorna de osso de mamute, ela deu uma forte martelada, O
córtex (a camada externa) partiu, deixando à mostra o seu interior cinza-escuro. A lasca
que pulou tinha uma parte abaula da no ponto onde batera o martelo - o bulbo de
percussão - e se afinava na outra direção, fazendo uma beirada afiada. Poderia ser
usada como um ins trumento cortante. As primeiras facas produzidas no mundo não
passavam de meras lascas de bordas afiadas, mas o que Ayla pretendia era algo que
exigia técnica mais avançada e complexa.
Ela examinou a ferida deixada no coração da pedra. Era como o negati vo da lasca
que se desprendera. A cor estava boa, a textura macia, quase cero sa, e nenhum corpo
estranho incrustado. Boas ferramentas poderiam sair dali. Ela deu outra martelada,
retirando mais outro pedaço do córtex.
À medida que continuou aparando, Jondalar percebeu que a intenção seria modelar
o núcleo central. Depois de removida toda a camada gredosa, Ayla ainda continuou
martelando, acertando alguns pontos até ficar com a forma de um ovo achatado,
toscamente modelado. Então trocou o martelo de pedra por outro de osso, mais comprido
e resistente. Virando a pedra para o outro lado, e trabalhando da beirada para o centro,
ela se pôs a desbastar o 1 1 438 439 topo. O martelo de osso, por ter maior flexibilidade,
tirava agora lâminas de sílex compridas e finas e com o bulbo de percussão já não tão
acentuado. Ao terminar, o ovo de pedra estava com a parte de cima plana e ovalada,
como se dele houvesse saído uma fatia.
Ela fez uma pausa. Segurou no amuleto pendurado em seu pescoço, fe. chou os
olhos e dirigiu o pensamento para o Leão da Caverna. Droog, antes de enfrentar a tarefa
seguinte, sempre invocava a ajuda de seu totem. Além de destreza, era preciso contar
com a sorte e ela se via nervosa, com Jondalar ob. servando.a atentamente. Queria fazer
um bom trabalho, sentindo que, no mo mento, a fabricação dos instrumentos era mais
importante do que eles pró prios. Se inutilizasse a pedra, era como se estivesse pondo
em dúvida a capaci dade de Droog e de todo o povo clânico. Do contrário, por mais que
ela de pois tentasse explicar que não era nenhuma especialista na matéria, Jondalar
jamais lhe acreditaria. Ele já havia reparado antes no amuleto, e agora obser vando.a
segurá-lo com ambas as mãos e os olhos fechados, perguntava-se so bre qual seria a
significação do objeto. Ela parecia quase tifo reverente quanto ele, quando segurava
numa donii. Só que uma donii era a figura de uma mu lher na plenitude de sua
maternidade, cuidadosamente esculpida. Um símbolo da Grande Mãe Terra e do
maravilhoso mistério da criação. Certamente o sa quinho de couro, encaroçado das
coisas que levava dentro, não poderia ter a mesma significação.
Ayla tomou a levantar o martelo de osso. Queria agora retirar uma lasca do núcleo
com a mesma dimensão do topo oval, mas que saísse com as beiradas retas e afiadas.
Havia, no entanto, uma importante etapa antes a cumprir: a plataforma de talhamento.
Para isso precisava lascar um fragmento que deixa ria um dente na beirada da face
plana, cuja superfície era perpendicular à las ca, que em última instância era o que
pretendia.
Segurando com firmeza no núcleo de sílex, ela fez cuidadosamente a pontaria.
Tinha de dosar a força e acertar justo no alvo desejado. Se a força fosse pouca, a lasca
sairia com um ângulo errado, se fosse muita, a beirada, tão laboriosamente feita, partiria.
Ela respirou fundo, prendendo o ar, e deu uma pancada seca. A primeira batida tinha
grande importância. Se saísse bem, era sinal de boa sorte. Uma pequena lâmina voou e
ela soltou o ar dos pul mões, ao ver o dente formado.
Mudando a posição do núcleo na mão, deu nova pancada, desta vez com mais
força. O martelo acertou perpendicularmente no dente e mais uma lâmi na se
desprendeu. O seu formato era oval, mas um tanto alongado. Um dos la dos saiu com a
superfície plana que fora talhada anteriormente. O reverso, formado da face bulbóide
interna, era mais liso e grosso na extremidade acer tada pelo martelo e se afinava para
formar uma lâmina extremamente fina e afiada que rodeava toda a peça.
Jondalar pegou a lasca.
- Essa é uma técnica difícil de ser dominada. Ë necessário muita firme za e precisão.
Que gume! É um belo instrumento e nada primitivo.
Ayla soltou um imenso suspiro de alívio, sentindo-se orgulhosa da proe za e também
por não haver desmerecido os clãs. Na verdade, por não ser ge nuinamente clânica,
representava-os até melhor. Se fosse alguém dos clifs o au tor da façanha, Jondalar teria
ficado preso demais à sua figura e não consegui ria - mesmo que o tentasse -julgar
objetivamente o trabalho.
Ayla o observava virando a lasca de um lado para outro na mão, quan do, de
repente, sentiu que passava por uma estranha transformação interior. Tomada de um frio
sobrenatural, tinha a impressão de haver largado o seu corpo para ficar olhando de longe
os dois.
Veio-lhe nitidamente à lembrança uma outra vez que experimentara igual sensação
de desnorteamento. Ela, então, seguia as luzes de uma fileira de lamparinas no interior
de uma caverna, quando, agarrada às paredes úmidas, se via inexplicavelmente atraída
para um pequeno recinto mal-iluminado, cra vado no coração da montanha e oculto por
uma colunata de grossas estalactites.
Lá encontrou dez mog-urs sentados ao redor de uma fogueira. O grão mog-ur, Cre
com a sua poderosa mente, aguçada pela beberagem que lia en sinara a Ayla como
preparar para os feiticeiros, descobriu-lhe a presença no re cinto secreto. Ela, por sua
vez, também havia tomado inadvertidamente a be bida, e sentia a mente girando, fora de
todo o controle. O mog-ur retirou-a de suas profundezas abismais para levá-la com ele
numa fascinante e assustadora viagem de volta aos princípios primordiais.
Durante o curso do processo, o grande homem sagrado dos clãs, cujo cé rebro era
ímpar entre os seus pares, abriu novos caminhos no cérebro de Ayla, onde só havia
vestígios e tendências. No entanto, o cérebro dela era parecido, mas não exatamente
igual ao dele. Ela pôde acompanhá-lo em suas memórias, retrocedendo à origem comum
dos dois e passando pelos diversos estágios, evolutivos, mas Creb não conseguiu segui-
la, quando ela, por si mesma, vol tando ao presente, deu um passo além.
Ayla não compreendeu o que havia magoado tanto o grande feiticeiro, apenas
percebeu que houve uma mudança nele e na relação dos dois. Tampou co atinara com
os caminhos que ele forjara em seu cérebro, mas por um ins tante sentiu com absoluta
certeza que fora enviada ao vale para cumprir um propósito determinado e que neste se
achava incluído o homem alto e louro.
Enquanto se via ao lado de Jondalar na praia rochosa daquele desolado vale,
formavam-se da atmosfera, fantasticamente densa, ondas luminosas que ora os
envolviam, ora desapareciam no vazio ao redor deles. Ela tinha uma va ga sensação de
seu próprio destino como um elo fundamental de muitas cor rentes ligando o passado, o
presente e o futuro através de uma crucial transi 1 440 441 ção. De repente, assustada,
encontrou-se morta de frio, olhando para uma tes ta franzida e um rosto preocupado.
Então sacudiu o corpo, como se espan tando a lúgubre sensação de irrealidade.
- Você está bem, Ayla?
- Sim,estou.
Um misterioso frio passou pelo corpo de Jondalar, arrepiando-lhe os pé- los na nuca.
A sua vontade era protegê-la, mas de quê? Não o sabia. Durou apenas um instante. Ele
procurou ignorar, mas o seu estado de ansiedade ain da perdurou por algum tempo - -
Acho que o tempo vai mudar - falou Jondalar. - Senti um vento frio.
Os dois olharam para o céu azul-claro sem sombra de nuvem.
- Essa é uma época de grandes temporais. Eles se armam rapidamente e caem
quando menos se espera.
Jondalar assentiu. Então, para voltar a um mundo de maior substancia lidade, ele
retomou o assunto sobre a fabricação de ferramentas.
- Qual o próximo passo, Ayla?
Ela voltou a abaixar a cabeça para o trabalho e, muito concentradamen te, cortou
mais cinco lâminas ovais, todas de afiadíssimos gumes. Por fim, depois de um último
exame no que restara da pedra, resolveu deixá-la de lado, vendo que já não dava para
cortar mais nada aproveitável.
Voltou-se, então, para as seis lâminas de sílex cinza. Apanhou a mais fina. Com
uma pedra redonda e achatada, retocou uma beirada longa e afia da, cegou a parte
traseira, no lado contrárió à extremidade onde havia o abau lamento resultante do
impacto de percussão. Quando se deu por satisfeita, a apresentou na palma da mão a
Jondalar.
Ele a pegou e examinou com toda a atenção. Em corte transversal, era bastante
grossa, mas adelgaçava-se ao longo de seu comprimento, até tomar- se num gume
cortante, afiado e fino. Tinha largura bastante para ser empu nhada com comodidade, e
da parte traseira fora tirado o gume para não cor tar o portador. "Sob certos aspectos,
lembrava a ponta das lanças dos mamu toi", pensou ele, "mas não fora feita para ter cabo
ou ser encaixada num pedaço de pau." Era simplesmente uma faca de corte e, pelo modo
como já vira Ayla usando-a, sabia que funcionava muito bem.
Jondalar colocou-a de lado e fez um aceno a Ayla para que prosseguisse. Ela pegou
outra lâmina, desta vez um pouco mais grossa, e usando o canino de um animal aparou a
ponta ovalada. Assim fazendo, cegava apenas ligeira. mente a extremidade, o bastante
para fortalecer a borda, de modo que a pon ta arredondada não se partisse no ato de
raspagem de $los e grãos de couro. Ayla deu-a como pronta e pegou outra peça.
Ela pôs uma pedra da praia, grande e lisa, sobre a bigorna de osso de mamute. Em
seguida, fazendo pressão sobre a pedra com o canino-retocador, talhou um "V" no centro
da longa borda afiada, suficientemente grande para modelar a extremidade de uma lança
e convertê-la numa ponta. De uma lâmi na oval mais longa, valendo-se de técnica
semelhante, ela fez uma ferramenta que podia ser usada para fazer furos em couro ou
cavar buracos em madeiras, chifres e ossos.
Ayla não sabia de que outros tipos de ferramenta poderia vir a precisar e, sendo
assim, -resolveu deixar para outra ocasião o emprego que iria dar às duas últimas
lâminas restantes. Pondo de lado o osso de mamute, elajuntou as pontas do couro e foi
sacudi-lo no monturo junto do penhasco. Não havia sola de pé, por mais cascuda que
fosse, que os estilhaços de sílex não atraves sassem. Jondalar não fizera qualquer
comentário sobre as suas ferramentas, mas ela reparou que ele mexia nelas e as
segurava como se quisesse experi mentá-las.
- Gostaria que você me emprestasse o seu couro.
Ayla lhe passou o avental, feliz por haver terminado a sua demonstra ção e curiosa
de assistir agora à dele. Jondalar estendeu o couro sobre o colo, fechou os olhos, pondo-
se a pensar na pedra e sobre o que faria com ela. Em seguida, apanhou um dos nódulos
de sílex que havia levado para lá e o exami nou.
O silício, um minério de grande dureza, desprendera-se dos depósitos de greda
formados durante o período cretáceo. A pedra de Jondalar ainda trazia as marcas de sua
origem na camada exterior gredosa, apesar do longo percurso feito através da estreita
garganta a montante do rio, arrastada pelas águas tumultuosas das enchentes até a praia
rochosa. O sílex era o melhor ma terial encontrado na natureza para a fabricação de
ferramentas. Era duro, mas graças à sua estruturação, em diminutos cristais, podia ser
trabalhado. Dele era possível fazer o que se quisesse, tudo dependendo da inventividade
do entalhador.
Jondalar procurava na pedra as características próprias do sílex de cal cedônia, o
mais puro e transparente de todos. Em geral, desprezava qualquer pedra portadora de
fissura ou que não produzisse um determinado tipo de som quando batida contra outra
pedra, pois pelo ouvido sabia se a pedra apre sentava ou não falhas e inclusões.
Finahnente conseguiu escolher uma.
Colocou-a sobre a coxa, segurando-a com a mão esquerda. Com a direi ta pegou o
martelo de pedra, girando-o até acomodá-lo na posição certa. O instrumento era novo e
Jondalar ainda não estava familiarizado com ele. Cada martelo tinha a sua
individualidade. Quando sentiu que o tinha ajeito, segu rou firme no sílex e bateu. Um
bom pedaço da camada externa cinza-esbran quiçada soltou-se. Por dentro, o cinza do
sílex era mais claro do que aquele que fora trabalhado por Ayla. Tinha um brilho azulado
e veio fino. Uma boa pedra. Era um bom começo.
i 1 442 443 Ele se pôs a bater seguidamente. Ayla conhecia bem este trabalho para
saber que estava diante de um verdadeiro mestre. Ele era infinitamente me lhor do que
ela, O único que já vira entalhar com aquela confiança fora Droog. Mas a forma que
Jondalar estava dando à sua pedra não se parecia com coisa alguma produzida pelos
ferramenteiros dos clãs. Ela chegou mais perto para melhor observar.
Ao invés da forma oval de sempre, Jondalar produzia um núcleo mais cilíndrico,
ainda que não propriamente circular. Como desbastasse os dois la dos, ele criava um
ressalto ao longo de todo o comprimento da peça. Depois do córtex removido, o ressalto
ainda se mostrava áspero e ondulado. Ele des cansou o martelo para apanhar um
segmento de chifre de veado que tinha sido cortado abaixo da primeira forquilha, de
modo a eliminar todos os galhos.
Agora, com este martelo de chifre, pôs-se a tirar lascas menores para retificar o
ressalto. Ele também preparava o núcleo, mas não com intenção de remover lascas
grossas de uma forma predeterminada. Isso Ayla imedia tamente percebeu. Quando ficou
satisfeito com o ressalto, apanhou outro instrumento, um que despertara nela muita
curiosidade. Esse também era feito de um fragmento de chifre de veado, só que mais
comprido do que o primeiro. Ao invés de ter sido feito um corte abaixo da forquilha, dois
galhos do chifre se projetavam da haste central, cuja base terminava em ponta.
Jondalar levantou-se e apoiou o núcleo de sílex com o pé. Depois, colocou a ponta
do chifre em forquilha exatamente acima do ressalto que modelara com tanto cuidado.
Segurou o galho superior de modo que o infe rior ficasse voltado para a frente e
avançando mais além. Então, com um seg mento de osso pesado e comprido, começou a
bater na ponta do galho que se projetava adiante.
Uma fma lâmina se desprendeu do cilindro. Tinha o comprimento do núcleo, mas
com apenas uma sexta parte de sua largura. Ele levantou-a para que Ayla a visse contra
o sol. Sua transparência filtrava a luz, O ressalto, tão cuidadosamente modelado,
percorria o centro da face externa em toda a sua extensão e tinha dois afiados gumes.
Como não batia diretamente no sílex, ele não tinha necessidade de mirar com muita
precisão ou de medir cuidadosamente a distância. A força de percussão era dirigidajusto
para o ponto pretendido. Com a força do golpe distribuída entre dois flexíveis objetos
intermediários - o martelo de osso e a pancada sobre o chifre - não havia quase bulbo de
percussão. A lãmina saiu longa, estreita e uniformemente fma. Assim, não precisando
avaliar com exatidão a força de suas marteladas, ele tinha muito mais controle sobre os
resultados.
A técnica de entalhamento de Jondalar significava um grande avanço, de
conseqüências altamente revolucionárias. Tão importante quanto a lâmina 444 produzida
era a cicatriz deixada no núcleo, O ressalto que ele tinha feito desa parecera. Em seu
lugar ficara um fosso, ladeado por dois ressaltos. Este fora o propósito do cuidadoso
trabalho inicial. Ele posicionou a ponta do furador em cima de um dos novos ressaltos e
tornou a bater com o martelo de osso. Uma outra lâmina longa e estreita caiu, deixando
agora mais dois ressaltos. Novamente ele posicionou o furador em cima de um dos
ressaltos, despren dendo mais outra lâmina e formando novos ressaltos.
Depois de haver esgotado todo o material que prestava, ele estava não com seis,
mas com 25 lâminas enfileiradas. Da mesma quantidade de pe dra, havia feito mais do
que o quádruplo de gumes e mais do que o quádru pIo dos moldes deixados por Ayla.
Compridas e fmas, de gumes extrema mente amolados, as lâminas naquele estágio eram
perfeitamente utiizáveis como instrumentos cortantes, contudo não se constituíam ainda
no produto fmal. Seriam ainda modeladas para atender diferentes finalidades, basicamen
te ferramentas. Dependendo da forma e da qualidade do nódulo de sílex, não só quatro,
mas seis ou sete vezes mais era o número de moldes que podia, com esta avançada
técnica, ser feito de pedras do mesmo tamanho do que a que ele usara. O novo método
não só dava ao ferramenteiro mais controle, como também punha o seu povo numa
inigualável posição de vantagem.
Jondalar apanhou uma das lâminas e a entregou a Ayla. Ela, primeiro, passou de
leve o polegar na borda, examinando o fio, depois fez uma certa pressão para testar-lhe a
resistência e a virou para o outro lado. A lâmina, pela própria natureza do material, tinha
as extremidades curvas. Ayla esticou a palma da mão, observando-lhe a oscilação
causada pelo arqueamento. A for ma, no entanto, não limitava as suas funções.
- Jondalar, é. . . não sei como dizer.. - É maravilhosa, uma coisa impor tantíssima. E
são tantas. Mas ainda não estão acabadas, não é?
- Não, ainda não - sorriu ele.
- São tão fininhas e delicadas. - . lindas. Talvez se quebrem com mais facilidade,
mas acho que com as extremidades retocadas podem dar ótimas raspadeiras - o lado
prático de Ayla já visualizava as ferramentas que pode riam sair daqueles moldes.
- É. E como as suas, são boas facas. Mas eu gostaria de pôr uma espi ga nelas para
poder engatar cabos.
- O que é espiga?
Ele pegou uma das lâminas para explicar.
- Se eu apenas cegar um lado e fazer uma ponta, fico com uma faca. Se eu tirar
algumas lascas da parte interna, vou conseguir endireitar um pouco a curva. Bom, agora,
se eu pressionar, quebrando na beirada, do meio para bai xo, de modo a fazer uma crista
com um dente na extremidade inferior, isso é o que será a espiga da ferramenta.
14 1:
1 L 445 Ele pegou um pequeno segmento de chifre.
- Por exemplo, se eu encaixar a espiga num pedaço de osso, madeira ou num chifre
como este, a faca terá um cabo. O instrumento assim ficará muito mais fácil de ser
manejado. Se deixar o chifre por algum tempo de mo lho na água, ele vai dilatar-se e ficar
mais mole. Então você poderá enfiar a espiga, pressionando-a no miolo do chifre, onde a
matéria encolhe, compri mindo-se ao redor da espiga. Em geral fica firme por muito
tempo, sem preci sar de amarrar ou colar.
Ayla se via interessadfssima no novo método, já com vontade de expe rimentá-lo, tal
como sempre acontecia quando observava Droog em seu tra balho. No entanto, não
sabia se isso iria transgredir os costumes e regras de Jondalar. Quanto mais ficava
sabendo sobre o povo dele, menos o entendia. O fato dela caçar parecia não ter
importância, mas talvez fabricar ferramen tasjá não fosse a mesma coisa.
- Eu gostaria de tentar. - - Será que as mulheres são impedidas de fabri car
ferramentas?
A pergunta o agradou. Era necessário ter muita habilidade para o tipo de
instrumentos fabricados por Ayla. Ele estava certo de que mesmo os me lhores
ferramenteiros vez por outra obtinham resultados bastante insatisfa tórios, enquanto que
os piores podiam produzir algumas ferramentas passí veis de serem usadas. Até mesmo
quando, por acidente, se quebrava um pe daço de sílex, era possível obter-se qualquer
coisa utiizável. No entanto ele pensara que Ayla queria provar o seu método como
melhor, e via que ela estava agora não só pronta a reconhecer o dele pelo que realmente
represen tava - um importante avanço - como também querendo experimentá-lo. Como
se sentiria se alguém lhe mostrasse algo de radicalmente novo? Claro, iria desejar
aprender, respondeu para si, com um leve sorriso.
- As mulheres podem dar boas ferramenteiras. Joplaya, a minha pri ma, é uma das
melhores que conheço. Só que é uma moça terrivelmente im plicante. Se eu lhe dissesse
isso, ela nunca me deixaria esquecer o elogio que lhe fiz - falou ele com um sorriso
saudoso.
- Nos clãs, as mulheres podem fazer ferramentas, mas armas não.
- As mulheres Zelandonii fabricam armas. Depois de terem filhos, ra ramente voltam
a caçar, mas se na mocidade tinham esse hábito, elas apren deram a usar armas.
Durante as caçadas, se perdem ou se estragam muitos ins trumentos, por isso feliz é o
homem que tem uma companheira que sabe fa bricar equipamentos de caça. Ele estará
sempre com os seus suprimnentos em ordem. Além disso, como as mulheres têm mais
intimidade com a mãe, alguns homens acham que as armas feitas por elas trazem sorte.
Mas a culpa é sempre do ferramenteiro, principalmente se for mulher, quando o homem
não se sai bem ou se ele for um mau caçador.
446 - Será que posso aprender?
- Qualquer pessoa que faz ferramentas como você, Ayla, pode aprender o processo
que eu uso.
Ele a respondera num sentido que nãó foi bem o que ela pretendera com a
pergunta. Nunca passara pela sua cabeça que fosse incapaz de aprender, mas não era
isso o que queria saber e sim se teria ou não permissão para fabricar instrumentos. A
resposta de Jondalar a fez parar para pensar um instante.
-Não. - .achoquenão.
- Claro que pode aprender.
- Eu sei que posso, Jondalar, mas nos clãs nem todo mundo que faz arma poderia
usar o seu processo. Alguns, talvez, até conseguissem. Droog, por exemplo. Mas
qualquer coisa nova é difícil para eles. Tudo que sabem sai de suas memórias.
Ele chegou a pensar que Ayla estivesse pilheriando, mas depois viu que falava
sério. Com que então ainda que os ca. - - os ferramenteiros dos clãs quisessem e
tivessem oportunidade não conseguiriam aprender?
Mas, então, ocorreu a Jondalar que até há bem pouco tempo ele não achava os
cabeças-chatas com capacidade para fazer ferramentas de espécie alguma. Agora sabia
que eles se comunicavam, fabricavam objetos e haviam adotado uma estranha menina
órfâ em seu meio. Nesses últimos dias, ele ficara sabendo mais sobre os cabeças-chatas
do que qualquer pessoa no mun do, exceto naturalmente Ayla. Talvez fosse útil conhecê-
los melhor. Parecia haver bem mais coisa aí do que se poderia imaginar.
A lembrança dos cabeças-chatas o fez pensar no dia anterior e ele, de repente, ficou
vermelho de vergonha. Havia ficado tão absorvido no traba lho que se esquecera. Até
então, olhava para Ayla, mas sem ver realmente as suas tranças douradas que brilhavam
ao sol, fazendo vivo contraste com a pele bronzeada ou os seus olhos claros, azuis-
acinzentados, colorindo-se com uma luminosidade translúcida igual à das lâminas de
sílex.
"Oh, Mãe, como é bonita!" A consciência da proximidade de Ayla, sen tada muito
perto dele, fez com que sentisse um movimento nas virilhas. Subi tamente os seus
interesses tomavam outro rumo e, ainda que tentasse, não conseguiria escondê-los. Não
tentou.
Ayla sentiu a mudança que a pegou inteiramente desprevenida. Como alguém podia
ter olhos tão azuis? Nem o céu, nem as gencianas que davam nos campos perto da
caverna de seu clã tinham um azul tão forte e vibrante. Ela sentia. - - aquela estranha
sensação começando a invadi-la, O seu corpo pulsava, desejando que ele lhe tocasse.
Ela se inclinava para a frente, atraída, anastada na sua direção, mas então, num supremo
esforço, conseguiu fechar os olhos e se afastar.
447 "Por que me olhar desse jeito se eu sou.., uma aberraçâb? Quando nem
consegue me tocar sem estremecer-se." O coração batia forte e ela arfa va como se
tivesse saído de uma corrida, tentando ritmar a respiração.
Enquanto estava de olhos fechados, sentiu 4ue ele se levantara, O couro que lhe
cobria o colo fora posto de lado e as lâminas, feitas com tanto cuida do, se achavam
espalhadas no chão. Ela ficou vendo-o afastar-se, com os ombros pendurados,
movimentos contrafeitos, até que desapareceu atrás da curva do penhasco. Ele parecia
tão infeliz, tão desgraçado quanto ela.
Tão logo passou pela curva, Jondalar pôs-se a correr. Correu até ter as pernas
doendo, latejantes, e a respiração entrecortada por roncos de cansaço. Então parou,
arquejando pesadamente.
"Seu estúpido imbecil, O que está faltando para você se convencer? Só porque ela é
uma pessoa razoável, que põe à sua disposição os seus supri mentos, não quer dizer
que esteja querendo alguma coisa com você, princi palmente essa 'coisa'. Ontem ela se
sentiu magoada e ofendida por você não. . - ora, mas isso foi antes de você botar tudo a
perder, seu idiota!”
Ele não gostava de pensar no assunto. Sabia o que havia sentido e o que ela havia
visto: a sua careta de nojo e repugnância. Mas o que havia mudado? Ela não continuava
sendo a mesma mulher que viveu com os cabeças-chatas? Durante anos e anos a fio?
Havia se transformado numa deles. A fêmea de um de seus machos.
Propositalmente ele trazia à lembrança tudo aquilo que, na sua vida, era
considerado sujo, repulsivo, odioso, e Ayla fazia parte disto. Quando garo to, costumava
com outros meninos esconder-se atrás dos matos para dizerem os palavrões mais
escabrosos que sabiam e um destes era "fêmea de cabeça chata". Já mais velho, não
muito, mas o suficiente para saber o que significa va um "fazedor de mulher", ele e esses
mesmos meninos se juntavam nos can tos escuros da caverna para conversas
sussurradas sobre garotas e arquitetar planos em meio a risadinhas debochadas para
pegar fêmeas de cabeças-cha tas. As conseqüências os deixavam aterrorizados.
A idéia, então, de um macho cabeça-chata com uma mulher era impen sável.
Somente quando já estava rapaz tal possibilidade era mencionada e assim mesmo não
na frente de qualquer um. Por sua vez, quando rapazes e meninos se punham a pilheriar
para saber quem contava a história mais irnun da e sórdida, essas sempre envolviam
cabeças.chatas com mulheres. O que acontecia depois com o homem que gozava dos
prazeres com uma tal mulher, não se sabia. Impossível de se dizer e a piada consistia
justamente nisso.
Mas sobre aberrações da natureza ou sobre as mulheres que as pariam, não se
falava. Eram seres formados das misturas poluídas de espíritos, uma força do mal
deixada solta neste mundo e abominada até mesmo pela Mãe, a criatura de toda a vida
na Terra. As mulheres que os geravam eram intocáveis.
Podia Ayla ser isso? Qualquer coisa repelente? Suja? Obscena? Um agente do mal?
Ayla, tão sincera e íntegra? Com aquele seu imenso dom de curandeira? Tão inteligente,
corajosa, delicada e bela. Podia uma moça tifo linda ser tão sórdida?
"Acho que ela nem entenderia o que quer dizer tudo isso, mas o que pensaria dela
alguém que não a conhecesse? E se a encontrassem e ela dissesse por quem foi criada?
Se ela contasse que era mãe. - . de tal criança? O que pensaria Zelandoni? E Marthona?
E, naturalmente, ela não deixaria de con tar e enfrentar todos eles. Acho que Ayla
enfrenta qualquer um, até mesmo Zelandoni. Ela quase podia ser, com esse seu talento
para curar e esse seu jeito para lidar com animais, uma Zelandoni.”
"Mas se Ayla não é o mal, então tudo que se diz sobre os cabeças-chatas é mentira!
Ninguém acreditará nisso.”
Ele não prestava atenção para onde estava indo. Com surpresa, sentiu um focinho
mole tocando na sua mão. Não havia visto os cavalos. Resolveu parar para fazer umas
carícias no potrinho. Huiin, sempre pastando, ia deva gar encaminhando-se na direção da
caverna. Jondalar deu por encenadas as carícias e o animal imediatamente partiu,
saltando na frente de sua mãe. Ele não tinha pressa para voltar a enfrentar Ayla.
Ela, no entanto, não estava na caverna. Havia seguido ao redor da curva do
penhasco e ficou observando-o correr pelo vale. Às vezes também sentia vontade de
correr, mas não podia imaginar por que de repente sentira ele aquela necessidade de
fazê-lo com tal ímpeto. Seria por sua causa? Ela pôs a mão em cima do fogão de barro.
Estava quente. Em seguida, encaminhou-se para o bloco de pedra solto no vale.
Jondalar, novamente perdido nos seus pensamentos, surpreendeu-se ao levantar os
olhos e ver os animais amontoa dos ao redor dela.
- Desculpe, Ayla. Não devia ter corrido dessa maneira.
- Às vezes eu também tenho necessidade de correr. Ontem deixei Huiin correr por
mim. Ela vai mais longe.
- Eu peço desculpas por isso também.
Ela balançou a cabeça compreendendo. "Outra vez cortesias. - . costu mes. O que
realmente quer isso dizer?" Em silêncio, encostou-se na égua e Huiin apoiou a cabeça
sobre o seu ombro. Jondalar já as vira assim. Era quando Ayla tinha algo a afligi-la. As
duas pareciam buscar consolo uma na outra. Ele próprio, ao acariciar o potro, encontrava
uma certa satisfação.
Mas o cavalinho, por mais que gostasse de paparicos, cori1eçou a ficar impaciente
com tanta inércia. Sacudiu a cabeça, levantou o rabo e saiu salti tante pelo campo.
Depois voltou aos pinotes, dando um encontrão em Jonda lar, como se o chamasse para
brincar. Ele e Ayla se puseram a rir, quebrando a tensão.
448 449 - Você vai lhe dar o nome - falou ela num tom de simples comunica çâo,
sem qualquer premência na voz. Se ele não desse, ela provavelmente daria.
- Não sei que nome poderia dar. Nunca tive de pensar nisso antes.
- Nem eu, até que apareceu Huiin.
- E o seu filho, não foi você quem lhe deu o nome?
- Não. Foi Creb quem deu. Durc era o nome do personagem de uma história de que
eu gostava muito. De todas as lendas e narrativas, essa era a minha predileta e Creb
sabia disso. Acho que escolheu o nome para me agra dar.
- Não sabia que os clãs tinham as suas lendas. Mas como você pode contar
histórias sem falar?
- Da mesma maneira que você conta com palavras. Só que mostrar é em certos
casos ainda mais fácil do que dizer.
- Imagino que sim - disse Jondalar, sem saber que tipo de histórias po deriam os
cabeças-chatas contar, ou melhor, mostrar. Estava longe de imagi nar que fossem
capazes de inventar histórias.
Os dois observavam o potro com o rabo esvoaçando, a cabeça esticada, feliz em
suas correrias. "Está prometendo ser um belo garanhão. Um verda deiro campeão!",
pensou Jondalar.
- Campeão? - perguntou. - Que tal o nome de Campeão para o potro?
- parecia combinar. Voltaemeiaera o modo como ele se referia ao cavalinho.
- Gostei. Ë um bom nome. Agora, só falta lhe dar o nome na forma apropriada.
- Como assim?
- Eu não tenho muita certeza se é correto fazer isto para um cavalo, mas eu dei
nome a Huiin na forma como as crianças dos das recebem os seus. Eu vou lhe mostrar.
Com os cavalos seguindo atrás, ela conduziu Jondalar a um barranco nas estepes
que fora o leito de um rio e que tinha o terreno, agora, parcial- mente, nivelado. A erosão
em um dos lados punha à mostra a distribuição das camadas horizontalmente
estratificadas. Para surpresa de Jondalar, Ayla com um pau escavacou a terra vermelha e
pegou um punhado com as duas mãos. De volta ao rio, perto da caverna, ela misturou a
terra com água, fazendo uma pasta.
- Creb misturava a cor vermelha com gordura de urso da caverna. Mas como eu não
tenho isso, faço corn lama comum. . - é mais apropriada para um cavalo. Seca e sai mais
depressa. O nome é o que importa. Você tem de segurar na cabeça dele.
Jondalar acenou chamando o cavalinho que saltitava cheio de vida, mas entendeu o
gesto e se pôs quieto quando ele passou o braço ao redor de seu pescoço e ficou
fazendo-lhe festinhas. Ayla, na velha língua gestual dos das, conclamou os espíritos para
assistirem à cerimônia. Ela não queria realizar o ritual com todos os seus rigores. Não
tinha muita certeza se os espíritos fica riam ofendidos com uma cerimônia para dar nome
a um cavalo, apesar de que, com Huiin, não houve nenhum problema neste sentido.
