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2 Volume VOZES E LETRAS

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POR UMA GESTALT-TERAPIA CRÍTICA E POLÍTICA

RELAÇÕES RACIAIS, GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL


VOLUME 2

POR UMA GESTALT-TERAPIA


CRÍTICA E POLÍTICA
RELAÇÕES RACIAIS, GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL

For a critical and political Gestalt-therapy:


racial relations, gender and sexual diversity
VOICES IN WRITING (Vol. 2)

Por una terapia Gestalt crítica y política:


relaciones raciales, género y diversidad sexual
VOCES EN LETRAS (Vol. 2)

Organizadores
Mônica Alvim
Paulo Barros
Silvia Alencar
Vanessa Brito
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Rebeca Viana – Anavi design

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


ALVIM, Mônica; BARROS, Paulo; ALENCAR, Silvia; BRITO, Vanessa (orgs.)

Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual [recurso
eletrônico] / Mônica Alvim; Paulo Barros; Silvia Alencar; Vanessa Brito (Orgs.) -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2022.

762 p.

ISBN: 978-65-5917-643-4
DOI: 10.22350/9786559176434

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Gestalt; 2. Política; 3. Relações raciais; 4. Gênero; 5. Diversidade sexual; I. Título.

CDD: 150
Índices para catálogo sistemático:
1. Psicologia 150
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 39

SEÇÃO 1
INTERFACES CRÍTICAS:
DE QUE MODO GÊNERO, RAÇA E CLASSE SE FAZEM PRESENTES NO CAMPO?
Critical interfaces: how are gender, race and class present in the field?
Interfaces críticas: ¿cómo están presentes el género, la raza y la clase en el campo?
1 47
ELEMENTOS PARA PENSAR UMA GESTALT-TERAPIA (REALMENTE) CRÍTICA E POLÍTICA
Mônica Alvim

RESUMO
Neste capítulo discutimos de forma ampla a dimensão política da Gestalt-terapia, promovendo um diálogo interdisciplinar
com teorias críticas, objetivando pensar a produção de subjetividades na perspectiva de campo. Partindo da teoria do self,
exploramos a ação de forças estruturais que compõem o fundo invisível da experiência sobre os processos de subjetivação
ou selfing,explorando as relações entre poder, normatividade, opressão e estruturas sociais e sua incidência nos processos de
produção de si. Abordamos a colonização das Américas e a gênese das divisões raciais e de gênero, mostrando de que modo
o eurocentrismo e o ocidentalismo tornaram-se dominante na produção de subjetividades e de epistemologias, postulando
um falso universalismo como mecanismo de poder e dominação que privilegia projetos imperiais, coloniais e patriarcais. A
partir disso, discutimos o mundo contemporâneo e a configuração que articula capitalismo neoliberal e estruturas sociais
racistas, sexistas e classistas como uma lógica normativa que é disseminada nas subjetividades. Concluímos por um
chamado à Gestalt-terapia e aos Gestalt-terapeutas para um esforço teórico, metodológico e de investigação pessoal que
nos permita visibilizar nos clientes – e especialmente em nós - a dimensão invisível das forças estruturais opressivas e violentas
que moldam nossas formas de perceber, sentir e agir.
Palavras-chave: teoria do self; estruturas sociais; racismo; sexismo; neoliberalismo

Elements for thinking about a (really) critical and political Gestalt-therapy


ABSTRACT
In this chapter we discuss in a broad way the political dimension of Gestalt-therapy, promoting an interdisciplinary dialogue
with critical theories, aiming to think about the production of subjectivities in a field perspective. Starting from the self theory,
we explore the action of structural forces that make up the invisible background of experience on the processes of
subjectivation or selfing, exploring the relations between power, normativity, oppression and social structures and their
incidence on the processes of self production. We address the colonization of the Americas and the genesis of racial and
gender divisions, showing how Eurocentrism and Westernism became dominant in the production of subjectivities and
epistemologies, postulating a false universalism as a mechanism of power and domination that privileges imperial, colonial,
and patriarchal projects. From this, we discuss the contemporary world and the configuration that articulates neoliberal
capitalism and racist, sexist, and classist social structures as anormative logic that is disseminated in subjectivities. We conclude
by calling Gestalt-therapy and Gestalt-therapists to a theoretical, methodological and personal investigation effort that allows
us to make visible in our clients - and especially in ourselves - the invisible dimension of the oppressive and violent structural
forces that shape our ways of perceiving, feeling and acting.
Keywords: self theory; social structures; racism; sexism; neoliberalism

Elementos para pensar una Gestalt-terapia (realmente) crítica y política


RESUMEN
En este capítulo discutimos de manera amplia la dimensión política de la terapia Gestalt, promoviendo un diálogo
interdisciplinar con las teorías críticas, con el objetivo de pensar la producción de subjetividades en la perspectiva del campo.
Partiendo de la teoría del self, exploramos la acción de las fuerzas estructurales que conforman el fondo invisible de la
experiencia sobre los procesos de subjetivación o selfing, explorando las relaciones entre poder, normatividad, opresión y
estructuras sociales y su incidencia en los procesos de producción del self. Abordamos la colonización de las Américas y la
génesis de las divisiones raciales y de género, mostrando cómo el eurocentrismo y el occidentalismo se hicieron dominantes
en la producción de subjetividades y epistemologías, postulando un falso universalismo como mecanismo de poder y
dominación que privilegia los proyectos imperiales, coloniales y patriarcales. A partir de esto, discutimos el mundo
contemporáneo y la configuración que articula el capitalismo neoliberal y las estructuras sociales racistas, sexistas y clasistas
como una lógica normativa que se disemina en las subjetividades. Concluimos con un llamamiento a la Gestalt-terapia y a los
Gestalt-terapeutas para que realicen un esfuerzo de investigación teórica, metodológica y personal que nos permita hacer
visible en nuestros clientes -y especialmente en nosotros mismos- la dimensión invisible de las fuerzas estructurales opresivas
y violentas que conforman nuestras formas de percibir, sentir y actuar.
Palabras clave: teoría del self; estructuras sociales; racismo; sexismo; neoliberalismo
2 79
CONFLUÊNCIA DO TERAPEUTA COM SISTEMAS SOCIAIS DE OPRESSÃO E PRIVILÉGIO
Michelle Billies

RESUMO
Muitos Gestalt-terapeutas valorizam culturalmente a terapia com foco na dimensão sensível com seus
clientes. Recentemente, esse foco se deslocou para analisar como certas vantagens sociais (como
privilégio de classe ou raça) que eles recebem podem impactar a relação terapêutica. A Gestalt-terapia
oferece caminhos excitantes e estimulantes para terapeutas compreenderem melhor - e estratégias para
desfazer - como a opressão social pode ser reproduzida na terapia. Este artigo explora a opressão social
e o privilégio como fenômenos do campo organismo/ambiente, analisa a identidade de terapeutas e o
ambiente social, sugere conhecimentos e habilidades para expandir a competência cultural e aplica as
ideias de Philip Lichtenberg a um método específico para diagnosticar e desfazer a parte de terapeutas
na "dinâmica da opressão".

Therapist confluence with social systems of oppression and privilege


ABSTRACT
Many gestalt-therapists value culturally sensitive therapy with their clients. Recently, this focus has shifted
to analyzing how certain social benefits (such as class or racial privilege) that the therapist receives may
impact the therapeutic relationship. Gestalt therapy offers exciting, life giving ways for therapists to better
understand – and strategies to undo – how social oppression and privilege as phenomena of the
organism/environment field, analyzes therapist identity and the social environment, suggests knowledge
and skills to expand cultural competence, and applies Philip Lichtenberg´s ideas toward a specific method
for diagnosing and undoing the therapist´s side of the “dynamics of oppression”.

La confluencia del terapeuta con los sistemas sociales de opresión y privilegio


RESUMEN
Muchos terapeutas gestálticos valoran culturalmente la terapia sensible con sus clientes.
Recientemente, este enfoque se ha desplazado hacia el análisis de cómo ciertos beneficios sociales
(como el privilegio de clase o racial) que el terapeuta recibe pueden impactar en la relación terapéutica.
La terapia gestáltica ofrece formas excitantes y vitales para que los terapeutas comprendan mejor - y
estrategias para deshacer - cómo la opresión y el privilegio social como fenómenos del campo
organismo/ambiente, analiza la identidad del terapeuta y el entorno social, sugiere conocimientos y
habilidades para ampliar la competencia cultural, y aplica las ideas de Philip Lichtenberg hacia un
método específico para diagnosticar y deshacer el lado del terapeuta de la "dinámica de la opresión".
3 108
GESTALT-TERAPIA COMO CLÍNICA DE SITUAÇÕES CONTEMPORÂNEAS: AS
DIMENSÕES ESTRUTURAIS DE RAÇA, CLASSE E GÊNERO COMO FIGURA
Mônica Alvim
Paulo Antonio de Oliveira Muniz
Cheyenne Monteiro Wolf Von Arcosy

RESUMO
A Gestalt-terapia afirma que a dimensão social é intrínseca à vivência no mundo, propondo superar um fazer
psicológico que historicamente tendeu a considerar sintomas e patologias sob ótica individualizante e
psicopatologizante e preconizando a experiência do sujeito como ser-no-mundo, produzido pelo mundo
enquanto também o produz. Esse olhar é político, por estabelecer que o sofrimento é dado na relação com a
situação, atravessada por dimensões estruturais de raça, classe e gênero. Neste trabalho apresentamos uma
pesquisa que investigou como as queixas que chegam à clínica são produzidas em um campo sócio-histórico-
político-econômico-cultural. Discutimos 4 casos clínicos que envolviam problemáticas estruturais atendidos
pela equipe de Gestalt-terapia da Divisão de Psicologia Aplicada (DPA) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), buscando agregar à perspectiva gestáltica outras disciplinas. Compreender essas dimensões
estruturais como elementos fundantes na produção de vida e sofrimento sustenta uma escuta clínica política
que amplia a Gestalt-terapia.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; gênero; raça; classe; clínica.

Gestalt therapy as a clinic for contemporary situations: the structural dimensions of race, class and
gender as a figure
ABSTRACT
The Gestalt-therapy states that the social dimension is intrinsic to the worldly experience, suggesting the
overcoming of a psychological making that has historically leaned towards considering symptoms and
pathologies under an individualizing and psychopatologizing gaze and preconizing the subject’s experience as
a bring-in-the-world, produced by the world while also producing it. This view is a political for establishing that
the suffering is given in the relationship with the situation, perpassed by structural dimensions such as race,
class and gender. This manuscript presents research that has investigated how the complaints that reach the
clinic are produced in a socio-historical-political-economical-cultural field. We have discussed four clinical cases
that involved structural problems and were seen by the Gestalt-therapy interns at the Applied Psychology
Division (DPA) from the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), in the search of aggregating to the Gestalt
perspective other subjects. To understand these structural dimensions as pillars of the production of life and
suffering supports a political clinical listening that widens the gaze of the Gestalt-therapy.
Keywords: gestalt-therapy; gender; race; class; clinical work

La terapia gestalt como clínica de situaciones contemporáneas: las dimensiones estructurales de


raza, clase y género como figura
RESUMEN
La Terapia Gestalt afirma que la dimensión social es intrínseca al vivir en el mundo, proponiendo superar una
práctica psicológica que históricamente tendió a considerar los síntomas y las patologías desde una perspectiva
individualizadora y psicopatologizadora, y abogando por la experiencia del sujeto como ser-en-el -mundo,
producido por el mundo, al mismo tiempo que lo produce. Esta mirada es política, pues establece que el
sufrimiento se da en relación a la situación, atravesado por dimensiones estructurales de raza, clase y género.
En este trabajo presentamos una investigación que investigó cómo se producen las quejas que llegan a la clínica
en un campo socio-histórico-político-económico-cultural. Discutimos 4 casos clínicos que involucraron
problemas estructurales atendidos por el equipo de terapia Gestalt de la División de Psicología Aplicada (DPA)
de la Universidad Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), buscando sumar otras disciplinas a la perspectiva gestalt.
Comprender estas dimensiones estructurales como elementos fundantes en la producción de vida y
sufrimiento sustenta una escucha clínica política que expande la Gestalt-terapia.
Palabras clave: terapia gestáltica; género; raza; clase; clínica.
4 136
DESMANCHANDO O “MONOCORPO”: ENLACES GESTÁLTICOS DECOLONIAIS
Tatiana de Paula Soares

RESUMO
Este ensaio debate o modelo universal de corpo amparado em normatividades e discute como a
confluência com padrões hegemônicos coloniais nos torna suscetíveis a reprodução de violências na
clínica gestáltica. A finalidade foi refletir sobre a importância de protagonizar Gestalt-terapias pluriversas
circunscritas pelo contexto sócio-histórico. Com o alicerce teórico decolonial, o entrelaçamento deste
estudo se deu primordialmente em corpo na Gestalt-terapia, a partir de Alvim (2020), pensamento
“mono” baseado em Núñez (2021), transfeminismo no Brasil, sob o olhar de Nascimento (2021),
decolonialidades por Segato (2007) e Oyewùmí (2021), e confluência no campo gestáltico norteada por
Billies (2005). O objetivo foi localizar como situações contemporâneas de violências sociais
invisibilizadas atravessam o campo de Gestalt-terapeutas enviesadas pelo universalismo cultural
eurocentrado que move a roda-viva de opressões. A relevância é de contribuir à práxis da Gestalt-
terapia, re-existindo a sistemas de alienação e confluências opressoras.
Palavras-chave: “monocorpo”, confluência, Gestalt-terapia, pluriversalidade, decolonialidade

Dismantling the universal body: Decolonial gestalt links


ABSTRACT
This essay discusses the universal model of the body supported by normativities and discusses the
confluence of gestalt-therapists based on the unique pattern of the body-norm based on the colonial
heritage. The purpose was to reflect on the importance of starring pluriversal gestalt-therapies guide by
the socio-historical context. With the decolonial theoretical perspective, this study was based mainly on
the body in Gestalt-therapy, by Alvim (2020), “mono” thinking by Núñez (2021), transfeminism in Brazil,
by Nascimento (2021), decolonialities by Segato (2007) and by Oyewùmí (2021) and confluence in the
gestalt field, by Billies (2005). The objective was to locate how contemporary situations of invisible social
violence cross the field of gestalt-therapists biased by the Eurocentric cultural universalism that moves
the lively wheel of oppressions. The relevance is to contribute to practices of Gestalt-therapy, fighting
systems of alienation and confluence with oppressions.
Keywords: universal body, confluence, gestalt therapy, pluriversality, decoloniality

Desmantelar el cuerpo universal: enlaces gestálticos decoloniales


RESUMEN
Este ensayo discute el modelo universal del cuerpo sustentado en normatividades y discute cómo la
confluencia con los patrones hegemónicos coloniales nos vuelve susceptibles a la reproducción de la
violencia en la clínica gestalt. El propósito fue reflexionar sobre la importancia de realizar terapias Gestalt
pluriversales circunscritas por el contexto socio-histórico. Con la fundamentación teórica decolonial, el
entrecruzamiento de este estudio sucedió principalmente en el cuerpo en Gestalt-terapia, a partir de
Alvim (2020), pensamiento “mono” a partir de Núñez (2021), transfeminismo en Brasil, bajo la mirada de
Nascimento (2021), decolonialidades de Segato (2007) y Oyewùmí (2021), y confluencia en el campo de
la gestalt guiada por Billies (2005). El objetivo fue ubicar cómo las situaciones contemporáneas de
violencia social invisible atraviesan el campo de los terapeutas gestalt sesgados por el universalismo
cultural eurocéntrico que mueve la rueda viva de las opresiones. La relevancia es contribuir a la praxis
de la Gestalt-terapia, re-existentes sistemas de alienación y confluencias opresivas.
Palabras clave: cuerpo universal, confluencia, terapia gestalt, pluriversalidad, decolonialidad.
SEÇÃO 2
DECOLONIZAR A GESTALT-TERAPIA:
SOBRE A NECESSIDADE DE UMA PRÁTICA ANTIRRACISTA
Decolonizing Gestalt-therapy: on the need for an anti-racist practice
Descolonizando la terapia Gestalt: sobre la necesidad de una práctica antirracista
5 159
IANSÃ: A TEMPESTADE QUE INCIDE SOBRE A BRANQUITUDE NA CLÍNICA
PSICOLÓGICA
Sérgio Lizias Costa de Oliveira Rocha
Paulo Antonio de Oliveira Muniz
Mônica Alvim

RESUMO
Este ensaio dialoga com a temática do curta-metragem “Iansã”, produzido no âmbito de uma pesquisa
de pós-doutorado que teve como objetivo produzir audiovisuais inspirados nos temas que sobressaíram
em atendimentos clínicos de plantão psicológico. O audiovisual trata da branquitude na clínica
psicológica, problematizando o lugar do terapeuta branco ao atender uma pessoa preta envolvida em
situações de racismo e teve inspiração em várias situações trazidas durante outros atendimentos e
supervisões clínicas. O título “Iansã” foi inspirado em uma das usuárias atendidas que vivenciou uma
situação de preconceito religioso, sendo o roteiro focado em elementos que aludem a princípios
civilizatórios e tecnologias de cuidado bem presentes em religiões de tradição africana e que não são
abordados na formação em psicologia. O nome de Iansã é tomado aqui como um repertório da tradição
yorubá, representante da tempestade, raios e ventos, lançando para o ar questões-limites da
branquitude na clínica psicológica.
Palavras-chave: branquitude, racismo, audiovisual, psicologia clínica.

Iansã: the storm that affects whiteness in the psychological clinic


ABSTRACT
This essay dialogues with the theme of the short film “Iansã”, produced during a research project carried
out during a post-doctorate which aimed to produce audiovisuals inspired by the themes that stood out
in therapy sessions. The film deals with the issue of whiteness in the psychological clinic, questioning
the place of the white therapist when attending to a black person whose complaints involve situations
of racism and was inspired by various situations narrated and brought during clinical consultations and
supervision. The title “Iansã” was inspired by one of the users assisted in which she was faced with a
situation of religious prejudice and the script puts its focus on on elements that allude to civilizing
principles and care technologies that are well present in African tradition religions and that are not
addressed in psychology training. The name “Iansã” is taken here as a repertoire of the Yoruba tradition,
representative of storm, lightning and winds, which raises questions-limits of whiteness in the
psychological clinic.
Keywords: whiteness, racism, audiovisual, clinical psychology.

Iansã: la tormenta que afecta la blancura en la clínica psicológica


RESUMEN
Este ensayo dialoga con el tema del cortometraje “Iansã”, realizado durante uno proyecto de
investigación de posdoctorado que tuvo como objetivo producir audiovisuales inspirados en los temas
que se destacaron en las consultas realizadas. El guión audiovisual aborda el tema de la blancura en la
clínica psicológica, cuestionando el lugar del terapeuta blanco al momento de atender a una persona
negra cuyas quejas involucran situaciones de racismo y se inspiró en diversas situaciones narradas y
traídas durante las consultas y supervisión clínica. El título “Iansã” se inspiró en una de las usuarias
asistidas que se enfrentó a una situación de prejuicio religioso, asi que el guión se centra en en
elementos que aluden a principios civilizatorios y tecnologías de cuidado muy presentes en las
religiones de tradición africana y que no se abordan en la formación en psicología. Se toma aquí el
nombre de Iansã, como repertorio de la tradición yoruba, representante de la tormenta, el relámpago y
los vientos, que suscita interrogantes-límites de la blancura en la clínica psicológica.
Palabras clave: blanquitud, racismo, audiovisual, psicología clínica.
6 179
NOTAS PARA UMA ESCUTA RACIALIZADA EM GESTALT-TERAPIA
Luísa Parreira Santos
Marciana Gonçalves Farinha

RESUMO
Este relato de experiência tem o objetivo de refletir sobre a psicoterapia racializada na Gestalt-terapia a
partir de situações clínicas. A reprodução do racismo institucional na relação terapêutica, o campo das
famílias interraciais, os sentimentos suscitados na jornada de ascensão social, os ajustamentos criativos
feitos diante do trauma colonial e a necessidade de resgatar o corpo na escuta de pessoas negras são
discutidos com base na Gestalt-terapia em diálogo com referenciais das Relações Étnico Raciais. Diante
da amplitude do fenômeno, oferecemos nossas notas vitais para uma escuta clínica qualificada com
vistas à afirmação da condição de liberdade das pessoas negras.
Palavras-chave: psicologia; psicoterapia; raça; racismo; Gestalt-terapia.

Notes for a Racialized Listening in Gestalt Therapy


ABSTRACT
This experience report aims to reflect about racialized psychotherapy on Gestalt-therapy from clinical
situations. The reproduction of institutional racismo in the therapeutic relationship, the interracial family
field, the feelings that rise in the journey of social rising, the creative adjustments that are made in face
of colonial trauma and the need to rescue the body in the clinical listening of black people are presented
from clinical situations and discussed based on Gestalt therapy in dialogue with Ethnical Racial Relations
references. Given the breadth of the phenomenon, we offer our vital notes for a qualified clinical
listening with a view to affirming the condition of freedom of black people.
Keywords: psychology; psychotherapy; race; racism; gestalt therapy.

Apuntes para una escucha racializada en terapia Gestalt


RESUMEN
Este relato de experiencia tiene como objetivo reflexionar sobre la psicoterapia racializada en la terapia
Gestalt desde situaciones clínicas. Se discute la reproducción del racismo institucional en la relación
terapéutica, el campo de las familias interraciales, los sentimientos suscitados en el camino de ascensión
social, los ajustes creativos realizados frente al trauma colonial y la necesidad de rescatar el cuerpo en la
escucha de los negros. basado en la terapia Gestalt en diálogo con referentes de las Relaciones Étnico-
Raciales. Dada la amplitud del fenómeno, ofrecemos nuestras notas vitales para una escucha clínica
cualificada con miras a afirmar la condición de libertad de los negros.
Palabras clave: psicología; psicoterapia; raza; racismo; terapia gestáltica.
7 199
MULHERES NEGRAS E AUTOESTIMA: EXPLORANDO O IMPACTO DO RACISMO NA
INFÂNCIA
Andrea dos Santos Nascimento
Emanuella Moreira Cintra
Maiara da Silva

RESUMO
Pessoas negras, ainda na infância e na escola, absorvem o impacto do racismo a partir da reprodução da
imagem negativa da população negra nos livros didáticos, que representam esse grupo como algozes
das pessoas brancas, valorizadas positivamente. O objetivo principal desta pesquisa foi explorar de que
forma o racismo sofrido na escola impacta a autoestima de mulheres negras adultas. Trata-se de uma
pesquisa exploratória, cujas participantes são mulheres negras, de 27 a 45 anos, realizada de modo
virtual. Participaram 139 mulheres no questionário online e 10 na entrevista individual. Os resultados
confirmam o impacto do racismo sofrido na escola na autoestima de mulheres adultas, por meio das
principais categorias encontradas a) silenciamento; b) baixa autoestima e a dificuldade de se relacionar
c) professores negros como minoria; d) alunos negros como minoria; e) problemas psicológicos. É
preciso chamar atenção para como o tema da negritude tem sido apresentado nas escolas. Palavras-
chave: autoestima, infância, racismo, escola

Black women and self-esteem: exploring the impact of racism on childhood


ABSTRACT
Black people, still in childhood and school, absorb the impact of racism from the reproduction of the
negative image of the black population in textbooks, which represent this group as executioners of
white people, positively valued. The main objective of this research was explore how the racism suffered
at school impacted the self-esteem of adult black women. This is an exploratory research, whose
participants are black women, aged 27 to 45 years, carried out in a virtual way. 139 women participated
in the online questionnaire and 10 in the individual interview. The results confirm the impact of racism
suffered at school on the self-esteem of adult women, through the main categories found: a) silencing;
b) low self-esteem and relationship difficulties; c) black teachers as a minority; d) black students as a
minority; e) psychological problems. It is necessary to draw attention to how the theme of blackness
has been presented in schools.
Keywords: self-esteem, childhood, racism, school

Mujeres negras y autoestima: explorando el impacto del racismo en la infância


RESUMEN
Personas negras, todavía en la infancia y en el colegio, absorben el impacto del racismo a partir de la
reproducción de la imagen negativa de la población negra en los libros didacticos, que representan ese
grupo como verdugos de las personas blancas, valoradas positivamente. El objetivo principal de esta
investigación fue averiguar de que forma el racismo sufrido en el colegio impactó en la autoestima de
mujeres negras adultas. Se trata de una investigación exploratoria, cuyas participantes son mujeres
negras, de 27 a 45 años, realizada de manera virtual. Participaron 139 mujeres en el cuestionario online
e 10 en la entrevista individual. Los resultados confirman el impacto del racismo sufrido en el colegio en
la autoestima de las mujeres adultas, por medio de las principales categorias encontradas a) silenciando;
b) baja autoestima y la dificultad de relacionarse; c) profesores negros como minoria; d) alumnos negros
como minoria; e) problemas psicológicos. Es necesario llamar la atención para como el tema de la
negritud ha sido presentado en los colegios.
Palabras clave: autoestima, infancia, racismo, colegio.
8 220
RACIALIZANDO A FRONTEIRA, COM-PONDO UMA PELE COLETIVA
Loíse Lorena do Nascimento Santos
Daniele Miranda
Sonalle Cristina de Azevedo da Fonseca
Alexandra Cleopatre Tsallis

RESUMO
Partindo da experiência de atendimento clínico grupal do COM-POR pessoas negras UERJ, o presente
artigo propõe-se a apresentar o conceito de “pele coletiva”, relacionando-o com conceitos da Gestalt-
terapia, principalmente o de fronteira de contato. Nesse percurso, serão utilizados diários de campo
como ferramenta metodológica, a fim de nos mostrar como tal conceito é experimentado no campo, à
medida que forma e é formado pelas pessoas que vivenciam o dispositivo clínico. Refletir sobre essa
experiência nos possibilita discutir como a pele coletiva do COM-POR UERJ pode contribuir para
pensarmos na importância de racializar a fronteira de contato e, consequentemente, ajudar a nós —
Gestalt-terapeutas — a cuidarmos de nossas práticas, relações e formações de uma forma engajada com
a luta antirracista.
Palavras-chave: com-por, pele coletiva, fronteira de contato, prática antirracista, Ubuntu.

Racializing the border, composing a collective skin


ABSTRACT
Based on the experience of group clinical care at COM-POR (with-by) black people UERJ, the present
article proposes to present the concept of “collective skin”, relating it to concepts of Gestalt-therapy,
especially the contact boundary. Thus, diaries will be used as a methodological tool, in order to show us
how such a concept is experienced in the field, as it forms and is formed by people who experience the
clinical device. Reflecting on this experience allows us to discuss how the collective skin of COM-POR
UERJ, can contribute to thinking about the importance of racializing the contact boundary and,
consequently, helping us - gestalt-therapists — to take care of our practices, relationships and
formations of a way engaged with the anti-racist struggle.
Keywords: com-por, collective skin, contact boundary, anti-racist practice, Ubuntu.

Racializando la frontera, componiendo una piel colectiva


RESUMEN
A partir de la experiencia de atención psicológica grupal en COM-POR personas de raza negra UERJ, este
artículo se propone presentar el concepto de “piel colectiva”, relacionándo-lo con conceptos de la
Gestalt-terapia, principalmente la Frontera de Contacto. De esta forma, se utilizará como herramienta
metodológica los diarios de campo, con el fin de mostrarnos cómo tal concepto es vivido en el campo,
como forma y es formado por las personas que experimentan el dispositivo clínico. Reflexionar sobre
esta experiencia nos permite discutir cómo la piel colectiva de COM-POR UERJ puede contribuir a pensar
la importancia de racializar la frontera de contacto y, en consecuencia, ayudarnos, Gestalt-terapeutas, a
cuidar de nuestras prácticas, relaciones y formaciones de manera comprometida con la lucha
antirracista.
Palabras clave: com-por, piel colectiva, frontera de contacto, práctica antirracista, Ubuntu.
9 238
UBUNTU: O EXISTIR FENOMENOLÓGICO NA FILOSOFIA AFRICANA
Alice Dias do Nascimento
Ana Clara Peres Couri
Vitor Hugo Santos Nunes

RESUMO
Ubuntu é uma filosofia africana em que se expressa a ideia de que a essência humana está centrada na
consciência do pertencimento ao coletivo, eu sou ser através do outro mas ao mesmo tempo possuo
um valor singular como ser humano. A tradução de Ubuntu é “Eu sou, porque nós somos”, e a filosofia
está constituída em cima da generosidade, solidariedade, compaixão, partilha, vivência em comunidade
e o desejo genuíno de harmonia na humanidade. Dessa forma, o presente estudo tem como objetivo
refletir sobre o existir fenomenológico, humanista e existencial dos aspectos epistemológicos do Ubuntu
correlacionando com a abordagem psicoterapêutica "Gestalt-terapia''. Portanto, por meio de tais
aproximações, visamos valorizar e ressaltar a relevância dos saberes, conhecimentos e práticas culturais
existentes para além das advindas das culturas ocidentais e eurocêntricas.
Palavras-chave: ubuntu; Gestalt-terapia, comunidade, humanidade.

Ubuntu: The Phenomenological Existing in African Philosophy


ABSTRACT
Ubuntu is an African philosophy that expresses the idea that the human essence is centered on the
awareness of belonging to the collective, I am through the other but at the same time I have an unique
value as a human being. The translation of Ubuntu is “I am, because we are”, and the philosophy is built
on generosity, solidarity, compassion, sharing, living in community and the genuine desire for harmony
in humanity. Thus, the present study aims to reflect on the phenomenological, humanistic and
existential existence of the epistemological aspects of Ubuntu correlating with the psychotherapeutic
approach "Gestalt-Therapy''. Therefore, through such correlations, aiming to highlight the value and
importance of the knowledge and cultural practices that exist beyond the Western and eurocentric
cultures.
Keywords: ubuntu; gestalt-therapy, community, humanity.

Ubuntu: El existir fenomenológico en la filosofía africana


RESUMEN
Ubuntu es una filosofía africana en la que se expresa la idea de que la esencia humana se centra en la
conciencia de pertenecer al colectivo, estoy siendo a través del otro pero al mismo tiempo tengo un
valor único como ser humano. La traducción de Ubuntu es “Yo soy, porque nosotros somos”, y la filosofía
se basa en la generosidad, la solidaridad, la compasión, el compartir, la convivencia y el genuino deseo
de armonía en la humanidad. Por lo tanto, el presente estudio tiene como objetivo reflexionar sobre la
existencia fenomenológica, humanística y existencial de los aspectos epistemológicos de Ubuntu en
correlación con el enfoque psicoterapéutico "Gestalt-terapia". Por tanto, a través de tales
aproximaciones, pretendemos valorar y enfatizar la relevancia de los saberes, saberes y prácticas
culturales existentes más allá de los que surgen de las culturas occidentales y eurocéntricas.
Palabras Clave: ubuntu; terapia gestalt, comunidad, humanidad.
10 251
REFLEXÕES PARA UMA PRÁTICA ANTIRRACISTA NA PERSPECTIVA DA GESTALT-
TERAPIA
Valdicéia Miranda Machado Bouzada
Carolina Soraggi Frez
José Humberto Alves

RESUMO
Este capítulo visa refletir sobre o cuidado antirracista na perspectiva da Gestalt-terapia. Trata-se de um
estudo descritivo, qualitativo do tipo relato de experiência, realizado a partir da vivência de profissionais
da área da saúde e humanas que compõem um grupo de estudos e pesquisas de forma independente
relacionado às temáticas de saúde mental, questões étnico-raciais e a Gestalt-terapia. São discutidos os
fenômenos decorrentes do racismo e, em sequência, apresenta-se a análise dos dados a partir da
Gestalt-terapia, considerando a perspectiva anti-racista. Os autores fazem uma reflexão sobre os
ajustamentos criativos, o racismo estrutural no Brasil dos afrodescendentes e indígenas a partir do
regime colonial, e as consequentes violações dos direitos desses povos até os dias atuais, apontando as
responsabilidades dos profissionais de saúde e Gestalt-terapeutas nas questões étnico-raciais e as
opressões na prática clínica, como atuar de forma a afirmar a importância da reparação dos direitos que
foram violados e que ameaçam cotidianamente a saúde mental da população brasileira.
Palavras-chave: Racismo; Cuidado; Gestalt-terapia.

Reflections for an anti-racist practice in a Gestalt-therapy perspective


ABSTRACT
This chapter aims to reflect on anti-racist care within the perspective of Gestalt-therapy. This is a descriptive,
qualitative study of the experience report type, carried out from the experience of health and human
professionals who make up a group of studies and research independently related to mental health issues,
ethnic-racial issues and Gestalt Therapy. Phenomena resulting from racism are discussed and, subsequently,
the analysis of data from Gestalt-therapy, considering the anti-racist perspective. The authors reflect on the
creative adjustments, the structural racism in Brazil of Afro-descendants and indigenous people from the
colonial regime, and the consequent violations of the rights of these peoples until the present day, pointing
out the responsibilities of health professionals and gestalt-therapists in the ethnic-racial issues and
oppressions in clinical practice, how to act in order to affirm the importance of repairing the rights that have
been violated and that daily threaten the mental health of the Brazilian population.
Keyword: Racism; Caution; Gestalt-Therapy.

Reflexiones para una práctica antirracista desde la perspectiva de la Terapia Gestalt


RESUMEN
Este capítulo tiene como objetivo reflexionar sobre el cuidado antirracista en la perspectiva de la terapia
Gestalt. Se trata de un estudio descriptivo, cualitativo, del tipo relato de experiencia, realizado a partir
de la vivencia de profesionales de la salud y humanos que integran un grupo de estudios e
investigaciones de forma independiente relacionados con temas de salud mental, étnico-raciales y
Terapia Gestalt. Se discuten los fenómenos derivados del racismo y, posteriormente, el análisis de los
datos de la terapia Gestalt, considerando la perspectiva antirracista. Los autores reflexionan sobre los
ajustes creativos, el racismo estructural en Brasil de los afrodescendientes e indígenas del régimen
colonial, y las consecuentes violaciones de los derechos de estos pueblos hasta el día de hoy, señalando
las responsabilidades de los profesionales de la salud y de la gestalt- terapeutas en las cuestiones étnico-
raciales y opresiones en la práctica clínica, cómo actuar para afirmar la importancia de reparar los
derechos que han sido violados y que amenazan diariamente la salud mental de la población brasileña.
Palabra Clave: Racismo; Precaución; Terapia Gestalt.
11 274
VOZES NEGRAS NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO DE PSICOLOGIA: UMA
EXPERIÊNCIA COSTURADA COM A GESTALT-TERAPIA
Laura Cristina de Toledo Quadros
Cecilia de Aquino Barbosa
Viviane Gouvêa dos Santos
Angelica (Angel) dos Santos Siqueira
Barbara Gabriela Silva e Remane

RESUMO
Trazemos aqui os impactos vivenciados ao incluirmos textos de autoras negras, em especial de Audre
Lorde, na discussão de temas e conceitos gestálticos na disciplina de Gestalt-terapia numa universidade
pública do Rio de Janeiro. Através de narrativas singularizadas, apoiamo-nos na descrição da experiência
vivenciadas pelas autoras. Seguindo a proposição da disciplina, discutimos a noção de raiva a partir de
Audre Lorde dialogando com a Gestalt-terapia e a aposta que fizemos foi de que a experiência narrada
neste texto possibilite uma ampliação da awareness acerca de atravessamentos racistas na vida da
população negra. Abordar a temática a partir da autonarrativa de uma mulher preta, viabiliza que
pessoas negras possam pensar a si próprias “fora do espelhamento branco” (Arrelias, 2020). Acreditamos
na necessidade de discutir a descolonização do pensamento, especialmente em Gestalt-terapia, em
busca uma formação ética e, sobretudo, política.
Palavras-chave: gestalt-terapia; raiva; descolonização do pensamento; racialização.

Black voices in the Psychology undergraduate classroom: an experience stitched together with
Gestalt-therapy
ABSTRACT
We present here the impacts experienced when we include texts by black female authors, especially Audre
Lorde, in the discussion of Gestalt themes and concepts in the Gestalt-therapy discipline at a public
university in Rio de Janeiro. Through singular narratives, we rely on the description of the experience lived
by the authors. Following the proposition of the discipline, we discussed the notion of anger from Audre
Lorde dialoguing with Gestalt-therapy and the bet we made was that the experience narrated in this text
allows an expansion of awareness about racist crossings in the life of the black population. Approaching the
theme from the self-narrative of a black woman makes it possible for black people to think about themselves
“outside the white mirror” (Arrelias, 2020). We believe in the need to discuss the decolonization of thought,
especially in Gestalt-therapy, in search of an ethical and, above all, political formation.
Keywords: gestalt-therapy; anger; decolonization of thought; racialization.

Voces negras en el aula de grado de Psicología: una experiencia cosida con la terapia Gestalt
RESUMEN
Presentamos aquí los impactos experimentados al incluir textos de autores negros, especialmente Audre
Lorde, en la discusión de temas y conceptos de terapia gestáltica en el curso de terapia gestáltica de una
universidad pública de Río de Janeiro. A través de narraciones singularizadas, nos basamos en la descripción
de la experiencia vivida por los autores. Siguiendo la propuesta de la disciplina, discutimos la noción de ira
de Audre Lorde en diálogo con la Gestalt-terapia y la apuesta que hicimos fue que la experiencia narrada en
este texto permite ampliar la conciencia sobre los cruces racistas en la vida de la población negra. Abordar
el tema desde la autonarrativa de una mujer negra, permite a los negros pensarse a sí mismos "fuera del
espejo blanco" (Arrelias, 2020). Creemos en la necesidad de discutir la descolonización del pensamiento,
especialmente en la terapia Gestalt, en busca de una formación ética y, sobre todo, política
Palabras clave: terapia Gestalt; ira; descolonización del pensamiento; racialización.
12 297
A GESTALT-TERAPIA NO DEBATE SOBRE A POLÍTICA SOBRE DROGAS E RACISMO
Welison de Lima Sousa

RESUMO
Este texto busca discutir sobre a atual política sobre drogas em sua interface com o proibicionismo e
racismo, indicando como esta política tem produzido encarceramento e morte na população negra e
periférica. Nisso, indicamos a redução de Danos como alternativa ao modelo proibicionista, por se tratar
de uma diretriz ética e política no cuidado diante de pessoas que fazem uso de drogas. Por fim,
realizamos uma articulação entre o racismo e Gestalt-terapia a partir da teoria do self, e a imposição do
sofrimento aflição (misery) na população negra. Assim, a redução de danos se mostra uma aliada no
enfrentamento do racismo diante da questão do uso de drogas, se configurando como uma estratégia,
uma ética e uma metodologia capaz de dialogar com a Gestalt-terapia, e daí produzir reconhecimento
de alteridade e intervenções a partir de um enfoque holístico.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Drogas; Redução de Danos; Racismo.

Gestalt therapy in the debate on drug policy and racism


ABSTRACT
This text looks at current drug policy in its interface with prohibitionism and racism, indicating how this
policy has produced incarceration and death in black and peripheral women. In this, we indicate Harm
Reduction as an alternative for the prohibitionism model, as it is an ethical and political guideline in the
care of people who use drugs. Finally, we make an articulation between racism and Gestalt-therapy from
the theory of the self, and the resistance to suffering affliction (misery) in the black population. Thus,
harm reduction proves to be an intervention in facing the racism of the issue, configuring itself as a
strategy, an ethics and a methodology capable of dialoguing with Gestalt-therapy and hence producing
recognition of change from a holistic approach.
Keywords: Gestalt therapy; drugs; Harm Reduction; Racism.

La terapia gestalt en el debate sobre política de drogas y racismo


RESUMEN
Este texto busca discutir la actual política de drogas en su interfaz con el prohibicionismo y el racismo,
indicando cómo esta política ha producido encarcelamiento y muerte en la población negra y periférica.
En este, indicamos la Reducción de Daños como una alternativa al modelo prohibicionista, por ser una
directriz ética y política en la atención a las personas que consumen drogas. Finalmente, articulamos el
racismo y la Gestalt-terapia desde la teoría del yo, y la imposición del sufrimiento de la aflicción (miseria)
a la población negra. Así, la reducción de daños demuestra ser un aliado en el enfrentamiento del
racismo frente al tema del consumo de drogas, configurándose como una estrategia, una ética y una
metodología capaz de dialogar con la Gestalt-terapia, y por ende producir reconocimiento de alteridad
e intervenciones desde un enfoque holístico.
Palabras clave: Gestalt-terapia; drogas; Reducción de daños; Racismo.
13 310
ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES PARA UM
APROFUNDAMENTO GESTÁLTICO
Rozangela da Piedade Leite

RESUMO
Construir elementos que possam contribuir na clínica antirracista no Brasil na psicologia e na Gestalt-
terapia, ainda tem sido desafiante diante das bases teóricas, metodológicas racistas que ainda violentam
a saúde mental das pessoas negras, quando os psicólogos não brancos não racializam o seu contato
terapêutico. Ainda existe poucos aportes teóricos e metodológicos no campo da psicologia e da Gestalt-
terapia que dê conta de compreender a subjetividade das pessoas negras, tendo em vista as que os
estudos teóricos e formativos ainda estão pautados apenas em uma referência cultural, existencial
branco. Diante disso, como quebrar essa gestaltem rígida epistêmica no campo da Gestalt-terapia
brasileira, para que ocorra um afetamento na relação de contato necessário para uma honesta e
verdadeira relação terapêutica comprometida com a realidade que o campo oferece da vida de pessoas
pretas atravessada pelas diferentes formas de racismo?
Palavras-chave: racismo, psicologia africana, Gestalt-terapia.

Elements for an anti-racist clinic: reflections for a gestalt deepening


ABSTRACT
Creating elements that can contribute to the anti-racist clinic in psychology, especially in Gestalt-
therapy in Brazil, has still been challenging. One important reason is the racist theoretical and
methodological bases that negligence black people’s mental health. Another reason is that non-black
psychologists tend not to racialize their therapeutic contact with black clients. In this sense still a lack of
understanding of the subjectivity of black people in the room. How do we break this gestaltem, disrupt
barriers, and sustain an honest and genuine therapeutic relationship committed to the reality that the
field is offering?
Keywords: racism, African psychology, gestalt therapy.

Elementos para una clínica antirracista: reflexiones para una profundización gestalt
RESUMEN
Construir elementos que puedan contribuir a la clínica antirracista en Brasil en psicología y en terapia
Gestalt todavía ha sido un desafío debido a los fundamentos teóricos y metodológicos del racismo que
aún violan la salud mental de las personas negras, cuando los psicólogos no blancos no racializan su
contacto terapéutico. Todavía son pocas las contribuciones teóricas y metodológicas en el campo de la
psicología y la terapia Gestalt que tienen como objetivo comprender la subjetividad de las personas
negras, dado que los estudios teóricos y formativos todavía se basan solo en una referencia cultural
existencial blanca. Frente a eso, ¿cómo romper esta rígida gestaltem epistémica en el campo de la
Gestalt-terapia brasileña, para que se produzca un efecto en la relación de contacto necesaria para una
relación terapéutica honesta y verdadera comprometida con la realidad que el campo ofrece a la vida
de los negros a través de diferentes formas de racismo?
Palabras clave: racismo, psicología africana, terapia Gestalt.
SEÇÃO 3
TRANSGRESSÕES GESTÁLTICAS: DESAFIANDO AS NORMAS DE GÊNERO E
SEXUALIDADE
Gestalt Transgressions: Challenging the gender and sexuality norms
Transgresiones Gestalt: Cuestionando las normas de género y sexualidad
14 335
PARA QUEM ME ABRO NA CLÍNICA GESTÁLTICA? UM ENCONTRO COM CORPOS
LGBTQIAP+
Paulo Barros

RESUMO
Embora existam inúmeros textos na Gestalt-terapia que falem sobre encontro, relação dialógica e
alteridade, poucas são as publicações sobre o encontro entre Gestalt-terapeutas e corpos dissidentes
das normas de gênero e sexualidade. Sendo assim, este trabalho tem como objetivo discutir sobre a
prática clínica desimplicada ou implicada que pode, respectivamente, contribuir com processos de
violência e manutenção das normas ou pelo contrário, com crescimento e resgate da espontaneidade.
Para tal, inúmeros convites ao longo do texto são feitos para que Gestalt-terapeutas possam redescobrir
seus gêneros e sexualidades, percebendo-se como mantenedores e/ou transgressores do regime da
diferença sexual.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, gênero, sexualidade, cisgeneridade, LGBTQIAP+.

Who do I open up to at the gestalt clinic? An encounter with LGBTQIA+ bodies


ABSTRACT
Even though there are numerous texts about encounter, dialogic relationship and alterity, few are the
texts that approach the encounter between Gestalt-therapies and nonconformist bodies of gender and
sexuality norms. That being said, this article aims to clarify issues regarding the clinic practice,
implicated or not implicated that can contribute to the violence and maintenance of the norms or to the
growth and recovery of spontaneity. Thereby, in the text we invite Gestalt-therapists to rediscover
genders and sexualities perceiving themselves of either keepers or transgressors of the sexual difference
regime.
Keywords: Gestalt therapy, gender, sexuality, cisgenderism, LGBTQIAP+.

¿Con quién me abro en la clínica gestalt? Un encuentro con cuerpos LGBTQIAP+


RESUMEN
Si bien existen numerosos textos en Gestalt-terapia que hablan de encuentro, relación dialógica y
alteridad, son pocas las publicaciones sobre el encuentro entre Gestalt-terapeutas y cuerpos que
disienten de las normas de género y sexualidad. Por lo tanto, este trabajo tiene como objetivo discutir
prácticas clínicas involucradas o no con cuestiones de género y sexualidad que pueden contribuir para
procesos de violencia y mantenimiento de normas o, por el contrario, para el crecimiento y rescate de la
espontaneidad. Para ello, a lo largo del texto se hacen numerosas invitaciones para que los terapeutas
Gestalt puedan redescubrir sus géneros y sexualidades, percibiéndose como mantenedores y/o
transgresores del régimen de la diferencia sexual.
Palabras clave: Terapia gestalt, género, sexualidad, cisgénero, LGBTQIAP+.
15 352
VIOLÊNCIA COMO FENÔMENO SOCIAL: TEORIA DO SELF, INSUBMISSÃO E ÉTICA
CLÍNICA
Leda Mendes Gimbo

RESUMO
Partindo da compreensão da violência como um fenômeno social, multifacetado e amplamente
utilizado e difundido, o presente texto se trata de um ensaio teórico com o objetivo de ampliar a
interlocução da Gestalt-terapia e teoria do self com temas e autoras contemporâneos, nesse caso em
relação às violências de gênero e suas reproduções na sociedade capitalista e patriarcal em que vivemos.
Nesse sentido, a insubmissão e a transgressão podem se erguer como formas de atualização do campo
como ajustamentos. Por fim, esse texto objetiva também possibilitar a reflexão acerca da prática clínica
e da ética gestáltica no acolhimento e pessoas vítimas de violências e das possibilidades de intervenção
quando, enquanto terapeutas, estamos diante de pessoas que reproduzem e produzem violências.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Violência; Gênero; Ética.

Violence as a social phenomenon: self theory, insubmission and clinical ethics


ABSTRACT
Violence as a social phenomenon, multifaceted, used and diffused, at this text, a theoric essay we
deserve expanding the dialogue between Gestalt Theory and theory of the self with contemporary
themes and authors, in this case in relation to gender, violence and its reproduction in the capitalista
and patriarcal Society in wich we live. In this sense inbubmission and transgression can be raised as
forms of updating the fiel das adjustments. Finnaly this text also aims to enable reflection on clinical
practice and Gestalt ethics in welcome people who are victims of violence and the possibilities of
intervention when, as therapists, we are faced with people who reproduce and produce violence.
Key Words: Gestalt Therapy; Violence; Gender; Ethic.

La violencia como fenómeno social: teoría del self, insumisión y ética clínica
RESUMEN
Partiendo de la comprénsion de la violencia como un fenómeno social, multifacético y de amplio uso y
difusion, el presente texto es um ensayo teórico com el objetivo de ampliar el diálogo entre la terapia
Gestalt y la teoria del self com temas y autores contemporâneos, em este caso em relación a la violência
de género e su reproducción em la sociedade capitalista e patriarcal em la que vivimos. Em este sentido
la insumisión y la transgresión pueden ser planteadas como formas de actualización como ajustes del
campo. Finamlemte, este texto pretende también possibilitar la reflexión sobre la práctica clínica y la
ética de la Gestalt em la acogida de personas víctimas de violência y las possibilidades de intervención
cuando, como terapeutas, nos encontramos ante personas que reproducen e producen violência.
Palabras Clave: Gestalt-terapia: Violencia; Genéro; Ética.
16 371
A IMPOSSIBILIDADE DE NEUTRALIDADE NA CLÍNICA GESTÁLTICA: POR UMA
GESTALT-TERAPIA CONTRANORMATIVA
Kahuana Leite

RESUMO
Esse ensaio teórico se desdobrou em uma proposta de interlocução para (re)pensar a clínica gestáltica
a partir de uma perspectiva contranormativa, resgatando a dimensão política imbricada na abordagem.
Ao longo do trabalho se discorreu sobre temas que perpassam a construção teórica da Gestalt-terapia,
como a noção de fronteira, campo e o fundo de criticidade ao sistema normativo presente em sua
construção. O convite ao diálogo transcorreu também por conceitos como cisheteronormatividade,
binarismo, branquitude, fenômenos estruturais que incidem violentamente sobre corpas dissidentes de
gênero e sexualidade, prioritariamente, as corpas negras. Nesse sentido, apresentou uma abertura a
questionamentos quanto à impossibilidade de uma clínica gestáltica neutra, considerando o próprio
fundo histórico-político da abordagem. Conclui considerando que o debate por uma clínica implicada
politicamente, nutrida por uma perspectiva crítica, se demonstra como um percurso que necessitará de
constantes questionamentos ao conhecido.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, cisheteronormatividade, branquitude, dissidência, política.

The impossibility of neutrality in the gestalt clinic: for a counternormative Gestalt-therapy


ABSTRACT
This theoretical essay unfolded in a proposal of dialogue to (re)think the gestalt clinic from a
counternormative perspective, rescuing the political dimension imbricated in the approach.
Throughout the work, themes that permeate the theoretical construction of Gestalt-therapy were
discussed, such as the notion of border, field and the background of criticality to the normative system
present in its construction. The invitation to dialogue also took place through concepts such as
cisheteronormativity, binarism, whiteness, structural phenomena that violently affect dissident bodies
of gender and sexuality, primarily black bodies. In this sense, it presented an opening to questions about
the impossibility of a neutral gestalt clinic, considering the historical-political background of the
approach. It concludes by considering that the debate for a politically involved clinic, nourished by a
critical perspective, is demonstrated as a path that will require constant questioning of the known.
Keywords: gestalt therapy, cisheteronormativity, whiteness, dissidence, politics.

La imposibilidad de la neutralidad en la clínica gestalt: por una terapia Gestalt contranormativa


RESUMEN
Este ensayo teórico se desplegó en una propuesta de interlocución para (re)pensar la clínica de la terapia
Gestalt desde una perspectiva contranormativa, rescatando la dimensión política imbricada en el
enfoque. A lo largo de este trabajo se discuten temas que permean la construcción teórica de la Gestalt-
terapia, como la noción de frontera, campo y el trasfondo crítico del sistema normativo presente en su
construcción. La invitación al diálogo también pasó por conceptos como la cisheteronormatividad, el
binarismo, la blancura, fenómenos estructurales que afectan violentamente a los cuerpos disidentes de
género y sexualidad, principalmente a los cuerpos negros. En este sentido, presentó una apertura para
cuestionar la imposibilidad de una clínica gestáltica neutral, teniendo en cuenta los antecedentes
histórico-políticos del enfoque. Concluye considerando que el debate por una clínica políticamente
implicada, alimentada por una perspectiva crítica, se muestra como un camino que necesitará un
constante cuestionamiento de lo conocido.
Palabras clave: Terapia Gestalt; cisheteronormatividad; blancura; disidencia; política.
17 390
GESTALT-TERAPIA E TEORIA QUEER: APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS
Clarissa Santiago Pinto

RESUMO
Essa construção teórica partiu do entendimento de que a Psicologia e a Gestalt-terapia foram
capturadas por lógicas e práticas individualizantes e cisheteronormativas que, em muitos níveis,
funcionam de modo a homogeneizar as pessoas, cumprir prescrições sociais e perpetuar violências.
Aqui, a proposta foi a de construir caminhos iniciais para uma aproximação entre preceitos da Gestalt-
terapia e da Teoria Queer que pudessem questionar aquilo que é pré-estabelecido por normativas
estruturais de gênero, favorecendo compreensões mais críticas e oferecendo novos contornos para a
prática clínica. Para isso, abordou-se a perspectiva queer enquanto propositora do desconhecimento, do
estranhamento e desestabilização de pressupostos rígidos, bem como uma perspectiva sociopolítica da
Gestalt-terapia em sua origem e em alguns de seus conceitos. Por fim, apontou-se aos Gestalt-
terapeutas a urgência de honrarem a ética gestáltica de acolhimento à diferença e abertura ao encontro
na fronteira, reconhecendo-se como parte das estruturas sociais e implicando-se em um papel
contrahegemônico.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, teoria queer, gênero, cisheteronormatividade.

Gestalt-therapy and Queer Theory: possible connections


ABSTRACT
This theoretical construction started from the understanding that Psychology and Gestalt-therapy were
captured by individualizing and cisheteronormative logics and practices that, on many levels, work in
order to homogenize people, fulfill social prescriptions and perpetuate violence. Here, the purpose was
to build initial paths for an approximation between precepts of Gestalt-therapy and Queer Theory that
could question what is pre-established by structural norms of gender, favoring more critical
understandings and offering new contours for clinical practice. The queer perspective was approached
as a proponent of estrangement and destabilization of rigid assumptions, as well as a sociopolitical
perspective of Gestalt-therapy in its origin and in some of its concepts. Finally, the urgency of honoring
the Gestalt ethics of welcoming difference was pointed out to the Gestalt-therapists, showing the
importance of self-recognizing as part of the social structures and self-implicating in a counter-
hegemonic role.
Keywords: gestalt-therapy, queer theory, gender, cisheteronormativity.

Terapia Gestalt y Teoría Queer: posibles aproximaciones


RESUMEN
Esta construcción teórica partió de la comprensión de que la Psicología y la Gestalt-terapia fueron
capturadas por lógicas y prácticas individualizantes y cisheteronormativas que, en muchos niveles,
funcionan para homogeneizar a las personas, cumplir prescripciones sociales y perpetuar la violencia.
Aquí, la propuesta fue construir caminos iniciales para una aproximación entre los preceptos de la
Gestalt-terapia y la Teoría Queer que pudieran cuestionar lo preestablecido por las normas estructurales
de género, favoreciendo comprensiones más críticas y ofreciendo nuevos contornos para la práctica
clínica. Se abordó la perspectiva queer como proponente del desconocimiento, el extrañamiento y la
desestabilización de supuestos rígidos, así como una perspectiva sociopolítica de la Gestalt-terapia en
su origen y en algunos de sus conceptos. Finalmente, se señaló a los Gestalt-terapeutas la urgencia de
honrar la ética Gestalt de acoger la diferencia y apertura al encuentro en la frontera, reconociéndose
como parte de las estructuras sociales e implicándose en un rol contrahegemónico.
Palabras clave: terapia gestalt, teoría queer, género, cisheteronormatividad.
18 403
COM QUANTOS INTROJETOS SE CONSTROEM EXISTÊNCIAS DISSIDENTES?
Camila Bugni Salerno

RESUMO
A proposta deste relato de experiência é discutir, a partir de recortes de atendimentos clínicos realizados
com pessoas dissidentes de gênero e sexualidade, sobre como as introjeções de regras, normas, crenças
e leis, como a cisheteronormatividade e o sistema de binarismos, se expressam nas existências dessas
pessoas como imperativos de lugares sociais e produzem sofrimento; além de apontar alguns caminhos
e pistas sobre como o sentimento de fracasso e de sermos um erro de existência podem ser
transformados em potência e sobre o papel da Gestalt-terapia e de Gestalt-terapeutas para uma ética
da alteridade. Abordo o tema recorrendo à Gestalt-terapia como principal referencial teórico e também
às discussões acerca de relações de gênero e sexualidade.
Palavras-chave: introjeção, psicoterapia, gênero, sexualidade, Gestalt-terapia.

With how many introjects are dissident existences built?


ABSTRACT
The purpose of this experience report is to discuss, based on clippings of clinical consultations carried out
with dissidents of gender and sexuality, how the introjections of rules, norms, beliefs, and laws, such as
cisheteronormativity and the binary system, are expressed in the existences of these people as imperatives
of social places and produce suffering; in addition to pointing out some paths and clues about how the
feeling of failure and of being an existence error can be transformed into potency and about the role of
Gestalt-therapy and Gestalt-therapists for ethics of alterity. I approach the theme using Gestalt therapy as
the main theoretical reference and also the discussions about gender relations and sexuality.
Keywords: introjection, psychotherapy, gender, sexuality, gestalt therapy.

¿Con cuántos introyectos se construyen existencias disidentes?


RESUMEN
Este relato de experiencia tiene como objetivo discutir, a partir de recortes de consultas clínicas
realizadas con disidentes de género y sexualidad, sobre cómo las introyecciones de reglas, normas,
creencias y leyes, como la cisheteronormatividad y el sistema de binarismos, se expresan en las
existencias de estas personas como imperativas de los lugares sociales y productoras de sufrimiento;
además de señalar algunos caminos y pistas sobre cómo el sentimiento de fracaso y de ser error de
existencia puede transformarse en potencia y sobre el papel de la Gestalt-terapia y de los Gestalt-
terapeutas para una ética de la alteridad. Abordé el tema utilizando la terapia Gestalt como referencia
teórica principal y también las discusiones sobre las relaciones de género y la sexualidad.
Palabras clave: introyección, género, sexualidad, Gestalt-terapia.
19 427
GESTALT-TERAPIA E GÊNERO: PERSPECTIVAS EM RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE
PODER
Simone Villas Bôas Saraiva

RESUMO
Ser Gestalt-terapeuta significa atuar na prática gestáltica cotidianamente: buscar o crescimento na
fronteira através do contato com o que é novo. No entanto, nem sempre é o novo o que encontro. Muito
do contato de um organismo com um ambiente normatizador é sobre como se deve ser ao invés da
possibilidade de ser. Este texto é um compromisso para revelar algumas possibilidades de como, apesar
da atitude fenomenológica-existencial, a psicoterapeuta arrisca-se a (re)produzir essencialismos
supostamente científicos. Para tal, é proposta a articulação da Gestalt-terapia, enquanto teoria das
relações, com outros conhecimentos, principalmente aqueles que questionam um modo eurocêntrico
e normativo de fazer psicoterapia.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; gênero; poder.

Gestalt therapy and gender: perspectives on asymmetrical power relations


ABSTRACT
Being a Gestalt therapist means acting the Gestalt practice daily: seeking growth on the frontier through
contact with what is new. However, new is not always what I find. Much of an organism's contact with a
standardizing environment is about how it ought to be rather than the possibility of being. This text is a
compromise to reveal some possibilities of how, despite the phenomenological-existential attitude, the
psychotherapist risks (re)producing supposedly scientific essentialisms. To this end, it is proposed the
articulation of Gestalt therapy, as a theory of relationships, with other knowledge, especially those that
question a Eurocentric and standardizing way of doing psychotherapy.
Keywords: Gestalt therapy; gender; power.

Terapia gestalt y género: perspectivas sobre las relaciones asimétricas de poder


RESUMEN
Ser terapeuta gestáltico significa actuar en la práctica gestáltica a diario: buscar el crecimiento en la
frontera a través del contacto con lo nuevo. Sin embargo, no siempre es lo nuevo lo que encuentro. Gran
parte del contacto de un organismo con un entorno normativo tiene que ver con cómo se debe ser y no
con la posibilidad de ser. Este texto es una apuesta por desvelar algunas posibilidades de cómo, a pesar
de la actitud fenomenológico-existencial, el psicoterapeuta se arriesga a (re)producir esencialismos
supuestamente científicos. Para ello, se propone la articulación de la Gestalt-terapia, como teoría de las
relaciones, con otros saberes, especialmente aquellos que cuestionan una forma eurocéntrica y
normativa de hacer psicoterapia.
Palabras clave: Terapia Gestalt; género; poder.
20 448
RE-DES-COBRIR (OS PÉS) E INVENTAR OUTROS CAMINHOS
Leonardo Brandão Delvalle Regis

RESUMO
O presente ensaio poético manifesta-se como uma forma de praticar o mundo, ante as colonialidades
do saber. Ao evidenciar as categorias imbricadas de raça-gênero-sexo busca-se apresentar outras
epistemologias não assimiláveis ou despotencializadas pela norma. A heterocisnorma é um sistema
colonial que inventa a binaridade de gênero, o masculino, o feminino, classificações raciais e a evidente
necessidade de estabelecer um cistema hierárquico entre raças. A escola, a educação formal, torna-se
lugar que reproduz e reafirma a norma, coagindo, discrimando saberes distintos daqueles reproduzíveis
e esperados dentro deste contexto, dessa instituição. O chamado poético explicitado neste texto é a um
corpo sensível, onde integre outras inteligências. Um convite subversivo à institucionalização do sentir
e saber pela lógica da colonialidade e do patriarcado e, é este também o convite que a Gestalt-terapia
realiza, em minha percepção, desnaturalizar a percepção, romper com a alienação corporal,
restabelecendo um fluir. Uma busca em saber onde mora o afeto cosmoperceptivo nos processos de
formação em Gestalt-terapia.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, colonialidades, heterocisnorma, ancestralidade, encantamento.

Rediscovering (the feet) and inventing other paths


ABSTRACT
This poetic essay manifests itself as a way of practicing the world, in the face of the colonialities of
knowledge. By evidencing the imbricated categories of race-gender-sex, it seeks to present other
epistemologies that cannot be assimilated or depowered by the norm. The heteronormativity and
cisnormativity are colonial systems that invents gender binarity, masculinity, femininity, racial
classifications, and the evident need to establish a hierarchical system between races. The school, formal
education, becomes a place that reproduces and reaffirms the norm, coercing and discriminating
against knowledge that is different from that which is reproducible and expected within this context,
this institution. The poetic call made explicit in this text is for a sensitive body, where other intelligences
are integrated. A subversive invitation to the institutionalization of feeling and knowing by the logic of
coloniality and patriarchy, and this is also the invitation in my perception, that Gestalt-therapy makes to
denaturalize perception, to break with corporal alienation, reestablishing a flow. A search to know where
the cosmoperceptive affection lives in the processes of Gestalt-therapy training.
Keywords: Gestalt-therapy, colonialities, heterocisnorm, ancestry, enchantment.

Redescubrir (los pies) e inventar otros caminos


RESUMEN
El presente ensayo poético se manifiesta como una forma de practicar el mundo, ante las colonialidades
del conocimiento. Al destacar las categorías imbricadas de raza-género-sexo, pretende presentar otras
epistemologías que no pueden ser asimiladas o despotenciadas por la norma. La heterocisnorma es un
cistema colonial que inventa la binaridad de género, la masculinidad, la feminidad, las clasificaciones
raciales y la evidente necesidad de establecer un sistema jerárquico entre las razas. La escuela, la
educación formal, se convierte en un lugar que reproduce y reafirma la norma, coaccionando y
discriminando los saberes diferentes a los que se pueden reproducir y se esperan dentro de este
contexto, dentro de esta institución. La llamada poética que se hace explícita en este texto es a un
cuerpo sensible, donde se integran otras inteligencias. Una invitación subversiva a la institucionalización
del sentir y el conocer por la lógica de la colonialidad y el patriarcado, y esta es también la invitación que
hace la Terapia Gestalt, en mi percepción, a desnaturalizar la percepción, a romper con la alienación
corporal, restableciendo un flujo. Una búsqueda para saber dónde vive el afecto cosmoperceptivo en
los procesos de formación de la Terapia Gestalt.
Palabras-claves: Terapia Gestalt, colonialidad, heterocisnorma, ancestrales, encantamiento.
21 460
PROCESSOS DE LUTO E DE SUICÍDIO NAS FRONTEIRAS DO GÊNERO E DA
SEXUALIDADE
Gabriel Fernandes Rodrigues

RESUMO
Este ensaio busca elaborar uma abordagem complementar às perspectivas que constroem o luto e o
suicídio como experiencia individual e circunscrita a vida privada do sujeito, ao passo que denuncia o
atual reducionismo de um fenômeno que é descrito como multifatorial e multicausal, porém
extensivamente reduzido ao campo da saúde mental. A partir de uma reflexão sobre os processos de
luto e de suicídio de pessoas sexo-gênero diversas, com ênfase na população trans e travesti, o ensaio
objetiva fornecer, à luz da Gestalt-terapia, uma matriz de compreensão ético-política do suicídio.
Partimos do entendimento de que a subjetivação e o sofrimento psíquico são atravessados por
processos políticos articulados em diferentes relações de poder e de saber. Nesse sentido, até mesmo
aqueles carregados de individualidade, como a decisão de retirar-se da vida, podem ser pensados a
partir de uma perspectiva de campo, que leve em consideração os aspectos psicossociais das relações
de saber-poder.
Palavras-chave: suicídio, luto, Gestalt-terapia, transgênero.

Grief and Suicide Processes on the Borders of Gender and Sexuality


ABSTRACT
This essay seeks to develop a complementary approach to the perspectives that construct grief and
suicide as an individual experience and circumscribed to the private life of the subject, while denouncing
the current reductionism of a phenomenon that is described as multifactorial and multicausal, but
extensively reduced to the field of mental health. From a reflection on the mourning and suicide
processes of sex-gender diverse people, with emphasis on the transgender and transvestite population,
the essay aims to provide, in the light of Gestalt-therapy, a matrix of ethical-political understanding of
suicide. We start from the understanding that subjectivation and psychological suffering are crossed by
political processes articulated in different power and knowledge relations. In this sense, even those
loaded with individuality, such as the decision to withdraw from life, can be thought from a field
perspective, which takes into account the psychosocial aspects of knowledge-power relations.
Keywords: suicide, mourning, gestalt-therapy, transgender.

Procesos de luto y suicidio en las fronteras del género y la sexualidad


RESUMEN
Este ensayo pretende elaborar un enfoque complementario a las perspectivas que construyen el duelo
y el suicidio como una experiencia individual y circunscrita a la vida privada del sujeto, al tiempo que
denuncia el reduccionismo actual de un fenómeno que se describe como multifactorial y multicausal,
pero que se reduce ampliamente al ámbito de la salud mental. A partir de una reflexión sobre los
procesos de duelo y suicidio de las personas de la diversidad sexual, con énfasis en la población
transgénero y travesti, el ensayo pretende aportar, a la luz de la Gestalt-terapia, una matriz de
comprensión ético-política del suicidio. Partimos del entendimiento de que la subjetivación y el
sufrimiento psicológico están atravesados por procesos políticos articulados en diferentes relaciones de
poder y conocimiento. En este sentido, incluso aquellas cargadas de individualidad, como la decisión de
retirarse de la vida, pueden ser pensadas desde una perspectiva de campo, que tenga en cuenta los
aspectos psicosociales de las relaciones de conocimiento-poder.
Palabras clave: suicidio, duelo, terapia gestáltica, transgénero.
22 481
ARTETERAPIA GESTÁLTICA COMO CO-CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE
ACOLHIMENTO: RELATO DE EXPERIÊNCIA NO PROGRAMA TRANSCIDADANIA (SP)
Eliane Capel

RESUMO
Atendimento arteterapêutico online a uma senhora transgênera articulado à pesquisa do contexto
social foram os fios condutores deste relato, que buscou dar visibilidade à realidade vivida pela
população trans em situação de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo, no Projeto
Transcidadania ao longo de 2020. Buscou-se refletir sobre a potência da atividade criativa e artística, por
meio da arteterapia gestáltica, na promoção da saúde mental e do empoderamento com o objetivo de
oferecer atividades arteterapêuticas online, para promover bem-estar emocional. A metodologia
empregada foi a fenomenológica existencial, que fundamenta a abordagem da Arteterapia Gestáltica.
Os resultados atingidos foram de uma melhoria na autoestima e autopercepção da cliente, que além de
evoluir em seus trabalhos artísticos, renovou seus sonhos, objetivos de vida e realizações. Concluiu-se
que a arteterapia gestáltica foi um recurso valioso como uma linguagem não verbal que merece ser
analisada com a população transgênera, entre outras em situação de vulnerabilidade social.
Palavras-chave: travestis; transexuais; arteterapia; transgenêneras.

Gestalt art therapy as co-construction of welcoming spaces: experience report in the Program
“Transcidadania” (SP-BRAZIL)
ABSTRACT
Therapeutic art online service to a transgender lady, articulated with research in the social context, were
the guiding threads of this report, which sought to give visibility to the reality experienced by the trans
population in a situation of social vulnerability in the city of São Paulo, in the Transcidadania Project
throughout 2020. We sought to reflect on the power of creative and artistic activity, through gestalt art
therapy, in promoting mental health and empowerment with the aim of offering online therapeutic art
activities to promote emotional well-being. The methodology used was existential phenomenology,
which underlies the approach of Gestalt Art Therapy. The results achieved were an improvement in the
client's self-esteem and self-perception, who in addition to evolving in her artistic works, renewed her
dreams, life goals and achievements. It was concluded that gestalt art therapy was a valuable resource
as a non-verbal language that deserves to be analyzed with the transgender population, among others
in situations of social vulnerability.
Keywords: transvestites; transsexuals; art therapy; transgender people.

Arteterapia gestalt como co-construcción de espacios acogedores: relato de experiencia en el


Programa “Transcidadania” (SP-BRASIL)
RESUMEN
La atención arte terapéutica en línea a una mujer transgénero articulada a la investigación del contexto
social fueron los hilos conductores de este informe, que buscó dar visibilidad a la realidad vivida por la
población trans en situación de vulnerabilidad social en la ciudad de São Paulo, en el Proyecto
Transcidadania a lo largo de 2020. Buscamos reflexionar sobre el poder de la actividad creativa y artística,
a través de la arteterapia gestáltica, para promover la salud mental y el empoderamiento con el objetivo
de ofrecer actividades de arteterapia en línea para promover el bienestar emocional. La metodología
empleada fue la fenomenológica existencial, en la que se basa el enfoque de la arteterapia Gestalt. Los
resultados obtenidos fueron una mejora en la autoestima y la autopercepción de la clienta, que además
de evolucionar en su trabajo artístico, renovó sus sueños, objetivos vitales y logros. Se concluyó que la
arteterapia gestáltica era un recurso valioso como lenguaje no verbal que merecía ser analizado con la
población transgénero, entre otros en situación de vulnerabilidad social.
Palabras clave: travestis; transexuales; arteterapia; transgenitales.
23 506
JOVENS LGBTQIA+ E SEUS FAMILIARES: FACILITANDO A COMUNICAÇÃO SOBRE
ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
Sâmia Silva Gomes

RESUMO
Propõe-se, neste trabalho, lançar algumas discussões acerca da comunicação entre o jovem e seus
familiares sobre orientação sexual ou identidade de gênero. O tema é abordado tomando como
referencial teórico a Gestalt-terapia e recorrendo a experiências da autora com sessões familiares em
processos de terapia individual dos jovens LGBTQIA+ ou em processos de terapia familiar. A facilitação
da comunicação familiar é considerada como potente recurso de cuidado, considerando que muitas
famílias ainda estão com suas fronteiras de valores enrijecidas pela cis-heteronorma, e precisam de
ajuda para revê-las e ampliá-las. Fundamenta-se no paradigma de campo relacional e propõem-se
intervenções que considerem todos os atores familiares como partes igualmente pertinentes,
conferindo espaço de encontro onde possam emergir a aceitação e integração das diferenças. Denuncia
a necessidade da revisão de valores por parte dos psicoterapeutas a fim de que possam estar
comprometidos com uma clínica política e transformadora.
Palavras-Chave: Identidade de gênero, Orientação sexual, Família, Gestalt-terapia.

LGBTQIA+ youth and their families: facilitating communication about sexual orientation and gender
identity
ABSTRACT
It is proposed, in this work, to launch some discussions about communication between young people
and their families about sexual orientation or gender identity. The theme is approached taking Gestalt
therapy as a theoretical framework and using the author's experiences with family sessions in individual
therapy processes for LGBTQIA+ young people or in family therapy processes. The facilitation of family
communication is considered a powerful care resource, considering that many families still have their
borders of values hardened by the cis-heteronorm, and they need help to review and expand them. It is
based on the relational field paradigm and proposes interventions that consider all family actors as
equally relevant parts, providing a meeting space where the acceptance and integration of diferences
can emerge. It denounces the meed for psychotherapists to review values so that they can be committed
to a political and transformative clinic.
Keywords: Gender identity, Sexual orientation, Family, Gestalt therapy.

Jóvenes LGBTQIA+ y sus familias: facilitando la comunicación sobre orientación sexual e identidad
de género
RESUMEN
Se propone, en este trabajo, lanzar algunas discusiones sobre la comunicación entre los jóvenes y sus
familias sobre la orientación sexual o la identidad de género. El tema se aborda tomando como marco
teórico la terapia Gestalt y utilizando las experiencias de la autora con sesiones familiares en procesos de
terapia individual para jóvenes LGBTQIA+ o en procesos de terapia familiar. La facilitación de la
comunicación familiar es considerada un poderoso recurso de cuidado, considerando que muchas familias
aún tienen sus fronteras de valores endurecidas por la cis-heteronorma, y necesitan ayuda para revisarlas y
ampliarlas. Se parte del paradigma del campo relacional y se proponen intervenciones que consideren a
todos los actores familiares como partes igualmente relevantes, brindando un espacio de encuentro donde
pueda surgir la aceptación e integración de las diferencias. Denuncia la necesidad de que los
psicoterapeutas revisen valores para que puedan comprometerse con una clínica política y transformadora.
Palabras clave: Identidad de género, Orientación sexual, Familia, Terapia gestalt.
24 531
A ABORDAGEM GESTÁLTICA COM GAYS EM PROCESSO DE MORTE PELA AIDS:
EXPERIÊNCIAS EM CLÍNICA AMPLIADA
Gustavo Alves Pereira de Assis

RESUMO
Esse relato de experiência tematiza o atendimento em Gestalt-terapia, no contexto de clínica ampliada,
com homens que se declaravam como gays, em processo de morte pela Aids. Sendo assim, objetiva
descrever as experiências clínicas de um Gestalt-terapeuta gay com esses pacientes, discutindo o saber-
fazer na abordagem gestáltica, com enfoque na perspectiva dialógica. O estudo deslinda-se a partir de
vinhetas clínicas para refletir sobre as interlocuções entre o processo de morte pela Aids e a orientação
homossexual em homens, considerando as peculiaridades desse campo. Conclui-se que as atitudes
dialógicas do terapeuta são figurais no processo de atendimento na abordagem gestáltica e
fundamentais para a ampliação da awareness no processo de morte desse público. A clínica gestáltica
configurou-se, portanto, como uma clínica do encontro, ética e política.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, HIV/Aids, sexualidade, terminalidade.

The gestalt approach with gay men in the process of dying from AIDS: experiences in an expanded
clinic
ABSTRACT
This experience report thematizes care in gestalt therapy, in the context of an expanded clinic, with men
who declared themselves as gay and in the process of dying from AIDS. Therefore, it aims to describe
the clinical experiences of a gay gestalt therapist with these patients, discussing the know-how in the
gestalt approach by focusing on the dialogic perspective. The study is based on clinical vignettes to
reflect on the interlocutions between the process of death from AIDS and homosexual orientation in
men, considering the peculiarities of this field. We conclude that the therapist's dialogic attitudes are
figural in the service process in the gestalt approach and fundamental for the expansion of awareness
in the death process of this public. Gestalt clinic was configured, therefore, as a clinic of encounter,
ethics, and politics.
Keywords: Gestalt-therapy, HIV/AIDS, sexuality, terminality.

El abordaje gestalt con hombres gays en proceso de morir por SIDA: experiencias en una clínica
ampliada
RESUMEN
Este relato de experiencia tematiza el cuidado en terapia gestáltica, en el contexto de una clínica
ampliada, con hombres que se declararon homosexuales, en proceso de muerte por SIDA. Siendo así,
tiene como objetivo describir las experiencias clínicas de un terapeuta gestáltico homosexual (gay) con
estos pacientes, debatiendo el saber hacer en el abordaje gestáltico, con foco en la perspectiva
dialógica. El estudio se desenreda en viñetas clínicas para reflejar sobre las interlocuciones entre el
proceso de muerte por SIDA y la orientación homosexual en hombres, considerando las peculiaridades
de este campo. Se concluye que las actitudes dialógicas del terapeuta son figurativas en el proceso de
atención en el abordaje gestáltico y fundamentales para la ampliación de lo darse cuenta en el proceso
de muerte de este público. La clínica gestáltica se configuró, así pues, como una clínica del encuentro,
de la ética y de la política.
Palabras clave: Terapia gestáltica, VIH/Sida, sexualidad, terminalidad.
25 544
A CLÍNICA GESTÁLTICA COMO CAMPO QUEER: A ALTERIDADE COMO CAMINHO
Stephanie Boechat

RESUMO
É perceptível que ao longo da história a população LGBTQIAP+ é capturada pela segregação e
marginalização imposta pelo cis-tema heteronormativo, justificadas pelo estranhamento e aversão
deste às formas experienciais da população queer. Diante disso, a clínica psicológica se coloca como um
espaço de acolhimento às alteridades, ainda que não seja uma prática universal. Nesse viés, a Gestalt-
terapia, será abordada como ferramenta para o exercício de uma clínica do estranhamento, a fim de
promover uma psicologia clínica crítica e diversificada. Em vista disso, o objetivo deste trabalho é tecer
questionamentos e hipóteses acerca da violência simbólica sofrida pela comunidade LGBTQIAP+ nos
espaços da clínica psi a partir de um referencial bibliográfico, contribuindo para o desenvolvimento de
novas perspectivas diante do fazer clínico.
Palavras-chave: clínica; Gestalt-terapia; LGBTQIAP+; alteridade; sofrimento.

The Gestalt Clinic as a queer field: alterity as a path


ABSTRACT
It is noticeable that throughout history the LGBTQIAP+ population has suffered and still suffers from the
heteronormative cis-tem segregation, justified by the estrangement and aversion towards the
experiential forms of the queer population. In view of this, the psychological clinic stands as a space for
welcoming otherness, even if it is not a universal practice. In this bias, Gestalt-therapy will be approached
as a tool for the exercise of a clinic of estrangement, in order to promote a critical and diversified clinical
psychology. In view of this, the objective of this work is to weave questions and hypotheses about the
symbolic violence suffered by the LGBTQIAP+ community in the spaces of the psi clinic from a
bibliographic reference, contributing to the development of new perspectives on the clinical practice.
Keywords: clinic; Gestalt-therapy; LGBTQIAP+; otherness; suffering.

La Clínica Gestalt como campo queer: la alteridad como camino


RESUMEN
Es notorio que a lo largo de la historia la población LGBTQIAP+ ha sufrido y sufre frente a la segregación
y marginación impuesta por el cis-tema heteronormativo, justificado por el extrañamiento y aversión de
este a las formas experienciales de la población queer. Frente a esto, la clínica psicológica se erige como
un espacio de acogida de las alteridades, aunque no sea una práctica universal. En este sesgo, se
abordará la Terapia-Gestalt como herramienta para el ejercicio de una clínica del extrañamiento, con el
fin de promover una psicología clínica crítica y diversificada. Ante ello, el objetivo de este trabajo es tejer
interrogantes e hipótesis sobre la violencia simbólica sufrida por la comunidad LGBTQIAP+ en los
espacios de la clínica psi a partir de una referencia bibliográfica, contribuyendo al desarrollo de nuevas
perspectivas sobre la práctica clínica.
Palabras clave: clínica; terapia-Gestalt; LGBTQIAP+; alteridade; sufrimiento.
26 561
NOVAS FORMAS, NOVAS POSSIBILIDADES, NOVAS PONTES: DIÁLOGOS ENTRE
CONTRASSEXUALIDADE E GESTALT-TERAPIA
Zay Nogueira de Sales
Marcos Vinicius Monteiro Barbalho
Paula Marília Nascimento Moura
Ana Júlia Chaves Melo
Lorena Schalken de Andrade

RESUMO
Este ensaio trata-se de um diálogo entre O Manifesto Contrassexual, de Paul B. Preciado e a Gestalt-
terapia, com o objetivo de ir além da norma e propor novos saberes acerca das questões de gênero e
sexualidade. A metodologia deu-se pelos encontros das autoras de modo online, para compartilhar
relatos de experiências e reflexões, além da criação de uma síntese da obra escolhida. Com este trabalho
é possível, assim, fazer reflexões acerca do papel ético da Gestalt-terapeuta, na relação, diante do
estranhamento que os questionamentos acerca de gênero e sexualidade podem causar na pessoa que
busca atendimento.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Contrassexualidade; gênero.

New forms, new possibilities, new bridges: dialogues between Contrasexuality and Gestalt-therapy
ABSTRACT
This essay is a dialogue between the Contersexual Manifesto, by Paul B. Preciado and Gestalt-Therapy,
with the aim of going beyond the norm and proposing new knowledge about gender and sexuality. The
methodology happened as the authors met online, to share experiences and reflections, in addition to
creating a synthesis of the chosen book. With this work, it is possible, therefore, to reflect on the ethical
role of the gestalt-therapist, in the relationship, in the face of the weirdness that the questions about
gender and sexuality can cause in the person who seeks care.
Keywords: Gestalt-therapy; Contersexuality; gender.

Nuevas formas, nuevas posibilidades, nuevos puentes: diálogos entre Contrasexualidad y Terapia Gestalt
RESUMEN
Este ensayo es un diálogo entre El Manifiesto Contrasexual, de Paul B. Preciado y la Gestaloterapia, con
el objetivo de ir más allá de la norma y proponer nuevos conocimientos sobre cuestiones de género y
sexualidad. La metodología estuvo dada por las reuniones en línea de los autores, para compartir
informes de experiencias y reflexiones, además de la creación de una síntesis del trabajo elegido. Con
este trabajo es posible hacer reflexiones sobre el papel ético del terapeuta Gestalt, en la relación, frente
a la extrañeza que las cuestiones de género y sexualidad pueden causar en la persona que busca ayuda.
Palabras clave: Terapia Gestalt; contrasexualidad; género.
SEÇÃO 4
SEMINÁRIO “DESCONSTRUINDO FRONTEIRAS”
Seminar “Deconstructing Borders”
Seminario “Deconstruyendo Fronteras”

27 587
CISGENERIDADE E GESTALT-TERAPIA
Cisgenderness and Gestalt Therapy
Cisgeneridad y Terapia Gestalt

Antonia Natalia Duarte de Moraes


Letícia Carolina Nascimento

28 612
NÃO-MONOGAMIA
Non-monogamy
No monogamia

Thereza Cristina Santos


Raíssa Éris Grimm Cabral

29 638
FILOSOFIA AFRICANA
African Philosophy
Filosofía Africana

Rozangela da Piedade Leite


Wanderson Flor do Nascimento

30 671
BRANQUITUDE
Whiteness
Blancura

Priscila Elisabete da Silva


Mônica Alvim
SEÇÃO 5
TEXTOS DOS NÚCLEOS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GESTALT-TERAPIA E
ABORDAGEM GESTÁLTICA: NÚCLEO DE RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS E NÚCLEO
DE RELAÇÕES DE GÊNERO E DE DIVERSIDADE SEXUAL
Texts from the Groups of the Brazilian Association of Gestalt Therapy and Gestalt Approach:
Group of Ethnic Racial Relations and Group of Gender Relations and Sexual Diversity

Textos de los Núcleos de la Asociación Brasileña de Terapia Gestalt y Enfoque Gestalt:


Núcleo de Relaciones Étnico-Raciales y Núcleo de Relaciones de Género y Diversidad Sexual

31 727
O NÚCLEO DE RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS NA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GESTALT-
TERAPIA
The Group of Ethnic Racial Relations at the Brazilian Association of Gestalt-therapy
El Núcleo de Relaciones Étnico-Raciales de la Asociación Brasileña de Terapia Gestalt

Kênia Résiley M. da Conceição


Mônica Alvim
Paula da Silva Campos
Vivian Nunes Nogueira

32 735
NÚCLEO DE RELAÇÕES DE GÊNERO E DE DIVERSIDADE SEXUAL DA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE GESTALT-TERAPIA E ABORDAGEM GESTÁLTICA
The Group of Gender Relations and Sexual Diversity of the Brazilian Association of Gestalt Therapy
and Gestalt Approach
Núcleo de Relaciones de Género y Diversidad Sexual de la Asociación Brasileña de Terapia Gestalt y
Enfoque Gestalt

Elaine Maria Silva Moura


Marcela Fernandes Fulgêncio
Gabriel Fernandes Rodrigues
Paulo Barros
Silvia Oliveira de Alencar
Tatiana Campbell

ÍNDICE REMISSIVO 744

SOBRE OS AUTORES 749


APRESENTAÇÃO

Este livro nasceu dos trabalhos dos Núcleos Temáticos criados pela
Associação Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica (ABG)
no início da gestão 2021-2022 e se constitui no segundo volume da
Coleção Vozes em Letras organizada pela Associação.
Núcleos temáticos são espaços de reflexão e diálogos em torno de
questões teórico-metodológicas propostas para fortalecer discussões
presentes como fundo no campo vivencial contemporâneo. O objetivo
desse projeto foi de ampliar as possibilidades de atuação da Gestalt-
terapia no Brasil, considerando as dinâmicas territoriais e as
problemáticas estruturais de nossa sociedade, na busca de alcançar um
pensamento gestaltista teórico e prático que pudesse contribuir para a
construção de uma psicologia comprometida com a dimensão social e
política e com uma sociedade mais justa.
Dado que as estruturas sociais influenciam nossa experiência do
mundo, não apenas em casos isolados, mas de uma forma que é
profundamente constitutiva de quem somos e como damos sentido ao
mundo e aos outros, consideramos necessário desenvolver discussões
em torno de fundamentos, conceitos e recursos metodológicos que
permitam identificar estruturas sociais e históricas, analisar
criticamente seus modos de funcionamento e abrir novas possibilidades
de ação no campo da Gestalt-terapia. Tal como proposto por Lisa
Guenter, para o desenvolvimento de uma postura crítica é necessário
aprender sobre a experiência vivida de poder e opressão e o papel dessas
40 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

estruturas quase transcendentais na formação dessas experiências. A


postura crítica implica uma prática política, “uma luta pela libertação
de estruturas que privilegiam, naturalizam e normalizam certas
experiências do mundo enquanto marginaliza, patologiza e desacredita
outras”.
Compreendemos que essa luta pode se dar tanto na prática de
Gestalt-terapeutas em diversos contextos individuais e coletivos,
quanto mais diretamente no campo social, na contribuição para a
formulação de políticas e intervenção em contextos de opressão e
exclusão.
Inicialmente, foram formados dois núcleos em torno das temáticas
“relações de gênero e diversidade sexual e relações étnico-raciais”.
Durante a etapa de implementação, foi realizada uma live de lançamento
dos grupos temáticos, no dia 23 de abril de 2021. Fizemos chamadas para
a primeira reunião de cada grupo temático, com participação aberta a
interessadas(os)(es) em participar do projeto e, em seguida, começamos
as reuniões específicas de cada temática, no sentido de divulgar
às/aos/us interessadas(os)(es) a iniciativa e dar início ao processo de
fomento das mesmas. Foram promovidos também encontros e
discussões mais específicas por temáticas com convidadas(os)(es),
buscando construir um fundo de sustentação teórico e uma matriz
grupal que acolhesse a diversidade de perspectivas.
Foram definidas algumas premissas orientadoras do trabalho dos
núcleos temáticos, como seguem:

1. Esse é um trabalho de cunho formativo que deve se dar pautado pelo cuidado
e pelo respeito às diferentes perspectivas, sem perder de vista seu caráter
crítico. Desse modo, as ações e propostas deverão ter consenso com as
políticas da diretoria da ABG, responsável legal pela associação, cujos
Os Organizadores • 41

membros estarão comprometidos com seus próprios processos de atualização


acerca das temáticas;
2. As ações desenvolvidas serão orientadas pela noção de letramento, inspirada
na proposta da antropóloga afro-americana France Winddance Twine, que
formulou o conceito de “racial literacy”, traduzido no Brasil, pela pesquisadora
e psicóloga Lia Schucman. Lia traduziu o termo e promoveu discussões sobre
letramento racial. Este envolve um processo formativo que busca
desconstruir formas naturalizadas de pensar, sentir e agir orientadas por
privilégios historicamente concedidos às pessoas brancas. O letramento,
segundo Shucman, tem várias etapas, envolvendo um processo pessoal de
implicação com o problema e a habilidade de reconhecer códigos e práticas
sociais, além de se apropriar de uma nova gramática. Além das questões
raciais, compreendemos que esse princípio pode se estender para as questões
envolvendo relações de gênero e diversidade sexual;
3. Ainda que os núcleos sejam distintos, as pesquisas e discussões estarão
pautadas pela noção de interseccionalidade;
4. Os estudos teóricos buscarão sempre fazer um alinhamento entre os temas e
as bases teóricas da Gestalt-Terapia;
5. A ABG buscará investir recursos na produção de material bibliográfico por
meio de publicações voltadas para a comunidade gestáltica brasileira

Ao longo do ano de 2021 realizamos encontros regulares dos


núcleos de relações raciais e de gênero, criando espaços de
pertencimento e acolhimento, discutindo temas, levantando
bibliografia, trocando experiências e promovendo eventos.
O planejamento previa que os núcleos fossem coordenados,
inicialmente, por membros da diretoria da ABG, compondo uma
coordenação geral de implementação dos núcleos. Com o
desenvolvimento do processo de formação e consolidação dos núcleos,
pretendíamos identificar pessoas que poderiam ocupar, junto com um
membro da diretoria, a coordenação geral das atividades de cada núcleo
42 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

temático, assim como pessoas que pudessem ocupar papéis na parte


técnico científica, na comunicação e divulgação e na secretaria de cada
núcleo. O processo previa um desenvolvimento paulatino para que
pessoas fossem agregando-se nas atividades de coordenação, de um
modo que conjugasse a abertura à participação e à pluralidade e a
manutenção de um diálogo aberto entre o grupo e com a diretoria, o que
aconteceu, de fato.
Em 2022 os núcleos decidiram por ampliar seu escopo e foram
criadas coordenadorias envolvendo grupos de estudos, produções
teórico-científicas e produção e organização de conteúdos. Nesse
momento, percebemos que os núcleos temáticos já estavam
consolidados e que o objetivo de descentralizar a coordenação já estava
sendo alcançado. As atividades passaram, então, a ser planejadas
integralmente no âmbito da coordenação de cada núcleo formado por
diretores e membros da comunidade gestáltica que se propuseram a se
engajar mais ativamente.
Foram realizadas diversas atividades como lives, rodas de
conversa, divulgação massiva de informações e datas comemorativas
envolvendo os temas dos núcleos. Este livro foi pensado nesse contexto
e seu planejamento teve a participação de muitas pessoas. No primeiro
semestre deste ano, realizamos uma oficina de escrita "Escrever a
Gestalt-Terapia: Linguagem, (Des) formas e políticas da escrita", que
teve a participação de cerca de dezesseis pessoas desejosas de escrever
e foi com alegria que vemos muitas delas assumindo a autoria de
capítulos neste livro. O seminário “Desconstruindo Fronteiras” também
foi parte do planejamento deste livro, concebido com a dupla função de
oferecer um evento com debates interdisciplinares sobre temas
relevantes - como Cisgeneridade, Relações não-monogâmicas, Filosofia
Os Organizadores • 43

Africana e Branquitude - e produzir um material que compusesse este


livro. Foi lançado um edital de chamada de trabalhos amplamente
divulgado na comunidade gestáltica e os capítulos que compõem este
livro foram recebidos a partir deste edital, tendo passado por um
processo de avaliação não-identificada, realizada por pares.
Os vinte e seis capítulos aprovados no edital foram organizados em
três sessões. Na primeira delas, intitulada “Interfaces críticas: de que
modo gênero, raça e classe se fazem presentes no campo?”
contemplamos trabalhos que discutem as temáticas críticas sem colocar
o foco especificamente em uma delas, abordando aspectos históricos na
gênese das problemáticas estruturais e temas transversais que
permitem o aprofundamento de aspectos discutidos a partir da teoria
da Gestalt-terapia.
Na segunda seção, denominada “Decolonizar a Gestalt-terapia:
sobre a necessidade de uma prática antirracista”, estão os nove
trabalhos que se centraram na discussão de temáticas no campo das
relações raciais.
Na terceira seção, intitulada “Transgressões Gestálticas:
desafiando as normas de gênero e sexualidade”, estão contemplados
treze capítulos voltados para as discussões no campo das relações de
gênero e diversidade sexual.
Na quarta e última seção, que recebe o título do seminário
“Desconstruindo Fronteiras”, estão apresentados textos oriundos das
lives realizadas durante o seminário e re-elaboradas posteriormente
pelos palestrantes.
Ao longo desses dois anos fomos movidos por muitos sonhos,
desejos e ideais. Este livro nasce do desejo de oferecer às/aos/us Gestalt-
terapeutas brasileiras(os)(es) uma literatura que contemplasse
44 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

discussões que consideramos essenciais para que nossa abordagem


possa caminhar teórica e metodologicamente numa direção crítica que
nos permita ver, re-ver e atuar na superação das violências e opressões
exercidas sobre corpos e existências que se desviam das normatividades
compulsórias que regem a sociedade.
Estas quase setecentas e cinquenta páginas são a concretização de
uma parte desse importante projeto proposto pela ABG. E nos mostra
que a Associação não é apenas a diretoria, mas que é realmente
agregando pessoas e compondo coletivos que cumprimos nossa missão
e nos fazemos maiores. Agradecemos a todas, todos e todes que
estiveram conosco e nos fizeram acreditar ainda mais nas
possibilidades de transformação.

Associação Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica


Gestão 2021-2022
SEÇÃO 1
Section 1
Sección 1

INTERFACES CRÍTICAS: DE QUE MODO GÊNERO,


RAÇA E CLASSE SE FAZEM PRESENTES NO CAMPO?
Critical interfaces: how are gender, race and class present in the field?
Interfaces críticas: ¿cómo están presentes el género, la raza y la clase en el campo?
1
ELEMENTOS PARA PENSAR UMA GESTALT-TERAPIA
(REALMENTE) CRÍTICA E POLÍTICA
Elements for thinking about a (really) critical and political Gestalt-therapy
Elementos para pensar una Gestalt-terapia (realmente) crítica y política

Mônica Alvim

INTRODUÇÃO

A produção de sentidos e subjetividades é tema fundamental da


clínica, onde trabalhamos com o sentido, a crise de sentido e a
ressignificação da vida e da existência. Na perspectiva gestáltica, o
campo organismo/ambiente é o fundamento do contato e, além das
dimensões física e animal ou vital, as dimensões socioculturais,
econômicas, políticas são parte intrínseca desse campo de onde
emergimos como sujeitos singulares, com nossas formas de existir,
pensar, sentir e agir sendo forjadas na interação. A produção de
sentidos deve, assim, ser pensada como um fenômeno do campo,
perspectiva que descentra do sujeito a noção de subjetividade,
despsicologizando a psicologia.
Em nosso grupo de pesquisas 1, pensando a Gestalt-terapia como
uma clínica de situações contemporâneas, necessariamente
interdisciplinar, temos investigado as dimensões estruturais de gênero,
raça e classe e explorado a perspectiva gestáltica dialogada com a

1
Grupo de Pesquisas Quinta Coletiva, Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Fenomenologia e Clínica
de Situações Contemporâneas, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
48 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fenomenologia crítica e com outros campos de saberes críticos,


compreendendo estruturas sociais como padrões dominantes que
regulam e influenciam nossa experiência e como damos sentido ao
mundo, aos outros e a nós mesmos.
Partindo da compreensão da existência como uma trama entre as
dimensões estética-ética-política, onde a dimensão estética envolve a
dimensão corporal e sensível, a dimensão ética envolve a coexistência
com o outro em sua semelhança e diferença e a dimensão política
envolve a criação e transgressão de formas instituídas, neste trabalho
pretendo explorar um pouco mais a fundo a dimensão política dessa
trama triádica. Trazendo as funções do sistema self de contatos para
essa exploração e levantando alguns aspectos que considero
importantes para a Gestalt-terapia avançar na sua ação política,
abordaremos a questão do sujeito e a produção de subjetividades,
buscando ampliar o foco sobre a implicação incontestavel de forças do
mundo sobre esse processo. Consideramos tarefa da clínica interrogar
essas forças subjacentes ao campo, que considero, inspirada em
Merleau-Ponty, uma dimensão invisível do mundo que sustenta o
visível, ampliando a compreensão do sujeito para além de uma
dimensão psicológica e radicalizando a perspectiva de campo como
oposta ao psicologismo.

O POLÍTICO: DIÁLOGO E ESPAÇO PÚBLICO

A dimensão política é inseparável da dimensão ética e estética.


Como venho discutindo, é na experiência sensível, corpórea e irrefletida
- estética -, dada no diálogo com a diferença do outro - ética -, que se
instaura uma exigência de criação - política.
Mônica Alvim • 49

De modo amplo, pensamos a criação como transformação, trabalho


de reinvenção de si, do mundo, da cultura e da história que se faz no
espaço publico, no mundo com o outro. Nesse sentido, o tema do diálogo
é um primeiro aspecto que gostaria de abordar para pensar no político.
A noção grega de política era fundada no diálogo no espaço público,
da polis, em torno do bem comum, onde a justiça era concebida como
virtude ética pública, algo alcançado no diálogo entre os cidadãos. Para
os gregos, as assembleias da polis eram o lugar do debate, a arte do
convencimento em busca do bem comum. O filosofar aristotélico
aparece nos diálogos platônicos. A maiêutica envolvia uma ideia de
parto, de uma reflexão que fizesse nascer um sentido a partir do diálogo
na tensão. Franz Fanon nos oferece também uma perspectiva de África
quando afirma que “numa instituição africana, seja nas djemaas da
África do Norte ou nas reuniões da África Ocidental, a tradição
estabelece que os conflitos que surgem numa aldeia sejam debatidos em
público” (Fanon, 1968, p.36)
O diálogo implica movimento, descentramento, deslocamento.
Diálogo e dialética têm a mesma origem etimológica, ambos provindo
do verbo grego dialegein na voz média: dialegesthai, onde o sujeito é
tanto agente quanto paciente. Na voz média, a ação do verbo assinala
um experienciar-se mútuo concreto (Castro, 2013). Desde Heraclito, a
dialética é verdade como aletheia, o que se concretiza no diálogo.
Jaques Rancière (2012) propõe a noção de dissenso, opondo-se à
ideia de consenso e realçando um tipo de experiência estética ou
sensível organizada na não-conformação, o que contribui com a
perspectiva de uma dimensão política da experiência, realçando a
tensão no diálogo.
50 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O dissenso está implicado em uma organização sensível onde não


há regime único de interpretação dos dados que imponha a todos a sua
evidência, não há representação simbólica universalizante. Assim, os
vários regimes de percepção produzem desvios e reconfiguram as
situações gerando forças de formação de novas formas, exigência de
trabalho de criação (Alvim, 2022).
Ao contrário disso, se pensarmos nas políticas de subjetivação
homogeneizadoras e normativas, na ordem econômico, política e social
excludente que separa e marca de modo fixo lugares, posições, papéis,
podemos pensar em modos de estagnação, repetição, como força
conservadora que age a partir de uma espécie de consenso das forças
dominantes.
O dissenso permite escapar da logica homogeneizadora e
normativa das subjetividades pautada em um jogo de posições, do
pensamento binário, da divisão do sensível que distribui posições a
priori: quem ensina, quem aprende, quem planeja, quem executa, quem
manda, quem obedece. Mantendo e perpetuando estruturas de poder.
Pensar em dissenso me leva a pensar em conflito, nos termos da Gestalt-
terapia, uma grande pista de seu caráter político, pois o conflito é
produtivo, não deve ser pacificado prematuramente, sob pena de gerar
um apagamento da singularidade do sujeito.
O dissenso é pensado como configuração conflituosa do comum da
comunidade, envolve a possibilidade de uma situação ser fendida do
interior e reconfigurada sob outro regime de percepção e significação.
Justo por isso é movimento político, pois exige transformação e
reinvenção da vida e do mundo.
O trabalho da Gestalt-terapia também pode ser pensado como
político nesse mesmo sentido, uma vez que quando propõe a clínica
Mônica Alvim • 51

como um campo de experimentações, coloca em jogo um tipo de diálogo


que também convida a desnaturalizar a percepção. O diálogo clínico é
um diálogo de alteridade, dado a partir da fronteira de contato no
campo o/a. Terapeuta e cliente se relacionam como eu e outro em um
tipo de trabalho clínico que exige retomar uma implicação com o outro
dada na corporeidade, no âmbito pré-reflexivo. Nesse sentido, uma
ética da alteridade implica uma postura do Gestalt-terapeuta de abrir-
se para a experiência da fronteira, para o encontro com a novidade e
diferença do outro. É nessa experiência de co-afetação que há a criação
de novos sentidos. Pensar em termos de campo organismo/ambiente -
que tem uma barra e não um traço – implica tensão dialética entre os
termos, pensar em fronteira de contato como o encontro com a
diferença, é pensar no dissenso como o motor que faz nascer um
sentido, e não em termos de igualdade e confluência. (Alvim, 2022)
Nesse sentido, quando Laura Perls fala que o trabalho da Gestalt-
terapia é político pois visa a separar as confluências da maioria em uma
busca por pensar por conta própria, penso que ela faz referência à
terapia como um processo de diálogo que vai permitindo um
desvelamento da singularidade – do estilo singular.
Michelle Billies (2005) aborda a confluência do terapeuta com
sistemas sociais de opressão, o que nos ajuda a pensar nas questões
estruturais na clínica como forças do campo que afetam o próprio
terapeuta e exigem um trabalho pessoal que é, sobretudo, político.
A proposta clínica da Gestalt-terapia, fundada no diálogo, envolve
- a partir da experiência da diferença e do dissenso - criar fendas em
uma situação, desde seu interior, que exige reconfiguração sob outro
regime de percepção e produção de sentidos, apelando ao corpo e ao
sensível.
52 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O SUJEITO E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES EM PERSPECTIVA


GESTÁLTICA

Para pensar a dimensão política da Gestalt-terapia é fundamental


discutir a questão do sujeito e da produção de subjetividades, o que nos
remete à teoria do self.
Uma vez que a noção central da Gestalt-terapia é a noção de
contato – pensado como um processo de desdobramento temporal que
se dá a partir da experiência da fronteira, ou seja, do encontro com o
novo e com a diferença, que nos desequilibra e nos convoca para criar,
retomando o equilíbrio – podemos dizer que o motor da vida é o
encontro com o novo e diferente. A experiência da fronteira de contato
representa uma experiencia de não-sentido; o novo, estranho ou
diferente nos espanta porque, como tal, não tem ainda sentido para nós.
O ajustamento criador refere-se ao processo de retomada do equilíbrio
ao longo do contato, podendo ser compreendido como um processo de
produção de sentidos.
O sistema self de contatos pode ser compreendido como o artista
do contato. Um sistema – do Grego synístanai, que significa “colocar
junto ao mesmo tempo” – é compreendido como um conjunto de partes,
órgãos que têm funções e que, quando integrados, funcionam de modo
sinérgico. Ele tem três funções integradas, id, ego e personalidade, e as
funções id (isso) e personalidade constituem um fundo-corpo-
intercorporal que se constrói ao longo da existência – sentindo com e
representando com os outros no mundo, engajados na situação ou
campo. Por isso se pode falar de um self da situação.
A função id é eminentemente estética e sensível; essa função de
sentir do sistema self implica em estar aberto e conectado com o campo-
Mônica Alvim • 53

mundo, em sintonia afetiva, em correspondência, sendo parte, o que


consideramos em Gestalt-terapia um estado de indiferenciação
originário. A função id se exerce quando estamos nesse estado, sem que
nada seja figura para nós; e dançamos movidos por sensações
inespecíficas, dadas a partir das breves afetações silenciosas que nos
percorrem. Cada um desses pequenos acontecimentos, breves
pirilampos quase imperceptíveis, se acompanham de pensamentos
fugazes que passam como passam as estrelas cadentes no céu estrelado.
O estado predominante é de inconsciência, dispersão no campo; não me
sinto eu, não tenho consciência de mim, entretanto sinto a presença de
tudo no meu corpo, nas minhas sensações dadas dentro do mundo. Cada
pequeno acontecimento é um sentindo-movendo que flui no compasso
desse campo, com sua atmosfera, suas forças físicas, vitais e sócio-
culturais. Quanto menos situações inacabadas, que não foram
minimamente assimiladas, mais esse estado é fluido e inespecífico.
Quanto menos pré-ocupações, mais o espaço é ocupado com o que se
apresenta aqui-agora, nesse tempo e lugar. Eis que algo se dá com mais
força. Acontecimento que toca, punge, puxa, empurra. Afet-ação. Mas
que ainda não sei nomear, portanto, isso. “O que é isso?”, pergunto.
Como na música de Caetano Veloso, alguma coisa acontece no meu
coração, no meu corpo, naquele momento quando cruza a Ipiranga e a
Avenida São João. No cruzo, na encruzilhada.
O corpo que sente, que se conecta, é um corpo in-formado. Um
corpo que traz nos gestos motores habituais as marcas dos horizontes
passados, vividos, das habitualidades que me conferem certa
estabilidade e me permitem dizer: isso é meu, não é meu. Estamos
falando da função personalidade, função categorial, formadora de
representações a partir da experiência, que confere um núcleo de
54 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

identidade a partir daquilo que penso que sou, do conjunto de


representações que pude construir a partir de minhas experiências.
Aquilo que está representado como eu é, como afirmam Perls et al.
(1951/1997), a réplica verbal do self.
Ao longo da vida, vamos construindo representações, valores e
crenças sobre o que é certo, errado, bom, belo e justo. Vamos nos
tornando mundo em nosso corpo que, adquirindo hábitos motores
impregnados de valores e normas sociais, adquirindo uma linguagem e
suas habitualidades, nos permite pertencer ao mundo, a determinada
cultura, comunidade familiar ou de amigos.
De acordo com Merleau-Ponty (1945/1994) um hábito adquirido nos
lança em um domínio de generalidade, pois é vivido como sendo de todo
mundo e de ninguém em particular, como, por exemplo, quando
adquirimos um hábito linguístico. Aprendendo a falar uma determinada
língua, passamos de uma vivência particular “eu falo a língua tal”, para
uma vivência geral, “fala-se a lingua tal”. E pertencemos ao mundo dos
que falam aquela língua.
Os hábitos são motores, transmitidos na cultura e permanecem em
nossos corpos, podendo se atualizar a cada situação vivida. Assim,
podemos afirmar que a personalidade também é corporal: aparece nos
gestos de um grupo ao qual somos leais, gestos moldados por uma
moralidade social, aparece como atitude retórica, expressa na forma de
falar, na linguagem que me narra e narra o mundo.
Assim, a cada novidade que se apresenta na experiência, o corpo se
afeta, movimenta e cria, sustentado por um fundo-corpo invisível,
integrado como funções id-personalidade. É a função ego(eu) que me dá
visibilidade no mundo por meu corpo que gesticula e cria,
transformando e atualizando hábitos. A função ego é a ação motora
Mônica Alvim • 55

espontânea, sustentada e dirigida pelo fundo função id e função


personalidade, na situação.
Podemos então pensar o sistema self de contatos como um sistema
que conduz o processo de produção de subjetividades-corpo, ação de
produção contínua de si mesmo ou subjetividade como uma dimensão
mais estável e que, ao produzir subjetividade, produz mundo.
Sabemos que esse processo não se dá internamente, mas sim a
partir de um campo organismo/ambiente, um sujeito que é parte do
mundo, com outros. Nesse sentido, o processo de produção de si ou
selfing implica inexoravelmente o mundo e suas forças. Em um
manuscrito de Perls, referido por Robine (Comunicação pessoal,
novembro de 2021) 2, ele afirma que self é 50% organismo, 50% ambiente.
Perls et al. (1951/1997) afirmam que o social não é algo a mais, um
contexto, mas é intrínseco às nossas formas de perceber os problemas
que se nos apresentam. Isso significa que as forças do mundo agem na
produção de subjetividades, o que tem uma implicação enorme para a
clínica e o olhar que temos para as questões que ali se apresentam.
Pensar um uma clínica política, qualquer que seja a abordagem,
implica pensar nos processos de produção de subjetividades - ou selfing,
em linguagem gestáltica. Implica pensar nesse “si mesmo” como
produto – mais ou menos em constante mutação – desse jogo de forças
entre minha ação como sujeito (eu-ego em ação), minha dimensão mais
estável (o si-mesmo-personalidade) e as forças do mundo que subjazem
a essa estrutura e que emergem tanto na minha ação (eu-ego) quanto na
minha dimensão mais estável (si-mesmo-personalidade). Nossa
condição é no mundo com o outro conectados por um fundo-mundo que

2
Aula ministrada por Jean-Marie Robine no curso A situação em carne e osso, modalidade online, Brasil,
5 a 7 nov.2021
56 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

subjaz a nós e, como sujeitos da experiência, abertos à contingência do


mundo e à diferença do outro, com sua singularidade e estilo.
Esse fundo-mundo ganha visibilidade em meus gestos, mas nem
sempre é visível e consciente para mim. Compreendemos essa dimensão
de inconsciência, com Merleau-Ponty, como o sentido sedimentado de
experiências voluntárias e involuntárias. Como ele afirma “a armadura
deste mundo invisível que, com a fala, começa a impregnar todas as
coisas que vemos” (Merleau-Ponty, 1964/2000, p. 174).
Segundo o filósofo, não é no fundo de nós mesmos, nas costas da
consciência, que devemos procurar essa dimensão inconsciente, mas na
articulação de nosso campo. Tal como compreendo, “essa rede de
sentidos sedimentados que compõem a armadura do mundo invisível é
uma constelação que nos conecta a todos numa espécie de intermundo”
(Alvim, 2020a) e a tarefa da filosofia, assim como da clínica e da arte, é
interrogar essa dimensão invisível do mundo que sustenta o visível.
Tenho pensado as estruturas de modo análogo como armaduras do
mundo invisível, que informam modos de ver, sentir, agir e pensar.
É com o corpo que podemos explorar essa dimensão do mundo. É
também a partir da dimensão estética, que encontro com o outro -
também um corpo - e viver a experiência da alteridade na relação de
comunalidade com o outro, em uma relação da ordem de uma sintonia
afetiva que me permite sentir confirmado na minha singularidade.
Sintonia que não significa confluência, mas que inclui a diferença,
a singularidade e o estilo do outro, que me surpreende e instiga ao
movimento criador e recriador de sentidos. É nessa tensão identidade e
diferença que se dá o diálogo.
Mônica Alvim • 57

PODER, NORMATIVIDADE, OPRESSÃO E ESTRUTURA

Entretanto, ao longo da existência, durante o desenvolvimento,


nossas relações não são costumeiramente horizontais, mas sim
atravessadas por relações de poder, envolvendo opressões e violências.
Como discute Litchtenberg (1990), as relações opressivas são processos
que distorcem as relações interpessoais. Ele afirma que todos, em algum
grau, fomos crianças abusadas e experimentamos a opressão em nosso
processo de socialização, com disciplina, castigos, medo, desamparo e,
como consequência disso, nos acostumamos a relações desiguais de
poder, tendo sido tanto opressores como oprimidos.
Como dissemos, a função personalidade engloba mecanismos como
a identificação e lealdade a grupos, as atitudes retóricas e a moralidade.
Somos socializados dentro de instituições como família, escola, igreja,
bairros etc.
As estruturas sociais são padrões sociais dominantes que regulam
as interações, organizam e configuram determinada realidade que são
reproduzidas pelas instituições (Almeida, 2019). Como seres sociais,
vamos assimilando e introjetando, muitas vezes por meios violentos,
valores, crenças, que se tornam hábitos inconscientes – corporais – e
que nos permitem pertencer àquele grupo social ao qual somos leais.
Como afirmam Perls et al. (1951/1997):

Controladas por tabus, as imitações tornam-se introjeções inassimiláveis, a


sociedade estando contida dentro do self e, em última instância, invadindo
o organismo; as pessoas tornam-se meramente pessoas em lugar de serem
também animais em contato (p.123)
58 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

As atitudes retóricas como forma de manipular as relações


interpessoais implicam diretamente a linguagem, o discurso, a voz, a
sintaxe, como por exemplo, reclamar, intimidar, ser evasivo. Vou
adquirindo uma retórica na minha vida social, interpessoal, vivida na
linguagem como um estilo de interagir. Como afirmam os autores (Perls
et al.), podemos pensar personalidade como uma estrutura de hábitos
de fala onde a maior parte do pensamento é uma fala subvocal que
incorporou material alheio, inassimilado ou inassimilável, advindo de
relacionamentos interpessoais primitivos.
A moralidade é importante elemento para essa discussão. Implica
lealdades de grupo e expectativas sociais, estando com frequência
relacionada à autoridade introjetada e ao fenômeno da autoconquista,
quando há pacificação prematura do conflito, como propõem Perls, et
al. (1951/1997)
Nesse sentido, tenho pensado a moralidade como normatividade.
Moral introjetada e construída por normas que estão no fundo-corpo
intersubjetivo-intercorporal que sustenta nosso movimento no mundo,
informando nossos modos de sentir e agir.
Proponho pensar, nesse sentido, que se falamos de neurose como
perda da função ego/eu, isso pressupõe prejuízo na função
personalidade/eu-mesmo, uma vez que nosso processo de socialização
opressor e violento nos impõe normas na forma de introjetos,
produzindo confluências. É nesse sentido que leio a frase de Perls et al.
(1951/1997) de que como categoria de neuróticos somos muito parecidos
e proponho pensar nas normatividades figurativamente como fábrica
de introjetos que visam a confluências que, nesse contexto, podem ser
compreendidas como massificação. Eles ainda nos lembram, nesse
sentido, que “a autoridade internalizada deixa o caminho aberto para a
Mônica Alvim • 59

exploração institucional do homem pelo homem e de muitos pelo todo”


(Perls et al., p.123)
Philip Litchtenberg ressalta que “em tempos em que impera o
capitalismo mundial, não existe sociedade livre de desigualdade e
opressão” (1990, p. XVII). O que remete ao cerne de nossa discussão. Os
padrões normativos estabelecidos com base numa moral racional,
branca, masculina e eurocêntrica estão intimamente relacionados ao
capitalismo mundial e estabelecem políticas que agem no global por
normas que são transmitidas localmente pelas instituições, atuando
diretamente nos corpos, formando hábitos que se sedimentam, nos in-
formam e se reproduzem nas relações interpessoais.
Para enxergar as forças do mundo necessitamos de um diálogo –
interdisciplinar - com teorias críticas cujo foco está nas estruturas
normativas de poder como promotoras do controle e da separação dos
corpos e de gestão dos afetos, como forma de impedir a potência
transformadora do corpo e do corpo coletivo.
Apresentarei agora um breve panorama do problema das
estruturas dominantes e a produção de subjetividades em diálogos com
perspectivas críticas que inter-relacionam ciência, conhecimento,
capitalismo, raça, classe e gênero.

AS ESTRUTURAS DOMINANTES E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES

Muito se tem discutido sobre a produção de subjetividades em


perspectiva crítica. O discurso científico tem sido apontado como um
elemento de relevância, uma vez que se mantem alinhado com uma
geopolítica que centraliza na Europa e no ocidente a legitimidade de
60 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

uma alta cultura que normatiza e normaliza a vida e os modos de ser


sujeito.
Nosso ponto de partida é o processo de colonização ocorrido na
modernidade após a dita descoberta - mas na realidade invasão - da
América, que envolveu dominação violenta e apagamento de modos de
ser que foram sobrepostos por processos de escravização, a partir de
divisões raciais e de gênero. A assimetria de poder implicou
subalternização de práticas e subjetividades dos povos dominados.
Eurocentrismo, ocidentalismo se tornaram formas dominantes de
produção de conhecimento e de subjetividades, fazendo emergir uma
ciência moderna europeia como epistemologia soberana e universal,
como discute Dussel (1993). Esse privilégio epistêmico dos homens,
europeus e ocidentais são mecanismos utilizados para privilegiar
projetos imperiais, coloniais, patriarcais, apoiados em um suposto
universalismo.Como afirma Grosfoguel (2016, p.26):

Os projetos neoliberais, militares, internacionais, de direitos humanos


estão informados pela autoridade do conhecimento Nortecêntrica que se
impõe por meio de mecanismos institucionais universitários, militares,
internacionais (ONU, FMI, Banco Mundial), estatais etc. Essa autoridade não
é democrática, impõe-se à base da superioridade do conhecimento imposta
pela dominação ocidental capitalista do mundo e tem uma história de longa
duração.

A tentativa de criar uma correspondência entre a identidade do


estado e da população, que constituiu a ideia de Estado-nação na Europa
é um indício da antiguidade dessa relação entre poder e produção de
subjetividades. A invenção das raças está envolvida com esse fenômeno;
tendo sido forjada na Europa do século XVI, após a “descoberta da
América”, a lógica racista foi reproduzida nos discursos científicos
Mônica Alvim • 61

sobre a biologia humana e as diferenças raciais. De acordo com


Grosfoguel (2016), essa lógica foi o princípio organizador da divisão
internacional do trabalho, base da acumulação capitalista que ganhou
escala mundial. A transição do colonialismo moderno para a
colonialidade global deu-se com a formação de um sistema-mundo
capitalista que envolveu a estruturação do poder pelo colonialismo.
Immanuel Wallerstein foi um sociólogo que estudou a formação do
sistema-mundo a partir do conceito de divisão internacional do
trabalho produzida pela estrutura capitalista. Para ele, essa estrutura
internacional resulta na divisão do mundo em três partes hierárquicas:
centro, periferia e semi-periferia, designando a cada parte uma função
na ordem produtiva capitalista: países centrais produzem alto valor
agregado, periféricos produzem bens de baixo valor e fornecem
commodities (mercadorias básicas de matérias-primas, agrícola,
mineral e energéticas) para a produção de alto valor dos países centrais.
Um padrão de troca desigual que cria relação de dependência entre os
estratos, acentuam a diferença econômica e criam dependência
econômica dos países periféricos (Martins, 2015). As Américas, segundo
Dussel, foram a primeira periferia da Europa.
As origens das condições iniciais para a formação desse sistema
estão na passagem do feudalismo para o capitalismo. Para Wallerstein
(como citado em Martins, 2015), os pilares essenciais para o
estabelecimento de uma economia-mundo capitalista foram a expansão
geográfica com a dimensão do mundo; o desenvolvimento de métodos
diferenciados de controle do trabalho; a criação de aparelhos de Estado
(estrutura organizacional dos Estados: território, população e
ordenamento político e administrativo – governo).
62 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O Sistema-mundo se difere e não se reduz à economia-mundo,


importante ponto para compreendermos o capitalismo.

O capitalismo foi capaz de florescer precisamente porque a economia-


mundo continha dentro dos seus limites não um, mas múltiplos sistemas
políticos […. e porque] baseia-se na constante absorção das perdas
econômicas pelas entidades políticas, enquanto os ganhos econômicos se
distribuem entre as mãos ‘privadas’ (Wallerstein, como citado em Martins,
2015, p.99).

Assim, o capitalismo conta com o político. O capitalismo – “como


modo econômico” – baseia-se no fato de que os fatores econômicos
operam numa “arena maior do que qualquer entidade política pode
controlar totalmente”, fornecendo uma grande margem de manobra aos
capitalistas e tornando constantemente possível “a expansão
econômica do sistema mundial” (op.cit.), apesar da distribuição desigual
de seus resultados.
Ainda de acordo com Martins (2015) Wallerstein ressalta que não
há um sistema mundial alternativo capaz de concorrer com este sistema
econômico mundial e realizar uma melhor distribuição econômica, pois
não há governo mundial.
A noção de sistema-mundo é muito presente no pensamento
decolonial. Fala-se de um sistema-mundo moderno/colonial, também
de sistema-mundo europeu/euro-norteamericano, capitalista/
patriarcal, moderno/colonial. Eles discutem a transição do colonialismo
moderno para a colonialidade global.
As questões raciais e de gênero estão, em sua origem, envolvidas
com a formação do sistema-mundo capitalista em sua política de
segmentação e desterritorialização.
Mônica Alvim • 63

A matriz de dominação colonial alicerça-se no poder sobre os


corpos e o espaço, invade o espaço, inventa hierarquias, domina e
explora os corpos, produz uma geopolítica amparada na tese da
hierarquia de culturas e da divisão entre civilizados e não-civilizados –
um “mito racista-xenófobo” (Carvalho, 2018). Esse mito abala o edifício
da intersubjetividade, os alicerces da estrutura eu-outro de
subjetividade fundada na alteridade, distorcendo o significado de
humanidade ao criar o que Maldonado-Torres (2016) denomina
“diferença subontológica”, ou seja, entre humanos e sub-humanos que
não tem direito a ser.
Isso teve consequências também no que diz respeito a gênero, visto
que só os ditos civilizados eram considerados homens ou mulheres;
havia uma compreensão normativa dada a partir do homem como ser
humano, sendo o homem branco europeu, burguês, a norma; e a mulher
branca europeia burguesa aquela que reproduzia raça e capital por meio
de sua pureza sexual a serviço do homem. Os povos indígenas eram não
humanos, selvagens, incontrolavelmente sexuais e a distinção era
animalesca - macho e fêmea - e indiferente em seus papéis.
“Necessitavam” de uma transformação civilizatória que agia apagando
sua memória, sua cultura, seu modo de vida, sua espiritualidade, enfim,
suas formas de ser sujeitos.
Maria Lugones (2014) discute o “Sistema Moderno/colonial de
gênero” e afirma a tese da existência de uma normatividade que
conectava gênero e civilização. Essa normatividade “concentrou-se no
apagamento das práticas comunitárias ecológicas, saberes de cultivo, de
tecelagem, do cosmos, e não somente na mudança e no controle de
práticas reprodutivas e sexuais” (p.938). Esta é uma perspectiva que
visibiliza o vínculo entre a introdução colonial do conceito moderno
64 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

instrumental da natureza e a introdução colonial do conceito moderno


de gênero como central para o capitalismo. O que foi uma tentativa
bem-sucedida de apagamento e subalternização das mulheres, tese
corroborada por Silvia Federici (2017) e outras autoras feministas.
Com essas breves pontuações pretendo indicar como há uma
articulação complexa entre raça, gênero e classe social, invenções
envolvidas com a colonização e com o capitalismo. E como esses
processos violentos e opressores de divisão hierárquica e apagamento
da pluralidade de modos de ser - em nome de um falso universalismo
sob a régua normatizadora dos países europeus e ocidentais -
produziram e ainda produzem efeitos nas subjetividades.
A noção de colonialidade diz respeito a um padrão colonial de
relações sociais enraizado na estrutura social. Envolve a exposição a
lógicas e conflitos que são considerados como não mais existentes, mas
que estão presentes nas estruturas e nas subjetividades. Segundo
Maldonado-Torres (2018) grupos colonizados tendem a experimentar
histórias “passadas” como presente vivo, uma vez que lógicas coloniais
e representações continuam existindo, compondo uma lógica global de
desumanização que existe mesmo na ausência de colônias formais.
E o que vemos hoje presentes em nossos modos de subjetivação? Os
fenômenos do racismo e da branquitude, da homofobia/transfobia e da
cis heteronormatividade são faces de uma problemática estrutural onde
a normatividade se impõe como diretora de nossos modos de pensar,
sentir e agir. Isso não se dá apenas de modo facilmente identificável,
mas também de modo sutil e difícil de ser notado até por nós mesmos.
Se dá em nossos pequenos gestos, expressões, olhares, expressos em
nossa função ego. Em um trabalho recente (Alvim, 2020, p.1247), ao
Mônica Alvim • 65

discutir o racismo, abordei o corpo na vivência do racismo, com base em


um autor da fenomenologia crítica.

Yancy (2020) propôs a noção de “corpos confiscados” para referir-se a


encontros disruptivos e violadores sofridos pelo corpo negro em espaços
sociais saturados racialmente. O olhar branco que fixa o corpo negro geraria
uma espécie de despossessão, um confisco do corpo, reduzido que seria a
uma epiderme submetida a toda uma rede de estereótipos atribuídas a ela.
Nesse contexto, o autor considera que o fenômeno do olhar branco e sua
força estrutural performativa e habituada é um pressuposto e que “o olhar
branco pressupõe a maior acumulação histórica de material semiótico
branco, poder institucional e hegemonia” (op.cit., p.71). Compreendendo a
branquitude como “norma transcendental” (op.cit., p.71), ele discute como
essa normatividade é produzida na sociabilidade e historicidade, onde os
significados e integridade existencial próprios dos corpos negros foram
sendo roubados deles para então serem despejados de volta, sobre eles,
significados que se pressupõem que eles sejam, que eles tenham.

Judith Butler coloca no centro das discussões de gênero a


normatividade compulsória que quer manter coerência entre sexo
biológico, gênero e desejo, com a marca da heteronormatividade. Ela
(Butler, 2019) vê o poder colocado na produção de uma estrutura binária,
sendo as oposições binárias formas de manter essa ordem compulsória.
A repetição performativa de gestos que reforçariam a compreensão que
temos do que seja um corpo masculino ou feminino reforça essa ordem
normativa. A performatividade trans, por exemplo, pode desafiar isso e
mostrar que todos somos performativos. “A regulação binária da
sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade
que rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e médico-
jurídica” (Butler, 2019, p.41).
66 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Essa multiplicidade subversiva dialoga com o que discutimos com


Rancière como dissenso. Entretanto, as estruturas de poder buscam, na
norma, o consenso. Esse consenso envolve os corpos não-marcados:
corpos brancos, masculinos, cis-heterossexuais e de determinadas
classes sociais. Os demais corpos são marcados.
As violências estão relacionadas com normas de controle do corpo
e da sexualidade. A violência contra a mulher, por ex. envolve a
consideração do corpo como objeto, utilizável, violável, sujeito a
projeções de desejos, tido como propriedade.
Pensando em termos interseccionais, encontramos múltiplas
marcações nos corpos das mulheres negras: corpo supersexualizado,
corpo forte, que aguenta tudo e é vítima de explorações no trabalho, de
violência obstétrica e violência sexual.
A violência contra as pessoas negras é um fenômeno gritante no
mundo e no Brasil. A violência contra as pessoas que fogem à cis-
heteronormatividade é crescente, destaco a violência e o assassinato de
pessoas trans. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais.
Falamos muito, inclusive na Gestalt-terapia, de violência familiar, na
infância, de situações traumáticas, mas quase não falamos de outras
violências e precisamos ampliar essas discussões para articulá-las com
as formas estruturais de violência.
Como discute Vera Vital Brasil (2019, p.270), a escuta da violência
no contexto clínico é seletiva e quase sempre recai no âmbito familiar
como fonte de conflito. A valorização da violência doméstica e do espaço
privado retira o caráter político-social, psicologiza e intimiza o
fenômeno, parecendo limitar o problema a esse âmbito. Enquanto as
violações cometidas por agentes do Estado, como assassinatos da
Mônica Alvim • 67

população negra, tortura e maus-tratos, são comumente silenciadas e


encobertas.
A invisibilização dos corpos negros, pobres, dos corpos trans que
fogem à cis heteronormatividade está intimamente conectada a essa
perspectiva. Que corpos importam? Mais que isso, que corpos são
reconhecidos como humanos? Que corpos são matáveis?
Silvia Federici (2018, p.196) aponta três divisões que o capitalismo
produz na classe trabalhadora: divisão desigual do trabalho, hierarquia
salarial e sexismo/racismo. O individualismo e a perda do senso de
comunidade estão no centro da estratégia do desenvolvimento
capitalista, dimensão que abordaremos a seguir.
Sendo o neoliberalismo forma atual dominante do capitalismo e
considerando a articulação dele com as normatividades que estão nas
estruturas, como viemos discutindo, podemos pensar nele como força
subjacente e entrelaçada às demais, atuando nos processos de
subjetivação. Dardot e Laval são dois autores do campo da critica social
que discutem o neoliberalismo não apenas como política econômica,
mas como política de produção de subjetividades. No livro “A nova razão
do mundo” eles apresentam a tese de que o neoliberalismo é uma
racionalidade que estrutura e organiza, além da ação dos governantes,
a conduta dos governados. Tem como objetivo último, buscar meios de
fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do
governo de si.
O fenômeno da servidão voluntária, proposto por Etienne de La
Boétie no século XVI, afirma que “a mais forte das maneiras de subjugar
as multidões é transformar os dominados em construtores ativos de sua
própria dominação”. (Alvim, 2015, p.61) Esse fenômeno, descrito há 500
anos, se atualiza em nosso tempo, onde, como discuti a partir de Michael
68 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Hardt e Antônio Negri, somos capturados para alimentar, de modo


servil e voluntário e com a força viva de nosso corpo, a maquinaria do
capital.

A partir da segunda metade do século XX, as grandes corporações


multinacionais e transnacionais começaram a estrutura biopoliticamente
os territórios em escala mundial (...) promovendo uma estruturação
biopolítica do mundo que produz mercadorias e subjetividades (Alvim, 2015,
p.64).

Compreensão que corrobora o pensamento de Dardot e Laval (2016)


que propõem ser a lógica do mercado a “lógica normativa generalizada
que vai desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (p.34) por
meio de uma racionalidade neoliberal que assume “a concorrência como
norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivação” (p.17).
Sendo o neoliberalismo a razão do capitalismo contemporâneo, ele é um
conjunto de discursos e práticas que tem como princípio geral a
concorrência, o que dificulta a ação coletiva e produz egoísmos, perda
de solidariedade e competição.
É nesse sentido que discutem uma lógica normativa que dissemina
a lógica do capital nas subjetividades. O sujeito da sociedade industrial
foi um sujeito produtivo; o sujeito neoliberal é um sujeito competitivo,
um sujeito-empresa, do cálculo, que estabelece relações de interesse
com outros sujeitos, alimentando o que os autores denominaram
tragédia do não-comum. O aprofundamento da lógica individualista e a
desarticulação dos coletivos orientada por esse sistema de normas só
pode ser contraposto por uma luta pelo comum. “O princípio do comum
que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a
um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade
Mônica Alvim • 69

neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais”


(Dardot e Laval, 2016, p.9).
Verônica Gago, uma socióloga argentina, também investiga o
neoliberalismo como força na produção de subjetividades em classes
populares. A autora propõe pensar no neoliberalismo como processo
que se transforma e é posto em jogo pelas subjetividades e práticas
cotidianas, por meio de sua diversidade de modos de fazer, sentir e
pensar que organizam a maquinaria social e modulam subjetividades
sem a necessidade primeira de uma estrutura transcendente e externa.
Nesse sentido, ela propõe que o neoliberalismo não vem apenas “de cima
para baixo”, mas persiste se metamorfoseando e se redefinindo a partir
de situações concretas e acontecendo “de baixo para cima”.
Investigando as economias populares, ela identificou esse modo
neoliberal que definiu como

um conjunto de condições que se concretizam para além da vontade de um


governo, de sua legitimidade ou não, mas que se transformam diante das
condições sobre as quais opera uma rede de práticas e saberes que assume
o cálculo como matriz subjetiva primordial, e funciona como motor de uma
poderosa economia popular que mistura saberes comunitários de
autogestão e intimidade com o saber-fazer na crise como tecnologia de uma
autoempresarialidade de massas (Gago, 2018, p15).

Essa perspectiva nos apresenta uma forma de crítica social que


rompe com a compreensão mais comum de uma superestrutura
determinante em prol de uma reflexão sobre o movimento de baixo para
cima, ou seja, partindo da compreensão de que no campo intersubjetivo
fazemos mundo e podemos reinventar racionalidades, desde que
compartilhemos coletivamente uma rede de afetividade. É nessa direção
que a autora discute os movimentos feministas (Gago, 2020).
70 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Ao discutir a articulação que viemos fazendo ao longo desta seção


entre capitalismo e estruturas sociais, a autora aborda o cenário atual
de avanço das forças de extrema-direita e questiona: “como a
acumulação neoliberal está se relançando em aliança com o fascismo,
isto é, com formas extremas de racismo, sexismo e classismo?” (Gago,
2018 p.9). Contra a geopolítica patriarcal e racista, a resposta precisa ser
uma contra-força feminista, anti-racista, anti-neoliberal e antifacista.

À razão neoliberal se contrapõe, hoje, uma razão feminista (que é


sensibilidade, modo de cálculo, estratégia e produção de sentido): isto é, um
modo de pensar, fazer, lutar e desejar que extravasa a opção imposta entre
serem vítimas ou empreendedoras (ambas opções de subjetivação do
catálogo neoliberal) (Gago, 2018, p.10).

Realçando que na razão feminista estão elementos do catálogo


neoliberal, ela nos mostra que se não podemos escapar totalmente das
forças estruturais, entretanto não somos determinados por elas e, mais,
temos parte na produção de contraforças que agem na sua
transformação. A greve internacional de mulheres - na qual ela
participou da organização e discute profundamente - é um movimento
que ressignifica a greve, pois a desloca do lugar formalmente
considerado de trabalho para o lar, dando visibilidade ao trabalho
reprodutivo, ordenado obrigatoriamente por gênero.
Feito esse breve percurso e considerando todas essas forças
estruturais em nossos processos de subjetivação, não é possível que nos
mantenhamos afirmando o caráter político e “revolucionário” da
Gestalt-terapia com base apenas na contracultura e nos movimentos
contemporâneos à sua fundação. Pergunto agora: o que precisamos para
atualizar nosso caráter político?
Mônica Alvim • 71

(IN)CONCLUSÕES: POR UMA GESTALT-TERAPIA CRÍTICA

Começo aqui com uma citação de Donna Haraway (2009, p.25) que
traz uma pergunta que muito me impactou quando li e que considero
uma boa provocação para nós, Gestalt-terapeutas.

(...) não é possível realocar-se em qualquer perspectiva dada sem ser


responsável por esse movimento. A visão é sempre uma questão do poder
de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas de visualização.
Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?

O olhar e a visão são elementos importantes no pensamento de


Haraway, que se dirige aos modos de conhecer e no trecho citado faz
referência ao olhar do pesquisador. Penso que como terapeutas também
somos, de um modo afinado com perspectivas como a dela,
pesquisadores que pesquisam com o outro e não sobre o outro. E nosso
olhar de Gestalt-terapeutas deve buscar movimentos que vejam em
perspectivas situadas, atentos para forças invisíveis presentes no
mundo, sob pena de reproduzir violências em nossas práticas de
visualização – e de escuta. Quando abordamos o problema da
branquitude, estamos falando para uma comunidade
predominantemente branca que precisa se interrogar: com o sangue de
quem foram feitos meus olhos? Sangue de povos colonizados que
tiveram seus saberes, poderes e seres apagados e invisibilizados em prol
do domínio e privilégio da população branca, masculina, dona do poder
em todos os âmbitos. Quando falamos de transfobia e homofobia,
estamos falando para uma comunidade predominantemente cis e
hetero que também precisa se interrogar sobre o sangue e as lágrimas
de pessoas que ousaram e ousam transgredir a cis heteronormatividade
72 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

compulsória. E poderíamos também falar de classismo, etarismo e


capacitismo.
Pensar nesses termos exige um esforço teórico e pessoal. Um
grande esforço pessoal, que vai muito além das tradicionais e
necessárias aulas sobre postura do terapeuta, empatia, escuta. Falo de
um exercício sempre incômodo de revisão pessoal de nossos grandes e
pequenos gestos e olhares para o outro a partir da posição dominante,
de corpos não-marcados. Gestos e olhares que permanecem e
permanecerão invisíveis para nós mesmos se não nos dispusermos a nos
re-ver, reposicionar e verdadeiramente nos implicar como sujeitos que
agem na reprodução dessas violências que vimos discutindo.
Do ponto de vista teórico, exige que façamos um contraponto entre
as teorias críticas que enfatizam as estruturas normativas de poder e as
teorias fenomenológicas como a Gestalt-terapia, que enfatizam as
vivências. Como discute Lisa Guenter (2020), uma autora da
fenomenologia crítica, essas perspectivas quando caricaturadas,
respectivamente, como perspectiva que pensa a partir das estruturas
sociais ou perspectiva em primeira pessoa, subjetivista, se tornam
incompatíveis. Mas se deixamos esses polos caricaturais e assumimos
uma posição gestáltica, podemos sim pensar em fenomenologia crítica
e Gestalt-terapia crítica, mantendo nosso olhar para essas duas forças
como partes de um mesmo todo.
Tenho falado muito de uma clínica que não seja psicologizante,
aspecto central que caracteriza uma clínica política. A perspectiva de
campo da Gestalt-terapia, que pode ser compreendida
fenomenologicamente como emergência de fenômenos no campo é,
como já dissemos, um princípio fundamental para isso.
Mônica Alvim • 73

No entanto, o fato de sermos fundados em uma perspectiva de


campo não nos garante essa não-psicologização, uma vez que podemos,
em nosso olhar e fazer clínicos, permanecer focados na ação do sujeito
e na sua dimensão mais estável - personalidade, sem considerar
verdadeiramente as forças do mundo como forças que respondem por,
pelo menos, metade desse processo.
Não considerar as forças do mundo, em especial aquelas
estruturais, nos coloca numa posição de naturalização do mundo, da
vida e dos modos de ser sedimentados na sociedade. Nos situa de modo
confluente com as forças opressoras. Nos coloca, portanto, no risco de
fazer uma clínica que reproduza violências e opressões ao não
reconhecer tais forças e, sobretudo, em como elas agem em nós.
Não é possível fazer uma separação entre as forças do mundo e o
sujeito em seus modos de fazer contato, sentir, perceber, agir. Não é
possível, portanto, fazer clínica sem política, no sentido mais amplo de
política. Não podemos trabalhar, tampouco formar pessoas, sem
ampliar nossos olhares para o mundo e as forças da estrutura social que
moldam nossas vivências, formas de perceber, de sentir, de agir.
Essas questões estruturais estão na base da organização econômica
e política da sociedade, influenciam nossa experiência de mundo, não
apenas em casos isolados, mas de uma forma profundamente
constitutiva de quem somos e de como damos sentido ao mundo e aos
outros.
Consistem em estruturas de exclusão social e violência que
demarcam fronteiras, invisibilizam e apagam corpos e existências que
não estão enquadrados nos padrões normativos criados e reiterados por
estruturas normativas de poder.
74 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

É importante marcar, assim, a posição de que no nosso trabalho


como Gestalt-terapeutas, na clínica e em outros espaços, precisam
ganhar foco as forças normativas que geram opressão e violência e que
estão na base de nossas formas de sentir, perceber, agir, constituindo
um fundo invisível que, como propõe Merleau-Ponty, articula e
sustenta o campo das visibilidades. Precisamos reaprender a ver as
forças invisíveis presentes nas determinações históricas, políticas e
econômicas na base das vivências singulares e coletivas, nas relações
sociais, pessoais que vão tecendo formas de subjetivação ou selfing. Para
isso é fundamental nos implicarmos para reaprender a nos ver e
enxergar nossas confluências com sistemas de opressão e privilégios
(Billies, 2005)
É premente assumir uma posição radicalmente crítica que possa
nos ajudar a visibilizar essas estruturas que “privilegiam, naturalizam e
normalizam certas experiências do mundo enquanto marginalizam,
patologizam e desacreditam outras” (Guenter, 2020, p.15, tradução
nossa)
Como Gestalt-terapeutas, temos um fundo, uma caixa de
ferramentas muito rica, sendo a perspectiva de campo a ferramenta
mestra. A proposta de um sujeito relacional, que não é sem o outro, sem
o mundo, rompe com o individualismo e com o subjetivismo para pensar
o sujeito como inseparável do mundo e do outro. Mas teríamos que fazer
algum deslocamento ainda mais para fora do indivíduo e rumo a um
campo de invisibilidades a ser explorado.
É por isso que considero necessário desenvolver discussões em
torno de fundamentos, conceitos e recursos metodológicos que
permitam a nós Gestalt-terapeutas: a) identificar estruturas sociais e
históricas envolvidas nas tramas do sofrimento e das existências que
Mônica Alvim • 75

acolhemos nos espaços clínicos; b) analisar criticamente os modos de


funcionamento dessas estruturas e c) abrir novas possibilidades e
formas de ação no campo da Gestalt-terapia.
Longe de pretender instituir uma cisão dicotômica entre as forças
sociais e a capacidade de agência do sujeito, adoto aqui uma posição que
nos mostre como essas duas dimensões atuam de modo co-constitutivo.
Uma clínica política requer superar a dicotomia entre indivíduo e
coletivo, evitando tanto um psicologismo quando um sociologismo. É
fundamental, para isso, borrar as fronteiras criadas por uma falsa
oposição entre as determinações históricas e a capacidade de agir. Elas
são compossíveis! As forças normativas, de domínio, controle e captura
do corpo agem em tensão com uma força criadora dada na nossa
condição existencial de ser no mundo com o outro. Elas são forças que
se entrecruzam de tal modo que compõem um quiasma, como chama
Merleau-Ponty (1964/2000), onde uma é o avesso e a outra o direito.
Os corpos nunca cumprem completamente as normas, algo escapa
gerando instabilidades que criam exigência de rearticular as forças
hegemônicas, reiterando as normas performativas, como afirma Butler
(2019a).
O corpo é potência política, pois, sensível e movente, nos permite
explorar o invisível e desenhar formas-sentido que expressam, revelam,
trazem para o campo do visível aquilo que nos afeta sem se mostrar.
A Gestalt-terapia é política da experiência, clínica que se baseia na
criação e na transformação. Experiência etimologicamente se aproxima
de perigo – peri e risco, podendo ser compreendida como travessia
entre o que sei e que sou, para lá, em direção ao que não sei nem sou. O
risco é inerente à experiência, pois irei rumo ao desconhecido.
76 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Experiência é corpo sensível em movimento e o lastro para enfrentar o


risco da travessia está no fundo que sustenta esse movimento.
Como Gestalt-terapeutas brasileiros, latino-americanos,
colonizados, temos, nesse momento histórico, que correr todos os riscos
necessários para nos lançar numa travessia rumo a um fazer
verdadeiramente crítico e político. A exploração da dimensão invisível
que temos como tarefa implica necessariamente a nós mesmos, nossa
própria visão, nossa ação no mundo, para além de um discurso. Implica
cada um de nós pessoalmente e corajosamente. Sigamos!

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2
CONFLUÊNCIA DO TERAPEUTA COM SISTEMAS
SOCIAIS DE OPRESSÃO E PRIVILÉGIO 1
Therapist confluence with social systems of oppression and privilege
La confluencia del terapeuta con los sistemas sociales de opresión y privilegio

Michelle Billies

Este artigo começou como um esforço para traduzir para a


linguagem da Gestalt-terapia aquilo que aprendi sobre assumir
responsabilidade pelo racismo sendo uma pessoa branca. Fiquei
interessada em como meu crescimento na lida com o racismo parecia
paralelo a um processo terapêutico gestáltico de cura: desenvolvi a
consciência de ser branca e comecei a reconhecer a natureza perversa
da formação para o racismo; passei a reconhecer a relação direta entre
meu privilégio racial e a opressão dos outros; comecei a romper hábitos
que vêm ao viver como uma pessoa branca; comecei a discernir mais
precisamente as possibilidades em mim mesma, em outras pessoas e em
nosso entorno que contribuem e se opõem ao racismo; e agora ajo mais
prontamente com uma grande variedade de ferramentas contra a
injustiça racial. Em suma, tenho trabalhado para me libertar da
confluência com ideias e práticas sociais que constituem o racismo.
Meus esforços representam um processo contínuo, ao longo da
vida, que sempre será limitado pelo escopo de minha awareness. Nunca

1
Artigo originalmente publicado no International Gestalt Journal, 28 (01), p.71-83 e traduzido para o
Português com autorização da autora. Tradutoras: Ariane Lima de Brito e Tatiana de Paula Soares. Revisão
da tradução: Mônica Alvim.
80 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

se pode ter plena consciência de toda a bagagem cultural que informa


seu caminho de pensar e sentir. Estamos lidando com visões de mundo
que "(...) traçam o quadro de conceitos fundamentais dentro do qual
interpretamos tudo o que aparece no mundo de uma maneira específica
como algo" (Habermas, 1984, p. 58).
As etapas de desenvolvimento de awareness e habilidade para esse
empreendimento são aplicáveis não apenas ao racismo, mas se aplicam
também para desfazer outros tipos de opressão e privilégios. Neste
artigo descrevo a confluência das terapeutas 2 com sistemas sociais de
opressão e privilégio, sugerindo intervenções para desfazer essa
interrupção habitual.
A Gestalt-terapia oferece um antídoto útil para tal confluência. Por
definição, a Gestalt-terapia visa a libertar as pessoas de hábitos que
interrompem o contato - o processo de assimilação do que é necessário
ou significativo e rejeição do que não é. No entanto, as implicações para
o uso de sua experiência pela terapeuta confluente e os modos
específicos pelos quais a Gestalt-terapia pode ser usada para desfazer
essas interrupções são pouco visadas na literatura e na prática da
Gestalt-terapia.
Este artigo tenta preencher parte dessa lacuna. Primeiro,
argumento que Gestalt-terapeutas que têm privilégios de posição social
desenvolvem interrupções habituais de contato que perpetuam
sistemas de privilégio e opressão. Outro modo de dizer isso é que
terapeutas são confluentes com sistemas de privilégio e opressão.
Segundo, defendo que podemos e devemos tomar medidas para sair

2
NT: Optamos por assumir a forma do feminino para aludir a terapeutes, seguindo o que faz a autora.
Ainda que na língua inglesa a terceira pessoa do plural seja neutra, quando ela fala no singular, utiliza
sempre a forma do feminino. Ao nos referir a pessoas trans utilizamos a linguagem neutra.
Michelle Billies • 81

dessa confluência e entrar em contato mais autêntico com clientes.


Trabalhar para se tornar aware e mudar hábitos que representam
práticas culturais opressoras transforma o que e o como a terapeuta
percebe, enriquecendo as possibilidades de contato da terapeuta.
Isso também afeta o que Lynne Jacobs (2003, p. 90) descreve como
os "campos compartilhados" de terapeuta e cliente. À medida que a
terapeuta traz material do fundo para a awareness, ela pode reconhecer
e se engajar mais com o que a cliente apresenta e notar mais o que a
cliente não apresenta, expandindo seus mundos experimentais
compartilhados. Finalmente, pode-se argumentar que sair da
confluência e aumentar o contato mudam os contextos culturais e
comportamentais nos quais terapeuta e cliente existem. Enquanto as
culturas em que vivemos moldam nossas crenças e comportamentos,
também "(...) contribuímos para moldar esses mesmos contextos” (ibid.).

OPRESSÃO SOCIAL NA TERAPIA

Do ponto de vista experiencial, tal perspectiva é estimulante; a


recompensa de praticar a terapia a partir de um lugar mais aware e
menos estereotipado comportamentalmente é um contato mais
radiante, mais enraizado e no qual mais energia está disponível para ser
mobilizada e usada para agir. Essa perspectiva também é assustadora,
pois significa abrir mão de ajustamentos criativos que antes não eram
reconhecidos e que constituem partes do que Philip Lichtenberg chama
de "dinâmica da opressão" (Lichtenberg, 1990). Significa também entrar
em contato com nossas limitações, os custos para nós de tal confluência
e a dor de realidades que aquelas de nós com privilégios não
82 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

experimentamos, realidades sobre as quais temos pouco controle


pessoal, realidades das quais nos beneficiamos no curso normal da vida.
Opressão social - todas as formas pelas quais algumas pessoas
sofrem privações ou prejuízos enquanto outras desfrutam de relativo
conforto, devido ao modo como nossos sistemas sociais operam - pode
ser compreendida como redes de interrupções habituais de contato no
campo do organismo/ambiente. Seguir ordens, comportar-se
referenciada em sua própria cultura, agir com base em ideias que nunca
questionou, tratar alguém a partir de estereótipos etc., implica em
retroflexão, confluência, introjeção, projeção. As interrupções
envolvidas na opressão social não são efêmeras nem são
comportamentos isolados de indivíduos aleatórios. Ao contrário disso,
sistemas e instituições dependem de inúmeras e interdependentes
interrupções de contato para funcionar. A expressão "Redes de
interrupções habituais" faz referência a esse fenômeno.
Trabalhando em conjunto, essas interrupções mantêm o fluxo de
recursos dirigido para algumas pessoas e não para outras e a imposição
de danos para algumas e não para outras. Instituições amplas como o
governo ou o sistema econômico, ou indivíduos poderosos, são alvos
fáceis de culpar pela opressão. Mais interessante e desafiador, no
entanto, é observar as interações cotidianas de pessoas comuns que, por
meio de várias pequenas escolhas, alimentam a opressão social. Gestalt-
terapeutas possuem uma abordagem útil para investigar e desfazer
esses modos de ser com indivíduos, casais, famílias e pequenos grupos.
Ao invés de focar nos "oprimidos", foco em terapeutas que recebem
privilégios de posição social devido a marcadores de identidade como
raça, classe, gênero, habilidade e orientação sexual. Argumento que, em
virtude de crescer e viver em uma sociedade cronicamente injusta,
Michelle Billies • 83

somos confluentes de muitas maneiras com ela e, como tal,


desenvolvemos interrupções habituais de contato que a sustentam.
Uma vez que estas interrupções habituais são frequentemente
manifestações de confluência, elas podem parecer normais ou até
valorizadas, tendo sido formadas pelos modelos que recebemos, as
informações que absorvemos, os valores que nos são ensinados e as
identidades que percebemos como válidas para nós.
É importante investigar a confluência, já que é uma ação de inibir
o contato: "Sem ... esse senso de algo a ser notado [e]...de nos
aproximarmos… não pode haver surgimento e desenvolvimento de
figura/fundo, portanto, nenhuma awareness, nenhum excitamento,
nenhum contato!" (Perls et al., 1951, p. 118 - original em itálico, obs.
minha entre colchetes). Terapeutas devem ser capazes de trazer o que
está não aware no fundo - devido à confluência - para o primeiro plano,
antes que possam analisar as introjeções, projeções, retroflexões e
egotismos também envolvidos em suas relações opressivas.
Peggy McIntosh criou uma lista de privilégios brancos - os
benefícios de viver como uma pessoa branca, às vezes com privilégio de
classe, mas não exclusivamente - que demonstra confluência com os
sistemas sociais. Ela vê

... privilégio branco como um pacote invisível de bens não adquiridos com
os quais eu posso contar todos os dias, mas sobre os quais ‘devo’ permanecer
inconsciente. O privilégio branco é como uma mochila invisível e sem peso
de provisões especiais, mapas, passaportes, livros de códigos, vistos, roupas,
ferramentas e cheques em branco (McIntosh, 1988, p. 264).

