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SEBENTA DP1, Maria Paixã o

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17

Título I – Introdução
Capítulo 1 – Estruturas elementares do direito penal
1. O crime
! O direito penal é, formalmente, o conjunto de normas que trata os pressupostos, a determinação, a aplicação e as
consequências (penas e medidas de segurança) dos crimes e dos “factos” suscetíveis de desencadearem medidas de
segurança. Como decorre da definição expedida, o direito penal debruça-se, não só sobre os pressupostos, a
determinação, a aplicação e as consequências dos crimes, como também sobre iguais aspetos relativos às medidas de
segurança. Consequentemente, o princípio da legalidade e a proibição de analogia valem também para os crimes e
para as medidas de segurança.
As normas incriminadores que no seu conjunto formam o direito penal traduzem-se, num ângulo estritamente
dogmático, em tipos legais de crimes.
Ora, o direito penal estrutura-se através de duas realidades nucleares, elementares e indissociáveis: o crime e a pena.
Lévi-Strauss propugnava que a comunidade de homens e mulheres só se assumiu como tal (como comunidade) através
de uma norma de proibição – a proibição do incesto. Nesta linha, o direito penal, enquanto conjunto de normas de
proibição das condutas mais desvaliosas, é conatural ao modo-de-ser humano. Poderíamos até dizer, em termos
translatos relativamente à expressão original (ubi societas, ibi ius): ubi societas, ibi crimen. No fundo, o que
pretendemos afirmar é que se não houvesse uma proibição (tendo sido a primeira proibição, segundo os antropólogos,
a proibição do incesto) o “eu” não seria capaz de se encontrar identitariamente na diferença do “outro”. De um modo
simplista, se o homem só é pensável como tal (como ser humano) no encontro com o outro, a verdade é que a vida
em comunidade depende da proibição das condutas entendidas como desvaliosas.
De um modo geral, podemos dizer que o sistema do direito penal assenta em dois eixos normativos:
Direito Penal
Fragmentariedade Unidade lógica e intencional da dogmática
Pluralidade de normas de proibição e sancionatórias:  Normas que cristalizam axiomas;
crimes e tipos legais de crime.  Normas condensadoras de princípios;
 Normas sobre normas
Parte Especial do Código Penal  Normas definitórias;
 Normas que sustem regras jurídicas.

Parte Geral do Código Penal


2. A pena
A valoração da pena assenta na destrinça e indentificação do seu fundamento, da sua finalidade e da sua necessidade.
Se o fundamento se traduz na indagação dos “porquês” que justificam a pena, a sua finalidade assume-se como o
“para quê” da pena. Já a necessidade da pena é avaliável mediante a averiguação do “se” da pena.
Numa primeira aproximação, a pena é a principal consequência da prática de um crime. No entanto, a pena é também
uma manifestação do viver comunitário organizado. Consequentemente, a problemática da pena é um daqueles
pontos que ao serem tratados tocam ou prendem-se, necessariamente, com o pensamento do próprio todo que o
direito penal representa.
Uma vez que a pena representa a reação de uma comunidade de homens aos comportamentos penalmente proibidos
por essa mesma comunidade, a pena é, em si mesma, o reflexo dos valores dessa comunidade em certo tempo e em
certo espaço.
3. A fundamentação onto-antropológica do direito penal
O direito penal, embora seja uma ordem, tem um fundamento, uma finalidade, um sistema e uma função próprios:
 Fundamento: relação (comunicacional) de cuidado-de-perigo;
O crime carateriza-se, em termos materiais, justamentos, como perversão desta relação.
 Ordem: o direito penal afirma-se como uma ordem relacional:
 Funda-se, em primeira linha, numa relação comunicacional de raiz onto-atropológica (a relação cuidado-
de-perigo);
 Assenta numa rede de relacionações entre a vítima, o delinquente e o Estado.
 Finalidade: jutiça penal historicamente situada
O direito penal é um ordenamento de paz

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
É fim primeiro do Estado a realização da justiça penal, pois se em todos os campos do direito a paz jurídica é
relevante, ninguém duvida que o seu caráter fundamental se refrata no direito penal – art. 1º CRP.
 Sistema: de acordo com o exposto acima [vide supra: Título I, Cap. 1, 1.], o direito penal assenta em dois eixos
normativos: (1) a fragmentariedade e (2) a unidade lógica e intencional da dogmática. Saliente-se, porém, que
não podemos sufragar uma rigorosa e estanque separação entre a Parte Geral e a Parte Especial do CP;
 Função: proteger bens jurídios que tenham dignidade penal (art. 40º/1 CP).
A esta função primordial, agregam-se outras funções complementares:
 Função de garantia: através do direito penal definem-se os comportamentos penalmente relevantes,
constituindo-se, desta forma, uma barreira à tendência centrípeta de esmagamento que o poder do
Estado desenvole em face dos direitos fundamentais. Por outro lado, conhecer as condutas proibidas
permite ao cidadão, em inteleção inversa, conhecer o universo dos comportamentos “livres”;
 Função de segurança: pretensão do “eu” a poder viver numa relação de cuidado para consigo, a qual
deve ser protegida pelo direito penal;
 Função de coesão:
o Coesão normativa: o direito penal funciona como cimento agregador de todo o multiversum que
a ordem jurídica constitui;
o Coesão pessoal: o direito penal, ao punir comportamentos que violam bens jurídicos
eminentemente pessoais (como a vida, a integridade física, o património, etc.), reforça o sentido
da unidade do homem;
o Coesão social: o direito penal protege ainda bens jurídico supra-individuais.
Como conclusão, é crucial assentar a ideia de que o direito penal exprime uma ordem de liberdade. Sendo a
amnifestação primeira do poder punitivo do Estado, e como tal uma ordem de repressão, o direito penal é também
uma ordem de liberdade: a afirmação do espaço de liberdade de cada um só é verdadeiramente atuante se se agir a
partir de um campo de comportamentos definidos como livres, definição essa que se dá, por inteleção inversa, a partir
dos comportamentos penalmente vedados.
“O paradoxo da liberdade está em ter que se aceitar um seu limite para se poder ser livre. Esse limite essencial
é-nos dado pelo direito penal ao definir os comportamentos penalmente proibidos. Os únicos que um Estado de direito
democrático pode sancionar.”

Capítulo 2 – Para uma nova “ciência do direito penal total (conjunta)”


1. Aproximação conceitual
O crime, elemento essencial do direito penal, corporiza simultaneamente e ideia de um desvio e de uma constante a
um padrão sociologicamente fundado.
Desvio ao padrão sociológico Constante no padrão sociológico
O crime é uma patologia social O crime é uma permanência na vida em comunidade
O controlo do crime é tarefa do Estado. Acontece que esse controlo nunca poderia ser feito, pelo menos de forma
eficaz, se sempre aquela tarefa se bastasse com a dogmática jurídico-penal. De facto, a dogmática jurídico-penal
precisa de ter ao seu dispor instrumentos que lhe permitam “trabalhar” o direito penal. E esses instrumentos são os
frutos de um estudo empírico do crime, bem como a orientação estratégica do controlo a efetuar.
Foi dentro deste quadro que, nos finais do séc. XIX, Liszt concebeu a “ciência do direito penal total”, a qual conjugava
três vertentes fundamentais: (1) o direito penal propriamente dito; (2) a criminologia; e (3) a política criminal.
No entanto, a disciplina do direito penal pode ser perspetivada em um sentido muitíssimo mais lato, englobando: o
direito processual penal, o direito de mera ordenação social, o direito de execução das penas, o direito penal de
menores e todas as formas de direito penal secundário. Faria Costa fala, a esta respeito, na nova ciência do direito
penal total, no âmbito da qual se encontram todas aquelas disciplinas sem que se conceda primazias absolutas a
nenhuma(s) delas.
2. Direito penal clássico e direito penal secundário
A distinção formal entre estes dois conceitos radica no seguinte aspeto: o chamado direito penal clássico integra a
unidade normativa do Código Penal, enquanto que o direito penal secundário se encontra sistematicamente
organizado em leis avulsas. Porém, facilmente se compreende que não basta uma distinção assente neste critério para
que se tenha exata compreensão das diferenças materiais entre o direito penal clássico e o direito penal secundário.

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Ora, o recorte entre o direito penal clássico e o direito penal secundário afigura-se como muito fluido, quando não, às
vezes, indeterminável. Poderá, inclusivamente, afirmar-se a inexistência material de qualquer diferenciação. Não
obstante, é constatável que a passagem de uma conduta penalmente proibida do direito penal secundário para o
direito penal clássico (portanto, para o CP) é, principalmente, fruto de maior ressonância axiológica que os valores
adquirem na ordem jurídica e no contexto sócio-cultural em que se inserem.
Tudo o que se acaba de ponderes inclina-nos para uma compreensão onde inexiste uma diferenciação material entre
o direito penal clássico e o direito penal secundário. No fundo, a distinção que nos ocupa acaba por culminar numa
ideia de valoração axiológica: a consagração de uma matéria no CP perpassa a ideia de que a dignidade da matéria em
apreço fica aumentada.
3. Direito penal e direito de mera ordenação social
As duas realidades normativas em cotejo apresentam uma diferença qualitativa, e não meramente quantitativa, entre
si. De um modo esquemático, a destrinça que nos propomos a realizar apresenta-se do seguinte modo:
Direito Penal Direito de mera ordenação social
Crime Pena Contra-ordenação Coima
O art. 1º do Regime Geral das Contra-Ordenações dá-nos uma definição de contra-ordenação: “todo o facto ilítico e
censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.
Mas a aceitação de um critério eminentemente formal só é legítima se a realidade normativa de que se trata não
deixar de apresentar marcadas especificidades. Portanto, a utilização de um critério material depende da possibilidade
de se estabelecer uma fronteira material entre as realidades, identificando-se uma coerência entre o critério formal
utilizado e a diversidade material. E, com efeito, é possível identificar especificidades materiais do regime das contra-
ordenações: (1) no que toca à sanção; (2) no que se refere à aplicação da lei no espaço; (3) no que tange à
responsabilidade das pessoas coletivas; (4) quanto à questão da tentativa; (5) relativamente ao concurso de infrações.
(1) Sanção: o direito penal sanciona os comportamentos proibidos com penas, enquanto que o direito de mera
ordenação social fá-lo com coimas. A distinção entre as duas sanções em causa é uma matéria complexa, pelo
que nos limitaremos a referir os seguintos pontos:
Multa Coima
 Tem uma dimensão ético-jurídica  Total neutralidade axiológica
 Aplicada por um tribunal  Decretada por uma entidade administrativa
 Pode ser substituída, por ex., por pena curta de  É infungível (não pode ser substituída por
prisão ou trabalho comunitário qualquer outra sanção)
 A aplicação da sua medida depende de fatores  A determinação da sua medida conexiona-se
relacionados com a sua dimensão ética com um fator de compensação económica
(2) Aplicação da lei no espaço: no domínio das contra-ordenações encontra expressão quase pura o princípio da
territorialidade (art. 4º RGCO); já no âmbito do direito penal, este princípio articula-se com os demais princípios
complementares, conformando um quadro complexo. Esta diferença explica-se pelos escopos próprios de cada
uma destas realidades normativas. A esfera de ação do direito de mera ordenação social circunscreve-se ao
território nacional uma vez que visa tão-só ordenar ou promover determinados comportamentos necessários
ao harmónico desenvovlimento comunitário. Ao invés, o direito penal procura a proteção específica, direta e
imediata, de bens jurídico-penais pessoais ou mesmo supra-individuais de radical pessoal. Portanto, estando
muito mais ligado à dimensão pessoal das condutas, exige uma tutela que pode ir além fronteiras.
(3) Responsabilidade das pessoas coletivas: no campo do direito de mera ordenação social verifica-se a irrestrita
irresponsabilidade das pessoas coletivas (art. 7º RGCO). No campo do direito penal, contrariamente, os casos
de responsabilidade das pessoas coletivas são uma exceção à regra da irresponsabilidade.
(4) Punibilidade da tentativa: no que respeita a punibilidade da tentativa, enquanto o direito de mera ordenação
social consagra o princípio da taxatividade (art. 13º/1 RGCO), o direito penal considera a tentativa punível
sempre que ao crime consumado corresponda uma pena superior a 3 anos ou nos casos previstos na lei.
(5) Concurso de infrações: no contexto deste último aspeto diferenciador, há que distinguir duas hipóteses:
a. Concurso de contra-ordenações: o agente é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma
das coimas concretamente aplicadas às contra-ordenações em concurdo, sendo que a lei impõe um
limite mínimo e um limite máximo ao valor que pode ser aplicado – art. 19º RGCO;
b. Concurso de contra-ordenações e crimes: o agente é punido a título de crime (a norma mais densa
absorve a norma menos densa) – art. 20º RGCO.

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Em face de tudo o que foi dito, conclui-se pela existência de pontes privilegiadas de passagem entre o direito penal e
o direito de mera ordenação social, bem como de límpidas clivagens.
As clivagens a que nos referimos traduzem-se, sobretudo, às sanções aplicáveis. De facto, é por se estar perante
sanções estruturalmente diferentes que o orgão aplicador é também ele diverso. Isto sem prejuízo de o recurso da
decisão do orgão administrativo aplicador da coima ser dirigido aos tribunais judiciais.
Quanto às pontes privilegiadas que se estabelecem entre as duas matérias, há que atentar nos seguintes fenómenos:
 Neocriminalização: um comportamento, anteriormente considerado irrelevante para o direito penal, passa a
concstituir crime;
 Descriminalização: uma conduta, tida anteriormente como criminosa, é completamente eliminada do catálogo
das incriminações penais;
 Despenalização: a dignidade de um comportamento censurado sofre uma degradação:
o Despenalização relativa: o legislador diminui os mínimos e os máximos da moldura penal abstrata;
o Despenalização absoluta: a conduta deixa de ser crime e passa a ser uma contra-ordenação.
Uma vez que a relação entre as áreas normativas sobre que nos debruçamos é de especial importância, importa
atentar no papel da Lei Fundamental nesta equação. Um primeiro aspeto a referir prende-se com a reserva de
competência da Assembleia da República na regulação destas matérias. Nos termos do art. 165º/1/c) CRP, é da
competência exclusiva da AR (salvo autorização ao Governo) a definição dos crimes, penas, medidas de segurança e
respetivos pressupostos. Por outro lado, nos termos da alínea d) do mesmo preceito, cabe também à AR a disciplina
do regime geral do direito de mera ordenação social. Ora, se a AR tem competência exclusiva (quer por lei própria,
quer mediante lei de autorização ao Governo) de regular toda a matéria penal, a verdade é que, no âmbito do direito
de mera ordenação social, essa reserva abrange apenas o regime geral. Este regime compreende-se uma vez que o
direito de mera ordenação social, tendo como finalidade a ordenação dos comportamentos úteis à manutenção da
comunidade, pressupõe um grau mínimo de conflitualidade.
Uma questão que se poderia discutir neste contexto é a de saber se a reserva relativa importa pela Constituição
também se aplica aos casos de descriminalização e despenalização. A resposta mais razoável parece-nos ser a resposta
afirmativa: a lei é o único instrumento passível de elevar ou destituir condutas da categoria de crime.
4. Direito penal e processo penal
O processo penal é o conjunto de regras que permitem verificar se, em determinada situação concreta, existiu ou não
a prática de um facto previsto e proibido pela lei penal. Além disto, o processo penal é ainda o modo de fazer aplicar
as penas e as medidas de segurança previamente prescritas pelo direito penal. Este modo, o processo penal configura
o bastião de garantia dos direitos fundamentais e dos próprios valores que o direito penal visa proteger. Como se
compreende, as relações entre direito penal e direito processual penal são, assim, de estreita conexão.
No entanto, as relações estabelecidas entre os dois ramos não devem ser vistas na lógica dos valores finais e
instrumentais: nenhuma das duas áreas tem absoluta primazia em relação à outra. Quer o direito penal, quer o direito
processual penal, têm objetivos e finalidades próprios, desenvolvendo-os através de uma dogmática própria. Contudo,
a afirmação desta autonomia não implica que os diferentes direitos não vivam também em estreita relação. Se é no
âmbito do processo penal que se determinam (1) o facto criminal, (2) o autor do facto e (3) a consequência jurídica, a
verdade é que os dados para esta determinação devem ser buscados no direito penal.
Neste contexto, atentemos nas diferenças entre os dois ramos jurídicos e nos pontos de conexão:
 O ordenamento positivo do direito penal não avança com qualquer noção de crime; ao invés, o CPC apresenta
no seu art. 1º uma noção de crime, para efeitos de aplicação da sua regulação;
 Em regra, as normas de direito processual penal têm natureza adjetiva, enquanto que as normas de direito
penal têm natureza substantiva – isto sem prejuízo de, em determinadas áreas se identificarem normas de
tónica manifestamente mista;
 O direito processual penal é mais sensível às flutuações político-criminais e às modificações constitucionais
(de facto, uma coisa é um direito processual num Estado democrático, outra coisa é um direito processual
num Estado autoritário);
 O direito processual penal concretiza o tão exaltado law in action.
Uma nota importante a ressalvar é a de que, no tempo presente, o direito processual ganha ressonância própria e
específica. Cada vez mais procura-se um equilíbrio entre os valores da segurança e garantia e os interesses de
celeridade processual e eficácia.

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5. Direito penal e direito disciplinar
Tanto o direito penal como o direito disciplinar revestem um caráter sancionatório. Mais ainda, a consequência jurídica
para as infrações penais e para as infrações disciplinares tem um radical comum: a pena – a pena criminal e a pena
disciplinar. Contudo, se a discursividade penal opera entre a vítima, o delinquente e o Estado, no que toca o direito
disciplina a relação é estritamente bipolar, ente o Estado (Administração Pública) e o agente da infração (trabalhador
público). Com efeito, a pena disciplinar visa tão-só reestabelecer o normal funcionamento dos serviços e assegurar o
bom funcionamento da orgânica administrativa. Refira-se que o trabalhador do Estado é, acima de tudo, um cidadão,
cujos direitos fundamentais devem ser respeitados.
O regime geral de punição das infrações disciplinares é também reserva relativa da AR (art. 165º/1/d) CRP), o que
significa que as traves mestras do sustentam o dirieto disciplinar serão sempre edificadas mediante lei.
Noutro prisma, é possível identificar alguns pontos de contacto entre o direito penal e o direito disciplinar:
 Tal como no direito penal, também as infrações disciplinares estão indissociavelmente ligadas aos factos;
 Tanto a responsabilidade penal como a responsabilidade disciplinar só adquire ressonância se for provocada
por uma conduta dolosa ou, no mínimo, negligente;
 O princípio da presunção de inocência tem aplicação tanto no direito penal como direito disciplinar.
No que respeita as diferenças entre as duas áreas normativas, são de apontar as seguintes notas:
 A construção do ilícito disciplinar é lavada a cabo de uma maneira bastante diferente daquela que perpassa
por praticamente toda a construção do ilícito penal: a frabricação da norma disciplinar sancionatória faz-se a
partir da ideia de violação de um dever e origina infrações formais;
 O princípio da tipicidade (exigido pelo princípio da legalidade) não tem a mesma rigidez no âmbito do direito
disciplina da que assume no âmbito do direito penal: o “dever” cuja violação despoleta a responsabilidade
disciplinar é sempre um conceito fexível e de geometria variável;
 Enquanto no direito penal o juízo global de desvalor se baseia em factos praticados, no direito disciplinar os
comportamentos externos à ação podem ter influência direta no preenchimento da infração disciplinar – ao
funcionário do Estado exige-se, não só o cumprimento de deveres funcionais, como também de deveres
atinentes à vida particular, cuja violação afete negativamente a sua função.
Uma importante nota no contexto das relações netre direito disciplinar e direito penal é a de que o dever de
obediência cuja violação se traduz numa infração disciplinar cessa sempre que o cumprimento das ordens ou
instruções implique a prática de qualquer crime – art. 271º/3 CRP e art. 36º/2 CP. O limite ao dever de obediência, no
seio de um Estado de direito democrático, é, então, a prática de um crime, independentemente da sua gravidade.
6. O direito penal e as suas conexões com outras regiões do direito, com a política criminal e com a
criminologia
O direito penal, porque ligado à proteção de valores considerados essenciais em um determinado viver comunitário
histórico-socialmente enquadrado, encontra-se inextricavelmente à regulação normativa dos mais variados aspetos
desse mesmo viver comunitário.
! Dentro da ordem jurídica global, o direito penal ocupa um determinado espaço normativo: ele é antes de tudo direito
público de pórtico constitucional. Com efeito, sendo o direito penal uma manifestação do ius puniendi do Estado,
torna-se evidente a sua inserção no núcelo duro do direito público. Por outro lado, tendo o direito penal uma dimensão
constitutiva do nosso modo-de-ser social, fácil é perceber que a sua refração normativo-positiva não podia deixar de
ter marcas no texto constitucional. O direito penal é, aliás, em si e por si, materialmente constitucional. As Leis
Fundamentais não vêm legitimar o direito penal, mas sim limitar o âmbito do penalmente relevante.
O cerne do direito penal é o poder de punir. Como qualquer poder, também o poder de punir tende a expandir-se, a
tornar-se absoluto. Daí a absoluta necessidade de se encontrarem mecanismos que se oponham legitimamente ao
transbordar do poder de punir. É essa a função dos procedimentos constitucionalmente legitimados nos Estados de
direito democráticos. Para tal reúne-se nas Constituições um conjunto de regras e princípios, os quais conferem aos
cidadãos direitos que visam assumir-se como meios de resistêcia ao poder. Em suma, facilmente se compreende que
a Lei Fundamental integre determinações normativas de expressão penal, uma vez que o direito penal se intromete
diretamente com direitos, liberdades e garantias.
Certo é, no entanto, que o direito penal deve ser também compreendido através de outras perspetivas,
nomeadamente através de disciplinas como a história, a filosofia, a sociologia ou até a psicologia. Tais ângulos de
observação podem, também eles, vir a influenciar o próprio direito penal. De um modo sintético, dir-se-ia que o direito
penal não pode ser pensado isoladamente.