Pegou, então, um punhado da lama vermelha.
- O nome deste cavalo é Campeão - falou em voz alta, ao mesmo tem po que
gesticulava. Em seguida, fez uma linha vermelha que saía do tufo da crina branca na
testa e descia até a ponta do nariz.
Tudo tinha de ser feito rapidamente, pois o potrinho se retorcia, queren do escapulir
do abraço de Jondalar. Afmal, ao se ver solto, saiu saracoteando, pondo-se a dar
cabeçadas no ar, louco para livrar-se daquela coisa estranha e úmida em seu focinho.
Voltou-se, então, para Jondalar, e lhe deu uma mar rada que deixou uma mancha
vermelha em seu peito nu.
- Acho que eu também tive a minha cerimônia - falou ele sorrindo. Nisso, como se
para fazer jus ao nome, Campeão disparou numa louca corre ria pelo campo.
- Por que você usa essa terra vermelha? - perguntou Jondalar, limpan do com a mão
a lama de seu peito.
- Por ser. - - santa. - - para os espíritos - respondeu Ayla.
- Quer dizer sagrada? Nós dizemos sagrada, tal como o sangue da Mãe.
- Sim, como sangue. . - Creb. - - o mog-ur, esfregou uma pasta feita de gordura de
urso e terra vermelha no corpo de Iza, depois que o espírito dela partiu. Ele disse que era
para l renascer no outro mundo com o sangue que mancham os bebês quando nascem -
era uma lembrança que a fazia sofrer.
Os olhos de Jondalar se esbugalharam.
- Você está dizendo que os cabeças-chatas. - . quer dizer, os clãs, usam terra
sagrada para enviar os espíritos ao outro mundo? Tem certeza?
- Ninguém está devidamente enterrado se não houver isso.
- Ayla, nós também usamos terra vermelha. Ë o sangue da Mãe. A terra é passada
no corpo e posta na sepultura para que a Mãe leve o espírito de vol ta ao seu ventre e ele
possa renascer - uma expressão de dor passou-lhe pelos olhos. - Thonolan não teve terra
vermelha.
- Lá não havia, Jondalar, e eu não podia perder tempo para buscar. Tinha de vir com
você para a caverna, pois do contrário teria de preparar não uma, mas duas sepulturas. A
única coisa que pude fazer foi pedir ao meu to tem e ao espírito do Grande Urso da
Caverna que ajudassem o seu irmão a en contrar o caminho dele.
- Você enterrou Thonolan? O seu corpo não foi deixado às feras?
- Coloquei o corpo dele perto do paredão e desprendi uma rocha para que fosse
coberto por pedras e cascalhos. Mas terra vermelha não consegui pôr.
450 451 Jondalar achou a idéia dos cabeças-chatas enterrando os seus mortos
ainda mais difícil de aceitar. "Mimais não fazem enterros, Só o homem se in daga de
onde vem e para onde vai depois da morte. Será que os espíritos dos clãs poderiam
conduzir Thonolan no seu caminho?”
- Isso é muito mais do que o meu irmão poderia ter tido se você não estivesse lá,
Ayla. E quanto a mim, nem se fala.. - eu tenho a minha vida.
26 - J não me lembro de ter comido nada tão gostoso na minha vida. Onde aprendeu
a cozinhar assim? - falou Jondalar, pegando um outro pedaço da ptármiga, tão fma e
delicadamente temperada.
- Foi Iza quem me ensinou. Onde mais poderia ter aprendido? Esse era o prato
favorito de Creb - ela não sabia por que, mas a pergunta a deixava um tanto irritada. -
Uma curandeira conhece plantas, Jondalar. Aquelas que temperam também servem para
curar.
Ele lhe percebeu o tom de irritação e ficou sem saber o que o teria cau sado. Havia
apenas querido fazer-lhe um cumprimento. A comida estava muito boa. De fato,
excelente. E pensando nisso, lembrou-se de que tudo que Ayla preparava era delicioso.
Muitas das comidas tinham gostos diferentes, mas novas experiências se constituíam
numa das razões por que se viajava. Apesar dos sabores desconhecidos, não havia
dúvida quanto à qualidade.
E ela fazia tudo sozinha. Tal como o chá pela manhL havia preparado de uma forma
tão natural que a pessoa esquecia do quanto trabalhara. Tinha caçado, colhido plantas e
cozinhado. Tudo fora providenciado e ele nada tinha a fazer, senão comer. "Você não
contribuiu com coisa alguma, Jonda lar. Só aproveita e nada dá em troca. . . é como se
fosse pior do que nada.”
"E agora você vem com palavras de elogio. Ela tem toda a razão para estar
aborrecida. Vai ficar feliz quando você for embora. Só serve para lhe dar mais trabalho
ainda.”
"Você podia, pelo menos, caçar para pagar a carne que come. E é tão pouco por
tudo que ela vem fazendo. . . Será que não consegue pensar em alguma coisa mais
duradoura? Ela é ótima caçadora. De que vai adiantar um pouco mais de carne?
"Como é que consegue arranjar-se para caçar com essa sua lança pavoro sa? Será
que vai achar que estou ofendendo os clãs se eu oferecesse. .
- Ayla. . . eu. . . bom, queria lhe dizer uma coisa, mas não é com a in tenção de
ofendê-la.
- Por que você agora fica preocupada se eu vou ou não me ofender? Se tem alguma
coisa para dizer, diga.
A irritação ainda se fazia sentir e Jondalar estava quase desistindo de falar.
- Tem razão. É um pouco tarde para isso. Bom, é que eu estava imagi nando. . .
como você se arruma para caçar com essa sua lança?
Ayla ficou espantada com a pergunta.
- Eu cavo um buraco e corro, ou melhor, provoco um estouro da mana da, fazendo
com que os animais se dirijam para o buraco no chão.
- Claro, uma armadilha! E assim você consegue chegar perto para p der cravar a
lança. Ayla, você já fez tanto por mim que eu queria deixar-lhe alguma coisa antes de ir
embora. Alguma coisa que valesse a pena. Mas não queria ofendê-la. Se não gostar da
idéia, esqueça o que eu falei, está bem?
Ela confirmou com a cabeça, um pouco apreensiva, mas curiosa.
- Bom. - . você é uma boa caçadora, principalmente quando se sabe com que arma
caça. Mas queria lhe mostrar um modo que facilitaria muito as coisas. Bem, eu queria lhe
oferecer uma arma melhor para caçar. Se você per mitir, naturalmente.
A irritação desapareceu.
- Você quer me oferecer uma arma melhor para caçar?
- E também uma maneira mais fácil de pegar o animal. A não ser que não queira. É
preciso algum tempo e.. - Ela abanava a cabeça, sem acreditar.
- As mulheres dos clâs não caçam e nenhum homem me queria deixar caçar, nem
mesmo com a funda. Creb e Brun só permitiram porque queriam satisfazer o meu totem,
O Leão da Caverna é um totem masculino muito poderoso e fez com que os dois
soubessem que era por vontade dele que eu caçava. Eles não tiveram coragem de
desafiar o meu totem - subitamente se lembrou de forma muito viva de uma c6na de sua
vida. - Eles fizeram uma cerimônia especial para mim - ela tocou na pequenina cicatriz
em sua gargan ta. - Creb ofereceu o meu sangue em sacrifício aos Velhos Espíritos para
que eu pudesse caçar. Quando cheguei a este vale, a única arma que sabia manejar era
a funda. Mas não era o bastante e tive de fazer lanças iguais às que via com os homens
dos das. Aprendi a caçar com eles.. . bom, tanto quanto eu pude. Nunca imaginei que
algum dia um homem fosse me oferecer uma arma - ela abaixou os olhos, já inteiramente
rendida. - Ficarei imensamente agradecida, Jondalar. Não tenho palavras para lhe dizer o
quanto.
452 453 As rugas de tensão na testa de Jondalar desapareceram. Achava que ti nha
visto uma lágrima brilhando nos olhos de Ayla. Poderia isso significar tan to assim para
ela? E ele que estava com medo de que fosse ofendê-la. Será que ainda chegaria um dia
a compreendê4a? Quanto mais a conhecia, era como se menos a entendesse. Ela disse
que havia aprendido a caçar sozinha.
- Vou precisar fazer algumas ferramentas especiais e também arrumar alguns ossos.
Aqueles de patas de veado que encontrei servem perfeitamente, mas precisam ficar de
molho. Você tem algum recipiente que eu possa usar para botar os ossos dentro da
água?
- De que tamanho deve ser? Tenho uma porção - disse ela, levantan do-se.
- Isso pode esperar até você acabar de comer, Ayla.
Ela já não tinha tanta fome. Estava muito excitada, mas resolveu sentar- se de novo,
pondo-se a remexer na comida. Jondalar ainda não havia termina do. Ele, por fim,
reparou que ela não estava comendo.
- Quer dar uma olhada nos recipientes agora? - perguntou Jondalar.
Ela imediatamente saltou sobre os pés e correu para a área do depósito, trazendo
de lá uma lamparina. Estava escuro no fundo da caverna. Jondalar ficou segurando a
lamparina, enquanto Ayla ia retirando cestas, gamelas, potes de casca de vidoeiro, tudo
posto em pilhas e aninhado um dentro do outro. Ele suspendeu a lâmpada para iluminar
ao redor. Havia tanta coisa, muito mais do que ela poderia usar.
- Foi você quem fez isso tudo?
- Foi - respondeu, desfazendo as pilhas.
- Você deve ter gastado dias. - - luas. . . estações para fazer isso tudo. Quanto
tempo levou?
Ayla pensava numa maneira de responder.
- Estações foram muitas. A maioria dessas coisas foi feita durante os invernos. É
uma época em que eu não tenho nada para fazer. Há algum reci piente do tamanho de
que você vai precisar?
Ele examinava os utensílios que ela espalhara pelo chão e ia pegando em vários,
mais para ver do que para escolher. Difícil de acreditar. Por mais rápida e habilidosa que
fosse Ayla, aquelas cestas magnificamente tecidas e as gamelas de fino acabamento
precisariam de muito tempo para serem feitas. "Há quanto tempo estaria vivendo aqui
sozinha?" - - Essa aqui está ótima - falou Jondalar, escolhendo uma gamela gran de na
forma de um cocho de bordas altas.
Ela voltou a empilhar tudo ordenadamente, enquanto ele segurava a lâmpada. "Ela
não podia ser muito criança quando veio para cá, mas parece ainda tão moça, ou será
que não? Difícil avaliar. Havia nela qualquer coisa de intemporal, uma certa inocência que
estava em desacordo com o seu corpo 454 maduro de mulher. Já era mãe. Em tudo por
tudo uma mulher feita. Que idade teria?”
Eles desceram à praia. Jondalar encheu a gamela com água e foi exami nar as
tíbias que achara no monturo.
- Esse aqui possui uma rachadura que eu não tinha reparado - disse, mostrando um
osso e jogando-o logo fora. Os outros, mergulhou-os dentro da água Enquanto
caminhavam de volta à caverna, ele procurava imaginar que idade poderia ter Ayla. "Não
pode ser muito moça.. não teria tempo para ser tão boa curandeira. Seria da minha
idade?”
- Ayla, há quanto tempo você está aqui? - perguntou, depois que entraram na
caverna, sem conseguir conter mais a curiosidade, Ela parou, pensando num modo de
responder, ou de, pelo menos, fazê lo entender. Lembrou-se de suas varas de contar. Era
uma coisa que Creb lhe ensinara, mas que ela não deveria saber. Jondalar talvez
desaprovasse. "Bom, de qualquer maneira ele está indo embora", pensou.
Ela pegou o feixe de varas com as marcas da passagem dos dias.
- O que é isso?
- Você não quer saber há quanto tempo estou aqui? Eu não sei como lhe explicar,
mas desde que cheguei a este vale ponho uma marca todas as noites numa vara, O
número de noites que estou aqui é igual ao número de marcas.
- Você sabe quantas marcas existem?
Ela lembrou-se de sua frustração quando, certa vez, tentara dar um sen tido àquelas
marcas.
- São tantas quantas as que estão aí - respondeu.
Jondalar, intrigado, pegou uma das varas. Ayla não sabia as palavras usadas para
contar, mas tinha a intuição delas. Mesmo na Caverna, nem todo mundo podia
compreendê-las. A poucos era dada a faculdade de conhecer a poderosa mágica das
contas. Zelandoni lhe explicara um pouco sobre isto. Jondalar não sabia tudo quanto dizia
respeito àquelas palavras, mas mesmo assim sabia mais do que a maioria daqueles que
nÊo faziam parte do grupo de servidores da Mãe. "Onde teria Ayla aprendido a marcar
varas? Como al guém criado por cabeças-chatas podia ter o entendimento das palavras
usadas para contar?”
- Como você aprendeu a fazer isso?
- Creb me mostrou. Há muito tempo atrás, quando eu era menina.
- Creb, o dono da casa em que você viveu? Ele conhecia as palavras de contar?
Será que não estava fazendo essas marcas por algum outro motivo?
- Creb era. - mog-ur. - - santo homem. As pessoas dependiam dele para saber a
ocasião de determinadas cerimônias, como a de dar nome ou quando, 455 A por
exemplo, deveriam realizar-se as reuniões de clãs. Era pondo marcas num pau que ele
sabia. Acho que Creb não acreditava que eu pudesse compreen der. É uma coisa difícil
até para os mog- urs. Ele só me mostrou porque eu es tava fazendo muitas perguntas.
Depois me disse para que nunca mais voltas se a tocar no assunto. Quando eu já estava
um pouco mais velha, uma vez ele me pegou marcando os dias do ciclo da lua- Ficou
furioso comigo.
- Esse. - - mog-ur - Jondalar tinha dificuldade de pronunciar a palavra - era uma
pessoa santa que seria qualquer coisa como um Zelandoni?
- Não sei. Você quando fala num Zelandoni parece que está se referin do a um
curandeiro. Não era o caso do mog-ur. lia sim. Ela é que era curan deira, quem conhecia
plantas e ervas, O mog-ur entendia de espíritos e inter cedia junto a eles para ajudar lia
em seus trabalhos.
- Um Zelandoni pode, além de ser um curandeiro, ser uma pessoa do tada de outros
predicados. É alguém que dedicou a sua vida a servi-la. Alguns não têm qualquer dom
mais especial, simplesmente são movidos pelo desejo de estar no seu serviço, mas são
as pessoas que podem falar com a Mãe.
- Os dons de Creb eram outros. Ele era o mais poderoso, o mais emi nente. - - podia
fazer.., não sei como explicar.
Jondalar balançava a cabeça concordando. Nem sempre, da mesma for ma,
conseguia explicar os dotes de um Zelandoni, que era também como os mog-urs, o
guardião do saber. Ele voltou a sua atenção para as varas.
- O que significam essas aqui? - perguntou, apontando para as marcas extras.
Ayla enrubesceu.
- É. . - é a minha condição de mulher - respondeu, procurando pelas palavras.
As mulheres dos clãs deviam evitar os homens durante os seus períodos de
menstruação, e eles, por sua vez, as ignoravam totalmente. Elas ficavam se mi-reclusas -
sofrendo a maldição da mulher - pois os homens temiam a misteriosa força vital que
permitia à mulher produzir vida. Algo que impreg nava o espírito do totem delas com uma
extraordinária força que afugentava as essências fecundadoras dos espíritos de totens
masculinos. Quando uma mulher sangrava, a essência do totem do macho era banida.
Nenhum homem desejava ter o espírito de seu totem travando uma guerra durante esse
período.
Mas Ayla, pouco depois de haver levado Jondalar para a caverna, se viu diante de
um dilema. Ela não podia se manter eM absoluto isolamento, Não enquanto a vida
daquele homem estivesse por um fio e ele precisando de toda a sua atenção. Resolveu,
portanto, ignorar os regulamentos. Mais tarde, duran te esses períodos, trataria de evitar
os seus contatos com ele. Mas como fazer isso se na caverna não havia mais ninguém,
fora eles dois? Ela não podia, tal como era costume nos clãs, dedicar-se exclusivamente
a tarefas femininas.
456 Ali não havia nenhuma outra mulher para substituí. nos afazeres diários. Ti nha
que caçar para o homem, cozinhar para ele, além de que Jondaiar a queria ter por perto
durante as refeições.
Tudo que lhe restava fazer para guardar o mínimo do decoro feminino era não tocar
no assunto e se cuidar para que o fato pudesse passar desperce bido. Como, então,
poderia responder à pergunta dele?
Jondalar, entretanto, aceitou as palavras dela sem dar mostra de nojo ou apreensão.
Nele não havia o menor indício de preocupação.
- A maioria das mulheres costumam tomar nota de seus períodos. Foi Iza ou Creb
quem lhe ensinou fazer isto? - perguntou ele.
Ayla abaixou a cabeça, querendo esconder o embaraço.
- Não. Fiz isso para que pudesse saber. Não queria ser apanhada fora da caverna
despreparada.
Com surpresa, ela viu que ele balançava a cabeça aprovando.
- A esse respeito, as mulheres têm uma história para contar, Dizem que a lua, Lumi,
é o amante da Grande Mãe Terra. Nos dias em que Doni está san grando, ela não goza
dos prazeres com o seu amado que, furioso, com o seu orgulho ferido, se afasta dela,
escondendo a sua luz. Mas Lumi não consegue ficar longe de Doni por muito tempo.
Sente-se solitário e saudoso de seu cor po quente e farto. Ele volta a espreitá-la. Doni, no
entanto, está zangada. Não quer olhar para o amante. Ele, então, começa a rodeá-la e a
mostrar-se a ela em todo o seu esplendor. Doni não consegue resistir e mais uma vez
abre-se ao bem-amado e, felizes, vivem por algum tempo.
'Por isso a maioria dos festivais da Mãe se realiza na lua cheia. As mu lheres dizem
que as suas fases coincidem com as de Doni. Costumam chamar os períodos em que
estão sangrando de tempo de lua. É observando Lumi que sabem quando isto lhes vai
acontecer. Doni deu, às mulheres, palavras de con tar para que, quando a lua estivesse
escondida pelas nuvens, elas pudessem sa ber da época de seu sangramento. Essas
palavras, hoje, são usadas para diver sas coisas muito importantes.
Apesar de desconcertada com o fato de um homem falar tão abertamen te de um
assunto da intimidade feminina, Ayla estava fascinada com a história.
- Às vezes eu também observo a lua, mas mesmo assim continuo colo cando as
minhas marcas numa vara. O que são palavras de contar?
- São. . - nomes para as marcas que estão em suas varas, Um para cada uma delas.
São usados para expressar o número de alguma coisa. Essas pala vras podem dizer, por
exemplo, quantos veados um espia viu numa manada, pode dizer quantos dias são
necessários para se chegar até onde estão os ani mais e muitas coisas mais. Se for uma
manada grande, como a dos bisões du rante o outono, o espia deve ser um zelandonii,
pois ele é quem sabe a manei ra certa de usar as palavras de contar.
457 -4 Ayla se sentia interessada, quase chegando a compreender o que dizia
Jondalar. Estava perto de resolver muitos problemas cujas respostas lhe esca pavam.
gumas.
Jondalar deu uma olhada na pilha de pedras de cozinhar e apanhou a!
- Vou mostrar para você como é - falou, enfileirando as pedras e di zendo à medida
que ia apontando para cada uma:
- Um, dois, três, quatro, cinco...
Ayla observava cada vez mais interessada.
Ao terminar, ele olhou à sua volta, procurando mais objetos para con tar. Pegou as
varas de Ayla e voltou a contar:
- Um - falou, botando a primeira de lado. - Dois - disse, enquanto punha a segunda
vara perto da primeira. - Três, quatro, cinco...
Ayla, então, se lembrou nitidarnente de Creb com os dedos espichados e lhe
dizendo: ano do nascimento, ano de andar, ano de desmamar.. . Ela esti cou a mão e
olhando para Jondalar ia mostrando cada um de seus dedos:
- Um, dois, três, quatro, cinco.
- Isso mesmo. Sabia que você estava no caminho de entender quando vi as suas
varas.
Ela deu um sorriso de triunfo. Pegou, então, uma das varas e começou a contar as
marcas. Jondalar prosseguiu quando ela parou por não saber con tar os números mais
altos. Mas mesmo ele teve de interromper quando bateu na segunda marca extra. A testa
franziu-se com o pensamento mergulhado em profunda concentração.
- É esse o tempo que você está aqui? - perguntou, apontando para as varas que
Ayla tinha posto para fora do depósito.
- Não - respondeu ela, levantando-se para pegar o resto. Desatou ou tros feixes,
espalhando todas as varas pelo chão.
Jondalar, ao olhar para aquilo tudo, empalideceu. O seu estômago dava voltas.
Anos! As marcas representavam anos! Ele as enfileirou, de modo a ver todas as ranhuras
na madeira. Depois ficou por algum tempo estudando-as. Apesar de Zelandoni lhe ter
explicado como contar números maiores, ele ti nha de pensar.
Então, sorriu. Ao invés de contar os dias, contaria as marcas extras, aquelas que
representavam um ciclo completo das fases da lua, ou seja, cada período de
sangramento de Ayla. À medida que contava em voz alta, ia fazen do para cada marca
um traço no chão de terra. Depois de ter 13 marcas, omi tiu uma, tal como Zelandoni lhe
explicara, e fez apenas 12 traços. Os ciclos da lua não correspondiam exatamente aos
anos ou estações. Quando ele termi nou com as marcas dela, havia chegado ao fim da
terceira vara. Parou e olhou pasmo para Ayla.
458 - Três anos! Você já está aqui há três anos! É o tempo que eu estou via jando.
Você esteve aqui sozinha todo esse tempo, Ayla?
- Eu tinha Huiin e depois.. - - Mas você nunca mais viu ninguém?
- Depois que deixei o clã, não.
Ela pensou nos anos e na maneira que usava para contá-los. Começava quando
tinha encontrado o vale e adotado a potranca. A este, denominava ano de Ruim. Na
primavera seguinte havia encontrado o filhote de leão. Era o ano de Neném. Portanto, do
ano de Huiin ao ano de Neném havia o que Jon dalar chamava um. Dois era o ano do
garanhão, e três o ano de Jondalar e do potrinho. Ela se lembrava melhor dos anos pela
maneira como os chamava, mas gostou das palavras de contar. As marcas haviam
permitido a Jondalar saber há quanto tempo ela estava no vale. Queria aprender a fazer
isso também.
- Você sabe quantos anos tem, Ayla? Quantos anos já viveu desde que nasceu? -
perguntou subitamente Jondalar.
- Deixe-me pensar - ela levantou uma das mãos com os dedos estica dos. - Creb
disse que Iza imaginava que eu tivesse essa quantidade. - . cinco anos. . . quando eles
me encontraram - Jondalar fez cinco riscos no chão. - Durc nasceu na primavera em que
houve a reunião dos das. Eu levei o meu fi lho comigo. Creb dizia que entre uma reunião
e outra há essa quantidade - falou, acrescentando mais doisdedos da outra mão.
- Isso faz sete - disse Jondalar.
- No verão antes de me terem achado, houve uma reunião de clãs.
- Bom, vamos tirar um. Agora deixe-me pensar - pediu Jondalar, bo tando mais
riscos no chão. Mas então ele abanou a cabeça incrédulo. - Tem certeza? Quer dizer que
o seu filho nasceu quando você estava com 11 anos?
- Claro que tenho, Jondalar.
- Já ouvi falar de mulheres que foram mãe com essa idade, mas são bem poucas.
Com 13 ou 14 anos é o comum e assim mesmo há quem pense ser ainda cedo. Você
praticamente não passava de uma menina, Ayla.
- Não. Eu já não era mais menina. Há muito tempo que tinha deixado de ser criança.
Estava muito grande para ser criança. Era mais alta do que qualquer pessoa, inclusive
mais alta do que os homens. E também já era bem mais velha do que as meninas dos
clãs, quando elas se tomam mulheres. Acho que não poderia esperar mais - falou com
um ligeiro sorriso nos lábios. - Ha via pessoas que pensavam que eu nunca fosse tomar-
me mulher por causa de meu totem ser muito forte. Iza ficou feliz quando viu- - - que as
fases da lua haviam começado para mim. E também eu até. . - - o sorriso desapareceu -
esse foi o ano de Broud. O ano seguinte foi o de Durc.
- Um ano antes de seu filho nascer, Ayla, você estava com dez anos! Ser violentada
aos dez anos! Como pôde ele fazer uma coisa dessas?
459 A ele - Eu era mulher e mais alta do que qualquer outra. Mais alta até do que -
Mais alta sim, mas não maior. Já vi alguns desses cabeças-chatas! Po dem não ser altos,
mas são fortíssimos. Eu não gostaria de me ver engalfi nhado com um deles.
- Cabeças-chatas não, Jondalar. Homens - corrigiu AyIa com delicade za. - Os
homens dos clãs.
Jondalar se interrompeu. Apesar do tom delicado de voz, Ayla tinha os maxilares
cerrados, numa expressão firme e obstinada.
- Depois de tudo o que aconteceu, você ainda insiste que ele não é um animal?
- Talvez você possa chamar Broud de animal por ele ter me forçado. Mas como você
chamaria os homens que também forçaram as mulheres dos clãs?
Não era bem a maneira como Jondalar encarava este assunto.
- Nem todos os homens são iguais a Broud, Jondalar. A maioria não é. Creb, por
exemplo. Mesmo sendo um poderoso mog-ur, era uma pessoa boa e delicada. Brun
também, apesar de chefe. Era enérgico, mas sempre justo. Ele me aceitou em seu clã.
Se fez algumas coisas, foi porque se viu obrigado. Ele não podia desrespeitar os
costumes clânicos. Mas eu fui honrada com a sua gratidão. Os homens dos clãs
raramente mostram-se gratos a uma mulher na frente dos outros. Brun me permitiu caçar.
Aceitou Durc e, quando eu par ti, ele prometeu proteger o meu filho.
- E quando foi que você partiu?
Ela parou para pensar. Ano do nascimento. Ano de andar. Ano de des mamar.
- Durc estava com três anos quando eu parti.
Jondalar acrescentou mais três riscos.
- Você, então, tinha 14 anos? Só 14? E desde essa época está aqui vi vendo
sozinha? Há três anos? - ele contou todos os traços riscados no chão.
- Você está com 17 anos, Ayla. Toda uma vida em 17 anos. - Por algum tempo Ayla
ficou em silêncio, pensando. Então falou:
- Dure está agora com seis anos. Os homens já devem estar levando-o para o
campo de treinamento. Grod irá fazer uma lança de tamanho apropria do para ele e Brun
vai ensiná-lo como deve ser usada. E se ainda estiver vivo, o velho Zoug também irá
ensinar ao meu filho como atirar com funda. Durc já deve estar treinando a caçar animais
pequenos. Ele e o seu amijo Grev.. Dure é mais moço, porém é mais alto do que Grev.
Sempre foi alto para a sua idade. Nisso, me puxou. E corre muito rápido. É o que corre
mais rápido no clã. Há de ser muito bom também com uma funda e Uba o ama. Ama-o
tanto quanto eu.
460 Ayla só reparou que tinha os olhos cheios de lágrimas quando um solu ço saiu
em meio à sua respiração. Tampouco soube como de repente se encon trou nos braços
de Jondalar, com a cabeça apoiada em seu ombro.
- Está tudo bem agora, Ayla - disse ele, acariciando-a com brandura. "Mãe aos 11
anos, arrancada de junto do filho aos 14. Impedida de vê-lo cres cer. Nem ao menos sabe
se ele está vivo e acredita piamente que a criança é amada e bem-tratada e que vão
ensiná-la a caçar. - . como qualquer outro menino."
Ayla se sentia consolada quando, por fim, levantou a cabeça do ombro de Jondalar,
mas ao mesmo tempo estava mais leve, como se a sua dor agora lhe pesasse menos.
Era a primeira vez, desde que saíra do clã, que comparti lhava os seus sofrimentos com
alguém. Agradecida, sorriu para Jondalar.
Ele devolveu-lhe o sorriso, cheio de ternura e dó e mais alguma coisa. Algo brotado
da fonte inconsciente do seu eu que se refletia nas profunde zas azuis de seus olhos e
tocava numa corda sensível de Ayla. Por um longo momento a linguagem franca dos
olhos, declarando mudamente aquilo que não ousavam dizer em voz alta, os encerrou
num íntimo abraço.
A tensão foi demasiada para Ayla. Ela ainda não adquirira tranqüilida de suficiente
para enfrentar um olhar direto. Bruscamente afastou os olhos e se pôs a reunir as varas
marcadas. Jondalar levou algum tempo até cair em si e vir ajudá-la a amarrar os feixes.
Trabalhando do lado dela, ele sentia mais o seu cheiro de mulher, quente e agradável, do
que quando a teve nos braços. Ayla, por sua vez, ainda guardava na lembrança os
lugares em que os seus cor pos se haviam encontrado, onde ela fora tocada pelas mãos
acariciantes de Jondalar e o gosto salgado da pele dele misturado com o sabor de suas
lágrimas.
Os dois se davam conta de que se haviam tocado e que nem por isso se sentiram
ofendidos. No entanto, evitavam se olhar diretamente nos olhos, com cuidado de não se
encostarem, temendo romper aquele momento de ter nura tão naturalmente surgido.
- Quantos anos você tem, Jondalar? - perguntou ela, depois de haver pegado os
feixes de varas.
- Quando comecei a viagem, estava com 18 anos. Thonolan tinha 15.. e 18 quando
morreu. Pobre Thonolan, tão moço ainda. - - - o seu rosto reve lava a dor que ainda
sentia. - Agora, estou com 21. - - e ainda não tenho uma companheira. Já não devia estar
mais sozinho. A maioria dos homens de minha idade já encontrou a sua cara-metade e
está com a sua casa cons truída. Com Thonolan foi assim. Ele tinha 16 anos na época de
seu matri mônio.
- Encontrei só dois homens. Onde está a companheira dele?
- Morreu de parto. A criança também - os olhos de Ayla se encheram de pesar. - Foi
por isso que retomamos a viagem. Thonolan não suportou mais 461 A permanecer onde
estávamos. Desde o princípio, essa viagem era muito mais dele do que minha. Ele
andava sempre à procura de aventuras, sempre irre quieto. Um tipo ousado, mas todo
mundo gostava dele. Eu nada fazia senão acompanhá-lo. Era meu irmão e o melhor
amigo que já tive. Depois que Jeta mio morreu, tentei convencê-lo a voltar para casa,
mas não consegui. Estava tão amargurado que não pensava em outra coisa a não ser
seguir a compa nheira para o outro mundo.
Ayla lhe via a expressão de tristeza, lembrando-se de seu imenso deses pero
quando soube da morte do irmão.
- & era o que ele queria, talvez esteja feliz. Ë difícil continuar vivendo depois da
morte de uma pessoa muito querida - falou ela, docemente.
Ele agora entendia um pouco mais a dor inconsolável de Thonolan. Tal vez Ayla
tivesse razão. Ela devia saber. Já havia sofrido e penado demais. Mas escolhera viver.
Thonolan era impetuoso, arrebatado, cheio de coragem. Em Ayla a coragem se revelava
na perseverança.
Ayla não estava conseguindo dormir direito, e os pequenos ruídos de mexidos e
viradas de corpo que vinham do outro lado da fogueira indicavam que Jondalar também
permanecia acordado. A sua vontade era levantar-se e ir para junto dele, mas a
atmosfera de ternura formada num momento de so lidariedade na dor parecia tifo tênue
que tinha medo de quebrá-la se quisesse mais do que ele estava disposto a dar.
À luz mortiça da fogueira abafada, ela lhe via a forma do corpo sob as peles de
dormir, o braço moreno atirado para fora das cobertas e uma perna musculosa com o
calcanhar apoiado no chão. Via-o melhor quando fechava os olhos do que olhando para o
seu vulto adormecido. Os seus cabelos louros e lisos amarrados na nuca com urna tira de
couro, a sua barba mais escura e encaracolada, os olhos fantásticos, mais eloqüentes do
que as suas palavras, e as mãos grandes, sensíveis, de dedos longos, tudo expressando
muito mais do que os olhos dela podiam ver. Ele sempre sabia o que fazer com as mãos,
fosse segurando um pedaço de sílex ou coçando o potrinho nos lugares dese jados. . -
Campeão, um bom nome. Foi ele quem deu- - Como podia um homem tifo alto e forte ser
tão delicado? Enquanto ele a consolava, ela tocara em seus músculos rígidos, sentindo-
os se moverem sob os seus dedos. Ele não tinha vergonha de se mostrar carinhoso e
nem escondia as suas tristezas. Os homens dos clãs eram mais reservados. Até Creb,
apesar de saber que ele a amava, não mostrava abertamente os seus sentimentos, nem
mesmo dentro dos cercados de pedras que delimitavam a sua casa.
O que faria quando Jondalar fosse embora? Não queria pensar sobre isso. Mas era
preciso enfrentar a realidade- - - ele estava de partida. Dissera que queria dar-lhe alguma
coisa antes de partir.
462 Ayla se remexia, dava voltas na cama, de vez em quando surpreendendo o
vulto de Jondalar com o seu torso nu e moreno, os membros largos, a cabe ça virada de
costas para ela. Num certo momento, viu-lhe a coxa com a cica triz de forma irregular,
mas nada de anormal. Por que teria ele sido enviado? Ela estava aprendendo as novas
palavras. . . será que foi para que lhe ensinas se a falar? Ele ia mostrar um modo
diferente de caçar, melhor, mais fácil. Quem poderia imaginar que um homem ainda fosse
ensiná-la a caçar? Nisto também Jondalar diferia dos homens dos clãs. "Talvez eu
também possa lhe dar alguma coisa para que se lembre de mim.”