A metáfora desmistifica o privilégio branco como um processo


material do qual os brancos participam.
84 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Usando o enquadramento de McIntosh para explorar minha


confluência com sistemas sociais opressivos, como uma terapeuta
branca, lésbica e com privilégios de classe, identifico as seguintes
"provisões especiais": minhas credenciais e competência como clínica
provavelmente não serão questionadas com base na minha raça ou
classe. A maioria dos estudos psicológicos gerais que li incluirá pessoas
da minha origem racial e de classe. Eu posso escolher não acessar
experiências de opressão de raça ou classe de clientes, se eles não as
identificarem como problema. Eu também posso optar por não explorar
a forma como racismo e pobreza podem estar afetando relações
terapêuticas. A cultura dominante me estimula a pedir à minha cliente
que me eduque sobre sua identidade étnica, ao invés de eu mesma me
educar. A maioria de minhas mentoras profissionais e colegas se
assemelham comigo. Meu grupo profissional predominantemente
branco e com privilégio de classe pode escolher se aborda ou não o
racismo estrutural e o privilégio de classe.
A experiência concreta e vivida de privilégio e opressão influencia
as figuras que emergem para a terapeuta. Confluência com a opressão
sistêmica pode estar presente no trabalho clínico de terapeutas, como
nos exemplos a seguir: Terapeutas podem:

• desvalorizar a importância da identidade de um ou uma cliente como membro


de um grupo oprimido;
• generalizar para o ou a cliente com base em sua experiência de grupo
privilegiada;
• minimizar a extensão do sexismo, racismo e outras formas de opressão;
• distanciar-se, exotizando a experiência do ou da cliente;
• diagnosticar certos grupos de identidade, como pessoas gays ou transgêneres,
como pessoas desenvolvimental ou psicologicamente deficientes;
Michelle Billies • 85

• permanecer pouco qualificadas para trabalhar com clientes de grupos


oprimidos;
• relacionar-se com clientes com base em estereótipos;
• ignorar as implicações de privilégio com um ou uma cliente do mesmo grupo
privilegiado; entre outros.

Gestalt-terapeutas podem trabalhar para libertar-se de hábitos


socialmente inscritos, que impedem o contato vívido com clientes.
Como Gestalt-terapeutas comprometidas com a plenitude do contato e
o bem-estar do ou da cliente, devemos assumir a responsabilidade por
nosso comportamento e pela confluência que contribui para esse
comportamento. Em particular, podemos aceitar a obrigação de
desenvolver consciência dos privilégios que recebemos com base em
nossas posições sociais e ficar aware das interrupções habituais que
adotamos e que apoiam nosso privilégio.
Tendo em vista sustentar meu argumento, utilizarei a teoria de
campo para fundamentar uma compreensão da opressão social. Em
seguida, discutirei uma concepção processual de identidade para
mostrar como o privilégio sistêmico e a opressão moldam as identidades
de terapeutas e como, quando terapeutas se comportam de acordo com
essas identidades, frequentemente interrompem o contato. Isso
incluirá uma exploração das forças contextuais que afetam fortemente
a identidade. Demonstrarei, então, que uma compreensão dos arranjos
do poder social é fundamental para intervenções efetivas na relação
terapêutica. Finalmente, mostrarei como o processo de Lichtenberg
para desfazer a dinâmica da opressão oferece o início de um método da
Gestalt-terapia para que terapeutas assumam a responsabilidade por
seus privilégios; resistam à atração de confluência com sistemas sociais
de privilégio e de danos; ajam com maior grau de espontaneidade e
86 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

congruência com as realidades dos contextos em que terapeuta e cliente


vivem; e, por fim, transformem o campo fenomenológico para longe das
interrupções habituais da opressão social, em direção ao contato
saudável e ao crescimento.

TEORIA DE CAMPO: OPRESSÃO SOCIAL

Kurt Lewin oferece um modo útil de conceituar o campo


organismo/ambiente 3.. Utilizando sua teoria de campo, a opressão social
pode ser compreendida como o uso do poder para induzir forças no
campo que direcionam recursos para certos grupos de pessoas
(resultando em saúde e riqueza) e que se distanciam de outros
(resultando em sofrimento material); e afastam o prejuízo de certos
grupos (resultando em longevidade, e vidas saudáveis) para dirigir a
outros (resultando saúde mais precária, aumento do sofrimento e morte
precoce) 4.
O poder inclui o controle sobre os recursos necessários, o controle
sobre as grandes instituições, a capacidade de ativar sistemas seletivos
de recompensa e a capacidade de ameaçar ou cometer atos de violência
(Rhodes, 1999). Se uma pessoa está no grupo recebendo ou tendo
recursos negados, depende em grande parte da posição social - a
intersecção, marcadores de identidade fluidos, como gênero, classe,

3
Lewin concebe todo comportamento individual como “...uma mudança de algum estado de um campo
em uma dada unidade de tempo...” onde o campo inclui todos os fatos que afetam o comportamento
(Lewin, 1951, p. xi). Ele sugere três áreas de fatos úteis para a psicologia: o “espaço vital” do indivíduo
que é “... a pessoa e o ambiente psicológico tal como existe para ele”; os “... processos no mundo físico
ou social que não afetam o espaço de vida...” em determinado momento; e a “zona fronteiriça” onde
“...certas partes do mundo físico ou social afetam o espaço vital naquele momento” (Lewin, 1951, p. 57).
4
Lewin define “força” como “... a tendência à locomoção...” e “poder” como “... a possibilidade de induzir
forças” (ibid., pp. 39f.). Uso o termo "recursos" para indicar elementos do campo úteis à manutenção e
desenvolvimento humano.
Michelle Billies • 87

raça, identidade sexual, capacidade física e idade, são frequentemente


usados de forma explícita ou implícita, na lei ou na prática, para
determinar quem recebe recursos ou danos. Como exemplos, mais
homens dirigem grandes corporações do que mulheres (USA Today,
2003); pessoas não brancas recebem penas de prisão mais longas do que
pessoas brancas por posse e venda de cocaína (HRW, 1999); casais
heterossexuais têm acesso aos benefícios estatais do casamento civil
nos Estados Unidos e casais gays e lésbicas não (OCRT, 2001); e assim
por diante.
A pessoa que recebe privilégios, muitas vezes, não possui poder
suficiente para alterar diretamente essa configuração. Ao mesmo
tempo, ela não é simplesmente passiva. Ao invés disso, ela participa
ativamente (ainda que involuntariamente) na direção do fluxo de
recursos, empregando ajustamentos criativos que ela desenvolveu, os
quais resultam em seu contínuo recebimento de privilégios. Enquanto
aqueles com poder podem manipular forças contextuais para canalizar
recursos e causar prejuízos em certas direções, aqueles de nós que
recebem privilégios sociais também empregam as provisões especiais
em nossas mochilas. Por exemplo, se um casal heterossexual se casa nos
Estados Unidos, eles obtêm acesso a 1.400 direitos legais e benefícios
financeiros (como cidadania para cônjuge imigrante, benefícios fiscais,
previdenciários e benefícios de pensões; seguro saúde; direitos
parentais, etc. - OCRT, 2001). Ao se casarem, eles participam do
direcionamento do fluxo de recursos sociais para si mesmos e se
distanciam de algumas obrigações. Casais que têm o mesmo gênero não
recebem os mesmos benefícios e ainda mantêm as obrigações para com
o Estado. Não só aceitando os benefícios do casamento, mas também, na
88 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

maioria dos casos, abstendo-se de contestar o sistema de benefícios, o


casal ajuda a perpetuar políticas sociais injustas.

OS PROCESSOS E EVENTOS DE IDENTIDADE

"Homem", "branco", "rico" e "hétero" não são categorias


permanentemente definidas. As identidades podem ter uma espécie de
estabilidade devido à repetição de processos sócio-organísmicos, mas
não são estáticas. São gestalten (no sentido de totalidades perceptivas)
de identidade - ora fixas, ora vivas - no campo organismo/ambiente 5. A
seção anterior discutiu como as pessoas podem interromper o contato
devido a fatores associados às suas identidades. Se a identidade for
entendida como mutável, torna-se possível reconhecer, analisar e
alterar as interrupções habituais associadas a certas identidades.
Três implicações do conceito de contato no campo
organismo/ambiente sustentam o entendimento de que a identidade é,
por sua natureza, mutável. Primeiro, o campo organismo/ambiente
implica que cada elemento no campo só tem significado em relação ao
seu contexto; segundo, o contato é um processo experiencial em
constante movimento; e terceiro, o contato por definição inclui
confluência na fase final.
Em primeiro lugar, a identidade é contextual. Da mesma forma que
o organismo não é separado do ambiente, não existe ser humano
separado de seu contexto. A terapeuta não pode ser entendida sem a
compreensão do que está a sua volta, sua história, sua família, sua
educação etc. A terapeuta é uma "pessoa da cultura". Ela e cliente

5
Uso "gestalten fixadas" para indicar padrões resultantes da interrupção habitual do contato e "gestalten
vívidas" para me referir àquilo que emerge no processo de contato pleno, aberto, aware e energizado.
Michelle Billies • 89

experimentam ambos “... identidade racial/cultural, herança étnica,


classe socioeconômica, gênero, idade, capacidade mental/física e
orientação sexual” (Plummer, 1997, p. 191). Essa noção captura tanto a
natureza multidimensional da identidade quanto a ideia de que a
identidade é formada e se modifica em relação a muitos aspectos da
cultura.
Em segundo lugar, a identidade não é um estado; é um processo. O
conceito da operação do self retrata a experiência humana como a
experiência dinâmica de contato no campo organismo/ambiente. Isso
permite que uma análise da identidade mude o foco do indivíduo ou da
sociedade para o processo de sua interação. A identidade de uma pessoa
é continuamente recriada em intercâmbio com a cultura.
Carl Hodges descreve de forma útil a identidade como um
acontecimento (2002). Essa descrição converte algo que costumamos
pensar como uma coisa fixa, uma identidade, em um processo do campo
fenomenal. Embora ele não especifique a orientação teórica por trás de
seu uso da palavra "campo", se aceitarmos sua concepção de campo
como “... a interação dinâmica de forças e restrições” (Hodges, 2001, p.
3), torna-se possível entender também uma gestalt perceptiva como “...
um equilíbrio dinâmico...” que foi alcançado “quando... forças interagem
sem restrição...” (ibid.). A identificação e o contato com elementos do
campo organismo/ambiente que se tornam figura no momento podem
ser vistos tanto como formação de uma gestalt quanto como experiência
de identidade. O fato dessas identificações serem muitas vezes
semelhantes de um momento para o outro pode resultar em um senso
de identidade relativamente contínuo, mas a experiência de identidade
de uma pessoa é uma série interminável de acontecimentos.
90 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A concepção de Plummer apoia ainda mais a noção de identidade


como um acontecimento, destacando que a cultura não é um pacote fixo
de características que permanece o mesmo ao longo do tempo. É “... uma
relação social que interage com outros [intercambiando] processos
sociais...” (Plummer, 1997, p. 192, obs. minha entre colchetes). Os
conteúdos e significados de todos os marcadores identitários se
transformam em forças de mudança do campo fenomenal de uma
pessoa. A "terapeuta-da-cultura" não é o resultado determinado de
interação com ambientes fixados; os significados das interações
diferem ao longo do tempo, em diferentes contextos e em diversas
culturas.
Como um exemplo de identidade como um acontecimento, me
imagino como uma adolescente, figurativamente aware de meu vestido
branco curto, luvas e botas, balançando ritmicamente minhas mãos
marchando na banda da escola de ensino médio. Neste momento,
identifico-me e sou identificada como uma majorette de bateria, similar
a todas as majorettes de bateria em todo o país, ao longo do tempo. Neste
momento, eu me identifico e sou identificada como uma majorette de
bateria. Depois, em outro momento, coloco roupas de ficar em casa e
assisto televisão, adiando minha tarefa de casa. Neste momento, sou
uma adolescente procrastinadora. Que elementos, que forças do campo
fenomenológico considero relevantes no momento que me levam a
identificar-me como majorette de bateria? Quais forças no campo eu
desconsidero para me sentir como uma adolescente procrastinadora?
De volta ao campo de futebol, de repente um menino assobia para mim.
Qual é a minha identidade agora? O que se torna mudanças na figura;
luto com a minha experiência sobre mim mesma como majorette de
bateria e a mensagem adicional do ambiente de que sou percebida e
Michelle Billies • 91

identificada como sexy e mulher. Se - e como - integro essa força do


ambiente configura minha experiência de identidade no momento.
Uma terceira implicação do campo organismo/ambiente que
sustenta a ideia de que a identidade não é um estado fixo, decorre do
fato de que a identidade é criada no contato. A fase final do contato
inclui a experiência da confluência (ver Perls et al., 1951, pp. 118f.). A
identidade pode soar ou parecer uma parte indiferenciada do ser por
causa da própria maneira pela qual desenvolvemos e mantemos
identidades. A gestalt vívida da identidade - uma experiência
informada, complexa, flexível e integrada, como o orgulho de sua
origem étnica; prazer da própria condição de ser mulher; compromisso
com a própria história religiosa; um senso de responsabilidade como
cidadã de uma nação engajada em uma ocupação militar - é a
experiência de contato saudável, o orgulho, o prazer, o compromisso e
a responsabilização, são evidências da fase final do contato. Tal
confluência acontece repetidamente, muitas vezes de modo
imperceptível, a função personalidade levando a uma ideia
relativamente estável de nós mesmas, coloquialmente referida como
nossa identidade. Dessa forma, identidades podem “... liberar atenção
para o que é novo e interessante” (Perls et al., 1951, p. 120). A confluência
na fase final do contato saudável, pleno e aware é um meio pelo qual a
identidade se torna parte do fundo.
Outro modo disso acontecer é através do que Perls et al. nomeiam
hábitos "espontaneamente adquiridos" (ibid.). Alguns comportamentos
e inibições são absorvidos no decorrer da vida, liberando a atenção para
o novo. Por exemplo, uma pessoa aprende através de modelagem o quão
perto se deve ficar ao cumprimentar alguém. Isso varia de acordo com
a cultura e muitas vezes denota respeito, cortesia ou posição social. Para
92 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

pessoas acostumadas a uma certa distância física, isso libera a atenção


para o momento do encontro.
Outros gestos e ações constituem confluência pouco saudável,
interrompendo o contato. Por exemplo, uma mulher branca pode
agarrar sua bolsa em um elevador quando um homem de cor da pele
diferente entra. Ninguém lhe disse para fazer isso; ela não tem
consciência do que o fez; e não está ciente das mensagens sociais que
afetaram sua percepção de que “homens não brancos não são
confiáveis”. Ela desenvolve consciência depois de ler sobre isso como
um padrão experienciado por homens não brancos. Seu hábito
adquirido espontaneamente foi revelado para ela como uma
interrupção de contato humano; ela se comportou em relação a um
passageiro no elevador com base em seu estereótipo inconsciente.
Além disso, ela descobre que é isso que muitas "mulheres brancas"
fazem. De repente, ela não é apenas uma pessoa em um elevador, não
apenas uma mulher em um elevador, mas uma mulher "branca". Na
medida em que ela age a partir da confluência com a mensagem
socialmente opressora de que homens não brancos tendem a roubar a
carteira de uma mulher branca, e com a percepção de que ela é branca e
ele é um homem não branco, “branca” obtém significado nesse
momento através de seu comportamento e seu contexto.
Observe que isso inclui um comportamento que pode não apenas
ofender, enfurecer ou ferir um indivíduo, mas também ter efeitos
sociais, porque ela perpetua a própria mensagem social que recebeu.
Em suma, enquanto marcadores de identidade são usados de forma
explícita e implícita para determinar quem recebe benefícios sociais e
quem sofre danos, esses padrões não são fixos. Implicações do campo
organismo/ambiente revelam que a identidade é um processo, uma
Michelle Billies • 93

série contínua de eventos. Com essa compreensão torna-se possível


reconhecer aqueles componentes recorrentes de identidade que
constituem confluência com mensagens sociais e outras forças do
campo fenomenal que mantêm a opressão social e privilégio.
Antes de uma discussão de estratégias para desfazer tal
confluência, a próxima seção analisa as mensagens sociais e o discurso
social de forma mais ampla. Isso tentará esboçar uma análise das forças
tipicamente compreendidas como estando no "ambiente social" que
tendem a ser pouco exploradas na prática e no treinamento em Gestalt-
terapia.

DISCURSO DOMINANTE E GESTALTEN DE IDENTIDADE

Uma vez que as interrupções habituais de contato associadas a


certas identidades ocorrem no mundo tal como ele é percebido e
vivenciado – o que também pode ser chamado de “contexto” de uma
pessoa (Jacobs, 2003, p. 90) - terapeutas podem se beneficiar de um
método para analisar as forças materiais e sociais que os afetam. A
teoria do discurso oferece um método de investigação das forças sociais
e materiais de opressão. Análises históricas, econômicas e políticas são
outras ferramentas indispensáveis para conceitualizar um determinado
contexto.
A teoria do discurso diz que processos discursivos como
linguagem, imagens, gestos e estrutura narrativa constituem a
realidade; eles não descrevem simplesmente uma realidade
preexistente (Sampson, 1993, p. 1221). Os processos discursivos moldam
fundamentalmente o que é experimentado como realidade, oferecendo
interpretações da experiência em relação as quais o restante de nós
94 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

podemos comparar nossas vidas. Perls et al. (1951) sugerem isso ao


comparar a arte e as imitações comerciais: "... alguns artistas capturam
na experiência real símbolos de paixão e excitação sensorial; esses
símbolos são abstraídos e estereotipados por imitadores comerciais; e
as pessoas fazem amor ou aventura de acordo com essas normas de
glamour" (Perls et al., 1951, pp. 316f.). Tanto os símbolos artisticamente
expressos quanto os símbolos abstratos e estereotipados são formas de
discurso social.
Usando recursos sobre os quais eles possuem controle, aqueles que
têm poder moldam a realidade empregando discursos que sustentam
seus objetivos por meio da publicidade, mídia, escolas e outras
instituições. No processo, eles circunscrevem experiências e
identidades, criando estereótipos e caracterizando alguns poucos como
"aceitáveis" ou "valiosos". Discursos que estão fora dos discursos
dominantes não são ouvidos ou reconhecidos ou são rotulados como
desviantes (Sampson, 1993, p. 1220).
A forma de aplicação feita por Hodges (2002) das dicotomias de
identidade - masculino/feminino, gay/hétero, jovem/velho - é
instrutiva. Por exemplo, historicamente, qualidades como "forte",
"inteligente" e "racional" foram chamadas de "masculinas", enquanto
"fracas", "pouco inteligentes" e "irracionais" foram chamadas de
"femininas". Esses estereótipos mantêm o poder ao serem perpetuados
em nossas vidas diárias por meio de comerciais, material didático em
sala de aula, políticas institucionais religiosas, etc. Quando as pessoas
introjetam os estereótipos de gênero promovidos, eles são mais uma vez
reinscritos na cultura.
Esta reinscrição contínua dá suporte à distribuição de poder e ao
fluxo de recursos existentes. Ou seja, a atribuição de certas qualidades
Michelle Billies • 95

para garotos e homens e para garotas e mulheres ao longo do tempo


molda o que parece possível e aceitável pelos membros da sociedade. Os
estereótipos de gênero sustentam o sistema desigual de privilégios
masculinos e de desvantagem feminina, tanto por justificar a injustiça
como pelo acesso à regulação social de poder e de recursos.
Em termos da Gestalt-terapia, a gestalt potencialmente vívida de
gênero (cujo significado emerge, se o fizer, no momento) é
habitualmente interrompida e torna-se uma gestalt fixa de estereótipos
de gênero. Isto ocorre porque, como forças no campo contextual, as
mensagens sociais afetam fortemente o campo fenomenológico
humano, moldando o possível, ao mesmo tempo em que eliminam o
potencial orgânico saudável. A awareness da pessoa sobre uma gama de
possibilidades não é fomentada; os benefícios sociais e políticos de se
identificar consistentemente com uma ou outra identidade de gênero
são grandes; e os custos de recusar a identificação com um ou outro
estereótipo de gênero (ou identificando-se aparentemente com um,
parecendo contrastar com a percepção de que se é outro) são altos. A
menos que se encontre suporte para manter as identidades prescritas à
distância - oferecendo a alguém o tempo e a capacidade de atender aos
seus próprios interesses até que se forme uma figura saudável - a
oportunidade para uma diferença significativa nascida do contato
saudável no momento é perdida.
A teoria do discurso e as concepções de Hodges complicam a
compreensão do campo fenomenal de modo útil para Gestalt-
terapeutas. Assim como o organismo humano existe em seu contexto,
também existe cada força do ambiente; as normas sociais não apenas
"existem". Explorar as normas sociais pode ajudar terapeutas a
questionarem os padrões sociais que podem ser identificados no
96 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

momento terapêutico. Terapeutas também podem investigar o ponto de


vista a partir do qual estão avaliando as normas, identificando as formas
que podem estar apoiando as identidades culturais fixas.
Edward Sampson argumenta que as terapeutas teriam que
encontrar seus clientes em um diálogo genuíno onde cada um tem seu
ponto de vista e nenhum é dominante (Sampson, 1993, p. 1227). Ele
afirma que isso só seria possível com uma política de identidade que
alterasse os termos do discurso social. Em apoio ao seu argumento, há
evidências de que, com as mudanças sociais, as gestalten fixas às vezes
podem se libertar para a possibilidade de contato mais vívido. Os ganhos
da segunda onda do movimento de libertação das mulheres fornecem
um exemplo de como as gestalten de identidade fixa podem se
transformar em gestalten mais vívidas. O terreno para mulheres e
homens tornou-se mais rico em possibilidades. Tendo sido libertadas de
muitas restrições legais e sociais de gênero, muitas pessoas agora são
capazes de se sentirem mais plenamente humanas a cada momento.
As terapeutas podem contribuir para a liberação de gestalten fixas
identificando formas de discurso social que sustentam e são
sustentadas pelo discurso dominante e empregando estratégias para
desfazer a sua adesão a tal discurso.

EXPANDINDO A COMPETÊNCIA CULTURAL: ASSUMINDO A


RESPONSABILIDADE PELA SUA POSIÇÃO SOCIAL

A investigação da identidade e da cultura nas relações terapêuticas


ocorre em um contexto no qual a psicoterapia e disciplinas afins vêm
abordando a diferença cultural há décadas. A sensibilidade cultural e os
modelos de competência cultural de desenvolvimento profissional
foram criados para que terapeutas pudessem desenvolver
Michelle Billies • 97

conhecimentos e habilidades específicas para trabalhar com clientes de


origens culturais diferentes das suas. A competência cultural é vital
para Gestalt-terapeutas, pois os dados que informam as percepções da
experiência do cliente são muito especificados e aprimorados. Gestalt-
terapeutas podem então diagnosticar com mais confiança as
interrupções e criar experimentos.
No entanto, nos modelos de sensibilidade cultural, as diferenças de
poder entre terapeuta e cliente tendem a ser subestimadas. Além disso,
terapeutas com privilégios sociais correm o risco de localizar a
"diferença" no cliente. Ainda, nem todos os modelos lidam com
potenciais armadilhas nos casos em que o terapeuta e o cliente
compartilham uma cultura semelhante. Finalmente, embora vários
modelos sugiram que o terapeuta observe sua própria cultura e seu
efeito no relacionamento terapêutico, poucos oferecem métodos
psicoterapêuticos para fazê-lo. Este artigo postula a importância de
incluir a awareness e a responsabilidade pela própria cultura como
terapeuta na competência cultural.
Identificar as crenças, práticas e poder social relativo da cultura de
cada um são passos essenciais para a tomada de consciência do seu
efeito na relação terapêutica. Como Deborah Plummer aponta,
terapeutas precisam desenvolver "consciência da influência da própria
cultura sobre o comportamento e o pensamento..." e do "... impacto
dessas crenças sobre os outros" (Plummer, 1997, p. 194). Empenhando-
se em um processo de desenvolvimento da awareness dos aspectos da
própria cultura que sustentam e são sustentados pelas forças sociais
dominantes, o terapeuta pode antecipar e abordar seu impacto no
momento terapêutico, envolver o cliente quando apropriado e, quando
possível, desfazer sua participação nestes aspectos.
98 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

DESFAZENDO A DINÂMICA DA OPRESSÃO

Um caminho para desfazer a confluência com a opressão social é


um modelo oferecido por Lichtenberg (1990). Ele investiga o que
denomina "a dinâmica da opressão", as interrupções habituais de
contato interligadas, momento a momento, pelas quais a opressão social
e o privilégio permanecem em vigor. Lichtenberg descreve essas
dinâmicas e delineia um conjunto sequencial de intervenções que as
interrompem. Enquanto Lichtenberg propõe que essas dinâmicas
expliquem os processos tanto para opressores quanto para oprimidos,
eu coloco foco no desempenho do papel de opressor. Especificamente,
sob certas circunstâncias, aqueles de nós com privilégios,
intencionalmente ou não, preenchemos o papel de opressores. Uma vez
que se considerar no papel de opressor pode representar desafios
particulares, acredito que isso requer um foco especial. Compreender
que o preenchimento desse papel não é um estado, mas sim o resultado
recorrente de dinâmicas identificáveis pode apoiar a curiosidade da
terapeuta e mitigar a negação, a defensividade, a culpa, o desamparo ou
a desesperança que possam surgir.
Nesta seção, descreverei alguns aspectos da dinâmica da opressão,
depois discutirei o "processo de circuito rápido" que mantém a
dinâmica no lugar e, finalmente, tentarei aplicar isto como um
instrumento para terapeutas identificarem como este processo pode se
manifestar em suas relações terapêuticas. Para melhor demonstrar a
utilidade da formulação de circuito rápido de Lichtenberg, será útil
explicar em detalhes alguns dos aspectos relevantes de sua teoria.
O termo “dinâmica da opressão” descreve a interrupção do contato
que surge entre os indivíduos através da assunção de papéis
Michelle Billies • 99

correspondentes de opressor e oprimido. Quase todos em nossa


sociedade têm potencial para desempenhar qualquer um dos papéis: "...
nos acostumamos às relações de poder desigual e nos tornamos
opressores em algumas circunstâncias e oprimidos em outras"
(Lichtenberg, 1990, p. 3). Lichtenberg atribui nossa capacidade de
oprimir ao modo como somos tratados quando crianças. Por razões que
vão da segurança à socialização e ao abuso, os pais quase
universalmente, agem até certo ponto para interditar a vontade de seus
filhos (ibid.). Essa, ele sugere, é nossa experiência inicial de opressão.
Lichtenberg descreve a série de processos emocionais, cognitivos e
somáticos pelos quais as pessoas assumem os papéis de opressor e
oprimido. Esses processos parecem automáticos devido ao que
Lichtenberg chama de "processo de circuito rápido" (descrito abaixo)
pelo qual eles ocorrem rapidamente e fora da awareness (1990, p. 51).
Apenas desacelerando o processo para observar cada etapa, faz cada um
dos itens a seguir emergir como aparente.
De acordo com Lichtenberg, no processo de assumir o papel de
opressor, enquanto a pessoa a princípio sente sua “espontaneidade
natural”, ela começa a experimentar emoções que lhe são intoleráveis,
como medo da exposição, impulsos fortes que são tabu ou intensa
defensividade (ibid., p. 26). Ela sente, então, profunda ansiedade e raiva
e precisa administrar todos esses sentimentos, mas, significativamente,
não acredita que tenha capacidade interior para fazê-lo (ibid., p. 25f).
Ela, então, projeta esses sentimentos em um outro, a quem ela culpa e
odeia por seu estado emocional, impossível de gerir de outro modo (ibid.,
p. 30). Através de suas projeções, ela perde o senso de fronteira entre ela
e o outro, fundindo-se com ele. Da mesma forma, a pessoa que ocupa o
papel do oprimido é confrontada com os fortes sentimentos do opressor
100 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

e não pode administrá-los ou escapar deles (ibid., p. 12). Ela também


experimenta intensa ansiedade e raiva (ibid., pp. 12, 14). No seu caso, ela
retroflete a raiva como culpa e ódio a si mesmo (ibid., p. 15). Ela também
perde seu limite com o opressor e eles estão agora em um
relacionamento contingente (ibid., p. 50). Como nenhum deles tem apoio
suficiente em seus campos fenomenais ou encontra-se com suas funções
de self operando satisfatoriamente para experimentar um contato
saudável com sua excitação, ansiedade ou raiva, cada um se torna
confluente com o outro (ibid., p. 45).
Resumindo o esboço de Lichtenberg à sua essência, a sequência
abaixo mostra a progressão dos ajustes reativos do opressor a cada
momento, desde o sentimento original de excitação até o resultado final
da confluência:

1. excitação
2. ansiedade
3. raiva
4. culpa/auto-ódio
5. culpa/desprezo
6. confluência

Devido, em parte, à nova necessidade de manutenção da dinâmica


de opressão - por falta de alternativa ou suporte - cada pessoa
desenvolve um "processo de circuito rápido" no qual percorre cada
etapa dessa dinâmica em rápida sucessão sem awareness (Lichtenberg,
1990, p. 51). O circuito rápido é o hábito que se desenvolve ao assumir
repetidamente esses papéis e que mantém a relação no lugar. A pessoa
que assume o papel de opressor não está ciente do evento
desencadeador que põe a dinâmica em movimento, nem está ciente de
Michelle Billies • 101

suas emoções subsequentes; ela parece imediatamente desempenhar o


seu papel. A dinâmica opressor/oprimido é, assim, mantida em díades e
por mecanismos adicionais nos níveis grupal e social.
Enquanto a relação criada por meio de comportamentos
recorrentes de opressor/oprimido tem uma estabilidade que pode
parecer quase permanente, na realidade ela é sempre frágil porque a
espontaneidade natural de ambos os participantes continua a emergir
(ibid., p. 57). A cura é possível retardando o processo e retrocedendo em
cada etapa até que cada momento possa ser tolerado e vivido com suas
emoções concomitantes e dolorosas em direção a uma nova saúde
organísmica (ibid., p. 59). Como descreve Lichtenberg:

... depois que a pessoa basicamente trabalhou livre de esforços para fundir
desejos com o outro, a culpa e o ódio a si mesmo se tornam focais; ... quando
a culpa projetada e o ódio a si mesmo, na forma de culpa e desprezo pelos
fracos, são reconhecidos e reexperimentados como culpa própria e ódio a si
mesmo, ... o auto perdão torna-se possível; se a raiva pode ser... mantida na
experiência pessoal por tempo suficiente,... pode ser feito um melhor uso
dela nas relações sociais onde é pertinente; se as pessoas podem aceitar sua
ansiedade e permanecer com ela no caminho para se preparar para o perigo,
então também estão no caminho para transformar sua ansiedade de volta
para o excitamento de encontros espontâneos. (1990, p. 109f)

O processo de circuito rápido pode ser útil como um modelo para


as mudanças emocionais e comportamentais necessárias para sair do
papel opressor e entrar em contato mais saudável. Diagnosticar onde
alguém pode estar preso no processo de circuito rápido nos leva a ser
capaz de encontrar suporte para desfazer os ajustamentos criativos que
o mantém lá. Esse modelo é útil para terapeutas na medida em que
representa uma sequência comum de interrupções. Não é um modelo
102 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que devemos seguir, mas sim um modelo que muitas de nós, sem saber,
seguimos. Ver a sequência e aplicá-la às relações terapêuticas pode ser
útil para identificar maneiras pelas quais a pessoa continua a assumir
aspectos do papel opressor e interromper o contato.
Usando a sequência acima como um guia e extraindo diretamente
da minha própria experiência ou da experiência de outros (com as
informações de identificação alteradas), oferecerei um exemplo (em
itálico) e comentarei (em caracteres normais) cada momento do
processo de circuito rápido de uma terapeuta assumindo o papel do
opressor. É crucial notar que estou usando uma lente estreitamente
construída com o propósito de entender a relação entre o
comportamento da terapeuta, o processo de circuito rápido e o papel de
opressor. O exemplo omite a riqueza do trabalho e a variedade de fatores
que contribuem para o comportamento da terapeuta.

ÚLTIMO MOMENTO NO PROCESSO DE CIRCUITO RÁPIDO: CONFLUÊNCIA

A terapeuta branca não levanta questões da raça do ou da cliente ou


da raça da terapeuta a menos que o ou a cliente inicie a exploração delas. A
afirmação "Eu não vejo cores (quando olho para as pessoas)" pode
indicar a falta de um senso de diferença relevante. Uma orientação
"daltônica" em relação à raça não leva em conta adequadamente como
e quando os aspectos da identidade racial são relevantes para a
experiência do ou da cliente e/ou da terapeuta.

QUINTO MOMENTO: CULPA/DESPREZO

Uma terapeuta não transgênere enfatiza principalmente a


responsabilidade de ume cliente transgênere pelos sentimentos que os outros
Michelle Billies • 103

têm em relação ao seu gênero. Acreditar-se "normal" em vez de


privilegiado, juntamente com a confiança em estereótipos, pode levar
uma terapeuta a culpar um ou uma cliente por sua diferença. Isso pode
se manifestar como homens interpretando mulheres assertivas como
grosseiras, pessoas brancas vendo pessoas não brancas como raivosas,
pessoas heterossexuais vendo lésbicas como militantes e assim por
diante. Os problemas que atingem o grupo-alvo são vistos como sua
própria culpa, ou atribuindo a eles pelo menos igual responsabilidade,
considerando que deveriam ser mais compreensivos com as pessoas
'normais'.

QUARTO MOMENTO: CULPA/AUTO-ÓDIO

A terapeuta privilegiada financeiramente permite que um ou uma


cliente de baixa renda pague muito abaixo da taxa mínima daterapeuta; a
terapeuta desenvolve ressentimento. Os sentimentos de culpa por ter
privilégios representam um ajustamento criativo num ambiente em que
a raiva não é suportada e em que a responsabilidade real pela injustiça
na sociedade é deslocada. A raiva é dirigida para dentro, em vez de para
aquilo com o que a pessoa ficou indignada.

TERCEIRO MOMENTO: RAIVA

Irritada com o racismo em sessões com um ativista antirracista


branco, a terapeuta branca frequentemente se concentra no racismo do
cliente, abordando de forma insuficiente outras questões importantes para
ecliente, como as relações familiares. Irritada com a ansiedade reprimida
devido a habilidades inadequadas e saídas insuficientes para seus
104 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sentimentos, a terapeuta se concentra nas falhas que vê no cliente,


tentando administrar seus próprios sentimentos.

SEGUNDO MOMENTO: ANSIEDADE

Tendo desenvolvido consciência e habilidades, uma terapeuta não


transgênero anuncia seu conhecimento e treinamento transgênere a ume
cliente de experiência transgênere antes de descobrir que u cliente realmente
veio para ajudar no desenvolvimento de carreira. Uma terapeuta pode ficar
entusiasmada com a possibilidade de usar novas habilidades e medo de
cometer um erro. Sem apoio suficiente para sua excitação ou medo, a
ansiedade pode levar à necessidade de "provar" sua facilidade com essas
questões.

PRIMEIRO MOMENTO: EMOÇÃO

Com sua cliente guatemalteca americana, a terapeuta branca explora


a história de assédio racial da cliente em sua escola primária de maioria
branca e de abuso de sua mãe, para ver como isso pode estar moldando sua
experiência adulta de rejeição de amigos. Com suportes ambientais e
internos, a terapeuta pode tirar proveito de sua excitação; ela tem mais
paciência e maior habilidade em diferenciar como e quando abordar
questões de opressão social.
Uma vez que se tenha diagnosticado sua localização no processo de
circuito rápido, pode-se encontrar espaços de cura. Lichtenberg sugere
que um ambiente de exploração livre de críticas, que pode promover o
perdão e o compromisso de mudança, (como um relacionamento
terapêutico) oferece condições que tornam possível trabalhar através do
processo de circuito rápido (Lichtenberg, 1990, pp. 110f). "A pessoa
Michelle Billies • 105

primeiro se torna aware de cada emoção social e depois aprende a


expressá-la de forma mais produtiva ou a abandoná-la por uma emoção
mais vívida" (ibid., p. 109).
O processo de Lichtenberg oferece uma ferramenta útil de
desconstrução que pode liberar o terapeuta para interações mais
espontâneas e mais vivas no momento que também apoia uma forma de
sociedade mais saudável para seus membros.

CONCLUSÃO: ESPONTANEIDADE, RESPONSABILIDADE, HUMANIDADE

Com grande dor e terror, alguém começa a avaliar a história que a colocou
onde está e formou o seu ponto de vista. Com grande dor e terror porque
entra-se, então, em batalha com essa criação histórica, Eu mesmo, e tenta
recriar a si próprio segundo um princípio mais humano e mais libertador;
inicia-se a tentativa de alcançar um nível de maturidade pessoal e de
liberdade que rouba a história do seu poder tirânico, e também muda a
história. (BALDWIN, 1965, p.410)

James Baldwin resume a esperança de confrontar a própria


história que a Gestalt-terapia torna possível para seus profissionais e
clientes. Aquelas de nós que recebem os privilégios de determinadas
identidades sociais são responsáveis por si mesmas e por seus processos
de circuitos rápidos que reproduzem a opressão. A autorreflexão e o
compromisso com a mudança podem não ser suficientes para
reorientar todas as formas pelas quais exercemos poder em nossas
identidades sustentada pela dominância - mas elas são possíveis e
necessárias. Este artigo oferece um conjunto compacto de ideias e
passos que terapeutas podem usar para ajudar a ficarem menos presos
aos hábitos de confluência, mais capazes de contatar outros em sua
106 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

humanidade liberta e, quando necessário, mais capazes de ajustar a


sociedade a si mesmas.

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3
GESTALT-TERAPIA COMO CLÍNICA DE SITUAÇÕES
CONTEMPORÂNEAS: AS DIMENSÕES ESTRUTURAIS
DE RAÇA, CLASSE E GÊNERO COMO FIGURA
Gestalt therapy as a clinic for contemporary situations: the structural
dimensions of race, class and gender as a figure
La terapia gestalt como clínica de situaciones contemporáneas: las
dimensiones estructurales de raza, clase y género como figura

Mônica Alvim
Paulo Antonio de Oliveira Muniz
Cheyenne Monteiro Wolf Von Arcosy

INTRODUÇÃO

Pensar uma clínica de situações contemporâneas (Alvim & Castro,


2015) implica em um movimento permanente de atenção crítica para o
mundo em suas diversas dimensões (político-ideológica, econômica,
tecnológica, cultural), suas transformações e repercussões na vida, na
história, na sociedade - e nos processos de subjetivação. A complexidade
das forças políticas, dada pelo modo de produção capitalista neoliberal
e suas transformações, requer do psicólogo uma capacidade crítica da
cultura e da sociedade, de sua práxis, exigindo um olhar atento para as
forças contemporâneas e suas implicações nos processos de
subjetivação, que afetam os clientes e o próprio terapeuta.
O trabalho e a pesquisa clínica que vimos propondo reflete o
movimento da psicologia rumo a um novo paradigma que busca o inter-
relacionamento de disciplinas, áreas e campos de atuação do psicólogo.
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 109

Integra a psicologia clínica, social, comunitária, a psicossociologia, a


sociologia clínica; integra psicologia, filosofia e arte, transitando de um
paradigma cientificista para outro, ético-estético, tal como já proposto
por pensadores como Boaventura de Sousa Santos, Paulo Freire e Félix
Guattari.
O entrelaçamento das dimensões ética, estética e política orienta
nosso trabalho como um todo e a investigação aprofundada dessa trama
em termos de fundamentos, conceitos e método visa a contribuir para a
discussão sobre o sujeito, a produção de subjetividades, o sofrimento e
as práticas psicológicas de uma perspectiva fenomenológica e crítica.
A Gestalt-terapia é uma abordagem que considera a existência um
movimento de criação e devir dado no mundo com o outro. Tendo como
fundamento a noção de campo organismo/ambiente, considera esse
movimento de criação um movimento plástico e espontâneo de
formação de formas dado a partir do campo. Expressar ou criar é
“descobrir-e-inventar”, “ação que sofre”, compreensões que indicam a
ênfase na dimensão pática ou estética como dimensão sensório-motora.
O corpo é ao mesmo tempo mundo e poder de explorar o mundo, sendo
corporalmente e pré-reflexivamente que somos afetados diante da
diferença na temporalidade do mundo e do outro e convocados a um
movimento de criação que transgrida as formas já instituídas, o que nos
leva a pensar na inter-relação do estético e do político permeado por
relações de gênero, raça e classe.
Sendo mundo, a subjetividade-corpo carrega, na forma de
habitualidades, formas sedimentadas que como dimensão de
generalidade são de todo mundo e de ninguém em particular. Essa
dimensão impessoal, anônima e silenciosa que constitui o fundo do
campo ou da situação produz gestos, linguagem, formas de sentir e agir
110 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que são reproduzidas e propagadas, ainda que tragam a marca do estilo


singular de cada sujeito.
Cada gesto expressivo vem como resposta ao campo, quando se
está íntimo do mundo, encarnado, e se pode ouvir os clamores do
mundo repercutindo no campo. Esses gestos expressivos têm a potência
de transformar o campo, o mundo e produzir novas forças e formas. É
nesse sentido que consideramos que uma clínica que pretenda assumir
um sentido de clínica como desvio – etimologicamente Clinamen
(Alvim, 2012) necessite explorar a dimensão originária e anterior à uma
diferenciação subjetiva. Essa dimensão pré-reflexiva e da ordem do
sensível tem sido objeto de diferentes explorações de cunho
fenomenológico na filosofia, na estética, na sociologia, na antropologia
e na psicologia.
Com base nesse fundamento teórico e filosófico e em diálogo com
teorias e filosofias críticas, que exploramos um pouco mais na próxima
seção, neste relato de pesquisa buscamos apresentar nossa metodologia
e os resultados focados em recortes de atendimentos clínicos onde
foram identificados elementos envolvidos com dimensões estruturais
de raça, classe e gênero, compondo o fundo de onde emergem os
processos de subjetivação e sofrimento dos sujeitos atendidos.

FUNDAMENTOS DA PESQUISA

Assumindo uma perspectiva que compreende o corpo e a dimensão


sensível da experiência como o fio que tece a trama das dimensões
estética, ética e política da existência, temos buscado em nossas
pesquisas promover uma exploração dessas dimensões, no campo da
psicologia, da filosofia, da arte e da estética, visando demonstrar de que
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 111

modo essa tessitura se faz e as implicações dessa perspectiva para o


trabalho clínico.
Merleau-Ponty tem parte fundamental no diálogo interdisciplinar
estabelecido nesta pesquisa. Desde a primeira obra (Merleau-Ponty,
1975) o filósofo dialogou com a psicologia, buscando na noção de
estrutura do comportamento um modo não-dicotômico de conceber as
relações com o mundo. Com a noção de forma ou configuração pôde
pensar um sujeito situado, matéria, vida e espírito entrelaçados com o
mundo físico, sócio-cultural e histórico. Discutiu longamente a
percepção e o corpo (Merleau-Ponty, 1994) e em seguida, nos cursos da
Sorbonne, transitou por discussões sobre a linguagem, a arte, a
natureza, a passividade e a instituição, plantando as bases dos últimos
escritos, onde recusaria explicitamente o cogito, a noção de constituição
e desenvolveria a noção de carne.
O desenvolvimento da ontologia da carne, em “O visível e o
invisível” (Merleau- Ponty, 2000), que coloca em novos termos, distintos
daqueles da “Fenomenologia da Percepção” (Merleau-Ponty, 1994), a
percepção, o corpo e a origem do sentido, foi, assim, precedido nos anos
50 por um movimento importante em seu pensamento, uma inflexão
que deslocou o sujeito de um lugar central, no bojo dos trabalhos sobre
a expressão e a instituição (Merleau-Ponty, 2003). A partir desses
trabalhos, a intersubjetividade e a história assumem um lugar de maior
importância: pensar a expressão como instituição permite desviar-se de
uma concepção subjetivista e conduz ao âmbito da intersubjetividade na
tessitura da história (Alvim, 2019).
De acordo com Merleau-Ponty, o visível é sustentado e entretecido
com uma dimensão invisível, “é próprio do visível ser a superfície de
uma profundidade inesgotável” (Merleau-Ponty, 2000, p. 139). A noção
112 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

de profundidade tal como coloca o filósofo francês, não implica uma


profundidade como interioridade subjetiva, mas uma dimensão oculta
e simultânea, na profundidade as coisas coexistem intimamente,
deslizam umas sobre as outras e não podem ser objetificadas por um
olhar que as fixe ou confira a elas nitidez.
Merleau-Ponty compreende que a visão é uma experiência distinta
daquela dos demais sentidos, pois a visão confunde-se com a presença
da coisa vista e tende a se desligar das raízes corpóreas, desimplicar-se
subjetivamente daquilo que se vê (Barbaras, 2011). Straus (1930/1992)
também ressalta essa característica da visão como um sentido que tende
a “objetivar” e distanciar-se de si mesmo em proveito de uma
exterioridade. Uma visão encarnada, tal como propõe Merleau-Ponty,
implica “reconhecer a inscrição da visão no corpo próprio, ou seja, na
relação com os outros sentidos e com o movimento” (Barbaras, 2011,
p.63).
Nesse sentido é que propomos discutir um tipo de invisibilidade de
determinadas dimensões que resulta de um processo histórico de
objetivação. Tal invisibilidade reflete um tipo de visão desencarnada,
analítica e que pretende sobrevoar os fenômenos, produzida por modos
de fazer ciência que se mantiveram dominantes. Esses modelos
científicos foram, por sua vez, produzidos em determinado contexto
sócio histórico e ideológico e não podem ser separados de uma análise
que considere a ideologia e as estruturas de poder. Tais estruturas
produzem forças que visam poder e dominação, agindo de formas
diversas para a manutenção de certa ordem em detrimento de outras. A
título de exemplo, cito a discussão de Federici (2017), que propõe uma
crítica do pensamento marxista a partir de um olhar sobre a história de
um ponto de vista feminino. Para ela, esse olhar “implica uma
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 113

redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e uma


visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração” (op.cit.,
p.29). Federici cita o trabalho de Carolyn Merchant e de Maria Mies que
deslocam o ponto de vista que tradicionalmente orienta as pesquisas,
respectivamente assumindo o ponto de vista feminino e não-
eurocêntrico. Nesse sentido, resgatamos aqui nossas pesquisas
realizadas com o trabalho da extensão, quando modificamos nossos
pontos de vista ao sair da universidade em direção aos espaços
periféricos da cidade, como discutimos em outro trabalho (Alvim, 2019).

Nossas experiências extensionistas com crianças e jovens de favelas nos


colocaram em contato com espaços-tempos demarcados por fronteiras
invisíveis que separam e categorizam pessoas, objetivando e mantendo sua
invisibilidade. O lugar reservado para nós, pesquisadores, é um lugar de
saber científico, que se não for ocupado com zelo, pode se transformar no
lugar de quem vê objetivando e invisibilizando. A tentativa de assumir o
ponto de vista da criança preta, pobre e favelada, ou da mulher que conduzia
essa criança até nós para participar do projeto foi uma experiência que nos
pareceu a princípio impossível, mas que seguindo os caminhos de uma
escuta clínica pautada pela ética da alteridade (Alvim & Castro, 2015) se
anunciou, quase como uma promessa de futuro. Buscar uma visão enraizada
no corpo e no movimento, sabendo de antemão que “ver não é apoderar-se,
mas aproximar-se; não é possuir mas abrir para” (Barbaras, 2013, p.70)
permitiu aproximarmo-nos da profundidade e da não- visibilidade que
suscita um movimento de exploração. De forma que - correndo os riscos de
parecer paradoxal nessa argumentação – a aproximação da não-visibilidade
nos permitiu vislumbrar, na base de suas existências, estruturas de
dominação e opressão que agem fortemente na produção e reprodução de
subjetividades e de sofrimento (Alvim, 2019, p. 893).

A dicotomia social e psíquico, entre outras dicotomias que resistem


no pensamento ainda hoje, resultou muitas vezes na invisibilização ou
114 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

negligência dessa dimensão em prol de visões individualizantes,


psicologizantes e objetivantes. As dimensões raça, gênero e classe
social, por exemplo, são dimensões que há décadas permanecem
invisíveis, desconsideradas ou assumindo segundo plano na produção
de saberes em psicologia, seja nas considerações sobre o sujeito, a
subjetividade, sobre o sofrimento ou sobre os métodos e práticas
psicológicas.
O entrelaçamento natureza e cultura que Merleau-Ponty explora
largamente em sua obra e que está, em sua ontologia, implicado na
noção de carne, nos oferece elementos para ampliar nossa compreensão
dos processos de produção de subjetividades no âmbito de uma “clínica
de situações contemporâneas“ (Alvim & Castro, 2015), permitindo
pensar as dimensões biológicas, psicológicas e sociais em uma
perspectiva complexa e não-dicotômica e ampliando nossas
explorações acerca do corpo, do hábito e do gesto como produções
subjetivas que expressam essa complexidade.
Pensar o sentido, a produção de subjetividade e os modos de
subjetivação nessa perspectiva implica considerar esse movimento
reversível entre dimensões, evitando as armadilhas das aporias que nos
situam no âmbito de posições inconciliáveis. O que exige um esforço
interdisciplinar na direção da investigação da cultura, da sociedade, das
forças presentes na situação contemporânea para pensar o psíquico em
seu entrelaçamento e co-pertencimento com outras dimensões. É
fundamental considerar esse movimento reversível entre o que já está
sedimentado na cultura - na forma de linguagem, arte, imagens,
artefatos, tecnologia, etc. – e os movimentos instituintes de novas
formas. O tema da expressão e da criação envolve justamente esse
movimento entre o sedimentado e a trans-form-ação.
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 115

Jan Patocka ao propor uma fenomenologia assubjetiva tinha como


fundamento uma compreensão que considera um domínio assubjetivo
ou anônimo como origem do sentido, ou seja, de acordo com ele há um
fundo constitutivo da própria aparição, fazendo com que toda aparição
seja, ao mesmo tempo, coaparição do mundo. “O aparecer, como
aparecer no mundo, tem como condição uma forma de aparecer do
mundo” (Barbaras, 2011, p. 111), ou seja, toda aparição se dá como
destacando-se do mundo, que, como um fundo, engloba tudo. O sujeito
também é mundo, ele não pode ser constitutivo, faz parte do mundo sem
ser comparável a uma coisa qualquer. Sua relação com o mundo pode
ser pensada, nesses termos, como co-condição ou co-determinação.
Nas propostas fenomenológicas que enfatizam o domínio
assubjetivo (ou anônimo) buscando afirmar a relação com o mundo
como a origem, encontramos vários elementos que fazem ressonância
com a perspectiva gestáltica. A perspectiva de campo da Gestalt-terapia
aponta para essa compreensão de um fundo comum, do qual a dimensão
sócio-histórica é parte intrínseca e não uma coisa a mais. O processo de
contato envolve um movimento descrito didaticamente por etapas que
se sucedem, no qual partimos de um estado de indiferenciação desse
fundo comum, para um estado de diferenciação e retorno à
indiferenciação. A concepção de campo organismo/ambiente como essa
relação originaria com o mundo e a noção de self como contato são dois
desses elementos que aqui citamos, além da noção de id da situação, que
vimos explorando em outros trabalhos a partir do diálogo com Merleau-
Ponty (Alvim, 2014; Alvim, 2016).
Considerando a noção de situação a partir da perspectiva de
Merleau-Ponty que coloca subjetividade e intersubjetividade, no entre
jogo do mundo, da história e do movimento criador dos sujeitos, temos
116 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

na dimensão pré-reflexiva da experiência um domínio fundador da


subjetividade. Pensando a situação contemporânea (Alvim & Castro,
2015) como fundamento clínico, pretendemos trazer para o pensar
clínico, de modo mais efetivo, a dimensão da situação sócio-histórica
em seus aspectos estruturais. O que está indicado na perspectiva de
campo da Gestalt-terapia, que ora aproximamos da noção de situação
contemporânea.

METODOLOGIA

O projeto de pesquisa “Gestalt-terapia como clínica de situações


contemporâneas”, de número 16251019.0.0000.5582, foi coordenado por
Mônica Alvim e teve aprovação no Comitê de Ética do Centro de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(CFCH/UFRJ). O projeto teve foco, em uma primeira etapa, na exploração
dos fundamentos desse diálogo, a partir dos autores aqui apontados.
Consideramos que esse aprofundamento na filosofia nos forneceu
elementos para a segunda etapa deste projeto, ora apresentada, onde
visamos investigar a situação contemporânea e as formas de
subjetivação e sofrimento produzidas, promovendo ampliações e
reformulações teóricas e metodológicas de nossos projetos de pesquisa
e intervenção na clínica tradicional e ampliada, com ênfase nas
dimensões de gênero, raça e classe.
Trata-se de uma pesquisa exploratória e qualitativa onde foram
estudadas as queixas e sintomas manifestados pelos pacientes
atendidos pela equipe de Gestalt-terapia da UFRJ. A amostra pesquisada
foi composta por aproximadamente 40 sujeitos, com idades entre 18 e
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 117

40 anos, atendidos pelos estagiários da equipe de Gestalt-terapia,


individualmente ou em grupos.
Foram pesquisados alguns documentos que compõem os
prontuários dos pacientes. Cada prontuário é composto por: a) uma
ficha de acolhimento e triagem, onde estão os dados básicos (nome,
endereço, telefone, estrutura familiar, atividade profissional, renda
familiar, histórico psicológico e psiquiátrico/medicamentoso) e a queixa
inicial colhida pelo estagiário que acolheu aquele paciente e fez sua
triagem; b) o formulário de relato de sessão, onde o terapeuta da equipe
de Gestalt-terapia responsável por aquele paciente descreve a sessão,
faz uma pequena análise teórica da sessão com base na Gestalt-terapia,
onde também indica e analisa aspectos do mundo contemporâneo que
se apresentaram durante a sessão; c) o formulário de estudo de caso,
composto por seções de identificação, dados clínicos e análise teórica,
onde está incluída uma análise de aspectos do mundo contemporâneo;
d) o formulário de encerramento, se o caso já houver sido encerrado.
Nos casos dos grupos, o formulário de relato de sessão é voltado para o
processo grupal como um todo.
Foram utilizados na pesquisa os relatos de sessão e os estudos de
caso. As análises envolveram recortes transversais que discutiam
dimensões envolvidas com as queixas, sintomas e questões
apresentadas por diversos pacientes ou recortes que se aprofundavam
no estudo de um caso ou de um grupo. Em todas as situações as
informações foram protegidas, de modo a garantir o anonimato dos
envolvidos e a confidencialidade na pesquisa.
A seguir trazemos alguns dos resultados preliminares da pesquisa
ocorrida ao longo do ano de 2019, tendo como objetivo identificar
aspectos envolvidos com as dimensões estruturais de gênero, raça e
118 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

classe que se expressavam nas queixas e questões trazidas para as


sessões de terapia. Desse modo, enfatizamos a importância do olhar
para o campo em que vivemos: um campo que fala de um fundo Brasil
permeado por complexos processos genocidas que (re)constroem
estruturas violentas a todo vapor.
A partir de nossas análises, selecionamos quatro casos clínicos
atendidos, que passamos a apresentar de modo resumido, enfatizando
os aspectos estruturais e identificando os pacientes com nomes
fictícios. Nosso objetivo neste trabalho não é de discutir o manejo
clínico, mas de desvelar nas queixas, sintomas e demandas terapêuticas
a dimensão estrutural do sofrimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ametista (AM)
A primeira cliente é Ametista, uma mulher preta de 24 anos,
heterossexual, cisgênero e casada, moradora da Baixada Fluminense,
região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. A cliente traz como
queixa principal uma ansiedade impulsionada por conflitos familiares
devido à sua situação de vida atual, na qual fez a escolha de ocupar o
lugar de provedora familiar enquanto o marido, um homem negro,
desempregado e estudante de mestrado, ocupa o papel de cuidados com
o lar e rotina domiciliar.
Em sua configuração familiar pode-se perceber que há uma
inversão dos papéis cis-branco-heteronormativos de gênero que nos
socializam desde o nascimento, transgredindo o modelo dominante de
divisão sexual do trabalho. Historicamente essa divisão feita na
sociedade capitalista designou à mulher o trabalho doméstico,
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 119

reprodutivo, não remunerado, baseado no discurso da natureza


feminina de cuidar, um trabalho de pouco valor social. Ao homem foi
atribuído o trabalho mais valorizado e remunerado, realizado no espaço
público, de produção de bens e serviços, em última instância, a produção
de mais valia. Essa divisão permanece até os dias atuais, tendo ganhado
status normativo e permitindo a reprodução de uma norma que
considera o homem como aquele que ocupa o papel produtivo e a mulher
o papel reprodutivo (Alvarenga & Vianna, 2012; Hirata & Kergoat, 2007).
A escolha feita pelo casal de inverter os papéis socialmente pré-
concebidos expõe um conflito - até então invisível - de dinâmicas
estruturais que interseccionam gênero e raça, tal como nos relata
Ametista quando comenta sobre a percepção das famílias: “os pais dele
acham isso errado e a minha família o via como oportunista… meu pai é
machista e racista com meu marido, não temos nos falado” (AM).
Ser um homem negro que cumpre os afazeres de casa e é
sustentado por uma mulher preta, em uma sociedade machista e
classista como a brasileira, provoca uma quebra de normatividades
relacionadas a papeis de gênero e raça, o que gera reações tanto por
parte de familiares quanto de vizinhos, alimentando conflitos de várias
ordens. A necessidade de sustentar esses lugares pré-concebidos vem
também de uma necessidade, por parte desses familiares e vizinhos, de
sustentar a própria formatação subjetiva apoiada no conforto da norma.
Quando o casal Ametista e seu marido subvertem algumas funções
dentro do script de gênero, eles convidam também todo o entorno ao
contato com possibilidades que vão além do pré-concebido, abrindo
possibilidades e transgredindo normas. Como forma de manter o
enredo de gênero introjetado intacto, ocorre o movimento de represália
e recusa da novidade no campo.
120 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Segundo Ametista, o modo como ela e o companheiro estruturaram


a relação é confortável para ambos, e o sofrimento trazido por ela para
a clínica é aquele que emerge da interação com parentes e pessoas
próximas que não os compreendem e os criticam. Para ela, a relação
“funciona bem assim, é muito bom chegar em casa e encontrá-la limpa
e comida feita por ele, isso não é uma questão para a gente. Na área que
a gente mora isso não é comum, eles não entendem que a gente é uma
família normal também” (AM).
Seria possível trabalhar com a cliente apenas questões de limites
na relação familiar e permeabilidade da fronteira, porém, seria isso
suficiente para abarcar a complexidade do que a cliente trouxe ao
consultório? Não olhar para o aspecto social e histórico que permeia as
queixas de Ametista é também deixar intacto o fundo político que subjaz
às suas questões e correr o risco da psicologização.
Integrar o aspecto da estrutura social normativa com relação aos
papéis de gênero e divisão sexual do trabalho é também dar solo e
respaldo para a cliente de que ela não está sozinha em seu sofrimento,
é despatologizar a questão familiar para trazê-la ao contexto de uma
cultura que está endurecida e pouco preparada para receber uma outra
configuração de relacionamento que não aquela imposta: cis-hetero-
normativa. Trazer esse aspecto à clínica permite a ampliação do olhar e
a compreensão de que a resistência enfrentada por eles não é uma
questão meramente pessoal, mas uma contra-ofensiva da estrutura
social dominante à distribuição de papéis feita por Ametista e seu
companheiro que transgride o instituído.
Ônix (ON)
Outro cliente atendido por nós foi Ônix, um jovem homem negro,
heterossexual, solteiro, cisgênero e morador da cidade do Rio de
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 121

Janeiro. O cliente, que trabalha em uma banca de jornal e é pré-


vestibulando, apresenta queixas fortemente atravessadas por questões
de classe social. Ônix afirma não ter poder de escolha frente às
contingências financeiras, afirmando que sua situação econômica o faz
se sentir em desvantagem quando comparado aos outros colegas de pré-
vestibular. Ele afirma:

No mundo ideal eu financiaria um apartamento próprio, trabalharia de dia


e estudaria à noite, mas não tenho condições. Por isso trabalho em
empregos que só pediam ensino médio porque não moro com minha tia
mais e tenho que pagar aluguel e contas. Quando ia para o pré-vestibular e
olhava para a pessoa que estava do lado, sabia que aquela pessoa tinha mais
condições de passar que eu, pois ela estava fazendo o vestibular no tempo
certo, não precisava trabalhar, tinha mais tempo para estudar e a matéria
estava mais “fresca” na cabeça. Me sinto cansado o tempo inteiro por causa
disso, mas pelo menos estou tentando, indo à terapia e fazendo vestibular.
Não sei em que escola você estudou, mas minha escola era pública e muitas
vezes o professor faltava. Você está em uma boa faculdade, tem uma boa
perspectiva de emprego. Já eu, muito provavelmente não vou passar esse
ano no vestibular (ON).

Essas falas nos mostram a força da dinâmica estrutural de classe


que compõe o campo e produz sofrimento, pois o cliente compreende
que não basta se esforçar para conseguir estudar, ser aprovado no
vestibular e construir uma vida que proporcione condições mínimas
para trilhar um caminho e ascender socialmente.
Collins e Bilge (2021) discutem o uso da interseccionalidade como
ferramenta analítica. A perspectiva interseccional nos convida a
compreender os fenômenos de forma a considerar raça, classe e gênero
como dimensões que não são mutuamente excludentes e que devem ser
consideradas em sua sobreposição. A intersecção classe e raça se mostra
122 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nessa situação, dado que Ônix é um homem negro e pobre que se sente
inferiorizado. Os estudos no campo das relações raciais demonstram
que a suposta hierarquia entre brancos e negros é uma naturalização
herdeira da colonização europeia das Américas e da fundação do
capitalismo. Essa hierarquização é central no racismo, fenômeno
estrutural que informa nossos modos de perceber, sentir e agir. A partir
disso, as relações intersubjetivas são articuladas por posições de
superioridade e domínio dos brancos e subalternidade e inferiorização
dos não-brancos.
Ônix enxerga claramente a diferença de oportunidades entre ele e
outros colegas de escola, sobretudo entre ele e o terapeuta branco, o
estagiário que o atende na clínica escola da universidade. Ele explicita
sua percepção de que esse estagiário alcançaria o lugar que ele próprio
deseja, mas não acha possível. Tal relação tem um enraizamento na
meritocracia, uma ideologia que reforça as desigualdades históricas e
tenta justificar a desigualdade e os privilégios dos brancos, “ao mesmo
tempo em que oferece a promessa de uma saída para essas
desigualdades. Ela individualiza os problemas estruturais, atribui
responsabilidade de resultados aos indivíduos e torna essas estruturas
invisíveis à crítica” (Wayne; Cabral, 2022).
Nesse sentido, a terapia lida com uma situação claramente
atravessada por questões sócio-políticas, fato apontado pelo próprio
cliente. O que nos alerta para os riscos de agir no sentido de psicologizar
o que é trazido por ele em detrimento de um olhar para os problemas
estruturais.
Quartzo (QZ)
Nosso terceiro cliente, Quartzo, é um homem pardo, cisgênero,
solteiro e homossexual, morador de uma república para estudantes em
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 123

Botafogo, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. O cliente traz como


queixa principal uma vergonha por ser estudante de economia de uma
universidade pública e estar em processo de jubilamento, sendo, na
ocasião, acompanhado por uma comissão que o auxiliava a finalizar o
curso em decorrência da dificuldade de cumprir com a carga horária no
tempo limite previsto.
Para Quartzo, essa vergonha dialoga com a vergonha de ser gay,
pois sente-se inadequado e acredita que a superação dessa inadequação
se daria por uma ascensão de classe social. Enquanto homem pobre, o
cliente enxerga no curso de economia e também no mestrado uma
possibilidade de superação da pobreza, o que lhe daria mais status e
legitimidade para se apresentar socialmente em sua identidade
homossexual. A ameaça de jubilamento produz medo diante do risco de
ser desligado da universidade, gerando uma situação iminente de
fracasso.

Costumo pensar que se eu passasse na prova do mestrado aparentaria ser


bem sucedido, superando o fato de ser gay. Ser gay é um fato? É, mas eu
coloquei em mim que eu preciso provar para mim que eu consigo fazer as
coisas, iria me conferir legitimidade. Eu quero que eles pensem, ele é gay, é,
mas ele tem carrão (QZ).

Essas queixas nos mostram os introjetos de uma cultura cis-


hétero-patriarcal-branco-estruturante em que ocorre a “atribuição de
um valor negativo à homossexualidade e à diversidade sexual” (CFP,
2011, p. 151), sendo o consumo de bens de luxo um marcador de ascensão
social que superaria a sua condição de homossexualidade, orientação
sexual socialmente vista como inferior e que potencialmente pode
contestar os papéis de gênero masculino-feminino impostos. O
124 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

preconceito também pode ser visto quando ouvimos que a


homossexualidade pode ser algo passível de cura por alguns “psicólogos
cristãos”: leitura que reforça a ramificação da homofobia na sociedade
e produz um cíclico sofrimento para quem é gay (Garcia; Mattos, 2020).
Toda essa vivência de violência, emergida desse campo, se torna figura
na fala do cliente, “sou feio e baixo, um peso no mundo, me sinto em
desvantagem em relação a heterossexuais” (QZ).
Com essas afirmações, o cliente nos sinaliza a presença das
dinâmicas estruturais de gênero e classe interseccionadas, que
expressam um campo violento em um país como o Brasil que mais mata
corpos LGBTQIA+ no mundo segundo o Grupo Gay da Bahia (Bortoni,
2018). Quartzo faz uma afirmação contundente sobre sua condição, o
que nos permite observar o surgimento de uma dinâmica retroflexiva a
partir do campo: “a sociedade é como um espelho. O que eu vejo é um
reflexo de mim mesmo. O espelho é o social que me julga e eu me vejo a
partir dele. Me sinto como se vivesse em um policiamento de mim
mesmo” (QZ).
A vergonha é um fenômeno amplamente discutido na literatura da
Gestalt-terapia. Gary Yontef, Gordon Wheeler, Philip Litchtenberg e
Jean-Marie Robine são autores que discutiram o fenômeno. Wheeler
(2005) discute o paradigma individualista e seu lugar na produção de
solidão e vergonha. Litchtenberg (2002) aborda a vergonha como um
afeto associado à retroflexão do excitamento. Yontef (1998) discute a
retroflexão na vergonha como isolamento e negação de necessidades
externas e a defesa da autossuficiência, mesmo necessitando de amor e
aprovação. Quartzo busca a ascensão social e o sucesso profissional
como uma forma aparentemente autossuficiente de obter
reconhecimento e superar a evidência de inferioridade relacionada à
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 125

condição de ser bicha. Robine (2006, p.156), ao diferenciar culpa e


vergonha resume afirmando que “o sentimento de culpa está ligado ao
ato, enquanto o sentimento de vergonha está ligado ao ser”. Ou seja, o
sujeito sente que é algo que não deveria ser e seu sofrimento está
relacionado a uma fonte profunda de angústia: “a angústia de ser
excluído da comunidade dos homens” (op.cit.). A evidência de
inferioridade sentida por Quartzo o situa nessa ameaça. Numa
sociedade onde a heteronormatividade é compulsória, a vergonha pode
ser compreendida como um “tipo de angústia social” (op.cit., p.159).
Robine faz essa afirmação baseado nas discussões de Hermann (1972
como citado em Robine, 2006) que aborda como característica estrutural
da vergonha a existência de relações com a coletividade que implicam
uma separação do sujeito de um grupo social. O que Robine discute como
“ruptura de confluência”, nesse caso envolvida com quebras de códigos
sociais normativos, uma ruptura identificatória que pode ser brutal
para o sujeito.
Litchtenberg (2002) afirma que “provocar vergonha e sentir
vergonha são essenciais para a criação e manutenção de tendências
antidemocráticas” (p.5). Ele discute as relações opressor e oprimido e
afirma que as estruturas sociais são criadas pelo entrecruzamento de
pessoas que mantêm laços hierárquicos, nos convidando a ficar atentos
às tentativas de preservar seu próprio status em detrimento do outro,
que é inferiorizado e diminuído. Fenômeno que pode também ser
relacionado à branquitude.
Souza et al. (2019) nos diz que a homossexualidade se transforma
em culpa quando o medo de perder o amor dos pais se generaliza para o
medo de perder o amor de todos. O autor, em um diálogo com Castelar
e Aguirre (2012), comenta que esse medo tem relação íntima com a
126 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

“sublimação ou introversão dos desejos homoeróticos” (p. 199), gerando


uma internalização da homofobia devido à cultura heteronormativa que
rege o campo e define a homossexualidade como patológica e perversa,
ou até mesmo uma falha de caráter, aspectos encontrados em pesquisas
realizadas por De Souza & Pereira (2013); Nunan, Jablonski & Féres-
Carneiro (2010) e Nunan & Antunes (2017). Por essas e outras a pessoa-
gay, se sentindo inadequada ao viver nessa sociedade, sente vergonha
de si mesma e introjeta uma sensação de inferioridade desde muito
cedo, aumentando em toda a “população LGBT a fragilidade, a
insegurança e a instabilidade, causando angústia, mal-estar e
momentos de baixa autoestima” (Nascimento, 2010 como citado em
Souza et al., 2019).
Ainda segundo o autor, a vergonha é um fenômeno central na
experiência de vida da pessoa LGBTQIA+ e de todos aqueles que estão à
margem de uma sociedade heterossexista, gerando uma sensação cíclica
de inadequação e negatividade em torno dos próprios sentimentos e
comportamentos que engendra uma confusão que os faz acreditar que
não fazem parte de uma dita normalidade, de acordo com os autores
Pereira & Esgalhado (2012), Delgado et. al. (2016) e Ceará & Dalgalarrondo
(2010).
Traçando linhas para subverter esse cenário, é preciso que
(re)construamos um caminho tal como elaboramos com Ônix na clínica:
um olhar cuidadoso e afetuoso para si mesmo que compreenda a
vergonha como um fenômeno que emerge de um campo violento e
(re)tome a própria homossexualidade como algo para se ter orgulho,
resgatando a fluidez no presente.
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 127

Balieiro (2012), em um diálogo com a teórica queer Sedgwick,


também enfatiza a vergonha como presente na experiência de vida
daqueles que não se enquadram em uma sociedade heteronormativa.

Sedgwick aborda os prefácios da republicação da obra condensada de Henry


James no início do século XX, na qual o autor-narrador desempenharia um
protótipo de uma performatividade queer a partir da invocação estratégica
e erotizada de sua infância e juventude comprometedoras ou queer,
colocando em circulação a vergonha. A escolha do artigo publicado no início
da década de 1990 para abrir a coletânea se justifica pelo enfoque original
que a autora dá à dinâmica entre vergonha e política, considerando a
vergonha um aspecto fundamental na compreensão das políticas queer,
com potencial poderosamente transformador. Uma característica
definidora e desestabilizadora da vergonha é seu transbordamento, ou seja,
a inclinação de alguém a se sentir invadido pela vergonha de outrem,
acionando em si sensações de isolamento e exposição. A vergonha é,
portanto, contagiosa. Ela é um “radical livre”, nas palavras da autora,
utilizando-se da metáfora física molecular para denotar seu caráter
instável que se vincula e altera aquilo com que está em contato (Balieiro,
2012, p. 539).

O autor (Balieiro, 2012) estabelece que nem tudo é sobre dor, como
se pessoas gays fossem sempre vítimas passivas à violência, e discute
propostas do uso do caráter transformador da vergonha a partir das
suas dimensões performativas, em que, em sua dimensão relacional, a
vergonha é a “emoção limite entre a introversão, que advém do
isolamento, e a extroversão enquanto movimento de resposta à ela” (p.
539). A performatividade queer se daria, por assim dizer, não por
remover ou mesmo reprimir a vergonha, mas por colocá-la em
movimento, nos propondo estratégias críticas para enfrentarmos um
128 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

mundo cis-hétero-patriarcal-branco que insiste em nos enxergar como


não-humanos.
Esmeralda (ES)
Trazemos por último o relato de Esmeralda, mulher preta de 21
anos, solteira, cisgênero e heterossexual, moradora da Maré, favela da
cidade do Rio de Janeiro. A cliente é estudante de psicologia e traz como
queixa principal uma baixa autoestima por não se sentir adequada e
bonita devido ao seu cabelo crespo. Como se encontra em um momento
de transição capilar para suspender o uso de química para alisamento,
Esmeralda é perpassada por uma série de conflitos que vão pôr em
questão que tipo de cabelo é imposto como bonito em uma sociedade
brancocêntrica como a nossa, em que o cabelo crespo é desvalorizado e
visto como um cabelo ruim, fruto de uma relação colonial tão arraigada
na história dos povos escravizados (Kilomba, 2019, p. 122). Na atualidade,
observamos a preservação dessa relação por meio da branquitude
enquanto estrutura que demarca um acesso privilegiado a recursos
materiais e simbólicos gerada pelo colonialismo (Schucman, 2014): um
fundo estruturalmente racista que vai impor o ideário branco e liso
como o padrão de normalidade e beleza a ser inquestionavelmente
alcançado.

Meu ideal de beleza é o cabelo liso. Estou passando por transição capilar e
não consigo me sentir bonita. Quando outras pessoas falam que o meu
cabelo está ficando bonito eu até passo a me achar mais bonita. Mas quando
me olho no espelho me acho horrível. O único momento que me senti bonita
foi quando meu cabelo era liso (ES).

Esmeralda se depara com essas questões no vivido, um corpo de


uma mulher preta favelada em constante conflito com padrões de
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 129

beleza baseados nas características brancocêntricas, situação que


produz sofrimento que emerge de dinâmicas estruturais de raça e
gênero. As normatividades funcionam com tal força que produzem
introjetos difíceis de serem trabalhados e superados. Ao questionar a
imposição do alisamento capilar e afirmar o seu próprio cabelo natural,
a cliente faz uma tentativa de transgredir as normatividades; afirma seu
corpo como potência política, embora o ideário branco ainda permaneça
como uma força atuante da percepção e valoração de si, de seu corpo, de
sua beleza e sua ancestralidade.
Freitas (2018) nos enfatiza essa realidade ao dizer que, em um país
fundado pelo racismo, o branco europeu se estabeleceu como o padrão
a ser alcançado em todas as esferas, sendo a estética uma delas. A norma
branca dominante perpetuada historicamente no campo a partir do do
mito da democracia racial, da miscigenação da população e do estupro
das mulheres negras (Nascimento, 2016) realiza, desde a invasão em
1500, a manutenção daquilo que é visto supostamente como superior em
detrimento daquilo que é inferior, projetando, por exemplo, os traços
fenotípicos negros como abomináveis. Esmeralda, como uma mulher
preta, se vê em um momento de transição capilar que se entrelaça
necessariamente com outros aspectos de sua existência por agredir
introjetos que emergem de uma cultura violenta que nos diz a todo
momento que somos descartáveis. Tal vivência se aprofunda sobretudo
na experiência das mulheres negras, que passam por um constante
processo de solidão que intersecciona as dimensões de gênero e raça.

As mulheres negras compõem um dos grupos que tem sua estética


estigmatizada. São constantes as associações de seus cabelos crespos a
termos depreciativos, como “cabelo duro”, “cabelo ruim”, “cabelo de fuá”,
“cabelo de bicho” etc. Diante deste cenário, as mulheres negras enfrentam
130 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

a discriminação estética usando o cabelo como objeto político, indo contra


a lógica hegemônica a partir do momento em que decidem utilizar o cabelo
crespo de forma natural, isto é, sem alisamentos (Freitas, 2018).

É a partir da aceitação da natureza ancestral do próprio cabelo que


Esmeralda afirma sua existência enquanto corpo preto no mundo,
apesar da imagem introjetada de inferioridade dada por uma norma
branca que persiste no campo. Todo esse conflito entre narrativas afeta,
como sintoma, sua autoestima, o que nos sugere a importância de se
reconhecer em outros corpos pretos que também afirmam seus cabelos
e traços negroides cada vez mais presentes em todas as esferas sociais
e coletivas: representados nas redes sociais, propagandas e programas
de TV; em coletivos de mulheres negras espalhados pelo país; ou até
mesmo ocupando espaços de poder como a psicologia clínica, em que a
presença de um psicólogo negro pode facilitar o contato por também
compartilhar o mesmo campo e viver o racismo na pele. Finalizamos
com um trecho do trabalho de Veiga (2018) que nos inspira a pensar no
encontro e nas possibilidades criadas quando as desigualdades que nos
jogavam em terrenos de inferiorização são dribladas, abrindo brechas
para pessoas pretas assumirem lugares de poder historicamente
negados.

Quando abri a porta do consultório pela primeira vez para João (nome
fictício), ele me olhou um tanto surpreso e perguntou: você é o Lucas? Sim,
respondi. João sorriu e sentou-se no sofá. Estava se sentindo em casa.
Partilhou suas questões doídas com um leve sorriso no rosto. “É tão bom
não precisar explicar o que estou sentindo”, ele disse ao longo da sessão.
“Bom sentir que você está me entendendo”. O paciente é um jovem negro
que iniciava terapia pela terceira vez, mas agora com um psicólogo negro.
Ao longo de suas tentativas anteriores de cuidado em saúde mental, João
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 131

chegou a ouvir por parte de psicólogos brancos frases como “você acha que
ainda existe racismo no Brasil?”; “sofrimento não tem cor”; “você não acha
que está atribuindo a causa de tudo à questão racial?” Enunciados que
tinham como efeito direto deslegitimar o sofrimento do paciente e, como
consequência, fazê-lo experimentar a solidão de ser negro, de não ser
compreendido nem acolhido devidamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante desses relatos, podemos perceber um cruzamento entre as


dinâmicas envolvidas por estruturas de gênero, raça e classe e seus
impactos nas experiências de vida, tal como nos relembra Crenshaw
(2004). Embora a autora perspective a interseccionalidade a partir do
entrelaçamento entre raça e gênero na experiência de mulheres negras,
essa perspectiva se ampliou e podemos assumi-la para mostrar a
coexistência das dimensões que figuram as queixas trazidas em nossa
pesquisa. A partir delas, vimos as dimensões agindo ou acentuando um
conflito entre papéis de gênero na vida de uma mulher negra, ou
escancarando desigualdades de classe na experiência de um homem
negro, ou até mesmo expondo o agir do racismo na autoestima de uma
mulher preta. Para nós, essas dimensões não podem ser vistas como um
detalhe, mas sim como fios estruturantes que tecem subjetividades e
também adoecimentos.
Compreendemos que o sujeito está sempre em relação com o
mundo e com o outro, não sendo coerente buscar articular uma clínica
dentro da perspectiva gestáltica que não pensasse nessa relação e que
não se atentasse a essas estruturas de um campo em constante
movimento. É importante que profissionais se reservem do olhar
patologizante e psicologizante (que coloca o sujeito como fonte e fim do
132 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

seu sofrimento de forma plana) e tenham antes o olhar complexo para


a trama de forças normativas que o perpassam e criam o campo em que
o sofrimento emerge.
Campo esse que não exclui o terapeuta, mas convida-o a se
posicionar junto ao cliente e enxergar de que forma sua própria
existência e posicionamentos contribuem para tal sofrimento. A
investigação de si como ator dessa rede é necessária para que se possa
fazer visível o invisível na clínica, para que as forças que atuam no
fundo da experiência possam se tornar figuras mais ou menos vigorosas
a serem investigadas no fazer clínico.
Notar essas dimensões na clínica de forma ampla é adotar uma
postura crítica e urgente que oferece voz para que essas queixas se
legitimem como elementos do campo que não podem mais ser
silenciados. É a partir da ampliação dos nossos olhares que podemos
descrever esses sintomas não enquanto frutos de um psicologismo, mas
emergidos de um campo histórico, político, econômico e social
permeado por dinâmicas estruturais que nos produzem e também são
produzidas por nós.
Ao oferecer essa escuta clínica engajada no campo, podemos atuar
de maneira política e criativa: não individualizando queixas que se
apresentem na clínica, buscando ampliar o olhar do próprio sujeito
também consigo mesmo e com o contexto social que ele vive. Por esse
caminho desafiador poderemos construir novos olhares para novas
formas de ser e estar no mundo e também revolucionar a clínica,
revivendo o caráter político da nossa atuação para construir espaços de
cuidado cada vez mais gestálticos, antirracistas, antissexistas e
anticlassistas.
Mônica Alvim; Paulo Antonio de O. Muniz; Cheyenne M. Wolf Von Arcosy • 133

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4
DESMANCHANDO O “MONOCORPO”:
ENLACES GESTÁLTICOS DECOLONIAIS
Dismantling the universal body: Decolonial gestalt links
Desmantelar el cuerpo universal: enlaces gestálticos decoloniales

Tatiana de Paula Soares

INTRODUÇÃO

Este ensaio é inspirado em minha trajetória de vida e em grupos de


pesquisa que abordam temas sobre decolonialidade, fenomenologia
crítica e Gestalt-terapia, atravessados por estudos voltados à
perspectiva política como corpo-social. Apresento de início, meu
percurso, a partir de uma breve etnografia: pessoa branca, brasiliense,
classe média, 41 anos de idade, descendente de piauiense branco e
mineira branca, e que por desejo, sem filhes 1. Atualmente, residente na
Paraíba - PB, casada com homem, branco. Desconfortável em
identificar-me como mulher cishetero e tampouco, normativa. E
desaconchegada em reconhecer-me sob in-definições outres 2. Em uma
des-configuração pluriversal, ao tentar flexionar o exercício de
desnormatizar-me como cishetero, confundo-me ao imaginar minha
autodefinição categorial ocidental mulher, tendo em vista a pluralidade
de ser.

1
A grafia do termo “filhes” possui o propósito de posicionar gênero em uma configuração não-dualista
e não-universalista, tendo em vista que a padronização da linguagem formal normatiza a terminologia
“o” no plural para designar ao gênero masculino a referência tanto para o masculino como para o
feminino, em uma perspectiva dual, binária e universalizante.
2
A grafia do termo “outres” também possui entendimento e escrita não-binária.
Tatiana de Paula Soares • 137

Enquanto ser-no-mundo e Gestalt-terapeuta, o espelho meu


retrata embaraces e desembaraces em relacionamentos pessoais,
conduta profissional, a partir de crenças, valores e cotidianos
idealizados, por vezes, desacomodados. Crenças estas que oriundam de
possíveis eixos que remetam ao que se preze comumente por qualidade
de vida e saúde. Assim, a motivação deste estudo partiu da reflexão
sobre como confrontamos (ou não) o que vulnerabiliza nossos
privilégios cis-brancos-heterossexuais.
Do ponto de vista teórico-prático, debruço-me em Gestalt-terapias
contemporâneas e pairo no tracejar metodológico da pesquisa de
doutorado em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Em meados de 2021, passei a integrar o projeto de pesquisa
“Situação contemporânea e dimensões estruturais: perspectivas em
fenomenologia crítica e abordagem gestáltica” 3, coordenado pela
professora pesquisadora Dra. Mônica Botelho Alvim 4. Somando as
discussões teóricas, tenho me interessado por estudos que articulem a
Gestalt-terapia, ao campo político-social. Grupos de Estudos dos
Núcleos de Relações Étnico-Raciais e de Transgressões Gestálticas pela
Associação Brasileira de Gestalt-terapia (ABG) têm apontado a urgência
desta pluriversalidade.
O conceito de pluriverso é definido por Alberto Acosta (2021) como
diferentes universos contrapondo-se à ideia comum, homogênea de
humanidade. A importância de transdisciplinar a Gestalt-terapia e as
ciências sociais é de trazer a possibilidade crítica para práticas de

3
Projeto de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
4
Professora Associada do Departamento de Psicologia Clínica (UFRJ/PPGP). Membro do GT
Fenomenologia e Psicologia - ANPEPP. Presidente da Associação Brasileira de Gestalt-terapia (ABG).
138 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Gestalt-terapeutas, a partir de uma perspectiva decolonial. Dar-se


conta de privilégios no contexto social em que se está inserida,
possibilita, uma autocrítica, enxergar atravessamentos invisibilizados
que confluem com um sistema colonial opressor. Enredo este, muitas
vezes, segmentado por réplicas ocultas e não identificadas como
violentas. A moção deste ensaio foi identificar processos confluentes,
tendo como base Billies (2005), ao sistema de privilégios que permeiam
o campo terapeuta-cliente. O entrelaçamento deste estudo se deu sob a
fundamentação teórica decolonial e enlaces em corpo na Gestalt-
terapia, pensamento mono, transfeminismo, decolonialidade e
confluência no campo gestáltico.
O termo monocorpo, aqui proposto, vem inspirado em mono como
único, um só e ao que Núñez (2021) articula modos universalistas de ser
à monocultura do pensamento. Alvim (2020) ao enfatizar que a Gestalt-
terapia coloca o lugar do corpo na experiência, destaco que monocorpo
se apresenta neste ensaio, sob uma perspectiva de exclusão. Monocorpo
como símbolo da universalização de ser, da dualidade que polariza e da
padronização de um único estereótipo como modelo a ser alcançado.
A cultura universalizante de privilégios pelo embranquecimento se
mantém com o que a própria ideologia colonial orienta. Considerando
as diferenças territoriais, a construção sócio-histórica colonial
brasileira é de instituir corpos imersos em uma cultura onde reina o
fundo branco do racismo pela branquitude e a generificação de corpos
pela cisheteronormatividade. Este sistema heteronormativo é
assegurado pela desigualdade de gênero (sob uma perspectiva
categorial) e hierarquização de classe.
Decolonialidade como produção de conhecimento transversal visa
neste estudo fortalecer modos de sentidos na Gestalt-terapia que
Tatiana de Paula Soares • 139

torçam atitudes imperceptíveis que ainda referendam o monocorpo


crivado pela padronização de forma e estilo. Padrão este estabelecido
por aparência física, modo de se comunicar, gesticulação, escrita ou
outras configurações associadas ao mito democrático de atender o bem
comum. Assim, indago o que instituímos em nossas atuações
profissionais? De que forma nos aprisionamos imperceptivelmente
neste mito?
O intento de trazer perspectivas decoloniais neste estudo não foi de
aprofundar epistemologicamente este conceito das ciências sociais e
nem mesmo as fundamentações filosóficas que permeiam a teoria em
Gestalt-terapia. A intenção foi de não aprofundar as suas concepções,
ainda que seja a base da conjuntura da Gestalt-terapia. A contribuição
para a Gestalt-terapia é de repensar a práxis, sob compromisso ético e
político, a partir da percepção de confluências com padrões
hegemônicos e de privilégios próprios, os quais preservam a
manutenção de opressões sociais.
Com isso, o objetivo deste estudo foi de localizar como situações
contemporâneas de violências sociais invisibilizadas atravessam o
corpo no campo de Gestalt-terapeutas enviesadas 5 por seus próprios
lugares brancos cisheteronormativos. Segue, em cinco seções, o
desenvolvimento de eixos e travessias que transpassam situações
contemporâneas: Corpo e Gestalt-terapia; Monocorpo e cultura colonial
universalizante; Confluência de Gestalt-terapeutas ao sistema de
privilégios e opressões sociais; Ilustração clínica no fenômeno de
campo; e, Estudos decoloniais.

5
A referência do termo ao pronome feminino não é de direcioná-lo a um público específico, e sim, de
protagonizar a escrita sem padronização formal da linguagem de flexionar o pronome masculino para
representar a diversidade de gênero.
140 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

CORPO E GESTALT-TERAPIA

A expressão “corpo” é o corpo da Gestalt-terapia. É a carne da


teoria do self na abordagem gestáltica. Para conceituar corpo na
perspectiva da Gestalt-terapia faz-se indispensável se apropriar das
contribuições de Jean-Marie Robine (2006), Fritz Perls et al. (1997),
Laura Perls (1992), Kurt Goldstein (1995), Mônica Alvim (2020), Maurice
Merleau-Ponty (2011) e demais estudioses que se dedicaram e àqueles
que se debruçam aos entrelaces que permeiam a teoria.
Nesta seção, de modo geral, conceituar sinteticamente corpo, visou
amparar a discussão da noção de corpo na sociedade ocidental como um
modelo normativo.
De acordo com Alvim (2012, p. 1009), corpo “é excitamento que
move. O corpo como campo-organismo-ambiente é relacional, é uma
totalidade imbricada no mundo. (...) não é dado pelo mundo objetivo, e
sim pelo corpo vivido” (Alvim, 2012, p. 1016).
Em uma dimensão sócio-histórica, o surgimento da Modernidade
trouxe como consequência a desintegração do corpo em sua dimensão
física, vital, orgânica, animal, humana e simbólica, dualizando-o ao
biológico e ao mental (Lins & Alvim, 2020, p. 307). Por sua vez, este
pensamento dual consolida a precarização da existência
contemporânea e cria um modelo universalizante de ser, sob a
caricatura de caminho saudável de existência.
A Gestalt-terapia como “política da experiência, precisa retomar o
corpo como um saber não reflexivo, partindo do que está se formando
com a função self e esse fluxo de formação de formas na produção de
Tatiana de Paula Soares • 141

sentidos” (Alvim, 2022) 6. O sociocultural vivido pela pessoa não se apoia


em uma consciência reflexiva, mas antes em uma experiência intuída
do viver naquela cultura, uma apreensão corporal.
Ao situar corpos “no mundo contemporâneo", Alvim (2012) elucida
que, em nosso parâmetro sociocultural, corpos ainda se apresentam:

cindidos, tornados objetos submetidos à racionalidade ela própria moldada


e controlada por padrões externos. Menos imbricados no mundo: fechados
em nós como partes-extra-partes, mais e mais naturados, objetos feitos de
fora, produzidos em série nos espelhos das academias, nas vitrines da moda,
no jogo das imagens reais ou virtuais, que cooptam e banalizam a invenção
transformando a criação em produto serializado, serial-killers dos corpos
vibrantes (p. 1012).

A pedagoga Letícia Nascimento (2021), nos convoca, de algum


modo, enquanto profissionais da psicologia, a refletir sobre como
nossos próprios corpos se apresentam no processo intersubjetivo e
intercorporal do campo.
Em um contexto político-clínico-social de diagnósticos,
Nascimento (2021) nos chama a atenção, que tanto o DSM–5 (APA, 2018),
quanto a CID-11 (WHO, 2019), possuem um papel normativo em
patologizar, classificar, dividir. Ao narrar transgeneridade em sua 5ª.
versão, o DSM-5 (APA, 2018) 7 a caracteriza como “Disforia de Gênero”
(APA, 2018) e a CID-11 (WHO, 2019) 8 nomeia “Travestilidade”, como
subcategorização de “Incongruência de Gênero”. A autora
transfeminista (2021) enfatiza que a própria psicologia marca o lugar da

6
Comunicação Pessoal. Curso on-line intitulado Gestalt-terapia e Merleau-Ponty: conversações, Módulo
“Gestalt-Terapia como Experiment-ação: resgatando a plasticidade da forma”, em 25 de junho de 2022.
7
Manual Diagnóstico e Estatístico de Classificação dos Transtornos Mentais elaborado pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA).
8
Classificação Internacional de Doenças elaborada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
142 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

cisgeneridade e dicotomiza trans (patologia) e cis (norma). Nascimento


(2021) traz como exemplo a normatização do Sistema Único de Saúde
Brasileiro (SUS) em sua condição de protocolar avaliação clínica para o
direito da realização de terapia de reposição hormonal.
Nesse sentido, torna-se improrrogável para a psicologia, enquanto
política pública, pluriversalizar a existência de corpos em contexto
social, desmitificando o modelo universal de corpo como cisgênero.

MONOCORPO E CULTURA COLONIAL UNIVERSALIZANTE

Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha],


2008-2022, em sua etimologia, o prefixo mono deriva do grego mónos, -
ê, -on, único e "exprime a noção de um, um só". Uma ilustração da
regência europeia em nossa cultura seria a palavra e a normatização do
termo monografia. De acordo com o documento vigente "Manual de
Normas para Elaboração da Dissertação" 9, o termo é oriundo do grego,
mónos (um só) e graphein (escrever) e refere-se ao trabalho escrito, dado
como científico, caracterizando-se por uma escrita com tema único e
específico, reduzindo a abordagem a um só assunto.
O termo monocorpo, aqui proposto, vem inspirado ao que Núñez
(2021) articula modos universalistas de ser e a "monocultura do
pensamento" 10. Sob enfoque sócio-histórico, e autore 11 buscou resgatar
de que modo a catequização e escravização de povos originários e negros

9
Disponível em formato eletrônico pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade
na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA).
10
Termo oriundo do texto "Monoculturas do pensamento e a importância do reflorestamento do
imaginário", publicado em 2021.
11
A grafia dos termos “e autore” possui o propósito de posicionar a escrita não-binária. Neste caso, Núñez
se identifica como pessoa não-binárie.
Tatiana de Paula Soares • 143

traficados na África foram instituídas pelo monopólio europeu e ao


comando de um pensamento único, universal e excludente.
A dualidade mente versus corpo, alimentada por princípios que
regem o liberalismo e o capitalismo influencia no modo como
referenciamos o corpo em nossa cultura. O modelo “homem, branco,
cisheteronormativo, europeu (estendendo-se à cultura hegemônica do
norte global ocidental)” e tecnológico (sob a égide estadunidense)” é
visto como mais valoroso e digno.
O filósofo Wilber (2012), criador da Psicologia Integral, ressalta que
"todas as elevadas modalidades de conhecimento descambaram
brutalmente para uma ciência monológica e empírica" (Wilber, 2012, p.
36). Wilber (2012) reluz que a derivação da palavra monológico advém
de "monólogo" e "(...) significa uma única pessoa falando por si mesma"
(Ib., p. 35). Acrescenta que dialógico vem de diálogo, que quer dizer “falar
com alguém e tentar entender a pessoa" (Ib., p. 35) e ainda que
translógico seria a “transcendência do lógico, do racional ou mental"
(Ib., p.36).
Em uma perspectiva crítica à dualidade, Wilber (2012),
estadunidense, menciona que “novos paradigmas" (Ib., p. 34), ainda são
amparamos em um viés universalista, confundindo a semântica de
“novidade” a um suposto tempo “mais avançado”, o pós-moderno.
Segundo o autor (2012), o pensamento científico ainda se mantém
fragmentado na modernidade (Ib., p. 37). Nesse sentido, que teia
hegemônica ainda perpetuamos e contemplamos em nossos corpos?
Sob contexto estético-político, Alvim (2020) frisa que "nas formas
do exotismo, da colonização, da hierarquização de valores e capacidades
a partir de raça, classe e gênero produzem-se diversas formas de
144 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

exclusão social, marcadas na divisão dos espaços por fronteiras bem


definidas (...)" (Rancière, 2012 como citado em Alvim, 2020, p. 37).
Com que corpos não só convivemos e também nos sentimos à
vontade ou não identificades? Não com a proposta de “definir” respostas
sobre questões trazidas no decorrer deste ensaio, intenciono flexionar
corpo-organismo-ambiente (Perls et al., 1997) ao ser-mundo-território
que nos habita, contatando-nos à inescapável realidade cultural
colonizadora-colonizada que submergimos.
No tópico a seguir, a delineação parte em resenhar Michelle Billies,
a partir de seu texto “Confluência da terapeuta com sistemas sociais de
opressão e privilégio”, obra publicada em 2005. A autora (2005) desvela
a sutileza sobre como confluímos no lugar de colonizadora/opressora e
colonizada/oprimida na prática clínica da Gestalt-terapia.

CONFLUÊNCIA DE GESTALT-TERAPEUTAS AO SISTEMA DE PRIVILÉGIOS E


OPRESSÕES SOCIAIS

Diante o contexto de privilégios mantidos por opressões sociais,


Billies (2005) traz apontamentos sobre como determinados benefícios
sociais - como privilégios de classe, raça - que Gestalt-terapeutas
recebem podem impactar a relação terapêutica. Billies (2005, p. 73,
“tradução nossa”) explicita exemplos cotidianos de confluência de
Gestalt-terapeutas com a opressão sistêmica. A autora elenca na
Gestalt-terapia alguns modos de confluir com sistemas de opressão:
invisibilizar o significado da identidade de clientes que vive em lugar de
racismo e exclusão; generalizar circunstâncias baseadas em
experiências de grupos de privilégios; diagnosticar grupos de
identidade, a partir de um modelo universalista; considerar lésbicas,
gays ou pessoas transgêneres, com desenvolvimento debilitados ou
Tatiana de Paula Soares • 145

carecendo de adequação à normatização do grupo familiar; crer que o


atendimento de pessoas transgêneres só se torna viável por teorias
específicas apartadas de outras.
Para Michelle Billies, Gestalt-terapeuta estadunidense, atentar-se
“para tornar-se aware e mudar hábitos que representam práticas
culturais opressoras transforma como e o que a terapeuta percebe e
enriquece as possibilidades de contato” (Ib., p. 71, “tradução nossa”).
Billies (2005) nomeia "redes de interrupções habituais" (Ib., p. 80,
“tradução nossa”) as redes que estão envolvidas na opressão social que
não são efêmeras, e, tampouco, possuem comportamentos isolados. Ao
contrário, elas oriundam de sistemas e instituições que dependem de
inúmeras interrupções de contato e são interdependentes para
funcionar.
A confluência com esse sistema funciona como uma ação de inibir
o contato no campo. Para trazer como figura o que está na inconsciência
- devido à confluência – é necessário em uma relação intersubjetiva no
campo, identificar os próprios introjetos, projeções, retroflexões e
egotismos também envolvidos em suas relações opressivas (Ib., p. 73,
“tradução nossa”). A pessoa que recebe privilégios participa ativamente
(ainda que involuntariamente) na direção do fluxo de recursos
empregando ajustamentos criativos que ela desenvolveu, os quais
resultam em seu contínuo recebimento de privilégios (Ib., p. 75,
“tradução nossa”).
A autora (2005) evidencia que qualquer identidade é contextual e
processual. Somos pessoa-cultura. Essa noção captura tanto a natureza
multidimensional da identidade quanto a ideia de que a identidade é
formada e muda em relação a muitos aspectos da cultura. Gestalt-
terapeutas podem contribuir para a liberação de gestalten fixadas
146 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

identificando formas de discurso social que sustentam e são


sustentadas pelo discurso dominante e empregando estratégias para
desfazer a sua adesão a tal discurso (Ib., p.79, “tradução nossa”).
Qualquer pessoa com privilégios preenche, em algum momento, o
lugar de opressora. Compreender que o preenchimento desse papel não
é um estado, mas sim o resultado recorrente de dinâmicas identificáveis
pode reforçar a curiosidade do terapeuta e mitigar a negação, a
defensividade, a culpa, o desamparo ou a desesperança que possam
surgir (Ib., p.80, “tradução nossa”).
Consequentemente, ao sentir ansiedade e raiva e precisar
administrar os sentimentos, a Gestalt-terapeuta projeta esses
sentimentos em uma outra pessoa, a quem culpa e odeia por seu estado
emocional (Lichtenberg, 1990 como citado em Billies, 2005, p. 80,
“tradução nossa”). Através de suas projeções, na relação terapeuta-
cliente, a Gestalt-terapeuta perde o senso de fronteira entre ela e a
outra pessoa, fundindo-se com a cliente. Da mesma forma, a cliente que
ocupa o papel oprimido é confrontada com os sentimentos da opressora
e não pode administrá-los ou escapar deles (Lichtenberg, 1990 como
citado em Billies, 2005, p. 80, “tradução nossa”).

ILUSTRAÇÃO CLÍNICA NO FENÔMENO DE CAMPO

A partir das fronteiras entre monocorpo, campo e confluência,


esta seção visa acentuar a relevância de nos flexionarmos enquanto
Gestalt-terapeutas brancas, cis-heterossexuais, para a esteira corpo-
campo em um contexto sócio-político.
De forma ilustrativa, a proposta é de trazer um exemplo sobre
como a implicação estrutural de nossos corpos imersos em uma cultura
Tatiana de Paula Soares • 147

onde predomina o racismo e o monocorpo cisheteronormativo como


padrão, confluem nossa presença na relação terapeuta-cliente a
manutenção de opressões.
Previamente, destaco, desenhado por Billies (2005, p. 82, “tradução
nossa”), alguns exemplos, em geral, espelhando maneiras invisíveis de
confluência que possam emergir no campo terapêutico: a terapeuta
branca não levantar questões da raça da cliente ou da raça da terapeuta
a menos que o cliente inicie a exploração delas; o processo de
culpa/desprezo pode vir à tona quando uma terapeuta não transgênere
enfatiza principalmente a responsabilidade de uma cliente transgênere
pelos sentimentos que as outras têm em relação ao seu gênero; a
terapeuta privilegiada financeiramente permitir que uma cliente de
baixa renda pague muito abaixo da taxa mínima da terapeuta e com isso,
a terapeuta pode desenvolver ressentimento; irritada com o racismo em
sessões com uma ativista antirracista branca, a terapeuta branca
frequentemente se concentra no racismo da cliente, abordando de
forma insuficiente outras questões importantes para a cliente, como as
relações familiares.
Doravante uma situação clínica enquanto Gestalt-terapeuta e no
papel de supervisora clínica, trago uma passagem que estampa um
processo de minha confluência ao contexto que me foi apresentado. Ao
final, compreendi o processo sobre como incorreria o risco de conduzir
a supervisão de forma reducionista, a partir da primazia do foco na
subjetivação psicológica da 12 cliente. A colega Gestalt-terapeuta que
requereu supervisão cínica, ao relatar o histórico sócio-familiar do
cliente adolescente, em que esta se identifica em uma perspectiva não

12
Nesta seção, o trocadilho pronominal masculino/feminino refere-se à mesme cliente, visando o
exercício de leitura sob perspectiva de alteridade perante categorizações de gênero.
148 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

binária de gênero, expôs que a cliente não se importava de ser chamade


pelo pronome masculino por seus familiares e pelo pronome feminino
por outros grupos de pares: Pra mim, tanto faz se vão me chamar de ela
ou ele, minha mãe me chama de Pedro 13 e meus amigos de Lia 14”.
De imediato, consoante ao “processo de circuito rápido” descrito
por Billies (2005), minha atenção inicial, enquanto supervisora foi
buscar fatores de “cura” e bloqueios de contato, fazendo referência a
uma suposta retroflexão por parte da cliente. Identifiquei junto à colega
que o tanto faz por ele mencionado poderia ser uma forma de provocar
seus familiares “negando” um possível incômodo diante outras
introjeções por ela assimiladas. E a possibilidade do cliente bloquear o
contato por deflexão sobre o fato de que pudesse haver uma percepção
de si e de mundo (universalizante) que melhor se adequasse à sua
identidade e que pudesse se sentir mais confortável.
Em lapsos de segundos, após passear pelo ciclo do contato
(RIBEIRO, 2019), em que percebo como fundamental na atuação clínica
da Gestalt-terapia, descortinei que, quem não “suportaria” ter uma
identidade indefinida seria eu, enquanto pessoa-mundo. E que
retroflexões ainda se fazem necessárias ao meu encontro com
identidades. Além disso, ainda que eu me veja como uma buscante
sedenta ao novo e à pluralidade, percebi que a projeção de não se sentir
confortável em uma in-definição de papéis, nomes e encaixes dentro da
normatividade, era minha.
A inquietude em meu monocorpo, proporcionou-me sair de um
processo de psicologização da cliente e imergir no campo ao exercício

13
Nome fictício para preservar a identidade do cliente.
14
Idem.
Tatiana de Paula Soares • 149

de alteridade. Contatar minha ansiedade e enxergar incômodos


próprios sobre a busca de nomear e enquadrar minha identidade e
formas de “estar com”, aliviou em desmanche, o que estava no fundo de
minha inconsciência, a necessidade fixada de constância e
permanência. Com isso, compreendi em mim, diante a percepção de
minha confluência, o afrouxamento de rótulos e modelos que faço e não
faço parte, que de algum modo, mantêm privilégios meus.
Este insight, permitiu-me retornar ao campo de supervisão com a
atenção fluida à singularidade de vivências daquela cliente, imerso,
indubitavelmente em um contexto de opressão social.

ESTUDOS DECOLONIAIS PARA AMPLIAR LUPAS, ALÉM DE


NORMATIVIDADES

E então, como estudos críticos sócio-históricos que abordam


decolonialidades podem contribuir à nossa práxis, enquanto Gestalt-
terapeutas, a estarmos menos presos aos hábitos de confluência e mais
capazes de contatar outres?
Autores das ciências sociais que fazem parte do grupo
Modernidade/Colonialidade (M/C) trazem crítica aos processos de
colonialidade, em especial, aos países do Sul Global. Para o grupo M/C,
relações de colonialidade nas esferas econômica e política não
terminaram com a suposta destruição do colonialismo (Quijano, 2005;
Germaná, 2020; Castro-Gomez & Grosfoguel, 2007). Quijano (2005)
enfatiza que o colonizador europeu impõe seu modelo baseado em
hierarquias, estereótipos, dualismos e diferenças, fomentando a ideia
globalizada de eurocentrismo.
A partir de estudos antropológicos e arqueológicos, Segato (2007) e
Oyěwùmí (2021) nos convidam a rever a esteira universal e
150 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

categorizante de corpos. Rita Segato (2007), antropóloga argentina,


defende um mundo radicalmente plural em que prevalece a profunda
diferença entre as opções culturais. Para a autora, "um campo unificado
de crença, uma ideologia hegemônica ou sistema de valores, onde todos
em uma determinada sociedade, independentemente da posição, podem
encontrar expressão é um mito nacional daltônico ou monocromático”
(Segato, 2007, p. 110).
Segundo Segato (2002), raça deve ser compreendida a partir dos
contextos definidos em que encontra sentido, é uma marca corporal do
curso de uma história de alteridade, portanto, compreender raça
implica colocar o conhecimento em relação às formações nacionais de
alteridade.
Para abordar gênero, Oyèrónkẹ́ Oyèwùmí (2021), socióloga
nigeriana, pautou-se em pesquisas arqueológicas africanas do período
pré-colonial e desenvolveu a tese de que categorização de gênero é
“invenção” patriarcal ocidental. Segundo Castro (no prelo), Oyèwùmí
(2021) problematiza as teorias feministas hegemônicas que preconizam
as categorias universalizantes como atemporais, somando-se ao fato de
que, para a autora, saberes contemporâneos são verdades objetivas e
universais (Ib., p. 57).
A questão da mulher é derivada da construção de gênero ocidental,
binária e patriarcal. Em outras palavras: a categoria mulher não existe
em yorubá antes do contato com o Ocidente. Categorias sociais como
“mulher” são baseadas no corpo e são construídas em relação e em
oposição a outra categoria: “homem”; a presença ou ausência de certos
órgãos determinaria a posição social (Oyěwùmí, 2021; Castro, no prelo).
Conforme Oyèwùmí (2021), o olhar generificado mantém o
pensamento dualista cartesiano ocidental - mente (masculino,
Tatiana de Paula Soares • 151

sabedoria, razão) e corpo (feminino, natureza e instintivo). A


perspectiva dualista é constante no pensamento feminista que consiste
em estudar o caráter androcêntrico - rótulo da neutralidade,
objetividade, universal - propagado pelo liberalismo (Castro, no prelo).
Na cosmovisão ocidental, “o corpo está sempre em vista e à vista” e
evoca um olhar de diferença, em que “o mais historicamente constante
é o olhar generificado” (Oyèwùmí, 2021, p. 28).
Neste sentido, para abordar corpos em suas expressividades, a
visão decolonial é fundamental para a compreensão do mundo em sua
heterogeneidade, considerando a multiplicidade étnica e cultural de
povos, territórios e saberes. Mignolo (2010, p.12) sugere que a matriz
colonial do poder seja “uma estrutura complexa de níveis entrelaçados”,
em que “... a colonialidade se reproduz em uma tripla dimensão: do
poder, do saber e do ser.
A decolonialidade ecoa ao que Billies (2005) nos convoca a
identificar de que modos imergimos em um mundo que alimenta a
situação de privilégios por processos invisibilizados de exclusão. Como
colonialidades imperam em nossas escolhas, na integração política e
social de nossas atuações na Gestalt-terapia? Quantos clientes
transgêneres chegam até nós? Quantas indígenas? Por onde estamos
caminhando? Estamos passando “desapercebidas” às violências do mito
de democracia racial no Brasil?
Para Castro (no prelo), colonialidade significa quaisquer exclusões
provocadas por hierarquias no conhecimento, hierarquias espirituais,
raciais e étnicas, gênero e sexualidade. Supremacias de um gênero, de
um sexo em relação a outros. Núñez (2021) ressalta que a colonização
atinge nossas vidas no modo subjetivo e emocional, afeta a micro e
macro políticas, em que a prática da violência ecocida, racista e
152 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

misógina é o desvio ou desobediência de uma única teoria de mundo que


seria ética, a partir da monocultura do pensamento. A autora (2021)
salienta que todo binarismo empobrece o mundo.
Diante este cenário sócio-histórico opressor, não há como se
abster de análise social e crítica de grupos que visam enriquecerem às
custas da perversa estrutura de colonialidade do ser, do saber e poder.
Estrutura esta, que replicamos cotidianamente pelo patriarcado do
poder.
A ideia de 're-existência', de acordo com Segato (2018) ressalta a
necessidade de revisitar as experiências passadas, em uma perspectiva
crítica situada em um processo da história colonial, para atualizar
propostas de enfrentamento das precariedades demarcadas ao longo
dos interesses das classes dominantes.
O enfrentamento destas injustiças precisa ser legitimado por
protagonistas 'silenciadas(os)' da própria história. O contrassenso
precisa ser compreendido como o retrato da multiplicidade e de
miscigenação das constituições e experiências dos povos em seus
contextos contínuos de trans-formação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo visou contribuir à abordagem e práxis da Gestalt-


terapia, instigando para que corpos brancos cisheteronormativos se
atentem às confluências com padrões que estamos suscetíveis e à nossa
responsabilidade diante da história colonial em nosso país.
As limitações deste ensaio consistiram na escassez de dados, por
ausência de revisão sistemática minuciosa longitudinal, que pudesse, de
modo mais concreto, investigar a existência de projetos, pesquisas e
Tatiana de Paula Soares • 153

práticas, já existentes na Gestalt-terapia brasileira que reverberem a


pluriversalidade epistemológica e de atuações interseccionais da
temática aqui abordada, pelo viés político-social.
Estudos sobre decolonialidade solidificam a corporificação de
Gestalt-terapias implicades em contatar corpos não normativos no
campo fenomenológico. Trata-se de instituir visões de mundo que
desencaixotem categorias racionalistas, excludentes e universalizantes
sobre “gêneros”, ficções de raças e que ignorem o efeito neoliberal
destruidor diante a disparidade de realidades socioeconômicas.
Enquanto Gestalt-terapeutas, ao localizarmo-nos em situações
contemporâneas, abrem-se possibilidades de acolher genuinamente o
que se apresenta como fenômeno, considerando classe, gênero e
discriminações raciais.
Diante as ressalvas de Nascimento (2021), contribuições de Perls
(1992), Lins e Alvim (2020), na Gestalt-terapia, que comportamentos
replicamos cotidianamente, de modo individual e coletivo, que
sustentam relações hierarquizadas? Como estamos imbricadas na
padronização do pensamento monocultural (Núñez, 2021)? Esta
narrativa promove saúde? A hegemonia do ser inspira coletividade ou
mérito e superioridade? Em Gestalt-terapia, o que expressamos em
nossos corpos no encontro da diversidade de outres corpos?

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SEÇÃO 2
Section 2
Sección 2

DECOLONIZAR A GESTALT-TERAPIA: SOBRE A


NECESSIDADE DE UMA PRÁTICA ANTIRRACISTA
Decolonizing Gestalt-therapy: on the need for an anti-racist practice.
Descolonizando la terapia Gestalt: sobre la necesidad de una práctica
antirracista.
5
IANSÃ: A TEMPESTADE QUE INCIDE SOBRE A
BRANQUITUDE NA CLÍNICA PSICOLÓGICA
Iansã: the storm that affects whiteness in the psychological clinic
Iansã: la tormenta que afecta la blancura en la clínica psicológica

Sérgio Lizias Costa de Oliveira Rocha


Paulo Antonio de Oliveira Muniz
Mônica Alvim

INTRODUÇÃO

As discussões em torno dos impactos do racismo estrutural na


clínica têm sido tema central em debates e congressos de psicologia por
todo o Brasil. Em um país como o nosso, perpassado pelo racismo como
fundo que perpetua um genocídio das populações negras e indígenas
como “o modo ‘normal’ a partir do qual se constituem as relações
políticas, econômicas, jurídicas e até familiares” (Almeida, 2021, p. 50),
como é possível para nós, psicólogos e Gestalt-terapeutas, discutirmos
essas experiências que emergem de um campo complexo e violento,
repensando a psicologia enquanto proposta de enfrentamento ao
impacto do racismo na população negra? Será que, mesmo diante das
dificuldades, é possível discutir uma psicologia que seja um espaço de
acolhimento e escuta para a população negra? É possível pensar uma
perspectiva clínica gestáltica antirracista e política? O que a graduação
em psicologia nos diz a respeito do enfrentamento às demandas da
população negra? E a formação em Gestalt-terapia?
160 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

No que diz respeito aos cursos de psicologia brasileiros, “a imensa


maioria dos currículos não contempla disciplinas que abordem a saúde
mental da população negra, bem como não contempla intelectuais
negros e negras em suas bibliografias” (Veiga, 2018), o que nos mostra
que o racismo tem sido institucionalmente silenciado e inexistente na
psicologia contemporânea como um histórico espaço de saber e poder
(Silva, 2004, p. 131 como citado em Santos, 2018, p. 6). Além disso,
somente 16,5% dos psicólogos são negros ou negras, conforme aponta o
Conselho Federal de Psicologia por meio de pesquisa encomendada ao
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(DIEESE, 2016). O que evidencia a desigualdade de oportunidades e a
predominância quase absoluta de pessoas brancas na profissão. Ao
nosso ver isso contribui para a precarização na formação do profissional
psicólogo que, não tendo conhecido e refletido sobre o tema das relações
étnico-raciais, fica alheio a um olhar crítico-político e não está
preparado para acolher clientes que adoecem pela vivência cotidiana do
racismo (Damasceno & Zanello, 2018). Todo esse cenário nos permite
afirmar: o sofrimento do corpo negro e o racismo estrutural são
hegemonicamente invisíveis à psicologia, situação fruto de um
pretensioso discurso científico eugenista sustentado com base no mito
da democracia racial (op. cit.).
Silenciando essa capacidade de atenção à população negra, a
graduação em psicologia reproduz o que Boaventura de Souza Santos
nomeou como epistemicídio. No contexto de nossa discussão, o
epistemicídio pode ser considerado um dispositivo que realiza uma
estratégica inferiorização intelectual do negro ou sua anulação
enquanto produtor de conhecimento no espaço acadêmico,
consolidando uma supremacia branca supostamente detentora um
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 161

conhecimento intelectual universal (Santos, 1995; Carneiro, 2005).


Nesse sentido, a formação em psicologia negligencia a existência do
racismo estrutural na maioria de suas discussões, mantendo a produção
de um conhecimento tradicionalmente colonial e eurocêntrico que
desvaloriza saberes e epistemologias negras supostamente ditas como
inferiores (Bernardino-Costa et al., 2019).
Ainda que o currículo básico de psicologia não contemple essas
questões, a Extensão Universitária e algumas modalidades de estágio
supervisionado têm cumprido parcialmente o papel de colocar os
estudantes em contato mais direto com a realidade social, propiciando
a emergência de discussões de temáticas que evidenciam desigualdade,
violência, opressão, sendo a população negra a mais atingida em todas
as esferas.
O cenário não é muito diferente no âmbito das pós-graduações e
formações em Psicologia e, especificamente, em Gestalt-terapia. Até
dois ou três anos atrás não havia módulos nas formações dedicados à
temática das relações raciais, reproduzindo o racismo epistêmico. Nos
últimos anos, com o advento dos programas de ações afirmativas nas
universidades públicas e os avanços dos movimentos sociais, aliado a
movimentos antirracistas fortalecidos com a onda gerada quando do
assassinato de George Floyd pela polícia estadunidense, a discussão
ganha destaque e produz reflexos. A Associação Brasileira de Gestalt-
terapia (ABG) promoveu, no ano de 2021, um amplo debate sobre o
currículo de formação em Gestalt-terapia e o tema das relações raciais,
de sexualidade e gênero foram incluídos como disciplinas básicas nas
recomendações para os cursos de formação. Entretanto, essa ação, na
prática, ainda é minoritária nas formações brasileiras.
162 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O projeto “Plantão Psicológico Online na periferia: Gestalt-terapia,


Fenomenologia e Cinema”, doravante referido como PPONP, foi
desenvolvido como resposta às mudanças geradas pelo surgimento da
pandemia que afetaram drasticamente o cotidiano em todo o mundo.
Ele surge como uma modalidade de atendimento remoto muito
utilizada como estratégia de enfrentamento ao distanciamento social,
tendo sido adotado por diversas universidades e outros setores da
sociedade para atender demandas que já existiam e outras que
emergiram durante a pandemia.
A periferia das cidades e comunidades de favelas, menos
favorecidas economicamente e de maioria negra, foram os espaços mais
atingidos considerando que os problemas psicossociais que já existiam
emergiram com mais força e vigor devido à vulnerabilidade social. Foi
nesse contexto que propusemos este projeto de pesquisa, no âmbito de
um pós-doutorado, para investigar processos de subjetivação de
usuários do Plantão Psicológico On-line em favelas e periferias. O
projeto previa como etapa posterior a produção de audiovisuais
experimentais que pudessem servir como material didático. A primeira
etapa do projeto consistiu em atendimentos supervisionados em
plantão psicológico on-line a partir do referencial da Gestalt-terapia e
a segunda de um processo de roteirização sobre os temas que
emergiram nos atendimentos com posterior gravação e edição.
Neste capítulo temos como objetivo discutir situações clínicas
surgidas nos atendimentos envolvendo o tema das relações raciais, a
partir do audiovisual “Iansã” 1, que condensa diversas situações de
racismo narradas nos atendimentos e supervisões do projeto. Antes de

1
https://youtu.be/F-F80y0y6F8.
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 163

adentrarmos nestas situações, o tema da branquitude, que compõe o


campo das relações raciais, será trazido como destaque, visto que é um
ponto nevrálgico para discutir a prática psicológica no contexto de uma
profissão onde a imensa maioria é branca.

BRANQUITUDE E APAGAMENTO DAS TRADIÇÕES E EPISTEMOLOGIAS


DITAS COMO OUTRAS

O racismo é definido por Almeida (2021) como uma forma


sistematizada de discriminação que tem a raça como fundamento. Ele
privilegia determinados indivíduos e grupos em detrimento de outros
com base no critério da identidade racial, sendo que essa discriminação
racial tem o poder como requisito. A hierarquia racial é originada na
modernidade como consequência da divisão entre europeus e povos
originários de territórios invadidos e colonizados, considerados
primitivos e inferiores. A ideia de superioridade europeia produzida
naquele contexto histórico e político permanece e se reproduz na
organização social, mantendo o poder centralizado em setores brancos
da sociedade, mostrando como os conflitos atuais envolvendo relações
raciais estão arraigados na estrutura social. A naturalização das
diferenças raciais, assumidas como regras da natureza não se sustenta,
visto que não há, atualmente, teorias que confirmem ou legitimem o
conceito de raça, hoje considerado uma invenção para justificar a
dominação. Ainda assim, num contexto regido pela colonialidade do ser,
do poder e do saber (Bernardino-Costa et al., 2019), essa hierarquização
se mantém e tem como consequência a racialização exclusivamente do
não-branco e a consequente atribuição do racismo como “problema do
negro”.
164 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Entretanto, estudos sobre a branquitude reivindicam a


racialização do branco, identificando essa noção como a identidade
racial do branco. Silva (2017, p. 25) apresenta uma definição de
branquitude que resgatamos a seguir.

A branquitude é um construto ideológico, no qual o branco se vê e classifica


os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens
materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais
vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político,
econômico e social) e de bens materiais e simbólicos. Ela apresenta-se como
norma, ao mesmo tempo em que como identidade neutra, tendo a
prerrogativa de fazer-se presente na consciência de seu portador, quando é
conveniente, isto é, quando o que está em jogo é a perda de vantagens e
privilégios.

Nessa definição podemos identificar os principais elementos


destacados na literatura sobre a branquitude. Em primeiro lugar, a
dimensão ideológica; Almeida (2021) corrobora isso ao apontar essa
dimensão como uma das dimensões da manifestação estrutural do
racismo, localizando as visões falseadas e inconscientes da realidade no
campo da ideologia. Essa ideologia implica assumir o ponto de vista do
branco privilegiado como norma.
Essa normatividade não é propriamente explícita, implica colocar
o branco em um lugar de aparente normalidade, um padrão silencioso
que pode invisibilizar para o próprio sujeito esse lugar normativo e de
privilégio. Essa questão é fundamental para pensarmos a atuação do
Gestalt-terapeuta, conforme argumenta Billies (2005): “...Gestalt-
terapeutas que têm privilégios de posição social desenvolveram
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 165

interrupções habituais de contato que perpetuam sistemas de privilégio


e opressão”. (Billies, 2005, p. 72, tradução nossa 2).
O que nos leva a pensar em um outro ponto que envolve a questão
do privilégio branco, relacionado ao poder e às vantagens simbólicas e
materiais. Schucman (2020) considera a branquitude como fenômeno
calcado em estruturas de poder que geram privilégios materiais e
simbólicos. Os privilégios materiais são evidenciados em nossa
atualidade, por exemplo, nos números como os apresentados no início
deste trabalho que indicam que 84% dos psicólogos são brancos, ou seja,
tiveram acesso ao ensino superior. Dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) 3 apontam que as pessoas pretas ou pardas
são as que mais sofrem no país com a falta de oportunidades e a má
distribuição de renda. As diferenças em termos de ocupação de cargos
gerenciais e salários são gritantes. Os privilégios simbólicos envolvem a
manutenção no imaginário social de uma suposta superioridade racial
de brancos em relação aos negros, ainda que as teorias ditas científicas
tenham sido completamente superadas. É nesse sentido que a Gestalt-
terapeuta Michelle Billies adverte que “Especificamente, sob certas
circunstâncias, aqueles de nós com privilégios, intencionalmente ou
não, preenchem o papel de opressores” (Billies, 2005, p. 85, tradução
nossa 4).
Um último ponto importante a ser ressaltado envolve o problema
da invisibilidade para os sujeitos brancos de sua própria condição racial,

2
Gestalt therapists who receive privileges of social location have developed habitual interruptions of
contact that perpetuate systems of privilege and oppression.
3
Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Recuperado de https://educa.ibge.gov.br/jovens/
materias-especiais/21039-desigualdades-sociais-por-cor-ou-raca-no-brasil.html
4
Specifically, under certain circumstances, those of us with privilege wittingly or unwittingly fill the role
of opressor.
166 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

vantagens e privilégios. Sendo um tema controverso nos estudos sobre


branquitude, ele está relacionado à consciência ou inconsciência, à
neutralidade e a uma posição crítica ou acrítica por parte das pessoas
brancas em relação ao racismo (Cardoso, 2017).
O hoje chamado mito da democracia racial brasileira apoia a
construção simbólica da branquitude em nosso país. Antônio Bispo dos
Santos (2015), líder quilombola no Piauí, condena em suas discussões o
mito da democracia racial e mestiçagem e enfatiza as revoltas, as
rebeliões e as lutas antirracistas dos povos tradicionais que se
constituem em resistências a essa ideologia. Ele mostra como a
colonização implicou na dominação cultural e religiosa e opõe à
“cosmovisão cristã monoteísta” uma “cosmovisão pagã politeísta” (p.
37). Ele ressalta o fato de que a cosmovisão é desenvolvida a partir da
religiosidade e a partir da cosmovisão são construídos modos de viver,
ver e sentir a vida. O quadro 1 resume as características descritas pelo
autor na comparação das duas cosmovisões. Os eurocristãos
monoteístas se organizam em estruturas verticais e segmentação dos
participantes, vivendo um estado de competitividade. Os povos afro-
pindorâmicos, com sua cosmovisão pagã politeísta, por sua vez, se
organizam em estruturas circulares e são orientados por princípios
comunitários, plurais e não classificados, se relacionando no estado de
expressão da tradição e sabedoria da comunidade. O ataque dos
colonizadores enfatizava identidades individuais e coletivas, sobretudo
religiosas e a resistência implicava enfrentar o preconceito e o etnocídio
(Santos, 2015).
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 167

Cosmovisão cristã monoteísta Cosmovisão pagã politeísta

Deus onipotente, onisciente e onipresente, Várias deusas e deuses pluripotentes,


masculino – sociedades patriarcais pluricientes e pluripresentes

Único, inatingível, desterritorializado Materializados através dos elementos


da natureza, territorializados

Se organiza acima de tudo de modo vertical e Tendem a se organizar de forma circular


linear e horizontal

Ao tentar ver Deus se olha em uma única Consegue-se olhar para deusas de
direção deuses em todas as direções

Quadro 1: quadro comparativo das cosmovisões cristã e pagã (Fonte: Santos, 2015).

Atualmente vemos inúmeros eventos de preconceito, racismo e


perseguição às religiões de matriz africana, reproduzindo os
mecanismos que no período colonial visavam reprimir tais movimentos
e impor ao colonizado as religiões cristãs de origem europeia. Kabengele
Munanga (1999 como citado em Pereira, 2019) considera que o
branqueamento e a democracia racial foram estratégias que
funcionaram como mecanismos de aniquilação da história e da
identidade negra, expressando o racismo estrutural.
Pereira (2019) comparou a legislação brasileira no império e na
república, tendo identificado na constituição e códigos penais penas e
multas “reservadas àqueles que realizassem ‘batuques e cantorias de
pretos’, bem como ‘magias e seus sortilégios” (p. 64). A autora afirma,
com base em dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, que oferece informações sobre denúncias de discriminação
religiosa no Brasil, realizadas através do Disque 100, “que a intolerância
religiosa no Brasil tem direção e cor. Seu alvo principal são as religiões
de matriz africana e suas vítimas negros e negras” (Pereira, 2019, p. 65).
168 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

DESCRIÇÃO DO PROJETO

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em


Pesquisa (CEP), com o registro CAAE 52272421.9.0000.5582, estava
vinculado ao NEIFECS – Núcleo de Estudos Interdisciplinares em
Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas (PPGP-UFRJ), e
contou também com a participação de um pesquisador do mestrado em
psicologia em atividade de tutoria. O projeto foi executado juntamente
com um grupo de alunos do curso de graduação em Psicologia da UFRJ
em estágio supervisionado que atendeu em torno de 100 moradoras de
periferias e favelas do Rio de Janeiro a partir desta modalidade clínica
de atendimento on-line, sendo a maioria delas formada por mulheres
negras cisgêneras, de baixa renda e solteiras.
Após treinamento teórico-prático em plantão psicológico e
atendimento on-line, foi elaborado pelo grupo de pesquisadores um
formulário de inscrição on-line onde o usuário preenchia alguns dados
pessoais, dava anuência ao termo de consentimento e obtinha, em um
curto período de tempo, o retorno do estagiário para combinar o dia e o
horário da sessão. Os atendimentos ocorreram inicialmente com
moradores do Complexo do Alemão a partir de uma parceria já firmada
entre a Ong EDUCAP – Espaço Democrático de União, Convivência,
Aprendizagem e Prevenção e Projetos de Pesquisa e Extensão da UFRJ,
o que facilitou a chegada dos primeiros inscritos. No decorrer do
projeto, a divulgação foi sendo ampliada para atender também alguns
outros territórios. Os atendimentos nessa modalidade de plantão
psicológico constavam de duas sessões que não tinham um tempo fixo
pré-determinado, durando em média uma a duas horas. O segundo
encontro, considerado como uma sessão de retorno, tinha como
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 169

objetivo conversar/elaborar melhor o que foi visto na primeira sessão.


Em alguns casos especiais, foi importante ampliar o número de sessões
ou fazer encaminhamento para psicoterapia ou para a rede de apoio
psicossocial do território do usuário, com o acompanhamento de todo
processo pelo terapeuta-estagiário.
Dos atendimentos realizados emergiram temas significativos que
se destacaram tanto por sua maior recorrência quanto pela ressonância
provocada entre o usuário, terapeuta e o grupo de supervisão.
Emergiram temáticas psicossociais como a questão da maternidade, da
morte, da gordofobia, do racismo, além de diversos outros temas não
roteirizados.
Além do estágio-supervisionado de um ano, foi oferecida uma
disciplina eletiva “Gestalt-terapia e produção audiovisual” destinada
exclusivamente aos alunos do estágio e alguns alunos de cursos de
comunicação social/cinema e direção teatral. Na disciplina, voltada para
a produção dos roteiros, o grupo passou por uma breve sensibilização
sobre a linguagem audiovisual e suas diferentes etapas de produção,
mas foi no processo de aprender fazendo que foi possível realizar um
diálogo entre a clínica e o cinema, roteirizando processos de
subjetivação que resultaram em filmes na modalidade docudrama: uma
composição criativa formada por elementos reais e ficcionais.
Ao final da disciplina e do processo de estágio, foram produzidos
seis curtas documentais que denominamos “docudramas”, entre eles o
curta-metragem Iansã, que inspirou este trabalho.
170 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O DOCUDRAMA “IANSÔ

O título do filme aqui discutido remete a Iansã e faz alusão ao


resgate de tradições e epistemologias decoloniais e pluriversais. É uma
composição que emergiu de uma mescla de situações que trouxeram o
tema do racismo em alguns atendimentos realizados pelos estagiários
da equipe, tendo sido inspirado em uma das usuárias atendidas que
relatou durante uma sessão de plantão psicológico uma situação em que
precisou fazer uso da própria religião como forma de defesa, a partir da
ameaça que esta exerce no imaginário do outro.
Essa e outras situações compõem a personagem de Edneide, que
trabalha na portaria de um condomínio de luxo, é uma mulher negra,
casada, mãe de três filhos, muito zelosa e responsável e que pertence a
uma religião de matriz africana. É no terreiro que reúne suas forças
como mulher negra periférica para fortalecer sua identidade e
sobreviver no dia a dia da cidade do Rio de Janeiro.
O roteiro procura mostrar o confronto entre duas epistemes: de
um lado uma epistemologia branca, eurocentrada, representada pelo
administrador do condomínio de luxo e pelo terapeuta branco, e do
outro por Edneide, negra, pobre e periférica, representante de uma
tradição africana rica de sabedorias.
Nessa perspectiva, o roteiro também problematiza o positivismo
da clínica psicológica quando se espera que esta dê conta das demandas
trazidas para o setting clínico acreditando que sempre encontrará uma
resposta razoável ou um bom encaminhamento para tudo aquilo que ali
aparece. É nos vazios que ocorrem no contexto de situações clínicas
como estas que ecoam turbulentos ventos que balançam os próprios
fundamentos sobre os quais a psicologia clínica estabeleceu-se e que
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 171

estão de acordo com preceitos epistémicos eurocentrados e


colonizadores do saber.
Logo na cena inicial aparece, de forma impactante, um
administrador de um condomínio de luxo que pede para a personagem
Edneide alisar os cabelos. Isto é, coagindo-a para que, se quisesse
permanecer no emprego, abrir mão de características que fazem parte
de sua identidade para se enquadrar no padrão da branquitude do lugar.
A coação não é explícita; sob uma roupagem simpática, em meio a frases
de efeito motivacional e a busca de um laço claramente falso, o
administrador dá muitas voltas, mas deixa claro o alvo: o cabelo liso
deixaria Edneide mais “adequada” ao público do condomínio, que
inclusive vinha recebendo pessoas estrangeiras.
Na cena seguinte, o filme mostra Edneide buscando o plantão
psicológico e, antes de contar na sessão esta cena que se passou no
condomínio, ela relata uma situação em que alguns meninos do bairro
onde mora disseram que a religião dela era do diabo. Ela afasta-os a
partir do significado introjetado de sua religião para os garotos.
Sobre essa situação, o terapeuta responde: “Parece que você
conseguiu lidar com isso. Você teve uma forma de enfrentar isso.
Conseguiu manter eles a distância não deixando que isso te afete. Você
os manteve afastados. Mesmo com a atitude deles, a forma deles de
pensar...”. Neste momento, podemos afirmar que houve um
ajustamento possível naquela situação, mas também problematizar o
posterior trabalho na terapia. Embora Edneide tenha encontrado uma
boa resposta diante dos recursos que dispunha no momento,
questionamos se houve, no setting do plantão, uma assimilação do fundo
estrutural do racismo presente nessa situação clínica. No filme, a
intervenção resumiu-se a descrever afirmativamente as ações de
172 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Edneide. Entretanto nos perguntamos: teria o terapeuta reconhecido a


dimensão do racismo nessa situação clínica? Conhecimentos de uma
tradição africana ao serem perversamente satanizados perdem a
riqueza de toda uma cosmovisão e corre-se o risco de introjetar o
racismo através do preconceito religioso. Assim, um terapeuta que não
foi formado com um pensamento crítico em relação ao racismo, tem
maior chance de tornar-se confluente com o próprio sistema de
opressão.
Billies (2005) mostra como essa confluência com a opressão
sistêmica pode estar presente no trabalho clínico de terapeutas quando
estes podem agir de determinadas formas. A autora lista alguns pontos
que passamos a citar.

• descartar o significado da identidade de uma cliente como membro de um grupo


oprimido;
• generalizar para a cliente com base em sua experiência de grupo privilegiado;
• minimizar a extensão do sexismo, racismo e outras formas de opressão;
• distanciar-se exotizando a experiência da cliente;
• diagnosticar certos grupos identitários, como pessoas gays ou pessoas com
experiência transgênera, como psicologicamente ou com desenvolvimento
debilitados;
• permanecer pouco qualificados para trabalhar com clientes de grupos
oprimidos;
• relacionar-se com clientes com base em estereótipos;
• ignorar as implicações de privilégio com cliente do mesmo grupo privilegiado;
entre outros. (Billies, 2005, p. 75, tradução nossa 5).

5
• dismiss the significance of a client’s identity as a member of an opressed group;
• generalize to the client based on their privileged group experience;
• minimize the extent of sexism, racism, and other forms of oppression;
• distance themselves by exoticizing client experience;
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 173

De acordo com Sueli Carneiro, “não é possível desqualificar as


formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los
também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes” (2005,
p. 97). Ou seja, o processo de assimilação que resulta em mudança e
crescimento, conforme Perls, Hefferline e Goodman (1997), compreende
a incorporação de novos elementos do campo, nesse sentido, o
terapeuta, ao não perceber o racismo estrutural encoberto pela
intolerância religiosa, revela que ali algo importante não foi assimilado.
Mota (2018), apoiada em diversos autores como Silva Jr. (2007,
2009), Silva (2009), Gualberto (2011) e Oliveira (2014, 2015), defende a
importante noção de que “a intolerância religiosa é um ‘braço’ do
racismo estrutural entranhado no Brasil, embora não assumam a
expressão ‘racismo religioso’ diretamente” (p. 24). Esta autora advoga
pelo uso da expressão racismo religioso ao invés de intolerância
religiosa. “A ideia é de que intolerância/tolerância como categorias
passam a ser entendidas como um par, que tem sido mobilizado,
qualificando atitudes que jogam dentro de um cenário que é racializado”
(Idem, p. 24, 25).
O filme mostra ainda a situação de supervisão, na qual o terapeuta
relata a segunda parte do atendimento que, segundo ele, o impactou
fortemente. Ao trazer na sessão de terapia a situação de violência que
sofreu com o administrador, Edneide afeta o terapeuta branco que
enxerga a opressão, mas não sabe o que dizer, fica paralisado. O

• diagnose certain identity groups such as gay people or people of a transgender experience as
psychologically or developmentally impaired;
• remain underskilled in to working with clients from oppressed groups;
• relate to clients based on stereotypes;
• ignore the implications of privilege with a client from the same privileged group; among others.
174 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

supervisor, negro, por sua vez, provoca o terapeuta ao questionar se


haveria uma resposta para aquela situação, ou se mesmo a psicologia,
silenciando o racismo institucionalmente, estaria também
contribuindo para essa dificuldade de manejo do terapeuta diante de
uma violência racista.
O filme traz a estrutura do racismo bem presente em falas como a
do administrador do condomínio e a inaptidão do terapeuta,
expandindo-as para o problema do racismo religioso, e sinaliza, através
dos ventos (de Iansã) que, embora a Constituição de 1891 tenha apontado
o fim da separação entre religião e Estado, “nada mudou para as
religiões de matrizes africanas, porque não tinham sido reconhecidas
como religião, o que seguia excluindo e alijando-as da vida social e do
que se pretendia enquanto Brasil” (Mota, 2018, p. 30).
A escolha do nome de Iansã ocorre por se tratar de uma figura
feminina que faz parte dos mitos sagrados da tradição yorubá dos povos
africanos subsaarianos que “atuaram e ainda atuam como modelos,
como condutores de possibilidades identitárias para a criação e
recriação de diferentes formas de feminilidade negra” (Werneck, 2010
p. 12). Conforme Werneck, estas tradições africanas resistiram à
diáspora “e retornam a partir da década de 70, como ideias-força
organizativas das diferentes facções do movimento antirracista e,
principalmente, o antirracismo feminista das mulheres negras e suas
organizações” (idem, p. 14). A figura de Iansã neste filme é tomada,
assim como preconizada por essa autora, no sentido de um repertório
de identidade, de feminilidade e de organização política (Idem, p. 11).

Iansã: é a senhora dos ventos e dos raios. Uma força guerreira, perigosa,
insubordinada. É ela que, desobedecendo à regra que vedava às mulheres a
participação no culto dos mortos, obteve o poder de penetrar suas
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 175

cerimônias e dançar com eles. Compartilha seus mistérios. E ainda, é aquela


que, apropriando-se dos poderes destinados ao rei – Xangô, seu marido –
adquiriu o poder de cuspir raios e soltar fogo pela boca. Iansã é também a
mãe que abandona os filhos, que serão criados por Iemanjá (Werneck, 2010,
p. 14).

Nesse sentido, o filme intenciona mostrar como algumas


demandas foram jogadas ao vento ao ficarem sem respostas, tanto nas
situações vividas pela personagem no seu cotidiano, como nas situações
de atendimento e de supervisão, o que instiga o surgimento de Iansã que
aparece a partir do vácuo deixado por estas situações. Quando Edneide
relata ao terapeuta a situação que passou no condomínio sobre a
tentativa de imposição de um padrão de cabelo (liso) por uma
branquitude introjetada representada na figura do administrador
branco, podemos também visualizar Iansã como um vento que busca
impactar a partir do escancaramento de um problema que geralmente
é deixado no fundo, mas que se apresenta no filme em forma de uma
figura clara e vívida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho não se propôs a trazer respostas, mas a apresentar


novas perguntas para questões que se encontram invisíveis na clínica
da Gestalt-terapia, ainda muito atravessada pela branquitude,
problematizando a atuação de um terapeuta branco ao atender uma
pessoa preta vítima de racismo. Os elementos relacionados ao racismo
estrutural que aparecem no filme “Iansã” apresentam-se como figuras,
mas estão em grande parte presentes enquanto fundo e tendem a operar
176 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

como interrupções de contato por conta da confluência do terapeuta


com os sistemas de opressão.
Por conta de um não-saber do terapeuta, pela branquitude que se
acha incrustada em sua própria pele, desprovido de consciência crítica
e da sua própria condição racial, ele assume na relação terapêutica o
lugar de um outro-branco, tornando-se difícil e complexa uma
experiência empática no encontro com o outro-preto. Seu ponto de
vista, orientado por introjetos advindos da estrutura social racista e
confluente, no pacto narcísico, com a hegemonia branca e privilegiada,
torna problemático para ele reconhecer este fundo e trazê-lo à
superfície para trabalhar de forma integrada com as questões
singulares do cliente. Ou seja, o terapeuta pode estar atuando sem se dar
conta de que, conforme aponta Billies, “Eu também posso escolher por
não explorar como racismo e pobreza podem estar afetando relações
terapêuticas” (Billies, 2005, p. 72, tradução nossa) 6.
Conforme PHG (1997), o real é dado de forma progressiva no
contato, a partir do ajustamento criativo no ambiente, e quando isto é
inibido “...o mundo deste está ‘fora de contato’ e, portanto,
progressivamente alucinatório, projetado, obliterado ou irreal sob
outros aspectos” (p. 45). Nesse sentido, o terapeuta pode estar deixando
de lado um aspecto fundamental do campo ao não realizar o trabalho
apropriado de facilitação e promoção de awareness. Como afirma Billies
“À medida que a terapeuta traz material do fundo para se tornar aware
ela pode reconhecer e se envolver mais com o que a cliente apresenta e

6
I can also choose not to explore how racism and poverty may be affecting therapeutic relationships.
Sérgio Lizias Costa de O. Rocha; Paulo Antonio de O. Muniz; Mônica Alvim • 177

notar mais o que a cliente não faz, expandindo seus mundos


experimentais compartilhados” (Billies, 2005, p. 72, tradução nossa 7).
Quando o terapeuta indaga Edneide sobre como ela se sentiu após
ser solicitada a alisar seu cabelo e, depois de um forte suspense, ela
declara: “Invisível!”, os ventos de Iansã ecoam através do não-saber do
terapeuta diante de uma invisibilidade tão visível. Ecoam num
incômodo pungente à pele que nos faz questionar um Brasil fundado
por uma estrutura social desigual e violenta dirigida à população negra,
sobretudo às mulheres negras que lutam dia a dia para sustentar suas
casas e com as quais aprendemos tanto ao longo do projeto. Iansã é a
tempestade que incide sobre uma psicologia tradicionalmente colonial,
branca e acrítica que não se contesta. É o soprar de novos ares sobre a
psicologia e a arte a partir do resgate de saberes originários e ancestrais
que foram e ainda são apagados da nossa memória.

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Billies, M. (2005). Therapist Confluence with Social Systems of Oppression and Privilege.
International Gestalt Journal, 28(1), pp. 71-92.

7
As the therapist brings material from the background into awareness, she can recognize and engage
with more of what the client presents and notice more of what the client does not, expanding their
shared experiential worlds.
178 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

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inserção dos psicólogos no mercado de trabalho brasileiro. Relatório final elaborado pelo
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Werneck, J. (2010). Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e


estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Revista da ABPN, 1(1), 9-17.
6
NOTAS PARA UMA ESCUTA RACIALIZADA EM
GESTALT-TERAPIA
Notes for a Racialized Listening in Gestalt Therapy
Apuntes para una escucha racializada en terapia Gestalt

Luísa Parreira Santos


Marciana Gonçalves Farinha

PONTO DE PARTIDA

A Psicologia, em seu compromisso científico e ético com a


promoção da dignidade e da igualdade do ser humano precisa recriar-
se para acolher, validar e tornar visíveis grupos populacionais
sistematicamente excluídos das produções teórico metodológicas e, em
consequência, invisíveis em suas intervenções (Arrelias, 2020). Não
existe neutralidade na luta contra o racismo (Kendi, 2020). O psicólogo
que proclama neutralidade está mergulhado no mito da isenção, na fuga
ou na dificuldade de lidar com a realidade (Ribeiro, 2013). Nuñez (2021)
nomeia o conjunto de ideologias coloniais de sistema de monoculturas.
Na dimensão intelectual, o paradigma monorracionalista promove uma
blindagem aos esquemas de saber dos povos subalternizados,
impedindo que nos pensemos a partir de nossa própria episteme
(Rufino, 2019). O pensamento monista do colonizador é, portanto,
desterritorializado, linear, verticalizado e universalizante (Santos,
2015). Assim, devemos assumir uma postura ativa no combate à
opressão sistêmica fazendo escolhas teóricas e metodológicas que
180 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

descolonizem a profissão e promovam a diversidade, a pluralidade e a


liberdade.
A Gestalt-terapia pode fornecer uma visão diferenciada dos modos
de produção intersubjetiva em uma perspectiva étnico racial por se ater
às singularidades humanas (Costa, 2019). A psicoterapia gestáltica
funda-se na busca do sentido de existir, na concepção positiva das
potencialidades humanas e na tendência à autorregulação organísmica
(Ribeiro, 2013). Uma de suas características é a relação dialógica, que
implica um olhar clínico que capte a unidade do ser do cliente a fim de
regenerar seu centro pessoal (Buber, 1974). O fundamento da relação
terapêutica é a confirmação da existência do Outro (Holanda, 1998).
Quanta saúde pode sustentar a pessoa negra em um campo que não lhe
fornece sequer o status ontológico de humanidade? O racismo é uma
gestalten aberta na história do Brasil (Arrelias, 2020). A formação de
gestalten completas é condição de saúde mental e crescimento, processo
que fica altamente prejudicado em ambientes de rupturas e perda de
integridade (Perls, Hefferline & Goodman, 1997).
Kendi (2020) considera que o movimento do racismo para o
antirracismo é contínuo. Essa pulsação dinâmica nos posiciona ora na
alteridade, ora na negação da condição existencial dos negros, ora em
um encontro eu-tu, ora em um encontro eu-isso. Buber (1974) explica
que eu-tu e eu-isso são parte do movimento humano e alternam-se
constantemente em cada relação, visto que o homem é incapaz de
habitar permanentemente no encontro. A relação eu-isso desumaniza o
outro, o reduz a um objeto e afasta sua presença viva, sendo um modo
de relação prejudicial se for predominante (Merleau-Ponty, 1999). A
escuta clínica embranquecida e sustentada na relação eu-isso
desumaniza, violenta e reforça as políticas de morte.
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 181

TRILHANDO AS REFLEXÕES

Escolhi produzir minhas reflexões como Escrevivência: um ato de


escrita que resgata o corpo-voz de mulheres negras em sua potência de
emissão e de criação. Escrevivência é, antes de mais nada, uma
interrogação e uma busca pela inscrição na existência, no mundo-vida
(Evaristo, 2021). Este trabalho é uma ramificação do meu Trabalho de
Conclusão de Curso da especialização em Psicologia Clínica
Fenomenológica Existencial Humanista, orientado pela profa. Dra.
Marciana Gonçalves Farinha cujo objetivo é refletir sobre a psicoterapia
racializada na Gestalt-terapia a partir de situações clínicas. Este relato
de experiência nasce da escuta de pessoas negras em psicoterapia
individual em consultório particular e trilha, a partir de recortes de
situações clínicas, um diálogo entre a Gestalt-terapia e as Relações
Raciais.
Meu público majoritário são pessoas negras que me procuram com
a intenção consciente de fazer psicoterapia com uma psicóloga negra,
um dado relevante a destacar pois indica que o quesito raça foi um fator
considerado por eles quando da procura por profissionais. Junto aos
dados sociodemográficos colhidos no início do processo, incluo a
autodeclaração raça/cor conforme definido pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE): branco, pardo, preto, amarelo e indígena.
A fim de manter o sigilo e proteção à identidade das pessoas citadas, as
informações não essenciais para compreensão das situações clínicas
serão omitidas e serão usados nomes de flores e plantas.
182 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

PELE NEGRA, MANEJO BRANCO?