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! Uma importante refração do que vem a ser dito é a teia de relações que se estabelece entre direito penal,
criminologia e política criminal. Atentemos nas relações que se estabelecem entre o direito penal e cada uma destas
áreas do saber:
 Direito penal e criminologia: a criminologia pode ser definida como um conjunto orgânico de conhecimentos,
experimentalmente determinados, sobre o crime, a conduta social negativamente relevante e sobre o
controlo de tal comportamento. No fundo, a criminologia oferece ao direito penal dados empíricos,
introduzindo dinamismo na tendência de estaticidade que carateriza o direito penal. A criminologia faz
emergir correlações estatísticas, as quais exprimem uma tendência, permitindo ao direito penal aperfeiçoar o
a sua disciplina de acordo com a evolução da realidade social. Os dados empíricos obtidos pela criminologia
são valorados por um horizonte político-legislativo (a política criminal) para depois serem vertidos em normas
penais (ou na alteração de normas pré-existentes);
 Direito penal e política criminal: tendo em conta a fragmentariedade que carateriza o direito penal, é certo
que a escolha de proteção de um bem jurídico determina a preterição da tutela de um outro. Deste modo, a
política criminal exprime a exigência de racionalidade instrumental – é o meio pelo qual o Estado conduz a sua
luta contra a criminalidade, fixando as orientações estratégicas a seguir.
A relacionação entre as três áreas a que nos referimos carateriza-se, como já se tornou evidente, pela sua
circularidade. A criminologia serve o direito penal na medida em que a política criminal (a qual se reflete nas escolhas
político-legislativas) se abra aos dados empíricos apresentados por aquela. A política criminal, como elemento
mediador entre a criminologia e o direito penal, assenta substancialmente nos seguintes princípios:
 Princípio da utilização do direito penal como ultima ratio;  Princípio da efetividade;
 Princípio da fragmentariedade;  Princípio da culpa;
 Princípio da proporcionalidade;  Princípio da ofensividade.

Política criminal
Criminologia Direito Penal
Em suma, podemos dizer que a norma de direito penal exprime sempre uma escolha político-criminal, a qual é fundada
numa determinada compreensão da realidade fornecida pelos dados da criminologia.
7. Reflexões sobre a distinção entre direito penal e “ciência do direito penal”
A “ciência do direito penal total” constitui alicerce de conformação do direito penal, sem se confudir com esta último.
A “ciência do direito penal total”, com a caraterística de circularidade atrás demonstrada, apresenta-se como uma
abordagem consolidada e compreensiva das matérias que tocam o crime, o delinquente e a vítima, sem que no seu
seio se disputem posições de primazia/supremacia. Porém, é de sublinhar que o direito penal, inserindo-se neste
quadro mais amplo, não perde a sua individualidade, bem como não a perdem as demais disciplinas referidas.

Capítulo 3 – O âmbito de aplicação do direito penal


1. No tempo
1.1 Algumas reflexões introdutórias
Toda a cultura jurídica ocidental tem-se baseado em uma compreensão do direito em que este se apresenta não só
como uma estrutura duradoura, mas também como condição necessária para que outras estruturas sociais se
afirmassem com um mínimo de duração.
Certo é, porém, que a época dos “grandes códigos”, perpassados pela ideia de perenidade e imutabilidade, foi
substituída pelas chamadas “micro-reformas”. Neste contexto, atualmente, a questão da sucessão de leis no tempo
impõe-se como inescapável para a compreensão da aplicação do direito penal.
De facto, se é certo que o “instantâneo” é um elemento de perturbação dentro da atual hermenêutica jurídica, não é
menos certo que a pressão social, a exigir tempos cada vez mais breves para a decisão judicial, se mostra como
determinante exógena, influenciando também a hermenêutica jurídico-penal.
1.2 O princípio da irretroatividade da lei penal
O princípio da proibição da retroatividade da lei penal, segundo o qual a lei penal não pode aplicar-se a factos
praticados antes da sua entrada em vigor, encontra consagração expressa nos arts. 1º/1 CP e 29º/1 CRP.
O princípio da proibição da retroatividade da lei penal é corolário do princípio da legalidade, pois nos termos deste só
pode ser punido o facto descrito e declarado passível de pena por lei. Esta preocupação garantística do direito penal
conforma o princípio nullum crimen sine lege. Como é evidente, não seria sequer justo penalizar um sujeito que no

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momento da prática do facto atuasse com a consciência, correspondente à realidade do direito positivado, de estar a
praticar um facto lícito. O agente pura e simplesmente não poderia determinar o seu comportamento como lícito ou
ilícito, pois sempre seria passível de punição a posterior.
Será simples de entender que o que temos vindo a dizer aplica-se especificamente aos casos em que a lei penal atue
in malam partem: sempre que a nova lei seja menos favorável – consubstanciando uma criminalização ou um
agravamento qualitativo (contra-ordenação » crime) ou quantitativo (aumento da moldura penal) – não é permitido,
nos termos da constituição e da lei, a sua aplicação retroativa (ex tunc).
1.3 O princípio da aplicação da lei mais favorável
Quando uma alteração penal atua in bonam partem, não se aplicará o princípio da irretroatividade da lei penal por
respeito ao caráter de ultima ratio que deve revestir a aplicação do direito penal: sendo o direito penal uma ordem de
liberdade, destinada a conter o impulso expansivo do poder punitivo do Estado, a alteração da lei em sentido mais
favorável pode ser aplicada a factos praticados previamente. Este princípio encontra consagração nos arts. 2º/2 e 4
do CP e 29º/4 CRP. Uma vez que esta aplicação não é tão linear quanto pode parecer numa primeira aproximação,
atentemos nos diversos problemas que podem ser suscitados:
a) Descriminalização:
Nos termos do nº 2 do art. 2º do CP, havendo descriminalização o facto deixa de ser punível, cessando a execução e
os efeitos penais de uma eventual condenação nos casos em que a sentença tenha já transitado em julgado. O princípio
da aplicação da lei mais favorável tem aqui plena aplicação, pois qualquer facto praticado anteriormente deixa de ser
passível de punição, o que exige, inclusivamente, a cessação imediata dos efeitos de sentenças anteriores.
b) Despenalização:
No âmbito da despenalização, o princípio da aplicação da lei mais favorável repercute-se num resultado diferente.
Quanto à despenalização relativa, dita o art. 2º/4 CP que se aplicará sempre o regime (1) posterior à prática do facto,
que for (2) mais favorável, ressalvando que em caso de condenação transitada em julgado os seus efeitos cessam logo
que haja sido cumprido a parte da pena correspondente ao novo limite máximo de pena. Relativamente à aplicação
deste preceito (art. 2º/4 CP) aos casos de despenalização absoluta (uma conduta identificada como crime
anteriormente passa a constituir apenas uma contra-ordenação), a doutrina não é consensual:
1. Faria Costa: reconhecendo a categoria da despenalização absoluta, o autor entende que se deverá aplicar, tal
como nos casos de despenalização relativa, o art. 2º/4 CP, cumprindo o agente já condenado a parte da pena
correspondente ao novo limite máximo;
2. Figueiredo Dias: uma vez que não reconhece a categoria da despenalização absoluta, entende que a
“despromoção” de uma conduta de crima para contra-ordenação consubstancia uma situação de
descriminalização (há um crime que é eliminado). Consequentemente, terá aplicação o art. 2º/2 CP. Porém,
uma aplicação subsuntiva deste preceito, reconhece o autor, conduziria a situações injustas: o agente seria
libertado imediatamente, não obstante manter-se um juízo de censurabilidade do comportamento. Daí que se
deva proceder a uma aplicação analógica do art. 2º/4 CP;
3. Taipa de Carvalho: considerando que as hipóteses de passagem de uma conduta do âmbito do direito penal
para o direito de mera ordenação social corporizam uma situação de descriminalização, o autor entende dever
proceder-se a uma aplicação estrita do art. 2º/2 CP. Alerta ainda para o facto de a lei que consagra a alteração
proceder à criação de uma nova contra-ordenação, a qual não poderá legitimar a punição do agente uma vez
que não pode ser aplicada retroativamente.
Ainda quanto à questão da despenalização, Faria Costa critica a nova redação do art. 2º/4 do CP, nomeadamente no
que diz respeito ao limite do caso julgado. De facto, ao invés do preceito atual, a anterior lei impunha como limite à
retroatividade da lei mais favorável o caso julgado. Como é bom de ver, este limite servia uma propósito: a salvaguarda
da segurança jurídica, que advém da estabilização de um ato jurisdicional. Ora, desconsiderando o limite do caso
julgado corre-se o risco de estar a permitir uma ofensa ao princípio da separação de poderes: o legislador fixa por
decreto a pena a cumprir pelo agente, uma vez que este irá apenas cumprir a parte da pena correspondente ao novo
limite máximo. Por outro lado, a solução consagrada coloca ainda problemas de justiça material: sujeitos condenados
inicialmente a penas distintas, de acordo com o respetivo grau de culpa, podem acabar por cumprir penas semelhantes
ou mesmo iguais, uma vez que as penas mais elevadas podem ser reduzidas a um novo limite máximo. Nestes casos,
o juízo de culpabilidade efetuado aquando do julgamento fica completamente desprovido de valor.

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
c) Leis intermédias:
As leis intermédias são aquelas cujo período de vigência se situa após a prática do facto e antes da sua apreciação
judicial. De um modo esquemático:
Facto ilícito Lei intermédia Julgamento
Ora, no que respeita estas leis o princípio da aplicação da lei mais favorável encontra plena aplicação: no momento do
julgamento, haverá que averiguarqual das leis posteriores à prática do facto é a mais favorável, independentemente
dessa lei ser intermédia. Portanto, aplicar-se-á a lei (1) posterior à prática do facto, que se mostre (2) mais favorável
ao agente (art. 2º/4 CP). Esta solução explica-se, aliás, com base no seguinte raciocínio: se no momento em que se dá
o julgamento se aplicasse a lei que, estando em vigor nesse momento, é menos favorável que uma lei intermédia que
vigorou entre a prática do facto e esse mesmo julgamento, então, no fundo, estar-se-ia a aplicar retroativamente (ao
momento da prática do facto) uma lei menos favorável (pois antes dela vigorou uma outra lei (intermédia) mais
favorável); ora, como sabemos, é proibida a aplicação retroativa de leis desfavoráveis ao agente.
d) Leis temporárias:
Leis temporárias são leis que são elaboradas para vigorar apenas durante um determinado período de tempo. Tais leis
surgem em virtude de uma determinada circunstância concreta que as motiva: há um estado factual de exceção que
justifica a promulgação destas leis e que, consequentemente, justifica a exceção ao princípio do tratamento mais
favorável. Com efeito, os factos praticados na vigência de uma lei temporária serão sempre julgados com base nessa
mesma lei, e não numa outra lei posterior mais favorável. Isto porque só assim se assegura a prossecução do objetivo
visado com a promulgação da lei.
As leis temporárias podem dizer-se:
 Leis temporárias lato sensu: referem-se a um estado de exeção cuja duração é previamente definida (ex.: leis
que se destinaram a vigoram durante o Euro 2004);
 Leis temporárias stricto sensu (ou leis de emergência): relativas a estados de exceção de duração indefinida,
vigorando enquando esse estado perdurar (ex.: situação de guerra, seca extrema, contaminação venenosa...).
Refira-se que, sucendo várias leis temporárias no tempo, a aplicação de uma delas dependerá da alteração, ou não,
do concreto circunstancialismo: se se der a sua alteração, então aplicar-se-á a lei em vigor no momento da prática do
facto; se o circunstancialismo for o mesmo, então aplicar-se-á a lei temporária mais favorável.
Ora, à parte do que temos vindo a dizer, uma nota importa se impõe agora: o elemento essencial para a correta
aplicação temporal da lei penal é o momento da prática do facto. O art. 3º CP determina que o facto considera-se
praticado momento em que o agente atuou ou devia ter atuado (no caso dos crimes por omissão). Como se
compreende, o momento relevante não é o da verificação do resultado, mas sim o da atuação do agente. Com efeito,
o momento em que se dá a conduta do agente e o momento em que se dá o resultado típico podem não coincidir
temporalmente. É àquele primeiro momento a que se reportam os problemas da sucessão de leis penais no tempo.
1.4 A prescrição
Uma outra forma de relacionação entre o direito penal e o tempo encontra-se no instituto da prescrição. A prescrição
do procedimento criminal não se identifica dogmaticamente com uma causa de exclusão da ilicitude ou da
punibilidade, mas sim com uma causa de “afastamente da punição”. O comportamento criminal só pode ser punido
penalmente até um limite de tempo, embora após esse limite a conduta não deixe de ser ilícita. A exigência de
regulamentação da prescrição assenta numa ideia de paz jurídica de tonalidade social. Noutro prisma, entende-se
ainda que decorrido um certo período de tempo há como que uma diluição da censura comunitária traduzida no juízo
de culpa.
2. No espaço
2.1 Princípios gerais
2.1.1 O princípio da territorialidade
O direito penal saído do cenário iluminista assenta na ideia de que o seu âmbito de eficácia se deve cingir positiva e
negativamente ao território nacional, pertencente ao Estado-nação.
Portanto, o princípio da territorialidade, entre nós consagrado no art. 4º/a) CP, compreende aquelas duas dimensões.
Dimensão positiva Dimensão negativa
Compete ao Estado punir qualquer infração que seja Não compete ao Estado punir infrações praticados fora do
praticado no seu território soberano, independentemente de seu território soberano, mesmo que praticadas pelos seus
quem a pratique. cidadãos.
De entre as razões que justificam a consagração deste princípio na legislação nacional, avultam as duas seguintes:
 Evitar conflitos de competências entre os diversos Estados;

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
 Afirmar a soberania dos Estados na aplicação de valores considerados fundamentais.
Tendo em conta o horizonte histórico em que se edificou este entendimento facilmente se compreende estes dois
motivos. Os Estados afirmavam-se como territórios soberanos, onde se reunia um povo com uma determinada cultura
e língua. Daí que os conflitos que surgissem seriam resolvidos, em última instância, com recurso à guerra. Assim sendo,
o ius puniendi do Estado deveria circunscrever-se ao seu próprio território, relativamente ao qual conseguia prever as
condutas indesejáveis que, por serem previsíveis, deveriam ser proibidas.
! Como é evidente, a aplicação da lei penal no espaço exige, a priori, a aferição do local da prática do facto – locus
delicti. Sobre o local da prática do facto rege o art. 7º CP, nos termos do qual o facto considera-se praticado “tanto no
lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente atuou, ou, no caso de
omissão, devia ter atuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime
se tiver produzido”. Esta solução mista adotada pelo nosso legislador, compreende as seguintes notas:
 O lugar da prática do facto é tanto aquele em que se deu a ação como aquele em que se deu o resultado;
 A aplicação tanto do critério da ação como do critério do resultado depende apenas de uma qualquer
intervenção do sujeito (“sob qualquer forma de comparticipação”);
 O facto considera-se praticado não só no local onde ocorreu completamente o comportamento do agente,
mas também no local onde se deu parte da conduta punível (“total ou parcialmente);
 O critério do resultado aplica-se quer quanto aos resultados típicos como aos resultados não compreendidos
em qualquer tipo de crime;
 O critério legal abrange ainda os crimes por omissão (aquelas hipóteses em que o agente deveria ter atuado
para evitar um certo resultado desvalioso).
O princípio da territorialidade, que temos vindo a analisar, encontra uma extensão na alínea b) do art. 4º CP: a lei
portuguesa é ainda aplicável aos factos praticados a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, independente do
local onde tais navios ou aeronaves se encontrem. Trata-se aqui do critério do pavilhão.
2.1.2 Os princípios complementares
O princípio da territorialidade, como atrás foi descrito, tem vindo a ser temperado por outros princípios, os quais
encontram hoje expressa consagração legal. No fundo, os princípios complementares elencados na lei aplicar-se-ão
sempre que o facto ilícito não tenha sido praticado em território nacional, mas o Estado português entenda que a sua
jurisdição deve ser estendida. Esquematicamente, falamos do seguinte:
Art. 7º CP: local da prática do facto (locus delicti)
Território nacional Fora do território nacional
Aplicação do princípio da territorialidade Possível aplicação dos princípios complementares
Art. 4º CP Art. 5º CP
 Princípio da nacionalidade – als. e) e b)
 Princípio da defesa dos interesses nacionais – al. a)
 Princípio da universalidade – als. c) e d)
 Princípio da administração supletiva da justiça penal – al. f)
Como é evidente, estando em causa um facto praticado em território nacional, a lei aplicável será necessariamente a
lei penal portuguesa. No caso de factos praticados fora do território nacional aos quais se aplique um dos princípios
completamentes, há que recorrer ao art. 6º CP para averiguar qual a lei penal aplicável.
a) Princípio da nacionalidade:
O princípio da nacionalidade constante do art. 5º/1/e) CP, como o próprip nome indica, determina que a jurisdição
dos tribunais penais portuguesas se extende a factos cometidos fora do território nacional por portugueses (princípio
da nacionalidade ativa) ou contra portugueses (princípio da nacionalidade passiva). Para que este princípio encontre
aplicação, a lei estabelece três condições:
i. Agente seja encontrado em Portugal;
ii. Dupla incriminação: os factos praticados devem ser puníveis tanto pela legislação nacional como pela
legislação do lugar em que foram praticados;
iii. Crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou ser decidida a não entrega do agente em
execução de mandato de detenção europeu [sobre a estradição, vide art. 33º CRP – infra: Cap. 3, 2.2].
No art. 5º/1/b) CP encontra-se uma outra refração do princípio da nacionalidade – o designado princípio da
nacionalidade atípica ou cumulativa. Este princípio aplica-se aos crimes praticados por portugues contra portugueses
(portanto, em que tanto a vítima como o autor são portugueses), que vivam habitualmente em Portugal. Ora, este

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princípio pretendeu atender à “migração criminal”: cidadãos portugueses, residentes em Portugal, viajam para outro
país para aí praticar um facto que, consubstanciando crime à luz da lei penal portuguesa, não é crime nesse outro país.
b) Princípio da defesa dos interesses nacionais:
O art. 5º/1/a) CP visa a defesa de bens jurídicos que representam interesses nacionais do Estado português. De facto,
os tipos legais que protegem estes bens jurídicos (arts. 221º, 262º a 271º, 308º a 321º, 325º a 345º CP) integram
sempre a jurisdição dos tribunais portugueses, independentemente do local da prática do facto e da nacionalidade do
agente em concreto.
c) Princípio da universalidade:
O princípio constante do art. 5º/1/c) CP é corolário do reconhecimento, na comunidade internacional, da
supranacionalidade de certos bens jurídicos, a qual determina que os atos ofensivos de tais bens devam sempre ser
punidos, procurando-se evitar conflitos negativos de competência. A aplicação deste princípio depende, mais uma
vez, da verificação dos requisitos previstos na lei:
i. Agente encontrado em Portugal;
ii. Não ser possível a extradição ou entrega do agente.
O art. 5º/1/d) CP alarga o âmbito do princípio da universalidade a um outro conjunto de crimes (arts. 144º-A, 154º-B,
154º-C, 159º a 161º, 171º, 172º, 175º, 278º a 280º CP), desde que, além daqueles dois requisitos gerais, se verifique
também um terceiro requisito: (iii) a menoridade da vítima.
d) Princípio da aplicação supletiva da justiça penal:
O princípio elencado no art. 5º/1/f) CP destina-se, fundamentalmente, a suprir eventuais lacunas da lei. Assim, são
puníveis em Portugal os factos praticados por estrangeiros desde que:
i. O agente seja encontrado em Portugal;
ii. O crime admita extradição mas ela não possa ser concedida ou tenha sido decidida a não entrega do agente.
Refira-se, a títula de nota, que o art. 5º/1/g) CP consagra ainda um princípio de aplicação da lei penal portuguesa a
factos praticados por pessoas coletivas ou contra pessoas coletivas com sede em território nacional.
2.2 A extradição
A extradição é “o facto pelo qual um Governo remete um indivíduo que se refugiou no seu território ao Governo de
outro Estado para que ele aí seja julgado, pelos respetivos tribunais, ou, quando aí já tenha sido julgado, para cumprir
a pena que lhe foi aplicada” (CORREIRA, Eduardo). Como é evidente, este princípio é uma forma de afirmação da
prevalência do princípio da territorialidade sobre o princípio da nacionalidade, no que respeita à aplicação da lei penal
no espaço. Algumas notas devem ser fixadas quanto a este instituto:
 A generalidade dos ilícitos penais admite extradição, excluindo-se tão-só os crimes políticos ou militares que
não sejam simultaneamente previstos na lei penal comum;
 Pode suceder que o crime admita extradição, mas esta não possa ser concedida. Para tal podem concorrer
diversas razões, nomeadamente aquelas elencadas no art. 33º CRP:
 Proibição genérica da extradição de nacionais;
 Proibição de extradição em caso de crimes políticos ou aos quais corrsponda, segundo o Direito do
Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível para a integridade física;
 Poribição de extradição se o Estado requisitante não oferecer garantias de que não aplicará pena ou
medida de segurança com caráter perpétuo ou duração indefinida.
No âmbito da extradição, merecem destaque alguns princípios modeladores do conteúdo do instituto. Desde logo, o
princípio da dupla incriminação, já acima referido [vide supra, Cap. 3, 2.1.2, a)]. De acordo com o disposto no art. 31º/2
da Lei da Cooperação Judiciária internacional, só é possível a entrega de pessoa reclamada no caso do crime ser
punível, simultaneamente, pela lei portuguesa e pela lei do Estado requerente com pena de duração máxima não
inferior a 1 ano. O princípio da dupla incriminação pode ser apreciado de duas formas:
 Apreciação in abstracto: verificar se os factos cobertos pela qualificação contida na decisão estrangeira
correspondem a uma qualificação prevista no direito do Estado de execução;
 Apreciação in concreto: além do facto constituir uma infração, exige-se ainda que o autor seja punível tanto
no Estado requerente como no Estado de execução.
Outro dos princípios que dominam esta matéria é o princípio da especialidade: a pessoa relativamente à qual é
solicitada a extradição não pode vir a ser perseguida por motivo anterior à sua entrega que seja diverso daquele que
fundamenta o pedido de extradição (art. 16º LCJI).
2.3 Novos instrumentos de aplicação da lei penal

