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5/21/2018 KOTHE, Flavio - O He roi - slide pdf.c om
Direçáo
Benjamin Abdala Junior
Samira Youssef Campedelli
Sumário
Preparação e texto
José Pessoa de Figueiredo 1 Introdução 5
Arte
Coordenaçáo e Personagem plano e esférico 5
projeto grUlco/miolo Sistema e dominante 7
Antônio do Amaral Rocha Gêneros maiores e menores 9
Arte final
René Etiene Ardanuy
Joseval Souza Fernandes 2 Heróis clássicos 12
Capa A classe do clássico 2
Ary Almeida Normanha
ólemos e polêmica 13
O herói épico 14
O anti herói épico 15
3 Arte e ideologia 17
O ideológico 19
O artístico 21
6 Heróis bíblicos 3
A história de José 3
A história de Cristo 32
ISBN 85 8 01157 1 ? .
6 O trivial e o artístico 37
8 Heróis altos 52
Percursos e percalços 52
Heróis nacionais
Um herói português
Reversões e transgressões
55
56
58
ntrodução
9 Heróis da modernidade 61
Heróis da decadência 62
Heróis do avesso 64
Heróis proletários 66
Heróis burgueses 67
e
10 A narrativa trivial 69 ersonagem plano esférico
Direita volver 7 As habituais categorias "personagem plano" e "perso-
Esquerda volver 75 nagem esférico" foram propostas de um modo bastante
Feminino/masculino 76 Ilgciro por Forster numa conferência, e, desde então, têm
sido repetidas por todos. Servem para caracterizar perso-
11 Poéticas e operários 8 nagens de traços simples e permanentes ou personagens
que se modificam ao longo da narrativa, surpreendendo
Poéticas normativas 78
Heróis proletários 8
por sua complexidade. São categorias analiticamente ope-
ricionaliuáveis e úteis, mas elas não apreendem o que efeti-
essência enquanto vontade de poder. Defini-la abstrata- comitantemente, da estrutura que assume. televisão é
mente é porém, um modo de escamoteá-la. preciso fazer hoje, o maio r veículo da trivialidade. Com parada com a te-
um percurso contrastivo pelos sistemas constituídos por levisão, a literatura é entr e nós, quase elitista. As revistas
obras, correntes e épocas, ao longo da história d a Literatura em quadrinh os ivros a imitar a televisão até mesmo
ocidental, para tentar captar na dominante do percurso do antes de ela existir ão domínios absolutos d a trivia-
herói a própria dominante do curso da história. lidade: feminina nas fotonovelas, masculina nos gibis.
Enquanto dominante, o herói é portanto, estratégico
para decifrar o texto como contexto estruturado verbal-
mente. Este não é um problema apenas literário, mas atinge êneros maiores menores
a todas as narrativas, seja qual for o seu veículo.
Se todas as sociedades historicamente conhecidas fo- Na Arte poética de Aristóteles, os gêneros literários
ram sociedades estruturadas em classes, trata-se de ver a são divididos em maiores (epopéia e tragédia) e menores
conseqüência disso para a estmturação das suas obras (comédia e sátira menipéia). Será que não há uma dimen-
narrativas (inclusive o teatro ). Esta é uma questão ex- são oculta nessa classificação? Po r que é preciso privile-
cluída do horizonte idealista vigente nos estudos literários, giar um gênero em detrimento de outro? O que será que
mas é preciso não se assustar com essa questão: mesmo Aristóteles nã o diz? Ainda que haja grandes tragédias e
que não haja pensamentos inocentes, pensá-la ainda não epopéias, por que será que elas como gênero precisam aí
altera a realidade. Pelo contrário, confirma-a mais uma vez. ser consideradas, cada uma, um gênero maior?
Se as obras literárias são sistemas que reproduzem uma primeira resposta bem simples: a epopéia e
Há
em miniatura o sistema social, o herói é a dominante que a tragédia clássicas tratam de aristocratas, enquan to na co-
ilumina estrategicamente a identidad e de tal sistema. Ra s- média aparecem as pessoas d o povo. Então, parece que
trear o percurso e a tipologia do herói é procurar as pe- Aristóteles é um ideólogo da classe dominante, a aristo-
gadas do sistema social no sistema das obras. Nenhum a cracia. M as as tragédias e epopéias a que ele se refere
a
obra literária consegue ser a totalidade, mas o percurso até hojegrandeza?
dessa nos convencem de sua grandeza. Onde está chave
do herói pelo alto e pelo baixo pode ser um índice de tota-
liz a~ ão , uma totalidade indiciada. As obras literárias A questão d a grandeza está esquematicamente ainda
maiores sugerem a totalidade, enquanto as obras triviais hoje presente na contraposição entre gêneros mais com-
escapam dela e deixam que ela escape: não captam pro- plexos, como o romance, e gêneros considerados mais sim-
priamente sequer a natureza d o fragm ento de realidade ples, como o conto. Há personagens considerados de
para o qual se voltam. tipo elevado (como o herói trágico ou épico), assim como
A trivialidade, ainda que entre nós seja preponderan- os há de tipo baixo (o pícaro).
temente de direita, também pode ser uma trivialidade de Parece, de certo modo, um contra-senso falar em
esquerda. Ela também pode ser masculina ou fem inina, herói baixo , pois se supõ e pertenc er à natureza do herói
dependendo tanto do phblico a que se volta quanto, con- que ele seja elevado. O herói elevado pode ter muito de
baixeza ou fazer todo um percurso pelo baixo . O herói como diferença entre o mundo com honra e o mundo sem
trivial pretende ser elevado e tende a não admitir em si honra. Subjacente a questão da honra está, contudo,
o baixo: mas, exatamente por isso, ele se inferioriza artis- nã o só a legitimação da classe alta como naturalmente
ticamente, a medida que se torna unidimensional e na0 superior, mas também a honra como expressão qualita-
capta nem exprime a natureza contraditória do real. tiva de um maior poderio quantitativo financeiro (que, por
mera tipologia analítica omo personagem plano sua vez, necessariamente baseado na exploração do tra-
e redondo ão consegue apreender o que acontece com balho alheio). Por outro lado, nesse deslocamento para
os vários heróis. O percurso deles ao longo do enredo um puro mundo axiológico afloram elementos que não são
estraçalha qualquer rígido enquadramento analítico. Há mera falsa consciência.
personagens de extração social alta e personagens de en-
tração social baixa; há gêneros e períodos literários que
se voltam precipuamente para personagens oriundos da
classe dominante, como há outros que se concentram mais
em personagens de extração social baixa. Tal ênfase en-
volve sempre uma postura política da obra.
Com a industrialização, o acirramento do conflito de
classes tem feito a literatura redobrar o seu bombardeio
ideológico: quanto mais avançada se pretende a humani-
dade, mais tem preponderado a trivialidade narrativa.
Cada vez mais a classe alta tem tido a necessidade de
ser vista como elevada; cada vez mais tem sido também
possível mostrar grandeza na classe baixa. Não se deve
confundir, porém, defesa do povo com defesa do status
quo: pode-se
sendo achardeixá-lo
até melhor o povocomtão maravilhoso
o ele está. que acaba
preciso que
a teorização do trivial não seja mera trivialidade.
Num instigador artigo, Weinrich pro@s que a poética
clássica em três níveis (s tilus sublimis, srilus mediocris e
stilus humilis) tena passado, no século XVI dois gê-
neros: o alto, tratando de aristocratas, na tragédia da
honra; e o baixo, a comédia, tratando de escravos, pícaros
e burgueses pretensiosos. que aí se procurava, de modo
todo especial, era mostrar a classe alta como elevada e
a classe baixa como inferior, colocando-se essa diferença
ólemos e polêmica
classe do clássico que se desenrola a tragédia que ele mesmo desenvolve com
a força do destino. tragédia = ode do bode) se
Os heróis clássicos são heróis da classe alta, que origina de uma cerimônia religiosa em que um bode er a
procura m dem onstrar a classe dessa classe. Classificar sacrificado em favor da com unidade, para expiar-lhe as
a tragédia e a epopéia como gêneros maiores e ver nos culpas. O herói trágico é originariamente, um bode ex-
seus heróis apenas o elevado seria desconhecer uma dife- piatório. Diz-se que bom cabrito nã o berra . Mas o
rença básica entre o herói épico e o herói trágico, bem herói trágico, pelo contrário, um bode que berra ao
como uma dinâmica estrutural que se manifesta nas ser sacrificado, expõe publicamente o que lhe acontece,
grandes obras . Ainda que passe por grandes difimlda-
enquanto o destino, com mãos de ferro, pendura-o de
des e provações, e ainda que venha a constituir b m parte
cabeça para baixo e se prepara para cortar-lhe o pescoço.
de sua grandeza através de uma série de baixezas (ma - Tod o grande personagem é uma união de contrários:
tar, mentir, tripudiar cadáveres, enganar e mentir), a nar-
rativa épica clássica, adotando o ponto de vista do herói, ele é o alto cuja grandeza está na baixeza, ou é o alto
trata de metamorfosear a negatividade em positividade, e o que cai e readquire grandeza na queda, ou então é o
herói épico tem, por isso, um percurso fundamentalmente baixo que se eleva e se mostra grandioso apesar dos pesa-
mais pelo elevado do que o herói trágica, cujo percurso I res. Qua nto maior a sua desgraça, tanto m aior a sua gran-
é o da queda. Mas a queda d o herói trágico é o que lhe deza. sua desgraça não é mera choradeira, mas duro
possibilita resplandecer em sua grandeza, assim como as aprendizado da condição humana , transcendendo a
baixezas do herói épico é que o elevam . doutrinação que lhe inerente. A medida que a expiação
herói épico e o herói trágico unem em si e em da culpa originária aponta para uma solução do conflito
seu percurso as duas pontas do alto e do baixo. Aquiles, o trfígico, l eva també m a uma reconciliaç ão inter ior.