Por fim ela cochiou com o pensamento dele tomando-a nos braços e sentindo-lhe o
calor do corpo junto ao seu. Acordou pouco antes do dia clarear e havia sonhado com
Jondalar caminhando pelas estepes. Descobri ra o que poderia fazer para lhe dar. Era
algo que estivesse sempre junto de sua pele, que guardasse o calor de seu corpo.
Rápido, se levantou e foi buscar as roupas que tinha cortado na noite em que o
trouxera para a caverna. Em seguida, dirigiu-se para perto da foguei ra. O couro estava
endurecido pelo sangue seco, mas se fosse molhado ela poderia ver como a roupa tinha
sido feita. A camisa, com aquele magnífico desenho, depois de reformada em algumas
partes, poderia ser aproveitada. As calças teriam de ser feitas novas, mas parte da parka
dava para ser aproveita da. Os calçados estavam perfeitos, precisavam apenas de outras
correias.
Ela se inclinou na direção das brasas para examinar as costuras. Nas beiradas das
peles havia pequeninos furos por onde passavam fios de tendões e tiras finas de couro
que emendavam as diversas peças da roupa. Na noite em que as cortara já tinha
reparado naquele tipo de trabalho. Não sabia ao certo se conseguiria reproduzi-lo, mas
iria tentar.
Jondalar se mexeu. Ela prendeu a respiração. Não queria que ele a visse com as
suas roupas. Só depois quando estivessem prontas. Ele voltou a ficar quieto, com a
respiração pesada de quem dormia profundamente. Ayla tor nou a juntar as roupas e as
meteu sob a sua pele de dormir. Mais tarde pode ria passar em revista a sua pilha de
peles curtidas e escolher algumas.
Uma luz fraca começou a penetrar pelas fendas da caverna. A respira ção e
pequeninas mudanças nos movimentos do corpo indicavam que Jonda lar não tardaria
muito a acordar. Ela levou mais lenha para a fogueira, botou pedras para esquentar e
apanhou o recipiente de fazer chá. O odre estava qua se vazio e o chá sempre saía
melhor quando preparado com água fresca. Huiin e o potro estavam de pé em seu canto.
Ayla já estava saindo, mas voltou ao ouvir um relincho baixinho da égua.
- Tive uma Ótima idéia, Huiin - falou ela por gestos e sorrindo. - Vou fazer para
Jondalar roupas do tipo que ele usa. Você acha que o nosso amigo vai gostar? - O
sorriso subitamente desapareceu. Ela encostou a testa em 463 1, 1 Huiin, com um braço
passando em torno do seu pescoço e o outro rodeando o do potro. "Depois, então, ele irá
me deixar", pensou. Ela não podia forçá lo a ficar. Tudo que tinha a fazer era ajudá-lo a
partir.
Quando apareceram as primeiras luzes da madrugada, desceu à praia, tentando
esquecer o triste futuro sem a companhia de Jondalar e procurar) do consolar-se com o
pensamento de que pelo menos as roupas que faria esta riam junto dele. Despiu-se para
um rápido banho de rio e voltou para a caver na, depois de arrumar um graveto e encher
o odre.
"Essa manhã vou experimentar alguma coisa diferente", disse para si mesma. "Uma
mistura de anis com camomila." Limpou o graveto, colocou-o junto da cuia e começou a
preparar o chá. "As framboesas já estão maduras. Acho que vou colher algumas.”
Deixou o chá preparado para Jondalar, escolheu uma cesta de coletar e saiu. l-luiin
e Campeão foram atrás e ficaram no pasto perto da área das framboesas. Ela aproveitou
também para desencavar algumas cenouras e amendoins com as suas raízes
esbranquiçadas e ricas em amido. Podiam ser comidas cruas, mas ela as preferia
cozidas.
No caminho de volta viu Jondalar no patamar banhado pelo sol.
Ela acenou-lhe quando foi para o rio lavar as raízes. De volta a caverna, jogou-as
num caldo de carne que já havia começado a fazer. Provou, salpi cou dentro algumas
ervas secas e dividiu as framboesas em duas porções. Foi então que se serviu de uma
cuia de chá frio.
- Camomila e mais alguma coisa que não consegui identificar - falou Jondalar.
- Não sei como você chama essa planta. Parece um capim, mas é doce. Vou
mostrá-la depois a você - ela reparou que ele havia posto para fora as suas ferramentas e
algumas das laminas que fabricara.
- Gostaria de começar cedo - disse ele, vendo-lhe o interesse. - Há ainda algumas
ferramentas que preciso fazer antes.
- Já é tempo de caçar. A carne seca é muito magra e os animais a essa altura já
estão gordos. Estou louca por um assado bem suculento.
- Só de ouvir você falando - disse, sorrindo - já fico com água na boca. Você cozinha
maravilhosamente bem, Ayla.
Ela ficou vermelha e abaixou a cabeça. Era bom saber que ele pensava assim, mas
estranho que tivesse reparado em alguma coisa que se devia esperar.
- Não quis deixá-la encabulada.
- Iza dizia que quando se elogia uma pessoa, os espíritos ficam com ciúme. Faça o
seu trabalho bem e isto é o bastante.
- Acho que Marthona gostaria de conhecer essa Iza. Ela também dizia que o melhor
elogio é o seu próprio serviço bem-feito. Acho que todas as mães se parecem.
464 - Marthona é a sua mãe?
- É. Ainda não tinha dito?
-Pensava que fosse, mas não tinha muita certeza. Você tem outros germanos, fora o
que morreu?
- Tenho um irmão mais velho, Joharran, que é o atual chefe da Nona Caverna. Ele
nasceu na casa de Joconan. Minha mãe depois da morte de Joco nan foi ser a
companheira de Dalanar, a casa de quem eu nasci. Depois os dois desfizeram o nó e ela
foi ser a companheira de Wil dono da casa onde nasceram Thonolan e a minha irmã mais
moça, Folara.
- Você viveu com Dalariar, não é?
- Durante três anos. Foi com ele que eu aprendi o meu ofício. É um dos melhores
ferramenteiros que há. Quando fui viver na sua casa, eu tinha 12 anos, mas já era
homem há mais de um ano. A minha virilidade chegou muito cedo e eu, como você,
também era grande para minha idade - o seu rosto assumiu uma expressão estranha que
Ayla não entendeu. - Foi melhor eu ter partido..
Então, sorrindo outra vez, disse:
- Nessa ocasião é que conheci minha prima Joplaya, filha de Jerilca e também
nascida na casa de Dalanar, depois que ele tomou Jerika para com panheira. Joplaya é
dois anos mais moça do que eu. Aprendíamos juntos a trabalhar a pedra. Nunca deixou
de haver uma certa competição entre nós dois, mas, apesar de achar que ela era muito
talentosa, eu nunca lhe confes sei isto. Joplaya sabe que é boa. Tem um excelente olho e
a mão muito fir me. Um dia ainda irá trabalhar tão bem quanto Dalanar.
Ayla ficou em silêncio por algum tempo. Depois disse:
- Uma coisa não estou entendendo, Jondalar. Folara tem a mesma mãe que você,
portanto é a sua irmã, não é?
- É.
- Você nasceu na casa de Dalanar e Joplaya também é da casa de Dala nar. Então
por que ela é sua prima? Qual a diferença entre irmã e prima?
- Irmãs e irmãos vêm da mesma mulher. Os primos já não são parentes tão
próximos. Eu nasci na casa de Dalanar e sou provavelmente do espírito dele. As pessoas
dizem que nós nos parecemos muito. Acho que Joplaya tam bem é do espírito
dele.Jerika, a sua mãe, é baixa, mas ela é alta como Dalanar. Não tão alta quanto ele. - -
acho que um pouco mais alta do que você. Nin guém sabe ao certo de quem é o espírito
que a Grande Mãe escolhe para misturar com o de uma mulher. Desse modo, Joplaya e
eu podemos ou não ser do espírito de Dalanar e por isso somos só primos.
Ayla balançou a cabeça, compreendendo.
- Talvez Uba pudesse ser minha prima, mas para mim é uma irmã.
-Irmã 465 - Nós não somos germanas de verdade. Uba era a filha de Iza, nascida
depois que me encontraram. Iza dizia que nós duas éramos suas filhas - Ayla falava
como se dirigindo a ela própria, toda voltada para si mesma. - O com panheiro de Uba
não foi o homem que ela teria escolhido. Havia um outro, mas a mulher que sobrava para
este era sua germana e, nos clãs, germanos não podem unir-se.
- Nós não nos unimos com irmãos e irmãs - falou Jondalar: - Em ge ral, também não
com primos, embora isso não seja de todo proibido. Não é bem-visto. Há espécies de
primos que são mais próximos do que outras.
- Quais?
- De muitas formas. Alguns são mais próximos do que outros. Os filhos das irmãs de
sua mãe são primos. Os filhos do companheiro do irmão da mãe, os filhos. - - Ayla
abanava a cabeça sem entender.
- Tudo muito confuso. Como se sabe quem é primo e quem não é? Quase todo
mundo pode ser primo.. . Quem sobrada para quem numa Ca verna?
- A maioria das pessoas não se une com aquelas que são da mesma Ca vertia.
Quase sempre é com alguém encontrado nas reuniões de verão. Eu te nho a impressão
de que a união de primos é às vezes permitida porque só se vai saber se a pessoa
escolhida para companheiro ou companheira é realmen te um parente quando se
mencionam os laços. - . os laços de parentesco. Mas normalmente as pessoas conhecem
os seus primos mais próximos, mesmo que vivam numa outra Caverna.
- Como Joplaya?
Jondalar, com a boca cheia de framboesas, balançou a cabeça confir mando.
- Jondalar, e se não for os espíritos que fazem os bebês? E se for o homem? Nesse
caso, as crianças não seriam tanto do homem como da mu lher?
- O bebé cresce dentro da mulher, Ayla. Ele vem dela.
- Então por que os homens e as mulheres gostam tanto de se juntarem?
- E por que a Mãe nos daria a dádiva do: prazer? Você deveria perguntar isso a um
Zelandoni.
- Por que você fala "dádiva do prazer"? Há muitas outras coisas que dão prazer e
que também deixam as pessoas felizes. Será que um homem sente tanto prazer assim
quando ele põe o seu órgão dentro de urna mulher?
- Não é só o homem quem sente. Uma mulher. - . mas você não sabe, não é? Nunca
passou pelos primeiros ritos. Um homem a abriu, fez de você mulher, mas não é só isso.
Como as outras pessoas puderam permitir uma coisa destas? É vergonhoso!
1 - As pessoas não compreendiam, apenas viam o que Broud fazia e isso não era
uma vergonha. O modo como ele fazia é que era. Feito, não por pra zer, mas por ódio. Eu
sentia dor e raiva, mas não vergonha. E nem prazer tam bém. Não sei se foi Broud quem
fez o meu bebê ou se foi ele quem me tomou mulher para que eu pudesse ter um. Sei
apenas que o meu filho me fez feliz. Durc era o meu prazer.
- A Mãe concede a dádiva da vida e essa é também uma alegria, mas existem mais
coisas quando um homem se junta com uma mulher. Isso tam bém é uma dádiva e deve
ser feito com alegria para honrar a Mãe.
"Talvez haja mais coisas que você não saiba", pensou ela. No entanto Jondalar
falava com tanta certeza. Será que tinha razão? Ay!a não acreditava muito no que ele
dissera, mas ficou pensativa.
Depois de haverem comido, Jondalar foi para a parte larga do patamar, onde havia
colocado as suas ferramentas. Ayla o seguiu e se sentou perto. Ele espalhou pelo chão
as lâminas para poder melhor compará-las. Diferenças mí nimas as tomavam mais
apropriadas para este ou aquele serviço. Jondalar pe gou uma das lâminas, olhou-a
contra o sol e depois a mostrou para Ayla.
A lamina tinha algo mais do que dez centímetros de comprimento e menos do que
dois de espessura. A parte alta no centro da face externa era reta e se afinava
uniformemente até as beiradas, tão fmas que a luz se filtra va através. Ela fazia uma
curva para cima na direção da face interna, lisa e de formato bulbóide. Os dois gumes
eram retos e afiados. Quando olhada contra o sol, podiam ser vistas as linhas que se
irradiavam de um bulbo de percussão extremamente plano. Jondalar puxou um fio da
barba e o cortou, sem qual quer resistência. Tanto quanto se podia desejar, era uma
lâmina perfeita.
- Vou guardar esta para barbear - disse Jondalar.
Ayla não sabia de que ele estava falando, mas havia aprendido com Droog que
devia ouvir qualquer comentário ou explicação sem fazer pergun tas para não atrapalhar
a concentração. Ele pôs de lado a lâmina e pegou uma outra. Os dois gumes desta
afinavam-se iguais, fazendo-a mais estreita numa extremidade. Então apanhou uma
pedra da praia, com mais ou menos o dobro do tamanho de seu punho, e apoiou sobre
esta a parte estreita da ferramenta. Com a ponta rombuda de um chifre, martelou de leve
a extremi dade, de modo a dar-lhe um formato triangular. Pressionando as bordas do
triângulo contra a bigorna de pedra, lascou pequenas estilhas, formando na lâmina uma
ponta afiada e fina.
- Esta aqui servirá como furador - falou, depois de fazer com o instru mento um furo
numa ponta do couro de sua tanga. Então, mostrando-o para Ayla, disse: - É uma
ferramenta boa para fazer os furos das costuras de roupas.
"Será que ele a tinha visto examinando as suas vestimentas?", pergun tou-se Ayla.
Parecia que estava sabendo do que ela planejava.
466 467 - Vou fazer também uma sovela grande. Será igual a esta, só que maior e
mais forte. Será usada para perfurar madeira ou ossos e chifres.
"Não. Ele estava simplesmente falando de ferramentas", pensou Ayla aliviada.
- Eu também já usei. . . sovelas para fazer furos em sacolas, mas não com uma
ponta tão fina assim.
- Você gostou desta? - ele sorriu. - Posso fazer uma outra para mim.
Ayla a pegou e agradeceu, abaixando a cabeça, à maneira dos clãs. Mas, então, se
lembrou.
- Obrigada.
Um sorriso grande de satisfaçâb iluminou o rosto de Jondalar. Ele pe gou outra
lâmina e a apoiou contra a pedra. Com o martelo de chifre, qua drangulou uma das
extremidades, deixando um ligeiro cotovelo. Em seguida, segurando a ponta quadrada,
de modo a mantê-la perpendicular ao golpe do martelo, bateu firme na beirada. Uma
lasca de pedra soltou-se, deixando a lâmina com a ponta forte e fina.
- Já tinha visto essa ferramenta? - perguntou Jondalar.
Ela a pegou para examinar e a devolveu, fazendo sinal que não.
- É um buril. Um instrumento usado por entalhadores e escultores, O é um
pouquinho diferente. Vou usar este para fazer a arma de que lhe deles falei.
- Buril. - - buril - repetiu Ayla, querendo familiarizar-se com o nome.
Depois de fazer mais algumas ferramentas, todas parecidas com as que já estavam
prontas, ele foi até a borda do penhasco sacudir o avental e, em seguida, puxou para
perto a gamela em forma de cocho. Retirou uma tíbia, enxugou-a e se pôs a revirá-la na
mão, resolvendo por onde começar. Então se sentou e, escorando o osso contra o pé,
usou o buril para riscar uma linha no sentido do comprimento. Depois fez uma segunda
que se juntava com a primeira num determinado ponto. Uma terceira linha pequena
formou a base de um triângulo afilado.
Riscou novamente sobre a primeira linha, retirando uma raspa de osso, comprida e
encaracolada. Com as outras linhas fez o mesmo, raspando-as com a ponta do cinzel
que cada vez cortava mais fundo no osso. Sempre raspando por cima das mesmas
linhas, ele chegou ao centro oco do osso. Por fim, de pois de um último repasse para ter
certeza de que não havia nenhum segnien to que tivesse ficado preso, fez pressão sobre
a base. A ponta comprida do triângulo veio para cima e ele retirou a peça inteira.
Colocou-a de lado, pegou novamente no osso e riscou outra linha comprida que se
encontrava com um dos lados recém-cortado.
Ayla observava com atenção, não querendo perder nada. Mas passado algum
tempo, vendo que o trabalho continuava sempre igual, os seus pensa- 468 mentos se
voltaram para a conversa tida durante a refeição matinal. A atitu de de Jondalar havia
mudado. Não por ele ter dito qualquer coisa de especial, apenas uma mudança no teor
de seus comentários.
Lembrou-se de que ele dissera "Marthona iria gostar de lia" e também de que falara
qualquer coisa como "todas as mães serem parecidas". Será que a mãe dele gostaria de
uma cabeça-chata? Seriam eles realmente parecidos? E mais adiante, apesar de
zangado, Jondalar se havia referido a Broud como homem. . . o homem que tinha aberto
a passagem nela para que o seu filho nascesse. E ainda dissera mais: que não entendia
como as outras "pessoas" puderam permitir uma coisa destas. Dissera sem reparar e isto
era o que a ale grava mais. Era sinal de que ele já pensava nos clãs como um povo. Não
ani mais, cabeças-chatas ou aberrações. . . mas gente!
A sua atenção foi atraída de novo para o que ele fazia, quando o tipo de trabalho
mudou. Agora Jondalar havia apanhado um dos triângulos de osso e um forte raspador
de sílex e alisava as bordas aguçadas do osso que ia saindo em compridas espirais.
Em pouco tempo ele estava com um pedaço arredondado de osso que se afmava
numa ponta extremamente aguda.
- Jondalar, você está fazendo. - - uma lança?
Ele sorriu.
- Pode-se fazer uma ponta fina num osso, do mesmo modo que se faz na madeira.
Só que o osso é mais resistente e não se lasca, além de ser também mais leve.
- Mas essa lança não está muito pequena? - perguntou ela.
Jondalar soltou uma de suas gostosas gargalhadas.
- Estaria, se a lança estivesse toda aí. Por enquanto estou só fazendo a ponta. Há
gente que faz pontas de sílex. Os mamutoi, por exemplo. As de pedra são boas
principalmente para a caça de mamutes. O sílex é frágil e se quebra, mas se a ponta tiver
gumes afiados, iguais aos de uma faca, vai pene- trar mais facilmente no couro do
mamute. Já para a maioria das outras caças, o osso dá ponta melhores. Os fustes são de
madeira.
- E como você faz para juntar as duas peças?
- Veja - falou ele, virando a ponta para baixo, de modo que Ayla pu desse ver a
base. - Eu posso, com um buril ou uma faca, fazer uma fenda nessa extremidade e
esculpir um pino na ponta do fuste para ser encaixado na fenda. Assim. - . - disse,
botando o indicador de uma das mãos entre o po legar e o indicador da outra mão. -
Depois junto com cola ou resina e amar ro bem apertado com cordões molhados de
couro ou tendão. Quando secar e encolher, as duas peças estarão bem coladas uma na
outra.
- É uma ponta tão pequena. O fuste não pode ser mais do que um pauzinho!
469 A - Será maior do que um pauzinho e não tão pesado quanto a sua lança. Tem
de ser assim, do contrário não se consegue atirá-la.
- Atirar?! Você atira urna lança?
- Você não atira pedras com a sua funda? Então, por que não fazer o mesmo com
uma lança? Daqui por diante, Ayla, você não vai mais precisar cavar buracos no chão, e
logo que pegar o jeito conseguirá arremessar a lança em plena corrida. Com a pontaria
que tem com a funda, acho que vai apren der bem depressa.
- Jondalar! Você sabe o quanto na minha vida tenho desejado matar um veado ou
um bisão com uma funda? Nunca tinha pensado em atirar uma lança - ela franziu a cara.
- Mas e a força? Você tem força suficiente para atirar. E eu? As minhas pedradas são
perigosas e vão longe quando atiradas com a funda, mas se for com a mão já não é a
mesma coisa.
- Realmente, a força não é muita, mas você leva a vantagem da distân cia. Agora
você tem razão numa coisa. É pena não se poder atirar uma lança com uma funda, mas.
- - - ele se interrompeu, deixando a frase por acabar.
- Fico imaginando se. - . - a sua testa franzia-se. O pensamento era fantásti co
demais, exigindo- lhe a atenção imediata. - Não, acho que não. - - Onde po demos
arrumar os fustes?
- Perto do rio- Jondalar, existe alguma razão que me impeça de ajudar na fabricação
das lanças? Aprenderia mais depressa com você por perto para me dizer o que estou
fazendo de errado. Preciso aproveitar a sua presença.
- Ah, claro - respondeu. Mas, enquanto estava descendo o caminho da praia, ele
tinha uma certa sensação de peso. E que tinha esquecido de sua partida e se sentia triste
por ser lembrado.
27 j&_yla agachou-se e olhava através da relva dourada e alta que se curvava ao
peso das espigas maduras. Os seus olhos estavam fixos nos contornos de um animal. Na
mão direita achava-se uma lan ça em posição de lançamento e, na esquerda, uma outra
já preparada. O ven to chicoteava em seu rosto algumas madeixas louras escapadas das
tranças. Ela virava a lança na mão, procutando pelo ponto de equilíbrio. Então inclinou-a,
empunhou-a firme, e fez pontaria. Deu um salto à frente e lançou.
- Oh, Jondalar! Nunca vou conseguir acertar nada com essa lança! - disse
exasperada. Ela se dirigiu para uma árvore com o tronco envolvido por um colchão de
couro e retirou a lança ainda balançando-se do traseiro de um bisão que Jondalar havia
desenhado com um pedaço de carvão.
- Você é exigente demais consigo, Ayla - disse Jondalar, orgulhoso.
- E muito melhor do que pensa. Está aprendendo rapidamente, mas poucas vezes vi
alguém com tanta força de vontade. SÓ faz treinar, não tem mais um momento livre.
Acho que talvez seja esse o seu problema. Está forçando de mais. Precisa relaxar-se.
Foi treinando que aprendi a usar a funda.
- Mas você não ganhou essa sua pontaria da noite para o dia, não é?
- Não. Precisei de muitos anos. SÓ que não pretendo levar anos para caçar com
essa lança.
- Não vai ser preciso. Já poderia estar caçando desde agora se quisesse e
provavelmente daria um jeito de matar alguma coisa. Claro que não pode ter a força de
tiro e a velocidade com que está acostumada. Isso você nunca terá, Ayla. O que está lhe
faltando é acertar a distância de seus lançamentos. Se quer continuar com os seus
treinos, por que não muda por algum tempo para a funda?
- Eu não preciso mais de treinar com funda.
- Mas precisa relaxar-se. Acho que isso ajudará a prepará-la para a lan ça. Vamos,
faça uma experiência.
Realmente a tensão dissipou-se quando ela se viu com a sua velha correia de couro
na mão, dominando os movimentos e o ritmo dessa querida arma. Era a gratificante
satisfação do mestre gozando a plenitude de sua ar- te, embora para ela tivesse sido
árdua a luta para chegar àquele ponto. Podia acertar em tudo que quisesse,
principalmente nos alvos parados que arruma va para treinar. A admiração de Jondalar a
encorajava a querer exibir-se.
Ela pegou um punhado de pedras da beirada do rio e se dirigiu a um ponto afastado
no vale. Começou com uma demonstração da sua técnica de duas pedras seguidas,
depois fez uma série de disparos consecutivos, mostran do o quanto podia ser rápida
numa seqüência quase ininterrupta de tiros.
Jondalar se juntou a ela e lhe arrumava os alvos. Sobre o grande bloco de rocha,
enfileirou quatro pedras que Ayla derrubou com quatro rápidos disparos. Ele jogou para
cima duas pedras que também foram acertadas em pleno ar. Então fez uma coisa que a
surpreendeu. Ficou de pé no meio do campo, equilibrando uma pedra em cada ombro e
olhando-a de frente, com um sorriso no rosto. Não ignorava a força dos disparas de Ayla.
As suas pe dradas se não matassem - conforme o lugar no corpo que atingissem - pode
riam machucar muito. Era uma prova de confiánça: a que ele tinha em Ayla e a que ela
tinha em si mesma.
470 471 Jondalar ouviu o vento zunindo em seus ouvidos e o barulho das pedras em
seu ombro sendo atingidas, uma imediatamente à outra. Ele não saiu intei ramente ileso
da perigosa brincadeira. Um estilhaço da pedra voara, enterran do em seu pescoço. A
sua aparência era imperturbável, mas um fio de sangue o denunciou quando retirou a
lasca de dentro da pele.
- Jondalar! Você está ferido! - exclamou Ayla ao vê-lo.
- Não é nada. Só um pequenino estilhaço de pedra. Mas você é fantásti ca, mulher.
Nunca vi ninguém usar uma arma deste jeito.
E ela nunca vira ninguém olhando-a como ele o fazia. Os olhos faisca vam, cheios
de respeito e admiração. A voz ressoava rouca, calorosa em seus elogios. Ayla corou,
inundada por um mundo de emoções que, sem ter como extravasar-se, aflorou na forma
de lágrimas.
- Se conseguisse atirar uma lança assim. - - - ele se interrompeu, fechan do os
olhos, procurando visualizar o que estava pensando. - Ayla, posso usar a sua funda?
- Você quer atirar com ela? - perguntou, entregando-lhe a arma.
- Não exatamente isso.
Ele pegou uma das lanças que se espalhavam pelo chão e procurou en caixar a
extremidade que levava o conto no bojo da funda, formado para segurar as pedras. Mas
faltava-lhe uma certa familiaridade com a arma e, de pois de algumas tentativas
desajeitadas, ele se viu obrigado a devolvê-la junto com a lança.
- Você acha que poderia atirar essa lança com a funda?
Ayla percebeu o que ele estava pretendendo e conseguiu arrumar um jeito, embora
difícil de ser manobrado: com o conto da lança projetando-se para fora da funda, ela
procurou segurar, ao mesmo tempo, o fuste e as pon tas da correia. Era impossível obter
equilíbrio e faltava a ela força e controle no disparo daquele comprido projétil, mas assim
mesmo conseguiu arremes sá-lo.
- Ou a funda teria de ser mais comprida, ou a lança mais curta - falou Jondalar,
tentando visualizar algo que jamais vira. - E a funda é flexível de mais. A lança precisa de
um suporte. Alguma coisa em que se apoiar como.. - um pedaço de madeira ou osso.. -
com uma escora que não a deixe escorregar. Ayla! Não tenho certeza, mas penso que
vai funcionar. Acho que vou construir um atirador de lanças!
Ayla observava Jondalar trabalhando no seu invento, fascinada tanto pela idéia de
se construir alguma coisa a partir de um conceito, como pelo trabalho em si. A cultura do
povo que a criara não era dada a invenções e ela não imaginava que os seus métodos de
caça e o jorrão puxado por Huiin fos sem descobertas saídas da mesma fonte criadora.
472 Jondalar usava os materiais de acordo com a necessidade e adaptava as
ferramentas às novas exigências do trabalho. Ele lhe pedia conselhos, valendo- se de
sua experiência de anos com uma arma de atirar, mas logo ficou claro que a sua
invenção, embora inspirada na funda, era um projeto inteiramente original.
Uma vez resolvidos os princípios básicos, pôs-se a trabalhar na lança, fa zendo
algumas modificações para obter maior rendimento da arma. As sutile zas envolvidas no
arremesso da lança eram tão conhecidas para Ayla quanto para Jondalar as operações
que regiam a funda. Com os olhos brilhando de prazer, Jondalar comunicou que, logo
que tivesse alguns modelos em condi ções de funcionar, sairiam os dois para treinar.
Ayla resolveu deixá-lo com as suas ferramentas. Estava querendo expe rirnentar
uma outra que era também das dele. Ainda não havia progredido muito nas roupas que
pretendia fazer para presenteá- lo. Os dois estavam sempre juntos. O único tempo que
sobrava para ela ou era muito cedo pela manhã, ou então já tarde da noite quando ele
estivesse dormindo.
Enquanto Jondalar ficou dando os últimos retoques em sua obra, ela veio para o
patamar trazendo a velha roupa dele e os novos couros. À luz do dia, podia enxergar
melhor os pontos que amarravam as diferentes partes das peças que compunham o traje.
Achou tão interessante o processo e tão curiosa a roupa, que lhe deu vontade de fazer
uma igual para ela. O elaborado traba lho com contas e penas, não tentou reproduzi-lo,
mas reparou bastante nele, achando que seria um bom desafio para a longa temporada
de inverno que teria pela frente.
De onde se achava, podia ver se Jondalar estava na praia ou fazendo o caminho
para subir à caverna. Daria tempo para esconder o seu trabalho antes que ele tivesse
alcançado o patamar. Mas no dia em que Jondalar subiu correndo e orgulhosamente
exibiu, já prontos, os seus dois atiradores de lança, ela mal pôde disfarçar as roupas no
meio de uma pilha de couros. Ele, entretanto, estava radiante demais para ver qualquer
coisa que não fosse a sua grande obra.
- O que você acha, Ayla? Será que vai dar certo?
Ela pegou um dos atiradores. Era um aparelho simples, mas engenhoso. Consistia
numa plataforma de madeira, estreita e lisa, medindo aproximada mente a metade do
comprimento da lança. No meio, havia um sulco para apoiar a arma e uma escora
entalhada na forma de gancho. Dois laços de couro, para se enfiar os dedos, se prendiam
um de cada lado, na frente da engenhoca.
O aparelho, primeiro, era posto em posição horizontal, com dois dedos passados
pelos laços que seguravam conjuntamente o atirador e a lança, apoia da no sulco da
plataforma, com o seu canto batendo contra a escora. No mo mento de atirar -
segurando-se por meio das correias a parte da frente - a 473 1 A traseira empinava-se
num efeito que aumentava a ação do braço. Era uma for ça adicional que impuimia maior
velocidade e potência no instante da largada.
- Acho, Jondalar, que já é tempo de começarmos a treinar.
Os dois passavam os dias treinando. O colchão na árvore que servia de alvo ficou
tão perfurado que acabou se desmontando e um outro teve de ser posto no lugar. Neste,
Jondalar desenhou a figura de um veado. À medida que foram adquirindo mais técnica,
pequenas adaptações se foram fazendo necessárias. Os dois se ensinavam mutuamente
as técnicas de suas respecti vas armas. Os potentes lançamentos de baixo para cima de
Jondalar tendiam a subir mais, enquanto os dela faziam uma trajetória mais regular e se
desvia vam um pouco para o lado. Todos os dois tiveram de fazer alguns ajustes no
atirador, de modo a adaptá melhor ao estilo de cada um.
Uma competição amigável começou a se desenvolver entre eles. Ayla tentava, mas
não conseguia equiparar-se nas distâncias alcançadas pelos tiros dele, enquanto para
Jondalar era impossível rivalizar-se com a pontaria dela. Os dois estavam abismados
com a fantástica vantagem de que passaram a dis por com a nova arma. Uma vez de
posse da técnica necessária, as lanças de Jondalar podiam ser atiradas com muito mais
força e precisão, além de alcan çarern mais do dobro da distância anterior. No entanto
essas sessões de trei namento com Jondalar tiveram, sobre Ayla, um efeito muito maior
do que o produzido pela arma.
Ayla sempre treinara e caçara sozinha. Primeiro, como uma brincadei ra em
segredo, morta de medo de ser descoberta. Depois, treinando a sério, mas ainda em
segredo. A sua permissão para caçar foi dada de má vontade, com uma série de
restrições. Jamais alguém caçara junto dela. Se errasse ou acertasse dava na mesma -
não havia ninguém para encorajá-la ou aplaudi la. Nunca teve uma pessoa com quem
pudesse conversar sobre armas, que discutisse com ela técnicas de caça, que lhe desse
conselhos sobre determina dos problemas e que lhe ouvisse as sugestões com interesse
e respeito. E, prin cipalmente, ninguém para brincar, fazer provocações e rir. Nunca tivera
a mí ninia vivência da camaradagem, da amizade, do companheirismo alegre e divertido.
Apesar dos treinamentos terem aliviado enormemente as tensões, ain da havia uma
distância entre os dois, parecendo difícil de ser superada. Quan do o assunto não incorria
em riscos, como caçadas, a conversa se fazia anima da. Qualquer alusão de caráter
pessoal, entretanto, provocava silêncios constrangedores e evasivas polidas. Um roçar
de corpo casual era como um choque que os fazia pular para trás, ao qual sempre se
seguiam atitudes rígidas e formais encobrindo persistentes lembranças.
- Amanhã - falou Jondalar, enquanto recolhia uma lança que dispara ra. Um pouco
da palha do colchão saiu junto, pelo buraco no couro, grande e esfarrapado.
- Amanhã o quê? - indagou Ayla.
- Amanhã sairemos para caçar. Já brincamos demais. Chega de ápren der em alvos
de mentira. Já é tempo de levarmos a coisa a sério.
- Então, amanhã - concordou Ayla.
Pegaram as lanças e se puseram a caminhar de volta.
- Você conhece esses terrenos por aqui, Ayla. Onde poderíamos ir?
- Acho melhor as estepes do lado leste, mas seria bom se eu desse uma olhada
antes- Posso ir com Huiin - ela levantou os olhos querendo ver a posi ção do sol. - Ainda
é cedo.