A Gestalt-terapia é, por excelência, uma proposta dialógica de


cuidado. Uma relação terapêutica autêntica demanda uma profunda
entrega do psicoterapeuta, pois sem ela a percepção não caminha segura
e pode cegar-se diante das próprias limitações (Ribeiro, 2013). Dessa
maneira, é essencial ter consciência de como a raça participa da relação:
possibilitando identificação, acionando defesas emocionais ou
reafirmando relações de poder.
Durante um encontro no qual Lavanda (mulher cisgênero parda)
questionava sua identidade racial, pergunto como é estar pensando isso
comigo, uma psicóloga negra. Ela demonstra muita inquietude e diz ter
medo de me ofender, expondo preocupação e indicando limites incertos
da nossa relação: seu medo é me agredir de forma não intencional. Medo
semelhante foi verbalizado por Copo-de-Leite e Tulipa (mulheres
cisgênero brancas) às quais fiz o mesmo questionamento e observei
como estava minha disponibilidade para o contato e para o vínculo.
Minha proposta é pautar a co-responsabilidade na relação, confirmar
que existe a possibilidade de reprodução do racismo entre nós e refletir
quais cuidados são necessários para lidar com isso.
É o corpo que ocupa os espaços e deles se apropria, que permite
reencontros com outras imagens no espelho (Rattz & Gomes, 2015). O
racismo institucional nos consultórios psicológicos ainda é tema
delicado, pois convoca diretamente os psicólogos a assumirem seus
lugares de fala, de escuta e de poder. A estrutura social da qual fazemos
parte conforma ou (de)forma nossas maneiras pessoais de perceber,
agir e refletir sobre cada encontro estabelecido (Arrelias, 2020). A
descolonização é uma tarefa permanente para os psicólogos alinhados
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 183

com a perspectiva antirracista e deve começar pela leitura e


engajamento de si.
Em decorrência do assassinato de George Floyd, em maio de 2020
nos Estados Unidos, Begônia (mulher cisgênero negra) expressa
profundo desalento, cansaço e revolta pelo ocorrido. Suas falas
distinguem um “eles” objeto de raiva (os brancos) e um “nós” que sente
“nossas dores”, reconhecendo nossos corpos como alvo da mesma
violência. Refletindo sobre a saúde da população negra, Veiga (2019)
apresenta o aquilombamento, encontro entre pessoas negras na clínica,
como dispositivo que tem efeitos subjetivos semelhantes aos quilombos
originais: proteção, segurança, dignidade e saúde mental. Isso será
possível apenas se, além de ser negro, o profissional tiver consciência
racial aliada à postura terapêutica, identificando suas próprias
afetações e usando-as em prol do cliente.
É equivocado dizer que o encontro psicólogo e cliente negros basta
para sustentar a psicoterapia. A pele pode ser um convite ao contato e à
identificação, mas toca apenas na superfície da relação e isso não basta:
a pele do terapeuta pode ser um solo fértil para o cultivo da diferença
enquanto diversidade. Ribeiro (2013) indica que o psicoterapeuta deve
apresentar-se como uma pessoa inteira, com uma postura que dê ao
cliente a certeza de ser aceito para se abrir sem ansiedades. Dessa
maneira, quanto mais consciência do seu ser-no-mundo o profissional
tiver, mais inteiro ele estará diante do cliente, mais autêntico será o
encontro e mais nutritivo será o processo. Falar é existir absolutamente
para o outro (Fanon, 2008). O psicólogo que não se racializa permanece
no véu da negação e, diante da experiência dos seus clientes, vai ecoar
apenas silenciamento.
184 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

FAMÍLIAS INTERRACIAIS

Begônia é filha de um casal interracial que a ensinou a declarar-se


branca e atualmente autodeclara-se negra, questionando como
demorou tantos anos para enxergar e assumir a própria negritude. É
comum que pessoas negras tenham dificuldade em autodeclarar-se
como tal, uma vez que a palavra negro ainda vem carregada de
significados pejorativos. A identificação como branca pode ser
entendida como uma tentativa de aproximação do lugar da branquitude.
O branqueamento é geralmente visto como um problema do negro
que, descontente com sua condição, procura identificar-se com o
branco e diluir suas características raciais (Carone & Bento, 2002).
Kilomba (2019) discorre que o racismo associa a imagem do negro a
aspectos pejorativos que interferem de forma intensa na formação da
identidade da pessoa negra, gerando sentimento de culpa e vergonha.
Além disso, ficou evidente durante o processo terapêutico que a
autodeclaração de Begônia estava intimamente vinculada ao
pertencimento em sua família de origem, pois nomear-se branca seria
equivalente a assumir uma fidelidade e proximidade com um lado da
família, de modo que ser negra ou branca define pertencimento e
distribuição dos afetos.
Situação semelhante ocorreu com Camomila (mulher cisgênero
negra), filha de um casal interracial em processo de assumir a
identidade de mulher negra. Pertencente à uma família cujos membros
apresentam grande variação fenotípica, ela passa a observar a história
e as condições socioeconômicas dos antepassados a fim de refletir sobre
raça e classe. No Brasil, a identificação de raça/cor é majoritariamente
feita com base na aparência e não na ascendência (Nogueira, 1985). O
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 185

pardo, ou mestiço, ainda ocupa um lugar desconfortável diante de


outros grupos étnicos em grande parte devido ao colorismo, uma das
faces do racismo que hierarquiza as pessoas segundo o tom de pele:
quanto mais próximo do branco, melhor (Walker, 1982). Camomila
percebe que, à medida que se torna negra, sente-se mais próxima dos
familiares negros, a quem anteriormente culpava e se ressentia pela
herança dos traços físicos, e compartilha menos afinidades com a
família branca.
É possível analisar a profundidade das relações intrafamiliares
lançando mão dos conceitos de confluência e da Teoria de Campo. É
natural que os pais ajam de forma confluente para com os filhos devido
à sua total dependência de cuidados e proteção. Contudo, a
diferenciação entre as pessoas pode se perder na relação, de modo que
os filhos sejam vistos pelos pais como partes deles ou objeto de suas
necessidades narcísicas. A maturidade exigirá que os filhos se separem
dos pais, construam sua independência, autorresponsabilidade e
dispensem a autoridade dos pais (Cardella, 1994). Será preciso sair da
confluência com a negação e/ou silenciamento familiar para poder
enxergar-se na própria pele e construir a própria identidade racial.
A Teoria de Campo estabelece que a experiência humana é
essencialmente contato, uma interação entre a fronteira do organismo
e o campo (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Para um
desenvolvimento saudável é preciso estar num campo que ofereça
condições para um contato saudável. O contexto familiar é o lugar
primeiro para a constituição do ser (Souza, 1983). Crescer em um campo
familiar com mensagens confusas e/ou negativas a respeito da raça não
permite um contato saudável com a própria corporeidade e o próprio
ser.
186 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O corpo esconde e ao mesmo tempo revela todo um passado não


pensado e não construído a partir da própria pessoa, camuflado com
retalhos de possibilidades de existir (Ribeiro, 2013). Schucman e Fachim
(2016) esclarecem que a autodefinição de cor é um processo intra, inter
e transubjetivo de construção do próprio lugar. Fanon (2008) assinala
que é necessária uma tomada de consciência de uma nova possibilidade
de existir, no sentido de escolher como lidar com as causas do
sofrimento. Não cabe ao terapeuta dizer ao paciente qual sua raça, mas
ajudá-lo a experimentar uma relação com sua corporeidade que não se
sustente na máscara branca do ideal de ego. Além disso, fica evidente
que a autodefinição racial ocorre de maneiras diferentes com cada
pessoa e sempre de maneira gradual, pois trata-se de um processo de
(des)construção subjetiva e de reposicionamento nas relações.

ASCENSÃO SOCIAL

No campo econômico, o racismo diferencia grupos quanto às


possibilidades de acesso a recursos que impulsionam a mobilidade
social ascendente como empregos, créditos, propriedades, terras,
educação formal e qualificação profissional (Paixão et al., 2011). Para
alcançar e assegurar uma posição de prestígio social, intelectual,
financeiro ou profissional o negro precisa se esforçar mais que o branco
devido às imensas desigualdades produzidas e mantidas pelo racismo.
Podem ser necessárias até nove gerações para que os descendentes de
uma família de baixa renda atinjam a renda média no Brasil
(Organization for Economic Cooperation and Development, 2018). No
contexto de trabalho, negros são 63,8% dos desocupados, 64,4% de
trabalhadores subutilizados, seu Índice de Desenvolvimento Humano
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 187

[IDH] atingiu em 2010 a pontuação que o IDH de brancos tinha uma


década antes e, dentre as pessoas ocupadas, o salário de negros é 73,9%
menor que o de brancos (IBGE, 2019, Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, &
Fundação João Pinheiro, 2017).
O negro que busca a ascensão social paga o preço do massacre de
sua identidade histórico-existencial (Souza, 1983). Hortelã (mulher
cisgênero negra), Gerânio (homem cisgênero preto), Orquídea (mulher
cisgênero negra), Girassol (mulher cisgênero negra), Lírio (homem
cisgênero preto), Erva-doce (mulher cisgênero preta) e Jacinto (mulher
cisgênero negra) relataram sentimentos de inadequação,
estranhamento e culpa quando assumem e/ou desfrutam dos bens,
acessos e confortos que o dinheiro proporciona. Ainda marcados pelas
experiências de escassez e limitação das condições materiais, o
consumo de certos itens é visto como ostentação, exagero e até mesmo
futilidade. A sensação descrita é de estar ultrapassando algum limite
invisível e, por vezes, de esperar por alguma autorização que nunca
chega. Ainda que haja condição financeira, a relação com a renda e o
poder de compra não se atualizou. A realidade encontra, atinge e
tensiona as pessoas de formas não racionais, o que dificulta a
identificação das causas do mal-estar e desconfortos (Ribeiro, 2013). O
complexo de inferioridade instituído pela violência colonial tem o poder
de fazer o negro se sentir desconfortável ao explorar novos territórios
geográficos e simbólicos, fazendo brotar a culpa e a estranheza.
Moore (2007) indica que o racismo nasce fortemente ancorado na
luta pela posse e manutenção de recursos vitais de uma sociedade, como
terras, rebanhos e produção agrícola. Hoje, no advento do capitalismo
digital, os recursos vitais são garantidos pelo poder de compra dos
188 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

indivíduos, ou seja, a renda atua no sistema de dominação como a chave


para manutenção da vida. Veiga (2019) esclarece que o sucesso do
projeto colonial se deve também à colonização dos territórios
existenciais. A ascensão social indica não apenas uma mudança
econômica, mas uma ampliação dos horizontes existenciais. Neste
sentido, as narrativas destas sete pessoas em ascensão social podem ser
compreendidas como um reflexo da colonialidade do ser, que diz da
negação ontológica e da experiência vivida da colonização na dimensão
subjetiva (Maldonado-Torres, 2007).
Qualquer trabalho psicológico antirracista precisa considerar a
materialidade das experiências ou será infrutífero. Além disso, é
possível observar uma fixação, bloqueio de contato caracterizado por
apego excessivo a pessoas, ideias ou coisas, dificuldade em explorar
novas situações e questionar as reais vantagens envolvidas (Ribeiro,
2013). Respeitando a singularidade de cada um, o trabalho psicoterápico
tem sido estimular a fluidez, o movimento, a reorientação no tempo, o
reconhecimento de novos espaços de circulação e a criação de novos
limites e valores que façam mais sentido com a realidade atual. Ribeiro
(2013) conceitua valores como aspirações de felicidade e aponta a
importância de que cada pessoa os torne conscientes dentro do seu
contexto e do meio que habita. Ser negro é também a experiência de se
comprometer a resgatar a própria história e recriar-se em
potencialidades (Souza, 1983). A psicoterapia deve ter como ética o
desmantelamento dos discursos agrotóxicos que impedem o
crescimento individual e coletivo das pessoas negras, buscando garantir
plenamente sua condição de liberdade.
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 189

O CORPO COLETIVO

A socióloga nigeriana Oyewùmí (2002) define a sociedade como um


conjunto de corpos físicos e metafóricos que expressam um interior,
tem os próprios signos e inscrições sociais específicas. Os corpos são a
materialidade do ser. No Brasil, pessoas negras são 77,6% das vítimas de
homicídios, 62% das vítimas de feminicídio, 70,7% das mortes violentas
intencionais contra mulheres e 52,2% dos casos de violência sexual. Um
jovem negro tem 2,6% mais chance de ser assassinado que um jovem
branco e 84,1% das vítimas letais de violência policial são negras (Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 2022). As estatísticas alarmantes
evidenciam que a morte tem endereço certo e o corpo negro é a vítima
principal. A negritude está inscrita no signo da morte no Brasil
(Carneiro, 2005). Devemos compreender morte não apenas vinculada ao
corpo material, mas também em suas facetas de escassez, perda de
potência, desencante e esquecimento (Rufino, 2019).
O contato com a barbárie produzida pelo mundo branco, que
provoca impactos corporais dolorosos e priva a pessoa da própria
identidade, é uma experiência de trauma (Kilomba, 2019). Poppa (2020)
defende que um dos efeitos do trauma crônico, que é decorrente de um
processo de desenvolvimento marcado por suporte precário, é a
indiferenciação de passado e presente de modo que as experiências
dolorosas são revividas no aqui-agora. Ser negro é carregar uma ferida
existencial e estar em uma luta diária e constante contra algum
tentáculo ultrassofisticado do genocídio (Njeri & Aziza, 2020). A
consciência e lucidez deste processo e a percepção das violências pode
levar ao mal psíquico do Afrosurto, termo criado por Njeri (2020) para
definir um profundo estado de ódio contra a opressão colonial.
190 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Clinicamente, podemos entender os ajustamentos criativos como


manifestações que buscam responder ao afrosurto e ao trauma colonial.
A dessensibilização, definida como diminuição da percepção sensorial,
vi em Orquídea ao abandonar um trabalho que lidava com denúncias de
racismo de modo que estava diariamente exposta a estímulos
perturbadores. A deflexão, uma forma de evitar e desviar-se de contatos
diretos, vi em Lírio ao assumir uma postura distante em relação aos
familiares autores de discriminações. Begônia, engajada nos estudos de
feminismo negro a fim de embasar seu trabalho e seus
posicionamentos, me indica a introjeção como ajustamento, ou seja, a
assimilação de algo oferecido pelo meio. Anis-estrelado derrama as
afetações provocadas pelas violências cotidianas na literatura,
fantasiando perspectivas diferentes para sua realidade em um
importante processo projetivo. Hortelã contém e volta contra si a
energia destrutiva que deveria ser dirigida ao meio, tal como na
retroflexão, praticando automutilações e comportamentos de auto ódio.
O egotismo, que permite autoafirmação da própria identidade e
sustenta um senso de autossuficiência, encontro em Dente-de-Leão
após tomar consciência de sua negritude, vivendo um período de
autoconfiança, assertividade e grande foco nos próprios desejos. A
confluência, capacidade de unir-se ao outro e experimentar o “nós”, vejo
em Jacinto que mergulha na espiritualidade e encontra uma
significativa vivência comunitária preta.
Na abordagem do trauma, é fundamental trabalhar tanto na
integração dos efeitos do trauma quanto na construção e fortalecimento
do autossuporte (Poppa, 2020). O ajustamento criativo compreende uma
fase de agressão e destruição, pois é se apropriando e alterando as
velhas estruturas que o desconhecido se torna conhecido (Perls,
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 191

Hefferline & Goodman, 1997). Não é incomum, portanto, que hajam


manifestações agressivas nesse processo, uma fase na qual a pessoa
negra se potencializa com uma energia que pode ser equivocadamente
interpretada como violenta. Malcolm X já nos deixou o alerta para
distinguir a reação do oprimido da violência do opressor, revelando a
necessidade de reconhecer, confirmar e legitimar os ajustamentos que
cada pessoa, em sua singularidade, pôde organizar.
Dialogando com Nobles (2009 como citado em Njeri, 2020), a Pulsão
Palmarina (desejo de liberdade herdado pelos afrodescendentes) tem
um papel fundamental na canalização do Afrosurto, direcionando a
energia física e psíquica do sujeito para movimentos produtores de
emancipação. As violências cotidianas do racismo e do colonialismo são
um aspecto comum à negritude e é fundamental que o corpo negro
também possa ser lido, vivido e experimentado a partir de suas
potências e em espaços seguros. Entender que a experiência de
sofrimento não é produzida no interior de uma subjetividade, mas no
campo da coletividade é uma forma de descolonizar a prática clínica. O
sofrimento psíquico não é da ordem da intimidade, ele é político (Veiga,
2019).

CONTENÇÃO DAS EMOÇÕES

O corpo é um campo de possibilidades que acaba esquecido quando


inchamos demais nossas cabeças (Rufino, 2019). A política colonial
aplica diversos mecanismos de aprisionamento que encarceram as
pessoas negras em estereótipos e mitificações, dentre as quais a
negação à emocionalidade. A jornada de ascensão social de Alecrim
(mulher cisgênero preta) mostra como a dissociação das emoções e a
192 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

hipertrofia da racionalidade foram adotados como estratégia diante dos


desafios. Nascida em família preta e periférica, assumiu tarefas
domésticas ainda criança a fim de ajudar os pais que tinham extensas
jornadas de trabalho, tendo aprendido a ser prática e não se afetar.
Percebe que deixou as emoções de lado e tem dificuldade em reconhecer
o que sente, em ser espontânea e até em chorar, experimentando muito
de sua corporeidade pelo viés das dores crônicas que lhe surgiram
precocemente.
A violência colonial é fenomênica pois afeta tanto os domínios
sensoriais quanto psíquicos, afetivos e físicos (Mbembe, 2018). A
escravização condicionou as pessoas negras e conter e reprimir seus
sentimentos como estratégia de sobrevivência (hooks, 2000). Tal
funcionamento pode ser entendido como retroflexão, no qual a pessoa
volta para si a energia que deveria ser dirigida ao meio, há uma
tendência ao autocontrole, perfeccionismo e grande valorização da
disciplina (Pinto, 2015). A tentativa de ignorar ou eliminar os afetos é
um movimento de autoagressão e negação de si mesmo no qual os não-
ditos acumulados podem encontrar na dor e no adoecimento outra
forma de expressão. Estados emocionais ocultados podem levar o corpo
a se manifestar através da doença, canalizando a emoção para
determinado órgão. A doença toma o lugar de figura e torna-se
prejudicial quando se cristaliza, impedindo o fluxo de formação de
novas figuras. É essencial olhar, então, para o fundo, ressignificá-lo de
modo a tornar a figura consciente e integrá-la no todo (Ivancko, 2006).
O racismo é uma gestalten aberta e compõe o fundo das vivências
trazidas por Alecrim.
Em certo dia, propus um experimento para facilitar o contato com
as emoções navegando pelos sinais que seu corpo manifestava enquanto
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 193

narrava sua história. Alecrim chora profusamente por vários minutos


dizendo de uma imensa raiva que guarda dentro de si e da dificuldade
em lidar com os próprios afetos. Após este atendimento as dores no
corpo intensificaram por dias, fato que ela traz como a primeira vez em
que viu uma ligação forte entre o corpo e as emoções. A totalidade
mente-corpo é o modo de engajamento de nossa existência (Alvim,
2017). O homem negro pode encontrar dificuldades na elaboração do seu
esquema corporal e o conhecimento do corpo se dá através da negação
(Fanon, 2008). O esquema corporal, para Fanon (2008), é uma
estruturação do eu e do mundo construída em uma dialética efetiva. Em
Gestalt-terapia, o ser humano é compreendido como um todo, numa
concepção dialética que envolve as dimensões do racional, do emocional
e do vivido imediato (Holanda, 1998).
De modo semelhante, Lírio tem uma história de vida marcada por
privações materiais, abandono afetivo e violências sistêmicas, tendo
respondido aos contextos hostis com distanciamento, fuga e evitação de
contato: parece estar sempre correndo de algo. A deflexão leva a um
contato superficial e desvalorização da introspecção, tornando a
intimidade um aspecto desafiador (Pinto, 2015). O trabalho
psicoterápico tem sido oferecer espaço para que Lírio possa mergulhar
em si, reconhecer suas necessidades emocionais e cultivar mais
profundidade nas relações.
Diante de pessoas que experimentaram tantas violências em seu
campo vivencial, a construção de um vínculo seguro na relação
terapêutica é primordial. Autorizar-se a manifestar a emocionalidade
tendo negado-a por tanto tempo é uma construção diária e contínua que
pode gerar ansiedade e medo, por isso o heterossuporte oferecido pela
psicoterapia é essencial para o crescimento. A biopolítica colonial é uma
194 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

máquina de destroçar gente que opera o desmembramento da


integralidade corpo, mente e espírito e determina que essas três
instâncias devem ser cultivadas separadamente (Rufino, 2019). A
sabedoria da Filosofia Africana e as tradições afro-pindorâmicas
trabalham o indivíduo de forma integrada, do individual para o coletivo
(Santos, 2015). Contra a alienação produzida pelo racismo, a busca é pela
integração das dimensões do ser, a inclusão da sabedoria do corpo, a
valorização do sensível e a ampliação da compreensão de si.

NOTAS VITAIS

Após trilhar as reflexões acima, esperamos ter evidenciado a


multiplicidade e amplitude do fenômeno da escuta racializada no
atendimento psicoterápico a pessoas negras. A seguir, oferecemos o que
consideramos notas vitais para cultivar uma prática psicológica
emancipadora com essa população: a consciência racial do terapeuta,
pois somos um espelho no qual o paciente direciona seus conteúdos e
podemos refletir os ideais de branquitude ou os ideais de uma existência
diversa e possível; a assunção do compromisso ético com a luta
antirracista em todos os espaços enquanto dever profissional e não
como afinidade identitária ou pertença racial; a capacitação técnico-
científica no que tange às relações étnico raciais para ter arcabouço
teórico para identificação e intervenção psicossocial; a consideração do
sofrimento em sua dimensão política e não individualizante; a inclusão
do quesito raça/cor nas fichas de atendimento; vencer o
constrangimento e até o descaso em abordar as questões raciais com as
pessoas atendidas e questionar como a raça participa das suas
experiências; ser capaz de acompanhar o desenvolvimento processual
Luísa Parreira Santos; Marciana Gonçalves Farinha • 195

da tomada de consciência e ampliação do contato com a racialidade;


produzir uma Psicologia engajada que promova a transformação da
sociedade, pois sem isso o cultivo individual da clínica não terá
sustentação; e por fim considerar a raça como uma dimensão estrutural
da existência humana que pode não ser verbalizada nas conversas, mas
deve estar sempre na análise do psicólogo.
A postura antirracista é um humanismo, pois considera o humano
e sua condição existencial de liberdade em absoluto. Enquanto psicóloga
negra ouvi mais de uma vez que meus pacientes negros encontram em
mim uma voz. Espero que este trabalho tenha demonstrado que não,
pois eles já têm uma voz que não é dada nem traduzida por ninguém: o
que eles encontram em mim é a escuta.

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MULHERES NEGRAS E AUTOESTIMA: EXPLORANDO
O IMPACTO DO RACISMO NA INFÂNCIA
Black women and self-esteem: exploring the impact of racism on childhood
Mujeres negras y autoestima: explorando el impacto del racismo en la infância

Andrea dos Santos Nascimento


Emanuella Moreira Cintra
Maiara da Silva

INTRODUÇÃO

A AUTOESTIMA

Carvalho (2007) defende que para se compreender a formação da


autoestima é preciso considerar as várias influências socioeconômicas,
familiares e culturais dos espaços no qual o sujeito está inserido. Para
fins deste artigo, focaremos na instituição escolar como propagadora do
racismo que, por sua vez, mantêm relação direta com a autoestima da
criança negra e, consequentemente, do adulto (observando que o
público dessa pesquisa foram mulheres negras, preferencialmente as
pretas retintas).
Em relação à escola e à interação no ambiente educacional,
Carvalho (2007) chama atenção para as referências negativas presentes
em algumas brincadeiras e como estas podem danificar gradativamente
a autoestima de uma criança. Além disso, a autora também afirma que
a qualidade dos relacionamentos é de suma importância desde o início
da vida da criança, pois é nessa fase que se trabalha o início do
desenvolvimento da autoestima, para além das habilidades sociais,
200 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

basicamente “plantar sementes da autoestima” (p. 07) para que mais


tarde elas venham se desenvolver. Quanto mais saudáveis as interações,
mais a criança terá um sentimento positivo sobre ela mesma. Para
Carvalho (2007) a autoestima na infância dependerá da relação que o
sujeito estabelece consigo mesmo, com os outros e com o rendimento
escolar, considerando que uma baixa autoestima pode gerar um baixo
rendimento escolar.
Rosemberg (1987, como citada em Cavalleiro, 2012), baseada nos
dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNAD) feita
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1982,
verificou que o estudante negro em comparação com o branco tem um
índice maior de reprovação e exclusão escolar. A autora afirma que as
crianças negras sofrem o impacto do racismo no desenvolvimento de
sua autoestima ainda na fase de escolarização. Nessa mesma linha de
pensamento, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) (2012,
como citado em Jesus, 2018) aponta que a discriminação é um dos
principais obstáculos, não só para os jovens terem o seu direito à
educação garantido, como também para a permanência na escola. De
acordo com esses dados do UNICEF, a grande maioria dos excluídos é
preta ou parda.
Nesse contexto, é essencial compreender o racismo e como ele se
insere na discussão acerca da autoestima de pessoas negras. No século
XIX, a biologia e a física foram usadas como ferramentas para embasar
as diferenças biológicas e geográficas entre os brancos e os não brancos,
por exemplo, os africanos eram considerados primitivos por uma série
de fatores, entre eles: os biológicos, como a cor da pele, testa e nariz
largos, cabelos crespos e fatores geográficos como o clima quente e seco
(Almeida, 2018).
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 201

Os europeus os colocaram em uma posição de inferioridade em


razão desses fatores, classificando-os como primitivos. Acreditavam
que esses povos precisavam ser civilizados por outros grupos,
considerados mais evoluídos. Nesse sentido, é possível descrever o
racismo como uma forma de dominação de uma raça sobre outra, ou
seja, é "uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou
inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam" (Almeida,
2018, p. 25).
Almeida (2020) faz uma reflexão sobre a síndrome do impostor em
pessoas negras, cuja crença é a de que tudo o que é conseguido e
conquistado em sua vida (ascensão social, trabalho, relação amorosa etc)
é resultado de fatores como sorte ou acaso, desconsiderando seu
talento, desempenho, merecimento ou esforço. Logo, é comum que
pessoas negras se coloquem em posição de inferioridade em prol de
pessoas brancas, aumentando mais ainda o sentimento de inadequação.
Para Santos (2011) a sociedade brasileira é fundamentada no mito
da democracia racial, dando uma ideia de uma relação harmônica. Dessa
maneira, o racismo é mascarado e suas cicatrizes escondidas. A pessoa
negra passa, então, a absorver a visão negativa que a sociedade tem dela,
ou seja, a visão da sociedade também passa a ser a sua sobre si mesmo,
o que gera uma imagem negativada de si e de seu grupo racial, isentando
do branco a responsabilidade de discutir essa questão de uma forma
crítica (Cavalleiro, 2012).
A branquitude, como um espaço de privilégio, induz ao
entendimento de que não compete aos brancos a luta contra o racismo,
seja ele individual, institucional ou estrutural. Bento (2002) cita alguns
202 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

pontos do que seria a branquitude, como por exemplo: ser branco ou


negro não é visto apenas como classificações raciais que se diferem, mas
sim como uma hierarquia na qual quem ocupa a posição de
superioridade é o branco. Além disso, quem ocupa o espaço da
branquitude não percebe discriminação e se sente incomodado quando
assuntos raciais são abordados ou seu grupo racializado.
Ainda seguindo esse raciocínio de democracia racial e de racismo
enquanto estrutura que atravessa as relações sociais, Santos (2019) e
Nascimento (2016), denunciam a existência ao longo da história de
diversas políticas de embranquecimento. Tais políticas tinham o
objetivo de embranquecer a população brasileira e, com o fim da
escravização, além da estratégia de relações inter-raciais, buscou-se um
plano para dificultar a sobrevivência dos ex-escravizados e seus
descendentes.
A segregação social, como apresentado por Cavalleiro (2012), foi
usada como estratégia de exploração e manutenção do modus operandi
de escravização tirando toda a oportunidade de moradia, alimentação,
formação intelectual das pessoas que haviam sido por muito tempo
submetidas à escravização. Esse grupo não tinha condições de ascender
socioeconomicamente.
Outra estratégia foram as políticas de incentivo para que europeus
migrassem para o Brasil. O anseio era de que em no máximo cem anos,
qualquer elemento negro fosse sufocado da população com uma pele
mais clara ou totalmente branca (Cavalleiro, 2012).
Todas essas políticas constituem o que Nascimento (2016)
denominou de genocídio do negro brasileiro, um processo de racismo
que, embora eventualmente mascarado, é constantemente atualizado
nas relações sociais.
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 203

A AUTOESTIMA DA CRIANÇA NEGRA: NEGATIVAÇÃO DA IDENTIDADE E


VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Não é de se espantar, e concordando com Oliva (2004), que ao longo


de muito tempo a história de África tenha sido menosprezada,
deturpada e desacreditada, pois entendia-se, pela perspectiva
eurocêntrica, que os africanos eram povos sem história. Além disso,
acreditavam que o passado só podia ser acessado por meio de
documentos escritos, com isso o modo de produção da história de
África, tradicionalmente transmitida pela oralidade, foi deslegitimado.
A partir da lógica eurocêntrica de produção de conhecimento, houve um
apagamento do protagonismo do africano na sua própria história.
Oliva (2004) afirma ainda que são escassas as universidades que
têm “África” como matéria obrigatória, propiciando a formação de
docentes que se baseia na ideia do senso comum e de um conhecimento
superficial a respeito do assunto. A autora aponta ainda para o perigo
de um conhecimento que será passado por várias gerações com uma
imagem estereotipada dos povos africanos, relacionando a negritude à
pobreza, miséria, doença, violência etc. Essas ideias designadas ao
negro, desde o tempo escravista, são perpetuadas até́ os dias de hoje,
como demonstra o mesmo autor.
Nessa mesma linha, concordamos com Cavalleiro (2012) quando o
autor afirma que “a identidade resulta da percepção que temos de nós
mesmos, advinda da percepção que temos de como os outros nos veem”
(p. 19). A perpetuação de uma ideia estereotipada resultará na
negativação da identidade do negro que tem como resultado o auto ódio
e também o preconceito racial.
204 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A escola, nesse sentido, tem um papel fundamental na propagação


de estereótipos. Segundo Pinto (1987, como citado em Cavalleiro, 2012),
os livros didáticos apresentam os personagens negros revestidos de
características que reforçam uma imagem negativa ou de
subalternidade, enquanto a figura branca é sempre colocada em
destaque positivo, principalmente de comando ou de libertação do povo
negro.
A criança, ainda muito jovem, se identifica com um grupo que é
veementemente negativado e colocado em uma posição de
inferioridade. Esse longo processo que constrói uma imagem negativa
do negro tem como consequência o sentimento de inferioridade, logo,
essa identificação interfere em sua autoestima (Schultheisz & Aprile,
2013). A “autoestima é de suma importância para o desenvolvimento e
crescimento da criança tanto emocional, psicológico, cognitivo e social,
visto que para que haja a autoestima da criança ela tem que se sentir
valorizada para se tornar uma pessoa com autoconfiança” (Almeida,
2019, p. 26).
Silva (1995, como citado em Silva, 2002), reitera que o preconceito
racial vivenciado pelas crianças negras pode resultar em vários danos,
sobretudo danos psíquicos, levando-os a sentimentos de baixa
autoestima, insegurança e desvalorização de si, resultando na
dificuldade de se aceitar. A apreensão da visão que restringe o negro à
pobreza, marginalidade e à violência faz com que este tome para si as
representações de repulsa (para além do fenótipo), ideias incutidas de
modo violento às pessoas negras. Gonzalez (1984) aborda a questão da
dominação por um prisma crítico, questionando a quem serve, ou a que
propósito serviria, nas palavras da autora, uma pessoa negra
“domesticada” (p.225).
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 205

Compreende-se que desde muito cedo a criança negra cresce com


uma construção negativa sobre si e seu grupo étnico-racial, crescendo
em um ambiente em que forças exteriores não lhe dão uma alternativa
a não ser a não identificação com seu grupo, o que, por sua vez, interfere
em seu desenvolvimento como um todo (Silva et al., 2015).
Tendo em vista o quantitativo escasso de literatura acerca da
autoestima de crianças negras, esta pesquisa teve como foco o impacto
do racismo na autoestima de crianças negras, a fim de compreender de
que forma o racismo é compreendido por elas e de que forma isso afeta
sua subjetividade. No campo da investigação social, nos questionamos:
a) De que forma mulheres negras adultas, que sofreram racismo na
infância no ambiente escolar, conseguiram superar essa violência,
fortalecer sua rede, autoestima e modos de resistência?

A ABORDAGEM GESTÁLTICA E A COMPREENSÃO DA AUTOESTIMA

Carvalho (2007) produz um diálogo importante com autores que


falam sobre racismo. A Gestalt-terapia entende a autoestima como um
sentimento de valor com consequência direta na percepção que o
indivíduo tem de si mesmo (Carvalho, 2007). Sheehan (2005) afirma que
a autoestima se forma pela autoconsciência que se manifesta como um
resultado das experiências sociais, sendo assim, a pessoa passa a se
enxergar como outras pessoas a enxergam.
Balona (2003, como citado em Carvalho, 2007) diz que a autoestima
saudável reduz níveis de ansiedade e, por conseguinte, desenvolve um
temperamento íntimo seguro. Por outro lado, autores como Braden
(1997, como citado em Carvalho, 2007) afirma que a baixa autoestima
tem relação com problemas psicológicos como o medo de intimidade, de
206 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

desafios, ansiedade, desempenho ruim na escola e trabalho, depressão,


suicídio, violências, entre outros. Sheehan (2005) também afirma que
pessoas com baixa autoestima têm a predisposição de pessoalizar os
eventos, considerando as atitudes de outros como um ataque pessoal.
Para Polster e Polster (2001): “Quando um indivíduo é confrontado por
graves humilhações ou outras intrusões opressivas, que excedam os
limites de sua experiência permissível, ele pode agir contra a invasão
ameaçadora, perdendo o contato” (p. 121).
Deste modo, sendo a abordagem gestáltica uma maneira de
compreender como experimentamos o mundo e como vivemos-em-
relação, é mister entendermos de que forma o racismo impacta na
autoestima de mulheres negras.

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa exploratória que procura, segundo Gil


(2002), "proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas
a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses” (p. 4), no caso em
tela a autoestima das mulheres negras relacionando com a fase escolar.
A pesquisa consistiu em duas fases para coleta de dados: na
primeira, foi desenvolvido um questionário online pela plataforma
Google Forms para explorar de que forma o público-alvo (mulheres
negras) percebe o racismo vivenciado na infância. O questionário teve
dados da realidade sociodemográfica das participantes e perguntas com
respostas de múltipla escolha que envolviam situações de racismo. A
partir da leitura das respostas do questionário online, na segunda fase
foram selecionadas 10 (dez) mulheres pretas com idade entre 25 a 45
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 207

anos para a entrevista individual online (plataforma Google Meets),


independente da escolaridade.
Em relação à realização da entrevista individual online, essa
ocorreu da seguinte forma, inicialmente foi feita a leitura conjunta
(entrevistadora e entrevistada) do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), e em sequência foi iniciado a entrevista utilizando
como base um roteiro semiestruturado. Uma via do TCLE ficou com
cada uma das entrevistadas, e a outra ficou em posse das pesquisadoras
conforme determinação da Resolução n°510 de 2016 do Conselho
Nacional de Saúde (CNS).
A entrevista individual teve uma média de 30 (trinta) minutos a 01
(uma) hora de duração, em dias e horários definidos pelas participantes.
O método de entrevista foi escolhido tendo em vista a oportunidade de
aprofundar nas situações de racismo que apareceram no questionário.
A proposta foi que as perguntas permitissem a fluidez da narrativa das
participantes, retomando as situações de racismo vivenciadas na
infância e os processos de cura/resistência. Foram observadas as
normas em vigor, considerando as resoluções do Conselho Nacional de
Saúde: Resolução nº 466 de 2012 e nº 510 de 2016.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A primeira fase da pesquisa, o levantamento de respostas por meio


de um questionário online, obteve 139 respostas válidas. As duas etapas
da pesquisa foram executadas de forma online, sendo que o
questionário foi compartilhado por meio das redes sociais e a entrevista
por meio de seleção de mulheres pretas retintas. Em relação à
localização das participantes, observou-se que 25,9% das mulheres são
208 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

do Espírito Santo, 19% da Bahia, 17,1% do Rio de Janeiro, 16,5% de Minas


Gerais, 13,3% de São Paulo, 1,9% do Distrito Federal, 0,6% de Goiás, 0,6%
de Mato Grosso, 1,9% do Pará, 1,9% do Paraná e 1,3% de Pernambuco. Em
relação a raça, 75,3% se autodeclaram preta, 1,9% branca, 0,6% amarela,
7,6% parda de pele clara, 14,6% parda de pele escura. Deste modo, devido
a autodeclaração racial para as análises que vem a seguir, foram
consideradas apenas 139 questionários válidos.

EXCLUSÃO EM BRINCADEIRAS

Das participantes, 26,6 % responderam que no ensino fundamental


se sentiam excluídas das brincadeiras, 37,4% não se sentiam excluídas e
35,9% às vezes. No ensino médio, 45,2% não se sentia excluída, 19,7% se
sentiam e 35% às vezes sentia que sim. Dessa forma, 26,6% não se
sentiam excluídas, isso significa que pelo menos ¾ da amostra
vivenciaram a exclusão no ensino fundamental, momento importante
para a consolidação da autoestima. Embora a exclusão no ensino médio
sofra uma redução, quase metade ainda sofreu com essa questão.
Por conseguinte, é necessário destacar que a redução da exclusão
em brincadeiras no ensino médio pode ser remetida à redução da
importância do próprio brincar para essa faixa etária. Há uma nova
configuração nas relações sociais, na qual é predominante a formação
de círculos de amizade ou, grosso modo, são formadas “panelinhas” por
afinidades e identificações. As vontades acabam mudando, por exemplo,
de modo que outros elementos surgem, como as festas e demais
momentos de socialização entre esses amigos.
Foi perguntado para as respondentes acerca da facilidade ou
dificuldade de expressar suas opiniões em sala de aula, observou-se que
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 209

41,3% tinham facilidade em expor sua opinião, mas que 58,6% não tinha
facilidade por medo de exposição ou retaliações.

EXPERIÊNCIAS NEGATIVAS NO FUNDAMENTAL

No questionário havia um espaço para a pessoa contar 03


experiências negativas no ensino fundamental. Das 139 respostas, 15,8%
relatam episódios racistas vivenciados com colegas de sala; 3,5%
relatam de alunos e professores; 10% relatam atitudes racistas e
preferência explícita de professores por crianças brancas, acusação de
roubo e acusação de “colar em provas”; 25,8% contam episódios racistas
no ensino fundamental, mas não especificaram se o protagonista foi
aluno ou professor; 29,4% contam experiências diversas sem
necessariamente ter motivos raciais explícitos e 15,8% não escreveram
nada. Nas 10 entrevistas individuais destacamos as seguintes categorias
mais recorrentes na fala das participantes:

A. SILENCIAMENTO

O objetivo das entrevistas foi analisar com mais profundidade


algumas das questões que apareceram no questionário. De 10
entrevistadas, 06 contam situações de bullying constante, como a
seguinte: “... faziam aquelas piadinhas sem graça: 'a macaca', ' você é
preta carvão” (Dandara, 25 anos). Situações na qual a criança é veemente
ofendida tem como resultado o desenvolvimento da autoestima
prejudicado. Como exemplifica Silva et al. (2015), a "autoestima é um dos
aspectos mais importantes para o desenvolvimento humano, na
construção de suas características e de sua personalidade. O seu não
210 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

desenvolvimento poderá ocasionar problemas que dificultarão suas


relações consigo e com sociedade" (p.1).
Ainda nesta categoria, surgiram queixas como: atitudes racistas,
falta de posicionamento e tratamento indiferente ou falsa inclusão por
parte do corpo docente. Todas as participantes relataram situações
negativas com professores, como este trecho extraído mostra:

Mas eu tive muitos professores que me trataram com indiferença. Me


excluíam de muitas coisas da escola… os próprios professores, tinha vezes
que na escola saiam projetos, aquelas atividades escolares que geralmente
os alunos fazem e eu não era chamada por exemplo, eu tinha que ficar
insistindo, né?! (Dandara, 25 anos).

Tal como apontado por Silva (1995, como citado em Silva, 2002) é
evidente que uma relação estudante-professor conflituosa, marcada
por diferenças e preconceitos, impacta vigorosamente o psicológico da
criança, trazendo danos ao seu desenvolvimento com impactos
importantes em sua autoestima e visão de si mesmo enquanto pessoa
merecedora de atenção.
Sobre isso, Cavalleiro (2012) adverte:

O silêncio dos professores perante as situações de discriminação impostas


pelos próprios livros escolares acaba por vitimizar os estudantes negros.
Esse ritual pedagógico, que ignora as relações étnicas estabelecidas no
espaço escolar, pode estar comprometendo o desempenho e o
desenvolvimento da personalidade de crianças e de adolescentes negros,
bem como estar contribuindo para a formação de crianças e de adolescentes
brancos com um sentimento de superioridade. (p. 32)
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 211

B. BAIXA AUTOESTIMA E A DIFICULDADE DE SE RELACIONAR

Evidencia-se nesta categoria a dificuldade em reconhecer o


próprio valor, como pôde-se verificar nos relatos: "... ainda tenho essa
mania de achar que a culpa de tudo é minha, e não achar que eu sou boa
o suficiente, é uma porcaria não se achar boa o suficiente ..." (Carolina,
35 anos).
Souza (1983) fala sobre a submissão ao ideal de Ego branco e como
o negro fica invalidado quando confrontado ao Ego Branco. O negro
sobrevive em uma lógica branca de ser humano, até mesmo de
sofrimento, cabendo retirar de si qualquer “mancha negra” (p. 33-34).
Verificou-se isso no relato de uma das participantes, a qual narrou que
“... não gostava de mim, eu queria ser branca” (Antonieta, 25 anos).
Além disso, entende-se como uma das características da baixa
autoestima a desvalorização de si como é reiterado por Antunes (2004,
como citado em Silva et al., 2015):

A desvalorização de si perante os outros bloqueia as ações, dificultando a


transmissão de sentimentos e opiniões. Esse bloqueio acontece por medo,
pois o receio da reprovação impede que a pessoa se expresse. O medo
excessivo do erro é uma característica acentuada da baixa autoestima, uma
vez que há insegurança e um não reconhecimento do seu potencial, bem
como o medo do julgamento social. Tais julgamentos são expressos por
meio de rótulos que impedem ou dificultam a construção da personalidade
(p. 20).

Os seguintes trechos das falas de duas entrevistadas evidenciam as


colocações feitas anteriormente:

Tenho dificuldade de me enturmar, na verdade lá eu não me enturmei e


ponto, não tenho contato com ninguém que foi da minha turma lá, e a gente
212 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

não se fala, eu lembro que criaram um grupo no Whatsapp, mas quando deu
assim uns três meses de aula no grupo, eu saí do grupo, porque eu não
estava fazendo nada lá sabe, era a mesma relação do ensino médio, eu não
gosto deles e eles não gostam de mim (Tereza, 25 anos).
No início foi bem complicado, foi a mesma coisa que carregava comigo, eu
cheguei fui ver se tinha alguém semelhante a mim, se tinha entrado
ingressado como bolsista para eu ter assim alguma coisa incomum com
alguém entendeu? (Ruth, 36 anos).

C. PROFESSORES NEGROS COMO MINORIA

A falta de representatividade do corpo docente de pessoas negras,


o medo de chegar até o professor ou professora brancos, como
evidenciado no relato de uma participante, a qual disse que a "maioria
[dos professores] era branca sim, eu lembro de uma ou duas que eram
negras, mesmo assim não estavam sempre conosco, era quando vinha
substituição" (Ruth, 36 anos). Outra pontuou que "Tinham
pouquíssimos professores negros, nas escolas que eu estudei os
professores negros normalmente eram da religião" (Tereza, 25 anos).
Malafaia (2018) defende que a escola deveria promover referenciais
positivos, sejam identitários ou não, para as crianças negras. Os
professores, principalmente, precisam estar atentos para quais modelos
de beleza, de vida, de realização estão fornecendo como ideais para seus
grupos de alunos.
Como uma criança irá se identificar com algo que lhe é apresentado
negativamente? Ou melhor, como vai se identificar positivamente se
nem representatividade do seu grupo encontra na escola? Além de ter a
imagem do negro negativada e diminuída, é muito possível que a criança
ao se tornar um adulto, negue sua negritude e sua ancestralidade. Ter
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 213

elementos positivos é fundamental para a construção da identidade do


negro, como é dito por Malafaia (2018):

É importante ressaltar que normalmente existem imagens representativas


em diversos grupos sociais e culturais. Contudo, algumas representações
ganham maior visibilidade e assim passam a ser consideradas como
expressão da realidade. Na sociedade brasileira, e em outras mais, essas
representações foram construídas mediante o olhar eurocêntrico, que
produziu sentidos do que é e não é o "normal". Este aspecto peculiar como
observamos, produz novos sentidos e consequências na sociedade e no
processo identitário das crianças. (p. 11)

D. ALUNOS NEGROS COMO MINORIA

Chamou a atenção na fala das participantes o fato de poucas


apontarem a presença de estudantes negros em suas turmas. Todas dão
relatos de escolas públicas: "Coisa de duas, três pessoas no máximo.
Quando mudei para o Fundamental II onde a classe econômica era
maior, era menos ainda, na maior parte eram só duas pessoas negras
contando comigo" (Tereza, 25 anos).

Eu era uma das poucas crianças negras que tinham na sala, na escola pública
tinha mais uns dois ou três alunos, no máximo, mas foi bem difícil. Uma
menina me falou ... 'Sua mãe deve estar muito feliz porque você tá aqui', mas
gente a mãe dela também deve estar feliz de ela estar aqui (disse pensar),
mas eu não tinha associado a questão de eu ser a única negra da sala. (Taís,
35 anos)

De acordo com Malafaia (2018) é fundamental que exista um


modelo, um ideal ou quase um ideal com o qual o sujeito passará a se
constituir e se identificar. Jesus (2018) acrescenta que dados do UNICEF
(2012, como citado em Jesus, 2018) apontam que a discriminação racial
214 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

é um dos principais fatores com o qual jovens brasileiros precisam lidar


para ter garantido seu direito à educação. A maioria que é excluída é
preta e parda, ou seja, essa população não desiste simplesmente de
estudar, ela é excluída durante o processo. Há um peso diferente nessa
afirmação, uma vez que a discriminação se manifesta desde a
dificuldade de acesso, como também na permanência escolar.

E. PROBLEMAS PSICOLÓGICOS

Para Schultheisz e Aprile (2013), a autoestima é um indicador de


saúde mental, uma vez que reflete em diversas condições subjetivas,
dentre elas destacamos as afetivas e psicológicas. Importante observar
como as participantes não correlacionam os abusos sofridos no ensino
fundamental com o sofrimento mental: “... todos os meus problemas não
começaram, mas deram um pico muito grande quando eu cheguei no
ensino médio” (Tereza, 25 anos). Um dos fatores que podem ser
observados nesse agravamento de problemas psicológicos, pode ser a
dificuldade em se expressar:

A dificuldade que eu tinha de me expressar diante das pessoas por conta do


medo mesmo da não validação do outro, mesmo que eu sabia o que eu tinha
para contribuir, eu tinha muita dificuldade de passar porque eu não me
sentia à vontade. (Conceição, 38 anos)

A escuta dessas mulheres negras evidenciou que os eventos


racistas que interferiram na construção e positivação da autoestima,
provocaram o desenvolvimento do que a literatura descreve como
Síndrome do Impostor. As autoras Clance e Imes (1978), pioneiras nos
estudos sobre essa temática, observaram que mulheres bem-sucedidas
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 215

em diversos aspectos da vida possuíam dificuldade em internalizar seu


sucesso profissional e conquistas pessoais.
Esse fenômeno, tal como descrito pelas autoras citadas
anteriormente, provoca na pessoa afetada a introjeção de uma crença
de insuficiência intelectual e de não merecimento. Ainda que essa
pessoa possua realizações consideráveis em âmbitos como o
profissional e o acadêmico, não sente que os lugares que ocupa, lhe são,
de fato, merecidos (Almeida, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problematizar o racismo que vivenciam diversas crianças ainda na


fase escolar, produzindo negação da própria identidade negra com
impacto na vida adulta, foi um dos objetivos deste estudo. De que forma
o racismo impacta na autoestima das crianças negras a partir do relato
da vivência de mulheres negras adultas pôde ser observado nos
resultados e, sem dúvida, precisa ser aprofundado.
O tema escolhido para esse trabalho é urgente e importante para
pessoas negras, uma vez que, as participantes, em especial na fase do
ensino fundamental ao médio, relataram experiências racistas que
impactaram grandemente na forma como passaram a se perceber. A
luta contra todo o impacto do racismo vivenciado na infância, ainda é
experimentada na vida adulta, pois é um longo processo de diversos
traumas a serem reparados. Desde pequenas, as mulheres, participantes
da pesquisa, acreditam em uma narrativa negativa e pejorativa da sua
ancestralidade, cor de pele, vivências e, por consequência, a negação
contínua de suas características fenotípicas.
216 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Conforme as entrevistas, foi possível identificar que a partir do


ensino fundamental há o início de uma negação mais intensa da
aparência física por causa do bullying que elas sofreram. No ensino
médio, pode-se inferir que a configuração diferenciada, como a rejeição
no círculo de amigos, a solidão, a falta de acolhimento por parte do
corpo docente e discente, por exemplo, impactam na autoestima dessas
mulheres, quando a identidade negra estava sendo construída.
Como demonstrou a pesquisa, o contexto escolar pode ser
consideravelmente favorável para o desenvolvimento desse fenômeno
da Síndrome do Impostor, resultando em sentimentos de preocupação,
insegurança e ansiedade na fase adulta em mulheres negras, em relação
a tarefas que almejam desempenhar para alcançar sucesso. Muitas das
participantes relataram comportamento de autocobrança excessiva,
esforço exaustivo para manejarem o medo que sentem em situações que
se sentem avaliadas, assim como comportamentos de autossabotagem.
Esse emaranhado de comportamentos adquiridos ao longo de uma
trajetória marcada pela avaliação negativa de figuras relevantes, como
os professores e colegas, falta de pertencimento, exclusão, entre outros,
acarretam entraves para o desenvolvimento de uma autoestima
saudável.
Para Perls (1973/1988) a autoestima é um importante “meio pelo
qual” o indivíduo pode vir a resolver seus problemas e outros que
venham a surgir no decorrer da sua vida. Logo, podemos ver que a baixa
autoestima prejudica na forma como o indivíduo lida com as
circunstâncias da vida e isso foi evidenciado nas entrevistas, portanto,
uma das consequências é o prejuízo no desempenho escolar, a
desvalorização de si que resulta em bloqueio de ações, na transmissão
Andrea dos Santos Nascimento; Emanuella Moreira Cintra; Maiara da Silva • 217

de sentimentos e opiniões (Antunes, 2004 como citado em Silva et al.,


2015).
Dessa forma, os dados apontam para um processo de violência
sofrido na infância que impacta diretamente na autoestima de mulheres
negras e que, em sua maioria, entre as participantes da pesquisa,
permanece na vida adulta. Não se trata de uma leitura de um fenômeno
individual ou psicológico, mas estrutural, institucional e social. Essa
violência atinge as pessoas lidas socialmente como negras, entretanto
em graus distintos, levando em consideração o colorismo existente no
Brasil, devido ao processo de embranquecimento da nossa população.
Por fim, é urgente e é improrrogável que se façam mais estudos e
reflexões sobre esse assunto pela abordagem gestáltica. Esperamos que
esse trabalho contribua para o desenvolvimento de novas pesquisas e
para que mulheres negras, principalmente as retintas, ao lerem esse
texto lembrem-se de hooks (2017) quando afirma que também se ensina
a transgredir. A educação precisa ser libertária.

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8
RACIALIZANDO A FRONTEIRA, COM-PONDO UMA
PELE COLETIVA
Racializing the border, composing a collective skin
Racializando la frontera, componiendo una piel colectiva

Loíse Lorena do Nascimento Santos


Daniele Miranda
Sonalle Cristina de Azevedo da Fonseca
Alexandra Cleopatre Tsallis

INTRODUÇÃO

Chegando ao final do atendimento perguntamos como estavam saindo do


encontro. Anastácia (que estava participando pela primeira vez do grupo)
respondeu que estar entre pessoas negras faz muita diferença para ela.
Continuou dizendo que estar com a gente depois do Dia dos Pais foi super
importante e se sente honrada por isso. "Me sinto pequena diante do tamanho
da grandeza que é isso tudo. Desde que acordei, apenas agora é que sinto meu
corpo tranquilo e conseguindo organizar os pensamentos." Seguiu dizendo que
quando a deixamos entrar na sala (virtual), isso mexeu com ela. Quando viu um
encontro apenas com pessoas negras ela disse "UAU!", e não sabe se percebemos
mas seu corpo foi escorregando na cadeira. Disse isso emocionada, com
lágrimas, agradeceu.
(Santos, trecho do diário de campo, 2022)

O trecho acima conta o final de um dos encontros do COM-POR


UERJ, um grupo de atendimento psicoterapêutico feito com e por
pessoas negras. A emoção que Anastácia 1 sente e descreve tem a ver

1
Escolhemos nomeá-la de Anastácia porque, em um dos encontros, ela mencionou sobre a nossa
necessidade, como pessoas negras, de aprender a falar, evocando em uma de nós uma imagem que, ao
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 221

com o impacto que é estar em um espaço de cuidado com-posto apenas


por pessoas negras, entre pessoas que compartilham a pele. Eu lembro
do espanto de, ainda menina, em uma aula de Ciências, descobrir com
uma certa desconfiança que a pele era um órgão. Como assim um
órgão? Não que eu soubesse direito o que era um órgão, mas naquela
época eu os entendia como "as coisas de dentro da gente", molengas e
viscosas que ficavam ali, contidas no lugar pelos ossos e, bem... pela
pele. Pele, ali, era “só” um invólucro protetor. Com desconfiança ainda
maior, descobri logo em seguida que, não bastasse a pele ser um órgão,
ela era o MAIOR 2 órgão do corpo humano - maior até que o intestino.
Naquele dia, aprendi que a pele era essencial para a sobrevivência
humana: protetora, ela atua como uma barreira contra agentes
externos, mas também contra a perda de umidade pelo organismo, e
ainda excreta substâncias que precisam ser eliminadas; nutridora, ela
é semipermeável, realizando trocas com o ambiente, atuando na
regulação térmica do organismo, sendo uma fronteira de nutrição por
dentro e por fora.
A pele é dividida em três camadas: A mais profunda, hipoderme,
abriga as células de gordura (adipócitos) que nos isolam termicamente
e protegem nosso corpo contra traumas físicos, além de atuarem como
um depósito de energia. A camada do meio, derme, confere
elasticidade e resistência à pele, nutre as camadas mais externas da
pele por dentro ao mesmo tempo que protege o corpo das influências
irritantes externas. A camada mais externa da pele, a epiderme, nos

ser com-partilhada, possibilitou que todas fôssemos transportadas para a imagem de Anastácia (pintada
em 1817 pelo francês Jacques Etienne Arago) sem a máscara de flandres que prende sua boca. Esta
imagem é uma arte feita pelo artista visual Yhuri Cruz e se chama Anastácia Livre. Anastácia foi uma
mulher negra escravizada cuja imagem, hoje, é símbolo de resistência.
2
Escrevi em maiúscula para com-partilhar o impacto que tal informação causou em mim.
222 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

protege de fungos, bactérias e toxinas, da perda de líquidos e outros. É


nela que estão as células de Merkel, que contribuem para a função mais
sutil do tato, nos ajudando a sentir toques leves e detalhes… e também
a melanina, que nos protege dos raios ultravioletas e pigmenta a nossa
pele com diferentes cores e tonalidades (Cestari 3, 2018).
O que não foi falado naquela mesma aula é que, diferente de
outros órgãos, essas diferenças que a melanina promove atravessam a
nossa experiência na vida, modulando nossos fluxos e interrupções,
nossas dificuldades e privilégios, nossas possibilidades, afetos e
relações. No mundo em que o giz de cera rosa claro era (e ainda é)
chamado "cor de pele", aprendemos desde crianças sobre um padrão
hegemônico que está a serviço de uma supremacia branca que fomenta
a crença de que pessoas brancas são superiores racialmente, como
forma de realizar a manutenção dos privilégios desse grupo. Em
contrapartida, pessoas negras têm seus referenciais apagados e
segregados por essa e as demais práticas higienistas e eugênicas que
corroboram com a narrativa criada pela branquitude 4 com a finalidade
de reduzir a sua existência.

"Primeiro cê sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles


Nega o deus deles, ofende, separa eles
Se algum sonho ousa correr, cê para ele
E manda eles debater com a bala que vara eles, mano"

3
Silmara da Costa Pereira Cestari é uma mulher branca, dermatologista e professora.
4
Edith Piza (2003), mulher, psicóloga e pesquisadora das relações raciais, diz, a partir dos estudos de
Ruth Frankenberg, mulher branca, socióloga e pesquisadora do tema branquitude nos Estados Unidos,
que: "Frankenberg vai definir branquitude a partir do significado de ser branco, num universo
racializado: um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros e a si mesmo; uma posição de
poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual
se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo" (Piza, 2002, p.71).
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 223

(Emicida - Ismália) 5

Mas assim como nossos ancestrais encontraram estratégias de


sobrevivência que nos trouxeram até aqui, o COM-POR UERJ é mais uma
resposta de que a população negra nunca ficou satisfeita com o lugar de
subalternidade que nos foi imposto pelo colonialismo. O COM-POR
UERJ, mais do que um serviço oferecido para pessoas negras, trata-se
de uma estratégia política que nos possibilita lutar pela existência da
população negra hoje e no futuro.
O COM-POR UERJ é um grupo terapêutico com e por pessoas
negras que acontece desde abril de 2019 com o objetivo de oferecer
atendimento psicoterápico para a população negra. É composto
exclusivamente por pessoas negras. Neste momento, duas estudantes
de graduação e duas psicólogas (mestranda e doutoranda do Programa
de Pós-graduação em Psicologia/UERJ) com-põem a equipe de
atendimento. Hoje, funcionando como um DRS (Dispositivos de
Regeneração Social 6), mantém dinâmica de atendimentos semanais —
que seguiram de forma online durante a pandemia — com duração
média de 1h30min por encontro. Cerca de oito usuárias e usuários são
atendidos semanalmente, todas e todos acima de 18 anos. Antes e após
cada atendimento, temos o que chamamos, respectivamente, de pré e
pós-sessão. A pré-sessão é o momento em que a equipe se reúne para se
preparar coletivamente para o atendimento, compartilhando sensações

5
Moreira, V. L.; Samam. R; Emicida. (2019). Ismália [Gravado por: Emicida part. Larissa Luz & Fernanda
Montenegro]. Álbum: AmarElo. (2019)
6
Os Dispositivos de Regeneração Social são produtos tecnológicos criados e desenvolvidos pelo
Laboratório afeTAR/UERJ contemplados no Edital Inova 2020. Os DRS consistem na produção de rede a
partir da implementação de grupos que são acompanhados por uma equipe treinada para fomentar
vínculos que atuem no cultivo de práticas de regeneração social. Entendendo a regeneração como
capacidade dos organismos vivos de se renovarem frente aos desafios, revitalizando suas próprias fontes
de energia e recursos.
224 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

e sentimentos que permeiam aquele espaço. A pós-sessão é o momento


em que, após a finalização com o grupo, a equipe se reúne para discutir
suas impressões acerca do encontro.
Reuniões de supervisão da equipe acontecem semanalmente, com
o objetivo de, além de supervisionar e orientar, planejar formas de
expandir o dispositivo, bem como aprofundar o letramento étnico-
racial das práticas exercidas. O grupo é desenvolvido pelo Laboratório
afeTAR em parceria com o SPA/UERJ.
De acordo com Loíse Santos (2022), mestre em Psicologia Social,
mulher negra, o COM-POR é o afrofuturismo em ação. Afrofuturismo
como um movimento artístico que retrata a população negra com-
pondo e protagonizando o mundo no futuro. A afirmação da proposição
de que pessoas negras sobreviveram e existem no futuro. O cuidado da
saúde mental da população negra possibilita não apenas criar, mas
viabilizar que pessoas negras estejam vivas amanhã. Trata-se de
proporcionar qualidade de vida além de sobrevivência.
Trazemos o COM-POR UERJ neste texto porque entendemos que
ele contribui para a formação de estudantes e profissionais ética, social
e politicamente engajados com a luta antirracista, na medida que nos
possibilita pensar em uma pele coletiva — ao invés de um corpo coletivo
—, pele essa que, como produtora de melanina, nos permite racializar o
debate sobre as práticas psi e que, dessa forma, se constitui como um
órgão político.
Entendemos que essa construção é urgente e fundamental em toda
e cada formação, e aqui nos propomos a pensar como o conceito de pele
coletiva pode ajudar a nós — Gestalt-terapeutas — a cuidar de nossas
práticas, relações e formações de uma forma decolonizada e engajada
com a luta antirracista. Assim, e dialogando com o que fala Mônica
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 225

Alvim (2019), mulher negra de pele clara, Gestalt-terapeuta e


pesquisadora 7, a respeito de uma clínica na fronteira, política e
eticamente engajada com a transformação do mundo, nos propomos
falar a partir de uma fronteira de contato tanto racializada quanto
gerada por um coletivo.

ESSA COISA DE PELE E O COM-POR

Minha mãe sempre me dizia “você deveria me agradecer por melhorar a


família”, e às vezes, no lugar de “melhorar”, surgia a palavra “limpar”. Um
grande amigo de infância relata ouvir o mesmo de sua mãe. Melhorar e
limpar a família estão diretamente ligados a ser branco, ou seja, não
escurecer, mas fazer o inverso: clarear. Se trata de uma alusão direta ao
processo higienista e eugenista no Brasil, que repercute até os dias atuais
desde o período pós-abolição e Proclamação da República. As palavras
usadas se unem fazendo menção ao “melhorar” enquanto processo
eugenista, visando ser branco e embranquecer a população e, “limpar”,
referente ao higienismo, que refere a negritude enquanto sujeira/resto
social. Nesses processos, negros são colocados a se relacionar com brancos
para “limpar e melhorar” suas peles. Nesse sentido historicamente
construído no Brasil, se você é negro e se relaciona com outro negro, você
não contribui para a evolução da sociedade (Santos, 2019, p.22).

O relato acima foi retirado da monografia intitulada O dançar afro


no caminhar ancestral: remembrar, rememorar e reconhecer do atualmente
psicólogo e doutorando em Psicologia Social, Hebert Santos, homem

7
Adotamos o uso do primeiro nome, a raça e/ou gênero como forma de corporificar a escrita, de mostrar
quem fala e por que fala. Trazemos esses dados como uma política de nomes que pretende convidar o
outro para com-por conosco: “Quando os nomes deixam transbordar esta capacidade que o outro
enquanto sujeito tem de compor um mundo conosco, os participantes compõem a pesquisa não pela
condição de qualquer um, mas por suas intensidades e é a partir delas que podemos produzir interesse.”
(Tsallis et al., 2020). Tomamos como participantes todos os que contribuem com essa produção, seja os
que estiveram no campo de pesquisa, seja aqueles com quem dialogamos com suas produções.
226 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

negro e gay. Esse trecho aponta o quanto as pessoas negras são


destituídas do seu direito de ter e existir em uma pele que não é
considerada como pertencente, que não é validada como digna. Ter uma
pele negra e existir sob ela automaticamente coloca a pessoa em um
lugar de inferioridade. É possuir um órgão que, apesar de sua função
protetiva, não protege das inúmeras violências raciais sofridas.
A psiquiatra e escritora Neusa Santos (1983), mulher negra, autora
de uma das obras pioneiras no Brasil sobre o impacto do racismo na
saúde mental de pessoas negras, em seu livro Tornar-se Negro, aponta
que a violência do racismo se manifesta primeiramente no corpo. É por
meio de um ataque racista à cor que a pessoa negra experimenta — no
corpo — essa violência.
Se por um lado a sociedade, pautada em uma lógica racista, coloca
a pele negra como alvo a ser extinguido, por outro, movimentos como o
COM-POR UERJ colocam-na como um órgão a ser regenerado, nutrido.
Esse trabalho surge de uma proposta de regeneração coletiva ao
possibilitar um espaço em que possamos existir, com-por nossa pele.
Para tal, metodologicamente, incorporamos os diários de campo do
COM-POR UERJ como ferramenta metodológica 8, inspirada em Bruno
Latour (2001; 2006), antropólogo, homem branco, que pensa a escrita
como um laboratório. Neste, podemos colocar algo em experimentação,
testá-lo e observá-lo. Assim como em um laboratório, a cada encontro
do COM-POR UERJ, uma pessoa da equipe se coloca no lugar de escrita,
registrando não só como foi o atendimento, mas a sensação que a pele
coletiva produziu. Com-pondo com os diários de campo, se juntam neste
texto os conceitos da Gestalt-terapia, que serão utilizados para

8
Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética. Número do CAAE 38878320.4.0000.5282.
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 227

fomentar o debate sobre uma luta que inclui pensar uma prática clínica
antirracista, ou seja, implicada em combater o racismo em todas as suas
camadas.
A proposta é que o dispositivo clínico contribua para a
implementação de mais ofertas de cuidado de saúde mental voltadas
para a população negra. A realidade brasileira mostra que pessoas
negras, devido ao racismo, são colocadas em condições inferiores e
subalternizadas, sendo estes fatores condicionantes da saúde desta
população. Um dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar
(Pesquisa por Amostra de Domicílios [PNAD], 2021), aponta que, entre
as pessoas de 14 anos ou mais com rendimento mensal, a população
branca tem média salarial maior do que a população preta e parda:
respectivamente, R$ 3.276, R$ 1.847 e R$ 1.894.
Temos como propósito seguir assegurando e contribuindo para a
efetivação do direito universal à saúde, com práticas de cuidado
direcionadas para as especificidades que pessoas negras possuem,
conforme o artigo 196 da Constituição Federal (1988), o qual também é
resgatado na Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90, que aponta:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas


sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação. (Constituição da República Federativa do Brasil,
1988)

A proposição do COM-POR UERJ não é a de que apenas pessoas


negras devam atender pessoas negras, negando encontros inter-raciais.
Afinal, o racismo, de maneira diferente, está tanto para as pessoas
negras quanto para as brancas. O que nos interessa é criar espaços de
228 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fortalecimento em rede que possibilitem que uma pele coletiva seja


com-posta. Da mesma forma que a pele dá contorno e tem função de
proteger o corpo contra agentes externos, o COM-POR UERJ é um
cuidado para a população negra e um instrumento contra o racismo.
Para além da cor da pele nos atendimentos, nestes espaços importa um
trabalho diligente a fim de que estejamos atentas e atentos às sutilezas
que abrigam o racismo.
Assim como propõe a Gestalt-terapia, os atendimentos se dão
através de uma prática clínica advinda de uma relação horizontal entre
as(os) membras(os), no qual todas(os) se afetam e são afetadas(os) no
processo de “reconhecimento de si pelo reconhecimento mútuo, nessa
relação pautada por uma ética da alteridade, inseparável de uma ética
da transformação” (Alvim, 2019, p. 888). E é justamente esse cenário que
permite que uma pele coletiva se forme, podendo dar contorno e
proteção para as pessoas que estão ali e, consequentemente, para esse
processo de transformação de si e do mundo.

A PELE COLETIVA COM-PONDO FRONTEIRAS

É comum recorrer-se à ideia de corpo para se referir a grupos


(corpo docente, corpo de ballet, entre outros), assim como utiliza-se a
ideia de corpo coletivo para enfatizar a potência e a multiplicidade
deste, haja vista que um corpo é maior do que a soma dos seus membros,
ganhando força e amplitude de movimento no mundo. Da mesma forma,
falar da fronteira de contato em uma alusão à pele também está
presente desde que Perls, Hefferline e Goodman (1997), homens brancos,
psicoterapeutas, escreveram o livro Gestalt-terapia, iniciando sua
fundamentação teórica a partir deste conceito, dizendo que “a experiência
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 229

se dá na fronteira entre o organismo e seu ambiente, primordialmente


a superfície da pele e os outros órgãos de resposta sensorial e motora”
(Perls, Hefferline, Goodman, 1997, p. 41).
No entanto, no Brasil, falar de corpo e/ou de pele requer saber a
cor que estes têm, pois, mesmo se tratando de um coletivo, as cores que
corpos e peles possuem definem as diferenças que os atravessam. Em
nosso país, o preconceito racial, de acordo com Oracy Nogueira (2007),
homem branco, sociólogo brasileiro, é por marca. Ou seja, é baseado nas
características físicas individuais de cada pessoa. Quanto mais suas
características físicas se aproximam da branca (pele clara, traços finos),
ou se distanciam da negra (pele escura, cabelos crespos, traços grossos),
é possível que essa pessoa sofra menos discriminação. Tainan Silva
(2017), mulher negra, mestre em Relações Sociais e Novos Direitos,
afirma que "[...] quanto mais escura a tonalidade da pele de uma pessoa,
maiores as suas chances de sofrer exclusão na sociedade'' (p. 3).
Assim, propomos evidenciar a melanina ao falar de uma pele
coletiva — ao invés de um corpo coletivo — para que possamos
exatamente racializar a discussão, entendendo que o impacto do
encontro na fronteira de contato é indiscutivelmente atravessado pelas
peles que estão se encontrando.
Destacamos a realidade brasileira tanto por ser este o país onde
atualmente residem as autoras deste artigo, quanto por ele ser com-
posto em sua maioria por pessoas negras. De acordo com dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística[IBGE], 2021) a população brasileira é com-posta
de 47% de pessoas que se autodeclaram pardas, 43% brancas e 9,1%
pretas. Sendo assim, conforme os critérios do próprio IBGE (2021),
considera-se negra a junção da população que se autodeclara parda e
230 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

preta, que totaliza 56,1%. Rafael Osório, pesquisador branco do Instituto


de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), afirma que tal junção se dá pelo
fato de ambos os grupos terem características socioeconômicas
semelhantes e sofrerem discriminações pela mesma natureza. Ou seja,
é por sua parcela preta que os pardos são alvo de discriminação (Osório,
2003).
Assim, racializar a fronteira e pensar o contato a partir desse ponto
nos possibilita refletir sobre o atendimento clínico tanto pelo seu viés
político, quanto pela prática de cuidado e produção de vida entre
pessoas negras.
Lembramos que a definição de fronteira de contato, conforme
proposta por Mônica Alvim (2019), é: "o tempo-lugar do encontro:
encontrar a novidade, o outro, o diferente, o estranho a mim e
permanecendo nesta fronteira — de contato — viver a experiência do
estranhamento, do excitamento e do crescimento por meio da criação"
(Alvim, 2019, p. 881). E por mais que ela se dê na experiência única de
cada pessoa, assim como no corpo, ela pode ganhar amplitude e potência
quando constituída coletivamente.
O olhar para o coletivo que debatemos aqui é feito através da lente
do Ubuntu, tal como proposto por Mungi Ngomane (2020), mulher
negra, sul-africana, mestre em Estudos Internacionais e Diplomacia,
em Ubuntu: Lecciones de sabiduría africana para vivir mejor (Ubuntu: Lições
de Sabedoria Africana para uma Vida Melhor), onde ela também apresenta
sua experiência de vida. Na filosofia africana, Ubuntu é uma palavra que
diz respeito a "coragem, compaixão e conexão''. Conforme um provérbio
africano, expressaria algo como "eu sou porque nós somos" ou "uma
pessoa é uma pessoa através de outras". De acordo com Ngomane (2020),
isso quer dizer que tudo o que aprendemos e experimentamos faz-se
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 231

através do relacionamento com outras pessoas. Dessa forma, é


importante estarmos ciente de que o que fazemos tem impacto não
apenas na nossa vida, mas também na vida de outras pessoas.

Este primeiro encontro aconteceu um dia após o feriado de 23 de abril, e uma das
questões trazidas pelas participantes foi a de não ter feito nada da faculdade
no feriado. Uma revolta abraçada por culpa incomodava todas elas que
frequentavam a universidade, ou que já a haviam frequentado. Uma das queixas
era a sobrecarga, outras o horário das turmas que não permitia que quem
trabalhasse ou morasse muito distante pudesse frequentar. Elas se sentiam
obrigadas a dizer não para as oportunidades, quando na verdade o não já estava
dito nas disposições das atividades. Foi aí, então, que uma pessoa da equipe de
atendimento perguntou como as meninas achavam que seria uma universidade
que contemplasse -elas- (no momento em que escrevi "elas" no caderno, parei,
risquei e escrevi "a gente"). Nesse instante eu me deparei com a questão de quem
seriam “elas” e “nós”. Eu me sentia tão contemplada por tudo o que estava sendo
dito por pessoas tão iguais a mim/nós que ficou confuso esse lugar. O que eu
estava anotando não era só sobre elas (?) era sobre mim/nós todos também.
(Santos, trecho do diário de campo, 2019)

A filosofia Ubuntu carrega uma sabedoria que conversa com o que


muitos de nós, Gestalt-terapeutas, chamamos de contato, aquilo que
Erving e Miriam Polster (2001), homem e mulher, respectivamente,
casal de Gestalt-terapeutas brancos, vão definir como:

não é apenas reunião ou intimidade. Ele só pode acontecer entre seres


separados, que sempre precisam ser independentes e sempre se arriscam a
ser capturados na união. No momento da união, o senso mais pleno que um
indivíduo tem de si mesmo é movido rapidamente para uma nova criação.
Não sou mais apenas eu mesmo, mas eu e você fazemos um nós. (Polster &
Polster, 2001, p.112)
232 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Ao fazermos nós, somos modificadas(os) em nossas tramas, não


podemos ser mais as(os) mesmas(os). A experiência de entrarmos em
contato com outra pessoa possibilita a expansão, permite que
assimilemos ou rejeitemos o que está posto como novidade naquele
encontro. Se nesse momento nossa fronteira se amplia e se torna
permeável, assimilamos a novidade: já não é possível pensar em uma
existência solitária.
Para Ngomane (2020), Ubuntu vai além do provérbio. Uma pessoa
que tem Ubuntu é cuidadosa não apenas com o que faz, mas como o faz.
É nesse ponto que destacamos o lugar das nossas práticas e
intervenções, que precisam se haver com perguntas como: Quem sou
eu? Que espaço eu ocupo? Que espaço ocupa o outro? Quem é a pessoa
que está na minha frente? Indagações estas que precisam ser feitas a
cada atendimento, pois sem elas não nos localizamos — algo essencial
para sabermos onde estamos, onde o outro está e que violências podem
ser evitadas ou que cuidados podem ser gerados a partir daí.
É fundamental que nós, Gestalt-terapeutas, também saibamos
sobre nossas peles — inclusive as brancas com seus privilégios — de
forma a estarmos mais aware diante das possibilidades de atuar no
mundo, lutando contra a estrutura racista. Pois Ubuntu é, ainda, a
proposição de que, se nos juntarmos, podemos superar qualquer
dificuldade, independente das nossas diferenças. "[...] Ubuntu pode nos
ajudar a coexistir em paz e harmonia" (Ibid, p. 59). Mas para que isso
ocorra é necessário entender que a cor da pele traz consigo diferenças
no contato, sendo fundamental que nós, terapeutas, levemos-a em
consideração em nossa prática.
A pele coletiva que é criada no COM-POR UERJ nos ajuda a refletir
sobre as ampliações de fronteira que são geradas nesse dispositivo: O
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 233

que será que criamos quando experienciamos algo diferente de nós? De


que assimilações podemos nos apropriar de forma a tornar possível
assegurar nossa existência? Quando estamos em grupo, possibilitamos
a formação de uma pele que nos protege do aniquilamento, mas que
também nos nutre. É uma pele que oferece um cuidado por meio do qual
podemos existir umas(uns) nas(os) outras(os). É um cuidado que produz
vida. Nos encontros do COM-POR UERJ, vidas negras conseguem existir,
este texto é capaz de existir, é possível com-por.

Começamos o encontro perguntando como havia sido a semana das


participantes. Após um silêncio indeciso e olhares observando quem vai abrir o
microfone primeiro para falar, uma participante se arrisca e diz que teve uma
semana tranquila, e que recebeu uma notícia boa e que ficou feliz. Enquanto
alguém da equipe de atendimento pergunta que notícia foi essa que a deixou
feliz, o grupo aguarda com olhares curiosos. Como resposta, ela comenta que foi
aprovada em um processo seletivo com carteira assinada e todos os benefícios
que gostaria de receber. O grupo se envolve perguntando sobre a localidade e
outros detalhes sobre o novo trabalho. A participante diz não ter comentado com
ninguém sobre o processo seletivo para não gerar expectativas nas pessoas —
seus familiares. Ela comentou que foi na casa da sua avó e pensou comentar com
ela, mas hesitou. Pensou em comentar com a mãe mas preferiu não comentar
também. Apenas quando soube do resultado ela o compartilhou com seus
familiares. "Como você se percebeu durante esse processo de não contar para
ninguém?", alguém perguntou. Ela disse que é uma pessoa muito ansiosa, fala
sobre pensar demais nas próximas etapas do processo e planejou caso não
conseguisse passar. Não contar foi uma forma de controlar a ansiedade para
avançar para as próximas etapas. Um dos participantes diz que precisa
comemorar a conquista mesmo por videochamada, porque mesmo que a vitória
seja dela é uma vitória para ele também.
(Cândido, trecho do diário de campo, 2021)
234 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Uma pele coletiva nos (re)lembra da qualidade de estarmos em


grupo; refere-se à formação de rede, de um cuidado não unilateral,
distribuído a todas(os) e com-por todas(os). Viver esses encontros, nos
quais “eu posso ser porque outras(os) também são”, é muito importante
para a população negra — que é vítima de um processo de aniquilação,
tal como proposto por Achille Mbembe (2016), homem negro, filósofo,
teórico político e historiador. Esse aniquilamento se dá em muitas áreas
da vida, de maneiras muito diversas — inclusive na saúde mental das
pessoas negras. O objetivo é mesmo exterminar as pessoas negras, e o
COM-POR UERJ é um lugar onde juntas(os) criamos outros modos de
existir frente a esse projeto político de extermínio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trouxemos no presente texto a experiência do COM-POR UERJ,


pois acreditamos que ela pode nos ajudar a ir além — ao referir-se a uma
pele que não diz respeito a um indivíduo, mas a um coletivo que, quando
se reúne, protege, nutre e fortalece cada uma(um) e todas(os) as(os)
suas(seus) membras(os). Essa pele coletiva que é com-posta traz para a
carne a dimensão do Ubuntu, nos convocando a pensar em uma agência
que se dá em rede, em conjunto, reafirmando a todo momento que “eu
sou porque nós somos” à medida que vai construindo um mundo que
não é necessariamente único, mas de todo mundo.
A proposta clínica da Gestalt-terapia é fazer uma clínica na
fronteira, por meio da qual nos encontramos e nos transformamos a
partir do contato, do arrepio da pele diante da novidade, como coloca
Mônica Alvim (2019).
Loíse L. do N. Santos; Daniele Miranda; Sonalle C. de A. da Fonseca; Alexandra C. Tsallis • 235

A pele é local de encontro. Quando ela arrepia, sinaliza que há vida, dá os


primeiros sinais de um movimento iminente que nos deslocará para outro
lugar, no exercício gestual que cria outras formas de ser, de estar, de
compreender o mundo e o outro, de transformar o outro e nós, pelo menos
levemente. Este processo, que a Gestalt-terapia denomina ajustamento
criativo, pode afrouxar as amarras que nos prendem em portos que
parecem tão seguros, mas que não nos permitem navegar. Para acontecer,
ele exige o arrepio da pele e a coragem de levantar âncoras, abrindo-nos
para o que ainda não sabemos, não conhecemos, não somos. (Alvim, 2019,
p.886)

No entanto, destacamos que para seguir falando de pele é


necessário que falemos também de melanina, que explicitamos que cor
e que tom a pele tem. Posto de outra forma, defendemos que é urgente
que nós, Gestalt-terapeutas, pensemos numa fronteira de contato
racializada, de forma a gerarmos práticas e formações alinhadas com a
luta antirracista.
Defendemos aqui que o movimento de encontrar soluções para as
questões está no relacionamento com outras pessoas e não no
afastamento. Por isso, frisamos que, por mais que estejamos falando de
um dispositivo clínico feito COM-POR pessoas negras, é fundamental
que pessoas brancas também se inteirem dessa discussão e dessa luta,
entendendo o privilégio que uma pele branca carrega para poder, a
partir dela, permear fronteiras que se colocam com mais resistência
àquelas(es) que não são brancas(os). A proposta é que, como nos ensina
o Ubuntu, possamos nos unir para superar as dificuldades, para
combater o racismo; no entanto, é fundamental que entremos na luta
com as nossas peles — e não apesar das nossas peles.
Dessa forma, a pele — coletivamente racializada — se institui como
um órgão político, ampliando a qualidade da fronteira de contato como
236 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

lugar de encontro e transformação em cada uma(um) e em todas(os) nós,


dando contorno e proteção para as pessoas que ela envolve para que,
então, possamos mudar o mundo.

REFERÊNCIAS

Alvim, M. B. (2019). A Gestalt-terapia na fronteira: alteridade e reconhecimento como


cuidado. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(4), 880-895.

Cestari, S. da C. P. (2018). Dermatologia pediátrica: Diagnóstico e tratamento. Editora dos


Editores.

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9
UBUNTU: O EXISTIR FENOMENOLÓGICO NA
FILOSOFIA AFRICANA
Ubuntu: The Phenomenological Existing in African Philosophy
Ubuntu: El existir fenomenológico en la filosofía africana

Alice Dias do Nascimento


Ana Clara Peres Couri
Vitor Hugo Santos Nunes

INTRODUÇÃO

A Gestalt-terapia, como uma abordagem, advém de muitas


culturas, filosofias, teorias e concepções. Perls, em sua trajetória de
desenvolvimento da Gestalt-terapia, aprofundou-se em diversas
perspectivas que o atravessaram durante sua própria história. Dentre
suas experiências, Perls, em 1934, emigrou para África do Sul, onde ficou
até 1946. Após suas experiências, Perls compartilhou seus manuscritos
que havia rascunhado durante seu período na África com Goodman,
dando origem ao livro “Gestalt-terapia”, considerado um dos livros mais
importantes e complexos da abordagem (Frazão, 2013).
A Gestalt-terapia é uma forma de designar uma filosofia, uma
teoria psicológica e uma forma de ação, não como algo finalizado -
pronto, mas como uma teoria do ser, uma base de sustentação e sentido
para um caminho em direção a um modo de ser e de refletir. Assim,
como afirma Ribeiro (1985), a Gestalt-terapia é uma abordagem
fenomenológica do homem, de seu mundo, dos seus problemas e a
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 239

forma de enfrentá-los, apresentando o homem a partir de uma visão


holística, concebendo-se como um ser biopsicossocial.
A partir de sua visão de homem, a Gestalt-terapia propõe um
discurso unitário que formaliza a relação entre mente e corpo, e vida e
natureza, partes que se integram ao invés de se oporem (Ribeiro, 1985).
Como salienta Pinto (2021), a Gestalt-terapia vê o ser humano como
complexo e fluido, não devendo este ser explicado, mas compreendido
em sua totalidade. Totalidade esta que se constrói na coexistência, pois
é o ser humano quem atribui sentido tanto a si quanto ao mundo à sua
volta.
Os povos africanos, em suma, possuem formas particulares e
singulares de se relacionar, viver e expressar o mundo, que os
caracterizam e diferenciam de outros povos e culturas. Essa visão de
mundo chama-se ubuntu, de onde surge grande parte da ética e filosofia
africana. A ideia de humanidade, de ser com os outros, é ubuntu. Por um
lado significa que a humanidade é vivenciada e compartilhada com os
outros, e por outro, a humanidade como um valor singular, uma
qualidade humana (Kashindi, 2017).
Ubuntu é um conceito em constante transição e transformação. A
princípio, quando analisado pelos estudiosos africanistas, o significado
dominante era de uma qualidade humana, uma designação. Em um
sentido secular, ubuntu significa simplesmente compaixão, calor
humano, compreensão, respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou,
em uma só palavra, amor (Louw, 2010).
Com o tempo, pelos processos políticos do apharteid, o termo
ubuntu, que transitava em um processo de transformação e
agregamento de significados, torna-se uma filosofia, uma ética, um
humanismo e uma cosmovisão advinda dos povos bantu (zulu, xhosa,
240 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ndebele, sutu...) (Kashindi, 2017). Este povo utiliza do termo como forma
de expressar seus valores. Como afirma Tempels (1959, p. 21, citado por
Dju & Muraro, 2022): “Certas palavras são constantemente usadas pelos
africanos. São aquelas que expressam seus valores supremos; e elas se
repetem como variações sobre um mantra presente em sua língua, seu
pensamento, e em todos os seus atos e afazeres”. O termo ubuntu, na
atualidade, é muito correlacionado com o tradicional aforismo africano,
em sua versão zulu: “Umuntu ngumuntu ngabantu” (“Uma pessoa é uma
pessoa através de outras pessoas”).
Como filosofia, o termo ubuntu possui três sentidos inter-
relacionados básicos: ontológico, epistemológico e ético 1. Nos propomos
aqui, discutir o conceito ubuntu dentro de sua concepção filosófica,
relacionando e aproximando com os conceitos básicos filosóficos da
Gestalt-terapia em parte de suas perspectivas fenomenológicas,
humanistas e existenciais, pretendendo resgatar a filosofia e o saber
africano em concordância a fundamentação da Gestalt-terapia como
abordagem e em seu olhar para o homem, no objetivo de valorizar o
conhecimento e as práticas existentes para além dos saberes ocidentais
e eurocentristas.

DESENVOLVIMENTO

1. UBUNTU

Uma pessoa se torna pessoa através dos outros. Ninguém vem ao mundo já
completamente formado. Não saberíamos pensar ou andar ou falar ou
comportar como seres humanos se não o tivéssemos aprendido dos outros

1
Dentre os sentidos atribuídos ao termo ubuntu, neste trabalho nos limitaremos às perspectivas
ontológicas e epistemológicas, com ênfase na visão do homem e do homem em relação.
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 241

seres humanos. Precisamos de outros seres humanos para nos tornar


humanos. (Tutu, 2004, p. 25, citado por Dju & Muraro, 2022).

No termo ubuntu encontramos uma concepção muito profunda do


ser humano. Segundo Ramose (2005, citado por Dju & Muraro, 2022),
ubuntu constitui-se do prefixo Ubu e do radical Ntu. Ubu diz respeito à
existência através de uma perspectiva processual, o ser que está sempre
sendo (be-ing), enquanto Ntu diz respeito à existência em sua forma
concreta. Ramose discorre sobre o entendimento que Ubu, dentro do
processo de tornar-se, implica no movimento de vir a ser, enquanto Ntu
pode ser interpretado, momentaneamente, como a concretização do
ser, o ter-se tornado (Dju & Muraro, 2022). Assim, conforme assinala
Ramose (2005, p. 36, citado por Dju & Muraro, 2022):

[...] ubu-ntu é a fundamental categoria ontológica e epistemológica no


pensamento africano do povo de língua bantu. É a indivisível unicidade e
inteireza da epistemologia e ontologia. Ubu, compreendido dinamicamente
como ser/existência, pode ser dito ser distintamente ontológico. Enquanto
ntu, que é o ponto no qual a existência assume uma forma concreta ou um
modo de ser no processo contínuo de desdobramento, pode ser dito ser
distintamente epistemológico.

Deste modo, Ubu remete a uma compreensão ontológica do


homem, a existência anterior a sua concepção material e Ntu é
exatamente a manifestação fenomenológica do homem, o existir
mediado por um tempo e espaço, a materialização que influencia a
realidade, cria história e desenvolve a cultura, epistemologicamente
contemplado em sua vivência fenomenológica (Dju & Muraro, 2022).
242 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

2. FORMAS FENOMÊNICAS DO SER

Kashindi (2017) afirma que Ubu-Ntu é, por um lado, a abstração das


concretizações das formas fenomênicas de “ser-sendo” e, por outro, a
abstração de Umuntu (pessoa). As formas fenomênicas, essencialmente,
podem ser agregadas em quatro categorias: Umuntu, para os seres
humanos concretos, Ikintu, para as coisas, sejam animadas ou
inanimadas, consideradas todas como portadores de vida (exemplo o
ferro), Ukuntu, como modo ou maneira de inter-relação de categorias,
como uma força que permite a ligação entre dois significados e Ahantu,
representando o tempo e espaço (Kagame, 1956, citado por Cunha
Júnior, 2010). Assim, Umuntu como ser humano, tornaria-se Ubuntu (a
humanidade como qualidade humana e como conjunto de todos os seres
humanos, comunidade). Kashindi ainda ressalta que, na cosmovisão
bantu, ser muntu ou umuntu é estar, de fato e em princípio,
intrinsecamente conectado a deveres e obrigações morais: “Ser muntu
significa agir bem. Fazer o mal é perder o nosso ubuntu (o fato de ser
umuntu)” (2017, p. 9), isto é, a pessoa generosa, hospitaleira, amigável,
atenciosa e compassiva é umuntu, o que significa também que minha
humanidade (ubuntu) foi alcançada e está inextricavelmente ligada à do
outro ser. Alguém com Ubuntu é aberto e acessível aos outros (Tutu,
1999; Van Niekekerk, 2013; Vasconcelos, 2017).
Para o bantu, os seres pertencem a uma mesma força vital. O
Umuntu relaciona-se com outras fenomênicas do mesmo ser e de outros
seres, no objetivo de fortalecer ou reforçar sua vida. “O ser,
essencialmente, é composto por força vital. Ocorre que o que o
acompanha são forças ou estão com a força, sendo que as forças têm a
finalidade de possibilitar a geração, o cuidado e a transmissão de vida”
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 243

(Kashindi, 2017, p. 10). Kashindi (2017) ainda apresenta que as forças são
ontológicas e também relacionais:

Essa relação entre as forças também é entendida como ontológica, no


sentido de que esse universo de interação de forças que influenciam
diferencialmente a vida do muntu constitui a realidade deste último,
configurando sua visão de mundo e, portanto, a sua forma de ser neste
mundo (p.10).

3. GESTALT-TERAPIA

A Gestalt-terapia possui o seu arcabouço filosófico, teórico e


metodológico na fenomenologia, humanismo, existencialismo, teoria de
campo, psicologia da gestalt e holismo. Para esta abordagem, o ser
humano é visto, inerentemente, como um ser-no-mundo, ou seja, é
apenas a partir do momento que sabemos onde estamos que somos
capazes de sabermos quem somos, pois a identidade do ser está
intrinsecamente ligada aos acontecimentos vivenciados no mundo
(Forghieri, 1993).
Ser-no-mundo também diz respeito a ser-com o outro. O ser
humano não vive isolado, estando sempre em contato com as coisas à
sua volta. A visão relacional da Teoria de Campo reconhece que o
homem nasce e morre se relacionando mutuamente e estando em
conexão com o outro, sendo constantemente influenciado e
constantemente influenciando (Joyce & Sills, 2014). Nesse aspecto,
Hycner (1995) expõe que a dimensão do inter-humano não é encontrada
em uma das pessoas da relação ou em ambas, mas no entre da relação
que é vivido por elas. Indivíduo e relação estão ambos contidos na esfera
do entre.
244 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Como estabelece Lima (2013), entende-se o todo estrutural


denominado organismo como composto por todos os fatores
constitutivos da pessoa. Um dos fundamentos da teoria organísmica, é
o caráter interacional do ser humano. De acordo com a autora, Goldstein
afirmou que a lei da autorregulação organísmica seria aquela que
regeria o funcionamento do organismo através de uma tendência deste
de se autoatualizar. O ser humano deve, além de ser compreendido
como um sistema biopsicossocial, ser impossível de ser pensado
isoladamente, já que somos criadores e criaturas presentes e ativas no
processo de transformação do universo. Holisticamente, não se diz que
o ser humano está inserido na natureza, pois ele é a própria
manifestação da natureza. O universo se manifesta em nós e, a partir
deste olhar, todo e qualquer sintoma é, primeiramente, uma tentativa
de adaptação do organismo no seu momento atual e da melhor forma
possível, realizando uma negociação necessária com as condições
presentes no meio à sua volta.
Caracterizada por esta visão de homem, a Gestalt-terapia
apresenta-se com uma postura fluida e processual, atuando sempre na
direção do desenvolvimento e do crescimento do humano e de si mesma
(Ribeiro, 2011), pois como afirmam Ginger e Ginger (1995), a Gestalt
participou da corrente precursora da psicologia humanista, uma
orientação ou tendência geral sem uma definição rígida, que se mantém
aberta com o intuito de adaptar-se concomitantemente com a evolução
dos valores, negando a fixar-se em qualquer doutrina precisa demais.
Isto posto, o humanismo pode ser definido como “qualquer teoria ou
doutrina que tenha como objetivo a pessoa humana e seu
desenvolvimento” (p.96). Característica esta que pode ser facilmente
observada na filosofia Ubuntu, como será discorrido no tópico abaixo.
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 245

4. RELAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS: UBUNTU E GESTALT-TERAPIA

Argumenta Ramose (2002), que ubu-ntu sublinha o entendimento


filosófico do ser-sendo (be-ing). Ubuntu é, de fato, duas palavras em uma.
Filosoficamente, considera-se que este termo deve ser abordado como
uma palavra com hífen: ubu-ntu. Ubu- evoca a ideia de ser-sendo. É o
ser-sendo encoberto anterior à sua manifestação na forma concreta ou
modo da ex-istência de uma entidade específica. De mesmo modo, na
teoria de Heidegger, Dasein é o ente que, “sendo, des-cobre, revela o Ser
(o quê e como algo é) a partir de sua condição existencial” (Roehe &
Dutra, 2014). A palavra “existir” origina-se do latim existere, palavra
formada pela proposição ex, ou seja, “fora de si”, e o termo sistere, que
significa “colocar, pôr”. Juntos, esses termos correspondem ao grego
“extasis”, que expressa o ato de “sair de si” ou “transcender”. Desse
modo, a ex-istência humana consiste em um constante sair de si
mesmo, transcender a si e a situação imediata, na direção de alguma
coisa que venha a ser para se totalizar (Forghieri, 1993). “Ubu- como ser-
sendo encoberto está sempre orientado em direção ao descobrimento,
isto é, manifestação concreta, contínua e incessante por meio de formas
particulares e modos de ser” (Ramose, 2002). Portanto, ubu- estará
sempre orientado em direção a -ntu.
NTU é a força do universo e expressa a existência da força da
natureza. Não existe por si próprio, mas transforma a tudo, sempre se
manifestando no campo do material, do simbólico ou do espiritual,
podendo ser nomeadas nas formas das quatro categorias básicas de tudo
que existe nas línguas bantu: umuntu, ikintu, ahantu e ukuntu (Cunha
Júnior, 2010; Kashindi, 2017).
246 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Neste momento, destacamos duas dessas formas básicas: umuntu e


ikintu. Umuntu diz de seres humanos completos, com sua própria
identidade e sua própria história, diz respeito aos seres dotados de
inteligência, sendo esta inteligência ativa, já que implica na capacidade
de se utilizar da força da natureza, ou seja, do ikintu, coisas animadas e
inanimadas consideradas como portadoras de vida e que estão à
disposição dos seres humanos (Cunha Júnior, 2010). De modo
semelhante, a Gestalt-terapia afirma que apenas o homem existe, as
coisas são. Nesta perspectiva, o homem é o único ser capaz de se fazer e
de se realizar. É apenas a partir do homem e para o homem que as coisas
são providas de sentido e é essa postura humanística que, mantendo um
olhar sobre os limites pessoais e as impossibilidades da vivência
humana, aqui e agora, propõe uma reflexão a partir do positivo, do
criativo, e do transformador (Ribeiro, 1985).

O primordial ser-no-mundo do homem não é uma abstração, mas uma


ocorrência concreta; acontece e se realiza, apenas, nas múltiplas formas
peculiares do comportamento humano e nas diferentes maneiras dele
relacionar-se às coisas e às pessoas. ‘Ser’ não é uma estrutura ontológica
existindo em algum ‘supermundo’ que se manifesta uma vez ou outra na
existência humana. Ser-no-mundo consiste na maneira única e exclusiva
do homem existir, se comportar e se relacionar às coisas e às pessoas que
encontra […] (Boss, 1963, p. 34, citado por Forghieri, 1993).

Nesta perspectiva, Binswager descreve nos escritos Grundformen


und Erkenntnis menschlichen Daseins (“Formas fundamentais e
conhecimento da existência humana”) os modos simultâneos de ser-no-
mundo, distinguindo três regiões do mundo. Umwelt (mundo
circundante), Mitwelt (mundo humano) e Eigenwelt (mundo próprio)
(1942, citado por Moreira, 2011). Para Binswager, Umwelt é o mundo
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 247

material, que cerca os animais e seres humanos e abrange as


necessidades biológicas, impulsos e instintos. Aproximando com a
filosofia bantu, as formas anteriormente citadas do umuntu (pessoa) e
do ikintu (coisas) coexistem e se relacionam por meio da atribuição da
inteligência humana. A forma dos ikintu existirem é modificada e
afetada pela inteligência do homem, inteligência essa que é ukuntu, a
forma fenomênica que abriga qualidades subjetivas e modificadoras de
outras qualidades, ou atributos de inter-relação de categorias, como
uma força que permite a ligação entre dois significados (Cunha Júnior,
2010). Eigenwelt é o mundo próprio, o eu, que possui e habita um corpo,
pressupondo uma autoconsciência e um autorrelacionamento, uma
forma exclusiva somente dos seres humanos (Moreira, 2011). O Eigenwelt
aproxima da forma fenomênica do umuntu, de atribuição exclusiva dos
seres dotados de inteligência, do ser humano. Por fim, a dimensão do
Mitwelt refere-se ao mundo dos inter-relacionamentos, do mundo do
ser com o outro, da relação com o outro ser humano, que na perspectiva
bantu aproxima-se com o termo de humanidade, o ser com os outros, o
Ubuntu.
Ao nos remetermos às formas fenomênicas, podemos aproximá-
las com as dimensões fundamentais constituintes do Dasein, os
existenciais que são descritos por Heidegger em Ser e Tempo e que são
fundamentos do existir para a Gestalt-terapia. Para Heidegger, os
existenciais são a temporalidade, a espacialidade, o ser-com-outro, a
disposição, a compreensão, o cuidado (Sorge), a queda e o ser-para-a-
morte (Moreira, 2010).
Tomando como base os conceitos de temporalidade e
espacialidade, remetemo-nos à categoria do ahantu, que representa
tudo que tem relação com tempo e espaço. “É a qualidade de energia da
248 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

localização espacial, temporal e do movimento de mudanças” (Cunha


Júnior, 2010). Temporalizar e espacializar dizem da forma como
vivenciamos o tempo e o espaço (mundo). A temporalidade é o
fundamento básico da existência humana, pois possui o sentido
primordial do existir, enquanto que o espacializar não deve ser visto
apenas como a forma com que o ser se situa concretamente no mundo,
mas também como este vivencia o seu existir neste mundo. É a partir da
temporalidade e da espacialidade que o homem existe no mundo
(Forghieri, 1993).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A frase “Umuntu ngumuntu ngabantu” quer dizer “A pessoa é uma


pessoa no meio de outras pessoas” e ela carrega todo o significado de
Ubuntu, a humanidade como valor, valorização da comunidade e da
essência humana. A filosofia Ubuntu enfatiza a interdependência que
nos forma como seres humanos e a valorização do outro (seres
inanimados e animados).
Assim, para elucidar as considerações finais desse estudo
exploratório, resgata-se o objetivo de traçar um paralelo entre a
filosofia Ubuntu que traz uma visão da cultura africana sobre a
existência a qual a existência é definida pela existência de outras
existências e a abordagem psicoterapêutica Gestalt-terapia, que possui
uma visão fenomenológica, humana e existencial de que somos ser-no-
mundo em contato com o mundo a minha volta me modificando e
modificando-o.
Dessa forma, a Gestalt-terapia, como uma abordagem humanista,
existencial e fenomenológica está sempre aberta para descobertas e
Alice Dias do Nascimento; Ana Clara Peres Couri; Vitor Hugo Santos Nunes • 249

para a absorção de novos saberes. A filosofia Ubuntu entra, então, como


um exemplo de filosofia que pode ser associada aos pensamentos da
Gestalt-terapia de modo a propiciar um crescimento e desenvolvimento
desta abordagem, assim dando espaço para um aproveitamento dos
conhecimentos e práticas africanas de modo a enriquecer a prática na
Gestalt-terapia.

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10
REFLEXÕES PARA UMA PRÁTICA ANTIRRACISTA NA
PERSPECTIVA DA GESTALT-TERAPIA
Reflections for an anti-racist practice in a Gestalt-therapy perspective
Reflexiones para una práctica antirracista desde la perspectiva de la
Terapia Gestalt

Valdicéia Miranda Machado Bouzada


Carolina Soraggi Frez
José Humberto Alves

INTRODUÇÃO

O termo racismo não possui uma definição concreta e


predominante, mas, pode ser considerado uma forma de discriminação,
através de atos verbais, gestuais e físicos em forma de violência contra
algum grupo ou indivíduo étnico-racial específico ao qual pertence
(Campos, 2017). Segundo Almeida (2021) o racismo é uma forma de
discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta
através de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em
desvantagens, ou privilégios para indivíduos conforme o grupo ao qual
se enquadra.
A principal causa de racismo ainda se baseia na crença de que
algumas pessoas devem ser subservientes a outras, resquício da
colonização e escravização de povos originários e afrodescendentes,
além de outros fatores associados, como o preconceito baseado na
aparência física, na cultura ou na religiosidade. Almeida (2021) aponta
que o racismo como posto atualmente é estrutural. Portanto, pode-se
252 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

intuir que há variações de práticas de racismo, podendo se manifestar


como racismo cultural, que defende que uma cultura seja melhor que a
outra, englobando crenças, religiões, músicas e idiomas. O institucional
pode ser praticado por instituições específicas, como o local de trabalho
e escolas. O racismo comunitarista, sobre as formas de preconceito
contemporâneas, que acredita que a raça não é biológica e sim, vinda de
uma etnia ou cultura. O ecológico que afeta comunidades, grupos
associados a natureza, e, por fim o racismo primário que ocorre de
forma psicológica e emocional.
Destarte, compreender historicamente o início do “sistema-
mundo capitalista/patriarcal/cristão/moderno/colonial europeu” em
1492 contribui para a atuação dos que se propõem a fazer uma leitura
crítica da colonização brasileira, e principalmente dos impactos das
situações discriminatórias continuadas na saúde mental da população
negra, a partir de uma perspectiva biopsicossocial e da decolonialidade.
Bernadino-Costa e Grofoguel (2016) e Quijano (2005), a partir da ideia de
que a raça e o racismo se estabelecem como princípios organizadores do
capitalismo e das relações de poder no mundo, facilitam essa
compreensão afirmando que a colonialidade do poder estabelecida a
partir da Revolução Industrial, foi a condição sine qua non de formação
não apenas da Europa, mas da própria modernidade em âmbito
mundial.
A partir do século XVI iniciou-se, portanto, a formação do
eurocentrismo ou ocidentalismo (Coronil, 1996), em que a diferença
entre conquistadores e conquistados foi afirmada a partir da ideia de
diferença de raças (Wallerstein, 1992; Quijano, 2005). Essa proposta
formulou o imaginário dominante do mundo moderno/colonial que
permitiu legitimar a dominação e a exploração imperial a partir de
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 253

crenças de que o outro (não branco) é atrasado e primitivo.


Concomitante a essas classificações imaginárias dos povos a partir da
ideia de raça, houve também um processo de dissimulação,
esquecimento e silenciamento de outras formas de conhecimento que
dinamizavam povos e sociedades (Bernardino-Costa e Grofoguel, 2016),
acarretando no racismo de Estado (Foucault, 1999), em que o poder
soberano está associado ao ato violento de negar a dignidade humana
de povos específicos, culminando em seu extermínio. Esse imaginário
dominante esteve presente não só nos discursos coloniais e na
constituição das humanidades, mas também nas ciências sociais,
humanas e da saúde, construindo narrativas discriminatórias que
influenciam as práticas de cuidado em saúde.
No Brasil, é perceptível como a biopolítica se constituiu enquanto
relação de poder caracterizada pelo racismo de Estado (Foucault, 1999),
em que o poder soberano visa produzir subjetividades dóceis e
submissas, disciplinando corpos e controlando a população através de
padrões cada vez mais severos de normatividade. Mesmo com a
independência política e o advento de nacionalidades na américa-latina,
as elites e o poder resultante de suas práticas se basearam em políticas
de embranquecimento, incentivando a entrada de migrantes europeus,
e práticas de neocolonização direcionadas principalmente às
populações tradicionais, com a emergência de eliminar as culturas
indígenas (Alvarenga & Américo, 2019; Quijano, 2002) e substituí-la
pelos corpos afrodescentes escravizados.
Lima (2015) sugere que a exclusão de uma ampla parcela da
população nacional da ordem econômica, social e política existe como
um requisito estrutural e dinâmico da estabilidade e do crescimento de
todo o sistema capitalista no Brasil. Sendo assim, a população negra que
254 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

é majoritária no país foi historicamente tratada sem o critério de


dignidade, observadas como seres sem humanidade, legitimada como
não cidadãos, sem seus direitos garantidos pelo Estado, havendo
políticas de extermínio fundamentadas no não reconhecimento de sua
alteridade (Alvarenga & Américo; 2019; Cunha, 2012).
Além disso, a desagregação do regime escravocrata no país operou
sem a garantia da destituição dos antigos agentes do trabalho escravo,
ocorrendo na ausência de assistência e de políticas de Estado no
processo de transição para um sistema realmente livre e justo.

“Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e


segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer
instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-
los para o novo regime de organização da vida e do trabalho” (Fernandes, P.
66, 2021).

Ao contrário, os conflitos de poder e os regimes de poder-saber


continuaram e continuam nas chamadas nações pós-coloniais. O liberto
se viu convertido a senhor de si mesmo, responsável por si e pelos seus
dependentes, embora sem dispor de recursos materiais e morais para
realizar a proeza de uma vida competitiva (Fernandes, 2021).

“Diante disso, na resposta de Hall (p.109; 2003), “o que será distintivo no


pós-colonialismo será a capacidade de fazer uma releitura da colonização,
bem como o tempo presente a partir de uma escrita descentrada, da
diáspora; ou ainda global, das grandes narrativas imperiais do passado, que
estiveram centradas na nação”.

Equiparando tal realidade à reforma psiquiátrica e perpetuando a


sociedade atual, onde assim como os portões dos manicômios, as grades
das senzalas também foram abertas, entretanto, os recursos para uma
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 255

vida digna e com equidade continuam sob o domínio daqueles que


enclausuram e continuam enclausurando. O dilema racial brasileiro
possui um caráter estrutural e indica como ocorre historicamente a
concentração da renda, do prestígio social e do poder, fazendo com que
a classe tenha uma cor determinada no capitalismo dependente. Para
enfrentá-lo é necessária a ruptura com a ordem societária que o
estimula a partir da associação entre heteronomia racial e heteronomia
econômica, política e social. De acordo com Fernandes (2021), o mito da
democracia racial mascara estes elementos estruturais e dinâmicos
constitutivos da própria inserção capitalista dependente do Brasil na
economia mundial e da forma/conteúdo como ocorreu a
mercantilização da força de trabalho no país.
A igualdade jurídica/formal objetiva o apagamento das
contradições acirradas na ordem competitiva, fazendo com que sejam
estabelecidas relações de tolerância mínima e, majoritariamente, de
intolerância em relação aos trabalhadores negros, como indicam os
dados recentes acima apresentados sobre a manutenção de uma
superpopulação excedente excluída ou incluída de forma
subalternizada no mercado de trabalho; o encarceramento e o
extermínio de jovens negros no Brasil (Lima, 2017).
Afinal, a luz da “ordem social competitiva”, a organização social de
classes, isto é, do horizonte emancipatório inscrito em uma sociedade
aberta e democrática, permanecem desigualdades seculares, formas de
conduta reguladas por valores “tradicionalistas”, processos de mudança
social heterogêneos e fragmentados que frustram permanentemente a
realização daquelas potencialidades (Fernandes, 2021). Em detrimento
destes privilégios, o que continua a perpetuar é a subalternidade da
256 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

população negra como condição, tendo como consequência o


sofrimento psíquico e social.
Em Gestalt-terapia o conceito de campo é primordial para a
discussão deste dilema, referindo-se ao campo interrelacional, dos
quais, fatores físicos, sociais e históricos estão relacionados aos
fenômenos e sofrimentos. Perls, Hefferline e Goodman (1997), apontam
que toda função humana é interagir num campo organismo/ambiente.
Fundamentalmente, um organismo vive em seu ambiente por meio da
manutenção da assimilação da sua diferença. Na fronteira entre eles que
os perigos são rejeitados, os obstáculos superados e o assimilável
selecionado e apropriado. É o dessemelhante que pode tornar-se como
semelhante, e nesse processo de assimilação o organismo pode realizar
modificações.
De forma a exemplificar esta afirmação parte-se da seguinte
metáfora de Stevens (1977). É óbvio que o potencial de uma águia será
atualizado no vagar pelo céu, ao mergulhar para pegar alimentos, ou na
construção de ninhos. É óbvio que o potencial do elefante será
atualizado através do tamanho, força e desajeitamento. Nenhuma águia
quer ser elefante ou nenhum elefante quer ser águia. É óbvio também
que da águia não lhe é tirado o direito de ser águia, nem mesmo ao
elefante o direito de ser elefante. Ainda que residam em ambientes
reclusos, não espera deles nada mais do que o que são. Nem mesmo
reduzem-lhe a sua capacidade por sua forma de serem ou por estarem
reclusos.
No entanto, no caso da pessoa negra, exigir-lhe que se adéquem a
um padrão ideal, é costurar sobre sua pele uma roupagem da qual não
se pode reconhecer como sua. Ao padrão da ‘branquitude’ a pessoa negra
não lhe serve como espelho, e ao negro o branco é o espelho do ideal não
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 257

atingível do qual ele tentará se ajustar. “Que fique bem claro, ao tentar
se ajustar a um ideal não atingível, é ter a praga do perfeccionismo como
condição para o adoecimento” (Stevens, 1977).
Coerente com essa perspectiva, sendo a Gestalt-terapia uma
abordagem psicológica de caráter holístico e organísmico que contribui
para a compreensão dos aspectos envolvidos no processo saúde-doença,
sugere-se que o adoecimento e o sofrimento psíquico ocorram a partir
de interrupções na relação processual da pessoa no campo em que se
encontra (Estevão & Silveira, 2014; Freitas, Stroiek & Botin, 2010). Dessa
forma, o resgate da pessoa, da tradicionalidade e do reconhecimento de
suas raízes socioculturais podem ser compreendidos como um
mecanismo de busca pelo saudável, no reestabelecimento de
prioridades e do que é importante para a pessoa. Freitas, Stroiek e Botin
(2010) afirmam que o adoecimento denuncia excessos, faltas ou
desconexões:

o corpo doente não é apenas um organismo acometido por infecções ou


patologias, mas é um corpo experienciado por um doente, dotado de uma
função na relação desse sujeito com o mundo, mas que, apesar de estar
doente, é também um corpo com história e com perspectivas. Isso é, um
corpo que carrega sentidos subjetivos que tem relações íntimas com a
própria história da pessoa, com seus contextos de vida e com os recursos
que dispõe para lidar com a doença (p. 114).

Estevão e Silveira (2014) concordam que saúde em Gestalt-terapia


não se restringe à recuperação orgânica do indivíduo, mas implica o
reconhecimento da capacidade de a pessoa em manter-se em contato
com seu contexto e poder efetuar escolhas espontâneas para atender às
suas necessidades. Assim, a saúde é entendida como processual,
movimento de vida, crescimento sistêmico e integrado, que objetiva
258 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

equilíbrio organísmico na relação constante do mundo (Rodrigues,


2000).

O ajustamento criativo representa o processo dinâmico e ativo de interação


do indivíduo com o ambiente para solucionar situações e restaurar a
harmonia, o equilíbrio, a saúde do organismo, o qual se dá por meio da
autorregulação (processo espontâneo e inato em nosso organismo), que visa
à satisfação das necessidades primordiais do momento, considerando as
possibilidades ambientais (Antony, 2009, p. 357).

Considera-se que todo contato é criativo e dinâmico, não podendo


ser estereotipado ou conservador, envolvendo enfrentar o novo, uma
vez que é justamente o novo que a torna nutritivo. Porém, o contato não
aceita a novidade de forma passiva ou meramente ajusta-se a ela,
precisa da assimilação. Todo contato é um ajustamento criativo do
organismo e ambiente. Resposta consciente no campo, sendo orientação
e manipulação, é o instrumento de crescimento no campo. Crescimento
é a função da fronteira de contato com o ambiente. Pode-se, portanto,
definir a psicologia da Gestalt como o estudo dos ajustamentos criativos
e o que corresponde ao anormal é o estudo da interrupção, inibição de
ou outros aspectos decorrentes do ajustamento criativo (Perls, et.al.,
1997).
Um dos aspectos do ajustamento é a busca do crescimento por meio
da assimilação, sendo o resultado deste trabalho a formação de figura
de interesse diante de um fundo ou um contexto do campo organismo-
ambiente. A figura é uma percepção clara da experiência. Quando a
figura é opaca, difusa, deselegante há falta de contato, algo no ambiente
está obliterado, alguma necessidade no ambiente não está sendo
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 259

expressa; a pessoa não está toda aí, ou seja, o campo não lhe empresta
sua urgência e recursos para complementar a figura (Perls, et.al., 1997).
Nesse sentido, compreende-se que no processo de contato a pessoa
como corporeidade percebe as necessidades dominantes e a partir delas
sente, orienta-se e movimenta para manipular a situação, retomando o
equilíbrio e a integração, tornando-se movimento criador ou um
exercício de liberdade. Ou seja, torna-se possível transformar-se e
refazer o mundo (Alvim, 2016). Diante desta configuração psicossocial,
este estudo pretendeu refletir sobre o cuidado antirracista dentro da
perspectiva da Gestalt-terapia.
Assim, este estudo é um compromisso com a linguagem didática,
atenta a um léxico que dê conta de uma interlocução por um viés social,
político e coletivo, na medida em que amplia o campo de diálogo e o
coloca como oportunidade de uma produção intelectual relacional.
Sendo fiel ao objetivo da Gestalt-terapia de buscar ampliar a trajetória
que contribui para o desenvolvimento do potencial humano através do
processo criativo que promova a integração. Reconhecendo-se como
seres de relação, posto, toda realidade é uma realidade compartilhada.
Alguém absolutamente só, não teria consciência da realidade, é no
contato com outro que percebemos existentes, o campo é o lugar do
contato; é nele que tudo acontece, permitindo que todos os seres em
relação ao se definirem, se distingam, se individualizam e possam assim
serem reconhecidos (Ribeiro, 2007).

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo, qualitativo do tipo relato de


experiência, realizado a partir da vivência de 3 (três) profissionais da
260 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

área da saúde e humanas que compõem um grupo de estudos e


pesquisas de forma independente relacionado às temáticas de saúde
mental, questões étnico-raciais e a Gestalt-terapia, por meio de
encontros virtuais de forma quinzenal, toda terça-feira às 18:00 horas,
composto por uma equipe multiprofissional de saúde, o grupo inclui
Psicólogas, Fisioterapeuta e Profissional de Educação Física. Os dados
aqui relatados traduzem as reflexões a partir de vivências e atuações
profissionais clínicas, considerando, ainda, o diálogo com demais
profissionais que atuam nesses segmentos, os quais emergiram de
relatos, observações, das fontes de materiais, estudos e discussões entre
os membros do grupo através de aulas, cursos de aperfeiçoamento e
palestras em instituições de ensino superior onde realizam atividades
de ensino, pesquisa e extensão.
De acordo com Brunstein et al (2020), a pesquisa qualitativa através
do relato de experiência parte de uma curiosidade do pesquisador em
responder às suas questões com o propósito de aprendizagem a respeito
de algum aspecto social em contato com o mundo real. Para Minayo
(1994), trata-se de uma investigação sob o universo dos significados, dos
motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes e, a
partir desse conjunto de fenômenos humanos gerados socialmente,
buscará compreender e interpretar a realidade revelada pelos próprios
sujeitos.
Desse modo, para o desenvolvimento do relato, realizou-se um
levantamento de experiências clínicas que presentificaram fenômenos
decorrentes do racismo e, em sequência, apresentou-se a análise dos
dados a partir da Gestalt-terapia, considerando a perspectiva anti-
racista. O grupo de profissionais pretendeu discorrer sobre o
sofrimento psíquico da população negra, considerando o contexto de
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 261

opressão imposto a esses povos desde o período da colonização. Além


disso, desenvolveu-se propostas e intervenções para estimular outros
profissionais e estudantes a refletirem sobre a importância de uma
atuação crítica e não reprodutiva de opressões no âmbito da saúde
pública e do trabalho.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

Tudo começou com a proposta de um grupo de estudos,


multidisciplinar, sobre as experiências clínicas de profissionais de áreas
diversas da saúde. Ao longo dos encontros percebeu-se nos relatos de
experiências destes profissionais figuras e fundos comuns ligados às
discriminações étnico-raciais como um fator impactante no sofrimento
de seus pacientes. Sendo estas formas de discriminação marcadas por
experiências de racismo. Para Gonzalez (2022), o racismo reside na
negação total ou parcial da humanidade da população negra e de pessoas
não brancas. Um racismo que tem se configurado como experiências de
sofrimento psíquico agravado que se manifesta no corpo, seja pela
depressão, pela ansiedade, seja pelo Burnout, entre outras formas de
nomear o sofrimento.
Os contextos de atuação pautados numa perspectiva eurocêntrica
trazem como fundo uma organização social que constrói narrativas sem
considerar a pluralidade, a diversidade e o contexto de opressão da
população brasileira, em específico da população negra. Habitualmente,
na atuação como profissionais de saúde, aprende-se a ser fundo para
oferecer espaço de acolhimento e cuidado numa perspectiva específica
de organização social, porém, ao longo dos encontros experimenta-se
algumas situações em que a pessoa atendida revela o sofrimento
262 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

decorrente de discriminação, como experiências de injustiças sociais


permeadas pela pobreza, fome, humilhações, muitas vezes de formas
sutis, no entanto, trazendo como fundo a cor da pele.
Stevens (1977) aponta que o trabalho do Gestalt-terapeuta é
auxiliar a pessoa a entrar em contato com aquilo que está dissonante,
de forma que ela alcance um grau de integração que facilite o próprio
desenvolvimento, no entanto, é muito difícil para a população negra
integrar a cor da pele numa sociedade excludente. Neste caso, uma
abordagem que não considera que, no caso da pessoa negra, a dor que
se expressa no corpo é coletiva, e que começa nas formas como as
estruturas sociais se organizam, pode-se configurar como mais uma
agente que promove violência. Trabalhar com base em uma abordagem
que sirva como roupagem para enquadrar o sofrimento é perpetuar com
a clínica eurocêntrica.
Para a Gestalt-terapia, a experiência de relação com o mundo é
uma experiência corporal. O corpo possui um lugar importante visto
que é nele que a expressão de sentido ocorre, assim como também a fala,
sendo ela uma gesticulação corporal de imbricação sujeito e mundo
(Alvim, 2016). No caso da pessoa negra, o corpo atua politicamente como
espaço de demarcação da desigualdade, da indiferença, da violência, e
da pobreza, e a consequência desta relação impacta sobre a saúde
mental.
Para pensar numa clínica que não perpetue essa injustiça precisa-
se sair da caixa neoliberal. O termo “sair da caixa” aqui é utilizado como
uma forma metafórica para dizer que não é possível uma psicologia
neutra que traga uma promessa que contemple todo o sofrimento
humano sem considerar as interseccionalidades presentes no campo.
Afinal, a epistemologia dominante pela qual somos influenciados
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 263

continuamente, embora travestida de neutra e universal, é masculina e


branca (Haraway, 1991). Por outro lado, o que acontece neste campo
amplo de cuidado é intersubjetivo, no qual somos também atravessados.
Posto isso, para que se possa dar continuidade a tessitura dessa locução
é fundamental compreender de qual lugar nos situamos ao fazer o uso
da palavra escrita como um movimento de construir a linguagem de
uma psicologia política. O lugar de fala remete a um lugar marcado por
uma condição enquanto reconhecimento, Gonzalez (2022), remete ao
lugar de fala como uma posição da qual se fala e que determinará a
interpretação sobre aquilo do que se fala. Falamos enquanto
profissional que opta por um lugar de cuidado, mas não apenas cuidado,
também como quem ocupa um lugar neste cenário e pelo qual temos um
compromisso a zelar.
Como mulher, heterosexual, psicóloga, cis negra, uma das autoras
deste trabalho desperta um tremor, diante das sensações de
incapacidade frente as experiências de sofrimentos relatados, mas
relata também uma potência, chamada compromisso que figurou como
um mergulho ao mestrado como oportunidade de ampliar saberes e
contribuir com um aporte teórico com contornos em raça. O que
necessariamente culminou com a própria experiência subjetiva da cor
da pele, como descendente de avós negros de herança escravocrata, mas
também de raízes portuguesa e indígena, filha de pai negro e mãe
branca, aprendeu a reconhecer-se como parda, porém, o mergulho nos
estudos em raça ecoou como uma sensação de limbo, visto que em uma
sociedade binária ser parda configurou como um não lugar. Uma
necessidade emergiu como figura, demandando o movimento de buscar
um lugar. E uma Gestalt se formou, dela a figura da mulher negra. E
como movimento a permissão para viver a experiência do luto da
264 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

mulher branca, fabricada para corresponder ao ideal da “branquitude”,


enquanto emerge a mulher negra como um compromisso de atuar a
favor de garantir o desvelamento desse genocídio diário ao qual a
população negra tem sido submetida, e também como um dever de falar
por tantas vozes silenciadas em toda a ancestralidade.
A outra autora ao se identificar como uma mulher lésbica,
psicóloga, cis, branca, descendente de portugueses e italianos, buscou
reconhecer seus privilégios e afirmar a responsabilidade com os
movimentos anti-racistas, feministas e LGBTIA+. O reconhecimento
como mulher branca foi acompanhado pela conscientização de um lugar
estruturalmente racista, reprodutor de um sistema opressor, e
facilitador da estratégia de branqueamento do país. Ao mesmo tempo,
esse reconhecimento tem sido mobilizador de um movimento
revolucionário junto aos povos originários e afrodescendentes,
comprometendo-se a atuar a favor do desvelamento desse sistema que
extermina territórios, culturas e povos que historicamente são
oprimidos, assim como atuando por meio das perspectivas anti-racistas
e decoloniais pelo reflorestamento da psicologia e da Gestalt-terapia.
Para Cardella (2017), o terapeuta é o seu próprio instrumento de
trabalho e uma vez que este instrumento se recria, aperfeiçoa-se e se
desenvolve sempre, num campo intersubjetivo, solo essencial no qual a
teoria e experiência podem ser desvanecidas. Inverter a ordem é
estranho e, ao mesmo tempo, novo, o que em Gestalt-terapia nomeia-se
como gesto criativo. E confiando que uma figura sempre emerge de um
fundo caótico (Perls, 1997), este estudo oferece a oportunidade do uso da
capacidade gestáltica de inovar para fazer das próprias inquietações um
instrumento de denúncia social, buscando através delas materializar
cuidado em ação.
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 265

Embora recriar as fronteiras de uma prática anti-colonial, não seja


uma equação simples, uma vez que o Gestalt-terapeuta nunca sai ileso
da sua atuação, posto que também compõe o campo, e campo é contato.
São muitas as interações que permeiam a relação como também as
condições que envolvem a tarefa da formação, os recursos que a
orientam acontecem num ambiente de multidisciplinaridade, como
também os fenômenos sociais que interferem no processo (Cardella,
2017).
No Brasil nascer com a pele negra é compartilhar da mesma
história de desenraizamento, opressão, escravização e discriminação
étnico-racial que não organizam, por si só, uma identidade negra. No
discurso colonial, o corpo colonizado foi visto como corpo destituído de
vontade, subjetividade, pronto para servir e destituído de voz (Hooks,
1995). Corpos destituídos de alma, em que o homem colonizado foi
reduzido à mão de obra, enquanto a mulher colonizada tornou-se objeto
de uma economia de prazer e de desejo. Mediante a razão colonial, o
corpo do sujeito colonizado foi fixado em certas identidades
(Bernadino-Costa e Grosfoguel, 2016). Dessa forma, compreende-se que
ser negro é tomar consciência de uma imagem cristalizada,
desconhecida e alienada da qual não se pode ser reconhecido (Souza,
pg.110, 2021).
De acordo com Fanon, (2008), a família é o primeiro lugar de
desenvolvimento da subjetividade, vista que a subjetividade é um
processo coletivo, que família e depois a sociedade, geralmente atuam
juntos como suporte social, capazes de oferecer espaço de construção
de si. No entanto, ele afirma que para a criança negra cabe visões de
mundo diferentes.
266 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

“Para a criança branca que deixa o meio familiar ela reencontra as mesmas
leis, os mesmos princípios, valores. Uma criança normal, crescida num
meio normal. Constatamos o inverso no caso do homem de cor. Uma criança
negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará
anormal ao menor contato com o mundo branco” (Fanon, pg. 129, 2008).

Pode se dizer a partir desta perspectiva que as formas como tem se


estruturado a lógica neoliberal tem contribuído para a proliferação de
um número relevante de pessoas marcadas pela cor da pele como
critério de anormalidade. Embora o racismo não seja uma experiência
exclusiva da contemporaneidade, e sim um fenômeno histórico, faz-se
amplamente necessário incluir nas pautas de discussão da saúde mental
os contextos de discriminações, visto que chamar atenção para as
desigualdades e hierarquias sociais, e também para as formas de luta e
resistência torna-se um instrumento de cuidado. A reforma
psiquiátrica busca reforçar a importância do lugar social para a loucura,
trata-se de um processo de intervenção no campo das relações da
sociedade com a loucura, através de práticas e paradigmas de cuidado
em liberdade, centrado no território da pessoa e possibilitando tanto
novas práticas, quanto incorporando práticas contra a exclusão, assim
como, estratégias de inclusão dos sujeitos (Amarante, 2021).
Quando pensamos na saúde de territórios marginalizados, toda a
organização em volta do funcionamento desses territórios é adoecida. O
que nos leva a pensar no racismo não como um recorte, mas sim um
eixo fundamental que contribui para o desenvolvimento da sociedade
atual. O termo marginalizado aqui nos remete a um lugar, o de uma
dimensão muito crucial das desigualdades étnico-raciais. De acordo
com Gonzalez, (apud Millôr, p.6, 2022) “sobre a peculiaridade do racismo
brasileiro ao dizer que no Brasil não existe racismo é porque o negro
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 267

conhece o seu lugar. [Sendo a expressão]” Saber o seu lugar” uma


expressão de naturalização das posições sociais, uma hierarquia
presumida que aloca indivíduos segundo os marcadores sociais de raça,
classe, gênero e território”.
A sociedade exige conformidade através da educação; enfatiza e
recompensa o desenvolvimento intelectual do indivíduo. Cada cultura
compõe e cria certos conceitos e imagens do ideal, ou formas que o
indivíduo deveria ser dentro de uma estrutura de referência (Stevens,
1977). A constituição do ‘SER”, torna-se assim um emaranhado de
território político, alvejado por regimes de poder, de caráter coercitivo
e proibitivo, sendo o poder produtor de modos de subjetivação.
De acordo com Souza (2021), no seu livro “Tornar-se Negro”, o
racismo ronda a existência na condição de um fantasma desde o seu
nascimento, ninguém o vê, mas ele existe; embora presente na memória
social e atualizado através do preconceito e da discriminação racial, ele é
sistematicamente negado, se constitui num problema social com efeitos
drásticos sobre a saúde da pessoa. Sugere-se, assim, que existe na posse
da linguagem que desvela esses fenômenos uma extraordinária potência.
Fanon, (2008) atribui uma importância fundamental à linguagem,
uma vez que falar é existir absolutamente e no caso da pessoa negra a
linguagem tem duas dimensões, uma com seu semelhante e a outra com
o indivíduo branco. Uma pessoa que possui linguagem possui, tem como
contrapartida, o mundo que lhe é implícito. Existe na posse da
linguagem uma extraordinária potência. Mas um povo colonizado que
nasceu no meio de um complexo de inferioridade quanto mais toma
posição da linguagem da nação civilizadora e assimila os valores
culturais, mais escapa da selva e se aproxima da metrópole
colonizadora. Quanto mais rejeitar sua (negritude) mais branco será.
268 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O branqueamento se apresenta como uma condição possível para


se fazer aceito, ainda que (correspondendo) ao estigma social de menos-
valia que é lançado sobre a condição da pessoa negra. “Esse fenômeno
tem um nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um
pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa
manter seus privilégios” (Bento, pg. 12, 2022). Assumir a identidade
negra e se mostrar autenticamente propõe uma retomada da cor da pele
como fonte legítima e originária de si mesmo, isso pode parecer
libertador, entretanto, não é tão simples, pois, paradoxalmente no
âmbito da apropriação de sua originalidade habita também a
experiência do luto dessa imagem fabricada.
Para ser aceito pela sociedade, a pessoa responde com um conjunto
de respostas fixas. Considerando o que presume ser a reação mais
apropriada. De modo a compactuar com os desejos da sociedade,
aprende a ignorar seus próprios sentimentos, desejos e emoções.
Paradoxalmente, quanto mais busca corresponder às exigências da
sociedade sem corresponder aos seus próprios ideais, age com um
conjunto limitado de respostas, assim menos eficiente ele consegue
funcionar (Stevens, 1977).
Em consonância com Gonzalez e Souza (2022; 2021), Almeida (2021),
afirma que a sociedade contemporânea não pode ser compreendida sem
os conceitos de raça e racismo. Um racismo estruturado por práticas que
acontecem num ciclo repetitivo, mas sempre reproduzindo novos espaços
de discriminação e com diferentes contornos, resquícios de uma herança
colonial que impacta negativamente a saúde mental. Partindo desta
concepção de uma estrutura racista, podemos afirmar que somos todos
racistas. E se quisermos pensar em práticas de cuidado anti-racista o
primeiro racismo que temos que lutar “é o próprio racismo”.
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 269

Para tal deve-se pensar a raça, o tornar-se, e ser negro


historicamente habitado num país destruído e reconstruído numa
perspectiva colonial, onde o racismo é estrutural, sendo que esta
estrutura já impõe uma direção de cuidado atravessada por uma
perspectiva colonizadora. Os profissionais da Gestalt-terapia atuam a
partir de uma abordagem fenomenológica, trabalhando com o que
aparece como sentido no campo da experimentação. Disto deriva o
critério estético e diagnóstico/intervenção da abordagem. Portanto, o
desdobramento do Self em seus diferentes momentos, a saber nas
formas de contato. O terapeuta e a pessoa atendida partem do id da
situação, co-criando a experiência e sua formação para uma nova figura,
sendo assim pode-se afirmar que a Gestalt-terapia se propõe a embasar
práticas de cuidado através de relações igualitárias (Robine, 2018).
A promoção de relações igualitárias no campo da saúde e da
psicoterapia exige uma reflexão aprofundada sobre o cuidado,
considerando a justiça frente as injustiças e desigualdades que a
população negra sofreu e sofre ao longo dos séculos. Nesse sentido,
conforme Bento (pg. 94, 2022), a proposta é desfazer um sistema que,
durante séculos, promoveu o privilégio de um grupo de pessoas em
detrimento de outro, não sendo uma tarefa para realizar da noite para o
dia, nem uma proposição sem dor, pois, envolverá trabalho intenso e
duradouro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo estrutural no Brasil se deu pela criação de um campo de


submissão dos afrodescendentes e indígenas a partir do regime
colonial, e as consequentes violações dos direitos desses povos. Tal
270 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

cenário compõe o viés necropolítico de ações indigenistas, cometendo o


total genocídio de alguns grupos populacionais, como também um
etnocídio, à medida que elimina física e culturalmente as tradições e os
povos que pertenciam ao território brasileiro ou sofreram migração
forçada, como os afrodescendentes (Alvarenga & Américo, 2019). A
fundação da república não subverteu esse processo de opressão dos
povos originários e afrodescendentes, ocorrendo a continuidade e o
agravamento das condições de saúde desses grupos territoriais que
permanecem sofrendo com os processos discriminatórios.
Esses apontamentos afirmam a responsabilidade dos profissionais
de saúde e Gestalt-terapeutas não só de considerar os atravessamentos
históricos, étnico-raciais, e as opressões, na prática clínica, mas
principalmente de atuar de forma a afirmar a importância da reparação
dos direitos que foram violados e que ameaçam cotidianamente a saúde
mental da população brasileira que é majoritariamente negra e
permanece na base da construção do país.
Tendo em vista que os conflitos de poder e os regimes de poder
saber continuaram e continuam nas chamadas nações pós-coloniais,
surge a necessidade de fazer uma releitura da colonização, numa
perspectiva decolonial das teorias que embasam as práticas em saúde e
os processos de cuidado, para que atuação clínica igualitária seja
possível, como propõe a Gestalt-terapia.
Os profissionais de saúde e 270estalt-terapeutas, portanto, podem
contribuir para a restituição da fala e da produção teórica e política de
sujeitos que até então foram vistos como destituídos da condição de fala
e da habilidade de produção de teorias e projetos políticos. Incentivar a
releitura de autores que foram silenciados pela academia não significa
somente se deparar com testemunhos sobre os efeitos da dominação
Valdicéia Miranda Machado Bouzada; Carolina Soraggi Frez; José Humberto Alves • 271

colonial, mas também deparar-se com o registro de múltiplas vozes,


ações, sonhos que lutam contra a marginalidade, a discriminação, a
desigualdade e buscam a transformação social (Bernadino-Costa e
Grosfoguel, 2016; Moraña, Dussel, Jáuregui, 2009: 10).
O foco no sofrimento psíquico da população negra não exclui a
importância de considerar também as consequências negativas da
colonização aos povos indígenas, que foram submetidos às práticas de
escravização, tortura e extermínio. Faz-se importante, portanto, que
ocorra posteriormente o desenvolvimento de reflexões e trabalhos
direcionados às especificidades do cuidado em saúde para a população
indígena.

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11
VOZES NEGRAS NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO
DE PSICOLOGIA: UMA EXPERIÊNCIA COSTURADA
COM A GESTALT-TERAPIA
Black voices in the Psychology undergraduate classroom: an experience
stitched together with Gestalt-therapy
Voces negras en el aula de grado de Psicología: una experiencia cosida con
la terapia Gestalt

Laura Cristina de Toledo Quadros


Cecilia de Aquino Barbosa
Viviane Gouvêa dos Santos
Angelica (Angel) dos Santos Siqueira
Barbara Gabriela Silva e Remane

ABRINDO O DEBATE, SITUANDO A ESCRITA

O texto que se desdobrará a seguir faz parte de uma experiência


acadêmica de formação em Psicologia numa Universidade pública do
Rio de Janeiro, pioneira nas ações afirmativas como a política de cotas
para estudantes de escolas públicas e para pessoas que se autodeclaram
negras (Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ], 2021), e
pioneira também em inserir a Gestalt-terapia (GT) como disciplina
curricular obrigatória. Nosso relato refere-se a novos cenários, mesmo
numa universidade como a nossa; e envolve uma professora branca,
psicóloga, 274estalt-terapeuta e docente com mais de 30 anos de
experiência; duas doutorandas em Psicologia Social, psicólogas negras,
com mais de 15 de anos de experiência sendo uma delas recém iniciada
na docência superior; uma mestranda negra, psicóloga ex-estagiária em
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 275

Gestalt-terapia, iniciando a prática clínica e uma graduanda em


Psicologia, jovem e negra.
A importância dessas marcas, ou seja, nosso gênero, nossa
identidade racial, formação e tempo de atuação, consiste justamente em
situar como essa experiência foi construída (Haraway, 1995), num
processo de ocupação da sala de aula por autoras negras, com destaque
para obra de Audre Lorde, Irmã outsider, escolhida para dialogar com a
abordagem gestáltica. O caráter de relevância dessa experiência está
ancorado no debate acerca da descolonização do pensamento e da
prática clínica em Psicologia. E tomando, mais especificamente, a
Gestalt-terapia, da qual teóricos e terapeutas se orgulham por ter
emergido, historicamente, no bojo da contracultura, é necessário e
urgente reafirmar suas bases outrora disruptivas, rever contradições,
questionar seus limites, e nos implicar na construção de ampliações de
suas fronteiras.
Compreendemos que, para tal, passos fundamentais precisam ser
dados na graduação, um espaço essencial de formação no qual precisa
ser discutida a racialização 1 da prática clínica em Psicologia.
Considerando que a formação de psicólogos está fundada na ideia de
uma humanidade universal, desconsiderando diversos marcadores na
dinâmica social e na constituição do psiquismo (Schucman, 2012), é
crucial construir debates a partir de vozes de autoras e autores que

1
A ideia de racialização é entendida como um processo de categorização social baseado em traços de
distintividade racial de grupos populacionais, que redunda na generalização de características que
descrevem essas populações de modo hierarquizado, quer pela suposta superioridade biológica de uma
(banca) sobre as demais, quer pela também suposta superioridade cultural. (Schucman, 2012) Este
fenômeno é determinante “para a produção de ações concretas" (como, por exemplo, práticas
discriminatórias e formação de identidades étnicas), "que demarcam um lugar de inclusão e exclusão”.
(Martins, 2009, p. 24).
276 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

emergiram na resistência e contra a exclusão racial. A partir (e junto)


dessas vozes, colocamos as nossas.
Em nosso relato de experiência apresentamos, então, alguns
conceitos da abordagem gestáltica, dialogando principalmente com a
escritora negra estadunidense Audre Lorde (2019). Por meio da
narrativa de Audre – fragmentos de sua trajetória de vida, suas
experiências e reflexões em uma sociedade racializada – buscamos
costurar as discussões desenvolvidas no decorrer da disciplina de
Gestalt-terapia, e situá-la neste contexto. Apresentamos, também,
neste relato de experiência, o eco em nossos corpos dessa leitura e da
escuta em sala de aula. Trazemos no texto marcas singulares e vozes
que não formam um uníssono, embora possam caminhar na mesma
direção.

ABORDAGEM GESTÁLTICA: PONTO DE PARTIDA

A Gestalt-terapia é uma abordagem contemporânea que nos


convoca a perceber, ver, sentir e tocar no aqui-e-agora, no contato vivo
com o mundo e com o outro. O contato se ampara na experiência
presente. A fenomenologia e o existencialismo são o fundo que
contornam a abordagem, apoiando-se também na relação dialógica, a
qual se destaca pela ênfase na relação e nas alternâncias entre dois
modos de existência, eu-tu eu-isso (Hycner, 1997).
A fronteira de contato, conceito central na GT, nos aponta para o
reconhecimento da proximidade e separação do eu e não eu, no campo
de fluidez, presença e inteireza. No contato algo acontece, que nos move,
nos toca a sentir, falar, afetar e realizar escolhas significativas. Erwing
e Miriam Polster (2001) nos dizem que o contato envolve o risco da perda
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 277

de identidade e separação, produz vivacidade e transformação. É com


essa primeira linha que iremos costurar esse texto: a presentificação e
experiência de contato vivida na sala de aula, os temas e diálogos que
surgiram no campo, envolvidos pelos afetos, entrelaçados e
entrecruzadas pela sensibilidade, singeleza e força do encontro com as
autoras. Assim, vozes negras na sala de aula emergem do contato, das
diferenciações, das delicadezas de ensinar e aprender, das incertezas e
dos contrastes.
A experiência do contato é crucial para que se consiga chegar à
awareness do vivido. Segundo Yontef (1998), é possível o contato nos
levar a awareness, mas não há awareness sem contato. A awareness é o
processo de conscientização que envolve a totalidade da experiência,
envolve o pensar, o sentir e o agir, convoca os nossos corpos e, a partir
desse dar-se conta de si e do mundo, promove a possibilidade de nos
movimentarmos, sairmos da fixidez. Tal aspecto torna-se muito
importante pois, se considerarmos a descolonização de nossas práticas,
é necessário que a racialização não seja meramente um conceito ou
objetivo, mas que abranja nossos fazeres, desloque a formação em
Psicologia eurocentrada. Precisamos nos manter aware de quem somos,
do lugar que ocupamos em uma sociedade racializada, o que podemos e
para quem fazemos Psicologia, e cuidar/atuar para não impor modelos
excludentes e, portanto, perpetuadores de violências.
Partindo, então, dos conceitos de contato e awareness, iremos
compor com a autora Audre Lorde, nossas narrativas, impressões e
afetações experienciadas na sala de aula como mulheres, pesquisadoras,
professoras e estudantes. A entrada no diálogo com autoras negras
aflora das discussões e percepções deste campo.
278 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ENSINAMENTOS SOBRE A RAIVA A PARTIR DE AUDRE

...embora eu duvide que sua formação a tenha preparado para explorar o


emaranhado de carência, medo, desconfiança, desespero e esperança que
opera entre nós, e certamente não com a profundidade necessária. Como
não somos nem homens nem brancas, pertencemos a um grupo de seres
humanos considerados indignos desse tipo de estudo (Lorde, 2019).

O trecho acima extraído da carta escrita por Lorde (2019) à Leora,


terapeuta negra com quem buscou investigar essa interação – entre
mulheres negras – nos traz pistas de que a autora tinha consciência de
que, para isso, precisariam “abrir caminho” em meio a suas
semelhanças e diferenças. Além disso, a autora compreende que esta
investigação seria dolorosa, como outros processos terapêuticos,
acrescida também de “armadilhas criadas pelo fato de serem “mulheres
negras em um mundo de homens brancos” (Lorde, 2019, p. 186).
Diversas questões sobre a interação entre terapeutas e clientes em
uma sociedade racializada (e cisheteropatriarcal) podem ser debatidas a
partir destes pequenos trechos da fala de Lorde. (2019, p.186).
Destacamos a formação de futuros, atuais e antigos terapeutas e,
também, o atravessamento de questões raciais que emergem na relação
terapeuta-cliente. Afinal, como a própria repara: não se estranha que
uma pessoa tenha preferências por terapeutas homens ou mulheres,
mas frequentemente indaga-se sobre a importância de serem negros ou
brancos.
Discutindo a noção de racismo cotidiano, Kilomba (2019) aponta
como os discursos ocidentais e as disciplinas da Psicologia e psicanálise
negligenciaram tanto a opressão racial quanto seus impactos
psicológicos sobre os oprimidos. E não está só. Neusa Santos Souza
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 279

(1983) e Abdias Nascimento (2009) já enunciavam a precariedade,


quando não a ausência, de estudos sobre a vida emocional da população
negra. E questionavam a universalidade da aplicação dos discursos
científicos europeus, desenvolvidos a partir e junto de povos brancos,
às realidades existenciais da população negra. O coro dessas vozes
puxados por intelectuais negros e negras vem se fortalecendo junto a
vários outros e outras intelectuais negras como, por exemplo, Arrelias
(2020), Martins (2009), Veiga (2019) e Faustino (2019) que se debruçam
sobre a produção e inclusão de estudos sobre relações raciais,
subjetividade e saúde mental da população negra nas discussões sobre
teorias e práticas psi.
A viabilidade de materialização do princípio fundamental do
Código de Ética Profissional do Psicólogo – segundo o qual os psicólogos
devem contribuir “para a eliminação de quaisquer formas de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”
(CFP, 2005, p.7), requer o reconhecimento do racismo como
determinante social de sofrimento psíquico, bem como dispositivos
políticos, clínicos e, também, pedagógicos comprometidos com a
“promoção de uma saúde mental em uma perspectiva antirracista”,
como afirma Faustino. (2019, p. 83)
Na busca dessa construção, situa-se a experiência vivida ao juntar
em diálogo Audre Lorde, a abordagem gestáltica e uma turma de
graduação em Psicologia na disciplina Gestalt-terapia. Os capítulos do
livro Irmã Outsider foram trabalhados em duas aulas e já estavam
escolhidos previamente pela professora: a) A transformação do silêncio
em linguagem e ação; b) Os usos da raiva: as mulheres reagem ao
racismo; c) Olho no olho: Mulheres negras, ódio e raiva. (Lorde, 2019)
280 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Como anuncia Bereano (2019, p.8) na introdução do livro: “a escrita


de Lorde é um impulso em direção à integridade”, chamando atenção
para o “desejo de inteireza” da autora, em sua necessidade de investigar,
explorar e integrar todas as partes de si. Tudo isso, com a perspectiva
de mobilizar a compreensão de si para a ação, para os movimentos na
vida, no mundo e em sua transformação.
Ao contar sua trajetória e convocar mulheres que a ouvem — ao
nos convocar — a transformar silêncio em linguagem e em ação, Lorde
(2019) expressa um compromisso com a ressignificação de uma
linguagem que foi criada para operar contra nós. Este texto — A
transformação do silêncio em linguagem e ação — foi dirigido a
mulheres, em 1977, no Lesbian and Literature Panel, em Chicago. Sendo o
poder, também uma questão de discurso, como nos pontua Mané (2020),
transformar o silêncio em linguagem e ação vai ao encontro dos meios
para se transformar e constituir tanto a vida social e política quanto a
própria vida.
Lorde (2019) narra sua trajetória de trabalho sobre si num mundo
de opressões racistas, sexistas e homofóbicas: “Tenho vivido com essa
raiva, ignorando-a, alimentando-me dela, aprendendo a usá-la antes
que ela relegue ao lixo minhas visões, durante boa parte da minha vida”.
(Lorde, 2019, p.140).
Abre ao público a investigação minuciosa que faz da construção de
sua afetividade, da produção e projeção de sentimentos como a raiva,
em suas relações com outras mulheres negras:

...ódio, esse desejo de morte que a sociedade manifesta contra nós desde o
momento em que nascemos mulheres negras. Na infância, absorvemos esse
ódio, somos atravessadas por ele, e, quase sempre, ainda vivemos nossas
vidas sem reconhecer o que ele é de fato e como ele funciona. Ele retumba
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 281

como ecos de crueldade e raiva nas relações que mantemos umas com as
outras. Pois cada uma de nós carrega o rosto que ele procura, e aprendemos
a nos sentir à vontade com a crueldade, pois temos sobrevivido tantas vezes
a ela em nossa existência. (Lorde, 2019, p.168).

E evidencia, também, projeções de mulheres brancas e seu trabalho


pessoal de atualização de suas relações com elas, no seio da luta contra
a opressão de gênero. Quebrando o silêncio de outrora, as convoca a
ouvir o conteúdo do que dizem as mulheres negras com a mesma
intensidade com que se defendem da raiva que, muitas vezes,
expressam. Dialogando com mulheres brancas, afirma que o
enfrentamento das opressões racistas e sexistas ocorre em um contexto
de ameaça e oposição, constituído desde as raízes do movimento
feminista de contradições que o feminismo negro expõe. E
didaticamente, diferencia o ódio racista – que tem finalidade de morte
e destruição – da raiva das mulheres negras, sofrimento e reação
enérgica que emerge no vivido da violência racista.
Lorde (2019) conta a suas ouvintes e leitores como vai
compreendendo os mecanismos e impactos do racismo sobre a sua
subjetividade, bem como a nocividade do ambiente de ódio racial que a
cerca. E no decorrer deste processo de vida, vai realizando ajustamentos
criativos, usando sua raiva e experiência no mundo para o diálogo,
mobilização e construção de pontes com outras e outros que vivem o
cotidiano de opressões raciais e sexistas e homofóbicas, em busca da
transformação desta realidade.

A imagem que os Estados Unidos fazem de mim se impôs como uma barreira
à percepção dos meus próprios poderes. Tive que examinar e derrubar essa
barreira, pedaço por pedaço, dolorosamente, para usar minhas energias de
modo pleno e criativo. (Lorde, 2019, p.169).
282 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Expõe sua luta na passagem de uma posição de retração e cisão


entre percepção e ação, à um posicionamento ativo em direção à
integridade, integração de si e transformação do mundo ao seu redor.
“Nada que eu aceite de mim mesma pode ser usado contra mim, para
me diminuir”. (Lorde, 2019, p.169).
E a partir de suas narrativas, que nos mobilizam em diferentes
dimensões, inserimos na discussão cotidiana do curso de Psicologia
uma autora negra que, ao mesmo tempo que possibilita o estudo de
conceitos da Gestalt-terapia, possibilita o tensionamento de seus
limites e possibilidades (bem como da própria Psicologia) diante da
questão racial.
Em seu ensaio “Olho no olho: mulheres negras, ódio e raiva”, Audre
Lorde localiza a sua raiva como uma força que invade seu corpo. Sua
escrita evidencia processos afetivos engendrados pelas/nas opressões e
a violência racial, contribuindo para o diálogos sobre a subjetividade
negra (da ordem do organismo) em uma sociedade racista (da ordem do
ambiente).

Minha raiva de mulher negra é um lago de lava que está no meu cerne, o
segredo que guardei de modo mais intenso. Eu sei o quanto da minha vida
como mulher de sentimentos poderosos está emaranhado nessa rede de
fúria. Ela é um fio elétrico entrelaçado em cada tapeçaria emocional em que
coloco o que há de essencial na minha vida – uma fonte quente e
borbulhante que pode entrar em erupção a qualquer momento, irrompendo
da minha consciência como fogo numa paisagem. Como adestrar essa raiva
com precisão, em vez de negá-la, tem sido uma das tarefas mais
importantes da minha vida. (Lorde, 2019, p. 168.).