Não há grande obra de arte que não una os contrá- descritos como uma série de baixezas: c'est le ton qui
rios. O herói trágico um carvalho em que caem os deci- fait Ia chose .
sivos raios do destino; o herói épico o grande pinheiro O herói trivial masculino de direita versão mo-
indicador dos caminhos da história: nenhum deles tem de rna desse herói clássico ambém atravessa dificulda-
a sabedoria dos caniços. O pícaro o caniço que se dobra des e sofre derrotas, mas elas como que permanecem ex-
aos ventos para conseguir sobreviver: nele o que pensa ternas a ele, ainda que às vezes um soco do bandido venha
o estômago. Ele tem a pouca dignidade daqueles que sem- a exigir um band-aid: não alteram substancialmente nada
pre têm o suficiente para comer, mas, em sua indignidade no bom mocinho. á um enredo que, com todas as suas
sem indignação, ele revela a pouca dignidade daquilo que trapalhadas, serve basicamente para restaurar a situação
pretende ser digno e superior na sociedade. anterior a violação inicial desencadeadora do enredo. Esta
preocupação básica em demonstrar como felicidade e
meta a situação inicial, o st tus q u anterior, caracteriza
herói épico a natureza conservadora e até reacionária desse tipo de
narrativa em seu nível profundo de estrutura, o que
A epopéia um sistema em que o épico domi- acompanhado pela postura e pelos valores de seus perso-
nante, mas não exclusivo. Nela or exemplo na Illada, nagens, por mais moderninhos que possam parecer.
a epopéia por excelência na literatura ociden tal odem Por outro lado, o mais típico e puro herói épico
aparecer personagens antiépicos: o ridículo soldado Tér- clássico, Aquiles, adquire nova dimensão quando visto a
sites, as mulheres troianas derrotadas e chorosas, um deus partir de sua queixa no Hades, quando lamenta ter aceito
atingido por uma lança no traseiro e voltando para morrer jovem e heróico ao invés de mo rrer velho e rnedío-
Olimpo em saltos quilométricos, guerreiros caindo em cre: assim ele reaf inna a beleza fundam ental que estar
bosta de vaca e cuspindo o que engoliram, etc. São mo- vivo. O que ajuda a engrandecer o herói épico a sua
mentos em que o cômico baixo e até grosseiro (como na dimensão trágica. O herói épico o sonho de o homem
cena do porteiro no Macbeth: cômico desanuviando a fazer a sua própria história; o herói trágico a verdade do
tensão do trágico) se instaura na epopéia, para depois destino hum ano; o herói trivial legitimação do poder
dar novamente lugar ao tom geral épico. Importante vigente; pícaro a filosofia da sobrevivência feita gente.
também o momento de queda ou rebaixamento do herói:
Heitor com medo de morrer, Heitor fugindo, Heitor ven-
cido e tripudiado. M as a medida que o herói épico decai O anti herói épico
em sua epicidade , ele tende a crescer em sua humani-
dade e nas simpatias do leitor/espectador. Em suas an- Na segunda rapsódia da Iliada, o soldado Térsites
danças de puro guerreiro, ele tende a se aproximar do surrado em público por O disseu, pois, cansado de dez anos
pseudo-herói das narrativa s triviais masculinas , mas ele de guerra, apresenta uma reclamaqão e uma reivindicação:
não se esgota em enfrentar dificuldades e vencer no fim. diz que s resgates originados de nobres troianos aprisio-
Os grandes feitos do herói épico também poderiam ser nados pelos soldados gregos acabavam revertendo apenas
ou melhor. A obra de Homero, nascida grandemente sob mesma é um pacto provisório deles. Quer se queira re w-
o signo da ideologia, foi se tornando mais arte à medida nhecer isto, quer não. Uma obr a de arte sempre opera
que morria a classe social que a inspirou. E isso não só com o ideológico. Enquan to ob ra de arte, ela não pode
porque deixou de ser recebida como religião para ser per- ser ideológica no sentido de camuflar e escamotear o real
cebida como literatura ficcional, mas também porque pôde e as suas contradições: ela precisa devorar o ideológico,
ir se desvencilhando da manipulação segundo interesses não ser devorada por ele. O interesse tanto leva a ver
sociais bem imediatos, como legitimar o poder, as pro- quanto a não-ver. Olhar para um a direção significa optar
priedades e os privilégios dos aristocratas à medida que por não-ve r para outras direçóes: este luxo, caracteris-
estes eram ai considerados descendentes desses heróis, que, tico do trivial, as obras de arte não se podem dar. Tod a
por sua vez, nessas obras, eram apresentados como des- cegueira fomenta o desenvolvimento de outro tipo de per-
cendentes dos deuses, completando-se assim um ciclo de cepção. Tod a visão é cegueira. As obra s triviais institu-
legitimação da aristocracia à base de um direito divino. cionalizam caolho sem senso de profundidade; as obras
Por outro lado, mesmo após o desaparecimento do antigo de arte olham com dois olhos, para todos os lados.
mundo grego, a leitura de Homero pode reconstruir o mo-
mentoArte
ideológico inclusive
e ideologia até elementos
não são pelo gesto excludentes.
de citar Homero.
Não ideológico
há arte sem ideologia nem ideologia sem arte; não há
obra de arte que não seja também ideológica e não há As obras triviais de direita procuram fazer crer que
ideologia que não possa ser utilizada na produção artística. tudo o que pertence à classe alta é por isso mesmo, eleva-
Mesmo que se queira que a arte seja pura, nenhuma obra do, e que todo baixo é inferior. As obra s triviais de es-
de arte é completamente pura, isenta de interesses sociais querda procuram fazer crer que tudo o que pertence à
camuflados. O próprio gesto de queré-Ia pura acaba classe alta já por isso é baixo, enquanto que todo o social-
sendo impuro à medida que significa indiferença ante mente baixo já por isto seria superior. Nem a trivialidade
as impurezas do mundo. Quem deseja ter na arte um de direita nem a de esquerda conseguem apreender a natu-
mundo melhor confessa, implicitamente, a negatividade do reza contraditória da realidade. Ma s tanto uma quan to
real; quem, na arte, insiste na negatividade, espera dela a outra fazem parte das contradições entre os interesses
consolo e superação. de classe. Ca da uma procura responder, a seu modo, aos
Que o ensino ou o que é publicado desconheçam os conflitos de interesses que as geram, circulam e movimen-
interesses sociais a que servem e que os póem em movi- tam.
men to não significa que esses interesses não existam: pelo Os vários sentidos do termo ideologia em Marx
contrário, reconhecê-los e explicitá-10s pode ser uma ten- ou seja, algumas disciplinas que tratam de comporta-
tativa de neutralizá-los, de ser menos interesseiro . Não mentos sociais, supra-estrutura, falsa consciência, projeto
há hermenêutica desvinculada de interesse. Uma obr a de histórico do proletariado pontam para um denomina-
arte sempre é produto de conflitos e interesses sociais: ela dor comum não explicitado por ele e que talvez se en-
Quando a correlação de forças o permite, é possível deci- meça n o alto e vai para baixo medida que ele vai sendo
fra r deslocamentos havidos, pois em cada resultante estão derrotado, acaba não sendo apenas a dele mesmo, sozi-
presentes, ainda que ocultas e escamoteadas, forças das nho, mas representa, alegoricamente, a totalidade das for-
quais ela se tornou, afinal, a conseqüência. ças troianas. termo cidadão não deve ser entendido,
obviamente, no sentido moderno de citoyen: representa as A líada uma grande obra exatamente porque tem
várias facetas de Heitor como pai, marido, filho, um este duplo movimento contraditório em si. Ela nã o nega
homem com várias outras qualidades e atributos que não espaço nem ao grito de triunf o do vencedor nem aos gemi-
simplesmente militares, implicando inclusive a simpatia e dos e lamentos do derrotado. Se ela fosse apenas uma
a piedade que envolvem o ouvinte e o leitor. Heitor cai coisa ou outra, tenderia a ser mais ideológica e menos ar-
do alto para o baixo, mas em sua queda ele tende a subir tística. Ela n ão mostra o herói apenas como grandioso.
em sua humanidade e na empatia do leitor. A sua rela- Mostra a dor que decorre desses grandiosos gestos. Mostra
tiva fraqueza o engrandece como objeto de comiseração e também o s seus defeitos , até mesmo a sua grandeza en-
compreensão, ainda que, por outro lado, também seja quan to baixeza. O ódio repleno de rancor, a total falta de
humano cuspir n o cadáver do inimigo. ponto nevrál- corniseração, raiva que não acaba sequer com a morte
gico da alteração da balança ocorre quando Heitor tem a do adversário, a sede de vingança até o fim. Tais gestos
sensação de ter sido enganado e aban donad o pelos deuses: não são monopólio de personagens, não sã o apenas lite-
a sua derrota interior, prelúdio da derrota exterior. ratura : foi da vida mesma que a literatura os aprendeu.