- Boa idéia. Você e o cavalo valem mais do que um bando de espias.
- Será que você pode segurar Campeão aqui? Eu me sinto melhor quando ele não
nos segue.
- E amanhã quando sairmos para caçar? Como vai ser?
- Vamos ter de levá-lo conosco, não há outro remédio. Precisamos de Huiin para
trazer a comida. Ela sempre fica meio indócil com a caça morta, mas já está acostumada.
Pára onde eu quiser. Agora, se o potro ficar excita do e correr, ele pode ser apanhado
pelo estouro da manada. - - e aí, não sei não. - - - Não se preocupe com isto agora.
Tentarei pensar em alguma coisa.
O assovio agudo de Ayla trouxe a égua e o potro para junto deles. En quanto
Jondalar, com o braço passado ao redor do pescoço do potro, conver sava com ele,
acariciando-o em seus lugares prediletos, Ayla montou e saiu em disparada. Depois de já
estar bem longe com 1-luiin, Jondalar pegou as lanças e os dois atiradores.
- Bom, Campeão, vamos para a caverna esperar lá?
Ele deixou as lanças do lado de fora no patamar e entrou. Sentia-se l quieto e não
sabia o que fazer consigo mesmo. Avivou o fogo, amontoou os carvões na fogueira,
trouxe mais lenha, tomou a sair e ficou olhando para o vale. O focinho do potro procurou-
lhe a mão e ele distraidamente pôs-se a afagá-lo, enfiando os dedos por entre os pêlos
fortes e grossos. O seu pensa mento estava no inverno.
Procurou pensar em alguma outra coisa. Os dias quentes de verão ti nham uma
continuidade que os faziam tão iguais um ao outro que o tempo parecia manter-se em
suspenso. Às decisões facilmente eram adiadas. Ainda estava muito cedo para pensar na
chegada do frio e. - . na sua partida. Repa rou, então, na tanga que vestia.
- Não vou ter um "casaco" como esse seu no inverno, meu amigo - falou ele se
dirigindo ao potrinho. - Breve terei de fazer qúalquer coisa para 474 475 usar. Dei aquele
furador de costura para Ayla e ainda não fiz outro para mim. Talvez o que eu tenha de
fazer neste momento seja mais algumas ferramentas. E preciso também pensar numa
maneira de
não deixar que você se machuque amanhã.
Ele entrou na caverna e lançou um olhar desejoso para o lugar de Ayla, enquanto
passava por cima de suas peles para ir à área do depósito. Lá, pro curando por uma
correia ou um cordão grosso, eflcontrou um estoque de peles guardadas em rolos. "Sem
dúvida, essa mulher sabe como curtir um cou ro", pensou, enquanto sentia na mão a
maciez veludosa da textura. "Talvez ela me deixe pegar alguns desses. . - Detesto ter de
ficar pedindo.".
"Se os atiradores derem certo, vou conseguir couro em quantidade para fazer
alguma coisa que possa vestir. Acho que vou colocar uma escultura neles para trazer
sorte. Mal não faz. Ah, cá estão as correias. Quem sabe se não ser vem para fazer
alguma coisa para Campeão? Que corredor! E nem ainda aca bou de crescer. . . Será
que um garanhão deixa alguém montar em seu lombo? Vou conseguir fazê-lo ir para
onde eu quiser? Você nunca saberá. Já não estará mais aqui quando ele for um
garanhão. Lembre-se que está de partida.”
Ele pegou as correias e foi buscar a trouxa com as suas ferramentas. Desceu,
então, à praia. O rio estava convidativo. Sentia-se suado e o calor era forte. Tirou a tanga,
entrou na água, começando a nadar contra a correnteza. Em geral, ia só até a estreita
garganta e voltava. Desta vez resolveu avançar um pouco mais longe. Passou pela
primeira corredeira e contornou a curva. Diante dele se achava uma nimorejante muralha
de águas cristalinas. Voltou então.
Saiu do banho revigorado. A sensação de haver feito uma descoberta animava-o a
empreender qualquer coisa de diferente. Botou os cabelos para trás e os torceu. Depois
foi a vez da barba. "Você tem usado isto durante qua se todo o verão, Jondalar, e ele já
está praticamente no fim. Não acha que já é tempo?”
"Primeiro, vou me barbear, depois arrumar um jeito de pôr Campeão a salvo
amanhã. Não quero passar simplesmente uma corda pelo seu pesco ço. - - Preciso
também fazer o furador e mais uns dois buris para esculpir as figuras nos atiradores de
lança. A comida, essa noite, posso preparar. Um ho. mem se esquece dessas coisas
quando tem uma Ayla por perto. Posso não fa zer igual a ela, mas sempre será urna
comida, Só a Mãe sabe o quanto eu cozi nhei nesta viagem.”
"Que figuras devo colocar nos atiradores? A que daria mais sorte seria uma donii,
mas fui dar a minha para Nona. Será que ela teve um filho de olhos azuis? Que estranha
essa idéia de Ayla imaginar que sejam os homens que fazem os bebês. No entanto, era
exatamente isto que a velha Haduma desejava. Ritos de passagem. . - Ayla nunca
passou por eles. Ela tem sofrido 476 tanto. - - Mas com aquela sua funda é simplesmente
maravilhosa. E, também, não vai nada mal com a lança. Acho que na dela vou pôr a
figura de um bisão. Será que esses atiradores vão funcionar mesmo? Que pena eu não
ter uma donii. Talvez eu possa fazer uma. . - Quando começou a escurecer, Jondalar foi
esperar por Ayla no pata mar. Depois que o vale se transformou num enorme buraco
negro sem fundo, ele armou uma fogueira no patamar para orientá-la e se deixou ficar lá
imagi nando escutar os passos de Huiin subindo o caminho. Finalmente acabou fazendo
uma tocha e descendo. Seguiu pela margem do rio e contornou a ponta do penhasco.
Teria ido mais longe se não tivesse ouvido o barulho de cascos aproximando-se.
- Ayla, por que demorou tanto?
Ela se surpreendeu com o tom incisivo da voz.
- Estava seguindo as trilhas das manadas. Você sabe disso.
- Mas nesta escuridão?
- Ë. Quando comecei o caminho de volta já estava quase noite. Acho que encontrei
o lugar. Uma manada de bisões está no rumo sudeste e. - - Quase de noite e você atrás
de bisões? Como vai enxergar um bisão no escuro?
Ayla não entendia o motivo daquela exaltação e de todas aqúelas per guntas.
- Eu não estava olhando para um bisão no escuro. . . mas por que você quer ficar
aqui de pé conversando?
Nisso, o potrinho, soltando um relincho agudo, surgiu no círculo de luz que vinha da
tocha e se pôs a dar cabeçadas em sua mãe. Huiin respondeu-lhe com outro relincho e,
antes que Ayla tivesse tempo de desmontar, ele já esta va fuçando entre as patas
traseiras da égua. Foi, então, que ocorreu a Jonda lar que ele agia como se tivesse
direito de questionar Ayla. Vermelho, afastou a tocha para o lado, dando graças por estar
escuro e ela não poder enxergar o seu rosto. Seguiu atrás de Ayla, tão embaraçado que
não reparou no cansaço dela, caminhando lenta e penosamente.
Na caverna, ela enrolou-se numa das peles de dormir e foi ficar agacha da perto da
fogueira.
- Devia ter levado uma roupa mais quente, mas não imaginava que fos se tão longe.
Jondalar viu que ela tremia e ainda ficou com mais pena.
- Você está com frio. Vou lhe dar uma coisa quente para beber - disse, despejando
um pouco de caldo numa cuia.
Ayla até aquele momento não lhe havia prestado atenção. Tudo que queria era estar
na beirada do fogo. Ela levantou os olhos para pegar a cuia e por pouco não a deixou
cair.
477 .4 - O que aconteceu com o seu rosto? - quis saber. A sua expressão era tanto
de surpresa como de preocupação.
- O que quer dizer? - perguntou, por sua vez ele, já aflito.
- A sua barba.. . sumiu.
A expressão de súrpresa que refletia a dela imediatamente desapareceu, substituída
por um sorriso.
- Eu fiz a barba.
- Fez a barba?
- É, cortei. . . bem rente à pele. Sempre faço isso no verão. Quando es tou com calor
e suando, coça muito.
Ayla não conseguiu resistir. Tocou-lhe no rosto, sentindo a maciez de sua face
escanhoada. Depois, passando os dedos no sentido contrário ao do nascimento dos
pêlos, pareceu que era ligeiramente áspera, ralando como a língua de um leão.
Lembrou.se de que, quando o encontrara, ele não tinha barba, mas depois essa havia
crescido e ela se esquecera. Parecia tão jovem sem a barba, com um jeito simpático de
criança e não de homem. Ela não estava acostumada a ver homens adultos com a cara
escanhoada. Correu com os dedos pelas mandíbulas, sentindo o pequeno furo em seu
queixo forte e viril.
Enquanto Ayla o tocava, ele se mantinha imóvel, sem conseguir arredar- se do lugar.
Sentia com cada um de seus nervos a ponta dos dedos que leve mente iam correndo
pelo contorno de seu rosto. Embora não houvesse qual quer intenção erótica, apenas
uma acariciante curiosidade, a resposta nele veio de uma fonte mais profunda. O latejar
forte e insistente em suas virilhas foi tão imediato, tão intenso, que o apanhou
completamente desprevenido.
O modo como os seus olhos a olhavam levantou uma onda de desejos que o
identificava como homem apesar da aparência quase infantil. Ele ia segurar-lhe a mão,
prendê-la contra o seu rosto, mas ela, num ato de vontade, se afastou, pegou a cuia e se
pôs a tomar o caldo sem lhe sentir o gosto. A ce na dos dois sentados frente a frente,
juntos da fogueira e daquela expressão odiosa no rosto dele, de repente passou
vívamente pela sua lembrança. E ago ra ela lhe havia tocado. Estava com medo de olhá-
lo, medo de ver outra vez o terrível olhar de desprezo. Mas as pontas dos dedos ainda
formigavam com a sensação da pele que conseguia ser suave e áspera ao mesmo
tempo.
Jondalar se sentia angustiado com aquela reação instantânea, quase vio lenta ao
toque dela, doce e delicado. Não conseguia tirar os olhos de cima de Ayla, embora ela
estivesse evitando olhar para ele. Assim, de cabeça baixa, parecia tão tímida, tão frágil. -
- No entanto, ele conhecia a força que ia em seu interior. Costumava compará-la a uma
bela lâmina de sílex, perfeita quan do saía da pedra bruta, de finas e delicadas bordas
translúcidas, mas tão resis tente e afiada que cortava, de um só golpe, o mais duro dos
couros.
478 "Oh, Mãe, como é linda! Oh, Donii, Grande Mãe da Terra, eu quero essa
mulher! Quero-a tanto...”
De repente saltou sobre os pés. Não agüentava ficar ali parado, olhando para ela.
Lembrou-se da comida que preparara. "Ora veja", pensou, "a pobre coitada aí, com frio e
cansada, e eu aqui sentado." Ele foi buscar a travessa de Ayla, que era um osso saído da
anca de um mamute.
Ayla percebeu-o levantar-se. O movimento fora tão brusco que estava convencida
de que ele outra vez tivera um de seus ataques de repulsa e nojo. Tremendo, ela
comprimia os dentes, tentando controlar-se. Não agüentaria enfrentar tudo aquilo de
novo. Tinha vontade de pedir-lhe que fosse embora. Não queria ver os seus olhos
dizendo que ela era uma.. - aberração. Ele se pôs de pé à sua frente e ela fechou os
olhos, prendendo a respiração.
- Ayla? - Jondalar a via tremendo, apesar de estar enrolada numa pe le e junto ao
fogo. - Achei que você fosse chegar tarde e para ir adiantando as coisas preparei alguma
comida para nós. Quer agora? Não está muito can sada?
Teria ela ouvido direito? Aos poucos foi abrindo os olhos. Ele segura va uma
travessa. Colocou-a na frente dela e puxou uma esteira para se sentar ao seu lado. Havia
uma lebre assada no espeto, algumas raízes cozidas no cal do da carne seca que tinha
lhe dado antes, e uvas-do-monte.
- Você cozinhou isso.. . para mim? - perguntou Ayla, incrédula.
- Sei que não está tão bom como o que você faz, mas espero que sirva. Como achei
que poderia dar azar se usasse o atirador hoje, cacei a lebre, mas só com a lança. É uma
técnica diferente e estava com medo de que, com todos esses treinos, tivesse perdido a
minha pontaria. Mas acho que isso é uma coisa que não se esquece.
Os homens dos clãs não cozinhavam. Não podiam. Era um tipo de tra balho que não
se achava armazenado em suas memórias. Ayla sabia ser Jon dalar mais versátil, mas
nunca lhe ocorreu que ele chegasse ao ponto de cozi- nhar, principalmente existindo uma
mulher por perto. Mais espantoso dele poder e fazer, era ter tido a idéia disso. Quando
vivia no clã, mesmo depois de lhe darem permissão para caçar, esperava-se que ela
cumprisse com as suas obrigações habituais. Aquilo era tão inesperado, uma
consideração tão grande com ela. Os seus medos não tinham o menor fundamento. Não
sabia o que dizer. Pegou uma perna que ele cortara e deu uma mordida.
- Está bom? - perguntou Jondalar, um tanto ansioso.
- Maravilhoso - respondeu com a boca cheia.
Realmente estava bom, mas mesmo que a lebre estivesse estorricada e horrível,
não tinha importância. Para ela seria deliciosa. A impressão que ti nha era a de que ia
chorar. Jondalar pegou uma colherada cheia de umas raí zes finas e compridas. Ayla deu
uma mordida numa.
479 1 - Isso não é raiz de trevo? Está ótima.
- É - respofldeu ele, satisfeito consigo mesmo. - Mas ficam melhores quando há
azeite para mergulhá1as dentro. É um dos pratos que as mulheres fazem para os
homens em õcasiões especiais, pois é sempre muito apreciado. Vi os trevos numa área,
mais para cima no rio, e achei que você iria gostar. "Foi uma boa idéia essa a de preparar
a comida", pensou Jondalar, feliz com a expressão de surpresa dela.
- Dá muito trabalho retirá-las da terra. Há pouca coisa para comer ne las, mas são
muito gostosas. Eu só usava trevo para fazer remédios. As suas raízes entram na
composição de um tônico preparado na primavera.
- Normalmente comemos trevo também na primavera. É dos primei ros alimentos
frescos que aparecem.
Eles ouviram batidas de cascos nas pedras do patamar e se voltaram para ver Huiin
entrando na caverna com Campeão. Ayla se levantou para acomodar os animais. Todas
as noites era o mesmo ritual. Primeiro, as sauda çôes com muitos afagos e paparicos.
Depois feno, cereais, água e, quando houvesse alguma cavalgada mais longa, uma
esfregadela com um couro absor vente, seguida de uma boa limpeza com escova de
cardo. Ayla reparou que o feno, os cereais e a água já haviam sido providenciados.
- Você se lembrou dos cavalos também - disse, depois que se sentou para acabar
de comer as suas uvas-do-monte - Mesmo que não tivesse com fo me, as teria comido
assim mesmo.
- Bom - sorriu ele - eu estava sem o que fazer. Ah, quero mostrar para você uma
coisa - ele se levantou e voltou com os dois atiradores. - Espero que não se importe. É
para dar sorte.
- Jondalar! - Ayla estava quase com medo de tocar nas armas. - Você fez isso? - a
voz era cheia de admiração. Ela havia ficado surpresa quando ele desenhou a forma de
um animal no alvo, mas aquilo era muito mais impressio nante. - É. - . como se você
tivesse pegado o totem, o espírito do bisão, e o colocado aí.
Jondalar era todo sorrisos. Ayla fazia com que as surpresas ficassem muito mais
saborosas. Estava maravilhada com o gigantesco veado de chifres palmados esculpido
no dele.
- A intenção é a de capturar o espírito do animal para que ele seja atraído para a
ponta da lança. Na verdade, não sou um bom entalhador. Você precisava conhecer os
trabalhos de alguns. E também o que fazem escultores e gravadores. Sobretudo os
artistas que pintam os murais sagrados.
- Tenho certeza de que você botou neles uma poderosa mágica. Só que não vi
veados e sim uma manada de bis Acho que está começando a época de se juntarem.
Será que um bisão pode ser atraído para uma arma que tem nela um veado? Amanhã
posso sair novamente e procurar por veados.
- Isso serve para o bisão também. Mas o seu terá mais sorte. Estou sa tisfeito de ter
posto esse animal no seu atirador.
Ayla não sabia o que dizer. Jondalar era homem e se sentia satisfeito por ela ter
mais sorte na caçada do que ele.
- Estava fazendo também uma donii para nos dar sorte, mas não tive tempo de
acabá-la.
- Jondalar, eu não entendo direito. Afinal o que é uma donfi? É a sua Mãe Terra, não
é?
- A Grande Mãe Terra é Doni, mas as outras formas que ela toma são chamadas
donii. Uma donii é o espírito da Grande Mãe quando ela vem, por exemplo, cavalgando
no vento, quando se dá a conhecer nos sonhos e de ou tras maneiras mais. Os homens
quase sempre sonham com ela como uma lin da mulher. Uma donii é também a escultura
de uma figura feminina. - - nor malmente representada grávida, porque são as mulheres
as filhas abençoadas. A Mãe fez a mulher à sua imagem para que ela procriasse, tal
como ela mes ma. A nossa Grande Mãe cria todas as formas de vida na terra. A imagem
que melhor assenta com Doni é a de uma mulher esperando filho. Uma donii é sempre
enviada para conduzir o homem ao espírito dela no outro mundo. Dizem que as mulheres
não precisam de guias, pois elas conhecem o caminho. E há mulheres que podem,
quando o desejam, transformar-se numa donil. - nem sempre para fazer bem ao homem.
Os sharamudoi que vivem a oeste da. qui dizem que a Mãe pode tomar a forma de um
pássaro.
Ayla confirmou com a cabeça.
- Nos clãs, em tempos muito longínquos, existiram espíritos femininos.
- E os seus totens, como são eles?
- Os espíritos dos totens protetores são todos masculinos, seja o do ho mem ou o da
mulher. Apenas no caso da mulher, o seu totem é sempre um animal pequeno. Ursus, o
Grande Urso da Caverna, é o maior protetor dos di versos clãs e totem de todo mundo.
Mas de Creb era totem pessoal. Ele foi es I colhido, tal como o Leão da Caverna me
escolheu. Aqui está a minha marca - falou mostrando quatro riscas paralelas na sua coxa
esquerda, onde ela, aos cinco anos, havia sido apanhada pelas garras de um leão.
- Não imaginava que os ca. . - os clãs tivessem alguma idéia do mundo espiritual.
Ainda é difícil acreditar. . . bom, eu acredito em você, Ayla, mas para mim ainda é quase
inacreditável que o povo de que você fala seja o mes mo que eu me acostumei a chamar
cabeças-chatas.
Ayla abaixou a cabeça, depois levantou os olhos. El tinha a expressão séria e
preocupada.
- Acho que você também foi escolhido pelo Leão da Caverna, Jondalar.
Imagino que ele seja agora o seu totem. Creb dizia que a vida não é fácil para
aqueles que têm totens fortes. Ele próprio, quando foi posto à prova, perdeu 481 1 480 j
um olho, mas em troca ganhou um grande poder. Depois de Ursus, o Leão da Caverna é
o mais forte dos totens e, para mim, a vida não tem sido fácil. As provas que ele impõe
são bem duras, mas uma vez que compreendi a razão de las, não me arrependo do
sofrimento passado. Achei que você devia saber dis. so, no caso do Leão da Caverna ser
o seu totem - ela abaixou os olhos, te- mendo estar falando muito.
- Esse povo significa muito para você, não é?
- Eu queria ser uma mulher dos clãs, mas não pude. Não consegui fazer de mim
uma clânica. Não sou como eles. Pertenço aos Outros. Creb sabia dis so e Iza me disse
para partir e procurar a minha própria gente. Eu não queria, mas fui obrigada e não posso
mais voltar. Tenho a maldição de morte. Estou morta.
Jondalar não sabia direito do que Ayla falava, mas, ouvindo-a, sentiu os seus pêlos
se arrepiarem. Ela respirou fundo, antes de prosseguir.
- Nem da minha mãe verdadeira, nem da vida que levei antes de ir parar no clã eu
me lembrava. Tentava, mas não conseguia imaginar um homem dos Outros, um homem
que se parecesse comigo. Agora, quando tento imaginar alguém, só consigo ver a sua
figura Jondalar. Você é a primeira pessoa de mi nha espécie que vejo. Aconteça o que
acontecer, jamais vou esquecê-lo - ela se interrompeu, sentindo que falara demais.
Então, levantou-se. - Se vamos caçar amanhã, acho que devemos dormir um pouco.
Jondalar sabia que Ayla havia sido criada por cabeças-chatas e que vive ra sozinha
no vale, depois de os haver deixado, mas só quando a ouviu falando é que realmente
atinou com o fato de ser ele o primeiro homem que Ayla via. Era perturbador saber que
representava todo o seu povo e não estava muito orgulhoso da maneira como o vinha
fazendo. No entanto, sabia como as pes soas se sentiam a respeito dos cabeças-chatas.
Se ele tivesse simplesmente con tado a Ayla, teria a impressão dela sido a mesma? Será
que poderia compreen der o que a esperava?
Ele foi para cama sentindo-se tomado de sensações contraditórias e in quietantes.
Ficou deitado, com os olhos parados no fogo, pensando. Subita mente a sua percepção
começou a mostrar-se distorcida como se acometido por uma vertigem. Via uma mulher
refletida num lago, por instante agitado pela pedra atirada em suas águas. A imagem
tremeluzia com as pequeninas on das que se espalhavam em círculos cada vez maiores.
Ele não queria se ver esquecido pela mulher. Era importante ser lembrado por ela.
A sua sensação era a de um desvio, de uma bifurcação no caminho, de uma
escolha, e ele não tinha ninguém para orientá-lo. Uma corrente de ar morno passou
arrepiando-lhe a penugem no pescoço. Sabia que a mulher esta va deixando-o. Nunca
sentira conscientemente a presença da Mãe. Mas soube quando ela partiu deixando atrás
de si um vazio angustiante. Era o começo de um fim: o fim do gelo, o fim de uma idade, o
fim de uma época em que a Mãe provia com o sustento. A Mãe Terra ia partir deixando
que os seus filhos en contrassem os próprios caminhos, que forjassem eles mesmos as
suas vidas e que enfrentassem as conseqüências de seus atos. Estavam adultos. Não
seria em vida dele, muitas gerações ainda iriam transcorrer, mas o primeiro e inexo rável
passo fora dado. Ela lhes entregara a sua derradeira dádiva, a dádiva da sabedoria.
Pareceu a Jondalar ouvir um lamento, um pranto lúgubre e soturno que vinha do
além. A Mãe chorava.
Como uma tira de couro muito esticada que depois se solta bruscamen te, a
realidade começou a voltar à forma. Mas fora estirada em demasia e já não se ajustava
mais à dimensão original. Ele sentia que qualquer coisa estava fora do lugar. Olhou para
Ayla, do outro lado da fogueira. Lágrimas escor riam-lhe pelas faces.
- Há alguma coisa errada, Ayla?
- Não sei.
- Você tem certeza de que Huiin vai poder levar nós dois?
- Certeza não tenho - respondeu Ayla, conduzindo a égua carregada com as cestas.
Campeão ia atrás, puxado por uma espécie de cabresto feito com correias. Era passado
ao redor do pescoço, mas não muito apertado, su focando-o. Ele tinha liberdade para
mexer a cabeça e pastar. No princípio pa receu incomodado, mas acabou acostumando-
se.
- Se nós dois fôssemos montados, a viagem iria mais rápida. Se Huiin não gostar,
ela me deixa saber. Depois, poderemos montar cada um de uma vez, ou vamos os dois
caminhando.
Quando chegaram ao bloco de pedra plantado no meio do vale, Ayla montou e
chegou com o corpo, pouquinho à frente, mantendo Huiin no lu gar enquanto Jondalar
montava. Huiin levantou as orelhas. Havia sentido o peso extra, mas era uma égua
parruda e forte. Ao primeiro sinal de comando, se pôs a andar. Ayla a conduzia num
passo firme e regular, mas estava atenta à andadura do animal que lhe avisava quando
era tempo de descansar.
Na segunda vez que tornaram a montar, Jondalar já se sentia mais rela xado.
Depois, lamentou a falta de seu nervosismo. Tranqüilo e despreocupa do, ele passou a
ter consciência de Ayla, montada na frente dele. Sentia-lhe as costas fazendo pressão
contra o seu corpo e as coxas de um tocando nas do outro. Ayla, por sua vez, já não
estava atenta só à égua-Percebia o volume du ro e quente que se formara atrás dela, sob
o qual Jondalar não tinha controle. A cada movimento da égua eram sacudidos e jogados
um contra o outro. Ela desejava que aquele volume desaparecesse e ao mesmo tempo
não.
Jondalar começava a sentir uma dor que jamais havia experimentado.
483 482 .4 Nunca se vira obrigado a reprimir por tanto tempo a satistação de seu
desejo. Desde os seus primeiros dias de rapazola, sempre encontrara meio de aliviar se.
Lá, no entanto, só havia Ayla. Recusava-se a resolver mais uma vez sozinho o seu caso
e procurava simplesmente agüentar.
- Ayla - falou com voz angustiada - eu acho. . - que já é tempo de descansarmos
outra vez.
Ela parou o cavalo e apeou imediatamente.
- Nãõ estamos longe - disse ela. - Podemos fazer a pé o resto do ca minho.
- Isso é bom. Dará um descanso a Huiin.
Ayla não discutiu, apesar de saber que não era essa a razão por que ela estava
caminhando. Puseram-se a marchar no mesmo passo, com a égua entre os dois. Quando
conversavam era olhando-se por cima do lombo de Huiin. Ainda assim, a cabeça de Ayla
não tinha muitas condiçôes de prestar atenção aos marcos e à direção em que iam.
Jondalar caminhava com as virilhas dolori das, mas agradecido por ter a cobertura da
égua.
A vista de uma manada de bisões e a expectativa de ver o atirador fun cionando
numa verdadeira caçada serenaram o ardor contido, embora tives sem o cuidado de
manterem-se à distância, quase sempre com os cavalos entre eles.
Os bisões começavam a agrupar-se na beirada de um riacho. A manada era maior
do que Ayla pensava ter visto. No intervalo de um dia e outro, gru pos menores se haviam
juntado a ela e alguns mais ainda estavam para chegar. No final, haveria uma massa
compacta formada por dezenas de milhares de animais cabeludos, de cor marrom-
escura, que avançariam por muitos hectares de colinas onduladas e vales de águas
cristalinas. Um tapete móvel trovejante e mugente, uma massa tifo colossal que qualquer
animal visto individualmente não tinha importância. A estratégia da sobrevivência estava
na quantidade.
Mesmo o grupo menos numeroso que se juntara nas proximidades do riacho havia
subjugado as suas individualidades entrechocantes ao instinto da manada. Mais tarde,
durante as magras estaçôes, a sobrevivência exigiria que voltassem a dividir-se em
pequenas manadas que dispersariam em busca de co mida.
Ayla levou Huiin para a beirada do rio, junto a um teimoso pinheiro que, mesmo
dobrado pelo vento, insistia em lá permanecer. Na língua silen ciosa dos clãs, ela disse à
égua que ficasse por ali. Em seguida, vendo que Huiin mantinha Campeão ao seu lado,
percebeu que fora desnecessária a preo cupação com o potro. A mãe era perfeitamente
capaz de livrá-lo dos perigos. Enquanto isso, Jondalar se via às voltas com um problema
que ela tinha pre visto. Ficou curiosa por saber como ele estava se saindo.
Os dois se dirigiram a pé na direção da manada, cada um carregando o 484 seu
atirador e um feixe de lanças. Os cascos pesadões haviam partido a crosta seca das
estepes, levantando uma nuvem de poeira que se depositara sobre os couros cabeludos,
quase negros. O movimento da manada era assinalado pela poeira sufocante, tal como a
fumaça de um incêndio nos campos que indicava o curso das chamas e, como este,
também deixando em seu rastro a terra arra sada.
Jondalar e Ayla, olhando de esguelha e já escolhendo as suas presas, ca minhavam
em círculo para se porem contra o vento. A poeira fma vinha dire tamente para os seus
rostos e eles respiravam o bafo quente e ácido da atmos fera carregada do cheiro dos
bisôes. Os bezerrinhos novos mugiam atrás de suas mães, enquanto os irmãos de um
ano testavam com as suas marradas a paciência dos machos de grandes corcovas.
Um velho touro, que se rolava na terra solta, se pôs pesadamente de pé. A sua
enorme cabeça pendurava-se como se ele não agüentasse o peso de seus enormes
cornos negros. Jondalar, com o seu metro e noventa, alteava-se pou ca coisa acima da
corcova do animal. Os quartos dianteiros, massudos e cober tos por uma grossa
pelagem, adelgaçavam-se formando a traseira mais baixa e magra. Para o que eles
queriam, provavelmente o gigantesco bisão já estava ve lho demais, com a carne dura e
fibrosa. No entanto, quando o animal parou e se pôs a olhar desconfiado na direção
deles, os dois não duvidaram do peri go que estavam correndo. Esperaram até que o
bicho começasse a andar- À medida que se aproximavam da manada, aumentava o
barulho troante e indistinto que se separava numa infinidade de mugidos e roncos.
Jondalar apontou para uma fêmea ainda jovem. A novilha era quase adulta, em idade já
de dar cria e gorda das pastagens de verão. Ayla balançou a cabeça concor dando. Os
dois armaram os seus atiradores e Jondalar fez sinal para ela, dan do a entender que ia
cercar o animal pelo outro lado.
Talvez por instinto ou por ter visto o homem se movimentando, a novi lha percebeu
que fora marcada. Nervosa, se acercou da massa da manada. Ou tros bisões começaram
a se movimentar ao seu redor, desviando a atenção de Jondalar. Àyla já dava a novilha
como perdida. Não podia fazer sinal para Jondalar que estava de costas para ela. O
animal marcado afastava-se, pondo- se fora de alcance. Ainda que Jondalar pudesse
escutar, ela não podia gritar, pois iria atrair a atenção do velho bisifo.
Resolveu por ela mesma fazer pontaria. Jondalar olhou para trás. Ayla estava pronta
para atirar. Num instante ele compreendeu e aprontou também o seu atirador. Os
movimentos rápidos da novilha e os deles agitavam os ou tros animais. Os dois haviam
pensado que a nuvem de poeira fosse uma cober tura suficiente, mas os bisões estavam
acostumados com isso. A novilha, com outros animais, estava quase conseguindo pôr-se
a salvo, junto do bolo da ma nada.
485 A Jondalar partiu na direção do animal e disparou a lança. A de Ayla se guiu um
instante depois, cravando-se no pescoço, já encontrando a dele enter rada nas carnes
macias da barriga. Ainda embalada pela carreira, a novilha conseguiu chegar um pouco
mais adiante, mas as patas começaram-a fraque jar. Vacilante, tremendo, caiu de
joelhos, partindo a lança de Jondalar, quan do tombou de vez. A manada sentiu o cheiro
de sangue. Mugindo inquietos, uns poucos pararam para cheirar o animal morto. Alguns
outros, em meio aos atropelos e correrias desencontradas, acompanhavam-lhes os
mugidos fúne bres, enchendo a atmosfera de tensão.
Saindo de pontos opostos, Jondalar e Ayla correram para ver a novilha morta.
Subitamente ele parou agitando os braços para ela. Ayla abanava a ca beça sem
entender os gestos.
As brincadeiras de marradas de um dos bezerros haviam, por fim, conse guido irritar
o velho patriarca da manada. Para fugir-lhe, o tourinho desandou a correr. Logo à frente
topou com uma vaca nervosa. Indeciso e agitado, quis retroceder, mas atrás se achava o
velho macho. Estava sem saber que direção tomar quando teve a atenção voltada para a
estranha figura caminhando ereta sobre os seus pés. Incontinenti, abaixou a cabeça e
partiu ao ataque.
- Ayla! Cuidado! - gritou Jondalar, correndo para ela, com a lança na mão,já
apontando.
Ayla se virou, vendo o bezerro indo ao seu encontro. O primeiro pensa mento, numa
reação quase instintiva, foi para a funda, a sua arma de defesa de muitos anos e sempre
pronta para entrar em ação. Mas logo descartou a idéia e colocou uma lança no atirador.
Jondalar arremessou a sua lança com a mão um momento antes de Ayla disparar a
dela, mas a velocidade do atirador era maior. A lança de Jondalar pegou num dos
flancos, fazendo com que o bisão se virasse por um instante. Quando ele olhou, a lança
de Ayla estava tremendo, cravada no olho do ani mal, morto antes mesmo de cair no
chão.
A correria dos dois, a gritaria e mais uma fonte de sangue levaram os animais - que
andavam às tontas - a tomar uma direção que os pusesse longe daquele centro de
estranhos e perturbadores acontecimentos. Os últimos re tardatários corriam desviando-
se dos companheiros caídos para se juntarem à manada se debandando num estouro de
tremer a terra. A poeira já se havia assentado e ainda se ouvia o trovejar do tropel
distante.
Por alguns momentos Jondalar e Ayla permaneceram mudos de espan to, olhando
para os bisões mortos na planície deserta.