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No âmbito da UE assite-se ao surgimento de novos instrumentos de aplicação da lei penal. Exemplo paradigmático do
que afirmamos é o mandato de detenção europeu, o qual consiste, em termos genéricos, nuam forma simplificada de
extradição. Nos termos do art. 1º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, o mandato de detenção europeu é “uma decisão
judiciária emitida por um Estado-membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa
procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança
privativas da liberdade”. A especifidade deste instrumento reside na circunstância de a sua execução assentar no
princípio do reconhecimento mútuo: relativamente a certos crimes, dispensa-se o controlo da dupla incriminação. Esta
dispensa justifica-se exatamente porque aquele princípio assenta na ideia de que as autoridades de um Estado devem
aceitar reconhecer às decisões estrangeiras os mesmos efeitos que reconhecem às decisões nacionais. Está em causa,
no fundo, uma ideia de confiança mútua, que deve vigorar no seio da UE. A tendência europeia é a de criar um “espaço
penal europeu”, mediante a criação de um catálogo de “crimes europeus”.
2.4 O Tribunal Penal Internacional
O TPI constitui uma aspiração constante da comunidade internacional no sentido de impôr a justiça como bem que
deve ser defendido de maneira tão forte e veemente como as “muralhas da cidade”. Daí que a institucionalização do
TPI não possa ser vista senão como um passo em frente, como instância que pode ser sancionadora dos mais graves
atentados às pessoas concretas de carne e osso mas também às suas representações enquanto agregados
comunitários com um cultura, uma língua e um património espiritual comuns. O TPI assume, sem dúvida, uma
dimensão comunitária, só podendo, no entanto, julgar por via subsidiária (nos casos em que as jurisdições
competentes não queiram ou não possam julgar os factos em questão). Assim, o TPI assume-se como guardião daquele
lado dos direitos fundamentais que se concretiza em bens jurídicos supra-individuais.
Ainda que todos estes aspetos sejam de saudar, a verdade é que a realidade do TPI não é tão “glamorosa”. Com efeito,
alguns dos mais poderosos países da cena mundial não chegaram sequer a assinar ou ratificar o Estatuto de Roma, por
colocarem num plano mais elevado outros interesses não coincidentes com os da justiça. Daqui resulta existir uma
justiça para os grandes e poderosos e outra a que apenas os mais pequenos se têm de sujeitar. Ora, de que vale criar
um tribunal para punir crimes de guerra e crimes contra a humanidade quando os países mais poderosos, e por isso
também aqueles que se assumem como potências nucleares e não só, não se sujeitam à sua jurisdição? Neste
contexto, é absurdo querer legitimar todas as ausências referidas através da discursividade fácil de que só pelo facto
de o TPI existir há já avanço civilizacional. O pensamento crítico tem de estar atento, e não se deixar seduzir pela ideia
mágica de um tribunal com jurisdição internacional que, na verdade, não existe.
3. Quanto às pessoas
3.1 O princípio da igualdade dos cidadãos
A regra geral no direito penal português é a sua aplicação a todos os cidadãos, em respeito pelo princípio da igualdade
consagrado no art. 13º da Lei Fundamental. No entanto, existem exceções a esta regra, as quais visam a salvaguarda
de outros valores, também eles constitucionalmente alicerçados.
3.2 Casos de exceção
3.2.1 Diplomatas
Na tradição diplomática internacional, o exercício de funções de representação de um Estado ou Organização
Internacional no estrangeiro confere, ao pessoal diplomático, um regime de proteção e isenção especiais,
comummente designado de “estatuto diplomático”. O “estatuto diplomático” decorre, fundamentalmente, de duas
convenções internacionais: a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e a Convenção de Viena sobre
Relações Consulares. Nos termos daquela primeira convenção, o agente diplomático goza de imunidade de jurisdição
penal do Estado acreditador, o que não significa que esteja isento da jurisdição do Estado acreditante. Pretende-se,
deste modo, garantir um desempenho eficaz das funções das missões diplomáticas – os Estados não deverão julgar os
representantes de outros Estados quando estes se encontram no exercício de funções de representação.
Importante é, portanto, reter que não há aqui um desvio ao princípio da igualdade, mas tão-só uma forma distinta de
exercício da justiça penal.
3.2.2 Titulares de cargos políticos
As diferenças relativamente ao regime geral que se apontam neste âmbito são relativas àqueles que exerçam os cargos
de Presidente da República, Deputado e membros do Governo:
 Presidente da República: sujeito a um regime dual:
 Goza de imunidade temporária (até ao termo do mandato) pela prática de crimes estranhos ao
exercício das suas funções – art. 130º/4 CRP;

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 Responde imediatamente por crimes praticados no exercício das suas funções (podendo ser destituído
do cargo e ver impossibilitada a sua reelição) – art. 130º/1 a 3 CRP.
 Deputados: dispõem das chamadas “imunidades parlamentares” – art. 157º CRP. As imunidades a que nos
referimos têm razão de ser na preservação da própria função de deputado – é condição do regime
democrático que exista um espaço de absoluta liberdade de expressão onde se debatam as ideias dos
representantes (o Parlamento). É nesta linha que se justifica a ideia de “irresponsabilidade” pelas opinições
que os parlamentares expressem no uso exclusivo1 e nos limites legítimos2 das suas funções. Como se
compreende, as imunidades parlamentares são, então, imunidades funcionais (têm como objetivo
salvaguardar a independência do Parlamento). Importa, neste contexto, fixar o que se entende por:
1. Uso exclusivo das suas funções: a opinião emitida não deve afastar-se das funções parlamentares,
devendo inserir-se no núcleo essencial dessas funções (daí que em caso de dúvida se deva dar
preferência ao regime geral);
2. Legítimos limites da função parlamentar: a função parlamentar em sentido estrito desenvolve-se em
dois eixos: (a) as imunidades valem de igual forma para todos os deputados (“igualdade de exceção”);
(b) no confronto entre deputados e demais cidadãos valem as regras gerais da liberdade de expressão.
 Membros do Governo: o art. 196º CRP estabelece condições de procedibilidade do processo criminal,
isto é, a fixa determinados requisitos formais para que os membros do Governos sejam
responsabilizados, de modo a salvaguardar a dignidade da instituição.

Capítulo 4 – As fontes do Direito Penal


1. A Lei Fundamental
1.1 Como imposição ou proibição de criminalização
A Constituição, enquanto formalmente legitimadora do ordenamento infraconstitucional que o direito penal
representa, assume-se como fonte de direito penal.
Algumas disposições da Lei Fundamental constituem afloramentos normativo-constitucionais que condensam
eventuais ordens de legislar jurídico-penalmente relevantes. Exemplo paradigmático é o art. 117º/3 CRP, que impõe
ao legislador a criminalização de certo tipo de condutas que se prendem com a responsabilidade dos titulares de
cargos políticos. Noutro prisma, o art. 29º/1 CRP impõe ao legislador a proibição de criminalização de factos ilícitos
com base numa lei posterior. Concluímos, portanto, pela consagração constitucional tanto de imposições como de
proibições de criminalização.
1.2 Como impulso de criminalização
A Constituição contém ainda algumas vinculações “implícitas”, como é possível detetar no art. 37º/3: o legislador
constitucional refere a submissão das infrações à liberdade de expressão e informação aos princípios gerais do direito
criminal. Consequentemente, tais infrações não podem ser descriminalizadas.
1.3 Como limite à criminalização
De um modo geral, a lei penal tem como limite a Constituição na medida em que não pode ser contrária ao texto
constitucional. Mas o verdadeiro limite constitucional à criminalização reside nos direitos, liberdades e garantias. Nos
termos do art. 18º/2 CRP, os direitos, liberdades e garantias só podem ser restritos na medida do necessário para
salvaguardar outros direitos, liberdades e garantias. Nestes termos, a intervenção penal deve respeitar apenas a bens
jurídicos constitucionais e limitar-se ao necessário para a proteção desses bens.
2. A lei em sentido estrito
2.1 A reserva de lei
O direito penal português está vinculado ao princípio constitucional nullun crimen sine lege, nulla poena sine lege – o
princípio da legalidade (art. 1º CP). No plano das fontes do direito penal tal princípio vem traduzir-se em uma reserva
de lei, imposta pelo art. 165º/1/c) CRP. Esta reserva encerra três vertentes:
1. Reserva relativa de competência da Assembleia da República;
2. Proibição de intervenção normativa de regulamentos;
3. Exclusão do direito conseutudinário como fonte de definição de crimes ou punição penal.
Esta reserva de competência da AR representa um corolário da separação de poderes, já que caberá ao poder
jurisdicional a condução da atividade repressiva do Estado. Uma importante nota a sublinhar é a de que a exigência
de lei formal impende, não só sobre a criminalização, mas também sobre a descriminalização de condutas. De facto,
na competência para definir crimes está, necessariamente, implícita a competência para descriminalizar.

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
Quanto à proibição da intervenção normativa de regulamentos, a ideia a reter é a de que apenas a lei pode determinar
a responsabilidade criminal. Neste contexto, poderão colocar-se algumas questões quanto às normas penais em
branco (normas que convocam uma lei ou disposição que não se encontre inserida no ordenamento jurídico-penal
para delimitar a responsabilidade penal). Entende-se que não há uma ofensa ao princípio da reserva de lei se a norma
penal em branco, que envia para outro ordenamento, revestir a forma de lei e for suficientemente determinada (a
norma para a qual se remete não pode definir crimes ou penas).
Por último, o afastamento do costume com fonte de direito penal é consequência lógica da reserva de lei. De facto, o
costume carateriza-se por uma indeterminabilidade que não é sustentável tendo em conta a função de garantia do
direito penal. Não obstante, o costume poderá relevar como meio de densificação do conteúdo de certos conceitos.
3. O direito europeu
3.1 As diretivas
O art. 8º CRP estabelece que o direito internacional faz parte integrante do direito português, vigorando na ordem
interna. Consequentemente, os instrumentos internacionais com índole criminal deverão também constituir fonte de
direito penal. Deste modo, também o direito europeu será fonte de direito penal.
No que respeita as diretivas, a sua legitimidade como fontes de direito penal, no âmbito do respeito pelo princípio da
legalidade, depende da forma da lei de transposição: sendo estes instrumentos que carecem de transposição para a
ordem jurídica interna, exige-se que o diploma que os faz transpôr deverá revestir a forma de lei. Já os regulamentos
europeus, sendo diretamente aplicáveis nas ordens internas dos Estados-membros, não poderão constituir fonte de
direito penal, por ofensa ao princípio da separação de poderes, a qual, como violação de um princípio estruturante do
Estado de direito, obsta à vigência interna daqueles instrumentos comunitários (art. 8º/4 CRP).

Capítulo 5 – A interpretação em Direito Penal


1. Alguns pontos de uma hermenêutica penal e a linha metodológica interpretativa
A pedra de toque da interpretação em direito penal está ancorada no pensamento teleológico: se o direito penal é um
direito de proteção de bens jurídicos, então a interpretação tem que ter como finalidade, justamente, a defesa daquele
preciso e concreto bem jurídico que a nomra incriminadora quer proteger. Segundo este entendimento, não há uma
-interpretação geral e abstrata que cubra todo o direito penal, o que existe são interpretações dos vários crimes.
Com o pressuposto de que a interpretação em direito penal se desenvolve ancorada em um pensamento teleológico,
importa demonstrar os passos essenciais para se atingir o conteúdo da norma, o seu sentido incriminadore e o seu
âmbito de proteção – a linha metodológica interpretativa.
1. Importa, desde logo, contextualizar normativamente o tipo legal de crime em causa. Isto porque, ainda que a
norma incriminadores valha por si só, a verdade é que ela só adquire significado no âmbito das relações intra-
sistemáticas em que se insere.
2. Esta contextualização normativa não poderá, como é evidente, esquecer o referente constitucional. A sua
consideração assenta em duas vertentes específicas:
 O princípio material da legalidade (art. 29º/1 CRP);
 Consonância das normas incriminadores com os princípios constitucionais, em geral: a CRP é o limite
material intransponível de qualquer norma incriminadora, pelo que a interpretação e aprofundamento
das normas penais deve ser feito em conformidade com os valores constitucionais.
3. Na interpretação da norma penal deverá ainda verificar-se adequação ao sentido histórico: ir procurar o
sentido da norma ao passado só tem sentido se tivermos em mente que esse passado é sempre compreendido
à luz do presente – o intérprete da norma não pode deixar de ser intérprete do modo de ver, de sentir e de
valorar do seu tempo.
4. A interpretação que o direito penal exige tem de ter um enquadramento em uma solução justa: a
interpretação nasce sempre da interprelação de um caso concreto que necessita de solução, pelo que se
traduz também numa aplicação da norma penal interpretada. Deste modo, a interpretação, que é aplicação,
tem de buscar a solução mais justa (no contexto da certeza do direito, da segurança jurídica e da equidade).
2. O problema da analogia
! No campo do direito penal erige-se como regra a proibição da analogia. De facto, se o direito penal tem natureza
fragmentária é absolutamente consequente proibir que os espaços de não incriminação (deixados livres
propositamente pelo legislador) possam ser preenchidos por um qualquer juízo de natureza analógica. Permitir este

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processo traduzir-se-ia numa violação manifesta ao princípio da legalidade: só ao legislador compete desenhar o
programa político-criminal, não podendo o intérprete vir preencher espaços deixados abertos por aquele primeiro.
A este aspeto há que acrescentar um outro: a norma incriminadora deve ser sempre interpretada restritivamente.
A proibição da analogia decorre expressamente do art. 1º/3 CP. Porém, esta proibição não deve ser entendida de
forma linear e absoluta. De facto, uma absolutização conduziria à contradição com os alicerces do próprio direito
penal. A norma de proibição pretende, efetivamente, impedir que a interpretação da norma incriminadora possa ser
feita com um tal sentido que se manifeste contra o agente. Consequentemente parece ser admissível o recurso à
analogia nas situações em que esta atue in bonam partem. Nestes casos, em que a analogia funciona a favor do agente,
deixa de existir a preocupação de preservar a liberdade em face da tendência expansiva do poder punitivo do Estado.
Recordemos a velha máxima: in dubio, pro libertate. No entanto, ainda que assim seja, é sempre de sublinhar que esta
operação deve revestir caráter excecional: o recurso à analogia, mesmo em relação a normas excludentes (e não
incriminadoras), só deve ter lugar quando houver dúvida séria e firme sobre o sentido jurídico da norma. Como é
evidente, não pode o agente criar a dúvida para depois chegar a um resultado que havia já prefigurado.
Em suma, a proibição da analogia vale para os tipos legais de crime e para as consequências jurídicas do crime quando
opere in malem partem. Ao invés, no contexto de um direito penal que se assume como ordem de liberdade, a analogia
que venha a operar a favor do réu deve ser admitida.
3. O “texto-norma” e a “norma-texto”
Uma ideia a ter presente no contexto desta temática é a de que a interpretação jurídico-penal, tal como qualquer
outra interpretação, só é possível se estiverem reunidas as condições da sua admissibilidade. Quanto à interpretação
das normas jurídico-penais, há que distinguir duas realidades:
 “Texto-norma”: aquilo que se apresenta ao intérprete como a letra da lei (a palavra do legislador).
Deve ser automaticamente apreensível, devendo o legislador recorrer a linguagem clara.
 “Norma-texto”: significado ínsito à letra da lei, não lhe correspondendo em termos literais.
Corresponde, no fundo, a uma valoração axiológica traduzível numa proibição legal.
No fundo, é a ratio da norma – aquilo que se pretende que o intérprete obtenha mediante interpretação.

Capítulo 6 – A história do Direito Penal


1. Considerações iniciais
O direito penal, tal como o conhecemos, deve ser capturado na sua historicidade e na sua representação de modelação
social. Com efeito, o direito penal, significando a proteção dos valores considerados fundamentais em cada contexto
histórico, mas também um poder repressivo, reflete o equilíbrio das instituições políticas de cada momento com a
sociedade em que se inserem.
! Em suma, a finalidade do direito penal realiza-se na justiça penal historicamente situada.
Numa primeira aproximação a esta problemática, convém efetuar um excurso pela evolução da compreensão do
fenómeno da paz jurídica, já que este é um conceito de importância capital.
1. Época Clássica: a paz era entendida de forma distinta, consoante se refira ao mundo grego ou romano:
 Mundo grego: a paz era entendida como um estádio que seria a condição fundante para a prossecução
de outros valores. Portanto, a paz não era vista como um valor em si mesma, mas antes como o
conteúdo de um período de paz, que permitia a realização de outros valores fundamentais.
 Mundo romano: a paz era entendida como um valor tão absoluta que se justifica o recurso às armas
para proteger a sua manutenção. De facto, desejava-se que sob o império romano reinar a pax romana.
Esta paz era compreendida como um status quo, a nível interno, e como compressão dos valores das
comunidades subjugadas, a nível externo.
2. Idade Média: com a queda do império romano, as comunidades e povos agora independentes vieram erigir a
manutenção da sua autonomia no conceito de paz. O conceito de “paz medieval” é, fundamentalmente,
influenciado pela paz germânica. A paz germânica, no seu sentido técnico, compreendia duas dimensões: (a)
a paz imposta e (b) a paz que é fruto de um acordo. Nestes termos, por um lado a paz correspondia a uma
determinada situação económico-social, e por outro, assumia-se como instituto protetor dos bens jurídicos
fundamentais. No fundo, se, materialmente, a paz se identificava com uma situação de justiça concreta que
pretendia evitar o surgimento de conflitos, formalmente, a paz era fruto da concórdia. Todo este panorama
se explica à luz dos laços de vassalagem que ligavam as pessoas na época medieval: o nexo entre o senhor e o
vassalo, fruto de uma união de vontades, fazia surgir um conjunto de rígidos deveres éticos.