Aquiles nunca chega a cair propriamente como guer- Por outro lado, a grande obra capaz de mostrar a gran-
reiro: o que muda o seu grau de participação na guerra. deza existente naquilo que aparen ta ser apenas baixo e
Seus momentos nevrálgicos intermediários são a perda da derrotado. A obra trivial linear, exibe apenas a gran-
escrava (levando-o ao ponto mais baixo de sua partici- deza do seu herói e a baixeza d o seu vilão, sem enten-
pação), a morte de Pátroclos (momento da virada), a vin- der a natureza contraditória e problemática desses con-
gança da morte do amigo, o duelo com Heitor. Cada uma ceitos.
dessas fases vai constituindo um patamar, numa sucessão
que constrói uma linha ascendente, enquanto diminui nele
o grau de relacionamento amoroso e de amizade, a dimen- Gênero e gesto semântico
são de cidadão . Em relação a Heitor, Aquiles faz um
movimento exatamente contrário e constitui um novo X, Agamêmnon, glorioso e exitoso chefe de uma longa
um novo quiasmo: e perigosa expedi~ãomilitar, morto tragicamente ao
voltar para casa (pois, como quase não podia deixar de
acontecer, a sua mulher arranjara entrementes outro h*
mem): ele, que antes comandara uma epopéia, torna-se
protagonista de uma tragédia.
Por outro lado, se a história de gdipo fosse contada
quiles por um rapsodo enfatizando o seu processo de aprendizado
e forma ção, as suas andanças, as lutas na estrada, o epi-
sódio da esfinge e as atividades do governante, poder-se-ia
ter nele um herói épico e não trágico. O herói épico um
her ói potencialmente trágico, mas um herói cuja história
Trata-se, aparentemente, de uma obra submissa as Life s but a walking shadow. a poor player
regras da unidade de espaço, tempo e ação. Ma s todas That struts and fre is his hour upon the stage,
essas unidades são rompidas por eventos rememorados ou And then is heard no more: it is a tale
previstos, como a luta dos titãs, a ajuda aos homens, o Told by an idlot, fui1 of sound and fury.
advento de Hércules e a libertação de Prometeu. fato de Signlfying nothing.
a tragédia
sugere e a epopéia
a idéia de que clássicas
a epopéiagirarem em torno
a história dosdo vence-
poder a fala de um personagem que irá morrer e que,
dores, enqu anto a tragédia a história do s vencidos. portanto, rebaixa o que está a perder ou, pelo contrário,
Talvez a origem disso também possa ser encontrada no reconhece cruamente o qu e a vida porque nã o precisa
antigo ritual do sacrifício anual do rei e a sua substituição mais se iludir.
por um novo rei, devido à identificação primitiva trágico se torna um rito solene não por qualquer
descrita por Frazer ntre a fertilidade da natureza e formalismo superficial, mas por ser o desfile da consciên-
a força d o rei. Mas o problema do poder verdadeiro cia diante do espelho desnudo da existência. i como se,
cerne da questão bem mais abrangente e permanente nesse momento, o social mais imediato fosse abolido,
d o que uma primitiva antropomorfização da natureza o u como se a distância entre o alto e o baixo fosse a catapulta
uma identificação da natureza com um ser humano. Neste necessária para, com o impulso da queda, arremessar e
i quadro, porém, o c6mico e até o picaresco, expressões do mergulhar um homem lúcido, com toda a força, no coração
carnavalesco, seriam a perspectiva d o momo substitutivo da niaténa. Mesmo os artistas que entendem o belo como
do rei para o sacrifício. sublimação confessam, implicitamente, que a realidade não
trágico um raio que só atinge os altos c a ~ a l h o s sublime. Com o, porém, eles não atacam de frente a
e nã o as plantas rasteiras. Ta l elitismo impregna a cultura negatividade que os pressiona na direção do sublime, ten-
grega que nos foi transmitida. Ainda que encara r o trá- dem a escamotear fortes componentes do real. As obras
gico enquanto uma disputa em torno do poder e, especifi- de arte precisam ser verdadeiras e a verdade pode ser
camente, um temor de cair no vazio da perd d o poder horrivel, como também pode ser encantadora. O horrível
(temor a que ó pode chegar quem usufmi do poder), pod e ser o resplendor da verdade. Não podendo ser mal-
ainda que este seja um momento existente nas grandes feitas, as obras de arte não podem ser belas simplesmente
no sentido de enfeitadas, embelezadas. A verdade, concre-
tragédias, esta perspectiva fica aquém do momento em
tizando fantasmas, mesmo que por um percurso de sangue,
q u e o personagem trágico, acuado e posto contra a parede,
suor e lágrimas, acaba trazendo a calma e a tranquilidade
assume e vivencia radicalmente a nua existência, numa
da sabedoria.
dimensão em que a verdade não se restringe e não redu-
tível ao poder governamental. Tal momento, em que o
poder já não mais tão essencial, representa uma enorme
p o t e n c i a ~ ã odo poderio artístico. o momento em qu e
um Macbeth profere as terríveis palavras do ato V,
cena :
:=
ora de casa
traído, açoitado, cuspido, coroado de espinhos, humilhado
pelas ruas da cidade ou pregado numa cruz imples-
mente porque é um homem, mas sim porque considera-
Obviamente, no final, tudo isto sofre novas reversões, à do um deus. Ele nunca desempenha um papel mais ele-
medida que os irmãos, quando reconhecem José na corte vado do que no momento em que é mais degradado: é
e são protegidos por ele, tanto passam a nutrir outro tipo neste momento que ele mais é redentor e deus. Essa união
de sentimentos quanto passam a gozar de uma situação de contrários, que é mais do que uma soma ou uma
diferente neste momento. Os sentimentos do pai pelo seu colocação lado a lado de contrários (pois decorre também
benjamim só podem ir surgindo e crescendo i medida da reversão de cada elemento em seu contrário), mostra-se
que o próprio José vai se desenvolvendo, o que provoca plasticamente configurada em vários momentos: traído,
a contrapartida nos sentimentos dos irmãos. mas por um elemento desprezível, que acaba intenorizan-
do a culpa a ponto de se enforcar e, assim, condenar e
renegar o seu gesto; açoitado e cuspido, mas por inimigos
história de Cristo
que não sabiam o que estavam fazendo; coroado, mas de
s e ~ o s é em a s caractensticas de um herói épico, espinhos; desfilando pelas ruas, mas debaixo de uma cruz;
tendo as suas andanças várias analogias com as de um no alto de um morro, mas para morrer etc. E no fim,
Odisseu, Jesus Cristo corporifica um esplêndido herói trá- ressuscita glorioso, em toda a sua divindade. Aind a que
gico, com várias semelhanças básicas em relação a Pro- dentro da cultura cristã pareça estranha a ousadia de
meteu, especialmente porque ambos se propõem salvar a pensar Cristo como um personagem literário e a íblia
como literatura, Jesus Cristo é uma esplêndida encamação A cruz, com sua barra horizontal a expressar simbo-
de herói trágico, numa perfeita elaboração dialética. licamente a divisão entre o superior ( o acima da barra ) e
um personagem modelar, um modelo da natureza do o inferior ( o abaixo da barr a), somada a um a barra ver-
grande personagem. tical, que não só sustenta a outra barra, mas representa a
Como José, Cristo é literariamente exemplar. Ele não conexão e a possibilidade de união do alto com o baixo
é simplesmente elevado ou baixo. Está no alto porque
está embaixo e está embaixo porque está no alto. Tod o do baixo
edialética doscom o alto, configura
contrários: a cruz é oo próprio
encontrosímbolo
e a união
do
grande personagem é essa união dialética de contrários (o pólemos Grandes personagens e grandes textos são
alto e o baixo, o distante e o próximo, no espaço e no aqueles que conseguem fazer o sinal da cruz como domi-
tempo) numa união hipostática, em que não se pode nante estrutural do seu percurso. As grandes narrativas,
pensar um elemento sem o outro. Cristo é, na Bíblia ao sistemas cujas dominantes são grandes heróis, acompa-
mesmo tempo deus e homem: ele é um homem especial, nham e ecoam esse gesto que as estrutura. A grande leitura
superior, porque é um deus, mas por ser um deus é que presentifica na leitura de um texto outros textos análogos
ele é arrastado aos níveis mais baixos da humilhação e ou antitéticos nível de personagem, enredo, gênero
do sofrimento. Sendo um deus, pode ressurgir, glorioso, etc. - formando um eixo paradigmático que se constrói
dessa misériaabsolutos
dissolvendo absoluta.: qua
Passa
ndoderessuscita,
um extremo ao mar
ostenta outro,
cas ao longo do eixo sintagmático da própria leitura desse texto
e, ao mesmo tempo, nele vai se projetando.