- Bom, está terminado. Foi simples - falou Ayla ainda atordoada.
- Por que você não correu? - gritou-lhe Jondalar, entregando-se, agora que tudo
acabara, ao medo que sentira por ela. Ele caminhou na sua direção.
- Você podia ter morrido!
486 - Eu não podia dar as costas para um touro que estava me atacando -
respondeu Ayla. - Seria certamente chifrada - ela olhou outra vez para o bi são. - Não. . .
acho que não. A sua lança teria acertado nele primeiro, mas eu não sabia disso. Nunca
havia caçado junto de outra pessoa. Sempre tive de cuidar de mim sozinha. Se eu não
fizesse assim, não haveria ninguém para fa zer por mim.
As palavras dela eram a peça que faltava para completar o quebra-cabeça.
Subitamente, o quadro do que fora a vida de Ayla estava completo. Ele a via sob novo
ângulo. "Essa mulher", pensou essa mulher encantadora, delica da, atenciosa,
conseguira sobreviver, de uma forma como jamais alguém acre ditaria. Não. Ela não
podia fugir. Jamais fugirá de alguma coisa, nem mesmo de você, Jondalar, ela fugirá. As
outras pessoas sempre abaixaram a cabeça diante de seus ataques e explosões, mas,
com ela, você mostrou o que tinha de pior, e ela não se arredou do lugar.
- Ay linda mulher selvagem, veja o que você caçou! - disse sorrindo.
- Dois bisões num só dia. Agora, como vamos levar isto para a caverna?
Quando ela atinou com a importância do acontecimento, sorriu. Um sorriso de
alegria, satisfação e triunfo. "Era um sorriso raro", pensou Jonda lar. "Ficava linda quando
sorria, iluminando-se como se tivesse uma fogueira acesa em seu interior." Uma risada
franca e contagiosa inesperadamente bro tou dos lábios dele. Ayla acompanhou-o.
Impossível resistir. Era o grito deles de vitória, de triunfo.
- Veja só o que você caçou, Jondalar - falou ela.
- Não fui eu e sim os atiradores de lanças. Eles mudaram tudo. Nós nos metemos
dentro dessa manada e antes que os bichos soubessem o que estava acontecendo, dois
deles já estavam caídos. Já imaginou o que isso significa?
Sim, ela sabia o que significava. Com a nova arma, poderia caçar sozi nha. Verão. -
. inverno. Nada mais de cavar no chão armadilhas. Tudo que ti nha de fazer seria sair em
busca da caça. O atirador possuía todas as vantagens da funda e algumas outras mais.
- Sim, eu sei, Jondalar. Você disse que iria ensinar para mim uma ma neira melhor e
mais fácil de caçar e ensinou muito mais do que eu poderia es perar. Nem sei o que
dizer. Eu estou tão...
Ela só conhecia uma maneira de expressar a sua gratidão. Era à maneira dos clãs.
Sentou-se aos pés dele, de cabeça baixa. Talvez Jondalar não lhe ba tesse no ombro,
dando permissão para que falasse na forma devida, mas tinha pelo menos de tentar.
- O que você está fazendo? - perguntou Jondalar, segurando-a para obrigá-la a
levantar-se. - Não fique aí sentada desse jeito, Ayla.
- Quando uma mulher dos das deseja dizer alguma coisa importante a um homem, é
assim que ela solicita a sua atenção - falou, levantando os 487 olhos. - É importante dizer
o quanto isso significa para mim e o quanto me sinto agradecida pela arma. . . e também
por me ensinar a falar e por tudo mais que tem feito.
- Por favor, Ayla, levante-se - disse Jondalar, suspendendo-a. - Foi você quem me
deu a arma e não eu a você. Se não tivesse visto o modo de vo cê usar a funda, nunca
teria pensado nessa arma. Eu sou-lhe grato, Ayla. - e por muito mais coisas do que essa
arma.
Ele segurava-a pelos braços, sentindo-lhe a proximidade do corpo. AyIa olhava-o
dentro dos olhos, sem conseguir - e nem o queria - desviar os seus. Ele se inclinou e
pousou os seus lábios nos dela.
Os olhos de Ayla arregalaram-se surpresos. Era inteiramente inesperado. Não só o
gesto dele como a reação dela, igual a um choque se irradiando por todo o seu corpo. Ela
não soube como responder.
Ele acabou compreendendo. Não iria forçá-la. Não passaria daquele sim ples e
delicado beijo. - - não por enquanto.
- Essa boca na boca, o que é?
- Um beijo, Ayla. Ë o seu primeiro beijo, não é? Vivo me esquecendo, mas é muito
difícil olhar para você e. - - Ayla, às vezes eu sou um perfeito idiota.
- Por que diz isso? Você não é idiota.
- Sou sim. Não dá para acreditar o quanto tenho sido idiota - ele a soltou. - Bom,
mas acho melhor arrumarmos um jeito de levar esses bisões para a caverna, porque se
eu ficar aqui junto de você, não vou conseguir fazer as coisas direito. - - como deverão
ser feitas na sua primeira vez.
- Ser feitas? Como assim? - perguntou, desejando que ele não se afas tasse.
- Nos seus primeiros ritos, Ayla. Se você me permitir.
- A carne pode esperar, Ayla - o riso e o olhar dele comunicavam calo rosas
emoçôes. - Acho que os seus primeiros ritos são mais importantes. Pri meiro vou ajudá-la
a tirar os arreios de Huiin, depois vou tomar um banho no rio. Estou suado e sujo de
sangue.
- Jondalar. . . - ela hesitava. Sentia-se excitada, mas tímida. - Esses primeiros ritos
são como uma cerimônia?
- Sim, são como uma cerimônia.
- Iza ensinou como eu me devo preparar para cerimônias. Há alguma preparação
especial para esta?
- Em geral as mulheres mais velhas ajudam as moças a se prepararem. Eu não sei o
que elas dizem ou o que fazem. Acho que você deve fazer aquilo que melhor lhe
convenha.
- Então vou pegar raízes de saboeiro e me purificar da maneira como lia ensinou.
Vou esperar que você primeiro termine o seu banho. Devo ficar sozinha enquanto estou
me preparando - falou, enrubescendo e abaixando os olhos.
'Parece uma criança tímida", pensou ele. "Igual a qualquer mocinha antes de seus
primeiros ritos." Ele estava excitado, ao mesmo tempo que era invadido por uma onda de
ternura. Até os preparativos dela eram corretos. Levantou-lhe o queixo e tomou a beijá-la.
Depois, com ar decidido, afastou-se.
- Eu também gostaria de ter algumas raízes de saboeiro.
- Vou arrumar para você - falou Ayla. Um sorriso se desenhava no seu rosto
enquanto ele caminhava atrás dela, beirando o rio. Depois que Ayla apa nhou as raízes
de saboeiro e voltou para a cavema, ele caiu dentro da água, sentindo-se bem consigo
mesmo, de uma maneira como há muito não lhe acontecia. Esmigalhou as raízes,
formando uma espuma farta de sabão, e esfregou o corpo. Então retirou a tira de couro
que prendia os cabelos e lavou a cabeça. Areia também servia, mas raízes de saboeiro
funcionavam melhor.
Mergulhou na água e nadou subindo o rio até chegar perto das cataratas. De volta à
praia, vestiu a tanga e subiu correndo para a caverna. Um pedaço de carne assando na
fogueira cheirava deliciosamente. Estava tão relaxado e feliz que nem conseguia
acreditar.
- Que bom você estar de volta. Para me purificar direito, preciso de al gum tempo e
não queria que ficasse muito tarde - ela pegou a gamela onde havia fervido cavalinhas,
usadas para lavar os cabelos, e um couro novo para vestir.
- Leve o tempo que quiser - disse Jondalar, beijando-a de leve.
Ela já ia começar a descer, mas parou e se voltou na direção delé.
- Eu gosto dessa coisa de boca na boca. . . beijo.
- Espero que vá gostar também das outras coisas - falou ele, depois de Aylajá ter
saído.
489 28 - i&cho que Huiin não teria conseguido puxar os bisões até a cavema se nós
não tivéssemos deixado para trás as cabe ças dos bichos - disse Ayla. - Foi uma boa
idéia - ela e Jondalar se achavam no patamar, retirando o bezerro do jorrão - Há tanta
carne! Vai levar um tempão para cortá-la. O melhor será começar a fazer isto logo.
488 A Ele andava pela caverna, vendo-a com novos olhos. Examinou o pernil do
bisão assando e virou o espeto. Em seguida, reparando numas raízes enro ladas com
folhas, colocou-as junto das brasas. Perto da fogueira encontrou o chá que ela lhe havia
preparado. "Ayla deve ter apanhado essas raízes enquan to eu nadava", disse para si
mesmo.
Ele franziu a testa, olhando para as suas peles do outro lado da fogueira.
Subitamente, deliciado, se levantou e as trouxe de volta para o vaziõ do lado de Ayla.
Depois de esticá-las, foi buscar a trouxa que continha as suas ferra mentas e se lembrou
da donii que tinha começado a esculpir. Sentou-se sobre a esteira que forrava o chão
para as suas peles de dormir e abriu a trouxa de pele de veado.
Resolveu terminar a figura de mulher que começara a esculpir num pe daço de
marfim de mamute. Talvez não fosse um grande escultor, mas não lhe parecia direito
celebrar uma das mais importantes cerimônias da Mãe sem a presença de uma donii.
Saiu da cavema trazendo alguns buris e a peça de mar fim.
Sentou-se no patamar, burlando, talhando, esculpindo, mas via que o marfim não
estava adquirindo a forma bojuda e maternal pretendida. O que estava saindo era a figura
de uma moça. Os cabelos que havia pensado em re produzir ao estilo das velhas
imagens de donli, tal como o da estatueta que de ra de presente - representados por uma
série de ranhuras cobrindo o rosto e parte das costas - sugeriam antes tranças. Trai muito
apertadas que co briam toda a cabeça, menos o rosto, deixado à mostra, mas sem
feições defini das. Jamais um rosto fora esculpido numa donil. Ninguém suportaria a
visão do rosto da Mãe. Ninguém o conhecia. A Mãe era ao mesmo tempo todas e
nenhuma mulher.
Ele parou de trabalhar e olhou o rio nas duas direç&s, esperando vê-la, embora ela
tivesse dito que queria estar sozinha. Será que ele lhe poderia dar prazer? Nunca
duvidara de si quando o convidavam para atuar nos primeiros ritos nas reuniões de
verão, mas as mocinhas lá conheciam os costumes e sa biam o que as aguardava, além
de que contavam com as mulheres mais velhas para lhes explicar.
"Será que eu deveria explicar alguma coisa? Não. Você não saberia o que dizer,
Jondalar. Mostre simplesmente a ela. Se Ayla não gostar de algu ma coisa, logo ela dará
a entender. A franqueza é um de seus traços mais en cantadores. Nada de
dissimulações. É alentador.
"Como será mostrar a dádiva do prazer para uma mulher sem fingimen tos? Que
não irá reprimir-se e nem fingirá gozos mentirosos?
'Por que seria Ayla diferente de uma outra mulher nos primeiros ritos? Porque, na
verdade, ela não se parece com qualquer outra mulher em seus primeiros ritos. Ela já foi
aberta com grande sofrimento. E se você, Jondalar, 490 não conseguir superar o trauma
dessa terrível iniciação? E se ela não puder usufruir dos prazeres? Se não for capaz de
fazê-la sentir? Tinha de encontrar uma maneira que apagasse tudo de sua memória. - . -
Se eu pudesse atrair Ayla para mim, se conseguisse vencer a sua resistência e capturar
o seu espí rito.
"Capturar o seu espírito?”
Ele olhou para a estatueta em sua mão. De repente, a sua cabeça pôs-se a
trabalhar rapidamente. Qual a razão de se colocar a figura de um animal nu ma arma ou
pintá-lo nos muros sagrados? Não era para estar perto do espírito da Mãe? Para vencer a
sua resistência e capturar a sua essência?
"Não seja ridículo, Jondalar. Você não pode capturar o espírito de Ayla dessa
maneira. Não seria direito. Nunca alguém pôs um rosto numa donii. A figura humana
jamais foi reproduzida. - - a imagem seria para capturar a essên cia do espírito. Mas de
quem ficaria ele cativo? Ninguém deve manter o espí rito de outra pessoa prisioneiro. E
se você der a donii para Ayla? Ela teria o seu espírito de volta, não é? Se você o
conservasse só por algum tempo e de pois lhe devolvesse. - - mais tarde, quando. - -
"Mas se você puser o rosto dela na estatueta, isso não vai transformá-la numa donii?
Você já chega quase a acreditar que ela seja uma, com esse seu poder de encantar
animais e curar pessoas- Se Ayla for uma donil, talvez ela queira capturar o seu espírito.
E isso seria tão mal assim?
"Na verdade, você quer ficar com uma parte do espírito dela, Jondalar. A parte que
sempre fica nas mãos daquele que faz a obra. E você quer essa parte, não é?
"Oh, Mãe! Seria isso algo tão terrível? Pôr o rosto dela numa donii?" Ele se pôs a
olhar a figura de marfim que estava esculpindo. Então, re solveu. Apanhou o buril e
começou a dar forma a um rosto, um rosto conhe cido seu.
Ao terminar, suspendeu a estatueta e vagarosamente girou-a na mão. Um escultor
de verdade teria feito melhor, mas não estava mal. Parecia com Ayla. Não propriamente
com a sua aparência real, seria antes como era perce bida, ou melhor, como ele a
percebia. Voltou para a caverna e tentou achar um lugar para colocá-la. A donii devia
ficar por perto, mas não queria que Ayla a visse por enquanto. Decidiu enfiá-la numa
dobra da trouxa de couro que viu junto da parede próxima à cama de Ayla.
Tornou a sair e foi olhar a vista da ponta do patamar. Por que estaria demorando
tanto? Os seus olhos bateram nos dois bisões que se achavam lado a lado no chão do
patamar. "Eles podem esperar", pensou. As lanças e os ati radores estavam encostados
contra a parede, perto da entrada. Resolveu levá los para dentro. Nisso, ouviu o barulho
de pedregulhos caindo no chão. Ele se voltou.
491 A Ayla apertou o cinto sobre a sua roupa nova, pendurou o amuleto no pescoço
e puxou os cabelos para trás da orelha. Apenas os escovara, pois ainda não se achavam
bem secos. Pegou, então, a roupa suja e começou a subir o ca minho para a caverna.
Mais ou menos tinha alguma noção do que Jondalar queria dizer com primeiros ritos.
Estava comovida por ele ter vontade de fazer e compartilhar de alguma coisa com ela.
Não achava que a cerimônia seria de todo mim. Mes mo Broud, depois das primeiras
vezes, já não machucava mais. Se o sinal dos homens era para as mulheres que
gostavam, será que isso significava que Jon dalar começava a interessar-se por ela?
Ao chegar no patamar, ela foi interrompida em seus pensamentos por qualquer
coisa fulva passando rapidamente diante de seus olhos.
- Para trás, Ayla - gritou Jondalar. - Para trás! É um leão da caverna!
Jondalar, na boca da entrada, segurava uma lança, pronto para atirar no imenso
leão que estava agachado, em posição de saltar, e com rosnados baixos de garganta.
- Não!
- Não, Jondalar! - gritou Ayla, correndo e se colocando entre os dois.
- Ayla, por favor! Oh, Mãe, não permita isso! - berrou Jondalar, quan do ela se pôs
na frente dele, barrando o ataque do leão.
Ayla fez um gesto incisivo de comando e gritou na língua gutural dos clãs:
- Pare!
A fera colossal desviou o seu salto e veio aterrissar nos pés de Ayla, pon do-se, em
seguida, a esfregar a sua fantástica cabeçorra na pema dela. Jondalar estava
completamente paralisado.
- Neném! Oh, Neném! Você voltou - dizia Ayla por gestos. Então, sem mostrar
qualquer hesitação, sem a menor sombra de medo, passou os bra ços ao redor do
gigantesco pescoço.
Neném a jogou no chão, da maneira mais delicada que pôde. Jondalar observava,
de boca aberta, o maior leão que já vira, rodear a mulher com as suas patas dianteiras,
no que ele imaginava fosse um abraço leonino. Com a sua língua áspera, a fera pôs-se a
lamber as lágrimas salgadas do rosto de Ayla, começando já a ficar esfolado.
- Chega, Neném, ou eu vou acabar sem cara - ela se sentou e procurou pelos
lugares atrás das orelhas e ao redor do pescoço, escondido pela juba, on de ele adorava
ser coçado. Depois se virou de costas e, soltando grunhidos de satisfação, ofereceu a
garganta às carícias de Ayla. - Acho que nunca mais vou voltar a vê-lo, Neném - falou
ela, quando o leão outra vez virou de barri ga para baixo. Ayla não se lembrava dele tão
grande. Parecia um pouquinho mais magro, mas saudável. Também estava com
cicatrizes novas. Devia estar 492 lutando pelo seu território e, certamente, vencendo.
Neném a enchia de or gulho.
O leão, novamente voltando a reparar na figura de Jondalar, rosnou.
- Não rosne para ele! Esse é o homem que você trouxe para mim. Você tem a sua
companheira. - - a essas alturas já deve ter até várias.
Neném se levantou, deu as costas para Jondalar e se encaminhou para onde
estavam os bisões.
- Você se importa se eu der um para ele? - perguntou ela, dirigindo-se a Jondalar. -
Temos carne demais.
Jondalar continuava ainda atônito, com a lança na mão e de pé na en trada da
caverna. Quando foi responder, a sua voz saiu como um guincho, an tes de voltar ao
normal.
- Importar? Está perguntando se eu me importo? Dê os dois. Dê tudo que ele quiser.
- Neném não precisa dos dois - ela dizia o nome numa língua que Jon dalar não
conhecia, mas imaginava que fosse o nome do leão. - Não, Neném! A novilha não! -
ordenou Ayla por gestos e sons que deixaram Jondalar em dúvida se realmente aquilo se
tratava de uma língua. De repente ele soltou uma exclamação. Ayla estava tirando um
dos bisões da boca do leão e empur rando-o na direção do outro. Neném segurou, com
as suas imensas garras, o bezerro pelo pescoço sem cabeça e saiu arrastando-o pelo
patamar. Aferrado à presa, começou a descer pelo seu muito conhecido caminho.
- Agora mesmo eu volto, Jondalar - disse Ayla. - Huiin e Campeão podem estar lá
embaixo e não quero que Neném assuste o potro.
Jondalar ficou observando Ayla seguindo o leão, até que ela sumisse de sua vista na
curva do penhasco. Depois reapareceu no vale, caminhando des preocupadamente ao
lado do leão que arrastava o bisão sob o seu corpo.
Ao chegarem no bloco de pedra, Ayla parou e tomou a abraçar o ani mal. Neném
soltou o bisão. Do alto do patamar, Jondalar, abanando a cabeça, sem acreditar nos seus
olhos, viu Ayla montar no lombo da fera descomunal, estender os braços e segurar a juba
dourada. Então, colada ao corpo do animal e com a cabeleira esvoaçando para trás,
disparou num galope desenfreado pelo vale. Depois Neném foi diminuindo os passos e
voltou ao ponto de partida. Ali, pegou outra vez o bisão e foi embora com ele arrastado
por entre as per nas. Ayla ficou parada, seguindo-o com os olhos. Bem ao longe, no meio
da campina, o leão mais uma vez largou o bisão e começou a fazer uma série de
grunhidos - bem conhecidos de Ayla - que foram crescendo e transforman do-se em
estrondosos rugidos, tão fortes que os ossos de Jondalar chegavam a estremecer.
Depois que o leão se foi, ele respirou fundo e, com as pernas bambas, procurou
uma parede para se encostar. Estava assombrado e um pouco teme- 493 A roso
também. Que mulher era aquela? Que espécie de mágicas eram as suas? Pássaros
ainda vá lá. Até cavalos ainda passava. Mas um leão da caverna? O maior que ele já vira
em toda a sua vida.
Será que ela era. . . uma donii? Quem, a não ser a Mãe, poderia dobrar os animais à
sua vontade? E o que dizer dos seus poderes de curar? Ou de sua capacidade
extraordinária para aprender a falar? Tinha, é verdade, um sotaque diferente, mas já
havia aprendido quase tudo quanto ele sabia de mamutoi e também algumas palavras em
sharamudoi. Seria a própria Mãe que estava ali na forma de Ayla?
Ele lhe ouviu os passos subindo pelo caminho e teve um estremecimen to de medo.
Se Ayla chegasse lá naquele momento e declarasse ser uma encar nação da Mãe, ele
teria acreditado piamente. No entanto o que viu foi uma mulher descabelada e com
lágrimas escorrendo pelo rosto.
- O que aconteceu? - perguntou. Os seus medos fantasiosos logo sumi ram,
cedendo lugar à ternura.
- Por que tenho de perder todos os meus filhinhos? - falou Ayla, cho rando.
- Os seus filhinhos? - disse Jondalar, empalidecendo. - Aquele leão era seu filho? -
muito assustado, lembrou-se de quando lhe parecera ter escu tado o choro da Mãe, a
Mãe de todos os seres da Terra.
- Sim- Primeiro foi Durc, e agora Neném.
- Lesse o nome do leão?
- É. Significa bebezinho - respondeu, procurando se fazer entender.
- Bebezinho?! Esse leão descomunal, o maior leão que já vi na minha vida.
- Eu sei - um sorriso de orgulho maternal brilhou em meio às lágrimas.
- Sempre me preocupei para que houvesse bastante comida para ele. Neném não
foi criado no meio de outros leões. Quando eu o achei, ele era pequenini nho, por isso eu
comecei a chamá-lo de Neném e assim foi ficando porque eu não tive tempo de pensar
num outro nome para lhe dar.
- Você achou o leão? - perguntou Jondalar ainda hesitante.
- Os outros leões abandonaram o pobrezinho para morrer. Acho que foi pisado por
um veado num dia em que eu estava espantando uma manada na direção de minha
armadilha. Brun, às vezes, me deixava levar bichos para dentro da caverna quando eles
estavam feridos e precisando ser tratados. Mas os carnívoros ele nunca permitiu. Eu não
pretendia trazer o leão, Só fiz isso quando vi que as hienas estavam querendo apanhá-lo.
Então pëguei a minha funda, espantando as desgraçadas, e trouxe Neném para cá.
Com um olhar distante e sorrindo ligeiramente, ela prosseguiu:
- Neném era tão engraçado quando pequeno. . . sempre estava me fa zendo rir. Mas
eu gastava um tempo enorme caçando para ele. Foi só no se- 494 gundo inverno que
começamos a caçar juntos. Nós três: eu, ele e Huiin. Eu não via Neném desde. - . -
subitamente ela se lembrou do dia em que o vira pela última vez. - Oh, Jondalar, eu sinto
muito. Neném é o leão que matou o seu irmão. Mas se tivesse sido um outro, eu nunca
teria conseguido tirá-lo de lá.
- Você é a donii! - exclamou Jondalar. - Foi você quem apareceu no meu sonho!
Bem que achava ter visto uma donii chegando para me conduzir ao outro mundo e
afastando de mim um leão.
- Você deve ter recobrado um pouquinho os sentidos neste momento, Jondalar. Mas
depois, quando eu fui removê-lo, você desmaiou, provavelmen te de dor. Eu tinha de tirá-
lo de lá o mais depressa possível. Neném, às vezes, é um pouco burro, mas não faz por
mal. E uma coisa que não pode evitar. Ele não iria machucar-me, mas a leoa podia
aparecer a qualquer momento.
Jondalar abanava a cabeça, assombrado e incrédulo.
- Você realmente caçava com um leão?
- Era o único jeito que eu tinha para arrumar comida para ele. No prin cípio, Neném
não conseguia matar sozinho os animais. Ele só os derrubava e eu chegava montada em
Huiin para matar a caça com a minha lança. Não sa bia que se podia atirar uma lança.
Depois que Neném ficou maior, passou a matar os animais. Quando eu queria guardar o
couro ou ficar com parte da carne, antes que ele começasse a comer, eu pegava para
mim.
- Como fez agora com o bisão. Você não sabe que é perigoso tirar car ne da boca
de uma fera? Já vi leões matando as suas próprias crias por causa disto!
- Eu também. Mas Neném é diferente, Jondalar. Ele não foi criado jun to de outros
leões. Cresceu aqui comigo e Huiin. Nós caçávamos juntos. - .ele foi acostumado a dividir
tudo comigo. Mas estou feliz por ter encontrado uma leoa, e assim poderá levar a vida de
um verdadeiro leão. Huiin passou algum tempo vivendo com outros cavalos, mas ela não
estava feliz e voltou.
Ayla abanou a cabeça e abaixou os olhos.
- Isso não é verdade. Eu é que gostaria de acreditar que fosse. Acho que Huiin
estava feliz com a sua manada e com o seu garanhão, mas eu me sentia triste. Fico tão
feliz por ela ter querido voltar depois que o seu gara nhão morreu.
Ayla pegou a sua roupa suja e se encaminhou para a caverna. Jondalar, reparando
que ainda empunhava a lança, encostou-a na parede e foi atrás dela. Ayla estava
pensativa. A volta de Neném havia despertado muitas lembranças. Ela olhou para o pernil
do bisão assando, girou o espeto e atiçou as brasas. Em seguida, apanhou o odre, feito
do estômago de um onagro, que estava pendurado num poste, despejou água numa
cesta de cozinhar e botou algumas pedras para esquentar na fogueira.
495 Jondalar, ainda atordoado com a visita de Neném, observava-a. Havia si do
assustador ver aquele imenso leão saltando para o patamar, mas muito mais ainda a
maneira como Ayla dominou a gigantesca fera. Se ele contasse, ninguém lhe acreditaria.
Olhando-a, percebia que havia qualquer coisa diferente nela. Eram os cabelos
soltos. Lembrou-se da primeira vez que a vira assim, com a cabeleira dourada brilhando
ao sol. Ela vinha da praia e ele a viu por inteiro, em toda a sua nudez, com os cabelos
soltos e na magnificência de seu corpo.
- - . - foi bom ter encontrado Neném outra vez. Esses bisões deviam estar em seu
território. Ele certamente sentiu o cheiro do sangue e pegou o rastro deles. Neném ficou
surpreso de vê-lo aqui. Não sei se ele ainda se lem brava de você. Como foi apanhado
naquela garganta sem saída?
- Han? Desculpe, o que você estava dizendo?
- Estava perguntando como você e o seu irmão foram apanhados na quela garganta
com Neném? - falou olhando para ele. Ela ficou veqnelha ao dar com os luminosos olhos
cor de violeta que a fitavam atentamente.
Com esforço, Jondalar prestou atenção ao que Ayla lhe perguntava.
- Nós estávamos à espreita de um veado que uma leoa também estava de olho.
Quando Thonolan conseguiu matá-lo, ela pegou a caça e Thonolan foi atrás. Eu lhe disse
que deixasse a leoa ficar com o veado, mas ele não me quis ouvir. Nós vimos quando ela
entrou e saiu da garganta. Thonolan achou que podia recuperar a lança e um bocado da
carne antes que a leoa voltasse. Mas o leão que estava lá não pensava a mesma coisa.
Jondalar fechou os olhos por um instante.
- Não posso culpá-lo. Era estúpido ir atrás daquela leoa, mas eu não consegui
impedi-lo. Thonolan sempre foi imprudente, mas depois da morte de Jetamio já não era
só imprudência. Ele queria morrer. Hoje já nem sei se deveria ter ido atrás dele.
Vendo que Jondalar ainda sentia a morte do irmão, mudou de assunto.
- Não vi Huiin no vale. Ela deve estar com Campeão nas estepes. Nos últimos
tempos tem ido sempre para lá. A maneira como você ajeitou as cor reias ao redor de
Campeão funcionou muito bem, mas talvez nem fosse preci so mantê-lo atado a Huiin.
- A corda estava muito comprida. Achei que pudesse ficar presa em al guma planta,
mas serviu para segurar os dois. Isso pode ser feito novamente nas outras vezes que
você quiser que eles fiquem só num lugar. Pelo menos com Campeão, porque Huiin
sempre fica onde você quer, não é?
- Acho que sim. Mas é porque também ela quer. Huiin conhece os meus desejos. Já
com Neném, eu vou para onde me quiser levar. - . mas com ele, eu vou voando - os seus
olhos brilhavam com a lembrança do último pas seio. Cavalgar um leão era sempre
emocionante.
496 Jondalar lembrou-se da figura dela, agarrada ao lombo do animal e com os
cabelos esvoaçando, mais dourados que a juba fulva do lego. Chegara a ter medo dela,
mas um medo excitante como ela: selvagem, bela e livre.
- Você é uma mulher excitante, Ayla - falou ele. Os olhos lhe confir mavam as
palavras.
- Excitante? Excitante é - - - o atirador de lanças e montar em Huiin ou em Neném,
não é isso? - disse, corando.
- É. E assim é você para mim, Ayla. Excitante e linda.
- Jondalar, você está brincando. O que é lindo é uma flor ou o céu quando o sol
começa a cair sobre a borda da terra. Eu não sou linda.
- Uma mulher não pode ser linda?
Ela virou o rosto, fugindo da intensidade do seu olhar.
- Eu. - eu não sei. Mas não sou linda. Sou. - - grande e feia.
Jondalar levantou-se, e a puxou pela mão para que se levantasse também.
- Agora me diga. Quem é maior?
Tão junto dela, ele estava irresistível. Novamente havia feito a barba. Só de muito
perto se via os pêlos cortados rentes à pele. Ela tinha vontade de tocar naquele rosto que
conseguia ser sedoso e áspero ao mesmo tempo. Os olhos dele pareciam enxergá-la por
dentro.
- Você - sussurrou.
- Então, não é tão grande assim, é? E você também não é feia, Ayla - disse com um
sorriso que apenas os olhos revelavam. - Chega a ser engraça do: a mulher mais linda
que já vi na vida pensa que é feia.
Estava tão perdida naqueles olhos que a mantinham prisioneira e tão entregue às
emoçôes de seu corpo, que ela ouvia as palavras, mas não as en tendia.
Jondalar inclinou-se para beijá-la e a envolveu nos braços, apertando-a contra o seu
corpo.
- Jondalar - falou, suspirando - eu gosto disso. - - de boca na boca.
- Beijo, Ayla. Acho que chegou o momento - resolveu, tomando-lhe a mão e a
conduzindo na direção das peles de dormir.
- Momento?
- Primeiros ritos.
Os dois se sentaram sobre as peles.
- Que espécie de cerimônia é esta?
- É a cerimônia que toma a moça numa mulher. Não lhe posso dizer muita coisa
sobre isso. Em geral, as mulheres mais velhas contam para as mo cinhas o que vai
acontecer com elas. Falam, por exemplo, que os primeiros ritos são sempre dolorosos,
mas que é uma coisa necessária para abrir a passa gem que fará dela uma mulher. Um
homem é escolhido para essa ocasião- Os homens gostam de ser escolhidos, mas
alguns ficam com medo.
49 - Medo de quê?
- Medo de que possam machucar a mulher, medo de que sejam desas trados, medo
de que não sejam capazes e medo de que a sua virilidade não se levante.
isso.
- É assim que você chama o órgão do homem? Há tantos nomes para - L verdade,
há muitos nomes - falou ele, pensando numa série, alguns vulgares, outros pitorescos.
- Qual o verdadeiro nome?
- Virilidade, acho eu. Fazedor de mulher é um outro - disse, depois de pensar um
momento.
- O que acontece se a virilidade não se levanta?
- O homem será substituído por um outro.. . é muito embaraçoso. Mas quase todos
desejam ser escolhidos para a primeira vez de uma mulher.
- Você gosta de ser escolhido?
- Gosto.
-Porquê?
Jondalar sorriu, sem saber se todas aquelas perguntas eram por simples curiosidade
ou se porque ela estava nervosa.
- Acho que é porque gosto disso. A primeira vez de uma mulher é algo muito
especial para mim.
Jondalar, como podemos ter uma cerimônia de primeiros ritos, se essa não é a
minha primeira vez e eu já estou aberta?
- Eu sei. Mas os primeiros ritos não se limitam apenas a abrir a mulher.
- Não entendo. O que mais pode haver?
Ele sorriu e chegou para mais perto, pondo a boca sobre a dela. Ayla l clinou o corpo
para junto do dele, mas assustou-se. Jondalar tinha a boca aberta, procurando introduzir
a língua dele na sua boca. Ela recuou.
- O que está fazendo?
- Você não gosta? - ele tinha a testa franzida, preocupado. - -Não sei.
- Quer tentar outra vez para ver? "Vá com calma", disse Jondalar para si mesmo.
"Não se apresse." Por que você não se deita e relaxa?
Ele, delicadamente, puxou-a para aspelese se esticou-ao seu lado, apoia do sobre o
cotovelo. Por alguns instantes, ficou olhando-a, depois voltou a pôr a boca sobre a dela.
Esperava que a tensão desaparecesse. Então começou a acariciar-lhe os lábios com a
língua, num roçar leve e tremeluzente. Ao sus pender a cabeça, viu-a sorrindo de olhos
fechados. Ela esticou o pescoço que rendo alcançá.lo. Ele a beijou com mais pressão, de
boca aberta. Quando a sua língua procurou penetrar, lhe encontrou a boca aberta, pronta
para recebê - Sim, acho que eu gosto.
Jondalar sorriu. Ayla analisava, provava, experimentava. Ele se sentia feliz por ver
que estava passando pela prova.