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
A esta complexa realidade material há que juntar ainda o pensamento cristão: um setor eclesiástico vem
teorizar a paz de um ponto de vista estritamente religioso, identificando-a com o homólogo valor terreno.
Estaria em causa um elemento moderador, destinado à resolução de conflitos. Com a influência que a religião
assume no espectro político nesta época, o conceito de paz vem assumir-se como limitação ao instituto da
vingança privada, concorrendo para a publicização da justiça.
É neste contexto que surge o instituto da “perda de paz”.
Aquele que quebrasse o estado de paz que vigorava, não só seria expulso da comunidade, como passaria a
estar sujeito à possibilidade de qualquer vizinho exercer legitimamente a justiça privada contra si.
3. Idade Moderna (Iluminismo): a ideia de paz vem-se assumindo como bem coletivo sentido na dimensão
individual. Se na Idade Média este conceito ganha uma dimensão puramente comunitária – aquele que ofende
outrem viola a paz uma vez que perturba os valores sociais fundamentais – é com o iluminismo que esse
entendimento comunitário adquire também uma dimensão individual.
4. Idade Contemporânea: na linha da evolução que se fez sentir com as ideias iluministas, podemos definir o
conteúdo atual da paz jurídica como um sentimento de segurança simultaneamente individual e comunitário
e como expetativa de que a vida comunitária se apresenta possível desde que se expresse em um mínimo de
estabilidade (a qual deve ser interiorizada pela consciência comunitária).
2. A história do Direito Penal no contexto da história universal
2.1 Os grandes períodos da história universal e a sua relação com a evolução do direito penal
1. Época Clássica (Direito Romano): a área criminal encontrava-se, durante este período, dividida entre delitos
públicos e delitos privados. As ofensas tidas como públicas eram aquelas que se referiam aos comportamentos
contra a ordem pública ou social, sendo as privadas as que se relacionavam com os comportamentos
interpressoais. Nesta altura o poder publico não interferia ainda na esfera das relações pessoais.
2. Idade Média: ao longo deste período histórico, há que separar dois momentos:
a. Alta Idade Média: estando este período marcada por uma profunda instabilidade política, social e
económica, surge um sentimento de insegurança comunitária, nomeadamente uma insegurança
relativa às instituições. A falta de uma autoridade pública forte acabava por entregar a realização da
justiça aos membros da comunidade. Estamos num período em que vigorava o sistema da vingança
privada. Com base numa ideia de proteção entre os membros da família, como a desenvolver-se a
ideia de solidariedade entre os membros da família. Noutro prisma, a Lei de Talião (“olho por olho,
dente por dentre”) vem afirmar uma importante ideia: a vingança não pode exceder o mal causado
pelo agente/delinquente.
b. Baixa Idade Média: num contexto de reforço das instituições políticas e do poder público, é
descoberto e estudado o direito romano-justinianeu e começa a afirmar-se a composição pecuniária
da pena. Com a instituição do poder absoluto do rei, assiste-se à publicização do direito penal e
concentração do poder punitivo no monarca. As penas passam a prosseguir primacialmente um
objetivo de “prevenção geral de intimidação”.
3. Época Moderna (Iluminismo): representando o iluminismo um momento de viragem política, económica e
cultural no mundo ocidental, é aí que o direito penal moderno vai buscar os seus alicerces, dizendo-se ainda
hoje que temos um direito penal de matriz liberal. Nascem, nesta contexto, o princípio da humanidade das
penas e o princípio da legalidade (cuja afirmação se deve, em muito, a Beccaria, na sua obra “Dos Delitos e
das Penas”). Esta nova conceção das coisas assenta na ideia de contrato social (desenvolvida por Rosseau e
Hobbes), segundo a qual o poder público encontrava-se legitimado por todos os cidadãos.
Consequentemente, a compressão da liberdade só seria admissível se em prossecução das legítimas
exigências da sociedade como um todo. Um outro contributo crucial foi o de Feuerbach, considerado o pai do
moderno direito penal alemão. A ele se deve a sistematização do primeiro modelo de Código Penal moderno,
bem como a afirmação do brocado nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege.
4. Época Contemporânea: a conceção dos clássicos vem posteriormente a ser posta em causa pela Escola
Positivista (finais do séc.XIX – início do séc. XX), a qual se destaca por ter trazido nova atenção sobre as
questões da imputabilidade e da perigosidade do agente. Este facto foi como que o ponto de partida para a
Escola Moderna, fundada por Liszt, a qual veio defender a adequação das penas à perigosidade do agente.
3. A história do Direito Penal português
A evolução do direito penal português pode efetuar-se em três grandes fases:

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1. Do alvor da nacionalidade até às Ordenações: têm, durante este período, suma importância o Código
Visigótico e as primeiras leis promulgadas pelos nossos primeiros monarcas. O Código Visigótico, cuja
influência se fez sentir sobretudo nos anos precedentes à formação da Nação, não se mostrava favorável a
formas de vingança privada, ao contrário da tendência à época. Porém, com a reconquistã cristã nos primeiros
anos de formação da nação portuguesa, ganhavam relevo os costumes locais, que vêm privilegiar as
instituições penais primitivas do direito germânico. Com a promulgação das leis penais gerais por D. Afonso II
assiste-se a uma tendência para o afastamento da justiça e vingança privadas e para a consequente instituição
de um poder penal público. As formas primitivas de justiça vão sendo afastadas, com a promulgação de novas
leis penas, nomeadamente por D. Dinis e D. Afonso IV (o qual decreta, pela primeira vez, a proibição de
qualquer exercício de justiça que não fosse levado a cabo por tribunais). É no reinado deste último que nascem
as Ordenações Afonsinas, cujo Livro V continha inúmeras leis referentes ao direito e processo penais. Ainda
que as Ordenação tenham representado um importante avanço, as penas aí fixadas eram ainda desumanas e
cruéis, ou desproporcionados ao crime, ou ainda desiguais em função do réu.
2. Das Ordenações ao Código Penal de 1852: a forte influência do iluminismo que se fez sentir em Portugal nesta
época proporcionou uma reforma da legislação penal. A primeira manifestação dos ideais iluministas é
corporizada pelo Projeto de Código Criminal de Pascoal se Melo Freire, o qual revela fortes traços do
pensamento de Beccaria. No entanto, este projeto acabou por nunca ser publicado devido à falta de apoio da
monarquia portuguesa aos ideais iluministas. O movimento iluminista viria a surtir efeitos já com o
constitucionalismo, nomeadamente aquando da elaboração da Constituição de 1822. O advento do
constitucionalismo veio, de facto, garantir a humanização do nosso direito penal. O primeiro Código Penal
português vem a ser aprovado em 1852, operando uma rutura com o direito anterior.
3. Do Código Penal de 1852 aos dias de hoje: o CP de 1852 resultou do trabalho de uma comissão especialmente
criada para o efeito. A sistematização utilizada vem colmatar uma das principais fragilidades dos modelos
anteriores, instroduzindo uma Parte Geral e uma Parte Especial. No entanto, este código encerrava ainda
muitas debilidades, sendo elaborados diversos projetos de reforma. Ainda que tenham surgido algumas
alterações (designadamente, a abolição da pena de morte em 1867), o CP de 1852 vigora até à decada de 80
do séc. XIX. É em 1886 que nasce o novo CP, o qual, infelizmente, não fez jus ao progresso da doutrina que a
Reforma de 1884, que lhe deu origem, fazia transparecer. Este código foi objeto de largas alterações, até a
aprovação do CP de 1982, o qual resulta fundamentalmente do Projeto de Eduardo Correia. Em 1995 dá-se
uma sua grande revisão, à qual se suceram inúmeras alterações pontuais nos anos seguintes.

Título II – A doutrina geral da infração penal


Capítulo 7 – A ordenação fundamental da conduta (facto) punível
1. O princípio da ofensividade
“A ofensa a um bem jurídico é a chave que permite a intervenção do detentor do ius puniendi (Estado),
enquanto única entidade suscetível de cominar, legitimamente, penas criminais.”
De acordo com o princípio nullum crimen sine iniuria, ou princípio da ofensividade, terá de existir, ao menos, um
perigo de lesão de um bem jurídico para que se deva encontrar legitimada a intervenção do Estado.
O homem, ao abrir-se para com o outro, porque também só dessa forma se pode rever como pessoa, vive um conjunto
de valores que permitem a existência do próprio ser comunitário. Portanto, a vida em comunidade só é possível se os
valores despertados pelas relações intersubjetivas essenciais à autodeterminação de cada um não forem ofendidos.
Donde decorre que a ofensa a um desses valores essenciais constitua uma ofensa a um pressuposto da própria
afirmação do ser humano como indivíduo e como comunidade. O agir comunicacional (a interação entre os homens)
só é possível porque se opera em um campo axiologicamente denso.
Em termos jurídico-penais, se um bem (correspondente a um valor axiológico vigente na comunidade) é atingido na
sua estrutura nuclear ou até na sua específica intencionalidade jurídico-normativa, dá-se, para todos os efeitos, uma
ofensa ao bem jurídico em causa. Como é evidente, o 1º patamar da ofensividade corresponde à designada
“nadificação”: total aniquilamento do bem jurídico (ex.: morte – aniquilamento do bem jurídico “vida”). Refira-se que,
evidentemente, o 1º patamar de ofensividade dos bens jurídicos imaterais (ex.: honra) não poderá consistir na
nadificação, pois não há um corpus que possa ser destruído. No que diz respeito ao 2º patamar da ofensividade,
entendemos estarem em causa as hipóteses de colocação, concreta, de um bem jurídico em perigo: situações em que
se verifica o incumprimento da jurídico-normativa intencionalidade do bem por mor de uma ação humana. Por fim, o

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3º patamar da ofensividade corresponderá aos chamados crimes de perigo abstrato: casos em que o bem jurídico não
é posto em perigo imediatamente, mas tão-só de uma forma reflexa/implícita (ex.: crime de propagando do suicídio).
1.1 Relação com o bem jurídico
! O bem jurídico-penal é um pedaço da realidade com densidade axiológica a que a ordem jurídico-penal atribui
dignidade penal. A noção de bem jurídico só ganhou autonomia nos princípios do séc. XIX, tendo sido introduzida por
Birnbaum. O que a noção de bem jurídico trouxe à dogmática penal foi, entre outras coisas, a possibilidade de se
compreender o que mudava e o que permanecia. Com efeito, podemos afirmar, talvez com pequeníssima margem de
erro, que o emprego da categoria de bem jurídico permitiu que se passasse a distinguir o acessório do essencial. Por
exemplo, independentemente do instrumento que o legislador emprega para o proteger, o certo é que o bem jurídico
vida tem dignidade jurídico-penal, que permaneceu ao longo dos tempos.
O bem jurídico deve ser entendido do ponto de vista da relação que se estalebece entre a pessoa humana e o próprio
objeto da valoração. Daí que o critério de divisão dos bens jurídicos radique, exatamente, na noção de indivíduo: bens
jurídicos individuais materiais (exs.: vida, integridade física), bens jurídicos individuais imateriais (exs.: privacidade,
honra), bens jurídicos supra-individuais (ex.: segurança interna do Estado).
A ideia de bem jurídico tem sofrido forte contestação a propósito dos novos desafios colocados ao direito penal pela
sociedade de risco. Ainda assim, o bem jurídico permanece como a pedra angular de todo o direito penal, devendo
ser entendido como manifestação de um interesse ou valor pessoal ou comunitário. De facto, os bens jurídicos,
enquanto valores, são “um em si”. Ora, ao legislador não basta a valoração axiológica-jurídica, pois exige-se-lhe ainda
que institua meios de preservar aquilo que erigiu como bem jurídico-penal. É nesta linha que se encontra o tipo legal
de crime, enquanto instrumento de proteção de bens jurídicos. Como referido, o tipo legal de crime pode ser marcado
pela lesão do bem jurídico que protege, ou bastar-se com o pôr-em-perigo do bem.
!! Uma ideia que importa assentar é a de que os bens jurídicos nem sempre se encontram delimitados por barreiras
estanques e nítidas entre si. É o caso paradigmático dos bens jurídicos vida e ofensa à integridade física. Como bens
jurídicos, tanto a integridade física como a vida são valores (realidades que são pura essência), mas ambos têm como
substractum (a realidade concreta que se assume como objeto) o corpo humano. Em suma, o objeto da valoração não
é o próprio valor (vida ou integridade física), mas sim a coisa que veicula aquele valor (o pedaço da realidade – corpo).
Daí que a ofensividade se assuma aqui numa escala gradativa: a lesão provocada incide sempre, em termos concretos,
sobre o corpo da vítima, mas dependendo da sua maior ou menor gravidade poderá consubstanciar, em termos
valorativos, uma ofensa à integridade física ou uma ofensa à vida. Portanto, o bem jurídico lesado numa situação
concreta dependerá do desvalor social que se imputa à rutura da relação de cuidado-de-perigo provocada pela
conduta do agente.
A importância do bem jurídico-penal acaba por ser a de afastar a legitimidade de punição (através da criação de tipos
legais) de comportamentos imorais. O tipo legal de crime não pode tutelar um mero valor moral ou ético, exigindo-se
sempre que na sua base esteja uma valoração axiológica com relevância penal (um valor que haja sido erigido a bem
jurídico-penal).
2. A dignidade e a necessidade penais
A criação da norma incriminadora implica a sua sujeição aos seguintes testes:
2.1 O merecimento da pena
Em termos sintéticos poderá dizer-se que uma conduta é merecedora de pena sempre que seja considerada
socialmente danosa.
O ilícito típico corresponde a uma valoração relativa ao efeito de um determinado comportamento humano sobre um
bem jurídico. Se esse efeito corresponde a um dano social, então aquele comportamento é merecedor de pena.
Comportamento humano Bem jurídico
Ilícito típico
Há uma relação comunicacional desvirtuada, que origina danosidade social.
Como é evidente, a intensidade do dano social provocado irá determinar a pena. Com efeito, o desvalor do resultado
danoso é significativamente superior ao desvalor do perigo. Correspondem a danos estrutualmente diferentes a
tentativa e a consumação de homicídio.
2.2 A necessidade de tutela
A necessidade de tutela relaciona-se com a ideia de que os bens jurídicos, porque comunitariamente reconhecidos,
devem ser tutelados pelo direito penal. Acontece que nem todos os bens jurídicos exigem proteção penal. Deverá
convocar-se, neste contexto, a ideia de que o direito penal é um direito de ultima ratio e de tutela subsidiária de bens

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jurídico-penais. O direito penal só pode intervir quando outras formas de tutela se mostrem insuficientes para
assegurar a proteção de determinados bens jurídicos.
2.3 O mínimo ético
A convocação do mínimo ético corresponde à aceitação de que o direito penal é uma ética aplicada. O mínimo ético é
o centro proposicional normativo entre o direito e a moral: o direito, como ordem prática, deve acolher um mínimo
de percetividade moral. O conteúdo desse mínimo ético corresponde aos valores que se consolidaram na história, e
que, portanto, vale a pena repetir. Portanto, de um modo sugestivo, podemos dizer que o mínimo ético “não é mas
acontece sucessivamente na escolha livre daqueles valores”. No fundo, este mínimo a que nos referimos compreende
aqueles valores que se assumem como condição de manutenção de uma dada sociedade, entendida como vida
espiritual. A autonomia do direito penal consolida-se com a determinação de um radical ético-social que está inscrito
nas próprias comunidades, que necessariamente experienciam, no seu modo-de-ser-social, o que é o justo.
De acordo com o tem vindo a ser dito, não custa admitir que haja coincidência entre os valores éticos e os valores
jurídico-penais protegidos. Sucede, no entanto, que são instâncias normativas com apelos diferentes, pelo que cabe
ao legislador fazer a mediação axiológicanecessária.
3. A estrutura fundamental da conduta punível
3.1 Reflexões sobre a estrutura
A ordem jurídico-penal pode ser fundamentada a partir de duas perspetivas:
 Compreensão funcional: o ponto de arranque é a pena (como consequência de um comportamento);
 Compreensão ontológica: o ponto de arranque é o ilícito (como objeto da norma incriminadora, que legitima
a intervenção penal).
A modernidade trouxe o sujeito para a ribalta do pensamento normativo, o que se repercutiu no florescimento de um
ilícito-típico ancorado no sujeito. A afirmação do resultado como pedra-angular do ilícito-típico está, portanto,
initimamente ligada ao homem, pois não há factos puros. Em suma, é hoje generalizada a compreensão ontológica da
ordem jurídico-penal, ainda que se defenda que o ilícito deva ser encarado do ponto de vista do resultado, pois é o
desvalor do resultado que justificará a aplicação da pena.
3.2 O ilícito e a culpa
Muito embora a conduta punível arranque de um ilícito-típico, é ainda necessário que sobre essa conduta se faça um
juízo de censura, o qual se vem traduzir na culpa do agente.
Conduta Punível
Ilícito-típico Culpa do agente
Comportamento objetivamente desvalioso Censura subjetiva daquele comportamento
3.3 A expansão material-conceitual do ilícito
! A ilicitude penal material manifesta-se na perversão da relação cuidado-de-perigo em que se funda o direito penal.
De um modo simplista, a comunidade politicamente organizada só sente necessidade de intervir penalmente quando
a repercussão social da rutura daquela relação de cuidado-de-perigo é tida como insustentável. Para além de que, o
desvalor que confirgura esta rutura só releva quando traduzido num desvalor de resultado. O que importa, segundo a
nossa perspetiva, é o desvalor do resultado, e não tanto o desvalor da ação. O desvalor de resultado corresponde a
um desvalor de cuidado: negação das aberturas relacionais que cada um pode assumir, ou seja, há um
empobrecimento das aberturas do “outro” devido a uma atuação do “eu”. No fundo, o que se pretende dizer é que
um comportamento só integra um ilícito-típico quando o resultado desvalioso provocado se traduz numa rutura da
relação cuidado-de-perigo (traduzindo-se, portanto, num desvalor de cuidado). Portanto, o ilícito-típico integra
aqueles comportamentos que consubstanciam a causação (devido à perturbação que operam na relação cuidado-de-
perigo) de um resultado desvalioso.
3.4 As correspondências entre o ilícito e a culpa
O ilícito-típico e a culpa são duas realidades integrantes da estrutura fundamental da conduta punível. Contudo, por
vezes, as ligações entre o ilícito e a culpa podem ter repercussões no patamar do próprio tipo. É o exemplo do
homicídio qualificado: existindo uma ideia de especial censurabilidade da conduta (= culpa), o tipo legal de crime
correspondente a essa conduta para a ser o homício qualificado, e já não o homicídio simples.
4. Alguns percurssos de ordenação
4.1 Doutrina de imputação do “direito comum”
A imputação constitui a ligação construída entre um comportamento humano e uma norma legal.
Comportamento humano Norma legal incriminadora
(Ilícito) Imputação (Consequência)
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A imputação de um facto ao agente da infração (portanto, a subsunção de um comportamento a um tipo legal de


crime) depende da doutrina da imputação seguida. A imputação da ação ao agente é de suma importância pois é
categoria “ação” que alicerca os demais elementos do crime: (1) tipicidade, (2) ilicitude, (3) culpa e (4) punibilidade.
A ação a que nos referimos será sempre uma relação, isto é, uma comunicação do “eu” com o “outro”. A ação,
conquanto é constitutiva da condição humana, é também condição do reconhecimento do ser humano como tal. Por
tanto, se, por um lado, o ser humano se carateriza pela sua ação, por outro, é a ação humana, como relação, que
permite ao ser humano ser pensado como tal. Esta ação (= relação comunicacional entre homens) dá lugar às
chamadas relações cuidade-de-perigo, as quais se caraterizam pelo facto de veicularem valores essenciais à
manutenção da comunidade. Consequentemente, o Estado entende que uma ação humana que venha perturbar uma
qualquer normal relação cuidado-de-perigo é merecedora de pena. Esta relação cuidado-de-perigo que o direito penal
protege contra ofensas consubstancia um determinado valor, que a história demonstra valer a pena ser vivido –
traduzindo-se num bem jurídico-penal.
Em suma, o ponto essencial radica numa relação comunicacional (ação) que, ao ascender ao mundo da
normatividade, se transforma numa relação comunicacional destruidora de uma valorada relação cuidado-de-perigo.
O conceito de facto punível, que traduz aquela ação, foi objeto de uma evolução histórica, que passamos a analisar.
4.2 A conceção clássica do crime
A conceção clássica de crime, também designada de positivista-naturalista, surge pela mão de autores como Liszt ou
Beling, na segunda metade do séc. XIX.
De acordo com esta conceção, o crime era composto por uma dupla dimensão.
Crime
Vertente objetivo Vertente subjetiva
Ação típica e ilícita Ação culposa
No que respeita a vertente objetiva, a ação era tida como uma modificação do mundo exterior através de um
movimento corporal ligado causalmente à vontade. A tipicidade ocorreria sempre que a ação correspondesse à
descrição típica, independentemente de qualquer valoração axiológica. No fundo, exigia-se tão-só uma subsunção
lógico-formal ao tipo legal de crime para que uma conduta constituísse crime.
Quanto à vertente subjetiva, a ação típica e ilícita será culposa sempre que exista uma ligação psicológica entre o facto
praticado e o seu agente que se traduza no dolo ou na negligência do agente.
Tendo em conta estes dois apetos, podemos enunciar as seguintes críticas à conceção clássica:
 Os crimes por omissão, porque não originados numa modificação do mundo exterior, constituiriam um
paradoxo do sistema (o agente do crime omissivo não responderia, porque não praticara qualquer ação típica
e ilícita);
 Verificando-se a inexistência de qualquer valoração axiológica não seria possível diferenciar, por exemplo, o
tiro disparado por um polícia e o tiro disparado por um homicida;
 A conceção psicológica de culpa não integra no sistema os inimputáveis, dado que estes constituiriam uma
negação do próprio sistema;
 A conceção psicológica de culpa não atende às causas de exclusão da culpa;
 A negligência inconsciente, considerada ainda como ligação que justifica a culpabilidade o agente, não parece
ter consistência suficiente para alicerçar a punibilidade da conduta.
4.3 A conceção “neo-clássica” do crime
A conceção neo-clássica, que teve lugar no início do séc. XX, baseou-se na filosofia dos valores, com origem kantiana.
Esta perspetiva, de um modo diametralmente oposto à anterior, parte da premissa de uma irredutibilidade entre o
mundo da natureza e o mundo dos valores. Portanto, também o direito se deveria erigir dentro da esfera do dever-
ser. Foi neste contexto que surgiram os conceitos de danosidade social e censurabilidade.
No fundo, esta conceção traduzia-se na afeiçoação do antigo sistema, enriqucendo-o com proposições de valor. A ação
passa a ter uma relevância social e a tipicidade passa a ser vista como um comportamento lesivo de bens jurídicos. A
ação ilícita seria, portanto, uma negação de valores; e a tipicidade seria agora aferida com base em elementos tanto
descritivos como normativos e mesmo subjetivos. Sofrem ainda uma evolução as noções de ilicitude e de culpa. Com
efeito, é desenvolvida a conceção normativa de culpa: a culpa passa a constituir um juízo de censura (e não uma mera
ligação psicológica, que por vezes nem era censurável, como acontecia na doutrina anterior) para o qual concorriam
diversos elementos.A ilicitude, por sua vez, passa agora a compreender elementos objetivos e também elementos