O diálogo que Lorde propõe é um convite a pensar, repensar a


questionar a intensidade, o movimento das emoções, e a força poderosa
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 283

de sua raiva, vista nos olhos de outras mulheres negras e sua forma de
interagirem. O ódio, a raiva, a culpa, o medo e os silêncios são escritos
de Lorde pelas suas experiências, afetações enquanto criança, jovem e
mulher negra, que ampliaram gradativamente sua percepção acerca de
como o sistema racista forja as maneiras como as mulheres negras
entram em contato com seus afetos. Para Lorde (2019), as mulheres
negras recebem os olhares de ódio de maneira passiva e internalizam a
raiva e o ódio a partir de suas vivências de opressão e violências vividas
no cotidiano, e direcionam essas emoções a outras mulheres negras,
sendo essas relações, muitas vezes, atravessadas por culpa, silêncio e
medo.
Costurando a elaboração de Lorde à abordagem gestáltica,
entendemos a raiva como uma emoção que pode paralisar e criar
impasses quando não reconhecida e integrada. Fritz Perls (1977) ensina
que as emoções são a força vital, força motora vivida nos movimentos
do corpo, como a alegria, a raiva e a culpa. Ele aponta que emoções como
a raiva não devem ser vividas como incômodos, mas como força motora
mais importante para o nosso comportamento.
Nos rastros da proposição de Fritz, a agressividade e a raiva nos
retiram da passividade diante do que nos é imposto. Segundo ele (op.cit),
é preciso morder, mastigar e digerir, assimilando o que nos interessa
para não engolir, simplesmente. Ainda sobre esse tema, Kamilla
Valentim Silva (2020, p.33) nos traz uma importante constatação: “A
raiva irá cumprir a função não apenas de reação aos valores e lugares
sociais que diminuem nossa condição de sujeito, mas também de ponte
para construção de estratégias criativas onde a mesma não se torne
ódio”.
284 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Lorde trava essa batalha com o uso da raiva como reação ao


racismo, sua experiência atravessa as experiências de outras mulheres
negras, constituindo uma trama contada com muitas histórias. O
capítulo “A transformação do silêncio em linguagem e em ação” é uma
lição para nós, Gestalt-terapeutas. Considerando nossas ações em
psicoterapia, Laura Perls (2004) aponta o quanto a não expressão da
raiva é uma autointerrupção, um processo inacabado que também fica
impresso no corpo e constrange nossas ações. Laura ressalta que a raiva
neutraliza partes do corpo e as possibilidades expressivas que
promovem o contato, uma awareness da experiência, pois: “o trabalho
terapêutico na modalidade expressiva consiste em permitir a expressão
do comportamento e, ao mesmo tempo, assumir ocupar a parte do corpo
ausente (Perls, Laura, 2004, p.22, tradução livre). Portanto, Audre Lorde
traz valiosas contribuições que podem proporcionar uma ampliação da
compreensão e cuidado no processo terapêutico atravessado pelo
sofrimento racial.
Ao debater na disciplina aspectos da subjetividade da população
negra em uma sociedade racista, miramos nossas afirmações em ação e
corpo político no nosso cotidiano, nos nossos espaços de trabalho, na
sala de aula e na abordagem gestáltica que tomamos como escolha e
identificação.

Mulheres negras, particularmente aquelas que escolheram ser sujeitas


radicais, podem se mover em direção a transformação social que irá abarcar
a diversidades de nossas experiências e necessidades. Transmitindo
coletivamente nossos conhecimentos, nossos recursos, nossas habilidades
e nossa sabedoria de uma para a outra, criamos um novo local onde a
subjetividade negra radical pode ser nutrida e sustentada. (hooks, 2019, p.
127.)
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 285

ECOS DESSE DIÁLOGO NA EXPERIÊNCIA: RESULTADOS E REFLEXÕES


INDIVIDUAIS.

Neste momento do texto, relataremos, em primeira pessoa, nossas


impressões individuais e impactos desta experiência em nós.

ANGEL SIQUEIRA — MESTRANDA E TERAPEUTA INICIANTE

Tem uma imagem congelada na minha memória guardada em um


lugar muito especial, nela estamos eu, Cecilia Barbosa, Audre Lorde e
toda uma ancestralidade afro-latina americana sentadas todas juntas a
frente de uma turma de graduação em Psicologia, em uma das maiores
universidades públicas do Brasil, a UERJ, trazendo outras perspectivas,
outros olhares. São múltiplas as alegrias que me atravessam, a começar
pelo fato de ser eu uma mulher negra no mestrado — coisa impensável,
uma vez que nenhuma mulher da minha família conseguiu, antes de
mim, romper as barreiras de acesso ao Ensino Superior. Dessa vez não
estou em 2015, ano em que fui caloura, nessa mesma Universidade,
passando pela experiência de buscar outras irmãs outsiders entre as
colegas de classe, entre as professoras e entre as autoras estudadas em
sala de aula.
Agora, em 2022, sinto meu corpo negro ocupando esse outro lugar,
o estágio docente, político, transgressor e potente, visto que o centro
acadêmico, como diz Kilomba (2019, p.50) “é um espaço branco onde o
privilégio de fala tem sido negado para as pessoas negras”. Quando
iniciei minha graduação em Psicologia, muita coisa já vinha mudando.
Foram políticas afirmativas de reparação histórica que me
possibilitaram estar “insider” nesse espaço historicamente branco. Mas
286 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ainda assim a experiência de ver poucas irmãs negras como referência


de (re)conhecimento na literatura acadêmica era perturbador demais.
Quando leio Audre Lorde (2019), dizer que a desculpa
frequentemente dada para não haver inclusão da literatura de mulheres
negras é que as turmas não conseguem entender por ser experiências
muito diferentes, me pergunto porque devo ser eu, mulher negra, que
preciso me esforçar para compreender a experiência branca? Esta é uma
pergunta com resposta historicamente dada. Trazer autoras negras
para a sala de aula, como linhas tecendo sentidos plurais em Gestalt-
terapia, faz emergir outros modos de existências, que não passam pela
negritude sendo o/a outro/a do branco/a, produz um encontro que cria
condições para deslocamentos de ideias, e desenvolvimento de uma
educação antirracista.
Construímos esse diálogo com Lorde, nos reconhecendo,
afirmando nossa posição como sujeitas, como mulheres negras
presentes na universidade pública, pesquisadoras, escritoras e
narrando nossas experiências e vivências, contando nossas histórias
para outras mulheres e jovens negras que ocupam os espaços de sala de
aula.
Quando olho para turma à minha frente, ainda muito
embranquecida, mas vejo mulheres de cor, e vejo a minha Bárbara
Remane, que também compõe essa escrita, ouço cantos alegres dos reis
e rainhas de África que viajam espaço-tempo para festejar seus
descendentes em terras distantes. Percebo vivencialmente a potência de
(re)ocupar esses lugares que nos foram roubados, o lugar do saber.
Nesse sentido é que Grada Kilomba diz (2019, p.68): “Como escritoras/es
e acadêmicas/os negras/os, estamos transformando configurações de
conhecimento e poder à medida que nos movemos entre limites
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 287

opressivos, entre a margem e o centro”, o que dialoga muito com a


filósofa Angela Davis (2016) traz ao falar que quando uma mulher negra
se movimenta, ela também movimenta toda uma estrutura social.

BÁRBARA REMANE — GRADUANDA

“Eu, como mulher negra, escrevo com palavras que descrevem minha
realidade, não com palavras que descrevam a realidade de um erudito
branco, pois escrevemos de lugares diferentes. Escrevo da periferia, não do
centro. Esse é também o lugar de onde estou teorizando, pois coloco meu
discurso dentro da minha própria realidade.” (Kilomba, 2020, pp. 58-59).

Até encontrar as palavras de Kilomba (2019), Bento (2014), hooks


(2019) e tantas outras, e de fato compreendê-las, entrar na universidade
e conhecer o universo acadêmico me foi uma experiência agridoce. Meu
primeiro choque foi a linguagem utilizada para o ensino naquele espaço.
Vim de escolas tanto públicas, quanto como bolsista em particulares —
minha educação foi suficientemente boa para que eu conseguisse
ingressar no ensino superior, porém com grande parcela de estudos
autodidatas como estratégia e um suporte necessário; nada de cursinho
particular. Pensando nos conceitos de margem e centro de bell hooks
(como citado em Kilomba, 2019), me vejo como parte desse todo que é a
formação em Psicologia, porém não faço parte de seu corpo principal.
Havia definitivamente algo que eu não queria levar como natural
nesse aprendizado da Psicologia; eu queria buscar outros discursos e
uma epistemologia que “inclua o pessoal e o subjetivo como parte do
discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar
específicos, de uma história e uma realidade específicas — não há
discursos neutros”. (Kilomba, 2019, p.58).
288 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Como uma mulher negra estrangeira-nativa, que nasceu em África,


mais especificamente em Moçambique — um continente ensinado como
quase místico nas escolas brasileiras — um senso de não saber muito de
onde minha fala estaria vindo e até onde poderia ir sempre existiu; e foi
o discurso de intelectuais negras/os que me acolheu, como também diz
Kilomba(2019), para que houvesse o entendimento da existência de uma
mentalidade colonial que permanece por conta de um sistema
estruturalmente racista, vigente inclusive na instituição acadêmica.
Nobles (2009) diz que a Psicologia ocidental que é ensinada nas
instituições de ensino superior mundialmente, em grande medida,
alimenta e corrobora com o regime político imperialista e racista que a
inventou (CCHR, 2003 como citado por Nobles, 2009). Dessa forma,
precisei buscar maneiras de olhar para minha formação não mais
através das lentes que me estavam sendo dadas, mas sim de uma
perspectiva onde eu também seja sujeito e a subjetividade de uma
pessoa racializada em um mundo de funcionamento colonial e racista
seja levada em conta.
Desde que entrei na universidade e todo o caminho percorrido até
aqui me mostraram que eu não quero simplesmente “cuidar das
pessoas”. Assim como Bento (2014), eu quero que todas as pessoas
tenham o direito de serem pessoas em um mundo onde o branco é visto
como modelo universal de humanidade, alvo de inveja e desejo dos não-
brancos — estes últimos são encarados como não tão humanos.
O meu lugar como jovem mulher negra moçambicana-brasileira
que têm consciência da estrutura colonial patriarcal e neoliberal da
sociedade, e que está se formando em Psicologia, é para praticar o
cuidado como ato político. Em uma sociedade que é estruturada para
impedir as potencialidades dos construídos como não-sujeitos, assim
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 289

como Fanon (2008), vejo o problema da colonização como a intersecção


entre as condições objetivas e históricas, e a atitude do homem diante
dessas condições. Para que esse problema seja resolvido é necessário
tátil e afetivamente encarar o problema, entrar em contato.
A disciplina de Gestalt-terapia foi a que apareceu para mim como
a possibilidade de colocar em prática a criação em uma postura
terapêutica que viesse a partir dessa nova perspectiva de sujeito e não
de objeto, com o princípio da descolonização das mentes e imaginações,
como diz o pensamento de Malcom X.
A começar com a representação que tive ao ver mulheres negras no
lugar de docência pela primeira vez, com a prática da Gestalt-terapia
em sala de aula sendo pautada em um ser humano biopsicossocial-
cultural-histórico-cultural e algumas aulas da disciplina sendo
abordadas a partir de uma escritora mulher, negra e lésbica como Audre
Lorde; soube que a GT seria uma forma possível e sensível de lidar com
o problema da colonização em minha prática clínica. A abertura e o
diálogo que aconteceram durante essas aulas me trouxeram a
potencialidade de uma prática onde eu possa ser espelho, e como
algumas de minhas anotações dizem, onde: o encontro do meu afeto e
do seu afeto pode servir para o crescimento, por refletirmos um no
outro nossa história concreta e simbólica. Nesse contato, é necessário ir
de encontro com outro, mas sempre se trazendo de volta, se lembrando
de onde se parte. Lidando com a realidade nos termos da realidade,
criando novos papéis fora dessa ordem colonial — como bem escreve
Grada Kilomba (2019).
290 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

CECILIA BARBOSA — DOUTORANDA

A discussão a partir de Lorde foi realizada em dois dias de aula. No


primeiro dia, os textos ‘Os usos da raiva: mulheres reagem ao racismo’
e ‘A transformação do silêncio em linguagem e ação’ foram divididos
por seis grupos de alunos que, depois de um pequeno debate em
subgrupos, partilharam suas discussões com a turma. No segundo dia,
o texto ‘Olho no olho: mulheres negras, ódio e raiva’ foi debatido de
forma livre, em exposição dialogada na qual trechos e reflexões foram
trazidos pela professora, as pós-graduandas e algumas alunas. A
primeira estratégia de aula (debate coletivo, após discussões anteriores
em grupos menores) me pareceu acertada, produzindo na turma uma
conversa inquieta e múltipla em reflexões até o final da aula. No
segundo dia, a discussão livre contou com falas de duas alunas,
inúmeras partindo de Bárbara – que se soma a nós neste relato de
experiência – além das nossas falas (professora, mestranda e
doutoranda). Bárbara participou ativamente da atividade. Disse se ver
nas narrativas de Audre, assim como nós – pós-graduandas – tínhamos
conversado previa e intensamente sobre como nos reconhecemos nas
falas de Lorde. Mas, de modo geral, naquele segundo dia, poucas pessoas
participaram da discussão. Muitos olhares estavam atentos a quem
falava, algumas cabeças balançavam em sentido afirmativo. Contudo,
durante a maior parte do tempo muitos alunos permaneceram calados.
Saímos daquele segundo encontro ouvindo o silêncio majoritário e
refletindo sobre tudo o que tinha acontecido em sala. Ainda no corredor,
Laura (docente) fez uma observação: após anos de ação afirmativa para
ingresso na universidade, esta turma era composta por maioria branca.
Além da voz de Bárbara, o silêncio da maioria da turma marcou esta
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 291

experiência em minha memória. Falando sobre o poder da linguagem,


Lorde (2019) coloca a necessidade de que cada ouvinte/leitor analise e
reconheça seu papel na ressignificação de uma linguagem [e práticas,
acrescento].
Esta experiência agitou minhas questões. Entendendo a força dos
processos de racialização que emergem do projeto colonial e seguem na
contemporaneidade influenciando, tanto a nossa organização social
hierarquizada e desigual, quanto modos de perceber, agir e se relacionar
(Arrelias, 2020), vislumbro a dimensão do que envolve a construção de
uma Psicologia antirracista. É possível fomentar junto ao corpo discente
e docente a percepção de si e de seus lugares em grupos racializados, de
suas vinculações e inserções sociais? É possível fomentar, em espaços
da graduação (e acadêmicos em geral), a tomada de posicionamento
ético-político de auto responsabilização com a postura profissional
frente ao racismo? Como aponta Arrelias (2020), estes, entre outros
pontos, são cruciais para que teoria e prática possam acolher
existências negras e indígenas, excluídas das produções teóricas
clássicas de nosso campo. Foi uma experiência ímpar para mim. Um
passo em uma caminhada que nos antecede, atravessa, compõem e
ultrapassa, na qual nos engajamos.

LAURA QUADROS — DOCENTE E ORIENTADORA

Conheci o texto de Audre Lorde através de uma mestranda,


Angelica Mendonça, mulher lésbica, jovem e branca. O mergulho no
texto me remeteu de imediato a duas questões fundamentais: a raiva na
Gestalt-terapia e as questões raciais que precisavam ser trazidas para a
sala de aula na graduação. Há muito, o clamor de discentes negros para
292 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

enegrecer nossa bibliografia e desacomodar nossas aulas, chegava forte


até a mim. Lembrando que não basta escolher autora/es negro/as mas,
antes disso, escolher autora/es negro/as que discutam a negritude, que
nos convoquem enquanto docentes branca/os a reconfigurar práticas e
reflexões, principalmente na Psicologia, cujo foco maior é na pessoa e
nas relações entre pessoas. Trazer Audre Lorde para as aulas de Gestalt
foi, a meu ver, uma ousadia necessária. Enfrentar o silêncio apontado
no relato de Cecília é bem melhor do que manter silenciamentos de
vozes negras em espaços acadêmicos. Algo se deslocou ali, em mim, em
nós e também na/os discentes de graduação que conosco estiveram. Não
há como voltar atrás!

VIVIANE GOUVÊA — DOUTORANDA

Ao ler o ensaio de Audre Lorde, transformando o silêncio em


linguagem e em ação, me deparo com os meus silêncios e com os
silêncios de outras mulheres. A raiva, o medo e os silêncios também
foram emoções e afetos que compartilho com o relato de experiência de
Angel e Cecília na sala de aula. A leitura me fez entrar em contato com
minha memória na graduação. Não vivenciei debates e diálogos com
autores negros, especialmente, nas disciplinas voltadas para a clínica.
Levar o texto de Audre Lorde para debater na graduação de Psicologia e
dialogar com a Gestalt-terapia, é a possibilidade da visibilidade, como
diz Lorde, (2019), visibilidade dos julgamentos, da dor, do medo e dos
silêncios. Percebo que o debate na sala de aula, realçou essa visibilidade,
que afirma Lorde, (2019), mas também a visibilidade que nos dá força e
nos movimenta. Ao evocarmos o debate sobre o racismo e sexismo na
sala de aula e nossas impressões e experiências nessa escrita,
Laura Quadros; Cecilia Barbosa; Viviane Santos; Angelica (Angel) Siqueira; Barbara Remane • 293

repensamos nossas práticas e tentamos quebrar os silêncios, nossos e


dos espaços institucionais que ocupamos, a sala de aula. No diálogo com
Lorde, (2019) ela nos alerta do nosso compromisso com a linguagem e
do uso das palavras que são significativas. Pensar as opressões vividas
pelas mulheres negras, mulheres que expressam suas raivas e
hostilidades como reações das opressões/explorações vividas nas
relações, é afirmamos nossa posição e reconhecimento da importância
de seguirmos abrindo o caminho com nossas discussões na sala de aula
e na clínica com a abordagem gestáltica. Como Lorde, (2019), queremos
compartilhar o desafio e a coragem de transformar os silêncios em
linguagem e em ação. Alegria, comungo com essas mulheres nessa
escrita, Angel, Barbara, Cecilia e Laura. Meu olhar é de reconhecimento!

FINALIZANDO O RELATO, CONSTRUINDO NOVOS COMEÇOS

Escrevemos nossas experiências e reflexões convocadas pela


corajosa escrita de Audre Lorde, (2019), que a nosso ver, instiga e abre
fendas nos silêncios que estruturam espaços acadêmicos. Ressalta-se a
importância da ação se desenrolar numa sala de aula da graduação com
maioria de discentes cursando o sexto período do curso de Psicologia,
espaço de formação do pensamento crítico para o exercício profissional.
A aposta que fizemos foi de que a experiência narrada neste texto
possibilite aos que dela participaram um (re)conhecimento de
atravessamentos racistas (além de cisheteropatriarcais) na vida da
população negra. A abordagem a partir da autonarrativa de uma mulher
preta, viabiliza que pessoas negras possam pensar a si próprias “fora do
espelhamento branco” (Arrelias, 2020, p.129), como sujeitos e não como
dissidentes do “branco-modelo” (Arrelias, 2020, p.134). Como próximos
294 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

passos desdobrados desta experiência, é fundamental tensionar não


somente o olhar gestáltico possível sobre a questão racial, mas também
o apagamento desta temática no próprio campo. Além disso, faz-se
necessário aprofundar a discussão sobre conhecimentos e práticas de
descolonização do pensamento psi produzidos por autoras e autores
negros, de povos originários e não brancos, especialmente em Gestalt-
terapia, tornando figura as vicissitudes dos encontros entre pessoas
racializadas nas discussões e atividades em sala de aula. Cabe, ainda, de
forma permanente, o debate sobre a importância e limites do
letramento racial frente a estrutura e ideologia dominantes. Uma
formação ética entrecortada pela abordagem gestáltica é, sobretudo,
política pois assume seu posicionamento engajado na reflexão para a
ação. Buscamos somar a potência de cada uma de nós às vozes e corpos
negros e negras que atuam há tempos na luta antirracista (dentro e fora
da academia).

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Brasileira de Gestalt-terapia. (Org). Olhares da Gestalt-terapia para a situação de
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Silva, K V. Mulheres Negras e o contexto acadêmico: invisibilidade, raiva e criatividade


Trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro sob orientação da Prof. Dra Amana Mattos

Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a Psicologia: notas para uma Psicologia Preta.


Fractal: Revista de Psicologia [online], v. 31, n. esp., pp. 244-248. https://doi.org/
10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000 Epub 20 Dez 2019. ISSN 1984-0292.
https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000.
12
A GESTALT-TERAPIA NO DEBATE SOBRE A POLÍTICA
SOBRE DROGAS E RACISMO
Gestalt therapy in the debate on drug policy and racism
La terapia gestalt en el debate sobre política de drogas y racismo

Welison de Lima Sousa

INTRODUÇÃO

Este texto surge a partir do convite realizado pela associação


brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica para uma live no
Instagram ocorrida em 26 de Agosto de 2022 que tinha como tema: A
Gestalt-terapia em defesa da Psicologia Brasileira, sendo mediada por
Mônica Alvim e tinha como outra convidada a Gestalt-terapeuta
Mariana Cela, em comemoração ao dia da psicologia, que no dia
seguinte, 27 de Agosto, faria 60 anos de regulamentação da profissão no
Brasil, ocorrida nesta mesma data em 1962. Já na abertura a Mônica, fala
da necessidade de defender a Psicologia Brasileira, no sentido de
garantir o que foi conquistado e a avançarmos mais ainda.
Diante de tantos ataques a democracia, faz-se necessário que
tomemos posição diante de um governo genocida que viola e produz
retrocessos da garantia de direitos sociais. Enquanto que, é
fundamental afirmar o nosso fazer diante de uma psicologia (e uma
Gestalt-terapia) compromissada com os desafios atuais da sociedade, e
aqui, gostaria de discutir especificamente sobre a política de drogas, sua
relação com o racismo e a importância da retomada da redução de danos
como diretriz ética e política do cuidado diante de pessoas que fazem
298 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

uso de drogas. E o papel da Gestalt-terapia no enfrentamento ao


racismo a partir de uma aproximação teórica com a teoria do self.

PROIBICIONISMO: RACISMO E EXCLUSÃO SOCIAL

Atualmente, temos a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), por


meio de Decreto 9.761 (2019), e a Lei sobre drogas nº 13.840 (2019) como
aparato normativo e político sobre “drogas”, como orientadores e
regulamentadores das ações referente a “questão das drogas”. Diante
disso, Costa (2022) afirma que abordar sobre as políticas de drogas é nos
defrontarmos com as formas com que o Estado entende estas
substâncias e como nos relacionamos com elas, bem como as lógicas que
sustentam essas relações, suas consequências e múltiplas
determinações.
Nesta direção, é importante pensarmos como a PNAD está marcada
pelo paradigma proibicionista, que segundo Fiore (2012) seria uma
forma simplificada de classificar o modo como se dá a atuação do Estado
em relação a determinado conjunto de substancias, ao mesmo tempo
que modula o entendimento sobre as substâncias psicoativas
estabelecendo limites arbitrários para o uso de drogas legais/positivas
e ilegais/negativas. Esse mesmo autor defende que tal paradigma é
composto por duas premissas fundamentais, são elas: o entendimento
de que o uso dessas drogas é prescindível e intrinsecamente danoso,
portanto, não pode ser permitido; e que se desdobra na segunda
premissa, a de que a melhor forma de o Estado lidar com a questão é
perseguir e punir seus produtores, vendedores e consumidores.
De acordo com Alvarenga, Rosaneli, Ferreira e Lima (2021) no Brasil
isso de toma maior complexidade dada o histórico escravocrata e a
Welison de Lima Sousa • 299

marca do mito da democracia racial, que faz com que a problemática das
drogas acabem por cair no binômio racismo-pobreza, que caracterizam
e orientam seletivamente os processos de criminalização, prisão e
homicídios no Brasil, aparecendo de forma regular nas estatísticas
oficiais sobre a violência, revelando assim, os perfis dos sujeitos que são
alvos principais da repressão e controle do Estado, sendo eles: jovens e
adultos negros e pobres principalmente.
Nesta mesma direção, Macrae (2017) afirma que a guerra às drogas
é uma desculpa para a genocídio da juventude negra das periferias,
sendo esta uma questão histórica de tentativa de manutenção do
controle por parte das elites diante de grupos populacionais cada vez
mais excluídos. Da escravidão até os dias atuais a população negra sofre
um genocídio institucionalizado e sistemático como tão bem
denunciado por Abdias Nascimento (2016) e que podemos falar de uma
prática de extermínio direto em moldes necropolíticos como discutido
por Achille Mbembe (2014; 2018). Assim, podemos afirmar que o
problema não é a droga, mas, a pobreza e o racismo, lembrando que a
pobreza tem cor no Brasil como já dizia Sueli Carneiro (2011).
Isso acontece por um lado como exercício de controle social, e por
outro, como estratégia para a ampliação da economia neoliberal a partir
do exercício do poder e da violência (Passos & Souza, 2011). De modo que
ocorre o gerenciamento violento e repressivo da desigualdade e da
exclusão social, mascarado pelo foco dado ao combate às drogas,
justificado pela perspectiva mística com relação ao poder das drogas em
gerar dependência química e destruição dos usuários, ignorando
problemas sociais na análise do problema (Alvarenga, Rosaneli, Ferreira
& Lima, 2021).
300 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Deste modo, como percebemos, o proibicionismo acaba por


trazer/produzir diferentes desdobramentos para o debate sobre o uso
de substâncias, e assim, se conforma como uma “guerra as drogas” que
tem tido como consequência o aumento da violência, mortalidade,
encarceramento em massa e risco à saúde, principalmente da população
negra e pobre (Alvarenga, Rosaneli, Ferreira & Lima, 2021; Costa, 2022;
Fiore, 2012;). O debate então sobre a política de drogas no Brasil deve
partir da questão da desigualdade social e das condições concretas de
vida das pessoas, afinal, para entendermos a questão do uso de drogas,
devemos nos atentar sobre a substância, o contexto de uso e o próprio
sujeito, não cabendo limitar a questão somente na sua substância, como
tem sido feito. Devemos lembrar ainda, que o consumo de drogas,
sempre esteve presente na história da humanidade e assim
permanecerá (Ministério da Justiça, 2013).
Devemos mudar o foco centrado no paradigma da abstinência,
entendido como rede de instituições que definem a governabilidade das
políticas de drogas, exercendo de modo coercitivo a imposição da
abstinência como única alternativa para o cuidado às pessoas que usam
drogas, e que assim, direcionando uma questão de saúde para o campo
jurídico, psiquiátrico e religioso (Passos & Souza, 2011), e assim, o
usuário de drogas, é colocado ora como criminoso, devendo ser preso;
ora como doente, devendo ser internado e aprisionado em manicômios;
e ora como sujeito imoral, e nisso as comunidades terapêuticas tem
papel importante ao trazerem a moral religiosa como complementar
aos modelos anteriores.
Na PNAD temos como denunciado por Costa (2022), a reinstituição
da lógica manicomial e fomento a instituições privadas, por meio da
centralidade das Comunidades terapêuticas e repasse de verbas para
Welison de Lima Sousa • 301

estas, sendo assim, conformado um processo de mercantilização-


privatização e manicomialização do cuidado a pessoas que usam drogas.
Isso se articula ao que estamos acompanhando nacionalmente, com
retrocessos na política de saúde mental, seja pelas mudanças na rede de
atenção psicossocial, e/ou sucateamento de seus componentes, ao passo
que ocorre também o incentivo cada vez mais forte à internação
psiquiátrica e financiamento das Comunidades Terapêuticas, com suas
ações baseadas no proibicionismo e no punitivismo (Cruz, Gonçalves &
Delgado, 2020). Lembremos que são os alvos preferenciais desse
processo de aprisionamento e produção de morte, a população jovem,
negra e pobre. Cabe lembrar ainda que temos dados importantes sobre
o que as comunidades terapêuticas tem efetivamente produzido,
violação de direitos, como apresentado no relatório de inspeção
nacional em comunidades terapêuticas feito pelo Conselho Federal de
Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura (MNPCT), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do
Ministério Público Federal (2018).

REDUÇÃO DE DANOS: DIRETRIZ ÉTICA E POLÍTICA

A redução de danos teve seu início na Inglaterra em 1926 com o


Relatório Rolleston, que indicava a possibilidade de médicos
prescreverem legalmente opiáceos para os dependentes da mesma,
sendo este ato entendido como um modo de tratamento (Andrade,
2002). Já nos anos 80, as ações baseadas nesse princípio foram
sistematizadas em forma de programas, tendo a primeira iniciativa sido
realizada na Holanda, por meio de uma Associação de usuários de
drogas que preocupados com a disseminação das Hepatites Virais entre
302 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Usuários de Drogas Injetáveis, exigem do governo a disponibilização de


serviços que diminuíssem seus riscos de contaminação com vírus da
hepatite B, sendo posteriormente a preocupação com a AIDS/HIV dá
grande impulso à implementação de serviços e práticas de redução de
danos (Niel & Silveira, 2008). No Brasil, a cidade de Santos foi o berço da
Redução de Danos como estratégia de saúde pública no ano de 1989,
dado os altos índices de transmissão ode HIV e sua relação com o uso de
drogas injetáveis (Passos & Souza, 2011).
Ao longo do tempo a Redução de danos foi se tornando uma
estratégia de saúde alternativa às pautadas na lógica da abstinência,
incluindo a diversidade de demandas e necessidades dos usuários de
drogas, e também ampliando a oferta de cuidado em saúde para este
grupo. Tanto que em 2003 as ações de Redução de Danos deixam de ser
uma estratégia exclusiva dos programas de DST/AIDS para se tornarem
estratégia norteadora da Política de saúde mental e da política de
atenção integral a usuários de álcool e outras drogas (Passos & Souza,
2011). Esse processo traz repercussões e embates até os dias atuais,
quando, na atual PNAD, a redução de danos é retirada e é retomado a
abstinência como única diretriz de cuidado a pessoas que usam drogas.
A redução de danos pode ser tomada com uma forma de abordar
questões de saúde, uma perspectiva que visa proporcionar uma reflexão
ampliada sobre a possibilidade de diminuir danos relacionados à
alguma prática que cause ou possa causar danos, assim, valoriza e
promove ações de proteção, cuidado e autocuidado. A redução de danos
nos leva a pensar que no campo da saúde, que o importante não é a
extinção do sintoma, mas sim, o cuidado para com os sujeitos que
encontramos, diante de suas possibilidades e potencialidades de modo
Welison de Lima Sousa • 303

a contribuir para a abertura de novos canais de produção de vida (Trino,


Machado & Rodrigues, 2015).
A redução de danos conforme indica Andrade (2004) se configura a
partir de ações que se orientam por três princípios básicos: o
pragmatismo, a tolerância e a diversidade. O pragmatismo refere-se a
compreensão de que é imprescindível continuar a ofertar cuidados em
saúde na busca pela preservação da vida para todas as pessoas, inclusive
aqueles que não querem ou não conseguem parar o uso de drogas. Sendo
esta disponibilidade para a oferta de cuidado, uma postura que pode
evitar que estes sujeitos se exponham a situações de risco e viabilizar
aproximações entre sujeitos e instituições abrindo possibilidades de que
esses sujeitos se vinculem e busquem ajuda em outros momentos. Ela
também é tolerante, pois evita a compreensão moral sobre o uso de
drogas, evitando intervenções autoritárias e preconceituosas,
respeitando o direito dos usuários, e assim, não proibindo em momento
algum o uso de qualquer produto e/ou substância ainda que essas
possam lhe ser danosas. Afinal, não é a proibição que irá proteger o
sujeito, mas sim, a produção de vínculo e acolhimento. No que diz
respeito a diversidade, esta implica que são diferentes práticas que
compõem a Redução de danos, em função das múltiplas possibilidades
considerando usuários, recursos técnicos possíveis e disponíveis, as
diferentes drogas e padrões de uso que podem existir.
Isso tudo faz com que a redução de danos seja e se traduza como
uma diretriz ética, política e clínica (Passos & Souza, 2011) sendo
comprometida e definida como a ampliação de vida como diz Lancetti
(2008). Deste modo, atuar na lógica da redução de danos significa lidar
abertamente com limites, dores, prazeres, desejos, ambiguidades e
contradições que podem surgir a partir dos encontros e assim pode
304 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

produzir o que de acordo com Trino, Machado e Rodrigues (2015) é mais


precioso na clínica, a possibilidade de criar diferentes sentidos para a
vida. E isso só se torna possível, uma vez que a construção de estratégias
de redução de danos é feita por meio do protagonismo, afinal, desde o
início das ações de redução de danos, eram os usuários que produziam
as estratégias, assim, não é alguém de fora ou de cima que dita quais os
melhores caminhos, de modo que a redução de danos é antes de mais
nada um estímulo a autoanálise e consequentemente, uma possibilidade
de auto-organização como diz Siqueira (2016).
De acordo com Tedesco e Souza (2009) a Redução de danos nos
convida a repensar a clínica e suas práticas, já que questiona a
centralidade da droga, colocando-a como um elemento que faz parte de
um contexto geral sobre a qual a nossa prática de produção de saúde
deve incidir. Deste modo temos uma mudança de foco e objetivo. Se
trata então de não funcionar como um código fechado, seja no
entendimento do uso ou no tratamento decorrente para tal. Implica
numa abertura a pluralização de pontos de vista sobre o uso de drogas,
no qual o foco é o sujeito, dotado de uma história, de sentidos para o
uso, e que o faz num contexto que deve ser compreendido. Esse processo
se dá numa reflexão cuidadosa e num exercício continuo de criação da
prática clínica a fim de maximizar os efeitos potencializadores dos
encontros.
Como diz Lancetti (2008) a Redução de danos se transforma numa
clínica por criar desvio através da experimentação e produção de vida,
e é nisso que o reduzir se transforma em ampliar conexões, territórios,
redes de apoio, autonomia e protagonismo. Essa clínica, segundo
Tedesco e Souza (2009) liberta-se do engessamento proposto pelo
proibicionismo e aponta para o desafio de construir estratégias e
Welison de Lima Sousa • 305

cuidado a partir da especificidade de cada caso, desfocando o olhar


centrado na droga, e trazendo à cena o território existencial dos sujeitos
e abrindo possibilidades de substituição de protocolos de tratamento
pela experimentação, o que entendemos como ampliação das
possibilidades clínicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: APROXIMAÇÕES NO DEBATE SOBRE GESTALT-


TERAPIA E RACISMO

Ao pensamos numa interlocução com a Gestalt-terapia, temos de


partir da compreensão do self tido como sistema de contatos que integra
funções, sendo consciente e orienta, agride, manipula e sente
emocionalmente a adequação entre ambiente e organismo como afirma
Perls, Hefferline & Goodman (1997). O self é espontâneo e engajado na
situação, sendo um processo pessoal e característico da maneira própria
de reagir num dado momento e num dado campo, num ser-no-mundo,
variável conforme as situações. O self funciona em três modos: o id,
corresponde ao fundo de vividos, aos co-dados assimilados como fundo
habitual e dimensão afetiva relativa aos excitamentos; o ego, função
ativa, de escolha ou rejeição deliberada; e a função personalidade,
relativa a representação que o sujeito faz e si, sendo esta função que
assegura a integração de experiências e constrói o sentimento de
identidade (Ginger & Ginger, 1995).
O racismo impõe a população negra a aflição (misery), este
sofrimento não advém de uma neurose e nem é uma falência da função
id, tratando-se de uma falência de ordem da função personalidade
(Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Trata-se de pensar que a interdição
se dá em situação, no campo, em suas formações culturais e socio-
históricas. Deste modo, essas formações racistas se constituem como
306 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

imposição de sofrimento sobre a população negra, e que faz com que


essa população sofra diante de uma dimensão de introjetos normativos
que desqualificam elementos e símbolos a ela relacionados que vão
desde sua estética, como o seu cabelo até sua religião. Isso se torna mais
complexo ainda quando pensamos no uso de drogas por essa população,
tomando contornos mais graves dado a associação à criminalidade e
tantos outros estereótipos que são compartilhados e reforçados
cotidianamente pela mídia sensacionalista.
Deste modo, lembremos o que é falado por Schucman (2020) que
partindo da premissa que toda identidade é permeada e construída por
uma ideologia, afirma que reconhecer-se positivamente no mundo
torna-se uma tarefa quase impossível, dado o fato da sociedade produz
rótulos, estereótipos que excluem e discriminam a população negra, e
assim, impossibilitam construções identitárias que não as dadas,
fixadas e naturalizadas.
Fazendo assim com que a população negra e periférica em sua
maioria, sofra aflição do campo que reproduz socialmente formações
sociais que servem como forma de dominação e coerção, sendo nesse
caso a política sobre drogas de base proibicionista, mais uma
ferramenta de controle dos corpos e da própria identidade da população
negra que se mantém fixada em elementos pejorativos e
discriminatórios. Deste modo, a redução de danos se mostra uma aliada
no enfrentamento do racismo diante da questão do uso de drogas, sendo
uma estratégia, uma ética e uma metodologia capaz de dialogar com a
Gestalt-terapia, e daí produzir reconhecimento de alteridade e
intervenções a partir de um enfoque holístico, no qual o campo
organismo/ambiente sejam norteadores da produção de vida e cuidado
Welison de Lima Sousa • 307

a partir da garantia de direitos e do enfrentamento a todas as formas de


violência e produção de morte.
Como bem apontado por Lívia Arrelias (2020) o racismo é uma
gestalt aberta, e é fundamental que a Gestalt-terapia se responsabilize
e assuma ações concretas cotidianamente diante disso, possibilitando
suporte capaz de sustentar necessidades específicas de vida, e isso passa
diretamente por afrontar o silenciamento e a negação da questão racial
na/a partir da Gestalt-terapia em sua prática e teoria. Nesta direção,
como dito por Gisleide Sena (2021) é preciso dar ênfase em nossas
práticas e construções teóricas que evidenciem as particularidades das
pessoas negras que a máscara colonial interdita a experiência.
Essas discussões nos colocam a necessidade de fazer frente ao
racismo e combater repetições colonialescas como nos diz Gimbo (2021),
o que segundo a autora seria não cometer dois erros graves: subverter
o ideal ético da Gestalt-terapia; e permitir que o exercício da psicologia
seja conivente e reforçador de violências, de aflição diante da população
negra usuária de drogas.

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Welison de Lima Sousa • 309

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13
ELEMENTOS PARA UMA CLÍNICA ANTIRRACISTA:
REFLEXÕES PARA UM APROFUNDAMENTO
GESTÁLTICO
Rozangela da Piedade Leite

INTRODUÇÃO

Embora não seja novidade sobre o alto índice de violência racial no Brasil, o
último Atlas de violência de 2021, aponta que 77% da vítimas de homicídios,
em 2019, (somando pretos e pardos), De acordo com a classificação do IBGE,
chega a 29.2 por 100 mil habitante, comparado aos não negros ( soma de
amarelos, brancos e indígenas), que foi “de 11,2, para cada 100 mil, ou seja,
a taxa de violência letal conta pessoa negras foi de 162%. O mesmo ocorre
com as mulheres negras 66,0% do total assassinadas no Brasil, com 4,1 de
taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, comparada a 2,5 para mulheres
não negras”. (ATLAS, 2021, p.49 1).

Essa sondagem deflagram a realidade do campo existencial de


pessoas negras no Brasil. Abdias Nascimento (1978), ao discorrer sobre
o conceito de genocídio do negro brasileiro, apesar de uma palavra
terrível e chocante na visão ainda de um pensamento hipócrita e
conservador ainda existente na nossa sociedade. Na visão de
Nascimento (1985) precisamos parar de dá ênfase a desmistificação da
democracia, para começar a cuidar dos problemas reais.

1
Cerqueira, Daniel (2021) Atlas da Violência 2021 / Daniel Cerqueira et al., — São Paulo: FBSP, Inclui
Bibliografia. 1. Violência. 2. Segurança Pública. 3. Políticas Públicas. 4. Brasil.
Rozangela da Piedade Leite • 311

Bem como o genocídio apresentado acima provém da escravidão que é fruto


de um racismo mascarado que ocorre desde início do período colonial até
os dias de hoje, expôs o negro a um extermínio moral e cultural, deixando
uma sequela econômica e demográfica, juntamente com consequências
subjetivas.

O levantamento dos dados está vinculado a alguns conceitos da


Gestalt-terapia e de outros campos do conhecimento, tem sido
suficiente para ampliar um real afetamento de psicólogos para uma
clínica antirracista brasileira? É sabido, que tal realidade tem deixado
um agravamento subjetivo histórico, com o advento da pandêmica
causada pela COVID 19, as consequências sociais, econômicas ao se
tratar da população brasileira a mais afetada em todos os âmbitos é a
população preta.
Arrelias (2020) ao discorrer sobre o compromisso da clínica
gestáltica com o tema das relações raciais, expressa que é necessário um
movimento de transgressão ético-político do psicoterapeuta. Dado que,
as experiências racializadas dos corpos negros e indígenas, levadas para
setting terapêutico, apresentam diferentes manifestações e são
permeadas por questões sócio-históricas, políticas, ideológicas,
jurídicas e econômicas, por vezes difíceis de nomear sendo necessária,
portanto, a adoção de abordagens mais amplas.
A autora apresenta uma estrutura genocida racista que se
reatualiza constantemente, sendo um pano de fundo que muitas vezes
impede experiências de crescimento saudáveis, ao contrário forma-se
uma espécie de Gestalt que despontecializa e sequestra a vida da pessoa
negras (Arrelias, 2020, p.13).
312 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

TEORIA DE CAMPO: REALIDADE EXISTENCIAL DE PESSOAS NEGRAS

Em conformidade com os autores Perls, Hefferline & Goodman,


(1951), apud Yontef, (1998) a Teoria de Campo da Gestalt-terapia, pode
ser compreendida como um campo fenomenológico no qual é definido
pelo observador, mas também é só ele que pode dar sentido no que se
sente e no que se vive, uma vez que, essa poderá auxiliar, se
conscientizar o que é relevante assim como, o periférico de nossas
ações, sendo uma ferramenta teórica que oferece informações,
orientações e por fim as assimilações de novas ideias.
Nesse caso essa observadora é uma mulher preta, periférica, que
durante alguns anos na sua prática, estudos e pesquisas no tema das
relações raciais, se afigurando com o sofrimento das pessoas negras na
clínica. Nesse sentido, assimilando o quanto o racismo impacta
diretamente a saúde mental de pessoas pretas e o quanto esse campo
ainda tem sido pouco estudado, compreendido por Gestalt-terapeutas
brasileiros, por falta de formação adequada para cuidar dessa
população.
Diante do campo fenomenológico, só é possível apontar o aqui e
agora, considerando a realidade que, o campo nos oferece, e neste artigo
privilegio o campo das relações raciais, a partir de vivencia de pessoas
pretas e pelo fato de pessoas brancas não se veem como pessoas também
racializadas; como tem acontecido com frequência mas que seguem sem
se sentirem implicadas na sua própria identidade racial. Tal realidade
na psicologia e na própria Gestalt-terapia, no campo do saber e da
relação terapêutica, pode impedir um contato honesto com a diferença
nessa relação.
Rozangela da Piedade Leite • 313

A teoria de campo na Gestalt-terapia é uma abordagem que inclui


uma ampla temática com diferentes enfoques intelectuais, sociais,
culturais, políticos e sociológicos. Dada essa abrangência, por vezes, é
compreendida como uma teoria abstrata e incomum (Perls, Hefferline
& Goodman, 1951, apud Yontef, 1998). Consoante autores abordados
anteriormente, a Gestalt-terapia visa discutir a necessidade de uma
interação entre a maneira de pensar e de estar no mundo, ou seja, o
estado de consciência.
Moore (2008) problematiza que a diversidade e a diferença tem sido
o maior desafio no campo social a ser enfrentado na atualidade.
Segundo ele ainda existe um processo de introjeção sobre a racialização
pautada apenas na inferioridade, e não como o fenótipo, enquanto uma
representação da diferença que é visível a olho nu e a distância.
Para o autor a cor da pele surge como um primeiro elemento que
permite um grupo humano a se auto determinar na sua diferença a
qualquer outro grupo, e diferente do que produzimos com o racismo que
olha para essa diferença fenotípica como inferioridades e hierarquia.
Para Moore (2007), “a cor da pele deveria ser intendida como marcador
fundamental para as elaborações simbólicas e ressignificações que se
erigem em relação a outro fenótipo” (p.9).
Também Gonzales (1980), ao discutir sobre racismo e sexismo na
sociedade brasileira, apresenta dois elementos que precisam ser
considerados no campo existencial racializado no Brasil: a noção de
consciência e de memória. Em consonância com a autora, a consciência
no campo das relações raciais no Brasil, com a violência produzida pelo
racismo, toma o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da
alienação e esquecimento e até do saber fornecido pelo discurso
314 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ideológico do apagamento dessa diferença. Igualmente relata que essa


noção de consciência exclui a memória.
Diferentemente, a memória seria o lugar de um não-saber, que
conhece como um espécie de inscrição que restitui uma história que não
foi escrita, ou seja, o lugar da emergência da verdade, essa verdade que
o discurso ideológico insiste em dizer e estruturar como uma ficção,
aqui, no caso, sobre a negação do racismo na clínica, não seria também
negar a Função ID tão comum na clínica psicológica e gestáltica, quando
excluímos as experiências negras.
Para a Gestalt-terapia a consciência é importante no processo do
conhecimento do seu campo existencial, mas se ela também exclui a
memória cultural, social e corporificada e racializada a história que
sustenta a memória das pessoas negras, será que também não reproduz
uma noção de consciência ideológica dominante da rejeição que violenta
a diferença, que precisa ser desconstruída na luta antirracista,
sobretudo na clínica?
Dessa forma, na perspectiva da Gestalt-terapia, a teoria de campo
está construída sobre a importância da aquisição de consciência no
processo denominado awareness conforme proposta original de Kurt
Lewin. Nessa atividade, estão inseridas as crenças, visão de mundo,
preconceitos, julgamentos, sentimentos, emoções, interações sociais,
aspectos espirituais, percepções, e ações que foram construídas a partir
do modo particular de pensar. A teoria de campo, além de uma
metodologia que oferece orientação, avaliação e assimilação de ideias
durante o contato terapêutico, é também uma ferramenta que visa
orientar como a pessoa percebe seu caráter e sua visão filosófica de
mundo.
Rozangela da Piedade Leite • 315

Como fazer isso se não se considera a memória existencial das


pessoas pretas? Contrariando uma perspectiva mecanicista,
reducionista e linear, na visão da filosofia africana a memória é
construída de uma forma circular, pois o campo da pessoa se cria e é
influenciado pelo resto do campo numa relação processual, de acordo
com as condições desse campo e o interesse de quem acompanha, ou
observa o momento existencial (Yontef,1988).
Nobles (1970), psicólogo da Psicologia Africana, destaca que há um
erro epistemológico da Psicologia brasileira quando estuda as pessoas
pretas, uma vez que não dá para pensar o que ocorre na separação, não
dá para refletir sobre segregação, ou algum tipo de agregação,
revolução, ou até mesmo algum tipo de reforma epistêmica e de
intervenção na psicologia e na Gestalt-terapia, sem conhecer os estilos
de vida das pessoas pretas. (p.5).
O que Nobles (2008) explicita é que é impossível conhecer o campo
fenomenológico pautado apenas em vivência e experiência de
psicólogos brancos. Nesse sentido, não existe outro caminho para
conhecer o campo de vivência e de experiências das pessoas pretas, sem
conhecer suas tradições, modo e estilo de vida, e que com esse erro, as
pessoas pretas podem ser, muitas vezes, diagnosticadas pelo olhar das
vivências brancas como pessoas psicologicamente desajustas e fora dos
padrões ditos “normais”. Nesse sentido, pode-se dizer que existe ainda
na própria Gestalt-terapia uma leitura desconsiderando a diversidade
existencial de corpos negros, uma vez que suas construções teóricas,
apesar de uma ampla proposta epistemológica, política, social e
cultural, pautada nas interações sociais e preconceitos nele envolvidos,
continua reproduzindo desigualdades e introjeções sociais violentas.
316 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Em harmonia com Polster e Polster (2001), a única forma de


desfazer um introjeto no trabalho clínico é fazer o processo de
diferenciação entre “eu” e “eles”, novamente o senso do “eu”, da sua
diferença e individualidade, ou seja, a ampliação do seu senso de sua
experiência individual, incluindo o seu corpo racializado. Como que os
psicólogos Gestalt-terapeutas trabalham suas próprias introjeções
nessa relação terapêutica com pessoas negras?

QUILOMBO: AJUSTAMENTO CRIATIVO POLÍTICO E EMOCIONAL

Nascimento (1985), em seu texto “Conceito de Quilombo e a


resistência cultural negra”, relata que a primeira referência à palavra
Quilombo, nos documentos oficiais portugueses data de 1559, passando
por inúmeras formas e ressignificações, mas partir do século XIX recebe
o nome de instrumento ideológico contra formas de opressão, como
símbolo de resistência 2. É preciso que saibamos dessa desconstrução
que o significado do Quilombo tem em conformidade com o sentido
simbólico que ele carrega. Não dá para pensar uma clínica antirracista
sem considerar o conceito de Quilombo para além de um instrumento
político, mas também de reconhecimento da identidade brasileira para
uma afirmação étnica e nacional e cultural (Nascimento, 1985) e também
lugar de ressignificação subjetiva.
A estudiosa aponta que a organização do Quilombo, pode também
ser entendida como uma espécie de rejeição do que se chamava
nacionalidade racista brasileira, pois seria necessário corrigir uma

2
Para além de comemorar a data do dia 20 de novembro como lembrança do assassinato de Zumbi dos
Palmares contrapondo o dia 13 de maio que, até então, era visto como dádiva de cima para baixo, como
argumento que é importante a lembrança da capacidade de resistência dos antepassados, muito mais
positiva do que a abolição da escravatura. (Nascimento, 1985, p. 47).
Rozangela da Piedade Leite • 317

nacionalidade de ausência de cidadania plena para pessoas pretas, e


construir um movimento que resgatasse o passado e a sua verdadeira
história.
Alvim (2007), discutindo o lugar da corporeidade no campo da
Gestalt, pautada na visão de autores como Goldstein (2000), Perls,
Heffeline, e Goodman (1997), Merleau-Ponty(2000) e em conformidade
com Laura Perls (1992), “ ainda com poucos escritos sobre essa temática,
todos eles apontam pistas com bases no pensamento de como pode
acontecer uma reorganização do campo existencial da gestalterapia,
que é a capacidade humana e singular que o corpo procura para
restabelecer o seu equilíbrio. Na visão de Alvim (2007), a corporeidade
só pode ser compreendida na interação com o mundo, pautado na
história e na sociedade, que inclui afetar e ser afetado, ver e ser visto,
sentir e ser sentido, tocar e ser tocado” (p.4). Transcorreu com os negros
a criação dos Quilombos, na busca de espaços seguros para o seu
equilíbrio corporal e emocional, uma vez que seus corpos, sua
corporeidade de acordo com Alvim não foi considerada como corpo
ideal na nossa sociedade.
Isso posto, não podemos deixar de registrar como elemento para
pensar uma clínica antirracista, que foram as inúmeras formas de
construção não só de resistências como ajustamento criativo, mas
também a capacidade organismica de autorregulação e de organização
coletiva elaborada e construída pela população negra brasileira.
Conforme (Polster e Polster, 1973), para que ocorra uma auto
regulação eficaz, é necessário que a pessoa consiga descobrir suas
próprias fronteiras no ambiente, fronteiras que tanto podem ser tóxicas
ou nutritivas, ou seja, é preciso se arriscar a se expandir descobrir novas
fronteiras. Nesse sentido, a forma de organização de Quilombo foi uma
318 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

forma de ajustamento criativo que os negros encontraram para rejeitar


a toxicidade de dominação e opressão no seu corpo que os impedia de
crescer enquanto pessoa.
Os sistemas de dominação e submissão produzem distúrbios de
fronteira de contato. Para fazer um bom contato com o mundo, a pessoa
precisa arriscar a se expandir e descobrir suas próprias fronteiras. Faz
parte de uma autorregulação eficaz um contato em que a pessoa perceba
novidades no ambiente.

DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO: AUTORREGULARÃO ORGANISMICA

Perls (1988) considerou distúrbio de fronteira de contato toda vez


que a pessoa é incapaz de modificar suas técnicas de interação, seja ela
de forma cristalizada ou obsoleta. Essa forma de interagir consigo ou
com os outros e com o mundo a sua volta, de acordo com Perls(1988),
esse distúrbio de fronteira aqui de modo particular incluindo
experiências advinda do funcionamento do racismo brasileiro, afeta o
processo de conhecimento e autoconhecimento das pessoas pretas, as
impedindo muitas vezes de dar conta de construir seu próprio auto
suporte e sustentar o seu crescimento e sua maturidade individual,
familiar, comunitária e social.
As violências provocadas pelo racismo diário sofrido por pessoas
pretas no Brasil em todas as suas diferentes dimensões (relacional,
institucional, familiar, epistêmica e social) promovem interrupções
deste crescimento. Não dá para discutir uma clínica antirracista na
perspectiva da Gestalt-terapia sem que possamos quebrar a Gestalt da
violência racial do nosso país, sem essa quebra não há desconstrução do
pensamento.
Rozangela da Piedade Leite • 319

Pereira (2003), em seu livro “Encruzilhadas na luta contra o


racismo no Brasil” aponta que o paradigma da luta antirracista se insere
no que era considerado um problema do negro e que já foi
desconstruído, com pesquisas com base de metodologia de análise
quantitativas de Carlos Hasenbalg em 1980, apontando as desigualdades
raciais através de dados estatísticos. Como já era de se esperar, essas
interpretações tencionaram o campo de estudos das Ciências Políticas e
da Historiografia, constatando que a desigualdade não era apenas
resquício da escravidão e sim do racismo e da discriminação,
deflagrando a existência de uma questão racial. Na minha reflexão
também existe um tensionamento necessário no campo das relações
raciais na Psicologia que precisa ser enfrentado.
A Gestalt-terapia, se não repensar a sua prática, pode estar
conivente com uma retroalimentação de uma estrutura do racismo que
ceifa vidas. Não racializam o contato e as experiências tanto do
psicólogo e do consulente no relacionamento clínico para um clínica
mais humanizada, pode reforçar o enfrentamento dessa fronteira de
contato na luta antirracista sem que se quebrem as Gestaltem, para
enfrentar esse ciclo de dominação violenta, conforme Hooks (1998),
ainda existe uma autonegação que oculta a profundidade do auto ódio
contra as pessoas negras, que produz uma certa angústia interior, a dor
sem uma proposta de reconciliação (Hooks, 1998).
Na mesma linha de pensamento, Moore (2007) cogita que existe um
ódio peculiar dentro do sistema do racismo dirigido especificamente
para uma parte da humanidade direcionada e identificada a partir de
seu fenótipo, um ódio profundo, extenso e duradouro, cujas raízes se
perdem na memória, que beneficia o racista em todos os sentidos:
econômico, político, militar, social e psicológico (p, 285). Para o literato
320 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

o que difere o ódio racista dos outros sentimentos como amor, inveja,
generosidade, é que o ódio racista é focado apenas no fenótipo, para ele
deixa de ser uma questão de sentimento ou uma interação efetiva entre
os indivíduos, e lamentavelmente passa ser converter a um sistema
normativo de realidade social. (Moore, 2007 p. 283).
Conforme Hooks (1978), a descolonização, para se efetivar, deve ser
um movimento pensado tanto por parte do colonizador como do
colonizado. Para combater o pensamento colonizador, se faz necessário
que a descolonização seja uma forma de contestar toda forma de
dominação, seja ela linguística, discursiva ou ideológica. Para a autora,
o processo educacional de pessoas pretas faz parte do nosso campo de
atuação a partir de nossas percepções, instituições e representações
sociais, clinicas e pessoais. Conforme a pesquisadora a ambivalência é
pouco observada e considerada no processo de desconstrução do
pensamento na área educacional, consequentemente afetando o campo
emocional.
A Gestalt-terapia, de atitude fenomenológico-existencial, a pessoa
é um ser inerentemente relacional, dotado de singularidade, além de
concreto e corporificado, que pode se atualizar e se realizar ao longo de
sua existência. Deve ter liberdade para fazer escolhas, viver suas
angústias e inquietações, entendendo que ele é capaz de ser responsável
de transformar sua própria vida e destino, ou seja, ele é o interprete
mais fiel de si mesmo. Pode ser o centro de sua própria liberdade.
Por mais que hooks (2019) retrata diretamente o existencialismo,
mas sim traze uma boa contribuição para tal reflexão sobre auto
recuperação pautada na consciência crítica, com bases na tradição
budista. Como também a Gestalt-terapia aprecia essa tradição tem como
filosofia a temática da “iluminação da consciência ”, como um tipo de
Rozangela da Piedade Leite • 321

volta para casa- mundo da forma, da não forma e do desejo como não
sendo lares propriamente ditos, para ela são lugares que vamos por
muitas existências, alienados de nossa própria natureza.
Para entendermos sobre essa a “iluminação”, a consciência é a
maneira de voltar, e, essa volta é o esforço de recuperação de si, da sua
integridade, ou seja, de sua identidade humana como pessoas pretas.
Novamente a questão que se coloca no processo dessa confluência no
afetamento clinico do campo da Gestalt-terapia estamos trabalhando
com o “com” (juntos) ou com o “para”? Será que não estamos ainda
reproduzindo essa ambivalência como aponta Bell Hoolks (2019)?
Teixeira (2019), em seu livro “Inflexões éticas” também nos oferece
pistas como elementos do ponto de vista da ética que contribuem para
ampliação do campo das relações raciais para uma ética da clínica
antirracista. Conforme o autor citado acima especifica, Parafraseando
Teixeira (2019) “a retroalimentação da violência passa por uma
manutenção de uma moral restritiva que sustenta de modo significativo
uma oposição eu-versus outro, quando restringimos a existência dos
outros diferente. esse modelo de polaridade no desvio desses valores
moral que coloca o risco, o perigo e ausência, como caráter homicida de
nivelamento da percepção sobre o outro”. (p.21). É o que a psicologia vem
fazendo durante todos esses anos, visto que as teorias aprendidas no
espaço acadêmico ainda não contemplam as diversidades raciais e
étnicas de nossa população.
A proposta realizada pelo autor de perfaz em uma ética inflexiva
enquanto caminho possível desta desconstrução que é o que os
psicólogos negros vem fazendo na Psicologia, um caminho desviante de
ressignificação de sentidos, de resistência e de afirmação, já que não
existe espaço para nossa diferença, nossa memória, nossa história e
322 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nossa identidade. Para o autor, a ética inflexiva propõe o diálogo, cria,


de modo significativo, um ruído na suposta universalidade daqueles que
se requisitam como legítimos e legitimadores. O racismo é um sistema
que promove dominação e submissão, sentimentos de preconceitos de
pessoas negras para com as pessoas brancas não estão ligados à
dominação que dá poder para as pessoas negras para controlar a vida e
o bem estar das pessoas brancas. Existe uma diferença entre opressores
feridos e dor dos oprimidos (a exemplo de falas de racismo reverso não
cabe). Entendamos um pouco como isso ocorre no campo subjetivo.

PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO NEGRA

Para Akbar (1996), também psicólogo negro conhecido por sua


abordagem afro centrada, existe ainda um choque psicológico e social
que, embora decorridos mais de 100 anos, atravessa inúmeras gerações
que carregam as cicatrizes das experiências da escravização no seu
campo vivencial, simplesmente por serem pessoas negras. De acordo
com o autor, tanto os psicólogos quanto os sociólogos persistem em
falhas na compreensão dos problemas de ordem da saúde mental que
têm suas raízes na escravização. Assim como relata o quão eficaz foi o
sistema de conservação durante o período escravocrata, no qual os
senhores mantinham um sistemático processo de orgulho e
inferioridade na mente das pessoas negras, como estratégia para
manter o poder.
O autor exemplifica situações humilhantes em público a que as
pessoas negras eram submetidas, como andar sem roupa desfilando
pelas ruas, como se fossem animais; a própria separação de crianças de
seus pais para que sem o amor pelos pais, pudessem desenvolver o
Rozangela da Piedade Leite • 323

respeito pelo seu senhor; os próprios castigos sem higiene corporal


durante dias para desenvolver nesses corpos uma sensação de
desamparo e a perder o respeito próprio; a perda das tradições
culturais, rituais religiosos, que faziam parte de sua cultura e vida
familiar; perder o próprio nome, ou seja, a sua identidade (Akbar, 1996,
p.16). Pode-se pensar que as estratégias de destruir o senso de
corporeidade das pessoas negras, através das formas punitivas da
negação da sua humanidade, estritamente pelo fenótipo racial, apontam
como os castigos contemporâneos só foram sofisticados diante das
violências atualizadas, como apontam os dados do Atlas de 2021.
Tais diferentes estratégias de dominação introjetaram, de modo
eficiente, o isolamento, o medo, o desamparo, sentimentos que foram
repassados às gerações descendentes de pessoas escravizadas.
Importante mencionar que, em meus atendimentos clínicos, observo
recorrentemente narrativas que traduzem tais sentimentos.
Para Akbar (1996), também psicólogo negro conhecido por sua
abordagem afro centrada, existe ainda um choque psicológico e social
que, embora decorridos mais de 100 anos, atravessa inúmeras gerações
que carregam as cicatrizes das experiências da escravização no seu
campo vivencial, simplesmente por serem pessoas negras. De acordo
com o autor, tanto os psicólogos quanto os sociólogos persistem em
falhas na compreensão dos problemas de ordem da saúde mental que
têm suas raízes na escravização. os sentimentos de inferioridade
estabelecem relação com as altas taxas de homicídios dos afro-
americanos, mas que também nos ajudam na análise da realidade
brasileira. Assim, no campo da fabricação de inferioridade do sistema
racista, aos negros foi destinado o lugar de consumidores e
trabalhadores em detrimento aos de fabricantes, planejadores e
324 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

gerentes e, assim, isso se relaciona com a inferioridade dos sentidos que


deveriam ser conservados (AKBAR,1996).
Na minha visão não é possível construir uma clínica antirracista
sem compreender como funciona o Self de pessoas negras, na tentativa
de considerar, mesmo que ancestralmente, o campo da escravidão para
compreender o campo atual e os impactos subjetivos e objetivos
decorrentes daquele período, e que ainda continuam fortemente
presentes ainda hoje impactando a saúde de pessoas negras.
Yontef (1998), ao se referir à teoria de campo, utiliza a palavra
desordem no self para demonstrar o que se observa na pessoa que não
consegue fazer uma integração harmoniosa se encontra em estado de
desordem. Para ele, a desordem percebida nessas pessoas se apresenta
com frequência em experiências fragmentadas com fixação e rigidez de
imagens negativas sobre si mesmas, o que tornaria a autoestima delas
alvos facilmente destrutíveis.
De acordo com Fanon (2008), ocorre uma interdição colonial que
impede aos negros lidarem, de forma positiva, com os seus conflitos
existenciais e humanos, mesmo com todas as contradições e dilemas
socio psíquicos imbricados nessa dinâmica. Leitor da dialética de Hegel,
sobretudo, no período em que escreveu Pele Negra, Máscaras Brancas,
Fanon (2008), ressalta que a opressão promovida pela racialização
proporciona impossibilidades de vivência de conflitos existenciais que
nos fazem humanos de forma natural.

Outrossim, o processo de racialização incorreu na colonização e que


também se percebe na sociedade contemporânea deixou como herança a
problemática da alienação e da alegoria do senhor e do escravo, ou seja, não
foram só contradições econômicas e sociais, não obstante uma
problematização das dimensões objetivas e intersubjetivas entre o Eu e o
Rozangela da Piedade Leite • 325

Outro que são importantes e necessárias na expansão da liberdade do


espírito em direção ao autoconhecimento de si. (Fanon, p.180)

Nobles (1970) aponta que não é possível fazer análise das pessoas
pretas pautada no modelo e ideal de comportamento de pessoas
brancas, bem como destaca que muitos psicólogos e cientistas sociais
descrevem as pessoas negras como psicologicamente desajustadas
quando estas não respondem aos parâmetros estabelecidos pelo modelo
e ideal branco. Contudo, para Akbar (1996) em leitura, nomeada de
sanidade democrática, desconsidera-se a competência/incompetência
mental de quem escravizou, oprimiu e hostilizou, aspectos que se
percebem ainda hoje e que não são considerados nas produções de
estudiosos brancos no campo existencial do contato com pessoas negras.
Acerca da elaboração de teorias pautadas nas polaridades
negativas da realidade de crianças e jovens negros, Nobles (1970)
desenvolveu uma crítica aos psicólogos brancos que negligenciam o self
desse campo de análise. O autor destacou que desde cedo, por terem a
consciência de que vivem em ambientes hostis, crianças e jovens negros
desenvolvem certas capacidades e criatividades psicológicas, tais como
a capacidade de lidar com a sua realidades, o que seria na Gestalt-
terapia um ajustamento criativo, ainda pouco considerado por
professores, assistentes sociais, diretores de escola, psicólogos, ou seja,
a falta de compreensão dessa realidade opera uma distorção tendo como
base no modelo existencial branco, e essas estratégias específicas como
auto e hétero suporte para lidarem com todos os tipos de violências do
campo racista não são consideradas no campo de análise de suas
subjetividades.
326 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Em concordância com a Psicologia Africana, a visão patológica de


saúde mental ocidental é vista como um mito, uma vez que descreve um
comportamento específico por si só. Na perspectiva da Psicologia
Africana o que ocorre são distúrbios no corpo e na mente, o qual
nomeia-se de desordem, que sinalizam o perigo para a vida e não
necessariamente uma saúde mental. Essa visão sobre saúde e ausência
de saúde, apontada por Na’im Akbar (1996) nos ajuda a ter uma visão de
pessoa muito mais ampliada e que se contrapõe a uma ordem específica
a ser seguida no roteiro da vida. Diferente do que apontam os autores
da Gestalt-terapia, para os autores da Psicologia Africana, a desordem
pode ser percebida por quatro classificações de distúrbios, descritas por
ele em pessoas negras.
A primeira desordem, ocorre o que ele considera de Ego alienando,
quando a pessoa negra se comporta de maneira contrária a sua natureza
e sua sobrevivência. Nesse processo, para Fanon, muitas vezes, na
tentativa de serem aceitas, as pessoas negras negam sua realidade social
de forma crítica, agindo como se nunca tivesse ocorrido escravidão no
Brasil [...]. Na segunda desordem, existe o que Na’im Akbar denomina
como uma identificação com o opressor, o que ele chama de desordem
contra si mesmo, ou seja, a pessoa produz um tipo de hostilidade e até
negativismo em relação ao seu próprio grupo de origem, o que ele
denomina de mentalidade colonizada.
Além do mais na terceira desordem, existe o que o autor denomina
de distúrbios autodestrutivos, como atitudes para aliviar a dor, mas que
são autodestrutivos, como: uso abusivo de drogas e álcool, homicídio e
crimes contra os próprios negros (violência de próprios policias negros
para com pessoas negras, como um espécie de auto identidade
alienígena [...]. A quarta e última desordem orgânica, seria daqueles
Rozangela da Piedade Leite • 327

grupos que apresentam mau funcionamento fisiológico, como


distúrbios cerebrais orgânicos severos e mental defeituosos, como
esquizofrenia, diversas delas causas por influências social e mental da
proporia sociedade (AKBAR, 1996, p.32-39).
A visão apontada por Fanon (2008) e Akbar (1996) relacionada a
desordem do organismo converge com o foco fenomenológico. De
acordo com a Gestalt-terapia, como afirma Ribeiro (1985), é no campo
na experiência “aqui e agora” que a awareness acontece no campo
relacional, ou seja, na experiência concreta que é a-histórica. Na visão
de Yontef (1998), para que ocorra de fato a mudança no processo
terapêutico é preciso identificar a realidade, permitir o aprendizado,
para que de fato o crescimento aconteça.
Desse modo, no contexto de uma proposta de uma clínica
antirracista, não é possível fazer uma leitura do self de pessoas negras,
sem considerar a complexidade dessa desordem do campo vivencial.
Portanto, é necessário compreender que a análise dessa realidade exige
uma concepção de self ampliado. O conceito de self na Psicologia
Africana é polivalente da “unidade do ser”, uma vez que o homem não é
separado dos outros elementos do universo, pois é unificado e integrado
a ele em uma relação de interdependência a partir de duas ordens
fundamentais.
Como também a primeira, da qual faz parte o ritmo natural da
natureza, ou que está na natureza. A segunda compreende a concepção
de universo enquanto um “pnematicismo vitalista”, ao considerar que
existe uma solidariedade vital de sobrevivência na relação, ou seja,
valida-se a experiência pessoal de auto concepção do ambiente
(Nobles,1997). Portanto, o que emerge no paradigma africano é um
conceito estendido de self que não se baseia apenas no pensamento
328 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

racional de um indivíduo, mas no relacionamento de uma pessoa com o


Criador, os ancestrais e outros seres humanos (Nobles, 1986).
Nesse sentido, essa concepção contradiz a visão de indivíduo e de
individualidade ainda muito utilizada pela clínica do ocidente. Na
concepção da Filosofia Africana, é somente na relação com o outro e com
o coletivo que se constrói o processo de responsabilidade corporativa.
Na Filosofia Africana, a definição de self evolui para uma definição de
“nós” e não de “eu”. Contrariando uma visão reducionista e
individualista da Psicologia ocidental, a Psicologia Africana, expressa
no conceito “Eu Sou porque Somos”, é uma compreensão do self estendido,
pois entende que a noção de “nós” em oposição ao “eu” é uma visão
ontológica do “eu” em que a diferença se mostra em relação à visão
ocidental na consideração dos “níveis da realidade”, o material (nível
inferior) e o espiritual (nível superior) (W. Nobles, 1986) . Portanto, não
existe separação na unicidade do ser, já que ele faz parte e é integrante
indispensável na relação com o universo. Isso quer dizer, estar inserido
no mundo e fazer parte do seu tempo social antes, depois e no futuro
histórico no sentido coletivo da história. (Nobles, 1986).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que haja uma abordagem expressiva sobre o tema de


relações raciais na Psicologia e na Gestalt-terapia, assumida por
psicólogos negros, ainda é um “gueto conceitual” enquanto estudo
epistêmico na formação dos psicólogos e Gestalt-terapeutas brasileiros.
Contrariando uma visão reducionista e individualista da psicologia
ocidental, esse artigo teve por objetivo apresentar uma breve reflexão
de alguns elementos e apontamentos que nos ajudam a pensar uma
Rozangela da Piedade Leite • 329

Gestalt-terapia e uma psicologia brasileira antirracista. O caminho


percorrido ao longo do texto foi oferecer algumas reflexões tanto no
ponto vista da Gestalt-terapia, como de outro intelectuais negros, ainda
pouco conhecidos, estudados e aprofundados na formação do psicólogo
brasileiros.

A clínica antirracista deve contribuir para que pessoas pretas possam criar
laços de intimidade com sua historicidade a fim assumir e conhecer a sua
cultura tradição ampliando a sua capacidade de amar sua negritude. Como
apontou Santos (1983) apud Fanon, esses processos teria como consequência
o ato de descolonizar a mente.

Ao sem pensar como conceito, a ética é o lugar por excelência da


reflexão dos costumes e valores. É nessa ética da diferença que devemos
ser impulsionados a ressignificar atos, valores, vontade e atitudes na
relação terapêutica. Por outro lado, a ética no campo das relações raciais
deve-se operar sobre os valores morais, dando clareza não só racional,
mas sim afetiva. “Deixar-nos afetar por aqui que nos escapa e, ao mesmo
tempo, lançar-nos na compreensão e articulação de uma outra
economia dos valores”. Pensar uma clínica antirracista, seria pensar em
ações concretas, para além de boas intenções ainda conservadora como
específica Moore (2007):
Não dá para pensar uma clínica antirracista sem propor uma
metodologia que reconheça as especificidades da contribuição africana
e de suas manifestações, sem que isso implique em menosprezo pelo
ocidente ou pelo Oriente.
A psicologia brasileira urgentemente precisa colocar no mesmo
plano de valorização estético-moral, intelectual e afetivo todas as
características fenotípicas que compõem a sociedade brasileira.
330 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

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Gestalt-terapia [recurso eletrônico]: novas vozes, outros olhares / Organizadores
Lázaro Castro Silva Nascimento, Kamilly Souza do Vale. – Ponta Grossa, PR: Atena,
2020.

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FBSP, Inclui Bibliografia. 1. Violência. 2. Segurança Pública. 3. Políticas Públicas. 4.
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encontro Anual da Associação Brasileira de Pós Graduação e Pesquisa nas Ciências
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Rozangela da Piedade Leite • 331

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Augusto. São Paulo; Sumus.

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Yontef, G. M. (1998) Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo,


S: Summus.
SEÇÃO 3
Section 3
Sección 3

TRANSGRESSÕES GESTÁLTICAS: DESAFIANDO


AS NORMAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE
Gestalt Transgressions: Challenging the gender and sexuality norms.
Transgresiones Gestalt: Cuestionando las normas de género y sexualidad.
14
PARA QUEM ME ABRO NA CLÍNICA GESTÁLTICA? UM
ENCONTRO COM CORPOS LGBTQIAP+
Who do I open up to at the gestalt clinic? An encounter with LGBTQIA+
bodies
¿Con quién me abro en la clínica gestalt? Un encuentro con cuerpos
LGBTQIAP+

Paulo Barros

Agora falo a vocês, crianças da bala, e digo:


A vida é maravilhosa, estamos esperando por vocês,
nós, os amantes do peito perfurado.
Vocês não estão sós.
Paul B. Preciado (2020, p.108)

INTRODUÇÃO: PREPARATIVOS PRÉ-SIMPÓSIO, UM POUCO DO FUNDO

Parte deste texto nasceu de uma apresentação realizada no


Primeiro Simpósio da Associação Brasileira de Gestalt-terapia, ocorrido
em Junho de 2022. Ao receber o convite para participar deste evento,
senti-me fortemente lisonjeade e ao mesmo tempo assustade. Desejo e
medo me acompanharam durante vários dias, sendo dissipados depois
ter ido para a experimentação, ousando me apresentar. Mas, dias antes
de minha fala, fui atravessade por uma situação que teve forte impacto
para o preparo de minha apresentação. Presenciei falas transfóbicas,
classistas e racistas de uma pessoa da Gestalt-terapia direcionadas a
outra pela qual nutro forte carinho. Entrei em um turbilhão de
pensamentos e sentimentos, fui sendo tomade por um pessimismo,
336 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

chegando a questionar se realmente valeria a pena seguir debatendo e


tensionando as temáticas de gênero e sexualidade. É extremamente
cansativo e dolorido ter que enfrentar situações como esta!
Após o ocorrido, enquanto chorava, enviei mensagem para duas
grandes amigas que a Gestalt-terapia me deu, Leda Gimbo e Tatiana
Campbell, ambas prontamente me acolheram. Nessas horas, reafirmo a
importância de ter uma rede de apoio, pessoas que estão contigo,
lutando ao seu lado, amantes do peito perfurado (Preciado, 2020). Desses
diálogos e abraços virtuais, emergi reenergizade e pronte para seguir
afrontando as normas e realizando as denúncias possíveis. Quem iria
ganhar se eu desistisse de seguir nesse debate e deixasse de me
apresentar no simpósio? Quem iria ganhar se eu deixasse que a tristeza
e a desesperança roubassem a minha voz? Quem iria se fortalecer caso
eu escolhesse abandonar os estudos de gênero e sexualidade?
Já desisti de muitas coisas que me eram genuínas para satisfazer
os delírios e alucinações das normas cis, hétero, branca, cristã, colonial.
Meu corpo enrijeceu ao longo dos anos e grande parte do meu sentir foi
dessensibilizado, aprendi a desconfiar e a ter nojo de necessidades
legítimas, tornando-me em diversos níveis, fóbique ao diferente.
Aprendi a me tratar desta forma a partir de inúmeras relações com
pessoas que me disseram menino, homem, cisgênero, hétero, cristão.
Pessoas que disseram que o inferno me esperava caso não me portasse
como um homem de verdade. Pessoas que me puniram por ser uma
criança que não correspondia às expectativas de gênero e sexualidade,
sendo percebide e tratade como uma criança monstro, por gostar de
rosa, bonecas, ser delicado e odiar futebol. Gostos estes nomeados pelas
normas de gênero como femininos e que segundo estas, só podem e
devem ser sentidos e vivenciados por meninas cis.
Paulo Barros • 337

Aos poucos, formas neuróticas de me relacionar comigo e com as


outras(os)(es) foram se instalando. Hábitos inibitórios, pacificação
prematura do conflito e terceirização da responsabilidade são
essenciais na construção de corpos na norma, estimulando repetição,
estereotipia, fixação, conservação, rigidez e dessensibilização. Logo,
como podemos olhar e compreender os fenômenos gênero e sexualidade
em uma perspectiva gestáltica?
Penso e sinto que ambos emergem do encontro entre
organismo/ambiente, num campo em que diversas tecnologias de
regulação e normatização diluem-se entre os pólos organismo e
ambiente. Emergem tanto de forma material quanto imaterial, a partir
das tecnorrelações estabelecidas ao longo da vida. Gênero e sexualidade
normatizadas são construídas através da evitação do contato com a
novidade, tendo destaque os hábitos inibitórios que irão conter o
excitamento, interferindo na awareness, na espontaneidade, na
agressividade, na criatividade. Ambos se perpetuam por fidelidades
desastrosas e controle de si e do outro. Apego a roteiros, a histórias que
já não nos fazem mais sentido. Gênero e sexualidade são construídos
através do apagamento de horizontes de futuro não normativos. Gênero
e sexualidade normativas em Gestalt-terapia, são fuga da realidade e
autoconquista. Meu corpo tomade pelo binarismo de gênero, fui partide
em dois e forçade a escolher uma dessas partes, como nos diz Preciado
(2020):

Fomos divididos pela norma. Cortados em dois e forçados em seguida a


escolher uma de nossas partes. O que chamamos de subjetividade não é mais
que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que poderíamos ter
sido. Sobre essa cicatriz assenta-se a propriedade, funda-se a família e lega-
338 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

se a herança. Sobre essa cicatriz, escreve-se o nome e afirma-se a


identidade sexual (p. 25).

Logo, para que o regime da diferença sexual siga funcionando, os


ajustamentos neuróticos são indispensáveis, existindo diversos poderes
e saberes que atuam diariamente na construção e manutenção das
identidades dicotomizadas e polares. Para eles, homem e mulher são
fenômenos da natureza, sendo originários e verdadeiros. Porém, esta
natureza a qual defendem seria essencialmente cishétero. Ideia
reforçada por explicações normativas que tentam nos fazer acreditar
neste roteiro delirante, como as teorias que recaem em determinismos
biológicos, psíquicos ou criação divina. Explicações reducionistas,
causais e lineares que rompem com a unidade do ser, esmagando a
totalidade.
Tais perspectivas são completamente diferentes da forma como a
Gestalt-terapia compreende a natureza humana. Robine (2006), no diz,
por exemplo, que “Reduzir o homem unicamente a seu psiquismo ou a
seus instintos rompe a unidade do seu ser”(p. 46). Ele segue afirmando
que, de acordo com os autores da teoria da Gestalt-terapia, a “natureza
humana” procede de fatores fisiológicos, culturais, animais e sociais,
sendo extremamente importante o cuidado com explicações causais e
lineares.
Porém, embora muitas(os)(es) Gestalt-terapeutas saibam disso, ao
adentrar no campo do gênero e da sexualidade, esta compreensão de
natureza humana parece ser abandonada, esquecida, corrompida.
Portanto, através destas e outras inquietações, preparei minha
apresentação para o Primeiro Simpósio da ABG, no qual fiquei
responsável por fazer o fechamento na parte da tarde, após falas
Paulo Barros • 339

potentes de mulheres que tanto admiro em nossa comunidade. Nas


próximas páginas, compartilho com vocês o texto escrito antes de me
apresentar que me auxiliou durante boa parte de minha fala, com
algumas atualizações.

INDO PARA O CONFLITO: DIA 26 DE JUNHO DE 2022

Pela manhã senti medo de me apresentar, falar, chorar e ficar


vulnerável, pois são assuntos que muito me mobilizam e ao mesmo
tempo que me levam para lugares de muita alegria, me convocam a
lugares em que os afetos tristes também emergem. Mas, nessas horas,
sou tomade por algumas perguntas de Leda Gimbo que me provocam e
acolhem. “Quem ganha com o teu silêncio? Quem se beneficia da tua
dor?”. Todo um regime cisheteropatriarcal. Todos e todas aqueles e
aquelas que não querem me ver aqui, e todos e todas aqueles e aquelas
que um dia me proibiram e tentam me proibir de ser quem sou, nesse
momento. Hoje, vim denunciar o regime da diferença sexual e de que
forma ele atravessa a clínica psi e gestáltica, nos tornando pessoas
violentas, terapeutas violentos, logo, não acolhedoras da multiplicidade
da vida.
Por regime da diferença sexual, recorro a Preciado (2011) e me
refiro a todo um CIStema que organiza, domestica e socializa as vidas a
partir do binarimo macho/fêmea. Um regime, ainda de acordo com elu,
sexopolítico, em que inúmeros dispositivos irão atuar para que
acreditemos que nossas identidades sexuais e de gênero são estáveis e
permanentes, contribuindo para que relações de poder e privilégio se
perpetuem. Elu (2011) dirá:
340 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no


capitalismo contemporâneo. Com ela, o sexo (os órgãos chamados “sexuais”,
as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e feminilidade,
as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder,
fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das
identidades sexuais agentes de controle da vida (p. 11).

Um regime, no qual, desde cedo, aprendemos a ser fiadores, nos


colocando em movimentações para proteger e perpetuar as normas de
gênero e sexualidade. Porém, essa prática não assume a forma de uma
lei, de acordo com Preciado (2020), “mas de uma norma não escrita, de
uma transação de gestos e códigos cujo efeito é estabelecer na prática
da sexualidade uma partição entre o que se pode e não se poder fazer”
(p.314).
Logo, estou muito feliz e assustade de estar aqui. Gostaria que a
felicidade fosse figura, nesse momento, mas, sempre que ouso falar
deste assunto para um público que na maioria é composto por corpos
cisgêneros e heterossexuais, o medo se destaca. Pois, desde muito cedo
passei por situações de violência, praticadas principalmente por
homens cisgêneros e heterossexuais, embora muitos não ousem estar
aqui, participando destas discussões, algo extremamente sintomático e
que precisa ser denunciado.
Mas, até chegar aqui, também tive bonitos e potentes encontros
com pessoas cisheterossexuais que foram acolhedoras, carinhosas,
amorosas e que me mostraram que seria possível confiar em algumas
alianças. Todas as minhas terapeutas foram mulheres cisgêneras e
heterossexuais, ao menos até este momento. A última, com quem
permaneci por longos anos, me ajudou absurdamente, realmente sendo
um corpo-suporte que me auxiliava a atravessar inúmeras situações em
Paulo Barros • 341

que o medo e o terror destacavam-se. Foi no encontro com ela que me


autorizei a experimentar pela primeira vez um salto e me aventurar
pelo estilo de dança chamado stiletto. Estas sessões ocorreram há
alguns anos, mas seguem reverberando até os dias de hoje.
Quanto à comunidade gestáltica, desde o início, me senti
fortemente abraçade, acolhide, confirmade. Agradeço a todas que
realmente estiveram e seguem ao meu lado. Foram pouquíssimas as
situações de preconceito direcionadas diretamente a mim, as que
ocorreram, pasmem, foram praticadas novamente por homens cis,
héteros. Mas, embora eu tenha passado por poucas situações
cisheterossexistas nesta comunidade, cheguei a presenciar inúmeras
situações de homofobia, transfobia, racismo, classismo e capacitismo,
em direção a pessoas por quem nutro forte carinho. Por um tempo,
ingenuamente pensei que a comunidade gestáltica talvez fosse aquela
parte da psicologia que realmente estaria radicalmente aberta para as
diferenças, para alteridade, para o desvio. Afinal, isto é o que mais
pregamos em nossa teoria. Bem, enganei-me!
Quando entramos no campo do gênero e da sexualidade, algo que
tenho feito de forma muito intensa nos últimos anos, é possível
perceber Gestalt-terapeutas erguendo fronteiras, quase um muro de
Berlim do binarismo de gênero. Nos cursos que ministro, dificilmente
homens, cis, heterossexuais, participam. De todos os cursos que dei nos
últimos quatro anos, tirando as formações em Gestalt-terapia, apenas
dois participaram. A grande maioria é composta por mulheres cis/trans,
heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais.
Embora nos últimos anos tenhamos assistido uma verdadeira
explosão de conteúdos relacionados a gênero e sexualidade, sigo
ouvindo inúmeras pessoas, em sua maioria cis, heterossexuais, dizendo
342 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que não conhecem determinados nomes, expressões e que ficam


perdidas com tantas novidades. Hoje, na Gestalt-terapia, temos várias
pessoas debatendo tais temáticas e há praticamente um ano estamos
realizando vários movimentos através da ABG, com o intuito de difundir
tais conhecimentos e vivências. Criamos o Núcleo de Relações de Gênero
e Diversidade Sexual que vem realizando inúmeras atividades de forma
gratuita. O que realmente se passa?
Ao presenciar todos estes movimentos, ao olhar para este campo,
paro e penso: Para quais corpos realmente nos abrimos na clínica
gestáltica? Para quais corpos nos abrimos fora da clínica gestáltica? De
quais corpos e corpas nos aproximamos de forma realmente genuína?
Com quais corpos estabeleço relações de amizade, amor, cumplicidade?
Quais corpos desejo, quais corpos rejeito, sinto nojo? Da população
LGBTQIAP+ que você diz ser aliado, aliada, quais corpos você realmente
consegue acolher e de quais corpos você se afasta?
Eu teria sido acolhide como fui, por nossa comunidade, caso este
corpo, esta vida, fosse marcada por outras dissidências de gênero,
sexualidade e raça? Será que eu seria acolhide como fui, se fosse uma
travesti? Será que eu seria acolhide como fui, caso fosse um homem cis,
trans, negro, gay e afeminado? Como eu seria percebide? Quais os
introjetos que iriam saltar na relação, caso eu possuísse um corpo que
historicamente foi e ainda é marginalizado e por vezes, muitas vezes,
aniquilado. Eu receberia esse amor, esse cuidado? Você daria amor e
cuidado para um corpo que não se encaixa nas exigências do regime da
diferença sexual?
Faço tais perguntas pois sei que meu corpo se aproxima de alguns
padrões e entendo que pessoas LGBTQIAP+ são tratadas de formas
diferentes a depender de diversas interseccionalidades. Sofremos de
Paulo Barros • 343

formas diferentes. Quais corpos são considerados humanos dentro


deste regime? Quais subjetividades são tratadas com respeito dentro
deste regime? É possível estar com um corpo dissidente de gênero e não
o reduzir a um diagnóstico, a um trauma, a alguém confuso, indeciso,
que precisa de um laudo para poder ser quem se é em dado momento?
Para Preciado (2020):

Como el psicoanálisis y la psicología norma- tiva dan sentido a los procesos


de subjetivación dentro del régimen de la diferencia sexual, de género
binario y heterosexual, toda sexualidad no heterosexual, todo proceso de
transición de género o toda identificación de género no-binaria desata una
proliferación de diagnósticos (p. 40).

No livro, Pajubá-terapia, Sofia Favero, travesti, psicóloga, no


capítulo intitulado "constrangimentos cissexistas'', traz um relato
vivido em sala de aula, durante a graduação de Psicologia que mexeu
absurdamente comigo e quero compartilhar com vocês. Durante a
graduação, o seu nome ainda não havia sido retificado. Logo, precisava
recorrer ao nome social, tendo que solicitar à coordenação do curso para
que essa alteração fosse feita. A coordenação disse que iria falar com a
docência, mas, afirmaram que ela precisaria falar com todas/todos
professores(as) para que eles e elas fizessem as alterações. E assim, ela
fez, menos com um professor considerado descolado pela turma e que
nunca realizava a chamada, o que a fez pensar que não seria necessário
falar com ele. Em um dia de avaliação, este professor afirmou que iria
fazer a chamada e que cada pessoa teria que buscar a prova em sua mesa.
Sofia (2022), nos diz:

Ele chamou meu nome. Várias e várias vezes. Chamou, então, meu nome
completo. Algumas pessoas olhavam para mim. Sabiam que “Favero” era
344 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

meu sobrenome. Olhavam como se estivessem se perguntando: afinal, ela


vai ou não levantar para pegar a prova? Decidi ficar olhando para baixo.
Mexia meu lápis e minha caneta. Nesse momento, lembro‐me de refletir
sobre o valor daquilo tudo. Vale a pena investir em uma psicologia tão
desconectada de outras travestis? Até que ponto eu irei aguentar esse tipo
de humilhação? Estão fazendo por querer? É um total desconhecimento
sobre a importância do nome para nós, pessoas trans? Quero sumir daqui.
Quero apagar essas luzes. Quero mostrá‐los que, quando eles dizem que
vieram para cá para ajudar os outros, eles não estavam falando sobre
pessoas iguais a mim. Pelo contrário (p.40).

Tal situação nos mostra o quanto vivemos em um CIStema


altamente violento, no qual pessoas dissidentes das normas e de gênero
têm suas identidades constantemente ameaçadas, invadidas, anuladas.
Esta situação ocorreu em meio a quase 40 futuros psicólogos e ninguém
se movimentou para ajudá-la. O que isso nos diz? O quanto esta cena
fala também de nós?
No livro “Relação e cura em Gestalt-terapia”, Hycner (1995, p.24)
cita Laura Perls (1976) que diz “Um Gestalt-terapeuta não usa técnicas;
ele usa a si mesmo, na e para a situação com toda sua habilidade
profissional e experiência de vida já acumuladas e integradas” (p. 223).
Ou seja, nossos vividos irão nos acompanhar durante nossos
atendimentos, e por mais que falemos em suspender os preconceitos,
alguns não o serão, caso não tenhamos realmente nos trabalhado e nos
atualizado, o que não pode ser feito de forma isolada, mas, apenas por
meio do encontro com o diferente, o novo, desconhecido. A atitude
fenomenológica é constantemente ameaçada no regime da diferença
sexual, uma vez que ela pode denunciar as suas formas e desestruturar
o que já está dado.
Paulo Barros • 345

Aqui-agora, todo um horizonte de passado composto por inúmeras


violências de gênero nos acompanham. O que vocês aprenderam sobre
ser homem e ser mulher? O que lhes foi permitido? O que lhe foi negado?
Aqui-agora, todo um horizonte de futuro repleto de ideais de ser
homem e mulher, nos acompanha. Tudo isto, está conosco em nossos
atendimentos. Logo, o quanto conseguimos realmente colocar entre
parênteses questões que aprendemos a tratar como naturais, como
essência, como algo anterior a qualquer intervenção sociocultural?
As violências de gênero tornaram-se hábitos, como muito bem nos
diz Gimbo (2021) estando sedimentadas em um fundo de vividos, sendo
facilmente resgatadas e revividas a depender da situação, inclusive
durante nossos atendimentos. Aprendemos através de inúmeros
exemplos a sermos violentos, violentas e violentes. Polster e Polster
(2001) nos dizem:

Os “você deve” começam cedo, e muitas vezes têm pouca congruência com
as necessidades que a criança sente que têm. No final, a alma acaba sendo
abatida. A confiança da criança é esgotada pelas autoridades externas cujos
julgamentos se estabelecem, corroendo sua própria identidade clara e
abrindo-a a conquistadores adultos que tomam posse do território. A
rendição é odiosa no início, sendo depois esquecida (p. 86)

Família, escola, igreja, trabalho, fomos submetidas(os)(es) a


diversos dispositivos, um excesso de função personalidade foi se
instalando a partir de inúmeras relações materiais e imateriais. Em
nome de identidades normativas, tornamo-nos capazes de machucar,
violentar e aniquilar qualquer coisa que ameace a sua suposta
estabilidade. Identidades construídas por inúmeros processos de
346 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

introjeção e zonas imensas de confluência, através da colonização da


carne e dos afetos.
O que aprendemos a amar e proteger desde muito cedo, não são
pessoas, e sim, as normas de gênero e sexualidade. Quantas relações são
destruídas? Quantos amores não são possíveis de serem vividos em
nome da norma? O mundo inteiro cortado em dois e somente em dois.
Espaços sociais, trabalhistas, afetivos, econômicos, gestacionais são
segmentados em termos de masculinidade ou feminilidade (Preciado,
2020). Ainda de acordo com este autor (2020) “nem o discurso científico
nem a lei reconhecem a possibilidade de que um corpo possa ser inscrito
na sociedade dos humanos sem aceitar a diferença sexual” (p. 27).
Logo, desde antes de nascermos, todo um horizonte de futuro,
cisheteronormativo é lançado sobre nós. Fomos/somos reduzidos,
reduzidas e reduzides a pênis e vagina, nossas totalidades foram e
continuam sendo rasgadas, rompidas. O binarismo macho/fêmea e os
roteiros anexados a cada uma destas categorias, nos faz cair em uma
forte dicotomia. Assim, aprendemos a temer qualquer novidade, a
entrar em contato com o diferente, com os desvios. Preferimos o
passado e recusamos a todo custo que o campo seja reconfigurado. Um
excesso de pólo conservação em detrimento do pólo crescimento.

“São muitas letras, é difícil aprender”


“Linguagem neutra? Para que isso? Aí já é demais!”
“Perguntar ao meu cliente sobre qual pronome ele gostaria de ser chamado?
Isso eu não consigo.”
“Ah, mas sou de outra geração, tudo isso é muito novo para mim”
“Não sou cis, sou humana, sou uma mulher feminina!”
Paulo Barros • 347

Várias são as justificativas mecanicistas, racionalistas e


dicotômicas para permanecer na repetição e na conservação diante de
clientes LGBTQIAP+ e diante de sua própria existência. E isto ocorre
aqui, entre nós, Gestalt-terapeutas, por mais que na teoria defendamos
uma perspectiva de campo, em que conceitos como atualização, devir,
processos, awareness e ajustamentos criativos sejam constantemente
enunciados. Por mais que na teoria gestáltica saibamos que self não se
trata de uma estrutura intrapsíquica, fixada e sim um fenômeno de
fronteira, com movimento, fluidez, processual, emergindo na situação.
Nós, corpos monstruosos, queer, excêntricos, buscamos e
fabricamos novos sentidos, e como nos diz Alvim (2019, p.334) “O sentido
é um fenômeno do campo, dado espontaneamente na experiência do
contato como um processo de descobrir-e-inventar”. Para o subalterno,
de acordo com Preciado (2020) o ato de falar não se trata apenas de
resistência ao performativo hegemônico, é principalmente imaginar
teatros dissidentes, produzindo outras forças performativas. Mas,
práticas psicológicas cisheteronormativas dificultam e impedem
processos de descobertas e invenções, não autorizando a construção
espontânea de sentidos, pois a verdade do gênero e da sexualidade
precisa ser engolida, repassada de geração para geração.
Desta forma, rígida e violenta, vamos nos tornando homens e
mulheres dentro do regime da diferença sexual, através de inúmeras
alienações, dessensibilizações, fugas da novidade, pouca
espontaneidade, medo, ansiedade. Com quantas evitações do contato se
constrói um corpo de gênero normatizado e normalizado? Quantos
desejos precisamos abandonar para sermos aceitos no mundo dos
humanos?
348 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Mas, a proliferação de novos termos críticos e sentidos já estão em


curso, funcionando como um solvente das linguagens normativas. Nós,
seres esquisitos, disformes, precisamos, por sobrevivência, abandonar,
agredir e mastigar as “linguagens científicas, técnicas, comerciais e
legais dominantes que formam o esqueleto cognitivo da diferença
sexual e do capitalismo patriarcal. É urgente inventar uma nova
gramática que permita imaginar uma outra organização social das
formas de vida” (Preciado, 2020, p. 41). Nós, pessoas de gêneros e
sexualidades estranhas, monstruosas, desviantes, de acordo com
Preciado (2020):

somos os sobreviventes de uma tentativa sistemática e política de


infanticídio: sobrevivemos à tentativa de matar em nós, quando ainda não
éramos adultos e não podíamos nos defender, a multiplicidade radical da
vida e o desejo de mudar os nomes de todas as coisas (p. 29).

Carregamos, em nós, as tentativas de infanticídio, mas também, de


muita resistência. Não resiliência, resistência! Necessitamos de espaços
seguros, de relações seguras em que poderemos compartilhar situações
de violência, de exclusão, de amores não vividos, de fases da vida que
nos foram negadas e roubadas. Queremos, também, espaços para poder
compartilhar nossos desejos e afetos, queremos espaços e encontros
onde realmente possamos viver a novidade. Espaços em que a
experimentação realmente seja possível. Mas, como poderemos
experimentar na companhia de terapeutas que temem a novidade? Para
Nascimento (2021):

Acreditar na psicologia é um sonho louco para a comunidade LGBTQIA+,


como acreditar numa instituição que historicamente contribuiu para a
criação de nós mesmos como outreridades em relação a uma verdade opaca
Paulo Barros • 349

marcada pela centralidade da cishetenormatividade branca europeia


burguesa? Como não acreditar se tudo eles tentaram nos tirar, mas não
conseguem nos fazer parar de sonhar? Sou gata desconfiada, olho atenta,
estranha, me faço parecer alheia, permaneço distante, analiso, sigo me
esgueirando, imperceptível me aproximo, faço o contato, a gata aranha com
manha, as travestis aprenderam a brinca com a psicologia, burlando laudos,
as gatunas da normalidade (p.167).

Eu não gostaria que fosse um sonho louco acreditar na Gestalt-


terapia, somos uma abordagem potente, transgressora, desviante e
dissidente. Somos uma abordagem da fronteira, do encontro, da relação.
Não façamos dela mais um dispositivo de controle e poder. Mais uma
abordagem moralista e normativa.
Preciado (2020) afirma que é possível sentir o esgotamento das
formas tradicionais de fazer política, “mas também a emergência de
centenas de milhares de práticas de experimentação social, sexual, de
gênero, política, artística... Diante dos poderes edipianos e fascistas
surgem as micropolíticas da travessia” (p. 40). É exatamente assim que
vejo o fazer gestáltico, como um micropolítica da travessia, uma
Gestalt-terapia que nos possibilite rotas de fuga para muito do que nos
é dado e já não faz sentido. Uma Gestalt-terapia que proporcione
transgressões dentro do regime da diferença sexual. Uma Gestalt-
terapia que possibilite espaço seguro para intoxicações voluntárias,
onde a masculinidade e a feminilidade possam ser abandonadas quando
estas já não fizerem mais sentido. Porém, isto implica que nós, Gestalt-
terapeutas, acordemos do pesadelo construído pela norma, estando
dispostas(os)(es) a também nos intoxicarmos e sermos ratos e ratas de
laboratório. A liberdade não pode ser dada por ninguém, e sim
fabricada, nas relações, vislumbrando novos horizontes de
350 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

possibilidades e modificando horizontes de passado. Por fim, cito


novamente Favero (2022) quando nos provoca e nos diz:

Sejamos ruído, incerteza, contradição, fragmento. Doenças que rejeitam


saudar uma saúde mortífera, fúnebre. Uma clínica política é uma clínica de
renúncia: sejamos capazes de rejeitar o mundo esgotado que nos deram,
para criar um mundo nosso, poderosamente nosso, e nele desconfiaremos
da culpa, do pecado, dos laudos, dos enquadramentos, das brutalizações
analíticas. Que a gente possa se deslumbrar com o surgimento de uma
palavra, uma forma de viver, um gesto que nos permita dar outro desfecho
para vidas tão “bem” encaminhadas para serem ruins (p. 8).

Como você tem atuado enquanto Gestalt-terapeuta? Como você


tem se movimentado em suas relações? Para onde sua fidelidade está
indo? Para normas que nos querem controlar, aniquilar? Quem você tem
sido dentro deste grande teatro do mundo?

REFERÊNCIAS

Alvim, M. (2018). O id da situação como fundo comum da experiência. In: Robine, J. M.


(Org.). Self: uma polifonia de Gestalt-terapeutas contemporâneos. (1a ed. pp.333-354).
Escuta.

Favero, S. (2022). Pajubá-terapia: ensaio sobre a cisnoma. Nemesis.

Gimbo, L. M. (2021). A violência como hábito: leitura de um fenômeno social a partir da


teoria do self. In: Nascimento, L. C. S. & Vale, K. S (org). Processos em Gestalt-terapia:
casos clínicos, ensaios teóricos. (1a ed. pp. 31-40). Atena.

Hycner, R. (1997). Relação e Cura em Gestalt-terapia. Summus.

Nascimento, L. C. (2021). A psicologia como farsa frente ao espelho LGBTTQIAP+. In:


Carvalho, M & Stona, J. (Org.). Remonta: a escuta clínica da população LGBTQIAP+. (1a
ed. pp. 167-170). Devires.
Paulo Barros • 351

Preciado, B. Multidões queer: notas para uma política dos anormais. Revista Estudos
Feministas. 19(1), 11-20.

Preciado, P. B. (2020). Um apartamento em Urano: crônicas da travessia. Zahar.


Preciado, P. B. (2020). Yo soy o monstruo que os habla: informe para una academia de
psiconalistas. Angrama.

Robine, J. M. (2006). O self desdobrado: perspectivas em Gestalt-terapia. Summus.


15
VIOLÊNCIA COMO FENÔMENO SOCIAL: TEORIA DO
SELF, INSUBMISSÃO E ÉTICA CLÍNICA
Violence as a social phenomenon: self theory, insubmission and clinical ethics
La violencia como fenómeno social: teoría del self, insumisión y ética clínica

Leda Mendes Gimbo

““Escrever é uma maneira de sangrar”.


Acrescento: e de muito sangrar,
muito e muito...”
- Conceição Evaristo
A Paulo Henrique Barros, companhia e inspiração.

INTRODUÇÃO: VIOLÊNCIA COMO HÁBITO, PROJETADA COMO LUGAR


SOCIAL E OPERACIONALIZADA NA SITUAÇÃO

Partindo da ideia, da concepção de que a violência é um fenômeno


social multifacetado e, em suas diversas dimensões, consiste não apenas
na aplicação em ato, mas numa ferramenta histórica de dominação
entre os povos, tendo o telos de submeter, controlar e afirmar poder
sobre outra pessoa, corpo ou grupo humano, consideramos que a
violência comporta ou é parte de um fundo habitual de vividos
socialmente compartilhado e disponível a ser atualizado na situação,
nas relações humanas, no campo imbricado. Também podemos
considerar que o exercício das violências é condição que promove lugar
social a vítimas e a agressores, sendo assim, também, uma formação
identitária. Os efeitos da violência como forma de governo, exercício de
poder e dominação tem usos políticos amplos, mas também se
Leda Mendes Gimbo • 353

inscrevem nas relações cotidianas, desde a educação infantil até as


relações de trabalho, ou seja, é parte inextrincável do tecido social e suas
relações. Nos interessa, nesse trabalho, tomar a violência estrutural
relacionada ao patriarcado e seus efeitos, uma vez que essa dimensão da
violência é tema frequente na clínica, e a aflição (misery 1) que produz
tem efeitos severos, duradouros e que são mantenedores da estrutura
social patriarcal. Nesse sentido, esse texto, é parte da ampliação dos
estudos 2 da autora sobre violência, violência de gênero e contra
mulheres, e leitura desses temas a partir da teoria do self e
possibilidades interventivas, ou seja, ideias para uma ética clínica
gestáltica no acolhimento a vítimas e no trabalho com agressores. É
importante ressaltar que partindo do ideal político da Gestalt-terapia
desde suas bases, consideramos um compromisso ético-político
atualizar a leituras gestálticas e produzir referências que respaldem a
prática clínica implicada com as questões contemporâneas.

1. VIOLÊNCIA: COMPREENSÃO DE UM FENÔMENO SOCIAL E SEUS USOS

A violência pode ser considerada como um fenômeno social


complexo, multifacetado, que é compreendido a partir de fatores
sociais, históricos, culturais e intersubjetivos. De acordo com a
Organização Mundial de Saúde (2002) a violência consiste no uso

1
O termo aparece uma única vez na página 432 do livro Gestalt Therapy no tópico sobre A neurose
como perda das funções de ego e é traduzido para o português, no livro de 1997, como aflição e é posto
como o distúrbio do self espontâneo: “a neurose encontra-se a meio do caminho entre o distúrbio do
self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio da função id, que é a psicose” (PHG, p.235). Dessa maneira,
propomos que o distúrbio do self espontâneo, misery ou aflição, pode tratar-se das interdições que nem
são relacionadas à neurose, nem à psicose, mas relativas à situação, ao campo, às formações culturais e
sócio-históricas.
2
Violência contra a mulher: vitimização secundária e Gestalt-terapia (Gimbo, 2020) e A violência como
hábito: leitura de um fenômeno social a partir da teoria do self (Gimbo, 2021).
354 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

intencional de força ou poder de alguém contra si ou contra outra


pessoa, grupo ou coletivo, causando lesões, morte, dano psíquico,
alterações no desenvolvimento ou privações. A violência física é a forma
de violência mais prevalente ou mais denunciada; a violência sexual é
compreendida como toda ação promovida com uso de poder que obriga
a presenciar, manter ou participar de atos sexuais, bem como limitar ou
anular o exercício de direitos sexuais e reprodutivos; a violência
patrimonial consiste em reter, subtrair, destruir bens, instrumentos de
trabalho, documentos; a violência moral configura calúnia, difamação e
injúria e a violência psicológica consiste em qualquer conduta
emocionalmente danosa, que diminua a autoestima e prejudique o
desenvolvimento livre e pleno das pessoas.
As formações sociais são pautadas em saberes (discursos, normas,
regras, prescrições) e exercícios de poder que estão associados a
identidades e posições sociais, trata-se então de compreender a
violência como fenômeno social, dispositivo de governo de corpos,
alinhado com a posição hegemônica de um tempo, trata-se conhecer e
compreender os discursos vigentes, a ordem que os forma e como esses
discursos consolidam e possibilitam a emergência de saberes e de poder
sobre os corpos, tomando aqui as relações de gênero e a violência usada
nesses contextos como exercício de controle e manutenção da
normatividade que possibilita a conservação de elementos do
patriarcado, da heteronormatividade e está na base da sociedade
neoliberal capitalista contemporânea. De acordo com Foucault (1996)
em cada momento histórico, em cada época, existem condições
específicas que possibilitam o aparecimento e constituição de saberes
que se manifestam através de discursos tomados como verdadeiros em
virtude da influência que exercem e do reconhecimento social que
Leda Mendes Gimbo • 355

possuem. Logo, as formas de governo e gestão dos corpos são


atualizadas e determinadas pelas e nas condições históricas. Assim, os
modos como nos subjetivamos estão amplamente inscritos nas
formações sociais de cada tempo, do poder soberano, passando pelos
dispositivos normativos do poder disciplinar até o biopoder. Só é
possível ser em relação ao mundo, embora não sejamos plenamente
determinadas pelo mundo e sobre ele não possamos deliberar, mas
atuar com a espontaneidade possível (Alvim, 2014), inscritas nas
formações e ritos desse mundo, compartilhados com outros. Logo, se
há, em cada tempo, discursos de verdade e práticas de poder que
determinam os moldes de funcionamento da vida, podemos considerar
que nossas subjetividades são produtos das verdades de um tempo e, em
alguma medida, produtoras dos desvios e atualizações.
Tratar dessa relação biunívoca entre saber e poder, mostrar como
os discursos verdadeiros produzem práticas de coerção e racionalização
políticas gerando efeitos de coerção cultural e moral, eis o objetivo
principal de uma genealogia de profunda inspiração nietzschiana:
“Nietzsche mostrou que por trás de todo saber, por trás de todo
conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político
não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (Foucault, 2001,
p.1438, grifo nosso). É nesta decisão teórica e metodológica de decifrar
a natureza dos discursos sobre o fundo histórico das lutas agonísticas
pelo poder, de ver o sistema de regras de um discurso como algo
inseparável e imanente às relações de dominação e força de uma
determinada sociedade - e não mais no regime ahistórico e positivista
da verdade - que acreditamos encontrar a ideia foucaultiana mais
importante e pertinente para as nossas análises (Gimbo, 2017). Isso
porque a partir do momento em que se discute as implicações, atos,
356 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

gestos, acontecimentos e toda a sorte de formações políticas alicerçadas


pelo discurso, é preciso reconhecer essa ambígua relação em que o
discurso manifesta e produz o poder. O importante, aqui, é notar que
discurso e sociedade são, rigorosamente, contemporâneos/simultâneos
e, consequentemente, se a produção do saber é indissociável de práticas
e exigências morais de uma histórica forma de sociabilidade, é também
verdade que as formas e práticas sociais podem ser descritas como a
versão material e corpórea dos diferentes sistemas de saber (Gimbo,
2017). Essa compreensão nos é importante uma vez que pretendemos
pensar as formações discursivas e verdades instituídas sobre o gênero e
as práticas que esses discursos reificam, sobre os corpos e sobre a
sexualidade, bem como, considerar que a violência é ferramenta de
controle e manutenção desses dispositivos.
Se abrirmos o dicionário, leremos que cultura é o conjunto “de
conhecimentos, costumes, crenças, padrões de comportamento,
adquiridos e transmitidos socialmente, que caracterizam um grupo
social” 3, assim, consideramos a cultura como dimensão habitual e
normativa, uma espécie de regimento tácito, socialmente
compartilhado, inúmeras vezes sem que questionemos ou submetamos
a críticas e atualizações. Reproduzimos a cultura, reproduzimos a
norma e consideramos que os fatores históricos e culturais compõem o
modo como os fenômenos do mundo se apresentam para nós: “o
organismo/ambiente humano não é apenas físico, mas social”, afirmam
Perls, Hefferline e Goodman (PHG, 1997, p.43), e continuam afirmando
que “em qualquer estudo de ciências do homem, tais como fisiologia
humana, psicologia ou psicoterapia, temos de falar de um campo no qual

3
Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/cultura/.
Leda Mendes Gimbo • 357

interagem pelo menos fatores socioculturais, animais e físicos” (PHG,


1997, p.43). Nesse sentido, a violência e seus usos constituem parte do
campo, imbricada na cultura, parte das relações sociais e ferramenta de
defesa das normas.
A norma é a forma majoritariamente repetida no campo,
naturalizada. A norma também é o habitual. Os hábitos compõem um
fundo de co-dados, assimilados, introjetados, retidos e prontos para
emergir como excitamento para orientar uma ação, direcionada a um
horizonte de futuro, no presente transiente concreto (PHG, 1997). A
norma está na base, mas está também no horizonte. A norma está nas
formas repetidas, como inibições deliberadas ou reprimidas, mas está
também no temor ou desejo de ocupar um lugar social. A violência é um
fenômeno de ordem coletiva largamente compartilhado, é ferramenta
chave para o exercício de poder e estratégia de governo de corpos, não
apenas corpos humanos. Embora a violência, sobretudo em sua
dimensão física, seja observada entre outros grupos de animais, com a
finalidade de defender territórios, garantir alimento ou reprodução, os
seres humanos possuem a característica única, por serem dotados da
possibilidade de atribuir sentido ao que vivem, de fazer uso dela de
forma deliberada, para fins que tangenciam as estratégias de
sobrevivência na natureza, em sua expressão mais radical trata-se de
aniquilar, de matar. Em Gestalt-terapia compreendemos a agressão
como dimensão necessária ao processo de assimilação, sobre isso, Perls
(1977, p.41) afirma que: “o supermercado fez com que esquecêssemos que
nós matamos para sobreviver, só o humano mata além do que necessita,
por voracidade. Ele mata por hábito”. Para reproduzir o status quo,
acumular capital, atender a imperativos normativos ou submeter
corpos ao controle, a violência constitui um meio habitual (Gimbo,
358 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

2020). Nesse sentido, é possível afirmar que a violência, em sua


dimensão normativa, como regra, está socialmente disponível e
compartilhada, devemos considerar a violência operacionalizada nas
situações, também a violência e seus usos como hábito, como co-dado e,
por fim, podemos considerar que a violência é projetada como lugar
social para quem a exerce e para quem ela é vítima, sendo assim um
dado identitário.

2. VIOLÊNCIA E TEORIA DO SELF: EGO BALIZADO PELO HORIZONTE DE


PASSADO E DE FUTURO

Em Gestalt-terapia, consideramos self como um processo


temporal, fundamental na interação organismo-ambiente, ecológico,
holístico e que confere significado à existência. Self é o sistema de
contatos e agente de crescimento, responsável pela experiência com a
novidade no campo imbricado, self parece ser composto por pelo menos
três funções parciais, a saber: (1) a função ego, função ativa e
responsável por aumentar ou reduzir o contato no campo, função que
corresponde à unidade de presente vivo, ao presente sempre transiente
e concreto; (2) a função id, que corresponde à dimensão dos co-dados,
horizonte de retenções, dimensão afetiva da experiência, por isso
relacionada ao passado, à memória, aos excitamentos. Essa dimensão
corresponde à virtualidade do impessoal na experiência e (3) a função
personalidade, ou horizonte de protensões, de futuro, dimensão
relacionada à virtualizade dos desejos e das identidades sociais
(malogradas ou não) que porventura desejamos ou tentamos rejeitar
desempenhar. Nesse sentido, a leitura de self está inscrita na
temporalidade husserliana, em que, no curso do tempo, o agora,
unidade de presente vivo, está sempre em trânsito (PHG, 1997).
Leda Mendes Gimbo • 359

Podemos então pensar que a função ego, deliberada e ativa está


sempre balizada pelas outras duas dimensões virtuais de self, como
orientada pelo horizonte de passado e de futuro que se disponibilizam,
sempre de forma distinta, engajados na situação (Alvim, 2018). Assim,
agir implicaria em uma verdadeira tarefa de malabarismo,
considerando a atualidade da situação, suas contingências,
possibilidades e atravessamentos e as duas dimensões virtuais que
também orientam a ação em campo: o horizonte de passado e o
horizonte de futuro. Compreendemos a função ego está engajada no
campo, orientada por um fundo de hábitos encharcado de introjetos
normativos e também dos afetos que derivam das experiências
libertárias que foram possíveis, co-dados assimilados (função id,
sempre o estranho impessoal), em direção a um horizonte virtual que
aponta para o lugar social reificado e passível de aprovação, mas
também para as fantasias mais libertárias que podemos ser e ter (função
personalidade, os papéis sociais aos quais nos colamos, por desejo livre
– self espontâneo ou balizadas pelos desejos de outros - neurose). A
unidade temporal vivida, o presente vivo, passa ao horizonte de
passado, no mesmo movimento em que se projeta ao futuro, e
permanece enquanto afeto, excitamento, retida num fundo de co-dados
que é memória disponível à evocação e recuperação, disponível à
atualização no campo orientada por um horizonte virtual de
possibilidades e desejos. Assim, podemos considerar que o presente, o
aqui-agora, está sempre embebido do passado e lançado ao futuro. O
aqui-agora contém todo o já-vivido, numa perspectiva jamais
individual, uma vez que que as experiências vividas se dão sempre em
relação e contém também todas as possibilidades que se desenham no
horizonte de protensão, todos os futuros possíveis, todas as fantasias
360 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que também jamais serão privadas ou individuais pois são sempre dadas
numa situação e campo relacional (PHG, 1997).
Logo, é importante considerar que o campo inclui e é muito mais
do que a espacialidade e a temporalidade como categorias. Pensemos
nas formações sócio-históricas, na cultura e em toda a sorte de
regimentos sociais, formações discursivas, discursos que são tomados
como verdades de um tempo e que orientam a sociedade em suas
práticas e ritos. Se faz necessário compreender e analisar os discursos e
práticas, além de elementos não discursivos como o contexto
sociocultural, econômico e político da região que possibilitam as
condições de manutenção das estruturas sociais (Gimbo, 2021). Dessa
forma, em termos gestálticos, podemos compreender que a violência
está imbricada no campo e, correspondendo às três funções parciais de
self, pode ser lida também em três dimensões: 1) a violência
operacionalizada na situação, dimensão que corresponde ao presente-
vivo, à função ego; 2) violência como fundo habitual, passível de
reedição, que emerge como excitamento diante de novas demandas no
campo, correspondente à função id e 3) a violência como função
personalidade, ou os lugares e representações socialmente
compartilhados quando se exerce ou sofre violência.
Aqui, se pensarmos nos contextos clínicos, temos também duas
outras perspectivas: a de terapeutas gestálticas atuando no acolhimento
a vítimas de violências e as possibilidades éticas de intervenção quando
o lugar clínico é o de atender pessoas que exercem ou cometem
violências. Retomaremos esse debate no tópico 4 desse texto. Antes
disso, podemos preparar o terreno pensando sobre possibilidades de
fazer frente às situações de violência e suas reedições. Ajustamentos são
operacionalizações, comportamentos, são a possibilidade criativa de
Leda Mendes Gimbo • 361

contatar, “achar e fazer a solução vindoura” (PHG, 1997, p.48), balizados


pelos horizontes de passado e futuro, atravessados pelas contingências
do campo, ajustamentos são a possibilidade de aumentar
deliberadamente contato sempre que possível e atualizar a relação,
promovendo também a atualização dos horizontes. Existe possibilidade
criativa diante das situações de violência?

3. AJUSTAMENTO CRIATIVO E ATUALIZAÇÃO DO CAMPO: INSUBMISSÃO E


TRANSGRESSÃO

Faz parte da nossa fundamentação ético-teórica considerar self


como a função de identificar, assimilar ou rejeitar a novidade no campo.
Um processo de imbricação organismo-ambiente que possibilita
atualização e crescimento. Temos a compreensão de que os
ajustamentos criativos são uma espécie de operacionalização do
possível em determinadas situações, contudo, nem sempre são formas
espontâneas e fluidas, os autores consideram que podem acontecer
interrupções, inibições ou acidentes no decorrer do ajustamento
criativo (PHG, 1997). Na neurose, nos fixamos e interditamos a função
ego, como se estivéssemos alienados de nossos desejos e necessidades
em função da adequação social; na psicose, a função id não se apresenta
como excitamento fluido e na aflição temos a destituição das
identidades sociais. “Como distúrbio da função de self, a neurose
encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é
a aflição e o distúrbio das funções de id, que é a psicose”, afirmam os
autores (PHG, 1997, p.235).
Comportamentos violentos são sustentados por formações sociais,
sendo considerados como atributos da personalidade de determinadas
pessoas ou grupos. Numa perspectiva gestáltica, podemos compreender
362 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que a lealdade, a moralidade e as atitudes retóricas, elementos


considerados por PHG (1997) como tipos de aprendizagem que formam
a personalidade, assim a identificação com um grupo, as avaliações
morais e apreciações sobre quais comportamentos são adequados, bom
como as formas de manipular as relações interpessoais são
determinantes para como o ego opera em campo, constituindo uma
dimensão importante de como nos ajustaremos nas situações. Os
autores também afirmam que quanto mais personalidade, mais rigidez,
mais fixações e mais situações inacabadas, uma vez que a possibilidade
de atualização constante e não manutenção de fixações seria realmente
mais saudável. “Em circunstâncias ideais o self não tem muita
personalidade”, afirmam (PHG, 1997, p.230), o que não significa que a
personalidade deixe de existir, mas que esteja constantemente sendo
re-criada e, elemento fundamental do processo de crescimento,
atualizada de acordo com as contingências, a situação e as novidades no
campo. A rigidez das normas de gênero, dos papéis sociais e os
comportamentos violentos que servem para defender essas fixações
estão mais próximos da neurose do que da psicose ou da aflição, uma
vez que a função ego se encontra implicada na repetição sem reedição
de comportamentos que visam garantir alguma certeza, o encaixe em
alguma categoria, ou a fantasia de pertencer a determinado grupo social
cujos comportamentos são considerados como socialmente reificados.
Em uma sociedade patriarcal é certo que os imperativos
hegemônicos da cisheteronorma constituem uma espécie de manual de
conduta arcaico, mas que ainda são erguidos como verdades sob as quais
devemos nos guiar. Atender aos imperativos de gênero e alinhar o sexo
biológico, o gênero e a orientação sexual, binariamente organizados,
atuando como polaridades sem integração é a forma neurótica de
Leda Mendes Gimbo • 363

adesão e lealdade ao patriarcado, atendendo aos imperativos morais e


às repetições de atitudes que promovem a afirmação dessas categorias
como verdades. É nessa perspectiva que a violência emerge, muitas
vezes como ferramenta, operacionalizada nas situações para defender
as polaridades sem integrá-las. As violências de gênero, sejam físicas,
sexuais, patrimoniais, psicológicas, seja a manifestação mais radical, o
feminicídio ou transfeminicídio, os assassinatos motivados por ódio são
manifestações de defesa a lugares instituídos e introjetos não
submetidos à reedição. Os agressores usam da violência para coagir,
coibir, dominar, impor força, exercer poder e manter a ordem patriarcal
como manual de conduta vigente.
Do outro lado, mulheres (trans, cis, mulheres!), crianças, pessoas
LGBTQIA+ e toda a sorte de vítimas de violências de gênero aparecem
como pessoas que padecem de um sofrimento sobre o qual parece haver
muito pouco a fazer, uma vez que suas identidades são rejeitadas,
submetidas e vilipendiadas, bem como seus corpos considerados
inferiores ao corpo normativo e seminal do homem, hétero, branco.
Misery, aflição, distúrbio do self espontâneo, impedimento violento do
exercício livre de crescimento e manifestação dos afetos, indumentárias
de vestuário e usos dos corpos. As vítimas são oprimidas e
deslegitimadas em seus desejos e identificações identitárias. Não raro,
desde a mais tenra infância, corpos dissidentes são submetidos à
repressão e negação de seus desejos e existências, produzindo o
sofrimento que deriva da sensação de inadequação, de erro, o medo de
perder o amor e a proteção dos sistemas familiares, berço também das
reproduções de violências. Não raro, mulheres ainda se submetem a
casamentos infelizes, maternidade compulsória, padrões inalcançáveis
364 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

de beleza e pressão estética quando tais rigores não são aplicados a


corpos cis masculinos.
É também a heteronorma que parece impor o que se lê como ideal
de mulher, a mulher, como se houvesse um imperativo para tal
categoria, como se não existissem mulheres e mulheridades de infinitas
formas e não restritas a órgãos, e não limitadas em indumentárias de
vestuário ou rigores monogâmicos e binários. As normas e as atitudes
morais que delas resultam, funcionam como imperativo que
desqualifica e oprime muitas pessoas, legitimando violências como
mecanismos de controle. Laura Perls (1992) analisa nos capítulos 2.
Como educar crianças para a paz e 3. Notas sobre a mitologia do
sofrimento e o sexo, dimensões da violência, a repressão da agressão na
infância como elemento formador do fascismo e de personalidades
violentas e atribui a adesão às explicações religiosas e míticas sobre a
diferenciação de sexo e gênero como formadoras e mantenedoras do
papeis sociais e categorias, cabendo à mulher o lugar da tentação, do
pecado e a expiação da culpa pela maternidade e disponibilidade para a
servidão e cuidado. PHG (1997, p.22) também afirmam que “não é a
agressão, mas sua inibição na personalidade que produz a impotência,
explosões na violência ou a dessensibilização e o embotamento”, a
impossibilidade de agredir, assimilar e integrar as novidades é que
produz fixidez, a interdição da criatividade e a violência como resposta.
Ora, mas como ir contra a corrente de tantos imperativos? Ainda
mais sabendo que atentar contra a norma pode produzir efeitos de
acirramento da violência. A invectiva do fugitivo acirra os mecanismos
de contenção das prisões, o desafio à norma é o desafio ao opressor que
dela se beneficia e que tem como propósito aniquilar a diferença,
manter a fixidez. Sem contar que numa sociedade enrijecida pela
Leda Mendes Gimbo • 365

neurose capitalista, usar a violência para combate a novidade não é


exceção. Aqui, convocamos a ideia de que assimilação, integração e
crescimento são processos, que a novidade se faz na repetição e na re-
criação, na convocação à transformação. Dessa maneira, não interessa
em qual dimensão comece a mudança, no novo comportamento que
pode ser induzido por grupos libertários, na ideia ouvida em espaços
políticos livres, na possibilidade de sonhas e fazer outros usos dos
corpos, uma vez experimentada, a liberdade de ser e se tornar produz
efeitos enormes.
É daqui que nasce a possibilidade de insurgir, de ir além de e aplicar
a transgressão como poética da experiência (Alvim, 2014), é aqui que a
insubmissão, substantivo feminino, a insubordinação, recusa da norma,
se impõe como possibilidade. Talvez aqui, a grande potência de afirmar
como ajustamento a identificação com a novidade, com a fluidez e em
decorrência disso, o crescimento. A insubmissão e a recusa à repetição
sem re-edição possibilitam a atualização dos horizontes virtuais que
balizam a função ego no campo. Recusar a repetição infértil, não nos
submeter e questionar as normas vigentes, transgredir as categorias,
são ajustamentos libertários e possibilidades de atualização das
formações sociais, possibilidades de atualizar o fundo e também o
horizonte de desejos. Contudo, lembramos que muitas mulheres foram
mortas, muitas pessoas gays e trans foram agredidas, que a duração
dessas vidas é menor que a de homens cis. Lembramos que crianças são
condicionadas a imperativos categóricos de gênero e isso ainda é
considerado como educação em nossa sociedade. Lembramos que
pessoas pretas são objeto de exclusão e racismo, que questões de gênero
e raça estão diretamente ligadas ao poder e manutenção do status quo,
sendo desejável pelas categorias dominantes reprimir e submeter.
366 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Afirmamos a insubmissão, a recusa, como possibilidades libertária


e criativa, mas não sem riscos. Grandes riscos. Repetir a desobediência
até que a liberdade seja o habitual é tarefa para a clínica gestáltica e para
uma sociedade que funcione pela diferença e equidade e não pela
padronização hierárquica. Garantir o encontro e a criação das formas
de ser mulheres possíveis não se dá sem a recusa e insubmissão às
formas prescritas e obsoletas.

4. ÉTICA GESTÁLTICA NO ACOLHIMENTO A VÍTIMAS E INTERVENÇÕES COM


AGRESSORES

É possível que haja uso ético da violência? É possível que nos


transformemos em uma sociedade sem uso das violências? Essas
questões fundamentam um debate contemporâneo ainda sem resposta,
contudo, o que sabemos concretamente é que há grupos que são
majoritariamente vitimas e grupos que se constituem como agressores
e que o que enquadra pessoas em um ou outro desses grupos diz respeito
às normas sociais, papeis instituídos e relações de poder. Mombaça
(2021) nos apresenta o conceito de redistribuição de violência, segundo
a autora, não devemos confundir a resposta e reação das vítimas com a
violência primária cometida para submetê-las. Para a autora, é preciso
reagir como possível e com uso das ferramentas possíveis.
Acerca da clínica psicológica, que certamente não deve se
constituir como espaço de reprodução de violências e sim funcionar no
sentido de defesa das pessoas em aflição, podemos pensar na função
ética de terapeutas no acolhimento a vítimas e também na situação de
atendimentos a pessoas que produzam ou reproduzam violências.
Talvez seja essa a nossa contribuição para transformar as coisas, atuar
em função de uma clínica que uma clínica que atua por justiça social e
Leda Mendes Gimbo • 367

não por benevolência ou caridade, implicada com as questões relevantes


do tempo em que vivemos.
A partir da Gestalt-terapia, podemos pensar que o acolhimento a
pessoas em situação de violência é o acolhimento à destituição e
vilipendio de identidades, que limita, interdita e impossibilita a função
ego de operar livre e espontaneamente, bem como da reificação de
formas de interdição e silenciamento compondo o fundo habitual de
vividos. A repetição das situações de violência em diversos contextos
produz nas vítimas efeitos desoladores. A relação terapêutica não deve
se erguer como espaço de reificação de violências, mas de
fortalecimento identitário, acolhimento da aflição, espaço de re-criação
de desejos e identificações, aos poucos, no ritmo de quem vive e sente,
fortalecimento da função ego para agir em função de outros papéis que
não ao de vulnerabilidade e, assim, poder operar com outros fundos.
Como terapeutas trata-se de implicar o corpo e o trabalho a favor da
função personalidade de outra pessoa, o que não pode acontecer quando
estamos diante de pessoas que promovem violências.
É imprescindível dizer que vivendo em uma sociedade em que a
violência é norma, também somos pessoas passiveis de seus usos e
reproduções. Sendo assim, a primeira tarefa que temos enquanto
terapeutas é reconhecer nossas violações e nos educar para
transformar-nos. Dito isso, é importante dizer que não são pessoas
perversas e que as pessoas que cometem violências não são portadoras
de transtornos ou psicopatologias (não em sua grande maioria), são
pessoas comuns, que não aprenderam a questionar e criticar o
patriarcado, ou que dele se beneficiam e atuam para manter seus
lugares de privilégio. Também é íntegro dizer que pessoas que cometem
violências não se resumem a essa faceta de suas existências, essas
368 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

pessoas também podem viver de outros modos e crescer, mas essa


tarefa, em se tratando de pessoas adultas sobretudo, é responsabilidade
delas mesmas. Isso quer dizer que não compete a nós como terapeutas
acolher violências, não há acolhimento para violências. Essa dimensão
deve ser interpelada com o sentido ético das intervenções clínicas que
aplicamos a ajustamentos neuróticos: desvelar a forma e ser corpo junto
para que a pessoa que a produz se responsabilize por ela e decida o que
fazer.
Quando, e não é raro, estamos diante da confissão de violências,
devemos nos implicar contra o lugar social que agressores ocupam, bem
como acreditar que as pessoas podem não se resumir à reprodução de
violências e continuar repetindo essas formas depois que dão conta
delas. Enquanto com as vítimas, o movimento clínico é de acolher e
validar a denúncia, lembrando que grande parte das vezes custa muito
conseguir nomear e dizer das dores e violências sofridas, que narrar é
como reviver. Nesse sentido, a ética da clínica gestáltica é acolher e
fortalecer para transformar. Pode parecer pouco, mas a potencia das
pequenas revoluções pode se multiplicar.

CONCLUSÃO: A RESISTÊNCIA - PEQUENAS LUZES

“Primeiro, desapareceram mesmo os vaga-lumes? Desapareceram


todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais
intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se
apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da
noite, apesar dos projetores ferozes?” (Didi-Huberman, 2014, p.45). Os
vaga-lumes aparecem na obra de Pasolini como personagens erráticos
e intocáveis que resistem às opressões do mundo em que vivem com
Leda Mendes Gimbo • 369

alegria e furor (Didi-Huberman, 2014). As pequenas luzes vivas correm


o risco de desaparecer e ser aniquiladas pelas luzes elétricas e grandes
holofotes das cidades. Estariam os vaga-lumes desaparecendo?
Também assim as mais brilhantes pessoas correm o risco de ser
esmagadas pelos holofotes massivos dessa distopia tecnológica na qual
vivemos?
Na contemporaneidade, regida pela biopolítica, o estado de
exceção é a regra. A elevação das formas de vida fascistas e dos
mecanismos morais de controle da vida convergem com as formações
políticas ostensivamente combativas a quaisquer diferenças e afetos
alegres. Investir na clínica como ferramenta de transformação social é
a missão da Gestalt-terapia, sempre subversiva, questionadora e
atualizadora das formas. Os vaga-lumes resistem, “alguns bem perto de
nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do
horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua
minoria, seu desejo partilhado” (Didi-Huberman, 2014, p.46), assim
sejamos também terapeutas que resistem.
Sobre os agressores, violadores, reprodutores de violências,
aqueles que a banalizam, que não dão conta e nela se alienam ou que a
usam deliberadamente como ferramenta, que consigamos desvelar, e se
não nos for possível, a cada pessoa o peso da responsabilidade sobre a
vida que elege viver, a vida implicada na reprodução de violências pode
parecer poderosa e segura, mas é impotente e não feliz: “quando alguém
realmente quer matar, em vez de explodir na impotência e, de perceber
a importância da impotência, ele tenta evitar a impotência matando.
Matar é sempre sinal de impotência” (Perls, 1977, p. 48).
370 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

REFERÊNCIAS

Alvim, M. (2018) O id da situação. In: ROBINE, J. M. (Org.). Self: uma polifonia de Gestalt-
terapeutas contemporâneos. Ed. Escuta.

Alvim, M. (2014) A poética da experiência: Gestalt-terapia, fenomenologia e arte. Garamond.

Didi-Huberman, G. (2014) Sobrevivência dos vaga-lumes. Ed. UFMG.

Foucault, M. (2001) Conversa com Michel Foucault. In: Motta, Manoel Barros da (org.).
Ditos e Escritos VI. Repensar a política. Forense Universitária.

Foucault, M. (2006). O poder psiquiátrico. Martins Fontes.

Gimbo, L. M. P. (2017) Análise arquegenealógica da Casa de Saúde Santa Teresa: abertura,


manutenção e fechamento de um hospital psiquiátrico. Dissertação de Mestrado
(Psicologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

Gimbo, L. M. P. (2021) O fechamento de um hospital psiquiátrico como acontecimento:


desdobramentos da reforma psiquiátrica. Tese de Doutorado (Psicologia) -
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

OMS, (2002) Krug E. G. et al., eds. World report on violence and health. Geneva, World
Health Organization.

Perls, F. (2002) Ego, fome e agressão. Summus.

Perls, F. (1977) Gestalt-terapia Explicada. Summus.

Perls, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. (1997) Gestalt-terapia. Summus.

Perls, L. (1992) Living at the Boundary. A publication of The Gestalt Journal Press.
16
A IMPOSSIBILIDADE DE NEUTRALIDADE NA CLÍNICA
GESTÁLTICA: POR UMA GESTALT-TERAPIA
CONTRANORMATIVA
The impossibility of neutrality in the gestalt clinic: for a counternormative
Gestalt-therapy
La imposibilidad de la neutralidad en la clínica gestalt: por una terapia
Gestalt contranormativa

Kahuana Leite

INTRODUÇÃO

O que escutamos e como escutamos não acontece de forma isolada,


a-histórica ou apolítica. A escuta está imbricada em um emaranhado de
fenômenos, Perls, Hefferline e Goodman ou PHG (1951/1997) nas páginas
iniciais do livro Gestalt Therapy descreveram que em qualquer estudo
sobre pessoas, “psicologia ou psicoterapia, temos de falar de um campo
no qual interagem pelo menos fatores socioculturais, animais e físicos”
(p.43) e que fenômenos históricos e culturais estão intrínsecos às coisas
que se apresentam. Além disso, esse emaranhado de fenômenos se
desdobra em uma fronteira num campo interacional.
A fronteira em Gestalt-terapia é compreendida como tempo-lugar de
acontecimentos, do encontro com o mundo, diversidade e
estranhamentos, excitação e criação (Alvim, 2019). É nessa fronteira em
que a existência emerge, sendo indivisível a compreensão do ser, sem a
relação com es outres no mundo. A fronteira assume uma forma
subversiva em Gestalt-terapia, escapa ao significado conhecido na
372 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

atualidade (Alvim, 2019). As fronteiras, são comumente compreendidas


como meios de divisão e separação, entre “territórios, nações, espaços,
povos” (Ibi., p. 881), não são naturais, segregam e perpetuam
desigualdades. Esse cenário restringe acesso a lugares e espaços às pessoas
que não se enquadram nas normatividades. Norma e normatividade, nesse
ensaio, são compreendidas como formas que regulam condutas e se
apresentam como padrões “naturais” a serem respeitados.
As fronteiras que (de)limitam lugares não são naturais, tais como
as de classe, gênero, raça, práticas espirituais, elas são estabelecidas e
mantidas através de violências. Os espaços fronteiriços a partir da
colonização demarcam existências negadas nos projetos neoliberais e
imperialistas de governos. Nessa perspectiva, aquelus que transgridem
são lides como “anormais”, contudo, estes ganham uma perspectiva de
mundo inclusiva, uma “consciência de fronteira ou mestiza” (Anzaldúa,
1999).
A fronteira em Gestalt-terapia assume outro significado, pensada
por corpas imigrantes como de Fritz Perls e Laura Perls, e queer 1 como
de Paul Goodman. Alvim (2019) nos faz um convite-provocação, para
pensar enquanto Gestalt-terapeutas uma clínica do reconhecimento
mútuo, que opere numa compreensão subversiva de fronteira, como
fizeram es fundadores da Gestalt-terapia. Acrescido ao convite-
provocação de Alvim (2019), considero urgente (re)pensar o que significa
uma clínica política, costumeiramente, atribuída a Gestalt-terapia.

1
Segundo Louro (2001) “Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro,
extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados
homens e mulheres homossexuais. (...) Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é
assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua
perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a
normalização – venha ela de onde vier” (p. 546).
Kahuana Leite • 373

Considero importante destacar o que justifica a emergência desse


ensaio, a Psicologia é formada majoritariamente por pessoas brancas e
cisgêneras, as formações em Gestalt-terapia majoritariamente ainda
não abordam temáticas referentes a sexualidade, gênero e raça. O
contexto social, político e econômico do Brasil enfrenta forças fascistas
e conservadoras, destruição de Políticas Públicas em saúde mental,
como o incentivo a hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas
que operam de modo violento sobre corpas que nesses locais são
internadas. Dentro desse cenário manter discursos a-políticos
demonstram distanciamento de uma clínica enraizada na relação, tendo
em vista que a relação não diz respeito apenas ao setting terapêutico,
mas a um mundo que nos rodeia e atravessa constantemente.
A minha escrita e o interesse do tema, não saem ilesos da minha
história. Sou uma corpa 2 não-binárie, bissexual, sulista que viveu parte
da vida ao norte, geralmente branca demais para ser negra ou negra
demais para ser branca, para mim “encardida” como costumava ouvir
na infância ou a “negrinha, na minha casa não entra” 3. Em algumas
casas não posso entrar, em outras pela claridade da pele o acesso é
facilitado. Na casa daquela senhora, não pude, esperei horas na varanda,
com o coração comprimido, eis o pacto da branquitude que trago nesse
ensaio, uma cumplicidade entre “iguais”, não importa o quão “bem-
sucedido” tenha sido a política de embranquecimento.

2
O uso da palavra “corpa” é consonante com uma perspectiva não-binárie, no intento de ressignificar e
destruir adjetivos e substantivos da linguagem “UNIversal” androcêntrica. Ao longo do ensaio
substantivos flexionados em gênero masculino/feminino “o/a” serão terminados em “e/u”. Essa decisão
é um posicionamento ético-político ao passo que a dicotomia de gênero como estatuto linguístico se
constitui como uma violência colonial.
3
Situação em que por volta dos dez anos fui convidade por uma amiga do colégio para ir à casa de sua
avó a qual não me conhecia. Na ocasião, chegando na casa, fui impedide de entrar pela avó com a frase
citada
374 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Escrevo pinceladas de quem sou – ou acho - para que aquelus que


não são habitantes das bordas, se acheguem, para explicitar que me
construo na intersubjetividade dos encontros ora dolorosos, ora felizes
e cheios de potência, de uma vida vivida na relação. Escrevo acreditando
nas brechas que se formam nos encontros que se dão nem “fora” e nem
“dentro”.
O ensaio objetiva pensar a clínica em Gestalt-terapia a partir de
uma postura contranormativa e num convite para tornar figura –
aparente – a perspectiva política da abordagem e a impossibilidade do
exercício de uma clínica gestáltica neutra. As discussões apresentadas
emergiram também de reflexões suscitadas no grupo de pesquisa
“Situação contemporânea e dimensões estruturais: perspectivas em
fenomenologia crítica e abordagem gestáltica” na Universidade Federal
do Rio de Janeiro – UFRJ, grupo coordenado pela Profa. Dra. Mônica
Botelho Alvim. A fundamentação teórica se desdobrou na obra Gestalt
Therapy (1951/1997) em diálogo com autoras contemporâneas, pensando
noções como fronteira, campo, figura-fundo e estruturas de poder como
cisheteronormatividade, binarismo e branquitude. Por fim, endereço
essa escrita à comunidade gestáltica brasileira, acreditando, caso haja
disponibilidade, na possibilidade transformadora dos encontros.

“NÃO EXISTE REALIDADE NEUTRA” (PHG, 1951/1997): HÁ FUNDO(S)


NAQUILO QUE SE TORNA FIGURA!

A noção de figura-fundo em Gestalt-terapia emerge a partir de


empréstimos teóricos da Psicologia da Gestalt, trazidas
fundamentalmente por Laura Perls que fora “profunda conhecedora da
Psicologia da Gestalt e da Teoria Organísmica de Kurt Goldstein” (Alvim,
2007, p. 14). PHG (1951/1997) ao relatarem os aspectos positivos da
Kahuana Leite • 375

Psicologia da Gestalt falam sobre sua preocupação com a percepção, em


contrapartida, tecem críticas ao fato de não se atentarem a perspectiva
estática que assumiram, destacando que há fundo de experiências em
que uma figura se torna aparente e isso ocorre de modo dinâmico.
A Gestalt-terapia enquanto abordagem psicoterápica, emergia
num contexto histórico que priorizava o intrapsíquico, contudo, fez o
movimento contrário, descentrou o indivíduo encerrado em si para uma
pessoa em relação com e no mundo. É comum ao longo do livro Gestalt
Therapy (PHG, 1951/1997) a ênfase nos termos “organismo/ambiente”,
uma forma didática de abordar que existimos e nos fazemos num campo
relacional. O organismo que contata o ambiente não é um “eu” frente a
um “objeto”, mas um “eu” em relação, ou seja, “o princípio para o
pensamento gestáltico é sempre as relações. A subjetividade é sempre
intersubjetividade ou até mesmo intercorporeidade” (Belmino, 2021, p.
105).
O encontro eu e mundo se dá em uma determinada época, cultura,
sociedade, é atravessado por raça, classe, gênero, sexualidade e outros.
O self compreendido como um “sistema de contatos a qualquer
momento” (PHG, 1951/1997, p. 235), “pode ser considerado como estando
na fronteira do organismo, mas a própria fronteira não está isolada do
ambiente; entra em contato com este e pertence a ambos” (p. 179). O self
é compartilhado socialmente, num processo temporal de construção-
des-construção de significados. A possibilidade de encontro criativo e
inventivo emerge na relação, “o campo existente que se converte no
momento seguinte é rico em novidade potencial” (Ib., p.173), o self não
está preso a categorias, ele flui. Nesse sentido, é destituído da pessoa
terapeuta o lugar de suposto saber, “ela simplesmente é parte do campo”
(Ib., p. 174).
376 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O contato que estabeleço no campo, antes de ser concreto, é o


contato com fenômenos que estão (in)visíveis. Alvim (2019) ao citar
Merleau Ponty (2000) descreve que as forças invisíveis estão articuladas
no campo, o que se mostra como visível tem o seu sustento em um fundo
invisível que se apresenta na coexistência e que impregna o modo como
olhamos no e para o mundo. Alvim (2019), aponta que a invisibilidade de
dimensões estruturais de opressões coopera para objetificação de
existências, a partir de uma perspectiva analítica presente no saber
científico eurocentrado e que culmina (re)produzindo violências.
Alvim e Castro (2015) aponta a necessidade de pensarmos as
dimensões “sócio-históricas, políticas e econômicas presentes na
situação e em sua estrutura de significações sedimentadas” (p. 43),
psiquismo e social estão em constante interrelação. A partir dessa
perspectiva situada, podemos descentrar o sofrimento de um lugar
intrapsíquico, para um sofrimento que acontece na relação. Essa noção
nos afasta de uma postura “expert”, hierarquizada e patologizante que
diz respeito a ume terapeuta fora da situação e supostamente neutre.
PHG (1951/1997) já havia dito “não existe realidade neutra,
indiferente” (p. 47) ao criticarem a ciência positivista, descrevendo
como esta operava de modo a inibir a criatividade e condicionar social
e sexualmente as pessoas. Robine (2015) ressalta que “a realidade não é
um dado. A realidade na situação terapêutica, tampouco” (p. 117). As
intervenções que realizamos não saem ilesas, carregam história em
movimento; as palavras as quais usamos foram construídas e são co-
construídas na relação em andamento.
Favero (2020a) sinaliza que a clínica é dada a partir do olhar de uma
ciência cisgênera. Ao pensarmos esse sistema-mundo, nos deparamos
com a cisnorma, CIStema que naturaliza a cisgeneridade como saúde e
Kahuana Leite • 377

patologiza qualquer identidade não condizente com as atribuições


aprioris. O ato de nomear a cisgeneridade, emerge a partir do
transfeminismo no intento de demonstrar que “cis” apesar de não se
pensar assim, é também uma identidade de gênero socialmente
construída (Jesus, 2014; Vergueiro, 2018; Nascimento, 2021).
A todo tempo estamos sendo interpelades a aceitarmos uma
representação social como sendo própria, integrando-as, embora
pertençam a um imaginário reforçado por uma série de instituições que
encontram apoio no Estado, na família e na Igreja (Butler, 2015;
Lauretis, 1994). Essa lógica opera pela via da “feminilidade” e
“masculinidade”, normas heterossexuais binárias a serem repetidas e
performadas, sendo tal repetição dos gêneros normativos um requisito
para a sobrevivência e reconhecimento que “sedimenta a
heterossexualidade na vida do sujeito generificado” (Burke, 2020, p. 165,
tradução nossa).
O binarismo mediado pela cisheteronorma atribui categorias
“naturais” e “não naturais” e se sustenta através de conceitos que
expressam noções fixas, “homem ou mulher”, “heterossexual ou
homossexual”, “normal ou anormal”, “certo ou errado”. A
heterossexualidade, por exemplo, é apresentada de modo normativo e
valorativo, ou seja, torna alguém pertencente e reconhecide
socialmente desde que esteja de acordo com suas premissas (Vergueiro,
2018; Burke, 2020). A naturalização da heterossexualidade a partir do
contexto colonizador europeu ancorado no cristianismo contribuiu e
contribui para a subordinação de corpas não normativas e valorização
da mononormatividade – monogamia enquanto norma compulsória –
como regime de afeto desejável (Porto, 2018; Núnez, Olveira & Lago,
2021).
378 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Belmino (2022) descreve que nossa intervenção frente a contextos


atravessados por violências estruturais, que nomeio como violências
normativas, necessitamos emprestar nossas corpas enquanto
terapeutes. Reitero a importância de fincar na relação o suporte e
acrescento um questionamento: que corpa é essa que se oferece? O
espaço clínico tradicional com suas paredes e poltronas, é
prioritariamente território de corpas brancas 4. É preciso que corpas
brancas se (re)pensem para que possam oferecer acolhimento. A
brancura da pele concede privilégios e se organiza estruturalmente nas
instituições como norma. Nomeada como branquitude ela funciona
como um “sítio teleológico de usurpação global e colonial” (Yancy, 2020,
p. 69, tradução nossa). A identidade racial branca trabalha de modo
estrutural na sociedade como um local em que apenas as pessoas
brancas são constituídas de “pessoas enquanto pessoas” (Yancy, 2020, p.
69, tradução nossa).
A narrativa que sustenta a identidade racial branca como
“superior” é que a ela pertence “naturalmente” a beleza, inteligência e
postos de poder. Esse processo omite a branquitude como uma raça
historicamente construída e mantida através de sistemáticas opressões.
A estrutura racista naturalizada, “a-histórica”, é (re)produzida e
validada por outras pessoas brancas, operando uma espécie de confisco.
O confisco acontece a partir de encontros disruptivos que violentam
corpas não-brancas, no cotidiano em sociedade, em que estes são
encontrades e confrontades pelo olhar hegemônico da branquitude
(Yancy, 2020).