- E agora? - perguntou ela.
- Mais da mesma coisa?
-Sim.
Ele tomou a beijá-la, docemente explorando os lábios, o céu da boca e por baixo da
língua. Em seguida, percorreu o contomo do rosto, encontrando a orelha, bafejando-a
com o seu hálito quente e mordiscando-lhe o lóbulo. Depois de explorar-lhe a garganta
com a língua e cobri-la de beijos, voltou no vamente à boca.
- O que é isso que me faz tremer, como se eu estivesse com febre? Não de doença,
é como. - . um arrepio delicioso.
- Neste momento, você não tem de ser uma curandeira. Não é doença - ele fez uma
pausa. - Se está com calor, por que não abre a roupa, Ayla?
- Não é preciso. Não estou com tanto calor assim.
- Você se importaria se eu abrisse para você?
-Por quê?
- Porque eu gostaria - ele voltou a beijá-la, enquanto procurava desfa zer o nó da
correia que fechava a roupa dela. Não teve sucesso. Estava certo de que este detalhe iria
render muita conversa.
- Eu abro - murmurou ela, quando parou de beijá-la. Rápido, Ayla de satou o nó e
arqueou o corpo para se desvencilhar da correia. A roupa caiu pa ra os lados. Jondalar
perdeu a respiração.
- Oh, mulher! - era uma voz rouca, impregnada de desejos. Ele sentiu que a sua
virilidade se estirava. - Ayla. . - oh, Doni, que mulher! - Com fú ria, beijou.lhe a boca
entreaberta, enterrando, em seguida, o rosto no seu pes coço e lhe chupando
ardorosamente a pele. Ofegante, afastou-se, vendo amar ca vermelha que fizera. Então
respirou fundo, procurando controlar-se.
- Alguma coisa errada? - perguntou Ayla, com a cara franzida.
- Não. Apenas o meu desejo por você é muito grande e eu quem fazer as coisas
direito, mas não sei se vou conseguir. Você é.. . tão bonita, tão mu lher.
O rosto de Ayla se abriu num sorriso.
- Tudo que você fizer será direito, Jondalar.
Ele beijou-a com calma, desejando mais do que nunca lhe dar prazer. Acariciou-lhe
o lado do corpo, sentindo o seio rígido e farto, a cava da cintu ra, o quadril fazendo uma
suave curva e a coxa forte com a musculatura rete sada. Ela tremia sob os toques
acariciantes. A mão dele subiu, penteando os anéis dourados do púbis, roçando pelo
estômago e encontrando o seio in-tu mescido. O mamilo endureceu sob a sua palma.
Depois de beijar a minúscula cicatriz na base da garganta, trouxe a boca para o outro
seio e lhe sugou o bico.
499 1 Á - É diferente quando um bebê faz isso - falou ela.
O clima fora rompido. Ele se sentou, achando graça.
- Não se espera que você analise tudo isso, Ayla.
- Bom, é que quando um bebê suga, a sensação é diferente e eu não en tendo por
quê - disse como quem se põe um pouco na defensiva.
- Você não gosta? Não farei se não quiser.
- Eu não disse que não gosto. Quando um bebê chupa é bom e também é bom
quando é você quem faz, só que não é a mesma coisa. Com uni bebê não acontecem as
sensações que você provoca dentro de mim.
- Aí está porque o homem gosta de fazer isso. Para dar à mulher, e a ele também,
essas sensações. Por isso quero acariciá-la, para dar prazer a você e a mim. Essa é a
dádiva do prazer que a Mãe concede aos seus filhos. Ela nos criou para conhecermos os
prazeres. Quando aceitamos a sua dádiva, estamos lhe prestando uma homenagem.
Você permite que eu lhe dê prazer, Ayla?
Ele olhava para ela. Os cabelos dourados espalhavam-se sobre as peles,
emoldurando-lhe o rosto. Os olhos dilatados, escuros, aveludados, brilhando com as
chamas acesas em seu interior, transbordavam mil desejos. Os lábios tremiam. Ela os
entreabriu para responder, mas fez apenas um gesto com a ca beça, condescendendo.
Ele beijou um e depois o outro olho. Havia unia lágrima. Com a ponta da língua
provou-lhe o gosto salgado. Ela abriu os olhos e sorriu. Ele pousou um beijo na ponta do
nariz, na boca, e um em cada seio. Então levantou-se.
Ayla o viu caminhar para a fogueira, tirar o espeto do fogo e afastar das brasas as
raízes enroladas em folhas. Ela esperava. Não pensava em nada, ape nas se via na
expectativa. De quê? Não o sabia. Ele lhe dera algo que jamais imaginou o seu corpo ser
capaz de sentir. No entanto, havia também desperta do o desejo de qualquer coisa
indizível.
Jondalar encheu uma cuia com água e trouxe para perto das peles.
- Eu não quero que nada nos interrompa. Imaginei que talvez você qui sesse um
pouco de água.
Ela recusou com a cabeça. Ele tomou um gole, botou a cula de lado, de satou o
cordão que lhe prendia a tanga e ficou olhando-a com a sua prodigiosa virilidade em
plena ereção. Nos olhos dela havia apenas desejo. Nenhuma des confiança, nada do
medo que muitas vezes o tamanho de seu órgão inspirava às mocinhas - e também a
outras não tão mocinhas quando o viam pela pri meira vez.
Ele se deitou do seu lado, arregalando os olhos com a visão dela. A ca beleira
sedosa, farta, exuberante. Os olhos desejosos e expectantes. O corpo magnífico, toda ela
linda, esperando pelas suas carícias, esperando que ele despertasse as sensações que
sabia estar lá. Queria que demorasse, que fosse lento esse primeiro despertar da
consciência. Nunca o desabrochar de uma 500 mocinha em seus primeiros ritos o havia
deixado tão excitado como agora. Ayla não sabia pelo que esperava. Jamais alguém lhe
falara com detalhes o que estava por acontecer. Até então, não passava de uma mulher
de quem se tinha abusado.
"Oh, Doni, ajude-me a fazer a coisa certa", pensou. Por um momento sentia-se
como se tivesse diante de si uma terrível empreitada e não as delicio sas alegrias do
prazer.
Ayla deitava-se imóvel, sem mexer um músculo, mas tremente. Era co mo se
esperasse há séculos por uma coisa que não sabia como designar, mas que Jondalar lhe
podia dar. Bastava o olhar dele para se sentir tocada por den tro. Ela não sabia explicar
que efeitos eram aqueles de pulsações, latejamentos que as mãos e língua de Jondalar
provocavam, mas ansiava por tê-los, com uma exigência cada vez maior. Sentia-se
incompleta, ainda por ser terminada. Somente depois que ele a fizera provar, soube de
sua fome e, uma vez desper tada, tinha de ser satisfeita.
Depois dos olhos estarem bem saciados da figura de Ayla, ele os fechou, pondo-se
novamente a beijá-la. Ela tinha a boca entreaberta, aguardando. Atraiu para o seu interior
a língua irrequieta dele e, hesitante, testou a sua. Jondalar ficou quieto, e sorriu
encorajando-a. Levou aos lábios uma madeixa grossa e lustrosa e, em seguida, esfregou
o seu rosto contra a cabeleira espessa e macia. Beijou-a na testa, nas faces, nos olhos,
querendo conhecê-la por inteiro.
Achou-lhe a orelha, e o seu hálito quente mais uma vez fez-lhe percorrer pelo corpo
os arrepios prazerosos. Mordiscou o lóbulo e o chupou. Achou-lhe os sensíveis nervos do
pescoço e da garganta, através deles excitando as partes intemas ainda não tocadas.
Suas mãos grandes, sensíveis e expressivas, exp ravam sentindo a textura dos cabelos,
empalmando o rosto, percorrendo os contornos do ombro e do braço. Quando lhe tocou a
mão, ele a trouxe à bo ca. Beijou a palma, acariciou cada dedo e explorou a parte de
dentro do braço.
Os olhos de Ayla estavam fechados, estremencendo-se ao ritmo de suas
sensações. Mais uma vez os beijos calorosos dele encontraram a cicatriz na gar ganta,
para depois descerem pelo rego entre os selos e se dirigirem à parte in ferior de um
deles. Com a língua, ele se pôs a rodeá-lo com círculos cada vez menores, até que lhe
sentiu a pele eriçar quando a aréola foi tocada. Ao sor • ver-lhe o mamilo, Ayla arfou
pesadamente e ele sentiu um jato quente nas suas virilhas palpitantes.
O movimento da língua se rivalizava com o da mão que acariciava o ou tro seio, com
o mamilo duro e ereto sob os seus dedos. Ele chupava mansa mente, mas vendo-a
arquear-se para vir ao seu encontro, passou a sugá-la mais intensamente. Ela estava
ofegante, gemendo baixinho. O ritmo dele se fazia em sintonia com as exigências dela.
Ele não estava muito certo se conseguiria agüentar-se. Parou e olhou-a. Os olhos
estavam fechados e a boca aberta.
501 E Teve vontade de possuí-la toda, naquele instante mesmo. Beijou-lhe a boca,
trazendo a sua língua para junto da dele. Ao soltá-la, ela, seguindo-lhe o exemplo, fez o
mesmo, sentindo o calor de seu hálito. Ele procurou novamen te pela garganta e riscou o
outro seio com círculos úmidos até alcançar o ma milo. Ela levantou o corpo pedindo e
estremeceu ao se sentir arrebatadamente sorvida.
A sua mão acariciou a barriga, os quadris, a perna, depois procurou pela parte de
dentro da coxa. Os músculos encresparam-se tensos, mas logo ela se parou as pernas.
Ao empalmar o púbis de caracóis fulvos, ele sentiu uma súbi ta umidade morna. A
resposta se fez sentir numa contração da virilha que o pegou de surpresa. Ele ficou
imóvel, lutando para controlar-se, já quase sem agüentar- se, quando sentiu um novo jato
de umidade.
Sua boca desprendeu-se do mamilo para vir circular ao redor da barriga, do umbigo.
Antes de descer para o púbis, ele olhou-a. Ayla arfava, gemendo baixinho, com as costas
arqueadas e os músculos distendidos, aguardando an siosamente- Ela estava pronta. Ele
beijou a parte de cima do púbis, sentindo- lhe a penugem crespa e, lentamente, foi
abaixando. Ayla tremia. De repente soltou um grito e pulou, sentindo a língua dele no alto
da estreita fenda de seu púbis. Depois, geme a deitar-se.
A sua virilidade latejava, ansiosa, impaciente, quando ele mudou de po sição para se
pôr entre as pernas dela. Abriu-lhe as dobras e a provou num lon go e amoroso beijo.
Ayla não podia se escutar, perdida num mar de sensações deliciosas que lhe percorriam
o corpo, enquanto Jondalar explorava cada uma de suas reentrâncias e saliências.
Ele se concentrava nela para manter sob controle as suas imperiosas exi gências. O
nódulo lá estava: pequenino, ereto. O centro dos prazeres. Ele o ex citou com
movimentos firmes e rápidos. Temia ter chegado aos limites de sua capacidade para
controlar-se, quando a viu, em meio a arfadas e contorções, atingir o êxtase nunca
experimentado. Então penetrou-a com dois dedos, fa zendo pressão no interior da
passagem úmida e quente. - Subitamente Ayla arqueou o corpo e gritou. Novamente ele
lhe provou o gosto. As mãos dela abriam e fechavam convulsivamente, acenando em mo
vimentos inconscientes que acompanhavam o ritmo da respiração ofegante.
- Jondalar. . . Oh, Jondalar, eu preciso. - . preciso de você.. . preciso de uma coisa. -
Ele estava de joelhos, com os dentes cerrados, procurando conter-se e penetrar
cuidadosamente.
- Estou tentando.. - não machucá-la - falou ele penosanlente.
Mas.. - você não me machuca.
Era verdade! Aquela, de fato, não eta a primeira vez de Àyla. Quando ela levantou o
corpo para recebê-lo, ele se permitiu entrar. Nenhuma barreira- 502 Penetrou mais um
pouco, esperando achar algum empecilho, mas contraria- mente se sentiu atraído para o
interior, para as profundezas úmidas e regurgi 4 tantes que se iam abrindo e
envolvendo-o até que, para sua surpresa, viu que ela o absorvia integralmente. Ele se
afastou e tomou a mergulhar. Ela abraça va-o com as pernas, puxando-o. Quando ele
retirou-se para penetrar de novo, percebeu que a passagem deliciosarnente palpitante
acariciava o seu membro em toda a sua extensão. Era fantástico demais. Com total
abandono, ele bom beava seguidamente, por uma vez na vida, entregando-se à
satisfação integral de seus desejos.
- AylaL. - Ayla! Ayla! - gritava.
A tensão caminhava para o paroxismo. Ela a sentia em suas virilhas. Mais uma vez
retirou-se. Ayla, com todos os seus nervos e músculos retesados, al çou o corpo para
absorvê-lo. Ele se lançou a ela, entregando-se à volúpia de ter a virilidade completamente
enterrada nas cálidas e anelantes profundida des do corpo dela. Os dois se deram juntos.
Ayla gritou-lhe o nome e Jondalar a satisfez até esgotar a última gota da essência de seu
prazer.
Durante um instante eterno, no auge do indizível prazer que sacudia- lhes os corpos,
os gritos baixos e cavos dele se puseram em harmonia com o seu nome soluçado em
meio à respiraflo arquejante. Ele, então, perfeitamen te relaxado, deixou-se desfalecer
por cinta dela.
Por longo momento, apenas a respiração dos dois era ouvida. Não po diam mover-
se. Haviam se dado integralmente, num ato de amor que envolve ra cada fibra de seus
seres. Passado algum tempo, ainda não queriam sair de seus lugares, n queriam
terminar, embora soubessem que estava acabado. Fora o despertar de Ayla. Ela nunca
havia conhecido os prazeres que um ho mem tinha para oferecer-lhe. E acordá-la para o
amor seria o prazer de Jonda lar, mas Ayla lhe havia reservado uma inesperada
surpresa: urna excitação muito maior do que ele imaginara.
Poucas mulheres possuíam profundidade para absorvê-lo por inteiro. Ele tinha
aprendido a controlar a penetração, adequando-a à mulher, e o fazia com perícia e
sensibilidade. Nunca mais se repetiria a mesma coisa: gozar as emoç5es dos primeiros
ritos e ao mesmo tempo ter a rara e gloriosa satisfação de uma completa penetração. Era
inacreditável.
Ele sempre punha grande empenho na celebração dos primeiros ritos. Qualquer
coisa nesta cerimônia fazia despertar nele os seus mais belos senti mentos. Os cuidados
que tomava e as preocupações que tinha eram sinceros. Os seus esforços se faziam no
sentido de agradar à mulher e o seu ptazer esta va tanto no contentamento dela como no
dele. Com Ayla, entretanto, havia tido prazer, uma satisfação que ia além de suas mais
loucas fantasias. Nunca se sentira tão perfeitamente realizado. Por um momento pareceu
que os dois se tornaram numa só pessoa.
503 - Devo estar pesando sobre você - falou ele, afastando-se um pouco para se
apoiar sobre o cotovelo.
- Não - disse ela em voz baixa - você não está nem uni pouco pesado. Acho que
gostaria que nunca mais se levantasse daqui.
Ele se curvou para lhe fazer uma carícia na orelha e beijá4a no pescoço.
- Nem eu gostaria de me levantar, mas acho que vou precisar - sem pressa, ele
desvencilhou o seu corpo do dela, para ficar deitado ao seu lado, abraçando-a.
Ayla se via numa felicidade de sonho, completamente relaxada e com os sentidos
todos voltados para Jondalar: o braço que a rodeava, os dedos le vemente acariciantes, a
musculatura do peito que se movia junto à sua face, as batidas do coração - que talvez
fossem até as dela - e o odor quente e alnilscarado da pele dele, misturando-se ao cheiro
de seus prazeres. Nunca se vira tão mimada e acarinhada.
- Jondalar - falou, depois de algum tempo - como você sabe o que de. ve fazer?
Nunca soube que houvesse estas sensações dentro de mim. Como conseguiu fazer isto?
- Foi uma pessoa que me ensinou. Ela me mostrou como se deve fazer para dar a
uma mulher aquilo que ela precisa.
- Quem?
Ayla percebeu os seus músculos retesarem e uma mudança no tom da voz.
- Normalmente são mulheres mais velhas e experientes que ensinam es tas coisas
aos rapazes.
- Nos primeiros ritos deles?
- Não exatamente. Ë mais informal. Quando um rapazinho começa a fi car nervoso e
indócil, em geral há uma mulher por perto que percebe e se dis põe a udá-lo. Mas não é
uma cerimônia.
- Nos clãs, quando um menino mata o seu primeiro animal grande, nu ma caçada de
verdade, ele se toma homem e os seus ritos de passagem são en tão celebrados.
- Caçar para nós é importante, mas há homens que nunca caçaram em suas vidas.
Eles têm outras ocupações. Eu, por exemplo, só caço porque gos to. Poderia fabricar
ferramentas e negociá-las em troca de carne e couro. Mas a maioria dos homens caçam
e o primeiro animal que o garoto mata é sempre um acontecimento especial.
Jondalar passou a ter um tom evocativo em sua voz.
- Não existe propriamente uma cerimônia, mas o animal que o rapazi. nho matou é
distribuído por todos os membros da Caverna. Ele mesmo não come nada, mas quando
passa, as pessoas comentam umas com as outras, de modo que ele possa ouvir: que
esplêndido animal, que carne mais macia e de- 504 liciosa! Os homens então começam a
convidá-lo para se juntar às suas conver sas e brincadeiras, e as mulheres a tratá-lo
como homem e não mais como criança. Elas lhe dizem piadas simpáticas e, se for da
vontade dele e se já esti ver suficientemente desenvolvido, a maioria das mulheres se
põe à sua dispo sição. Na verdade, esse primeiro animal faz com que o garoto comece a
se sen tir mais homem.
- Mas não há nenhuma cerimônia da passagem?
- Todas as vezes que um homem faz uma mulher, quando ele abre a sua passagem
e deixa fluir dentro dela a força vital, ele está reafirmando a sua condição de homem. Por
isso o seu instrumento, a virilidade, é chamada faze dor de mulher.
- Talvez ele não esteja só fazendo uma mulher, mas também um bebê.
- Ayla, é a Grande Mãe Terra quem abençoa a mulher com filhos. E ela quem põe a
criança na casa de um homem. Doni criou os homens para que eles ajudem e sustentem
as mulheres. Elas precisam disso quando estão pesa- das com os seus filhos na barriga
e também depois quando vão ter de dar de mamar e cuidar deles, também forma criou os
homens para transformar as moças em mulheres. Eu não sei lhe explicar direito.
Zelandonii talvez pudesse.
"É possível que Jondalar tenha razão", pensou ela, aconchegando-se a ele. "Mas se
não tiver, talvez um bebê esteja, neste momento, se formando dentro de mim." Ela sorriu.
"Um bebê como Durc para eu ninar, cuidar, dar de mamar. . . um bebê que teria uma
parte de Jondalar.”
"Mas, quando ele for embora, quem me irá ajudar?", perguntou-se, com uma
pontada de angústia. Lembrou-se de sua gravidez anterior, do mal que passou e de sua
luta contra a morte durante o parto. "Se não fosse Iza, não estaria viva. E mesmo que eu
desse jeito de ter um bebê sozinha, como iria conseguir caçar e tomar conta dele ao
mesmo tempo? Se eu me ferisse.., ou até morresse, quem iria cuidar do meu bebê? Ele
morreria sozinho.”
"Não. Não posso ter outro bebé agora! E se ele já tiver sido começado? O que vou
fazer? O remédio de Iza! Há um que é feito de tanásia e outro de visco. Não, visco não
serve, Só cresce nos pés de carvalho e aqui não há pés de carvalho. Mas há muitas
outras plantas que servem. Vou ter de pensar nisso. Pode ser perigoso, mas é melhor
perder um bebê agora do que perda-lo para uma hiena mais tarde.”
- O qué está acontecendo, Ayla? - perguntou Jondalar, empalmando um dos seios
dela. O tamanho de sua mão lhe permitia fazer isso e ele gostava.
- Nada está acontecendo - ela se inclinou na direção dele, lembrando- se de suas
carícias.
Jondalar sorriu, pensando na sua satisfação e já se sentindo outra vez excitado.
"Daqui a pouco", falou para si mesmo. "Acho que ela tem o toque de Hadum&”
1 Ayla percebeu-lhe os olhos' desejosos e acariciantes. "Talvez ele queira gozar dos
prazeres novamente comigo", pensou, devolvendo-lhe o sorriso. Súbito, a alegria sumiu
de seu rosto. "Se o bebê ainda não foi formado, talvez ele se forme quando gozarmos
novamente dos prazeres. Acho que vou ter de tomar do remédio secreto, o que Iza
avisou para nunca ser mencionado.”
Ela se lembrou da ocasião em que Iza lhe falou da poção feita de raízes de sálvia e
dama-entre- verdes. Duas plantas de mágica poderosíssima que da vam força aos totens
das mulheres para que elas expulsassem as essências impregnadas dos homens. Ela,
então, estava no começo de sua gravidez. La nunca lhe havia falado antes deste
remédio, pois ninguém imaginava que ela gerasse um bebê. Bom, com totem forte e tudo
ela dera à luz uma criança, e era bem possível que tivesse outra. Pouco importava se
fosse homem ou espírito que fizesse os bebês, o melhor era se prevenir e tomar o
remédio que tão bem funcionou para iza. Antes isto do que ter de, mais tarde, tomar um
outro para perder a criança.
"Gostaria de não precisar fazer isto. Queria poder conservar o bõbê. Seria tão bom
ter um rilho de Jondalar." O sorriso que ela deu foi tão temo e convidativo que ele a
segurou, colocando-a por cima dele, O amuleto pen durado no seu pescoço bateu-lhe no
nariz.
- Oh, desculpe, Jondalar. Machucou?
- O que você guarda dentro dessa coisa? Parece cheio de pedras! - dis se ele,
sentando-se e esfregando o nariz. - O que é isso?
- É. - - para que o espírito de meu totem possa encontrar-me. Nesse saquinho está
guardada a parte de meu espírito que ele conhece. Também estão guardados os avisos
que me mandou. Todas as pessoas dos clãs têm um saquinho igual a este. Creb dizia
que se eu o perdesse, morreria.
- É um amuleto ou talismã - falou Jondalar. - Essa gente de seus clãs entende dos
mistérios do outro mundo. Quanto mais sei sobre este povo, mais fico convencido de que
se trata realmente de gente, embora diferente de todo mundo que conheço - havia uma
expressão de arrependimento em seus olhos. - Ayla, foi a minha ignorância que me fez
comportar daquela maneira quando soube o que você queria dizer com clãs. Foi uma
vergonha e estou arrependido.
- Que foi uma vergonha foi. Mas eu já não estou mais zangada, nem aborrecida.
Você me fez sentir. - . Eu queria também fazer uma cortesia. Jon dalar, por tudo que
aconteceu hoje, pelos primeiros ritos, eu queria lhe di zer. - . obrigada.
Ele sorriu.
- Acho que esta é a primeira vez que alguém me agradece por isso - em seu rosto
havia um vestígio de sorriso, mas os olhos estavam sérios. - Se há alguém que deve
agradecer, Ayla, sou eu. Obrigado. Você não pode imagi 506 riar o que me proporcionou.
Só me realizei desta maneira com. - . - ele se interrompeu. Sua testa enrugava-se numa
expressão de dor - Zolena.
- Quem é Zolena?
- Zolena já não existe. Era uma mulher que conheci nos meus tempos de rapaz - ele
se deitou e se pôs a olhar para o teto da caverna em silêncio. Havia deixado passar tanto
tempo que Ayla já pensava que não fosse mais falar. No entanto prosseguiu no tom de
voz como se falando mais para si do que para ela. - Zolena era linda. Todos os homens
só falavam dela e os me ninos pensavam, mas nenhum tanto quanto eu, mesmo antes da
minha doni ter me aparecido em sonho. Ela surgiu na forma de Zolena. Quando eu acor
dei, as peles de dormir estavam molhadas com a minha essência e a cabeça cheia da
figura de Zolena.
"Eu me lembro que ficava seguindo.a ou, então, parado em algum lu gar onde
pudesse estar à sua espera, de vigia. Implorava para que a Mãe me desse Zolena.
Quase não acreditei quando ela me procurou. Podia ter sido qualquer outra mulher, mas
a única que eu queria era Zolena. Oh, como eu desejei esta mulher. . . e ela veio ao meu
encontro.
"No princípio eu tratava apenas de gozar o meu prazer com ela. Já naquela época,
era grande para a minha idade. . . sob muitos aspectos. Ela ensinou como poderia
controlar-me, como poderia usar a minha virilidade e também o que é necessário para
que a mulher tenha o seu prazer. Aprendi que podia gozar, mesmo que a mulher não
tivesse muita profundidade. Era uma questão de me controlar e me manter o máximo
possível do lado de fo ra, até que ela estivesse preparada. Desta forma, eu não precisaria
de muita profundidade e a mulher poderia sentir mais. - "Com Zolena não precisava
preocupar-me. Mas ela sabia também como fazer felizes os homens que tinham uma
virilidade pequena. Para estes, pos suía outros métodos. Não havia um homem que não
desejasse Zolena e eu fui o escolhido. Depois de algum tempo, a sua escolha sempre
recaía em mim, apesar de que eu fosse quase um menino ainda.
"Mas havia um homem na Caverna que vivia atrás dela. Ele sabia que não era
desejado. Isso me deixava furioso. Quando nos encontrava juntos, perguntava a Zolena
por que ela não arrumava um homem para variar. Ele era mais moço do que Zolena, mas
velho do que eu e menor também.
Jondalar fechou os olhos e continuou falando:
- Foi tão estúpido! Nunca deveria ter feito aquilo. Só serviu para cha mar mais
atenção sobre nós. Mas o homem não a deixava em paz e sabia como botar o meu
sangue fervendo. Um dia comecei a bater nele e não consegui parar.
"Dizem que não é bom que um rapaz fique só com uma mulher. Com muitas, há
menos probabilidade dele se afeiçoar. Espera-se que a companheira 507 0 de um rapaz
seja uma mulher jovem. Às mais velhas compete apenas ensinar. Sempre se põe a culpa
na mulher quando um rapazola se afeiçoa muito por ela. Mas no caso de Zolena não
poderiam culpá-la. Eu não queria nenhuma outra. Só ela me interessava.
"As outras mulheres me pareciam tão cruéis e insensíveis. Sempre pro vocando e
ridicularizando os homens, principalmente os rapazinhos. Talvez eu me mostrasse
insensível também. Costumava mandá-las embora, dizendo- lhes os piores nomes.
"São elas que escolhem os homens para os primeiros ritos. Todos que rem ser
escolhidos. Esse é o assunto preferido de qualquer roda de homens. Ë uma honra e é
excitante, mas todos ficam preocupados. Têm medo de ser rudes demais ou então
apressados, ou até coisa pior ainda. Para que serve um infeliz que não consegue nem
abrir uma mulher? Todas as vezes que um ho mem passa por um grupo de mulheres
tagarelando, o pobre coitado é alvo de suas troças. - Ele fez uma voz de falsete,
remedando:
- Olhe só que belezoca. Você não quer aprender umas coisinhas? Esse aí eu
consegui ensinar, ninguém mais se candidata?
Então, com a sua voz normal, prosseguiu:
- A maioria dos homens aprendeu a responder e gostar de fazer piadas, tanto
quanto elas, mas para um rapazinho a situação é difícil. Quando há um grupo delas rindo,
nunca se sabe se é você que está sendo o motivo de suas chacotas. Zolena não era
assim. As mulheres não gostavam muito dela. Talvez porque os homens gostassem
demais. Em qualquer festa da Mãe ou festival, ela era sempre a primeira a ser escolhida.
"O homem em que eu bati perdeu diversos dentes. É horrível um rapaz muito moço
ser obrigado a viver sem os seus dentes. O pobre coitado não podia mastigar e as
mulheres não queriam saber dele. Depois eu me arrependi muito. Fui tão estúpido! A
minha mãe o indenizou e ele acabou se mudando para uma outra Cavema. Mas, nas
reuniões de verão, eu sempre me encolho quando ele passa, para não ter de encontrá-lo.
"Zolena falava em servir à Mãe, e eu pensei, nesta ocasião, em me tornar também
um servidor. Iria servi-Ia na qualidade de entalhador. Isso foi quando Marthona resolveu
que talvez eu desse para ferramenteiro e mandou um reca do para Dalanar. Pouco tempo
depois, Zolena partiu para fazer o seu aprendi. zado e Willomar me levou para viver com
os Lanzadonii. Marthona fez o me lhor que tinha a fazer. Quando voltei, depois de três
anos, Zolenajá não exis tia mais.
- O que aconteceu com ela? - indagou Ayla, receosa.
- Os servidores da Mãe perdem a sua identidade e assumem as das pes soas por
quem intercedem. Como retribuição, a Mãe lhes concede certas dádi vas que são
desconhecidas para o comum dos seus filhos. São dádivas como a da magia, do talento,
da sabedoria. . . e da força. Muitos daqueles que vão servi-la não conseguem ultrapassar
a condição de acólitos. Dentre aqueles que recebem o seu chamado, poucos são
verdadeiramente talentosos, mas estes sobem rápido na hierarquia dos servidores.
"Pouco antes de minha partida, Zolena foi consagrada como Alta Sacerdotisa dos
Zelandonii, que é a posição mais importante na hierarquia dos servis.
Inesperadamente, Jondalar se levantou e viu através das fendas na pare de as
fulgurações vermelhas e douradas do céu.
- Ainda é dia. Estou com vontade de nadar um pouco - disse, andando apressado
para fora da caverna. Ayla pegou a sua roupa junto com uma com prida correia e o
seguiu. Quando chegou à praia, ele já estava na água. Ela ti rou o amuleto, caminhou
para dentro do rio e começou a nadar. Jondalar se achava longe, subindo o rio. Os dois
se encontraram quando ele voltava.
- Até onde você foi?
- Até as cataratas - respondeu ele. - Ayla, eu quero que você saiba que nunca falei
com ninguém sobre Zolena.
Você nunca tornou a vê-la?
Jondalar soltou uma gargalhada sarcástica.
- Zolena não, mas a Zelandoni sim. Somos hoje bons amigos. Gozei dos prazeres
com a Zelandoni. Porém eu já não sou mais o único a ser escolhido - ele se pôs a nadar
com braçadas vigorosas, descendo o rio rapidamente.
Ayla franziu o rosto, abanando a cabeça sem entender. Depois, seguiu-o para a
praia. Tornou a pendurar o amuleto e foi enrolando-se em sua roupa enquanto subia
atrás dele. Ao entrar, Jondalar estava de pé perto da fogueira, olhando para as brasas
quase apagadasEla acabou de ajeitar a roupa no corpo e foi buscar mais lenha para
alimentar o fogo. Vendo que ele ainda se achava molhado e tremendo, trouxe-lhe uma
pele de dormir.
- O tempo começa a mudar. As noites já estão bem frias. Tome, você pode pegar
um resfriado.
Jondalar jogou desajeitadamente a pele por cima dos ombros. "Ele não sabe como
arrumar uma pele no corpo", pensou Ayla. "Bom, se vai mesmo partir, devia fazer isto
antes do fim da estação." Ela se dirigiu para o seu lugar de dormir e apanhou uma trouxa
que se encontrava perto da parede.
-Jondalar...?
Ele sacudiu a cabeça, querendo se situar novamente no presente. Deu um sorriso,
mas os olhos continuavam sérios. No que Ayla começou a desfa zer a trouxa, um objeto
caiu. Ela o pegou do chão:
- O que é isto? - perguntou, medrosa e espantada. - Como veio parar aqui?
4 508 509 - É uma donii - respondeu, vendo a estatueta de marfim.
-Uma donii?
- Eu fiz para você. . . para os seus primeiros ritos. Sempre se deve ter uma donii por
perto, na ocasião da passagem de uma moça.
A abaixou a cabeça, escondendo as lágrimas inesperadas em seus olhos.
- Eu não sei o que dizer. Nunca vi nada igual a isto. É linda. Parece real. . . como
uma pessoa. Poderia até parecer comigo.
Ele lhe levantou o queixo.
- A minha intenção era a de que se parecesse com você, Ayla. Um verdadeiro
escultor teria feito melhor. . . Não. Um verdadeiro escultor não faria uma donii como essa.
E eu não tenho muita certeza se deveria ter feito uma escultura assim. Normalmente não
se pôe um rosto numa doníi. O rosto da Mãe é desconhecido. Essa donli com o seu rosto
talvez faça o seu espírito prisioneiro dela. Por isso, a imagem é sua. Deve ficar em seu
poder. É o meu presente para você, Ayla.
- Não posso saber por que guardou o seu presente aqui - disse ela, quando acabou
de desatar a trouxa. - Eu fiz isto para você, Jondalar.
Ele sacudiu o couro. Os seus olhos brilharam ao ver a vestimenta.
- Ayla! Não sabia que você era capaz de costurar ou de bordar com contas - falou
examinando a roupa.
- Eu não fiz o bordado. Fiz apenas algumas partes novas para a camisa e
desmanchei as outras peças para saber qual era o tamanho e como foram cortadas.
Vendo, então, como elas se juntavam, eu pude copiar. Usei o fura. dor que você me deu.