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subjetivos (portanto, o comportamento não seria ilícito simplesmente por se submsumir ao tipo legal, avaliando-se
ainda outros elementos).
Ainda que sejam constatáveis importantes avanços, é possível apontar algumas críticas a esta conceção. A princípial
crítica a efetuar consiste na defendida irredutibilidade entre o mundo do dever-ser e o mundo do ser. Esta separação
estanque implicaria que o mundo do direito (mundo do dever-ser ou dos valores) não teria de respeitar as estruturas
materiais do mundo natural (mundo do ser). Como é evidente, não faria sentido um direito que não encontrasse
aplicabilidade, ou não fizesse sentido, num mundo natural.
4.4 A conceção finalista de crime
A conceção finalista de crime surge, na década de 30 do séc. XX, pela voz de Welzel. Nas palavras do próprio:
“A ‘finalidade’, ou o caráter final da ação, baseia-se em que o Homem, graças ao seu saber causal, pode prever,
dentro de certos limites, as consequências possíveis da sua conduta”.
A citação apontada resume os termos gerais da conceção que nos ocupa: a ação humana corresponde a um
comportamento orientado para certos fins, previamente determinados, pelo que o sujeito sempre atuaria com
conhecimento do resultado que iria provocar. Assim sendo, a ação seria uma antecipação mental dos fins a prosseguir,
materializada numa escolha de meios. É nestes termos que o mundo do ser (mundo natural) se entrecruza com o
mundo do dever-ser (mundo do direito): o sujeito tem consciência de que ao atuar de certa forma irá provocar um
determinado resultado (lesivo), podendo, portanto, optar por escolher um outro meio, conducente a um outro
resultado. Uma crítica que é possível a esta conceção pré-jurídica de ação é a de que a construção elaborada não
fornece um número bastante de dados que sejam juridicamente vinculativos, e que permitam, afinal, erigir a base de
todo um sistema dogmático e normativo.
A grande conquista da teoria finalista reside na deslocação do dolo para o tipo, como seu elemento subjetivo. A partir
do momento em que a ação é final, o dolo (vontade de praticar o facto) tem de ser considerado não como um
momento da culpa, mas antes como um momento da ação. O dolo passa, então, a constituir o elemento subjetivo do
tipo legal de crime. Por outras palavras, não existindo dolo (isto é, vontade e consciência da prática do facto) não há
sequer tipicidade (a conduta do agente não se subsume, sequer, ao tipo legal de crime). O direito penal passa, deste
modo, a refletir uma eticidade que se materializa nos conceitos de desvalor da ação (= juízo de valor ético-social sobre
a ação da pessoa) e desvalor de resultado (= lesão de bens jurídicos através de uma ação). Tendo o dolo passado para
o tipo legal de crime, estavam reunidas as condições para que a culpa fosse expurgada de quaisquer elementos
psicológicos. Surge uma conceção ultra-normativista da culpa: a censurabilidade da conduta dependeria de fatores
como a capacidade de conhecimento da ilicitude dos atos e a liberdade de auto-determinação. Como se compreende,
deixa de relevar, por completo, a existência de um vínculo psicológico entre a conduta e o agente, pois esse nexo, que
se traduz agora no dolo, faz parte do próprio tipo. A culpa, como é entendida por esta conceção, traduz-se
fundamentalmente no seguinte: devia e podia o agente ter atuado de forma diferente, conforme com o direito?
Como críticas de que é suscetível esta conceção, autonomizamos:
 A conceção finalista torna-se insuficiente para lá dos crimes dolos por ação: quando esteja em causa um crime
omissivo ou um crime negligente, esta teoria dificilmente se poderá aplicar;
 O conceito normativo de culpa não logra fazer uma distinção entre os diversos graus de culpa contidos nas
ideias de dolo e negligência (pois recorre apenas à ideia de dolo);
 O conceito normativo de culpa peca uma vez que, reduzindo-a a mera relação entre o poder e o dever de
atuar conforme o direito, despe a noção de culpa de qualquer conteúdo material realmente existente na
pessoa do agente (ou seja, a aferição da culpa depende do juízo efetuado pelo juiz, não decorrendo de
quaisquer evidências palpáveis).
4.5 Os caminhos de hoje
Tanto as conquistas da conceção neo-clássica de crime, como as da doutrina finalista constituíram ganhos e
afeiçoamentos dogmáticos que devem constituir os pilares de que se parte. Assim sendo, o compreender dos factos
tem, à partida, como pressuposto, de estar minimamente iluminado por um pré-compreender. Neste âmbito, a pré-
compreensão é uma situação juridicamente estabilizada, que nos projeta para a lei, para os princípios normativos e
para a própria unidade sistemática. Surgem, então, duas ideias essenciais:
 Mala in se: os males em si mesmos, que representam refrações de valorações axiológicas portadoras de uma
densidade forte (encontram-se, em regra, integrados no direito penal clássico);
 Mala prohibita: males que apenas o são por serem proibidos pela lei penal (integram, por excelência, o campo
do direito penal secundário).

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
Mais recentemente, uma outra construção que veio contribuir para a construção dogmática de crime é o conceito de
ação social, desenvolvido por Eberhard Schmidt. De acordo com esta construção o que importa é que o
comportamento do agente – seja ele uma ação ou uma omissão – seja socialmente conotado com a ideia de ação. É
também de referir a construção de Roxin, segundo a qual o conceito de ação deveria ser substituído pela ideia de
comportamento voluntário, afastando-se todos os comportamentos mecânicos ou reflexos.
4.6 Considerações finais
Uma ideia fundamental deve ficar assente no termo desta excursão pelas várias conceções do crime: o direito penal
não é estático, não se remetendo a uma fossilização dogmática; ao invés, procura respoder aos desafios que lhe vão
sendo colocados pela contemporaneidade. Assim sendo, sempre os conteúdos se alterarão aos longo dos tempos,
bem como não ficarão estáticos os modos de compreender o direito. É, pois, este constante fluir que tem de ser
apercebido. Porém, para que as variações não passem o limite do incoerente, há sempre que perguntar pela
legitimidade da variação.
A doutrina geral da infração, aos olhos de Faria Costa, deverá estruturar-se dentro de dois conceitos essenciais:
Ilícito-típico Culpa
Princípio da segurança Princípio da culpa
De referir é que, no âmbito do ilícito-típico, privilegia-se o desvalor do resultado em deterimento do desvalor da ação
(ou seja, do desvalor da intenção).
Neste ponto, convém fazer algumas explicitações acreca daqueles dois princípios. Em primeiro lugar, no que diz
respeito ao princípio da segurança, o que se pretende assegurar é a segurança “pessoal”, a abertura solidária com que
“eu” me “seguro” com os outros e pelos outros. Por um lado, está em causa a segurança que individualmente cada
membro da comunidade tem para consigo mesmo; por outro, está também em causa a solidariedade entre os
membros da comunidade, que estabelecem relações sociais assentes na segurança. Portanto, ao cuidado do “eu”
soma-se o cuidado de “todos”, pois só assim aquele se concretiza e este se assegura. Para tal, o legislador criou o tipo
legal de crime, identificando aqueles comportamentos que todos se devem abster de praticar. Em segundo lugar,
relativamente ao princípio da culpa, diremos estar em causa uma refração do princípio da dignidade humana: a
dignidade só tem conteúdo verdadeiro se o seu reverso for trespassado pela noção de responsabilidade. O cuidado
desperta uma noção de responsabilidade na medida em que se funda num “poder agir de outra maneira”.

Capítulo 8 – A conduta típica (o tipo)


1. Estrutura e conceito de tipo legal de crime
Uma das funções que se agrega à função primacial do direito penal (a função de proteção de bens jurídicos) é a função
de garantia. É através do direito penal que se definem rigorosamente os comportamentos penalmente relevantes. E,
esta atividade legiferante, constitui uma importantíssima barreira à tendência de esmagamento dos direitos
fundamentais da pessoa humana por parte do poder punitivo do Estado. Assim sendo, o direito penal assume-se como
ordem de liberdade ao (1) constituir um obstáculo à expansão do poder estadual e ao (2) delimitar, por inteleção
inversa, a campo dos comportamentos livres (portanto, aqueles que não são objeto de incriminação). Só assim poderá
o Homem concretizar a sua própria liberdade, mediante uma auto-reflexão tendente ao seu aprofundamento.
O respeito por esta exigência de garantia supõe o conhecimento pelo cidadão, antecipadamente, das condutas que
lhe estão penalmente vedadas. Para se obter esse desiderato, encontrou-se historicamente o instrumento que
constitui o tipo legal de crime. É nesta linha que se impõe o princípio da legalidade no âmbito do direito penal, o qual
só tem pleno sentido se conformado às exigências da proibição da analogia, da proibição da aplicação retroativa da lei
penal e ainda da absoluta conformidade da descrição dos comportamentos proibidos com uma sua descrição rigorosa.
Todo este quadro que acabámos de desenhar só tem razão de ser, evidentemente, num sistema político em que se
encontrem corretamente separados os poderes legislativo, executivo e judicial. Com efeito, é ao poder legislativo –
mediante lei proferida pelo Parlamento ou por ele autorizada – que cabe elaborar as normas incriminadoras. Esta
reserva de lei em sentido estrito assenta na crença de que é no Parlamento, como local do debate de ideias, onde se
alcançam as soluções mais corretas para a prossecução do propósito político-criminal, bem como é no Parlamento
que se conseguirá um defesa mais forte dos direitos, liberdades e garantias. De facto, mesmo quando sejam
necessários juízos técnicos (como em áreas como a tecnologia, a biomedicina, a ecologia, etc.), só o Parlamento, como
espaço da vontade pública democraticamente representada, deverá ter a prerrogativa de limitar os direitos
fundamentais dos cidadãos.
1.1 O tipo como construção

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
O tipo legal de crime, como realidade normativa própria, é formado por três grupos de estruturas:
1. Elementos objetivos: descritivos ou normativos;
2. Elementos subjetivos;
3. Elementos da Gesinnung (= atitude espiritual do agente).
Refira-se que a construção do tipo legal de crime, para satisfazer o princípio da legalidade, não exige a presença de
todos estes elementos em cada crime concreto positivado. A conjugação e as várias possibilidades que o jogo cruzado
dos diferentes elementos possibilitam devem ajustar-se à prossecução da finalidade que o legislador quis imprimir à
norma incriminadora. Daí que a plasticidade da conjugação dos vários elementos não seja infinita: as diferentes
tipologias de crime demonstram uma constante articulação entre determinados elementos. Sublinhe-se, ainda assim,
que não é pelo facto de uma norma incriminadora respeitar o catálogo de elementos constitutivos subjacente à
construção de uma tipologia de crimes que essa norma se encontra, necessariamente, em respeito da legalidade.
Uma outra nota essencial é a de que a criação de uma norma incriminadora não corresponde à mera soma de
elementos do tipo legal de crime.
Ultrapassados todos os patamares porque que deve passar a criação da norma incriminadora [vide supra: Cap. 7, 2.], há
já uma ideia de norma (que passou pelos crivos da legitimidade material da sua existência – a necessidade, dignidade
penal e merecimento da pena). Esta “ideia de norma” terá agora deseguir as exigências procedimentais para ganhar
forma. A formulação linguística do comando jurídico em que a norma se irá verter deverá ter em conta o critério da
razoabilidade: a intencionalidade jurídica da norma deverá tecer-se de uma forma correta e transparente. No fundo,
a definição dos elementos do tipo deverá pautar-se pela limpidez e correção de objetivos, pois quanto mais
compreensível a norma, mais forte será a tpipicidade. De facto, o nosso ordenamento jurídico presume que o
legislador consagra as soluções mais acertadas/justas – art. 9º/3 CC.
1.2 Os vários elementos do tipo
A “razão iluminista” olhava a realidade por meio de um registo essencialmente binário: as coisas eram justas ou
injustas, falas ou verdadeiras, etc. Assim sendo, o legislador deveria procurar criar tipos legais de crime que se
apresentassem, no limite, insuscetíveis de qualquer interpretação – a norma incriminadora deveria ser tão certa que
permitia apenas uma única leitura. Entendia-se que a realidade humana deveria ser descrita com um rigor científico.
Acontece que o pensamento iluminista se esqueceu que a normatividade se expressa através da palavra escrita, e a
matéria da palavra é o que há demnos suscetível ao confinamento. A palavra é, naturalmente, equívoca e polissémica.
Assim, é hoje certo que os elementos do tipo não são estruturas rígidas, mas antes indicadores do ilícito-típico material
que a hermenêutica tem de desvendar. Atentemos em cada uma das três categorias de elementos:
a) Elementos objetivos:
Como referido, esta categoria engloba dois sub-tipos de elementos:
1. Elementos descritivos: elementos cuja determinação se pode fazer através da sua descrição, ou seja, através
de um juízo de existência (portanto, elementos que descrevem uma determinada realidade, verificando-se
sempre que num caso concreto essa realidade seja identificável);
2. Elementos normativos: elementos cujo conteúdo, sentido e limites só podem ser percebidos fazendo apelo a
um código de normatividade fora do direito penal (estão aqui em causa determinados conceitos cujo
significado/definição é buscada num outro ramo jurídico – ex.: o art. 203º CP emprega a expressão “coisa móvel
alheia”, cuja definição deverá ser buscada no Código Civil (arts. 202º e ss.).
b) Elementos subjetivos:
Os elementos subjetivos do ilícito são aqueles que exigem determinada intenção por parte do agente do crime. De um
modo simplista, são elementos que se traduzem numa específica vontade ilegítima do agente, consubstanciando os
chamados “crimes intencionais”. Trata-se daquelas hipóteses em que o agente ilegitimamente pretendia (tinha a
intenção) de atuar de determinada forma. Sublinhe-se que esta intencionalidade da conduta não se confunde, de
modo algum, com a sua motivação. A motivação do agente até poderá ser nobre (por ex.: furtar aos ricos para dar aos
pobres), mas se a intencionalidade subjacente à conduta é ilegítima (intenção de se apropriar de uma coisa alheia),
então está preenchido o elemento subjetivo exigido.
c) Elementos da Gesinnung:
Os elementos da Gesinnung referem-se à atitude espiritual do agente perante o mundo e perante o direito. Esta
conceção tem sido muito criticada na medida em que estes elementos significam que o direito penal se permite
imiscuir na personalidade do agente. Um exemplo de um elemento desta categoria expressamente consagrado na lei

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era o constante do art. 309º/4 CP antes da reforma de 1995: era considerado como agravante o facto de o agente
revelar “baixeza de caráter”. Como é evidente, a menção a estes elementos justifica-se mais numa perspetiva histórica.
2. Delimitação perante o ilícito
Como é evidente, o tipo não deverá confundir-se com o ilícito. O ilícito traduz-se, com efeito, no desvalor material
com que se estebelece as relações típicas entre uma conduta e o princípio da ofensividade. Este é o conteúdo material
do tipo: a ilicitude é a contrariedade do comportamento à ordem jurídica, e o tipo é a forma legal que consagra essa
mesma ilicitude. Daí que a relação comunicacional destruidora de uma valorada relação de cuidado-de-perigo se
apelide de “ação de ilícito-típico” (é contrária à normatividade e subsume-se a um tipo legal de crime). Como se
compreende, o tipo tem um valor instrumental, enquanto técnica legislativa. Desempenha, por isso, a importante
função de garantia que subjaz ao direito penal. Devido à sua relevância, o tipo é condição sine qua non para que a
ilicitude se possa expressar: um comportamento ilícito só é crime se inserido num tipo legal de crime.
3. Delimitação perante a culpa
A culpa representa a censura que se faz ao agente quando ele agiu de determinada maneira e podia e devia ter agido
de outra forma. Com efeito, o princípio da justiça material impõe que os atos injustos e culposos sofram uma sanção.
Não basta que um comportamento seja ilícito e integre um tipo legal de crime, pois a culpa é um elemento
indissociável da conduta punível. A dignidade da pessoa humana exige, efetivamente, a vinculação constitucional ao
princípio da culpa: aquele que podia ter agido de outra maneira deve ser responsabilizado pelos seus atos.
4. “Refrações sustentadoras” do tipo legal de crime
4.1 O princípio nullum crimen nulla poena sine lege
Este princípio oferece uma ideia de segurança, certeza e paz jurídicas. Trata-se do princípio da legalidade estrita: um
comportamento não pode ser qualificado como penalmente relevante se não estiver previamente definido em lei
certa e precisa. Aliás, a própria pena criminal só faz sentido quando previamente prevista em lei criminal.
4.2 A proibição de analogia
Alguns autores criticam o acolhimento deste princípio, defendendo não existir qualquer diferença entre a analogia e
a interpretação extensiva. Contudo, o que se entende [vide supra: Cap. 5, 2] é o seguinte: na interpretação extensiva,
o sentido que o legislador quis atribuir à norma encontra-se no seu âmbito de aplicação; a analogia, por sua vez, vai
buscar um sentido que já não se encontra no âmbito de proteção da norma, mas é apenas um sentido próximo desse
âmbito de proteção, o que poderia justificar o alargamento da esfera de aplicação do respetivo regime.
4.3 O princípio da determinabilidade
O princípio da determinabilidade assenta na ideia de que os elementos previstos no tipo devem ser certos, precisos e
determinados. Quanto maior certos, precisos e determinados forem os elementos do tipo, maior certeza existirá
quanto ao âmbito de proteção da norma, facilitando-se a interpretação da norma (obivando-se à indeterminação).
4.4 A proibição da retroatividade
O princípio da retroatividade representa, como vimos [vide supra: Cap. 3, 1.2], uma refração do próprio princípio da
legalidade e um complemento lógico da reserva de lei. De facto, é a existência de uma certeza quanto à punibilidade
de certos comportamentos à data da sua prática que reafirma a ideia de nullum crimen nulla poena sine lege. O tipo
legal de crime reflete uma compreensão garantística do direito penal.
4.5 Os princípios da adequação social e do mínimo de dignidade penal
Os bens jurídico-penais são suscetíveis de serem ofendidos gradativamente, pelo que apenas as ofensas que saiam
das margens de adequação social é que devem ter relevância penal. Por outras palavras, quando os comportamentos
(ainda que ofensivos de bens jurídicos) são socialmente adequados, não preenchem sequer o tipo legal de crime – ex.:
uma cotovelada não tem relevância jurídico-penal para se assumir como ofensa á integridade física.
Num outro prisma, algums comportamentos, apesar de socialmente desadequados, não atingem o patamar mínimo
de dignidade penal. Seria o exemplo de um colega que retira, do caderno de outrem, uma folha de papel, ou do vizinho
que se apropria de uma fruta do quintal de outrem. Embora socialmente desadequados, estes comportamentos não
alcançam o patamar mínimo para ascenderem à discursividade penal.
4.6 O princípio in dubio pro libertate
De acordo com este princípio, toda a interpretação que se faça do tipo legal de crime deve ser levada a cabo no sentido
de favorecer a liberdade. Uma vez mais, esta é uma manifestação do direito penal como ordem de liberdade.
5. A causalidade e a imputação objetiva
5.1 A causalidade naturalística

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A causalidade em termos jurídico-penais assenta numa compreensão naturalística dos factos, como modo de imputar
objetivamente o facto ao agente. Porém, esta compreensão não responde, como veremos, a algumas questões
fundamentais da dogmática penal. A causalidade é o quid que assinala a passagem da responsabilidade por facto
alheio para a responsabilidade por facto próprio.
Com a causalidade respondia-se à questão “quais os resultados que devem ser imputados ao agente?” com uma
simples afirmação: deveriam ser imputados ao agente todos os resultados que ele causou. Consequentemente, passou
a perguntar-se: quais os resultados causados pelo agente? Foi neste contexto que o nexo causal se erigiu a categoria
do pensamento penal. Tudo se conjugava para que a conexão do facto ao agente se houvesse fazer necessariamente
por meio de um juízo causal. Segundo a causalidade naturalística (ou doutrina da sine qua non), que expomos, o
resultado seria causado pelo agente sempre o resultado não se tivesse verificado se não fosse o comportamento do
agente – não tendo o agente adotado determinado comportamento, ter-se-ia produzido o resultado lesivo?
Tendo sido progressivamente apreendidas as limitações desta conceção (por ex.: A dá um tiro a B mas não o mata; já
no hostpital, B acaba por falecer devido a um incêndio que aí se deflagra. Sem o comportamento de A, B não estaria
no hospital naquele momento, pelo que A será julgado por homicídio), o direito penal procura normativizar a
causalidade lógico-naturalística, dando origem à ideia de causalidade adequada.
A B
5.2 A causalidade adequada
A causalidade adequada (também designada de doutrina das condições equivalentes) baseia-se num juízo de prognose
póstuma. No momento em que se deu resultado, há que “olhar para trás” e determinar se não houve outros fatores,
além da conduta do agente, que causaram objetivamente aquele resultado: foi o comportamento do agente idóneo à
produção daquele resultado? Ora, esta doutrina peca ainda por não justificar a imputação ao agente dos crimes de
perigo. Dificilmente descortinaremos um nexo que ligue a ação desencadeadora de um resultado de perigo ao próprio
perigo. Não havendo alteração do real, e coincidindo a atuação do agente com o resultado (pois o perigo dá-se em
simultâneo com o comportamento perigoso), não é possível efetuar aquele juízo de prognose póstuma.
A B

5.3 A imputação objetiva


A imputação objetiva não vem retirar toda a relevância da noção de causalidade. Vem, isso sim, consubstanciar um
critério alternativo, aplicável nos casos em que aquela ideia (de causalidade adequada) não se mostre idónea a dar
consistência material ao juízo de imputação. Segundo a doutrina da imputação objetiva, o que se procura saber é se
o evento (ou resultado) é opus do agente: o resultado pode ser imputado ao agente sem que com isso se fira o
sentimento de justiça? A adequação causa continua a perfilhar-se como o primeiro canône interpretativo de que nos
devemos socorrer para saber se o facto deve ou não ser imputado ao agente. Simplesmente, numa fase posterior há
que averiguar se o juízo de imputação assim fixado pode afirmar-se como materialmente justo.
6. Afeiçoamentos no que toca à imputação objetiva
A moderna teoria da imputação objetiva tenta superar algumas das dificuldades encontradas pela teoria da
adequação. De entre as novas formas de commpreensão da imputação de um facto a um agente, há que salientar: os
comportamentos lícitos alternativos; o risco permitido; o risco diminuído; o âmbito de proteção da norma.
6.1 Comportamentos lícitos alternativos
A imputação deverá ser afastada nos casos em que o resultado se teria produzido mesmo que a ação ilícita não se
tivesse realizado. No fundo, o que se trata é de acautelar aquelas situações em que mesmo que não houvesse sido
quebrada qualquer regra de cuidado, o resultado desvalioso sempre se produziria. Concluindo, podendo haver
demonstração de que o resultado teria ocorrido, mesmo que a ação ilícita não tivesse existido, deve pugnar-se pela
inexistência de imputação objetiva do resultado ao agente.
6.2 Risco permitido
Integram-se aqui elas hipóteses em que não existe, verdadeiramente, a criação de um risco em termos jurídico-
penalmente relevantes.
Ora, na inter-relacionação dos membros da comunidade, sendo os perigos permanentes, é normal estabelecer-se uma
cadeia de relações de cuidado acrescido – estabelece-se um princípio de confiança entre todos os membros dessa
comunidade. Cada membro da comunidade confia que os demais respeitarão as relações de cuidado, assim como ele
próprio pretende fazê-lo, assumindo responsabilidade pelo sentido externo que a sua conduta traduz aos outros. Há
uma convicção de que todos os membros da comunidade se comportarão dentro do que é espectável. Daí que, por