4
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em 2017 em pesquisa
prestada ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) constatou que referente a raça, apenas 16,5% das
psicólogas são negras, o que corresponde a 24.162 pessoas de 146.721 pessoas.
Kahuana Leite • 379

Cida Bento (2022) descreveu que a problemática racista que


enfrentamos no contexto brasileiro, decorre da supremacia imbricada
na branquitude que se manifesta nas relações de dominação nas
múltiplas esferas da sociedade (política, cultura, economia, segurança,
mercado de trabalho, dentre outras). A supremacia é expressa por um
pacto, o qual Bento (2022) nomeou, como mencionado anteriormente,
de “pacto narcísico da branquitude”, não verbalizado e com fins de
cumplicidade entre pessoas brancas. A sua transmissão ocorre por meio
da perpetuação de um “funcionamento homogêneo e uniforme” (Bento,
2022, p. 18) em que as pessoas que serão empregadas e que irão ocupar
cargos elevados nas instituições sejam públicas ou privadas,
majoritariamente são constituídas de homens cisgêneros e brancos. O
pacto contém um elemento narcísico ao passo que serão admitidas
apenas as pessoas que possam perpetuar o “universal”, o lido como
“natureza”, como se fossem habilidades intrínsecas e, portanto,
“mérito” da branquitude.
Jesus (2021) nas páginas iniciais do livro “Trans-resistência:
pessoas trans no mercado de trabalho”, apontou que o Estado brasileiro
precisa ser responsabilizado pela ausência de políticas públicas para
inserção de pessoas trans 5 no mercado de trabalho formal. Ausência que
vulnerabiliza travestis e transexuais negras que trabalham com a
prostituição, relegando a elas condições precárias e suscetíveis a
violência.
O Brasil é o país que mais assassina pessoas trans no mundo,
principalmente, travestis e mulheres trans negras (ANTRA, 2022). A

5
O termo “trans” nesse ensaio será utilizado contemplando as identidades travestis, transexuais,
mulheres transgêneras, homens transgêneros, pessoas intersexo, pessoas transmasculinas e pessoas
não-bináries.
380 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

corpa é território onde a violência se legitima, onde o desagrado da


cisheteronormatividade se concretiza. É na corpa também que
reinventamos outros modos de existir. Uma corpa trans é uma corpa
denúncia, denuncia a decadência de um cis-tema que não se sustenta e
por isso pune, vigia, controla. Um cis-tema pretensamente universal
que (in)viabiliza lugares aos que dissidem. É sobre a corpa em devir que
a palavra se instaura “menino ou menina?” ou nos embalos da ministra
bolsonarista “rosa de menina e azul de menino”.
O atual cenário político imprime progressivamente o fascismo,
pela recusa da diferença e manutenção de relações de poder que
avançam social-política e existencialmente (Alvim, 2019). O fascismo se
desdobra em um discurso nacionalista presente no contexto brasileiro,
tal discurso se mostra como única solução para os problemas
vivenciados pelo país e apresenta um líder totalitário que despreza as
minorias e supervaloriza o militarismo.
Ainda que o panorama seja marcado por sistemáticas violências,
reduzir nossas histórias a dores é o pior dos crimes “é dar o troféu pro
nosso algoz e fazer nóis sumir” como bem disse Emicida (2019). Letícia
Nascimento (2021) descreveu que apesar das dores proporcionadas por
um contexto machista e sexista, ela teve “respiros, prazeres
clandestinos de uma infância transviada” (p. 19), além disso, “a infância
foi um laboratório inventivo de outras corporalidades generificada, isto
é, outros modos de produzir corporalidades e gêneros” (p. 19). PHG
(1951/1997) ressaltam como a sociedade normativa tolhe a criança para
que dela se faça um adulto produtivo que pague boletos e impostos. A
pessoa adulta “madura” emerge do cerceamento de uma criança
inventiva, PHG (1951/1997) assemelham a criatividade da criança com a
do artista, ambos desvalorizados na sociedade produtivista do capital.
Kahuana Leite • 381

Nesse sentido, contrários a uma perspectiva que perversifica a criança


e toma o comportamento infantil como indesejável, a Gestalt-terapia
faz o trabalho inverso, é pelo apoio à criança que se incentiva a
criticidade e criatividade. A “maturidade” é concebida “no interesse de
um ajustamento desnecessariamente rígido a uma sociedade rotineira
de valor duvidoso” (Ib., p. 105-106).
Uma das críticas em PHG (1951/1997) se concentra na ênfase dada
à palavra na composição das neuroses do cotidiano – escapando a
poesia. Nem só de palavra vive o ser. O gesto, a postura, as pausas, o
sentir, a entonação da voz, são fenômenos que compõem o encontro
entre terapeuta-cliente (Alvim, 2014). Distante da lógica cartesiana,
minha corpa atua como um todo, sendo assim, minha escuta não
acontece apenas com meus ouvidos, mas com todo o aparato que me faz
corpa, que me faz presença encarnada. Não há fuga que me distancie de
quem sou, “não dá pra ser trans e ignorar as violências e brutalizações
diárias de uma nação que é líder mundial no ranking de assassinatos
transfóbicos” (Favero, 2020a, p. 414).
Há alguns meses pelo texto “Saberes Localizados: a questão da
ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” de Donna
Haraway (1995), uma pergunta brotava no meio de suas palavras, “com
o sangue de quem foram feitos os meus olhos?” (p. 25). Na ocasião
Haraway (1995) fazia uma provocação frente a necessidade de localizar
a produção de saber e reconhecer a perspectiva colonizada da forma
como pesquisamos. Não basta ouvir, assim como a psicoterapia por si só
é insuficiente frente a um mundo que não nos quer vives. Alvim (2019)
descreve que colonizar o outre dispõe sobre um ordenamento no
intento de “civilizá-lo” apagando sua subjetividade, seus costumes, suas
crenças. Esse outre então deixa de ser tão outre para ser olhado como
382 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

aberração, marginal, “pervertidos e mal-amados” como diz a canção


“Não recomendado” de Caio Prado (2014).
No processo de socialização em uma sociedade estruturada em
opressões somos impelides ao encobrimento de quem somos, como o
custo para obtenção de reconhecimento. A possibilidade de conviver
com a diversidade e o exercício da alteridade são suprimidos em
regimes normativos, muitos são os artifícios, incluindo a violência
como meios de silenciamento, o “armário” acaba ocupando um lugar de
sobrevivência. Os contextos hostis tornam inadmissíveis outras formas
de ser e estar-no-mundo, exigindo constante automonitoramento das
próprias expressões, exceto para os que se encontram incluídes nas
concepções naturalizadas do sistema branco-binário (Alcoff, 2020).
Não estou isolade. Estou-no-mundo, o “mundo” é entendido como
dinâmico e constituído multiplamente” (Alcoff, 2020, p. 272, tradução
nossa). A forma com que o eu é experienciado se atrela ao contexto e
suporte recebido, as possibilidades de expansão e criação, assim como,
as impossibilidades (PHG, 1951/1997). O “eu” não é estático, é múltiplo,
assim como os muitos espaços que se transitam no mundo, existe uma
relação dialética entre o eu sentido em minha interioridade e o vivido
em público.
No emaranhado de sistemas políticos estruturado em opressões, é
onde se perpetuam invisibilizações, que estão além do não acesso a
dimensões geográficas – como no caso de fronteiras territoriais - mas
também ao não direito de existir de forma digna (Alvim, 2019). Dores
são situadas, “parte do que nos atinge está no mundo” (Favero, 2020b,
p.86), não é possível teórica e concretamente pensar em acolhimento,
intervenções, projetos terapêuticos deslocados do mundo e do fundo
que sustenta aquilo que se torna figura.
Kahuana Leite • 383

O QUE PODE UMA CLÍNICA GESTÁLTICA CONTRANORMATIVA?

Quadros, formatos, cortes, cor


Retratos falados, perfil, amador
Certo, errado, sim, não
Não foi pra isso que escrevi esta canção

Majur - Flua

A clínica em Gestalt-terapia, pode se apresentar como uma


fronteira de crescimento, compreendendo os aspectos normativos e
contextualizando ética, social e politicamente o sofrimento. O processo
de naturalização – que nada tem de natural, como já dito - de
(não)lugares previamente estabelecidos, viabiliza uma vivência
estruturalmente e institucionalmente exploradora. Ao pensarmos em
uma neurose social, essa não estaria nas excentricidades, mas
justamente no que é tido como "o modo comum de vida" (PHG, 1997, p.
119).
Não é preciso outra Gestalt-terapia para sustentar uma clínica
contranormativa, a teoria apresenta brechas para que questionemos o
que é apresentado como acabado, “é abordando, apoderando-se de
velhas estruturas e alterando-as que o dessemelhante se torna
semelhante” (PHG, 1951/1997, p. 47). Me interessa a possibilidade de
destruir os muros – velhas estruturas - dos consultórios que mais tem
a ver com fronteiras que segregam do que espaços-tempo de criação,
encontro e reconhecimento. A Gestalt-terapia em solo brasileiro ainda
é permeada por formações elitistas e distantes de questionamentos,
nutrida por repertórios individualizantes e que desconsideram
atravessamentos de raça, classe, gênero e sexualidades (Nascimento,
2019). Paulo Barros no texto “Experiências em Gestalt-terapia diante do
384 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sofrimento LGBTQI+” (2020) questiona “de que forma, nós, Gestalt-


terapeutas, temos nos posicionado diante das situações de violência e
opressão? Nossa atuação alimenta campos de sofrimento ou campos de
transformação?” (p.86).
Crescer e transformar, se apresentam como possibilidade do
encontro com o desconhecido, “o self não sabe de antemão o que
inventará” (PHG, 1951/1997, p. 173). Nesse sentido, a clínica em Gestalt-
terapia assume um lugar de desconstrução e recriação de
possibilidades, com repercussão na lógica social vigente. Isso requer
uma perspectiva enraizada na relação, distante de dicotomias e além
das paredes do consultório, “uma psicoterapia incisiva é
inevitavelmente um risco social” (Ib., p. 116). A Gestalt-terapia está,
impreterivelmente, vinculada a uma postura crítica e, portanto,
apresenta incompatibilidade com noções de neutralidade das quais
usufruem as estruturas de opressões.
A mudança instaurada pela Gestalt-terapia ao considerar o
descentramento de um psiquismo para o campo, impossibilita qualquer
intervenção desarticulada de uma perspectiva social, atravessa
qualquer concepção que temos sobre nós mesmes, apontando para sua
permanente mutabilidade. Robine (2005) salienta “perdemos a
normatividade e com ela a necessidade de conhecer uma "verdade" que
não é apreensível senão como ficção” (p. 112).
O que aconteceria com nossas intervenções se situássemos nossas
escutas num mundo que opera violentamente sobre determinadas
corpas? O que aconteceria com nosso “olhar clínico” sobre ajustamentos
neuróticos e psicóticos quando entendidos como ficções? Tenho mais
perguntas do que respostas, mas estou convencide que perder as
Kahuana Leite • 385

“verdades” seja um possível caminho pra me fazer-des-fazer Gestalt-


terapeute.
Letícia Nascimento, numa recente live feita nas redes sociais da
Associação Brasileira de Gestalt-terapia (2022), disse o seguinte “você
não vai deixar de ser uma pessoa branca quando me atende, mas você
pode se colocar na periferia da sua branquitude, porque ali naquela
fronteira é o nosso encontro (...) mas se você se colocar no centro não
haverá diálogo”. Aproximação requer deslocamento, contrariar o centro
e se mover às beiras. Assumir as normatividades como ficções, girar o
que entendemos por Psicologia e Gestalt-terapia, um giro feito em PHG
(1951/1997) que nos tira do eixo, se assim nos dispusermos e coloca em
questão nossas próprias “verdades”, tão caras à norma. Esse é um
convite que se estende às psis cisgêneras, brancas e heterossexuais, o
que poderia acontecer se assumissem suas identidades como ficções?

CONSIDER(AÇÕES) FINAIS

O presente ensaio teórico foi um arriscar-se, “ao crescer o self se


arrisca – arrisca-se com sofrimento caso tenha evitado durante muito
tempo arriscar-se, e, por conseguinte deve destruir muitos
preconceitos, introjeções, ligações com o passado fixado” (PHG,
1997/1951, p. 174). Arriscando risco os modelos, normas e condutas
rígidas, compreendendo o sofrimento como cerceamento da fluidez
numa sociedade normativa, “deveria ser óbvio que a falta de curiosidade
estarrecedora das pessoas é um sintoma epidêmico” (Ib., p. 138).
A clínica psicoterápica não é nem pode ser a solução de um bem-
viver, ela não está isolada de uma sociedade estruturada em opressões.
Considerar os aspectos políticos dela, constitui também agir, lutar pela
386 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

garantia pública de seu acesso e a responsabilidade do Estado nesse


processo. Entendendo que “se as instituições e os costumes fossem
alterados, muitos sintomas recalcitrantes desapareceriam
repentinamente" (PHG, 1951/1997, p. 48).
O adoecimento irrompe de um campo, não refletir sobre as
dimensões estruturantes desse campo que atravessam es consulentes e
a própria relação terapeute-consulente ou reduzi-los às suas
identidades é contribuir justamente para o que uma clínica gestáltica é
avessa: a manutenção de “verdades”. Não há neutralidade nesse
percurso. O “luxo” da neutralidade só emerge para quem se atribui
“natureza”.
Nossas escutas não saem ilesas, as relações de poder e às violências
presentes no campo. PHG (1951/1997) sinalizaram a necessidade de
“considerar a estrutura dinâmica da experiência não como uma pista
para um ‘inconsciente’ desconhecido ou um sintoma, mas como sendo
ela mesma aquilo que é importante” (p. 51), a clínica psicoterápica
gestáltica não pode ser aliada de um método de correção e adequação às
normatividades e sim um espaço de crescimento. O resgate a política
imbricada na abordagem não acontecerá senão diante de
tensionamentos, que podem ser mobilizadores de desconfortos aos que
possam estar acomodades em suas ficções.

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17
GESTALT-TERAPIA E TEORIA QUEER:
APROXIMAÇÕES POSSÍVEIS
Gestalt-therapy and Queer Theory: possible connections.
Terapia Gestalt y Teoría Queer: posibles aproximaciones.

Clarissa Santiago Pinto

A mudança necessária é tão profunda que se costuma dizer que ela é impossível.
Tão profunda que se costuma dizer que ela é inimaginável. Mas o impossível está
por vir. E o inimaginável nos é devido.
Paul B. Preciado (2014, s.p.)

INTRODUÇÃO

Em meio a um momento histórico de constante ameaça às


liberdades e violação de direitos, onde as normas sociais de gênero
instauradas servem de alicerce e munição para violência e
aniquilamento de corpos específicos, é urgente e necessário que
reconheçamos, no campo da Psicologia e da Gestalt-terapia, as
implicações das estruturas de opressão nas relações sociais e
discutamos modos de existência/resistência possíveis frente a isso.
No intuito de escapar das lógicas individualizantes neoliberais e
para que possamos pensar camadas menos intrapsíquicas do
sofrimento humano na atualidade, é imprescindível resgatar a
compreensão de que as nossas intersubjetividades se constroem em
relações de poder que, da mesma maneira, configuram-se conforme as
Clarissa Santiago Pinto • 391

estruturas hegemônicas socialmente estabelecidas. Isto é, a partir de


um fundo comum da onde tudo parte.
Perls, Hefferline e Goodman (1997) já apontavam: “(...) se
tivéssemos instituições sensatas, não haveria também nenhum
neurótico. Do jeito que as coisas são, nossas instituições não são nem
mesmo saudáveis de maneira ‘meramente’ biológica, e as formas dos
sintomas individuais são reações a erros sociais rígidos” (p. 117).
Nesse seguimento, pode-se destacar a lógica colonial, patriarcal e
capitalista que mantém centralizada em nossa cultura – e, por
consequência, nas formas de subjetivação - a perspectiva do homem
branco cisgênero heterossexual (Belmino, 2021).
Aquelas pessoas, então, que existem no mundo em não-
conformidade com o modelo normativo hegemônico são violentadas e
destituídas de seu lugar de humanidade e dignidade a partir de
mecanismos estruturais, interpessoais e institucionais (Belmino, 2021).
Tais mecanismos funcionam de modo a se suporem naturais e
inquestionáveis, embaçando as pistas que desvelam como foram
constituídos e como se mantém em vigência, criando a falsa percepção
coletiva de que sempre existiram da forma como são atualmente.
Nessa perspectiva, a filósofa Judith Butler (2018) especifica que no
que concerne à formação normativa do gênero, o que acontece é uma
insinuação/imposição social lenta que se manifesta a partir das
expectativas e fantasias dos outros sobre nós desde os primeiros
instantes de vida, informando-nos de que forma existir e se portar no
mundo. Apesar disso, Butler (2018) afasta a ideia de que seríamos
meramente “destinatários passivos” (p. 36) das normas e de que não
teríamos algum poder de agência sobre elas.
392 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A despeito de sermos precedidos e produzidos pelas normas de


gênero, sendo irrefletidamente obrigados a reproduzi-las, há sempre a
possibilidade de que algo escape do roteiro pré-determinado (Butler,
2018). Ensinam-nos e induzem-nos a viver e expressar o gênero e a
sexualidade conforme preceitos binários e heterossexuais
(supostamente advindos de uma ordem da natureza). No entanto, assim
como a norma, a dissidência também se faz presente no corpo.
Assim, nessa escrita intenciono construir caminhos iniciais para
uma aproximação e interlocução entre preceitos da Gestalt-terapia e da
Teoria Queer que estejam a serviço de questionar aquilo que é pré-
estabelecido por normativas de gênero estruturais e que possam estar
presentes em nossa prática clínica.
Partindo da compreensão de que não há como destituir a minha
pessoalidade do meu percurso acadêmico e profissional, considero
importante localizar minha escrita, já que, junto a ela, estão atrelados
meu olhar, minhas vivências e meu lugar como corpo-no-mundo, que
não são universais tampouco se pretendem neutros.
Enquanto mulher branca cisgênera bissexual paraense, que é a
identidade política que me cabe até o momento, o interesse por
desenvolver esse tema surgiu a partir do desejo em contribuir na
construção de um saber e fazer gestáltico que seja contra-corrente a
esse poder hegemônico que encaixota, regula, violenta e aniquila os que
desviam da cisheteronorma.
Ao longo do meu processo de estudos em Gestalt-terapia e em
Teoria Queer, minha atenção foi sendo progressivamente capturada pela
potência subversiva que esses campos de conhecimento e ação
oferecem. Da mesma forma, sinto que compor o grupo de pesquisa
“Situação contemporânea e dimensões estruturais: perspectivas em
Clarissa Santiago Pinto • 393

fenomenologia crítica e abordagem gestáltica” na Universidade Federal


do Rio de Janeiro (UFRJ) com coordenação da Profa. Dra. Mônica Botelho
Alvim tem me impulsionado a imergir nessa interlocução que buscarei
apresentar a seguir.
Penso nessa construção teórica, então, como uma possibilidade de
favorecer compreensões e proposições mais críticas no âmbito
acadêmico, sociopolítico e clínico da Gestalt-terapia em consonância
com uma perspectiva queer.

SOBRE A TEORIA QUEER

O termo queer carrega em sua história um exemplo vivo de potência


e transgressão. Existindo há mais de 400 anos na língua inglesa, seus
significados e usos acompanharam o percurso da sociedade. A priori, a
expressão estava a serviço de insultar, produzindo categorias de
subalternização voltadas a pessoas marginalizadas e entendidas como
improdutivas e indesejadas socialmente. De Lauretis (2019) cita algumas
das conotações que a palavra portava: “estranho, esquisito, excêntrico,
de caráter dúbio ou questionável, vulgar” (p.397).
A partir do último século, o termo passou a ser direcionado àqueles
que desviavam das normativas sexuais e de gênero, ainda com
conotação de ofensa, xingamento e estigma. De Lauretis (2019) aponta
que foi na década de 1970 que a palavra queer passou a representar uma
resistência política. Nessa época, os movimentos sociais de gays e
lésbicas buscavam aceitação e reconhecimento, isto é, buscavam ser
assimilados e integrados no sistema social que já existia, adequando-se
às exigências cisheteronormativas. Eventualmente, essas mobilizações
já não provocavam mais tanto transtorno ao status quo (Louro, 2001).
394 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O movimento queer, por outro lado, não reivindicava o


pertencimento tampouco o status de “normal”. Ao contrário, foi
liderado por pessoas cujos corpos não tinham a possibilidade de ocultar
o estigma e que não pretendiam “higienizar” sua aparência para
enquadrarem-se.
Defendiam que a normalização (processo de integração no sistema
cisheteronormativo) não era possível para seus corpos, reivindicando
que pudessem viver fora dos padrões. Louro (2001) pontua que a
diferença que o queer representa é, sobretudo, a de não pedir para ser
assimilada e tolerada, o que torna sua aparição muito mais
perturbadora da ordem.
Nesse contexto, a expressão que antes era predominantemente um
insulto começou a ser apropriada como símbolo de transgressão e
subversão, representando uma oposição à norma e ao essencialismo e
favorecendo perspectivas mais críticas, plurais e fluidas no que diz
respeito à vivência de gênero e sexualidade (Bandeira, 2019).
Consolidada ao longo dos anos 90, a Teoria Queer dedica-se a fugir,
escapar, recusar às lógicas habituais e tidas como naturais do senso
comum e, inclusive, do saber científico, que tanto se supõe neutro,
universal e inquestionável. Trata-se de desempoderar o poder e
construir outras lógicas. É, sobretudo, uma proposta de não-saber, de
desidentificar-se. Destaca o incômodo e desvela os processos que se
escondem. Nesse sentido, Vieira (2015) afirma:

A teoria queer propõe o questionamento às epistemes (pressupostos de


saber), ao que entendemos como verdade, às noções de uma essência do
masculino, de uma essência do feminino, de uma essência do desejo. Para a
teoria queer é preciso olhar para esses conceitos e tentar perceber que não
se tratam, de forma alguma de uma essência (parág. 13).
Clarissa Santiago Pinto • 395

Considerando a cisheteronormatividade enquanto um conjunto de


normas sexuais e de gênero que condicionam as expectativas sociais e
as relações interpessoais conforme padrões heterossexuais e
cisgêneros, e, ainda, funcionam como um aparato social de verificação
da normalidade, podemos compreender pelo quê esse teria sido o
confronto mais imediato da Teoria Queer (Louro, 2001; Simakawa, 2015).
As desobediências de gênero, ou seja, as formas de expressão no
mundo que escapam das prescrições normativas nascem nas brechas da
cisheteronorma. Contrariam a engrenagem do policiamento de gênero
que se impõe em todos os espaços e revelam a fragilidade da norma, que,
apesar de ser comumente compreendida como natural, necessita de
uma grande vigilância e de uma repetição constante e incessante para
manter esse status.
Butler (2003) traz ao debate justamente a compreensão de que o
gênero é performativo. Isto é: pratica-se o gênero e a cada prática,
produz-se o gênero. A partir dessa formulação, a autora recupera o
espaço para o reconhecimento da capacidade de agência do sujeito,
aprofundando-se na noção de que é possível não ser inteiramente
consumido pelo poder da norma e construir espaços para existência e
resistência.
Longe de uma proposição ingênua, não podemos supor que essa
possibilidade de existência e ação contranormativa seja simples e fácil,
tendo em vista as situações recorrentes de violências LGBTQfóbicas e
racistas. Contudo, podemos sim compreender que a dissidência sexual
e de gênero – quando tem condições de ser vivida - possui a capacidade
de constranger as instituições supostamente estáveis e modificar a
realidade.
396 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A perspectiva queer enxerga o gênero não em si, como uma verdade


biológica, natural e isolada, mas, ao contrário, sempre em relação, em
movimento, em ato. Similar à compreensão de poder formulada por
Foucault (1979), o gênero não é algo que alguém possui de forma inata,
é algo que se exerce.

GESTALT-TERAPIA

Introduzo a Gestalt-terapia nessa discussão resgatando,


primeiramente, o caráter interdisciplinar de sua origem, tendo sido
fundada a partir de uma construção teórica com diversas fontes de
saber e influenciada pela história de seus fundadores, que cultivavam
envolvimento artístico e político.
A Gestalt-terapia ganhou espaço e notoriedade justamente em um
momento de desabrochamento dos movimentos de contracultura nos
Estados Unidos, construindo-se como uma possibilidade de abordagem
psicoterapêutica que atendia às inquietudes da juventude (Frazão, 1997).
O pensamento de contracultura, marcado pelo anseio de
transformação social, tinha como proposta principal a liberação da
experiência e do corpo. Tendo isso em vista, seus apoiantes eram
aqueles que precisavam pleitear seu direito à diferença ou à cidadania.
A contracultura repercutiu de modo mais intenso dentro de grupos
socialmente desfavorecidos, podendo-se citar como exemplo a
população preta e a população LGBT (Alvim, 2014; Oliveira, 2011).
Nessa perspectiva, Belmino (2021) pontua:

(...) precisamos reconhecer que a Gestalt-terapia não poderia ser pensada


fora dos movimentos libertários, comunitaristas, anticapitalistas e avessos
à lógica neoliberal vigente. A Gestalt-terapia vem das referências
Clarissa Santiago Pinto • 397

fenomenológicas de crítica radical ao positivismo e ao naturalismo; (...) e


ataca a marteladas os dispositivos de moralidade e de saber que buscam
dominar toda forma de diferença (p.32).

Laura Perls (2004) falava sobre a Gestalt-terapia a partir da


concepção de não-conformismo frente às normas e regulamentos pré-
estabelecidos, sendo uma prática clínica, social e política que não teria
a intenção de ajustar alguém a um dado sistema, mas, ao invés, ajustá-
la ao seu próprio potencial criativo.
Mais especificamente em um contexto de vivência de gênero e
sexualidade, Paul Goodman (2012) já denunciava o quanto era
prejudicial para as sociedades que reprimissem suas manifestações
espontâneas de vida. Goodman (2012) destacou, ainda, a importância de
que o sistema educacional de seu contexto histórico (mas que podemos
considerar a crítica ainda atual) fosse desmantelado. Para o autor, seria
incompatível viver uma sexualidade funcional nessa cultura.
Perls, Hefferline e Goodman (1997) sinalizaram que só seria
possível considerar o indivíduo pleno em sua cultura se vivêssemos em
meio a convenções que promovessem o crescimento e favorecessem a
satisfação por meio de boas instituições sociais. Da mesma forma,
destacaram reiteradamente que seria inviável pensar o indivíduo
dissociado de seu ambiente e contexto social, considerando a interação
organismo/ambiente fundamental para o desenvolvimento da
abordagem teórica e do fazer clínico da Gestalt-terapia.
Tendo isso em vista e tomando como ponto de partida o sistema
self de contato e seus modos de funcionamento, podemos compreender
a função id (aquilo que emerge em forma de excitamento) e a função
personalidade (nossas representações sobre nós construídas na relação
com o mundo) como integrantes de um fundo que se constitui por
398 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

normatividades introjetadas e confluídas. Nesse sentido, a função ego


emerge como ação performativa neurótica em resposta de um campo e
para um campo.
Vale ressaltar que as funções id e personalidade aqui mencionadas
são concebidas enquanto id e personalidade “da situação”, conforme
Alvim (2018). Isto é, dizem respeito a um fundo compartilhado, a partir
da relação presente na situação e influenciadas pela cultura. Acontecem
no campo e não de modo particular, individualizado e intrapsíquico.
É plausível, então, pensar o gênero enquanto um fenômeno
construído na fronteira de contato, que se dá a partir da relação, no
encontro. Isso implica dizer que, em uma perspectiva gestáltica, não há
como conceber a vivência de gênero como uma dada verdade biológica.
Para Gimbo (2021), a norma, por sua vez, pode ser compreendida como
aquilo que é predominantemente repetido e naturalizado no campo.
Nesse sentido, podemos conceber a cisheteronormatividade como
o habitual irreflexivo, que de forma neurótica torna os corpos
obedientes, homogêneos e aliados às estruturas de poder. Seguindo essa
lógica, é possível fazer um paralelo entre a neurose e a
cisheteronormatividade considerando que são processos individuais e
coletivos indissociáveis.
O ajustamento criador neurótico busca evitar o conflito de se
encontrar com o espontâneo dos excitamentos, especialmente se esse
espontâneo que emerge não convergir com as expectativas normativas.
Ao aprofundar-se no funcionamento do sistema self em situações de
violência – e penso que cabe perfeitamente para ilustrar algumas
vivências de gênero -, Gimbo (2021) afirma:
Clarissa Santiago Pinto • 399

O segundo ponto diz respeito à ambivalência e ao conflito que podem


resultar de um horizonte de possibilidades que, por um lado, aponta para
nossos desejos mais espontâneos, livres e honestos e, por outro, sinaliza o
risco que podemos correr quando não aderimos ao ideal social projetado no
horizonte virtual que corresponde aos desejos de nossos pais, ao ideal de
ser humano de sucesso, às identidades normativas compreendidas como
vencedoras e admiradas em uma sociedade capitalista, neoliberal, a qual
coíbe as diferenças em prol do desempenho de papéis socialmente
desejáveis (p.34).

A partir desse contexto, podemos atentar para a existência de certa


analgesia coletiva, aonde aquilo que é capaz de espantar e surgir como
novidade na fronteira de contato é silenciado, reprimido e invisibilizado
em nome da manutenção do status quo.
Assim, parte da potência do exercício gestáltico consiste em
oferecer um corpo-suporte com abertura para experienciar o
estranhamento, acolher o novo, favorecer a espontaneidade da
experiência, ultrapassar o já sabido e instituído e ser resistência frente
a reproduções neuróticas cisheteronormativas que geram sofrimento.
Oliveira e Belmino (2021, p.18) afirmam: “a experiência desviante que
nos acomete na forma dos afetos e das sensações assume
preponderância na clínica gestáltica: uma clínica proposta a partir do
desvio, e não da norma.”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Certamente não há proposta teórica tampouco prática clínica que


seja impenetrável e imune aos efeitos do neoliberalismo ou de qualquer
outro fenômeno sociocultural relevante. A Psicologia e, mais
especificamente, a Gestalt-terapia foi, em muitos níveis, capturada por
400 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

lógicas individualizantes e cisheteronormativas que funcionam de


modo a homogeneizar as pessoas e cumprir prescrições sociais.
Nesse sentido, é urgente que resgatemos as bases transgressoras
da Gestalt-terapia para que se possa praticar uma clínica ampliada com
implicação social, que não se isente de um papel contrahegemônico e
honre a ética gestáltica de acolhimento à diferença e abertura ao
encontro com a novidade.
Penso que, para além das vidas subalternizadas e marginalizadas
pela norma, precisamos olhar para quem e para o quê as subalterniza e
marginaliza. Isso inclui, por vezes, olhar o próprio reflexo no espelho e
deparar-se com mais uma reprodutora e mantenedora de uma
engrenagem colonial, racista, cisheteronormativa, patriarcal e
positivista que predomina as relações e os espaços.
Nessa direção, Alvim (2019) sinaliza:

(...) não nos é recomendado tapar os olhos para evitar ver o que nos
inquietaria ao olharmos, mas, ao contrário disso, lançarmo-nos na aventura
do encontro na fronteira, apostando na premissa gestáltica do encontro
com a diferença que é o melhor modo de combater a polarização e a
invisibilização (p.887).

É certo que, no que diz respeito às questões de gênero e


sexualidade, a Gestalt-terapia precisa avançar na compreensão,
discussão e implicação política, tanto em termos teóricos quanto
clínicos. Penso que um caminho de resgate da sua origem poderia ser
norteador e impulsionador nesse sentido. Não obstante, considero que
a perspectiva queer, propondo o desconhecimento, o estranhamento e a
desestabilização de pressupostos rígidos e fixos apresenta um grande
potencial subversivo e político.
Clarissa Santiago Pinto • 401

A Gestalt-terapia, tal quando a Teoria Queer, é corporeificada e


encarnada. Sendo assim, deixo como reflexão final e inicial: O que mais
os Gestalt-terapeutas podem apreender da Teoria Queer na direção de
transformar seu saber e fazer?

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teoria-queer-o-que-fala-judith-butler
18
COM QUANTOS INTROJETOS SE CONSTROEM
EXISTÊNCIAS DISSIDENTES?
With how many introjects are dissident existences built?
¿Con cuántos introyectos se construyen existencias disidentes?

Camila Bugni Salerno

INTRODUÇÃO

A Gestalt-terapia entende que os indivíduos se constroem e se


reconstroem a partir de um processo relacional com o mundo e com o
outro, constituindo um campo organismo-ambiente. Perls et al. (1997)
explicam que a tarefa da psicologia é estudar como se dá o
funcionamento da fronteira de contato no campo organismo/ambiente,
ou seja, estudar como acontece a existência humana na relação com o
mundo e com o outro.
Para os autores, a capacidade de um organismo fazer contato
indica que seu funcionamento humano é saudável, esse contato é
definido como ajustamento criativo do organismo e ambiente. Dessa
maneira, o indivíduo está aware em relação às novidades que aparecem
no campo e assim, em um processo dinâmico, delibera as que são
assimiláveis, incorporando-as, e rejeita as não assimiláveis,
possibilitando o crescimento e autorregulação no campo
organismo/ambiente.
F. Perls (1988) entende que as interrupções na fronteira de contato
surgem quando o indivíduo se sente incapaz de encontrar e manter o
404 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

equilíbrio entre ele e o mundo, resultando em comportamentos


neuróticos como tentativas de ajustamentos criativos.
A introjeção é uma dessas interrupções que ocorre durante o
excitamento, o self substitui seu apetite potencial, desejo ou instinto
pelo de outra pessoa. Ela acontece quando há coerção e
incompatibilidade com seu excitamento inicial e na tentativa de evitar
o não pertencimento, a pessoa inibe seu próprio desejo e inverte o afeto
antes mesmo de poder reconhecê-lo. Neste caso, seus desejos são
sentidos como repugnantes, indesejados e imaturos e dessa maneira a
pessoa engole a coisa sem degustar ou mastigar com objetivo de
sobrevivência e manter seu equilíbrio. Polster e Polster (2001) explicam
que a pessoa ao evitar a agressividade necessária para destruir o que
existe, incorpora o que vem de fora e acaba neutralizando sua própria
existência.
Ao considerarmos o papel das normas sociais na sociedade, como a
cisheteronormatividade e o sistema de demarcações binárias, elas
aparecem como uma forma de repetição de hábitos, tanto individuais
quanto coletivos, compostos por um fundo de passado que foi
introjetado, assimilado e retido. Sendo assim, as pessoas dissidentes de
gênero e sexualidade ao não seguirem os padrões e normas sociais,
impostas pelo atual sistema hegemônico, experimentam uma coerção
por parte do ambiente e tem seus próprios desejos imobilizados. A
introjeção acontece aqui como um deslocamento de seus próprios
desejos, na adoção do desejo do outro e na substituição da construção
de seu próprio sentido e desejo pelo do outro (Robine, 2006).
As pessoas dissidentes de gênero e sexualidade, na tentativa de
pertencerem à sociedade, aniquilam seus próprios desejos e vivenciam
intenso mal estar e sofrimentos. Tal processo foi observado em minha
Camila Bugni Salerno • 405

prática clínica cotidiana em consultório particular ao atender pessoas


dissidentes de gênero e sexualidade cujas experiências vividas por elas
são marcadas por preconceitos, sofrimentos, sentimentos de serem
errados no mundo, medo, culpa, fracasso e exclusão.
Considerando que o Relato de Experiência representa uma
narrativa potente que possibilita um espaço de construção de reflexões,
problematizações e conhecimento, este trabalho utiliza essa
metodologia e foi elaborado a partir de recortes de atendimentos
clínicos realizados com pessoas dissidentes de gênero e sexualidade,
cujo objetivo é refletir sobre como as introjeções de regras, normas,
crenças e leis, como a cisheteronormatividade e os binarismos, se
expressam nas existências de pessoas dissidentes de gênero e
sexualidade; além de apontar algumas pistas e caminhos de
transformação do sentimento de fracasso em potência e do papel da
Gestalt-terapia e de Gestalt-terapeutas para uma ética da alteridade.
Os casos foram discutidos pelo viés da Gestalt-terapia e por
referenciais teóricos relacionados a gênero e sexualidade. Por questões
éticas e com o intuito de manter o sigilo, preservar e respeitar as
identidades das pessoas atendidas e dos casos clínicos foram utilizados
nomes de planetas.
A decisão pela escrita do trabalho em primeira pessoa se dá por
concordar com o que nos disseram Ginger e Ginger (1995) ao
argumentarem que o Gestalt-terapeuta trabalha com aquilo que ele é,
com seu próprio estilo e com o que sabe, integrando suas experiências
profissionais anteriores e sua experiência pessoal, confiando em sua
criatividade e sensibilidade próprias.
Cabe ressaltar que o objetivo deste trabalho não é criar diretrizes
universais e produções de verdades sobre a população LGBTQIAP+ e
406 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sobre a prática clínica prestada, mas sim promover provocações e


reflexões acerca da temática apresentada.

A ESCUTA CLÍNICA E AS EXPERIÊNCIAS COMUNS AOS CORPOS


DISSIDENTES

Durante um encontro com Júpiter, que se identifica como uma


pessoa transmasculina, ele relatou não se sentir capaz de expressar seus
sentimentos. Sua voz ao narrar uma experiência se mostrava
entrecortada a ponto de as palavras não saírem inteiras. Com o passar
das sessões e o estabelecimento de vínculo, descrevi a situação a ele e
perguntei o que estava acontecendo com intenção de trazê-lo para o
aqui-agora e fazer contato com a situação. Júpiter expos que estava
desconfortável ao me ver como uma pessoa segura e organizada e que
ele estava tentando engrossar sua voz para conversar comigo. Decido
não mais olhar para ele com objetivo de amenizar o desconforto. Após
um longo período de silêncio, ele disse que deveria falar grosso, parar
de fazer gestos com as mãos e tentar ser mais viril. Ao ser questionado
sobre como se sentia ao relatar a situação para mim, seu rosto
enrubesce e seu maxilar aparentava estar enrijecido. Ele diz se sentir
envergonhado e errado o tempo todo, acredita estar falando errado e
dizendo coisas sem sentido e coerência, que deveria falar de outro jeito.
Contou também que quando está falando com outras pessoas e comigo,
prefere o silêncio a expressar sua opinião pois sente medo de errar, ser
julgado e excluído.
As sensações que Júpiter tem de si próprio, como se sentir errado,
acreditar que não fala corretamente e endurecer os movimentos são
percebidas como sensações introjetadas. Sua mãe costumava dizer que
ele não era inteligente e que jamais conseguiria cursar graduação em
Camila Bugni Salerno • 407

uma universidade pública fora de sua cidade por ser muito imaturo.
Dessa forma, por seu desejo ter sido considerado imaturo no passado,
alienou suas próprias necessidades e abandonou seu desejo de cursar
graduação. Ele ainda, em algumas sessões, indagava minha opinião
sobre determinados assuntos e sobre sua forma de agir em algumas
situações com o desejo de saber se estava correto.
Podemos perceber que ao tentar falar grosso e ser mais viril, não
conseguiu expressar espontaneidade e experienciou um conflito. Perls
et al. (1997) explicam que todo conflito se dá nas premissas da ação, “um
conflito entre necessidades, desejos, fascínios, imagens de si próprio; e
a função do self é atravessar esse conflito, sofrer perdas, mudar e alterar
o que está dado” (Perls et al., 1997, p. 216).
Júpiter incorporou ideias, comportamentos e sentimentos do
ambiente e engoliu tudo que aparecia de fora, assim, suas próprias
escolhas, desejos e opiniões se entrelaçavam com de sua mãe e da
sociedade, fazendo com que tivesse dificuldade em diferenciar o que era
dele e dos outros.
A aceitação de sua forma de falar, se expressar com as mãos e sair
do auto silenciamento se deu a partir do desenvolvimento da awareness
em relação a expectativa social de uma performatividade de
masculinidade, bem como a retomada e assimilação de seu desejo em
frequentar uma universidade pública.
Já na psicoterapia com Vênus, que se identifica como mulher cis e
lésbica, ela me contatou para iniciar terapia por estar em conflito entre
contar aos pais sobre sua sexualidade ou esconder. Acredita que eles não
entenderiam, que perderia o amor que sentiam por ela e dessa forma se
sentiria rejeitada. Sentia uma grande demanda para “se assumir” aos
pais pois experienciava a culpa por omitir ser lésbica. Ela conta sentir
408 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

uma grande pressão da sociedade para se assumir e “sair do armário”,


fatos que a deixavam em dúvida em relação aos motivos de tamanha
necessidade, gerando medo e insegurança em suas relações. Demonstra
não compreender o motivo de que ao cortar os cabelos curtos, a
acusariam sobre sua sexualidade e optou não os cortar por medo.
A sociedade cobra que devemos assumir nossa sexualidade
dissidente, como se devêssemos algo, o que nos torna imediatamente
culpados ao não assumir e não exteriorizar ao mundo. Os binarismos e
polaridades conflitivas culpa/perdão, certo/errado, assumir/esconder,
gostaria/deveria, poder/impotência, amor/ódio sempre eram temas de
nossos encontros.
Vênus sentia como se todos os olhares a vissem, gerando um
grande sentimento de culpa. Relatava que sentia como se precisasse
assumir ser errada no mundo, ela realmente se sentia dessa maneira, e
a culpa surgia novamente. Propus que experimentássemos imaginar
como seria contar aos pais e imediatamente se enrijeceu. Foi invadida
por sentimentos de não merecimento do amor dos pais, de ser um peso
na vida para eles e de falta de gratidão por tudo que fizeram a ela.
Percebemos a confluência com seus introjetos, o que fez com que
se sentisse culpada. F. Perls (1977) discorre que a aceitação de algo se dá
somente qual há uma tendência a rejeitá-la. Dessa maneira,
trabalhamos com algumas músicas e poemas trazidos por ela com a
intenção de mobilizar energias retidas e emoções, desenvolver seu
processo de individuação e experimentar alguma espontaneidade.
Durante a emoção, o corpo-fundo é reduzido e as possibilidades do
ambiente aumentam, após essa etapa, demarcamos e apropriamos
deliberadamente o ambiente de forma que seja nosso, finalmente
acontece a deliberação. O sentimento de ego ativo desaparece e por
Camila Bugni Salerno • 409

alguns instantes, aparecem a figura e a espontaneidade com o fundo


vazio (Perls et al., 1997).
Semelhantemente ocorreu com Marte, que se identifica como
mulher cis e lésbica. Durante o processo terapêutico observamos
mecanismos de defesa do ego que não a permitiam vivenciar sua
afetividade e sexualidade plenamente por morar próxima aos pais.
Marte relatou sentir muito medo de seus pais e acreditava que eles
observavam o que estava fazendo em casa a todo instante. Ao ser
questionada sobre como eles veriam, ela não sabia responder, mas que
talvez fosse possível vê-la através do portão e janelas. Dessa maneira,
nunca conseguiu receber amigos ou afetos em casa por medo dos pais a
estarem observando. Diz se sentir observada enquanto está em terapia,
quando pensa na namorada e inclusive quando está sozinha. Sentia que
precisava viver a vida que os pais desejavam a ela, sentia muito medo e
algumas vezes pensava ser errado desejar uma mulher. Perls et al. (1997)
afirmam que se as instituições familiares com suas as normas e
costumes fossem alterados, muitos desses sintomas desapareceriam.
Em nossos encontros, Marte apresentava enrijecimento no corpo e
no maxilar. Esse processo se deu como uma tentativa de ajustamento
criativo, ao invés de ser trabalhado no ambiente, é trabalhado em seu
próprio corpo (Perls et al., 1997). Os bloqueios e tensões não são
liberados caso não haja efetivamente uma mudança no ambiente e dessa
forma ofereça novas possibilidades.
Marte contou que quando morava com seus pais, os mesmos não
gostavam de receber visitas de amigos e familiares pois sentiam
vergonha caso soubessem sobre o “estilo de vida” que sua filha vivia.
Enquanto narrava, estava segurando uma garrafa plástica vazia e não
percebeu que a estava apertando. Sugeri que utilizasse a garrafa para
410 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

expressar o que estava sentindo. No mesmo instante, apertou forte a


garrafa, amassou, expressou em seu rosto tristeza no início e depois
raiva, em seguida jogou a garrafa contra a parede. Robine (2006)
descreve que a agressividade na concepção gestáltica tem um poder de
expressão e de criação, do qual a pessoa dispõe para fazer com que algo
seja reproduzido, e de estar disposto a recolocar a si no mundo, bem
como receber algo deste.
Esse experimento possibilitou que Marte entrasse em contato com
suas emoções e assim dar lugares de vazão a sua raiva e tristeza. A
agressão colocada no ambiente, permitiu que recolocasse a si no mundo,
contatasse emoções e exprimisse desejos.
No caso de Lua, que se identifica como mulher trans, contou ter
vivenciado preconceitos no ambiente de trabalho. Em uma de nossas
sessões, disse que em seu trabalho demandavam que ela usasse o
banheiro masculino, a chamavam pelo nome morto, além de pedirem
que não usasse batom ou qualquer maquiagem. Relata sentir que está
sempre fazendo algo errado, e tem medo de ser perseguida ao sair do
trabalho e apanhar por “ter errado”.
A cultura organizacional aparece, neste caso, como um processo
homogeneizante do modo de ser no mundo, na tentativa de adaptar as
pessoas à sua cultura, normas e padrões. Nesse sentido, Lua vivenciava
um conflito, não se sentia capaz de exercitar sua individuação, pois
precisava permanecer no trabalho por ser dependente desta fonte de
renda. A introjeção surge aqui como mecanismo de defesa ao seu
próprio desejo, engolindo o ambiente e aniquilando parte de si (Perls et
al., 1997). A demanda para permanecer no trabalho era que aniquilasse
parte de si e de seu desejo, tal processo inibia sua capacidade de agredir
e dessa forma impedia a criação de uma possibilidade de novidade.
Camila Bugni Salerno • 411

Lua sentia-se errada no mundo e um caso perdido, acreditava que


deveria ser hétero e cis, pois assim ela não seria errada, não machucaria
ninguém com sua existência e não se sentiria culpada. Em algumas
sessões, me perguntava o que precisaria fazer por não saber como agir.
Durante algum tempo, permaneceu no trabalho, dizia que era preciso
trabalhar para ser alguém na vida. Tentou adaptar-se à cultura da
empresa por considerar que fora daquele ambiente ela poderia existir
com seus amigos e familiares e isso era suficiente.
As repetições em nossas sessões eram frequentes e sempre
baseadas em reclamações sobre seu trabalho. Propus, então, um
experimento chamado linha da vida. Pedi que em uma folha criasse uma
linha e que nela colocasse as experiências que marcaram sua vida. Nesta
linha, apareceram demarcações mais fortes que outras e ao ser
questionada sobre elas, contou que significavam todas as vezes que
precisou pedir demissão ou que a demitiram em empregos anteriores.
Esse experimento permitiu que Lua rememorasse suas vivências
passadas e contou que na maioria de seus empregos precisou abandonar
partes de si, o que lhe causou muito sofrimento.
Com o decorrer do processo terapêutico e através do experimento,
foi se dando conta do que poderia destruir no ambiente, para então
assimilar e integrar seus desejos. Ao relembrar suas experiências
anteriores ela pôde desenvolver autossuporte, além de identificar que
estava novamente aniquilando partes importantes de si e também seus
desejos. Dessa forma, Lua expressou desejar ter autonomia e liberdade,
assim decidiu buscar outras fontes de renda e trabalhos nos quais
pudesse “existir inteira”, em suas próprias palavras.
412 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

De modo similar, Oceano que se identifica como uma pessoa trans


não binária, relatou ter experienciado sofrimentos também em seu
trabalho.
Em nosso encontro, relatou ter vivido uma experiência no trabalho
na qual uma pessoa u questionou se elu era homem ou mulher. Conta
que quando está trabalhando, as pessoas u olham com curiosidade, nojo,
asco, desejo e que isso u faz sentir-se um monstro. Após esse evento,
relatou não sentir mais vontade de ir para o trabalho. Pensou em usar
roupas lidas como femininas para evitar constrangimentos. Narrou que
toda vez ao sair de casa para trabalhar, sentia muita tristeza, raiva, ser
um fracassade, que não existia um lugar no mundo para elu e não
conseguia ver um futuro para sua existência. Por acreditar que não
existiam alternativas, a não ser a morte, teve diversas ideações suicidas,
porém relatou não ter coragem de realmente se suicidar. Com objetivo
de fazer com que o sentimento de inadequação diminuísse, voltou para
seu corpo a destruição e automutilava-se para aliviar sua dor
existencial. Encontrou no próprio corpo alívio para sua dor, pois é no
corpo que a pessoa acha e faz a solução vindoura (Perls et al., 1997).
Os resíduos normativos e a frustração experimentada ao sair de
casa, construíram introjeções inacabadas e posteriormente
alimentaram retroflexões. Por medo de se ferir ou ser feride,
interrompe sua excitação e evitava deixar sua casa. Polster e Polster
(2001) explicam que quando há retroflexão, a pessoa faz consigo o que
desejaria fazer com o outro. Dessa maneira, cria-se um conflito interno
no qual mantém a pessoa retida, não se movimentando para a ação.
Durante as sessões, utilizamos recursos como argila e um
travesseiro com objetivo de expressar suas emoções. Através deles
conseguimos fazer com que emergissem seus sentimentos de raiva,
Camila Bugni Salerno • 413

tristeza e frustração. Desenvolvemos o percurso da awareness através


de seu corpo e da presentificação dos movimentos, o que possibilitou a
liberação de suas emoções e alívio.
Perls et al. (1997) argumentam que à medida que um problema e
conflito são enfrentados, há o desenvolvimento de um sentimento de
força e adequação, fazendo com que o self crie sua própria estrutura e
encontrando assim novos ajustamentos criativos e possibilidades.
Dessa maneira, os trabalhos psicoterapêuticos com todes tiveram
a intenção de oferecer um espaço seguro para que conseguissem
desenvolver awareness sobre si e suas experiências, apropriar-se sobre
suas formas obsoletas de contato e criar novas possibilidades de
formação figura/fundo, expressarem suas emoções e se autorizarem a
senti-las, presentificar e assimilar seus reais desejos e necessidades,
experimentando espontaneidade.
Podemos perceber que Júpiter, Oceano, Lua, Marte e Vênus ao
identificarem e ouvirem as vozes de outros falantes introjetados, a
ansiedade foi despertada pois se deram conta que sua verdadeira voz,
identidade e apetite estavam silenciados (Perls et al.,1997).
Ao introjetarem ideais impostos por nossa atual sociedade
neoliberal, capitalista e colonial, baseados em normas de
cisheteronormatividade e do sistema binário de gênero e sexualidade, e
também expectativas e ideais sociais de suas famílias, os pacientes
experienciaram sofrimentos, ansiedade e sintomas depressivos.

BINARISMOS E CISHETERONORMATIVIDADE: IMPERATIVOS DE LUGARES


SOCIAIS, INTROJETOS E PRODUÇÃO DE SOFRIMENTO

Foucault (2015) entende que a relação entre saber e poder, com


início a partir do século XVIII, criou leis, regras e normas ao dizer o que
414 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

era permitido e proibido, o que era lítico e ilícito, impondo dessa


maneira um sistema de binarismos que influencia todas as relações,
saberes e discursos que dizem respeito ao sexo.
Atualmente, o sistema binário continua sendo o fio condutor da
ordem política neoliberal, capitalista e colonial que vivemos. Butler
(2017) explica que a sociedade ao impor o sistema de binarismo de
gênero e sexualidade nos diz qual é a maneira correta de viver: ter
relações afetivas e sexuais orientadas pela heterossexualidade e sermos
cisgêneros. Dessa forma, a heterossexualidade é considerada pela
sociedade hegemônica como uma possibilidade natural, única e
instintiva de vivenciar a sexualidade (Wittig, 1992).
As políticas normativas de subjetivação desse sistema demarca e
distribui posições e lugares hierárquicos que produzem e dizem quem
são as pessoas, as que estão no centro e as que estão nas margens, as que
exercem o poder e as que não o detém, as que são corretas e que são
erradas, as normais e as patológicas/problemáticas/”loucas”, as pessoas
que tem sucesso e as que são fracassadas, as que são mulheres e homens,
brancas e não brancas, as que são cisgênero e consequentemente as que
são dissidentes. Essa ordem que separa e marca de maneira fixa lugares,
posições e papéis sociais, nos faz pensar em repetição e estagnação que
atuam como forças conservadoras e são ditadas por quem exerce os
poderes hegemônicos e dominantes.
A cisheteronormatividade aparece, então, como um conjunto de
regras e normas baseadas em um sistema de relações de poder a partir
da tríade sexo-gênero-sexualidade. Butler (2017) explica que essa tríade
compulsória é uma maneira na qual nossa sociedade faz conexão entre
sexo biológico, performance de gênero e orientação afetiva. Sendo
assim, Preciado (2018) argumenta que o corpo masculino será sempre
Camila Bugni Salerno • 415

portador de biopênis e o corpo feminino sempre coincidirá com um


corpo portador de biovagina, e além disso, sempre serão atraídos entre
si através dessa ordem “natural” da heteronormatividade.
Preciado (2020) diz que essa ordem não é “natural”, explica que
fomos cortados em dois e divididos pela norma. Em seguida, fomos
forçados a escolher uma de nossas partes. E o que hoje é nomeado como
subjetividade nada mais é que a cicatriz marcada pela divisão da
multiplicidade que poderíamos ter sido.
Ao pensarmos a cisheteronormatividade em uma perspectiva
gestáltica, podemos entendê-la como uma forma de repetição. Ela
aparece como um fundo habitual (individual e coletivo), composto por
co-dados que foram introjetados, assimilados e retidos e ao
experienciar o contato, emergem como excitamento orientando assim
um ato (ação) no aqui-agora, direcionado a uma virtualidade de futuro.
O sistema ao impor demarcações binárias e a
cisheteronomatividade como um modo hegemônico de existência,
produz lugares sociais de poder e outros marginalizados, acarretando
dessa forma sofrimentos às pessoas consideradas dissidentes de gênero
e sexualidade, como pudemos ver nos casos clínicos relatados.
Percebemos que todas as pessoas atendidas vivenciaram sentimentos
comuns como medo, culpa, rejeição, não pertencimento, exclusão,
fracasso e erro.
Se os sentimentos de fracasso e de sermos errados no mundo são
comuns às pessoas dissidentes, podem eles serem criadores de
possibilidades de futuro?
416 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O PAPEL DA GESTALT-TERAPIA E DES GESTALT-TERAPEUTES NO


ENCONTRO COM A DIFERENÇA

“A teoria em si é baseada na experiência e na observação; cresceu e mudou


com anos de prática e aplicação, e ainda está crescendo.”
(Perls, 1988, p. 13).

A Gestalt-terapia emergiu nos Estados Unidos no ano de 1951 a


partir da publicação do livro Gestalt Therapy: excitement and growth in
the human personality, de autoria de Fritz Perls, Ralph Hefferline e Paul
Goodman 1. Somente na década de 60, foi que a Gestalt-terapia teve
grande popularidade e notoriedade devido aos movimentos de
contracultura no país.
Após grande repercussão nos Estados Unidos entre os anos de 1966
e 1968, a Gestalt-terapia chega ao Brasil na década de 70, influenciada
pelos movimentos libertários e contraculturais, durante o período da
ditadura militar. Ciornai (1996) argumenta que a Gestalt-terapia veio ao
encontro de uma geração brasileira que ansiava combater a forte
repressão existente na sociedade no final da década de 70.
A Gestalt-terapia indicava que a experiência era um referencial
importante. Seu foco consistia na ação criativa e no experimento como
propostas para trazer o corpo e o sensível para o processo terapêutico
(Alvim & Ribeiro, 2009). Esse processo centrado na experiência do
sujeito e na experimentação, inaugurado pela Gestalt-terapia, permitiu
que a psicoterapia se tornasse um campo de experiência para

1
Importante lembrar que anos antes, Fritz e Laura Perls anunciavam suas discordâncias com a
psicanálise e o surgimento de um novo método psicoterapêutico. Em 1942, a publicação do livro Ego,
Hunger and Agression: a revision of Freud’s theory and method, Perls expõe discordâncias em relação a
psicanálise.
Camila Bugni Salerno • 417

ressignificar existências 2. From e Miller (1997), na introdução do livro


Gestalt-terapia, discutem que não existe um vácuo no espaço entre o
self e o outro, como em outras teorias da psicologia, existe um campo
organismo-ambiente embebido de vontades, desejos, necessidades,
julgamentos, normas, regras e outras diversas manifestações do ser, e é
precisamente na fronteira de contato onde há encontros e afastamentos
entre o self e o outro. Nesse sentido se dá o ajustamento criativo e a
agressão, surgindo o crescimento quando há a metabolização e
assimilação do desconhecido no ambiente, tornando-o em conhecido e
transformado em um aspecto do self (Perls et al., 1997).
De acordo com Perls et al. (1997), o Gestalt-terapeuta trabalha para
promover o desenvolvimento do potencial humano e de seu
crescimento, apostando na capacidade singular de criação, no direito de
a pessoa desenvolver uma vida com autonomia, experimentar novas
formas de ser e se relacionar, possibilitando que o indivíduo faça
escolhas contrárias aos padrões sociais e normas impostas.
Vale ressaltar que as dimensões econômicas, socioculturais e
políticas do sistema, bem como as dimensões estruturais como raça,
gênero, sexualidade e classe influenciam a forma como experienciamos
o mundo, compõe a nossa forma de se relacionar, agir, pensar e sentir e
como damos sentido aos outros e a nós mesmas. Nesse sentido, as
estruturas hegemônicas de poder impõem com normas e padrões, como
a cisheteronormatividade, lugares sociais hegemônicos (de
pertencimento) e consequentemente lugares sociais marginalizados (de
exclusão).

2
A Gestalt-terapia se estrutura teoricamente em torno de uma visão organísmica, a partir das noções de
fronteira de contato, self, campo organismo-ambiente, ajustamento criativo e agressão (Perls et al.,
1997).
418 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Assim, podemos pensar que a psicoterapia é fundamentalmente


um trabalho político pois se dá tanto dentro de nossas salas de terapia
quanto fora, e se nutre por estar engajada, enraizada e presente no
mundo (Robine, 2006).
Laura Perls (1991) afirma que a Gestalt-terapia é um processo
anárquico pois não segue normas e regras pré-estabelecidas, e não tem
a pretensão de adaptar as pessoas a nenhum sistema, exceto ao seu
próprio potencial criativo. Além disso, a terapia tem a intenção, a partir
do diálogo, de separar as confluências e introjeções para conseguirmos
pensar com autonomia e desvelar nossas singularidades. Portanto, fazer
terapia é um ato político.
Ao pensar a Gestalt-terapia e consequentemente a psicoterapia
como um trabalho político, podemos experimentar em nossa prática
clínica diálogos que promovam o estranhamento sobre nossas ações e
percepções de mundo que são normatizantes e estão enraizadas em nós.
A relação entre cliente e terapeuta precisa ser baseada na ética da
alteridade e da transformação, ou seja, nós Gestalt-terapeutas
precisamos considerar “o outro como sujeito e nós como sujeito para o
outro” (Alvim, 2020, p. 886). Essa compreensão considera uma dimensão
de diferença e estranhamento e outra dimensão comum, ao encontrar
com a diferença do outro e com a novidade na fronteira de contato há
uma criação e possível transformação da situação.
A ética da alteridade implica em estarmos abertos para a
experiência da fronteira, para o encontro com a novidade e a diferença
do outro, e para a afetação que surgirá a partir desse encontro. Pensar
a fronteira de contato como encontro com corpos dissidentes implica
em se colocar para jogo, se nomear e contatar o excitamento e afetos
para não haver confluências. Não adianta dominarmos a teoria, falar e
Camila Bugni Salerno • 419

reproduzir tudo o que lemos, é preciso corporificar, abrir o peito, nos


lançar ao dilaceramento e, talvez assim, como diz Preciado (2020),
possamos experimentar a coragem que nasce da vulnerabilidade.
Para isso, acredito ser importante nomearmos a norma, como
escreveu Jota Mombaça (2021). Isso significa que os Gestalt-terapeutas
precisam se nomearem e se reconhecerem quanto as suas dimensões de
raça, gênero e classe, ou seja, enquanto branquitude, heterossexuais e
cisgêneros e classe abastada.
Mombaça (2021) escreve que a norma é tudo aquilo que não se
nomeia e nisso consiste seu privilégio. A não marcação dessas
categorias consideradas universais e normais garante privilégios
normativos como: serem considerados sujeitos de direitos e ter seu
caráter de humano confirmado, além de sentirem-se pertencentes (e
donos) deste mundo. Do “outro lado”, temos os corpos dissidentes, não
normativos, que são hiper-marcados e expostos como objetos, ao
mesmo tempo que são invisibilizados enquanto sujeitos.
Arrisco dizer que nomear a norma é um dos primeiros passos a
caminho de uma ética da alteridade e da transformação na Gestalt-
terapia.

PISTAS SOBRE O FRACASSO COMO POTÊNCIA: GESTICULANDO PARA O


FUTURO

Os atuais modos de produção de subjetividade, além de produzir


pessoas individualistas, operam através do pensamento de sucesso e da
imposição do sucesso. Isso quer dizer que há uma marcação e
condenação de pessoas que não o obtêm, nas formas de fracasso,
depressão, tristeza, introspecção. Dessa forma, acreditamos que
420 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fracassar e que os sentimentos negativos advindos dessa experiência


devam ser combatidos e negados.
Halberstam (2020) apresenta uma outra perspectiva sobre o
fracasso. Ele expõe que é justamente nas experiências de fracasso, nas
vivências, afetos e sentimentos que consideramos ruins que podem
residir pistas sobre como construir possibilidades de futuro e novos
mundos.
Não se trata de um elogio ao fracasso, mas de como podemos
experimentá-lo e assim obter ferramentas e conhecimentos necessários
para que não sejamos mais reféns das práticas de representação,
interpretação, exclusão e sucesso característicos do modo de
subjetivação neoliberal e colonial.
Penso então: e se organizássemos formas de experimentar o
fracasso? Qual sabor, afetos, sentidos tem o fracasso? O que fazemos
quando aquilo que a gente planeja não se realiza? Quais experiências
descartamos quando aquilo que esperávamos não aconteceu, quando
tomamos um caminho “errado”? Qual possibilidade de existência
descartamos ao tentar seguir as normas e padrões de sucesso?
Nós também somos tudo aquilo que erramos, que passamos a
borracha, que tentamos esconder embaixo do tapete para que a visita
não repare, tudo o que perdemos e descartamos. A vida é também
produzida a partir daquilo que jogamos fora. Acredito que talvez
possamos descobrir que existe algo de poderoso nos erros e no fracasso,
se pegarmos todos eles e praticarmos bem, talvez consigamos derrubar
o vencedor. Experimentar o fracasso e praticar, pode nos incitar a nos
distrair, nos perder, desviarmos dos caminhos já previstos pelo Cis-
tema.
Camila Bugni Salerno • 421

Nossas experiências de fracasso como pessoas dissidentes podem


nos permitir desafiar a hegemonia e nos dar possibilidades de escapar a
essa lógica binária, normativa, universalizante e homogeneizante que
nos condena e causa sofrimentos. Afinal, nós dissidentes de gênero e
sexualidade fracassamos com os ideais e expectativas de nossas
famílias, da sociedade, do ideal reprodutivo e por isso somos corpos que
habitam o lugar da abjeção que é o lugar do fracasso social.
Talvez ao experimentarmos o fracasso, poderemos construir novas
linguagens, novas relações conosco e assim possibilitar a construção de
novos mundos. Sugiro provarmos e contatarmos o fracasso como uma
experiência legítima e não como um afeto a ser combatido, negado e
melhorado, possivelmente dessa maneira a repetição de hábitos e a
identificação com as normas introjetadas seja interrompida e abra um
campo de novidades, de estratégias e potência.
Experimentar o fracasso e o sentimento de sermos errados no
mundo não mais como um mecanismo de defesa neurótico, mas sim
como sugere Halberstam (2020), possibilita que desviemos a agressão a
nós mesmos para os nossos introjetos com a intenção de regurgitá-los
e assim mudarmos a realidade.
E por que pensarmos em uma experimentação do fracasso? Porque
caminhamos para um mundo habitado por várias pessoas condenadas
ao fracasso. E também porque errar e fracassar é algo que nós
dissidentes temos feito muito bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Viver a diferença é uma tarefa que não se faz sozinho, se faz com o
outro e coletivamente.
422 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Fui para meus pacientes um corpo para contribuir na travessia,


para ajudá-los a atravessar. Poder ser corpo junto contribui com a
existência dessas pessoas, a resistir, a recusar, a viver, ser apoio e
representação de possibilidades. Acredito que precisamos nos dar conta
do lastro social em nós, de nossas dores e utilizar tudo aquilo que dói
em nós para sermos suporte para outres.
Além de suporte, da possibilidade de escuta e de criação, sou
também um corpo representativo para pessoas dissidentes, porque se
eu estou aqui essas pessoas também podem estar.
Erradas e fracassadas por estarmos fora da norma. Nos sentimos
os problemas e nos veem como problemáticos, nos diagnosticam com
seus CRMs, DSM e CID na tentativa de nos homogeneizar, adaptar e
organizar cartesianamente à norma e seus padrões e então nos apagar.
Condenadas a viver escondidas nos armários, podem até sair para
respirar contanto que não deem pinta.
Nos sentimos assim por pensar que talvez deveríamos aderir à
norma. O deveria e o não deveria estão encarnados nesse outro social,
nesse mundo que nos olha e diz o que deveríamos ser e fazer, como um
fenômeno de hierarquia e desigualdade que nos coloca em uma relação
de poder e nos oprime.
E se pegarmos esse sentimento em comum e construirmos laços a
partir de nossa experiência em viver distante do padrão normativo? E
se ao invés de eliminarmos os problemas, ficarmos com eles?
Construirmos conexões com nossos problemas, parentescos entre eles.
Talvez assim conseguiríamos nos responsabilizar coletivamente para
construir um futuro para nós?
Nossas experiências vividas, mesmo distintas, tem parentescos.
Mulheridades, indígenas, negros, pobres, lésbicas, trans, travestis, gays,
Camila Bugni Salerno • 423

pessoas com deficiências, trazemos no corpo as marcas da diferença da


norma hegemônica, mas que também são marcas comuns aos nossos
corpos: da exclusão, solidão, separação, negação, invisibilização e
exploração.
E se o abismo, ao invés de nos distanciar, nos aproximar? E as
fronteiras, em vez de segregar, nos possibilite o encontro?
Praticar a recusa a esses lugares, não nos subordinarmos ao
padrão, às normas, aos lugares previamente desenhados para nós,
podem nos levar a relações de parentescos e proximidades, nos
trazendo ao comum e nos unindo à uma esfera coletiva. Talvez dessa
forma poderemos reaprender novas formas de pensar, nos relacionar e
viver que nos ajudem na criação de um futuro.
Pois se hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo, é porque não
vemos possibilidade de futuro. O mundo não vai acabar, nem mesmo se
a humanidade acabar. Aqui-agora proponho sonharmos intensamente,
habitarmos outro lugar além dessa terra conhecida. A nós, resta a
responsabilidade de ter olhos quando alguns perderam e imaginar
mundos nunca antes imaginados. Proponho que nos juntemos para
lançamos alternativas, construirmos nosso próprio caminho, novos
modos de saber e poder, porque o Estado nos aniquila. Desejo que
possamos nos perder por caminhos e ruas que nunca caminhamos,
inexploradas, desconhecidas, na direção “errada”.
Aprendemos a não errar, a evitar os erros. Aprendemos na escola,
universidade, família, os erros comumente não são tolerados, não há
espaço para errar. Quando me percebo hoje, sou um erro no universo,
nasci errando e errada. Sou trans, não binárie, casada com uma mulher
há 6 anos, não monogâmica, me visto de forma errada, meu corpo é
errado, minha sexualidade é errada, meu gênero é errado, me formei
424 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

atrasada, meus gostos e desejos são errados. Porém nunca estive mais
certe de minha existência como hoje e nunca fui mais coerente comigo
mesme. Evitar errar, não contribui com a aprendizagem, evitar cair,
atrapalha o crescimento. Com tantos fracassos, cheguei onde estou hoje
e não poderia estar em outro tempo-espaço senão aqui-agora. E ainda
que pensemos enquanto caminhamos que estamos errados, que
andamos com a angústia e desespero de mãos dadas, perder-se é uma
arte. Durante o trajeto podemos até sentir sermos um desastre, mas por
já estarmos acostumados a essa sensação, construiremos novos mundos
ao atravessarmos veredas desconhecidas. Desejo que possamos errar,
pois só assim nos livraremos da rigidez e dos introjetos que aprisionam
toda nossa potência criativa.
Retomar as origens e premissas da Gestalt-terapia enquanto teoria
e prática nos indicam caminhos de criação possíveis para encontrar com
o outro, com o desconhecido e com a diferença. A aposta na Gestalt-
terapia enquanto práxis política, não adaptadora e não normativa pode
nos conduzir à criação de outros mundos nos quais as pessoas
dissidentes de gênero e sexualidade experimentem possibilidades de
existência e intentarem o futuro.
Não trago aqui soluções e nem resoluções, mas algumas
inquietações profundas sobre nossos modos de produzir, nos
relacionar, pensar, fazer, agir, organizar e contar sobre nós e o mundo,
no sentido de apontar alguns caminhos para pensarmos juntes.
E o que mais precisamos?
Camila Bugni Salerno • 425

REFERÊNCIAS

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426 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

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Editorial.

Wittig, M. (1992). The straight mind and other essays. Beacon Press.
19
GESTALT-TERAPIA E GÊNERO: PERSPECTIVAS EM
RELAÇÕES ASSIMÉTRICAS DE PODER
Gestalt therapy and gender: perspectives on asymmetrical power relations
Terapia gestalt y género: perspectivas sobre las relaciones asimétricas de poder

Simone Villas Bôas Saraiva

INTRODUÇÃO

Tento lembrar, em vão, quantas vezes senti-me atravessada por


alguma questão de gênero e frustrada em meus desejos. Quantas vezes
senti medo ou raiva por estar sobrecarregada na gestão da casa, por ser
preterida em um projeto, por temer pela vida diante de um agressor.
Todas estas emoções, assim como todas aquelas outras relatadas no
consultório, me trouxeram para este momento.
Este texto é um empenho para compreender marcadores sociais da
diferença enquanto fenômenos correlacionados a relações assimétricas
de poder. Uma vez que a Gestalt-terapia é uma teoria das relações
(Belmino, 2020), comprometo-me aqui com uma contribuição
fenomenológica-existencial que não produza uma clínica teleológica
que embase a busca pela saúde através de uma normatividade. Para tal,
proponho articular concepções de gênero em áreas como antropologia,
sociologia, biologia, história e filosofia com a teoria gestáltica.
Aceito que este texto conterá as controvérsias de quem não
ambiciona a neutralidade. Quem o escreve é uma psicóloga de quarenta e
muitos anos, cisgênera, heterossexual, branca, nascida e criada em uma
metrópole brasileira desigual e violenta. Escrevo a partir da experiência
428 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

vivida e inspirada por Teresa de Lauretis (2019a): reconheço-me enquanto


múltipla e contraditória, ao invés de única e dividida.

ROMPIMENTO COM EPISTEMOLOGIAS DA MODERNIDADE

Atuar como Gestalt-terapeuta pressupõe o desejo em romper com


uma epistemologia que investiga o acesso à verdade através do
racionalismo e do empirismo onipresentes na biomedicina e em
diversas psicologias.
O racionalismo propõe um postulado binarista eurocentrado que
não busca a essência dos seres como os antigos gregos ou o fundamento
divino da existência como os teólogos cristãos. Para René Descartes, é
possível distinguir a razão das paixões no interior do espírito.
Estabelece-se a cisão entre alma e corpo, sendo este último a causa dos
enganos. Neste exato instante, o corpo passa a ser objeto de exame,
retificação e controle pelo espírito. Posteriormente, também o espírito
se torna passível de exame, conhecimento e disciplina (Ferreira, 2013).
O empirismo de John Locke, George Berkeley e David Hume sugere
que o saber viria tanto das paixões quanto dos sentidos. Os empiristas
debatem sobre que parte do espírito seria responsável pelo conhecimento
verdadeiro, área de estudo da epistemologia, e qual seria culpada pelas
paixões e ilusões, objetos das psicologias científicas. Locke, inclusive,
vincula identidade pessoal a uma atividade exclusiva da alma (Ferreira,
2013). Isto inviabilizaria, por exemplo, conceituar gênero enquanto
fenômeno social e historicamente inscrito nos corpos (Butler, 2019).
Observa-se, desta maneira, que estas epistemologias favorecem
uma busca de entendimento, dominação e subjugação da natureza
através da razão, tendo o capitalismo emergente como aliado: “nossa
Simone Villas Bôas Saraiva • 429

sociedade ocidental nega o corpo, demoniza o afeto, supervaloriza a


razão instrumental e ainda aliena as ações humanas como mero
instrumento de produção de lucro” (Belmino, 2020, p. 62).
Tanto rompimento epistemológico com estes paradigmas quanto a
adoção de um método de investigação fenomenológico-existencial
possibilitam uma prática clínica que não prioriza um enquadre teórico-
normativo. Entretanto, não é recomendado desconsiderar o
conhecimento científico e estatístico, como descrições fisiológicas,
morfológicas e nosológicas. Questiona-se aqui a redução de certos
modos de ser-no-mundo que não se acomodam na norma
cisheteropatriarcal a uma patologia.
Em síntese, é incoerente com o alicerce fenomenológico da
Gestalt-terapia qualquer tentativa de abarcar pressupostos
universalistas, formados em um paradigma binarista. Dessa maneira,
proponho convidar uma aliada para a investigação fenomenológica da
diferença: abordagem interseccional.

INTERSECCIONALIDADES

Interseccionalidade como conceito e método foi desenvolvida por


Kimberlé Crenshaw em seu artigo Demarginalizing the Intersection of
Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine,
Feminist Theory and Antiracist Politics (1989), dentro da teoria crítica da
raça. É uma metodologia que admite a inseparabilidade estrutural entre
racismo e capitalismo, incluindo neste último seus desdobramentos
colonialistas e cisheteropatriarcais. Reflete sobre múltiplas
diferenciações para além de gênero realizadas dentro dos movimentos
feministas por intelectuais negras e lésbicas (Akotirene, 2019).
430 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Esta metodologia integra uma perspectiva decolonial, que percebe


as epistemologias hegemônicas como eurocêntricas e denuncia o
epistemicídio de saberes não assimilados pela cultura branca.
Contrapõe-se a uma visão de mundo herdada do dualismo cartesiano:
“Eu” e “Tu”, brancos e não-brancos, homens e mulheres, corpo e alma,
biologia e cultura, assim por diante. O pensamento interseccional
permite reconhecer que sujeitos podem ocupar diversas posições de
poder simultaneamente: podem ser mulheres brancas que sofrem
sexismo e reproduzem racismo. Por isso, qualquer recorte de estudo
sobre gênero não pode desconsiderar os mais diversos marcadores
sociais da diferença. No entanto, a interseccionalidade não se ocupa de
verificar sistemas de opressão e sim de descrever fenômenos
decorrentes da diversidade (Akotirene, 2019).
Pode-se definir marcadores como diferenças socialmente
percebidas e construídas, que criam classificações compartilhadas e que
podem resultar em relações polares, desiguais ou hierárquicas. A
emergência da diferença como marcador social é um fenômeno da
construção da alteridade no colonialismo. Podemos citar alguns
marcadores emergentes na atualidade: gênero, orientação sexual,
raça/etnia, nacionalidade, crença, classe e geração. Observa-se que esta
é uma lista em permanente atualização (Schwarcz, 2019).
Adotar uma abordagem interseccional para compreensão de
relações assimétricas de poder é compatível com a atitude
fenomenológica requerida pela prática gestáltica. Ao dialogar com
Grada Kilomba (2019), torna-se uma possibilidade para compreender a
diferença como relacional e, por isso mesmo, potente. Ademais, é
coerente com uma psicoterapia enquanto uma experiência no território
e não como uma observação supostamente neutra.
Simone Villas Bôas Saraiva • 431

Observa-se que nem psicoterapeuta nem consulente podem se dar


conta dos marcadores sociais da diferença que residem no fundo com o
potencial de emergir como figura na relação terapêutica, pois nem
todos formam figuras fortes. Um exemplo disso pode ser obtido a partir
do estudo das psicólogas Lia Schucman (2014) e Cida Bento (2022) sobre
os fenômenos “invisibilidade branca” e “pacto narcísico da
branquitude”, respectivamente, que descrevem uma combinação tácita
de manutenção de privilégios exercida por pessoas brancas.
Na psicoterapia gestáltica, recomenda-se observar a relação
figura/fundo que proporciona sentido às figuras emergentes na
situação para este campo organismo/ambiente, mesmo que seja
necessária profunda e permanente investigação das relações da
psicoterapeuta com a diversidade.

SABER, PODER E ÉTICA NA PRÁTICA CLÍNICA

Uma característica que se destaca na Gestalt-terapia é sua implicação


política, ainda que em uma relação a dois (Alvim, 2019). A impossibilidade
de se permanecer neutro não é algo para ser evitado e sim para ser
explicitado a cada encontro. Cada psicoterapeuta possui visões de mundo
que, por mais que vigie e evite, não podem ser contidas do lado de fora do
consultório, pois muitas destas são performadas (Butler, 2019). Além disso,
a relação terapêutica é caracterizada por sua assimetria devido ao lugar de
saber e de poder da Psicologia (Foucault, 2014).
Phil Joyce e Charlotte Sills (2016), Gestalt-terapeutas britânicos,
argumentam que as crenças, tanto da consulente quanto da
psicoterapeuta, são afetadas por normas sociais. Cabe a ambas se
responsabilizarem por como se identificam e por como são percebidas
432 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

e, consequentemente, pelos efeitos disso na relação. Ao discorrer sobre


a diversidade na clínica, aconselham o convite para que a consulente
compartilhe deliberadamente sua visão de mundo e seus valores mais
preciosos. Declaram que psicoterapeutas que praticam a atitude
fenomenológica estão mais atentos para impedir a imposição de valores
pessoais. No entanto, alertam sobre o perigo potencial de uma redução
fenomenológica que ignore elementos significantes da diferença
produzidas no ambiente.
A Gestalt-terapia ainda é (re)produzida, em grande parte, por
profissionais brancos de classe média. Há preconceitos e estereótipos
aos quais estes podem não estar conscientes e que a terapia pessoal, a
supervisão profissional e a atualização teórica podem auxiliar a revelar.
Para isso, é essencial se expor à diversidade, tanto em teoria quanto em
experiência vivida. Através desta jornada de autoconhecimento, a
psicoterapeuta pode alcançar uma awareness sobre seu lugar de poder
na clínica. Deste modo, torna-se possível usar seu próprio corpo e todos
os signos a ele associados como recurso, a começar por sua pele
enquanto fronteira do contato (Alvim, 2019). Talvez, a partir desta
jornada, seja mais possível identificar o quanto das experiências
descritas pela consulente são atuais, situações inacabadas ou traumas
transgeracionais, com o cuidado necessário para não (re)produzir,
abuso ou violência.
Entende-se que a psicoterapia é acomodada em um sítio político,
assim como qualquer outra atividade da vida comunitária: “clínica e
política são discursos que se atravessam, e não contraditórios”
(Belmino, 2020, p. 19). Estamos implicados no contexto sócio-histórico
e impossibilitados de exercer uma dita neutralidade. No entanto,
lembrando do Código de Ética Profissional do Conselho Federal de
Simone Villas Bôas Saraiva • 433

Psicologia (2005), a psicóloga não pode induzir sua visão de mundo de


modo deliberado. Assim, uma feminista que é psicoterapeuta, como eu
sou, pode experienciar aversão ou confluência nos relatos, sentindo-se
tentada a exercer uma “psicoterapia feminista”. No entanto, não é meu
papel oferecer argumentos ou solidariedade para além do acolhimento
do sofrimento expressado e sim estabelecer um setting seguro para
emerjam possibilidades possíveis, observando que nem tudo demanda
solução ou cura.

CUIDADOS PALIATIVOS EM UM AMBIENTE TÓXICO

Perls, Hefferline e Goodman (1997) afirmam que “em circunstâncias


ideais o self não tem muita personalidade” (Perls et al., 1997, p. 230).
Entretanto, não vivemos em circunstâncias ideais. Somos mediados pelo
“Outro”, pelas instituições e pelas normas neurotizantes nem sempre são
evidentes. A produção destes contatos nutre a função personalidade do
self com diversos modelos culturais, inclusive normas de gênero. Ao
estabelecer um novo contato, a formação de figuras normatizadas
contidas na função personalidade podem emergir e mediar novos
contatos, no fenômeno que Távora (2014) define como circularidade.
Concebe-se saúde na Gestalt-terapia como um fluxo livre da
awareness, que possibilita uma contínua configuração de formas. Assim,
pode-se conceituar neurose como um conflito do campo
organismo/ambiente e não intrapsíquico. É inerente à abordagem a
concepção de que o organismo adoece na medida em que seu mundo
proporciona relações adoecedoras (Alvim, 2014). A mesma fronteira de
contato que une e onde o novo se manifesta, também separa, classifica
e rejeita (Alvim, 2019).
434 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A lógica das formas coercitivas de relação se faz presente nas relações


sociais, que elas se tornam introjetadas nos indivíduos, tornando-se formas
habituais de evitação da excitação, sufocamento do conflito e autoagressão,
ao mesmo tempo que em que sustenta um estado crônico de tensão.
(Belmino, 2020, p. 194)

Pode-se descrever os fenômenos das violências físicas,


psicológicas, sexuais e patrimoniais como exercício de coação,
atingindo mulheres cis e transexuais, além de crianças e idosos, negros
e indígenas, gays e lésbicas, entre tantos “Outros”. Recorrendo a Martin
Buber (2001) e Richard Hycner (1995), é possível afirmar que relações
assimétricas de poder potencializam uma cronificação de um modo de
se relacionar com um “Tu” como se fosse um “Isso”. Ou seja, reconhece-
se tanto na esfera individual quanto na social uma tutela sobre certos
corpos que é refletida nas controvérsias sobre direitos civis, sexuais e
reprodutivos.
Logo, a Gestalt-terapia pode proporcionar um espaço de
questionamento e transgressão, tendo como finalidade o acolhimento
dos diversos modos de ser-no-mundo e dos ajustamentos criativos
necessários para tal. Não há uma promessa de uma comunidade mais
harmônica seja família, empresa ou nação. Trata-se de assumir um risco
de reconhecer o mundo tal como é e questionar-se quais são as
possibilidades possíveis no aqui e no agora (Belmino, 2020).

CONCEITUANDO GÊNERO

Gênero pode ser descrito como categoria analítica que descreve


comportamentos e atitudes com base na diferença percebida entre
homens e mulheres, constituindo uma forma de significar relações de
Simone Villas Bôas Saraiva • 435

poder (Scott, 2019). Deste modo, é possível descrevê-lo como uma ilusão
situada em uma temporalidade social (Butler, 2019). Assim, gênero não
representa um indivíduo, mas uma relação (Lauretis, 2019a; Wittig, 2019).
Distingue-se as dimensões biológica e social, pois ser-no-mundo
enquanto “homem” ou “mulher” é definido pela cultura e não pela
anatomia dos corpos. São produzidas crenças compartilhadas de gênero
em um grupo social, no qual estão compreendidos certos
comportamentos e desejos tidos como “naturais”, pois seriam
determinados por aparatos genitais e hormônios sexuais. Assim,
diferenças de gênero emergem tanto na vida íntima das famílias quanto
nos espaços públicos como instituições acadêmicas, profissionais,
religiosas e políticas (Heilborn, 1994).
Entende-se que a divulgação científica da biomedicina sobre o
funcionamento destes corpos exerça influência cultural e política no
ambiente. Um exemplo disso é uma ideia generalizante de que as
mulheres estão mais próximas da natureza e de que são destinadas à
maternidade devido ao seu papel na reprodução, enquanto a
paternidade seria episódica e cultural (Haraway, 2004; Wittig, 2019).

FORMULAÇÕES TEÓRICAS SOBRE GÊNERO

A antropóloga Margaret Mead identifica que não há uma relação


causal entre sexo biológico e conduta social em outras culturas. Sua
obra Sexo e temperamento (2003), publicado originalmente em 1935,
relata sua pesquisa sobre “papéis sexuais” e gênero em três culturas na
Nova Guiné. Observa na sociedade dos Tchambuli um comportamento
no qual mulheres são fortes e bravas, enquanto homens são gentis e
delicados, polaridades frequentemente atribuídas de outro modo no
436 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

senso comum da sociedade ocidental. Como consequência destes


achados, as diferenças de gênero passam a ser contextualizadas tanto
cultural quanto historicamente, pois são caracterizadas por sua
arbitrariedade e por seu caráter relacional (Scott, 2019).
No livro O segundo sexo, publicado em 1949, Simone de Beauvoir
descarta qualquer determinação natural do feminino ao evidenciar um
corpo que é produzido em uma determinada situação histórica:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,


psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um
Outro. (Beauvoir, 2016, p. 12).

Deste modo, pertencer à categoria “mulher” significa criar uma


subjetividade de um “Outro” destituído de determinadas características
do humano:

É uma estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito,


autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de
essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para
si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que
acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se
percebe mulher. A esfera a que pertence é cercada por todos os lados,
limitada, dominada pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por
mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça,
muros que lhe barrarão o caminho. (Beauvoir, 2016, p. 44).

A historiadora Joan Scott (2019) descreve a emergência do termo


gênero para substituir “estudos da mulher”, possibilitando, dessa
maneira, a distinção entre práticas sexuais e papéis atribuídos a
Simone Villas Bôas Saraiva • 437

homens e mulheres. Conceitua gênero como uma categoria analítica que


permite atribuir significado às relações de poder e descrever estas
relações a partir das diferenças percebidas. Propõe a rejeição do
paradigma de um caráter fixo e universal da oposição binária da
diferença sexual. Considera necessário desenvolver o conceito gênero
de modo interdisciplinar, considerando as dimensões da educação, da
economia, da política e da formação da identidade subjetiva. Scott
propõe que não se busque uma causalidade para as assimetrias de
gênero observadas e sim uma explicação com base no significado e na
linguagem, articulando indivíduo e sociedade com as relações de poder.
Estas formulações se opõem a um essencialismo sexual. Para a
antropóloga Gayle Rubin (2003), o senso comum compreende sexo e
gênero como forças naturais preexistentes às instituições e à vida em
sociedade. Este senso emerge ideologicamente no saber biomédico para
compreender sexo e gênero como propriedades do indivíduo,
constituído de hormônios e psiquê. Deste modo, o discurso do
dimorfismo sexual é (re)produzido para justificar relações assimétricas
de poder. No entanto, uma relação de subordinação social em
determinado contexto é constituída por significantes culturais e não
pela anatomofisiologia dos corpos.
A partir da década de 1990, agregam-se outras vozes para o que se
considera teorias ou perspectivas queer para um questionamento das
visões biológicas e identitárias de gênero e sexualidade. Queer é um
insulto em inglês, de pelo menos quatro séculos, carregado de
conotações negativas: estranho, esquisito, excêntrico. Durante a década
de 1970, é ressignificado nas militâncias como resistência e orgulho
para vivências divergentes da normatividade cisheterossexual. Autores
queer costumam compartilhar visões pós-identitárias e pós-feministas,
438 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

reconhecendo a existência dos marcadores sociais da diferença, mas


buscando seus aniquilamentos (Haraway, 2019; Lauretis, 2019b). Cito
aqui apenas alguns deles, desvelando um pouco do que pode ser este
caleidoscópio de visões plurais de mundo.
A filósofa norte-americana Judith Butler (2019) argumenta que
identidade de gênero é um ato ficcional regulatório, que é performado
e intencional, e que emerge como modelo familiar reforçado por
punição e recompensa. A partir de Beauvoir e Maurice Merleau-Ponty,
aponta que “todo ato produz significados ao mesmo tempo que
performa estes significados” (Butler, 2019, p. 215). Enfrenta diversas
articulações feministas que não compreendem gênero como uma série
de atos renovados ao longo do tempo, mas como um essencialismo
operacional ou uma falsa ontologia da universalidade do ser “mulher”.
Enuncia a “performatividade queer” como uma força política de
autodenominação de resistência aos contratos sociais
cisheteronormativos. “As pessoas não são seus corpos, mas fazem seus
corpos” (Butler, 2019, p. 216), define.
A autora italiana Teresa de Lauretis (2019a) define gênero como
produto/processo de tecnologias sociais e aparatos biomédicos,
enfatizando o papel das mídias de massa e das teorias para produções
discursivas, por vezes hegemônicas, sobre gênero. Afirma que a
representação social afeta a subjetividade do mesmo modo como a
subjetividade afeta a construção social: “a construção de gênero é
produto e processo tanto da representação quanto da
autorrepresentação” (Lauretis, 2019a, p. 131), o que nos remete à
circularidade na teoria gestáltica de self.
A bióloga e filósofa Donna Haraway traz no Manifesto ciborgue
(2019) uma reflexão crítica sobre relações sociais de ciência e tecnologia.
Simone Villas Bôas Saraiva • 439

Reconhece o rompimento de fronteiras ideológicas entre humanos,


outras criaturas vivas e máquinas. Faz isso a partir do argumento de que
somos todos “quimeras e híbridos”, teorizados e fabricados por
implantes, transplantes, enxertos, próteses, anabolizantes, vacinas,
anticoncepcionais, psicofármacos e narrativas.
O filósofo espanhol Paul Beatriz Preciado apoia-se em Foucault,
Butler, Monique Wittig e Jacques Derrida para elaborar o Manifesto
contrassexual (2014). Sugere a substituição de um contrato social que
determina inscrições nos corpos com base em “verdades biológicas”. Na
contrassexualidade, corpos se reconhecem como “corpos falantes” e não
como homens ou mulheres, possibilitando performances fluidas.

Os papeis e as práticas sexuais, que naturalmente se atribuem aos gêneros


masculino e feminino, são um conjunto arbitrário de regulações inscritas
nos corpos que asseguram a exploração material de um sexo sobre o outro.
A diferença sexual é uma heterodivisão do corpo da qual a simetria não é
possível. O processo de criação da diferença sexual é uma operação
tecnológica de redução que consiste em extrair determinadas partes da
totalidade do corpo e isolá-las para fazer delas significantes sexuais.
(Preciado, 2014, p. 26)

IDENTIDADE E TECNOLOGIAS DE GÊNERO

Convenções corporais orientam a construção de marcadores


sociais, sendo possível atribuir um gênero a partir de determinadas
suposições. Pode-se citar como referências culturais para esta
atribuição a constituição física, o vestuário, o corte de cabelo, a postura,
os gestos, as expressões faciais e o contexto. Estes marcadores inscritos
nos corpos constituem signos das relações de poder (Louro, 2018).
440 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Há uma correlação normativa entre sexo, gênero e sexualidade, em


que órgãos genitais operam como uma ancoragem a partir da qual é
organizada a percepção sobre gênero. Pode-se definir esta correlação
como norma cisheterossexual, na qual o sujeito se identifica de acordo
com o sexo a partir da anatomia genital (cisgeneridade) e se sente
atraído pelo “outro” sexo (heterossexualidade). Isto corresponde ao
modelo familiar heterossexual pós-Iluminista tido como natural, social
e legalmente aceitável (Louro, 2018). Este entendimento é fruto de uma
ciência eurocentrada:

Os conceitos e tecnologias da “identidade de gênero” foram produzidos a


partir de vários componentes: uma leitura instintualista de Freud; o foco na
psicopatologia e somatologia sexual dos grandes sexologistas do século
dezenove (Krafft-Ebing, Havelock Ellis) e seus seguidores; o contínuo
desenvolvimento da endocrinologia bioquímica e fisiológica desde os anos
vinte; a psicobiologia de diferenças sexuais nascida da psicologia
comparada; as inúmeras hipóteses de dimorfismo sexual hormonal, de
cromossomos e neural, que convergiram nos anos cinquenta; e as primeiras
cirurgias de redefinição de gênero de 1960 (Haraway, 2004, pp. 214-215).

Assim, também o sexo biológico é uma construção social. A


compreensão da anatomia genital baseada em um dimorfismo sexual é
uma constatação delimitada histórica e socialmente a partir do século
XIX. Segundo o historiador e sexólogo Thomas Laqueur (2001), a
concepção dominante até então era a existência de um “sexo único” ou
unissexual. Deste modo, o sexo biológico é definido na
contemporaneidade com o desenvolvimento das medicinas
especializadas – em especial a Ginecologia enquanto cuidado que visa a
reprodução humana –, da Psicologia e da Sexologia.
Simone Villas Bôas Saraiva • 441

No primeiro volume da História da sexualidade, Foucault teoriza


sobre uma “tecnologia sexual” biopolítica, para um controle da vida e da
morte dos corpos, que produz relações sociais a partir da regulação de
comportamentos sexuais. Nota-se a contribuição destes discursos para a
centralidade da reprodução no exercício da sexualidade (Foucault, 2015).
Portanto, pode-se também definir as tecnologias de gênero como uma
“máquina de produção ontológica que funciona mediante a invocação
performativa do sujeito como corpo sexuado” (Preciado, 2014, p. 28).

DIFERENCIAÇÃO E INTEGRAÇÃO

As relações assimétricas de poder envolvendo questões de gênero


são descritas na clínica em diversos contextos. Na vida íntima das
famílias, são frequentes os relatos sobre divisão dos afazeres
domésticos e do cuidado de pessoas, sobre comportamentos esperados
em relacionamentos afetivos e sexuais, entre outras situações. É
frequente também a emergência de questões de gênero no espaço
público, como em ambientes profissionais, acadêmicos e políticos.
Na teoria gestáltica, conflitos surgem da exigência de uma
identificação e de uma submissão a uma autoimagem formada a partir
de uma expectativa neurótica de adequação à sociedade. O sujeito
aprende a ignorar sentimentos, emoções e desejos, bloqueando seu
potencial de amadurecimento e distorcendo sua perspectiva na
situação. “O primeiro e último problema do indivíduo é integrar-se
internamente e ainda assim, ser aceito pela sociedade”, afirma
Frederick Perls (1977a, p. 20).
Deste modo, a terapia seria um processo de ressensibilização da
percepção figura-fundo e remobilização de potencialidades
442 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

harmonizando atitudes deliberadas e espontâneas. O objetivo seria


ampliar o potencial humano para “atingir o grau de integração que
facilite seu próprio desenvolvimento” (Perls, 1977b, p. 78), mesmo que
necessidades do organismo se oponham às do ambiente (Perls, 1977a;
Perls, 1977b).
Perls (1977a) afirma que o processo terapêutico pode ser
caracterizado também pela diferenciação que leva a identificação de
polaridades pertinentes ao conflito. Descreve que o embate entre
polaridades é um gasto inútil de energia e que uma boa integração entre
elas pode tornar a pessoa completa novamente.
Histórias individuais e coletivas estão intrinsecamente imbricadas
para a Gestalt-terapia, apesar desta perspectiva mais individualista de
Perls compartilhada nos anos após a publicação de Gestalt-therapy.
Situações inacabadas no passado, tanto as do indivíduo quanto as de sua
história ancestral, tendem emergir no presente, retornando como
figura e exigindo fechamento. Conclusões para situações inacabadas são
frequentemente relatadas como negligenciadas por conta da repressão
da agressão e da sexualidade, da coerção social – introjetada ou não – e
do embotamento das excitações. É desafiador lidar com conflitos de
modo genuíno, que leve a uma experiência integrada. Uma plena
vivência gestáltica é aquela que acolhe o inesperado e o diferente
visando o crescimento (Oliveira e Belmino, 2021).
É relevante lembrar que nem todo conflito é resistência. Há
impossibilidades que emergem devido às condições deste organismo
neste ambiente. À psicoterapeuta, cabe reconhecer a experiência do
“Outro” em sua especificidade, sem considerá-la uma manifestação
deficiente. Isso pode ser possível através da visibilização das forças que
Simone Villas Bôas Saraiva • 443

operam estruturalmente no ambiente e que se tornam obstáculos para


a criação e para a expansão (Alvim, 2019), como o sexismo.
Para o Gestalt-terapeuta polonês Joseph Zinker (2007), o trabalho
com polaridades é uma alternativa para a compreensão da gênese dos
conflitos, tanto interpessoais quanto intrapessoais. Descreve o
indivíduo como um “conglomerado de forças polares que se
entrecruzam” (Zinker, 2007, p. 219), no qual algumas forças podem estar
mais visíveis do que outras. Teoriza que isso ocorre de acordo com o
modo como o indivíduo é socializado e com sua história de vida.
Na pessoa perturbada, define Zinker, a visão de si mesma é rígida,
sendo incapaz de aceitar partes de si mesma. Não reconhece em si as
polaridades negativas que foi condicionada a pensar que são
inaceitáveis ou repugnantes. “É mais fácil enxergar o mal no outro do
que em si mesmo” (Zinker, 2007, p. 227). Deste modo, é coerente afirmar
que organismos que vivem em ambientes onde a diferença é
socialmente marcada possuam as polaridades sombrias da
discriminação.
Para a Gestalt-terapia, a saúde pode ser alcançada quando há
awareness sobre todas as polaridades, inclusive aquelas que o organismo
ou o ambiente condena, e o indivíduo é capaz de se aceitar. Deste modo,
é sugerido que a própria psicoterapeuta se implique e reconheça a
totalidade de suas polaridades através da teoria, da terapia e da
supervisão. Exemplificando: eu, enquanto psicoterapeuta, tenho como
objetivo não reproduzir abusos e violências resultantes do
desenvolvimento artificial “sexismo”. Deste modo, entendo que é
necessário trabalhar na terapia pessoal para alcançar a awareness deste
polo para integrá-lo com seu oposto, que tenho chamado
provisoriamente “ser e deixar ser”. Ainda assim, entendo que uma vez
444 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

em contato com um ambiente que preza pela assimetria, não é possível


estabelecer “relações simétricas” e sim equalitárias e reparadoras.
Estar aware das polaridades sombrias da discriminação é
necessário para um exercício ético da psicoterapia. Somente ao se
responsabilizar por sua própria coleção de crenças, a psicoterapeuta
pode se posicionar e fazer intervenções para que como a consulente
diante de si possa desenvolver sua própria awareness sobre seu lugar no
mundo: como se identifica e como se aceita, como qualifica
autossuporte e suporte ambiental na situação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar sobre este tema é realçar o óbvio, pois a performance de


gênero é tão presente que frequentemente resulta em uma
insensibilização que a atitude fenomenológica pode ajudar a mitigar.
A Gestalt-terapia surge como uma visão de mundo revolucionária,
que questiona que clínica fazemos e para quem (Alvim, 2019). Quando
questionam sobre uma “psicologia anormal”, os autores de Gestalt-
therapy se implicam ao descrever uma abordagem que se oponha a uma
conformidade ao princípio-de-realidade: “espontaneidade é apoderar-
se, crescer e incandescer com o que é interessante e nutritivo no
ambiente” (Perls et al., 1997, p. 45). Torna-se assim uma forma política
de resistência à tentação de exercer uma “psicologia do deserto”
descrita por Friedrich Nietzsche e Hannah Arendt (Arendt, 2020), que
ajuda o sujeito a adaptar-se a um ambiente que neurotiza.
Este é um esforço contra a “expansão do deserto”: como posso estar
mais aware sobre conteúdos e comportamentos que embotam desejos e
suprimem possibilidades possíveis. Espero me responsabilizar pelos
Simone Villas Bôas Saraiva • 445

limites deste lugar de saber-poder da psicoterapia, convidando você


para fazer o mesmo. Aceito que esta prática pode se caracterizar como
um cuidado paliativo para lidar com o “deserto” com awareness. Se o
sofrimento psíquico for inevitável, que seja fruto de uma escolha pelo
enfrentamento ou pela fuga.

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20
RE-DES-COBRIR (OS PÉS) E INVENTAR OUTROS
CAMINHOS
Rediscovering (the feet) and inventing other paths.
Redescubrir (los pies) e inventar otros caminos.

Leonardo Brandão Delvalle Regis

APRESENTAÇÃO

O presente ensaio poético manifesta-se como uma forma de


praticar o mundo, ante as colonialidades do saber ora aqui
apresentadas. Sabe-se que a colonialidade é uma forma autorizada e
desempenhada em nossas corpas, em nossas subjetividades. Ao
evidenciar as categorias imbricadas de raça-gênero-sexo busca-se
apresentar outras epistemologias não assimiláveis ou
despotencializadas pela norma. Como sugere Rufino (2019), reivindica-
se um conhecimento em cruzo, onde poética e política caminhem juntes
para o reencantamento da vida, uma outra forma de caminhar.
A heterocisnorma é um sistema colonial que inventa a binaridade,
o masculino, o feminino, as classificações raciais e a evidente
necessidade de estabelecer um cistema hierárquico entre raças. Para
Preciado (2020, p.33) nos tornamos nós mesmos na mescla, na
mestiçagem, cruzando as “fronteiras políticas inventadas pela
humanidade.”
Dentro disso, a escola, a educação formal, torna-se lugar que
reproduz e reafirma a norma, coagindo, discrimando saberes distintos
daqueles reproduzíveis e esperados dentro deste contexto, dessa
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 449

instituição. Hooks (2017, p.239) diz “O silêncio imposto pelos valores


burgueses é sancionado por todos na sala de aula.”, salientando como os
processos educativos são capazes de apagar e desencorajar a expressão
de outras epistemologias.
O chamado poético é a um corpo sensível, onde integre outras
inteligências, um convite subversivo à institucionalização do sentir e
saber pela lógica da colonialidade e do patriarcado, sendo este também,
o convite que a Gestalt-terapia realiza, em minha percepção, ao
promover a desnaturalização da percepção, o rompimento de uma
alienação corporal e o restabelecendo de um fluir (Alvim, 2014).
Por meio de um texto-ensaio poeticamente exuístico e
macumbeiro, fazer florescer a imaginação e o desponte de novas
possibilidades, promovendo uma transformação do imaginário. (Rufino,
2019)
Uma breve cartografia corporal-territorial se forma,
estabelecendo um mapa e estabelecendo fronteiras, sentidos,
mostrando os cortes sobre a corpa, sobre a história e a busca de uma
demarcação corporal mais fluida e permissiva de interferências de
cosmospercepções (Oyěwùmí, 2002), termo utilizado com afinco para
salientar sensibilidades não europeias e/além europeias.

RE-DES-COBRIR (OS PÉS) E INVENTAR OUTROS CAMINHOS

Domingo. Amanheço frágil após sonhos conturbados. Resolvo me


escutar. A inquietação do sono denuncia a inquietação corporal por
necessitar escrever. Há alguns dias que me pego absorto pela
necessidade de escrever este texto e percebendo uma certa indisposição
mental e corporal para o ato em si. Dores são disparadas, lembranças de
450 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

tempos em que se expressar parecia e/ou era um risco de vida. São


marcas que ficam e que anunciam em momentos como estes, suas
cicatrizes.
Mas já não quero e nem preciso que essa escrita venha a surgir por
um movimento de dor. Dor experimentada em outros momentos
decisivos, como na dissertação de mestrado. Ali, vivi num limiar de dor
e alívio ao realizar uma dissertação onde pude narrar meu processo
escolar, silenciamentos frente às questões envolvendo a minha
sexualidade dadas por uma educação heterocisnormativa. Dessa vez,
algo necessita ser diferente. Se quero falar de afeto e com afeto, preciso
experimentar esse afeto possível nesse momento.
Assim, num lapso de tempo, percebo em meus pensamentos ainda
recolhidos numa corpa na cama, quarto escuro e o dia apontando lá fora
pelas frestas de luz que entram pela janela, a necessidade de convocar
as deusas, deuses, a natureza, para uma benção. Estou numa transição
cosmoperceptiva em minha vida ao escrever esse texto. Me sinto
plenamente no meio do caminho. E, logo me lembro de Ponciano
dizendo a mim, em uma caminhada na Chapada dos Veadeiros que o
mais importante na vida não é aonde se chega, mas, o caminho. Ganha-
se um sentido maior agora.
Ao
s fronteiriços existenciais, aos confusos, indecisos, estranhos, aos que não se encaixam
e se incomodam:

Este texto vai pra você que, como eu, já buscou demais se encaixar nos padrões, nas
normas, para você que já se travestiu de bondade, entendimento, luz e gratidão. Para
você que já anestesiou suas existência e desejos para caber.
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 451

Também é para você que uma vez fora da caixa, busca ou buscou pertencer a grupos
diversos, mas nunca se sentiu pleno ou pertencente, de fato.

Vai para você que reside no hiato definitório. Não é branco nem preto, nem homem
nem mulher, nem uma coisa nem outra. Vai também margear você que está no centro.
Que este texto possa te provocar.

Para você que acha cafona definições, mas que sabe que não tem como fugir
plenamente delas.

Mais especificamente, é para você Gestalt-terapeuta ou curioso pela Gestalt-terapia, a


você que vê algo potente e estranho nessa abordagem: é com você que eu gostaria de
falar.

Para você que quase eu não ouço falar. Mas que deve existir também. Também
inquietado por inquietações como a minha ou pelas suas próprias formas.

Quero fazer deste texto uma celebração do meio do caminho. De


onde olho para o que já foi e para o que virá, a partir, inclusive, deste
compartilhar de sensações e impressões. E, com a benção recebida eu
me levanto e, começo meu dia. É como se não desse para continuar a ser
uma corpa dissidente falando de sexualidade sem tocar no aspecto que
aqui quero trazer: o direito a sentir o mundo por outra perspectiva, por
outra(s) epistemologia(s). De bradar que meu afeto, sensibilidade, minha
mansidão não são vazias de sentido e nem oportunistas, muito menos
neuróticas, portanto, merecem respeito.
Coloco na cabeça pensamentos que me sustentam, o (re)encontro
com tecnologias de terreiro também tem me ajudado nessa travessia e,
penso, que para um corpo como o meu, tem feito muito sentido a busca
por tecnologias de existir oriundas de meus ancestrais. (Re)construindo
minha subjetividade a partir do contato com exu e suas artimanhas.
452 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Uma pedagogia da encruzilhada começa a surgir, antes mesmo de ler


nos livros e a conceber como possibilidade metodológica.
E na escuta de meu corpo, ele me pede uma pausa. Este texto é uma
produção em meio a muitas pausas. Foram as pausas, o respirar, o
caminhar, componentes para deixar a água deste texto correr. Ainda
guardo marcas do desencantamento colonial que os processos
educativos e acadêmicos produzem, na minha corpa dissidente.
Um tempo depois, nesse mesmo dia, retorno da praça Bolívia, de
uma feira que ocorre mensalmente aqui em Campo Grande, Mato
Grosso do Sul, cidade/estado onde nasci e resido até hoje. A feira da
praça Bolívia é um lugar que acolhe as diferenças e diversidades num
estado/cidade ainda pautado por políticas de exclusão e morte. Esta
feira e outras que estão surgindo na cidade demarcam mudanças,
possibilidades de existir nesta cidade de uma outra forma, fato que não
foi possível em minha juventude. A pluralidade cultural não era para
mim e ainda não é, para muitos, uma realidade de fácil acesso aqui.
Sou uma bixa de 38 anos, portanto, sul-mato-grossense, não
branca, ameríndia-preta, já uma “cacura” para algumas, uma bixa
redescobrindo sua cor e seus processos de embranquecimento e
assujeitamento frente as marcas de gênero, raças e binaridades. Foram
os processos educativos que foram, ao longo desses últimos anos, me
fazer perceber os processos de embranquecimento e colonização pela
heterocisnorma sobre minha corpa que clama por uma não binaridade
desde muito pequeno, ao nunca conseguir se enquadrar nas normas de
gênero, da masculinidade cisnormativa.
Preciado (2020, p.33) nos diz que a mudança de sexo e os processos
migratórios são duas práticas de transição. Penso que o processo de
acesso a uma cosmopercepção, também pode, de certa forma, ser
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 453

pensado dessa forma. Ao passo que possibilita, segundo Rufino (2019, p.


42) “certas esculhambações contra as lógicas do colonialismo.” Um
corpo em busca de um encantamento. Encantando-se. O colonialismo
opera num espaço de produção de desencantamento. Uma gerência de
morte sobre os corpos, sobre os saberes, sobre linguagens outras.
Pensando em raça, gênero, classe, só de citar, você já consegue imaginar
quais são as escolhas coloniais-patriarcais? A sexualidade me leva, hoje,
a rever outras questões que me afligem a partir de suas
interseccionalidades reveladas.
E, como citei anteriormente, foi no processo de mestrado em
educação que tive a desafiadora possibilidade de escrever uma
dissertação, por meio do método autobiográfico, onde pude explorar,
rever e ressignificar vividos em meio aos processos escolares,
constatando quão duros foram os processos de silenciamento de minha
corpa e da minha história ao longo da minha vida estudantil,
salientando ao final dos estudos, as questões da interseccionalidade
que, para minha surpresa, estavam ainda alienadas de minha
consciência.
Sou filho de um carioca preto e macumbeiro (forma a qual ele tinha
orgulho de se identificar) e de uma sul-mato-grossense descendente de
paraguaios, que mesmo em meio a apagamentos de suas ancestralidades
e histórias, me permitiram o contato com caminhos de vida, de fé, de
pensamentos diversos, de epistemologias outras. Me lembro de crescer
sendo levado a rezadoras, benzedeiras, pretos velhos e caboclos, a
curandeiras no Brasil e no Paraguai. Minha avó materna era uma
benzedeira e falava guarani. A interculturalidade já fazia parte de minha
existência, a arte de escutar, de afetar e de cuidar estavam naqueles
lugares, mas, por meio bem sofisticados, a educação formal foi
454 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

apagando e silenciando esses contatos. Parecia que a educação estava


distante desses saberes. E, que, por isso, também foram questionados e
recriminados por mim ao ir “amadurecendo intelectualmente”. Um
epistemicídio veladíssimo.
Na minha adolescência, foi o período em que mais sofri violências
psicológicas e, até físicas, por ser gay e afeminado. Eu tinha um melhor
amigo, também gay, mas, branco. Eu não conseguia compreender, ao
certo, porque eu sentia que a violência maior era comigo. Porque minha
dissidência incomodava mais que a dele. A educação formal da escola,
em parte considerável, ainda não sabe até hoje, infelizmente. Além de
toda violência sofrida diariamente e, silenciada, eu havia que ser um
bom estudante. Aquilo não fazia sentido dentro de mim. (E faz para
alguém?) Em contrapartida, lembro que um dos espaços de acolhimento
que eu tinha nessa época era o de um centro umbandista. Naquele
terreiro eu descalçava os pés para entrar, e a partir desse ato era
escutado e cuidado. Tão diferente do lugar chamado escola e que
prometia ser um lugar para eu me tornar alguém melhor. E não que não
tenha me proporcionado isso, mas, a que custo? A engrenagem do
colonialismo é tão forte que só percebo isso integralmente agora,
passado mais de vinte anos.
E, hoje, ao escrever as linhas acima, percebo que não por acaso
escolho a psicologia como fonte de conhecimento e profissão numa
busca tortuosa e espiralada, como a vida, de um reencontro com os
saberes de cuidado e afeto. E, ainda mais, é na Gestalt-terapia que
consigo, de fato, me sentir acolhido e encontrar uma linha teórica, mas,
não só isso, uma forma de ser e viver que possibilita/ou um reencontro
com o afeto e o sentir como propulsores de um agir no mundo mais ético
e político, ao ter consciência hoje, que a Gestalt-terapia brasileira vem
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 455

se propondo como um espaço de possibilidades para encontro com


outras epistemologias.
Movimento que nasce para mim, por meio de uma experiência que
inicia uma configuração de um entre (o eu e a Gestalt-terapia) já por
meio de uma experimentação. Eu era um estudante de psicologia no ano
de 2012, há dez anos, quando me inscrevi na semana de psicologia da
universidade federal de mato grosso do sul. Eu fazia minha graduação
em outra universidade. A palestrante gestaltista convidada pelos
organizadores do evento começou a sua fala anunciando um ato: ela
avisou que iria tirar seus sapatos. E, a plateia formada prioritariamente
por acadêmicos da universidade federal, ficou atônita com o ato. Um ato
tão simples, mas que, ali, parecia fora de contexto. Um ato
“inapropriado” naquele local e tempo histórico e acadêmico.
Transgressão que me convidou a experimentar uma excitação corpórea.
Fui naquele momento, junto com o que acredito ser uma minoria dos
presentes, fisgado por aquele ato. A gira começava. Foi com aquele ato
que meu corpo sentiu que estava frente a algo que me tocava dentro da
psicologia pela primeira vez de uma forma diferente. Ia além da
formalidade da academia científica eurocentrada.
Aquele ato de despir os pés da palestrante de forma espontânea e
explícita, penso hoje, encontrou um fundo de vividos que me formam
um Gestalt-terapeuta, um psicólogue, afinal, a vida precede à clínica. As
benzedeiras, pretos velhos, caboclos e demais curandeiros que visitei,
suas éticas, condutas, dizeres e saberes também me formam, portanto,
também fazem parte do que sou enquanto uma identidade profissional.
Suas éticas do cuidado me ensinaram, de formas subjetivas e
cosmoperceptivas, variadas possibilidades, dentre elas, o quanto retirar
o sapato pode ser uma reverência ao espaço, ao sagrado, ao político, um
456 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ato político de como pisar na terra. O quanto os pés, os meus pés,


inclusive, querem se descalçar, querem encontrar o solo, a pemba de
possibilidades. Mais que as certezas que carrego, me chama para a
reverência à vida, a vida em movimento, em sua mutabilidade.
Quase dez anos após o dia em que conheci a Gestalt-terapia,
perguntaram no primeiro dia de um curso de uma formação em Gestalt-
terapia a qual eu estava inscrito a seguinte pergunta: Quando você se
tornou um Gestalt-terapeuta? Eu, disse de forma bem espontânea:
quando vi os pés descalços. Explicando após isso a passagem com a
palestrante de descalçar os sapatos. Imaginei que os colegas e demais
participantes, ao explicar, me entenderiam. Mas não foi o que eu pude
sentir. A sensação de que na hora já fui lido como o bicho-grilo da turma.
Ali, me pareceu, por meio dessa experiência e pela dinâmica grupal
formada após essa experiência, que não haveria espaço para o cruzo
(reivindicar uma outra orientação para caminhar), embora as
discussões girassem inclusive em torno das clínicas do sofrimento
ético-político e antropológico e a clínica da inclusão, perceber uma
incongruência no fazer-formativo (no processo de educação da Gestalt-
terapia hora proposto) começou a gerar um desconforto: e, o afeto,
cadê?
Assim, mesmo aqueles que reivindicam e lutam por uma clínica
ética-política inclusiva, acabam por apagar subjetividades. E isso
acontece com um grau sofisticado (sofisticadamente do pensamento
eurocentrado), causando uma luta entre o científico e o não científico.
Sujeitando nossas histórias e/ou práticas ao deboche. Foi por meio dos
pés e não somente de uma mente intelectual que meu corpo me convoca
a um encontro, o encontro com a Gestalt-terapia. E quantos mais de nós,
já sentiram desconfortos por não serem tão conceituais como alguns
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 457

outros? Quantos de nós temos que a todo instante deixar “mais claro” o
que pensamos e sentimos? Quantos de nós silenciamos para caber, num
espaço gestáltico? Essa é a razão gestáltica?
Não quero aqui te convencer de nada do que falo. Mas quero te
dizer que a mim faz sentido que meu corpo tenha se sentido mais à
vontade quando num ato de descalçar-se eu me lembrasse que eu só
havia presenciado esse ato antes quando meu corpo visitava espaços de
espiritualidades, e, por fim, de cuidado com os outros.
Quero aqui convocar todas as possibilidades de ser um Gestalt-
terapeuta. E que, possa trazer ao foco um cuidado maior para
desmantelarmos o colonialismo em nosso fazer profissional. Quero e,
acredito, que muitos outras, corpas LGBTQIAP+, pretos, indígenas,
entre outres, sim, tem o direito aos pés descalços, a causarem
desconfortos aos seguidores da “norma”, em seus sossegados platôs de
conhecimentos. Ao que isso significa para mim e que pode significar
para outres: devolvam nossos espaços e modos de ser!
Quero sim dizer que a ciranda, os pés descalços, as
experimentações, o contato com a natureza também são
epistemologias, ancestrais, por sinal. Que haja mais espaço para a forma
diferente de cada qual se afetar. Espaço para todes. E a
interseccionalidade, as corpas queer, trans, travestis, não bináries,
dissidentes estão aqui no incômodo e para incomodar a heterocisnorma
eurocêntrica que paira, inclusive dentro de nossas corpas e em nossas
diferenças.
Reitero, vivo num estado que faz fronteira com o Paraguai e a
Bolívia. Filho de pai carioca e macumbeiro, filho de mãe e neto de
paraguaio. Uma bixa preta-ameríndia, silenciada e colonizada e que,
agora começa a refazer sua história, não num movimento heroíco e/ou
458 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

romântico, mas, apenas de vida, de garantir a possibilidade de narrar


minha construção histórica, profissional, por meio de uma narrativa
menos engessada e mais fluida. E, mesmo aqui me pergunto: alguém
aqui neste texto ou nesta leitura, irá me calar? Vão dizer a mim, a minha
corpa, a minha bronquite, aos vividos e encantamentos recebidos e
percebidos que as xaropadas, os passes, os benzimentos, são efeitos
apenas de minha cabeça? Vão dizer que tudo isso já não me encantava,
formava e me anunciava um possível caminho em uma profissão de
cuidado? Quem irá narrar a minha história? Quem irá tirar meu
encantamento?
Este texto é um ebó contra essa quizila.
Quero te dizer que assim como uma viagem a Urano seria uma
ótima ideia, uma viagem a África, aos nossos povos originários
brasileiros e americanos do Sul, também. Sem estrada definitiva, mas a
principal convocação é: cuidado para não nos colonizar em formas de
ser Gestalt-terapeuta. Quero existir e permitir que outros existam e
produzam ciência por meio da Gestalt-terapia de diversas formas
epistemológicas. Quero ter um cuidado mais integral com outreridades.
Que você dissidente, sinta-se em casa ou fora dela e possa se
descalçar, se quiser, ou até mesmo usar seu salto alto, pisando firme em
preconceitos. Daqui e, nesse momento, reivindico apenas o direito a
pisar firme no chão e deixar a minha-nossas pegadas, inclusive na
psicologia. Que você que se identifica com esse discurso possa até
mesmo “sujar” com seus pés marcados pela terra vermelha por onde
pisa ou de onde vem, os porcelanatos dos conhecimentos acadêmicos e
ditos mais sérios que os seus. Te digo, há espaço para você e se não
houver, a gente cria.
Leonardo Brandão Delvalle Regis • 459

Que novas cosmopercepções sejam possíveis. E que meu jeito de


afetar e ser afetado seja uma possibilidade junto com toda teoria que se
diz em movimento e não dogmática.

REFERÊNCIAS

Alvim, M.B. (2014) A poética da experiência: Gestalt-terapia, fenomenologia e arte. (1.ed.)


Garamond

hooks, b. (2017) Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (2.ed.)


Martins Fontes

Oyèwumi, O. (2002) Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects in:
Coetzee, P. H.; Roux, A. P.J. (eds) Routledge

Preciado, P. B. (2020) Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (1. ed.) Zahar

Rufino, L. (2019) Pedagogia das encruzilhadas. (1.ed.) Mórula editorial


21
PROCESSOS DE LUTO E DE SUICÍDIO NAS
FRONTEIRAS DO GÊNERO E DA SEXUALIDADE
Grief and Suicide Processes on the Borders of Gender and Sexuality
Procesos de luto y suicidio en las fronteras del género y la sexualidad

Gabriel Fernandes Rodrigues

“Para alguns, a vida sepulta mais que a morte”


(Mia Couto, 2003)

SUICÍDIO E A DIMENSÃO POLÍTICA DO SELF

Muito mais do que uma decisão individual, o suicídio pode revelar


um horizonte de sentidos que dizem respeito a determinado contexto
sócio-histórico. O autoextermínio, pode ser compreendido em
diferentes culturas de formas distintas da que relacionamos
tradicionalmente em nossa sociedade atual, atribuindo uma função de
um sofrimento psíquico, ou mesmo de um surto psicótico. Como
exemplo, podemos citar o seppuku japonês, que se relaciona com a
honra e cumprimento de deveres; o autoextermínio nas comunidades
indígenas tais quais a Guarani-kaiowá, muitas vezes relacionados ao
reassentamento e realocação de terras; o suicídio da população negra
em contextos escravagistas, relacionados a perda da liberdade; os
suicídios políticos com os chamados “kamikazes” e também o suicídio
assistido por profissionais da saúde. Cada tempo, produz a partir das
relações de poder-saber, o enquadramento teórico que visa explicar o
comportamento daqueles que tiram sua própria vida.
Gabriel Fernandes Rodrigues • 461

Mais que denunciar que a vida não vale a pena ser vivida, a morte
por suicídio também denuncia que o mundo e os outros, de alguma
maneira também não valem (Silva 2020a). Segundo a autora, quando
alguém decide antecipar sua morte através do suicídio, essa morte
também se refere a nós, a toda gente, visto que somos lançados a esse
mundo e construímo-nos sempre com o outro. Assim, cabe questionar
quais horizontes de sentido se constituem no mundo contemporâneo
para que a experiência de morrer, faça mais sentido do que a de viver.
Pensar o suicídio a partir de uma perspectiva gestáltica, é fluir
entre as dinâmicas e processos individuais, sem perder de vista o todo
estruturante da experiência, considerando os aspectos macrossociais
que se fazem presentes nas relações. A obra de Perls (1997) enfatizou
sistematicamente que o indivíduo só pode ser compreendido a partir da
sua interação constante com o campo, sendo ambos mutuamente
constituídos. Não há como pensar o sujeito fora de um campo: todo
sujeito está inserido em um dado contexto, pois existe em um campo
organismo/ambiente que o atravessa (Cardoso, 2019; PHG, 1997). Em
Gestalt-terapia, o ser é sempre em relação, é um ser-no-mundo e,
portanto, não pode ser entendido fora deste.
Cardoso (2019) ressalta que uma relação não está nunca restrita ao
indivíduo e ao outro, mas contém em si o fundo, que é responsável pela
sustentação da figura. Se o fundo não oferece o suporte necessário para
a figura emergir na fronteira de contato, pode-se gerar experiências de
ansiedade e sofrimento (Francesetti, 2013 apud Cardoso, 2019). Este
fundo pode ser a sociedade, a família, um grupo específico ou até
mesmo, o Gestalt-terapeuta. Desse modo, buscamos pensar os
processos de suicídio e de luto de pessoas sexo-gênero diversas, tendo
como base a indissociabilidade entre o sujeito e o meio.
462 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Pensar o fenômeno do luto e do suicídio de pessoas dissidentes, é


também pensar a possibilidade destes corpos serem de fato
reconhecidos como corpos existentes (Pfeil & Pfeil, 2021; Butler, 2016).
Ao postularem o contato como um acontecimento ao mesmo tempo
ético, político e antropológico, Muller-Granzotto e Muller-Granzotto
(2012) discorrem sobre a condição de vulnerabilidade política de
mulheres, pessoas negras, pessoas sexo-gênero diversas, que são
constantemente reduzidas a existências inferiores, desprezíveis e
matáveis e que, portanto, não são reconhecidos em sua cidadania. Ao
mesmo tempo, a condição de vulnerabilidade antropológica, assegura o
não-reconhecimento da humanidade desses grupos. Assim decorre que
processos de violência contra estas populações, sequer são reconhecidos
como tal, visto que “se a violência é cometida contra aqueles que são
irreais, então, da perspectiva da violência, não há violação ou negação
dessas vidas, uma vez que elas já foram negadas'' (Butler, 2019, p.39).
A Gestalt-terapia constrói uma visão integrada do ser humano, e
trabalha com uma visão diagnóstica processual. Neste sentido, ao longo
do texto, evitarei utilizar a categoria paciente suicida, visto que ela
adjetiva a subjetividade daquele que busca a morte de si, e o reduz a um
acontecimento por si só, já marcado de estigma, julgamentos e
preconceitos (Rabelo, 2019). Ressalto que categorias diagnósticas não
são apenas meras descrições de um mundo real objetivo, visto que elas
operam um efeito performativo, criando roteiros identificatórios e
processos de subjetivação que ancoram a autocompreensão e a
compreensão do mundo nos alicerces de tais categorias. (Foucault, 2007;
Hacking, 2006; Butler, 2018 apud Neves et.al, 2021).
Tais categorias se circunscrevem aos sujeitos, construindo
discursos que os levam aos consultórios descrevendo-se a partir dos
Gabriel Fernandes Rodrigues • 463

diagnósticos que receberam ou se deram, como depressivo, bipolar,


suicida. Muitas vezes, a compreensão destes diagnósticos é relacionada
a um déficit biológico, que desvincula o sujeito das suas relações e do
seu contexto social. Este pensamento encontra sua base em processos
biológicos onde sofrimento psíquico e existencial, que podem levar ao
suicídio, deixam de ser compreendidos enquanto efeitos de dinâmicas
relacionais, o que, por sua vez, esvazia a dimensão ético-política do
sofrimento, de tal modo que a única solução apresentada para tais
problemas passa a ser a medicalização.
O enquadramento teórico a partir do qual abordamos o suicídio
produz efeitos materiais, criando as diretivas para o trabalho clínico
com os pacientes com comportamento suicida. Este movimento tem
impacto nas construções de políticas públicas de prevenção, na
formulação e financiamento de pesquisas, nos prontuários médicos, nos
documentos policiais, no acolhimento dos serviços de saúde, e até
mesmo na forma como as pessoas se representam e se compreendem,
uma vez que como apontam Pfeil & Pfeil “O sistema que nos classifica
como doentes é o mesmo em virtude do qual adoecemos” (2021, p.118).
Silva (2020a), expõe que a compreensão atual do suicídio se
encontra asfixiada por um saber naturalizante que busca controlar e se
antecipar ao fenômeno, sem deixá-lo se mostrar. Tal abordagem
prioriza as determinações psíquicas num viés de sofrimento individual
e pessoal que desconsidera uma leitura social e, sobretudo, política do
fenômeno. Uma postura gestáltica demanda a epoché da associação
entre suicídio e patologia para que seja possível acompanhar os
processos existenciais das subjetividades que buscam a própria morte.
Desse modo, é imperativo questionar as formas pelas quais, nós,
enquanto Gestalt-terapeutas, temos lidado com a questão do
464 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

autoextermínio de populações minoritárias e se, de fato, estamos


construindo uma teoria e prática democrática, que acolha as existências
em seu devir. Cabe também nos questionar, em que medida, temos
construído uma teoria pretensamente universal, neutra e apolítica, cuja
prática busque a submissão e adaptação às normas de gênero e ao status
quo.

LUTO COMO AFETO ÉTICO-POLÍTICO

Em 1991, Neil Gaiman escreveu uma saga chamada “Um jogo de


você” na famosa série de história em quadrinhos Sandman. Na saga,
conhecemos Wanda, uma mulher irreverente e corajosa, que em tenra
idade, fugiu do Kansas para morar em Nova York devido aos inúmeros
conflitos parentais. Wanda é vizinha e melhor amiga de Barbie, e ambas
constroem uma relação muito íntima, tornando-a uma confidente. Ao
longo dos diálogos, Wanda relata as inúmeras agressões, sobretudo
psicológicas, que sofria dos membros da sua família que não a aceitavam
como uma mulher. A única pessoa que Wanda tinha mais intimidade na
sua família, era sua tia Dora, mas ela também tratava Wanda no
masculino. Após inúmeras aventuras, Wanda falece com a passagem do
furacão Lisa que destruiu Nova York e o prédio onde residia. A família,
nesse momento, se esforça para que seu passado de “pecados” seja
evitado, enterrando-a com seu nome de registro, o nome morto,
negando mesmo em seu momento de morte, o reconhecimento do seu
gênero. É no momento do seu enterro, que sua amiga Barbie, espera os
pais de Wanda se afastarem, se ajoelha sobre a lápide da amiga, e retira
um batom rosa flamingo, a cor favorita de Wanda. Com o batom, ela
Gabriel Fernandes Rodrigues • 465

risca o nome “Alvim” escrito na lápide, e escreve em letras garrafais,


“WANDA”.
Esta cena, retirada de uma história em quadrinhos, desloca a
morte, o sepultamento e o luto da esfera privada para a esfera do
político, enquanto reivindicação de reconhecimento de toda uma
história e trajetória que foi negada em vida, e em morte. O convite aqui
é para que possamos ampliar nossa compreensão do luto não apenas
como processo existencial, mas também enquanto processo coletivo e
performativo, que carrega em si muito mais que os sentidos da finitude,
podendo dizer de modos de vida que são ou não considerados como vida,
do lugar social que os corpos não enlutáveis ocupam e do senso de valor
atribuído a determinadas vidas.
Podemos através da jornada de Wanda em Sandman, pensar as
relações entre vida, memória, reconhecimento, e morte em suas
múltiplas manifestações. No entanto, por ser retirada de uma obra de
ficção, recheada de magia, fantasia e tantas características de um
universo fantasioso, pode-se argumentar que tal cena, não tem
representatividade o suficiente para dizer de processos reais. O ponto é
que tal cena escancara um processo que não é necessariamente da
ordem da fantasia, sendo cotidianamente vivenciado por diversas
pessoas que tem negado, o direito à vida, ao luto e a memória.
Conhecida como a Rainha da noite, nos anos 80 e 90 da noite
Paulistana, a travesti Andréa de Mayo, ativista pelos direitos de pessoas
sexo-gênero diversas, faleceu aos 50 anos em decorrência das
complicações de uma cirurgia para retirada de silicone industrial. Em
seu enterro, não permitiram que seu nome fosse usado na lápide, sendo,
portanto, enterrada com seu nome de registro. Somente 16 anos após
sua morte, em uma manifestação solene, que foi também um protesto
466 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

de reivindicação de memória, e de respeito a identidade nos ritos


funerários, foi possível identificá-la a partir de sua lápide. Este protesto
culminou com a fixação de uma placa com o nome de Andréa na lápide
do túmulo dela no cemitério da consolação.
Alana, uma travesti de 30 anos que enfrentava uma grave doença
pulmonar, havia solicitado à amiga que assegurasse que o seu velório e
sepultamento respeitassem a sua identidade de gênero quando viesse a
falecer. Quando Alana faleceu, as amigas que foram à cerimônia mal
puderam a reconhecer, não porque ela tenha tido uma morte violenta,
mas sim porque estavam velando ali, uma pessoa com aparência
completamente distinta da que Alana ostentava em vida. A família
decidiu velar Alana, de terno e gravata e com um bigode desenhado em
seu rosto. O enterro teve repercussão nas redes gerando bastante
revolta e indignação 1.
Por último, podemos resgatar também o exemplo de Victoria
Jugnet, adolescente que faleceu aos 18 anos, por suicídio. A família da
jovem solicitou a inclusão do seu nome social na certidão de óbito e teve
o pedido negado pelas autoridades jurídicas. A partir deste caso, nasceu
a lei Victoria Jugnet, que busca garantir o nome social em lápides,
jazigos e certidões de óbito mesmo se pessoas trans não tiverem
conseguido retificar o nome em vida. Segundo Guedes (2021), apenas São
Paulo, Brasília e Palmas têm leis específicas sobre reconhecimento da
identidade social em cerimônias de velório, sepultamento e cremação.
O direito a autoidentificação parece, portanto, se extinguir com
óbito, ou melhor, passa a ser definido pela família. Desse modo,
constatamos que a prática violenta do apagamento identitário nos

1
https://oglobo.globo.com/brasil/era-que-ela-mais-me-pedia-para-que-nao-acontecesse-diz-amiga-
de-mulher-trans-enterrada-de-terno-bigode-no-sergipe-1-25235187.
Gabriel Fernandes Rodrigues • 467

funerais e demais ritos de luto é legitimada e consentida, enquanto o


respeito à identidade de gênero das vítimas, mesmo quando solicitado
por familiares, encontra entraves burocráticos nas interpretações
jurídicas que perpetuam a violência do apagamento identitário nos
processos pós-morte de pessoas trans.
Vemos a consolidação de uma negação do direito ao luto quando se
trata de histórias de vida que romperam em diferentes níveis com os
ditames da normatividade. Diz-se de um duplo assassinato, na medida
em que o Brasil lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans, ao
mesmo tempo em que, depois de assassinadas, se aniquila também a
possibilidade de construção de memória dessas vidas, negando o direito
ao luto para aqueles construíram seus corpos e subjetividades nas
fronteiras das normas de gênero e de sexualidade.

SUICÍDIO, LUTO E RECONHECIMENTO

Butler, em “Vida Precária: Os poderes do luto e da violência" aponta


que uma das maneiras de alcançar o reconhecimento de uma vida é se,
diante da morte dessa existência, houver luto. Dessa forma, uma
existência só pode ser considerada perdida se, primeiramente, ela for
compreendida antes como vida e, posteriormente, houver luto por ela.
Assim, a autora busca compreender quem conta como humano e que
vidas contam como vida, questionando quais vidas merecem ser
enlutadas. Ao deslocar o luto do campo do privado para pensar o mesmo
em sua dimensão ético-política, a autora indica que a distribuição
desigual do direito ao luto, e o modo como pranteamos nossos mortos,
revelam aspectos fundamentais da hierarquia de valor que rege as
subjetividades (Mamed, 2022).
468 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Os exemplos citados na última sessão constituem o que podemos


chamar de vidas precárias, conceito usado por Butler (2016) para
designar todas as vidas que podem ser lesadas, perdidas, destruídas e
negligenciadas; que podem ser eliminadas e tratadas como vidas
indiferentes. Para ser considerada uma vida digna de ser vivida, é
imprescindível um determinado enquadramento nos parâmetros de
inteligibilidade socialmente instituídos. É aqui que as normas,
sobretudo de gênero e sexualidade, ganham destaque, ao produzir vidas
e subjetividades que são destituídas do caráter de humanidade e que,
portanto, podem ser mortas sem que isto sequer conte como uma
violência ou como algo importante.
Ao que nos interessa apontar, pessoas trans e travestis podem não
se enquadrar nos padrões de inteligibilidade e reconhecimento, visto
que a morte delas é constantemente desconsiderada e desprezada. É
possível que essas mortes não gerem pesar, pelo contrário, a morte
dessas pessoas é, sobretudo, desejada, como apontam os dados sobre a
violência no Brasil contra essa população, que demonstram números
alarmantes: em 2021, pelo menos 140 casos confirmados de pessoas
transexuais e travestis assassinadas, em sua maioria negras e de
identidades femininas, sendo que em 72% desses homicídios havia
requintes de crueldade.
A possibilidade de ser pranteada, é condição fundamental para
toda vida que importa (Butler,2016). Assim, a expressão do luto,
enquanto afeto existencial e político, simboliza o reconhecimento de
uma vida de valor, de uma vida que importa. Nesse sentido, o luto é
também uma reivindicação que coloca em xeque a necropolítica
exercida sobre determinadas subjetividades. Percebe-se que o valor
desigual atribuído às pessoas que tiveram sua identidade negada nos
Gabriel Fernandes Rodrigues • 469

ritos fúnebres é uma continuidade do processo de desvalorização desses


mesmos corpos em vida. “A morte dos sujeitos degradados à condição
de não-pessoas não terá narrativa, ou, quando muito, essa será reduzida
a mera quantificação numerária que normalmente é aplicada às coisas”
(Butler, 2019, Safatle, 2020 apud Mamed, 2022, p.259). No Brasil,
podemos perceber que, oficialmente, não são nem reduzidas a
quantificação numerária, visto que os órgãos oficiais não contabilizam
essas mortes.
Estes processos revelam que a “morte social precede a morte
orgânica” (Pfeil & Pfeil, 2021, p.119). A invisibilidade a que são relegadas
em vida, também as acompanha nos processos de morte, visto que suas
mortes não são consideradas importantes ou dignas o suficiente para
serem oficialmente contabilizadas por órgãos públicos que coletam e
divulgam dados populacionais. Em regra, não há nos formulários
oficiais de órgãos estatais de pesquisa ou de segurança pública
categorias que permitam contabilizar e identificar as mortes de pessoas
LGBT+, cabendo, portanto, à própria população contar seus mortos. Não
é por outro motivo que, impulsionados pela inoperância dos órgãos
públicos na construção de mecanismos capazes de receber e visibilizar
tais mortes, os movimentos sociais apostaram na prática de
levantamento midiático (notícias de jornais e revistas, reportagens,
dentre outros) relacionado à violência contra a população de LGBT+ em
todo o território nacional.
As pesquisas sobre suicídio da população sexo-gênero diversa no
Brasil enfrentam as mesmas dificuldades para sua realização, em
especial pela ausência das categorias “orientação sexual” e “identidade
de gênero” nos obituários e nos registros do Sistema de Informação de
Mortalidade do DATASUS, além de não estarem registrados, também,
470 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nos boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde. A falta destes


dados nos registros nacionais não somente inviabiliza o levantamento
de informações sobre morte por violência e por suicídio dessa população
no Brasil, como impossibilita a construção de políticas públicas de
prevenção. Ao mesmo tempo, vemos impedida a construção de memória
e de reconhecimento desses corpos, em um processo de apagamento e
invisibilização que perpassa a vida muito antes da morte, seja por
violência ou por suicídio.
Baére (2019) demonstra que há um ínfimo investimento
governamental na prevenção do suicídio da população sexo-gênero
diversa, mesmo quando a literatura científica (internacional) aponta
para os altos índices nesse grupo. Esse silenciamento e descaso por
parte dos órgãos governamentais, segundo o autor, são um reflexo da
cisheteronormatividade da sociedade. Mais do que um silenciamento
perante essas mortes, o que vemos é a produção de condições para que
o suicídio aconteça, visto que para grande parte dessa população, é
negado o direito à vida antes mesmo que possam tirá-la (ibidem).

DADOS ESTATÍSTICOS

No cenário brasileiro, há uma escassez de estudos que versem


sobre o fenômeno do suicídio na população LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transgêneros) sobretudo no que diz respeito a população
trans. Em termos de metodologia quantitativas, até a escrita deste texto,
encontramos apenas quatro estudos nacionais que pesquisaram sobre
suicídio tendo como foco a população trans. (Correa et al, 2020; Souza et
al, 2015; Bezerra et.al, 2018; Silva, 2020b). Ainda que escassos, os poucos
dados produzidos são alarmantes. Conforme aponta o relatório
Gabriel Fernandes Rodrigues • 471

“Transexualidades e Saúde Pública no Brasil: entre a invisibilidade e a


demanda por políticas públicas para homens trans/transmasculinos”,
85,7% dos homens transgêneros/transmasculinos que participaram da
pesquisa já pensaram em suicídio e/ou tentaram cometer o ato (Souza
et al., 2015). Já a pesquisa de Bezerra et al. (2018) intitulada “Os Homens
Trans no Brasil: as políticas públicas e a luta pela afirmação de suas
identidades”, traz dados importantes sobre a população de homens
trans brasileiros. A pesquisa contou com 242 pessoas de todas as regiões
do Brasil e revelou que 66,4% dos homens trans entrevistados
afirmaram já ter pensado em suicídio e 41,5% já atentaram ao menos
uma vez contra a própria vida, “um número bastante superior ao da
população geral que é de 3% (Bezerra et al., 2018).
A família, muitas vezes entendida como fonte -de amor, suporte
incondicional, proteção e segurança, para pessoas dissidentes sexuais e
de gênero, ela pode representar o lócus da violência. Dados da pesquisa
“Fatores associados à ideação suicida entre travestis e transexuais
assistidas por organizações não governamentais” realizada no Rio
Grande do Norte revelaram que as pessoas travestis e transexuais que
estavam no ambiente doméstico demonstraram maior proporção de
ideação suicida quando comparados com aqueles que tinham sido
expulsos do núcleo familiar (Silva, 2020b).
A meta-síntese elaborada por Adams et al. (2017) revela que as
pessoas trans são desproporcionalmente impactadas por esse
fenômeno, visto que a probabilidade de tentativa de suicídios é
aproximadamente 22 vezes maior do que no público em geral
(cisgêneros). Tais dados estatísticos são essenciais, mas não revelam as
características que produzem essas cifras. Nesse sentido, é preciso
corporificar as estatísticas.
472 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Baére (2018) aponta para a importância do ambiente social na


produção do adoecimento que pode levar ao suicídio, ao considerar que
“é preciso ter em vista que o comportamento suicida, mesmo sendo um
ato auto infligido, não está desassociado dos contextos adoecedores que
fragilizam os indivíduos psiquicamente” (p.127). Estudos qualitativos
têm buscado elucidar as taxas elevadas nessa população, apontando que
esses problemas não são inerentes à orientação sexual e a identidade de
gênero, sendo explicados, sobretudo, pelos determinantes sociais da
saúde (Tomicic et al., 2016).
O discurso estatístico, busca revelar, portanto, o risco de suicídio
de indivíduos e grupos. Todavia, buscamos explorar de forma crítica, os
modos pelos quais a categoria risco pode ser utilizada em si mesma,
como justificativa para uma amplitude de ações terapêuticas ou não,
que visam prevenir o suicídio.

SUICÍDIO DA POPULAÇÃO TRANS E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DE UM


DESTINO INEXORÁVEL

Apesar de ser um ato ‘individual’, o suicídio é definido como um


processo multifatorial e multideterminado que, como vimos, é
influenciado por marcadores sociais como raça, etnia, gênero, classe,
sexualidade e geração. Desse modo, é difícil atribuir uma causalidade
única ao fenômeno. Para entender o que causou ou motivou tal ato, são
avaliados os fatores predisponentes e precipitantes. Segundo Bertolote
et.al (2010) fatores predisponentes dizem respeito a aspectos remotos
da história e desenvolvimento da pessoa, entendidos como o terreno
base no qual se desenvolvem o comportamento suicida, por exemplo;
presença de transtornos mentais, tentativas prévias, isolamento social,
pertencer a uma minoria sexual, pertencer a uma minoria étnica. Já os
Gabriel Fernandes Rodrigues • 473

fatores precipitantes são os eventos recentemente desencadeados e são


mais fáceis de serem atribuídos como causalidade para o suicídio, por
exemplo, separação conjugal, rejeição afetiva ou social, perda de
emprego, medo de ser descoberto.
Além dos fatores predisponentes e fatores precipitantes, a
literatura da suicidologia traz também a importância de pensarmos em
fatores de risco e de proteção. Na atuação com pessoas que apresentam
comportamento suicida, há que se identificar o risco, proteger o
paciente e remover ou tratar os fatores que o ameaçam, ao passo que se
promova a possibilidade de ampliação de fatores de proteção. É
interessante observar como alguns fatores entendidos como
predisponentes, definidos pelo autor como “aquilo que criam o terreno
no qual eclodem os comportamentos suicidas” (ibidem, p.S88) incluem
fatores identitários de pertencimento, como por exemplo, “pertencer a
uma minoria sexual (homossexuais e transexuais) e pertencer a
minorias étnicas”. Desse modo, afirma-se que não ser heterossexual
e/ou cisgênero constitui um fator de risco para o autoextermínio
(Botega, 2015, apud Baére, 2018).
Nos questionamos se o risco se encontra no pertencimento a uma
determinada minoria sexual ou étnica. Será que o fato de ser uma pessoa
sexo-gênero-diversa, per si, promove um maior risco de suicídio, ou
será que este maior risco está relacionado as perversas engrenagens da
cisheteronormatividade e da necropolítica que se exerce sobre esses
corpos?
A noção de risco, (risco de saúde, risco de morte, risco de suicídio)
muito mais do que uma categoria epidemiológica e clínica, é também
uma categoria performativa, que cria associações e realidades entre os
sujeitos e os números. Ao pensar a construção do suicídio, Orozco-Villa
474 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

(2021) toma como exemplo a epidemia de HIV/AIDS para mostrar como


os discursos de especialistas, vão pouco a pouco, produzindo uma noção
de traço identitário de um grupo que carrega em si tal patologia.
No caso de pessoas sexo-gênero diversas, há uma ampla literatura
que aponta para um maior risco desse grupo em diferentes contextos,
maior incidência de transtornos mentais, consumos de álcool e drogas,
ideação e tentativas de suicídio, entre tantos outros. Tais estudos são
centrais para compreender o fenômeno e para criar políticas de
prevenção, todavia, podem gerar alguns inconvenientes analíticos
(Orozco-Villa, 2021). Um deles é a biologização e psicologização do
comportamento suicida, que passa a ser entendido como algo que reside
no interior do sujeito, uma espécie de predisposição biológica e
psicológica. Nesse sentido, a partir do discurso epidemiológico do risco,
o suicídio aparece como um traço característico de certas populações,
por exemplo, como um traço inerente da personalidade de pessoas
trans, configurando-se ao mesmo tempo, como uma natureza e um
destino.
Cover (2012), aponta que grande parte das pesquisas que
relacionam o suicídio a população transgênero focam sua análise nos
dados estatísticos. De acordo com o autor, essa metodologia pode
naturalizar o autoextermínio nessa população, ao criar uma falsa
causalidade entre identidade de gênero e suicídio. Desse modo, cria-se
uma ideia de que o simples fato de ser uma pessoa trans é um fator de
risco para o suicídio, internalizando o problema nos sujeitos ao passo
que os patologiza.
A tríplice pecado-crime-doença, ao mesmo tempo que relega as
dissidências sexuais e de gênero ao campo do anormal, assegura à
cisheterossexualidade o status de regra, de naturalidade, de
Gabriel Fernandes Rodrigues • 475

normalidade e de norma. Ao relacionarmos esse movimento ao suicídio,


notamos que a tríplice instaura o problema no interior do sujeito, que
se torna pecador, criminoso e doente, escondendo assim, todas as
circunstâncias sociais que atuam na produção do suicídio,
despolitizando o fenômeno, ao inocular no cerne dos sujeitos, a
problemática do autoextermínio.
As formas de patologizar a diversidade sexual e de gênero se
mostram constantemente atualizadas, e evidentes nos campos do
conhecimento em que a diversidade de gênero está associada ao risco
(De La Espriella, 2007 apud Orozco-Villa, 2021). Para além das relações
de causalidade, é importante refletir sobre qual a função biopolítica de
determinados usos da epidemiologia, levando em consideração que os
discursos sobre a saúde, nunca se referem tão somente à dimensão da
saúde ou dos riscos relacionados a ela, carregando os valores de
determinada época e cultura (Castiel & Diaz, 2007).
Um ponto que merece destaque nesse sentido, é a ideia do
tratamento hormonal e cirúrgico como um tratamento que funcione
como um fator de proteção ao suicídio para aqueles que o desejam. Ao
mesmo tempo, discursos governamentais apontam tais tratamentos
como fatores de risco para as altas taxas de suicídio dessa população,
visando assim, barrar o acesso à transição, principalmente da população
de crianças e adolescentes trans. Desse modo, vemos ser articulada toda
uma política sexual do suicídio que se atrela aos corpos divergentes,
produzindo discursos que justifiquem a proibição à hormonização e
cirurgias.
Em um documento do Governo Federal, no âmbito do Ministério
da Mulher, Família e Direitos Humanos, intitulado “Boas práticas na
implementação dos Sistemas de Informação para Infância e
476 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Adolescência”, em que constam a transcrição de diversas palestras, a


temática da transição como risco para o suicídio de jovens é expressiva,
estando sintetizada sob o sintagma da ideologia de gênero, como uma
prática a ser combatida. Como exemplo, podemos identificar os trechos:
“Condicionar crianças a acreditarem que uma vida inteira de
personificação química e cirúrgica do sexo oposto é normal e saudável,
é considerado uma violência contra a criança. É um tipo de abuso
infantil” (Filho, 2021, p.128). Ainda que careçam de cientificidade, tais
argumentos disputam no cenário governamental a produção de
políticas públicas e de “Boas Práticas”, principalmente em um governo
explicitamente transfóbico, que articula o desmonte das universidades,
da ciência e da tecnologia 2.
Consideramos que a relação entre o processo de transição de
gênero e a suicidalidade não estão dadas de antemão, sendo uma relação
que se constrói socialmente, a partir das relações de saber-poder que se
articulam, inclusive, a partir da análise dos dados estatísticos e
epidemiológicos das pesquisas quantitativas. Nesse sentido, nos
perguntamos o que leva os pesquisadores a pensarem a transgeneridade
em si, como um fator de risco ou de proteção para o suicídio? Porque
não existem pesquisas que exploram a cisgeneridade também enquanto
um fator de risco ou de proteção para o autoextermínio? Tais perguntas
podem desvelar o lugar que cisgeneridade e transgeneridades ocupam
nas pesquisas, enquanto categorias atravessadas de pressupostos
biomédicos que produzem as transidentidades enquanto
essencialmente patológicas cuja propensão ao suicídio está dada no fato

2
Pesquisadores alertam para risco de desmonte da ciência no Brasil. Disponível em:
https://jornal.usp.br/universidade/politicas-cientificas/pesquisadores-alertam-para-risco-de-desmonte
-da-ciencia-no-brasil/.
Gabriel Fernandes Rodrigues • 477

da pessoa ser trans. Ao mesmo tempo, cria-se a ideia de uma


cisgenereidade e heterossexualidade terapêutica, idealizadas como
fatores de proteção e como uma categoria de redução de danos para o
suicídio. Por fim, ressaltamos que a categoria “suicídio” articula uma
complexa política sexual dos corpos desviantes ao se produzir enquanto
um risco, uma tendencia, uma propensão, ou em outras palavras um
destino.
A partir desses apontamentos, percebemos que é necessário um
cuidado metodológico e analítico para não reduzir o fenômeno. Pensá-
lo a partir Gestalt-terapia requer sobretudo uma politização do
sofrimento, assumindo que ele não está desassociado de contextos
sociais, econômicos, políticos e culturais. A potência de uma análise
gestáltica dos processos de luto e de suicídio de pessoas trans e travestis
reside na possibilidade de evidenciar e desestabilizar interpretações
essencializantes e patologizantes que invisibilizam e desconsideram
situações sociais e políticas acerca do sofrimento. A partir de uma
leitura gestáltica de campo, entendemos que sofrimento é além de
fenômeno existencial, um fenômeno político e, a partir disso, é possível
ampliar a compreensão do suicídio considerando-o não como uma
expressão inerente de patologias, mas de fato, como produto e efeito das
relações em um campo. Ressaltamos que o processo de pensar e
idealizar a própria morte, a escolha do método, a escrita de uma
mensagem final, e até a realização do ato, são processos gendrados, ou
seja, demarcados pelo gênero (Baére, 2018).
Por fim, ao tomar o suicídio não apenas como categoria privada,
mas sobretudo como uma categoria ético-política com efeitos
performativos, buscamos ressaltar os impactos de determinados
enquadramentos teóricos que, longe de serem apenas descritivos,
478 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

configuram-se como discursos violentos para corpos que buscam


romper com toda a sorte de destinos produzidos por estes mesmos
discursos.