da degradação passada (emblematicamente, a ferida da Por mais empatia que o cristão sinta por Cristo,
lança); quando está sendo açoitado, w m o pseudocetro pelo seu sofrimento na Paixão, ele sabe que, a rigor, por
lia mão e a coroa de espinhos na cabeça, refulge nele a ser um deus, é inatingível em seu cerne: é como se brin-
divindade, inclusive artisticamente ele é o mais importante casse de ser homem e de se deixar martirizar (o que é en-
de todos, a divindade, o centro do quadro, o cerne em cenado inclusive nas gozações dos soldados dizendo q ue ele
torno do qual tudo gira (portanto, por que não acreditar
desça da cruz caso seja um deus). Este cerne inatingível
que ele é um deus se artisticamente ele o é? . corresponde ao cerne tranquilo do espectador ou leitor que
A rigor, apesar de toda a aparência externa, em seu com ele se identifica, sofre, mas com a certeza de que
cerne ele jamais atingido, jamais é degradado: pelo nele não correrá sangue nem a sua própria morte será
contrário, quanto mais é degradado, tanto mais ele se o final do espetáculo. Corresponde ao que cada homem
eleva. Par a o cristão, quem se degrada é o algoz, aquele que sofre gostaria que acontecesse com ele. Equivale a
que parece ter uma posição de superioridade (e, por todas esperança que nutre Prom eteu. identificação com tais
as evidências, acreditava que a tinha). E m nenhum mo- personagens é um índice de vida infeliz.
mento Cristo é literariamente mais divino do que qua ndo Em termos literários, a ressurreição de Cristo é um
está pregado na cruz. Em nenhum m omento eIe está lite- deus x machina um miraculoso happy end para uma his-
rariamente melhor do que quando está na pior. São os tória e uma situação catastrófica. Esse mecanismo, apa-
momentos em que ele pousa para os grandes quadros da rentemente absurdo do ponto de vista Iógiw, corresponde
Paixão. a o instinto de sobrevivência e a o desejo de felicidade: e
risto
ersonagens planos triviais
d o mom ento, astúcia, previsões inteligentes, ações conse- iiu Iiicrarquia social é alta, ele é baixo como pers onagem
qüentes, fin s justificadores dos m eios etc. Dessa ilusão iciiirnl, mas, assim que é des tronado, ele vai adquirindo,
tamb ém participa a grande literatura. Talvez não haja, csl~cci;ilniciite quan do preso e cond enad o a morte, uma
ILL.I. iiiii:~
ainda, Literatura efetivamente Grande, pois toda litera- grtinclez;~ c uma dignidade que não tivera
tura até hoje traz o estigma da ideologia. iiiilc%. A 511;is 1;iI;i.;. iIcl>i~isIc pcrcler pod er político,
tornam -se cada vez mais impressionantes. Isto culmina na (Shakespeare efetivamente foi o dramaturgo oficial da
estranha dignidade de morrer com uma espada na mão, corte inglesa). Mas o que faz com que ele ultrapasse esse
peleando. medida qu e perde poder político, ele ganha momento ideológico?
poder literário ( o que um belo consolo para quem não
tem poder político, mas sohras de masoquismo):
por outros segmentos sociais. Usando da contraposição cômico procura mostrar o alto como baixo, mas
entre corpo e espírito, inclusive para perguntar como num centraliza a atenção no baixo. trágico procura mostrar
corpo tão feio possam desenvolver-se pensamentos tão a queda do elevado e a grandeza do caído: por isso a
elevados, em sua figura e posição são ridicularizados tragédia tende a ser um gênero maior, mais denso e mais
pensamentos, agredindo-se aos seus discípulos. Em suma, completo do que a comédia (ainda que haja tragédias
é inferiores a certas comédias). grande público prefere
quanto
é mais ele
rebaixado elevado no palco
espiritualmentc: fisicamente, tanto m ais
c isto ocorre como reação em geral o cômico assim como prefere o trivial, pois a
elevação que certos gm pos sociais dele faziam. Ao m esmo sua forma ção cultural tende a não ir além do trivial e a
tempo, centrando nele a atenção da comédia, ele é litera- sua vida já é tão atribulada que mais se prefere esquecer
riamente elevado e, assim, mais uma vez é reconhecida a a lembrar.
sua importância. N o Soldado Fan farrã o (Miles gloriosus) Ainda que a comédia nem sempre explicite o con-
de Plauto, quanto mais o guerreiro Pirgopolinices pro- tragesto de elevar um elemento baixo (o que, de fato, ela
cura elevar-se com as suas grandiosas faça nha s militares, muitas vezes chega a fazer, mostrando, por exemplo, a
contand o para isso com a especial ajuda do parasita Arto esperteza de um criado ou a faceirice de uma criada), ela
trogo (que, em função de algumas azeitonas, entoa gran- tem sempre implícito o gesto de elevar certos segmentos
des loas ao seu prote tor), tanto mais aparece e ressalta sociais. herói cômico, assim como qualquer outro herói,
a sua covardia e incompetência. militar. Q uanto m ais ele participa da luta entre diferentes interesses sociais: a rigor,
procura elevar-se, tanto mais ele cai. a luta da qual todos os heróis participam é a luta de classes,
ainda que em geral tudo seja feito, em termos de desloca-
mentos, deformaçóes e escamoteamentos, para que este
satírico nível profundo não ap areça enqua nto tal. A luta de classes
não é apenas o motor da História, mas o motor de qual-
A sátira tende a voltar-se contra os poderosos do mo- quer história, em qualquer gênero, literário ou não-lite-
mento, numa espécie de vingança dos fracos. Só que ela rário.
é possível tão-somente na proporção em que estes fracos Quando alguém ri numa comédia, ele sempre ri de
não são fracos: e isto tanto no conteúdo satirizado quanto alguém; quando alguém está rindo, sempre há alguém cho-
na forma pela qual isso pode ser levado população em rando: só que a comédia escamoteia o choro e a dor. A
geral ou a certos grupos. A sátira ujo vilão por exce- comédia está ai para diluir os problem as no riso. Ao
lência é o governante e cujo herói é o intelectual que só mesmo tempo. ela é um modo d e aflora r problemas que,
detém o poder da palavra rocura mostrar o social- de outro modo, não poderiam ser aflorados, pois viola-
mente elevado como baixo, centralizando a sua atenção riam os interesses daque les que detêm o poder. riso é
no alto, na elevação que de si mesmo o a lto pretende, para uma suprema dem onstração de vitalidade. Par a rastrear
mostrar isto como um conjunto de baixezas (como se o percurso do herói cômico, é preciso perguntar qual é
mostra, época da Inconfidência Mineira, no Fan farr ão o grupo social que ele representa e contra quem ele se
Minésio) volta. A pergunta a ser, portanto, colocada na análise de
uma comédia é quem ri de que m ?W herói cômico tende concentrando nele toda a atenção, para, num passe de má-
a ser o vilão da comédia: ele é o alvo do riso assim gica, pelo outro lado, acabar não fazendo nem uma coisa
como o vilão no far-west está predestinado a ser o alvo nem a outra. Quanto mais central é o pícaro, tanto menos
da s balas do mocinho. Na comédia, morre-se de rir ( não ele é o cem e de toda a questão. Quan to mais ele é elevado
o público, mas o seu herói): o herói cômico vive deste literariamente por essa atenção, tanto mais ele é rebaixado.
mor rer. Qu anto mais difícil a vida do espectador, provavel- á
mente tanto mais ele prefere o cômico: de trágica já lhe narrativouma grande ahabilidade
picaresco: habilidadepolítica subjacente
do toureiro ao foco
em apresentar
basta a vida. Te r tempo e disponibilidade pa ra a tragédia a capa a fim de melhor manejar a espada. 3 a postura
e a tristeza exige ter condições de vida muito saudáveis. de um grupo social que se prepara para da r o bote na
O êxito do cômico tende a ser um índice de doença social direção d o poder, m as ainda não é suficientemente forte
e, ao mesmo tempo, um primeiro esforço de cura: a res- para fazê-lo. O astuto não é aí o rebaixamento do pícaro
posta da vida à corrosão da morte. sob a aparência de elevá-lo literariamente, mas o rebaixa-
mento de segmentos sociais considerados elevados sem
que aquele que os rebaixa apareça com o tal. Na leitura
picaresco do romance picaresco é preciso discemir no pícaro a sín-
drome de forças contraditórias que nele encontram uma
pícaro não é apenas um herói trivial às avessas,
via de expressão, sem que elas apareçam claramente como
que, ao invés de querer mostrar o alto como elevado,
tais. O pícaro tenta matar a cobra sem mostrar o pau.
procuraria mostrar o baixo como inferior, pois, além de
O pícaro é apenas o executor de um plano: o importante
dar o grande passo de centrar a atenção literária no social-
é descobrir o auto r intelectual dos crimes cometidos pelo
men te baixo, ele faz um grand e desnudame nto con-
seqüente rebaixamento o que socialmente pretende ser pícaro. Geralmente a natureza desses eventos fornece pis-
elevado e superior. Geralmente é escrito na primeira tas suficientes para adivinhar onde queria chegar esse
pessoa, aparentando dar, portanto, a palavra a um perso- mentor intelectual.
nagem de extracão social baixa. Mesmo assim, nã o dá Ainda que o sistema do romance picaresco seja crí-
propriamente a palavra a este personagem: só faz de conta tico em relação à estrutura social (pois rebaixa elementos
que dá. Não faz necessariamente a defesa do socialmente socialmente altos), a figura do pícaro não é propriamente
baixo: pelo contrário, tende a ridicularizá-lo, rebaixando-o revolucionária. O pícaro tem predecessores na comédia
mais uma vez. Ten de a expressar os interesses e o espírito clássica (p. ex., na figura de Artotrogo) e na Bíblia (p.