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exemplo, se A, condutor, indica luminosamente uma mudança de direção há esquerda e de seguida avança para a
esquerda, não lhe será imputada, eventualmente, a colisão com um outro automóvel que não tenha prestado a devida
atenção aos sinais luminosos (pois A atuou com confiança de que o seu comportamento era expetável para os demais).
6.3 Risco diminuído
A diminuição do risco refere-se, em particular, aos casos em que o agente atua no sentido de diminuir o risco criado
por outro, ainda que a sua conduta possa não ter influído de forma correta no resultado. É o exemplo do sujeito (A)
que, vendo uma pedra dirigida à cabeça de outrem (B), procura desviar a pedra, mas acaba por deixar a pedra cair no
pé deste último. Não há aqui, como se compreende, uma ofensa à integridade física.
6.4 Âmbito de proteção da norma
Segundo este critério, apenas poderá ser imputado ao agente um resultado contido na proibição visada pela norma.
O âmbito de proteção e a finalidade prosseguidas pela norma devem prevalecer sobre o seu rigoroso cumprimento.
Tanto mais que a violação de um dever objetivo de cuidado tem de ser sempre valorada se acordo com a situação
concreta, de modo a atestar se há ou não infração das exigências que em geral impendem sobre o agente. Se assim
não fosse, acabar-se-ia por subverter totalmente a razão de ser da regra jurídica. Um exemplo paradigmático é o do
condutor que desvia o automóvel para o lado esquerdo da via de trânsito (infringindo o dever de conduzir pela direita),
a fim de evitar atropelar um peão que surge na faixa de rodagem da direita, acabando, no entanto, por atropelar um
outro peão que se encontrava no passeio do lado esquerdo.
7. Os sujeitos
7.1 A responsabilidade penal das pessoas coletivas
A pessoa jurídica coletiva afirmou-se como um novo centro de imputação jurídica, pelo que o estudo da
responsabilidade penal das pessoas coletivas tem vindo a assumir centralidade. O papel do direito penal económico
foi, neste âmbito, determinante. Começaram a identificar-se situações fortemente desvaliosas do ponto de vista
jurídico-penal e manifestamente perpetradas por pessoas coletivas. Progressivamente surgiu uma consciência crítica
que apontava as tantas infrações que não estavam sequer a ser levadas a juízo. Com base nesta evolução, a
responsabilidade penal das pessoas coletivas é hoje um dado para o pensamento penal. Independentemente das
doutrinas que tentam justificar a responsabilidade penal das pessoas coletivas, duas notas são indesmentíveis;
 Foi pela via do direito penal económico que a questão entrou definitivamente no mundo dos problemas
prementes do pensamento penal;
 A tendência que vai no sentido da admissibilidade ou sustentação teórica da responsabilidade penal das
pessoas coletivas é hoje preponderante.
Contudo, a admissibilidade teórica da responsabilidade penal das pessoas coletivas só tem sentido se lhe
encontrarmos uma racionalidade material que não se limite a uma mera relevância da necessária eficácia.
! O principal ataque dogmático à punibilidade das pessoas coletivas residia na manifesta incapacidade destas em
suportarem um juízo de censura ética (ou seja, um juízo de culpa), ou até mesmo de serem insuscetíveis de uma
verdadeira capacidade de agir. Para fazer face a este inconveniente, Figueirdo Dias veio propôr a seguinte analogia
material: as próprias organizações que são as pessoas coletivas são “obras de liberdade”, o que significa que também
a sua atuação decorrerá dessa mesma liberdade. Nesta linha de pensamento, também Faria Costa entende encontrar-
se a legitimidade da responsabilidade penal das pessoas coletivas na analogia material dos lugares inversos.
= Espaços da normatividade que, encontrando-se no polo oposto ao que se pretende analisar, sustentam as linhas
cruzadas de uma argumentação que, colocando frente a frente duas realidades diametralmente opostas, ajuda
construir a unidade do próprio ordenamento jurídico, pois justifica os regimes diferentes que lhes são atribuídos.
No fundo, o que se procura, através desta linha metológica, é apontar uma determinada matéria que se encontra,
devido ao seu conteúdo próprio, nos antípodas da matéria que analisamos. Pela contraposição das duas, justificar-se-
á que o regime da segunda deverá ser o oposto da primeira, já que também o seu conteúdo o é.
Quanto à matéria que nos ocupa, este contraponto é efetuada entre a responsabilidade penal das pessoas coletivas,
como sabemos, e a responsabilidade penal dos menores. A criança, em termos onto-antropológicos, age da mesma
forma que age um adulto (dispoõem de igual capacidade de agir, inerente ao ser humano). Mais ainda, é também
certo que, tal como os adultos, também as crianças dispõem da capacidade de valoração própria dos seres humanos.
Consequentemente, a atuação de uma criança é, simultaneamente, fruto da vontade e suscetível de censura. Todavia,
como se sabe, o ordenamento jurídico entende que aos menores aquém de uma determinada idade cronológica não
pode ser imputada uma conduta criminosa. Ora, o lugar inverso a este espaço de normatividade é, exatamente, a
responsabilidade penal das pessoas coletivas: as pessoas coletivas, ao invés das crianças, não gozam de uma vontade

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de agir própria, nem são capazes de formular um juízo de valoração que permita ser-lhes imputado um juízo de
censura. Porém, a pessoa coletiva deverá constituir um centro de imputação de condutas desvaliosas. Se ali se verifica
uma restrição do universo de possíveis agentes, aqui procede-se a um alargamento do universo da punibilidade. Em
suma, se o ordenamento jurídico esmaga a liberdade onto-antropológica no âmbito da responsabilidade dos menores,
então justifica-se que proceda à sua expansão no que respeita a responsabilidade das pessoas coletivas.
Justificação da responsabilidade das pessoas coletivas
Analogia material entre a culpa individual e Raciocínio inverso quanto à inimputabilidade
a culpa das pessoas coletivas (E. Figueiredo) dos menores (F. Costa)
7.1.1 Critérios de imputação
Os critérios de imputação de responsabilidade criminal às pessoas coletivas encontram-se espelhados no art. 11º CP.
O modelo de imputação adotado naquele preceito é o modelo de responsabilidade do representante (“vicarious
liability”). Quer isto dizer que a pessoa coletiva responde pelos (art. 11º/2 CP):
a) Comportamentos daqueles que, exercendo funções de liderança, atuem em seu nome e no interesse coletivo;
b) Crimes cometidos por quem aja sob autoridade da quam assume uma posição de liderança, em virtude de
uma violação de deveres de vigilância e controlo.
O nº 4 do supramencionado artigo vem definir o que se entende por “posição de liderança”.
Um aspeto que deve ser sublinhado é o caráter cumulativo e autónomo da responsabilidade das pessoas coletivas:
 A responsabilidade da pessoa coletiva não determina nem exclui a responsabilização do agente individual;
 A responsabilidade da pessoa coletiva não depende da responsabilização dos agentes individuais.
Neste ponto, cabe-nos agora tecer algumas observações críticas quanto à nova redação do art. 11º do CP:
 O leque de crimes pelo qual a pessoa coletiva pode ser responsabilizada suscita dificuldades de aplicação (ex.:
crime de violação – art. 164º CP);
 A exclusão da responsabilidade das pessoas coletivas públicas não parece ter razão de ser – aliás, entre nós,
tradicionalmente, o exercício de funções públicas constitui um motivo de agravação da responsabilidade;
 O alargamento do conceito de “pessoa coletiva pública” (art. 11º/3 CP) implica uma clara violação do princípio
da igualdade, dado que duas empresas privadas que exercem a mesma atividade podem ser objeto de
diferentes qualificações (o que releva, como vimos, quanto à possibilidade de responsabilização);
 O regime consagrado gera uma indesejada incoerência sistemática no ordenamento jurídico (por ex.: as
pessoas coletivas são responsáveis criminalmente pelas infrações tributárias que pratiquem).
8. Tipos de tipicidade
Os tipos de tipicidade correspondem às formas sistemáticas de perceção da arrumação dos tipos legais de crime tendo
em conta as suas caraterísticas comuns. No fundo, tratam-se de categorias em que se agrupam diversos tipos de
acordo com uma caraterística que têm em comum.
O princípio da legalidade exige que o tipo legal de crime determine, no texto-norma, (1) o autor, (2) a conduta proibida
e (3) o bem jurídico protegido, pelo que utilizares estas categorias para expôr os tipos de tipicidade.
8.1 Quanto à conduta
No que respeita a conduta, podemos efetuar uma tripla diferenciação:
1. Crimes de ação: existe por parte do agente uma atuação positiva, já que o seu comportamento provoca uma
alteração do real verdadeiro;
Crimes por omissão: o agente não realiza um comportamento que lhe é juridicamente imposto ou exigido,
abstendo-se de qualquer atividade:
a) Crimes por omissão pura: a proibição impende sobre a falta da realização de uma atividade,
independentemente do resultado a que a sua realização levaria (art. 200º CP);
b) Crimes por omissão impura: a proibição legal impende sobre um resultado, o qual pode ser obtido
devido a uma omissão, mas também por meio de uma ação.
2. Crimes de realização livre: o resultado proibido é-o independentemente da forma da sua realização (ex.: crime
de homicídio – o que importa é que um sujeito matou outro, independentemente do meio utilizado);
Crimes de realização vinculada: o resultado só é proibido se realizado de uma determinada maneira (ex.: crime
de burla – só há preenchimento do tipo legal quando se há determinada conduta do agente – art. 217º CP).
3. Crimes de mera atividade (ou crimes formais): o preenchimento do tipo legal de crime resulta de o agente
levar a cabo um comportamento proibido;

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Crimes de resultado (ou crimes materiais): o preenchimento do tipo legal de crime depende da produção de
um evento como resultado do comportamento, ativo ou passivo, do agente.
! No fundo, o que se distingue neste âmbito é o elemento relevante: o próprio comportamento do agente,
sem mais, ou, ao invés, o resultado obtido com esse comportamento. Será um crime de mera atividade a
injúria (a própria conduta injuriosa é legalmente proibida) e um crime de resultado o homicídio (só há
preenchimento do tipo legal de crime quando a conduta do agente se repercuta na morte de alguém).
8.2 Quanto ao bem jurídico
1. Crimes de dano: existe uma efetiva lesão do bem jurídico protegido pelo tipo;
Crimes de perigo: para o preenchimento do tipo é suficiente a colocação em perigo do bem jurídico protegido.
a) Crimes de perigo concreto: o bem jurídico protegido é efetivamente colocado em perigo;
b) Crimes de perigo abstrato: a próprioa perigosidade é proibida, isto é, determinado comportamento é
proibido por se entender que consubstancia, per se, um comportamento perigosos.
[A diferenciação entre estes dois subtipos é manifesta no que respeita aos arts. 291º e 292º CP. O art. 291º CP
considera crime a “condução perigosa de veículo rodoviária”. Portanto, só há crime se a condução levada a cabo
pelo agente proporcionar uma situação de perigo para a vida ou integridade física de outrem – crime de perigo
concreto. Já o art. 292º CP criminaliza a condução em estado de embriaguez. Isto significa que qualquer condutor
que circule na via pública com um teor de alcoól no sangue igual ou superior a 1,2 g/l comete um crime,
independentemente de colocar concretamente em risco a vida ou integridade física de alguém (só o facto de
estar embriagado já consubstancia uma situação perigosa) – crime de perigo abstrato.]
NOTA: a categoria dos crimes de perigo não se confunde com a categoria dos crimes de mera atividade, assim
como também os crimes de dano nem sempre consubstanciam crimes de resultado. Por exemplo, o crime de
injúria é simultaneamente um crime de dano (há uma lesão efetiva de um bem jurídico – a honra) e um crime
de mera atividade (é o próprio comportamento que é proibido). Noutro prisma, o crime de incêncido é um
crime de perigo (põe em perigo o bem jurídico vida, assim como alguns valores patrimoniais) e, paralelamente,
um crime de resultado (é o resultado da conduta do agente – a deflagração do incêndio – que é punida).
2. Crimes simples: visa-se a proteção de apenas um bem jurídico;
Crimes complexos: o mesmo tipo legal visa tutelar dois ou mais bens jurídicos (ex.: 210º CP – o crime de roubo
protege bens jurídicos patrimoniais e bens jurídicos pessoais).
3. Crimes individuais: o bem jurídico protegido é um bem individual (exs.: homicídio, ofensas corporais, crimes
contra a auto-determinação sexual, etc.);
Crimes supra-individuais: os bens jurídicos tutelados tem um caráter supra-individual (exs.: crimes contra a
segurança interna ou externa do Estado, falsificação de moeda, corrupção, etc.).
8.3 Quanto ao sujeito
1. Crimes comuns: o tipo legal de crime admite que o autor seja qualquer pessoa;
[Na prática, esta categoria de crimes engloba a grande maioria dos crimes previstos na Parte Especial do CP, cujas normas
legais começam, frequentemente, por “Quem”.]
Crimes específicos: só há preenchimento do tipo se o autor for uma pessoa com determinadas qualidades ou
sobre a qual recai um dever especial – há uma limitação do número de candidatos positivos à norma (exs.:
crimes cometidos no exercício de funções públicas, ou por médicos, solicitadores ou advogados):
a) Crimes específicos puros (ou próprios): o dever especial ou qualidade fundamentam a sua
responsabilidade (se não fosse esse dever ou qualidade não existia crime);
b) Crimes específicos impuros (ou impróprios): o dever especial ou qualidade do autor apenas agravam a
sua responsabilidade, pois a conduta consubstancia um crime mesmo que levada a cabo por outrem
(ex.: crime de coação – agravado se praticado por um funcionário público – art. 155º/1/d) CP).
8.4 Quanto ao momento da consumação
1. Crimes de realização instantânea: o momento de consumação do crime não se prolonga no tempo (ex.:
homicídio – a consumação do resultado proibido (homicídio) não se prolonga no tempo);
Crimes permanentes: a consumação do crime perdura no tempo (ex.: crime de sequestro – art. 158º CP).
8.5 Casos especiais de tipos de tipicidade
Os casos especiais a que nos referiremos são os “crimes agravados pelos resultado”.
Crimes agravados pelo resultado lato sensu Crimes agravados pelo resultado stricto sensu
(em específico: os crimes preterintencionais) (vide: art. 18º CP)
O resultado é necessariamente um crime negligente O resultado não tem que ser um crime

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Os crimes preterintencionais podem caraterizar-se pela existência de um (1) crime doloso e de um (2) evento
agravante que não foi abrangido pelo dolo do agente, o qual consubstancia um crime negligente. Nestas hipóteses,
dá-se a agravação da pena relativa à fusão dos dois crimes, o doloso e o negligente (fusão essa que não se confunde
com o concurso de crimes). O que individualiza estes crimes preterintencionais é o “perigo típico” de produção do
resultado agravante. O agente deveria saber que a sua conduta comporta um perigo de produção do evento agravante,
pelo que atuou com negligência consciente (ex.: quem incendeia uma casa está deve estar consciente de que com
esse ato pode vir a provocar a morte de alguém).
Os crimes agravados pelo resultado stricto sensu remetem-nos, como referido, para o art. 18º CP. Estão aqui em causa
aqueles crimes em que da execução da conduta proibida típica deriva um resultado. Para que se verifique o
agravamente, esse resultado, que é visto como decorrência da conduta típica nuclear, terá de ser imputável ao agente
pelo menos a título de negligência (ex.: a prática de violência doméstica pode repercutir-se na morte da vítima).
O que distingue estas duas figuras é a circunstância de, no primeiro caso, existirem necessariamente dois crimes,
sendo que o segundo é um resultado “normal” ou “previsível” do primeiro: ao praticar o crime doloso, o agente sabe
que cria o perigo, quase necessário, de produzir o resultado agravante. Já no que respeita aos crimes agravados pelo
resultado stricto sensu, o resultado agravante nem sempre será um crime, bastando que esse resultado, que decorre
diretamente da prática de um crime, seja também imputável ao agente.

Capítulo 9 – A conduta ilícita (o ilícito)


1. Noção de ilícito
A ilicitude é uma categoria material que encerra, em si, uma ideia de desvalor, de desaprovação da ordem jurídica.
Este conceito expressa uma imagem de negação de certos valores. Assim sendo, a tipicidade vem apenas concretizar
a ilicitude num tipo legal de crime. Enquanto que a ilicitude expressa a qualidade ofensiva do comportamento, a
tipicidade dá forma à proibição do comportamento ofendido.
De acordo com o que foi dito, a ilicitude revela-se na ofensa a bens jurídico-penais, estando profundamente associada
ao princípio da ofensividade [vide supra: Título II, Cap. 7, 1.]. Alguns autores distinguem, a este respeito, a ilicitude
material da ilicitude formal. A primeira verificar-se-ia quando a conduta típica não estivesse associada a nenhuma
justificação, e a segunda teria lugar pelo mero preenchimento dos elementos do tipo. Ora, no fundo esta destrinça
reconduz-se ao que foi dito sobre a distinção entre ilicitude e tipicidade; a ilicitude será sempre uma ilicitude material,
porquanto a chamada “ilicitude formal” é, na verdade, um conceito correspondente ao de tipicidade.
1.1 Desvalor de ação e desvalor de resultado
Tanto o desvalor de ação como o desvalor de resultado são desvalores com dignidade penal, porque ofensivos de bens
jurídico-penais (conduzem ao merecimento da pena).
Desvalor de ação Desvalor de resultado
Atitude do agente face ao facto que leva a cabo, Alteração do real verdadeiro que causa lesão de bens jurídicos
traduzindo-se num juízo de valor ético-social sobre a ação (ou seja, a concretização dos elementos objetivos do tipo legal
da pessoa. de crime).
 A importância do desvalor da ação é evidente em  O ilícito-típico expressa uma valoração sobre os
matéria de punibilidade da tentativa: não há aqui um comportamentos humanos que ascendem à dignidade
dano-violação, mas a ação do agente (tentativa) não penal, distinguindo-os, por vezes, em função do resultado
pode ser ignorada pelo ordenamento penal. provocado (ex.: resultado danoso vs resultado perigoso).
O recorte de diferenças apontado perderia toda a razão de ser se seguida a “escola de Bona”, cujo ponto nevrálgico
arranca da ideia de que o que é relevante, em sede de comportamento típico, é o desvalor de ação, sendo o desvalor
de resultado uma mera condição objetiva de punibilidade. Consequentemente, o resultado seria totalmente
irrelevante para a determinação do conteúdo do ilícito-típico, não relevando a distinção entre resultado danoso e
resultado perigoso.
Em nosso entendimento, e que corresponde às expressões normativas do ordenamento penal vigente, o ordenamento
penal partilha de uma dimensão objetiva. A norma penal é uma norma de valoração: se o direito ordena um
determinado comportamento e proíbe outro, houve uma anterior valoração que demonstrou ou valor do
comportamento ordenado e o desvalor do comportamento proibido. Consequentemente, o juízo de valoração
verifica-se num momento lógico e temporal anterior à determinação normativa.
2. Noção de bem jurídico
! Podemos definir o bem jurídico como um pedaço da realidade com densidade axiológica olhado como relação
comunicacional a que a ordem jurídica atribui dignidade penal.