Não sei se fiz direito, mas acho que servem.
- Está perfeito - disse ele, suspendendo a camisa junto ao corpo. Ex perimentou,
primeiro, as calças, depois a camisa. - Estava mesmo pensando em fazer uma roupa que
fosse mais apropriada para a viagem. Uma tanga é muito bom, mas só para aqui.
Havia sido dito. Dito em voz alta, tal como os espíritos malignos de Creb, cujo poder
vinha quando se lhes reconhecia a existência dizendo os seus nomes em voz alta. A
partida de Jondalar tomara-se, a partir daquele momen to, uma realidade. Deixara de ser
um pensamento vago que algum dia talvez se concretizasse. Tão concentrados ficaram
na idéia que lhes parecia haver na caverna uma opressiva presença física.
Jondalar tirou as roupas e as dobrou.
- Obrigado, Ayla. Não tenho palavras para dizer o quanto isso signifi ca para mim.
Quando ficar mais frio estarão perfeitas, mas por enquanto não preciso delas - e vestiu a
tanga.
Ayla fez que sim com a cabeça, sem confiança nela para falar. Sentia uma pressão
nos olhos que lhe turvava a visão da figurinha em sua mão. Apertou-a contra o peito.
Adorava a estatueta. Fora feita pelas mãos dele. Mãos habili dosas, capazes de fazer
uma imagem que lhe provocava o mesmo sentimento de ternura sentido quando ele a
fizera saber o que era ser mulher.
- Obrigada - falou ela, lembrando-se também de ser cortês.
Ele franziu a testa.
- Não perca isso. Como ela tem o seu rosto e talvez também o seu espírito, pode
não ser seguro se cair em poder de outra pessoa.
- O meu amuleto já guarda uma parte do meu espírito e uma parte do espírito de
meu totem. Agora essa donii está guardando mais uma parte de meu espírito e do
espírito da Mãe Terra. Isso não quer dizer que a donií seja também um amuleto?
Jondalar não pensara nisso. Seria agora Ayla uma parte da Mãe? Um dos Filhos da
Terra? Talvez não fosse da sua conta se meter com forças que esta vam além de sua
compreensão. Ou seria ele um
agente dessas forças?
- Não sei, Ayla. Mas, em todo o caso, não perca a imagem.
- Jondalar, se você achava que era perigoso, por que colocou o meu rosto na donii?
Ele segurou-lhe nas mãos.
- Porque eu queria capturar o seu espírito, Ayla. Não para ficar com ele. A minha
intenção era devolvê-lo. Queria lhe dar prazer e não sabia se iria conseguir. Você não foi
educada com o conhecimento da Mãe e eu estava em dúvida se seria capaz de
compreender. Assim, achei que se pusesse o seu rosto na donii, estaria atraindo o seu
espírito para mim.
- Você não precisava ter posto o meu rosto numa donii para isso, Jon dalar. Eu já
me daria por feliz se quisesse simplesmente aliviar as suas necessi dades comigo. - .
mesmo antes de conhecer os prazeres.
Ele a envolveu nos braços com donii e tudo o mais que pudesse haver entre o céu e
a terra.
- Não, Ayla, você podia já estar pronta, mas eu precisava fazer como se fosse a sua
primeira vez para que saísse certo.
Novamente perdida em seus olhos, com os braços dele a estreitá-la, foi
abandonando-se, até que nada sentia, senão os braços que a rodeavam, a boca faminta
que a beijava, o calor do corpo que se colava ao seu e uma estontean te e imperiosa
exigência. Não soube quando ele a tomou no colo e a retirou de junto da fogueira.
Viu apenas que as peles da cama se alteavam para recebê-la e ele atrapa lhado
com o nó da correia, depois desistindo e simplesmente lhe levantando a roupa. Ansiosa,
abriu-se para ele, sentindo a virilidade rígida que procurava
e logo encontrava.
Com fúria, desespero, Jondalar cravou a sua lança bem no fundo, domo se quisesse
convencer-se de que Ayla se achava lá e que ele não precisava conter- 510 511 se. Ela
levantou o corpo para encontrá-lo absorvendo-o com a mesma intensi dade de desejo.
Ele se afastou e mergulhou novamente. A tensão aumentava. Excitado pelas
emoções do amplexo e pelo prazer despreocupado de entregar-se inteira mente a força
da paixão, ele cavalgava a onda crescente, com furiosa alegria. Ela o encontrava em
cada crista, acompanhando-lhe um por um dos impul sos e se arqueando para guiar a
pressão de seus movimentos.
Mas as sensações que sentia ultrapassavam os incontroláveis vaivéns den tro de
sua úmida caverna. Cada vez que ele preenchia todo o seu espaço, ela estava
consciente apenas dele: nervos, músculos, tendões estavam tomados por ele. Jondalar
sentia as contrações em suas virilhas formando-se, aumentan do, insurgindo até um
insustentável crescendo que rompeu a pressão com uma descarga estremecedora no
momento em que ele penetrou mais uma vez. Ela se suspendeu para encontrar o último e
frenético impulso e a explosão que se difundia pelo seu corpo em voluptuosa libertação.
29 se revirava na cama, não perfei tamente acordada, mas consciente de alguma
coisa incomodando-a, O volume debaixo dela só desapareceu quando, por fim, acordou
para pegá Suspen deu-o contra a fraca luz da fogueira, já quase extinta, e viu a silhueta
da donii. Subitamente lembrou-se. O dia da véspera surgiu-lhe em seus mínimos deta
lhes, conscientizando-a do corpo quente de Jondalar, deitado ao seu lado.
"Com certeza, dormimos depois de havermos gozado dos prazeres", pensou. Feliz,
aconchegou-se nele e fechou os olhos. Mas o sono não veio. Diante dela passava
fragmentos de cenas que iam esboçando-se e ganhando formas. A caçada, a volta de
Neném, os primeiros ritos e, sobrepondo-se a tu do, a figura de Jondalar. Nenhuma
palavra que conhecia era capaz de descre ver os seus sentimentos por ele e a indizível
alegria que estes lhe despertavam. Pensou em Jondalar até não se agüentar mais.
Silenciosamente deslizou para fora da cama, carregando consigo a estatueta de marfim.
Enquanto se dirigia para a entrada, viu Huiin e Campeão aconchega dos um ao
outro. A égua soltou um relincho baixinho, marcando a sua presen ça, Ayla se
encaminhou para onde estavam os cavalos.
- Para você foi também assim, Huiin? - falou Ayla com doçura. O seu garanhão
também lhe deu prazer? Oh, Huiin, eu não sabia que isso pode ria ser tão maravilhoso.
Como pode ter sido uma coisa tão horrível com Broud e tão fantástica com Jondalar?
O cavalinho fuçou-a, também querendo atenção. Ela o coçou, acarician do-o, e
depois o abraçou.
- Não importa o que Jondalar diz, Huiin. Acho que foi o garanhão que deu Campeão
a você. Ele tem até a mesma cor e não há muitos cavalos marrons por aqui. Poderia ter
sido o espírito do garanhão, mas acho difíciL.
"Eu queria ter um filhinho. Um bebê de Jondalar, mas não posso. Co mo faria
quando Jondalar fosse embora? - ela ficou branca, quase em pânico.
- Ir embora! Oh, Huiin, Jondalar está indo embora - dizendo isto, saiu em disparada
da caverna, descendo o caminho, mais pelo tato do que propriamen te vendo por onde ia
passando. As lágrimas deixavam-na quase cega. Correu pela praia, até o paredão lhe
barrar o caminho. Ali agachou-se junto ao penhas co, entregando-se ao choro. "Jondalar
está indo embora. O que vou fazer? Co mo vou agüentar isso? O que posso fazer para
que ele fique? Nada!”
Ela se abraçava, acocoradajunto da muralha de pedra, como se tentando escapar
de um golpe fulminante. Depois que Jondalar partisse estaria sozinha. Pior d que
sozinha. "O que farei sem ele? Talvez devesse partir também, en contrar algumas
pessoas dos Outros e ficar com elas. Não. Não posso fazer isso. Iriam me perguntar de
onde venho e os Outros têm ódio dos clffs. Para eles eu sou uma aberração, a não ser
que diga palavras que não correspondam à verdade.”
"Isso eu não posso. Não posso envergonhar Creb e Iza. Eles me amaram e
cuidaram de mim quando eu precisei. Uba é minha irmã. Está agora criando o meu filho.
O clã é a minha família. Quando não ii ninguém, o clã tomou conta de mim e os Outros
não me querem.
"Mas Jondalar está de partida. Vou ter de viver aqui sozinha o resto de minha vida.
Antes estivesse morta. Broud me amaldiçoou, e no fim ele acabou vencendo. Como
posso viver sem Jondalar?”
Ayla chorou até não ter mais lágrimas e restar um triste e desolado va zio dentro
dela. Ao enxugar os olhos com as costas da mão, reparou que con tinuava segurando a
donil. Ela rodou a estatueta na mão, àiaravilhando-se tan to com a idéia de se reproduzir
num pedaço de marfim a pequena figura de uma mulher, como com o lavor da obra. Ao
luar, a figura ficava ainda mais parecida com ela. Os cabelos esculpidos como tranças, o
traçado dos olhos, o formato do nariz e das faces, tudo lembrava o rosto que, uma vez,
vira refle tido nas águas paradas de um lago.
Por que teria Jondalar posto o seu rosto nesta imagem da Mãe Terra, tão venerada
pelos Outros? Teria realmente o espírito dela ficado prisioneiro 512 513 e ligado àquela
que ele chamava Doni? Creb lhe havia dito que pelo seu amu leto estava ligada ao Leão
da Caverna e a Ursus, o Grande Urso da Caverna, totem de todos os elas. Além do mais,
quando ela fora feita curandeira, havia recebido uma parte do espírito de todos os
membros dos elas e esses não fo ram devolvidos aos seus donos, após a sua maldição
de morte.
Os clãs e os Outros, os totens e a Mãe tinham todos direito a uma por ção desta
parte invisível dela, chamada espírito. "O meu espírito deve estar confuso", pensouela.
"Eu sei, porque também estou.”
Um vento frio a fez querer voltar para a caverna. Lá, pôs de lado a car ne fria que
estava no espeto e acendeu uma pequena fogueira, procurando não perturbar Jondalar.
Em seguida, colocou água para esquentar, pensando em fazer um chá que a relaxasse.
Ainda estava difícil de dormir. Enquanto espera va, ficou olhando as chamas e
lembrando-se das vezes em que ficara parada com os olhos fixos no fogo para ver algo
com aparência de vida. As labaredas dançavam sobre as toras, saboreando-as num
crepitar de vaivéns saltitantes pa ra, por fim, acabar devorando-as.
- Doni! É você? - gritou Jondalar em sonho.
Ayla deu um pulo e correu para vê-lo. Ele estava agitado, remexendo-se, sem
dúvida sonhando. Ela não sabia se deveria ou não acordá-lo. Subitamente os olhos dele
se arregalaram, olhando espantado.
Você está bem, Jondalar? - perguntou ela.
- Ayla? Ayla! É você?
- Sim, sou eu.
Ele voltou a fechar os olhos, murmurando qualquer coisa incompreen sível. Não
havia chegado a acordar. Era um meio torpor que também fazia parte de seu sonho, mas
já estava mais calmo. Ela ficou observando, até vê-lo relaxado. Depois voltou para junto
da fogueira. Enquanto tomava o chá, as chamas se apagaram. O sono acabou chegando.
Tirou a roupa, arrastou-se para junto de Jondalar, e puxou as peles, se cobrindo. O calor
dele ao seu lado a fez pensar no frio que iria sentir depois que ele se fosse e, do fundo de
seu imenso reservatório, brotou um novo jorrar de lágrimas. Por fim dormiu, em balada
pelo próprio choro.
Jondalar, ofegando, corria já quase sem fôlego, tentando chegar à entra da da
caverna que via adiante dele. Ao olhar para cima deu com um imenso leão, acaçapado,
pronto para saltar. "Não, Mãe! Thonolan! Thonolan!" No que o leão saltou, surgiu a Mãe.
A uma ordem sua a fera deu as costas e foi embora.
-Doni! Évocê! Êvocé!
A Mãe voltou-se, e ele pôde ver seu rosto, O rosto era a doni esculpida à
semelhança de Ayla. Ele a chamou:
- Ayla! Ayla! É você?
O rosto esculpido ganhou vida. Os cabelos formavam um halo de ouro circundado
por um brilho vermelho.
- Sim, sou eu.
A donii com o rosto de Ayla se diluiu, substituída pela antiqüíssima imagem que ele
dera de presente, a que estivera por muitas gerações em sua fa mília. Uma figura
volumosa, de ventre grande, começou a expandir-se até fi car do tamanho de uma
montanha. Foi, então, que a Mãe começou a parir. Os primeiros a safrem das
profundezas de sua caverna foram os seres do mar, expelidos em meio a formidáveis
jatos de águas germinativas. Em seguida vie ram os insetos e pássaros. Depois foi a vez
dos animais terrestres: coelhos, vea dos, bisões, mamutes, leões da caverna e, muito ao
longe, Jondalar viu através de um véu de neblina as formas indistintas do ser humano.
Enquanto a neblina se dissipava, as formas ganhavam definição, aproxi mando-se
dele. Mas quê?! Cabeças-chatas! Eles o viram e se afastaram cor rendo. Uma mulher
voltou-se para olhá-lo. O rosto era o de Ayla. Jondalar correu para ela, mas a neblina
envolveu-o, fechando-se ao redor da figura dela.
Tateando, querendo alcançá-la, ouvia à distância um rumorejar seme lhante ao de
uma catarata. Tomava-se mais alto, aproximando-se ameaçado ramente. Ele se viu
engolido por uma torrente humana que emergia do colos sal útero da Mãe Terra,
representada na forma de uma montanha com o ros to de Ayla.
Jondalar forçava o seu caminho através da multidão, lutando para che gar a ela.
Finalmente conseguiu alcançar a grande caverna. Ele entrou. A sua virilidade palpitava,
enquanto as dobras quentes e úmidas o rodeavarn e iam encerrando-o em suas
profundezas prazerosas. Ele bombeava furiosamente, tomado de um gozo infinito. Foi,
então, que lhe viu o rosto banhado de lá grimas. O corpo dela sacudia-se com os so 'ços.
Ele quis consolá-la, dizer-lhe para não chorar, mas não podia. Então sentiu que estava
sendo expulso.
Novamente se viu no meio da imensa massa humana expelida do útero da Mãe.
Todas as pessoas usavam camisas bordadas com contas. Ele tentava abrir caminho
querendo voltar, mas a multidão o arrastava, tal com um tron co aprisionado no caudal
das águas germinativas. - - um tr'onco que descia pelo Grande Rio Mãe, levando uma
camisa ensangüentada presa a ele.
Com o pescoço esticado, olhando para trás, ele viu Ayla, de pé, na boca de entrada
da caverna. Os soluços dela ecoavam em seus ouvidos. Nisso, com estrondo
ensurdecedor, a caverna se desmorona numa monumental chuva de pedras. Ele estava
sozinho e chorava.
Jondalar abriu os olhos. A escuridão o cercava. A pequena fogueira de Ayla havia
consumido toda a lenha. O negrume era total, e ele não tinha mui- 514 515 ta certeza se
estava ou não acordado. As paredes da caverna mostravam-se indefinidas, sem nenhum
ponto de referência que o ajudasse a situar-se. Por tudo que via, ele bem poderia estar
suspenso por cima de um abismo sem fun do. As formas surgidas em seu sonho eram
mais substanciais. Pequenos frag mentos do sonho cruzavam-lhe pela mente, reforçando
as suas dimensões no pensamento consciente.
Enquanto a escuridão se atenuava e os contornos das pedras e aberturas na parede
ganhavam maior definição, Jondalar elaborava as imagens sonha- das, atribuindo-lhes
significados. Não era sempre que se lembrava de seus so nhos, mas este fora tão real,
tão palpável, que deveria conter alguma mensa gem da Mãe. O que estada ela tentando
comunicar-lhe? Ele desejava ter ali um Zelandoni que o ajudasse na interpretação.
Quando as primeiras luzes do dia começaram a penetrar na caverna, ele reparou na
massa de cabelos louros emoldurando o rosto de Àyla adormecida e no calor que vinha
de seu corpo. Ficou observando-a, enquanto as sombras aos poucos se iam desfazendo,
O seu desejo era lhe dar um beijo, mas não que- ria acordá-la. Levou aos lábios uma das
compridas tranças douradas e, em se guida, levantou-se em silêncio. Ainda encontrou um
pouco de chá momo, des pejou numa cuia para tomá-lo, e se dirigiu à entrada.
Vestido só com uma tanga, sentia frio, mas ele resolveu ignorar, embora o
pensamento das roupas que Ayla lhe fizera passasse constantemente pela cabeça. Ficou
vendo o céu clareando do lado do ocidente e as formas no vale aos poucos se
desenhando. Continuava ainda às voltas com o seu sonho, pro curando por um fio que o
levasse a desenredar o mistério.
Por que teria Doni lhe mostrado que toda vida vem dela? Ele sabia dis so. Esse era
um fato aceito. Por que teria ela aparecido em seu sonho parindo todos os peixes,
pássaros, animais, e. - - Cabeças-chatas! Claro! A mãe estava lhe revelando que o povo
dos das também era filho dela. Por que até agora nunca alguém deixara isto claro?
Jamais puseram em dúvida que toda a vida procedia dela. Então por que seria esse um
povo tão vilipendiado? Era uma gente chamada de animal, como se animal fosse
qualquer coisa ruim. Por que eram os cabeças-chatas considera do um mal na terra?
Porque não eram animais e sim seres humanos, de uma outra espécie, mas
humanos. Isso era o que Ayla vinha dizendo durante todo esse tempo. Seria este o
motivo de um deles ter o seu rosto?
Ele podia compreender a razão por que o rosto de Ayla estava na donii que
esculpira. - - a que dominara o leão em seu sonho. - . ninguém acredita ria que Ayla
realmente tivesse feito isto. Chegava a ser mais inverossímil do que o próprio sonho. - .
Mas por que estaria o rosto dela na donii que fora de sua família? E por que a própria
Grande Mãe Terra se parecia com Ayla?
Ele sabia que jamais iria entender inteiramente o seu sonho. No entanto, havia algo
importante que lhe escapava. Vendo e revendo as cenas, se lembrou de Ayla junto à
caverna prestes e desmoronar. Quase chegou a lhe gritar para que fugisse - Com os
olhos fixos no horizonte e os pensamentos todos voltados para dentro de si, sentia o
mesmo desamparo e tristeza que o havia possuído quan do, em seu sonho, se vira
sozinho sem Ayla. Lágrimas surgiram nos olhos, mo lhando-lhe o rosto. Porque sentia
tamanho desespero? O que não estaria con seguindo perceber?
Lembrou-se das pessoas que saíam da Caverna, todas vestidas com ca misas
bordadas de contas. Ayla havia consertado a sua. Fez roupas para ele e nunca tinha
costurado em sua vida. As suas roupas de viagem, aquelas que iria usar quando fosse
embora.
h embora? Abandonar Ayla? Raios de fogo se elevavam do horizonte. Ele fechou os
olhos vendo um brilho dourado e ardente.
"Oh, Mãe! Que grande imbecil você é, Jondalar! Deixar Ayla? Como pôde pensar
numa coisa desta? Você ama Ayla! Por que tem sido tão cego? Por que foi preciso um
sonho com a Mãe para poder compreender uma coisa tão simples, que até mesmo uma
criança enxergaria?”
Era como se um enorme peso tivesse sido tirado de seus ombros. Sen tia-se leve,
com uma sensação de radiosa liberdade. "Eu amo Ayla? Finalmen te aconteceu para
mim. Eu amo? Nunca pensei que isso fosse possível, mas estou amando. Amo Ayla!”
Em sua alegria, estava pronto para proclamar o seu amor ao mundo, pronto para
atirar-se a Ayla e lhe contar. "Nunca disse a uma mulher que eu a amava", pensou
enquanto corria para o interibr da caverna- Ayla, entre tanto, dormia.
Ele tomou a sair e trouxe um pouco de lenha. Com um pedaço de sí lex e a pedra-
de-fogo - uma coisa que ainda o deixava maravilhado - num instante estava com a
fogueira acesa. Ao menos uma vez conseguira acordar antes de Ayla e, para variar,
queria surpreendê-la com o chá já preparado. Achou onde estavam as folhas de hortelã e
fez o chá. Ayla, no entanto, con tinuava dormindo.
Ele ficou olhando-a, observando a sua respiração, os seus movimentos. Adorava
vê4a assim, com os seus longos cabelos soltos. Teve vontade de acor dá-la. - - mas não.
Ela devia estar cansada. Já era dia e ainda continuava dor mindo.
Ele foi para a praia, pegou um graveto para limpar os dentes e resolveu nadar um
pouco. Saiu da água, refrescado, cheio de energia e faminto. Eles não tinham tido tempo
de comer na véspera. Lembrando-se do motivo, sor riu. O pensamento lhe trouxe uma
ereção.
516 517 "Você obrigou o pobre coitado a fazer abstinência durante todo este verão",
pensou, rindo. "O seu fazedor de mulher não tem culpa de estar tão faminto,
principalmente agora que sabe o que andou perdendo. Mas não pu xe muito por ela. Ayla
deve estar precisando descansar. . . não está acostu mada com isso." Ele subiu às
pressas pelo caminho e entrou na caverna silen ciosamente. Os cavalos já haviam
descido para pastar. Deviam ter saído en quanto ele nadava e Ayla ainda não acordara.
"Será que ela está bem? Tal vez fosse melhor despertá-la." Ayla se virou, deixando à
mostra um seio. Ele se viu reforçado em seus ímpetos anteriores.
Achou melhor se conter e foi até a fogueira se servir de um pouco de chá para
esperar. Reparou, então, que Ayla fazia alguns movimentos incons cientes, apalpando
como se procurasse por alguma coisa.
- Jondalar! Jondalar! Onde está você? - gritou ela, assustada.
- Estou aqui - respondeu ele, correndo para tomá-la nos braços. Ficou abraçando-a
até que se acalmasse. - Está bem agora? Vou lhe trazer um co de chá - ele foi buscar
uma cuia para Ayla.
Ela bebericou um pouquinho, depois tomou um grande gole.
- Quem fez isso?
- Eu. Queria fazer uma surpresa para você. Mas o chá já não está mui to quente.
- Você fez o chá? Para mim?
- Claro que para você. Ayla, você é a primeira mulher para quem vou dizer isto: eu a
amo, Ayla.
- Amo? O que é isto? - perguntou, querendo ter certeza de uma coisa que mal
ousava acreditar ser possível. - O que quer dizer amo?
- O que quer dizer. . . ?! Jondalar, seu idiota, pretensioso! - ele se pôs de pé. - Ora
veja, o grande Jondalar, o querido das mulheres! Até você acre ditava nisso. Tão
cuidadoso em não dizer a palavra que imaginava que todas es tivessem morrendo por
ouvir. Tão orgulhoso de nunca havê-la pronuncia do. - - Finalmente está apaixonado e
não tem coragem de confessar nem para você mesmo. Foi preciso que Doni tivesse de
lhe aparecer em sonho para que resolvesse admitir o seu amor por uma mulher. Estava
crente que ela fosse desmaiar de tanta felicidade e, quando acaba, a pobre nem sabe o
significado da palavra.
Ayla, atônita, observava-o naquele estranho palavrório, andando de lá para cá,
investindo furiosamente contra si mesmo, por causa de uma coisa que chamava amor.
Ela precisava saber o que era isso.
- Jondalar, o que quer dizer amor? - ela estava séria e a voz indicava uma certa
preocupação.
Ele se ajoelhou na frente dela.
- É uma palavra que há muito tempo já lhe devia ter ensinado. Amor é o sentimento
que uma pessoa tem por outra de quem ela gosta muito- É o que as mães sentem pelos
filhos ou o que um homem sente pelo irmão. Quan do é entre um homem e uma mulher
significa que eles se gostam tanto que têm necessidade de viverem juntos, que não
conseguem ficar separados um do outro.
Enquanto o escutava, ela tinha os olhos fechados e os seus lábios tre miam
ligeiramente. "Será que estava ouvindo direito? Estaria realmente en tendendo?”
- Jondalar, eu não conhecia a palavra, mas sabia o que ela queria di zer. Desde que
você chegou que eu sei, e quanto mais o tempo passa, mais sentido essa palavra tem
para mim. Quantas vezes desejei ter uma palavra que exprimisse os meus sentimentos! -
ela fechou os olhos, mas as lágri mas teimavam em sair. Lágrimas de alegria e alívio- -
Jondalar. . - eu tam bém o amo.
Ele a puxou para junto de seu corpo e a beijou temamente, abraçan do-a como um
tesouro que acabara de encontrar e com medo de quebrá-lo ou perdê-lo. Ayla passou o
braço ao redor dele, querendo ter certeza de que Jondalar não era um sonho que
desapareceria no momento em que o soltas se. Ele beijou-lhe a boca e o rosto salgado
pelas lágrimas. Ela encostou a ca beça no seu peito e ele, com o rosto enterrado na
cabeleira loura, enxugava nela os seus olhos também molhados.
Não conseguia falar. Ficou abraçado a ela, pensando na sorte inacre ditável que
teve em achá-la. Foi preciso que viajasse ao fim da terra para en contrar a mulher que
poderia amar e, agora, nada no mundo o faria deixá-la.
- Por que simplesmente não ficamos aoui? Esse vale tem tudo. Agora somos dois,
será mais fácil. Temos os atirado e Huiin é uma ajuda. Cam peão com o tempo também
será - falou Ayla.
Eles caminhavam pela campina, apenas para passear e conversar. Já haviam
colhido todo o cereal de que precisavam, estavam com uma boa pro visão de carne seca
que duraria todo o inverno e outra de frutas, raízes e plan tas diversas, tanto alimentícias
como medicinais. Os materiais para os traba lhos de artesanato que pretendiam fazer
durante o inverno também já esta vam arrumados. Ayla iria tentar fazer roupas bordadas
de contas e Jondalar pensava em esculpir peças para um jogo que tinha intenção de
ensinar a ela. Mas a maior alegria de Ayla era se saber amada por Jondalar. J não estaria
mais sozinha.
- É um vale bonito - disse Jondalar "Por que não permanecer com ela aqui?
Thonolan quis ficar
ao lado de Jetamio", pensou ele. "Mas lá, os dois não estavam sozinhos- Até
quando su portaria ficar sem ter mais gente por perto? Por três anos Ayla havia vivido
518 519 só. Eles no futuro não estariam sozinhos. Veja Dalanar. . quando começou com
a sua Caverna, ele só tinha ele mesmo, Jerika, e o companheiro da mãe dela,
Hochaman. Aos poucos, foram chegando mais pessoas e nascendo as crianças. Já
estavam, inclusive, projetando dar partida para uma segunda Caverna de Lanzadonii. Por
que não poderia ele também fundar uma Caver na, igual a Dalanar? Talvez possa,
Jondalar, mas seja lá o que você fizer, será sempre junto com Ayla.”
- Você precisa conhecer outras pessoas, Ayla, e eu quero levá-la para casa comigo.
Sei que será uma viagem longa, mas acho que podemos fazê-la em um ano. Você vai
gostar de minha mãe e tenho certeza de que Marthona também gostará de você. Do
mesmo jeito o meu irmão Joharran e a minha irmã Folara, que a estas alturas deve estar
uma moça. E também Dalanar.
Ayla abaixou a cabeça, depois olhou para cima.
Não sei se vão gostar muito de mim, depois de descobrirem de onde eu venho. Será
que vão me aceitar quando souberem que tenho um filho que nasceu quando eu vivia
com esse povo tão odiado? Um filho que para eles não passa de uma aberração da
natureza?
- Você não vai podei passar escondida o resto de sua vida. Essa mulher Iza não lhe
disse para procurar a sua gente? Ela estava certa e você sabe disso. Não será fácil. . .
não vou enganá-la. A maioria das pessoas não sabe que os clãs são formados por seres
humanos. Mas você me fez compreender isso e há muita gente que tem sérias dúvidas a
respeito. As pessoas, de uma certa forma, são razoáveis, Ayla. lima vez que passarem a
conhecê-la, gostarão de você. Além disso, estarei ao seu lado.
Eu não sei. Não podemos pensar um pouco mais?
- Caro.
"De qualquer jeito", pensõu Jondalar, "até a primavera não vamos po der
empreender nenhuma grande viagem. Enquanto isto, ela terá tempo para pensar. Mas
poderíamos chegar até os sharamudoi, antes que o inverno comeS ce. Ou senão passá-
lo aqui mesmo.”
Ayla deu um sorriso, sentindo-se verdadeiramente aliviada e apressou o passo. Ela
vinha num caminhai arrastado, demorando-se em seus pensamen tos. Sabia que
Jondalar sentia falta de sua família e de seu povo. E sabia também que se ele resolvesse
viajar, o acompanharia para qualquer lugar que fosse. Mas tinha esperança que, depois
de estarem instalados lá para o inverno, ele se decidisse a ficar e construir com ela a sua
Caverna no vale.
Estavam bem distanciados do rio, quase chegando à colina que ia dar nas estepes.
Ayla, então, se abaixou para pegar qualquer coisa.
- Veja o meu chifre de auroque! - falou, limpando a sujeira do objeto e reparando no
seu interior chamuscado. - Era nele que eu carregava fogo. Encontrei o chifre enquanto
estava viajando, depois de ter largado o clã - as lembranças acudiram-lhe ao
pensamento. - Foi nele que eu levei a brasa que acendeu as tochas para espantar os
cavalos. Essa foi a primeira vez que ca vei uma armadilha no chão. Quem caiu no buraco
foi a mãe de Huiin. Quan do as hienas quiseram apanhar a potranquinha, eu espantei
esses bichos hor rorosos e trouxe Huiin para a caverna. Quanta coisa entãojá aconteceu
depois disso. . - - Quase todo mundo carrega fogo nas viagens, mas com as nossas pe
dras de fazer fogo não precisamos nos preocupar - subitamente ele tinha a testa
enrugada. Ayla já sabia que o seu pensamento estava concentrado em al guma coisa. -
Nós temos um bom estoque de pedras, não é? E não estamos precisando de mais nada.
- É verdade, já estamos com tudo pronto.
- Então por que não fazemos uma viagem? Uma pequena viagem - acrescentou,
vendo a expressão aflita de Ayla. - Você ainda não explorou os terrenos do lado oeste.
Por que não pegamos alguma comida, as barracas, peles de dormir, e vamos dar uma
olhada por lá? Não precisamos ir muito longe.
- Eo que será de Huiin e Campeão?
- Podemos levar os dois conosco. Huiin, inclusive, pode nos carregar um pouco e
ajudar a levar os mantimentos. Seria divertido. - . só nós dois, Ayla.
Viajar só por distração era algo novo para ela e difícil de aceitar. Por outro lado, não
via também por que não fazê-lo.
- É. . . acho que podemos. Só nós dois. . . é, por que não? "Talvez não seja uma má
idéia examinar os terrenos daquele lado", pensou.
- A camada de terra não é muita aqui atrás, mas é o melhor lugar pa ra um
esconderijo - falou Ayla. - E podemos usar algumas das pedras sol tas no chão.
Jondalar suspendeu a tocha para espalhar mais a luz.
- O que você acha se, ao invés de um, fizermos uma porção de escon derijos?
Assim, se algum bicho descobrir, não perdemos tudo. Que tal? Não acha uma boa idéia?
Jondalar dirigiü o facho de luz para iluminar as gretas entre as pedras caídas no
fundo da caverna.
- Uma vez eu dei uma olhada aqui atrás e tive a impressão de ter visto sinais de
algum leão da caverna.
- Esse era o lugar de Neném. Quando eu vim para cá, também vi si nais de leões,
mas já bem antigos. Achei que era um aviso que o meu totem estava me mandando para
não continuar a viagem e resolvi passar o inverno aqui. Nunca pensei que fosse viver
tanto tempo neste lugar. Agora imagino 520 521 que o aviso era para que eu ficasse aqui
à sua espera. Você deve ter sido guia do para cá pelo espírito do Leão da Caverna. Você
foi escolhido, Jondalar, e hoje tem um totem tão forte quanto o meu.
- Sempre áchei que Doni fosse o meu guia espiritual.
- Talvez ela seja o seu guia, mas o Leão da Caverna o escolheu.
- Pode ser que você tenha razão. Os espíritos de todas as criaturas per tencem a
Doni e o Leão da Caverna também é um espírito dela. Os caminhos da Mãe são
misteriosos.
- É muito dura a vida com um totem como o Leão da Caverna, Jonda lar. As suas
provas têm sido muito difíceis. Quantas vezes achei que não fosse agüentar viver, mas
então obtinha as suas graças, que compensavam todo o sofrimento. De todas as graças
que recebi, acho que a maior delas foi você - falou, acrescentando em voz baixa.
Jondalar fincou a tocha numa fenda e a tomou nos braços. Ela era tão sincera, tão
espontãnea. O beijo que lhe deu foi correspondido com tanto ar dor que ele quase se
deixou levar pelo seu desejo.
- Vamos parar por aqui - falou ele, passando o braço ao redor dos ombros dela e
deixando um espaço entre os dois - ou do contrário nunca conseguiremos nos arrumar
para essa viagem. Acho que você tem o toque de 1- - O que é o toque de Haduma?