crítico de uma classe social ou de um grupo social em ex., na figura de ó e de Lázaro), mas o pícaro clássico,
processo de ascensão e que, astutamente, faz de conta que o Lazarillo de Torme s só podia ter surgido quando o capi-
se identifica com um elemento socialmente inferior para, talismo se implantava. O Lazarillo azaren to social
assim, poder dar melhor uma cacetada na classe ou grupo lazer da socieda de em uma mobilidade espacial que
que ainda lhe é superior. astúcia do foco narrativo pica- seria impossível a um servo medieval: neste sentido, ele
resco é dar, aparentemente, a palavra a o próprio pícaro, representa um estágio inicial da liberdade do operáric
em escolher o seu patrão. A m obilidade social do capita- no riso. O riso acaba fazendo de conta que a negatividade
lismo é corporificada nessa figura do picaro. I a mobili- social não é tão problemática assim. Mas é muitas vezes
dade proletária de cada um estar procurando salvar a pró- o único modo dessa negatividade ainda poder aflorar. O
pria pele, sem qualquer segurança de emprego ou assistên- pícaro, percebendo as relaçx5es de produção como uma má-
cia social. Es te picaro configura o direito de vender a quina de moer carne humana, procura tirar o corpo fora
própria força de trabalho, ainda que ele mesmo esteja e dansar à beira do abismo. Sempre está com fome, nunca
longe de ser um trabalhador modelar. Há tudo nele, me- se sente seguro. o mais morta l dos mortais. Aparenta
nos a ingenuidade que o romance picaresco aparenta. Re- não ter princípios morais. Apa renta cortejar os poderosos,
presenta uma crítica indireta as condições proletárias de mas acaba por desnudá-los como que involuntariamente,
trabalho. O pícaro é um manipulador dos mil truques desmascarando-lhes as fraquezas. Ele não fala em nome
necessários a sobrevivência: ele é um virador , u m artista de princípios mais elevados. Mas por q ue desmascara ele
da gigolagem. o que pretende ser socialmente elevado?
O pícaro procura obter o máximo trabalhando o mí- Levada mais,avante a pergunta imanente à figura do
nimo possível, enquanto o capitalista procura extrair do pícaro, a atitude dele talvez sugira, simplesmente, que não
operário o máximo de trabalho pagando o mínimo possi- há princípios mais elevados, mas tão-somente diversidade
vel. O pícaro é a caricatura avessa do capitalista. sua de interesses, aparecendo como bons os interesses dos m ais
louvação da preguiça e da vagabundagem carrega em si
fortes. verdade acaba sendo então apenas a versão ofi-
um implícito protesto contra o trabalho alienado. Ma s ele
cial. Mas , se esta fosse efetivame nte a única seriedade
não tem qualquer consciência nem organização política.
possível, nem o riso teria razão de ser. pícaro faz-se
sua iniciativa é apenas privada, como o próprio em-
presá rio da livre iniciativa. Ele é a caricatura do capita- de bobo, veste a roupa do riso: para melhor encenar a
lista começar pelo fato de ele nã o ter capital - o dança do acaso, a desvalia daquilo que pretende ser valor
protesto impotente contra um sistema que o toma marginal, social supremo.
mas a partir de cuja marginalidade ele desvenda e desvela Memórias de um sargento de milícias faz esta inver-
o cerne do sistema. Ele não valoriza o trabalho, mas tam- são picaresca da sociedade imperial brasileira. Vê o mundo
bém não discerne a possibilidade histórica de o trabalho de uma perspectiva que não é a da literatura oficial da
vir a ser valorizado. Em si, ele não tem nenhum projeto época. Macunaíma por sua vez, é uma cacetada contra
político, nenhuma participação partidária. Ele é um alie- a imigração italiana, mas especialmente contra o capital
nado protesto contra o trabalho alienado. O seu cerne é estrang eiro corporificado num imigrante italiano. A dis-
social, mas ele não tem espírito societário. I um empe- puta do muiraquitã é a disputa emblemática em torno da
dernido individualista e egocêntrico. Mas nele desabrocha mais-valia. O pícaro Macunaíma vai de um lado para o
o avesso do modo de produção. outro, sempre procurando viver as custas dos outros e
Todo modo de produção cuida da reprodução deste não trabalhar. Macunaíma não é um herói sem nenhum
modo de produção. Como o pícaro é engraçado, o seu caráter: ele tem o caráter de um pícaro, de um picareta,
percurso crítico se torna uma dissolução do problemático de um picarus brasiliensis.
grande mentecapto de Fernando Sabino, é um pí- demonstração de sua superioridade de patrão, em decor-
caro mineiro, cuja cena mais sintomática e significativa é rência da ruptura das relações trabalhistas.
aquela em que ele vai a uma festa onde se reúne toda a Ao término de sua história, o Lazarillo está casado
alta sociedade e toda a elite governamental do pós-64. Ele com a criada de um clérigo, ao qual ela presta servicos
come desbragadam ente. Depois, precisando ritender com diversos, inclusive amorosos. pícaro dá a entender esta
urgência a certas necessidades fisiológicas e não encon- sua situação como altamente wmoda e vantajosa: ele tem
trando o lugar adequado, sobe até um andar superior e, uma pequena ascensão social aparente, às custas do rebai-
vendo lá uma abertura, alivia nela as suas necessidades. xamento moral de man do enganado. Mas, por outro lado,
Só que esta abertura é a abertura do sistema de ventilação, e isto é o que efetivamente importa, demonstra-se a hipo-
fazendo com que o material seja espalhado por todo o crisia d o clérigo, a diferença entre a virtude que ele
salão. Nesta cena, em sum a: 1 o pícaro, elemento social- prega e aquilo que ele mesmo pratica.
mente baixo, está posto acima do socialmente elevado; 2
no alto, o pícaro faz algo considerado baixo; 3 o baixo
que o pícaro faz no alto rebaixa toda a alta sociedade que
está embaixo. Ou seja: o que está embaixo fica em cima,
o que está em cima se rebaixa, enquanto o elevado de
baixo é rebaixado. Isto equivale surra que o brasílico
Macunaíma dá em Venceslau Pietro Pietra, o represen-
tante do capital, do capital estrangeiro. Isso é tanto mais
engraçado na ficção quanto mais contrário realidade. O
riso é vingança.
Um dos empregos do Lazarillo é ser guia de cego.
Só que este cego esquinho, ganancioso e tirânico
não l he d á sequer comida suficiente, vivendo a infernizar-lhe
a vida. Laza rillo resolve vingar-se e larg ar esse serviço.
Diz ao cego que há um largo córrego que precisa ser
saltado. Indica-lhe a direção em que ele deve pular. Com
toda a força o cego salta e vai bater no meio de um poste
em plena rua. Ao pícaro nada mais resta senão buscar
outro emprego. O cego tinha, portanto, uma superioridade
de patrão sobre o pícaro, mas uma inferioridade física. Es ta
é utilizada par a reverter aquela superioridade qu e se
direção.reversão
põe Nã o necessariamente
entre o alto e oa baixo.
narrativaApesar
configura e pro-
d o roman-
tismo no Brasil ser em geral mais caracterizado pela poe-
sia do que pela prosa, o romantismo europeu viu original-
mente no rom ance o seu gênero por excelência, aquele
gênero que reunia em si todos os demais gêneros, tornan-
do-se como que síntese e sinônimo de literatura. O ro-
mance se desenvolve mais com o processo de industriali-
zação.
ercursos percalços Segundo Baudelaire, o poeta é o grande herói da mo-
O romance fo i um gênero menor que se tomo u m aior: dernidade, pois vive numa espécie de realidade em qu e não
há propriamente lugar para o poeta: o que ele faz não vale
de marginal ele passou a dominante na literatura contem-
nada para a sociedade. Então só é possível ser poeta co mo
porânea. Se, na literatura brasileira, até o século XV III ,
paródia do papel de poeta: em desespero de causa, dedi-
poesia era praticamente sinônimo de literatura, na metade
cando o melhor dos seus esforços para algo que não tem
do século passado a narrativa passou a se desenvolver, a maior circulação, valorização e, portanto, remuneração
ponto de ter-se tornado o gênero plenamente dominante,
social. Mesm o assim, produz sob o signo da convicção da
invertendo-se a situação anterior. Ainda q ue a literatura absoluta importância daquilo que faz. Por ou tro lado,
brasileira se tenha desenvolvido a partir de parãmetros eu-
estamns demasiado acostumados imagem do herói apetre
ropeus (especialmente da literatura francesa, inglesa e
chado com trajes de batalha romanos nu de cowboy
portuguesa),
evoluçã nã "modelo"
o desse o se pode europe
simplesmente
u (ainda julgá-la
que hajaa "atrasos"
partir d a acabamos esquecendo quão heróico é preciso ser para
sobreviver com o salário mínimo e resistir às condições
da chegada, por exemplo, do romantismo ou do realismo),
de trabalho vigentes
pois seria desconhecer a especificidade da evolução brasi-
leira. istoricamente falso que rer isolar a literatura brasi- Diante da questão de a poesia não ser mais o gênero
leira e estudá-la fora do contexto da literatura mundial, literário dominante, mas ter sido atropelada pelo consumo
pois daí não se consegue entender a sua especificidade. em massa d a narrativa trivial, reconhecendo-se, por outro
lado, a enorme importância intelectual da poesia hermé-
Não estava dentro dos interesses portugueses que
tica, o professor Hans Georg Gadamer (em conversas pes-
época do Brasil-Colonia houvesse o desenvolvimento da
soais em Heidelberg, em junho de 1982 destacou que a
publicação de livros aqui, pois isto poderia ajudar a criar
importância da poesia não está simplesmente em sua di-
fundido
analisada com tecnologia.