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Ainda que se aponte aqui esta definição, a verdade é que não pode afirmar-se existir uma noção unânime de bem
jurídico. Apesar dessa disparidade conceitual que (ainda) se verifica na atualidade, o bem jurídico mantém-se como
pedra angular do direito penal.
A doutrina do bem jurídico trouxe ao direito penal uma visão mais integrada e sistemática:
a) Possibilitou a criação de uma ligação entre a função do direito penal (a conduta punível consubstancia a lesão
de bens jurídicos) e a necessidade e merecimento de tutela por parte da política criminal (tutela de bens
jurídicos);
b) Obriga o legislador penal a basear as proibições ou imposições penais na realidade, designadamente no
pedaço da realidade corporizado pelo bem jurídico;
c) É decisiva para a divisão com que os crimes aparecem na parte especial do CP e permite a delimitação dos
critérios de diginidade penal;
d) Permite tornar claras as opções do legislador quanto ao âmbito e forma de proteção dos bens jurídicos.
Perante as indicadas funções que o conceito de bem jurídico exerce, facilmente se conclui pela importância da sua
manutenção para a continuação da interpretação do direito penal enquanto sistema axiologicamente fundado.
2.1 Breve aproximação e compreensão históricas
1. Séc. XVIII: a doutrina penal encontrava-se sob imensa discórdia acerca do conceito de crime. Esta indefinição
levou ao surgimento de vozes críticas, manifestando a importância de uma maior clarea dogmática.
2. Início do séc. XIX: no contexto da procura de um conceito uno de crime, surge uma primeira aproximação à
ideia de bem jurídico, como o objeto da ofensa de direitos subjetivos. Posteriormente, no contexto do espírito
positivista dominante, verifica-se a efetiva afirmação do conceito de bem jurídico. Nas palavras de Birnbaum,
os bens jurídicos seriam bens que garantem a todos de igual forma o seu bem-estar no Estado, reconduzindo-
se à esfera jurídica individual de cada um.
3. 2ª metade do séc. XIX: a ideia de bem jurídico ganha força, durante o período áureo do positivismo
(designadamente, pela escola de Hegel), enquanto elemento nuclear do conceito de crime. Nos finais do séc.
XIX Binding confere ao bem jurídico estatuto de cidadania na doutrina geral da infração, utilizando,
inclusivamente, pela primeira vez, o conceito com a sua atual denominação. Ainda assim, é apenas com v. Liszt
que o conceito de bem jurídico se torna conceito central da doutrina geral da infração, passando a ser
entendido como as condições de vida e os interesses juridicamente protegidos.
4. Séc. XX: a conceção positiva de bem jurídico veio rapidamente a ser abandonada, por se mostrar insuscetível
de oferecer um verdadeiro conteúdo material ao conceito de crime. Assim sendo, ao longo do séc. XX foram
desenvolvidas diversas conceções de bem jurídico, com o intuito de encontrar aquela que se afirmasse como
pilar da dogmática penal.
2.2 Estrutura do bem jurídico e sua ordenação
Uma primeira nota a reforçar é a de que não se deve confundir o bem jurídico com o objeto da conduta.
Bem jurídico Objeto da conduta
Pedaço abstrato da realidade com densidade axiológica a que Manifestação concreta da rutura de uma relação
a ordem jurídica atribui dignidade penal comunicacional pressuposta pelo tipo legal de crime
Ex.: bem jurídico vida humana Ex.: vida de uma vítima específica (A)
Daqui decorre não poder compreender-se o bem jurídico como uma realidade concreta, pertencente ao real
verdadeiro. As suas funções só se têm como cumpridas se entendido na sua abstração.
Atualmente deve defender-se uma conceção teleológico-material e racional do bem jurídico.
A conceção de bem jurídico e o seu papel alteram-se face aos problemas colocados pela sociedade de risco. Este
movimento veio conduzir a uma desmaterialização do conceito e, inclusivamente, a que seja posta em causa a própria
possibilidade de manutenção do conceito. Ora, de facto, na sociedade contemporânea os riscos aumentaram de forma
exponencial. No entanto, é preciso entender que esta é a nossa condição – viver no risco. O momento presente apenas
difere do passado em termos quantitativos. Este novo paradigma é, essencialmente, fruto da era tecnológica que
atravessamos. Face a esta alteração de paradigma a questão que se coloca é a de saber se serão os novos riscos
controláveis e qual o papel do direito penal nesta nova sociedade. As soluções apresentadas para esta questão
dividem-se em três grandes grupos:
a) Posições restritivas: a função penal deve restringir-se à tutela de direitos individuais, mantendo-se esta tutela
segundo os critérios já experimentados; os “novos riscos” devem ser tutelados por uma “terceira via”,
normalmente associada a um direito administrativo sancionatório;

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
b) Posições funcionais: o direito penal, enquanto instrumento de governo da sociedade, deve estender a sua
tutela, bem como deverão flexibilizar-se alguns princípios da teoria geral da infração, de modo a conformar
um verdadeiro “direito penal do risco”;
c) Posições intermédias: a solução a seguir passa pela promoção de um dualismo entre o direito penal clássico e
o direito penal administrativo ou o direito penal secundário, acomodando-se os diversos tipos de “novos
riscos” consoante as diferentes necessidades que exprimem.
A doutrina penal ainda não chegou a um consenso sobre um conceito de bem jurídico que consiga reconduzir todos
os tipos penais a uma mesma explicação racional e que, para além disso, se assuma como medida crítica para a
justificação da criminalização de certos comportamentos. Algumas propostas doutrinais neste sentido são:
 Conceção pessoal de bem jurídico: o bem jurídico apenas pode ser um interesse pessoal carente de proteção
penal. Consequentemente, os bens jurídicos universais fundamentam-se, não no interesse da comunidade,
mas na ideia de que os mesmo servem um interesse pessoal ou de que visam servir o livre desenvolvimento
da pessoa (ex.: ambiente). Nestes termos, os “mega riscos” que não apresentem qualquer ligação à pessoa
deverão ser controlados por outros ramos do direito ou por regulação não jurídica.
Críticas que se podem apontar, segundo o nosso ponto de vista, a esta conceção:
 Ao direito penal incumbe a função de contenção e punição de comportamentos que violam
interesses comunitário de ressonância ética;
 O bem jurídico não deve ser delimitado por padrões exteriores ao sistema jurídico-penal, pois,
caso contrário, acaba esvaziado do seu conteúdo material;
 Não deverá perfilhar-se um retorno ao individualismo extremo.
 Teoria social: o crime, enquanto tal, põe em causa o sistema social, configurando, assim, um dano social.
Consequentemente, os bens jurídicos correspondem às estruturas sociais cuja proteção é condição de
manutenção da sociedade (ou seja: as condições organizatórias para a convivência humana).
Críticas a apontar a esta teoria da danosidade social:
 No que toca à questão do bem jurídico enquanto conceito sistemático, esta posição é vazia de
conteúdo – há um afastamento da discussão sobre o bem jurídico, a favor de um enfoque na
questão da função do direito penal;
 Atribui-se ao direito penal a função de assegurar as normas e instituições de uma sociedade
livremente formada, e não a de proteção de bens jurídicos.
 Doutrina da validade da norma: o ilícito corporiza-se na violação da norma (e não na lesão de bens jurídicos),
sendo a função do direito penal repor essa mesma validade mediante punição do comportamento.
Como críticas a esta conceção, podemos dizer que:
 Este entendimento das coisas tanto legitima o direito penal num regime democrático como o
direito penal de um regime autoritário (qualquer norma, desde que aprovada legitimamente,
será válida e, consequentemente, objeto de proteção penal);
 A formulação apresentada retira do bem jurídico a sua função de pedra angular do sistema.
 Concenção coletiva de bem jurídico: o bem jurídico coletivo carateriza-se como aquele “bem” que permite a
possibilidade de gozo por todos, não sendo exclusivo nem excluindo nenhum. Esta conceção permite incluir
os “novos riscos” no âmbito de proteção do direito penal.
Esta conceção não é, ainda, isenta de críticas uma vez que defendemos que estes novos bens jurídicos
devem ser compreendidos como bens jurídicos supra-individuais, pois o direito penal deve ser
entendido a partir do indivíduo.
3. Fundamentos de justificação
São as normas penais que permitem uma reflexão sobre as causas de justificação (de uma atuação do agente) assente
em um sentido sistemático e hermenêutico.
Em termos muito sintéticos, podemos dizer que as normas jurídicas se estruturam em dois elementos:
Normas jurídicas (em geral) Normas jurídico-penais
 Elemento de facto: âmbito de aplicação da norma.  Norma primária: conducta delictiva.
 Elemento de direito: consequência jurídica.  Norma secundária: pena aplicável.
Os tipos penais são normas de comportamento, que se podem ordenar em quatro grandes grupos:
1. Proibições que afastam um determinado comportamento;
2. Imposições que ordenam um determinado comportamento;

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3. Permissões que autorizam um determinado comportamento;
4. Isenções que autorizam uma determinada omissão de um comportamento.
! Nestes termos, pode dizer-se que as causas de justificação são aquelas situações em que um facto típico não é ilícito,
uma vez que a lei o permite ou o isenta. Estão em causa situações em que o legislador não valora de modo negativo a
ofensa a um bem jurídico-penal, com fundamento em um outro interesse prevalecente ou interesse equivalente.
[Ex.: A agride B, dando-lhe um soco. À primeira vista, estaria aqui em causa uma ofensa à integridade física. Porém, se A consentiu
a agressão, por se encontrar num treino de boxe com B, há uma renúncia daquele primeiro à proteção do bem jurídico integridade
física – equivalência de interesses. Noutro prisma, se A agride B com o intuito de se defender de uma agressão de B, portanto, em
legítima defesa, a conduta de A não é ilícita na medida em que, perante o conflito de interesses, o seu interesse é prevalecente.]
Como deriva do que foi dito, as causa de justificação acarretam tanto uma falta de desvalor de ação, como uma falta
de desvalor do resultado.
3.1 A estrutura
O modo como se compreende a estrutura dos fundamentos de justificação depende da posição que se adote face à
relação entre tipicidade e ilicitude, bem como depende também do que se entende sob a designação da norma.
Nestes termos, tanto se pode defender, de acordo com a doutrina maioritária, que (1) os fundamentos de justificação
não excluem a tipicidade, como, de uma outra perspetiva, se pode (2) compreender os fundamentos de justificação
enquanto elementos negativo do tipo, que anulam a própria tipicidade.
Como referido [vide supra: Cap. 9, 1.], o ilícito constitui o conteúdo material do tipo: a tipicidade é a mediatização da
ilicitude. Neste sentido, Faria Costa entende que a relação que se estabelece entre os fundamentos da incriminação
(ilícitos-típicos) e os fundamentos de justificação é uma relação de complementariedade funcional: estes últimos
contribuem para a conformação negativa do conteúdo material do tipo (= a ilicitude), delimitando a ilicitude mediante
a individualização dos comportamentos que, dentro no âmbito daquele tipo legal de crime, são permitidos. Como se
compreende, a posição adotada corresponde à corrente minoritária acima exposta (nº 2).
Esta perspetiva justifica-se com base num juízo lógico simples: os fundamentos de justificação resolvem um conflito
de interesses relativo a bens jurídicos, pelo que não se tratar de eliminar a ofensa ao bem jurídico em causa (pois o
bem jurídico não se confunde com o tipo legal de crime), mas antes de um afastamento do desvalor da ofensa
(portanto, de delimitar o conteúdo material do tipo) – não há uma exclusão da tipicidade (uma exclusão da ofensa ao
bem jurídico), mas sim uma delimitação negativa do conteúdo material do tipo (uma circunscrição de ilicitude). Isto
porque as causas de justificação não valem para o bem jurídico X ou Y, mas sim para as situações W ou Z.
De tudo o quanto vem a ser dito resultam importantes consequências no patamar das exigências impostas pelo
princípio da legalidade. De facto, os tipos incriminadores e os fundamentos de justifiação cumprem funções de sentido
antagónio: os primeiros assumem como função a fundamentação da ilicitude, e os segundos a exclusão da ilicitude.
Daqui resulta que a função de garantia desempenhada pelo tipo na sequência do princípio da legalidade não se aplica
aos fundamentos de justificação, pois estes diminuem as margens de punibilidade. Não se aplicarão, portanto, quanto
aos fundamentos de justificação as refrações do princípio da legalidade, como o princípio da irretoratividade, ou a
proibição da analogia, etc.
3.2 Princípio da unidade da ordem jurídica
O princípio da unidade da ordem jurídica encontra-se expressamente consagrado no art. 31º/1 CP, nos termos do
qual: “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”.
Este princípio prescreve, então, que se uma conduta é considerada lícita por outro ramo do direito, tal valoração tem
de estender-se ao direito penal.
Neste contexto, perguntar-se-á: a partir deste princípio retira-se uma ideia de unidade da ilicitude, ou pode defender-
se uma específica ilicitude penal? Julgamos que o princípio da unidade da ordem jurídica não tem de ser compreendido
a partir exclusivamente do modelo vertical de cunho kelsiano. A ideia de unidade que decorre deste princípio traduz-
se numa conexão, sem contradições, entre todas as normas jurídicas. É esta conexão que possibilita a congruência
material entre os vários princípios jurídicos que enformam a unidade do direito. Portanto, havendo conflitos ou
contradições (que os há), cabe à dogmática, mediante um esforço clarificador e mediador, superá-los.
O sentido de unidade da ordem jurídica não leva, hoje, implícita uma ideia de completeza formalmente fechada. Daí
que unidade pressuponha, ao lado de uma dimensão assente num denominador comum, uma outra dimensão
composta por um feixe de finalidades convergentes. Em suma, o princípio da unidade da ordem jurídica não pressupõe
um entendimento estritamente formalista e rígido da ilicitude em termos globais.
3.3 Elementos subjetivos de justificação

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Maria Paixão Direito Penal I – 2016/17
A discussão em torno da exigibilidade de elementos subjetivos (portanto, respeitantes à conduta própria do sujeito
em causa) no âmbito da justificação tem-se feito, sobretudo, a partir da figura da legítima defesa.
[Para ilustrar a importância da introdução de elementos subjetivos nesta matéria, atente-se no seguinte exemplo: A dispara sobre
B com o intuito de o matar, tendo planeado a prática do crime com minúncia. Porém, no momento em que dispara sobre A, este,
tendo também o intuito de matar B, dispara sobre ele, falhando. De certo se compreende que não seria razoável vir B alegar
legítima defesa para obviar à punição pela morte de A.]
Atualmente, a doutrina é consensual quanto à exigência de patares mínimos de subjetividade. Os elemento subjetivos
mínimos, que reúnem o consenso da doutrina, são:
 A consciência de atuar ao abrigo de uma permissão normativa: o agente deve conhecer a existência de uma
causa justificadora correspondente à sua atuação;
 O conhecimento dos elementos objetivos da justificação: o agente tem de reconhecer que se encontra em uma
situação justificadora, ou seja, deve ter a consciência de que, a situação específica em que se encontra, lhe
permite atuar daquela forma.
Exigências subjetivas além destas apenas poderão ser determinadas quanto a cada específica causa de justificação.
Ora, cumpre agora saber como deve ser punido o agente que desconhece os pressupostos objetivos de justificação e,
de outro lado, aquele que erroneamente julga atuar ao abrigo de uma justificação. Analisemos as duas hipóteses:
 Hipótese de o agente desconhecer os pressupostos objetivos de justificação – caso objetivo de justificação.
Nestas situações, encontram-se preenchidos os elementos objetivos da causa de justificação (verifica-se a
situação típica prevista como justificativa da exclusão da ilicitude), pelo que deve ser afastado o desvalor de
resultado. O desvalor de ação persiste pois o agente atuou com a consciência de praticar um comportamento
ético-axiologicamente censurável (desconhecendo que estavam preenchidos os elementos de uma causa de
justificação); mas não há desvalor de resultado uma vez que a conduta levada a cabo corresponde,
objetivamente, a uma causa de exclusão da ilicitude (ainda que o agente não se tivesse apercebido disso). O
art. 38º/4 CP, relativo a uma causa específica de exclusão da ilicitude, prescreve para estes casos a punição do
comportamento do agente com a pena aplicável à tentativa. O regime da tentativa será, assim, de aplicar
analogicamente a todas estas hipóteses.
 Hipótese de o agente julgar erroneamente atuar ao abrigo de uma justificação – caso de justificação putativa.
Esta situação (por ex.: A, ameaçado por B com uma arma de brincar, dispara sobre este, pensando atuar em
legítima defesa) encontra resposta no art. 16º/2 CP: o erro sobre um estado de coisas exclui o dolo do agente,
bem como a ilicitude do facto. Ainda assim, nos termos do nº 3 desse preceito, se o erro for evitável, o agente
poderá ser responsabilizado a título de negligência.
3.4 Génese dos fundamentos de justificação
A génese dos fundamentos de justificação prende-se com o reconhecimento de que o tipo legal de crime não esgota
o juízo de ilicitude. Há, no âmbito desta matéria, uma ponderação de interesses, a qual fará sobressair o interesse
prevalecente (o bem jurídico mais denso). Esta matriz deve ser, no entanto, adapatada no que diz respeito ao
consentimento: não há aqui um conflito entre valores, mas sim uma ideia de respeito pela vontade do titular do bem
jurídico em causa.
3.5 Efeitos dos fundamentos de justificação
Uma primeira nota de suma importância é a de que verificando-se a conjugação dos elementos objetivos e subjetivos
da causa de justificação, estamos perante um facto lícito. Tratando-se uma conduta lícita, à mesma não pode ser
oposta a legítima defesa, nem outro direito de intervenção (ex.: a uma conduta em legítima defesa não pode se pode
responder com uma conduta hitoteticamente também em legítima defesa).
NOTA: a situação de justificação não pode ser provocada intencionalmente pelo agente.
3.6 “Concurso” de vários fundamentos de justificação
Todas as causas de justificação são consideradas válidas paralelamente. Este princípio da aplicabilidade paralela de
causas de justificação em, contudo, uma exceção: a denominada “relação de especialidade em sentido funcional”.
A ação não é justificada quando faltam os pressupostos específicos de uma particular causa de justificação à qual são
subsumíveis os factos, ainda que possam estar presentes os pressupostos de outra causa de justificação.
Se há concorrência de duas causas de justificação, têm de verificar-se os pressupostos dessas duas causas.
4. Concretizações legais de fundamentos de justificação
4.1 A legítima defesa

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A legítima defesa constitui o fundamento de justificação mais consensual na dogmática penal, excluindo a ilicitude
com base em dois fundamentos principais que reúnem assentimento generalizado:
Defesa da ordem jurídica Direito de proteção contra a ameaça a bens jurídicos
Partindo destas considerações, facilmente se compreende a formulação do art. 32º CP, o qual patenteia uma ideia
forte de prevalência do que é justo sobre aquilo que é injusto. A legítima defesa deve ser compreendida como
manifestação individual da necessidade de defesa da ordem jurídica.
Já não reúnem este consenso generalizado as matérias do fundamento e dos limites da legítima defesa, no âmbito dos
quais se mantém um aceso debate na doutrina. Na dogmática portuguesa existe uma grande discussão no que toca à
questão da proporcionalidade da legítima defesa. Na verdade, estando em causa a “preservação do Direito na pessoa
do agredido” (DIAS, Figueiredo), seria de excluir qualquer exigência de proporcionalidade, não se devendo diminuir as
margens de liberdade do indivíduo na defesa da ordem jurídica. Não obstante, esta posição apresenta algumas
fragilidades, designadamentea circunstância de a atribuição de um caráter absoluto a esta causa de justificação
tornaria a legítima defesa ilimitada, o que não é admissível num ordenamento jurídico que erige a ideia de
proporcionalidade a trave-mestra.
Por forma a podermos aferir os limites internos da legítima defesa podemos socorrer-nos da figura do abuso do direito:
os limites da legítima defesa não decorrem da qualidade dos bens defendidos (não importa que o bem defendido seja
qualitativamente inferior ao bem ofendido), mas antes da razoabilidade da própria defesa.
4.1.1 Requisitos da legítima defesa
O art. 32º CP elenca três requisitos da legítima defesa:
 Agressão atual e ilícita contra interesses juridicamente protegidos;
 Ação de defesa necessária para afastar a agressão;
 Intuito de defesa de bens jurídicos (animus defendendi).
a) Quanto à agressão:
No que respeita o primeiro requisito referido, exige-se uma agressão atual e ilícita.
Quanto à atualidade da agressão, entende-se que deverá estar em causa uma agressão cuja execução já se tenha
iniciado, ainda que não tenha sido concluída. Poderá perguntar-se se os atos preparatórios de um facto típico poderão
ser incluídos neste pressuposto. Parece ser de concluir que não é de considerar atual uma agressão antes da existência
de qualquer ação. Haverá uma agressão atual quando esta já se encontra em execução ou a sua execução é iminente.
Relativamente à ilicitude da agressão, a sua aferição não se confina à ordem jurídico-penal. O juízo de ilicitude é feito
em relação à totalidade da ordem jurídica.
É ainda de notar que a agressão tem de ser dirigida contra interesses juridicamente protegidos. Como é evidente, a
proteção aqui em causa não tem de ser, necessariamente, uma proteção penal, bastando que os interesses em causa
sejam protegidos pela ordem jurídica (não bastará, consequentemente, que estejam em causa interesses morais).
Os bens ou interesses suscetíveis de defesa ao abrigo do art. 32º CP poderão ser tanto bens pessoais como bens
patrimoniais. Refira-se que a referência do preceito a bens “do agente ou de terceiro” traduz uma ligação genética da
legítima defesa à individualidade dos bens jurídicos defendidos. Daí que não caibam aqui, segundo o nosso ponto de
vista, bens supra-individuais, reconduzidos aos interesses do Estado ou da sociedade.
b) Quanto à defesa:
O segundo requisito postula que a ação de defesa seja um meio necessário para repelir a agressão. Isto significa que
a ação de defesa deverá consubstanciar-se em um meio adequado a fazer terminar a agressão, e não numa qualquer
represália. A natureza e intensidade da conduta levada a cabo devem restringir-se ao necessário para impedir a
agressão. O desrespeito pela necessidade do meio traduz-se em um excesso de legítima defesa, passando o facto a
ser considerado ilícito – art. 33º/1 CP.
c) Quanto ao animus defendendi:
Como para qualquer causa de justificação, o agente tem de conhecer que se encontra a atuar ao abrigo de uma
permissão. Mas, mais do que isso, o agente terá de, no âmbito da legítima defesa, pretender evitar a agressão.
Um setor da doutrina tem perfilhado a ideia de que não é exigível uma vontade de defesa de bens jurídicos agredidos.
Porém, entendemos que o que aqui está em causa não é uma atitude interior do agente, mas sim a consagração de
um patamar mínimo de subjetividade: não é razoável a invocação de uma causa de justificação quando o agente não
visava atuar ao seu abrigo, mas antes atuava ao abrigo de outras motivações (por ex.: vingança).