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22
ARTETERAPIA GESTÁLTICA COMO CO-CONSTRUÇÃO
DE ESPAÇOS DE ACOLHIMENTO: RELATO DE
EXPERIÊNCIA NO PROGRAMA TRANSCIDADANIA (SP)
Gestalt art therapy as co-construction of welcoming spaces: experience
report in the Program “Transcidadania” (SP-BRAZIL)
Arteterapia gestalt como co-construcción de espacios acogedores: relato de
experiencia en el Programa “Transcidadania” (SP-BRASIL)

Eliane Capel

INTRODUÇÃO

Este trabalho relata os atendimentos arteterapêuticos realizados


entre março e novembro de 2020, inseridos em um programa de estágio,
com uma senhora transgênera, sob supervisão da professora Selma
Ciornai. Foram dois encontros semanais de uma hora, totalizando 56
encontros. Devido à pandemia, os atendimentos e a supervisão
aconteceram no formato online. Realizei encontros arteterapêuticos
com um grupo de mulheres trans e travestis vinculadas ao Programa
Transcidadania da prefeitura da cidade de São Paulo.
O Programa Transcidadania, acolhe mulheres transexuais,
travestis e homens trans em situação de vulnerabilidade social,
promovendo a reintegração social por meio da oferta de estudos e da
transferência mensal de renda, dando condições para que possam
realizar as atividades. O Programa conta com apoio psicológico,
pedagógico, jurídico e social em Centros de Cidadania LGBT.
482 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Foi neste nesse grupo, no início de 2020, que conheci Verônica


(nome fictício), 62 anos, interessada em participar de atividades grupais
oferecidas pelo programa, incluindo arteterapia. Devido à pandemia
Covid-19, após poucos encontros tivemos que parar os trabalhos
presenciais. Com isso, decidimos oferecer atendimentos online às
interessadas. Verônica aceitou. Mostrou-se disponível para os
encontros virtuais, mas ao mesmo tempo assustada com a nova
realidade de isolamento social.
Ao longo do processo arteterapêutico houve um desenvolvimento
de suas habilidades artísticas que já eram potentes, mas se expandiram,
considerando que antes ela apenas copiava imagens nas aulas de artes
na escola e depois passou a expressar e criar desenhos e pinturas de
forma mais elaborada, chegando a fazer telas. Nas conversas a respeito
de suas produções, ela pôde reelaborar sua trajetória, seus projetos de
vida, desejos e planos para o futuro, incluindo agora, em sua identidade,
o “ser artista”.
Apresento, neste relato, parte do trabalho realizado com Verônica,
a partir de questões teóricas que serviram de base para as intervenções
e posteriores reflexões sobre a experiência.
A questão principal que norteou essa experiência foi: de que forma
a arteterapia gestáltica poderia contribuir para melhorias na qualidade
de vida e experiências emocionais de uma senhora transgênero? Além
disso, aponto quais benefícios as sessões de arteterapia trouxeram para
a vida de Verônica e que podem vir a trazer na vida de outras travestis e
transexuais. Para tanto, os aspectos psicossociais foram abordados
como fundo da história da cliente, assim como problemáticas e
questionamentos de padrões normativos de gênero. Espero com isto
colaborar para o avanço de uma sociedade que respeite e inclua as
Eliane Capel • 483

diversas formas de ser, com garantia de direitos humanos básicos,


incluindo tratamentos de saúde mental.

CONSIDERAÇÕES SOCIAIS E MEU INTERESSE POR QUESTÕES DE GÊNERO

Para contextualizar meu interesse e minhas práticas com mulheres


trans, preciso pontuar de qual lugar estou falando. Sou mulher branca
cisgênera e heterossexual, de classe média, psicóloga, arteterapeuta,
professora de dança, mãe de menino (11 anos), 45 anos e solteira.
É importante reconhecer o lugar de que falo, pois em minhas
vivências não experimentei as dores e as problemáticas que carregam
as pessoas transgênero. Minha realidade traz em si privilégios. Durante
o período de estágio fui buscar leituras, sobretudo, de escritoras
transgêneras que abordam conceitos a partir de suas experiências,
vivências e militância.
Refletir sobre as questões de gênero e como a arteterapia pôde e
pode contribuir para essa população foi um reencontro com minha
própria história como mulher (e das mulheres que conheci). Nesse
percurso fui me sentindo fortalecida como ser humano e como
profissional, sendo eu mãe, psicóloga, artista e dançarina.
O machismo já é opressor em relação às mulheres cisgêneras e a
situação piora muito quando se trata de pessoas transgêneras. No
último Dossiê da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e
Transexuais), foi divulgado que no Brasil “no ano de 2021, tivemos pelo
menos 140 (cento de quarenta) assassinatos de pessoas trans, sendo 135
(cento e trinta e cinco) travestis e mulheres transexuais, e 05 (cinco)
casos de homens trans e pessoas transmasculinas.” (Benevides, 2021, p.
30). “[...] em 2021 o Brasil seguiu sem qualquer ação do estado para
484 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

enfrentar a violência transfóbica; permaneceu como o que mais


assassina pessoas trans do mundo pelo 13º ano consecutivo (TGEU-
Transgender Europe/2021)” (Benevides, 2021, p. 31). Esses dados apontam
para a gravidade da violência em relação à essa população,
principalmente com as transfemininas.

PROBLEMÁTICAS E VULNERABILIDADE

[...] nós estamos descoladas do que é o direito à cidade, como nosso corpo só
serve para estar nas esquinas de madrugada, quando nós não saímos às
ruas, quando nós não vamos ao teatro, quando nós não vamos ao
restaurante, ao cinema, ao shopping, quando nós somos vistas em uma
cidade como São Paulo apenas para sermos humilhadas, apedrejadas,
assassinadas, quantos equipamentos de saúde não sabem lidar com os
nossos nomes, não sabem lidar com as nossas questões... esse caminho que
esse corpo traça é babado, é confusão e gritaria... eu quero poder ir à um
parque sem ser ridicularizada pela família tradicional brasileira que se
sente superior... nós estamos na exclusão, nós estamos nas margens, nós
estamos tendo que processar o que é essa negação, processar o que é esse
não direito para pensar sobre ele... é muito violento! (Hilton, Erica.
vereadora trans da cidade de São Paulo, Programa Roda Viva, 01/02/2021)

Algumas observações feitas no grupo de arteterapia do qual


Verônica viria a fazer parte e algumas das queixas mais constantes
eram: dificuldade de arrumar emprego, problemas de abandono
familiar (desde a infância e/ou a adolescência), violência e preconceito,
questões de aceitação do próprio corpo ou da sociedade aceitar esse
corpo, realidade da prostituição como fonte de renda, evasão escolar,
drogadição, relações afetivas/amorosas “escondidas” da aparição
pública, entre outras, como nos aponta a psicóloga transgênera
Jaqueline Gomes de Jesus:
Eliane Capel • 485

Exploradas, traficadas, tratadas como anormais ou risíveis, são alvos fáceis


porque desprotegidas pelo Estado- quando não são perseguidas por ele,
ignoradas pela sociedade de consumo, pelo mercado de trabalho e,
eventualmente tornam-se agentes de atividades ilícitas. Há um quê de
protagonismo aí. (Jesus, 2016, p.551)

Para a psicanalista transgênera Letícia Lanz, a família é o lugar de


maior violência em relação a pessoas trans: “[...] filhos transgêneros são
inteiramente massacrados, física e moralmente, por pais, irmãos e
outros familiares que quase nunca se conformam em ter parentes
gênero-divergentes.” (Lanz, 2017, p.233). Muitas vezes a criança precisa
crescer rápido, chegando a ter relações sexuais precoces e, para
sobreviver, se prostitui. A família e a escola, que deveriam ser a base na
infância, sendo espaços seguros para a formação como sujeitos, podem
desestruturar as perspectivas de futuro e planos de vida de pessoas
como Verônica.

Narrativas procedentes do meio escolar brasileiro dão conta de que o grupo


de estudantes transgêneros é o mais assediado moralmente no ambiente
escolar, muito mais que gays, lésbicas e bissexuais. É o grupo mais exposto
ao bullying e a outras formas de violência, inclusive violência física, por
parte de colegas, funcionários e professores. (Lanz, 2017, p. 249)

Os espaços de circulação pública dessas pessoas muitas vezes são


restritos, tendo seus direitos civis e coletivos cerceados. Nesse sentido,
o trabalho para que possam sair da marginalidade é longo e devem ser
feitos em parceria com governo e instituições, sendo fundamental a
escuta e fortalecimento de seu lugar de fala. Em relação ao Brasil, Victor
Madrigal, advogado e especialista independente da ONU em proteção
contra violência e discriminação com base na orientação sexual e
identidade de gênero, diz:
486 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O país, infelizmente ainda lidera o ranking mundial de assassinatos de


pessoas trans em números absolutos, e dentro dessas fatalidades,
observamos que cerca e 80% das vítimas eram negras. Sabemos que garantir
uma legislação inclusiva, que proíba a discriminação é o primeiro passo... A
função primordial de uma nação deve ser proteger e proporcionar o bem-
estar social de todos os cidadãos independente de sua orientação sexual
e/ou identidade de gênero. (DIP, 2021, UOL)

Apesar dos inúmeros avanços que a população transgênera vem


conquistando, Jesus ressalta a estigmatização e marginalização
relacionada às travestis

A população trans brasileira é submetida a estereótipos negativos


diariamente, que são reproduzidos nos meios de comunicação, os quais
costumam, especialmente quando falam das travestis: Tratá-las como
objetos, à condição de mercadorias; apresentar uma visão restrita delas,
como se fossem apenas profissionais do sexo; empregar tratamento
masculino para se referir a elas; e ridicularizar quem se relaciona
afetivamente com elas. (Jesus, 2016, p.542)

Nesse sentido, para realizar um trabalho terapêutico com essa


população é de fundamental importância compreender as
problemáticas sociais que atravessam suas vivências, tais como
preconceitos e violências. Além disso, contribuir com as possibilidades
de articulação de rede de apoio com outros profissionais e instituições
como parte do tratamento terapêutico.

ARTETERAPIA GESTÁLTICA

Realmente acredito que se quisermos entender as contribuições


potenciais da arteterapia no campo da saúde mental e comunitária,
teremos de considerar como a criatividade e as atividades artísticas
Eliane Capel • 487

podem ser facilitadoras e catalisadoras de processos de resgate de vida,


de resgate de sentido mais humano do viver (Ciornai, S., 2004, p. 160)
A Arteterapia e a Gestalt-terapia são fundamentadas em
experimentações práticas como possibilidade de promover melhorias
na qualidade de vida das pessoas. A psicóloga e arteterapeuta Selma
Ciornai, ao escrever sobre a criatividade nos diz que “arteterapeutas
gestálticos acreditam que a criatividade está intrinsecamente conectada
com os processos de vida, e que a habilidade de expressão por diferentes
linguagens verbais e não-verbais é um potencial natural de todos os
seres humanos.” (Ciornai, 2004, p. 15)
Pode-se dizer que a arteterapia é uma possibilidade de
comunicação e elaboração de questões emocionais, que pode promover
o bem-estar global das pessoas. Alguns benefícios dessa prática estão
descritos no site da AATA (Associação Americana de Arteterapia):

A Arteterapia é utilizada para melhorar a capacidade cognitiva e funções


sensório-motoras, promover a autoestima e autoconsciência, cultivar a
resiliência emocional, promover insights, aprimorar habilidades sociais,
reduzir e resolver conflitos e angústias e avançar na mudança social e
ecológica... Oportunidades cinestésicas, sensoriais, perceptivas e simbólicas
convidam a modos alternativos de comunicação receptiva e expressiva, que
podem contornar as limitações da linguagem. A expressão visual e
simbólica dá voz à experiência e capacita a transformação individual,
comunitária e social. (AATA, 2017)

Na Arteterapia Gestáltica, ainda segundo Ciornai (2004), há uma


atenção especial para a relação terapêutica com ênfase no processo e na
peculiaridade das experiências, a qualidade do contato nos encontros e
nas próprias sensações do terapeuta como forma de atenção ao que
acontece no “entre”. Sendo uma terapia dialógica, existe uma cocriação
488 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

no processo, na qual o terapeuta organiza as propostas, entretanto as


possibilidades de experimentos se estabelecem na relação entre
terapeuta e cliente.
Desde os primeiros encontros virtuais estava claro que o diálogo
verbal era uma necessidade para Verônica. Nesse sentido a arteterapia
foi acontecendo de forma gradual e dialógica, as propostas de
experimentos foram possíveis a partir do vínculo criado e do que ela
trazia para as sessões.
O campo relacional terapeuta-cliente é um lugar de
ressignificações e, mesmo diante de todas as dificuldades presentes
num atendimento virtual, criamos um campo de possibilidades
artísticas. Nesse sentido, foi importante ir descobrindo quais eram as
necessidades dos diferentes momentos da vida de Verônica.
Segundo José Guilherme Manso:

Todo campo é um campo energético onde a energia precisa fluir livremente.


Para a Gestalt-terapia, o consultório é um campo, espaço de cura. Não se
trata de uma sala, mas de um lugar no mundo, o campo que une terapeuta
e cliente.
(Manso, 2016, p. 19)

A partir desse “lugar”, mesmo que virtual, eu e Verônica fomos


tecendo momentos de contato e experimentações artísticas, como uma
forma de expressar e contar sua história de vida, o que, para ela, parecia
ser uma boa “distração” em uma fase tão difícil. Tal espaço aos poucos
foi se transformando em uma forma de expressar angústias,
dificuldades, sonhos, desejos, alegrias e tristezas.
Na arteterapia gestáltica, o ato de criar, para algumas pessoas,
pode ser considerado curativo em si, pois traz a experiência do novo, do
Eliane Capel • 489

imaginário que se abre vislumbrando novas realidades. Segundo Joseph


Zinker “a criatividade não é somente a concepção, é o ato em si, a
realização do que é urgente, do que exige ser anunciado” (Zinker, 2007,
p.15).
Ciornai ressalta, na entrevista para o artigo Arteterapia Gestáltica e
suas relações com o processo criativo (2012), o quanto a palavra “contato”
é essencial em Gestalt-terapia:

...o aqui e agora das nossas relações sempre traz um ingrediente do novo;
quando você só projeta o velho na situação atual você está perdendo uma
dimensão importante. Então... na abordagem gestáltica há uma afinidade
muito grande com a criatividade. A palavra criatividade remete a
ajustamento criativo, à awareness criativa. (Ciornai, in Silva; Carvalho;
Lima,2012, p.32).

Na mesma entrevista aqui citada, Ciornai aponta para a


possibilidade de o paciente sentir-se um “cidadão/artista”:

A Arteterapia traz esta possibilidade de o paciente poder se sentir um


cidadão/artista, propicia uma comunicação intersubjetiva muito eficaz,
entre ele e o arteterapeuta, ou com os outros. Traz a possibilidade de
visualizar e simbolizar a cura, esperança, o que deseja... (Ciornai, 2012, p.35)

Vale ressaltar que essa relação entre criar, expressar e sentir-se


uma cidadã, no caso de Verônica, tem grande importância, pois é o
reconhecimento de um lugar novo e possível no mundo, incluindo a
percepção de seus direitos como ser humano. Cabe ressaltar que esse
processo se estabelece numa relação entre arte, terapia, saúde mental e
política.
490 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ATENDIMENTOS À VERÔNICA

No início, tudo era muito novo, tanto para mim, que atendia
individualmente pela primeira vez e ainda virtualmente, quanto para
ela, que nunca havia participado de um processo terapêutico. Então,
juntas fomos construindo como seriam esses momentos. Aos poucos ela
foi me contando sua história e a nova realidade de estar em casa, sem as
atividades cotidianas.
Verônica veio de Pernambuco, onde considera que teve uma
infância feliz, mas difícil, com problemas de agressão paterna e
sofrendo preconceito das crianças na escola que frequentava. Cuidou de
sua mãe durante oito anos, até o falecimento da mesma e disse que
sentia muito a sua falta.
Morava em um quartinho alugado e fora dele dividia com outros
moradores uma pia, uma lavanderia e um banheiro. Disse que sabia
costurar, logo me mandou fotos de máscaras que fez para seu uso na
pandemia.
Naquele momento estava cursando o terceiro ano do ensino
fundamental, afirmava estar muito contente com as novas experiências
e que, com a pandemia, temia muito o que poderia acontecer.
Sobre a relação com a pintura, artes e possibilidade de
experimentos arteterapêuticos, dizia que na escola, antes da pandemia,
a professora e os colegas de classe estavam admirando a forma como ela
desenhava. Entretanto, ela não gosta de pintar, nem de colorir os
desenhos. Nos contatos iniciais, ela me enviou alguns desenhos que fez
na escola, exercícios de reproduções de obras de Tarsila do Amaral.
Eliane Capel • 491

Figura 1
Tarsila

Fonte: Arquivo de Verônica.

Verônica me disse:

.. tenho mania de pintar, mas eu não gosto, ... se eu tiver que pintar é em
uma tela, tinta grossa... mas eu não penso em me meter nesse meio... de
fazer essas coisas, enquanto não passar todos esses problemas e eu não
voltar para a alegria da minha escola... eu não tenho vontade de nada... só
de tomar banho, me cuidar, desinfetar as coisas e depois já fico na minha
cama, sem vontade para nada... a única coisa que faço é dormir...

Nesse início, ela mesma lança a ideia de pintar quadros, mas


sempre diz que não é o momento de fazer, que isso será possível quando
retomarmos as atividades em grupo. Verônica estava me dizendo o
quanto estava se sentindo sozinha e o quanto desejava os encontros
grupais, pois era também um espaço social muito novo e importante
para ela.
492 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Verônica ia desenhando, no tempo dela, a partir de algumas


propostas e provocações e mandava fotos de seus trabalhos. No
momento das sessões ela preferia conversar e também falar dos
trabalhos realizados. Contou do desejo de ter uma casinha simples e
talvez morar em Pernambuco. Compartilhou que trabalhou com
prostituição e que chegou a morar em alguns países, como Itália, França
e Marrocos.

Figura 2 Figura 3
Flores Nascimento

Fonte: Arquivo de Verônica.

Fui acrescentando possibilidades de experimentos, com perguntas


como “você gostaria de colorir essas imagens com tinta ou com lápis?”
Diante disso, Verônica dizia que não gostava de pintar e que isso a
atormentava. Voltava a afirmar que gostaria de estar em grupo e que
estava muito difícil permanecer sozinha.
Ao ouvir sua queixa, argumentei que o desenho era uma forma de
comunicar o que nem sempre é possível com palavras, sendo a arte um
possível recurso interno de enfrentamento ao momento tão difícil que
estávamos passando.
Eliane Capel • 493

Após algumas sessões, aceitou colorir os seus trabalhos. Preparei


então um kit com tintas, lápis coloridos, papéis e levei para ela. Com os
materiais em mãos, Verônica me enviou um desenho de uma lagarta e
de uma borboleta, e escreveu um pequeno texto:

Não me quebro
Só abaixo a cabeça para firmar meus sapatos e manter minha postura,
Limpo minhas lágrimas
Ajusto meu decote e sigo em pé (Verônica)

Figura 4
Lagarta e borboleta

Fonte: Arquivo de Verônica.

Após alguns dias, Verônica mudou de quarto e foi para um espaço


maior, parece ter se sentido estimulada a cuidar melhor de si e de seu
espaço de produção em artes e de estudos escolares. Foi uma melhora
significativa de bem-estar e comodidade. Com isso, começou a fazer
494 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

novos projetos e a falar de desejos, como o de estudar culinária, fazer


um curso de cuidadora de idosos e quem sabe vender salgadinhos.
Depois dessa reorganização, me enviou um desenho que marcou
um momento de virada e de novo ânimo em sua vida: flores que
lembravam a sua infância, disse que gostava de buscar e de entregar
para sua mãe! Nosso vínculo estava a cada dia mais profundo.

Figura 5
Flores mãe

Fonte: Arquivo de Verônica.

Verônica começou a contar mais a respeito de sua infância.


Compartilhou que gostava de colocar flores nos cabelos para enfeitar e
pétalas nas unhas para ter unhas femininas. Disse que tinha
“namorados” adultos que ficavam com ela, ainda que tivesse oito anos
de idade. Histórias da infância e construção de sua identidade trans
foram sendo contadas ao longo do processo terapêutico. Também falou
de sua família e momentos que passaram fome, se emocionando muito
ao falar disso.
Eliane Capel • 495

Ela iniciou experimentações prazerosas e brincantes com cores, foi


descobrindo uma forma de fazer. Sempre iniciava o trabalho com a
escolha de uma cor e preparação de um fundo.

Figura 6
Folhas

Fonte: Arquivo de Verônica.

Verônica começou a se encantar com seu próprio trabalho e a


mostrar para outras pessoas. Trouxe relatos como “Meus vizinhos
viram o desenho que fiz com folhas secas... disseram: ´Lindo..., tem que
colocar em uma moldura...”.
Após algumas semanas, iniciou uma conversa sobre mulheres
trans e cis e enviou-me fotos e vídeos de artistas de que ela gostava. Foi
fazendo pinturas sobre o “feminino” e contando histórias que
aconteceram quando morou no exterior.
496 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Figura 7 Figura 8
Espanha Dançarina

Fonte: Arquivo da autora.

Na Figura 7 acima, ela falou da capa dos toureiros e da força


necessária para suas lutas. Na figura seguinte comparou a saia, feita
com algodão, como a leveza de uma dançarina, dançando com a vida e
agradecendo as coisas boas. Foi depois disso que Verônica me mandou
um áudio dizendo que precisava desabafar sobre o momento em que fez
uso de drogas, quando morava na Itália. Comentou que dividia seringas
com outras amigas, mesmo com pessoas contaminadas, e acreditava que
teve sorte em ter sobrevivido: “Parece que eu nasci 7 vezes, por isso que
eu tenho que tatuar o meu pescoço e cobrir essa tatuagem com um gato
preto!”
Pudemos estabelecer trocas sobre as mulheres trans que admirava,
de figuras públicas em geral a cantoras trans contemporâneas, como
Liniker, Raquel Virgínia e Assucena Assucena. A temática LGBTQIA+
apareceu, ainda não como figura, mas como fundo.
No final do mês começou a sair mais de casa e passou a fazer
caminhadas. Sentindo-se mais segura, foi fazer o cartão do SUS e
conhecer um Posto de Saúde específico para o público LGBTQIA+.
Eliane Capel • 497

Foi também nesse período que Verônica foi convidada pela escola
onde estudava, a fazer uma live em que o secretário da educação também
participou. Sentiu-se valorizada e ocupando novos espaços.
Ao longo dos meses subsequentes, realizou várias pinturas em telas
e anotações com sentimentos e ideias para pinturas futuras.
Na pintura abaixo, Verônica trouxe lembranças de infância de sua
cidade natal. Contou-me que o cercado de sua casa era feito de vários
pedaços de madeira e que cada um tinha uma cor diferente. Ela lembrou
desse espaço e desenhou seu rosto, como criança, com cicatrizes, que
disse serem “da vida, das dificuldades” que passou. Falou da escola, do
preconceito das outras crianças e de que nesse quintal ela já imitava
cantoras e entrava em contato com sua feminilidade.

Figura 9
Cicatrizes

Fonte: Arquivo da autora.


498 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Verônica realizou o trabalho Refúgio, no qual representou o vilarejo


que existia próximo da casa onde morava e que era também um refúgio
para ela. Lá havia pessoas que compreendiam sua feminilidade e a
apoiavam. Relembrou, assim, momentos em que teve apoio e criou uma
rede de acolhimento possível.

Figura 10
Refúgio

Fonte: Arquivo de Verônica.

Verônica apropriou-se da pintura em telas com tinta acrílica. Para


ela foi um jeito de realizar algo “eterno” e que de fato poderia ser
exposto em paredes ou vendidos.
Em Eu e meu amor (Figura 11), fez uma mistura de si com o seu ex-
parceiro. Disse que representou como ela se sentia com ele, que a cobria
Eliane Capel • 499

com o chapéu como forma de proteção e que sentia muito a falta desse
amor.

Figura 11
Eu e meu amor

Fonte: Arquivo de Verônica.

Já no final de nosso processo, fez a pintura Metamorfose (Figura 12).


Ela estava avaliando a possibilidade de retomar sua página no facebook
e divulgar seus trabalhos nas redes sociais. Dizia que colocaria seu nome
e ao lado “artista plástica”. A figura de “mulher-pavão” parece também
expressar essa possibilidade de identidade feminina, cidadã e artista.
Enfim, Verônica de fato estava ocupando novos lugares e redescobrindo
formas de se expor.
500 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Figura 12
Metamorfose

Fonte: Arquivo de Verônica.

Nos últimos meses de atendimento, conversamos muito sobre


possibilidades reais de divulgar e vender seus trabalhos, porém,
acredito que ela ainda não se sentia preparada para esse passo. De
qualquer forma, consideramos possibilidades, quem sabe para o futuro.
O trabalho abaixo foi um dos últimos realizados no final de 2020.
Conta nostalgicamente de seu ex-parceiro, das despedidas que tiveram
quando ele vinha visitá-la no Brasil e falou de quando perdeu a casa que
comprou para a sua mãe em uma briga com a família. O homem no barco
era também seu ex-parceiro, que tinha o sonho de viajar junto com ela.
Também relatou lembranças de sua relação com a mãe e o quanto sente
saudades dessas duas pessoas tão importantes em sua vida.
Eliane Capel • 501

Figura 13
Saudades

Fonte: Arquivo de Verônica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendo que quando tratamos de grupos excluídos e


marginalizados, os trabalhos coletivos têm uma potência para unir
forças. Como a própria Verônica muitas vezes trouxe, nos momentos de
desânimo, o trabalho arteterapêutico em grupo a deixava mais disposta.
Apesar dessa dificuldade, fomos juntas encontrando os caminhos
possíveis.
Mesmo que virtualmente, foi possível criar um vínculo de
confiança com a cliente, que foi abrindo sua rotina, seus medos, seus
desejos e ampliando seu vínculo comigo através de sua arte. A
desesperança do momento da pandemia, junto às dificuldades reais pela
502 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

busca de trabalho, foi diminuindo na medida em que a arte e a


criatividade ganharam espaço na vida da cliente.
Meu interesse e admiração pelos trabalhos e história de vida de
Verônica também reverberaram nela, que se encantava com sua própria
potência, a cada nova pintura realizada. À medida que recebia elogios de
conhecidos, o ímpeto de produzir era aguçado assim como a necessidade
de ampliar conexões com outras pessoas. Em dado momento, além dos
materiais artísticos que lhe ofertei, também consegui a doação de uma
mesa para que ela pudesse pintar com mais conforto. Acredito que o
reconhecimento e a valorização implícitas nestes meus gestos e
movimentos, tenham sido muito confirmadores para ela enquanto
pessoa e “artista”.
É importante ressaltar que enquanto eu a atendia, percebi que em
alguns momentos precisava lembrá-la de pessoas em instituições que
poderiam ajudá-la a enfrentar aquele momento tão difícil de solidão e
incertezas. Realizei pesquisas sobre espaços públicos de saúde
especializados em cuidar de pessoas LGBTQIA+ e de espaços que
ofereciam cestas básicas. Descobri uma ONG para idosos LGBTQIA+, a
“EternamenteSOU”, onde Verônica pôde ter maior suporte diante de
suas dificuldades, incluindo atendimento com assistente social, e pôde
fazer um curso para cuidadores de idosos.
A meu ver, a atuação do terapeuta, nesse caso, não se restringe à
ação com a cliente na sessão terapêutica, pois há demandas muito
básicas que precisam ser articuladas com uma rede de apoio e esse é um
ponto fundamental no meu aprendizado com essa experiência.
Realizar esse trabalho foi extremamente enriquecedor. Enquanto
ela se descobria como artista/estudante e fortalecia sua identidade de
gênero (tendo ao fim mudado o nome em sua documentação) eu me
Eliane Capel • 503

descobria arteterapeuta e psicóloga. Eu cresci muito enquanto


profissional e sigo no aprendizado!
Hoje os espaços têm se ampliado para mulheres transexuais e
travestis, e isso é visível nas mídias, em programas de televisão, na
política, nas universidades e começamos a ver contratações para
trabalhos em comércios, espaços culturais etc. Porém, ainda há muito a
ser feito para combater o preconceito social.
O atendimento individual trouxe a possibilidade de
aprofundamento de sua história, de apoio, de suporte e de confirmação
das questões individuais de Verônica e também do campo social de
contato.
A arteterapia gestáltica é uma forma potente de dar voz à
existência trans, pois nas imagens produzidas, que nem sempre são
atravessadas pela palavra, mas por sentimentos e sensações humanas,
existe a possibilidade de quebra de estereótipos, normatividades e
paradigmas.
A arte transgride normas, não há limites para a criatividade, sendo
assim, na vida podemos ir além.
Desenvolver este trabalho com Verônica me fez acreditar ainda
mais, tanto no poder transformador, quanto empoderador da arte. Além
disso me situou diante da importância de um outro, no caso terapeuta,
que estabelece uma ponte, uma passagem ao mundo no qual a pessoa se
sente excluída.
Como afirma Marcus Belmiro:

Esse discurso tem a ver com um lugar de acolhimento e reconfiguração de


uma história, de restituir o meu lugar no mundo de significados
compartilhados. Nós como clínicos somos convocados a ajudar a esse
indivíduo a reorganizar esses dados e poder reconstruir um horizonte
504 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

possível de futuro... não podemos ignorar que a nossa sociedade cria o


tempo inteiro situações de violência que nos geram situações de desespero,
sofrimento e violação. (Belmiro, 2020, p. 304)

Finalizo minhas considerações com o que considero o meu maior


aprendizado: a importância de estabelecer redes de apoio possíveis para
que a cliente possa ampliar sua circulação, ganhar visibilidade e
perceber seus direitos sociais. Além de estar atenta ao lugar de fala de
uma pessoa em condição de vulnerabilidade social.

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Eliane Capel • 505

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Zinker, J. (2007) Processo Criativo em Gestalt-terapia. Summus Editorial.


23
JOVENS LGBTQIA+ E SEUS FAMILIARES:
FACILITANDO A COMUNICAÇÃO SOBRE
ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO
LGBTQIA+ youth and their families: facilitating communication about
sexual orientation and gender identity
Jóvenes LGBTQIA+ y sus familias: facilitando la comunicación sobre
orientación sexual e identidad de género

Sâmia Silva Gomes

INTRODUÇÃO

Há alguns anos, fui me deparando com uma frequência maior de


atendimentos psicoterápicos com demandas de facilitação da
comunicação familiar sobre orientação sexual e identidade de gênero.
Quando me deparei com esse cenário, parte de mim se alegrava pelo fato
de que finalmente as famílias estavam buscando um espaço para falar
sobre o que antes, possivelmente, era silenciado. Outra parte de mim
era inquietação e busca por construir fundamentos seguros para o meu
fazer clínico junto aos jovens LGBTQIA+ e às suas famílias. Neste ensaio,
pretendo compartilhar parte das reflexões que construí para embasar
minha clínica, focalizando na comunicação familiar como um potente
recurso de cuidado.
Tratar em família sobre sua identidade sexual e/ou de gênero pode
ser muito desafiador para o jovem, principalmente em famílias cuja
fronteira de valores ainda está muito fundamentada na cis-
heteronorma. Sendo também mais difícil em relacionamentos com
Sâmia Silva Gomes • 507

baixo nível de intimidade e com acúmulo de desgastes ao longo do


tempo. As famílias que chegam até mim já trazem evidentemente
alguma abertura para dialogar sobre o tema em ao menos parte de seus
membros, o que já confere certa fluidez ao trabalho.
O que aqui apresento é fruto das minhas experiências tanto na
clínica individual com consulentes adolescentes e jovens adultos, como
na clínica com famílias. Falo como psicóloga, fundamentada no
referencial da Gestalt-terapia como abordagem psicológica, sou uma
mulher cis com orientação heterossexual, preocupada em conhecer e
estudar continuamente para não reproduzir na clínica as opressões
presentes no contexto social mais amplo. Almejo que a leitura deste
ensaio possa contribuir para a construção de uma clínica comprometida
com as desconstruções necessárias e urgentes.
Sou uma psicoterapeuta com um olhar sistêmico, voltado para as
relações familiares e com vasta experiência em sugerir a meus
consulentes convidar familiares a se fazer presentes em sessões a fim
de ampliarmos nossa compreensão sobre os fenômenos familiares e/ou
facilitarmos a comunicação entre eles. Compreendo ser a família um
fundo pronto a emergir como figura durante todo o processo
psicoterápico individual e vejo na Gestalt-terapia com sistemas íntimos
muita potência como espaço promotor de awareness da família em si
mesma, embora seja uma tarefa complexa e muito desafiadora.
A partir de minhas reflexões, compreendi que toda e qualquer
intervenção deveria levar em consideração: (1) as experiências
individuais de todos os membros, sem priorizar nenhum deles em
detrimento a outro; (2) a história relacional na família, como
comunicam suas necessidades individuais e como cuidam de seus
conflitos; (3) a fronteira de valores que confere bordo ao funcionamento
508 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

familiar; (4) o contexto social mais amplo do qual a família é parte. Ao


longo do texto, vamos desenvolver cada uma dessas considerações.

DESENVOLVIMENTO

Como Gestalt-terapeuta, abraçando uma abordagem que é


eminentemente relacional, pensei como facilitar os processos de
comunicação familiares sobre identidades de gênero ou sexuais, a partir
da interação no setting terapêutico. Uma prática que fosse capaz de
promover ao consulente, ao psicoterapeuta e aos familiares uma maior
consciência do que ocorre nos vínculos familiares interferindo nas
expressões individuais e, sobretudo, gerasse espaço de experimentação
de novas formas de contato nas fronteiras familiares.

Na abordagem gestáltica, compreendemos uma impossibilidade de ver os


sintomas, as dores e os comportamentos de um membro da família como
isolado do todo familiar, os quais são por vezes, expressão do ajustamento
criativo na família. Entendemos a família como uma totalidade
autorregulada e as relações membro a membro como complementares e
origens importantes, não únicas, da forma de funcionamento de nossos
clientes (Gomes, 2018, p. 127)

A partir do aceite, sendo confortável para todos os membros,


trabalhamos em sessões conjuntas dentro de processos de psicoterapia
individual ou em terapia familiar. O encontro entre os membros pode
se dar desde o início do processo ou ser construído no tempo singular
de cada realidade familiar, considerando pertinente a experiência não
só do jovem como de cada membro que compõe o sistema íntimo. Como
nos diz Robine (2006, p. 175),
Sâmia Silva Gomes • 509

nenhuma parte do campo deve ser excluída nem considerada a priori como
não pertinente: cada elemento do campo faz parte da organização total e é
potencialmente significativo. Os automatismos que se tornaram invisíveis
devem ser levados em consideração tanto quanto as figuras que podem se
impor por sua força e estabilidade (pregnância).

Este é um dos cinco princípios da Teoria de Campo, organizados


por Parlett (1991), que se fez fundamental ao meu trabalho, o princípio
de uma possível relação pertinente que diz que nenhuma parte do
campo deve ser excluída nem considerada como mais importante. O
propósito maior é conferir condições para uma comunicação entre o
jovem LGBTQIA+ e seus familiares e para isso é preciso conferir lugar e
importância a todas as vozes familiares. Nesse sentido, busca-se
possibilitar a fala autêntica e a escuta interessada, favorecendo, assim,
o reconhecimento das necessidades até então invisíveis, por mais
conflitantes que estas sejam. Além disso, considerar todas as partes é
base para a facilitação da comunicação, mesmo que em movimentos de
alternância figura-fundo, de modo que uma parte terá maior valência
que outras.
Zinker (2001) alerta que o terapeuta, diante de um sistema íntimo,
não pode ser seduzido por um subsistema em detrimento de outro.
Assim, diante da presença do jovem LGBTQIA+ e seus familiares,
facilitamos a comunicação da experiência vivida por cada um,
conferindo espaço para que possam estar conosco sendo quem são, com
suas expectativas, dores, seus medos e introjetos. Todos, mesmo que de
formas diferentes, buscam ser compreendidos frente aos seus desafios.
Portanto, não se trata de pesar ou medir sofrimentos, buscar saber para
quem é mais desafiador ou em quem dói mais, pois, em Gestalt-terapia,
trabalhamos com a concepção de totalidade que se organiza na
510 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

interação de suas partes como complementares (Gomes, 2018; Lavratti,


Silveira & Gomes, 2021; Silveira, 2016; 2022).
Diante da família, disponibilizamo-nos a conhecê-la e, como diz
Zinker (2001, p. 30), inclinamo-nos “de modo a observá-las em suas
inúmeras formas: como um organismo vivo, uma metáfora, uma dança
agradável ou desajeitada”. Nessa perspectiva, pretendemos conhecer a
estética familiar, a forma como funcionam enquanto sistema vivo e
autorregulado. Quem é esta família? Como sentam juntos e o que isso
conta sobre como se comunicam? Onde funcionam bem? Quando e como
se interrompem?
Costumo priorizar o acolhimento e conferir a liberdade para que se
expressem e possam interagir. Após senti-los à vontade é que passo a
“emprestar” o que observei como aspectos promotores de fluidez e
desenvolvimento e, também, descrevo o que percebi como aspectos que
dificultam a expressão de suas dores, seus impasses e suas necessidades.
Aqui é importante ressaltar que a forma como a família lida com o
fato da pessoa LGBTQIA+ comunicar sobre sua identidade sexual ou de
gênero não está restrita ao fato em específico. Os familiares recebem
essa comunicação a partir de como lidam com a temática, mas também
do que vem sendo construído na história relacional da família. Lanço
meu olhar para como equilibram as individualidades e o pertencimento
na família e me indago sobre: Quanto a família confere espaço para a
expressão das singularidades? O quão estão presos por padrões que
conferem pertencimento e lealdade familiar? Um funcionamento fluido
familiar se dá no equilíbrio entre esses dois movimentos fronteiriços
(individualização e pertencimento), em que os membros se aproximam
por afinidades e alianças de cuidado, mas também se afastam
conferindo espaço para se diferenciarem enquanto individualidades.
Sâmia Silva Gomes • 511

Para a pessoa LGBTQIA+ que é parte de uma família na qual o espaço de


individualização (“ser quem se é”, mesmo que diferente do que algum
membro expectou) é pequeno ou inexistente, é muito mais desafiador
comunicar sobre sua identidade sexual ou de gênero.
Cada membro possui, no sistema familiar, um papel no processo
autorregulador, assim além de observarmos a interação do todo
familiar é importante considerar o papel ocupado pela pessoa
LGBTQIA+ no funcionamento da família. Por vezes, a forma como a
família recebe a identidade sexual ou de gênero deste membro também
tem relação com o lugar constituído para este na família.
No contato com os familiares, observa-se quais valores compõem
a “fronteira de valores” que desenha e dá forma ao funcionamento
familiar e ao modo como a família lida com as diversas orientações
sexuais e identidades de gênero. “Fronteira de valores” foi o termo
usado por Polster e Polster (2001) para designar uma das fronteiras que
compõem as fronteiras do eu, sendo esta resultante do conjunto de
crenças e valores que norteiam nossas deliberações e nosso modo de
interação no mundo. Para os autores, “as fronteiras do ser humano, as
fronteiras do eu, são determinadas por toda a amplitude de experiências
na vida e por suas capacidades internas de assimilar a experiência nova
ou intensificada (Polster & Polster, 2001, p. 156).
Percebe-se que alguns valores introjetados podem levar à rigidez
ou à incongruência com outros valores coexistentes. Em nome de alguns
valores, determinadas atitudes são consideradas adequadas, de forma
que invisibilizam ou ferem outros valores. Posso citar famílias em que
a cis-heteronorma seja um valor religioso e, em nome deste valor, a
repressão ou a proibição sejam consideradas como “proteção”, ferindo
outros valores, como o respeito e o acolhimento familiar. As famílias
512 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que chegam impactadas aos nossos consultórios, diante da revelação de


um membro LGBTQIA+, estão conflitadas em seus valores, preservando
alguns em detrimentos de outros e sofrendo com isso.
Compartilho a fala da mãe de um consulente trans, de 13 anos, na
qual fica evidente o conflito na fronteira de valores: “amo profundamente
e não me permito fazê-la sentir-se desamparada, pois sei que somos seu
porto seguro, mas não posso lidar com essa mudança que põe abaixo todos
os meus entendimentos sobre ser uma menina ou uma mulher”. Um conflito
entre valores relativos ao “ser família” e introjetos relativos ao “ser
mulher”.
Proponho a criação de espaço no setting terapêutico em que a
família possa rever incompatibilidades em suas crenças e seus
introjetos, ampliar ou ressignificar de forma que possam afrouxar o
sistema de valores ou expandi-lo. Sempre que possível, sinalizo como
um dado de realidade aos pais, a importância de um valor fundamental
ao desenvolvimento de qualquer ser humano como um ser relacional: a
confirmação do valor do filho ou filha como pessoa, de forma
incondicional.
Infelizmente, ainda há o predomínio da opressão e da repressão
nas experiências familiares das pessoas LGBTQIA+, como enfatiza
Barros (2020, p. 66), “Em minha experiência clínica, percebo, com
frequência, clientes LGBTQI+ tendo seus corpos controlados e vigiados
principalmente por seus familiares”.
O autor ressalta que o sistema social em que vivemos ainda,
“manifesta grande dificuldade de entrar em contato com o novo (demais
orientações e identidades de gênero), recorrendo a formas repetitivas
de domínio sobre o outro e, em casos mais extremos, ao uso da
aniquilação” (Barros, 2020, p. 66).
Sâmia Silva Gomes • 513

São relatos frequentes de pessoas LGBTQIA+ frente ao


comportamento de seus familiares, o anseio de morar longe da casa dos
familiares; a frustração frente aos discursos que revelam que os pais
veem tudo como uma fase que vai passar ou um grande equívoco fruto
de influências de amigos; a presença de vigilância; as tentativas de
aniquilar suas expressões a partir de orientações em instituições
religiosas e até psicoterapias buscadas com este fim; patologizações,
desqualificações e discursos de ódio.
Importante dizer que devemos respeitar e acolher a escolha
legítima, de alguns clientes LGBTQIA+, de não realizar sessões
familiares em suas psicoterapias ou uma terapia familiar. Normalmente
são pessoas com espontaneidade bastante reduzida e violada no campo
familiar. Calar-se, manter-se distante, apresentar desesperança de uma
melhoria nas relações são saídas encontradas de forma funcional para
muitos deles.
Este campo de humilhação, desqualificação e opressão frente a
determinadas orientações sexuais ou identidades de gênero é concebido
por nós, Gestalt-terapeutas, como um campo cocriado. Ou seja, juntos
criamos um campo relacional que ainda tende a vulnerabilizar o
indivíduo que sai das normatizações impostas, como nos diz Gianni
Francesetti (2018, p. 156),

em uma perspectiva de campo, na situação terapêutica não focamos no fato


de que o cliente é vulnerável a ser humilhado; em vez disso, sentimos que
no campo que cocriamos juntos há a presença de vulnerabilidade à
humilhação que pode existir nele ou em mim.
514 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

O Gestalt-terapeuta ressalta, em sua fala, o nosso lugar como


psicoterapeutas. Parte deste campo cocriado, implicando-nos com uma
postura comprometida com transformação social necessária.

O terapeuta precisa estar aberto para considerar de que modo ele próprio
contribui para criar o sofrimento ali encontrado. É uma perspectiva que
requer que o terapeuta queira se questionar a si próprio em todo encontro
e ter a humildade de se assumir como parte da estrutura (Francesetti, 2018,
p. 157).

Portanto, nossa postura deve ser de acolhimento, e não julgamento


a nenhuma parte do sistema íntimo, convidando-os a juntos cuidarmos
da desconstrução a ser feita em nossa sociedade. Reconhecer o que é
para depois transformar é necessário.
Em minha experiência, vejo a importância de assumir e comunicar
ao jovem LGBTQIA+, na presença de seus familiares, que tenho
consciência do campo de opressão que cocriamos e que sou também
parte dele. Afirmo sobre meu esforço contínuo para me aproximar e
conhecer mais sobre uma vivência que não possuo, peço que me sinalize
quando eu agir ou falar de forma que o violente e me ajude a saber mais
e mais sobre a experiência das pessoas LGBTQIA+ e principalmente de
sua singular vivência. Assim reconheço meu lugar de privilégio como
pessoa que não vive as opressões e as violências vividas pelas pessoas
LGBTQIA+ e sinto que meus consulentes se sentem mais vinculados e
seguros na relação terapêutica.
Alerta-nos Guillermo Leone (2022, p. 4), Gestalt-terapeuta
argentino, quando afirma que “há profissionais cuja dificuldade para
aceitar um ser humano que se sente diferente, somada à sua própria
insegurança, leva-os a tomar como único parâmetro válido a própria
Sâmia Silva Gomes • 515

sexualidade”. Este e tantos outros aspectos estão por trás da legítima


escolha das pessoas LGBTQIA+ por procurarem psicólogos, psicólogas e
psicólogues LGBTQIA+ para lhes atenderem. Contudo, com famílias
conflitadas com a revelação do jovem sobre sua identidade sexual ou de
gênero, não é o que costuma acontecer. Evitam profissionais LGBTQIA+
até pelos preconceitos que carregam consigo e é fundamental que
encontrem profissionais comprometidos com as desconstruções
necessárias e aptos a fazer intervenções como as que neste ensaio
estamos abordando.
Junto às famílias, “emprestamo-nos” na forma de percepções,
informações e sensações que emergem do que reverbera da interação
familiar em nós (Zinker, 2001; Silveira, 2016) e, assim, nós estamos
inevitavelmente implicados a partir de nosso sistema de valores. Cabe-
nos, para trabalhar com as intervenções aqui propostas, um contínuo
esforço através do estudo atualizado e da permanente revisão de nossas
concepções. Preocupam-me as “bolhas” em que permanecem alguns
colegas profissionais de saúde mental, os quais, isolados, tornam-se
fechados a compreender as experiências que não acessam.
Nosso trabalho se dá na fronteira de contato, um trabalho
relacional que implica todos os envolvidos, incluindo-nos. A proposta é
cuidarmos das relações para que elas possam ser lócus da
espontaneidade, da comunicação das emoções vividas por cada um e de
uma possível revisão de valores. Para Zinker (2001, p. 165),

na fronteira você experimenta a diferença – existe um “eu” e um “você” – e


que o crescimento acontece quando existe contato na fronteira. As
diferenças precisam ser enfatizadas antes que você possa fazer contato:
preciso saber que você e eu somos diferentes antes que possamos ficar
juntos.
516 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Quando há clareza sobre a existência de vivências diversas no


campo familiar e a experiência de um não nega a do outro, podemos
favorecer o contato com as necessidades legítimas de cada membro e o
cuidado delas sem violar a necessidade do outro. Visando assim a
integração das diferenças como diferenças, e não como
desqualificações. Este é um trabalho complexo e pode se tornar mais
desafiador quando há a presença de distorções perceptivas na fronteira
eu-outro.

Em Gestalt-terapia, sabemos que existem modos de interrelações


complexos e para compreendê-los precisamos olhar para como se dão os
encontros eu-outro na fronteira de contato. As introjeções (assimilar como
meu um valor ou comportamento que não é meu) e projeções (atribuir a
outro o que é responsabilidade, desejo ou necessidade minha) são modos de
interação revelados também na comunicação e o uso excessivo deles
dificultam a fluidez na emissão das mensagens, no entendimento enquanto
receptor e a resolução de conflitos (Lavratti, Silveira & Gomes, 2021, p. 183).

Nesse sentido, facilitar a comunicação é ajudar a desenvolver


habilidades tanto receptivas como expressivas. Saber ouvir o outro com
interesse genuíno em compreender qual é a sua experiência e detectar
qual a sua necessidade é algo que nós, psicoterapeutas, fazemos bem e
podemos ajudar nossos consulentes a desenvolver a partir do que
emprestamos de nossas percepções. Bem como ter a habilidade de
apresentar com clareza o que tem vivido, sentido e o que precisa receber
de seus familiares é algo importante a ser experienciado no setting.
Em uma sessão familiar com os pais de uma consulente de 15 anos,
depois de tentar se expressar e não se sentir ouvida por seus pais, ela
limitou-se a reagir com gestos faciais e movimentos de cruzar e
descruzar os braços às falas de seu pai e sua mãe. Pedi a ela que pudesse
Sâmia Silva Gomes • 517

dar alguma voz aqueles gestos para que ficasse mais claro aos seus pais
o que acontecia com ela naquele momento. Ela, então, me afirmou que
eles já sabiam o que ela estava sentindo e deu de ombros como quem nos
dizia que não adiantava falar mais nada e suas esperanças eram
mínimas. Propus a ela que disséssemos a ela o que líamos em seus gestos
e passei essa minha percepção. A mãe contou que sentia que ela estava
impaciente e o pai informou que ela não se importava mais com eles.
Diante dessas falas, indaguei-a se aquilo era tudo o que ela
precisava que os pais soubessem sobre ela e o que ela tem vivido. Muito
emocionada, minha cliente afirmou que não. Perguntei-lhe se ela já
podia se responsabilizar um pouco mais por comunicar o que ela precisa
aos seus pais. Ela mencionou que era difícil para ela, e propus
emprestar-me para dar voz por ela a sua fala do início da sessão. Ela me
olhou e acenou que sim. Então, ficando por trás dela, fiz uma fala “como
se” fosse ela. Incluí no início da fala o pedido de que eles me ouvissem
até o final. Mencionei em seguida que sabia ser difícil para eles o que
estavam passando e afirmei que mesmo sabendo disso não era mais
possível adiar a sua necessidade de ser quem ela era. Que já não havia
mais como seguir de forma saudável como estava e algo precisava ir
mudando nem que fosse aos poucos.
Quando uso essa forma de intervenção sempre checo com a cliente
se minha fala correspondeu a sua experiência e depois indago como foi
para ela se ouvir através da minha voz. Esse é um exemplo de
intervenções que geram um aprendizado de habilidades
comunicacionais além de promover uma maior fluidez na interação.
Minha cliente e seus pais puderam perceber que, com determinados
cuidados, como legitimar a experiência do outro e ter
518 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

autorresponsabilidade pelo que é seu com clareza, fica mais fácil


comunicar.
A comunicação das necessidades de cada um é um dos passos mais
importante neste trabalho junto à pessoa LGBTQIA+ e sua família.
Minha experiência com esses encontros, de um modo geral,
considerando as singularidades de cada família, permite-me partilhar
que, dentre as necessidades da pessoa LGBTQIA+ (em relação à família)
mais negligenciadas, estão: 1) ser amado e respeitado
incondicionalmente; 2) estar livre e espontâneo frente à família; 3) Não
sentir sua identidade sexual ou de gênero e das demais pessoas
LGBTQIA+ tratadas como patologia, “fase difícil que está atravessando”,
“confusão da sua cabeça”, “influência de alguém” ou inferioridade; 4)
convidar seus amigos e companheiros para seu lar, e não manter-se
vivendo dividido em dois mundos; 5) “Não ter que explicar o tempo
inteiro o que já era para todo mundo saber” e tantas outras necessidades
a serem comunicadas e cuidadas na relação familiar.
Dos familiares, dentre tantas necessidades, predominam: 1) ser
compreendido em suas dificuldades e limitações para lidar com o novo
que se apresenta, sem que isso signifique desrespeito e desamor; 2) ter
tempo para primeiro integrar consigo mesmo o novo e depois com os
demais membros da família ampliada e o convívio social mais amplo. 3)
proteger a pessoa LGBTQIA+ das consequências da LGBTfobia social; 4)
não abrir espaço para falar sobre o assunto por acreditar que possa
“estar estimulando ou apressando as coisas”; 5) adiar esse
enfrentamento para um momento de maior maturidade e de melhor
percepção de que haja mais recursos para isso ocorrer.
Encontrar um bom equilíbrio entre essas necessidades de forma
que as necessidades de um não atropelem as do outro é muito desafiador
Sâmia Silva Gomes • 519

para a família e mais ainda para o jovem LGBTQIA+, que já lida com
tantas repercussões da cis-heteronorma internalizada, como a
vergonha, os sentimentos de menos valia, o isolamento, as ansiedades
crônicas, a supressão da expressão de seus sentimentos, dentre outras
formas de autorrestrições.
Atendi a uma garota que me perguntou se poderia me indicar ao
seu colega que precisava de ajuda para contar aos seus pais sobre sua
orientação sexual. João (nome fictício), aos 15 anos estava com uma
psicoterapeuta escolhida pela mãe, mas a profissional o desencorajava
a falar com os pais antes que “tivesse mais certezas”. Exponho essa
peculiaridade dos fatos para dar luz a essa grave questão, em que é
imposta a condição de certeza aos processos autodeterminados e
passíveis de mudança ao longo de todo o desenvolvimento. Meses
depois, a mãe do garoto me procurou afirmando ter sido uma solicitação
do filho mudar de profissional, e iniciamos a psicoterapia dele. Com o
evoluir do processo, chegou o momento em que ele se sentiu seguro para
conversar com sua mãe e me mantive à disposição caso ele escolhesse
trazer familiares em alguma sessão. Seu pai ficou sabendo logo em
seguida, por conseguinte os pais me solicitaram uma conversa apenas
entre mim e eles. Com a anuência de João, recebi seus pais, e foi uma
sessão difícil para eles, cada um com a sua experiência. Para a mãe, os
valores religiosos predominavam no conflito com o valor de acolher seu
filho. Para o pai, a desconstrução de seus anseios foi o que figurou, pois
meu cliente não correspondia a tantas expectativas suas relativas aos
interesses mais diversos, como robes, esportes e futuro profissional.
Aquele momento era a culminância de frustrações vividas no seu
imaginário de pai e como uma explosão estavam em erupções de
emoções. Uma série de desconstruções já existiam em forma de dores
520 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

no sistema familiar, mas todas estavam negadas e silenciadas. Em uma


das falas da mãe, ela disse: “Nunca consegui que minha fé fosse vivida
em família, apenas eu frequento a igreja e me sinto muito só. Agora mais
essa!” Não estavam bem com a revelação de João, mas depositavam
nesta conta outras frustrações.
Foi muito importante no trabalho com essa família a distinção das
fronteiras individuais dentro do espaço coletivo de pertencimento.
Procurei ajudá-los a discernir as frustrações de cada um e diferenciá-
las do processo que o filho deles estava vivenciando em sua identidade
sexual. É comum que situações inacabadas na Gestalt familiar venham
a tornar mais doloroso o processo de readequação familiar ante a
revelação do jovem LGBTQIA+.
Os pais solicitavam que João não estivesse presente em nossos
encontros e me afirmavam que temiam machucá-lo com suas
colocações. Dei luz a esse cuidado como valor e apontei para onde
funcionavam bem na relação. “Celebrar o bom funcionamento” como
nos diz Zinker (2001) é importante para conferir acolhimento e suporte
para que o sistema íntimo possa seguir adiante no processo.

Dizer às pessoas que vêm para a terapia familiar aquilo que elas fazem bem
pode parecer uma negação ou uma deflexão de seus problemas. Porém,
descobrimos que reconhecer o bom funcionamento dá suporte à tarefa de
encarar os aspectos negativos ou disfuncionais do processo da família. Na
verdade, isso mobiliza a energia para lidar com os problemas ao acrescentar
uma aura de esperança de que as coisas podem e irão melhorar (Zinker,
2001, p. 226).

Nem sempre foi fácil ouvir o pai e a mãe de João presos às suas
experiências de dor e medo e muito desconectados da experiência de
opressão vivida por João. Foi desafiador cuidar também deles, pois eu
Sâmia Silva Gomes • 521

era testemunha do sofrimento de João com seu silêncio, solidão e


sensação de inadequação frente aos julgamentos impostos. Mas
trabalhamos com a concepção de campo, como já mencionado
anteriormente, de modo que todas as partes do sistema são igualmente
pertinentes e a partir de um princípio norteador que nos diz que “o
terapeuta deve reconhecer e celebrar o <<suficientemente bom>>, e não
exigir perfeição” (Zinker, 2001, p. 226). Sendo necessário aceitar o viver
adoecido e confuso do sistema íntimo que temos a nossa frente por mais
difícil que seja, frente às nossas próprias fronteiras de valores. Essas
famílias precisam de um espaço para expor suas crenças e confrontá-
las.
A família de João é um exemplo de trabalho no qual dar luz ao
“suficientemente bom” foi fundamental para conferir fluidez. Eles
chegaram ao consultório olhando para fora do sistema (os julgamentos
externos que sofreriam na família ampliada, igreja e campo social mais
amplo) ou para as experiências singulares de cada um (as frustrações
das suas expectativas como pai e mãe) e muito pouco para a relação
deles mãe-João, pai-João, família-João. Quando pude perceber o menor
sinal de preocupação com esses relacionamentos implicando os
sentimentos e a experiência de João, dei luz e ajudei-os a tornar essa
figura o mais nítida possível. Precisamos ajudar a família a reconhecer
o que tem mais valência para eles. Como no processo de hierarquia de
necessidades organísmicas, o sistema familiar precisa reconhecer qual
a necessidade dominante a cada momento, só assim estará mais fluido
para caminhar em direção a um funcionamento que comtemple tal
necessidade. O que fala mais alto? O que querem garantir e não pôr em
risco? Qual valor será predominante?
522 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Foi ficando mais nítido para os pais de João o quanto coexistiam


medos e receios, dúvidas e incertezas, frustrações e culpas com o anseio
imenso de que João ficasse bem. Importante ressaltar que o
“suficientemente bom” nem sempre é presente ou evidente. Há famílias,
sim, que nos desafiam mais para encontrarmos movimentos indicativos
de potencial criativo, integração e vivacidade.
Hierarquizar valores também não é tarefa fácil para a família nem
para nós terapeutas facilitarmos. Não podemos impor nossos valores e
devemos ter em mente que as famílias são transmissoras da cultura.
Fazem-no através da educação dos filhos e, portanto, os pais sentem-se
responsáveis pelo comportamento e escolhas dos filhos. Os pais de João
traziam falas como: “ - Não seria nosso dever orientá-lo de acordo com
o que acreditamos?”; “ - Nosso papel é protegê-lo e fazê-lo fazer o
certo”; “ - Sonhei que um dia ele nos daria um neto”; “-Não conseguirei
lidar com determinados comportamentos”; “Achamos melhor que ele
amadureça mais a ideia e não queremos estimular aceitando isso
agora.”; “-Ele disse para a mãe que não se vê homem como esperamos
que ele seja, ele então é trans?”
Essas falas demostram como os familiares podem chegar confusos
e distorcendo muito as vivências LGBTQIA+. Muitos pais, como os pais
de João, fantasiam poder “evitar algo” ou “estimular algo” ao encarar de
frente a comunicação com seus filhos sobre suas identidades sexuais ou
de gênero, havendo muita desinformação e evitação como forma de
negação. Assim, uma psicoeducação pode ser necessária para ajudá-los
a fazer algumas distinções, rever crenças distorcidas e conhecer mais
sobre a vivência LGBTQIA+. Por exemplo, tende a ocorrer muita
confusão entre o que venha a ser identidade sexual, identidade de
gênero e comportamento sexual. Estas informações são fundamentais
Sâmia Silva Gomes • 523

neste momento de comunicação familiar e facilitam muito a integração


do novo que se apresenta.
Precisamos ter em mente que a desinformação ainda é imensa em
nossa sociedade marcada pela cis-heteronorma. Importante explicar
aos familiares que a identidade sexual ou a orientação sexual se
constitui a partir da forma como o indivíduo vive sua sexualidade com
parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos ou sem
parceiros/as. As identidades de gênero, por sua vez, se constroem social
e historicamente, a partir do modo como o indivíduo se identifica com
o seu gênero. Representa como a pessoa se reconhece: homem, mulher,
ambos ou nenhum dos gêneros, sendo determinada pela maneira como
a pessoa se sente e se percebe, assim como a forma que esta deseja ser
reconhecida pelas outras pessoas.
Já o comportamento sexual de uma pessoa é o conjunto das
atitudes e dos posicionamentos do indivíduo em relação à vida sexual e
não há uma correspondência prévia ou absoluta entre ele e as
identidades sexuais ou de gênero. Muitos preconceitos alimentam
crenças de comportamento sexual promíscuo vinculado a algumas
identidades, e isso vem arraigado na percepção distorcida de alguns
familiares. Importante esclarecer ainda que essas identidades (sexuais
e de gênero) podem estar relacionadas, mas não são a mesma coisa:
pessoas masculinas ou femininas podem ser heterossexuais,
homossexuais ou bissexuais, por exemplo.
Outra reflexão importante nesta fase de comunicação das
identidades às famílias diz respeito às concepções de femininos e
masculinos na pluralidade destas expressões, como construções sociais
datadas e mutáveis (espacialmente e temporalmente) e da
desnaturalização do sexo biológico como fator de distinção entre os
524 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

seres humanos e determinação de seus comportamentos sociais e


sexuais. Além disso, é fundamental estimular os pais de garotos e
garotas trans que estudem sobre as perspectivas sociais da
transexualidade compreendendo sobre a despatologização das
identidades trans e da importância da percepção autodeterminada e
autônoma. Grupos de apoio e partilhas formados por pais podem ser
indicados e ter a participação incentivada.
Quando fornecemos informações aos pais, como essas aqui
apresentadas, isso pode parecer inconcebível ao manejo
fenomenológico que nos leva a não fazer conduções. Contudo as
colocamos como referenciais que visam ampliar seus campos
perceptivos e não como prescrições.

A orientação aos pais para os Gestalt-terapeutas não se desvincula da


ampliação de consciência que pode e deve ser promovida aos pais ou
responsáveis. Acreditamos que ela deva perpassar o que eles pensam, o que
sentem e como agem. Abraçar os conteúdos educacionais,
desenvolvimentais e psicoemocionais, mas sobremaneira a forma como são
vivenciados por eles. Realizamos um trabalho com os pais de forma a
integrar os conteúdos (o quê) com a forma (o como) (Gomes, 2021, p. 143).

Voltando à família de João, após alguns encontros somente com os


pais, estimulei que realizássemos uma sessão conjunta tendo a presença
deles e de João. Sessões conjuntas são importantes para que possam ser
trabalhadas as interações (o como) e não façamos uma redução do
trabalho à orientação (o que) com informações. O terapeuta não deve
ficar neste lugar de quem sabe e informa como deve ser, pois não
estamos com as famílias para dar lições a elas. Promover encontro,
experienciar a interação no setting e facilitar a awareness das relações
Sâmia Silva Gomes • 525

familiares aumentando o potencial criativo delas é nosso maior


propósito.
Com João, os pais foram aos poucos discernindo melhor seus
sentimentos, comunicando seus medos, receios e necessidades. Logo de
início, eles pediam ao João um tempo guardando entre eles essa
revelação e, como João experimentava um grande alívio de ter falado
para seus pais, estava bem com isso. Logo em seguida, ele foi sentindo a
necessidade de levar sua espontaneidade para primos, tios e avós e esse
foi um processo que confrontou novamente a fronteira de valores de
seus pais. Eles precisaram de ajuda para rever, afrouxar e desenvolver
essa fronteira. O que só era possível quando contactavam com a
experiência diferente vivida pelo João, que já não podia mais ser ele
mesmo dentro daquela realidade sem se diferenciar dela.
Juntos, fomos favorecendo o cuidado com outras situações que
foram emergindo e de tempos em tempos os pais compareciam à
psicoterapia de João a convite dele mesmo. À medida que meu cliente
comunicava com clareza aos seus pais suas necessidades, sentia-se mais
livre para fazer suas transgressões e se desenvolvia com mais fluidez.
Quando entrou em um relacionamento mais sério com o namorado, João
quis apresentá-lo aos pais e desejava que o namorado frequentasse seu
lar. Esse foi um novo momento para a família, mas eles se resolveram
bem, estando o sistema mais autônomo e potente para cuidar entre si
sem precisar ir ao consultório.
João foi um caso que exemplifica a presença da família no processo
psicoterápico individual. Compartilho agora um caso vivido em terapia
familiar, em que atendi inicialmente apenas os pais de Camila (nome
fictício), de 14 anos, quando lhes contou que gostava de meninas e não
sabia discernir se se sentia ou não “como uma menina deveria se sentir”,
526 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

dizendo que: “Já achei que era trans, mas agora acho mesmo que sou é
lésbica”. Os pais esperavam que eu lhes dissesse que tudo isso não se
passava de uma “confusão na cabecinha dela”, “influência da namorada”
e que rapidamente tudo passaria. Busquei conhecê-los de forma mais
ampla e a relação deles com Camila. Acolhi suas dores e seus
sentimentos tão diversos, deixando que expressassem suas crenças,
seus valores, suas fantasias e medos. Argumentei, quando apropriada de
seus modos de lidar com a situação vivida, que não havia como sabermos
se Camila teria interesses sempre por meninas, se essa relação se
estenderia e se depois viriam outras meninas ou meninos para se
relacionar com ela, pois Camila tinha uma vida pela frente para
vivenciar encontros e relações que também contariam mais sobre ela e
sua sexualidade a ela mesma. Entretanto, nesse momento, Camila
estava vivenciando algo importante para ela, querendo compartilhar
com eles, e havia feito um pedido explícito de apoio. Precisávamos olhar
como isso era visto por eles e considerar o que Camila estava vivendo.
Por algumas sessões, eram repetitivos, em suas falas, com
discursos relativos à rigidez religiosa dos avós; as memórias da infância
da filha; as frustrações que fantasiavam viver dali para frente; as
inúmeras dúvidas. Trabalhamos com os valores e crenças presentes em
suas análises, busquei facilitar hierarquizá-los, fiz orientações
psicoeducativas, e trabalhamos as emoções que emergiam. Mas o
processo pedia algo novo, e várias vezes sugeri que incluíssem Camila.
Eles somente se convenceram quando ela conversou com sua irmã mais
nova e com uma prima bem próxima, o que abalou muito os pais, mas
ajudou-os a compreender que as fronteiras da Camila eram desenhadas
por ela e não por eles.
Sâmia Silva Gomes • 527

Quando trouxeram Camila, ela fez um discurso direcionado a mim


sobre sua história de vida, pontuando sensações, descobertas e
sentimentos. Parecia me dizer com os olhos, “contarei a você o que eles
parecem não querer saber”. Dando atenção à FORMA mais que aos
CONTEÚDOS, percebi que a presença de Camila calou muito sua mãe e
deu ao seu pai um tom mais áspero e altivo, optei por perguntar a Camila
se ela podia descrever aos pais como estava percebendo-os na sessão.
Ela descreveu a mãe como assustada e chorou muito abraçada a sua mãe.
Ao pai disse percebê-lo com muita raiva e decepção. Camila trouxe um
novo movimento à interação dos pais no consultório e pude
compartilhar isso com eles. Sua presença e suas falas fizeram emergir
novas figuras e facilitaram a situação para que saíssem do movimento
de girar em círculos em torno dos impasses e dos medos.
Ao longo das sessões, a partilha de sentimentos foi promovida,
Camila ouviu os medos de seus pais e seus impasses. Os pais puderam se
deparar com uma Camila que pareciam não conhecer; segura dos
valores que falariam mais alto para ela no convívio social e familiar.
Mais conectados uns com os outros, emergiu espaço para aceitar as
diferenças, como podemos observar na fala de Camila aos pais: “vocês
se preocupam com isso, e eu agora já entendi, mas não consigo me
preocupar junto com vocês, ao ponto de não querer viver quem eu sou”.
Tivemos a presença da irmã mais nova de Camila em algumas sessões,
o que fez importante diferença ao processo, não hiperfocando em
Camila, mas abordando outros temas pertinentes à interação familiar.
Espaços foram se abrindo para acordos relativos ao que já era possível
vivenciarem juntos a Camila e ao que estaria em processo pouco a pouco.
Famílias com funcionamento caracterizado pela rigidez que os
introjetos sociais geram costumam ter pouco suporte. O terapeuta se
528 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

faz suporte para a família como nos diz Terezinha Mello da Silveira
(2022, p. 39): “a mudança acontece quando o suporte no campo muda,
quando é mais potente do que o que a pessoa vive habitualmente. A
relação terapêutica deve oferecer esse suporte”. As famílias
testemunham nossa forma de nos relacionar com as diferentes
percepções e experiências. Assistem nossa ausência de julgamento e
como incluímos e integramos diferenças, conferindo legitimidade a
elas. E neste sentido todo o trabalho, desde o seu início, é um processo
de experimentação, como chama Alvim (2014; 2018). As intervenções
terapêuticas vão sendo orientadas pelo que se dá na situação de
interação família-terapeuta, não nasce em nós nem neles, dá-se no
entre, na experiência daquele encontro de presenças.

A Gestalt-terapia é política da experiência, do corpo e da criação, uma


clínica orientada por uma ética da alteridade e da transformação, em que se
compreende que é apenas quando estamos abrigados no comum como ethos
ou morada, que podemos aceitar a diferença do outro e promover a
diferenciação no movimento temporal da existência (Alvim, 2018, p. 351).

E assim, fica evidente o quão político são os trabalhos clínicos por


visarem a “trans-forma-ação” a partir da ideia de se conferir uma maior
qualidade aos contatos nas fronteiras com as quais nos encontramos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio, compartilhei algumas reflexões vivas do que tem me


demandado o trabalho junto às famílias de meus clientes LGBTQIA+,
elas seguem em construção contínua. Existe uma preocupação presente
ao deixar aqui num certo enquadre teórico algo que, além de muito
Sâmia Silva Gomes • 529

complexo, é tão visceral e experiencial. Mas escrever em Gestalt-terapia


é sempre assim.
Acredito ser importante ressaltar o quão os fundamentos teórico-
metodológicos da Gestalt-terapia são suporte para os trabalhos com
famílias. Chão seguro que me confere aterramento para a ousadia que
se faz necessária diante de infinitas cores da diversidade de encontros
que acontecem em meu consultório.
Fala alto da gratidão aos meus clientes LGBTQIA+ e às suas famílias
que, por estarem abertos a cuidar de suas relações, me oportunizaram
aprender muito com eles. Que tantas outras famílias encontrassem
espaço para recriar seus relacionamentos. Muitas não têm esse
privilégio e outras tantas não se dão essa oportunidade. Espero ter
alcançado o objetivo de despertar em colegas psicoterapeutas a
determinação ética em contatar nossos preconceitos e ignorâncias e,
assim, nos reconfigurarmos como profissionais capazes de cuidar desse
momento tão delicado que é para o jovem falar sobre sua identidade
LGBTQIA+ aos seus familiares.

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Zinker, J. C. (2001). A busca da elegância em psicoterapia: uma abordagem gestáltica com


casais, famílias e sistemas íntimos. Summus.
24
A ABORDAGEM GESTÁLTICA COM GAYS EM
PROCESSO DE MORTE PELA AIDS: EXPERIÊNCIAS EM
CLÍNICA AMPLIADA
The gestalt approach with gay men in the process of dying from AIDS:
experiences in an expanded clinic
El abordaje gestalt con hombres gays en proceso de morir por SIDA:
experiencias en una clínica ampliada

Gustavo Alves Pereira de Assis

Na hora de minha morte, eu também


Não serei traduzível por palavra.
[Lispector (2013, p. 63)]

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este relato de experiência, de cunho poético, dedica-se a registrar


vivências clínicas com dois pacientes 1, nomeados de Lua e Estrela. Os
nomes são fictícios, metafóricos e aleatórios. Ao leitor, permita-se
entender esta descrição como uma vinheta clínica 2, fundamentada na
abordagem gestáltica, com enfoque na filosofia do diálogo de Martin
Buber. Usarei a primeira e a terceira pessoa, dando-me a liberdade para

1
O termo paciente não remete aqui a um sujeito passivo no processo psicoterapêutico. Uso-o
lembrando-me de uma gestalt-terapeuta que, em sua velhice, em uma atitude de profunda humildade,
contou-me que nossos consulentes precisam ter muita paciência com nossas resistências, por isso são
pacientes. O jogo de palavras impactou-me fazendo sentido para mim e revelando uma inerente
dimensão dialógica nessa terminologia.
2
Esse relato de experiência no modelo de vinheta clínica segue aspectos éticos tais como a
confidencialidade, a proteção da imagem e a não estigmatização dos indivíduos e de suas comunidades.
532 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fluir entre estas duas formas de escrita, porém, de antemão, confesso


minha preferência pela primeira pessoa. Justifico-me: sinto-me mais
próximo da realidade que foi vivenciada e experienciada no encontro
clínico com essas pessoas.
O objetivo desse estudo é descrever as experiências clínicas de um
Gestalt-terapeuta, que se autoidentifica como gay, com homens que
declaravam-se como gays e encontravam-se em processo de morte pela
Síndrome da Imunodeficiência Humana (Aids). Acredito ser importante
salientar o fato de o terapeuta identificar-se como gay, pois, em Gestalt-
terapia, o clínico coloca-se como uma pessoa na relação terapêutica, e
isso implica também a dimensão de sua sexualidade, parte que delata o
seu todo. Entretanto, isso não exclui a necessidade de suspensão
fenomenológica durante o processo interventivo na situação clínica.
Por isso, parto do pressuposto de que se colocar como pessoa para a
pessoa do paciente necessariamente abarca colocar-se como um ser
sexual, aqui, como um Gestalt-terapeuta gay.
Sendo assim, neste relato busca-se falar sobre vidas e não sobre
mortes. Entendo que a morte encontra-se no campo da vida, por isso,
ao falar dela, não a entendo como o contrário da vida. Ela faz parte do
viver e é sobre esse viver que irei deslindar fenomenologicamente, em
busca de refletir sobre o saber-fazer em Gestalt-terapia, com enfoque
na perspectiva dialógica.
Destarte, esta análise parte da problematização do atendimento
em Gestalt-terapia com homens gays em processo de morte pela Aids,
permeando o fazer clínico nessa abordagem e suas possibilidades de
atuação no contexto da clínica ampliada, mais especificadamente, no
campo hospitalar. A Gestalt-terapia como uma abordagem em
movimento deve acompanhar as discussões contemporâneas sobre
Gustavo Alves Pereira de Assis • 533

sexualidade, bem como os fenômenos humanos em outros campos de


atuação que não o da clínica tradicional, como nos processos de morte
pela Aids na atenção hospitalar. Deve, portanto, em uma síntese
dialética e criativa, integrar e reconfigurar a gestalt teórica. Por isso, a
temática aqui proposta evidencia-se relevante no campo científico da
abordagem gestáltica e no campo social.

FALANDO UM POUCO SOBRE O HIV E A AIDS: NOÇÕES BÁSICAS EM


INFECTOLOGIA

O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) é um vírus de ácido


ribonucléico (RNA), caracterizado pela presença da enzima
transcriptase reversa. Essa enzima permite a transcrição do RNA viral
em ácido desoxirribonucléico (DNA), que se integra ao genoma da célula
do hospedeiro. As primeiras células infectadas pelo HIV são aquelas que
apresentam moléculas CD4 em sua superfície, que são linfócitos
constituintes do sistema imunológico (Bennett, et al., 2019; Rachid &
Schechte, 2017; Salomão, 2017).
A transmissão do HIV ocorre por meio de relações sexuais de risco
(oral, vaginal e/ou anal), com maior incidência em casos de sexo anal e
na presença de úlceras genitais, por meio da inoculação de sangue ou da
transmissão vertical, que é a infecção transmitida da mulher/genitora
para o feto ou bebê, seja durante a gravidez, o parto ou o aleitamento
materno (Bennett, et al., 2019; Rachid & Schechte, 2017; Salomão, 2017).
As manifestações clínicas do HIV dividem-se em três fases: aguda,
assintomática e sintomática. A fase aguda se caracteriza por sinais e
sintomas entre cinco dias e três meses após a infecção, principalmente
com características semelhantes ao quadro gripal. Na fase
assintomática, há ausência de sintomas por anos e, na fase sintomática,
534 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

o paciente apresenta sintomas de imunodeficiência. Esta última fase é


chamada de Aids, em que, após anos de infecção não tratada, há um
declínio do sistema imunológico, e, consequentemente, a presença de
múltiplas doenças oportunistas (Bennett, et al., 2019; Rachid &
Schechte, 2017; Salomão, 2017).
Com o avanço da ciência biomédica nas últimas décadas, o HIV
passou a ser uma infecção controlável, com uso de terapia
antirretroviral (TARV), bem como o acompanhamento sorológico por
meio de exames de carga viral e de contagem de linfócitos CD4/CD8
(Bennett, et al., 2019; Rachid & Schechte, 2017; Salomão, 2017). Desse
modo, a evolução para o quadro de Aids ocorre em situações que a
infecção por HIV não é tratada.
O HIV/Aids ultrapassa as implicações biomédicas, delineando-se
como fenômeno complexo que necessita de abordagem
multiprofissional para reflexão científica e para as práticas de cuidado
em saúde. Os primeiros casos de Aids foram registrados nos Estados
Unidos em 1981, e, após dois anos, em 1983, o HIV foi identificado. Desde
o início de seu surgimento, esteve atrelado ao público gay. A infecção
por HIV e o quadro de Aids possuem uma forte representação social com
o público homossexual, decorrente de questões morais e religiosas
atreladas à sexualidade e à ciência, promovendo estigmatização,
violência e sofrimentos psíquicos (Bennett, et al., 2019; Lopes, 2021;
Rachid & Schechte, 2017).
Escolheu-se a delimitação do fenômeno da morte pela Aids em
homens gays devido o imaginário social presente na sociedade
contemporânea e as repercussões psicológicas negativas nesse público.
Sendo assim, acredito que a Gestalt-terapia como clínica política é um
potente arcabouço teórico nas reflexões desse fenômeno social e um
Gustavo Alves Pereira de Assis • 535

dispositivo de acolhimento aos corpos tão controlados e violentados por


uma cultura de ódio.

RESPIRAR O DIAGNÓSTICO DE HIV/AIDS E O PROGNÓSTICO DE MORTE

Começaremos nossa reflexão com Lua, que se declarava como


homem gay e em um relacionamento estável. Na época de nosso
encontro, Lua era recém-diagnosticado com o HIV e encontrava-se em
processo de Aids. Tinha olhos verdes claros, tão bonitos, mas que se
apresentavam para mim como assustados. Em seus olhos, eu sentia
surpresa, medo e dor. Apresentei-me e dei-lhe a escolha de ser atendido
no leito ou no jardim do hospital, pois possivelmente falaríamos que
coisas delicadas, eu hipotetizara. Mesmo com cateter nasal, em
oxigenoterapia, ele quis ir para o jardim. Lentificado em sua
psicomotricidade, eu ia caminhando ao seu lado, no seu ritmo. Ao
chegar, dei-lhe a opção de escolher o lugar para sentar. Essa postura
fundamenta-se na fenomenologia, que pressupõe uma atitude de seguir
o fenômeno tal como se é, deixando-o desvelar. Aqui não cabem atitudes
que interrompam o fluxo natural do mundo fenomênico do paciente e a
sua formação de gestalten. O momento do atendimento é dele e, como
ser de liberdade, ele pode escolher, uma premissa fundamentada
também no existencialismo (Ribeiro, 2006; Ribeiro, 2012; Yontef, 1998).
Eu apenas o sigo como uma lanterna iluminando seus caminhos, mas
nunca escolhendo quais passos. Lua escolheu sentar em um banco
debaixo de uma árvore, experienciando o frescor da tarde.
Falamos sobre sua surpresa ao receber o diagnóstico de HIV em
fase de Aids e sobre sua compreensão intelectual limitada acerca da
temática. Ele me fazia inúmeras perguntas a respeito do seu
536 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

adoecimento, e eu escutava uma pessoa desesperada por informações


que lhe propiciassem alívio para seu sofrimento. Nessas situações, a
psicoeducação é uma estratégia de intervenção adequada para a
produção de controle cognitivo e emocional, diminuindo os níveis de
ansiedade e angústia (Straub, 2013). A psicoeducação revelou-se, para
Lua, como um recurso terapêutico em seu campo de intensa dor
psíquica.
Fiquei pensando no seu desconforto respiratório e, em um
movimento de inclusão, senti que a recentividade sorológica para o HIV
e o diagnóstico de Aids tiraram o ar, o ar dos sonhos e de uma vida
experienciada até aqui. Um fundo de vividos, ou, como nos aponta
Merleau-Ponty (1945/2018), um corpo habitual. Suas perguntas
falavam-me desse ar difícil de respirar. Eu estava incluso e presente em
seu aqui-e-agora sufocante.
Presença e inclusão, na filosofia dialógica de Martin Buber, são
atitudes em que o terapeuta volta-se para o paciente com sua totalidade,
com disponibilidade e com entrega, buscando sentir o que paciente está
sentindo, permitindo ser afetado. Não é empatia, que é a capacidade de
compreender o outro em suas vivências. Inclusão vai além, é um
movimento do meu self para o self do outro, é um deslocamento de si na
tentativa de ver com os olhos do paciente, é, portanto, um momento de
pura graça. Sendo assim, empatia e inclusão não são excludentes, são
interdependentes, pois a partir da empatia há possibilidade de ocorrer
a inclusão (Buber, 1923/2006; Buber, 1930/2014; Hycner, 1995; Hycner &
Jacobs, 1997; Yontef, 1998). Nessa experiência de presença e inclusão, eu
vivenciava dentro de mim a eternidade. É que, quando se entrega
inteiramente ao encontro, vive-se o tempo Kairós, o tempo da graça e
não o tempo Chronos (Costa, 2014).
Gustavo Alves Pereira de Assis • 537

Outra figura que surgia em seus atendimentos era a relação com o


seu namorado. Lua temia a revelação de seu diagnóstico, com medo de
rejeição e de separação, bem como possuía a fantasia catastrófica de ter
infectado seu parceiro. Algumas sessões foram necessárias para dar
suporte a ação de revelação. Em atendimento com o parceiro de Lua,
após a ciência do quadro clínico do paciente, algumas informações sobre
HIV/Aids foram repassadas para fins de desmistificar introjeções
distorcidas, bem como o acolhimento de suas questões emocionais.
Realizei, também, o encaminhamento para o acompanhamento
sorológico em centro especializado de infecções sexuais da Rede de
Atenção à Saúde (RAS). Não houve rompimento da relação amorosa dos
dois. Houve a permanência de um caminhar juntos.
Lua falava-me também sobre a saudade de seu companheiro, que
não podia acompanhá-lo na internação, mas estava presente nas visitas.
Seu companheiro era uma ausência-presente, que, mesmo distante
fisicamente por questões laborais, encontrava-se presente nas
memórias afetivas. Quando presente nas visitas, propiciava um contato
suportivo, um heterossuporte (Andrade, 2014) e uma profunda
amorosidade para Lua, que se nutria desse afeto em tempos em que seu
autossuporte estava tão fragilizado.
Escrevendo sobre Lua, tenho uma tomada de consciência e dou-me
conta de que criávamos juntos um espaço para respirar, um campo
fenomênico e intersubjetivo. O banco abaixo da árvore era nosso canto,
nosso lugar para respirar. Sua delicadeza falava-me de sua fragilidade
interna, que eu cuidava, amparava e olhava. No final de um dos
atendimentos, ele verbalizou: “nossa, até minha respiração melhorou!”.
Emocionei-me. Lua, dias depois, morreu.
538 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

HIV NO CAMPO DO CASAL: SEPARAÇÃO E RESSENTIMENTOS

Estrela declarava-se como homem gay e era divorciado. Contou-


me que se infectou com HIV através de seu ex-marido com quem viveu
vinte e dois anos. Alegou que o ex-companheiro confirmou relação
extraconjugal, a possível fonte de infecção, segundo ele, demanda que
se configurou como figura em muitos atendimentos. Falou sobre seu
ressentimento, afinal, “nem comida no prato ele colocava, era eu! Nunca
encostou em um fogão”. Aqui se percebe a introjeção de um modelo de
relacionamento heterossexual, baseado no patriarcado e na subjugação
da figura feminina e internalizado nesta relação homoafetiva. Mesmo
assim, sua fala tocou-me e comuniquei a ele minhas sensações e
sentimentos, que emergiram em um campo relacional de inclusão,
autenticidade e presença (Buber, 1923/2006; Hycner, 1995; Hycner &
Jacobs, 1997; Joyce & Sills, 2016; Yontef, 1998). Eu o via, e ele sabia.
Estávamos entregues ao entre do encontro terapêutico.
Estrela dedicou-se afetivamente anos de sua vida ao seu parceiro,
o que dava sentido a sua existência, segundo ele. Suas sessões
tematizavam sobre a raiva, sobre o ressentimento pelo ex-marido e
sobre a sua solidão em seu processo de morte. Seu aqui-e-agora não
continha fisicamente o ex-companheiro, mas, ao mesmo tempo, ele
estava bastante presente. Falava-me que se sentia injustiçado por estar
adoecido e internado, comparando-se com o ex-marido, que, segundo
ele, estava experienciando a vida sem adoecimento.
Falávamos sobre sua impotência diante de um campo restrito
devido às limitações impostas pelo processo da doença, da saudade de
alguns membros da família, da ausência afetiva de outros, da falta dos
amigos e da inexistência de uma parceria amorosa. Suas sessões eram
Gustavo Alves Pereira de Assis • 539

permeadas pela tristeza e pela irritabilidade, diante de um mundo


percebido como tóxico e com poucas trocas nutritivas. Suas fronteiras
de contato encontravam-se enrijecidas e retraídas. O mundo era difícil
demais para ele. Doía. Estrela começou a apresentar insônia, anedonia,
resistência aos procedimentos hospitalares, entre outros fenômenos
como forma de ajustamento criativo. Mas, como nos adverte Perls
(1973/2020, p. 35), “nem todo contato é saudável, nem toda fuga é
doentia”. Eu estava, portanto, diante de um campo depressivo que
precisava ser respeitado.
Estrela sentia muita dor, não apenas física, mas dor total, aquela
que envolve todo o ser. Dói tudo. Dor que precisa ser acolhida, ouvida.
Era isso que eu buscava no contato com Estrela, um Tu, afinal

a experiência Eu-Tu é estar tão plenamente presente quanto possível com


o outro, com pouca finalidade ou objetivos direcionados para si mesmo. É
uma experiência de apreciar a alteridade, a singularidade, a totalidade do
outro, enquanto isso também acontece, simultaneamente, com a outra
pessoa. É uma experiência mútua; é também uma experiência de valorizar
profundamente, estar em relação com a pessoa – é uma experiência de
encontro (Hycner & Jacobs, 1997, p. 33).

Nessa tentativa de encontrar Estrela na sua dor, com muita


delicadeza fui auscultando os sentidos de sua história. Auscutar, no
processo psicoterapêutico em Gestalt-terapia, envolve uma escuta
profunda dos significados dos fenômenos emergentes, da dinâmica
figura-fundo. E foi assim que ele foi me contando e se contatando em
suas marcas como gay e como pessoa existindo com HIV/Aids. Apesar
da literatura especializada em infectologia utilizar a terminologia
pessoa vivendo com HIV/Aids, uso o termo pessoa existindo com
HIV/Aids, pois considero mais coerente e adequada com a concepção
540 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

existencial da abordagem gestáltica. Existir como potência de vir-a-ser,


de se construir como ser-no-mundo-com-HIV/Aids.
Outra figura emergiu na situação clínica com Estrela. Doía-lhe a
escolha de não revelar para a família sua condição de pessoa que existe
com HIV na fase da Aids, pois isso implicaria um olhar crítico sobre sua
orientação sexual e revelaria a condição sorológica do ex-marido, que,
nesse período, mantinha vínculo com sua família. Estrela optou por se
silenciar, dando-se conta de que a preservação da imagem do outro era,
para ele, uma forma cuidado. Ele escolheu dar, segundo ele, o que não
recebeu durante tantos anos, e isso deu brilho a uma gestalt até então
opaca.
Em outros encontros posteriores, falou-me do seu medo da morte.
Ele sentia que ia morrer, apesar de ninguém ter falado sobre essa
possibilidade prognóstica, até então não identificada, revelando uma
profunda sabedoria organísmica. Ribeiro (2006, p. 56) afirma que
autorregular-se “significa prestar atenção aos infinitos pedidos de
socorro que o corpo emite e pensar que o alimento pode ser encontrado,
sempre, dentro da própria pessoa, sem perder seu aspecto relacional no
mundo”. Consoante com isso, Arantes (2019) aponta que é clara para
quem está morrendo a presença da morte, mesmo que se escondam os
exames ou as informações clínicas, por exemplo. Segundo essa autora,
há sempre um tumor ou outro sintoma no corpo do doente que denuncia
para ele a aproximação da morte. Era assim que Estrela se via. Olhava
para seu corpo dolorido e para seus sintomas e sentia a morte como
próxima. Vivia sua solidão, sem o companheiro que, por tantos anos, foi
significativo. Estrela foi sábio, ele sabia que iria partir daqui e foi assim.
Gustavo Alves Pereira de Assis • 541

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este relato de experiência objetivou, por meio de vinhetas clínicas,


descrever, em linguagem poética, vivências de atendimento gestáltico
com indivíduos que se autodeclaravam como gays em processo de morte
pela Aids. Observou-se que, no contexto de clínica ampliada, na área
hospitalar, com pacientes com quadro clínico agravado, os dispositivos
dialógicos fundamentados na filosofia buberiana tornaram-se mais
figurais em detrimento das técnicas de experimentação.
A postura dialógica do terapeuta tornou-se o foco do atendimento
com o objetivo de ampliar a awareness do processo de morte, em uma
busca de contato e de suporte, criando a possibilidade de ocorrência do
momento Eu-Tu. Inclusão, presença, confirmação e diálogo sem
reservas são atitudes clínicas importantes no atendimento na
abordagem gestáltica com gays em processo de morte pela Aids. Sendo
assim, essa abordagem com esse público caracterizou-se como uma
clínica do encontro, conforme postula Motta, et al. (2020).
O fato de um psicoterapeuta gay atender indivíduos gays
configurou-se como fator terapêutico na situação clínica. Houve a
presença de uma intersubjetividade, de um fundo de vivências comuns
na dupla terapêutica, no que compete a historicidade da constituição do
ser-gay. Acredito que esse fundo de vividos permitiu a confirmação
mútua do existir como homem gay, proporcionando um encontro
genuíno em que a pessoa é compreendida para além da Aids, ou seja, que
não reduza a totalidade do paciente à uma parte, que, nesses casos, é a
doença. A relação terapêutica tornou-se potente na medida em que as
totalidades do terapeuta e do paciente encontram-se, totalidades que
incluem partes de suas sexualidades, no plural.
542 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A abordagem gestáltica mostrou-se um importante instrumento


ético e político de cuidado com uma população historicamente
estigmatizada pelo HIV/Aids e violentada cotidianamente por uma
representação social perversa. Desse modo, a Gestalt-terapia é
convocada nos espaços da clínica tradicional e da clínica ampliada para
dar voz a essas vozes silenciadas, produzindo dignidade existencial na
relação terapêutica. É uma clínica do encontro, ética e política.

REFERÊNCIAS

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Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (pp. 147-162). Summus.

Arantes, A. C. Q. (2019). A morte é um dia que vale a pena viver e um excelente motivo para
se buscar um novo olhar para a vida. Sextante.

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Koogan.

Buber, M. (2006). Eu e Tu. Centauro. (Trabalho original publicado em 1923).

Buber, M. (2014). Do diálogo e do dialógico. Perspectiva. (Trabalho original publicado em


1930).

Costa, V. E. S. M. (2014). Temporalidade: aqui e agora. Em: L. M., Frazão & K. O.,
Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (pp. 131-146). Summus.

Hycner, R. (1995). De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. Summus.

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Joyce, P., & Sills, C. (2016). Técnicas em gestalt: aconselhamento e psicoterapia. Vozes.

Lispector, C. (2013). As palavras. Rocco.

Lopes, P. O. (2021). HIV e Aids, passado e presente: os gays como representação social da
doença. Brazilian Journal of Development, 7(5), 50122-50134.
Gustavo Alves Pereira de Assis • 543

Merleau-Ponty, M. (2018). Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes. (Trabalho


original publicado em 1945).

Motta, H. L., Assis, G. A. P., & Satelis, L. R. (2020). A Gestalt-terapia como clínica do
encontro: compreendendo a relação dialógica. Revista da Abordagem Gestáltica,
26(especial), 382-392.

Perls, F. (2020). A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. LTC. (Trabalho


original publicado em 1973).

Rachid, M., & Schechter, M. (2017). Manual de HIV/Aids. Thieme Revinter.

Ribeiro, J. P. (2006). Vade-mécum de Gestalt-terapia: conceitos básicos. Summus.

Ribeiro, J. P. (2012). Gestalt-terapia: refazendo um caminho. Summus.

Salomão, R. (2017). Infectologia: bases clínicas e tratamento. Guanabara Koogan.

Straub, R. O. (2013). Psicologia da Saúde: uma abordagem biopsicossocial. Artmed.

Yontef, G. (1998). Diálogo, processo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia. Summus.


25
A CLÍNICA GESTÁLTICA COMO CAMPO QUEER: A
ALTERIDADE COMO CAMINHO
The Gestalt Clinic as a queer field: alterity as a path
La Clínica Gestalt como campo queer: la alteridad como camino

Stephanie Boechat

“Não estava em nenhuma margem do rio . . . escolhi ser o próprio rio . . .


onde se fazer era possível”
(Letícia Nascimento, 2021, p.20)

INTRODUÇÃO

A população LGBTQIAP+ - lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer,


intersexo, assexuais, pansexuais, entre outros(as/es) – sofreu (e assim
segue), ao longo da história com a discriminação e a marginalização
sociais, impostas e sustentadas pelo sistema cis heteronormativo,
alicerçado por uma moral reguladora e biopolítica (Foucault, 1988) que
não abre espaços para que os(as/es) sujeitos(as/es) se conduzam de
forma genuína. Sob essa ótica, desde os primórdios do desenvolvimento
de um conhecimento psi a comunidade LGBTQIAP+ é alvo de olhares
diagnosticáveis e discursos patologizantes, que corroboram para um
ideal médico de saúde/doença e consequentemente cura 1.

1
Alicerçado pelo discurso patologizante, faz-se menção ao projeto "Cura Gay" ou Terapia da
Reorientação Sexual, Terapia de Conversão ou Terapia Reparativa, proposto em 2011 pelo deputado
federal do PSDB de Goiás, João Campos, o qual objetivava "transformar" a orientação sexual dos
indivíduos considerados desviantes. Disponível em: https://examedaoab.jusbrasil.com.br/noticias/
376191509/entenda-o-projeto-da-cura-gay.
Stephanie Boechat • 545

Em contrapartida, de acordo com a Resolução n° 01/1999 e n°


01/2018 (Conselho Federal de Psicologia, 2005) é estabelecida a proibição
perante a atuação de profissionais da psicologia em qualquer iniciativa
à patologização da orientação sexual e identidade de gênero. Contudo,
pode-se perceber a perpetuação de práticas e discursos violentos 2 no
exercício da profissão, como explicitado no livro produzido pelo
Conselho Federal de Psicologia “Tentativas de Aniquilamento de
Subjetividades LGBTs”, o qual expõe a notoriedade das falhas éticas
cometidas pelos(as/es) psicólogos(as/ues) clínicos(as/ques) promovendo
em oposição ao cuidado e acolhimento esperados, traumas e afetos
disfuncionais.
Diante disso, é imprescindível questionar a moral proibitória
vivenciada no sistema atual. Sob a perspectiva das identidades de
gênero e orientações sexuais, o que é normal e o que é transgressor?
Como exercer o papel de profissional psi de forma ética e inclusiva?
Como a Gestalt-terapia e suas proposições podem auxiliar um fazer
clínico diante do público LGBTQIAP+? Será a clínica gestáltica uma
clínica queer desde o princípio 3?
As questões postas acima são reflexões que este estudo não tentará
responder de forma a fechar possibilidades, mas elaborar, a fim de
promover uma psicologia autocrítica e dialógica 4. Isto posto, segundo
Perls (2002 como citado em Ribeiro, 2021) é apenas no encontro com a

2
A violência simbólica é salientada através dos discursos de profissionais da psicologia que envolvem
crenças individuais e preceitos religiosos em sua prática clínica.
3
Aqui é utilizado o termo Queer (estranho) a fim de re-contatar e manter o lugar político e social da luta
contra a normatização, apodera-se do insulto, visando o estranhamento como potência existencial e
espaço de elaboração das subjetividades (Louro, 2001).
4
Refere-se à relação dialógica, proposta da Gestalt-terapia para a construção de relação entre terapeuta
e cliente, a qual necessita de reciprocidade, engajamento, respeito e amorosidade, a fim de promover
uma clínica genuína do encontro.
546 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

alteridade que a individualidade é fundada, ou seja, é a partir do contato


que o ego se constitui. Dessa forma, pode-se apreender que não existe
um eu fora do contato, uma vez que para existir movimento-ação, é
necessário o encontro com o estranho 5.
Nesse viés, o contato tenta incluir o que é exterior, ocasionando
resistências e conflitos que visam a diferenciação entre o eu e o(a/e)
outro(a/e), ao mesmo tempo que busca identificar-se e produzir-se
nesse encontro. De acordo com Muller-Granzotto e Muller-Granzotto
(2012, como citado em Ribeiro, 2021), o contato não é um aniquilador de
individuação, mas é nesse entrelaçamento que o self se movimenta e faz
possível a diversificação das sociabilidades.
Em contrapartida, existe a possibilidade do(a/e) sujeito(a/e) se
fechar ao se deparar com algo que corre fora da fronteira que este
considera a norma, o que acarreta a busca pelo equilíbrio,
desenvolvendo um funcionamento neurótico e auto proliferante
(Muller-Granzotto & Muller-Granzotto, 2021, como citado em Ribeiro,
2021), o qual interrompe o potencial criativo advindo do contato e
provoca a formação de sofrimentos psíquicos-emocionais. De acordo
com Perls (1977), a neurose torna-se uma ferramenta de manobra com
a qual o(a/e) sujeito(a/e) se protege contra o mundo exterior que ameaça
sua existência, trazendo à luz a “Sociedade do Cansaço”, proposta por
Byung-Chul Han (2015), na qual a coerção por si só não é mais o bastante,
é necessária a formação de uma sociedade do desempenho, a qual no seu
desejo errante de produzir, acaba por construir distâncias silenciosas.
Nessa perspectiva, a fim de diferenciar ‘o eu’ desse(a/u) outro(a/e)
que parece imoral e adverso, se instaura o processo discriminatório e

5
As palavras ‘o estranho’, assim como ‘o eu’ não terão o gênero flexionado, uma vez que ‘o estranho’ é
elaborado neste estudo como um conceito, uma forma abstrata e não pertencente a um plano físico.
Stephanie Boechat • 547

marginalizante. A diversidade de violências (física, sexual, simbólica,


patrimonial, etc.) para com a população queer cria, de acordo com
Schillings (2011, p.46 como citado em Barros, 2020, p.75) “uma privação
do horizonte de sentido”, ou seja, as violências promovem uma
fragilização e invisibilização da existência. Dessa forma, as polaridades
violentador(a/e)/violentado(a/e), ativo(a/e)/passivo(a/e),
normalidade/anormalidade, heterossexual/homossexual, mantém o
distanciamento do contato e a binaridade de poder biopolítica diante da
comunidade LGBTQIAP+, a qual passa a se ajustar de forma disfuncional
perante o CIStema (Nascimento, 2021), instaurando o pertencimento
como uma impossibilidade.
Diante desse cenário, o funcionamento neurótico se materializa,
uma vez que diante do ‘corpo estranho’ participante do campo percebe-
se uma necessidade de expurgar o que não é confluenciável, para
manter os padrões conhecidos e uma determinada hierarquia dos afetos
em consonância com as polaridades valorizadas pelo sistema vigente
(hetero-norma). De acordo com Santana (2021) esse modus operandi
marca qual diversidade é aceitável e qual não é permitida, produzindo a
partir desse momento formas de discriminação autorizadas e
naturalizadas. A violência simbólica estigmatizante instituída no
discurso é uma maneira de regularizar o esmagamento da alteridade,
colocando em ação a violência do calar, ao passo que restringe
existências (Santana, 2021).
548 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

MÉTODO

O trabalho apresentado foi realizado a partir do levantamento e


análise bibliográfica 6, com objetivo de discutir o papel da Gestalt-terapia
na promoção de uma clínica crítica e inclusiva, visando o respeito e
acolhimento das existências LGBTQIAP+. Guiado pelos conceitos da
vertente gestáltica, o estudo buscou levantar questões acerca das
violências (simbólicas) clínicas sofridas por esse público, para além da
marginalização e estigmatização social, pretendendo pôr em pauta o que
se passa, em algumas situações, diante da busca de atendimento em saúde
mental. Além disso, foi impreterível discutir a paradoxalidade entre os
conceitos da Gestalt-terapia como relação dialógica, relação eu-tu,
polaridades, tipos de contato, fronteira de contato, ajustamento criativo
e a prática profissional discriminatória. Justifica-se a produção deste
trabalho, uma vez que o exercício da psicologia é político e precisa ser
visto não como prática regulatória do que se diz natural, mas
experienciado e vivido também nas transgressões e no devir.

DISCUSSÃO TEÓRICA

1.A MÁSCARA DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA:

De acordo com Calderone (2004) a aliança entre poder e dominação


sempre esteve presente nas relações sociais. Segundo Zanello (2018), o
sistema patriarcal determina instâncias de poder, disfarçadas de algo
natural. Sendo assim, o estabelecimento de “scripts” (p. 32), demarcam,

6
A análise bibliográfica contou com a utilização do “Manual para o uso da linguagem neutra em Língua
Portuguesa”, como auxiliar à escrita de gênero flexível, evidenciando o estranhamento diante de tal
prática e tornando possível através das palavras a inclusão de existências diversas.
Stephanie Boechat • 549

tanto na construção de subjetividades, quanto nas formas


performáticas do eu, “colonizações afetivas” (p. 32), as quais, funcionam
como ferramentas de manutenção do sistema binário, classificando
existências (bom/mau) e invalidando expressões que fogem da
atmosfera normativa.
Os conflitos engendrados a partir do momento em que o EU faz
contato com o(a/e) outro(a/e), determinantemente diferente e ao
mesmo tempo desejável, são significados ao longo da história humana
de formas diversas: as guerras, o processo de escravização, a exploração
territorial, o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia, entre outras. Em
resumo, ao se deparar com o que transgride a linearidade, a binaridade
normativa é afetada e responde, por vezes, com a promoção de
violências. Dessa maneira, a violência simbólica se instaura como
processo escamoteado de ação, implícita nos comportamentos e
discursos nas relações sociais, como revelado por Bourdieu “de todas as
formas de persuasão clandestina, a mais implacável é aquela exercida
simplesmente pela ordem das coisas.” (1995, p.120, como citado em
Calderone, 2004, p.1).
A violência simbólica se caracteriza então, como fenômeno de
dominação do sistema étnico-racial-cultural-cis-heteronormativo-
patriarcal-branco, o qual opera a partir de uma hierarquização do
poder, mascarando-a em sua disposição educativa, linguística, cultural
e identitária 7 (Calderone, 2004). Essa forma de violência está confluente
na estrutura relacional e aplicada à visão de mundo do(a/e) sujeito(a/e)
enquadrado(a/e) socialmente. Dito isso, é marcante a imposição de um
lugar à margem para a população LGBTQIAP+, uma vez que tais “corpos

7
Identidade como conceito que atravessa a cis heteronormatividade diante das diversas percepções de
identidades de gênero e orientações sexuais.
550 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

dissidentes que borram as normas” (Santana, 2021, p.220) não são


caracterizados(as/es) como pertencentes a este contrato social
homogeneizado e, portanto, são silenciados(as/es) e
invisibilizados(as/es). Analisando tal questão, surgem as perguntas:
quem está dentro? Quem está fora? Estar socialmente inserido, nesse
contexto, é pertencimento ou encarceramento subjetivo? Nessa
perspectiva, é importante salientar que, as imposições normativas não
justificam tais gestos impetuosos, uma vez que há divergência entre
coerção social e submissão/voluntarismo (Calderone, 2004),
principalmente em relação aos profissionais atuantes na clínica em
saúde mental, foco do estudo proposto.
Nesse plano, faz-se indispensável a reflexão crítica diante de
visões de mundo introjetadas pela cultura da ‘maioria’, uma vez que
segundo Bourdieu (1998, como citado em Pessonti & Oliveira, 2021) a
manutenção da violência simbólica, inscrita na ordem das coisas, se
perpetua através da imagem naturalizada, ou seja, transformada em
necessária e comum. Isto posto, todo(a/e) corpo(a/e) que dança fora do
campo homogeneizado é perseguido(a/e) e eliminado(a/e), uma vez que
o gênero e a sexualidade, são vistos no imaginário social como
definitivos e estáticos (Rocha & Santos, 2019). Nessa perspectiva
conservadora, preserva-se a bestialização de toda forma de existência
não instituída ao longo da história social como originária, por exemplo,
as binaridades pênis/vagina; homem/mulher. Diante dessa perspectiva,
o entre existe apenas como um ‘lugar de não lugar’, evidenciando a falsa
necessidade de adesão a um time, um grupo. Para o CIStema
(Nascimento, 2021), é intolerável que haja outras centralidades, o que
sustenta a ideia e a prática de marginalizar e expurgar o que transgride
a normatividade cis-têmica.
Stephanie Boechat • 551

Nesse viés, o escopo da psicoterapia como um espaço seguro para


que a pessoa se reconheça como ser único(a/que) e ao mesmo tempo
diverso(a/e) diante de seus desejos e demandas, é insustentável que a
clínica gestáltica se mantenha em uma lógica de preceitos
homogeneizantes, uma vez que estes por serem altamente violentos em
suas implicitudes, impedem o contato interpessoal e intrapessoal, tanto
de forma material, quanto imaterial, já que não há construção de um
campo para troca. Segundo Belmino (2021) a violência é uma forma de
manutenção do status quo social, já que, uma vez estabelecida, visa o
afastamento imperativo da agressividade, não permitindo que esta
opere como terreno criativo.
Isto posto, o papel do(a/u) Gestalt-terapeuta(e) como função de
acolher e propor a ressignificação de sentido dos sofrimentos do(a/e)
cliente é oposto aos discursos e práticas discriminatórias, inibidoras
daquilo que é fundamental no encontro psicoterapêutico: a alteridade,
haja vista que quando a diversidade é anulada, a fronteira de contato
não é construída como travessia, sendo embarreirada. Deste modo, sem
troca, não há possibilidade e assim sendo, não existe cuidado ético.
Ainda de acordo com Belmino (2021, p.45), a clínica gestáltica toma
forma no momento em que o(a/e) outro(a/e) é percebido(a/e), “olhamos
para as pessoas de perto . . . e nos vinculamos a pessoas com rostos e
nomes”, somente assim é possível pensar em transformação a partir da
alteridade.

2. “QUEERIZAÇÃO” DO CONTATO - A ALTERIDADE E A CONSTRUÇÃO DO EU

A Gestalt-terapia se esculpe enquanto uma teoria do contato que


se dispõe ao encontro, haja vista suas bases existenciais, humanista e
552 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fenomenológica, as quais indicam que o crescimento só é possível


quando o(a/e) sujeito(a/e) se depara com a alteridade, o estranho (Alvim,
2019). Nessa perspectiva, a fronteira de contato não é - e não deve ser -
um abismo entre o eu e o(a/e) outro(a/e), mas uma dobra no espaço-
tempo para que o encontro aconteça no aqui e agora. Em contrapartida
existem fronteiras aplicadas às relações que segregam e estigmatizam
experiências individuais, negando direitos e estabelecendo uma ideia de
não pertencimento, “um gesto que visa aplacar a angústia do encontro
com sua diferença” (Alvim, 2019, p. 883).
Diante do sentido de alteridade, ou seja, aquilo(a/e) que é
outro(a/e), de caráter particular (Ribeiro, 2018) e do conceito de
fronteira de contato, a manutenção de relações EU-TU é primária, uma
vez que é a partir desse encontro que o(a/e) outro(a/e) é percebido(a/e)
como diferente do EU, permeado(a/e) por uma subjetivação própria, ao
mesmo tempo em que desfruta de uma humanidade conjunta (Hycner,
1995, como citado em Cardella, 2002). Nesse viés, a relação terapêutica
na clínica em saúde mental, implica-se em acolher a vivência do(a/e)
outro(a/e), mantendo com este(a/u) umvínculo, que por si só, culmina
em respeito, amorosidade e empatia, visando o desenvolvimento de um
campo seguro para o caminho que se seguirá. Isto posto, de acordo com
Huberman (2010, como citado em Alvim, 2019, p.883) “a experiência de
ver de verdade implica ser olhado pelo que vemos”, isto significa que é
preciso que exista espaço para que a individualidade daquele(a/u) que é
externo(a/e) ao ‘mim’, seja tomada como subjetividade genuína e digna
de existir, ao ponto que este(a/u) outro(a/e) possa se ver como Eu e o Eu
como outro(a/e) (Alvim, 2019).
Ao refletir acerca da relação eu-tu, sua polaridade eu-isso, pode
ser caracterizada diante dessas relações entre terapeuta/cliente
Stephanie Boechat • 553

baseadas na busca pela normatização e transformação da identidade


do(a/e) outro(a/e), ou como dito por Alvim (2019) na promoção de uma
colonização desse(a/u) outro(a/e), outorgando a possibilidade de
sujeitos(as/es) serem enxergados(as/es) como alteridade. Ao se deparar
com o que não corresponde ao ideal de identidade, ou orientação do
desejo morais, creditados pelo CIStema (Nascimento, 2021), o(a/e)
profissional cria muralhas e fecha as fronteiras para a construção
dialógica da relação, mantendo a experiência vivencial do(a/e) cliente
sob lentes abjetas e patologizantes. Nesse cenário, a angústia promovida
no encontro terapêutico não se sustenta como ferramenta interventiva,
clivando essa zona fronteiriça entre o que é centro (normal), e o que é
posto como marginal (anormal) a partir dessa colonização e
estigmatização discursiva. Dessa forma, é preciosa a companhia da frase
de Alvim (2019, p. 883), “o que excluímos para nos mantermos no
centro[?]”.
A atitude fenomenológica-existencial, conceito fundante da
Gestalt-terapia, é atravessada pela concepção de alteridade, uma vez
que postula “que [a pessoa] é [a] intérprete mais fiel de si [mesma]”
(Cardella, 2002, p.35), sendo capaz de seguir suas manifestações, se
encontrar e se transcender. Dessa forma, discursos terapêuticos
promovidos por psicólogos(as/ues) a fim de distanciar sujeitos(as/es) de
seus desejos e das experiências genuínas de quem estão/são buscando
uma homogeneização e até a crença de cura, formalizam práticas
violentas e opostas à essência de uma clínica gestáltica, como citado por
Alvim (2019), fechar os olhos para a diferença se torna uma prática
enganosa diante da clínica em Gestalt-terapia, uma vez que esta surge
como vertente transgressora e política. É importante destacar que a
psicologia como ciência funciona a partir do que é estranho, da dúvida
554 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

que mobiliza o movimento. Sem o(a/e) outro(a/e) e suas construções de


subjetividade diversas não haveria possibilidade de uma ciência
psicológica.
Diante disso, o que seria queerizar o contato? Uma resposta
possível, quase redundante, é o estranhar. Se faz necessário que o
estranhamento seja reconhecido e abraçado, seja onde for - instituição
privada ou pública - uma vez que a construção identitária do(a/e)
sujeito(a/e) é elaborada a partir de intersecções vividas e sentidas
apenas por ele(a/u). Dessa forma, a posição de detentor(a/e) do saber
sustentada pelo(a/e) profissional precisa ser revogada, evidenciando a
busca por um atendimento que valha como lugar de inclusão,
permitindo ao(à/ê) cliente que este(a/u) se veja em sua totalidade sem
medo do apagamento e silenciamento (Souza, 2021). Partindo desse
espaço, a pessoa se presentifica como ‘Eu’ e o(a/e) terapeuta se
descentraliza, “abrindo-nos para o que ainda não sabemos, não
conhecemos, não somos” (Alvim, 2019, p.886).
Dessa forma, seguindo as bases fundantes da Gestalt-terapia, sua
visão de sujeito(a/e) - o qual só existe enquanto ser em contato, a partir
da relação com o(a/e) outro(a/e) essencialmente diferente do eu - além
da defesa de uma prática baseada no acolhimento e diálogo, a partir da
visão que o(a/e) próprio(a/e) sujeito(a/e) possui de seus processos e
responsabilizações, é determinante que o(a/e) profissional se coloque à
disposição dessas perspectivas e as incorpore em suas atitudes clínicas.
De acordo com Belmino (2021), o “regime de consultório” (p.45) não
precisa ser violento para que haja ajustamento criador. Segundo ele, a
Gestalt-terapia é uma ciência política que viabiliza a construção de
caminhos menos moralistas (status quo binário), sendo essa uma
Stephanie Boechat • 555

ferramenta possível para atingir uma prática utópica 8. Dessa forma, a


queerização da clínica gestáltica se legitima ao passo que abrindo as
portas ao que lhe é estranho, o(a/e) profissional psicólogo(a/ue) também
se coloca na posição de desconhecedor e assim, não conhecendo a dor
do(a/e) outro(a/e), cria-se um campo para o acolhimento do que é
genuíno, possibilitando a cocriação de uma relação terapêutica
horizontal. De acordo com Nobre (2021), a potência da Gestalt-terapia
está exatamente em sua característica de acolher – também – o que é
abjeto, socialmente reprovável “é a clínica das moscas, . . . do que é visto
como lixo” (p.141).

3- SOFRIMENTO ENQUANTO ENCONTRO COM O(A/E) OUTRO(A/E):

Nesse viés, está claro que vislumbrar o(a/e) outro(a/e) através do


seu próprio olhar, é peça chave para o encontro verdadeiro,
consequentemente, para o contato, visto que “Mirar o rosto do[a/e]
outro[a/e] é sempre uma experiência de espanto, revelação do
imponderável” (Cardella, 2020, p.99). Isto posto, o sofrimento
vivenciado pelo(a/e) sujeito(a/e), também é uma maneira de adentrar no
campo do vivido a partir de percepções únicas, que falam por si só.
Transpassando o fenômeno do sofrer e o que este traz como
significações e potência de ação, conhecemos o(a/e) sujeito(a/e) em sua
pessoalidade.
Diante desse tema, o sofrimento propicia uma visão de vazio fértil
(Perls, Hefferline & Goodman, 1951) para que o(a/e) indivíduo(a/ie) crie

8
“A utopia não é a busca por um paraíso perdido . . . é pensar além daquilo que está dado e construir
ações práticas de transformação” Belmino, 2021 p.45
556 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ajustes 9 visando um funcionamento saudável. Assim, há uma diferença


clara entre sofrimento, dor e a própria violência estrutural. Cardella
(2021), compartilha que a dor, prevê o fechamento da pessoa em si
mesma, corroborando para a permanência em um estado de solidão.
Dessa maneira, a dor, que se auto-conserva, se alinha às violências, uma
vez que ao manter o(a/e) sujeito(a/e) em seu calabouço particular, não
permite que o exercício da troca aconteça, mantendo-o(a/e) do(r)ente,
no caminho da busca causal, a qual resulta em culpabilização. Para além
disso, diante do aspecto recursivo da dor, esta mantém o(a/e)
sujeito(a/e) funcionando de acordo com as normas do sistema que a
retroalimenta, a dor fere e pune, assim como a violência. Dessa forma,
se constrói uma semelhança compulsória entre dor e sofrimento, que
estruturados no viver humano, tem como única saída, acredita-se, a
complacência.
Em contrapartida, o sofrimento é gerúndio, é potência para busca,
ânsia por presença (Cardella, 2020), é a parte que falta 10 e faz com que
o(a/e) sujeito(a/e) continue caminhando para a satisfação. Nessa ótica, é
impreterível rememorar Conceição Evaristo e sua escrita, nomeada
metodologicamente por ela como escrevivências, escrever sobre suas
vivências e sofrimentos, permitindo a partir destes que pessoas à
acompanhem em sua viagem letrada, e assim, enxerguem a partir dos
escritos, as possibilidades de caminhos próprios.
Diante dessas perspectivas, o sofrimento pode ser elaborado em
terapia enquanto fenômeno experiencial, o qual auxilia o encontro com

9
ajustes criativos, são caracterizados aqui por modificações feitas pelo(a/e) sujeito(a/e) a partir da falta,
sintoma, sofrimento, a fim de fechar suas gestalten abertas, ou visando um funcionamento
possivelmente mais saudável. É importante lembrar que os ajustes criativos nem sempre são criações
positivas, exemplificando o sintoma, citado acima.
10
Referência ao livro “A Parte que Falta” Shel Silverstein, 2018.
Stephanie Boechat • 557

aquilo que é genuíno do(a/e) sujeito(a/e), seus vazios. Nesse viés, a


negação dos sofrimentos enlaçados às questões de gênero, identidades
e sexualidades LGBTQIAP+, corrobora para a construção de uma
imagem de passividade diante do sofrer, que confundido com dor, toma
lugar de fixação. Portanto, a negação desse estado estaciona o horizonte
da clínica psicológica, uma vez que ao não olhar o sofrimento
pertencente ao(à/ê) outro(a/e), o(a/e) profissional nega também sua
própria existência, já que é a partir da apresentação e acolhimento de
um sofrimento, único, mas também diverso, que se consegue acessar a
alteridade. Retomando Cardella (2021), para que haja possibilidade de
reconhecimento do sofrimento, é necessário em primeira instância, que
haja espaço para tal “o terapeuta só será capaz de fazê-lo se voltar ao . .
. lugar ético fundamental, e reconhecer em si o que contribui para a
experiência de falta vivenciada por seu paciente” (Cardella, 2021, p.110).
Para concluir, na clínica, a negação do que é apresentado pelo(a/e)
outro(a/e), voltando especificamente à população LGBTQIAP+, suas
vivências, identidades e percepções únicas (eu/alter-eu), instaura uma
violência estruturante, que barra seu ser/fazer e prevê uma
homogeneização CIStemática (Nascimento, 2021) dos modos de
experienciar situações e processos intrínsecos. Abrir os olhos e a escuta
para o que é diverso é também encarar o que carrega cada um
(alteridade e auteridade), psicoterapeuta e cliente, essa é a dificuldade e
a beleza do ofício.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vista dos levantamentos dispostos ao longo do trabalho, é claro


o paradoxo que permeia a clínica psicológica, uma vez que o(a/e)
558 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

psicólogo(a/ue) como ser vivente, partilha e constrói individualmente


ideais morais, que por sua vez, podem ser totalmente distintos daqueles
pertencentes ao(à/ê) sujeito(a/e) que senta na cadeira de cliente
buscando por cuidado. Diante disso, é oportuno lembrar que a
psicologia, sobretudo a Gestalt-terapia, é sustentada por uma ética
psicológica (êthos), não pela moral individual. Dessa forma, deve-se
entender que estabelecer o limite diante da fronteira de contato é
imprescindível, e constantemente funciona como dispositivo
interventivo, contudo é crucial que a diferenciação eu-outro(a/e) não
delimite abismos entre psicoterapeuta e cliente, principalmente quando
se trata de espaços preenchidos por violências, especialmente àquelas
instituídas comuns.
Pensar a relação terapêutica é também, refletir sobre o
estranhamento, uma vez que cada indivíduo(a/e) traz para a sessão sua
bagagem vivencial. Sobretudo na clínica com pessoas LGBTQIAP+, é
preciso e precioso que o estar junto(a/e) seja construído como lugar
seguro, para além do ambiente físico no qual essa relação se localiza, já
que diante de uma sociedade violenta e fóbica, estes(as/us)
sujeitos(as/es) buscam na psicoterapia o cuidado que não experimentam
no cotidiano, visto que estão inseridos(as/es) em um sistema que retrata
e significa seus desejos e identificações como desviantes e patológicas.
Assumir o encontro com a alteridade é promover um espaço real
para que os fenômenos tomem forma. Parece hipócrita escrever sobre a
importância de uma atuação imparcial em concomitância com a defesa
de uma clínica política, porém, vale salientar a diferença avassaladora
entre imparcialidade moral e neutralidade. Assim, para a execução do
papel de psicoterapeuta é impreterível estar aware de seus introjetos,
para que no encontro com o que é/está para além do eu, seja possível
Stephanie Boechat • 559

encontrar o que é conjunto. Dar e receber a chance de apreender algo


no encontro e fazer dele contato, combustível para crescimento. Diante
disso, a Gestalt-terapia pode ser considerada em essência como um
campo para o estranhamento possível (queerização do fazer
terapêutico), no qual a psicoterapia não se impõe como um saber
atrelado ao poder e a manutenção do status quo. No entanto, teoria e
prática precisam caminhar juntas, para que este texto, e o exercício da
psicologia em si, não percam o sentido.

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Zanello, V. (2018). Saúde Mental, Gênero e Dispositivos: Cultura e Processos de Subjetivação.


Appris.
26
NOVAS FORMAS, NOVAS POSSIBILIDADES, NOVAS
PONTES: DIÁLOGOS ENTRE CONTRASSEXUALIDADE
E GESTALT-TERAPIA
New forms, new possibilities, new bridges: dialogues between
Contrasexuality and Gestalt-therapy
Nuevas formas, nuevas posibilidades, nuevos puentes: diálogos entre
Contrasexualidad y Terapia Gestalt

Zay Nogueira de Sales


Marcos Vinicius Monteiro Barbalho
Paula Marília Nascimento Moura
Ana Júlia Chaves Melo
Lorena Schalken de Andrade

DE ONDE PARTIMOS?

“Para quem quer se soltar


Invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento o amor
E sei a dor de me lançar.”
(Cais - Milton Nascimento)

Em 2019, na última aula expositiva da disciplina de Psicologia da


Gestalt II, ministrada no curso de Psicologia, senti um engasgo na
garganta quando falávamos do tema: "corpo do terapeuta". Senti que
aquilo me emocionava, me arrepiava com medo, angústia e também
fascinação. Com certeza, houve outras vezes, antes, em que eu tomava
consciência de mim em meu corpo durante a formação em psicologia.
562 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Mas, caso a minha memória esteja correta, essa foi a primeira vez em
que isso foi reconhecido e exposto ao desconhecido de encontrar uma
resposta do porquê aquilo me afetava. Entendo que agora, começando o
final do percurso de uma graduação, vivi em meu corpo uma formação
que toca muitas vezes o tema desse ensaio.
Eu, Zay, percebo então como o mesmo corpo, que anda em direção
à formação de Gestalt-terapeuta, também mergulha na transgeneridade
e se afeta na leitura, por exemplo, do texto Manifesto Contrassexual. O
recorte desses dois movimentos - a leitura de Paul Preciado e o estudo
da Gestalt-terapia - acontecem no mesmo território: o meu corpo. E,
então, abrem-se muitas possibilidades de conexões, feitas
artesanalmente nesse território, e que posteriormente são
amadurecidas, procurando construir pontes entre essas duas margens
de um rio em que caminho.
Empresto esta experiência ao grupo que desenvolve este ensaio e
seguimos tecendo com os fios das nossas experiências. Então
caminhamos no estudo da relação terapêutica ainda banhados por
questionamentos sobre o sistema sexo-gênero, e podemos nos recordar
de Laura Perls (1991) que, ao descorrer sobre a Gestalt-terapia, afirma
como as teorias que construímos e aderimos possuem importantes
propositos, entretanto, caso se tornem fixos construtos, podem
interferir no movimento da experiência presente. Portanto, indagamos
qual a forma do solo teórico no qual, após os atendimentos, a
experiência da relação terapêutica irá decantar? Quais aberturas
possíveis nesse solo para que essas experiências tomem forma na
relação terapêutica, na terapia e, entrelaçado nisso, também na cliente
enquanto ela vivencia a escuta da terapeuta e a relação terapêutica?
Essas perguntas podem ser dispostas ao redor de um eixo: a
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 563

responsabilidade da Gestalt-terapia, ou da Gestalt-terapeuta, em


garantir um solo teórico flexível, aberto ao risco de não ser suficiente
para a compreensão dos fenômenos e ao mesmo tempo provedor de
suporte e acolhimento, uma Gestalt permanentemente aberta - ou uma
que sempre que encontra um novo sentido, muda.
O estranhamento da norma é um caminho para garantirmos a
formação de um solo teórico flexível, em que a prática da Gestalt-
terapia possa estar aterrada. E, para além da relevância da teoria, é
importante levar em consideração que os corpos dissidentes já
possuem, em sua experiência, saberes que nos permitem escutar e
articular essa flexibilidade. Desse ponto de vista o Manifesto
Contrassexual de Paul Preciado é apenas uma mínima parte desse
conhecimento que está constantemente sendo vivido e aprimorado.
Porém, é uma obra capaz de nos oferecer inúmeras possibilidades de
diálogos teóricos.
A Contrassexualidade de Paul Preciado e a Gestalt-terapia são
campos de conhecimentos distintos e com suas próprias características.
Entretanto, para Silveira e Hunting (2007), diálogos teóricos são
importantes e, quando ocorrem como movimentos laterais entre
diferentes epistemologias, podemos tornar possível nosso mútuo
entendimento. A partir do reconhecimento das diferenças das duas
teorias em questão, localizadas em um campo de diversidade teórica
horizontal, buscamos o caminho de construção de pontes entre essas
diferentes posições epistemológicas, sem a redução de uma posição pela
outra.
Partindo disso, compreendemos que esse ensaio está atravessado
por outras questões além de gênero. Basta notar, que, por exemplo,
tanto a Gestalt-terapia como a obra de Paul Preciado têm suas origens
564 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nos continentes do norte global. Em contraponto a isso, Rea e Amancio


(2018, p.3), enfatizam que a teoria queer contesta as normas
estabelecidas, o que inclui, além do sistema heterossexual, a
branquitude e o domínio de classes. As autoras também apontam que o
campo de estudos queer no Brasil é predominantemente branco, por
não se desenvolver de forma mais aprofundada discussões sobre os
cruzamentos entre sexualidade, gênero, colonialismo e opressões de
raça e classe (2018, p. 6).
Este trabalho é escrito a cinco pares de mãos de pessoas brancas,
de diferentes identidades sexuais e de gênero e posições de classe, que
possuem diversas experiências e, sobretudo, procuram refletir sobre
como seus corpos ocupam os espaços em vários contextos, dentre eles a
academia e a produção de conhecimento. Não pretendemos, portanto,
esgotar o tema e propor considerações universalistas. O intuito do
ensaio é contribuir com discussões sobre gênero em Gestalt-terapia por
meio do diálogo com outras teorias.
Nesse sentido, as autoras se reuniram semanalmente, de modo
online, pela plataforma Google Meets, durante os meses de junho, julho
e agosto – apenas um encontro ocorreu de forma presencial, e foi um
dos mais importantes para a estruturação da forma final deste ensaio.
Os encontros levaram à construção de uma síntese da obra escolhida,
bem como à escrita e compartilhamento de relatos de experiência
acerca das afetações que emergiram durante a leitura. Essas afetações
foram articuladas com conceitos teóricos da Gestalt-terapia a com a
lógica da Contrassexualidade – o que, logo, se fez presente no trabalho.
Conhecendo de antemão uma diversidade de Gestalt-terapeutas
através de nossa graduação em Psicologia, ler o Manifesto
Contrassexual (2014) provocou identificações imediatas com o modo que
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 565

Preciado realiza suas provocações e proposições: gerando incômodos,


cutucando tabus sem poupar o “status quo”, quase como se fosse a
própria obra um coquetel molotov, uma espécie de bomba artesanal
feita com líquido inflamável, jogado no meio de uma manifestação, tal
qual o espírito anarquista que origina a própria Gestalt-terapia em meio
aos movimentos de contracultura. A rebeldia e radicalidade das ideias -
tanto da abordagem gestáltica como do próprio manifesto - nos
atingiram ativamente enquanto leitoras, impulsionaram trans-ições,
trans-gressões e trans-formações.
Consideramos, portanto, que essas afetações e os movimentos que
delas derivam podem ser ferramentas importantes para o
desenvolvimento da abordagem gestáltica, sobretudo no sentido de
apontar as bases já existentes para uma discussão mais ampliada do
corpo, para além do corpo normatizado e naturalizado, pensando,
então, nos corpos dissidentes, nos corpos LGBTQIA+, nos corpos
transviados, nos corpos marginalizados etc.

TRAMAS POSSÍVEIS PARA CONTRAPOR A MESMICE: O MANIFESTO


CONTRASSEXUAL.

“Já desci por todo esse corpo


E não vi quem me botou aqui
Mas se conhecer de verdade
Coragem, que coragem
Hão de ter quando tão bem notarem
Que não tem mais esse trem de homem”
(Coragem - Castello Branco)

O Manifesto Contrassexual (2014), publicado pela primeira vez nos


anos 2000, e escrito pelo filósofo e arquiteto Paul B. Preciado, traz uma
566 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nova perspectiva acerca da diferença sexual e de gênero. O autor faz


uma crítica à perspectiva hetero-cis-normativa, considerada como
“natural” – que ele considera como um "contrato sexual" determinista.
O autor tece apontamentos sobre como nossos corpos são lidos e
classificados em função de manter uma suposta coerência sexual
baseada na ciência médica e na divisão sexual binária. Um corpo
sexuado coerente seria, em tese, aquele que não escapa dessa divisão. E,
por isso, a diferença sexual da ordem heterossexual é produzida e
reproduzida em diversos processos e procedimentos médicos,
cirúrgicos, jurídicos, psíquicos, etc - chamados pelo autor de
“tecnologias” - desde a invocação performativa "é menino" ou "é
menina" e sempre com o objetivo de reduzir ou erradicar toda
ambiguidade sexual.
Tecnologias são muitas vezes compreendidas como os
instrumentos de manipulação, dominação e exploração usados na
relação entre o homem e a natureza. Preciado (2014), amplia essa
compreensão a partir do borramento de polaridades, como
natureza/tecnologia, para nos mostrar como o sexo também é
tecnológico.
Dessa forma, Preciado retoma os conceitos de tecnologia e técnica
de Foucault (1994) construindo suas próprias articulações, de modo que,
no Manifesto Contrassexual (2014), o autor desenvolve seus argumentos
levando em conta a tecnologia, não como algo que manipula uma
natureza já dada, mas como aquilo que produz essa mesma natureza.
Inspirado em Foucault (1994), Preciado se baseia no conceito de técnica
como “um dispositivo complexo de poder e saber que integra os
instrumentos e os textos, os discursos e os regimes de corpo, as leis e as
regras para a maximização da vida, os prazeres do corpo e a regulação
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 567

dos enunciados de verdade” (Preciado, 2014, p. 154). O autor continua


desenvolvendo seu argumento apontando como a técnica vai além da
repressão como forma de coerção e está relacionada a uma forma mais
potente de controle: a produção de desejos e a articulação desses como
predisposições naturais.
Frente a essa análise, então, o autor sugere um novo contrato
sexual: o da Contrassexualidade – no qual, a partir de então, torna-se
possível ver os corpos em um sentido mais amplo e cheio de
possibilidades, abertos às múltiplas práticas significantes. Sob essa
ótica, os corpos interagem entre si e se reconhecem como corpos
falantes, ao invés de se relacionarem a partir da rigidez das categorias
de gêneros, e, assim, podem vivenciar várias posições de enunciação
(Preciado, 2014). A Contrassexualidade, como define o autor, inspirado
em Michel Foucault, é um compromisso com a produção de novas
vivências para além das produções hegemônicas. Ele diz: “A
Contrassexualidade não é a criação de uma nova natureza, pelo
contrário, é mais o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição
de certos corpos a outros” (Preciado, 2014, p. 21).
Dessa maneira, ao se posicionar fora das oposições de
gênero/sexualidade, a Contrassexualidade renuncia às identidades
fechadas que determinam todo o conjunto de próteses e práticas que
esses corpos terão ao longo de suas vidas. E, compreendendo que essas
categorias não são naturais, a Contrassexualidade, como uma teoria do
corpo, propõe compreender a sexualidade como algo que se pode fazer
no corpo como um todo. Nesse caso, as práticas e identidades por si só
nada mais são do que equipamentos, máquinas, usos, fluxos de energia,
produtos, instrumentos, aparelhos, etc. (Preciado, 2014).
568 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Os órgãos genitais, por exemplo, são ditados pela norma como


opostos e complementares e, portanto, locais exclusivos de produção de
prazer. Para o autor, eles são, na verdade, produtos da redução e
catalogação do corpo, que faz coincidir sensações com certos órgãos e
reações corporais e que isola outras partes para que elas sejam lidas
como significantes exclusivos da sexualidade e com funções rígidas e
intransponíveis. Em contraponto a essa estrutura, Preciado propõe que
todo o corpo pode ser território de produção sexo/gênero e com
possibilidade de sexualização (Preciado, 2014).
Nessa perspectiva, a Contrassexualidade é ilustrada pelo autor na
figura de uma tecnologia subversiva da norma: o dildo. Esse objeto é
encarado, comumente, como imitação do pênis, e, geralmente, é usado
no lugar da falta desse último em emergências médicas ou na falta de
uma ereção. É visto, então, como imitação do sexo masculino, uma vez
que, segundo a norma, o que caracteriza um homem é que ele tenha um
pênis e que seja usado para a penetração sexual. Dessa maneira, as
normas de gênero conferem uma função essencial ao órgão como sexual
e reprodutivo, ou seja, promovem operações cirúrgicas simbólicas, que
se materializam nos corpos, estabelecendo, assim, como eles serão lidos,
para que servem, como devem agir e o que são em essência (Preciado,
2014).
Nessa perspectiva, é o pênis que dita o corpo como "naturalmente
masculino". Já o dildo é um objeto maleável, plástico e transferível.
Nesse sentido, o dildo democratiza mercadologicamente a tecnologia
sexualizadora masculina hegemônica, o que produz impactos nas
relações sociais e de poder: põe fim ao pênis como origem da diferença
sexual. Portanto, o dildo é usado para performar procedimentos de
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 569

recorte e colagem, de modo a descontextualizar e subverter a prática


original (Preciado, 2014).
Como aponta o autor: “Toda técnica que faz parte de uma prática
repressiva é suscetível de ser cortada e enxertada em outro conjunto de
práticas, reapropriada por diferentes corpos e invertida em diferentes
usos, dando lugar a outros prazeres e a outras posições de identidade”
(Preciado, 2014, p. 108). Por essa possibilidade de conversão de qualquer
parte do corpo em centros de prazer que o dildo trai a sua origem e, por
isso, toda prática Contrassexual é dildo. Aliás, na Contrassexualidade,
tudo é dildo.
Tendo como base essa teoria, o conceito “gênero” passa a descrever
a localização assumida por um corpo na maré dessas forças
tecnológicas. A verdade do gênero não está no sexo, tampouco está na
mente, mas está na subjetividade produzida entre indivíduo e ambiente.
A superação dessa dicotomia abre portas para que a Gestalt-terapia crie
laços teóricos com a teoria de Preciado, uma vez que essa abordagem
psicológica, desde seus fundadores, já dizia: "Um dos fatos mais
notórios a respeito do homem é que ele é um organismo unificado. E,
todavia, este fato é completamente ignorado pelas escolas tradicionais
de psiquiatria e psicoterapia que, não importa como descrevam seu
enfoque, continuam a operar em termos da velha cisão corpo/mente”
(Perls, 1988, p. 24).
O Manifesto Contrassexual (2014) é uma obra que apresenta uma
proposta de análise singular, transgressora, embasada e elaborada de
nossa sociedade que leva em conta mudanças acontecidas a partir da
década de 1960, discutindo como essas mudanças atualizaram e
sofisticaram as cisões operadas em nossos corpos, contextualizando as
características políticas desse processo de dominação no sistema atual.
570 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

As obras Ego, Fome e Agressão (Perls, 1942) e Gestalt-terapia (Perls et


al., 1997) demarcam o que consideramos o período inicial da Gestalt-
terapia. A publicação original de ambas é anterior às transformações
vividas a partir da década de 60 e à discussão que Preciado realizou a
partir delas, em 2004. Nesse sentido, a obra desse autor, contemporâneo
ao presente trabalho, representa uma oportunidade de diálogo com os
conceitos construídos nas origens da abordagem gestáltica bem como
com atualizações mais recentes. Dessa maneira, é possível manter a
visão gestáltica original de organismo unificado (Perls et al.1997)
coerente com o momento histórico, político e social atual, no qual há
um movimento mais forte de denunciar os diversos binarismos e
normas aos quais nossos corpos estão submetidos.

A DIMENSÃO PROSTÉTICA DO GÊNERO EM MEIO A TEORIA DO SELF

“Eu sei de mim


O que sei do mundo, todo mundo
Desfacelado
Pelo eixo imundo
E luminoso da razão
[...]
Sou a flecha que acerta o calo e o calcanhar
De aquilo que te funda
O que no fundo é imortal”
(Tendão de Aquiles - As Baías)

Imaginemos, por um breve momento, que a teoria do self em


Gestalt-terapia e a Contrassexualidade são dois programas atuando em
um mesmo sistema operacional de um computador. Esses dois
programas foram fundados em meio aos códigos existentes desse
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 571

sistema. Porém, a forma como funcionam é peculiar, pois ambos


realizam uma crítica ao funcionamento do sistema e promovem
possibilidades de rupturas com o objetivo de criação de relações
diferentes com os códigos que nos cercam, ou seja, “hackeiam”, assim,
o sistema ao abrir caminhos para construir formas de vida que não se
prendam aos limites da reprodução da norma.
Por isso, nesta seção, objetivamos mostrar como a experiência de
gênero descrita por Paul Preciado e a Teoria do Self da Gestalt-terapia
podem encontrar pontos possíveis de caminharem juntas, de modo a
possibilitar novas compreensões e práticas. Nesse caminho, elucidamos
como o self e suas funções - id, ego e personalidade - trabalham, ora em
favor de repetições, ora a favor da espontaneidade a partir do e para o
campo como um todo.
É importante, também, deixar claro que as divisões realizadas aqui
são meramente didáticas, visto que o self é compreendido pelos autores
como um sistema integrado, a vivência temporal entre organismo e seu
meio, cujas funções operam enquanto estados da fronteira de contato e
não como entidades metapsicológicas (Perls, et al., 1997). Dada a
importância do campo para a Gestalt-terapia, que características ele
toma quando olhamos especificamente para as tecnologias de gênero?
Podemos encontrar pistas para responder essa pergunta na
interlocução com a obra de Paul Preciado.
Ao conceituar o gênero como “prostético”, Preciado (2014, p. 29)
explicita o quanto ele “não se dá senão na materialidade dos corpos”, ou
seja, é a partir da relação do organismo com as próteses em seu entorno
que se produz o gênero. O autor, inclusive, cita uma série de fluxos de
tecnologias que são incorporadas por cada sujeito para compor sua
572 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

performance de gênero. Esses elementos são traduzidos pela


heterossexualidade em códigos masculinos e femininos, como diz:

O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto


socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanidade
como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códigos se
naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente
eliminados ou riscados. A (hetero)sexualidade, longe de surgir
espontaneamente de cada corpo recém-nascido, deve se reinscrever ou se
reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação dos
códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como naturais
(Preciado, 2014, p. 26).

O fluxo desses códigos, então, pode ser compreendido como dados


que compõem o campo indiferenciado, o “id da situação” no aqui-agora.
Mônica Alvim, ao descrever o conceito de “id da situação”, diz o
seguinte:

Existimos como seres em situação (ser no mundo) antes de nos


diferenciarmos como indivíduos, sendo o engajamento na situação
característica definidora dessa função, o que implica dizer que só há self
como experiência da situação concreta, ou seja a função self é uma função
como campo de presença. Se não há novidade no campo, estamos integrados
a ela e o que está acontecendo guarda harmonia com o passado e o futuro
(Alvim, 2018, p. 335).

Podemos observar, assim, que os ideais de masculinidade e de


feminilidade são constantemente citados pelos sujeitos em função das
diversas instituições de controle biopolítico, como diz Michel Foucault
(2014, 1999), sejam elas a escola, o hospital, a mídia, a ciência ou a
família. Esse disciplinamento dos corpos restringe quais afetos são
dignos de se tornarem figuras, docilizando, pouco a pouco, os corpos,
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 573

até que se compreenda como natural a norma reiterada. Introjetados,


esses dados passam, então, a encerrar nosso leque de referências do que
é ser homem, do que é ser mulher e do que é ser humano.
E é essa configuração do meio social que compõe o fundo que ampara
nossa base para ações, nosso modo de ser e estar no mundo, bem como
afunilar ou ampliar nosso horizonte de futuro. Essa concepção faz cair
por terra construções intrapsíquicas, centradas no indivíduo ou
biologicistas do gênero, uma vez que leva em conta o intersubjetivo e
intercorporal, ou seja, o campo, como fundador da experiência do si
mesmo. Nesse sentido, esse fundo composto por inúmeros códigos,
masculinos e femininos, é solo comum para a mobilização restrita de
determinados afetos frente às necessidades que se tornam figura na
relação com o outro, gerando, então, movimentos de atração ou repúdio
por determinadas performances (Perls et al., 1997; Müller-Granzotto &
Müller-Granzotto, 2014; Preciado, 2014; Bandín, 2018).
Logo, podemos supor que estamos em contato constante com o
fluxo de próteses de gênero, a partir do qual a função ego gera
diferenciação através de um ajustamento criador ou confunde-se ao
meio através da repetição (Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2014).
Para Perls et al. (1997, p. 154), o “Ego é identificação progressiva com as
possibilidades e a alienação destas, a limitação e a intensificação do
contato em andamento, incluindo o comportamento motor, a agressão,
a orientação e a manipulação”.
Como fenômeno de/no campo, entramos em contato com a categoria
gênero em dimensões que podemos ou não sermos capazes de acessar e
(re)produzimos e (co)produzimos essa categoria em ação. Ao performar
gênero enquanto normativa, organizam-se possibilidades dentro de uma
determinada temporalidade, restringindo horizontes de futuro. Esta
574 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

perspectiva aponta para uma confluência que impede a emergência de um


novo excitamento, ou seja, há a interrupção de novas formas no processo
de construção e destruição de gestalten ao vincular-se a modos de
organização contextuais que mobilizam a ação/ato para o que é,
aparentemente, seguro. Nessa perspectiva de que o gênero é algo que se
faz em ato, cabe-nos tomar as contribuições de Judith Butler, que foi
também basilar para a construção do Manifesto Contrassexual (2014).
Para Butler (2019), gênero é um tipo de ato de fala, que tem como
característica ser performativo. Isso significa que, ao ser enunciado,
institui uma realidade sobre aquilo que se está sendo dito, não apenas
descreve algo que já está posto. Exemplo disso são: “Declaro o réu
culpado”, o qual determina uma característica nova a um indivíduo e
também o seu destino. Da mesma forma, um médico na sala de parto
que diz “É menino!” ou “É menina!” está instaurando uma realidade
sobre aquele corpo e as normas que, a partir daquele momento, passarão
a regulá-lo.
Não apenas o discurso, mas também o corpo pode ser lido como
texto. As materialidades que compõem essa textualidade também
produzem efeitos performativos. Há um constante tensionamento das
linhas de força que organizam o campo, que por vezes coincidem com
as linhas de poder das instituições que nos atravessam enquanto sujeito
social. Nessa perspectiva, pode-se compreender que agir sobre o mundo
em um corpo generificado é um ato político, uma vez que contribui para
a reiteração do assujeitamento ou para desestabilizar o status quo,
exigindo, nesse caso, novas significações.
Então, por exemplo, ao praticar o que Butler (2019) chama de
“performatividade queer” - uso de um insulto homofóbico
descontextualizado, invertendo as posições de enunciação hegemônicas
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 575

- o sujeito ajusta-se de forma a diferenciar-se do meio. A ação, nesse


momento, tenciona o tecido social ao dar vez aos afetos e desestabiliza
a gestalt, ampliando, assim, o horizonte de possibilidades, não só do
sujeito queer, mas também do outro social. Essas experiências são
assimiladas ao organismo e representadas pelo self a partir da dimensão
que chamamos de função personalidade. Perls et al. (1997, p. 184)
definem essa característica do sistema self como “o sistema de atitudes
adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que
serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso
comportamento, se nos pedissem uma explicação”. Dito de outro modo,
é a capacidade de relacionar-se a partir de identidades que se
interseccionam e se movimentam entre si.
Jean-Marie Delacroix (2009) discute os conceitos de identidade,
corpo e self em Gestalt-Gerapia. O autor localiza “identidade” em relação
ao sentimento de existir que emerge na relação com o outro, ou seja,
surge na dialética corpo-experiência. E o processo de elaboração de
identidades nasce daí, a partir da capacidade do indivíduo de se
experimentar, se definir e se posicionar diante do outro e do mundo,
através do que acessa e organiza a partir do “eu sou” e “eu sou o que
sou”. O autor também afirma que as bases desse sentimento de
existência estão no que conhecemos como função id, o fundo dado da
situação. Dessa forma, uma identidade é uma construção constante e
inacabada, o que mostra como essa discussão está situada a partir de
uma perspetiva de processo de contato.
Já no Manifesto Contrassexual (2014), as categorias identitárias,
especificamente as de gênero, são descritas sob uma perspectiva de
dinamismo e fluidez, a partir de uma crítica do autor ao regime
heterossexual. O autor desenvolve o conceito de identidade como
576 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

categoria que surge em determinado tempo histórico e, por exemplo,


como a descrição de uma categoria de pessoas é construída a partir da
delimitação de suas práticas.
Por isso, se interessar por atividades sexuais apenas com pessoas
do mesmo gênero é tomado como a descrição de uma identidade
homossexual: aquilo que sou e, por isso, faço o que eu faço. As categorias
identitárias surgem, portanto, como uma tentativa de localização do
“outro” da norma. Apesar desses esforços, elas foram tomadas por
vários sujeitos sociais como instrumento de luta política, valorização de
suas subjetividades e afirmação de direitos.
Vale ressaltar também que Preciado (2014) apresenta como o sexo
é definido, descrito e apresentado nas sociedades brancas européias
como o último resquício de natureza no corpo humano, depois de as
tecnologias terem o construído. Face a isso, o autor, expondo as
contradições desse paradigma, nos leva a concluir que o sexo é também
uma tecnologia do corpo, inscrita em nossos corpos, antes mesmo de
nós nascermos, como a invocação de uma realidade e de uma identidade.
A construção de nós mesmos, a elaboração de nossos discursos e o nosso
trabalho de construção e reconstrução de nossos corpos se faz em
relação contínua com as tecnologias, inclusive com as tecnologias do
sexo e do gênero.
A partir dessa compreensão, é possível considerar a proposta
Contrassexual de renúncia às identidades fixas como ferramenta
interessante à Gestalt-terapia. Ao compreendermos como se dá a
dimensão prostética da produção dos corpos e ao nos relacionarmos
com esses dados de nosso campo, podemos compreender que, ao falar
de si, estamos nos localizando e nos recriando nessa rede de relações do
campo. Pensando, então, no corpo em Gestalt-terapia como um
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 577

organismo integrado, reunido em tudo aquilo que está se passando


nesse território no aqui-agora, cabe ao Gestalt-terapeuta não apenas
encarar o cliente dessa maneira, mas também a si mesmo.

RETORNAR ÀS BASES E ATUALIZAR A FORMA

“O conhecimento é um boato até que viva no corpo”.


(Homer Roberts - The OA,
tradução nossa)

Postas essas problematizações, percebemos que as nossas


formações, sejam elas em Psicologia ou em Gestalt-terapia, geralmente,
não questionam os lugares fixos e rígidos do campo da sexualidade, ao
menos não de forma que isso desmantele a cisheteronorma que há em
nós, tornando-nos, assim, cúmplices fiéis dela. Os limites entre a
criatividade e a loucura, nesse momento, são delimitados e
intransponíveis, gerando, com isso, movimentos de patologização e
enquadramento de experiências LGBTQIA+, por exemplo. E, apesar da
tendência da Gestalt-terapia à experimentação, ainda é possível
perceber a carência da implicação da terapeuta em olhar para as teias
que o amparam no sistema sexo-gênero e produzem o seu corpo-
terapeuta. Que efeitos, então, são produzidos no modo de ser terapeuta
quando a Gestalt-terapia não trata diretamente das questões de
sexualidade e gênero? Essa ausência no campo nada mais é do que a
presença da norma.
Buscamos contextualizar esses questionamentos sob a perspectiva
de que o encontro com outra pessoa em psicoterapia gestáltica ocorre
sob condições éticas, nas quais as histórias de ambas as partes são
interpeladas por reflexões que vão desde o espaço íntimo da
578 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

psicoterapeuta, até as histórias em comum com a cliente que vão se


desenvolvendo ao longo dos atendimentos, configurando, assim, uma
terceira história, na qual um fala e o outro escuta. Às vezes interagem,
ficam em silêncio. Outras vezes se emocionam pelos relatos de vida,
pelas tomadas de consciência, pelo que o outro responde (...) entre
momentos de encontro psicoterapêutico, há momentos durante os
quais podem pensar uns nos outros e na sessão que passou. Às vezes por
meio de sonhos, incluindo o relato da cliente para psicoterapeuta e vice-
versa (Delacroix, 2009, p. 426, tradução nossa).
Então, para que a psicoterapeuta acolha as manifestações que
podem vir, é preciso não somente estar aberta ao outro, mas também
estar atenta àquilo que acontece consigo e impacta sua existência
transgeracional até o espaço psicoterapêutico, e compreender que toda
relação é uma história que está em curso de elaboração. Assim, os
questionamentos que surgem para os nossos caminhos enquanto
Gestalt-terapeutas são: Que corpo é esse que dá suporte à atitude
terapêutica? É um corpo amarrado pela norma? É um corpo vigilante,
julgador? Um corpo que evita seus próprios afetos, que não se reconhece
em suas próprias “perversões”? Um corpo que recusa (interrompe)
frequentemente o contato com o diferente, o estranho…? Certamente, a
abertura ao novo pode ser angustiante e pode provocar incômodos, mas
o que se faz com esses afetos?
Levando em consideração a proposta de paradigma de gênero de
Paul Preciado e suas aproximações com a teoria do self da Gestalt-
terapia, qual o papel da Gestalt-terapeuta frente às demandas de
vulnerabilidades éticas, políticas e antropológicas? Seria o de ajudar a
cliente a encontrar coerência frente às normas? Seria o de ajudá-la a
encontrar uma identidade que melhor descreva a sua experiência? Seria
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 579

o de permitir um espaço de experimentação de outras vivências, onde


possa ser chamado por outros pronomes, experimentar outras
dinâmicas de poder…?
Propomos experimentar a ruptura da conexão com as linhas de
poder em direção a um único ponto: a normatividade de gênero estável,
excludente, binária e fruto de um discurso que mascara a própria
construção enquanto produto de uma determinada sociedade em uma
determinada época e para determinados fins. De certa forma, a
ontrassexualidade apresenta-se como uma ponte entre o que temos
enquanto bases epistemológicas e a prática da Gestalt-terapia,
incorporando as mudanças e transformações sociais do nosso aqui-
agora, de modo que a abordagem se reencontre com suas raízes
fenomenológicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Para renascer das cinzas


Antes teve que queimar
Arder
Queimar, arder
Queimar, arder
& Se trans for mar, eu rio
& Se trans for mar, água de torneira
& Se trans for mar, eu rio
Contra a correnteza
Pra me lavar”
(eu matei o Júnior - Linn da Quebrada ft. Ventura Profana)

Concluímos, assim, que o compromisso da terapeuta seja o de


proporcionar um espaço em que ela e cliente consigam experimentar o
lugar proposto pela Contrassexualidade - de corpos falantes -
580 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

independente de identidades fixas, mas em constante relação com elas.