- Haduma foi uma velha que encontramos. Ela era mãe de seis gerações e muito
reverenciada pelos seus descendentes. Tinha muitos poderes da Mãe. Os homens
acreditavam que quando a virilidade deles era tocada por Haduma, eles tinham tantas
ereções quanto o desejassem e podiam satisfazer qualquer mulher, ou até muitas de uma
só vez. A maioria dos homens deseja isso. Há mulheres que usam de truques para
excitar um homem. Mas no seu caso, tu do que tem a fazer é chegar perto de mim, Ayla.
Hoje de manhã, na noite pas sada. . . quantas vezes fizemos ontem? E anteontem?
Nunca tive capacidade para tanto e nunca desejei tanto. Mas se não pararmos agora,
nunca vamos deixar esses depósitos em ordem.
Eles retiraram pedras, removeram outras maiores com alavanca e pre pararam os
lugares de seus esconderijos. À medida que o dia passava, Jondalar começou a achar
Ayla arredia e mais silenciosa do que normalmente. Ele não sabia se seria por alguma
coisa que teria feito ou dito. Talvez ele não devesse mostrar-se tão voraz. Não era
possível achar que ela estivesse sempre disponí vel para ele a qualquer instante que a
desejasse.
Ele havia conhecido muitas mulheres que gostavamde se mostrar difíceis e de fazer
o homem penar pelos seus prazeres, embora os prazeres fossem de las também. Isso
poucas vezes se constituiu em problema para ele, mas tinha aprendido a não parecer
muito ávido. Se o homem se mostrasse reservado, ele passava a ser um desafio para a
mulher- Quando começaram a remover a comida para o fundo da caverna, Ayla parecia
ainda mais distante. Constantemente estava abaixando a cabeça e se deixava ficar
imóvel, ajoelhada, antes de apanhar os fardos de carne seca ou as cestas com raízes.
Depois, quando tiveram de descer à praia para pegar mais pedras e levá las à
caverna para empilhá- las ao redor dos seus estoques de inverno, Ayla es tava
visivelmente aborrecida. Jondalar tinha certeza de que eta ele a causa, mas não sabia o
que fizera de errado. No final da tarde viu-a, furiosa, tentan do levantar um bloco de pedra
muito mais pesado do que poderia agüentar.
Nós não vamos precisar dessa pedra, Ayla. Acho que devíamos, agora, descansar.
Trabalhamos o dia todo. Que tal nadar um pouco?
Ela largou a pedra, afastou os cabelos dos olhos, desfez o nó da correia, deixando a
roupa cair, e retirou o amuleto. Jondalar sentiu as suas conhecidas contrações na virilha.
Sempre lhe sobrevinham quando via o corpo dela. "Ayla parece uma leoa andando",
pensou, admirando a graça sinuosa de seus movimentos esquivos. Ele retirou a tanga e
foi atrás correndo.
As braçadas dela subindo o rio eram tão vigorosas que ele resolveu es perar pela
sua volta, na descida, deixando que o exercício desgastasse um pou co a irritação.
Encontrou-a mansamente boiando, trazida pela correnteza. Es tava mais relaxada.
Quando virou o corpo para nadar, ele correu a mão pelas suas costas, fazendo-a deslizar
pelas reentrâncias da cintura e pela suave curva tura das nádegas.
Ela passou-lhe à frente, nadando, e saiu da água. Ele foi encontrá-la já com o
amuleto pendurado no pescoço e apanhando a roupa para vestir.
- Ayla, o que eu fiz de errado? - perguntou, de pé na frente dela, com água pingando
de seu corpo.
Você, nada. Quem fez fui eu.
- Mas você não está fazendo nada de errado.
- Não? Pois estou sim. Passei o dia inteiro querendo provocá-lo, mas parece que
você não entende os gestos dos clãs.
Quando Ayla se tornara mulher, Iza, além de lhe explicar como ela de via se cuidar
nos períodos de sangramento e como se limpar após ter estado com um homem, lhe
falou também dos gestos e posturas de que a mulher se va le para que o homem tenha
vontade de lhe fazer o sinal. Se bem que no caso de Ayla, Iza achasse que essas seriam
informações desnecessárias. Por mais que Ayla fizesse gestos, era bem pouco provável
que algum homem do clã fos se corresponder-lhe.
- Eu sei que quando você me toca de determinada maneira, ou põe os seus lábios
sobre os meus, está fazendo um sinal para mim. Mas eu não co nheço um sinal seu,
.Iondalar. NJo sei como excitá- lo.
- Ayla, para você me excitar basta que fique perto de mim.
522 523 - Não é isto que eu quero falar. Não sei como lhe dizer que estou que rendo
que você goze dos prazeres comigo. Eu não sei. . bem, você disse que algumas
mulheres sabem de coisas que excitam um homem e...
- Oh, Ayla, é por isso que está zangada? Você quer saber como me ex citar?
Ela confirmou, abaixando a cabeça, sentindo-se envergonhada. As mu lheres dos
das jamais se mostravam tão oferecidas. Elas davam a entender o seu desejo a um
homem com excessivo pudor, como se mal agüentassem a vista do macho em toda a sua
glória e poder. Contudo, ainda assim, conse guiam que ele ficasse sabendo que o
estavam achando absolutamente irresis tível.
- Olhe como você consegue me excitar, mulher - falou Jondalar, cons ciente de estar
tendo uma ereção enquanto conversava com ela. Ele não conse guia evitá-lo, nem
esconder. O seu desejo estava tão visível que Ayla não con seguiu reprimir um sorriso. -
Oh, Ayla, Ayla! - disse, arrebatando-a no at.
Será que não sabe que basta estar viva para me excitar?
Carregando-a nos braços, se pôs a caminhar pela praia e depois começou a fazer a
subida da caverna.
- Será que não sabe que só de olhá-la eu fico excitado? Eu a desejei no momento
em que pus os olhos em você - prosseguiu, enquanto fazia a subi da, com Ayla no colo,
olhando-o extremamente surpresa. -Você é tão mulher que não precisa usar de nenhum
truque para excitar um homem. Você não necessita aprender nada. Tudo que faz só me
leva a querê-la cada vez mais - eles chegaram na entrada. - Quando me quiser, basta
que diga ou que faça is so - falou, beijando-a em seguida.
Ele a carregou e a colocou sobre a cama de peles. Novamente a beijou com a boca
aberta, provando-lhe docemente a língua. Ela sentia entre os dois a virilidade dura e
quente. Ele se sentou. No seu rosto havia um sorriso meio de troça.
- Você disse que passou o dia inteiro tentando me excitar. O que acha que estava
fazendo de tão provocante? - perguntou, fazendo um gesto intei ramente inesperado para
Ayla.
Os olhos dela se esbugalharam, surpresos.
- Jondalar! É isso! Esse é o sinal!
- Se você pretende fazer esses gestos dos clãs para mim, é bom que eu saiba
entendê-los.
- Mas. - - eu - ela podia não saber o que dizer, mas sabia o que fazer. Levantou-se e
ajoelhou-se de costas para ele, com as pernas afastadas, ofere cendo-se.
Ele havia feito o sinal apenas como piada, não esperava ver-se estimu lado tão
rapidamente. À vista dos traseiros roliços e firmes, pondo à mostra 524 a fenda de uma
rosa tão convidativo, era irresistível. Antes que se desse conta, estava de joelhos atrás
dela penetrando em suas profundezas quentes e palpi tantes.
No momento em que ela se colocou na posição, a lembrança de Broud tomou-lhe o
pensamento. Pela primeira vez, se pudesse, teria recusado Jonda lar. No entanto, por
mais repulsivas que fossem as associações, o condiciona mento para obedecer àquele
sinal era mais forte.
Ele montou e mergulhou. Sentindo-se preenchida, ela soltou um grito com o
inesperado prazer. A posição lhe permitia sentir pressões em novas zonas e as carícias e
fricções excitavam diferentemente. Ela empinou-se para ir ao seu encontro quando ele
tornou a mergulhar. Subitamente, com ele bombean do e forcejando, Ayla se lembrou de
Hulin com o garanhão baio. O pensamen to lhe trouxe uma onda de deliciosos ardores,
sentidos em meio às vibrações dos estiramentos latejantes. Novamente afastou-se,
empinando-se para ele, se guindo-lhe o ritmo com gemidos e gritos.
A tensão aumentava rapidamente. Os movimentos dela e a ansiedade de le
impunham certa pressa.
- Ayla! Oh mulher linda e selvagem! - dizia ofegando, enquanto bom beava
seguidamente. Então, segurando-lhe os quadris, puxou-a para si e a en cheu. Ayla mais
uma vez se empinou ao seu encontro e ele se lançou, estre mecendo-se
prazerosamente.
Por um momento, trementes, ficaram onde estavam. A cabeça de Ayla pendurava-
se molemente. Ele a abraçou e fez com que ela girasse o corpo jun to com o seu, ficando
deitados de lado. Ela, com as costas aninhadas no cor po dele, ainda prendendo-lhe a
virilidade. Ele se enroscoü nela e esticou o bra ço para alcançar o seu seio.
- Sou obrigado a concordar - falou J lalar, passado algum tempo - que esse sinal não
é de todo mau - ele lhe beijou a nuca e depois a orelha.
- No princípio, fiquei com um pouco de medo, mas com você, Jonda lar, tudo dá
certo. Tudo é prazer - disse Ayla, aconchegando-se mais a ele.
- Jondalar, o que você está procurando? - indagou Ayla, do patamar.
- Estou tentando ver se encontro mais algumas pedras-de-fogo.
- Não é necessário. A primeira das pedras que comecei a usar está intei ra, só tem
algumas riscas. Ainda vai durar muito. Não precisamos de mais.
- Eu sei, mas é que vi algumas e estava querendo saber quantas mais poderia
encontrar. Você está pronta?
- Estou. Acho que não me esqueci de nada- Também não vamos poder ficar fora
muito tempo. - - quando menos se espera o clima começa a mudar. Às vezes pela manhã
faz calor e de tarde já está nevando - falou Ayla, en quanto descia para a praia.
525 Jondalar guardou as pedras, deu mais uma olhada à sua volta e, dis
traidamente, levantou os olhos na direção de Ayla. Então a ornou com atenção.
- Ayla, o que é isso que você está usando?
- Você não gosta?
- Claro que gosto. Mas onde arrumou esta roupa?
- Enquanto eu fazia a sua, fiz uma para mim também. Apenas co piei. Não sei se
serve para uma mulher usar. Talvez seja uma roupa só para homens. A camisa, eu não
soube bordá-la. Você acha que estou bem?
- Acho que sim. Na verdade, não me lembro se as roupas de mulhe res eram muito
diferentes das dos homens. Talvez a camisa tivesse de ser um pouco mais comprida e os
enfeites postos de outra maneira. Essa é uma roupa mamutoi. Eu perdi a minha quando
chegamos na foz do Grande Rio Mãe. Fica muito bem em você, Ayla, e acho que também
vai gostar mais de andar com ela quando chegar o frio. Você vai ver como esquenta e é
con fortável.
- Que bom que gostou. Queria vestir. . . a sua moda...
- A minha moda. . . nem sei se ainda tenho uma moda. Olhe só para nós! Um
homem, uma mulher, dois cavalos e um deles carregado de manti mentos. Parece tão
estranho viajar levando nas mãos só lanças e atiradores. E imagine, o que eu mais
carrego dentro de minha sacola são pedras. Acho que, se nos vissem, as pessoas iriam
ficar bem espantadas. Mas eu mesmo me espanto comigo. Desde que você me
encontrou que já não sou o mes mo homem. Você me transformou, mulher, e eu a amo
por isso.
- Eu também estou mudada e o amo, Jondalar.
- Bom, para que lado vamos?
Enquanto faziam a travessia do vale, seguidos pela égua e o seu po tro, Ayla sentia-
se como se estivesse perdendo alguma coisa. Ao atingirem a curva no fim da campina,
ela olhou para trás.
- Jondalar, veja! Os cavalos voltaram para o vale. Desde que cheguei aqui, eles
nunca mais apareceram. Foram embora depois que matei a mãe de Huiin. Fico feliz que
tenham voltado. Sempre achei que esse vale era deles.
- Ë a mesma manada?
- Não sei. O garanhão era amarelo, como Huiin. Não estou vendo nenhum
garanhão, só a égua madrinha. Já faz tanto tempo.
Também Huiin havia visto os cavalos. Ela relinchou alto cumprimen tando-os. Eles a
responderam. As orelhas de Campeão ergueram-se atentas na direção da manada. Mas
então Huiin foi atrás da mulher, com o potro acompanhando-a.
Ayla seguiu o rio na direção sul e o cruzou ao ver a alta colina do ou 526 tro lado.
Quando chegaram em cima do morro, fizeram uma parada, e ela e Jondalar montaram na
égua. Guiando-se pelos pontos na paisagem que lhe serviam de referência, ela tomou o
rumo sudoeste. O terreno se tomava mais acidentado, cheio de reentrâncias e pregas,
com gargantas pedrogosas e es carpadas colinas que formavam as bases de vários
altiplanos. Ao se aproxi marem de urna passagem ladeada por Íngremes pared6es de
rocha, ela apeou e examinou o chão à sua volta. Não havia nenhum indício de excre
mento fresco. Ela se dirigiu para uma garganta sem saída e subiu por uma pedra caída
do paredão, encaminhando-se com Jondalar para a parte do fundo da garganta.
- É este o lugar, Jondalar - falou, enquanto tirava uma sacola do in terior da túnica e
a entregava a ele.
Jondalar reconheceu a área.
- O que é isso? - perguntou, suspendendo a sacola na direção dela.
- Terra vermelha. . - para ser posta na sepultura dele.
Ele fez sim com a cabeça, emocionado demais para falar. Sentindo a pressão das
lágrimas em seus olhos, esforçava-se por contê-las. Então, des pejou em sua mão um
pouco do ocre e esparramou sobre as pedras e a se pultura. Depois pegou mais um
punhado e tomou a esparramar. Ayla espe rava, enquanto Jondalar com os olhos úmidos
mirava fixamente o monte de pedras. Quando ele se voltou para ir embora, Ayla fez um
gesto sobre a sepultura de Thonolan.
Eles cavalgaram durante um certo tempo em silêncio, até que Sonda- lar voltasse a
falar.
- Ele foi uru dos filhos diletos da Mãe. Ela quis levá-lo de volta.
Depois de andarem mais um pouco, perg"ntou:
- Que gesto era aquele que você fez?
- Estava pedindo ao Grande Urso da Caverna que o protegesse e que ele fosse feliz.
Significa "vá com Ursus".
- Ayla, eu não a agradeci quando você me contou, mas agora o faço. Sou-lhe grato
por havê-lo enterrado e por pedir aos totens dos clãs que o ajudassem. Acho que, por
sua causa, o meu irmão poderá encontrar o seu caminho para o mundo dos espíritos.
- Você disse que ele era corajoso. Acho que aqueles que são corajo sos não
precisam de ajuda para encontrar o seu caminho. Para eles essa é uma emocionante
aventura.
- Ele era corajoso e gostava de aventuras. Pobre Thoriolan, tão cheio de vida. - .
Parecia que procurava viver tudo de uma só vez. Eu nunca teria feito essa viagem se não
fosse por ele - Jondalar tinha Ayla cingida em seus braços e a apertou mais contra o seu
corpo. - E também nunca a teria encontrado. Foi isto que o shamud quis dizer quando me
falou sobre o meu 527 destino. ". . - É ele quem o conduz para onde você tem de ir, para
lugares onde por si mesmo jamais ida Foram essas as suas palavras. Thonolan me
conduziu a você e depois seguiu para o outro mundo, acompanhando o amor dele. Eu
não queria que ele se fosse, mas agora posso entendê-lo.
Eles rumavam na direção oeste e, à medida que avançavam, o terreno se tomava
menos acidentado, cedendo novamente lugar às planícies aber tas, atravessadas pelos
rios e riachos que brotavam nas geleiras ao norte. Vez por outra os cursos de água
passavam por entre altos penhascos para, em seguida, serpentear por vales quase
planos. As poucas árvores que orna vam as estepes eram amesquinhadas em sua luta
pela sobrevivência e até mesmo aquelas, crescendo nas proximidades das águas que
lhes alimenta vam as raízes, tinham as suas formas desfiguradas, como se houvessem
sido congeladas no ato de se curvarem às impiedosas rajadas dos ventos.
Jondalar e Ayla sempre que lhes era possível faziam as suas paradas nos vales,
tanto pelo abrigo contra as ventanias como pela lenha que lá en contravam. Somente
neles crescia com vigor os pés de salgueiro, lanços, pinheiros e vidoeiros. O mesmo já
não se dava com os animais. As estepes se constituíam numa reserva colossal da vida
selvagem. Agora, com a nova arma, os dois tinham, sempre que o desejassem, carne
fresca. Os restos de suas matanças deixavam aos outros predadores e carnívoros.
A viagem já durava uma metade do ciclo das fases da lua, quando mais um dia
amanheceu, quente e com a atmosfera inusitadamente parada. Depois de passarem
caminhando a maior parte da manhã, eles montaram ao ver à distância uma elevação
sombreada de verde. Excitado com o calor do corpo de Ayla junto ao seu, Jondalar enfiou
a mao por baixo da túnica para acariciá1a. Eles chegaram no topo da colina e viram
embaixo um belo vale regado por um grande rio. O sol ia alto no céu quando chegaram à
margem.
- Devemos ir para o norte ou para o sul, Jondalar?
- Nem uma coisa, nem outra. Vamos acampar aqui.
Ela protestou. Suas objeções se deviam apenas ao fato de não estar acostumada a
parar tão cedo. Quando Jondalar lhe mordiscou a nuca e lhe apertou o seio,
compreendeu que não havia motivo nenhum que o levasse a prosseguir e muitos para
que ficassem.
- Tudo bem, vamos então acampar - falou ela, passando uma perna por cima do
lombo de Huiin e apeando.
Jondalar também apeou e a ajudou a retirar as cestas para que a égua pudesse
descansar e pastar. Ele tomou Ayla nos braços e enquanto a beija va enfiou outra vez a
mão por baixo da sua túnica.
-Por que você não me deixa tirar a roupa? - disse ela.
528 Ele sorria, vendo-a tirar a túnica pela cabeça e desamarrar o nó na cintu ra que
prendia o resto da roupa. Enquanto retirava a dele, passando-a também pela cabeça,
ouviu a risadinha de Ayla. Ao olhar, ela não estava lá. A sua risa da vinha, agora, da
direção do rio. Ela estava saltando para dentro da água.
- Resolvi nadar um pouco - gritou Ayla.
Jondalar deu um largo sorriso, retirou as calças e foi atrás. O rio era pro fundo, com
uma correnteza forte e a água estava fria. Ayla nadava rápido na contracorrente e ele
tinha dificuldade de alcançá- la. Por fim, quando conse guiu, agarrou-a e lhe deu um
beijo. Mas ela se desvencilhou do abraço e rindo correu para a praia.
Ele foi atrás. Quando chegou à praia, Aylajá estava correndo pelo vale. Novamente
tomou a agarrá- la e ela mais uma vez conseguiu escapar. Ele saiu em perseguição,
pondo todas as forças em suas penas. Finalmente pegou-a pela cintura.
- Desta vez você não me escapa, mulher - disse, apertando-a. -. Essa perseguição
vai acabar me cansando e depois não vou conseguir lhe dar os pra zeres - ele estava
deliciado com a brincadeira.
- Eu não quero que você me dê os prazeres - falou Ayla.
O queixo dele caiu e as rugas imediatamente surgiram em sua testa.
- Você não quer que eu.. ? - perguntou, soltando-a.
- Os prazeres desta vez serão dados por mim.
O coração de .londalar voltou a bater.
- Mas você me dá sempre prazer, Ayla - ele voltou a tomá-la nos braços.
- Eu sei que você gosta de me fazer sentir os prazeres, mas não é isto que quero
dizer - os olhos dela estavam sérios. - Eu quero aprender a lhe dar prazer, Jondalar.
Ele não conseguia resistir-lhe. Quand a puxou para mais perto e a bei. jou
avidamente como se a quisesse sorvê-la por inteiro, a virilidade estava dura entre os dois.
Ela lhe devolveu o beijo na mesma medida. Então se beijaram demoradamente,
saboreando-se, se tocando e se explorando mutuamente.
- Eu vou lhe mostrar como você pode me dar prazer, Ayla - falou, pe gando-a pela
mão e indo para uma área, perto do rio, coberta de relva verde. Quando se sentaram, ele
voltou a beijá-la, procurando, em seguida, pela orelha e nuca, ao mesmo tempo que,
delicadamente, a forçava a reclinar-se. Estava com uma das mãos no seio e a língua
prestes a tocá-lo, quando ela se sentou.
- Eu quero lhe dar prazer.
- Ayla, me agrada tanto fazê-la sentir prazer, que não seicomo poderia me dar mais
do que já sinto.
- Você gostaria menos?
Jondalar jogou a cabeça para trás, riu e a abraçou. Ela sorriu, sem saber ao certo o
que o estava divertindo.
529 .4 - Não existe nada que você faça que eu vá gostar menos - ele a fitava com os
seus vibrantes olhos azuis. - Oh, mulher, eu a amo!
- E eu também o amo, Jondalar. Quando você sorri dessa maneira, quando olha
desse jeito e principalmente quando dá as suas risadas, eu me sin to tão cheia de amor. .
. Nos clãs, ninguém ria e as pessoas não gostavam quando me viam rindo. Nunca mais
quero voltar a viver com pessoas que não me deixam rir.
- E você deve rir, Ayla, e sorrir também. Você tem um lindo sorriso.
Ela não pôde evitar o sorriso que veio aos seus lábios, ouvindo-lhe as pa lavras -
Oh, Ayla. . . Ayla - falou ele, enterrando o rosto em seu pescoço e acariciando-a.
- Jondalar, adoro quando você me toca e me beija no pescoço, mas eu queria saber
do que você gosta.
Ele sorriu com o canto dos lábios. - - Eu já não consigo conter-me. Você me excita
demais. De que você gostaria, Ayla? Faça comigo aquilo que você gostar.
- E você gostaria?
- Experimente.
Ela o forçou a deitar-se e se curvou para beijá-lo com a boca aberta e usando a
língua. Ele correspondia, mas mantendo-se imóvel Ayla começou por beijar-lhe o
pescoço, tremulando com a língua ligeiramente. Sentindo-o estremecer, olhou-o,
querendo conferir.
Você gosta?
- Sim, eu gosto, Ayla.
E gostava. Manter-se controlado, enquanto ela fazia os seus avanços ex ploratórios,
excitava-o de um modo como nem em sonhos imaginava, O seu corpo se incendiava com
aquele leve roçar da língua. Ela estava insegura de si, tão inexperiente quanto uma
menina que tivesse chegado à puberdade e que ainda não houvesse passado pelos
primeiros ritos. No entanto, nunca uma mulher foi tão desejada. Por serem proibidos,
aqueles beijos eram mais exci tantes do que as mais ardentes e sensuais carícias de
uma mulher experiente.
A maioria das mulheres, de uma certa maneira, era disponível. Ayla não. Até então,
fora intocável. Nos cantos escuros das cavernas, os homens - fossem rapazes ou velhos
- iam à loucura com as carícias secretas de moci nhas inexperientes. O maior medo das
mães era o de que as filhas se tornas sem moças logo depois das reuniões de verão,
quando tinham de enfrentar um longo inverno, antes da próxima reunião. Carícias e
beijos não eram coisas no vas para a maioria das meninas, e para algumas, Jondalar
sabia, os primeiros ri tos não eram exatamente os primeiros, mas ele jamais iria
desgraçá-las revelan do-lhes o segredo.
Conhecia esse tipo de atração que as mocinhas exerciam sobre os ho mens, pois
isso fazia parte das alegrias numa cerimônia de passagem e era jus tarnente a atração
que estava sentindo por Ayla. Ela beijou-lhe o pescoço. Ele estremeceu e fechou os
olhos, entregando-se às carícias.
Desenhando círculos úmidos em seu corpo e sentindo a sua própria ex citação
crescer, ela foi abaixando. Para ele, era quase uma tortura, uma deli ciosa tortura feita de
cócegas e estímulos abrasadores. Quando chegou ao um bigo, não conseguiu resistir, e
delicadamente forçou a cabeça dela um pouco mais para baixo, permitindo que sentisse
no rosto a sua lança vigorosa e quen te. Ela ofegava pesadamente com as vibrações
interiores de seu corpo. Os tre meliques de língua eram mais do que ele podia suportar.
Conduziu-lhe a ca beça na direção de seu órgão rígido e ereto. Ela levantou os olhos.
- Você quer que eu. . - - Só se você quiser, Ayla.
- Você gosta?
- Gosto, Ayla.
- Eu quero.
Uma cálida umidade envolveu a ponta de seu órgão latejante e, depois, mais do que
a ponta. Ele gemeu. A língua dela explorava a cabeça roliça e ma cia, conhecendo a
pequena fissura e descobrindo a textura da pele. Ficou mais confiante quando as suas
ações começaram a provocar expressões de prazer. Ela vibrava com as próprias
palpitações internas. A língua girava ao redor, cir cunscrevendo-lhe a forma. Ele
chamava-a pelo nome, enquanto ela atuava com a língua mais ativamente e a umidade
invadia-lhe o interior das coxas.
Ele se sentia chupado em meio às sensações úmidas e quentes dos movi mentos se
fazendo para cima e para baixo.
- Oh Doni! Oh mulher! Ayla, Ayla! Om você aprendeu isto?
Ela procurava saber o quanto dele era capaz de absorver, abocanhan do-o até
quase engasgar-se. Os gritos e gemidos a animavam a prosseguir cada vez mais, até
que ele começou a alçar para vir ao seu encontro.
Então, percebendo a necessidade que ele sentia de suas profundezas - e a sua
própria necessidade - ela se levantou e montou, fazendo-se penetrar pe lo membro
dilatado em toda a sua avantajada plenitude. Ao curvar-se, gozou o prazer de ser
alcançada em suas profundidades.
Ele levantou os olhos, arregalando-se com a magnífica visão dela. numi nando por
trás os seus cabelos, o sol transformava-os num halo dourado. Ela tinha os olhos
cerrados, a boca aberta e o rosto transfiguradb em êxtase. Ao jogar o corpo para trás, os
seios esculturais projetaram-se, com os mamilos le vemente mais rosados retesando-se.
O seu corpo sinuoso brilhava ao sol. Den tro dele, profundamente entranhada, a virilidade
de Jondalar estava prestes a explodir em seu arrebatamento.
530 531 Ela se ergueu ao longo do árgão e baixou quando ele, com a respiração
presa, subiu ao seu encontro. Mesmo que tentasse controlá1a, já não poderia conter a
força que rompia dentro dele. Berrou quando ela tomou a erguer-se. Ayla apertou-se
contra ele, sentindo jorrar os prazeres de seu corpo estreme cendo.
Ele buscou-a e, ao atraí-la para si, tocou-lhe com a boca os mamilos. Pas sados os
instantes em que o prazer se foi esvaindo, ela rolou para o lado, liber ta. Jondalar
levantou-se, inclinando-se para beijá-la, depois buscou-lhe os seios para focinhar entre
eles. Chupou um, chupou outro, e tomou a beijá-la. Por fim recostou-se ao seu lado,
aninhando-lhe a cabeça.
- Eu gosto de lhe dar prazer, Jondalar.
- Nunca ninguém me deu tanto quanto você, Ayla.
- Mas gosta mais quando é você quem dá os prazeres.
- Não é exatamente que eu goste mais. . . Diga-me uma coisa: você me conhece tão
bem assim?
- É porque você se orgulha daquilo que aprendeu. Esse é um talento seu como o de
fazer ferramentas - ela riu. - Jondalar tem dois talentos. É m fazedor de ferramenta e um
fazedor de mulher - disse ela, com arzinho satisfeito.
Ele deu uma gargalhada.
- Bela piada - não estava longe da verdade e era uma troça que já tinha sido feita
antes com ele. - Mas você tem razão. Gosto de lhe dar prazer. Gos to de seu corpo,
gosto de você inteira.
- Eu gosto quando você me dá prazer também. Enche as medidas do amor dentro
de mim. Você pode me dar todo o prazer que quiset, só que de vez em quando quero ser
eu a dar os prazeres.
Ele tomou a rir.
- Estou de acordo. Já que você tem tanta vontade de aprender, posso ensinar-lhe
mais. Um pode dar prazer ao outro, você bem sabe. Gostaria que tivesse sido minha vez
de "encher as medidas do amor" em você. Mas foi tão boa que nem o toque de Haduma
conseguiria me levantar outra vez.
Ayla calou-se por um momento.
- Não teria importância, Jondalar.
- O que não teria importância?
- Mesmo que a sua virilidade nunca mais tomasse a levantar-se, ainda assim você
encheria as minhas medidas.
- Não diga uma coisa dessas! - ele riu, mas teve um ligeiro arrepio.
- A sua virilidade tomará a levantar-se - disse ela com grande soleni dade. Depois
deu uma risadinha.
- Onde você arrumou tanta malícia, mulher? Há coisas com que não se brinca -
disse ele, fingindo-se ofendido. E riu. Estava surpreendido e satis 532 feito com o tom
brincalhão dela e com a descoberta que começava a fazer do senso de humor.
- Gosto de fazê-lo rir. Rir com você é quase tão bom como fazer amor. Quero que
você sempre ria comigo. Porque, então, acho que você nunca dei xará de gostar de mim.
- Deixar de gostar de você? - perguntou ele, aprumando o corpo e olhando para ela.
- Ayla, procurei por você toda a minha vida, sem saber que estava procurando. Você é
tudo o que eu sempre quis. Tudo aquilo que sem pre sonhei numa mulher, e mais ainda.
Você é um enigma fascinante, um pa radoxo. Você é totalmente sincera, aberta, não
esconde nada; no entanto, a mulher mais misteriosa que já conheci.
"Você é forte, autoconfiante, inteiramente capaz de cuidar de si mesma e de mim;
apesar disso, você não se incomodaria de prostrar-se aos meus pés, se eu deixasse, tão
naturalmente como eu me curvaria diante de Doni. Você é destemida, corajosa, salvou a
minha vida, tratou de mim até eu ficar bom; ca çou a minha comida, providenciou o meu
bem estar. Você não precisa de mim. Mas me faz ter vontade de proteg&la, cuidá-la, não
deixar que nada de mau lhe aconteça.
'Poderia viver com você toda a minha vida, sem chegar jamais a conhe cê-la
realmente; há em você profundidades que muitas existências não basta riam para
explorar, sendo sábia e ancestral como a Mãe e tão fresca e jovem quanto uma mocinha
nos seus primeiros ritos. E você é a mulher mais linda que eu já vi. Nem consigo acreditar
que tive tamanha sorte. Não pensava que fosse capaz de amar alguém. Agora sei que
estava apenas esperando por você. Achava que o amor para mim fosse impossível, Ayla.
Amo-a mais do que a própria vida.
Ayla tinha lágrimas nos olhos. Ele be )u.lhe as pálpebras e a abraçou bem apertado
como se tivesse medo de perdê-la.
Quando despertaram na manhã seguinte, havia uma fina camada de neve no chão.
Soltaram a abertura da barraca e se meteram outra vez sob as peles, mas os dois se
sentiam tristes.
- Já é tempo de voltar, Jondalar.
- Acho que sim - falou ele, olhando para a sua respiração saindo numa baforada de
vapor. - A estação ainda está no princípio. Não há perigo de en frentar tempestades.
- Nunca se sabe.O tempo às vezã surpreende.
Eles, por fim, se levantararu. e desmontaram o acampamento. A funda de Ayla
derrubou um grande jerbo que surgiu de sua toca subterrânea com os seus rápidos
pulinhos sobre os dois pés. Ela o apanhou pelo rabo que tinha o dobro do comprimento
de seu corpo e o suspendeu às costas pelas patas tra 533 A seiras, providas de garras
duras como cascos. No acampamento, rapi pelou-o e colocou-o para assar no espeto.
- Estou triste de voltar - falou Ayla, enquanto Jondalar arm4va a fo gueira. - Foi. - .
divertido. Viajar por viajar, parando onde desse vontade, sem termos de nos preocupar
com cargas d fardos. Acampar durante o dia só por que dava vontade de nadar ou fazer
amor. Que bom você ter tido essa idéia.
- Também estou triste por ter terminado, Ayla. Foi uma boa viagem.
Ele se levantou para ir buscar mais lenha, encaminhando-se na direçifo do rio. Ayla
ajudou. Contornaram uma curva e encontraram uma pill4a de ga lhos tombados,
apodrecendo no châb. De repente Ayla ouviu um barulho. Ela levantou a cabeça e
procurou por Jondalar.
- Ei! Você aí! - chamou uma voz.
Um pequeno grupo de pessoas se encaminhava na direçifo deles,acenan do-lhes.
Ayla agarrou-se a Jondalar, e o braço dele cercou-a protetoramente, tranqüilizando-a.
- Nifo se preocupe, Ayla. Eles s mamutoi. É aquela gente qu eu lhe falei que se
orgulha de caçar mamutes. Eles acham que somos mamu tam bém.
Quando as pessoas se aproximaram, Ayla, com surpresa e assombro, virou-se para
Jondalar.
- Olhe, Jondalar, estão sorrindo - disse ela. - Estão sorrindo para mim.