tão-som ente sob oAté m esmo
signo a poesia
da técnica. tem tiver
Quando sido
sido ultrapassado o fascínio pela tecnologia e quando Heróis nacionais
mais homens puderem beneficiar-se dela, talvez haja no-
vamente um florescimento da poesia. As condições de Há personagens da história de um povo que personi-
vida moderna têm levado as pessoas a se entregarem à ficam a alma desse povo segundo a ideologia qu e num
trivialidade da televisão: mas talvez possa haver uma certo mom ento seja a dominante. Pode ser uma figura
reação no sentido de buscar, em pouw tempo, a informa- como Tiradentes, uma espécie de João Batista da liber-
ção densa e concentrada da poesia. A divisão entre gêne- tação nacional, como pode ser um Duque de Caxias en-
ros significa aqui, na prática, uma divisão entre massa e quanto herói da unidade d o Brasil. Além desses heróis
(com seus correspondentes vilãos, conforme o ponto de
elite. vista do qual a história estiver sendo escrita) oriundos
Quando se leciona uma determinada literatura nacio-
das páginas da história , h á heróis literários que pre-
cional, tende-se, por motivos vários, a hipewalorizá-ia.
tendem corporificar imagens mais ou menos estereotipa-
Tem-se, por exemplo, no Brasil, uma tendência implícita
das de nações. Quando pretendem corporificar apenas
nos cursos de Letras no sentido de considerar a literatura
qualidades positivas, tornam-se literariamente inferiores:
brasileira como o centro literário do mundo, assim como
é o caso de Vasco da Gama. Quando fabricados sem a
há outros que a subavaliam e menosprezam. Há por con-
seguinte, tanto a tendência de considerá-la como o litera- intenção de corporificar apenas qualidades positivas, po-
riamente elevado (pa ra os brasileiros?) quan to a tendên- dem eventualmente dar certo: é o caso de Macunaíma.
cia de considerá-lo literariamente baixa . Esta contrapo- figura de Fausto pode representar certos aspectos de
sição precisa ser superada mediante a literatura compa- um espírito nacional, mas é pura ideologia achar que a
rada. nação toda tenha essas qualidades. O final do austo
A perspectiva desde cima e a perspectiva desde baixo é um deus x machina que sugere que se pode fazer o
encontram a sua expressão em dois pontos de vista nar- que se quiser na vida, pois no fim sempre se acabará
rativos diversos: o do pássaro, que sobrevoa os fatos e sendo salvo: isso é problemático.
vê de modo ahrangente tudo um tanto reduzido; e o do Um grande personagem nunca é patrimônio exclusivo
sapo, que vê tudo de baixo para cima e fica boquiaberto de uma nação. Assim que ele alcança um nível artístico,
diante da enormidade de tudo o que é maior do que ele passa a fazer parte do progresso de toda a humanidade,
(para ele ainda comer o que é menor). O primeiro parece e tanto mais Estados procuram aproveitar-se disso. Ne-
corresponder à possibilidade de produção do artístico, en- nhuma filosofia, música, literatura ou ciência é em si,
apareciam também os azares e apertos da classe alta e fa z com qu e o socialmente baixo vá sendo transformado
6
5/21/2018
eróis d dec dênci tempo, uma cena falta de maldade aumenta-lhe a ruindade
KOTHE, Flavio - O He roi - slide pdf.c om
platônico, acaba, porém, com esta exceção: ao mesmo aquele bebe e come):
m busca do tempo
\ compartilha com Joyce de uma certa falta de crença no
futuro, crença que impregna o realismo socialista. O pró-
prio realismo de tipo burguês começa, com Stendhal, im-
pregnado da crença nas grandes figuras capazes de enca-
minhar a história eróis épicos em form a romanceada
- para acabar num ceticismo cada vez maior. E m
[operariado) M a d a m e B o v a v de Fiaubert, demonstra-se que a fasci-
naç ão pequeno-burgue sa pela aristocra cia injustificada,
enquanto o próprio mundo dessa burguesia desvela a sua
eróis do avesso pequenez. M as a televisão, em séries como Dallas soube
captar o mundo audaz e ousado do grande empresário.
Joyce, no Ulisses parece estar obsessivamente preo-
Se a Poética de Aristóteles considerava implicitamente
cupado em rebaixar o seu modelo literário clássico, a Odis-
d i a . Leopold Bloom, paródia moderna de Odisseu, não como maiores os gêneros não centrados em personagens
oriundos do povo, na poética moderna temos três momen-
realiza grandes gestos épicos: aparece fritando rins com
tos distintos: 1 o momento de valorização positiva do
gostinho de urina, sentado na latrina lendo o jornai ou
audaz entrepreneur que constrói, a partir de sua iniciativa
perambulando por locais mais ou menos mal-afamados da
privada, o seu próprio processo de ascensão social (Ro-
cidade. sua Penélope exatamente o oposto d o exemplo
binson Crusoé, Fabrício, Sorel); 2 o momento de des-
de absoluta fidelidade ao marido, enquanto o seu Telê-
crença nesse processo de luta pela ascensão social (Ma-
maco se encontra com o pai em um bordel. pretexto
dame Bovary, Leopold Bloom, Marcel); 3 o momento
de só ver o que esta obra representa em termos de técnica
de crença no processo de reversão da própria estrutura
de construção e elaboração literária, tem-se geralmente
social e na positividade dos heróis que tentam fazê-lo
esquecido o protesto político nela contido contra a domi-
nação da Irlanda pela Inglaterra. Este elemento político (Etienne, Grieb).
não apenas ocasiona1 ou lateral, mas a própria essência percurso do herói mod erno a reversão do per-
da obra . Molly e Leopold Bloom podem ser lidos como curso do herói antigo. Se antigamente se colocava a
alegorias da Irlanda e do povo irlandês, da degradação questão do percurso individual ou grupal entre o alto
por ambos vivida e contra a qual o Autor formula o seu e o baixo da sociedade, o herói passa a ser, com o pro-
protesto. Se a dimensão do baixo aí minuciosamente ela- cesso de industrialização, o próprio questionamento da
borada, a natureza paródica, dupla, especular do livro estruturação social em classe alta e classe baixa.
aponta para a Odisseia como sendo o seu mundo alto, Gêneros antigamente considerados maiores quase
elevado, posto entre parênteses e ausentificado, a implí- desapareceram ou, ao menos, modificaram de tal modo a
cita utopia de um mundo menos prosaico. sua forma que só mantêm o mesmo nome por caracterís-
soneto), enquanto gêneros antes bastante menosprezados possível vitória futura; o romance do realismo socialista
pela poética passaram a assumir papéis preponderantes soviético é o romance do operário vencedor, da revolução
com o o romance). Ainda que a tragédia tenha sido vitoriosa, mas ainda com enormes tarefas e dificuldades
involuntariamente caricaturizada pelo melodrama, assim para conseguir com que o novo modo de produção real-
como a epopéia o foi pelas tropelias e pancadarias das mente venha a funcionar.
narrativas triviais, o que aí se verifica é não só o reflexo A própria evolução da sociedade e da produção lite-
de uma nova situação social, com maior p articipação popu- rária brasileira permite um certo afloramento do seu bloco
lar, mas também a possibilidade de que essa quantidade popular e uma percepção mais clara da limitação do hori-
seja transformada em uma nova qualidade. zonte dos autores do passado. Estes tendiam a se centrar
no topo d a sociedade: os agrupamentos marginais omo
índios, imigrantes ou mulatos - quando apareciam, fa-
eróis proletários ziam-no mais como alegorias do que como portadores de
seu próprio significado. Reconhec er tais fato s nã o signi-
Se, nas obras clássicas gregas, os grandes persona- fica querer diminuir autores, mas reconhecer, dentro de
é
gens eramgado
de terra, basicamente
e gente, sempre
fazendoaristocratas,
com que paraisto conseguir
donos uma perspectiva mais científica, o horizonte que neles efe-
tivamente se configura.