Ou seja, possibilitar que ambas acessem outras tecnologias discursivas
e corporais como forma de produzir outras subjetividades e
corporalidades. É compromisso com o potencial criativo, uma ética
centrada no contato, tal como define Laura Perls (1992): o processo de
fazer contato exige que se esteja alerta, atento, na experiência de
fronteira entre eu e o outro, de forma que os sujeitos se diferenciem,
não se confundam.
É necessário sensibilidade - uma postura construída num
aprendizado, com rigor e com escuta - para compreender a experiência
na relação terapêutica sem instrumentalização automática de conceitos
e técnicas. Mesmo que estes sejam baseados na Gestalt-terapia, eles só
se realizam em ato ético, na postura ética da gestante-terapeuta. Na
abertura, experimentação e suporte da terapeuta enquanto se faz
presente na relação, e reconhece a vulnerabilidade de si mesmo, que
surge daí. A vulnerabilidade, por exemplo, que vem de assumir a
responsabilidade de experimentar a si mesmo e assumir a evidente
contradição entre nossos introjetos do que é ser homem ou mulher e
nossos afetos insurgentes.
A descrição, por exemplo, da vivência de pessoas LGBTQIA + dentro
e fora dos infinitos armários em que são postas a transitar ganha uma
complexidade ainda maior. A experiência da aflição, enquanto um
sofrimento ético-político (Bertini, 2014), não é possível de ser
compreendida num paradigma de saúde-doença fundamentado apenas
num binário normal/anormal de base neurofisiológica e no diagnóstico
como contorno da totalidade do corpo. A defesa constante dessa
complexidade, inclusive como algo que põe a nós próprios, Gestalt-
terapeutas, em movimento na clínica, é necessária para resistir à
Zay Sales; Marcos Barbalho; Paula Moura; Ana Júlia Melo; Lorena Andrade • 581

tendência dessa instrumentalização automática de conceitos, que pode


tomar a forma de uma descrição de ajustamento como conceito
limitante ou um diagnóstico que virá a patologizar e medicalizar.
Dessa maneira, entender a localização de um sujeito na maré de
forças tecnológicas que produzem a sua subjetividade é compreender o
seu campo existencial. Podemos aprender a enxergar como o corpo
coerente dentro do regime da diferença sexual é organizado a partir de
uma fragmentação biopolítica que centraliza o sexo como órgão
produtor de duas possibilidades, opostas e complementares, de
existência humana. Também é possível compreender que essa indústria
de produção de corpos heterossexuais trabalha em função de eliminar
qualquer ambiguidade que possa tensionar seus pressupostos, como,
por exemplo, o de que o sexo é uma categoria natural, de caráter
irrevogavelmente verdadeiro, e não o resultado da catalogação do corpo
recortado e de onde cada parte possui uma função determinada e uma
precrição de suas formas possíveis.
A partir disso, podemos ser capazes de observar como o gênero é
construído e reconstruído em cada corpo na sua relação com as
próteses, procedimentos e tecnologias. Bem como, perceber que a
performance de gênero penetra os afetos, gestos, desejos, olhares,
falas… a performance de gênero normativa está interligada com o
mapeamento arbitrário do corpo com lugares fixos e suas funções.
Reconhecer-se enquanto produto dessas forças é reconhecer, também,
seu papel ativo na manutenção ou na resistência contra essas mesmas
forças, e a partir disso decidir manter-se no mesmo caminho ou sair
dele.
Isso, pois, o regime da diferença sexual binária apresenta esses
dois gêneros como as únicas duas possibilidades de existência humana.
582 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

E, se essa rede de poder não nos impossibilita, no mínimo dificulta


ativamente que possamos oferecer um ambiente em que o limite das
possibilidades de existência não coincida com o limite da fragmentação
biopolítica do corpo segundo a ordem da herossexualidade, esta aqui
empregada como um regime político de poder. Em termos
contrassexuais, cliente e terapeuta farão de seus corpos dildo:
textualidades desvirtuadas de seus propósitos originais,
experimentando a si mesmos com outras próteses, construindo, com
elas, outras subjetividades. O que surgirá dessa experimentação
dildotectônica é inesperado, será sempre único.
Este é um ensaio teórico, em que nos propomos a dialogar com a
teoria do self da Gestalt-terapia e o Manifesto Contrassexual de
Preciado, tarefa essa que possui limitações e parcialidades.
Consideramos importante que mais ensaios, pesquisas e relatos sobre
gênero na Gestalt-terapia sejam realizados, a fim de que este tema não
seja só uma observação a ser considerada na formação de Gestalt-
terapeutas. Trata-se, então, de criar discussões para que os
engessamentos de gênero sejam tensionados nas experiências de
formação gestáltica. Por isso, sendo insuficiente olhar apenas para esse
recorte, também nos cabe tensionar engessamentos a partir de posições
de raça, classe, regionalidade e outros atravessamentos, tanto em nossa
prática profissional como em futuras publicações.

REFERÊNCIAS

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(Org.), Self: Uma polifonia de Gestalt-terapeutas contemporâneos (pp. 333-353). Editora
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na Gestalt-terapia. IN: J. M., Robine (Org.), Self: Uma polifonia de Gestalt-terapeutas
contemporâneos (pp. 13-29). Editora Escuta.

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Modalidades de intervenção clínica em Gestalt-terapia. (Coleção Gestalt-terapia:
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SEÇÃO 4
Section 4
Sección 4

SEMINÁRIO “DESCONSTRUINDO FRONTEIRAS”


Seminar “Deconstructing Borders”
Seminario “Deconstruyendo Fronteras”
27
CISGENERIDADE E GESTALT-TERAPIA
Cisgenderness and Gestalt Therapy
Cisgeneridad y Terapia Gestalt

Convidadas: Antonia Nathalia Duarte de Moraes e Letícia Carolina


Nascimento
Mediação: Paulo Barros

ABERTURA DA LIVE

Paulo Barros: Oi pessoal, boa noite a todos, todas e todes. Obrigade


pela presença de vocês terem topado, Letícia sempre aceitando convites
da galera da Gestalt, estamos usando o teu livro no grupo de estudos do
Núcleo Temático de Diversidade Sexual e de Gênero da Associação
Brasileira de Gestalt-terapia. Também agradeço Nathália, por ter
topado dividir conosco um pouco do que você tem estudado, pesquisado,
vivido. Só para compartilhar com quem está nos acompanhando, essa
proposta, o Seminário, é mais uma das propostas da ABG que tem como
intuito lançar no segundo semestre, um segundo ebook do volume
Vozes e Letras, totalmente voltado para as questões de gênero,
sexualidade e étnico-raciais. Estamos com edital aberto para submissão
de trabalhos, então vai em nosso perfil e confere. Hoje começamos o
Seminário com essa temática e estou muito feliz que você está aqui.
588 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

CISNORMATIVIDADE, ESCUTA CLÍNICA E GESTALT-TERAPIA

Antonia Nathalia Duarte de Moraes

Vou começar falando do prazer que é estar aqui com vocês,


dividindo esse tempo, esse espaço. Letícia, seu livro foi um livro de
cabeceira meu para terminar o doutorado. Então é uma honra gigante
estar aqui, para poder conversar e trocar com vocês. Eu comecei a
estudar gênero e sexualidade há 10 anos, no mestrado, sob orientação
da professora Geórgia Sibele, na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Foi com a temática do acesso de mulheres travestis à
saúde pública, depois de informações recebidas de que estas mulheres
não acessavam à saúde básica. A não ser em situação em que já estavam
nas últimas, com muita dor, algo que nós não entendíamos. Mas quando
fomos a campo, passamos a entender que existiam várias
discriminações que aconteciam nesses espaços de saúde que deveriam
ser lugares de cuidado. Este lugar acabava sendo permeado por muita
violência, desde o não respeito ao nome social, até pedidos
desnecessários de exames de soropositividade em um dentista, por
exemplo. Há várias associações negativas, então muitas vezes elas
preferiram não ir para esse local. Então essa foi a minha porta de
entrada nos estudos de gênero.
A um nível pessoal, como mulher lésbica, sempre me interessou a
temática desde a universidade. Porém, como iremos discutir hoje, as
universidades não tinham estrutura para se discutir gênero e
sexualidade, e isso ainda hoje é uma verdade. Embora essa realidade
esteja um pouco melhor, algumas coisas se repetem e iremos vai falar
um pouco sobre isso.
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 589

Depois destes acontecimentos, começou a me incomodar bastante


o lugar da própria psicologia, não da saúde como um todo, mas das
denúncias que chegavam da psicologia, desse lugar psicoterapêutico,
que acabava também, muitas vezes, sendo um lugar de violência. Onde
as pessoas trans que eram atendidas tinham um discurso pronto ali
dentro, porque elas não confiavam naquele espaço, naquele
profissional, porque eram profissionais que provocavam esse lugar da
normatização buscando a normatização nas pessoas que eles recebiam,
não sendo um espaço de cuidado. Então, no doutorado, resolvemos
seguir pelo caminho do estudo da psicoterapia com pessoas trans, o que
elas diziam sobre a psicoterapia, e também escutamos os psicólogos que
atendiam essas pessoas.
Depois disso, eu passei a refletir muito meu lugar como psicóloga.
Eu tive um hiato depois que terminei o doutorado, repensando tudo. E
é isso que eu estou tentando fazer aqui com vocês, dialogando sobre essa
mudança de perspectiva, essa mudança epistemológica na psicologia,
falando desde o lugar da cisgeneridade. Esse título tem uma
importância gigante: “Cisgeneridade e Gestalt-terapia”, pois temos a
resolução número 01/ 2018 do Conselho Federal de Psicologia que fala
sobre a nossa atuação enquanto psicólogo, diante de demandas de
pessoas trans. Eu vou trazer um trechinho que diz assim:

Considerando as cisnormatividades como discursos e práticas que excluem,


patologizam e violentam pessoas cujas experiências não expressam ou não
possuem identidade de gênero concordante com aquela designada no
nascimento... resolve, entre outras coisas: As psicólogas e os psicólogos no
exercício profissional não serão coniventes e nem se omitiram perante a
discriminação de pessoas transexuais e travestis” (p.2).
590 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Porém, pergunto, isso é o que está na resolução, mas muitas vezes


não chega na prática, não é? Então, eu tenho uma resolução que fala
sobre a cisnormatividade como um discurso que exclui e que leva a uma
prática que exclui. Porém, eu tenho outra realidade... faz dois meses, eu
estava ministrando aula de desenvolvimento infantil no terceiro
período de psicologia, e surgiu a questão das crianças trans, e eu falei
sobre cisgeneridade. Então alguns alunos me perguntaram o que era
isso. Voltei para turma toda e perguntei: alguém sabe o que é
cisgeneridade? Ninguém sabia. Nunca tinham ouvido falar.
Então, na prática, muitas vezes o que nós encontramos é um total
desconhecimento. Por isso reitero que é de uma importância gigante
que estejamos falando sobre esse assunto, hoje, e que comecemos a
realmente habitar esses espaços, porque a psicologia é uma profissão
que lida com a subjetividade, onde gênero e sexualidade estão na base
de qualquer constituição psíquica, seja você hetero, seja você cis, seja
você trans, seja você homossexual. Então como é que não iremos
discutir isso na universidade? Como essa disciplina não é obrigatória?
Para temos esse conhecimento, muitas vezes precisamos buscar por
conta própria. Então, essas questões, elas realmente precisam ser
revistas.
Paulo Barros: Natália, mais cedo, cheguei a colocar no Instagram
da ABG uma enquete, para ver se as pessoas conheciam, se tinham
ouvido falar ou lido algo sobre cisgeneridade e Gestalt-terapia e se elas
se percebiam como pessoas cisgêneras. Mas a intenção com a enquete
também foi de provocar, pois tudo isso que você trouxe é algo que
acontece com muita frequência, principalmente vindo de pessoas cis.
Muitas não sabem que são cis, logo, esse momento realmente é muito
importante para que possamos fazer essa denúncia.
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 591

Antonia Nathalia Duarte de Moraes: Sim, com certeza é. E uma


outra coisa que acontece Paulo, é que muitas vezes, quando você vai
perguntar sobre outras identidades de gênero, é uma associação direta
ao sofrimento, a identidade trans como pessoas que estão em
sofrimento com o seu próprio corpo, ou por um não pertencimento
social. Como se fizesse parte intrinsecamente dessa experiência o
sofrimento, sem colocar esse sofrimento sobre análise, o que é esse
sofrimento, de onde ele vem e muitas vezes ele vem da transfobia, ele
não vem da minha subjetividade, ele não vem do meu eu intrínseco. Ele
vem de um campo, de um contexto que provoca essa dor. Então, na hora
que eu faço essa definição sem colocar esse adendo importantíssimo,
esse sofrimento existe por um aspecto externo. Quero indicar para
vocês o livro da Sofia Favero (2020), autora que fala muito sobre isso, o
“Pajubá terapia: ensaio sobre a cisnorma”. Muitas vezes podemos pensar
nessa clínica “LGBT”, ligada à essa ideia de essencialismo, sem perceber
que esse adoecimento, a expressão desse sofrimento não é algo interno,
e sim contextualizado.
E aí, trazendo para a nossa área, o que diz a GT sobre as identidades
de gênero? O que percebemos Paulo, é que estamos em construção, por
isso, também, a importância desse movimento do núcleo que foi criado
de gênero e sexualidade, dentro da ABG. Nós estamos engatinhando. São
poucas as referências que a gente tem, se digitarmos nas principais
bases de pesquisa, “Gestalt-terapia e identidade de gênero” vamos
encontrar um ou nenhum artigo. Então, se esse profissional resolve
procurar, onde é que ele vai encontrar?
Então, o que percebemos de muitos Gestalt-terapeutas é um
discurso vazio de generalização, de “olhar o todo”, “vamos suspender os a
prioris”, “vamos ver a transexualidade como uma figura, mas que está
592 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

dentro de um fundo que pode ou não emergir”. Vemos discursos lindos,


generalizações que realmente não levam em consideração que nós
precisamos nos aprofundar no contexto sócio-político daquele sujeito
que está ali na minha frente. Eu preciso entender qual é a realidade que
ele está vivendo, quais são as dificuldades que ele enfrenta, quais são as
demandas que essa pessoa tem. Existe muito um discurso de que “as
pessoas trans não são só trans”, mas as pessoas trans também são trans.
É suficiente a gente olhar o todo? E se a gente realmente não
problematizar isso, não se aprofundar nesse conhecimento? Uma das
pessoas que eu entrevistei no doutorado trouxe na sua fala a indignação
de que ele acabava perdendo o tempo da terapia, explicando a sua
psicóloga conceitos básicos: o que é passabilidade, o que é não binarismo,
o que é cisheteronormatividade. E ele dizia: “Eu não tenho problema
nenhum em explicar. Porém, eu acho que o espaço da terapia é um espaço
muito caro financeiramente mesmo e muito precioso também para eu
estar gastando tempo com algo que eu acho que a minha psicóloga já
deveria saber”. Isso é uma questão muito importante para pensarmos,
porque de fato nós já deveríamos saber. E se eu não sei o que eu faço?
Muitos psicólogos acabam recorrendo ao encaminhamento.
Quando eu terminei o mestrado, acabei recebendo muita indicação
de atendimentos por ter feito um mestrado na área. As pessoas chegavam
até mim depois de ter passado por dois, três psicólogos que alegavam não
ter conhecimento. Como soa violento também você ir para um psicólogo,
e ele lhe dizer: “eu não tenho conhecimento para te atender”. O que é que
eu sou? De que mundo eu venho? De que planeta eu venho que você
psicólogo não tem conhecimento para lidar com a minha existência? Eu,
por exemplo, enquanto mulher lésbica, procuro uma boa psicóloga, e
ponto. Eu não procuro uma psicóloga especialista em mulheres lésbicas,
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 593

a não ser que eu esteja querendo fazer algo muito pontual, mas a própria
necessidade disso, de procurar um psicólogo, especialista em gênero, fala
de uma violência, fala de um desconhecimento da própria psicologia, que
é preciso repensarmos e problematizarmos
Se eu não tenho conhecimento, o que eu faço? Eu vou atrás, eu
procuro. Eu não coloco para outra pessoa. Eu não coloco para depois, eu
não me desresponsabilizo desse lugar. Porque até quando eu vou ficar
encaminhando pessoas que fogem a uma determinada norma, um
determinado padrão? E se o meu cliente é cis e nesse processo ele se
descobre uma pessoa trans, eu vou encaminhar, sempre que isso aconteça?
Também é preciso falar dessa violência que acontece dentro da própria
psicologia, de pessoas que estão até bem intencionadas, que dizem: “eu não
me sinto segura para atender, então eu vou encaminhar”. Mas o que é que
fala de mim essa minha “não segurança”, esse meu “não interesse” em
buscar? Que possamos olhar para as nossas próprias transfobias, porque
eu também sou transfóbica, eu também sou homofóbica. A gente está
dentro de uma estrutura, logo, precisamos olhar com desconfiança para
essas nossas atitudes, para os nossos distanciamentos.
Paulo Barros: Natália, isso que você trouxe sobre a não
responsabilização me chama muita atenção, pois o quanto falamos em
Gestalt-terapia sobre responsabilidade. O quanto isso não acontece em
muitos atendimentos por parte do(a) Gestalt-terapeuta. Eu não me
responsabilizo e vou passando, passando e não me questiono, não olho
para esse movimento que estou fazendo. E às veze em um discurso que
parece ser bonito, como : “Não, mas eu estou fazendo isso porque é o
melhor para a pessoa”. Mas é só isso mesmo?
Antonia Nathalia Duarte de Moraes: é esse “é só isso mesmo” que é
a chave, a gente precisa se perguntar, precisa colocar a lupa para si
594 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

mesmo. Acontece que muitas pessoas confundem lugar de fala com “eu
não posso falar”. Lugar de fala com “eu não vou me especializar” nesse
conhecimento, eu não vou me aprofundar nesse conhecimento, e não é
sobre isso. Algumas pessoas se utilizam disso para silenciar. Está aí
Djamila, com o livro dela “Lugar de fala”, para quem quiser se aprofundar.
Eu procuro aqui no Google acadêmico ou procuro aqui na Scielo e
não acho informação. Então não tem, então não vou procurar esse
conhecimento? Mas esse conhecimento passou na academia? A forma
que mais podemos aprender é escutando as pessoas. E aí tem livros
maravilhosos autobiográficos. Ao invés de você começar por Judith
Butler, uma realidade bem distante da nossa, leia “Viagem solitária”, de
João Nery (2019). Leia “E se eu fosse puta?”, de Amara Moura (2020), que
é maravilhoso, onde ela traz a realidade dela de professora e
profissional do sexo, e faz interlocução desses lugares. Leia Jaqueline
Gomes de Jesus, leia a própria Letícia Nascimento que está aqui com a
gente. Vai ler Céu Cavalcanti, Emily Mel, Sofia Favero. A gente tem
tantas autoras e autores dentro da própria psicologia que estão fazendo
também essa implosão, de dentro para fora, depois de alcançar esses
espaços, mas esses espaços também só foram alcançados devido à muita
luta que veio das bases, que veio das comunidades, das ONGs, que veio
dos movimentos de mulheres, de outros espaços que foram permitindo
e causando tensionamentos para que hoje essas pessoas também
possam falar de dentro da psicologia.
Muitas vezes, nos cursos de gênero e sexualidade, eu faço a
pergunta: “Quando é que você se descobriu cisgênero? Como você se
percebeu homem cis? Quando é que você se percebeu, mulher cis?” E as
pessoas dão um bug! Geralmente dou um tempinho, elas param,
pensam, e quando elas voltam a falar, elas dizem “Eu nunca tinha
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 595

pensado sobre isso, porque para mim foi tão natural, eu sempre fui
assim, é falar do que eu sou.”
E quando a gente se coloca nesse lugar do natural, a gente não se
pensa, e a gente está colocando o outro no lugar do não natural, do
desvio, do transtorno. E isso é um perigo muito grande, quando coloco
a minha experiência da cisgeneridade como natural. Faz mais de meio
século que a gente escutou a Simone de Beauvoir dizendo “não se nasce
mulher, torna-se mulher”, e mesmo assim a gente não se pensa. Quando
foi que eu me tornei mulher? Quando foi que eu me tornei homem?
Quando foi que eu me percebi dessa forma? Nessas identificações, o que
foi que eu introjetei que realmente eu me identificava? O que foi que eu
introjetei que não tinha nada a ver comigo, e eu o fiz por pressão?
Então, o meu ser homem e o meu ser mulher, passa por essas
demandas, passa por esses atravessamentos violentos também. E eu me
pensar, eu me perguntar, eu me questionar, é um papel importantíssimo
para a própria psicologia, para os próprios psicólogos. Assim vamos
percebendo as limitações do nosso olhar sobre essa lente da branquitude,
da cisgeneridade, da heteronormatividade. E só conseguiremos perceber
isso, se começarmos a nos questionar também enquanto cisgeneridade.
Muitas pessoas respondem: “eu só me percebi cisgênero, quando eu
estava aqui no curso do gênero e vocês começaram a falar sobre isso.
Quando eu escutei a palavra pela primeira vez”. É quase um movimento
de: a transexualidade inventou a cisgeneridade. Antes, não tinha isso. E é
justamente o oposto. Foi a cisgeneridade que inventou a transexualidade,
então que os inventores desfaçam essa invenção.
Não cabe a nós, pessoas cis, esperar que pessoas trans venham nos
salvar da ignorância. É realmente um movimento de nos convidarmos,
eu também me incluo, a pensar de que maneira isso afeta a minha escuta
596 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

na clínica. Tem um texto da Dumaresq (2016) que é lindíssimo também,


que é “o ensaio travesti sobre a escuta cisgênera”, onde ela justamente
questiona isso, ela diz que as pessoas até permitem que a travesti fale,
mas não permitem associar a origem da transfobia à própria
cisgeneridade, elas não permitem se ver nesse lugar e se pensar nesse
lugar. Então, quem criou a transfobia foram os extraterrestres? Não,
fomos nós.
E aí tem uma questão que as pessoas sempre perguntam para mim:
“E quando uma criança, ela se percebe trans, não é cedo demais para a
gente falar sobre isso, para ela se perceber assim?”. E aí eu sempre
pergunto de volta: Não é cedo demais para cisgeneridade? Não é cedo
demais para que antes de uma criança nascer a gente já esteja impondo
uma série de tecnologias, desde a cor do quarto até às projeções que eu
faço para aquela criança, isso não é cedo demais? Por que é que a gente
nunca se perguntou se é cedo demais para cisgeneridade? Nunca é cedo
demais para a cisgeneridade, antes mesmo desse nascimento.
Paulo Barros: É o esperado. E pensando aqui na galera que está nos
acompanhando. Fico me perguntando como vai chegando aí para vocês.
A nossa proposta realmente essa, poder difundir cada vez mais. E
incomoda mesmo, não é? É desconfortável, mas é necessário, é muito
necessário que possamos olhar para as estruturas. Esse é o nosso
movimento, a nossa tentativa.
Antonia Nathalia Duarte de Moraes: Já me encaminhando para
uma conclusão, trago aqui os artigos da Favero (2020b; 2020c). Ela
propõe pensarmos em uma nova ética, que possa encontrar a
possibilidade nas brechas, atuar na fronteira, afinal, o que é esse nós de
que se fala tanto? Então, essa ação ela só acontece nesse espaço. Nem
entre nós, nem entre eles, mas no próprio entre. E qual seria o lugar mais
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 597

apropriado, senão por meio do entre para denunciar a fabricação do nós


e dos eles? Que nessa fronteira entre o nós e os eles, a gente perceba a
falácia desses dois lugares. Que a gente possa encontrar a possibilidade
de construção na própria psicologia.
Eu finalizo aqui também com um texto que mexeu muito comigo,
que é o “Patologizações, Autodeterminações e Fúrias: Uma breve carta
de amor”, da Céu Cavalcanti, e está na coleção: “Psicologia,
travestilidade e transexualidades: Compromissos ético, políticos,
despatologização”. Foi uma coleção do CRP de Santa Catarina de 2019,
recomendo a todo mundo. Ela começa o texto trazendo uma fala da
Cláudia Rodriguez: “Por isso escrevo, por todas as travestis que não
alcançaram saber que estavam vivas, pela culpa e vergonha de não
serem corpos para serem amados e morrerem jovens, antes de serem
felizes. Morreram sem haver escrito nenhuma carta de amor” (p.28). E
aí ela dedica o texto dela à todas essas pessoas. E ela traz uma fala muito
importante da Lorde também: “os nossos silêncios nunca vão nos
proteger, é uma ilusão a gente pensar que o silêncio nos protege, muito
pelo contrário, estabelecer alianças só é possível quando a gente quebra
com esses silêncios” (p.39). Eu acho que a Gestalt-terapia estava
silenciosa demais por muito tempo a respeito das questões de gênero,
de sexualidade e que ela começa a falar, ela começa a falar através dessas
vozes. E ela finaliza com uma citação da Lohana Berkins. Acho que é uma
boa forma de finalizar aqui, ela diz: “O amor que nos negaram é nosso
impulso para mudar o mundo. Todos os golpes e desprezo que sofri, não
se comparam com o amor infinito que me rodeia nesses momentos.
Fúria travesti, sempre” (p.41). Aí eu pego sua fala, e é isso que eu sinto
nesses momentos aqui. Quando a gente se reúne, quando a gente está
produzindo alguma coisa. Quando a gente está fazendo política dentro
598 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

da academia, fora da academia. Eu sinto isso, porque realmente existe


aqui um amor infinito que nos dá força para seguir diante desses golpes
e desse desprezo. Assim, eu encerro minha fala.

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Moira, A. (2020). E se eu fosse puta? Hoo editora.

Nery, J. W. (2019). Viagem solitária: a trajetória pioneira de um transexual em busca de


reconhecimento e liberdade. Editora Leya.

Ribeiro, D. O que é lugar de fala? (2017). Letramento. (Feminismos Plurais).


Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 599

CISGENERIDADE

Letícia Nascimento

Eu que agradeço o convite da Associação Brasileira de Gestalt-


terapia, para estar mais uma vez nesses diálogos, que são tão a
importantes, que são tão necessários de serem feitos. Não sistematizei
muito o que eu vou falar, eu vou falar algumas coisas, eu sempre prefiro
falar daquilo que me atravessa, o que me mobiliza quando penso nas
relações que a escuta terapêutica possui o Transfeminismo,
(NASCIMENTO, 2021), tema que pesquiso, título do livro que publiquei
na Coleção Feminismos Plurais, com coordenação de Djamila Ribeiro.
Existem várias maneiras das temáticas nos atravessarem, devemos
pensar nesses atravessamentos, também no que faremos com eles. Por
isso, acho válido que Gestalt-terapeutas produzam materiais
específicos sobre as relações entre esta abordagem terapêutica e as
questões de gênero e sexualidade. Precisamos partir do entendimento
que gênero e sexualidade fazem parte do que nós somos, não pode ser
apartado de nós, por isso é fundamental que não apenas a Gestalt, mas
a psicologia como todo dedique esforços para compreender as
interrelações entre gênero e sexualidade e a constituição de nossas
subjetividades e promoção da saúde mental.
É muito entristecedor, de certa forma é chocante saber que
profissionais recusam certos atendimentos sobre questões trans*,
porque não se sentirem aptos. Talvez, me perguntem: “Mas, você acha que
terapeutas tenham que estar preparades para tudo?”. Ao que respondo:
“A cada problema novo que surge no consultório tais terapeutas
encaminham suas/seus clientes para outres profissionais ou essa é uma
600 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

postura apenas em relação às questões trans*?”. Precisamos refletir, pois,


se chega alguém com alguma outra demanda que não é do seu campo e
você continua atendendo, por quais razões quando chega uma pessoa
trans* para o atendimento você não tem a mesma disponibilidade?
É algo que não está dentro do meu campo, mas eu posso aprender
com, durante o processo, na relação terapeuta/cliente, e aprender em
outros momentos. Afinal, não podemos pensar a terapia como espaço
exclusivo para a aprendizagem da terapeuta, do terapeuta. É óbvio que
em alguns momentos da terapia a/o terapeuta aprenderá sobre as
vivências das pessoas trans*, mas é fundamental que essas/es
profissionais busquem conhecimentos, informações, é preciso
aprofundamento, eu faço isso como professora. Isso é, inclusive, próprio
de várias profissões, de inúmeras profissões. Quando você se depara
diante de um caso que não é da sua rotina, você vai ter que se debruçar
sobre aquela demanda.
Dentro de um processo terapêutico nós precisamos entender que
não podemos separar as pessoas das demandas sociais que atravessam
suas vivências. Assim, não conseguimos tirar a raça das pessoas, tirar a
identidade de gênero ou orientação sexual das pessoas. A gente precisa
entender que nós somos complexos! Precisamos entender que raça não
é a única demanda que a gente leva para o consultório, do mesmo jeito
que quando eu chego no meu espaço de terapia, eu não vou para falar
apenas da minha travestilidade, mas eu também vou falar deste lugar
de travestilidade. Ou seja, é um lugar importante. Então, eu posso falar
sobre a enorme dificuldade que é ser uma mulher gorda. Mas eu não vou
falar apenas porque sou uma mulher gorda, porque eu também sou
negra, também sou travesti, então isso também vai atravessar as
minhas experiências.
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 601

Precisamos entender essas várias camadas que vão nos compondo


e pensar as relações entre essas camadas. Então, não se trata de separar
uma camada das outras. Em alguns momentos a gente até pode fazer
esse entendimento, de como essas camadas se separam, mas estão ali
numa relação ao mesmo tempo. E uma demanda “a” pode ter mais força
naquele momento, mas vai haver esse processo integrativo dessas
diversas camadas que nos compõem. No artigo intitulado “Eu não vou
morrer: solidão, autocuidado e resistência de uma travesti negra e
gorda para além da pandemia” tento costurar maneiras de pensar esses
atravessamentos de maneira integrada (NASCIMENTO, 2020).
Essas conexões precisam ser exploradas e para isso é importante
buscar conhecimentos de pessoas trans*, negras, gordas, pessoas que
produzem a partir de suas experiências. É fato que nem os cursos de
psicologia e nem as formações de Gestalt, nunca vão conseguir abordar
tudo. Mas, com certeza as ferramentas terapêuticas aprendidas nesse
processo de formação inicial e contínua das/dos psicólogas/os podem
ser alteradas quando conectadas as saberes e experiências de outros
campos para além do campo normativo da ciência psi. Isso acontece
quando alguém a partir do seu conhecimento em Gestalt-terapia
começa a pensar as experencias de pessoas trans*, buscando conexões
de um modo não hierárquico de escuta empática e atenta.
A questão é: como as ferramentas terapêuticas que eu domino
podem ser úteis no processo de tratamento do sofrimento psíquico
da/do minha/meu cliente, de maneira a deslocar o foco do que eu sei a
partir destas ferramentas que domino para como posso usar essas
ferramentas a partir de uma escuta que coloca a pessoas trans* e/ou
negras e/ou gordas no centro deste processo. Essas relações não estão
prontas, elas acontecem e são percebidas no processo, tanto as relações
602 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

entre as ferramentas terapêuticas e as experiências sociais de quem


escuto, quanto as relações entre as muitas camadas que compõem a
subjetividade também de quem escuto, é margeando essas fronteiras de
modo sensível que o processo terapêutico acontece.
Mas, nem sempre a sensibilidade permite que essas conexões
sejam feitas, as vezes nem o/a terapeuta, nem a/o cliente percebem as
conexões entre suas dimensões raciais, sexuais, de gênero, de classe,
dentre outras. Contudo, é o terapeuta o profissional responsável que
precisa tanto exercer uma escuta necessária para evidenciar as
possíveis conexões colocando-as em análise junto com a/o cliente. Nem
todas as pessoas trans* entendem profundamente o modo como essa
identidade de gênero específica singulariza e diferencia nossa relação
com um mundo construído a partir da cisheteronormatividade. E
muitas vezes, essa não percepção é resultado de um intenso processo de
silenciamento da transgeneridade como algo que faz parte de nós. Essas
marcas e camadas precisam ser desveladas, trabalhadas, embaralhadas.
Porque a gente também tende a separar, a não nos perceber de
maneira a integrada. A nós percebermos de maneira estanque. Então,
parece que a travestilidade, ela é uma demanda que está separada das
outras, mas mesmo quando ela não vem como mote principal, ela está
ali, numa relação com variadas outras experiências que eu estou tendo.
A gente precisa dessa percepção clínica, dessa percepção terapêutica.
Não é que a/o terapeuta vai me dar essa relação, mas o processo
terapêutico possibilita que eu amplie minha percepção sobre mim
mesma, sobre inclusive as muitas em mim. Amplie os sentidos sobre
aquilo que eu não consigo sentir, não consigo perceber, ou que posso
sentir e perceber de outros modos. Para mim, a terapia é
fundamentalmente sobre a ampliação das percepções.
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 603

Nessa ampliação de percepções é fundamental compreender a


transgeneridade e de modo mais amplo, a identidade de gênero como
um analisador importante das nossas relações sociais dentro de um
contexto terapêutico. Pontuo identidade de gênero, pois é
imprescindível compreender que todes temos identidades de gênero. É
possível que terapeutas se preocupem em ter que trabalhar com gênero
apenas quando atendem pessoas trans*, ou pessoas da comunidade
LGBTQIAP+, ou ainda mulheres, todavia, preciso enfatizar com
veemência que numa sociedade como a nossa profundamente marcada
pela colonialidade, gênero é um eixo estrutural de opressão, portanto
perpassa as nossas mais variadas experiências. Penso a colonialidade a
partir das ideias de Anibal Quijano (2015) e Maria Lugones (2008).
Deste modo, homens cisgêneros possuem identidade de gênero,
ampliando, pessoas cisgêneras possuem identidade de gênero. A
identidade de gênero não é atributo de pessoas trans*, nós não
nascemos com o nosso gênero, nós construímos uma identidade de
gênero ao longo da nossa trajetória de vida. Como Judith Butler (2017)
assevera, nós fazemos gênero ocultando os rastros desse processo de
produção. Historicamente, as pessoas cisgêneras entendem que o seu
gênero não é construído, o que é uma falha muito grande. Todo o gênero
passa por um processo de construção. A principal questão da discussão
acerca da cisgeneridade é exatamente entender isso que as pessoas,
todas elas possuem identidade de gênero, não só apenas as pessoas
trans*. O fato de desde o nascimento as pessoas serem identificadas
como homens, mulheres e se entenderem, minimamente, dentro dessa
identidade, isso não significa dizer que essas pessoas não estão
construindo o seu próprio gênero. Inclusive é uma incapacidade nossa,
604 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

da nossa própria percepção de não entender os variados modos que a


gente vai construindo a nossa feminilidade ou masculinidade.
Agora eu tenho pensado muito sobre mim e sobre como apesar de
ser uma feminista, de ser uma mulher emponderada, eu tenho
introjetado em mim essa ideia de um amor, de um relacionamento, da
necessidade de ter um parceiro. O quanto isso, na verdade, acaba sendo
uma demanda social e não uma demanda minha, em particular. E como
nesse processo vamos inclusive se anulando, porque parece que é
fundamental que você esteja numa relação. Esse tipo de construção, é
uma construção coletiva que o machismo nos coloca. E muitas de nós
não conseguem perceber isso. Isso está para além, eu posso perceber
isso e ter um relacionamento, não é sobre não ter ou sobre ter. É sobre
conseguir perceber essas relações e até que ponto a minha
transgeneridade também está enlaçada nessas mais variadas questões.
Para mim a terapia, ela é muito esse espaço de fazer links, de ter
insights, de ver relações, de ter percepções que nós não conseguimos, na
maior parte das vezes, fazer sozinhas. Essa possibilidade de percepção
das muitas camadas que me constituem, das relações entre minhas
vivências e minha identidade de gênero ficará comprometida se
minha/meu terapeuta não estiver disposta/o a pensar as questões de
gênero, não é sobre saber tudo sobre transgeneridade, ou feminismo, o
mais importante, de certa maneira, é a disposição para aprender.
Quando eu fui escolher a minha terapeuta, escolhi alguém que
sabia sobre gênero e sexualidade. Eu não fui escolher alguém que não
sabia. Porque exatamente eu queria evitar alguns processos, inclusive
escolhi uma psicóloga que também é negra, porque a dimensão racial é
importante para mim. Eu escolhi pensando em ter uma acolhida
melhor, não estou dizendo que uma psicóloga branca não poderia me
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 605

acolher, mas já ouvi tantas histórias de negação do racismo em


processos de terapia que pensei em reduzir os riscos. A escolha de
uma/um terapeuta é sempre um processo de sensibilidade, pensei que
sabendo que esta pessoa tivesse noções básicas sobre o feminismo e o
racismo o acolhimento das minhas questões fosse mais (a)efetivo.
No momento de escolha da minha terapeuta, eu estava com
questões urgentes, eu não queria encontrar alguém que eu tivesse que
parar de falar sobre demandas em ebulição em mim para explicar
conceitos transfeministas ou raciais. Então eu escolhi uma mulher
cisgênera, negra e feminista para retomar meu processo terapêutico, eu
a escolhi para caminhar junto comigo nesse processo que é meu, mas
que compartilho com ela, a terapia é um trabalho coletivo. Fico mais
segura e confortável por saber que minha terapeuta compartilha
comigo percepções críticas sobre a realidade social em uma perspectiva
interseccional.
Se eu procurei uma profissional que pensasse interseccionalmente
é exatamente por compreender a psicologia como área normativa que
se baseia numa construção de conhecimento colonial,
euro/brancocentrada e cisheteronormativa. É urgente que mudemos
isso, como pensar a psicologia em um país como o nosso profundamente
marcado pela colonialidade? Nosso país é racista, 54% da população
brasileira é negra, nesse contexto como a psicologia pode se eximir de
pensar essas questões? Enquanto a psicologia se eximir de pensar as
questões raciais, de gênero e de classe numa perspectiva interseccional
se limitará nas possibilidades de promoção da saúde mental. Acredito
que a leitura de Carla Akotirene (2019) e Jota Mombaça (2017) possam
contribuir bastante para pensarmos o conceito de interseccionalidade.
606 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Vivemos numa sociedade racista, machista, LGBTQIAP+fóbica,


elitista, não podemos ser negligentes com essas questões e
principalmente não podemos negar que essas violências produzem
impactos na saúde mental. Vivemos numa sociedade na qual a maior
parte da população é composta por mulheres e por negros, entretanto
os espaços de poder são ocupados majoritariamente por homens
brancos cisheterossexuais, é preciso pensar sobre a produção dessa
falta de representatividade.
Se você não entende sobre machismo não deveria atender
mulheres! Parece muito extremista essa afirmação, parece também que
todo sofrimento vivido por mulheres estará relacionado com o
machismo. Não é pensar o machismo como principal eixo de análise em
todas as experiências vividas por mulheres, todavia não é algo que
devamos desprezar. A verdade é que o machismo, o sexismo, a misoginia
são analisadores presentes em nossas experiências de diferentes
modos, as vezes com uma presença intensa, protagonizando violências,
outras vezes como contexto. Perceber essas nuanças é um desafio.
Agora, você pode ser um bom terapeuta sem entender de
machismo e até atender satisfatoriamente mulheres, mas é possível que
existam elementos relacionados com a dimensão do machismo que se
colocados na equação terapêutica mudariam a percepção de ambos na
análise. É uma opinião minha, posso estar enganada, é como se ao
negar-se perceber como as questões de gênero, raça e classe atravessam
a realidade social a/o terapeuta perdessem uma parte do chão no qual
as experiências da/do cliente acontecem, é como se esse espaço
experiencial fosse limitado, reduzido.
Precisamos considerar essa incapacidade perceptiva um fruto do
próprio racismo, do machismo, do sistema capitalista, da colonialidade,
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 607

temos dificuldades de perceber e falar sobre essas questões, pois é


efetivamente este silêncio e negligência que garantem a constante
(re)produção dessas violências. Quantas pessoas tem dificuldade de
perceber os sofrimentos produzidos pelo racismo ou pela transfobia? A
terapia não pode ser mais um desses espaços de silenciamento dessas
questões, a terapia precisa produzir condições para ampliar essas
percepções.
Eu me descobri uma mulher gorda na terapia e partir de então
passei a perceber os efeitos da gordofobia no meu cotidiano. A terapia
nos permite descobertas, aprofundamento de questões, criação de links
entre diversas experiências, ampliação de percepções, a terapia nos
movimenta, nos convida a dançar. A terapia me possibilita dançar
comigo mesma e sobre mim. Mas, quando não trago o racismo, o
machismo e a luta de classes para a terapia é como se certos ritmos que
meu corpo precisa dançar fossem excluídos do processo.
A terapia é um convite para dançar e as vezes a/o cliente não pensa
que pode dançar certos ritmos, a/o terapeuta vai precisar estimular que
passos diferentes sejam aprendidos, que ritmos novos possam
acompanhar a dança. É importante considerar que muitas pessoas
trans* tem dificuldades de falar de suas experiências, assim como
muitas mulheres negras. Assim, o processo terapêutico vai
possibilitando que romper com o silêncio e empodere a palavra para
falar de si reconhecendo as muitas camadas que nos constituem como
sujeites. Na universidade isso acontece o tempo todo, alunas e alunos
que se descobrem negras e negros após passar a discutir as relações
étnico-raciais, já ouve diversas vezes a frase: “eu já sofri racismo, mas
não sabia que era racismo!”, o mesmo acontece com alunas que após
minhas aulas relatam perceber que vivem e cresceram em um ambiente
608 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

machista. Esses exemplos, mostram a importância de realizar


encontros com pessoas que pensem sobre essas temáticas de maneira
crítica.
Nós temos um país que é extremamente marcado por violências
que são de origem colonial, de um modelo de estratificação social
baseado em raça, baseada em gênero, baseado em classe. Nós não
podemos admitir que a psicologia, que a Gestalt-terapia não pense essas
violências coloniais, como eu enquanto professora, não posso me
permitir pensar em uma escola que não esteja alinhada com as questões
de raça, de classe, de gênero, em uma postura crítica. Em uma dimensão
crítica, porque essa sociedade que nós vivemos, ela tem um
posicionamento bastante nítido sobre questões raciais, de classe de
gênero. É uma perspectiva bastante conservadora.
Se sou uma/um terapeuta que se silencia frente a estas demandas
sociais eu continuo a recalcar, negligenciar tanto em mim, quanto nas
relações terapêuticas que estabelece as possibilidades de discussão
desses temas. A terapia não é lugar para colocar coisas silenciosamente
debaixo do tapete, pelo contrário. Em minha formação com
arteterapeuta tive a oportunidade de reler um texto lindo, uma
entrevista da Suely Rolnik com o Hubert Godard (2006), intitulada
“Olhar cego”. Talvez, “olhar cego” seja um termo capacitista, com o
conhecimento que tenho hoje consigo fazer essa análise. Apesar, desse
termo capacistista, trago como possibilidade de reflexão uma imagem
apresentada no texto que remete a uma descoberta arqueológica da
França de duas estátuas de bisões feitas de argila, extremamente
conservadas, semelhantes em tudo menos no olhar, uma vez que
enquanto uma das estátuas tinha os olhos côncavos a outra tinha os
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 609

olhos convexos, o que pode nos remeter a possibilidade de olhar para


dentro e para fora. Para mim, isso é a terapia.
É quando a gente consegue desbloquear esse olhar que ao mesmo
tempo é para dentro e para fora, porque a gente está numa relação. E
essas múltiplas relações que possuem múltiplas causas, múltiplas
efeitos que não é efeito, é multicausal, é multi-efeitos, uma relação
muito complexa. Desalinhar essas relações é o lugar da terapia. Para isso
que a gente faz terapia, inclusive. Eu faço terapia para isso, inclusive
porque tenho consciência de que consigo até desembaralhar algumas
linhas pelas minhas trajetórias de já ter feito terapia, pelos meus
acessos a inúmeros referenciais. Mas, eu reconheço que quando eu
estou com uma terapeuta, eu consigo pegar essas lãs, essas linhas que
estão muito emaranhadas e vem uma outra mão junto comigo, e eu
começo a perceber outros caminhos, que eu poderia fazer de outra
forma, mas que essa pessoa que está comigo começa a perceber de outro
modo, e eu começo a perceber, “é isso, faz sentido. Isso me atravessa
também.” Mas a gente precisa estabelecer uma frequência e essa
frequência, ela só pode ser dada se essa pessoa que está nesse processo
terapêutico, ambas as pessoas precisam de abertura.
A gente fala muito na abertura do paciente, do cliente, mas a/o
terapeuta também precisa ter muitas aberturas para inúmeras coisas
que podem ser ditas, que podem ser faladas e que a gente vai precisar se
mobilizar em torno daquelas questões. Então, é um convite que a gente
faz, para a gente pensar mais sobre a cisgeneridade, sobre a identidade
de gênero, sobre a transgeneridade. Tenha a certeza de que tudo isso
está na relação. A gente costuma pensar a diferença como algo que é
propriedade de algum lugar, de alguém, de algo, mas a diferença ela está
sempre na relação. A diferença nunca está em um lugar específico, ela
610 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sempre está na relação. Não sou eu que sou diferente, não são as pessoas
cis que são diferentes.
A diferença só pode ser entendida na relação entre as pessoas. A
diferença ela só pode ser percebida na relação entre as pessoas trans e as
pessoas cis. Então, a diferença, ela não está no trans, na trans, não está no
cis, na pessoa cis, a diferença está na relação. Por isso que eu tenho que
pensar branquitude, a negritude, as diversas questões, étnico-raciais, de
classe, as diversas questões de identidade, de gênero, de orientação
sexual, as percepções sobre as diferenças são construídas nas relações,
A partir dessas análises eu irei encontrando o meu lugar de fala, de
onde eu parto para pensar a minha existência, o lugar que ocupa e por
isso mesmo marca o modo pelo qual eu me relaciono com o mundo, como
eu posso falar deste lugar? Nesse processo eu me entendo com alguém
que tem uma identidade de gênero, uma identidade étnico-racial e um
pertencimento classe, que lugares eu ocupo nessa estrutura colonial?
Além de perceber este lugar de onde falo, penso, vivo e sinto, vamos
aprendendo a falar de nós, para nós e de nós para as outras pessoas.
Na relação terapêutica tanto a/o terapeuta como a/o cliente precisa
ter percepções sobre seus lugares de fala. Eu sou uma mulher branca e
cisheterossexual que atende uma mulher travesti negra, estamos nessa
relação, a percepção dos diferentes lugares que ocupamos precisa ser
considerada. Não é sobre se colocar no lugar do outro, cada um só vive
na sua pele, mesmo que você tente nunca conseguirá calçar o meu
sapato, vestir a minha pele, sentir o que eu sinto diariamente como uma
travesti negra e gorda.
O que eu quero da minha terapeuta não é que ela se coloque no meu
lugar, eu desejo que ela me sinta do lugar dela. Que quando ela me
atenda ela não se coloque no centro, no cerne de quem ela é, que ela se
Antonia Natalia Duarte de Moraes; Letícia Carolina Nascimento • 611

permita perceber as conexões entre as minhas experiências e as dela,


assim criamos pontes, habitamos fronteiras, nos colocamos na periferia
de nós, onde os encontros são possíveis. Que possamos perceber os
estranhamentos que nos atravessam, que pensemos sobre isso, sobre
possibilidades de deslocamentos possíveis e necessários, respeitando
nossos ritmos. Os nossos lugares precisam se encontrar sem se impor,
sem hierarquias, sem a sobreposição de um lugar sobre o outro,
devemos compartilhar nossas percepções. Que possamos ter abertura
para estas relações.

REFERÊNCIAS

Akotirene, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato


Aguiar. 13ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

Godard, Hubert. Olhar cego. Entrevista com Hubert Godard, por Suely Rolnik. In:
ROLNIK, Suely. (Org.). Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você
cabe o sopro. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2006. p. 73-80.

Lugones, Maria. Colonialidad y género, Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, nº.9, pp. 73-101,
julio/diciembre 2008.

Mombaça, Jota. Notas estratégicas quanto aos usos políticos do conceito de lugar de fala.
Buala, 2017.

Nascimento, Letícia Carolina Pereira. Eu não vou morrer: solidão, autocuidado e


resistência de uma travesti negra e gorda para além da pandemia. Revista Inter-
Legere, v. 3, n. 28, p. 1-22, 2020.

Nascimento, Letícia Carolina Pereira do.Transfeminismo. SãoPaulo:Jandaíra, 2021.

Quijano, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Contextualizaciones


latinoamericanas, v. 2, n. 5, 2015.
28
NÃO-MONOGAMIA
Non-monogamy
No monogamia

Convidadas: Thereza Cristina Santos e Raíssa Éris Grimm Cabral


Mediação: Paulo Barros

Esta live foi composta por diálogos constantes entre as convidadas,


por este motivo a transcrição não será separada em capítulos. Os títulos
escolhidos por Thereza e Raíssa para suas falas foram "Divagações
teórico-poéticas sobre não monogamia" e "A não-monogamia como um
modo de vida: a potência do ruído e da promiscuidade na fronteira de
contato", respectivamente, boa leitura!

ABERTURA DA LIVE

Paulo Barros: Olá, boa noite a todos, todas e todes. Vamos começar
mais um Seminário Descontruindo Fronteiras. Muito obrigade por
vocês terem topado esse convite, esse é um projeto da Associação
Brasileira de Gestalt-terapia (ABG) para falar de temáticas que são
pouco faladas na Gestalt-terapia e não somente nela, então nossa
proposta é convidar alguém que seja da Gestalt-terapia e outra que não
seja para poder realizar este encontro, essa troca, e hoje, eu irei mediar.
Para falar dessa temática, estamos hoje com Raíssa e Thereza, teremos
uma horinha para ir trocando essa ideia, então vamos lá.
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 613

Thereza: Gostaria primeiramente de agradecer o convite, de estar


aqui, para mim é uma honra imensa dividir esse espaço com Raissa, que
eu tenho uma enorme admiração. Raissa já esteve no grupo de pesquisa
da gente, em um momento que foi bem rico, onde trocamos umas ideias,
a reunião extrapolou o horário combinado, de tão gostosa que foi. Desde
então, sigo admirando e acompanhando o trabalho de Raissa nas redes.
E aí, vou começar a falar um pouquinho como foi a minha aproximação
com esse campo da não monogamia. Primeiro, me atravessou como uma
questão de vida mesmo, quando entrei no doutorado a proposta era
outra e ao longo do percurso, pois ainda estou no processo de qualificar
o projeto, mudei a rota e tenho me aproximado dessas leituras,
principalmente de uma leitura mais problemática, crítica, sobre a não
monogamia. Agora há pouco abri uma caixinha de perguntas no
Instagram e Marisa, que é doutorande junto comigo, fez uma questão
falando sobre esta onda coach que tem falado sobre não monogamia nas
redes. Temos assistido a isso e a temos que ter muito cuidado de que não
monogamia estamos falando. Se é uma não monogamia disfarçada de
uma prática neoliberal que perpetua a mesma lógica monogâmica ou de
uma não monogamia que assume o compromisso ético de romper com
algumas desigualdades e formas de opressões sociais. E então, quando a
gente conversava ontem, eu e Raissa, pensamos em primeiro fazer uma
introdução refletindo sobre a monogamia e depois sobre a Psicologia,
como ela dialoga com isso. Porque eu penso que todas as grandes
estruturas teóricas da Psicologia estão muito ligadas a um ideal de
família monogâmica. Eu me lembro na graduação de ter cursado uma
disciplina que era Psicologia e família, em que se falava de um ideal de
família branca, burguesa, europeia. Semestre passado, eu ministrei uma
disciplina de Psicologia da Personalidade e uma das questões que eu
614 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fazia para turma era a seguinte: como é que na ementa dessa disciplina
só estamos lendo homens cis, brancos, europeus ou norte-americanos?
Que Psicologia é essa que a gente tem como referência? Todos os
aparatos da clínica que temos como referência teórica são dessas
pessoas. O próprio Engels (1884/2019), quando propõe pensar a ideia da
propriedade, naquele texto clássico da Sociologia, “A origem da família
da propriedade privada e do estado”, diz que a monogamia surge como
um ideal da sociedade de classes, a serviço da propriedade. Mas no final
do texto ele romantiza também a monogamia, pontuando que uma
sociedade comunista, que rompesse com a lógica de classes, de
propriedade, a monogamia seria uma escolha, e que a exclusividade
seria algo natural do ser humano. Logo, mesmo ele, cai na armadilha de
não conseguir pensar outro formato, que não seja o modelo de família
monogâmica. Esse arranjo está muito impregnado em nós, e isso é fruto
do processo de colonização. Principalmente se tratamos do Brasil, da
América Latina, da monogamia atravessada não somente pela questão
de classe, mas também de raça. Eu trabalho no SUS há 11 anos, trabalhei
já na assistência social e cotidianamente me deparo com documentos
psicológicos colonizadores, relatórios psicológicos impregnados da
visão de família monogâmica. Mesmo que eles não usem em termos
pejorativos, mas as formas de vida que fogem ao arranjo da família
nuclear, e da exclusividade da parceria são retratadas de forma
pejorativa. Já vi profissionais chegarem em uma casa para fazer uma
entrevista social e ter uma mãe, com 3 filhos, sendo um de cada pai e
essa mãe ser taxada como alguém disfuncional. Porque entende-se que
ela tem que romantizar a maternidade e ter uma exclusividade de
parceria. A não monogamia não atravessa somente quem está
conscientemente buscando essas leituras e querendo praticar. Mas
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 615

atravessa também o nosso fazer lá no SUS, na assistência social, nos


documentos que chegam para a justiça, que é totalmente dentro da
logica monogâmica. A última revisão bibliográfica que fiz, no semestre
passado, a maioria das produções acadêmicas que encontrei sobre não
monogamia, eram no campo do direito. A ciência está preocupada não
em entender afetivamente, ou sobre os efeitos subjetivos dessas formas
de se relacionar, mas, sobre a propriedade, se há mais de 2 pessoas se
relacionando quem vai herdar? Primeiro que se tentarmos entender
como começa a patifaria toda da ideia de herança, não tem como romper
com uma lógica monogâmica se também não rompe com a propriedade,
com o capitalismo. Tudo isso está muito arraigado e me parece que
todas as teorias psicológicas elas também caminham com a ciência
moderna, que está a serviço da manutenção desse modelo.
Eu falo a partir da psicanálise, e por exemplo, Elizabeth Roudinesco
(2003), no texto “A família em desordem”, diz que a família está em
desuso, nos seus moldes clássicos, mas não há saída para o arranjo social
sem família. Mas como pensarmos em outras experiências sociais que
não foram pautadas na ideia de família?
Saiu um dossiê recentemente sobre não monogamia, no qual Geni
Nuñez et. al. (2021) publicou um artigo, na revista Teoria e Cultura.
Nesse texto ela menciona documentos no período de colonização,
escritos por jesuítas, e o arranjo social vigente não tinha a ideia de
exclusividade de parceria, introduzida pelo projeto colonizador. Que
traz o olhar para a nudez, para a exclusividade, o colonizador é que
nomeia as práticas das pessoas que estavam aqui como promíscuas.
Temos outras possibilidades de vida, inclusive muito mais sadias do que
o arranjo familiar. Afinal das contas, não é da família que gastamos
tempo na nossa terapia ou análise nos queixando? Se a família é tão
616 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sagrada mas adoece, gera sofrimento e passamos a vida toda as voltas


como os efeitos disso, devemos pensar sobre. Eu queria passar um
pouquinho a palavra para Raissa.

RAISSA: Eu estou imensamente honrada de está dividindo espaço


contigo, sentindo muito essa conexão assim das nossas perspectivas.
Agradeço novamente o convite de Paulo. Sempre quando me proponho
a trazer algum relato sobre vivências dissidentes na sociedade que a
gente vive, acho sempre importante fazermos uma pergunta sobre qual
é a norma que se contrapõe a essa dissidência.
O que atribui a determinadas normas esse lugar de suposta
naturalidade? Este lugar bosta que determina certas existências no
lugar de universalidade, de naturalidade, de referência sobre o que é
considerado como se fosse a essência do ser humano. Existe uma certa
discussão a respeito de como, por exemplo, a heterossexualidade
compulsoriamente foi atribuída a esse lugar de suposta naturalidade, de
suposta essência, de suposta verdade universal dos seres humanos …
assim como a cisgeneridade foi colocada nesse lugar, sustentando a
ideia de que uma pessoa nascida com uma determinada genitália tem
um gênero, um sexo automaticamente atribuído àquela genitália,
colando a identidade daquela pessoa na cisgeneridade. A ideia de que
quem nasce com um pau é homem, quem nasce com buceta é mulher…
essas ficções, esses delírios… diria ajustamentos de busca, jogando um
conceito da Gestalt-terapia aqui no meio.
A gente atribui muito a norma apenas aos ajustamentos
neuróticos, mas a norma também produz muito Delírio, produz muito
ajustamento de busca, se entranhando na própria esfera da relação
sensível com realidade ficções somatopolíticas, como diria Preciado
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 617

(2013). Delírios simultaneamente viscerais e ficcionais, que produzem


muitas violências em nome desses delírios, em nome dessas ficções que
a norma constrói.
E um desses delirios, uma dessas ficções reguladoras da sociedade
que a gente vive também passa pela monogamia enquanto uma forma
supostamente natural e universal de como as relações devem se dar.
Existem discursos até dentro da biologia afirmando a monogamia como
algo “natural” a todas as espécies. Acho importante colocarmos essa
questão da norma, para que não se confundam as coisas. Quando
surgem vozes dissidentes, quando começa a vir à tona debates sobre não
monogamia, algumas pessoas começam a reproduzir falas como: “ah e
agora todo mundo tem que ser não-mono”. E na verdade não, minha
gente... vivemos numa sociedade onde por exemplo bigamia ainda é
crime, uma sociedade em que mães que tiverem mais de uma parceria
sexo-afetiva ao mesmo tempo correm o risco de perder a guarda de seus
filhos. A gente vive numa sociedade em que pessoas sofrem inúmeras
violências quando rompem com qualquer forma de contrato de
estrutura monogâmica.
Acho importante lembrar que a gente vive numa sociedade onde
reina o feminicídio. Mulheres cis ou trans - e não só as mulheres, como
também outras pessoas que não estão neste lugar das masculinidades
cisgeneras - são frequentemente violentadas e mortas por este sistema.
E quando você vai ver as pesquisas sobre os feminicídios que ocorrem
na sociedade que a gente vive, boa parte dos argumentos que aparecem
são coisas como: ciúme, “eu tinha medo que a companheira fosse me
deixar”, “eu achei que ela estava me traindo” ou “eu peguei ela me
traindo com outra pessoa”.
618 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Você vai ver então que essa violência é decorrente do machismo,


porque você vê que o machismo também estrutura uma lógica em quê
determinados corpos detém o monopólio da violência - sendo esses
corpos, homens cisgêneros, sobretudo homens cisgêneros, brancos,
heterosexuais. Porém, não só... a gente vê também essa lógica sendo
reproduzida em relacionamentos homoafetivos - nos relacionamentos
entre homens, nos relacionamentos entre mulheres… a
heterosexualidade é muito democrática em exportar as suas pedagogias
de violência para outros modelos de relacionamento, uma grande escola
de violência. Um padrão de relacionamento que não só é o mais
veiculado como referência, como também educa sua violência para
outras relações que fogem da heterossexualidade, infelizmente.
Como dizia, violência do feminicídio é sim articulada ao machismo
- sobretudo o poder na masculinidade cisgênera – porém vemos que
uma parte dessas violências também se sustentam na monogamia. São
violências que muitas vezes ocorrem com esse argumento de serem em
nome do amor, em nome da defesa de um suposto amor... esse amor
articulado a posse. Amor articulado a ideia de que se uma pessoa foge
ao lugar de centralidade de determinado relacionamento na vida dela, a
um lugar de exclusividade dessa relação, tal pessoa merece ser punida,
merece sofrer retaliações e violências porque traiu.
Temos inúmeros contextos na sociedade que a gente vive (inclusive
discursos que são reproduzidos por Gestalt-terapeutas) que legitimam
violências, sejam elas físicas, psicológicas ou simbólicas, quando são
exercidas contra determinados corpos - seja por que este corpo traiu
seja por que este corpo estava no lugar da amante. Lembro até hoje de
um grupo do Facebook que discutia questões ligadas a gênero e
feminismo - por exemplo sobre cultura de estrupo, sobre Lei Maria da
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 619

Penha. Várias coisas bem importantes, desde uma perspectiva crítica.


Então nesse grupo uma mulher cis compartilhou um vídeo que era uma
mulher espancando a amiga por ter lhe “traído” transando com marido
dela. Aí você vê o mais doido: esse video tava sendo aplaudido, as
mulheres de um grupo supostamente feminista dizendo coisas como:
“porra ela tá certa de bater na outra, porque a amiga traiu, a amiga foi
sacana, foi talarica”... aí você vê um discurso de culpabilização da vítima,
uma inversão sobre quem de fato está sofrendo a violência –
justificando que, pela traição, ela “mereceu”.
Neste caso se trata de uma mulher sofrendo violência física de
outra mulher, questão que ainda de uma forma bastante problemática
na sociedade que a gente vive: uma sociedade que leva muito pouco a
sério violências que ocorrem entre mulheres. Aí você vê: mesmo num
grupo que se diz feminista, quando é em defesa da monogamia, as
pessoas legitimam que uma mulher apanhe. Em defesa da “legítima
esposa”, daquele relacionamento hierarquicamente considerado o
principal porque “chegou primeiro”, por estar naquele relacionamento
há mais tempo, ela teria então o direito de agredir outra pessoa em
nome da defesa de sua relação.
Veja o quanto isso é pesado, veja o quanto isso é uma estrutura que
produz uma série de violências - inclusive uma serie de mortes na
sociedade que a gente vive. Então, quando falamos sobre monogamia,
estamos falando sobre uma estrutura de poder e de vigilância sobre
corpos e seus afetos. Uma vigilância que muitas vezes não é exercida
apenas pelas pessoas que estão na relação, mas por toda uma
comunidade, por toda uma rede societária que vigia o que está
acontecendo naquela relação, o que que as pessoas estão fazendo fora
dela. Podemos pensar em inúmeros exemplos onde muitas vezes não é
620 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

nem a companheira da pessoa que está preocupada se a outra está


traindo… é a vizinha, é a mãe, é o pai... e muitas e muitas vezes são estas
pessoas que exercem violências em defesa da sacralidade desta relação
que é considerada central.
A monogamia é uma estrutura que produz hierarquia de afeto,
produz hierarquias relacionais, a separação entre: (1) relações
consideradas “não-sérias”, de putaria, promíscuas, de menor valor –
estigmatizando quem vive essas relações enquanto pessoas de menor
valor, marcadas enquanto putas, vadias, etc. (2) e aquela relação
considerada Redentora, Central e Sagrada. E essa relação Sagrada
precisa ser uma relação de exclusividade afetiva. Constrói-se a
narrativa de uma linha do tempo normalizada e naturalizada na
sociedade que a gente vive – que envolve, por exemplo, as demarcações
entre juventude e maturidade.
Até determinada idade na sua vida, é considerado que ok você
“aprontar”, sair para transar com quem quiser, com quantas pessoas
quiser etc. Lógico...com atravessamentos de raça e classe - pessoas
brancas e classe média (sobretudo as cisgêneras), tem uma liberdade de
experimentar bem mais socialmente aceita do que que pessoas
racializadas e/ou que vivem na periferia. Isso falando aqui também de
contextos sociais urbanos - quando a gente sai das grandes metrópoles,
aí á vai ser um pouco diferente. O ponto é que a Juventude é o período
de vida em que, para determinados corpos, se estipula uma relativa
liberdade temporária para se viver determinadas experiências sexuais,
mas, depois que você atingir a sua maturidade, o período de vida do qual
se espera que você seja uma pessoa “responsável”, ai você tem que
encontrar o verdadeiro amor da sua vida e “largar a vida de sacanagem”.
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 621

E essa temporalidade normativa vai ser entendida e reproduzida


muitas vezes pelas próprias psicologias, é um problema que inclusive
atravessa a Gestalt-terapia: atribuir à monogamia um suposto lugar de
maturidade emocional, atribuir aos relacionamentos exclusivos o status
de maior maturidade, “mais bem resolvido”. E isso posiciona a
monogamia no lugar de norma. Tudo isso é muito mais do que sobre
modelos de relação, formas especificas de se relacionar… é sobre toda
nossa forma de viver. Vai muito além dos relacionamentos sexo-
afetivos que a gente estabelece: diz sobre como a gente organiza a vida,
nossas redes de cuidado, como nos organizamos economicamente,
nossa vida doméstica, nossa temporalidade.. A monogamia não é só um
modo de se relacionar sexo afetivamente: é um modo de viver. Quando
falamos de não monogamia estamos falando sobre construir formas de
viver articulando rupturas e dissidências com relação a essa estrutura
normativa de hierarquização e exclusividade afetiva, bem como ao seu
poder de punir corpos que desobedecem à sacralidade desses
relacionamentos. Geni Nuñez discute isso muito bem: a monogamia não
existe sem violência, seja ela explícita, seja ela pressuposta.

PAULO: Você foi falando... e principalmente quando você vai dando


os exemplos, quando você vai nomeando as violências, percebo o quanto
nós vamos nos tornando pessoas violentas para poder bancar e manter
a monogamia. Vou me arrepiando inteiro e me dando conta de algumas
coisas que eu já vivi. Cresci com apenas essa referência de
relacionamento. Vocês podem responder depois, mas, vejo que as vezes
as pessoas ficam um tanto confusas quando se fala em poliamor e
relacionamento aberto, não-monogamia, talvez vocês falem mais sobre
isso ao longo da live.
622 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

THEREZA: Acho que Raissa foi bem didática na fala, trouxe alguns
pontos bem importantes para pensar a hierarquia dos afetos, a
centralidade do casal. Na sociedade capitalista, a grande questão é isolar
o indivíduo, tirá-lo das redes coletivas porque elas são muito perigosas
para o sistema. A não monogamia quebra essa estrutura de hierarquia.
O casal, e mesmo o trisal, não rompe com a logica monogâmica, porque
é so mais um ou mais dois ou mais três que vão estar no seu núcleo
fechado sem pensar a ideia de coletivo. Todos os ritos que ocorrem
quando alguém vai casar e faz aquela cerimônia, os discursos cristãos
que dizem que a pessoa deixou a família e vai constituir outra família e
aquele núcleo vai ser o central. Você pode estar com um amigo numa
“bad”, precisando de você, mas se o seu parceiro ou sua parceira devem
ser prioridades. Logo, muitas práticas que se dizem não monogâmicas
não rompem com a monogamia. O próprio termo é amplo para nomear
várias práticas e não tem uma definição exclusiva. Como Raíssa
pontuou, podemos até falar de não monogamia no plural, refletindo
quais rompem com a estrutura de gênero e quais perpetuam.
O relacionamento aberto, por exemplo, reproduz a centralidade do
casal, com a regra de não envolvimento afetivo. Isso já ocorre dentro da
monogamia, pois a prostituição e a traição, são a mesma face do
casamento, como aponta Engels (1884/2019). O relacionamento aberto
reproduz o sagrado da família, você pode transitar, transar/beijar
outras pessoas, mas depois você descarta. E aí entramos em parcerias
adoecidas, porque quando escuto pessoas que se envolvem como alguém
que tenha uma relação aberta, por exemplo, muitas são descartadas,
para não ameaçar o casal. Como Raissa pontuou, a saída para romper a
monogamia, é muito mais coletiva do que individual. Recentemente saiu
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 623

a tradução do livro da Brigitte Vassalo (2022), que é uma autora


espanhola, de referência nessa discussão. O prefácio da edição em
português é da Geni, o nome do livro é Desafio Poliamoroso. É uma
leitura super gostosa, porque além dela trazer muito elementos
teóricos, vai dando muitos relatos da vida dela, que já faz um tempo que
está nessa construção não monogâmica. E o tempo todo ela aponta que
as saídas são coletivas, por meio de redes de apoio.
Por que o cuidado de uma criança tem que ser feita por uma pessoa
ou por duas? Por que não pode ter uma rede de apoio para isso? Por que
temos que hierarquizar afetos de pessoas? É muito complexo falar de
não monogamia que não é somente sobre a quantidade de parceiros ou
parceiras que a gente vai ter ou tem, mas é sobre pensar outro modo de
se relacionar! Você pode ser não monogâmico/a e estar vivenciando uma
relação sexual com um parceiro/a apenas. Quem disse que essa pessoa
que você se relaciona sexualmente tem que ser mais ou menos
importante que os outros vínculos afetivos na tua vida? Onde há essa
escala? Qual a garantia dessa lógica? É justamente poder quebrar com
essa romantização! Muita gente diz “ah, esse negócio de não monogamia
não dá pra mim”, mas qual a garantia também numa relação
monogâmica de que você vai viver 70 anos da vida com alguém e essa
pessoa depois diga que não quer mais? Toda relação passa pela via do
abismo, quando demandamos algo não há garantias que o outro vai
corresponder, as fantasias são minhas. Assim, ao mesmo tempo que a
não monogamia é uma saída coletiva, também é uma saída autônoma.
Respeitamos a nossa própria autonomia para garantir a das outras
pessoas. A autonomia sobre nosso próprio corpo já é difícil, o Estado o
tempo todo intervém nele (não pode usar determinada substancia, não
624 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

pode abortar, não pode fazer eutanásia, não pode fazer uma série de
coisas).
Se não temos autonomia sobre nosso próprio corpo como é que
vamos ter sobre o corpo de uma outra pessoa? Isso é um grande delírio,
uma grande fantasia, que todo esse sistema fez a gente acreditar e que
é muito difícil romper. Por isso que é importante a criação de redes
coletivas. Pois quando nos aproximamos da não monogamia e vamos
partilhar com um/a amigo/a ou com um/a terapeuta que não tem
aproximação nenhuma com o tema, provavelmente vai sair uma
atrocidade como “ah, mas você está gostando de duas pessoas porque
você ainda não encontrou o amor verdadeiro da sua vida ou porque você
está na adolescência, não amadureceu” como Raissa pontuou. Assim,
cabe perguntar: que promessas são essas, que nós, do campo psi,
reproduzimos? Quantas das escutas que fazemos nos chegam com
queixas a respeito da monogamia? Acho que na minha atuação não
passa uma semana em que eu não escute uma queixa sobre traição, ou
sobre o desejo do outro, do controle do corpo da outra pessoa, das
fantasias que se constroem a respeito disso. Antes de passar a palavra
para a Raissa eu queria fazer uma provocação e recitar uma poesia que
foi publicada recentemente na página do instagram do NM em foco,
(@naomonoemfoco):

Repetindo em voz alta


Para eu mesma lembrar:
Eu não sou dona da outra
É impossível formar par
E quando o ciúme quiser chegar
Devo botar ele para correr
E entender que até sobre a minha vida
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 625

Tenho controle limitado


Pois existe um Estado a agenciar
Meu corpo e meu desejo
Que eu não tente negar as parcerias
A liberdade que tanto almejo
Nem colonizar os corpos
Que amo e cortejo
Pois seus beijos serão
De quem lhes aprouver
Sendo eu uma mulher
E tendo consciência
De que isso é um delírio
Quero me livrar das marcas
Monogâmicas e mesquinhas
Que reproduzem o vil capitalismo
Será que é poss(e)ível?

RAISSA: Pensei várias coisas aqui pensando sobre a pergunta que


tu fizeste, acho que Thereza respondeu super bem. Estamos trazendo
debates que não são consenso dentro da própria não monogamia,
porque existem perspectivas diferentes dentro dela, o que a gente está
trazendo aqui é uma tática bem radical

THEREZA: Acho que a gente não pode romantizar muito esse


processo, não nascemos não monogâmicas, é uma escolha cotidiana. As
cascas coloniais estão impregnadas em nós, não é só estalar os dedos
para parar de sentir ciúmes ou criar uma rede de afetos sem
exclusividade e centralidade em torno da figura do casal. É sobre estudo
cotidiano, sobre nos enfrentar, também de modo terapêutico, para
confrontar as marcas e modelos afetivos que reproduzimos.
626 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

RAISSA: Sempre acho interessante pensar a questão de que a não-


monogamia vai para além de quantas pessoas a gente se relaciona: não-
monogamia também diz sobre quem a gente é quando a gente não está
no relacionamento sexo-afetivo com ninguém. A gente vive numa
sociedade que constrói hierarquias inclusive nesse sentido de que você
ganha um determinado senso de valor social a partir do seu
pertencimento a determinadas estruturas de relacionamento, um senso
de pertença de valor social a partir desse lugar de ser a exclusiva dentro
de um relacionamento afetivo amoroso.
Quantas vezes não acontece aquela onda de que chega dia 12 de
junho uma galerinha entra numa bad porque começa todas aquelas
propagandas, aquelas promoções, toda uma onda, uma obsessão da
sociedade por um determinado momento do amor romântico... e muitas
vezes, se você não está em um relacionamento, você se sente uma
merda. Não necessariamente só em 12 de junho... em diversos contextos
da sociedade que a gente vive sobretudo falando de mulheres (sejam
mulheres cis ou mulheres trans) é construído um senso de valor da
subjetividade que atrela fracasso a não estar num relacionamento de
exclusividade afetivo-sexual romântica.
E eu acredito que a questão da não monogamia também é uma
questão de a gente inspecionar como que a gente constrói nosso sentido
de referencia sobre nós mesmas: o nosso senso de valor sobre quem a
gente é precisa depender desse atrelamento a sermos parceiras
exclusivas de alguém? O que é essa identidade que se constrói na
sociedade sobre a pessoa que é corna, sobre a pessoa que é traída… tipo,
a pessoa é traída e ainda por cima se culpa “poxa eu fui traída porque eu
não sou boa o suficiente, porque eu não sou bonita o suficiente, porque
eu não sei o que”... olha a quantidade de autocentramento que isso
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 627

implica. Geni tem alguns textos que discutem muito bem sobre esse
lugar de autocentramento que a insegurança do ciúme coloca - é
insegurança sim, mas também é sobre autocentramento, eu me colocar
como totalmente responsável pelo afeto que a outra pessoa vai sentir ou
deixar de sentir por outras pessoas. “Se eu for boa e seu for foda
suficiente a outra pessoa não vai gostar de mais ninguém” - olha que
ridículo, olha que viagem doida e adoecedora, quanta carga eu coloco
sobre quem eu sou, em termos de precisar vigiar quem a outra pessoa
vai amar ou deixar de amar para dizer quem sou eu e para dizer quem
sou no mundo.
Acredito que a não monogamia também propõem construir formas
bastante éticas e saudáveis de como a gente se relaciona com nós
mesmes e como a gente se individua. É sobre como as próprias
identidades no mundo, nossos sentidos de pertencimento... para além
do estar ou não estar em determinadas formas de relacionamento, para
além dessa ilusão de ocuparmos um suposto lugar central na vida de
outra pessoa. Necessidade de ocupar um lugar central na vida de outra
pessoa para ter um senso de importância de valores na sociedade, na
vida e no mundo.
Será que não posso pautar pertencimento e valor social de vida a
partir de outros referenciais que não dependam da limitação da
autonomia da outra pessoa? Se a pessoa com quem eu me relaciono se
interessa ou não interessa por outra boyzinha/boyzinho/boyzinhe isso
diz apenas sobre ela, não diz sobre mim, não diz sobre quem eu sou. Isso
só diz respeito a ela, sobre algo que é exclusivo íntimo dela, sobre seu
próprio corpo... não diz sobre quem eu sou. E isso que diz sobre o outro
a gente acaba agindo como se dissesse sobre nós… puro delírio. E esse
628 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

delírio é o que produz boa parte dos processos de ciúme, sendo


profundamente adoecedor.
Acho que é muito interessante quando a gente coloca assim: “ah
que eu não estou pronta para a não-monogamia, não sei o quê”. A
monogamia oferece muitas falsas seguranças quem você é no mundo
que não passam de delírio. Construir relações desde perspectivas não-
monogâmicas pode ser desafiador sim, mas muitas vezes constrói
saídas, alternativas que são muito mais acolhedoras inclusive para os
nossos medos, para as nossas inseguranças e para nossos ciúmes. A não-
monogamia tem muita potência de não só produzir éticas de cuidado,
mas também compartilhá-las para além da centralidade numa relação
sexual-afetiva, construindo redes de cuidado entre amizades,
valorizando relações que são consideradas muitas vezes menos
importantes e frequentemente secundarizadas no momento em que se
vive relações sexo-afetivas românticas. Quantas vezes não se vive uma
relação sexo-afetiva romântica e as amizades vão ser deixadas de lado,
escanteio e secundarizadas?
Até mesmo outros interesses e projetos da nossa vida vamos
deixando de lado, secundarizando… sobretudo quando a gente fala de
existências feminizadas. O lugar da feminilidade (seja na cisgeneridade
ou transgeneridade) tem essa tendência de abrir mão de projetos
pessoais em nome do amor. Frente a isso, é necessário pensarmos sobre
éticas de autocuidado que a não monogamia constrói. Isso passa para
muito além de quantas pessoas você vai se relacionar, se você vai viver
num relacionamento que é entre três pessoas ou mais pessoas... se você
está se relacionando mais fixamente com uma pessoa se você fica com
outras… não é muito sobre isso. A partir do momento que você rompe
com a perspectiva de que o relacionamento sexo-afetivo tem que estar
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 629

no lugar central da sua vida, as possibilidades afetivas são inúmeras e


são muito mais do que a gente consegue nomear.
É possível, inclusive, sair da idéia de que você tem que nomear as
coisas dentro dessa estrutura onde a pessoa começa como ficante,
quando a relação evolui a pessoa deixa de ser ficante para se tornar
namorade, depois quando evolui mais um pouco a pessoa se torna
companheire, aí depois evolui de mais um pouco para se tornar marido
ou esposa: uma expectativa linear de como as relações precisam
supostamente evoluir temporalmente. E as vezes as relações não
acontecem nessa lógica temporal, há relações que você tem um
determinado aprofundamento ou intimidade, mas que fluem depois
para um âmbito de amizade… bem como uma amizade que pode se
aprofundar em dinâmicas tão íntimas como se fossem um
relacionamento de namoro.
Tem relacionamentos de namoro que são extremamente
superficiais na socidadade que a gente vive: pessoas que se tornam
estrangeiras dentro da própria casa, casamentos que se tornam
praticamente só contratuais, sem trocas intimas de fato.
E quantas amizades muitas vezes não desenvolvem intimidades -
que podem envolver sexo ou não. Inclusive: será que necessariamente é
nas relações sexuais que a gente precisa construir nosso maior lugar de
intimidade? Que outras possibilidades não existem? A estrutura do
amor romântico e da monogamia colocam a ideia de que você precisa
ter tudo com a pessoa que você se relaciona sexualmente de forma
exclusiva: essa pessoa tem que ser seu melhor amigo, tem que ser seu
companheiro, seu amante, sua família… tem que dar conta de ser tudo
na sua vida. Será que a gente da conta de ser tudo para alguém? Nem
para a gente mesma nós damos! É muito interessante a gente pensar
630 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

sobre essas possibilidades e dinâmicas... repensar as próprias categorias


que a gente utiliza para nomear relações, tais como a de ficante,
namorada, etc. É possível que essas categorias façam sentido em
determinados contextos, mas pode ser que em outros nem façam,
podem existir formas de nomear relações que a gente nem sonha. No
fim, só conhecemos as categorias que foram oferecidas pela
monogamia.
Jamile Santana (2022) discute que inclusive a categoria “ficante” é
uma categoria monogâmica, categoria que pressupõe um lugar de
relações descartáveis prévias ao namoro… uma “fase teste”, onde se
relaciona sem ética nem cuidado antes das relações ficarem sérias. Sinto
que, para psicologia, para a Gestalt-terapia é um desafio nosso,
enquanto terapeutas, olhar para essa complexidade nas relações...
repensar formas de nomeá-las, visibilizando a complexidade de
camadas de diferentes relações, a complexidade dos afetos.
Seja para pessoas monogâmicas ou não monogâmicas, a
psicoterapia pode auxiliar na compreensão da complexidade dos afetos,
da não-linearidade das emoções, a compreensão sobre as idas e vindas
que podem lhes atravessar, oferecendo reconhecimento a afetos que
tradicionalmente são colocados sob lugares de ilegitimidade. Ao mesmo
tempo, há um papel terapêutico muito importante sobre não
naturalizarmos violências e práticas de controle que muitas vezes são
banalizadas, passam batido... pode ser papel do terapeuta nomear
violências que são colocadas na ordem do “natural”, de ações
supostamente “óbvias”, “automáticas” ou “universal”.
Uma perspectiva de redução de danos inclusive para pessoas
monogâmicas que nos procuram, porque problematizar a estrutura da
monogamia não é só quando a gente atende pessoas não-monogâmicas.
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 631

Podemos fazer um trabalho de redução de danos bacana incentivando


pessoas monogâmicas, por exemplo, a ampliarem suas redes de afeto e
de cuidado para além do seu romance central, mesmo que a pessoa
mantenha seu acordo de exclusividade sexo-afetiva. E isso ajuda na
prevenção, ou mesmo na dissolução, de relacionamentos abusivos.

PAULO: Quando você fala em Gestalt-terapia um conceito que


utilizamos muito é o de totalidade, e vocês estão nos falando de
possibilidades, mas enquanto que nessa estrutura monogâmica
definitivamente a gente só fica com uma partezinha muito pequena, nos
fixando nessa parte e não conseguimos olhar para muita coisa. Lembrei
de uma situação e gostaria que vocês comentassem um pouquinho. Não
tem muito tempo, uma pessoa no Twitter me marcou numa publicação
em que uma pessoa não-monogâmica estava construindo uma lista de
profissionais da psicologia que atendessem pessoas não-monogamicas
pois já havia passado por situações de violência em atendimentos
psicológico. O que vocês acham disso?

THEREZA: Acho que é interessante fortalecer essas redes, não


acho que temos que generalizar, não necessariamente precisa ser um/a
terapeuta não monogâmico/a, mas que tenha uma afinidade com o
tema, que estude sobre. Acho complicado quando engessamos lugares
de fala, mas eu acho que quando a pessoa atravessa algo nas suas
vivências, também vai fazer a escuta de outro lugar. Raissa falou sobre
a hierarquia dos afetos e os nomes que se dão sobre ele. Pensei que usa-
se muito o nome relacionamento sério, eu diria que não quero
relacionamento sério, só quero engraçado, ficar com uma pessoa séria
o tempo todo não tem sentido!
632 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

RAISSA: Acho que esse lugar do medo, de não acolhimento na


clinica é mesmo bem presente. Eu mesma enquanto consulente já tive
algum receio, (principalmente alguns anos atrás, agora já me sinto mais
tranquila)... é tanto receio de sofrer violências, quanto também o receio
de não ter um aprofundamento na escuta. As vezes a terapeuta não esta
sendo necessariamente uma pessoa que vai julgar, ou que vai ser
explicitamente violenta, mas a questão do acompanhar de fato já é outra
história. É sobre construir uma escuta que contemple a seriedade das
nossas relações.
Existe uma tendência muito grande de se considerar os
relacionamentos que fogem à monogamia enquanto relacionamentos
triviais, menos profundos... como se a pessoa não-monogâmica não
amasse de verdade. Há uma referência de que as únicas pessoas que
amam de verdade são as monogâmicas, aquelas que amam uma pessoa
só.
Isso as vezes pode ate não ser verbalizado mas se faz presente na
forma como a gente acolhe, pontua ou aprofunda determinadas
questões na clínica. Se está no nosso fundo de vividos a noção de que
tais relacionamentos não são sérios, ou pouco profundos e triviais, isso
vai aparecer na nossa clinica, mesmo que a gente não tenha a intenção
necessariamente de agir com violência ou de agir com julgamento
frente a determinados relatos.
Lógico que você procurar uma terapeuta não monogâmica não é
uma garantia de que a pessoa vai entender sua experiência, nós somos
plurais e temos vivências diferentes… a expectativa de que uma pessoa
que tem determinadas vivências vai automaticamente entender o que
você vive pode ser bem difícil também. Mas é compreensível que cada
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 633

vez mais pessoas não-mono estejam procurando terapeutas não-mono


para lhes acolher.
Fiquei com vontade de compartilhar um poema da Bárbara
Esmênia (2020) que eu sinto ter muito a ver com a conexão entre não-
monogamia e resistências sapatonas, resistêcias dissidentes da
heterossexualidade, que se propõe a construir outros mundos possíveis
para nós:

a gente podia
tá tudo agora envolvida
umas em cima das outras
algumas nos lados
várias embaixo
tantas ao longe observando como é bonito demais
e
como acender essa vela aqui
faz bem pra contemplar
essa cena privilegiada
a gente podia
voltar naquela noite
e contar de verdade
em quantas estávamos
quando
chegaram mais duas
e
perdemos contagem
na memória café da manhã ainda juntas
[alguém disse oito,
mas a gente se lembra
que éramos ímpar]
e quem se importa com números?
a gente podia
voraz
634 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

como naquele poema


"não há nada" (nothing),
de Cheryl Clarke
- que foi onde eu descobri
que "comer-lhe o cu"
e
"chupá-la na frente de sua outra amante",
e
"mostrar-lhe o prazer no perigo"
e
"deixá-la ver eu comer minha outra amante"
tinha nada que ver com
monogamia
e
bem podiam ser versos de poesia
e
me fez saber muito mais
de possibilidades
grupais
- e escritas poéticas -
que
aqueles sonetos barrocos aprendidos na escola
a gente podia
seguir assim dia a dia
no desapego mesmo
sem acorrente
sem possessão
sem as merdas todas
só um grupinho amante
que se deseja|gosta|ama|trepa
e
se dá|sente prazer nesse agora
vivas no contemporâneo
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 635

Faço uma piada que é uma piada interna (minha e com os meus
neurônios), e compartilho aqui como provocação: quem escreveu a
teoria do ciclo de contato com certeza foi alguém que nunca viveu um
ménage, uma orgia. Parece trivial, mas sinto que há uma certa
monogamia pressuposta no conceito de “bom contato”, dando a
entender que o contato de qualidade só ocorre quando se vive uma coisa
de cada vez, em atenção plena e exclusivamente dedicada a uma coisa
só. E isso não abarca o que se vive, por exemplo, numa orgia, ou mesmo
num menáge, onde há uma polifonia de sensações e necessidades que –
ao invés de competirem – constroem dinâmicas muito potentes de
serem vividas.
Até que ponto a Gestalt-terapia se propõe a rever seus
pressupostos teóricos sobre o que é uma “gestalt vigorosa”? Tenho
pensado em como pensar, na clínica e na vida, sobre a potência dos
ruídos, das contaminações, das deformações: a potência das más
gestalten, a partir de experimentações perversas e promíscuas de
contato.

PAULO: Obrigade mesmo pela partilha. Fico pensando que quanto


mais vamos olhando para algumas questões que aprendemos a não
olhar, que não podem ser debatidas, discutidas, sentidas, vividas, não
temos como ver as teorias da mesma forma, a gente vai desestruturando
muita coisa e vai mudando. Estamos quase chegando no finalzinho aqui
e tiveram algumas perguntas, mas, vocês foram respondendo. Thereza,
você quer trazer mais alguma questão, já que estamos caminhando para
o encerramento?
636 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

THEREZA: Penso que posso finalizar com outra poesia, quero


agradecer, foi bem rica a partilha, escutar Raissa é sempre maravilhoso,
tenho vários insights toda vez que eu leio Raissa, a acho muito lúcida,
sempre aprendo demais! A não monogamia é um exercício para mim,
um aprendizado cotidiano, às vezes sinto insegurança, penso “será que
eu sou uma não monogâmica de verdade? Mas acho que é justamente
esse tensionamento que faz a potência desse encontro com essas
leituras e produções. O estranhamento precisa ser diário, das formas de
opressão. Não é um processo natural, como quiseram nos apresentar. A
escrita tem sido um exercício de desnaturalizar essas marcas. Eu a
utilizo quando estou bagunçada, quando quero entender e visualizar
que parcerias são possíveis, quando as pessoas me demandam escuta. O
último poema que queria compartilhar com vocês, penso que foi o
primeiro que eu escrevi sobre essa questão, e diz assim:

Você me nega o que não te proponho:


O contrato imaginário
O encontro dos sonhos
O passeio no parque
O almoço em família
O lugar enfadonho
A paixão monogâmica
A certeza que nem eu disponho!
Pra que responder o que não foi perguntado?
A isso me oponho!
Sugiro abraços apertados
Beijos molhados
Nossos corpos suados
O fim do pecado
Você do meu lado
E assunto encerrado!
Thereza Cristina Santos; Raíssa Éris Grimm Cabral • 637

REFERÊNCIAS

Engels, F. (1884/2019). A origem da família, da propriedade privada e do estado.


Boitempo.

Esmênia, B. Vivas no contemporâneo – poema acessado em:

https://medium.com/barbaraesmenia/vivas-no-contempor%C3%A2neo-99c234f6e906

Núñez, G; Oliveira, J. M; Coelho, M; Lago, S. Monogamia e (anti)colonialidades: uma


artesania narrativa indígena. Teoria e cultura [online], 16 (3), 76-88.
https://doi.org/10.34019/2318-101X.2021.v16.34439

Preciado, P. Testo Yonqui. Espasa Libros, N.LU. 2013

Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Jorge Zahar.

Vasallo, B. (2022). O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. Elefante.

@genipapos https://www.instagram.com/genipapos/ - página de instagram de Geni


Nuñez.

@jamilesalima https://www.instagram.com/p/CeQ8mX7jnGP/ - post de 1 de Junho de


2022, de Jamile Santana.
29
FILOSOFIA AFRICANA
African Philosophy
Filosofía Africana

Data: 11/08/2022
Convidados: Rozangela da Piedade Leite e Wanderson Flor do
Nascimento
Mediadores: Paula Campos e Silvia Alencar

ABERTURA DA LIVE

Silvia Alencar: Sejam todos bem-vindos, bem-vindas e bem-


vindes! Eu sou Silvia Alencar, sou da diretoria da ABG e juntamente com
Paula Campos vou estar mediando está live da associação. E vamos
iniciar mais uma live da ABG, do Seminário Desconstruindo Fronteiras.
Hoje vamos falar sobre Filosofia Africana. Nossos convidados da noite
são a professora Rozangela Leite e o professor Wanderson Nascimento.
É um prazer estar aqui com vocês. Muito obrigada pela disponibilidade,
pelo tempo de estarem aqui, neste espaço de diálogo, de conversa, sobre
uma temática tão importante. Antes de mais nada, em nome da ABG
quero agradecer muito vocês! Vou passar a palavra para Paula Campos
que irá mediar juntamente comigo o seminário da noite de hoje.
Paula Campos: Eu sou Paula Campos, falo de Belo Horizonte. Sou
psicóloga e Gestalt-terapeuta há 5 anos, faço parte da ABG e estou na
co-coordenação do grupo de estudos do Núcleo Temático de Relações
Raciais. Nesse momento vou apresentar nossos convidados da noite e
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 639

depois passo a palavra para cada um, que terão 30 minutos em média
para explanar suas ideias e em seguida partimos para o debate.
Rozangela é mineira, psicóloga e mestre em Psicologia pela PUC de
São Paulo, especialista em Gestalt-terapia e análise existencial pela
UFMG e educação contemporânea pela Faculdade Arnaldo. Atuou como
professora no departamento de Psicologia na Faculdade de Ciências
Econômicas, Administrativas e Contábeis. No presente momento é
psicóloga clínica atuando na construção de uma clínica antirracista,
supervisora, pesquisadora e simpatizante da Filosofia Africana.
Wanderson é professor de filosofia e direitos humanos na
universidade de Brasília, onde pesquisa sobre Filosofia Africana,
relações raciais, tradições brasileiras de matrizes africanas e processos
subjetivos de formação de docentes.
Paula Campos: Vamos começar. Então eu passo a palavra para os
nossos convidados da noite. A ideia é que cada um possa falar uns 30
minutinhos depois a gente vai abrir para perguntas. E à medida que a
conversa for desenrolando, a gente vai entrando e abrindo para
participação do público.
Rozangela Leite: Passo a fala para o professor Wanderson por ele
ser uma autoridade a respeito do tema. Sou simpatizante da Filosofia
Africana e vou fazer uma interlocução com a minha área de atuação,
então vou deixar o professor introduzir e aí depois eu vou falar um
pouco da minha visão como terapeuta. Relatar que estou pesquisando e
estudando de forma que articule um pouco com a minha prática clínica.
640 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

FILOSOFIA AFRICANA

Wanderson Flor do Nascimento

Bom, então primeiro quero agradecer imensamente o convite. E


pedir licença para começar falando, numa conversa em que a maioria
das pessoas é mulher. Quero agradecer à associação pelo convite e
lembrar que eu não sou da psicologia; eu sou filósofo de formação. Não
tenho nenhum vínculo com a clínica, embora a pesquisa sobre os
processos de subjetivação me interesse bastante. E uma das coisas que
eu tenho me ocupado em pensar exatamente é a subjetividade e os
processos de subjetivação, e a Filosofia Africana é a minha ferramenta
principal de trabalho hoje para pensar essas questões.
Vou tentar pensar aqui, para estabelecer uma conversa com vocês da
Psicologia, e a partir disso que a Filosofia Africana nos apresenta como
recursos, mas que traz para nós duas plataformas de trabalho. A
primeira é nesse contexto exato do enfrentamento ao racismo. Quando
já alguns anos, em perspectivas diversas da psicologia, conheço um
pouco menos a Gestalt, mas a fenomenologia eu já conheço melhor.
Vamos pensar que da história do pensamento em Psicologia no país, já
há bastante tempo há uma demanda, desde pelo menos a década de 40 e
50, com a Virgínia Bicudo, que vinha da Psicanálise; já havia um debate
para uma inserção da temática racial também no contexto da clínica. E
na percepção da psicologia social, mas em especial da clínica. Por
entender que uma das principais causas do sofrimento psíquico de
pessoas negras, vinha – ou tinha um componente vindo – do racismo,
ou seja, é como se o racismo fosse uma determinante social do
sofrimento, uma delas, embora não seja a única, mas é uma das mais
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 641

importantes contextualizações do sofrimento das pessoas negras no


país. E como a psicologia deveria também lidar com as pessoas negras,
entender a importância que o racismo joga ou desempenha no
sofrimento das pessoas negras, deveria ser algo importante; isso
sempre foi periférico e continua sendo periférico ainda hoje na
formação de psicólogos clínicos ou de outras atividades da psicologia,
mas esta é uma demanda já antiga.
Depois chega aqui um debate em torno do pensamento de Frantz
Fanon, um importante médico psiquiatra, que também trabalhou nas
interfaces da psicanálise e da fenomenologia que é, diga-se de
passagem, também é o contexto da ideia de sociogênese. Tentando
pensar de que maneira podemos entender que o racismo e o
colonialismo são estruturantes da psique humana para compreender o
sofrimento e, obviamente, de que maneira lidar com ele. Depois se tem
uma série de autores e autoras que vão trabalhar com essa interface no
Brasil. Podemos, por exemplo, falar em Lélia Gonzalez, e depois em todo
o trabalho de algumas associações, como é o caso do Instituto Amma
Psique e Negritude, que mobilizou uma série diversa de autoras e
autores, pesquisadoras e pesquisadores, e de pessoas que estavam na
clínica, para tentar colocar o racismo como pauta para a psicologia e sua
formação.
Isso é mais recente, pois estamos pensando que Lélia morre na
década de 1990, e que a Amma Psique surgirá na mesma década, com um
trabalho muito importante. Uma série de abordagens se aproximarão
do debate da psicologia pelo viés das relações raciais, sempre tendo o
enfrentamento ao racismo como algo importante enquanto agenda
política para a psicologia e também como eixo de formação do
profissional de psicologia. De um tempo para cá nós temos, por sorte,
642 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ampliado um pouco mais o número de pessoas que têm se inserido nesse


debate das relações raciais, sobretudo com a criação das ANPSINEP, que
embora esteja no interior dos conselhos, tanto federal como regionais,
tem ainda um desafio, que é, como lidar com a formação inicial de
psicólogos e psicólogas.
E é aí que a Filosofia Africana aparece num cenário bastante
interessante, porque oferece nesta primeira plataforma que tem a ver
com o enfrentamento ao racismo, um histórico de que ela mesma foi
uma parte, sobretudo nessa vertente mais recente da Filosofia Africana
nos últimos 50, 60 anos; que se ocupou exatamente de enfrentar a
história do racismo como uma matriz de desumanização de pessoas
negras. Enfrentar a desumanização da história do pensamento, foi uma
das tarefas que a Filosofia Africana colocou para si mesma, ou seja, não
está só ocupada em pensar o próprio pensamento e as categorias que a
filosofia historicamente lidou como verdade, conhecimento, mente,
ação, vida, morte; mas também pensar no que aconteceu na história do
mundo moderno, que conseguiu criar dispositivos para desumanizar
pessoas racializadas. Essa foi uma das ocupações da própria Filosofia
Africana. E tentando, a partir da interação com autores que já
chamamos a atenção, como é o caso do próprio Fanon.
Tentar reposicionar, agora sim, as matrizes epistemológicas do
conhecimento. E, nesse cenário, a psicologia poderia beber nessa fonte,
assim como também outras disciplinas. Beber aqui dessa matriz
epistemológica que ofereceria, do ponto de vista da formação do
profissional e da própria pesquisa em psicologia, ferramentas para
compreender que o racismo não é, por exemplo, um acidente de
percurso na história do mundo moderno recente, mas que o racismo
desempenhou e desempenha um papel muito importante nos esquemas
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 643

de sociabilidade, de compreensão da própria realidade social. Vejam:


não sabemos muito bem o que seria o mundo sem racismo. E muito
menos como seriam as pessoas subjetivadas no mundo sem racismo.
Mas, com certeza, seria muito diferente do que é hoje.
Quando temos essa percepção, já possuímos uma ferramenta para
entender e pensar com essas categorias epistemológicas da Filosofia
Africana, que tentou entender, primeiro, que a produção do
conhecimento não foi neutra do ponto de vista dessas relações
racializadas, porque já há bastante tempo temos discutido que o
conhecimento não é neutro com relação à economia, que o
conhecimento e o poder de alguma maneira estão atrelados, mas pouco
se discutiu em termos de como o conhecimento e o racismo também
tiveram relacionados, inclusive no que diz respeito ao conhecimento
sobre o ser humano. Nessa gama de conhecimentos, o próprio
conhecimento psicológico e a psicologia também não ficaram apartados
desse contexto racializado da produção do conhecimento moderno, uma
vez que a própria psicologia foi criada nesse contexto moderno. Então,
ter essas ferramentas que criticarão a neutralidade do ponto de vista
racial da produção do conhecimento de uma maneira geral e do
conhecimento sobre os seres humanos de maneira mais específica, e
entre eles, o conhecimento produzido pela psicologia que foi, de alguma
maneira, comprometido pela própria história do racismo, e como que a
própria história do racismo constituiu um campo no qual o próprio
conhecimento psicológico foi construído.
Quando conseguimos falar disso, do ponto de vista epistemológico,
começamos a ter outras ferramentas para entender a função do
apagamento dos processos subjetivos de pessoas negras, decorrente do
racismo. Porém, parece que o racismo é uma camada totalizante da
644 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

experiência negra; mas não: nós tivemos muitos processos de


resistência sociais nos movimentos negros, nas comunidades negras,
nas organizações populares de orientação política, vinculada com a
agenda antirracista. E tudo isso também foi criando elementos de
resistência ao contexto racismo, que muitas vezes ficam de fora na
formação do psicólogo, porque parece que essa dimensão está longe do
contexto da produção do conhecimento, que pode oferecer para a
atuação do psicólogo, seja na clínica, seja na dimensão institucional, de
alguma maneira, ferramentas que auxiliem as pessoas que procuram a
psicologia para lidar qualquer uma de suas demandas.
Esta é a dimensão epistemológica, que me parece fundamental, não
só por politizar a própria produção do conhecimento em psicologia, mas
também oferecer, através dessa politização, ferramentas para a própria
formação, seja do psicólogo, do pesquisador da psicologia ou da
pesquisadora da psicologia. Montar uma escuta sensível para
importância que joga o racismo e as relações raciais no contexto da
produção do conhecimento na experiência clínica em psicologia. Essa é
a primeira das dimensões que eu gostaria de chamar atenção que a
Filosofia Africana tem contribuído de maneira muito importante, e que
encontramos hoje, sobretudo em abordagens vindas dos Estados Unidos
como a chamada Black Psychology, a ideia de uma psicologia preta ou da
psicologia negra que está vinculada exatamente com marcos
epistemológicos do pensamento africano, pensando a agência africana
ou a agência das pessoas africanas em diáspora, inclusive aqui no
continente americano, no Brasil, enfim, em lugares fora do continente
africano, que possam, de alguma maneira, ter matrizes de localização,
dos processos de subjetivação e do enfrentamento ao racismo.
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 645

Essas abordagens buscarão em fontes da própria história do


pensamento africano, ferramentas para trabalhar, não só no que diz
respeito à própria politização do conhecimento em psicologia, mais dos
elementos da formação que já foram submetidas, de alguma maneira, a
essa crítica antirracista na produção do conhecimento.
A segunda dimensão que eu gostaria de discutir com vocês, já
encaminhando para o final – porque também quero ouvir às colegas –,
é tentar imaginar de que maneira as percepções que o pensamento
africano, que a Filosofia Africana desenvolveram em torno da própria
ideia de subjetivação nas camadas de experiências comunitárias,
coletivistas, de formação do sujeito podem ser úteis para enfrentar essa
dimensão do sofrimento que o ultraindividualismo moderno tem
provocado nas pessoas, sobretudo nas pessoas negras de maneira
específica.
Então, trata-se de pensar acerca dessa percepção dos processos de
subjetivação, a partir das experiências africanas, que são diferentes do
que aconteceu no ocidente, pelo menos nessa chamada África
tradicional. Tal percepção não foi capitaneada por uma imagem de
sujeito que é fundada no indivíduo. Indivíduo não é uma entidade
inexistente, mas não é a entidade fundamental do processo de
subjetivação. As pessoas particulares, elas não são, em última instância,
indivíduos. O indivíduo talvez seja uma parte daquilo que elas são, mas
não é aquilo que as define, os sujeitos forjados, subjetivados em
experiências comunitárias ou comunitarizante como é o caso do
pensamento tradicional da África negra, pelo menos.
Então essa é uma percepção importante porque oferece estratégias
de resistência no coletivo e também a própria perspectiva de que uma
parte do cuidado coletivo é importantíssimo para o enfrentamento do
646 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

racismo, para o caso das pessoas que foram subjetivadas aqui; não só na
perspectiva de um individualismo adoecedor, sobretudo em tempos de
subjetividades neoliberais, nas quais o indivíduo é convocado a ser um
empreendedor de si, em uma competição enlouquecedora, que imprime
o sofrimento na própria marca de vida das pessoas. Compreender esse
conjunto de estratégias também pode fazer com que tenhamos outros
parâmetros de enfrentamento desse próprio sofrimento.
Nestas percepções do processo de subjetivação não se nega que
existam pessoas particulares; não se trata de dizer que não existe o eu,
que não existe o indivíduo, que não existe uma pessoa. Entretanto, essa
dimensão não joga o mesmo papel, não desempenha a mesma
centralidade que no pensamento ocidental moderno. Como seria
possível pensar em estratégias não só de compreensão de outras
maneiras de subjetivação que foram presentes e são presentes no
Brasil?
Quando olhamos, por exemplo, a constituição de estratégias de
proteção comunitárias, como foram os quilombos no caso do Brasil
vemos essa dimensão africana entre nós. No próprio movimento negro
que se organiza em torno de células e comunidades e não de atuações
individuais percebemos o mesmo. Embora a individualidade não suma
nos terreiros e nas tradições de matrizes africanas como: o candomblé,
o batuque, o xangô encontramos uma subjetivação coletiva e
coletivizante. O próprio o catolicismo popular foi completamente
moldado em torno de práticas das comunidades negras. Se olhamos, por
exemplo, na história da Bahia, encontraremos a Irmandade da Boa
Morte como uma dessas experiências muito conhecidas. Olhando para
Minas Gerais, encontraremos os reinados e as congadas que são
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 647

experiências comunitárias que oferecem um modo de organização


subjetiva que são coletivizadas.
Portanto, não é só olhar para essa experiência de pensamento que
vem do continente africano para cá, como algo estrangeiro. Mas, para
entender, inclusive as nossas estratégias que estão acontecendo aqui, e
que muitas vezes são vetores de acolhimento das pessoas negras em
sofrimento.
Precisamos lembrar que grande parte desse país não tem acesso
aos serviços de saúde. Então, onde esses serviços não chegam é
exatamente essas comunidades de acolhimento que ajudam essas
pessoas a atravessarem os seus sofrimentos. Assim, poderíamos
entender melhor com esses elementos africanos, como é que a ideia de
pessoa está sendo pensada no continente africano e em sua herança
aqui, que nem individualizada em seu fundo, embora não exclua o
indivíduo. Poderemos, assim, aprender também a lidar com essas
situações mais complexas, que não significa opor de um lado o indivíduo
e do outro a comunidade.
Como viemos pensando em outros mecanismos de formação de
sujeitos e subjetivação quem não partam dessa célula, desse átomo, que
é um indivíduo, de que modo podemos pensar nos processos de
sociabilidade naquilo que provoca o sofrimento e naquilo que provoca a
possibilidade de enfrentar e significar o que é sofrimento? As noções de
pessoa e dos próprios processos de subjetivação, uma noção de
comunidade que não é a mesma coisa que uma reunião de indivíduos –
e penso que a Gestalt entende essa dimensão perfeitamente, quando
pensa que o todo é muito mais do que a soma das partes, sendo antes
uma reconfiguração mesma da posição de existência –, são elementos
muito importantes para pensar a atuação da psicologia.
648 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

É importante que consigamos perceber como essa matriz


coletiva/coletivizante dos processos de subjetivação presente nas
filosofias africanas nos chega como uma herança, e isso implica, para
rever o processo formativo, enfrentar o racismo epistêmico, presente
em nossa formação. Assim podemos interrogar de que modos essa
produção de conhecimento africana e resignificada na diáspora, que nos
aparece como recente pode estar à disposição da formação de psicólogas
e psicólogos. Isso implica em problematizar o chamado racismo
epistêmico, ou pensando nos termos que Sueli Carneiro nos oferece,
enfrentar a prática do epistemicídio, isto é, encarar as muitas tentativas
sociais de impedir o conhecimento e a difusão desses conhecimentos
que já existem, por que eles não são parte daquilo que é hegemonia do
supremacismo branco quer. Com isso você não apenas apaga ou tenta
apagar, exterminar o conhecimento produzido por pessoas não brancas,
pessoas indígenas, pessoas negras, como continuamos a reforçar essa
sub humanização, essa desumanização das pessoas que produzem esses
mesmos conhecimentos.
Esse epistemicídio tem impactos profundos na promoção da saúde
mental das pessoas. Não é à toa que hoje pensaremos que este conjunto
complexo de elementos que determinam tanto a saúde como o
adoecimento tem uma componente social muito forte; as chamadas
determinantes sociais da saúde, para além daquilo que está
medicalizado, pensado apenas pela perspectiva biomédica. E é nesse
cenário que a psicologia tem hoje um papel muito importante: oferecer
outras perspectivas que não as biologizantes para o sofrimento psíquico
das pessoas. E aí a disciplina se fortalece ainda mais se consegue
entender, com categorias apropriadas, o papel que desempenha o
racismo nos processos de subjetivação.
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 649

Termino minha fala nos convocando para essa tentativa de buscar


outras ferramentas para compreender esse cenário complexo que
vivemos agora. As filosofias africanas têm muitas ferramentas que
podem estar disponíveis para a psicologia e para qualquer campo que se
interesse por uma abordagem mais precisa por descortinar elementos
que insistimos em negar, como a existência do racismo e seu impacto
na vida mental das pessoas. Conhecer esse vasto quadro do
conhecimento que tem sido produzido no conhecimento no continente
africano e na diáspora africana, aqui entre nós, pode favorecer ter
lentes mais potentes para perceber os fenômenos dos processos de
subjetivação – meu interesse de pesquisa – e também para quem atua
na clínica, tentando compreender as dinâmicas o sofrimento e as
maneiras de enfrentá-lo. Agradeço o convite e fico disponível para
continuarmos a conversa.

REFERÊNCIAS

Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Editora
EDUFBA.

Somé, S.(2003). O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre


relacionamentos. Odysseus Editora.
650 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA AFRICANA: MODOS DE SER E ESTAR NO


MUNDO

Rozangela Leite

Depois da fala não há muito o que dizer. Desse modo queria trazer
uma reflexão que porventura condiz com o que o que o prof. Wanderson
Nascimento trouxe assim, porque eu tenho percebido como psicóloga
negra. Que vem ocorrendo um movimento aqui no Brasil, acredito que
um pouco como ocorreu nos Estados Unidos, quando os próprios
Psicólogos pretos entenderam que a psicologia não estava dando conta
de cuidar da população. De maneira que hoje a gente vê, há inúmeros
grupos de diferentes vertentes da psicologia, psicólogos pretos,
preocupados em pensar uma estratégia, metodológica, fenomenológica,
de tratar as pessoas pretas. Ainda sim, eu entendo que esse movimento
vem acontecendo aqui no Brasil, como o Wanderson falou, da própria
AMMA PSIQUE, enfim, é a própria ANPSINEP, da qual faço parte, no
qual temos representantes em todos os estados, de psicólogos que faz
esse movimento político, porque a clínica também ela é política. Nós que
somos da Gestalt-terapia entendemos que o nosso corpo é político,
então a gente não pode perder isso de vista, quando a gente pensa que o
nosso corpo, ele é um corpo político, e nesse sentido, presumo que a
filosofia africana ela deixa essa herança para nós assim. Sobretudo do
ponto de vista da espiritualidade, penso que é uma herança que
contribui, para pensar uma clínica diferenciada, é importante dizer isso
aqui, com o referencial da Gestalt-terapia.
Como Wanderson falou, os nossos referenciais ainda são da linha
da psicanálise, com o próprio Franz Fanon, a própria Neusa Santos, são
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 651

todos psicanalistas e graças a Deus, abriram o caminho para nós, e


trouxeram da importância de a gente pensar na saúde mental do quanto
o racismo impacta na saúde mental das pessoas pretas. Mas, a minha
discussão aqui está além desses apontamentos e sigo fazendo uma
articulação com a própria Gestalt-terapia, o quanto que a filosofia
africana traz elementos que nos ajude a pensar uma clínica
diferenciada. Não só, eu creio que, a espiritualidade é um grande legado.
Não a espiritualidade enquanto religião, em razão de quando medita na
própria Filosofia Africana, acho fantástico porque a gente não tem uma
bíblia, não tem um dogma da Filosofia Africana, como uma bíblia
católica que você vai lá; pois as nossas tradições africanas são tradições
antigas, da oralidade, então o conhecimento, ele é passado, de geração
em geração. De fato, é importante quando a gente considera, do ponto
de vista da espiritualidade, porque é um conhecimento que ele é
passado, você adquire esse conhecimento do ponto de vista da Filosofia
Africana, penso que também ajuda, no conceito da Gestalt-terapia que
a gente trabalha com o conceito de autorregulação, na Gestalt-terapia a
gente trabalha autorregulação.
Então, o que acontece, dentro da perspectiva da filosofia africana,
a mente, não é separada do corpo, e muito pelo contrário, na perspectiva
da filosofia africana, o seu coração precisa ser tocado para que o corpo
todo, então quer dizer o conhecimento, ele é um conhecimento que ele
primeiro precisa ser adquirido no corpo, na vivência e na experiência.
Ademais, o que que eu tenho encontrado é uma dicotomia que eu acho
que é um grande desafio, nós somos herdados de uma filosofia de uma
cultura ocidental totalmente mental. Mental, materialista,
individualista. A filosofia africana é totalmente o oposto, o que a
filosofia africana vai dizer. Ela pensa na coletividade, é a filosofia
652 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

africana, vai dizer, o homem não é separado do seu ambiente. Se o


homem está bem, a natureza está bem, nessa natureza acontece alguma
coisa o homem também adoece. Nesse caso, o que eu percebo, do ponto
de vista, que eu acho que é um grande desafio para nós, como fazer essa
autorregulação? Se nós vivemos numa sociedade adoecida, como
Wanderson falou, do atravessamento do racismo, é óbvio que as pessoas
vão adoecer. De tal forma que percebo, desde a graduação, desde a época
que eu venho estudando, mas também principalmente das pessoas que
eu atendo na clínica, é um adoecimento, mas com um foco muito no
mental, sem conseguir atingir o corpo que aí vem a ideia da filosofia
africana. O coração, ele está na parte de baixo, e a cabeça está na parte
de cima, então a filosofia africana, que são povos tradicionais, por que,
que são povos tradicionais? Para esclarecer a filosofia africana, as
mudanças, não ocorrem rápido, elas precisam de um tempo, de um
assentamento, para que depois ela mude, as nossas culturas ocidentais,
tudo é muito rápido. As mudanças são muito rápidas, as pessoas chegam
na clínica e elas já acham que vão mudar rápido e pensam que é tudo
muito rápido, e aquele nível de ansiedade muito grande.
Eu costumo dizer na supervisão, que a gente precisa ter uma
paciência terapêutica. O que é paciência terapêutica? As pessoas e
mesmo as pessoas pretas, muitas vezes não conseguem associar que
muitas vezes o adoecimento não é dela individual, não é uma culpa dela,
mas sim do ambiente da sociedade da qual nós vivemos. E aí, o que que
acontece? Sobretudo para pessoas pretas, há uma culpa individual. Você
adoeceu porque você não se cuidou e a filosofia africana vai dizer sim,
se o que gera o adoecimento é quando o ambiente não está bem. Veja
bem, não dá para separar a mente do corpo e não dá para fazer uma
autorregulação como a Gestalt-terapia impõem, e sugere para nós,
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 653

enquanto um conceito, justifica o que faz o bem-estar, é o organismo


regulado. As pessoas que chegam para nós do ponto de vista da
psicologia, independente de qual linha é de atuação, da psicanálise, mas
aqui eu estou falando da Gestalt-terapia, o que vale para nós é o
organismo. Nós olhamos para a pessoa como o todo, o sujeito que está
ali, ele é holístico, ele é mente e corpo é o que ele está falando, ele é o
tom de voz, não há essa separação. Mesmo que ao meu ver seja um
grande legado que a filosofia africana traz. E para mim, é uma grande
ferramenta, não uma espiritualidade do ponto de vista da religião, e eu
gosto do conceito de espiritualidade do Carlos Moore afirma que é que
a espiritualidade, eu gosto muito disso. Tem um artigo dele, eu posso
deixar depois também, o Carlos Moore, vai esclarecer que
espiritualidade, é um acúmulo de experiências históricas como sendo
uma força extraordinária que impacta os indivíduos e muda o curso dos
acontecimentos. Porque na perspectiva da filosofia africana e quem é da
espiritualidade do axé sabe. Há algo do invisível, que chega, e que
transforma, então as gerações que vieram antes de nós deixaram um
legado que a gente não consegue ver. Porém não alcançamos, mas há
uma mudança, isso é espiritualidade. Não espiritualidade do conceito de
religião, e eu acho que esse é um legado. Cada vez que tentamos
trabalhar a espiritualidade na clínica, com as pessoas que a gente
acompanha, e quem é do axé sabe. Porque para nós a espiritualidade não
é separada do indivíduo, independente do axé, se é do Candomblé, da
Umbanda ou de qualquer outra denominação religiosa, a gente entende
que essa espiritualidade que a pessoa comunga, ela faz parte também de
um ambiente de cura dessa pessoa. O sujeito não é separado como o
ocidente faz; o ocidente separa a mente e o corpo. Nesse sentido, eu
queria trazer essa perspectiva.
654 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Bem como queria trazer um pouco dessa perspectiva da


autorregulação, e das polaridades, então qual que é o grande desafio que
eu percebo hoje na clínica, que a gente, separa a mente do corpo, e aí a
gente não consegue cuidar das pessoas. Posto que a gente fica muito
presa no mental e não atinge o coração, que é o que a filosofia africana
vai dizer, de uma clínica antirracista, assim como Wanderson falou. É
do processo formativo e aí a gente tem uma fronteira de contato,
enorme, que é o racismo institucional. O que é o racismo institucional?
As nossas heranças, as nossas educações, as nossas filosofias, não
chegam no processo formativo dos psicólogos brasileiros. Se elas não
chegam, no processo formativo dos psicólogos brasileiros, a gente vai
ter uma autorregulação muito deficiente do ponto de vista de cuidar de
pessoas pretas, e é isso que as pessoas não compreendem, quando as
pessoas pretas, optam, por muitas vezes procurar um psicólogo negro.
Então, por que as pessoas procuram um psicólogo muitas vezes preto?
Pela ocasião pode ser que esse profissional vai ter um entendimento
muito mais amplo de uma autorregulação, porque não dá para entender
a cura sem falar do atravessamento, do racismo, e do adoecimento que
o racismo trás. Além do mais não tem autorregulação. Como é que,
fazemos uma autorregulação se o sujeito não entende que ele vive numa
sociedade racista, que ele vive numa instituição racista, ele vive um
epistemicídio, do que é a filosofia, a sua tradição não é considerada, que
clínica é essa que vai fazer um acolhimento, de entender essa pessoa
holisticamente como a Gestalt- terapia traz? Entendemos do ponto de
vista da fenomenologia, o sujeito é o todo, ele é um conjunto, então dá-
me para mim, eu fico pensando assim, até como Wanderson falou, a
perspectiva do Quilombo, é a perspectiva de resistências. Por um lado,
diferente do que as pessoas pensam, não é só a resistência. O Quilombo
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 655

foi uma estratégia e aí a Gestalt-terapia, tem um conceito, que a gente


fala, que é o conceito da Autorregulação criativa, é o que a Gestalt-
terapia vai dizer, e que as pessoas pretas têm isso na sua história e na
sua trajetória. Por outro lado, as pessoas pretas encontram diferentes
formas e maneiras de viver e sobreviver numa sociedade racista. Então
não dá para a gente desconsiderar, do ponto de vista de pensar uma
clínica antirracista, se a gente não pode também entender que a filosofia
africana ela traz um conceito, ela traz um olhar, que nos ajuda a pensar
que tipo de psicologia, pode ajudar não só as pessoas pretas, mas
também as pessoas brancas, há unir, mente e corpo. Penso que a
Gestalt-terapia que trabalha o corpo, trabalha mente, e não é separado.
E na perspectiva da Filosofia Africana, a gente trabalha o presente, o
aqui, o agora, sem desconsiderar o passado.
Nesse caso, o conceito de tempo na Filosofia Africana, esse tempo
presente. De maneira alguma é um tempo que está muito preocupado
com o futuro, porque essa preocupação com o futuro, com grandes
mudanças, é um conceito da Filosofia Ocidental. Por isso que a Filosofia
Africana, ainda que seja... o Wanderson pode talvez dizer isso melhor,
ela é pautada na tradição, a tradição, ela conserva a ética e a moral. As
mudanças rápidas não estão preocupadas nem com a ética e nem com a
moral, haja vista a sociedade que nós vivemos hoje. Não tem nenhuma
preocupação nem com a ética e nem com a moral. Para isso, as Filosofias
Africanas trazem para a gente, esse legado de que a ética e a moral,
sobretudo na clínica, é extremamente necessária. Ela é
importantíssima. A fim de que possamos ajudar/assistir, o sujeito a se
autorregular enquanto pessoa. Ele precisa entender que ética é essa,
qual é a sua ética de vida? Quais são os seus valores morais, espirituais?
656 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Para que ajude ele como ferramenta para dar conta de sobreviver, nessa
sociedade.
Dessa forma, eu queria trazer um pouco essa reflexão, do que eu
venho pensando; e eu reflito que a espiritualidade, tem sido um grande
legado para pensar a clínica hoje, eu considero demais o ponto de vista
das pessoas que eu acompanho, e fico sempre pensando, se não tem
espiritualidade, tem alguma coisa aí! Medito, o que é espiritualidade? É
a forma que a pessoa escolhe, pode ser uma arte, pode ser uma dança,
pode ser... Enfim, alguma coisa, mas isso também ajuda como
ferramenta para entender o campo. Além do mais, o campo
fenomenológico da Gestalt-terapia dialoga aí, dá para gente pensar
nessa autorregulação, pensar nesse desafio. Para nós, psicólogos pretos,
de fazer essa autorregulação, inclusive dialogar com outros colegas, que
pensam só do ponto de vista mental, e esquecem de entender que os
corpos e os corpos pretos são corpos políticos. Porque são corpos
políticos, uma vez que são corpos que necessitam de quase que 24 horas
para pensar em estratégia. Dessa maneira, eu queria trazer essa
reflexão, mais que uma reflexão, uma provocação, no sentido que eu
acho uma certa defasagem ainda do ponto de vista da formação, na
própria Gestalt-terapia.
Cogito que esse espaço é uma grande abertura para a gente
dialogar, eu acho que tem sido, a gente tem tentado aí fazer esse diálogo,
nesse grupo de estudo. Avalio que são pequenos passos que a gente tem
conseguido, mas ainda com muita resistência de abrir esse diálogo com
outros colegas, talvez intelectuais, que ainda tem dificuldade de
entender um pouco essa dimensão mais ampla, dos corpos pretos da
Filosofia Africana, dessas dimensões mais amplas. Desde já, eu queria
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 657

agradecer a presença, não conhecia o professor Wanderson, mas é um


grande prazer estar com você aqui nessa mesa.

REFERÊNCIAS

Moore, C. (2007, 31 de julho). Uma Universidade do Amplo Saber e da Multiplicidade de


Saberes para o Mundo Emergente do século 21. Palestra proferida em comemoração ao
15o aniversário de fundação do Instituto Steve Biko, no auditório da Faculdade
Visconde de Cairú.

Muller-Granzotto, M. J. (2007). Fenomenologia e Gestalt-terapia. Grupo Editorial Summus.

Noguera, R. (2012). Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética
afroperspectiva. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
(ABPN), 3(6), 147-150.

Pimentel, I. C. da Silva, A. G. (2019). Filosofia para além do eurocentrismo: Uma


abordagem em afroperspectivismo no ensino de filosofia. Problemata: Revista
Internacional de Filosofia, 10(1), 104-124.

Pontes, K. R. (2017). Kemet, escolas e arcádeas: a importância da filosofia africana no


combate ao racismo epistêmico e a lei 10639/03. Rio de Janeiro. Dissertação de
Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino. CEFET/RJ.

DEBATE

Paula Campos: Bacana Rozangela, ouvindo você e ouvindo o


Wanderson, fiquei aqui balançando a cabeça, concordando com vocês. E
aí você tocou em um ponto, eu queria trazer uma experiência. Acredito
que eu já tenha levado ela também para nossa supervisão, mas é essa
procura que está havendo, eu consigo perceber isso hoje, nos últimos
tempos vou falar de 1 mês para cá e que também foi uma demanda
minha. Buscar por um terapeuta preto para entender algumas
particularidades minha, e que parecia que eu não estava sendo
compreendida, e caia no tal do mimimi. Então hoje eu estou com uma
658 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

terapeuta preta que faz toda a diferença, o olhar dela para a escuta é
diferenciado. Eu tenho uma cliente que sempre fez terapia, porém, com
uma com uma terapeuta branca. E aí ela ficava se culpando, se culpava
pelo fato de que ainda não estava casada, e dentro dessa estrutura que
nós temos hoje, racista, a pessoa se culpabiliza, acreditando que é uma
questão dela. E nós sabemos que não é; eu falo isso, falando da solidão
da mulher preta, não é a mulher que vai ser escolhida para casar, e numa
das nossas sessões, quando eu comecei a fazer algumas perguntas, ela
foi percebendo que não tinha nada a ver com ela, e sim com a questão
racial e da estrutura. Ela começou a chorar e falar, ela virou para mim e
falou assim: eu passei uma vida inteira achando que eu tinha algum
problema. E foi uma coisa simples que eu fiquei assim, muito chocada,
mas dentro da minha experiência é. Nesse processo de me perceber e
me descobrir negra, se eu não tivesse percebido que eu era uma mulher
negra, eu não teria conseguido ouvi-la também, porque eu comecei esse
que vocês racialização tem pouco tempo foi de 2019 para cá. E a é a
importância, de estar em grupos de estudo, a importância de estar
nesses ambientes, dialogando, conversando e acolhendo essas pessoas
que chegam, que tem chegado. Graças a diversas outras iniciativas tem
tirado a psicologia desse lugar, de classe e raça e tem alcançado,
alcançado as periferias. Eu venho também da periferia. Por isso que eu
queria estar colocando aqui neste momento.

Rozangela Leite: Eu apenas queria fazer um comentário


relacionado a isso que você está falando que é, o único desafio que a
gente tem é que as pessoas brancas não se veem pessoas racializadas.
Todavia é um grande equívoco. Pelo fato de elas não se verem como
pessoas também racializadas, elas entendem que, no momento que a
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 659

gente vai fazer a discussão de raça é só para pessoas pretas. Isso é um


grande equívoco do ponto de vista de entendimento. Todos nós somos
racionalizados brancos e pretos. Além do mais, o que passa pela questão
do racismo é a melanina. O que é a melanina? É, quanto mais escura a
sua pele, mais discriminada você vai ser. Isso aí tem a ver com todas as
questões que a gente sabe do processo de branqueamento no Brasil.
Então, quanto mais clara você for, mais você está no ideal de beleza que
é o ideal, branco. De maneira que essa mulher da qual você está trazendo
como exemplo, ela não vai ser entendida como o corpo preterido,
desejado e amado do ponto de vista da sociedade. É neste sentido, o que
que nós estamos falando, se nós entendermos que todos nós somos
racializados, porque não tem a ver. O que faz o racismo conceituar é uma
raça achar que é superior à outra. O que faz a gente pensar na questão é
a igualdade. Além do mais nós queremos ser amadas, nós queremos
poder andar livres pela rua, a gente quer ser cuidada, a gente inclusive
poderia ser cuidada por colegas brancos. Desde que eles se vissem
também racializados, e se eles se vissem também por ele ser racializado
e por ele ter uma melanina um pouco mais clara, ele vai ter privilégios.
Essa é uma questão de fundo que a gente não pode perder. Quando
pensamos numa clínica antirracista. Pessoas brancas são racializadas
também, mas elas não se veem racializadas quando a gente vai discutir
racismo e vai discutir, é uma clínica antirracista, de tal forma que as
pessoas acham que a responsabilidade das pessoas pretas. As pessoas
brancas não se entendem como responsáveis também, para discutir o
racismo. Logo, elas não vão escrever, e muito menos vão estudar nada a
respeito. Essas pessoas vão estudar sobre a visão que têm de suas vidas.
Dessa forma, nós também estamos estudando sobre nós. Só que as
pessoas brancas precisam entender que elas são racializadas como
660 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

qualquer outra pessoa. E por elas serem racializadas, elas entendem que
tem um lugar superior de privilégio e nós não vamos querer tirar o lugar
de ninguém. No entanto, nós não queremos tirar clientes de colegas de
cor branca. Se o colega branco se comprometer a estudar. Entender,
Filosofia negra, estudar sobre racismo. Ele vai poder atender qualquer
pessoa preta, só que ele não está afim. Assim, quando a pessoa vai chegar
lá e falar sobre racismo na clínica, vai falar que é mimimi, vai falar que
é uma questão social. É só para a gente entender um pouco o contexto a
fim de que não haja confusão. Wanderson, que quiser dizer alguma coisa
também e a colega fica à vontade.

Silvia Alencar: Então, eu gostaria de estar falando até como uma


mulher branca, na semana que vem a gente vai está falando sobre
branquitude. Como mulher branca, que também estuda sobre racismo,
e eu atendo também pessoas pretas e venho estudando isso, e me
racializando durante esse processo aí, por algum tempo na psicologia.
Porque assim, eu acho que é impensável, que na população Brasileira,
com mais de 54% da população é preta e você não estar preparado para
isso, é impossível pensar em um psicólogo (a) que não esteja preparado,
preparada para isso. Assim como na questão da representatividade das
mulheres, não saber do patriarcado, do machismo. Isso é impensável
uma coisa dessa né Rozangela. Então acho isso inadmissível e o
professor estava falando e você também falou, Rozangela, e a Paula
também citou na dimensão da contribuição da Filosofia Africana, o
legado da escravidão e as consequências disso, a lista de posturas de
estilos é extensa. Como não ter comprometimento, se eu não tenho uma
escuta refinada, escuta sensível, como eu posso continuar
reproduzindo, como pessoa branca essas violências. Então eu acho
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 661

absurdo, não estar preparado para isso. E acho que isso é uma questão
de todos nós, pessoas brancas, pretas, e que esses espaços de provocação
são extremamente importantes para que a gente possa evoluir por meio
da discussão e trocas, pois todos estamos implicados nessa questão.
Nesse sentido, é uma construção de todes, mais ou menos isso.

Wanderson Nascimento: Interagindo com o que vocês trouxeram


penso que é muito importante que consigamos manter essa escuta
necessária para perceber como essa dinâmica social impacta de maneira
diferenciada as pessoas negras e as pessoas brancas. Penso que aí
também a Filosofia Africana pode nos ser útil, para pensar a
característica estrutural do racismo. Muitas vezes banalizamos a
expressão “racismo estrutural” e parece que não percebemos, como que
isso é determinante da nossa própria percepção do mundo.
Compreender o racismo estrutural não é simplesmente fazer um
recorte no fenômeno que está acontecendo para entendê-lo. Quando
tentamos perceber de que maneira o racismo distribui de modos
diferentes e desiguais os lugares sociais e também os lugares de
subjetivação, conseguimos entender, quais são as ferramentas
necessárias para lidar com as consequências dessa atuação do racismo.
Pensando em meu trabalho, vejo que uma das coisas que me parecem
absolutamente fundamentais na formação de profissionais da educação,
e na própria estrutura universitária, de um modo geral é buscar
reconhecer o caráter estrutural do racismo sem colocar no colo das
pessoas negras a responsabilidade de lidar com isso.
Seja na universidade, seja no atendimento na clínica, a população
negra não é maioria. Se deixarmos essa responsabilidade apenas para as
pessoas negras, simplesmente não avançaremos na transformação do
662 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

cenário formativo e clínico. Por isso, penso que uma coisa é reconhecer
que a branquitude confere às pessoas um lugar de poder diferente
daquele que as pessoas negras experimentam, outra coisa é achar que
apenas as pessoas negras devem se responsabilizar pelo enfrentamento
do racismo. Que uma pessoa negra opte por procurar um terapeuta
negro ou negra é uma coisa, que os cursos de formação, que as políticas
de formação determinem que só as pessoas negras devam tratar das
temáticas raciais é outra coisa completamente diferente. Esta última
dimensão é já, ela mesma, uma atuação do racismo.
A responsabilidade de enfrentar o racismo, sobretudo em um país
como o nosso, é de todas as pessoas. Sem esse entendimento, findamos
por sobrecarregar ainda mais a experiência das pessoas negras, que
além de sentirem na pele o próprio racismo, terão a responsabilidade –
e o peso – de ensinar para as pessoas racistas a não serem racistas. E
isso amplifica ainda mais o sofrimento das pessoas negras que
trabalham na clínica. Vejam a história de vida da própria Neusa Santos
Souza e para onde esse tipo de consideração levou a experiência dela. E
não foi a única.
E outras, como a própria Virgínia Bicudo, que foi nossa primeira
psicanalista negra e que morreu no esquecimento. E quantas outras
figuras, que mesmo tendo produzido, ainda que fora da psicanálise, um
conhecimento bastante sofisticado, estão relegadas ao esquecimento,
como forma de o racismo lembrá-las de que, embora elas estejam
colocando o dedo na ferida, elas sozinhas não conseguirão resolver
nossas mazelas raciais.
Esse é um ponto fundamental: ou bem entendemos o que
chamamos de racismo estrutural e todas e todos devemos ter um
compromisso com o seu enfrentamento ou então alimentaremos a
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 663

ilusão de que só um pequeno número de terapeutas negras e negros


trabalhando será suficiente; e isso não vai funcionar. Então, quando
vemos professoras brancas como o caso da professora Sílvia ou a Lia
Schucman, que estão no interior da psicologia estudando o racismo
desde a perspectiva da branquitude, temos outras importantes
ferramentas para pensar também. A tarefa é coletiva e a coletividade
não é só a coletividade das pessoas negras. Mas a coletividade das
pessoas que partilham esse mundo em comum.
Lembro aqui de um livro bonito de Sobonfu Somé, uma recém
falecida teórica de Burkina Faso, traduzido para o português do Brasil,
que se chama O espírito da intimidade, que faz referência àquilo que a
professora Rozangela estava chamando atenção antes, dessa noção de
uma espiritualidade que é política. O espirito ao qual se referia Sobonfu
Somé é o espírito da comunidade e, assim, uma prática social, não sendo
um espírito, na dimensão religiosa. E, ao mesmo tempo, é esse espírito
que demanda também que percebamos quem está fora de nossa
comunidade e que tipo de relações nós temos que estabelecer com quem
está fora da nossa comunidade. Isso nos leva também apontar que não
é uma responsabilidade, insisto, isolada individual, de cada terapeuta
negro ou negra, ou então, que o os colegas brancos se sintam, de alguma
maneira, hostilizados ou que alguém está tentando roubar clientes
negros. Isso não faz sentido.
Quando uma pessoa negra procura um terapeuta negro ou negra
porque veio de uma experiência em que a escuta clínica não foi capaz de
perceber a função que o racismo desempenhou em sua vivência. Por
exemplo, tenho uma colega que foi atendida por uma pessoa sem aquilo
que Lia Schucman chama de letramento racial, que dizia que aquilo que
ela estava chamando de uma perseguição racista em seu trabalho “era
664 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

uma coisa da cabeça dela”. Eu nunca imaginei que escutaria isso de um


profissional da psicologia, ao interpretar que ela estava percebendo não
estava acontecendo, sequer considerando que aquilo que ela, a cliente,
narrava descrevia a experiência cotidiana dela. Isso é muito grave.
Quando chamamos a atenção de que há necessidade de que esse
letramento racial seja uma prática absolutamente necessária para a
sociedade Brasileira, não só para as pessoas negras e, sobretudo, as que
desempenham esse papel de trabalhar com a escuta, para que evitemos
reiterar o sofrimento das pessoas que foram buscar ajuda. E ainda temos
muita dificuldade em mudar esse cenário. Quando ouvimos relatos
como esse de minha colega e contrastamos com o que Sobonfu Somé nos
apresenta em O espírito da intimidade, vemos que ela mobilizará
exatamente essa generosidade que se apresenta como arma política
contra aquilo que faz sofrer e na busca daquilo que nos fortalece,
sobretudo coletivamente. Trata-se, portanto, de não responsabilizar
apenas as pessoas que sofrem o racismo a responsabilidade por
desconstruir esse cenário perverso: isso só aumenta a violência do
racismo.

Rozangela Leite: A Bell Hooks, tem usado em um texto dela, e essa


tem usado que muitas vezes as pessoas brancas são turistas culturais.
Pesquisei sobre o assunto, e adorei. Assim que é o tal do turista cultural,
nossa, eu adoro samba; eu adoro capoeira; eu adoro aquele cantor negro;
nossa, eu adoro a comida do preto; mas quando vê uma pessoa preta
sofrendo racismo, não se compromete. E nem se compromete com a sua
própria prática racista. A vista disso, o que Bell Hooks chama de turista
cultural, é, eu gosto de tudo que a cultura do preto oferece, mas eu não
me comprometo em ter uma atitude, uma mudança, para que eu
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 665

também seja, digamos sensível, solidário ao sofrimento das pessoas


pretas. Presumo que essa live para mim é uma provocação, para as
pessoas que estão neste lugar, os psicólogos para entender isso, para
dizer assim a ideia, a luta antirracista, como Wanderson falou, é de
todos nós. É de todos nós, e as pessoas brancas precisam entender o que
é branquitude, precisam estudar o que é branquitude para poder
entender também o seu lugar nessa sociedade, para que a gente possa
de fato ter uma sociedade mais, regulada, autorregulada como o próprio
organismo da Gestalt vai dizer, porque a gente está muito
desorganizado. A nossa sociedade está muito adoecida e o racismo tem
adoecido muitas pessoas, matado muitas pessoas, impedindo muitas
pessoas de viverem plenamente como pessoas. Percebo, a crise
econômica, as pessoas morrendo, passando fome de verdade, e a
maioria são pessoas pretas, então não dá para pensar em discutir
Filosofia Africana, em discutir uma clínica antirracista, sem entender
que nós estamos lidando com realidades políticas complexas na nossa
sociedade, e que isso vai para a nossa clínica também. De tal forma que
ela é coletiva. A luta é coletiva e a Filosofia Africana, traz esse cuidado
coletivo, temos a necessidade de cuidar do coletivo. Se um está bem, eu
sou porque nós somos. Se eu estou bem, todo mundo está. Caso a
sociedade esteja adoecida, o indivíduo também está adoecido.

Silvia Alencar: Temos perguntas? Ainda não. A Mônica também


está comentando aqui. A Mônica comentou que na semana que vem
teremos o seminário sobre a branquitude para discutir…A implicação da
branquitude nessa mudança estrutural é um braço tão importante
quanto, a responsabilidade é de todos, para mudar a estrutura de
herança. Comentário da Nilda. Se quiserem colocar perguntas, mais
666 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

considerações, ainda temos alguns minutos. Maravilhoso, vários


comentários também. Nossa, eu. Eu descobri que sou uma pessoa
racializada também sim, comentários aqui. Pessoal tem mais
perguntas?

Paula Campos: A Nilda, ela disse o seguinte, estou lendo o livro


pequeno manual antirracista. Então estou lendo o livro pequeno manual
antirracista, que acho que é da de Djamila Ribeiro. A autora fala que não
desconsiderarmos as cores das pessoas. Aí embaixo, mas a Nilda
pergunta, eu costumava ver apenas os olhos, o que acham? Mas em
baixo, ela diz, e isso mexeu muito comigo. Sou geneticista e biologista
evolutiva. A questão da superioridade não funciona em evolução, ela faz
comentários, e faz uma pergunta a Rozangela.

Rozangela Leite: Ela falou que ela só enxergava os olhos das


pessoas, não é isso? Isto. Ela é psicóloga? É isso? Não, ela disse que é
geneticista e biologista. Para tanto, não tem jeito de enxergar só o olho,
é o corpo todo, você estava falando, nós somos o corpo todo. Nós somos
mente, corpo e espírito. Espírito do ponto de vista, de espiritualidade.
De forma alguma dá para enxergar só o corpo, então acho que quando
ela está falando do manual antirracista da Djamila Ribeiro, ela vai
trazendo alguns conceitos. Que é importante para quem quer pensar
uma luta antirracista, de se apropriar, que é o que o doutor, que o
Professor Wanderson falou, que é o que a gente chama de letramento
racial. Aprecie o letramento racial, ele é tanto para pessoas pretas como
para pessoas brancas, que muitas vezes as pessoas pretas também não
sabem que tais são vítimas do racismo. Como o professor exprimiu,
então, muitas vezes elas vão trazer questões para nós no consultório que
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 667

se eu tiver um letramento, eu vou entender que aquela pessoa também


está sendo vítima do racismo e ela não sabe. Nesse sentido que a
discussão é válida, no meu posicionamento em que a Gestalt-terapia
exerço com ampliação da consciência. Tal pessoa tem a privação de
conhecer o campo. Enquanto mais, ela entende o seu campo, mas a sua
consciência está ampliada. Então o letramento racial é para todo
mundo. Em circunstância alguma dá para enxergar a pessoa só pelo
olho, a pessoa, ela é um todo. Nosso organismo como um todo. E aí
falando de pessoas pretas, nosso corpo é político. E pessoas brancas
também, mas aqui estamos falando é de pessoas pretas, então não dá
para enxergar só o olho. Que bom que ela está apreciando, lendo a
Djamila Ribeiro e que ótimo que ela está se letrando, e que ela está
ampliando um pouco os olhares dela, o campo dela, e enxergando para
além dos olhos.

Silvia Alencar: Então podemos pedir uma palavra, uma mensagem


final do professor Wanderson e da prof. Rozangela para a gente
caminhar para o final.

Wanderson Nascimento: Primeiro eu quero agradecer de novo.


Essa é uma discussão absolutamente fundamental. Precisamos, ainda,
pensar que esse deve ser um debate feito não apenas por quem trabalha
com a Psicanálise, mais que as outras abordagens da psicologia também
se engajem e esteja operando com a atuação antirracista. Precisamos,
ainda, pensar que esse é um debate difícil: que nos pensemos a partir
dos nossos lugares raciais é algo bastante difícil mesmo. Pela primeira
vez, sentimos a obrigação – e não só uma recomendação – de posicionar
essa escuta, não fazendo exercício de alteridade, porque ninguém vai
668 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

viver a experiência de ninguém. Mas, pelo menos em pensar que muitas


vezes aquilo que escutamos é diferente do que as pessoas estão
interessadas; dizer que estamos vivendo experiências raciais diferentes,
que a gente está vivendo experiências de gênero diferentes. E voltando
a essa discussão sobre a interseccionalidade que também acionou a
professora Rozangela, é importante que pensemos na necessidade de
uma escuta desarmada. E que não capture essas escutas na minha
experiência particular. Então eu wanderson, um homem cisgênero
negro, não vou ter a mesma experiência de uma mulher negra. Então
não posso simplesmente capturar a fala dela na minha pré-
compreensão. Tenho de desarmar minha escuta para entender que
aquilo que ela vive, aquilo que ela experimenta, é diferente. E a partir
daí, pode interagir nesse horizonte, de perceber que nós temos uma
sociedade completamente racista e completamente patriarcal.
É nesse movimento que nos colocamos, talvez nessa perspectiva da
empatia como um treinamento. Eu não gosto da ideia de empatia como
um sentimento natural; penso que a empatia é um procedimento que
precisamos desenvolver, treinar para que a gente entenda que a
experiência daquelas pessoas que não têm a mesma vivência que eu
precisam ser percebidas na sua particularidade, na sua singularidade, e
não que ela tenha que ser a responsável de resolver tudo aquilo no que
ela mesma está inserida enquanto uma matriz do sofrimento, mas fico
muito feliz em poder interagir com vocês e agradeço mais uma vez o
convite e desejo que esse debate continue na associação.

Silvia Alencar: Muito obrigada, professor Wanderson, muito


obrigada pela troca, muito obrigada por compartilhar esse espaço com
a gente.
Rozangela da Piedade Leite; Wanderson Flor do Nascimento • 669

Rozangela Leite: Eu queria agradecer imensamente o convite da


Mônica, do grupo, para essa conversa. Eu acho que a gente abriu pelo
menos um corregozinho na Gestalt-terapia. E quando a gente abre um
córrego, a gente pode chegar também no rio e talvez no mar. Então eu
acredito que alguns psicólogos pretos e eu, da Gestalt-terapia, estamos
nessa batalha. Sendo resistente dentro da própria Gestalt-terapia
entendendo que é importante essa discussão enquanto campo
fenomenológico, para a gente poder compreender e entender melhor e
cuidar melhor da psicologia Brasileira. Então eu queria agradecer a
presença do professor Wanderson essa troca de conhecimento, essa
troca com você, que eu não conhecia, e com a Paula e que a gente possa
ter outros momentos também, para a gente ir ampliando cada vez mais
o nosso campo e o nosso letramento, para que a gente possa ter uma
sociedade mais humana, uma sociedade melhor, um ambiente melhor
coletivamente, para que a gente possa viver como diz a filosofia
africana, um grande abraço pra vocês. Muito obrigado pelo convite!

Silvia Alencar: Muito obrigada Rozangela! A Mônica está dizendo


aqui também, só agradecer, uma discussão fundamental para
terapeutas, agradecemos muito pela participação e contribuição de
Wanderson, Rozangela, Paula e Silvia.

Paula Campos: Mas é agradecer, estou adentrando nas questões


raciais, bem leiga ainda, estudando para estar contribuindo da melhor
forma. Então agradeço a todos, Sílvia, Wanderson e a Rozangela por essa
partilha aqui e o conhecimento que foi passado.
670 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Silvia Alencar: Muito obrigado pela participação, a presença de


todos, todas e todes e em especial a Paula Campos e os convidados
Rozangela Leite e prof. Wanderson Nascimento, é um prazer estar aqui
com vocês para essas trocas, por essa prosa, por esse diálogo, que
possamos estar aqui em outros momentos.
Muito obrigado! Um abraço.
30
BRANQUITUDE
Whiteness
Blancura

Data: 17/08/2022
Convidados: Priscila Elisabete da Silva e Mônica Alvim
Mediadora: Kênia Résiley

ABERTURA DA LIVE

Kênia Résiley: Boa noite a todos que estão nos assistindo, vamos
dar início ao nosso encontro. Essa é mais uma live que faz parte do nosso
projeto de seminários intitulado Desconstruindo Fronteiras,
organizado pelos Núcleos de Relações Étnico Raciais e Gênero e
Diversidade Sexual. O tema da live de hoje é branquitude, e a ideia desses
seminários surgiu para trazer essa discussão aqui para ABG de
temáticas sociais importantes que a gente não vê sendo discutidas nesse
espaço.
Vou me apresentar para vocês e apresentar as nossas convidadas
de hoje. Me chamo Kênia Résiley, sou Psicóloga Clínica (UFMG), atuante
com uma perspectiva de Clínica Racializada. Especialista em Psicologia
Clínica em Gestalt-terapia e Análise Existencial (UFMG). Estudiosa da
temática de relações raciais na psicologia e integrante da coordenadoria
do Núcleo de Relações Étnico Raciais da ABG.
A live de hoje é sobre o tema da Branquitude e as palestrantes serão
Priscila Elisabete da Silva, doutora em educação e pesquisadora do tema
672 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

das relações raciais e Mônica Botelho Alvim, doutora em psicologia e


Gestalt-terapeuta, pesquisadora nesse campo .
A live de hoje tem um tema importantíssimo quando a gente pensa
nas relações raciais e como ela se estrutura no contexto do racismo no
Brasil. Gostaria de passar a palavra agora para professora Priscila, para
iniciar nossa conversa.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 673

BRANQUITUDE: CONTRIBUIÇÕES PARA O PROCESSO DE LETRAMENTO


RACIAL

Priscila Elizabete da Silva

Agradeço ao convite da profa. Mônica Alvim e estendo o


agradecimento para toda a equipe que organizou o evento que deu
origem a esta reflexão. Também agradeço a companheira de mesa Kenia
Résiley e a você que está lendo este texto e, com isso, fortalecendo a
possibilidade de edificarmos uma sociedade mais equitativa.
O convite que recebi para refletirmos juntas(os)(es) me acionou a
pensar um pouco mais sobre o tema branquitude e como ele tem se
apresentado atualmente, então, desde já agradeço e espero retribuir,
ainda que minimamente, a partir de minha singela intervenção aqui.
Minha expectativa, que também é um convite a quem me lê, é que
possamos pensar conjuntamente, então vou compartilhar algumas
reflexões para subsidiar nossa “conversa” a fim de aprendermos a como
podemos “desconstruir fronteiras” como foi o tema do Seminário que
inspirou este texto.
Talvez eu decepcione alguns/algumas de vocês ao dizer que não sou
pesquisadora da branquitude, isto é, não é a branquitude meu “objeto de
pesquisa”. Eu tenho me dedicado a entender como se constituem as
relações raciais em nosso país e suas implicações especialmente ao
campo educacional. É desta perspectiva que falo sobre branquitude:
como um dos fenômenos que nos aponta como se configuram as
relações raciais em nosso país.
É importante, desde já, que entendamos que a branquitude não é
um fenômeno novo, ainda que, dentro da academia brasileira tenha sido
674 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

considerada como relevante (no sentido de ser analisada) a partir da


década de 1990 (Cardoso, 2008) e, no âmbito social, recentemente tem
sido tema de discussão em redes sociais e outros meios de comunicação.
Estamos falando de um fenômeno que estrutura a modernidade
(Grosfoguel, 2008) mas que há pouco tempo tem sido observado e
considerado do ponto de vista crítico/analítico. Isso já nos diz muita
coisa, não é? Que fenômeno é este capaz de se propagar por contextos
histórico-sociais distintos de maneira quase que imperceptível (ou pelo
menos pouco observado e questionado)? Quais seriam as estratégias
utilizadas para tanto?
O que sabemos é que estamos diante de um fenômeno fluído,
capilar com capacidade de infiltrar-se nas estruturas sociais moldando-
as para garantir sua perpetuação constante. Percebam... estamos diante
de um fenômeno que aprendemos a neutralizar, a naturalizar. Como
isso é possível? A resposta pode ser encontrada quando observamos os
modos pelos quais fomos (e ainda somos) socializado/as. Fomos
ensinado/as que há um modelo de Ser Humano e o indivíduo branco é
quem materializa a condição humana (porque produz cultura,
religiosidade, instituições sociais, políticas e econômicas). Essa
narrativa veio sendo construída, pela intelectualidade branca, desde o
contexto da colonização europeia e serviu para legitimar a expropriação
de bens materiais e simbólicos dos não europeus, dos colonizados
(Fanon, 2008).
No caso do Brasil a branquitude estruturou, sobretudo, nossa:

• Concepção de identidade nacional (num processo que girou – e gira – em


torno da tríade branqueamento-democracia racial-branqueamento);
• Instituições de educação desde a educação básica até a superior (SILVA, 2020);
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 675

• Nossas instituições jurídicas, políticas, culturais, científicas, de saúde etc.