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NOTA: o art. 32º CP engloba no âmbito da legítima defesa ainda a hipótese do “auxílio necessário” – a atuação do
agente em defesa de bens ou interesses juridicamente protegidos de terceiro –, sendo que também aqui se exige a
verificação dos requisitos aplicáveis à legítima defesa de interesses próprios do agente.
4.2 O exercício de um direito
Em certos casos, é a própria lei que isenta o agente de responsabilidade criminal na medida em que lhe atribui um
direito de agir – art. 31º/2/b) CP. Evidentemente, o exercício de um direito, como causa de justificação, deve ter lugar
dentro dos limites da permissão. Por outras palavras: não é toda e qualquer forma de exercício de direitos que se
assume como causa de justificação. O limite da legitimidade do exercício do direito corresponde ao abuso desse
mesmo direito.
Ora, como referido [vide supra: Cap. 9, 3.2], a problemática das causas de justificação da conduta está intimamente
ligada ao princípio da unidade da ordem jurídica. Nestes termos, aquele que exerce um direito não pode agir contra o
Direito no seu todo. Daqui parece resultar um paradoxo: os direitos não podem ser exercidos em ofensa à ordem
jurídica; mas o exercício de um direito é causa de justificação de uma conduta que, exatamente por ofender a ordem
jurídica, consubstancia uma infração (uma conduta ilícita). Na verdade, este raciocínio nada tem de paradoxal. Com
efeito, o exercício de um direito, como causa de justificação, é objeto de dois tipos de limites:
 Limite instrínseco: ao abrigo da lei civil (a qual tem aqui relevo em função do princípio da unidade da ordem
jurídica), “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa fé, pelos bons constumes ou pelo fim social ou económico desse direito” – art. 334º CC. O instituto
do abuso do direito, aqui em causa, edifica os limites cuja ultrapassagem desencadeia uma ilegitimidade: o
direito nunca pode ser exercido de forma contrária à boa fé, aos bons costumes ou ao seu fim económico ou
social. No fundo, isto significa que uma conduta, ainda que sendo ilícita por violar uma disposição legal de
qualquer ramo do direito, poderá justificar-se por consubstanciar o exercício de um direito; mas esta
justificação deixa de valer quanto o exercício desse direito é manifestamente abusivo.
 Limite extrínseco: é também uma limitação à invocação desta causa de jutificação a coexistência de direitos
de terceiros igualmente invocáveis. O limite a que nos referimos reconduz-se, no fundo, ao instituto da colisão
de direitos – deixa de ser justificável a conduta do agente em exercício de um direito quando tal conduta tenha
restringindo o exercício de um outro direito de terceiro, com o qual é incompatível.
Para concretizar o que temos vinda a dizer, exemplifique-se: a prática de um desporto como o boxe pode traduzir-se
numa conduta, à primeira vista, ilícita: a ofensa à integridade física de outro praticante. Porém, havendo
consentimento de ambos os praticantes, cada um deles atua em exercício do seu direito ao desenvolvimento da
personalidade. Em casos normais, as lesões causas no decurso de um combate de boxe não são suscetíveis de
consubstanciar um crime de ofensa à integridade física. No entanto, a lesão causada em violação das regras próprias
dos combates de boxe já não integrará qualquer causa de justificação – há aqui uma situação de abuso, pois a conduta
do agente vai além daquilo que é considerado socialmente adequado.
Como facilmente se compreende, o campo de aplicação pradigmática desta causa de justificação compreende as
atuações oficiais das autoridades do Estado, as quais são titulares de “direitos de intervenção” (por ex.: a detenção
realizada por um agente policial se realizada fora do contexto do exercício da atividade policial constituiria uma facto
típico e ilícito).
4.3 O estado de necessidade justificante
4.3.1 Considerações gerais
O estado de necessidade justificante, também designado de direito de necessidade, encontra consagração no art. 34º
CP. O seu fundamento radica, predominantemente, no princípio do interesse predominante: este princípio, nascido
com a filosofia de Hegel, assenta na comparação entre os bens ou interesses salvos e os bens ou interesses
sacrificados, defendo considerar-se justificada a conduta salvadora do bem ou interesse mais importante. Este
princípio traduz-se também na maior utilidade social do interesse protegido. Com efeito, as magens de proteção dos
bens jurídicos de maior valor são mais extensas. Aqueles bens que integram o núcleo central do existir humano têm,
necessariamente, de gozar de uma mais ampla margem de proteção pelo que se justifica o sacrifício de outros
interesses “menores”. Porém, entendemos que o que está aqui em causa não é uma espécie de “solidariedade social”,
que obriga o titular do interesse ou bem sacrificado a suportar a agressão, mas sim a circunstância de, em face de
concorrência de vários interesses, deverá ser sacrificado aquele que for menos preponderante.

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A este respeito poderia ainda referir-se o princípio do meio justo para um fim justo: este princípio, com origem nas
correntes neo-kantianas e positivistas, justifica as condutas que se traduzem na utilização de meios adequados à
proteção de um interesse ou bem jurídico objeto de um perigo atual.
4.3.2 Requisitos do estado de necessidade justificante
a) O perigo atual:
O bem ou interesse protegido tem de se encontrar efetivamente em perigo. A exigência da atualidade do perigo é
aqui menos restritiva do que no âmbito da legítima defesa: a atualidade do perigo não significa, necessariamente, a
sua iminência; quer dizer, isso sim, que a remoção desse perigo não pode ser adiada, sob pena de não produzir
qualquer efeito salvador. No fundo, deverá questionar-se: a atuação do agente não poderia ter sido protelada no
tempo sem que com isso se obstasse à efetiva proteção do bem?
b) O perigo não voluntariamente criado:
A alínea a) do art. 34º CP estabelece expressamente que a situação de perigo não pode ter sido criada pelo agente.
Neste contexto da provocação do perigo, poderá perguntar-se se o estado de necessidade não inclui apenas as
hipóteses de premeditação (o agente premetidou o crime, tendo criado de propósito a situação de perigo) ou também
aquelas em que, não havendo premeditação, o perigo foi voluntariamente criado pelo agente (o agente criou um
perigo e procura, posteriormente, removê-lo). Deverá aqui convocar-se a figura da “culpa exclusiva”, objeto de
regulação no art. 339º/2 CC. Ora, entende-se que o limite da voluntariedade não exclui apenas os casos de
premeditação. Portanto, também nos casos em que o agente, ainda que não tenha atuado de forma premeditada,
seja responsável pelo perigo que ameça o bem jurídico de que é titular, não poderá invocar estado de necessidade
justificante como causa de justificação da sua conduta tendente a remover aquele perigo. Isto sem prejuízo de haver
causa de justificação quando a atuação ao abrigo do estado de necessidade visa remover uma situação de perigo
causada pelo próprio agente mas em que a proteção incide sobre interesses de terceiro.
c) A adequação do meio:
O art. 34º CP estabelece ainda que o facto praticado tem de ser um meio necessário para afastar o perigo. Portanto,
exige-se uma adequação do facto à finalidade de salvaguarda de interesse ou bem jurídico. Este requisito tem relevo
autónomo uma vez que não se reduz à idoneidade do meio: não basta que o agente empregue um meio adequado à
salvaguarda do interesse em perigo, exigindo-se ainda que o recurso àquele meio se situe dentro dos limites da
adequação da conduta à remoção do perigo (está aqui em causa uma ideia de proporcionalidade).
d) A ponderação de interesses:
Este último requisito comporta duas dimensões, consagradas nas alíneas b) e c) do art. 34º CP.
 Superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado (al. b)): a partir dos princípios
e valorações axiológicas da ordem jurídica, há que realizar uma ponderação entre os interesses concretamente
em causa. Não está aqui em causa a mobilização de um qualquer critério puramente objetivo de
hierarquização de bens ou interesses em conflito, devendo a valoração ser feita em concreto, ainda que tendo
como pano de fundo os princípios norteadores da ordem jurídica;
 Razoabilidade da imposição do sacrifício do interesse do lesado, em atenção à natureza ou valor do interesse
ameaçado (al. c)): este critério procura afeiçoar o primeiro, na medida em que exige que aquela ponderação
seja sempre realizada à luz do valor e natureza dos interesses em colisão. Por exemplo, pelo valor intrínseco
ao direito à vida, não será legítimo impôr o sacrificío de uma vida para a salvação de duas ou mais vidas. Isto
porque, os interesses em causa têm igual valor, não sendo razoável considerar alguns deles “superior”.
Consequentemente, acrescenta-se àquela ponderação objetiva um critério substantivo.
Em matéria de estado de necessidade, poderia perguntar-se se não seria também um requisito a vontade, no espírito
do agente, de defender o interesse preponderante, ou seja, um elemento subjetivo do agente. O afastamente desta
exigência, por Faria Costa, assenta em dois argumentos: (1) o direito penal é uma ordem de garantia e liberdade, pelo
que não se deve exigir mais do que o conhecimento, pelo agente, da situação de necessidade; (2) o teor literal do art.
34º CP não indicia um requisito com este conteúdo. Logicamente que se exige que o agente tenha conhecimento da
causa de justificação (pois este é um requisito geral da aplicação das causas de justificação), mas não é razoável
procurar averiguar a vontade do agente ao atuar no sentido de remover o perigo (a intenção não é aqui relevante).
4.4 O consentimento
4.4.1 Considerações gerais
O consentimento, enquanto causa de justificação, é manifestação dos valores da autonomia e da liberdade da pessoa.
Costa Andrade acentua, a este respeito, uma importante distinção a considerar:

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Consentimento Acordo
Há um conflito de interesses que se traduz na lesão de Não há um conflito de interesses nem a lesão de um
um bem jurídico, sendo esta lesão justificada pelo bem jurídico. Ao invés, a conduta do sujeito contribui
assentimento dado pelo titular do bem lesado. para a fruição plena do direito de que é titular a pessoa
Ex.: A consente que B lhe dê um murro (há lesão da que permite a atuação do outro sujeito.
integridade física de A). Ex.: A convida B para jantar em sua casa (não há aqui um
crime de violação do domicílio – art. 190º CP).
A doutrina tem vindo a discutir, sobretudo na Alemanha, se o consentimento deve ser qualificado como causa de
exclusão da tipicidade ou como casa de jutificação (= de exclusão da ilicitude). Uma vez que está aqui em causa o valor
da autodeterminação, o qual assume prevalência sobre os interesses da comunidade, há uma ideia de interesse
preponderante que se subsume claramente ao âmbito das causas de justificação. Mais ainda, só podemos ver no
consentimento uma causa de justificação, e não uma causa de exclusão da tipicidade, pois este é apenas regulado na
Parte Geral do CP, e não na Parte Especial, onde se encontram elencados os tipos legais de crime.
4.4.2 Pressupostos do consentimento
São estebelecidos no art. 38º CP os requisitos do consentimento:
 Interesses livremente disponíveis como objeto do consentimento: exige-se que o objeto do consentimento
sejam interesses pessoais do “lesado” livremente disponíveis. A exigência do caráter pessoal dos interesses
compreende-se uma vez que facilmente se sustentaria a disponibilidade de bens jurídicos supra-individuais:
(1) não é possível identificar um único titular de qualquer bem jurídico supra-individual; (2) o direito à
autodeterminação, que justifica esta causa de justificação, não pode incidir sobre bens supra-individuais.
NOTA: a vida é o limiar último da autodeterminação, pelo que a eficácia do consentimento relativamente a
lesões que coloquem em perigo aquele bem jurídico coloca densos problemas. Até à integridade física o CP
aceita a disponibilidade daquele bem jurídico (art. 149º/1 CP); porém, é já censurável o homicídio a pedido da
vítima (art. 134º CP). Como se compreende, o limiar entre uma e outra hipótese é muito ténue.
 Facto não ofensivo dos bons costumes: a conceção de bons costumes que deve ser mobilizada não é uma
conceção normativa (apesar de ser vislumbrarem alguns afloramentos nos arts. 149º/2 CP e 340º/3 CC). A
ideia de “bons costumes” está intimamente ligada às conceções morais vigentes na sociedade, não podendo,
por isso, ser objeto de definição precisa e concreta.
 Capacidade para consentir: apenas pode consentir quem tiver mais de 16 anos e possuir o discernimento
necessário para avaliar o sentido e alcance do seu consentimento (art. 38º/3 CP);
 Vontade séria, livre e esclarecida: aquele que presta o consentimento deve demonstrar capacidade psicológica
e intelectual para tal (art. 38º/3 CP). É decorrência lógica deste requisito a irrelevância do consentimento
prestado sob uma vontade viciada;
 Conhecimento do agente: o consentimento deve ser prévio à prática do facto, de modo que o agente tenha
conhecimento do consentimento da “vítima”. De facto, exige-se que o agente saiba que atua ao abrigo de um
consentimento (ainda que não atue por causa desse consetimento, pois não se exige aqui qualquer requisito
relativo à intenção do agente). Nos termos do art. 38º/4 CP, se o consentimento não for conhecido do agente,
a conduta é punível com a pena aplicável à tentativa (não há desvalor de resultado, mas há desvalor de ação).
4.4.3 Consentimento presumido
Nos termos do art. 39º/1 CP, o consentimento presumido é equiparado ao consentimento efetivo.
“a situação em que o agente atua permit(e) razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente
protegido teria efizcamente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado” - art. 39º/2.
O fundamento desta solução legal assenta na ideia de que a direção da vontade do titular do bem jurídico protegido
é respeitada, pois se ele conhecesse a situação concreta daria o seu consentimento. Havendo a equiparação deste
consentimento ao consentimento efetivo, valem aqui, evidentemente, todos os pressupostos gerais do consentimento
(tendo em conta a vontade hipotética da pessoa). Naturalmente, o consentimento presumido só será eficaz quando
não possa ser obtido o consentimento efetivo e a questão do consentimento não possa ser adiada.
Assumem aqui especial importância as disposições relativas às intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos (arts.
150º, 156º e 157º CP) – quando o perigo seja iminente e o consentimento só puder ser prestado num momento
posterior (por ex.: a pessoa encontra-se insconsciente e em perigo de vida), presume-se o consentimento, do titular
do direito, às intervenções necessárias para a salavaguarda da vida.
4.5 O conflito de deveres

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O conflito de deveres, regulado no art. 36º CP, é uma causa de justificação próxima do estado de necessidade
justificante. Há, nos dois casos situações de conflito mas o conflito de deveres é portador de algumas especificidades.
Direito de necessidade (art.34º CP) Conflito de deveres (art. 36º CP)
 O interesse salvaguardado apresenta superioridade em  O dever cumprido não tem de ser necessariamente um
relação ao interesse sacrificado. valor superior ao dever que deixou se ser cumprido.
 O agente tem a possibilidade de optar por salvaguarda,  O agente é obrigado a agir, tendo necessariamente de
ou não, do interesse com valor superior. escolher a salvaguarda de um dever concreto.
Nos termos do art. 36º/1 CP, em face de um conflito de deveres jurídicos, o agente tem de optar por cumprir o dever
de valor superior. Estão aqui em causa exclusivamente deveres de ação para com terceiros. Este princípio aplicar-se-
á ainda em caso de conflito de ordens legítimas de autoridade.
Este preceito (art. 36º/1 CP), vem esclarecer, em face do art. 31º/2/c) CP – o qual legitima a conduta realizada em
cumprimento de um dever –, que é também lícito o cumprimento de um dever que impossibilitou o cumprimento de
um outro dever, com o qual entra em colisão, desde que o dever cumprido apresente valor superior àquele deixado
de cumprir. Como é evidente, diferentemente do disposto no art. 31º/2/c) CP, verifica-se aqui o incumprimento de
um dever (o que poderia levar à desaprovação do facto). Porém, esse incumprimento deriva da impossibilidade de
cumprir dois deveres concretos conflituantes. [Exemplificando: uma mãe, perante o afogamento iminente dos seus
dois filhos, só conseguirá salvar um deles, não devendo ser responsabilizada pela morte do outro.]
Não obstante, o nº 2 do art. 36º CP impõe um limite nesta matéria: o dever de obediência hierárquica cessa quando
conduzir à prática de um crime. Portanto, o nosso ordenamento jurídico não postula uma ideia de “obediência cega”.
4.6 O artigo 31º, nº1 do Código Penal
O art. 31º/1 CP consagra o mencionado princípio da unidade da ordem jurídica. Esta ideia implica que podem ser
encontradas causas de justificação fora do ordenamento jurídico-penal, sempre que os factos virem excluída a sua 1
ilicitude num determinado ordenamento jurídico.
! Assim sendo, as causas de jutificação enunciadas nos arts. 31º/2 e 32º e ss. CP não esgotam, de forma alguma, o
âmbito das causas de justificação – não é sequer possível indicar o número de causas de justificam que existem.
4.7 Alguns afloramentos de outras causas de justificação
4.7.1 A ação direta
Como regra geral, a ordem jurídica não permite o recurso à força. Porém, o art. 336º CC consagra uma exceção a este
princípio: o recurso à força é lícito quando não seja possível recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais para
a tutela do direito. Contudo, a ação direta só é lícita se: (1) visar realizar ou assegurar o próprio direito, (2) o agente
não exceder o necessário para evitar o prejuízo e (3) não forem sacrificados interesses superiores aos que o agente
pretende assegurar ou realizar – art. 336º/1 e 3 CC.
Em termos concretos, a ação direta pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na
eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito ou em qualquer ato análogo a estes (art.
336º/2 CP). Esta é, portanto, uma forma de tutela ofensiva de um direito, consubstanciando uma exceção ao princípio
da exclusão do recurso à justiça privada.
4.7.2 Agere pro magistratu
O poder punitivo é pertença do Estado. Não obstante, por vezes esta tarefa pública não logra ser exercida em tempo
útil, permitindo-se casos excecionais de uso da força pelos particulares, em termos provisórios, até que seja possível
o seu exercício em moldes definitivos pelo Estado. Um exemplo paradigmática desta hipótese encontra-se previsto no
Código de Processo Penal: a detenção em flagrante delito (art. 255º/1/b) CPP). Nos termos deste preceito, qualquer
pessoa pode proceder à detenção em caso de flagrante delito, quando esteja em causa um crime punível com pena
de prisão, conquanto uma autoridade judiciária ou uma entidade policial não estiver presente nem puder ser chamada
em tempo útil. Como é evidente, o Estado nunca disporá de recursos, sobretudo humanos, ilimitados, de modo a
permitir uma atuação rápida e eficaz em todos os casos. É a consciencialização da insuficiência dos recursos estaduais
que funda esta exceção: pretende-se deste modo garantir a realização da justiça, e não consagrar uma qualquer
espécie de justiça privada. Também por isso se compreende que o recurso a este meio de justificação deva ser
excecional, de modo a garantir a paz pública.
4.7.3 O facto de consciência
O facto de consciência apenas sob apertados pressupostos pode justificar um comportamento, exigindo-se que aquele
facto corresponda ao exercício de um direito.

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A liberdade resultante do art. 41º/1 CRP representa uma liberdade de agir de acordo com a consciência, mas que
encerra alguns limites: (1) verificação do direito fundamental concreto e (2) ausência de conflito insuperável entre a
convicção do particular e um dever jurídico.
4.7.4 O estado de necessidade defensivo (supra-legal)
Existem casos em que a lesão ou o perigo de lesão em causa não preenche os requisitos da legítima defesa ou não
possibilita uma concreta ponderação dos bens jurídicos em conflito. Podemos estar, nestes casos, em face de um
estado de necessidade defensivo. Por vezes a conduta não se subsume aos apertados requisitos das causas de
justificação, mas o mais elementar sentimento de justiça aponta no sentido da sua justificação. [Ex.: B afasta à força
A de um jarrão de porcelana que este iria partir na sequência do ataque epiléptico que experienciava. Neste hipótese,
a situação de perigo é criada pela própria “vítima”, pelo que não é possível inserir a atuação de B em nenhuma das
causas de justificação acima explanadas.]
Podem apontar-se dois requisitos para a verificação desta causa de justificação:
1. Inexistência de alternativa à conduta preventiva do agente;
2. Possibilidade de o bem ou interesse defendido ser (ligeiramente) inferior ao bem ou interesse afetado pela
conduta preventiva.
A doutrina divide-se quanto ao enquadramento desta solução:
 Figueiredo Dias: o estado de necessidade defensivo deve ser enquadrado, através de uma interpretação
ampla do art. 34º CP, no estado de necessidade defensivo;
 Faria Costa: o estado de necessidade defensivo deverá ser considerado uma causa de justificação supra-legal.
Por um lado, reconhecer uma causa de justificação supra-legal pode suscitar insegurança; por outro, a inserção desta
hipótese no estado de necessidade defensivo exigiria o respeito pelo bem ou interesse com maior valor. Este último
argumento, invocado por Faria Costa, é apontado pelo autor como o cerne da própria figura do estado de necessidade
defensivo: é porque as hipóteses em causa não integram o âmbito do estado de necessidade justificante que se sentiu
a necessidade de construir uma nova figura, pelo que não faria sentido vir integrá-la naquela outra. Faria Costa
acrescenta ainda que, no caso exposto (de integração do estado de necessidade defensivo no âmbito do estado de
necessidade justificante), acabar-se-ia por retirar o sentido útil de ambas as figuras: o estado de necessidade
justificante deixaria de ser conformado por limites apertados, acabando descaraterizado; e o estado de necessidade
defensivo perderia qualquer autonomia, devendo pura e simplesmente ser referido em termos amplos como estado
de necessidade justificante.
Em suma, entende-se que esta é uma causa de justificação supra-legal, ainda que deva apenas ser mobilizada em
termos residuais em relação ao estado de necessidade justificante.

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