elevar-se literariamente já fosse preciso ser socialmente
elevado assim com o nos séculos XV II-XIX quase só se
pintavam retratos das pessoas gradas da sociedade), desde eróis burgueses
o naturalismo tem-se uma tendência à total reversão desse
esquema, ou melhor, o próprio naturalismo já é uma ex- Em Machado de Assis é marcante a diferença entre
pressão desse processo de reversão. o rol de seus personagens e a constituição dernográfica
Nos clássicos modernos, os personagens de extração fluminense da época. Os seus personagens são quase todos
social alta tendem cada vez mais a se mostrarem como oriundos das camadas mais altas da sociedade; os escra-
baixos, enquanto, para poder ser um herói elevado sem vos, que constituíam a grande maioria da população, estão
ser trivial, cada vez mais o grande personagem tende a quase ausentes em sua obra. Se Ma chado não se inclina
ser de extração social baixa. á uma certa continuidade a mostrar o socialmente baixo como elevado pelo con-
entre o naturalismo mais genuíno e o realismo socialista. trário, tende a mostrá-lo como cheio de baixezas, con-
Isso decorre da opção política que é comum a ambos: a forme se mostra em figuras como José Dias e Capitu) ,
opção pelo proletariado. Tome mos como exemplos típicos se eIe praticamente nem sequer aflora o nível social mais
Germinal de Zola, e Cimento de Gladkov. Correspon- baixo, ele também não mostra a classe alta como sendo
dendo diferença dos seus mom entos e locais de gênese, o simplesmente elevada: pelo contrário, é um moralista, que
romance naturalista francês é o romance do operariado que questiona e corrói todas as posturas morais. Não é por-
questiona as suas condições e relações de trabalho, mas é tanto, um autor trivial nem de direita nem de esquerda.
a figura de
-confiável emCapitu
termos mostrando-a como centralizando
morais mas acaba uma pessoa toda
não- seja atrivial
do maiore parte
atendadoa apetite
necessidades dominantes
pela narrativa no émerca-
trivial aten-
a atenção nela fazendo com que fulgure a ambigüidade dida hoje pela televisão. Isso poderia liberar uma parte
de sua posição e de seu modo de ser vislumbrando-se o da produção literária para um tipo de produção mais refi-
seu drama interior drama da própria evolução socioew- nado mas este espaço tenderia a ser preenchido por
nômica. alguns programas de televisão. Sendo comercial a tele
visão não tem interesse em promover a leitura enquanto
concorrência. Não se deve wnfundir o instrumento de
comunicação com as relações de poder que nele instru-
mentalizam a manipulação.
Apesar da aparência de variação e da grande variação
de aparências a narrativa trivial se caracteriza pelo auto-
matismo pela repetição e pelos clichês a nível de enredo
personagens temário valores e final. Existe a narrativa
trivial de direita e a narrativa trivial de esquerda; existe
a narrativa trivial masculina e a narrativa trivial feminina.
Exatamente porque a sua estrutura profunda é tão repe-
titiva é que a estrutura de superfície da narrativa trivial
precisa ser tão variada. Corresponde a uma idade mental
mais se necessita fazer dele um super-herói. Quan to mais status quo enquanto outros é que se encarregarão de
fracos os homens numa sociedade, tanto mais eles preci- fazer justiça .
sam d e super-heróis. tanto mais super-heróis eles rece- A trivialidade é o modo dominante de produção e
bem para se manterem fracos. Esses heróis aparente- consumo de narrativas porque corresponde ao modo de
mente correm grandes perigos e só no último instante sal- produção dominante de mercadorias, ou melhor, é este
vam a situação e a si mesmos, um resultado já esperado modo de produção no setor das narrativas enqua nto merca-
pelo espectador ou leitor, pois pertence poética norma- dorias. atenção concentrada e dem orada que é exigida
tiva e ao código do gênero: isto corresponde situação pela natureza única da grande obra de arte, ao invés de ser
do próprio receptor. Apesa r dos perigos que corre em seu liberada e desinibida pela automatização, funciona só
dia-a-dia para sobreviver, é-lhe assegurado que, no fim, como ocasional oásis dentro dessa preponderância da
tudo vai dar certo. Que tudo acabe dando certo é o que mesmice sob a aparê ncia de diversidade. As o bias triviais
mais deseja o instinto de sobrevivência. Po r outro lado, tendem ao h a p p y end assim como as obras literárias mais
existe ai implícito um so nho d e justiça e de valorização artísticas tendem ao bad end. Este final infeliz pode, con-
dos mais fracos, que transferido para o reino da fantasia. tudo, funcionar como um modo de esconjurar a infelici-
O automatismo d o trivial um conservadorismo. dade na vida, assim como o final feliz corresponde ao
O seu happy end é a restauração da situação anterior desejo de felicidade inerente a todo ser humano.
violação inicial da norma. Está aí implícita a tese de que Se todo herói grego clássico é produto da hybris
a felicidade é a manutenção do status quo. O que está, mantendo em si essa duplicidade de deus e homem, fato
aliás, pIenamente correto para aqueles que são mais bene- que acaba se revelando ao longo do seu percurso, tal dupla
ficiados pela situação. O automatismo subjacente va- dimensáo tende a se configurar também nos heróis triviais
riação de superfície corresponde também vigência das e, de modo mais flagrante, nos super-heróis. O mocinho
mesmas estruturas de poder e trabalho, ao cansaço do de far-west geralmente parece primeiro um bom mocinho
operário após um pesado dia de trabalho. pessoa nã o que não quer se meter em encrencas, mas depois aparece
tem mais, então, condições físicas para uma atenção con- o seu lado m ais heróico, divino. Um simples e medroso
centrad a: só quer ainda relaxar. televisão é o seu relax- jornalista como Clark Kane se torna o Super-Homem.
-center mais barato. O a u t o m a t i s m o d a e s t ~ t u r a rofunda Uma simples secretária se transforma, num passe de má-
corresponde ao automatismo do trabalho em série e se gica, na Mulher Maravilha. O Pateta, com alguns amen-
respalda n o desinteresse quanto a efetivas mudanç as sociais. doins, se transforma no Super-Pateta. E todos eles são
Cria-se a ficção de que, por mais coisas que aconteçam defenso res da justiça e da lei.
ante os olhos do espectador ou d o leitor, ele mesmo Por outro lado, certas figuras de carne e osso passam
jamais é atingido nem envolvido por elas, ele mesmo não a corporificar, nos meios de comunicação, determinadas
tem nada a ver com isso. cada noite lhe é ensinado não figuras míticas do passado: um boxeador peso-pesado 6
se envolver com o que acontece sua volta durante o é
um novo Hércules; uma atriz o próprio mito da eterna
representar as forças fecundadoras da natureza. Por isso verdade histórica) essa idéia de redistribuição da riqueza
o rei precisa ser, aparentemente, substituído toda vez que social em soluções individuais, sem alterar radicalmente
perde a sua força. A não ser que ele coloque alguém o sistema da propriedade fundiária, corresponde a uma
o rei Momo m seu lugar por alguns dias, durante os perspectiva política que se poderia chamar de social
qnais este goza de todos os privilégios: o carnaval. Após democrata.
esses dias, o rei substituto será sacrificado: quarta-feira A carência básica da trivialidade de esquerda é que,
de cinzas. O rei é o herói por excelência de um povo, ao fazer do alto simplesmente o baixo e do baixo o e l e
ainda que seja um rei simbólico: serve para a auto-afir- vado, ela não só desconhece a natureza complexa e con-
mação desse povo; é a vitalidade personificada. A risada traditória da realidade como também imagina que a classe
do herói é a própria alegria de viver. baixa, ainda que seja vista como depositária da esperança
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de redenção da história, possa ser melhor do que o todo vés de toda s as dificuldade s e alegrias. Essas narrativas
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da sociedade em que vive. triviais femininas podem ser, portanto, classificadas como
narrativa trivial pode ser um espelho mágico em de direita . Sã o femininas dentro de um padrão bem
que cada classe contempla a outra, mas tende a contem- estereotipado, pois as próprias narrativas são estereotipa-
plar apenas a sua própria imaginação quanto a outra das, assim com o o seu público. Ela s são a antítese e o
classe. N o mom ento em que a narrativa trivial mostrasse com pleme nto das narrativas triviais masculinas .
a Branca de Neve dos anões operários, teria o seu espelho Nessas narrativas, a estmturação da sociedade em
quebrado em estilhaços pelos poderes vigentes: mas a classes aparece como um problema, mas como um pro-
narrativa artística surge hoje da possibilidade anunciada blema a ser resolvido individualmente, pela mobilidade
nesses estilhaces. social, pela possibilidade de ascensão social. Potencial-
mente seria possível haver a narrativa trivial feminina de
esquerda, mas é uma categoria completamente sufocada
entre nós, em vista das relaçiies de pod er vigentes. Uma
série como alu Mulher caminharia nessa direção.
A narrativa trivial feminina pode usar diferentes veí- narrativa trivial feminina de esquerda é entre nós
culos:
cinema aágua-com-açúcar
fotonovela, a novela-cor-de-rosa,
etc. D e um mod o ageral
telenovela, o
destina-se ainda mais restrita do que a masculina porque a mulher
vive ainda mais sufocada do que o homem.
ao público feminino, o que caracteriza também o seu en-
redo. Basicamente tem-se a í sempre uma heroína, uma
mocinha com diversas vutudes, e um herói romântico,
cheio de excepcionais qualidades. São como que deuses
sobre a terra. Estão predestinados a casarem um com o
outro. Mas, para qu e haja enredo, surgem vários empe-
cilhos entre eles, sendo o mais frequente o fato de ela ser
pobre e ele ser rico: é claro que o que ela mais quer é
dar o golpe do baú , só que exatamente isso é o que não
pode ser reconhecido. No fim, depois de diversas peri-
pécias, tem-se o fmal feliz, com o casamento desses mara-
vilhosos seres.
moral da história é à primeira vista, a tese de que
o amor tu do vence . Subjacente a ela, há porém, uma
outra tese, que é basicamente, a de que a melhor coisa
na vida é conseguir pertencer à classe alta (o que não
deixa de estar correto até certo ponto) e que o melhor
que se tem a fazer é se identificar com ela e amá-la atra-
Esta questão
se observa se torna
que a maior ainda
parte dosmais interessante
escritores quando
que produzi-
Nas narrativas triviais de direita procura-se demons-
trar o socialmente alto como elevado, e esta trivialidade ram esses clássicos da modernidade nunca foram autores
moderna parece estar de acordo com a não-trivialidade que poderiam ser classificados, por exemplo, de marxis-
antiga, com os gêneros maiores da poética clássica, pois tas : Flauber t, Joyce, Proust, Tbom as Mann etc. Pelo
em am bos os casos procura-se mostrar o socialmente baixo contrário, a instaura~ãode heróis positivos e do final
feliz em obras não-triviais começa a se dar exatamente
como inferior. í a única possibilidade de o baixo ele-
var-se um pouco é se identificando com o socialmente alto. através de autores que, se não foram marxistas, ao menos
se aproximaram um tanto d o marxismo.