Sabemos que, quando se está em todo o lugar a tendência é


“desaparecer”, tornar-se padrão e assim invisibilizar-se na medida em
que se naturaliza a ausência da diversidade. Neste processo os sistemas
educacionais foram (e são) estratégicos. Ensinando que o indivíduo
branco é:

• ser humano;
• desbravador, conquistador;
• civilizado e moderno;
• quem detém a capacidade intelectual e de governança;
• detentor de direitos e deve ter assegurada sua individualidade.

Essa narrativa que superestima o indivíduo denominado “branco”


deu o tom na construção do imaginário social brasileiro. Para tanto, foi
preciso apagar a percepção histórica-social de que o branco foi quem:

• Construiu o racismo;
• Escravizou seres humanos;
• Violou (e viola) corpos e mentes;
• Tem sido o grande explorador da força de trabalho de outros seres humanos;
• Segregou, matou (e mata) por acreditar que é superior aos demais humanos.

De modo que, ao falar em branquitude estamos falando em


racismo. Estamos falando de uma ideologia construída por um grupo de
humanos que usaram de critérios (fenotípicos, culturais, morais) para
dividir seres humanos em categorias classificando-os e
hierarquizando-os numa escala que ia (vai) do “menos humano”
(selvagem = não brancos) ao humano (civilizado = europeu).
676 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Toda uma estrutura foi construída para alicerçar essa lógica e


legitimar essa narrativa única sobre o que é Ser Humano. Argumentos
religiosos, científicos, culturais, morais, foram sendo utilizados para
justificar invasões, estupros, roubos, mortes em nome da expansão
europeia e configuração da ideia de “modernidade” ocidental.
Quando abordamos outra perspectiva da história – para além da
eurocêntrica – percebemos haver uma conexão entre as ideias de
modernidade, raça e gênero (Quijano, 2005 e 2017; Maldonado-Torres,
2016).

A Modernidade começa a aparecer não somente como moderna frente a


uma Antiguidade ou a uma Idade Média, mas como branca frente a uma
zona que se identifica como não branca e parcialmente negra. A pele negra
permite que a linha ontológica colonial seja visível e apareça na forma de
uma dicotomia hierárquica entre negro e branco. Da mesma forma, as
atitudes frente à pele negra denunciam as obsessões e os desejos dos
sujeitos modernos, tanto em sua versão negra como branca. (Maldonado-
Torres, 2016, p. 92).

A modernidade que conhecemos foi instaurada tendo o racismo e,


consequentemente a branquitude, como seu alicerce. A distribuição dos
bens materiais e simbólicos são baseados na ideia de que brancos são
mais “competentes” que negros e indígenas. Essa narrativa tem sido
reafirmada consciente e inconscientemente especialmente por
indivíduos brancos (Diangelo, 2018) a despeito do que apontam
indicadores sociais que revelam, indubitavelmente, o racismo
estrutural (Almeida, 2018) que opera em nosso país.
A branquitude: que é um construto ideológico, um ideário
(construção social idealizada e praticada por indivíduos brancos) é
também um lugar no qual o branco vê a si e aos outros. Ela confere ao
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 677

indivíduo branco uma percepção de identidade autoafirmada, um lugar


de poder, uma posição sempre beneficiada e vantajosa em relação aos
não brancos (Ware, 2004; Cardoso e Müller, 2017).
Percebam que o fenômeno da branquitude trabalha dentro de uma
lógica dual e opositora na qual o outro é visto como aquilo que o branco
não é (Bento, 2009; Silva, 2020). Nesta construção ideológica reconhecer
a alteridade do não branco é algo frágil. Não se pensa o outro como um
humano semelhante, tampouco como complementar a mim; o outro é
visto pela oposição a mim (ou seja, a diferença se transforma em
desigualdade). Podemos entender que, no limite, o que fundamenta essa
lógica é a ideia de hierarquia racial.
Então, o que estamos falando aqui é que a branquitude é um
fenômeno que tem atualizado a lógica racista. Quando os brancos não
admitem a existência e privilégios da branquitude e/ou fogem do
letramento racial perpetuam essa lógica. Dito de outro modo, a
branquitude é um fenômeno que tem constituído subjetividades que
trabalham para a reprodução do racismo.
A Branquitude (essa “ficção” que o branco construiu e vem
afirmando para legitimar sua condição favorável de existência) tem sido
reproduzida por sofisticadas estratégias das quais podemos citar: o
pacto narcísico – cumplicidade entre pares – (Bento, 2009); o racismo
institucional; o racismo estrutural (Almeida, 2018) e o racismo
epistêmico (Grosfoguel, 2011; Quijano, 1992).
É preciso ter consciência de que o projeto de civilização ocidental
que conhecemos e vivenciamos permanece colonizando o ser,
destituindo nosso potencial enquanto ser humano. Os limites desse
modelo de organização social já se fazem presentes. Estamos num
contexto histórico-social em que não é mais possível usurpar e sair
678 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

ileso. Os sujeitos que vivem os privilégios legados pela branquitude não


podem mais ignorar que para tanto submetem os “não brancos”
(especialmente negros e indígenas) a opressão racial (Grosfoguel, 2011).
Precisamos de fato nos atentarmos para como tem se configurado
as relações raciais em nosso país, o comprometimento antirracista deve
ser, sobretudo, daquele/as que se beneficiam da branquitude, ou seja, da
lógica racista. É necessário ampliarmos nossa concepção sobre as
expressões da branquitude para que possamos fazer frente às posturas
que as legitimam.
Como podemos fazer?

• Precisamos identificar as expressões da branquitude (como e por quais meios


ela tem se propagado). Como se apresenta em nós, em nosso cotidiano, em
nossa sociedade?
• Precisamos sair do paradigma dual e pensar o potencial das relações a partir
de suas complexidades. Somos seres relacionais, complexos, vivendo num
mundo complexo, mas experimentando o mundo pela perspectiva restrita do
eurocentrismo, do cartesianismo, do individualismo). No paradigma
complexo não cabe narrativas totalizantes, não cabe o eu sem o nós.

O LETRAMENTO RACIAL COMO PASSO INICIAL

O conceito de letramento racial tem sido evocado para apontar


para a possibilidade de reconfiguração da identidade/subjetividade de
sujeitos brancos.

“Letramento racial” é um conjunto de práticas que pode ser melhor


caracterizado como uma “prática de leitura” – uma forma de perceber e
responder individualmente às tensões das hierarquias raciais da estrutura
social – que inclui o seguinte: (1) um reconhecimento do valor simbólico e
material da branquitude; (2) a definição do racismo como um problema
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 679

social atual, em vez de um legado histórico; (3) um entendimento de que as


identidades raciais são aprendidas e um resultado de práticas sociais; (4) a
posse de gramática e um vocabulário racial que facilita a discussão de raça,
racismo e antirracismo; (5) a capacidade de traduzir e interpretar os códigos
e práticas racializadas de nossa sociedade e (6) uma análise das formas em
que o racismo é mediado por desigualdades de classe, hierarquias de gênero
e heteronormatividade (Twine, 2006, p. 344 apud Passos, 2013, p.83-84).

Percebemos um movimento que requer tomada de atitude e


engajamento por parte de sujeitos brancos. Para tanto, reconhecer a
existência da branquitude é o passo fundamental, o que implica em ter
de passar pelo estresse racial (Diangelo, 2018).
Estamos diante de uma questão ética que toca toda a humanidade.
Como é possível mantermos um sistema social que está baseado no
privilégio racial de um grupo (branco) em detrimento da opressão racial
e do estresse racial de outros grupos (negro e indígena)? Qualquer
indivíduo que se guie por valores éticos será desafiado a engajar-se em
práticas antirracistas (é preciso entender que o racismo é uma
construção dos brancos e cabe, sobretudo, aos brancos desconstruí-lo).
Importante pontuar que, em sua grande maioria, as ações
antirracistas em nosso país têm sido engendradas pela polução negra e
indígena. A branquitude crítica (Cardoso, 2010), isto é, que apresenta
capacidade de exercer autorreflexão ainda apresenta limites para seu
engajamento (Diangelo, 2018; Cardoso, 2020; Finguerut e Silva, 2020;
Silva e Passos, 2021).
Sem vivenciar estresse racial o indivíduo branco terá dificuldade
de desenvolver estruturas cognitivas e emocionais para superar a
branquitude e, consequentemente, deixar de reproduzir o racismo
(Diangelo, 2018). É preciso começar pela esfera individual,
680 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

questionando-se sobre seus privilégios, o modo como se age frente a dor


racial que o “Outro” apresenta. O movimento seguinte deve ser expandir
a reflexão e a ação para a sociedade como um todo, cobrando a mudança
das estruturas de reprodução do racismo.
Construir espaços de formação (para todas as pessoas) terem
contato com a complexidade do racismo (ou seja, entender as
implicações para além do conhecimento e da experiência pessoal), do
ponto de vista teórico e prático é necessário. Neste sentido a educação
antirracista é indispensável.
Necessário também reconhecer a “arrogância racial” (Diangelo,
2018) isto é, a atitude de lidar com o racismo dentro de seu/sua
experiência restrita não raramente constituída por um conjunto de
referências teóricas oriundas de uma forma de pensar ainda racializada,
porque eurocêntrica.
Interpretar códigos racistas, ou seja, expressões da branquitude
(Silva, 2020; Silva e Passos, 2021) seja em qual profissão estivermos é
condição fundamental para promovermos uma sociedade equitativa.
Aqui esboço algumas reflexões necessárias, a meu ver, e caminhos
possíveis para promovermos uma sociedade na qual poderemos SER a
partir do reconhecimento e da valorização da diversidade humana.

REFERÊNCIAS

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(orgs.). (2009) Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento
no Brasil. Vozes.

Diangelo, R. (2018) Fragilidade branca. Dossiê Racismo. Revista Eco-pós, v.21, n.3.

Cardoso, L. (2008).O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas


pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (Período: 1957-2007). 2008. 232 f.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 681

Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de Economia e Centro de Estudos


Sociais da Universidade de Coimbra.

Cardoso, L.(2010). Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco


antiracista. Revista Latino americana de ciencias sociales, niñez y juventud. v. 8, p. 607-
630.

Cardoso, L..(2020) O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre o pesquisador branco
que possui o negro como objeto científico tradicional. A branquitude acadêmica: v.2.
Appris.

Finguerut, A.; Silva, P. E. da. (2020).Crise democrática e racismo no Brasil. In: Dossiê
Crise e novos rumos da democracia. Revista Ambivalências, v. 8, n. 16, p-56-87,

Fanon, F. (2008)Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA.

Grosfoguel, R. Cambios conceptuales desde la perspectiva del sistema-mundo: del


capitalismo al neoliberalismo. In: Amya Villa & Bonilla Grueso (2008). Diversidad,
interculturalidad y construcción de ciudad. Bogotá: Universidad Pedagógica Nacional.

Maldonado-Torres, N.(2016) Transdisciplinaridade e decolonialidade. Revista Sociedade


e Estado, v. 31, n. 1. jan.-abr. 2016.

Passos, A. H. (2013)Um estudo sobre branquitude no contexto de reconfiguração das relações


raciais no Brasil, 2003-2013. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Serviço Social da PUC-Rio.

Silva, P. E. da. (2021)O potencial de práticas decoloniais na formação docente. In: ITAÚ
SOCIAL ET AL. Equidade Racial na Educação Básica: artigos científicos [recurso
eletrônico]. São Paulo. https://editalequidaderacial.ceert.org.br/.

Silva, P. E. da.; PASSOS, A. H. (2021) Expressões da branquitude no ensino superior


brasileiro. Revista Espaço Acadêmico, n.230, set-out. p. 03-24,.

Silva, P. E. da.(2020) As origens da USP: raça, nação e branquitude na universidade. Appris.

Silva, P. E. da. (2017)O conceito de branquitude: reflexões para um campo de estudo. In:
MÜLLER, T; CARDOSO, L. C. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil.
Appris.
682 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Quijano, A. (2014) Colonialidad del poder y clasificación social. In: Cuestiones y horizontes:
de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder.
Buenos Aires. CLACSO.

Quijano, A.(1992) “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad”. Perú Indígena. 13(29), p.11-


20.

Kênia Résiley: Eu agradeço, obrigada pela tua fala, Priscila.


Mônica, gostaria de fazer as suas considerações sobre a fala da
professora Priscila e trazer suas contribuições?

Mônica Alvim: Foi muito bom escutá-la e encontrar muitas


ressonâncias. Eu sou uma pesquisadora da Gestalt-terapia e o meu tema
principal tem sido o corpo. E eu tenho feito um percurso já há alguns
anos, com um trabalho na extensão universitária, onde eu trabalhei
durante muito tempo em favelas aqui no Rio de Janeiro, com crianças e
jovens. O que provocou um grande rebuliço no meu percurso
profissional de pesquisadora e, aliado a isso, nos últimos anos muitas
pessoas da Gestalt-terapia me procuraram interessadas em pesquisar
temas envolvendo relações raciais, relações de gênero, e eu tenho então
abraçado um pouco isso, tenho estudado, tenho pesquisado, enfim,
tenho me interessado. Faço parte do núcleo de relações étnico-raciais
da ABG, junto com a Kênia e outras pessoas e a formação desse núcleo
foi uma iniciativa da nossa associação que já tem 1 ano e meio, período
em que temos realizado muitas atividades. Eu estou muito interessada,
ouvi-la é muito bom, além de haver sublinhado várias coisas que eu
tenho também pensado, lido e entrado em contato mais recentemente.
E fico muito feliz de poder fazer esse debate aqui.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 683

BRANQUITUDE E CLÍNICA: ELEMENTOS PARA PENSAR UMA PRÁTICA


ANTIRRACISTA NO ÂMBITO DA GESTALT-TERAPIA

Mônica Alvim

Uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento
em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos
compartilhados coletivamente, cuja existência antecede a formação de sua
consciência e de seus afetos.
Silvio de Almeida (2019, p. 47).

Como psicólogos, Gestalt-terapeutas, trabalhamos com o processo


de produção de sentidos e de subjetividades. Nossa perspectiva centrada
na noção de contato implica pensar numa existência que é sempre
situada, no mundo com o outro, conectados intersubjetivamente com
essa rede de sentidos compartilhados que articula o campo vivido.
Habitamos esse mundo como corpos, em copresença com o outro
que também é um corpo movente e sentiente e comunga conosco
semelhanças e diferenças, partilhando um fundo comum, um campo
intersubjetivo e intercorporal. Todas as nossas experiencias perceptivas
são informadas intersubjetivamente por uma rede de sentidos,
estruturas sócio-histórico-culturais que estão na base de nossas formas
de sentir, falar e agir.
Relações de opressão e de dominação estão apoiadas em estruturas
como o racismo, construídas historicamente e que permanecem no
fundo de nossas experiencias, de modo inconsciente, como afirmado
por Almeida (2019) referido na epígrafe.
A psicologia brasileira foi construída com bases cientificistas,
atrelada às epistemologias modernas eurocêntricas como forma
específica de produção de conhecimento. De acordo com Bernardino-
684 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Costa, Maldonado-Torres & Grosfoguel (2020) sendo o racismo princípio


constitutivo que organiza, a partir de dentro, todas as relações de
dominação da modernidade ele é “princípio organizador daqueles que
podem formular um conhecimento científico legítimo e que não o
podem” (p.11). As questões étnico-raciais não estão presentes nos
currículos de psicologia, criando uma falha na formação acadêmica que
reflete o racismo estrutural e sua reprodução pelas instituições. A
instituição universitária é instituição produtora de saberes e de
pressuposições científicas, compondo estruturas epistemológicas que
agem igualmente reproduzindo o racismo e as relações de dominação e
hierarquia na produção de conhecimento. E podemos falar de
colonização epistêmica com José Jorge de Carvalho (2018), ou de
privilégio epistêmico com Grosfoguel (2016).
A Gestalt-terapia não foge a isso. Tendo sido formulada por
pensadores europeus e estadunidenses, em sua maioria homens
brancos, tem caminhado muito pouco, ou quase nada, na direção de
legitimar saberes localizados e que resgatem outras epistemologias,
assim como na discussão de temas ligados a problemas estruturais
como o racismo. As formações recentemente vêm incluindo, ainda de
forma tímida e localizada, módulos abordando relações raciais, relações
de gênero e sexualidade, conforme recomendações da Associação
Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica para formação
(ABG, 2021).
Um fato digno de nota faz referência à história da Gestalt-terapia,
que foi marcada por uma divisão, ocorrida no seu desenvolvimento,
entre uma corrente que enfatizava o corpo e os sentidos e outra
considerada mais intelectual, por assim dizer. Essa divisão, que
acompanhou os extremos geográficos da costa oeste e costa leste dos
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 685

Estados Unidos, acabou por instituir uma fronteira, representada por


uma imagem metafórica inspirada na cultura estadunidense: caras-
pálida e peles-vermelha. A imagem e os termos foram tomados
emprestado de uma discussão no campo da literatura estadunidense
(Rahv, 1939) e introduzidos com o intuito de criticar a divisão entre
razão e sentidos, buscando afirmar uma integração do sujeito. Os
termos foram consagrados na Gestalt-terapia como forma de narrativa
da história de suas origens e passou a se constituir em um incômodo
para mim quando iniciei os estudos e pesquisas em relações raciais e
vislumbrei nesses termos um flagrante racismo, assumindo a cor da
pele como o critério que institui a linha divisória. O termo “pele-
vermelha” faz alusão aos indígenas, povos originários do território que
viria a se tornar os EUA e seu uso - assim como a adoção de imagens e
símbolos da cultura indígena como representantes de times de futebol
americano - tem sido alvo de críticas contundentes. Considerados
estereótipos depreciativos, a crítica se baseia na história estadunidense
de violência contra os povos nativos e vem resultando objetivamente na
mudança de nomes, como por exemplo do time de futebol americano
que se chamava “Redskins” e que passou a se chamar “Washington
Commanders” .
Considero necessária uma discussão crítica no âmbito da Gestalt-
terapia que possa rever esses termos e atualizar-se epistemológica e
conceitualmente para ganhar coerência com perspectivas antirracistas,
refletindo na formação do psicólogo e em sua atuação clínica.
Em matéria publicada em 2020 na plataforma de notícias UOL, com
o título “Após trauma na terapia, negros buscam psicólogos da mesma
686 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

cor” 1, há um problema central que é colocado da seguinte forma: ao se


consultar com psicólogos brancos, muitas pessoas negras (pretas e
pardas) relatam ter suas dores minimizadas ou desconsideradas. O que
temos ouvido recorrentemente em conversas entre psicólogos, em
grupos de supervisão, em redes sociais e em seções de terapia de clientes
que buscam outro terapeuta mais sensível às questões envolvendo
relações raciais. O problema envolve, via de regra, uma desqualificação
do sofrimento da pessoa negra quando submetida a situações de
racismo, o que pode se dar por uma psicologização do problema, o que
resulta em uma segunda violência, ao atribui-lo à pessoa, omitindo as
questões estruturais da sociedade e o racismo institucional ou
individual. O terapeuta pode também fazer generalizações para o outro
baseado em suas experiencias privilegiadas ou em estereótipos.
O problema não se limita ao âmbito da clínica, mas acontece em
instituições, como escolas e organizações públicas e privadas. Cida
Bento é uma autora que desenvolveu longamente o tema das relações
raciais no âmbito do trabalho e nos mostra claramente as diferenças e
desigualdades entre pessoas negras e brancas nos processos seletivos
que dão acesso ao mercado de trabalho, processos onde estão envolvidos
psicólogos.
De acordo com dados do Conselho Federal de Psicologia 2, em
pesquisa feita pelo DIEESE 3 sobre a pesquisa sobre a inserção de

1
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/10/09/apos-trauma-na-terapia-negros-
buscam-psicologos-da-mesma-cor.htm?cmpid=copiaecola.
2
https://site.cfp.org.br/dieese-divulga-pesquisa-sobre-a-insercao-de-psicologos-as-no-mercado-de-
trabalho/.
3
Quando a pesquisa foi feita, os (as) psicólogos (as) negros (as) ocupados (as) recebiam, em média,
menos que os (as) não negros. Um (a) psicólogo (a) negro (a), em média, recebia R$ 2.921, valor que
corresponde aproximadamente a 83% do que um (a) não negro (a) (R$ 3.514). Quanto à remuneração
por tipo de atuação, eram os que trabalhavam por “conta própria” que recebiam valores superiores (R$
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 687

psicólogos (as) no mercado de trabalho, realizada em 2014, 16,5% dos


psicólogos(as) brasileiros eram negros ou negras, o que indica uma
predominância muito grande de pessoas brancas na profissão e nos leva
a afirmar que no combate ao racismo na psicologia, o tema da
branquitude precisa ser amplamente debatido.
Esse é um trabalho urgente, que deve envolver os currículos de
graduação e de pós-graduação, as instituições de ensino e formação, os
órgãos representativos de psicólogos como conselhos, sindicatos e
associações. Para combater o racismo estrutural e transformar essa
rede de sentidos compartilhada à qual se refere Silvio de Almeida, é
necessário um trabalho de letramento, envolvendo reflexão crítica que
passa tanto por uma discussão teórica quanto por um trabalho de
implicação pessoal que permita desvelar forças invisíveis presentes nos
hábitos perceptivos, motores e linguageiros de cada um de nós.

RAÇA, RACISMO E BRANQUITUDE: ASPECTOS HISTÓRICOS

O problema da branquitude é de fundamental importância no


campo das relações raciais. Urge que as pessoas brancas compreendam
a branquitude e sua implicação no problema da racialização.
O branco foi, historicamente, situado no centro, como referência
de normalidade e ocupando o lugar de universal, produtor de
hierarquizações que o coloca em lugar de superioridade e situa os não
brancos em lugar de inferioridade. Esse processo foi construído
historicamente, tendo como marco a colonização europeia e a fundação
do capitalismo.

3.772) aos auferidos pelos que atuam como funcionários públicos estatutários (R$ 3.246), empregados
com carteira (R$ 3.214) e sem carteira (R$ 2.452).
688 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Tendo a noção de raça sido inventada como um divisor entre os


europeus e os povos originários dos territórios invadidos durante o
processo de colonização das Américas, foi instituída uma lógica racista
que criou uma hierarquia entre povos brancos europeus, civilizados e
superiores e povos não-brancos (por ele denominados índios),
primitivos e inferiores. Como discute Grosfogel (2016), o debate ocorrido
na Europa do século XVI, após a “descoberta” da América sobre se os
ditos “índios” possuíam ou não almas foi uma lógica racista que no
século XIX foi reproduzida nos discursos cientistas sobre ter ou não uma
biologia humana. Essa lógica foi o princípio organizador da divisão
internacional do trabalho, base da acumulação capitalista que ganhou
escala mundial. Ou seja, a formação de um sistema-mundo capitalista
envolveu a estruturação do poder pelo colonialismo.
O racismo tem a raça como fundamento, envolvendo a ideia de
hierarquia como categoria mental da modernidade, naturalizando as
relações sociais em padrões de dominação, na qual “raça e identidade
racial foram estabelecidas como instrumento de classificação social
básica da população” (Quijano, 2005, p.117). A naturalização da tese da
hierarquia de culturas e povos resulta no que estudos decoloniais
latino-americanos 4 denominam colonialidade. A colonialidade é uma
espécie de enraizamento da lógica colonial, mesmo na ausência de
colônias formais, envolvendo a exposição a lógicas e conflitos
considerados como não mais existentes, mas que estão presentes nas
estruturas sociais.
Desse modo, as relações intersubjetivas se articulam a partir de
posições de domínio e subalternidade, pautadas na colonialidade do ser,

4
Refiro-me aqui especificamente aos autores do grupo Modernidade/Colonialidade. Anibal Quijano,
Grosfoguel, Enrique Dussel, Santiago Castro-Gomez.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 689

do saber e do poder, que legitimam as diferenças sociais por meio de


raças, alimentando e perpetuando as diferenças impostas como se
fossem naturais. Mesmo estando cientes, na atualidade, de que
inexistem determinações biológicas que sustentem o conceito de raça,
ela segue presente em nossa estrutura social.
É nesse sentido que se afirma com frequência que o racismo é um
conflito historicamente enraizado na sociedade, sendo reproduzido na
política, na economia e das relações sociais, fazendo parte de sua
estrutura e podendo ser considerado um fenômeno estrutural. Silvio
Almeida (2019) desenvolveu discussões acerca do racismo estrutural,
tendo abordado as dimensões ideologia, política, direito e economia
como dimensões que manifestam o racismo. De acordo com o
pesquisador, (op.cit., p.31) “a raça é um elemento essencialmente
político, utilizado para naturalizar desigualdades e legitimar a
segregação e o genocídio”. Ele define o racismo como “forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se
manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que
culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender
do grupo racial ao qual pertencem”. (Almeida, 2019, p.32)

A BRANQUITUDE

A branquitude tem sido definida pela maior parte dos


pesquisadores brasileiros como a identidade racial do branco, sendo
compreendida por Silva (2017) como um construto ideológico de poder
que nasceu no contexto do projeto moderno de colonização europeia,
como vimos discutindo.
690 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Assim, ela envolve o problema central da raça e da racialização


como referências que legitimam posições hierárquicas de superioridade
e privilégio, marcando o corpo não-branco como inferior e racializado.
Como se o corpo branco representasse o parâmetro universal e normal,
assumindo um lugar de neutralidade que o isenta de ser nomeado como
raça, ou seja, um ser não-racializado.
No Brasil, esse aspecto é agravado por uma negação da diferença e
discriminação racial que afirma o mito da democracia racial como
marca de nossa identidade. Guerreiro Ramos discute as origens desse
mito no bojo de escritos sobre negros realizados por pesquisadores
brasileiros da época, o que produziu o que ele denomina “patologia
social do ‘branco’ brasileiro” (Ramos, 1955). Essa patologia implica uma
recusa de nomear-se negro e uma identificação como branco, na busca
de uma superioridade. Nas discussões do autor, podemos encontrar
elementos que alimentaram a “ideologia da brancura” e a não-
racialização do branco.
Franz Fanon, em 1952, segue nessa direção, dando ao livro que se
tornaria uma referência no tema das relações raciais e do racismo o
título “Pele negra, máscaras brancas” (Fanon, 1952/2020). Esse título
expressa a problemática da subjetividade e identidade do negro, que,
colonizado e colocado num lugar abjeto, precisou fazer-se branco para
ter sua humanidade reconhecida. Segundo Fanon, o dilema do negro
inserido em uma estrutura social que é a “verdadeira fonte conflitual” é
“branquear-se ou desaparecer” (Op.cit., p.114).
Schucman (2014) discute a branquitude como uma identidade
social normativa, na qual o branco, considerando-se desracializado,
atribui o problema do racismo aos não-brancos. Podemos notar o lugar
de privilégio refletido nessa (suposta) ausência de consciência do branco
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 691

de sua identidade racial, o desimplicando, de certo modo, do problema


do racismo e de suas vantagens. Tema controverso e que muito nos
interessa.
Miranda discute longamente a problemática da invisibilidade da
branquitude sobre seus próprios privilégios raciais, destacando seu
caráter controverso na literatura. Ele marca a diferença entre a não
percepção de si como grupo racial e a não percepção de seus privilégios,
aspectos que considera interligados, mas distintos. (Miranda, 2019,
p.47). Identificar-se com o grupo racial branco implicaria o sujeito com
a violência colonial, trazendo toda uma carga simbólica negativa
associada ao colonizador. Por outro lado, há uma carga simbólica e
material positiva associada ao fato de ser branco, caracterizando o que
se discute como privilégio.
Bento (2022) aborda o pacto narcísico como “um pacto de
cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter
seus privilégios” (p.18). Essa aliança entre brancos é oriunda de uma
herança marcada por expropriação, violência e brutalidade. Considera
que essa herança está inscrita na subjetividade coletiva sem que seja
reconhecida publicamente. Assim, “o herdeiro branco se identifica com
outros herdeiros brancos e se beneficia dessa herança, seja concreta,
seja simbolicamente” (op.cit., p.24). Nessa identificação se forma um
pacto, um acordo tácito, um compromisso coletivo não-verbalizado de
manutenção do lugar de privilégio. “O pacto é uma aliança que expulsa,
reprime, esconde aquilo que é intolerável para ser suportado e
recordado pelo coletivo (...) suprime as recordações que trazem
sofrimento e vergonha, porque são relacionadas à escravidão” (op.cit.,
p.25).
692 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

A meritocracia tem sido utilizada pela branquitude como


argumento para justificar a desigualdade. Bento (2022) discute o
problema da branquitude no âmbito das instituições e argumenta que
acordos não verbalizados acabam atendendo interesses grupais da
maioria branca. No imaginário social a questão do mérito está atrelada
ao esforço individual, desconsiderando os privilégios que esses
indivíduos brancos tiveram ao longo da vida em termos de condições
mais gerais de vida, educação, moradia etc. em relação aos não-brancos.
Propondo distinguir invisibilidade e neutralidade, Miranda (2019)
considera a invisibilidade uma questão de inconsciência da situação de
privilégio, certa acomodação passiva e sem autocrítica frente aos
privilégios. A neutralidade, por sua vez, implicaria ter consciência da
situação de privilégio e um posicionamento sem autocrítica e ativo de
dissimular e omitir seus privilégios com o objetivo de mantê-los.
Ressaltamos que a ausência de autocrítica é fator crucial nessa
discussão.
Quando propomos trazer essa discussão para o âmbito da Gestalt-
terapia, entendemos que o terapeuta branco precisa tanto visibilizar sua
branquitude quanto exercer uma autocrítica frente a seus privilégios
para que seja capaz de ouvir a pessoa não-branca e tentar compreender
sua vivência, de seu ponto de vista. A neutralidade – que se constituiria,
segundo Miranda, em dissimular sua situação de privilégio – colocaria
o terapeuta numa posição eticamente muito complicada, como
abordaremos adiante.
Lourenço Cardoso (2019) distingue branquitude crítica e acrítica. A
posição crítica caracteriza os brancos antirracistas e a branquitude
acrítica faz referência aos brancos que são favoráveis às teses da
superioridade racial. Ele opta por essa distinção feita no espaço público,
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 693

associando a branquitude crítica aos brancos que publicamente se


declaram antirracistas e a branquitude acrítica aos que são defensores
de posições racistas. Cardoso justifica essa escolha pelo fato de
considerar que seria muito difícil nas pesquisas acessar práticas
disfarçadas e em geral restritas a espaços mais privados e íntimos,
assim como pelo fato dele ser um pesquisador negro, o que, em tese,
inibiria as pessoas de se manifestarem diante dele de forma racista. A
branquitude crítica, ele ressalta, não necessariamente critica de forma
geral o privilégio branco, vive sob o princípio moderno da igualdade “em
tese”, ama, convive, mas pode, em realidade, apenas suportar e tolerar
(Cardoso, 2019, p.39).
A tese de Cardoso nos leva a pensar no espaço clínico e no lugar do
terapeuta branco. Poderíamos pensar nesse espaço como aquele onde
seria praticamente impensável assumir uma posição acrítica no sentido
por ele apontado. Especialmente se o diálogo envolver um paciente
negro. Mas poderia facilmente assumir uma posição crítica ao racismo
sem se implicar pessoalmente com uma autocrítica, o que caracterizaria
a neutralidade apontada por Miranda (2019).
Schucman (2020) questiona se a invisibilidade seria real ou uma
fantasia. A autora pensa na branquitude como fenômeno calcado em
estruturas de poder que geram privilégios materiais e simbólicos. Ao
discutir os privilégios simbólicos (p.68) ela sublinha que esses
acontecem involuntariamente, sendo a branquitude um lugar racial da
superioridade e, não necessariamente, os sujeitos brancos individuais
se sentem conscientemente superiores aos não-brancos.
Nesse sentido é que consideramos fundamental explorar a
dimensão mais sutil dessa possibilidade crítica da branquitude, que é
uma exigência para nosso trabalho clínico pautado na horizontalidade
694 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

da relação e no encontro com a diferença, na alteridade e no


reconhecimento como forma de cuidado.
Uma branquitude crítica nesse sentido envolveria um mergulho do
terapeuta na dimensão mais invisível da estrutura social e nos
atravessamentos dela em sua dimensão pessoal. O que exige um
investimento tanto teórico quanto vivencial na sua formação que deve
ser contínua. Enfrentar suas próprias contradições e ambiguidades é
tarefa que implica abdicar de valor simbólico e romper com o pacto
narcísico. Não basta assumir uma posição crítica antirracista, mas
neutra e sem autocrítica. Se enxergar como branco não garante
perceber os próprios privilégios, é necessário um autoexercício crítico.

RACISMO, BRANQUITUDE E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES

A dimensão ideológica do racismo é, segundo Almeida (2019),


articulada em torno de visões falseadas da realidade que “moldam o
inconsciente” e se refletem no racismo individual, criando sujeitos
racializados (p.44). Como ele nos lembra, para que uma ideologia
subsista precisa estar ancorada em práticas sociais concretas. Essas
práticas, disseminadas nos corpos e hábitos por meio de instituições
como por ex. família e escola, são constitutivas dos sujeitos e, portanto,
produtoras de subjetividades, o que nos aproxima do campo da
psicologia.
A Gestalt-terapia compreende o sujeito e a produção de
subjetividades como um processo relacional, dado no mundo com o
outro, a partir de um campo organismo/ambiente que inclui as
estruturas sócio-históricas e ideológicas como forças que atuam na
formação dos sujeitos.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 695

A teoria do self da Gestalt-terapia descreve três funções, id, ego e


personalidade que funcionam como partes de um sistema integrado. A
função personalidade confere ao sujeito um núcleo de identidade que
reflete o que ele pensa ser, um conjunto de representações e
identificações construídas ao longo da existência. Essa dimensão
envolve hábitos motores impregnados de valores e normas sociais, que
nos permitem pertencer a grupos sociais e culturas e expressam
determinados valores de modo gestual e linguageiro. A função
personalidade é expressa corporalmente e implica um esquema
corporal com seus hábitos. Esses hábitos, adquiridos ao longo do
processo de socialização, são informados pelas estruturas sociais
disseminadas por instituições como família, escola e organizações,
tendo caráter normativo.
Desse modo, pensamos a produção de subjetividades como um
processo que implica um jogo de forças entre um sujeito no mundo com
o outro em interação - sujeito esse dotado de uma dimensão mais
estável e habitual que compõe uma identidade - e forças do mundo
subjacentes. Essas forças incluem as estruturas sociais que são visíveis
nos seus gestos, mas nem sempre são conscientes.
Compreendemos essa dimensão de inconsciência a partir da
filosofia de Merleau-Ponty (1964/2000) como o sentido sedimentado de
experiências voluntárias e involuntárias que articula o campo, uma rede
invisível de sentidos que nos conecta a todos em um fundo
intersubjetivo. As estruturas sociais podem ser pensadas como redes
que se armam sustentando esse fundo e informando modos de ver,
sentir, agir e pensar na forma de hábitos.
A dimensão de invisibilidade da branquitude que vimos discutindo
ao longo deste trabalho pode ser articulada com essa compreensão.
696 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Pensar nesses termos nos mostra que mesmo conscientes de sua


branquitude e críticos em relação ao racismo, terapeutas brancos
podem, através de um pacto narcísico, em um acordo tácito, confluir
com estruturas racistas.
A confluência é um fenômeno descrito pela Gestalt-terapia como
uma ausência de fronteira entre o sujeito e o mundo, um estado de não-
consciência onde algo foi antes assimilado e esquecido, sendo agora
uma dimensão habitual que permanece no fundo dando sustentação aos
novos contatos. De acordo com Perls et al.(1951/1997) a confluência
saudável é a que guarda a possibilidade potencial de ser contatada.
Quando não saudável, a confluência interrompe o processo de contato,
em outras palavras, o processo de formação figura-fundo ou de
formação de gestalten. Ela implica um apego a uma situação antiga,
como afirma Robine (2006). Perls et al. consideram áreas de confluência
como fundo de nossas experiências.

(...) áreas imensas de confluência relativamente permanente são


indispensáveis como fundo subjacente e inconsciente dos fundos
conscientes da experiencia. Estamos em confluência com tudo que de
fundamental, não problemática ou irremediavelmente somos dependentes:
onde não há nenhuma necessidade ou possibilidade de mudança. Uma
criança está em confluência com sua família; um adulto, com sua
comunidade (...)” (Perls et al.,1951/1997, p.252).

Nesse ponto da discussão, os autores levantam uma questão que é


muito apropriada para nossas reflexões. Ao tomar consciência desses
fundos que nos provem com segurança, sentiremos muita ansiedade. Na
neurose há um apego à inconsciência, buscando obter satisfação nos
apegando a um comportamento consumado, como se a novidade e a
nova excitação fosse roubá-lo. Entretanto, não há satisfação real nessa
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 697

situação já consumada, visto que ela é habitual, nos dando apenas uma
sensação de segurança. O que predomina é o medo disso ser perdido,
roubado o que nos fixa em um controle ferrenho nas relações
interpessoais.
Podemos, a partir daí, aproximar a confluência da noção de pacto
narcísico da branquitude proposta por Cida Bento, pensando-a como
um tipo de interrupção que mantém o sujeito branco apegado a uma
situação de segurança produzida no mito da superioridade de sua raça.
Considerando que não há nenhuma evidencia que justifique a noção de
raça, tampouco uma suposta superioridade, o apego pode ser
considerado uma confluência neurótica, calcada no medo de ser
roubado desse lugar de segurança.
Resgatando a noção de colonialidade, podemos pensar nesse ponto
nas discussões trazidas por Nelson Maldonado-Torres (2020) em suas
dez teses sobre colonialidade e decolonialidade. A primeira delas é:
colonialismo, descolonização e conceitos relacionados provocam
ansiedade. O autor argumenta que as discussões sobre colonialismo
questionam o senso de legitimidade do que está instituído pelo
pensamento moderno em todos os níveis, o que gera desestabilidade,
“perturba a tranquilidade e a segurança do sujeito-cidadão moderno e
das instituições modernas” (p.33).
O autor aponta um segundo aspecto gerador de ansiedade, qual
seja, o lugar do colonizado como questionador e potencial agente, o que
difere “da posição esperada deles como entidades sub-humanas dóceis.
O chamado “Giro decolonial” implica justamente nesse questionamento.
Há segundo ele, fobia e terror quando o colonizado ocupa o lugar de
agente. Ele justifica a colocação dessa tese como a primeira: “representa
um a priori performativo em relação a todas as outras (...)”. Ele recorre
698 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

a Aime Césaire para pensar nas formas evitativas dos brancos (como por
ex. meus antepassados também foram colonizados, meus pais eram
pobres, tenho um amigo negro) uma demonstração da atitude colonial
decadente, “formas de uma decadência genocida e homicida” (Césaire,
apud Maldonado-Torres, p.34). Ele cita o “jogo de gato e rato” nomeado
por Fanon que visa a adiar a importância das discussões sobre
colonialismo e descolonização, deslegitimando o colonizado em seu
lugar de agente.
Assim, a atitude a priori na evitação da ansiedade, propõe
Maldonado-torres, é de “evasão e má-fé”. No mesmo sentido, afirma
Bento (2022, p.121): “a ausência de compromisso moral e o
distanciamento psicológico em relação aos excluídos são características
do pacto narcísico”.
Quando a confluência é crônica, o sujeito não percebe o que o
diferencia do outro e distorce a relação eu/não eu. Na relação com o
outro, que como eu é um corpo e se mostra a mim como identidade e
como diferença, vivemos a experiência da alteridade. Ao confluir com
seu grupo identitário, branco, e com as estruturas racistas, é
reproduzida uma forma de relação pautada nas relações de dominação,
onde o outro é invisibilizado, apagado em suas formas singulares de ser
e subjugado como inferior, falhado ou mesmo considerado sub-
humano.

Nossa comunidade de Gestalt-terapeutas é predominantemente branca e


precisa se implicar com a sua branquitude. O que exige um esforço pessoal,
um exercício ansiogênico e incômodo de revisão pessoal de nossos grandes
e pequenos gestos e olhares para o outro a partir da posição dominante de
corpos não-marcados. Gestos e olhares que permanecem e permanecerão
invisíveis para nós mesmos se não nos dispusermos a nos re-ver,
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 699

reposicionar e verdadeiramente nos implicar como sujeitos que agem na


reprodução dessas violências que vimos discutindo (Alvim, 2022, no prelo)

Michelle Billies, Gestalt-terapeuta estadunidense, branca, lesbica e


pesquisadora dos temas de relações raciais e de gênero, discute a
confluência do terapeuta com sistemas sociais de opressão e privilégio,
nos convidando a um trabalho de awareness que nos mostre nossos
privilégios que necessariamente geram opressões.
Ela relata como o processo dela de assumir a branquitude pareceu
a ela ser similar a um processo psicoterápico gestáltico.

Cresci ao reconhecer a relação direta entre o meu privilégio racial e a


opressão dos outros; comecei a quebrar hábitos que adquirimos ao viver
como uma pessoa branca; comecei a discernir mais acuradamente as
minhas possibilidades, de outros e o que está ao redor de nós que
contribuem para e que se opõem ao racismo; e agora eu ajo mais
prontamente com uma maior amplitude de ferramentas para lutar contra a
injustiça racial. Em suma, eu venho trabalhando para me libertar da
confluência com ideias e práticas sociais que incluem o racismo (Billies,
2005, p.71, tradução nossa).

Ela afirma que esse processo de conscientização é esforço para a


vida toda, sempre limitado pela capacidade de awareness que é limitada.
Para ela, a Gestalt-terapia tem um antídoto para essa confluência, pois
nosso trabalho clínico é com a liberação de hábitos que interrompem o
contato, no entanto, as implicações da confluência da terapeuta e as
formas específicas que a Gestalt-terapia pode ser usada para desfazer
essas interrupções são subestimadas na literatura e na prática da
abordagem.
Ainda segundo Billies (2005), o terapeuta precisa saber de sua
confluência com sistemas de privilégio, deve dar passos para sair dessa
700 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

confluência, e ao invés de focar no oprimido, ela propõe focar nos


terapeutas que recebem privilégios sociais devido a marcadores
identitários como raça, classe, gênero, capacidade e orientação sexual.
A confluência inibe o contato pois não deixa aparecer novidades, faz
desaparecer o outro, o diferente. Terapeutas precisam ser capazes de
trazer o que está inconsciente, no fundo, em razão da confluência, para
o primeiro plano, o que significa, eu acrescento, tornar visível o
invisível.
Os privilégios podem ser compreendidos como “uma mochila
invisível e sem peso de provisões especiais, mapas, passaportes, códigos,
vistos, roupas ferramentas e cheques em branco” (Mc Intosh, 1988,
como citado em Billies,2005, p.74)
A autora faz uma lista das suas provisões especiais como branca de
classe média:

Minhas credenciais e competência como clínica provavelmente não serão


questionadas com base na minha raça ou classe. Em geral, a maioria dos
estudos psicológicos que eu li incluirão pessoas de minha origem racial e de
classe. Eu posso escolher não avaliar experiências de opressão de raça ou
classe de clientes se eles não as identificarem como problema. Eu também
posso optar por não explorar como racismo e pobreza pode estar afetando
relações terapêuticas. A cultura dominante me estimula a pedir a minha
cliente que me eduque sobre sua identidade étnica, ao invés de me educar.
A maioria de minhas mentoras profissionais e colegas se assemelham
comigo. Meu grupo profissional predominantemente branco e com
privilégio de classe pode escolher se aborda ou não o racismo estrutural e o
privilégio de classe (Billies, 2005, p.78, tradução nossa).
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 701

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar esse pequeno percurso no tema da branquitude,


gostaria de marcar a posição de que no nosso trabalho como Gestalt-
terapeutas, na clínica e em outros espaços, precisam ganhar foco as
forças normativas que geram opressão e violência e que estão na base
de nossas formas de sentir, perceber, agir, constituindo um fundo
invisível que, como propõe Merleau-Ponty, articula e sustenta o campo
das visibilidades.
A visão foi um tema importante para o filósofo, que situa o corpo e
a percepção no centro de suas discussões. A exploração do mundo se dá
pelos sentidos, sendo a visão entrelaçada com os outros sentidos e com
o movimento, enraizada no corpo. Entretanto, como discute Barbaras
(2011, p.62), o sentido da visão é peculiar, pois, diferentemente do tato,
olfato e paladar, quando o corpo aparece como sensação envolvida
diretamente no ato de perceber algo, na visão “não sinto meus olhos
vendo(...) não tenho a impressão de ver pelo meu corpo(...) ausento-me
de mim mesmo, esqueço-me em proveito de uma pura exterioridade”.
Nesse sentido, a experiência da visão é vivida como uma espécie de
esquecimento de suas raízes subjetivas ou corpóreas em prol de certa
crença na veracidade daquilo que vejo (op.cit). Essa discussão nos incita
a refletir sobre a rede de estereótipos negativos atribuídos
historicamente à pele negra, ao corpo negro, um corpo marcado, em
torno de uma falsa verdade. Fanon (2020) traz em suas discussões o
problema do olhar branco sobre o negro, que o determina de fora, o fixa.
Yancy (2020) discute esse ponto, afirmando que esse olhar confisca o
corpo negro o reduzindo a uma rede de estereótipos. De acordo com ele,
o olhar branco tem uma força estrutural performativa e habituada e
702 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

"pressupõe a maior acumulação histórica de material semiótico branco,


poder institucional e hegemonia” (op.cit., p.71).
Donna Haraway (2009) discute o problema do conhecimento e o
lugar do pesquisador como aquele que, ao buscar conhecer, está
implicado com seu olhar e sua visão. De acordo com ela, cada um é
responsável pelo movimento que faz para olhar, sendo uma
preocupação “a violência implícita em nossas práticas de visualização”
(p.25).
E termino com o convite para pensar em nosso olhar de Gestalt-
terapeutas e nossos modos de ver. Sabemos que “o trabalho clínico lida
com a tarefa de encontrar estruturas de sentido sedimentadas que –
invisibilizadas e inconscientes – impregnam nossos modos de ver e
sentir” (Alvim, 2020, p.33), mas é necessário lembrar que tais estruturas
estão impregnadas também do lado de cá, do nosso lado de terapeutas,
e que, se não estivermos atentos para forças invisíveis presentes no
mundo - e em nós-, incorreremos na reprodução de violências em
nossas práticas de visualização e de escuta. Precisamos, antes de tudo,
reaprender a nos ver e nos implicar em nosso modo de ver e perceber o outro,
identificando nossos introjetos e nossas próprias confluências com as
estruturas que compõem os sistemas de opressão.
Cida Bento, no trecho a seguir, sintetiza o chamado que fazemos à
comunidade gestaltica.

Giroux nos diz que brancos, em ações antirracistas, têm que aprender a
conviver com o significado de sua branquitude, desaprender ideologias e
histórias que os ensinaram a colocar o outro em lugar onde os valores
morais e éticos não estão em vigência. A destruição de um pacto narcísico
não é só individual, mas tem sua âncora em ações coletivas estruturais
envolvendo a responsabilidade social das organizações que precisam se
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 703

posicionar diante de sua herança concreta e simbólica na história do país.


Não podem se omitir dos créditos e das dívidas das gerações passadas, como
da escravidão ou dos recorrentes períodos ditatoriais. Ao desnudar as
relações de dominação, as pessoas podem se tornar mais autoconscientes
daquilo que as torna preconceituosas, violentas, propensas a se identificar
e apoiar líderes populistas, autoritários e antidemocráticos” (Bento, 2022,
p.125)

Ao descrever uma terceira onda dos estudos sobre branquitude, a


autora cita as análises de Steve Garner que concluem pela existência de
um interesse em reforçar a identidade e supremacia brancas
relacionado a uma onda nacionalista, “representada por figuras como
Jair Bolsonaro e Donald Trump” (p.61). Ela nos adverte para uma relação
atualmente relevante entre nacionalismo, masculinidade e
branquitude, mas que tem sido pouco explorada. Essa associação pode
ser relacionada com a discussão de Cardoso (2019) sobre branquitude
acrítica e tornar no contexto hodierno mais visível e concreto esse
movimento supremacista que pensávamos haver superado.
Cientes desse caráter coletivo e da responsabilidade social das
instituições, nós, como Associação Brasileira de Gestalt-terapia e
Abordagem Gestáltica, estamos engajados na luta antirracista e na
construção de espaços como este que propiciem aos Gestalt-terapeutas
reflexões que contribuam com o avanço de nossa abordagem e com a
construção de uma psicologia crítica, antirracista e comprometida com
a justiça social.

REFERÊNCIAS

Associação Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem gestáltica (2021). Recomendações


para cursos de formação. https://gestalt.com.br/formacao/
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DEBATE

Kênia Résiley: Eu fico aqui ouvindo vocês duas e apesar de você


não ser psicóloga, Priscila, sua fala é muito gestáltica, pensando aqui na
nossa abordagem.
Me traz muito a questão colocada por Belmino, de que a Gestalt-
terapia não é uma abordagem do indivíduo, ela é uma abordagem das
relações, e é isso que prezamos na GT, as relações, o modo de ser-no-
mundo e como essas relações nos constituem enquanto sujeitos. E
quando você traz a questão da alteridade, me remete muito ao modelo
706 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

de relação eu-isso. Nós, enquanto sujeitos negros, somos colocados pela


branquitude nessa dinâmica de relação eu-isso, é uma relação de
utilidade, um corpo-objeto, historicamente colocado nesse lugar de
servidão, que foi um lugar naturalizado por muito tempo, e o nosso
movimento é o de sair dele e de construir outras formas de
subjetividade. Eu fico pensando muito no que você coloca em um dos
seus textos, de que estamos muitos acostumados a estudar o impacto do
colonialismo na subjetividade das pessoas negras, mas que também
existe o impacto dele na subjetividade das pessoas brancas, a
branquitude, e esse impacto nós não discutimos, e é ele quem constrói
e vai mantendo esse pacto narcísico.
A branquitude não percorre esse caminho de se perceber
racializada e pensar sobre seus privilégios, porque ela ainda é discutida,
como você disse, por pessoas negras. Tem pouquíssimas pessoas ou
teóricos brancos que discutem branquitude, e isso precisa ser
problematizado. É preciso problematizar esse lugar de privilégio e
desconstruir. E não existe essa tendência de querer desconstruir, de sair
desse lugar de privilégios, os quais são simbólicos e muito reais. Se o
sujeito branco for pensar e problematizar isso, vai levar a um
movimento de desconstrução que essa branquitude não quer, porque a
retira desse lugar.
Nós estamos nesse movimento de discutir branquitude, de luta e
de construção de uma perspectivava antirracista, mas não é só nossa
essa responsabilidade enquanto sujeito negro, é uma responsabilidade
de todos, sobretudo dos brancos. E o sujeito branco precisa pensar esse
racismo não só do nosso lugar, o lugar da pessoa negra, como vem sendo
construído há muito tempo. O branco está falando de racismo, mas fala,
teoricamente, do nosso sofrimento e não do lugar dele que é o lugar de
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 707

branquitude e de privilégios que vem dessa estrutura racista, e é esse


lugar que precisamos que comece a ser pensado para essa desconstrução
acontecer.

Priscila Elisabete da Silva: Me permita, é porque agora eu preciso


falar. E quero aprender com vocês, porque eu sou socióloga, então a
minha perspectiva não chega a abranger tanto a psicologia. Mas eu
queria entender, como é possível que um psicólogo, uma psicóloga fale
ou tente compreender ou significar o sofrimento do outro, sem
entender e significar o seu próprio seu sofrimento? Porque quando a
gente fala em branquitude, a gente tem que entender que há um
sofrimento que é de todos. Se o branco não percebe que o impacto da
branquitude em si e, consequentemente, no conjunto da sociedade,
como ele é capaz de simbolizar o sofrimento dos outros? Pensem nisso.
Quando a gente pensa, a gente ainda trabalha muito com o pensamento
dual, né? O branco, o negro o índio. Enfim, é sempre assim. A gente tem
uma dificuldade muito grande e isso é um dos elementos da
modernidade, não é? A gente pensa dentro do cartesianismo, linear. A
gente aprendeu a pensar de maneira linear, quando na verdade nós
somos seres complexos. Nós não somos seres lineares, não é? Nós somos
seres, somos animais, né? Somos seres da natureza, né? Que nos
distinguimos pelo raciocínio, pelo poder de simbolizar, mas como
partes da natureza. Nós somos seres complexos. Nós somos seres que
intercambiamos. O eu sozinho não existe! O eu não existe e isso é
presente. E essa sabedoria, essa epistemologia, essa forma de ver o
mundo é presente nas sociedades tradicionais. Não se pauta pelo eu, se
pauta pelo conjunto de seres humanos e não humanos, inclusive. Então,
o que acontece? Eu estou aqui aventando algumas coisas para a gente
708 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

pensar. O que acontece com as nossas ciências - e aí eu estou falando


das ciências sociais, os conhecimentos modernos também da psicologia
aqui, especialmente - o que acontece com essa nossa forma buscar
entender o mundo e a nós mesmos? Se a gente não parte do pressuposto
de que nós precisamos ampliar a nossa forma de visão teórica, se a gente
não partir desse pressuposto, a gente fica sempre voltando para as
mesmas situações, sem sair do lugar. A gente vai discutir um novo
teórico, uma nova abordagem, mas a gente realmente quer se
desestruturar? Porque isso leva ao sofrimento. Como é possível ter
indivíduo branco que se diz engajado na discussão da branquitude, um
psicólogo que diante de uma pessoa negra, não consegue ser
desestabilizado pelo sofrimento do outro. Como é possível isso? Para
mim, não é possível. Essa pessoa está se enganando e estou dizendo se
enganando, para ser muito gentil. Essa pessoa está usando de má fé.
Então eu penso que a gente tem sobretudo uma questão ética a ser
resolvida. Me incomoda muito quando a gente fala em privilégio.
Privilégio de um modo que os menos avisados no sentido de uma
reflexão profunda, acabam entendendo que é uma coisa boa, parece que
reforça a ideia de que eu tenho privilégios. Privilégios são construídos,
no caso da branquitude são construídos a partir da negação dos direitos
fundamentais dos outros povos. Dos outros seres humanos, como é que
eu me dou esse privilégio e ainda me sinto envaidecida em tê-lo? Não
abro mão, me apego a ele. No limite, eu estou dizendo que é eu primeiro
e eu sozinho. Diferente da dor do outro, diferente se eu tenho condições
e a maioria da população negra e indígena está morrendo, de fome,
assassinada. Como é que isso não incomoda as populações, aliás a
branquitude? Desculpa, mas para mim, há uma incoerência ética no
fundo de tudo isso, que é para além de teoria.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 709

Kênia Résiley: É uma ótima colocação Priscilla!

Mônica Alvim: Discussão que está além da psicologia também,


porque é uma questão da humanidade.

Priscila Elisabete da Silva: Exatamente, é uma questão que é para


todos, não só para os psicólogos, é para todos.

Mônica Alvim: É para todos e os psicólogos fazem parte dessa


dimensão humana. A luta é essa! Porque o psicólogo lida com o
sofrimento do outro. E é quando eu falo dessa segunda violência, da
terceira violência de outras violências é que o psicólogo, ele assume uma
posição de poder muito grande. Quando ele está lidando numa relação
onde alguém vem com o sofrimento e aposta no psicólogo como aquele
especialista que pode ajudá-lo nessa caminhada, então eu fico muito
junto com você nessa indignação. De como um psicólogo pode se privar
de fazer essa investigação, não é? E aí a questão do privilégio, ela é uma
questão muito complicada é uma questão da humanidade, né? E o Brasil
é muito marcado também por esse jeitinho da vantagem, né? Da lei de
Gérson etc e tal.
Acho muito interessante quando a Michele Billes, uma Gestalt-
terapeuta estadunidense, fala dos privilégios como uma mochila
invisível e que tem umas provisões especiais que não pesam. Ter
privilégio é ter essa mochila que tem mapa, passaporte, código, visto,
roupa, ferramentas, cheque em branco, a pessoa pode tudo. Não é? Pode
tudo. Em relação aos outros, não é? E ela vai discutindo, então como os
privilégios que ela, como uma psicóloga branca de classe média tem. Ela
710 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

diz que as credenciais dela de competência na clínica nunca foram


questionadas com base na raça. Como acontece com outros, não é? Que
a maior parte dos outros autores e professores com quem ela trabalha
também são brancos. E que ela pode escolher não entrar no mérito de
experiências de opressão, de raça com o cliente se eles não
identificarem isso como um problema. E por aí vai. Não é? Então assim,
eu fico muito indignada com essa questão do desejo do privilégio, não
é? E preciso reconhecer que esse é um problema da humanidade, que
nesse momento de aprofundamento do fascismo, não só no Brasil. Isso
está ficando muito agudizado, porque até o politicamente correto
perdeu lugares, espaços na nossa sociedade. Priscila te agradeço por
esse chamado muito importante, nessa sua reflexão.

Kênia Résiley: Eu acredito que a psicologia ocidental, de fato, não


consegue responder a essa questão, muito em função do próprio
epistemicídio. Inclusive, a live anterior a essa foi sobre filosofia e
psicologia africana, que traz uma concepção muito diferente, não essa
concepção do indivíduo, do eu, mas uma concepção dos nós, da nossa
construção coletiva enquanto comunidade. E nós precisamos fazer o
resgate dessa forma de olhar, para de fato encontrar respostas ou
caminhos para poder responder a essas questões.
Quando Mônica traz aqui a questão do racismo no ambiente
terapêutico, e pensando na minha atuação clínica, vejo o quanto isso é
muito real. As pessoas chegam para nós terapeutas negras, porque já
sofreram ou sentem medo de sofrer esse racismo no ambiente
terapêutico, com um profissional branco. E aí, eu me lembro de quando
eu estava escrevendo minha monografia de especialização, meu
orientador, um cara branco e racializado, com consciência do seu lugar
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 711

de branquitude, me fez a seguinte pergunta: “mas aí você está me


dizendo que só um profissional preto atende gente preta?” e foi uma
questão colocada em que eu respondi que não é exatamente assim. Mas,
o que será necessário a um profissional para de fato atender de forma
acolhedora e fazer com que a pessoa negra se sinta acolhida e legitimada
naquele espaço? E o necessário é justamente construir essa concepção
do seu lugar de branquitude. Porque quando estamos em um
atendimento com uma pessoa negra, mesmo que o racismo, a questão
racial, não seja uma figura ou uma demanda ali presente, precisamos
ter a consciência de que o racismo é um fundo presente o tempo inteiro,
ele atravessa a existência de uma pessoa negra o tempo todo. Ela não
está falando, verbalizando o racismo, mas ele está ali na maioria das
experiências que ela tem. Se a gente não tem essa concepção, a gente de
fato minimiza e não legitima o sofrimento daquela pessoa ali e, então,
não acolhe. E pensando nessa questão, o próprio Conselho Federal de
Psicologia criou em 2017 um documento de referência, que grande parte
ou maioria do dos psicólogos não conhecem. O nome do documento é
Relações Raciais: referências técnicas para atuação de psicólogas (os).
Ele fala sobre o contexto do racismo no Brasil, a concepção de
branquitude e levanta discussões acerca dos mecanismos do racismo,
como ele se estrutura e pode estar presente na nossa prática, não só na
clínica, mas em todas as dimensões da nossa atuação profissional. Por
isso é tão importante construir essa consciência racial e buscar
entender historicamente a racialidade e esse mito da democracia racial
que temos aqui no nosso país. Quando você traz a questão da alteridade,
Priscila, eu penso que, é importante que se reconheça a humanidade do
outro, o outro como nosso igual. Mas, quando estamos falando de uma
população minorizada - porque a população negra não é minoria, nós
712 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

somos minorizados -, temos que entender que existem diferenças.


Entender as diferenças é falar em equidade, e aí existe um exercício
necessário a ser feito por essa branquitude, o de entender que somos
iguais, mas temos necessidades diferentes, porque foram
historicamente retiradas, de nós negros, muitas coisas, no simbólico e
no real.

Priscila Elisabete da Silva: Vocês sabem que você estava falando e


eu fui lembrando de que eu converso com alguns amigos negros que
fazem terapia. E eu sempre pergunto, como que é o processo? Uma vez
um amigo me disse que ele estava cansado de ter que explicar o que é
racismo para terapeuta e acabou saindo. Uma pessoa assim, um
intelectual, e aí eu fico pensando, né? Eu acho que essa é uma questão
interessante, não é?
E estou trazendo aqui evidente porque a gente está falando para o
público, especialmente, psicólogos, mas se estende para sociólogos, para
todas as áreas de pensamento. Qual é o nosso papel? Qual é o nosso papel
dentro do que a gente se propõe como profissão? Dentro de uma
sociedade racializada como a nossa, qual é o papel que a gente quer
assumir? É o papel de legitimar essa estrutura que a gente já sabe que é
assim? O papel de desconstruir essa estrutura, porque isso é uma
implicação política ideológica que nós não temos como fugir. Fim, não
tem como fugir, porque a pessoa que não tem consciência, lucidez, não
sei qual é o termo melhor termo a ser usado. De qualquer forma, ela
está...vou me atrever, Mônica, ela está confluindo. Ela faz parte disso,
porque isso é habitus, vou recorrer a Pierre Bourdieu, à sociologia,
porque ela foi socializada dessa forma e ela reproduz isso, ela
incorporou e reproduz, então ela está fazendo isso. É como eu estava
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 713

falando no texto, é sobre a gente não ter mais como fugir, a gente não
passa ileso. A gente precisa se dar conta de que a nossa reação, a nossa
atitude, ela reverbera a ponto de voltar a nós mesmos. Então, ou a gente
assume isso, a minha formação é deficiente. E onde eu vou buscar a
formação? Não existe uma perspectiva somente, como da psicologia, ou
da sociologia ou da história, só existe o mundo eurocêntrico. Na
verdade, eu estou trazendo as contribuições de Ângelo, quando ela
chama atenção sobre a necessidade de trabalhar essa questão, que é essa
arrogância racial. Tem muito a dizer sobre a nossa forma de se formar,
de formar o nosso pensamento, os teóricos que nós recorremos. Os
teóricos que recorremos para pensar a nós e os outros. E eu e eu falo
isso porque tenho estudado a academia, o ensino superior e vivenciado
isso. Inclusive, recentemente, junto com a professora Ana Passos, que é
pesquisadora da branquitude e que fez um levantamento sobre as
expressões da branquitude, no ensino superior em tempos de pandemia.
E responderam diversas pessoas que estavam como estudantes, e em
diferentes instituições de ensino superior no Brasil, públicas e privadas.
E é unânime, quando apontam que uma das principais expressões da
branquitude é o pensamento eurocêntrico. O foco no pensamento do
eurocêntrico, nas teorias que são abordadas em diferentes áreas de
conhecimento. A gente não está falando só nas ciências humanas,
também da biologia, das ciências exatas. Inclusive os professores
desconsideram quando os alunos trazem outra perspectiva, se sentem
inclusive, afrontados. São falas que estão publicadas no nosso artigo.
Então percebe, há uma arrogância racial, que é uma necessidade, mas
um apego a uma concepção que já é uma concepção eurocêntrica. E é
que já se mostra, mais do que nunca fragilizada. A gente precisa ampliar
isso, ela não dá conta. Ela não dá conta de superar, porque como é que
714 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

vai dar conta de superar algo que ela está reafirmando a todo o tempo?
Se a gente não traz outra forma de pensar. De comunidades não
europeias, de pensamentos milenares inclusive, como é que a gente vai
arejar o nosso pensamento?

Mônica Alvim: Totalmente de acordo. E a gente tem buscado isso,


trazer aqui na Associação e na Universidade, na minha atuação e na de
muitos colegas também. Eu vejo ventos novos soprando, pelo menos na
minha, como se diz, na minha “bolha”, no meu programa de pós-
graduação. Enfim, no âmbito da Gestalt-terapia, tem havido uma
receptividade e há muitas pessoas na Gestalt-terapia começando, outras
que já vêm há um tempo. Mas, enfim, se a gente pegar um horizonte
temporal mais longo, todos nós estamos começando a fazer essas
aproximações com outras perspectivas, epistemológicas, outros
saberes, enfim.
Kênia comentou da live da semana passada da ABG, sobre filosofia
e psicologia africana. Enfim, eu acho que a gente tem aí dado os
primeiros passos. Tem alguns pesquisadores, né? Na Gestalt-terapia,
muitos já comprometidos com a questão das relações raciais, numa
estrada muito mais longa e já nessa pesquisa, não é? É a Lívia Arrelias,
Gisleide Senna, a Samantha Fonseca, o Geneci de Oliveira, que foi o
primeiro a fazer um trabalho em Gestalt-terapia refletindo sobre as
relações raciais. Então a gente tem aí uns sopros de esperança. Umas
frestas que a gente vai abrindo nesse solo árido aí, desse pensamento
predominante, dominante, hegemônico de influência europeia nas
nossas universidades, enfim.
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 715

Priscila Elisabete da Silva: É, e com muita humildade, não é? Eu


acho que a gente, eu falo assim com meus alunos, assim a gente não
entende muito bem essa palavra, esse conceito de humildade. Não é
porque é a gente parece que sempre quer se se auto afirmar, quando isso
faz com que a gente empobreça muito, né? É quando a gente se
aproxima, toda vez que a gente se aproxima do diverso é uma
possibilidade de a gente ampliar a nossa concepção de humanidade, né?
Então isso deveria ser motivador e não o contrário. A gente não deveria
é ficar selecionando aquilo que a gente, o conhecimento meus,
construindo os guetos intelectuais, enfim, né? As bolhas, né? Como a
professora Mônica falou, lembrou bem, essa é a grande questão e a gente
viu o que deu? É nessas bolhas aí, a gente sabe o que tem, tem pelo
menos exemplos do quão isso é prejudicial. Porque de novo a gente está
saindo do pensamento complexo, saindo entre aspas, né? A gente não
quer ir, é adentrar o pensamento complexo. Porque parece mais fácil,
não é? Não é pelo pensamento dual ou isso ou aquilo, ou isso, aquilo se
né. Quando na verdade é tudo isso, não é?
Eu gosto muito da Monja Cohen quando ela fala assim, tudo é
humano, não é? A antropologia também ajuda a gente a pensar nisso.
Tudo o que é humano nos toca de alguma forma, porque também somos
isso. A gente precisa reconhecer. Né? E às vezes, reconhecer é muito
dolorido, porque a gente precisa ver em nós aquilo que a gente não quer
ver para poder melhorar. A branquitude é um exemplo disso, se a pessoa
não se percebe, é para além do fenótipo branco, né? Se ela não percebe
a atuação da branquitude em si, como é que ela vai dar o primeiro passo
para mudar a situação. Isso é dolorido? De fato, é dolorido. Mas a gente
aprende pela dor. A gente, espécie humana.
716 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

E o que nos de desestrutura, nos reorganiza e a gente avança. Se a


gente fica sempre na desculpa, no mesmo, na mesma situação,
confortável, né? Do não estresse racial para o prof. Lourenço Cardoso,
que eu sempre converso com ele e a gente sempre conversa sobre isso,
né? É porque ele tem uma perspectiva dura em relação a isso, né? E
venho aprendendo que é necessário de fato, a gente se colocar em
situação de estresse racial. A gente que eu digo, não os negros e
indígenas. Não é porque esse estresse nos constitui, de dentro do ventre
ao túmulo. Não há quem não passe por situação de estresse racial. Nós
estamos falando da branquitude. Que entende como mimimi o que é o
estresse racial. E o estresse racial constitui subjetividades doentes. Não
empodera ninguém. Mas aqui, só levantando aqui algumas questões
para a gente pensar. Também penso que a gente que a gente precisa
colocar outras perspectivas, intercruzar áreas.
A professora Mônica estava falando sobre o corpo, que a sua
pesquisa tem muito a ver com o corpo, não é? E eu fico pensando como
a gente como nós, humanos, quais são as diferentes perspectivas,
divisões que a gente tem sobre o corpo. Nós sabemos, nós sabemos quais
as perspectivas de visão sobre o corpo de povos tradicionais, por
exemplo, da comunidade ameríndia, a gente sabe, olha a diversidade
étnica que aqui existe. Será que a gente conhece isso? Porque é uma
forma de interpretação do ser humano. E a gente não conhece.
Então percebam, tenho uma amiga socióloga que estuda a dança
africana dentro do potencial da educação. Perceba, isto é uma forma de
educar. Educar pela dança. Então quando eu falo sobre a necessidade de
a gente trabalhar o conhecimento, é de maneira mais complexa,
inclusive complexificando as áreas. Não é a gente pensar só dentro da
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 717

nossa caixinha. A psicologia e os psicólogos, a sociologia, educação e os


educadores teóricos da educação.

Mônica Alvim: Eu acho que aí você toca num ponto que me que me
provoca, porque eu sou uma defensora da bandeira da
transdisciplinaridade como fundamental pra gente exercitar um
pensamento crítico e o pensamento antirracista. Pensar relações raciais
exige um pensamento crítico, da crítica social. A gente não pode fazer
isso numa disciplina, não é? É, a gente não pode. A gente precisa
necessariamente dialogar de modo interdisciplinar, e eu eu trago isso
ha anos, mas hoje, eu amplio isso não é? Concordando também com a
com as suas colocações para pensar outras modos de saber de outros
povos. Outras epistemologias, não é isso? É fundamental, né?
O René Barbier tem uma frase que eu adoro que é: Você no
paradigma da simplicidade, se você trabalhar com uma disciplina, tem
a ilusão de beber o real com um canudinho de um conceito. O canudinho
de uma disciplina, no caso, eu acho genial essa frase. É uma ilusão você
achar que vai beber o real com um canudinho de uma disciplina, de um
conceito. Não é? Então eu acho que que é essa caminhada, ela é
fundamental, não é? E para a gente no Brasil pensar uma Gestalt-
terapia Brasileira não dá para a gente pensar de modo disciplinar.
Assim, a gente precisa é avançar nessa exploração de outras
epistemologias, de outros saberes. O corpo, como você trouxe esse
exemplo, né? Eu acho fundamental a gente buscar ampliar essa pesquisa
para somar com outras perspectivas que a gente, enfim, vem
desenvolvendo. Eu acho fundamental. Tinha umas perguntas do pessoal
que apareceu aqui na tela, a gente já está no nosso finalzinho. Faltam
alguns minutos para encerrar.
718 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Kênia Résiley: Então, a gente tinha programado de até às 20 e 30,


não é isso, isso, isso. Tudo bem para você? É professora Priscila. Se a
gente estender mais um pouquinho para poder ler as perguntas.

Priscila Elisabete da Silva: Claro, gente por mim tudo bem!

Mônica Alvim: A pergunta da Gabriela, ela diz: Vocês acreditam


que esse racismo causa uma perda cultural, de reconhecimento da força
da nossa cultura? Ou seja, se o racismo faz a gente perder o
reconhecimento da nossa força cultural?

Priscila Elisabete da Silva: Penso que sim. Gabriela, obrigada por


ter perguntado, né? Por ter participado aqui com a gente, por estar
participando. É do meu ponto de vista, é um fato, né? Não tem o que
questionar, porque quando a gente fala em racismo, a gente está falando
em hierarquia racial. A gente está falando numa estrutura lógica que
implica cultura, economia, implica todas as esferas, né? E implica em
que, em sentido de desconsiderar, a produção simbólica. E você está
falando de cultura? A produção simbólica dos diferentes grupos
humanos. Desconsiderando a sua humanidade. Né? Porque produz
simbolismo aquele que é humano. Macaco não produz cultura e quando
a gente aceita na nossa sociedade que o humano seja chamado de
macaco, publicamente. O que que a gente está fazendo?

Kênia Résiley: Obrigada pela disponibilidade de estar conosco,


Priscila. Acho que foi um encontro riquíssimo, muito potente. Você
trouxe questões importantíssimas, inclusive para a nossa reflexão como
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 719

terapeutas, que a gente tenha outras oportunidades de ter você aqui e


no núcleo de relações étnicos raciais também. E muito obrigada pela sua
presença Mônica, e por esse nosso encontro.

Priscila Elisabete da Silva: Nossa, eu que agradeço. E fiz todo o


esforço para participar, porque esses espaços é que a gente precisa é
fomentar, não é? A gente precisa expandir, fomentar, alimentar, né?
Espaços de reflexão têm sido cada vez mais um privilégio. E não pode
ser! Os espaços de reflexão precisam ser a norma, não a exceção, né? É,
a gente precisa falar dessas coisas, da branquitude, das relações raciais,
tomando café. A gente não tem que ter uma live para isso, não é?
Enquanto a gente não toma café na cafeteria da esquina, a gente tem as
lives. Então eu sou muito grata por poder compartilhar um pouco do
meu pensamento, aqui com vocês. Muito grata por vocês terem a
atenção de escutar um pouquinho. E sou grata porque eu aprendi muito
na noite de hoje. Muito obrigada mesmo!

Mônica Alvim: Eu também quero muito agradecer. Eu também


gostaria de muito assim, estou encantada com você, com a sua fala,
enfim, com esse clima que a gente criou aqui, né? E queria te agradecer
muito pela disponibilidade. E espero, como a Kênia disse, que a gente
tenha outras oportunidades, a gente ainda vai se falar. Porque eu espero
esse texto para fazer parte da nossa publicação, não é? Lembrando para
as pessoas que estão aqui que o edital está aberto até o dia 31/08. Para
quem quiser enviar textos em Gestalt-terapia, fazendo esse diálogo com
as relações étnico-raciais ou relações de gênero e sexualidade. Para a
gente fazer crescer justamente esse acervo de pensamento, de reflexões
sobre essas temáticas tão importantes, né?
720 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

E queria também dizer para você Kênia que foi muito bom estar
aqui com você nesse outro espaço. A gente já tem convivido bastante no
núcleo temático e é uma alegria muito grande ter você também aqui
com a gente fazendo parte. E trazendo essa mediação tão gostosa, tão
leve, tão competente, muito bom, não é? E eu agradeço a você também.

Kênia Résiley:
Eu que agradeço mesmo, pelo convite de estar aqui, como eu tenho
prazer de estar aqui na live. E professora Priscila, alguém perguntou
aqui que se tem indicações de referências. Tem o seu capítulo, no livro
Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil, mas você tem
mais algumas referências de leitura sobre o que a gente conversou hoje?

Priscila Elisabete da Silva: É, eu acho que para entender um pouco


de relações raciais, tem uma síntese que eu acabei precisando fazer no
livro que que eu sempre estudo, o meu próprio livro. Chama-se: As
origens da USP: raça, nação e branquitude na universidade. Nesse livro,
fruto da minha tese de doutorado. Quando estou entendendo como a
questão racial se configura no projeto que deu origem à Universidade
de São Paulo. Para entender essa questão do ensino superior, o racismo
no ensino superior.
A professora Mônica falava de 16%-16,5% de psicólogos negros. E
docentes negros na Universidade de São Paulo, que tem mais de 5000
docentes. Nós temos menos de 3% de docentes. Não chega a 3%. Para
vocês terem noção do que que é o racismo e como ele se configura nas
instituições brasileiras. E tem um capítulo, especialmente que ajuda as
pessoas que estão iniciando a entender um pouco sobre as teorias
raciais. Eu acho que isso é importante para entender a branquitude. E
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 721

tem a tese, que está aberta para público, basta colocar o meu nome
completo para ter acesso ao banco de teses da USP.
E tem um texto que eu acho que vai ajudar bastante, porque fala
sobre essa questão da fragilidade branca, que é um conceito que vocês
precisam entender um pouquinho, eu digo o pessoal da psicologia, de
modo geral, que vai ajudar bastante. O texto chama-se: Fragilidade
branca. O artigo, ele tem uma boa síntese do conceito. Mas eu acho que
o artigo vai ser interessante, talvez quem quiser se aprofundar vai para
o livro, mas o artigo está disponível na internet. Vocês me dão um
segundo que eu localizei o artigo. Eu vou pegar, porque aí eu passo a
referência certinho.

Mônica Alvim: É acho que a gente também vai poder fazer essas
recomendações no próprio livro, no e-book da ABG.

Priscila Elisabete da Silva: E ela tem um artigo, um dossiê: chama-


se racismo e saiu pela revista da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Chama-se fragilidade branca mesmo, de Robin DiAngelo. Eu recomendo
porque realmente é fundamental. E para quem tem interesse em
branquitude, já temos uma produção bastante consolidada.

Mônica Alvim: É nesse livro onde eu a conheci, esse livro intitulado


Branquitude, organizado pelo Lourenço Cardoso e por Tania Muller é
realmente um livro muito interessante para quem está no começo e tem
um apanhado muito legal.

Priscila Elisabete da Silva: Esse é o esforço do professor Lourenço,


que foi realmente de fazer com que a gente conseguisse abarcar algumas
722 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

áreas que estavam já estudando o conceito, para que a gente pudesse, de


fato, ter um material que ajudasse e tivesse esse propósito. Que ajudasse
a ter um panorama mais amplo sobre os estudos e como tem se
organizado os estudos da branquitude no Brasil. E também o professor
Lourenço acabou de publicar um outro livro também. Que fala também
de um aspecto muito importante, de como a população negra tem
servido entre aspas, para usar o termo que a Kênia trouxe, de servidão.
Como a gente tem servido também a intelectualidade branca, que estuda
a branquitude. Ele vai problematizar essa questão, de como os brancos
se veem como objetos de conhecimento. Então é muito interessante e
fundamental, porque tem a ver com essa questão do que a gente estava
colocando a pouco, das teorias. Como a gente vai construindo saberes,
enfim temos aí uma série de livros importantíssimos. E a gente precisa
mesmo ir adensando aí na nossa biblioteca e colocando em prática.

Kênia Résiley: Temos o livro racismo estrutural também, de Silvio


Almeida que ele é muito claro, muito didático.

Priscila Elisabete da Silva: Sim, Neusa Santos para vocês, eu acho


que é fundamental. Jurandir Freire Costa também. Acho que é também
muito importante na área da psicologia, enfim, nós temos também a
professora Eliane Costa. Provavelmente ela, salvo engano, foi ela que
ajudou a contribuir com esse documento que a Kênia citou sobre o
documento referencial para os psicólogos. Foi ela que construiu esse
documento junto com a professora Lia Schucman, que é professora e
psicóloga que estuda a branquitude também. São duas pesquisadoras
importantes que estão contribuindo. Eu lembro na época que esse
Priscila Elisabete da Silva; Mônica Alvim • 723

documentava sendo elaborado e que houve discussões


importantíssimas. Talvez ajude bastante, por enquanto, é isso!

Kênia Résiley: Acho que a gente poderia ficar aqui uma noite
inteira falando do assunto. Fica aí o convite para você voltar, Priscila.
Mais uma vez agradecemos a sua presença, a de Mônica também. Muito
obrigada as pessoas que ficaram aqui conosco até esse momento. Boa
noite!
SEÇÃO 5
Section 5
Sección 5

TEXTOS DOS NÚCLEOS DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA


DE GESTALT-TERAPIA E ABORDAGEM GESTÁLTICA:
NÚCLEO DE RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS E NÚCLEO DE
RELAÇÕES DE GÊNERO E DE DIVERSIDADE SEXUAL
Texts from the Groups of the Brazilian Association of Gestalt Therapy and
Gestalt Approach: Group of Ethnic Racial Relations and Group of Gender
Relations and Sexual Diversity
Textos de los Núcleos de la Asociación Brasileña de Terapia Gestalt y
Enfoque Gestalt: Núcleo de Relaciones Étnico-Raciales y Núcleo de
Relaciones de Género y Diversidad Sexual
31
O NÚCLEO DE RELAÇÕES ÉTNICO RACIAIS NA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE GESTALT-TERAPIA
The Group of Ethnic Racial Relations at the Brazilian Association of
Gestalt-therapy
El Núcleo de Relaciones Étnico-Raciales de la Asociación Brasileña de
Terapia Gestalt

Kênia Résiley M. da Conceição


Mônica Alvim
Paula da Silva Campos
Vivian Nunes Nogueira

O Núcleo de Relações Étnico Raciais (NRER) nasceu na Associação


Brasileira de Gestalt-terapia (ABG) mediante a urgência de discussões e
produções acerca da temática da racialidade e a necessidade da
construção de um espaço de representatividade, pertencimento e
resgate teórico diante do silenciamento imposto pelo colonialismo e da
dimensão epistêmica do racismo na Gestalt-terapia (GT) e na psicologia
brasileira. Com a perspectiva de uma psicologia decolonial, o objetivo
geral do projeto Núcleos Temáticos é ampliar as possibilidades de
atuação da Gestalt-terapia no Brasil, considerando as dinâmicas
territoriais e as problemáticas estruturais de nossa sociedade, na busca
de alcançar um pensamento gestaltista teórico e prático que contribua
para a construção de uma psicologia comprometida com a dimensão
social e política e uma sociedade mais justa. O objetivo específico do
Núcleo de relações étnico-raciais é problematizar e construir novas
possibilidades de atuação nesse contexto, considerando as questões de
728 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

territorialidade, as problemáticas estruturantes da sociedade e como


essas atravessam a subjetividade da população negra no Brasil.
Os encontros do Núcleo acontecem mensalmente, no período
noturno, sendo abertos à comunidade gestáltica e demais pessoas
interessadas na temática, de forma gratuita. Não se trata apenas de um
momento de encontro e resgate da ancestralidade; mas também de
construção, pertencimento e fortalecimento de vínculos. Os encontros
têm se constituído como uma rede de apoio e suporte para profissionais
negras/os/es na GT.
Esses encontros também são acessados por profissionais não
negros, que buscam ampliação de sua consciência racial e social e o
impacto disso em seu campo de trabalho. Há um chamado aos
profissionais brancos para ampliarem a consciência sobre sua
racialidade, sua branquitude e o impacto dela na manutenção da
estrutura racista, que se manifesta, inclusive, na atuação profissional,
por meio de diversos mecanismos.
No primeiro ano de funcionamento do Núcleo de Relações Étnico-
Raciais (NRER), 2021, a coordenação esteve a cargo de Lívia Arrelias e
Mônica Alvim. As atividades consistiram em construir um espaço de
discussão e problematizações, pensando a interseccionalidade e
analisando de forma crítica como se estabelecem as relações de raça e
classe no contexto brasileiro, e como essas são atravessadas pelas
desigualdades e discriminação, analisando esses marcadores em
articulação com a teoria gestáltica.
No segundo ano de funcionamento iniciamos no mês de janeiro por
uma reunião de planejamento que avaliou as atividades do ano anterior
e formou três coordenadorias para gerenciar as atividades do núcleo
durante o ano de 2022:
Kênia R. M. da Conceição; Mônica Alvim; Paula da S. Campos; Vivian N. Nogueira • 729

A) Grupo de Estudos, um movimento de resgate à obras de relevância sobre a


racialidade e teóricas(os) negras(os) como forma de combate ao epistemicídio e
a articulação desses estudos com os conceitos teóricos da Gestalt-terapia.
B) Produções teórico-científicas, responsável por fazer levantamentos de
congressos, seminários e demais atividades científicas nas áreas de Relações
Raciais em Psicologia, Gestalt-terapia e áreas afins, com informações sobre
datas e normas de submissão a fim de que possam ser produzidos e enviados
trabalhos que divulguem e ampliem o diálogo e as contribuições da Gestalt-
terapia na temática das relações raciais;
C) Produções e organização de conteúdo, coordenadoria responsável por pensar,
articular e organizar atividades diversas como lives, podcasts, interlocuções
gestálticas, a partir de temáticas sugeridas pelo núcleo. Foi feita uma rodada de
levantamento de temáticas de interesse para discussão, estudo e produções
diversas, organizadas em temas guarda-chuva, que não se esgotam, mas
sugerem uma organização inicial: 1) Populações de Matrizes Africanas (ex.
Povos de Terreiro, Racismo Religioso...); 2) Relações Raciais e Infância (ex.
afetividade na infância...); 3) Relações Raciais e Gêneros (violência doméstica,
feminicídio, solidão da mulher negra, maternagem, população trans e
travesti...); 4) Saúde Integral da População Negra (ex. Luto, Medicina Natural,
Violência Obstétrica...); 5) Relações Raciais e Populações Indígenas; 6) Relações
Raciais e Artes; 7) Relações Raciais e Educação (ex. Educação Infantil,
preparatório para ENEM/PSS, Ações Afirmativas), além das temáticas
Descolonização do Pensamento em Psicologia; Filosofia do Ubuntu; Relações
Intrafamiliares; Parentalidade; Relações Raciais e Mundo do Trabalho.
Importante frisar que não se trata de temas fechados, podendo ser incluídos
outros, segundo sugestões do próprio Núcleo Temático. Além disso, foi definido
que todas as discussões e produções nestas temáticas precisariam ser realizadas
tomando como base os fundamentos epistemológicos e filosóficos da Gestalt-
terapia.
730 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

GRUPO DE ESTUDOS DESCOLONIZANDO A PSICOLOGIA

O Grupo de Estudos (GE) surge a partir da demanda, dos


participantes do núcleo, de ampliação de espaços de discussões e
produções acerca da temática, a fim de articular e criar um diálogo
entre a abordagem gestáltica e as produções teóricas de autores negros
dentro da psicologia que tratam da temática da racialidade e seus
atravessamentos na subjetividade negra. A Coordenação do GE foi
composta por Rozangela Leite, Paula Campos, Kênia Résiley e Vivian
Nunes. O grupo foi realizado no período de março a maio de 2022, tendo
contado com a participação de sessenta pessoas no primeiro encontro e
mantido uma média de trinta pessoas que acompanharam todos os
quatro encontros. Foram realizados quatro encontros, onde foram
discutidas as obras: Tornar-se Negro (Neusa Santos); Racismo: Gestalt
aberta que mantém ausências (Lívia Arrelias); Racismo Estrutural
(Silvio Almeida) e o documento Relações Raciais: referências técnicas
para a prática da(o) psicóloga(o) - Conselho Federal de Psicologia. A
metodologia usada foi a teórico-vivencial, onde os participantes
compartilhavam de suas experiências pessoais e profissionais que
emergiram por meio das discussões teóricas. Participaram dos
encontros estudantes e profissionais da psicologia e gestalt-terapeutas,
sendo grande parte dos participantes pessoas brancas. O que mostra a
necessidade dos estudos da temática nos espaços de formação e a
ampliação da consciência de que, a construção de uma prática
profissional antirracista é de todos, não somente de profissionais
negras(os).
Kênia R. M. da Conceição; Mônica Alvim; Paula da S. Campos; Vivian N. Nogueira • 731

ESCREVER A GESTALT-TERAPIA: LINGUAGEM, (DES)FORMAS E POLÍTICAS


DA ESCRITA

A oficina de escrita surge a partir da percepção dos participantes


dos núcleos de que existe, ainda, uma baixa produção de textos que
discutem o tema das relações raciais e de gênero e a dificuldade com a
escrita foi apontada como uma questão central. Decidimos então
oferecer uma oficina de escrita, intitulada "Escrever a Gestalt-Terapia :
Linguagem, (Des) formas e políticas da escrita". A oficina foi coordenada
por Alan Dantas, Alexandra Tsallis e Mônica Alvim, contando com
dezesseis participantes e aconteceu no primeiro semestre de 2022, nos
meses de maio e junho.

O SEMINÁRIO DESCONSTRUINDO FRONTEIRAS

O Seminário “Desconstruindo Fronteiras” deu prosseguimento às


atividades da coordenadoria de produções de conteúdo. Foram uma
série de lives realizadas ao longo dos meses de junho e agosto, no
instagram da ABG. Foi um lindo projeto construído em conjunto com o
Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual, com o objetivo de trazer
discussões acerca de temáticas por muito tempo invisibilizadas. O
Núcleo de Relações Étnico-Raciais realizou as lives intituladas:
“Filosofias Africanas” e “Branquitude”.

ESCURECENDO OS FATOS

O racismo é uma gestalt aberta, fundo sempre presente na


experiencia de ser-negra/o/e, ele é um fenômeno estrutural na nossa
sociedade, isso significa que em todas as dimensões ele está presente, e
pode ser definido como: “uma forma sistemática de discriminação que
732 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas


conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou
privilégios para indivíduos a depender do grupo racial a qual
pertençam” (Almeida, 2021, p. 32). No Brasil, o mito da democracia
racial, as estratégias políticas de branqueamento e aniquilação do povo
preto, a negativa constante diante da realidade do racismo, só endossam
sua estrutura opressora e faz com que políticas racistas mantenham as
desigualdades sociais e a violência - física/objetiva ou subjetiva que
impacta diretamente na saúde mental - se mantenham, por vezes de
forma tão naturalizada e sutil, até mesmo dentro dos consultórios
psicológicos.
Reconhecer o racismo, seus atravessamentos e como ele se
estrutura em todas as dimensões sociais, assim como reconhecer o lugar
de privilégios simbólicos e reais da branquitude no contexto brasileiro,
é fundamental para a construção de uma clínica gestáltica ética, política
e coerente, uma vez que a própria teoria rompe com a dicotomia entre
o individual e o social. Negar o racismo e como ele atravessa a Gestalt-
terapia e as bases da nossa formação profissional, é manter, compactuar
e legitimar estruturas violentas de exclusão.
É preciso, como aponta Sena (2021), desnaturalizar o conformismo,
a dessensibilização, a deflexão e qualquer outra forma de recusa do
racismo e das relações raciais na GT. É preciso manter acesa a chama da
indignação! O nascimento da abordagem se dá em meio a movimentos
de resistências e lutas sociais de reafirmação da vida, surge em meio a
crenças políticas de transformações sociais, as quais impactam
profundamente sua teorização, como aponta Belmino (2021). A Gestalt-
terapia não é uma teoria sobre o individual, é uma teoria das relações e
de como sujeito-ambiente-campo se afetam e se constituem a partir
Kênia R. M. da Conceição; Mônica Alvim; Paula da S. Campos; Vivian N. Nogueira • 733

desses atravessamentos, sendo assim, no contexto brasileiro, onde mais


da metade da população é negra, é urgente que a Gestalt-terapia
questione e construa práticas e intervenções que considerem as
especificidades da população brasileira, e principalmente, que resgate
sua dimensão ético-política implicada ao contexto social, a fim de
alcançar a totalidade no cuidado das pessoa negras que chegam aos
consultórios. A existência do NRER é um importante passo nessa
direção.
Por fim, para escurecer as ideias, fica aqui a provocação feita por
Kilomba (2019), em vez de fazer a clássica pergunta moral “eu sou
racista?” e esperar uma resposta confortável, você já se perguntou:
"como posso desmantelar o meu próprio racismo?” (p.46). Questionar-
se já é o início desse processo.

REFERÊNCIAS

Almeida, S.L.( 2019.) .Racismo estrutural. Ed Pólen.

Arrelias, L. Racismo: gestalt aberta que mantém ausências. In: Olhares da Gestalt-terapia
para a situação de pandemia / Organização: ABG – Associação Brasileira de Gestalt-
terapia e Abordagem Gestáltica (organizador). CRV, 2020. 322 p. (Coleção: Vozes em
letras, v. 1).

Belmino, M.C. (2021). Revisitando Paul Goodman: desdobramentos políticos da gestalt-


terapia. In: Boccardi, D. O. (Org.) Gestalt-terapia e sociedade. Org. 1ª ed. LiberArs.

Conselho Federal de Psicologia. Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de


psicólogas/os. 1ª ed. CFP, 2017.

Kilomba, G. (2019). Memórias de uma plantação: Episódios de racismo cotidiano. 1ª ed.


Cobogó.
734 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Sena, G.M. (2021). Relações étnicos raciais na formação de uma gestalt-terapeuta: e a


periferia emerge no centro. In: Boccardi, D. O. (Org.) Gestalt-terapia e sociedade. Org.
1ª ed. LiberArs.

Souza, N. S. (2021). Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro


em ascensão social. Brasil: Zahar.
32
NÚCLEO DE RELAÇÕES DE GÊNERO E DE
DIVERSIDADE SEXUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE GESTALT-TERAPIA E ABORDAGEM GESTÁLTICA
The Group of Gender Relations and Sexual Diversity of the Brazilian
Association of Gestalt Therapy and Gestalt Approach
Núcleo de Relaciones de Género y Diversidad Sexual de la Asociación
Brasileña de Terapia Gestalt y Enfoque Gestalt

Elaine Maria Silva Moura


Marcela Fernandes Fulgêncio
Gabriel Fernandes Rodrigues
Paulo Barros
Silvia Oliveira de Alencar
Tatiana Campbell

A diversidade tem um papel fundamental em Gestalt-terapia (GT),


visto que é a partir do contato com esta, com a alteridade, que crescemos
e nos desenvolvemos. O contato com o diverso, com a diferença, com o
não-eu é sempre um convite para ser afetado, tocado e, principalmente,
transformado. Diante disso, constantemente nos perguntamos quem é
esse outro que é diverso, o diferente? Quem ocupa o lugar de
outreridade 1? Tais questões já nos fornecem apontamentos das relações
de poder que constituem o fundo das experiências em diversidade
sexual e de gênero, revelando que a cisgeneridade e a
heterossexualidade, constituem a norma, e todo o restante se configura

1
Nascimento (2021) ao articular autores como Grada Kilomba e Simone de Beauvoir, emprega o termo
outreridades, ou seja, o modo de ser do outro, para ressaltar que as transexuais e as travestis são o “Outro
do Outro do Outro, uma imagem distante daquilo que é determinado normativamente na sociedade
como homem e mulher” (p.52).
736 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

como o outro, o diferente, o dissidente. Nossa proposta é não só


evidenciar o fundo que compõe essas relações, mas sobretudo esmiuçar
a diversidade de gênero e de sexualidade que se faz presente nas
experiências consideradas normais e nas consideradas desviantes.
As contribuições da teoria gestáltica possibilitam o entendimento
do gênero e da sexualidade também enquanto um devir, enquanto
processos construídos na fronteira de contato entre o organismo e o
meio. Assim, as formas de vivenciar as identidades e as sexualidades são
múltiplas e naturais, dizendo de modos de existência possíveis.
Entender a identidade e a sexualidade enquanto devir é, em outras
palavras, despatologizar identidades e sexualidades que, em seu
histórico, foram desumanizadas pelo saber Psicológico que deslocaram
toda a diversidade sexual e de gênero para o campo da doença,
compreendendo-as como expressão de um adoecimento e criando
diversos dispositivos para normatizar as pessoas. Processos que
continuam a todo vapor ainda hoje.
Cabe ressaltar que, para além da Gestalt-terapia, a própria
Psicologia atualmente já se coloca como resistência a esses processos. O
Conselho Federal de Psicologia (CFP) - como órgão que orienta, fiscaliza
e regulamenta a profissão -, além do Código de Ética Profissional do
Psicólogo, que já aponta nessa direção, traz resoluções que abordam as
normas de atuação em relação à orientação sexual, identidades de
gênero e a orientações não-monossexuais. Respectivamente, são as
resoluções CFP 01/1999, CFP 01/2018 e CFP 08/2022.
Assim, ao utilizar este enquadre psicopatológico como solo para as
relações clínicas pressupõe-se que a identidade cisgênera seria
referência para o entendimento de uma suposta “natureza humana”
pautada em um essencialismo de gênero. Considerando a fluidez das
Índice Remissivo • 737

(re)construções de identidade, o gênero binário representa uma


categoria social fixa que não acompanha os movimentos do ser-corpo.
Consideramos que a Gestalt-terapia não trabalha com a perspectiva de
correção ou de adequação, portanto, o trabalho gestáltico não deve visar
adequar as pessoas à cisheteronorma vigente, no sentido de tentar fazê-
las assumir uma postura mais aceita e normalizada dentro dos padrões
sociais. Ao contrário, a GT postula a necessidade de criar espaços que
facilitem processos de subjetivação singulares e únicos, ajudando as
pessoas a produzirem o seu próprio projeto existencial, ao invés de
ajudá-las a viver o dos outros. É nesse sentido que surge o grupo de
estudo Transgressões Gestálticas, um espaço de troca teórico-vivencial
que busca romper com o silenciamento e a invisibilização da diversidade
sexual e de gênero na GT.

GRUPO DE ESTUDOS TRANSGRESSÕES GESTÁLTICAS

O grupo de estudos (GE) surge a partir da demanda dos membros


vinculados às reuniões da ABG de criar um espaço que possibilitasse
tornar audíveis as vozes de pessoas epistemologicamente silenciadas.
Nesse sentido, o GE nasce para promover, convocar e ampliar o debate
sobre a Gestalt-terapia e as relações de diversidade sexual e de gênero.
Após a divulgação do grupo em grupos de WhatsApp e no Instagram da
ABG, as inscrições foram encerradas em poucos dias ao atingir o
número de 114 pessoas, tendo em vista a quantidade limitada de vagas.
Foram realizados ao todo sete encontros que contaram com a
participação de estudantes de Psicologia e profissionais da Gestalt-
terapia de todas as regiões do Brasil, também do Distrito Federal.
Tomamos como referência para os encontros a obra:
738 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

“Transfeminismos”, de Leticia Carolina Nascimento, livro publicado


pela editora Jandaíra em 2021 que compõe a coleção “Feminismos
Plurais”, organizada pela feminista negra e filósofa Djamila Ribeiro.
Cada encontro ocorreu a partir da leitura de um capítulo previamente
combinado.
Com a pergunta “E não posso ser eu uma mulher?” (NASCIMENTO,
2021, p. 20), a autora inicia sua obra, levando-nos a debater o
transfeminismo a partir das vivências de pessoas travestis e
transexuais. Na primeira parte, “Do conceito de gênero à pluralização
das sujeitas do feminismo”, a autora disserta sobre conceito de gênero
com base em teóricas nacionais e estrangeiras, bem como em alguns
autores que contribuem com o debate.
No capítulo “Mulheres transexuais e travestis: the outsiders non
sisters”, a autora retoma a as representações acerca das mulheres trans
e travestis, e a negação de suas existências, demonstrando como essas
subjetividades são cotidianamente colocadas na posição de não
humanidade e de marginalização. Ao utilizar o termo outsider e a
categoria Outro, a autora aponta que transexuais e travestis são o Outro
do Outro do Outro, ao se distanciarem do que normativamente é
entendido enquanto homem e mulher.
Em “Cisgeneridade, despatologização e autodeterminação: nós por
nós mesmas!”, a autora discorre sobre a importância de nomear a
norma demonstrando que “o conceito de cisgeneridade é uma máquina
de guerra discursiva que expõe o modo pelo qual corpos generificados
se apropriam do direito de subalternizar outros corpos generificados”
(NASCIMENTO, 2021, p. 99). Aqui são discutidas as formas da
patologização das subjetividades trans a partir da Psicologia e
Psiquiatria pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Índice Remissivo • 739

Problemas Relacionados com a Saúde (CID) e no Manual Diagnóstico e


Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), enfatizando os efeitos
nefastos de tal patologização, bem como a necessidade da
despatologização. Este capítulo foi crucial, tendo em vista o contexto do
GE e seu público-alvo.
Aproveitamos para trazer um conceito precioso para a Gestalt-
terapia: responsabilização, influência direta do existencialismo como
fundamento epistemológico. Reconhecer o contexto histórico e o papel
que a Psicologia assumiu perante determinados grupos é fundamental
para que ocorra reflexão e reconfiguração de uma prática hegemônica
há muito tempo em vigência. Um momento de awareness, de sair do
automático (porque o automático ainda é a norma) para se questionar
“A quem serve esses saberes?”, “De que forma entro em contato com
isso?”, “Em que direção minha prática aponta?”, “O que meu corpo
comunica ao outro no momento do encontro?”, entre tantas outras
reflexões.
Em todos os encontros, buscamos produzir uma leitura gestáltica
sobre a obra, visando compreender as relações entre a GT e os
apontamentos da autora. Além disso, como parte da nossa metodologia,
buscamos provocar as pessoas participantes a refletirem não apenas de
maneira teórica sobre a temática, mas também de modo vivencial e
implicado, pensando suas próprias experiências com a diversidade
sexual e de gênero, bem como a prática profissional com tal público.
Consideramos que o GE foi de suma importância para os sujeitos
envolvidos que muitas vezes afirmaram ser o único espaço seguro que
dispunham para discussões que julgavam tão importantes. Houve
intensa troca de experiências, de referências de materiais acadêmicos,
produções audiovisuais e outras formas de expressão. Além disso, o GE
740 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

possibilitou ampliar o debate na GT ao incentivar a produção acadêmica


dos envolvidos e, de forma conjunta, pensar a criação do edital para o
segundo volume do ebook “vozes em letras”, trazendo nesta edição a
temática “Relações étnico-raciais e/ou de gênero e sexualidade na
perspectiva da Abordagem Gestáltica.
Mesmo que atualmente esta e outras iniciativas que visam debater
e desnaturalizar estruturas hegemônicas estejam presentes tanto na
ABG, quanto em alguns cursos de formação em Gestalt-terapia pelo
Brasil, percebemos que as bases formativas ainda representam um
enorme espaço para ser ocupado por estudos contracoloniais, visto a
grande procura pelo tema por profissionais e os inúmeros relatos que
envolvem violências sofridas por pessoas atendidas em consultórios de
psicologia. Enquanto profissionais de psicologia ainda representarem
vetores de violência para tantas pessoas, transgredir o estabelecido na
clínica torna-se urgente e imperativo, além de necessário.
A partir disso, esperançamos que espaços como o GE Transgressões
Gestálticas possam se ampliar no Brasil a fora para que possamos
formar Gestalt-terapeutas éticas(os)(es) e engajadas(os)(es) com a
diversidade e pluralidade da vida.

PRODUÇÃO DE CONTEÚDOS DISSIDENTES

Paralelamente ao grupo de estudos Transgressões Gestálticas, foi


criada a Coordenadoria de Produções Dissidentes, responsável por
pensar, articular e organizar atividades diversas, visando incentivar e
trazer ao centro das discussões em GT as temáticas diversidades sexual
e de gênero, relações de gênero e questões étnico raciais. Dentre as
propostas, há a elaboração de postagens nas redes sociais (site e
Índice Remissivo • 741

Instagram), lives e podcasts, todos pensados a partir de subtemas


sugeridos por participantes dos Núcleos de Relações Raciais e Gênero e
Diversidade Sexual, que foram coletados durante os encontros e por
meio de formulário de pesquisa divulgados nos respectivos grupos de
WhatsApp.
Essas atividades faziam parte do planejamento dos núcleos,
visando estreitar as relações internas na busca pela construção de uma
Gestalt-terapia mais plural e foram organizadas para gerenciar as
atividades dos núcleos durante o ano de 2022. Foi feita uma rodada de
levantamento de temáticas de interesse para discussão, estudo e
produções diversas, organizadas em temas guarda-chuva, que não se
esgotam, mas sugerem uma organização inicial. Além disso, todas as
discussões e produções nestas temáticas foram realizadas tomando
como base os fundamentos epistemológicos e filosóficos da Gestalt-
terapia.
A partir do segundo semestre de 2022, iniciaram as postagens de
pequenos textos nas redes sociais da ABG, com o intuito de contribuir
para a reflexão de temáticas das relações étnico-raciais e de gênero e
diversidade, na perspectiva da Gestalt-terapia. Essa atividade teve como
proposta criar espaços de reflexão, discussão e visibilidade para
questões tão urgentes na contemporaneidade. Assim, foram escolhidas
as temáticas de acordo com as datas comemorativas importantes para
o movimento LGBTQIAP+ e para os movimentos de relações étnico-
raciais. A equipe da coordenadoria de Produções Dissidentes preparou
um cronograma de postagens, que reuniu datas importantes
relacionadas a esses temas, que foram pautadas pela noção de
interseccionalidade. O cronograma tentou reunir os principais marcos
nacionais e internacionais, como forma de celebrar e entender a
742 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

relevância e a história por trás de cada data. Dentre as temáticas


divulgadas, podemos citar: Dia internacional de luta contra a
Homofobia, Transfobia e Bifobia; Dia Internacional do Orgulho
LGBTQIAP+; Dia Internacional Da Mulher Negra Latino Americana e
Caribenha; Dia Do Orgulho Lésbico; Setembro amarelo é todo dia; Dia da
Visibilidade Intersexual; Lei do ventre livre; Fundado o Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros; Dia das crianças; Dia Nacional de Mobilização
Pró-Saúde da População Negra; Semana da Visibilidade Assexual;
Semana da Consciência Negra; Dia Internacional De Combate A
Violência Contra A Mulher; Dia da Pansexualidade; Dia Mundial de Luta
contra Aids, entre outros.
Foi realizado, nos meses de julho e agosto de 2022, o Seminário
Desconstruindo Fronteiras, um evento em formato de lives realizadas
pelo Instagram da ABG organizado conjuntamente pelos Núcleos de
Relações Raciais e Gênero e Diversidade Sexual. Ao todo, foram
realizadas quatro transmissões ao vivo que contaram com a
participação de profissionais da comunidade Gestáltica e com
convidados externos especializados nas temáticas debatidas. No mês de
julho, foram realizados dois encontros: “Cisgeneridade” com Letícia
Nascimento e Natália Duarte e “Relações Não-Monogâmicas” com
Raíssa Eris Grim Cabral e Thereza Cristina, mediadas por Paulo Barros.
No mês de agosto aconteceram duas lives, com os temas: “Filosofia
Africana”, com a presença de Rozangela Leite e Wanderson Nascimento,
mediada por Silvia Alencar e Paula Campos; e “Branquitude”, com a
presença de Priscila Silva e Mônica Alvim e mediada por Kênia Résiley.
As gravações estão disponíveis para todes, associades ou não, no perfil
da ABG no Instagram (@a.b.gestaltterapia).
Índice Remissivo • 743

A execução de todas as propostas supracitadas parte de um


compromisso da ABG com a construção de uma Gestalt-terapia política,
que não se perde em preciosismos teóricos descolados da realidade em
que é construída. Apresenta um resgate das raízes da abordagem -
contra-normativa, questionadora e crítica -, que se despe dos
psicologismos para observar o organismo em relação ao meio sob um
olhar fenomenológico. Trazer para o cerne das discussões em Gestalt-
terapia temas que refletem a configuração desse meio sócio-histórico-
culturalmente localizado é colocar como prioridade a construção e o
crescimento de uma abordagem que, de fato, atenda às necessidades que
se propõe a atender com awareness de suas potencialidades e limitações.
O reconhecimento das limitações é também um convite. A Gestalt-
terapia não se encerra em seus grandes nomes e é fundamental o olhar
atento sob o referencial do contexto nacional - que por si só já engloba
tantos campos – para que uma prática autêntica e atualizada possa
existir. Uma convocação à pesquisa e ao desenvolvimento de uma
abordagem gestáltica implicada.

REFERÊNCIAS

Nascimento, L. C. P. (2021) Transfeminismo. Jandaíra.


ÍNDICE REMISSIVO

alteridade, 29, 45, 50, 57, 107, 141, 143, 144, 118, 125, 130, 132, 137, 138, 147, 178, 207,
174, 222, 230, 248, 300, 335, 376, 381, 399, 249, 261, 279, 289, 366, 369, 377, 411, 413,
412, 413, 424, 430, 439, 522, 533, 538, 540, 424, 426, 447, 466, 477, 484, 558, 576, 596,
541, 545, 546, 547, 551, 552, 554, 661, 671, 599, 600, 602, 604, 608, 614,652, 673, 694,
688, 692, 699, 705, 729 703, 722, 753

ancestralidade, 123, 206, 209, 258, 279, 722 clínica, 9, 11, 18, 19, 20, 21, 28, 41, 42, 44, 45,
49, 50, 66, 67, 68, 69, 70, 78, 102, 104, 107,
arteterapia, 476, 477, 478, 480, 481, 482, 497 108, 110, 114, 116, 120, 124, 125, 126, 127,
133, 136, 138, 140, 141, 142, 147, 153, 162,
audiovisual, 156, 163 163, 164, 165, 169, 171, 174, 177, 185, 189,
219, 221, 222, 228, 256, 264,269, 283, 286,
autoestima, 13, 120, 122, 124, 125, 193, 194, 297, 298, 303, 304, 305, 306, 308, 310, 311,
197, 198, 199, 200, 202, 203, 204, 205, 208, 312, 313, 315, 318, 321, 322, 323, 324, 329,
209, 210, 211, 213, 318, 348, 481 333, 336, 344, 346, 347, 360, 362, 363, 365,
366, 367, 368, 370, 377, 378, 379, 380, 381,
branquitude, 11, 58, 59, 65, 119, 122, 128, 132, 382, 386, 391, 393, 394, 399, 400, 412, 421,
153, 157, 158, 159, 160, 165, 169, 170, 178, 423, 425, 426, 435, 438, 439, 449, 450, 467,
188, 189, 195, 211, 216, 231, 250, 258, 262, 473, 498, 500, 501, 506, 522, 524, 525, 526,
265, 288, 290, 303, 367, 368, 372, 373, 379, 528, 534, 535, 536, 537, 539, 542, 544, 545,
381, 413, 425, 439, 441, 558, 589, 604, 654, 546, 547, 549, 551, 552, 554, 574, 577, 585,
656, 657, 659, 665, 667, 668, 669, 670, 671, 590, 592, 596, 608, 626, 629, 633, 634, 635,
672, 673, 674, 675, 681, 683, 684, 685, 686, 638, 643, 644, 645, 646, 647, 648, 649, 650,
687, 688, 689, 691, 692, 693, 695, 696, 697, 653, 655, 656, 657, 659, 677, 679, 680, 694,
698, 699, 700, 701, 705, 707, 709, 710, 713, 695, 704, 726, 734, 746, 747, 748, 749, 750,
714, 715, 716, 722, 726, 754 752, 753, 754, 755, 756, 757, 758

cisgeneridade, 136, 370, 383, 396, 434, 470, colonialidades, 145, 382, 442, 631
583, 584, 589, 590, 597, 603, 610, 622, 729,
732 COM-POR, 214, 217, 218, 219, 220, 221, 226,
228, 229, 231, 751, 756
cisheteronormatividade, 132, 368, 374, 389,
392, 398, 399, 407, 408, 409, 411, 464, 467, comunidade, 35, 36, 37, 44, 48, 61, 65, 119,
586, 596, 750 160, 236, 242, 333, 335, 336, 342, 363, 368,
428, 538, 541, 597, 613, 641, 657, 690, 692,
classe, 7, 9, 37, 39, 41, 53, 58, 61, 76, 77, 78, 80, 696, 704, 710, 722, 736
83, 102, 103, 104, 108, 110, 112, 115, 117,
Índice Remissivo • 745

confluência, 45, 50, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 504, 505, 506, 512, 513, 514, 515, 516, 518,
82, 85, 86, 87, 92, 94, 99, 119, 132, 138, 139, 519, 522, 524, 532, 534, 566, 607, 609, 616,
140, 141, 143, 166, 170, 179, 184, 315, 340, 623, 630, 631, 688, 689, 690, 755
402, 427, 568, 690, 691, 692, 693
fronteira de contato, 45, 46, 219, 222, 223,
contrassexualidade, 433 224, 229, 252, 270, 312, 313, 392, 393, 397,
411, 412, 427, 455, 509, 510, 542, 545, 546,
cuidado, 34, 124, 126, 176, 215, 218, 221, 222, 552, 565, 606, 648, 730
224, 227, 228, 230, 233, 236, 241, 244, 247,
253, 255, 257, 258, 260, 262, 263, 264, 265, gênero, 6, 7, 9, 19, 23, 27, 34, 35, 37, 39, 41, 53,
278, 282, 291, 294, 295, 296, 297, 299, 300, 54, 56, 57, 58, 59, 64, 76, 80, 81, 83, 88, 89,
303, 332, 336, 358, 381, 426, 434, 435, 439, 90, 97, 102, 103, 104, 108, 110, 111, 112, 113,
448, 449, 451, 452, 471, 472, 500, 504, 510, 114, 115, 117, 118, 123, 125, 127, 128, 130,
514, 519, 528, 534, 536, 539, 545, 552, 582, 132, 133, 137, 141, 142, 144, 145, 147, 155,
583, 607, 615, 617, 622, 624, 625, 639, 659, 219, 261, 269, 275, 327, 330, 331, 332, 333,
688, 727 334, 335, 336, 337, 338, 339, 340, 341, 343,
347, 348, 350, 356, 357, 358, 359, 366, 367,
Decolonialidade, 71, 72, 132, 171, 265, 698 369, 371, 377, 382, 383, 384, 385, 386, 387,
388, 389, 390, 391, 392, 394, 396, 398, 399,
descolonização do pensamento, 269, 288 407, 408, 409, 411, 413, 415, 417, 418, 419,
421, 422, 423, 424, 427, 428, 429, 430, 431,
dissidência, 386, 389, 448, 610 432, 433, 434, 435, 438, 440, 442, 446, 447,
455, 456, 458, 459, 460, 461, 462, 463, 464,
drogas, 18, 291, 292, 293, 294, 295, 296, 297, 465, 466, 467, 468, 469, 470, 471, 472, 476,
298, 300, 301, 302, 303, 320, 420, 468, 490 477, 479, 480, 496, 499, 500, 502, 504, 505,
506, 507, 509, 512, 516, 517, 539, 540, 542,
543, 544, 551, 554, 556, 557, 558, 560, 561,
encantamento, 447, 452
562, 563, 565, 566, 567, 568, 569, 570, 571,
572, 573, 575, 576, 581, 582, 583, 584, 585,
escola, 51, 84, 98, 115, 116, 193, 194, 198, 200,
587, 588, 589, 591, 593, 594, 596, 597, 598,
204, 206, 207, 319, 339, 417, 442, 448, 476,
599, 600, 602, 603, 604, 605, 610, 612, 616,
479, 484, 485, 491, 566, 602, 612, 628, 688,
662, 670, 673, 676, 678, 693, 694, 713, 725,
689
729, 730, 731, 732, 733, 734, 735, 747, 749,
750, 751, 753, 754, 755, 756
estruturas sociais, 33, 42, 51, 64, 66, 68, 119,
256, 354, 668, 682, 689
Gestalt-terapia, 6, 7, 9, 11, 12, 16, 17, 18, 21,
23, 30, 32, 33, 37, 38, 41, 42, 44, 45, 46, 47,
ética, 20, 42, 43, 45, 103, 104, 107, 182, 218,
60, 64, 65, 66, 69, 70, 72, 73, 74, 79, 87, 89,
222, 233, 243, 244, 288, 291, 295, 297, 300,
99, 102, 103, 109, 110, 111, 118, 127, 128,
315, 323, 346, 347, 360, 362, 377, 394, 399,
130, 131, 132, 133, 134, 135, 138, 142, 145,
412, 413, 425, 450, 522, 523, 536, 539, 552,
146, 147, 148, 149, 151, 153, 155, 156, 163,
574, 590, 592, 624, 649, 651, 673, 702, 726
169, 172, 173, 174, 175, 176, 187, 189, 190,
191, 199, 212, 220, 222, 228, 229, 230, 231,
família, 51, 82, 113, 114, 178, 180, 186, 219,
232, 233, 234, 237, 238, 239, 240, 241, 242,
259, 260, 279, 331, 371, 417, 428, 455, 458,
243, 244, 245, 250, 251, 253, 254, 256, 258,
460, 465, 478, 479, 488, 494, 500, 501, 502,
746 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270, 273, LGBTQIAP+, 19, 329, 336, 341, 344, 399, 451,
276, 280, 283, 285, 286, 288, 289, 290, 291, 538, 539, 541, 542, 543, 551, 552, 597, 735,
299, 300, 301, 302, 303, 305, 306, 307, 308, 757
309, 312, 313, 314, 315, 319, 320, 321, 322,
324, 325, 329, 330, 331, 332, 335, 336, 338, monocorpo, 10, 130, 132, 133, 136, 140, 141,
343, 344, 345, 347, 351, 352, 361, 363, 364, 142
365, 366, 367, 368, 369, 375, 377, 378, 379,
380, 381, 382, 383, 384, 386, 387, 390, 391, neoliberalismo, 61, 62, 63, 393, 675
393, 394, 395, 396, 397, 399, 410, 411, 412,
413, 418, 419, 420, 421, 423, 425, 426, 427, orientação sexual, 27, 76, 83, 117, 356, 424,
428, 436, 437, 438, 439, 440, 441, 443, 445, 463, 466, 479, 480, 500, 513, 517, 534, 538,
448, 449, 450, 452, 453, 455, 456, 471, 472, 539, 594, 604, 694, 730
473, 481, 482, 483, 499, 501, 503, 510, 522,
523, 524, 526, 528, 533, 536, 537, 539, 542, pele coletiva, 14, 214, 218, 220, 222, 223, 226,
545, 547, 548, 552, 553, 554, 555, 556, 557, 228
558, 559, 563, 564, 565, 570, 571, 572, 573,
574, 576, 577, 581, 583, 584, 585, 587, 591,
pluriversalidade, 131, 147
593, 595, 602, 606, 610, 615, 624, 625, 629,
633, 644, 645, 646, 649, 650, 651, 661, 663,
poder, 23, 33, 44, 51, 53, 54, 57, 59, 60, 65, 66,
665, 676, 677, 678, 679, 686, 688, 689, 690,
67, 79, 80, 81, 88, 91, 93, 99, 103, 106, 115,
693, 697, 699, 708, 711, 713, 719, 721, 723,
124, 145, 146, 154, 157, 158, 159, 168, 172,
726, 727, 728, 729, 730, 731, 733, 734, 735,
176, 179, 181, 216, 229, 246, 247, 248, 249,
737, 746, 747, 748, 749, 750, 752, 753, 754,
251, 261, 264, 267, 274, 280, 285, 290, 293,
755, 756, 757, 758
303, 316, 333, 334, 337, 342, 343, 346, 348,
349, 351, 357, 359, 360, 361, 364, 368, 372,
heterocisnorma, 442, 446, 451
374, 380, 384, 385, 386, 388, 389, 390, 392,
395, 398, 402, 404, 407, 408, 409, 411, 416,
HIV/AIDS, 468 417, 421, 424, 425, 426, 428, 429, 431, 433,
435, 439, 440, 454, 470, 478, 483, 497, 516,
humanidade, 57, 100, 131, 174, 233, 236, 241, 541, 542, 543, 553, 560, 562, 568, 573, 576,
242, 248, 255, 269, 282, 294, 313, 317, 324, 582, 590, 600, 605, 606, 612, 613, 615, 617,
385, 417, 442, 456, 462, 546, 566, 673, 684, 637, 653, 656, 659, 662, 663, 671, 676, 682,
703, 704, 705, 709, 712, 732 683, 687, 696, 698, 699, 701, 703, 704, 709,
712, 713, 715, 729
identidade de gênero, 89, 463, 516, 585, 596,
597 política, 6, 7, 18, 33, 34, 41, 42, 43, 44, 46, 49,
56, 61, 66, 67, 69, 70, 90, 103, 104, 121, 123,
infância, 13, 60, 121, 193, 194, 199, 200, 201, 126, 130, 134, 136, 143, 145, 153, 168, 185,
209, 211, 219, 265, 274, 357, 358, 367, 374, 188, 217, 219, 231, 247, 249, 257, 264, 268,
478, 479, 484, 488, 491, 520 274, 288, 291, 294, 295, 296, 297, 300, 302,
303, 309, 342, 343, 344, 364,366, 367, 368,
introjeção, 76, 184, 209, 307, 340, 398, 404, 373, 374, 380, 382, 386, 387, 391, 394, 395,
532 396, 408, 418, 425, 426, 429, 431, 432, 438,
439, 440, 441, 442, 450, 454, 456, 457, 461,
469, 471, 473, 483, 497, 522, 528, 536, 547,
Índice Remissivo • 747

548, 552, 570, 591, 631, 635, 638, 644, 657, 698, 700, 704, 706, 712, 714, 715, 716, 721,
658, 683, 706, 721, 726, 727, 737, 754 725, 726, 727

prática antirracista, 11, 16, 37, 90, 151, 163, raiva, 93, 94, 95, 97, 140, 177, 187, 272, 273,
174, 175, 177, 182, 187, 191, 243, 245, 263, 274, 275, 276, 277, 278, 284, 285, 286, 290,
278, 350, 365, 375, 378, 401, 410, 412, 424, 404, 406, 421, 521, 532
425, 426, 427, 438, 439, 440, 502, 513, 519,
523, 524, 536, 545, 552, 553, 563, 571, 577, redução de danos, 291, 295, 296, 297, 300,
583, 624, 677, 757 303, 471, 624

psicologia africana, 191, 704, 708 sexismo, 61, 64, 71, 78, 166, 172, 212, 286, 302,
307, 324, 424, 437, 600, 698
psicologia clínica, 103, 164
sexualidade, 19, 37, 59, 60, 145, 155, 327, 330,
raça, 7, 9, 37, 39, 41, 53, 57, 58, 76, 78, 81, 96, 331, 332, 334, 335, 336, 340, 341, 350, 367,
102, 103, 104, 108, 110, 111, 113, 115, 123, 369, 386, 388, 391, 394, 395, 398, 399, 401,
125, 128, 137, 138, 141, 144, 157, 159, 175, 402, 403, 407, 408, 409, 411, 415, 417, 418,
176, 178, 179, 180, 188, 190, 195, 202, 216, 419, 431, 434, 435, 436, 440, 441, 444, 445,
219, 230, 231, 245, 246, 247, 257, 261, 262, 447, 461, 462, 466, 509, 517, 520, 526, 527,
263, 289, 290, 324, 336, 359, 366, 367, 369, 528, 544, 553, 558, 561, 562, 566, 571, 578,
372, 377, 411, 413, 423, 424, 442, 447, 466, 581, 582, 584, 585, 588, 591, 593, 598, 678,
558, 576, 594, 600, 602, 608, 614, 652, 653, 713, 730, 734, 747, 750, 754, 756
670, 673, 675, 682, 683, 684, 691, 694, 704,
714, 722, 726, 753, 754 sofrimento, 68, 80, 103, 104, 107, 108, 110,
112, 114, 115, 118, 119, 123, 125, 126, 154,
racialização, 157, 158, 269, 271, 285, 307, 318, 180, 185, 188, 205, 208, 250, 251, 254, 255,
652, 681, 684 256, 265, 273, 275, 278, 289, 299, 306, 357,
358, 370, 377, 378, 379, 381, 384, 393, 405,
racismo, 13, 18, 58, 61, 64, 71, 73, 74, 78, 97, 407, 427, 439, 450, 454, 455, 457, 471, 472,
116, 123, 124, 125, 128, 132, 138, 141, 153, 498, 508, 515, 523, 530, 549, 550, 553, 574,
154, 155, 156, 157, 158, 160, 161, 163, 164, 585, 595, 600, 610, 634, 635, 639, 640, 641,
165, 166, 167, 168, 169, 170, 172, 173, 174, 642, 643, 656, 658, 659, 662, 680, 685, 700,
176, 178, 179, 180, 181, 184, 185, 186, 188, 701, 703, 705
190, 191, 193, 194, 195, 196, 199,200, 201,
209, 211, 212, 220, 221, 229, 231, 245, 246, teoria do self, 20, 46, 134, 292, 302, 344, 346,
247, 254, 255, 260, 261, 262, 263, 272, 273, 347, 395, 473, 554, 564, 572, 576, 577, 689
275, 278, 284, 285, 286, 288, 289, 291, 292,
293, 299, 300, 301, 302, 305, 306, 307, 308, Teoria queer, 382, 395, 396, 440
312, 313, 316, 324, 325, 335, 359, 423, 424,
440, 543, 599, 600, 601, 634, 635, 636, 637, transexuais, 60, 373, 381, 428, 462, 465, 467,
638, 640, 642, 643, 645, 646, 648, 651, 653, 472, 473, 475, 476, 477, 497, 498, 499, 583,
654, 655, 656, 657, 658, 660, 666, 669, 670, 592, 729, 732, 753
671, 672, 673, 674, 675, 677, 678, 679, 680,
681, 682, 683, 684, 687, 688, 690, 693, 694,
748 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

travestis, 60, 338, 343, 373, 381, 416, 451, 462, 211, 220, 245, 256, 273, 275, 276, 293, 294,
465, 471, 473, 475, 476, 477, 480, 497, 498, 301, 302, 304, 307, 312, 315, 320, 334, 342,
582, 583, 591, 592, 729, 732 344, 346, 347, 348, 350, 351, 354, 357, 358,
360, 361, 367, 373, 374, 376, 378, 384, 392,
ubuntu, 233, 234, 235, 236, 244 426, 448, 456, 461, 462, 463, 464, 465, 470,
478, 479, 498, 528, 539, 541, 542, 543, 544,
violência, 60, 65, 67, 68, 70, 80, 118, 121, 155, 545, 550, 551, 553, 582, 583, 587, 612, 613,
167, 177, 181, 183, 185, 186, 197, 198, 199, 615, 625, 626, 658, 679, 680, 685, 695, 696,
703, 726, 734, 753
SOBRE OS AUTORES

Alexandra Cleopatre Tsallis


Professora Adjunta no Instituto de Psicologia da UERJ. Professora permanente do
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social/UERJ e do Programa de Pós-
graduação em Controladoria e Gestão Pública (Edital Cnpq 12/2020 Inovação)/UERJ.
Coordenadora do Laboratório afeTAR (Unidade de desenvolvimento tecnológica
cadastrada na Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação / UERJ e DGP / CNPq).
Doutorado pela UERJ em associação com o Centre de Sociologie de l'Innovation - Ecole
de Mines/Paris e Gestalt-terapeuta. Lattes: https://orcid.org/0000-0002-1221-137X

Alice Dias do Nascimento


Cursou o Ensino Médio (2º grau) no Colégio Visão, GO, Brasil (2015-2017), é graduanda
em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, PUC GOIÁS, Brasil (2018-),
participa da Liga de Gestalt-terapia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(LAGET) como Presidente, é monitora das disciplinas Matrizes do pensamento
psicológico na abordagem gestáltica e estágio básico com foco em Gestalt-terapia e
realiza atuação clínica em Gestalt-terapia.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2438177535618086

Ana Clara Peres Couri


Cursou o Ensino Médio (2º grau) no Colégio WR, GO, Brasil (2017-2019), é graduanda em
psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, PUC GOIÁS, Brasil (2019-),
participa da Liga de Gestalt-terapia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(LAGET) como Diretora de Marketing e Comunicação e é monitora da disciplina de
Matrizes do pensamento psicológico na abordagem gestáltica

Ana Júlia Chaves Melo


750 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Lattes:


http://lattes.cnpq.br/3728358358272649

Andrea dos Santos Nascimento


Professora adjunta do Departamento de Psicologia, CCHN, UFES, responsável pela
disciplina de Gestalt-terapia desde 2017. Coordenadora do Projeto de extensão “Gestalt-
terapia: Escuta e Acolhimento Psicológico de Grupos”. Membro da ABG. Linhas de
pesquisa: trânsito e mobilidade humana; gênero; identidade sexual e de gênero;
racialidade.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7133433103229461

Angelica (Angel) dos Santos Siqueira


Psicóloga, Mestranda em Psicologia Social PPGPS/UERJ, bolsista Capes.

Antonia Nathália Duarte de Moraes


Psicóloga de base humanista-fenomenológica, com doutorado e mestrado pela UFRN.
Especialista em Psicologia Clínica Fenomenológica e em Saúde Mental. Formação em
Gestalt-terapia no Centro Gestáltico San Isidro (CGSI), em Buenos Aires. Professora em
pós-graduações e cursos de formação, lecionando principalmente sobre as temáticas
voltadas à Fenomenologia, Existencialismo, Gestalt-terapia, Gênero e Sexualidade.
Atualmente é coordenadora do núcleo de Diversidade Sexual e de Gênero do
LETHS/UFRN e Professora do curso de Psicologia na Uninassau-PE. É psicoterapeuta,
atuando na clínica de modo online e presencial (Recife-PE).

Barbara Gabriela Silva e Remane


Graduanda em Psicologia pela UERJ, bolsista PIBIC, CNPq .

Camila Bugni Salerno


Pessoa trans não-binárie e não monogâmica. É graduade em Psicologia pela UNIARA –
Universidade de Araraquara, concluída no ano de 2015 e Gestalt-terapeute em formação.
Atualmente trabalha com atendimentos individuais nas modalidades online e
presencial e com grupos para pessoas trans na cidade de Araraquara-SP. Pesquisa
autonomamente sobre decolonialidade, gênero, sexualidade, não monogamia e teoria
queer em diálogo com a fenomenologia e a Gestalt-terapia.
Sobre os autores • 751

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7614804437537834

Carolina Soraggi Frez


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista
em Gestalt-terapia pela UFMG. Especialista em saúde pelo Hospital das Clínicas da
UFMG. Atua como Assessora Técnica de comunidades atingidas por mineração pela
Cáritas Brasileira.

Cecilia de Aquino Barbosa


Doutoranda em Psicologia Social PPGPS/UERJ. Psicóloga, atuando na Coordenação de
Saúde do Trabalhador/Coordenação Geral de Gestão de Pessoas/Fundação Oswaldo Cruz).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3791087437361290

Cheyenne Monteiro Wolf Von Arcosy


Pesquisadora no Laboratório Integrado de Pesquisa em Estresse na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado no Programa de Pós-graduação em Saúde
Mental do Hospital Psiquiátrico da UFRJ. Atualmente pesquisa Transtorno do Estresse
Pós-traumático em Populações Refugiadas no Rio de Janeiro.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9192642953398099

Clarissa Santiago Pinto


Mestranda em Psicologia pela UFRJ. Pós-graduação em psicologia da saúde com ênfase
em saúde do idoso pela UFPA e formação em Gestal-terapia clínica pelo CCGT-PA.
Atualmente psicóloga clínica e Gestalt-terapeuta atuando predominantemente com
público LGBTQIA+ e público idoso; residindo em Rio de Janeiro (RJ). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2315873151073734

Daniele Miranda
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social – UERJ; Psicóloga;
Gestalt-terapeuta; Palhaça; Trabalha atualmente na Vara de Infância de Nova Iguaçu.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0977170269780999

Elaine Maria Silva Moura


752 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Psicóloga, Gestalt-terapeuta em formação (atuação clínica) e bacharelanda em Filosofia


pela Universidade Federal do Cariri - UFCA.

Eliane Capel
Psicóloga, graduada em 2001 pela Universidade Metodista de Piracicaba, especializada
em Arteterapia pelo Instituto Sedes Sapientiae.
Apaixonada por artes do corpo, visuais e musicais. Trabalha com grupos de mulheres à
mais de 20 anos, com atenção especial entre a arte/dança e o terapêutico. Pesquisa
questões de gênero e feminismo desde 2013 e atualmente atente, na cidade de São Paulo,
mulheres cis e trans virtualmente e em clínica presencial.

Emanuella Moreira Cintra


Foi bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico com o
projeto de pesquisa intitulado “Mulheres Negras e Autoestima: Desvendando o Impacto
do Racismo na Autoestima”. Estudante de graduação em Psicologia do 7º período da
Universidade Federal do Espírito Santo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6402376351862816

Gabriel Fernandes Rodrigues.


Gestalt-terapeuta, Especialista em Psicologia Clínica: Gestalt-terapia e Análise
Existencial pela UFMG. Mestrando em Psicologia Social pela UFMG. Profissional
dedicado ao acolhimento psicológico de pessoas LGBT+ em diversos espaços. Membro
do nuh - Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e também da Comissão de
Psicologia, Gênero e Diversidade Sexual do Conselho Regional de Psicologia de Minas
Gerais. Atualmente, tem se dedicado as pesquisas sobre criminalização, saúde mental e
suicídio na população LGBT+
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1805479418745331

Gustavo Alves Pereira de Assis


Psicólogo pela Universidade de Rio Verde (UniRV) com residência em infectologia pela
Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES). Formado em Gestalt-terapia pelo Instituto
Gestalt de Curitiba (IGC). É mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás
(UFG), instituição atualmente vinculado, com ênfase em HIV/Aids na perspectiva da
Sobre os autores • 753

Gestalt-terapia e da fenomenologia merleau-pontiana. Atua como Gestalt-terapeuta em


consultório particular na cidade de Goiânia, no Estado de Goiás.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6973630910386957

José Humberto Alves


Graduando do curso bacharelado em Educação Física pela Universidade Federal do
triângulo Mineiro - UFTM (2018). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Atividade
Física, Exercício Físico e Saúde - GEPAFES - UFTM, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa
em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas - NEPSMAD - UFTM. Fisioterapeuta pela
Universidade de Uberaba - UNIUBE (2016). Possui formação completa no método Pilates em
(2016), Curso de Pilates para criança com enfoque Psicomotor em (2017). Experiência de
atuação no estúdio Carregal Pilates (2016 - 2018). Colaborador com o curso de formação no
método Pilates solo, bola, aéreo e em aparelhos na empresa Carregal Pilates (2019).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5635696049150513

Kahuana Carolina Leite.


Psicólogue pela Universidade Federal do Acre (Ufac). Gestalt-terapeuta pelo Centro de
Capacitação em Gestalt-terapia (CCGT Belém). Mestrande em Psicologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na linha de pesquisa “Processos
Psicossociais, Históricos e Coletivos”. Membre do Grupo de Estudos em Gestalt-terapia
do Acre. Atualmente reside no Rio de Janeiro (RJ) onde desenvolve pesquisa com
temáticas como: clínica gestáltica, cisheteronormatividade e dissidências de gênero e
sexualidade. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9574366934276243

Kênia Résiley M. da Conceição


Psicóloga Clínica (UFMG). Especialista em Psicologia Clínica em Gestalt-terapia e
Análise existencial (UFMG). Estudiosa da temática de Relações Étnico Raciais.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6689073074399113

Laura Cristina de Toledo Quadros


Doutora em Psicologia Social pela UERJ, Professora Adjunta do Instituto de Psicologia
UERJ; Coordenadora do PPGPS/UERJ.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5917221201880680
754 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Leda Mendes Gimbo


Gestalt-terapeuta, feminista, mãe. Professora adjunta na Universidade Federal de
Goiás – UFG.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8136066164744808

Leonardo Brandão Delvalle Regis


Mestre em Educação (2019), graduado em Direito (2007) e em Psicologia (2015) pela
Universidade Católica Dom Bosco. Integrou o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre
Formação, Trabalho e Bem-Estar Docente (GEBEM) até 2019. Tem experiência na área
de Psicologia Clínica, e atua como supervisor clínico e psicoterapeuta de adultos, grupos
e casais com ênfase em Gestalt -Terapia e Psicodrama. É associado e colaborador do
núcleo de relações de gênero e diversidade sexual da Associação Brasileira de Gestalt
terapia - ABG. Atua e reside em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2710977556629228

Letícia Carolina Nascimento


É mulher travesti, negra e gorda. Filha de Xangô no Candomblé Ketu e de Cabocla na
encantaria da Jurema. Leonina com lua em capricórnio. Feiticeira decolonial de devires
e bruxa mestiça da Sociopoética. É terapeuta com formação em Reiki e Arteterapia.
Pedagoga e Professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutoranda em
Educação (UFPI). Autora do livro Transfeminismo, na Coleção Feminismos Plurais
coordenada por Djamila Ribeiro. Vinculada ao NEPEGECI/UFPI; RIMAS/UFRPE;
POCs/UFPEL. Pesquisadora vinculada a ABPN e AINPGP. É ativista social atuando como
co-fundadora e articuladora do Acolhe Trans e junto a coordenação executiva nacional
do FONATRANS. Em suas investigações a ativista produz cartografias entre
corporalidades transvestigêneres e/ou negras a partir de perspectivas mestiças de
encontros entre ideias decoloniais, feministas e da filosofia da diferença.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7740026689471870

Loíse Lorena do Nascimento Santos


Mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social – UERJ.
Psicóloga e Integrante do Laboratório afeTAR (Unidade de desenvolvimento tecnológica
cadastrada na Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação / UERJ e DGP / CNPq); Psicóloga
Sobre os autores • 755

responsável pelo grupo de atendimento COM-POR pessoas negras - UERJ. Desenvolve


pesquisa na área de Psicologia Social e Relações Raciais.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5956668518586123

Lorena Schalken de Andrade


Psicóloga e Gestalt-terapeuta; Mestre e Doutoranda em Psicologia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA); Professora e Supervisora em Clínica
Gestáltica na Universidade da Amazônia (UNAMA).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9839836881441093

Luísa Parreira Santos


Psicóloga com mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM). Coordenadora da Comissão de Orientação em Psicologia e Relações Étnico
Raciais do CRP 04 subsede Triângulo. Coordenadora ABRAPSO Núcleo Uberlândia.
Reside e atua em Uberlândia-MG como docente no bacharelado em Psicologia na FATRA
Ensino Superior e na UNIESSA e como psicóloga clínica em consultório particular.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1331778885974207

Maiara da Silva
Foi extensionista do Projeto de Extensão “Gestalt-terapia: Escuta e Acolhimento
Psicológico de Grupos” e facilitadora do Grupo de Juventudes Negras. Atualmente é
Psicóloga Clínica autônoma com atuação fundamentada e orientada pela Gestalt-
terapia.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1396278925872366

Marcela Fernandes Fulgêncio


Graduação em Psicologia pela UFES (2021) e formação em Gestalt-terapia em curso
pelo Instituto Sati (ES).

Marciana Gonçalves Farinha


Psicóloga com doutorado em Enfermagem Psiquiátrica pela Universidade de São Paulo
(USP). Reside e atua como docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de
Uberlândia (UFU) e com supervisão clínica na perspectiva da Gestalt-terapia e
756 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

fenomenologia existencial. Pesquisadora nas áreas de Psicologia Clínica, Gestalt,


Fenomenologia, Saúde Mental, Tratamento, Intervenções e Prevenção Psicológica.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2345990227231629

Marcos Vinicius Monteiro Barbalho


Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Lattes: https://lattes.cnpq.br/3527995421315440

Michelle Billies
Ph.D, LCSW-R é professore associade* na City University of New York onde ensina
aconselhamento multicultural e teoria racial crítica. As pesquisas de Billies estão
centradas sobre os temas da justiça racial, respostas civis proativas à violência estatal, bem
como justiça e construção de comunidades entre pessoas de baixa renda, lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, não bináries e não conformes com o gênero. Billies é Gestalt-
terapeuta há mais de vinte anos e ensina teoria e prática sociocultural no Centro Gestáltico
de Psicoterapia e Formação em Nova Iorque. Tem um pequeno consultório privado e é
responsável por uma incrível criança de sete anos. *Billies usa o pronome pessoal 'elu'

Mônica Alvim
Psicóloga, Gestalt-terapeuta, doutorado em psicologia e pós-doutorado em filosofia
contemporânea pela Universidade Paris 1, Panthéon-Sorbonne. Presidente da ABG,
Associação Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestaltica. Atua em cursos de
formação em Gestalt-terapia em todo o Brasil e no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFRJ. Pesquisa as dimensões teórico-metodológicas da clínica da Gestalt-
terapia em contextos psicoterápico e comunitário, dialogando com a fenomenologia e a
arte, tendo Merleau-Ponty como autor principal no campo da filosofia. Coordena o
NEIFeCS - Núcleo de estudos interdisciplinares em fenomenologia e clínica de situações
contemporâneas, investigando o contemporâneo e fenômenos sociais estruturais, como
raça, gênero e classe. Autora do livro A Poética da Experiência: Gestalt-terapia,
Fenomenologia e Arte, co-autora de outros livros assim como de capítulos e artigos, no
Brasil e no exterior.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9864083719253243

Paula da Silva Campos


Sobre os autores • 757

Graduação em Psicologia pela Universidade FUMEC (2017). Gestalt-terapeuta – Instituto


Mineiro de Gestalt-terapia (2018) Formação Política pela IPAD – Seja Democracia do
Instituto Maria e João Aleixo/MG (2019). Membra da Comissão étnico-racial do CRP/MG
(2020). Co-coordenadora do Grupo de Estudos Étnico-racial da Associação Brasileira de
Gestalt-terapia (2022) Graduação Tecnólogo em Gestão de Recursos Humanos pela
Universidade FUMEC (2011) Promotora de defesa comunitária – Ministério Público de
Minas Gerais (2017)

Paula Marília Nascimento Moura


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2837006830996117

Paulo Antonio de Oliveira Muniz


Psicólogo formado pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da
UFRJ. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares em
Fenomenologia e Clínica de Situações Contemporâneas (NEIFeCS) da UFRJ. Tem
interesse e experiência na interface entre arte, clínica e psicologia, com ênfase em
fenomenologia crítica, decolonialidade, relações raciais, fotografia, estética e política.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8819226256900048

Paulo Barros
Gestalt-terapeuta, psicólogue, especialista em sexualidade. Cursou psicologia na
Universidade Federal de Roraima, realizando parte da graduação em Coimbra, Portugal.
Atualmente está como coordenadore do Instituto de Gestalt-terapia de Roraima,
atuando como professore em diversos institutos pelo Brasil e faz parte da atual diretoria
da Associação Brasileira de Gestalt-terapia, no cargo de comunicação. Atua com
psicologia clínica e supervisão clínica, tendo como principais áreas de pesquisa: Gestalt-
terapia, gênero, sexualidade, neurose, corpo.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0839961135937835

Priscila Elisabete da Silva


Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em Sociologia pela
Universidade Estadual Paulista (FCL-UNESP); Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais
758 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

(FCL-UNESP). Licenciada em Pedagogia (FPSJ). Pesquisadora no Instituto de Pesquisa da


Afrodescendência (IPAD BRASIL) e no Grupo de Pesquisa Reexistência ligado à pós-
graduação em Estudos Étnicos e Raciais (CPgEER - IFBA). Autora de artigos e do livro:
As origens de USP: raça, nação e branquitude na universidade (2020). Premiada no Edital
Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisa Aplicada e Artigos Científicos (2020). Vem
desenvolvendo projetos de educação na perspectiva da decolonialidade.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8556005071497537

Raíssa Éris Grimm Cabral


Poeta, psicoterapeuta e aprendiz de baixista. Lésbica e não monogâmica.
Dra em psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ex-integrante do núcleo
"Margens - modos de vida, família e relações de gênero". Integrante do coletivo
InteraTrans.Autora do livro de poesias Sapa Profana, publicado em 2018 pela padê editorial.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7375117019417962

Rozangela da Piedade Leite


Mestre em Psicologia Social pela Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), vinculada ao
Núcleo de Identidade do Departamento de Pós-Graduação em Psicologia Social. Psicóloga
(CRP04/24386) graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-Minas). Especialização em Clínica: Gestalt- terapia e Análise existencial na
UFMG. Faz parte do ANPSINEP Minas Articulação Nacional de Psicólogo Negres e
Pesquisadores e da ABG Associação Brasileira de Gestalt-terapia Núcleo de Relações Raciais.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9565355244729046

Sâmia Silva Gomes.


Psicóloga, Gestalt-terapeuta. Mestre em Educação e Saúde. Especialista em
Psicopedagogia; com formação em Terapia de Casal e Família, Orientação Profissional e
Reconfiguração do Campo Familiar. Supervisora clínica; atua em Psicoterapia
individual, de casal, familiar e orientação aos pais. Sócia-fundadora do Ateliê Gestáltico,
onde contribui com a formação contínua de psicoterapeutas. Autora e docente em
cursos de formação em Gestalt-terapia. Associada e Membro da diretoria na Associação
Brasileira de Gestalt-terapia (ABG).
Fortaleza-Ceará / Lattes: http://lattes.cnpq.br/1819272350361798
Sobre os autores • 759

Sérgio Lizias Costa de Oliveira Rocha


Psicólogo, Gestalt-terapeuta. Mestrado e doutorado em Educação pela Universidade
Federal do Ceará. Concluiu estágio de doutorado-sandwich pela Capes em Paris XIII -
Villetaneuse (2007) e pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (2022).
Experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Clínica/Gestalt-terapia.
Tema de estudos e pesquisas atuais: Psicoterapia, Plantão psicológico, Clinica Ampliada,
Fenomenologia e produção de audiovisuais. Professor Adjunto da Universidade Federal
da Bahia - UFBA - Instituto Multidisciplinar em Saúde - Campus Anísio Teixeira -
Vitória da Conquista – Ba.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6674108606136824

Silvia Oliveira de Alencar


Gestalt-terapeuta, psicóloga, mãe pela diversidade sexual e feminista.Mestre em
Educação pela UCDB. Especialista em Psicologia Clínica; com formação em Terapia de
Casal e Família e grupos. Supervisora clínica; Atua em Psicoterapia individual, de casal
e grupos. Associada e Membro da diretoria da Associação Brasileira de Gestalt-terapia
(ABG), no cargo de secretária adjunta e na coordenação do núcleo temático de gênero e
diversidade sexual. Atua e reside em Campo Grande/MS.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3708995429594031.

Simone Villas Bôas Saraiva


Psicóloga pelo IBMR, Gestalt-terapeuta pelo Instituto de Psicologia Gestalt em Figura e
especialista em gênero e sexualidade pelo CLAM/IMS/UERJ.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9678982131965091

Sonalle Cristina de Azevedo da Fonseca


Psicóloga formada pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Mestranda do
Programa de Pós Graduação em Psicologia Social (UERJ), é bolsista CAPES. Integrante
do Laboratório afeTAR, Unidade de Desenvolvimento Tecnológico, e também integra o
grupo de pesquisa do CNPq. Faz parte da equipe de atendimento do grupo terapêutico
COM-POR UERJ, que promove atendimento terapêutico com e por pessoas negras em
articulação o Serviço de Psicologia Aplicada da UERJ.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1510003893279705
760 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Stephanie Boechat
Me chamo Stephanie Boechat, sou mulher branca cis, moro em Vitória, Espírito Santo,
onde atuo como psicóloga clínica, atentendendo público adulto e jovem adulto. Sou
formada pela Universidade Vila Velha (2017-2021) e faço formação em Gestalt-terapia
pelo Instituto SATI. Além da clínica privada, fiz atendimentos voluntários na associação
GOLD em Vitória - ES, a qual volta seus cuidados à população LGBTQIAP+ através do
projeto ACONCHEGO (fev.2022 - jul.2022).

Tatiana Campbell
Mãe, não-binárie, psicólogue, Gestalt-terapeuta, supervisore em clínica, coordenadore
do curso de Pós-formação em Gestalt-terapia do Instituto Ciclos e do curso de
Desformação em Sexualidade, Gênero e Gestalt-terapia do IGT-RR, professore
convidade em institutos de Gestalt-terapia. Estuda temas relacionados a
contracolonialidades e desidentidades.

Tatiana de Paula Soares


Especialista em Gestalt-terapia, atuação sob enfoque feminista e prática antirracista.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Mestre do Programa de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal
de Toulouse – França. Mestre do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e
Cultura, Universidade de Brasília. (orcid.org/0000-0002-4786-9075)
Lattes: lattes.cnpq.br/3044154862128053

Thereza Cristina Santos


Escutadeira de mundos/Psicóloga Provocadora de desejos/Professora Doutoranda em
Psicologia - UFPE

Valdicéia Miranda Machado Bouzada


Graduada em Psicologia pela FUMEC, Gestalt-terapeuta pela UFMG e mestranda em
Ciências da ocupação pela UFMG, como objeto de estudos processos de discriminação
racial. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental e outras Drogas –
NEPSMAD – UFTM. Atua com atendimento clínico individual, Facilitadora de Grupos de
encontro, Treinamentos Organizacionais, Supervisão clínica em Gestalt-terapia e
Sobre os autores • 761

pesquisa em saúde mental. Orientação e desenvolvimento de cursos para


aprimoramento da escrita criativa. Lates: http://lattes.cnpq.br/4327796934354976

Vitor Hugo Santos Nunes


Cursou o Ensino Médio (2º grau) no Instituto de Educação de Goiás, IEG, Brasil. (2014-
2016), é graduando em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, PUC
GOIÁS, Brasil (2018-), bolsista do(a): Programa Universidade Para Todos, PROUNI,
Brasil. Participa da Liga de Gestalt-terapia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás
(LAGET) como Diretor de Eventos e Extensão, é monitor da disciplina de teorias da
personalidade de base humanista-fenomenológica e realiza atuação clínica em Gestalt-
terapia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5612041070375029

Viviane Gouvêa dos Santos


Doutoranda em Psicologia social PPGPS/UERJ Professora assistente, supervisora de
estágio em Gestalt-terapia, FAMATH. Niterói.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3216790940450422

Vivian Nunes Nogueira


Sou uma mulher negra de pele retinta. Graduanda de Psicologia na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Amo ouvir música.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9612037225248247.

Wanderson Flor do Nascimento


Professor de Filosofia e Direitos Humanos na Universidade de Brasília, onde pesquisa
filosofias africanas, relações raciais, tradições brasileiras de matrizes africanas,
processos de subjetivação e formação docente, com ênfase na preparação para o
trabalho com a modificação da LDB trazida pelas Leis Federais 10.639/2003 e 11645/2008.

Welison de Lima Sousa.


Doutor em Psicologia pela UFRN. Redutor de danos. Formação em Gestalt-terapia pela
Ethos - Estudos em Psicologia Clínica. Supervisor clínico. Docente do curso de Medicina
Estácio Idomed/ Iguatu - CE.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5452455436091667.
762 • Por uma Gestalt-terapia crítica e política: relações raciais, gênero e diversidade sexual

Zay Nogueira de Sales


Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4358701515989386
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