O mesmo está implícito em toda a arte religiosa: a sal-
vação pela identificação com o alto. O próprio conceito No realismo socialista, segundo Weinrich, tem-se
de arte religiosa tem isto implícito em si: o artístico para como que a proibição do herói alto e a certeza da felici-
dade no socialismo: para ser elevado, o herói precisa ser
a arte sacra se eleva por ser representação d o divino ( o
de extração social baixa. Ele deve contribuir para a re-
que não impede que o artístico sirva para homenagear o versão ou extinção das classes sociais. Enq uan to isso, nos
plano divino). países capitalistas até parece que só personagens de extra-
As avessas, o mesmo padrão se encontra na linha- ção social baixa ainda poderiam produzir literatura elevada,
gem do naturalismo-realismo socialista: a valorização da enquanto personagens de extração social alta só pode-
classe baixa espera que através do operariado se dê a riam produzir Literatura inferior.
elevação de toda a sociedade. Ao invés de uma solução Geralm ente tem-se confund ido realismo socialista
individual, uma solução coletiva. A práxis política é com o que aqui está sendo chamado de narrativa trivial
rio. Oela
como romance comopor
se reflete, queexemplo,
inverte anas
prioridade
colunassocial, tal
sociais nar-se com a mulher; nem tudo são vitórias no que ele
faz, nem sempre ele sabe como superar certas contradi-
dos jornais. Mas a presença que ele dá a uns e a outros ções. Mas esses problemas pessoais nã o são individuais.
corresponde proporção de sua existência social. Ele São problemas coletivos, envolvendo pessoas: problemas
caracteriza suficientemente os proprietários da mina e da guerra civil e, especialmente, da reativação da econo-
seus administradores nos termos da ação narrada. Nem mia em novas bases. Isto é exemplificado modelarmente
estes são apresentados como meros portadores de defeitos, no caso de uma fábrica de cimento. As andanças e os
nem os operários são apresentados como deuses sobre a esforços d e Gleb vão numa direção completamente diversa
terra: pelo contrário, mostra-se o processo de animalua- da do herói trivial: náo se trata de restabelecer um st tus
çãn decorrente das suas péssimas condições de trabalho quo punindo aqueles que a transgrediram. Pelo contrá-
é quem ajuda, pela guerra e pelo trabalho, a estabelecer buição do indivíduo para a evolução dos acontecimentos é
um novo modo de produção; não é mais crime violar a considerada importante, mas ela nunca decisiva: as
propriedade privada dos meios de produção. Não se decisões são coletivas, decorrentes dos entrechoques de
trata, porém, simplesmente de inverter a postura da narra- forças de gmp os diversos. Constroem-se assim sistemas
tiva trivial masculina de direita, ou seja, fazer o elogio do de romances literariamente altos, a partir de personagens
bandido, do ladrão. Trata-se d e transcender o horizonte baixos , mas com a grandeza épica de uma nova classe
dicotômico subjacente a ela. A obr a de Gorki é modelar que também constrói e faz a história. A distinção entre
neste sentido. as escolas literárias é muito mais uma diferença política
Germina dificilmente teria conseguido ser um grande do que normalmenhe se tem admitido.
romance, caso apenas desejasse demonstrar a grandiosa
heroicidade épica existente nas lutas do proletariado opri-
mido. M ostra r e reconhecer a animalização dos mineiros
e a derrota da greve são traços de um realismo histórico
que o tornam mais verdadeiro e o elevam acima da trivia-
lidade de esquerda. e Etienne é um herói proletário que
é derrotado e não consegue mudar a situação histórica,
Gleb também é um herói vindo socialmente de baixo, mas
que vence, não sozinho, conseguindo alterar o seu mundo
e a sua circunstância. Esta numa peculiar situação histó-
rica em que a classe alta da sociedade foi arrancada para
dar lugar ao sonho de elevação de toda uma nova socie-
dade. N ão só ao sonho, mas ação: e dessa ação o
romance participa ao retratá-la.
trumentos de manipulação, assim como podem ser meios grande obra de arte, na aura, inexistente nas obras triviais
de os homens melhor se comunicarem e se entenderem, devido ao seu caráter repetitivo e massificado. Na econo-
chegando, assim, a um estágio superior de seu próprio mia de mercado, a auréola da obra de arte transformada
aperfeiçoamento. Por isso, é preciso desenvolver catego- em mercadoria é contudo, proporcional à quantidade de
rias teóricas que permitam entender as diferenciações exemplares vendidos. Aura é então densidade do quanti-
existentes no que í veiculado. tativo: um certo grau de originalidade pode ser um dos
Se a parte mais elevada da literatura se destina basi- seus instrumentos, não porém a s ua razão suficiente. A
camente à classe alta enquanto a parte mais trivial vai aura acaba sendo proporcional multiplicação dessa iden-
para a classe baixa, então a literatura omo a nar- tidade.
rativa em geral esempenha fundamentalm ente um Nos grnpos sociais que tenham n o revolucionário
papel de legitimar a estrutura social vigente e de fazer um critério principal de avaliação do texto, não é raro
com que ela funcione mais azeitada. entender por revolucionário o texto hermético que obri-
O baixo-contínuo da modernidade literária é a ne- gue a um especial esforço de leitura. Argumenta-se qu e,
com isso, toda a estrutura da pessoa é sacudida: o poema
gação
vidade da
de negatividade social
uma alternativa sem que
histórica que se afirme
possa a positi-
provir dessa mais parece, então, uma máquina de moer carne, em que
negatividade (excluindo-se, portanto, da modemidade o num lado entraria um vil burguês, e, na outra ponta,
naturalismo e o realismo socialista). No processo de lei- acabaria saindo um heróico revolucionário. o porém,
tura, uma postura dessa ordem pode, porém, reverter difícil comprovar efetivas mudanças sociais após leituras
em seu contrário. Toda autocrítica or exemplo a de poemas herméticos. Supõe-se aí, na linha de Nietzsche
do romance realista burguês feita pela burguesia para o e de um Thomas Mann, que o artista é o grande herói
seu próprio uso eve servir basicamente para, reconhe- moderno, heroismo que bafeja o leitor quando ele passa
cendo erros, reforçar a posição de quem se critica. A lite- a ser co-autor de textos que exijam esforços de leitura.
ratura funciona então como uma espécie de vacina para Que o artista seja considerado um herói se dá basica-
da classe alta como os valores altos da sociedade, enquanto cadoria, ocorrida com a industrialização capitalista, aca-
os heróis de esquerda procuram inverter esse processo. bou permitindo aflorar uma reversão radical no modo
Ambos se caracterizam, porém, por seu automatismo e anterior de relacionar o alto e o baixo da wiedade com
mecanismo a nível de estrutura profunda, apesar de todas o alto e o baixo das obras. A história do percurso do
as aparências de mudança a nível de estrutura de super- herói o heróico percurso da própria História.
fície. São uma decorrência das contradições do real, mas
são incapazes de se tornarem índices abrangentes da natu-
reza complexa da realidade.
Toda obra literária mais que um texto: implica
sempre a figura do leitor, o que pode alterar a relação entre
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Gênero literário: subsistema da literatura, dividindo-se
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por sua vez em narrativa, poesia e drama. Esta divi-
KOTHE, Flavio - O He roi - slide pdf.c om
visão
tico naabrangente
sociedade na narrativa moderna, o realismo crí-
socialista.
WEIMANN Rohert. New Criticism und die Entwicklung
buergerlfcher Literaturwissenschaft. 2. Aufl. Munchen,
Verlag C H. Beck, 1974.
Tomando o New Criticism como modelo para as cor-
rentes modernas da crítica literária, o Au tor mostra
o caráter ideológico que as domina: propõe a supe-
ração do idealismo a elas subjacente. Dá a prioridade
ao real e história, critica a absolutizaçáo d o texto
literário.
WEINRICH arald. Hoch und Niedrig in der Literatur. In:
RUDIGER Horst, ed. Literatur und Dichtung. Stutt-
gart, Kohlhammer Verlag, 1973. p. 166 et seqs.
Ensaio curto, mas extremamente instigador, voltado
para a s poéticas no rmativas antigas e modernas.
também um ataque contra a Escola de FranMurt e a
tendência ao pessimismo na atualidade.