Livro AtosEscritura4
Livro AtosEscritura4
Livro AtosEscritura4
PPGArtes-UFPA
2021
Atos de escritura 4
ATOS DE ESCRITURA 4
Organizadoras
Bene Martins & Ivone Xavier
BELÉM-PA
2021
1
Atos de escritura 4
1
Atos de escritura 4
Vários autores
Inclui bibliografias
ISBN (e-book) 978-65-88455-20-3
Acesso: http://ppgartes.propesp.ufpa.br/index.php/br/
2
Atos de escritura 4
SUMÁRIO
Prefácio
Nos meandros da escritura poético-acadêmica, na pós-graduação em
artes (PPGARTES-UFPA) ....................................................................................... 5
Bene Martins & Ivone Xavier
3
Atos de escritura 4
4
Atos de escritura 4
Quem de nós não passou pela experiência desafiadora de escrever: uma prova
escolar, um exame em concursos, para ingressar numa pós-graduação, escrever trabalhos
acadêmicos, para desanuviar a mente, expor nossas emoções, compor uma canção, uma
poesia, um diário. Sim, escrever não é fácil, mas faz bem! Aquele bem que incomoda, que
nos tira da zona de conforto, nos atravessa e nos faz refletir sobre o que queríamos
expressar e, por falta do exercício da escrita, ou outros entraves, não conseguíamos. Pois,
retomando a epígrafe de Marguerite Duras, “A escrita é isto. É o fluxo do escrito que passa
através do corpo de vocês. Atravessa. Daí partimos para falar dessas emoções difíceis de
dizer, tão estranhas e que, todavia, de repente se apoderam de vocês”. E, ainda, pensando
nos pesquisadores das, nas e para as artes, os quais não se esquivam de expor e trabalhar
com subjetividades, compreende-se os bloqueios que ocorrem, vez por outra.
Pois bem, com exceção de certos seres “iluminados”, ninguém aperfeiçoa seu
ofício, senão nas inúmeras tentativas de errar e consertar, escrever e reescrever.
Infelizmente, aprendemos que errar não é legal. Depois, percebemos o quanto o erro pode
ser aproveitado para enriquecer nossas experiências, sejam elas quais forem. Com a
escrita não é diferente. Diríamos que é o ato de persistir, esboçar ideias, anotar tudo que
passa pela cabeça, num fluxo meio enlouquecido, desenhar gráficos, tempestade de ideias,
jogo de palavras etc., dentre tantos modos de escrever. Existem diversas regras a
prescreverem como escrever melhor, cada um seleciona o que lhe couber, mas, repetimos,
não há como aperfeiçoar a escrita sem exercícios constantes. Marguerite Duras, em seu
livro Escrever, tece argumentos pertinentes sobre a saudável angústia de escrever.
1 Professora pesquisadora da UFPA. Pós-doutorado em Estudos de Teatro. Doutorado em Letras, pela UFMG.
Social pela UFPA (1998). Professora Adjunta da UFPA, lotada no ICA, vinculada à ETDUFPA. Atua no
Programa de Pós-graduação em Artes em Rede Nacional (UFPA) e no PPGARTES-UFPA. E-mail:
ivmaxavier@gmail.com
5
Atos de escritura 4
6
Atos de escritura 4
7
Atos de escritura 4
8
Atos de escritura 4
9
Atos de escritura 4
amplia visões de mundo. A modo de exercício, que tal fazermos uma lista de livros que
nos excitaram, de algum modo, que nos incomodaram, que nos tiraram da zona de
conforto e nos fizeram perceber nossos graus de ignorância. Tais livros nos impelem ao
movimento.
Para interromper este texto, transcrevemos recomendação de Graciliano Ramos,
sobre a escrita, as escolhas adequadas das palavras e o cuidado para expressar o que
desejamos.
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu
ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da
lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham novamente, voltam a torcer. Colocam
o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma
molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra
limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma
só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada
na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a
mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a
palavra foi feita para dizer. (RAMOS, 1948)
Graciliano Ramos tem como uma das características de seus escritos, a clareza, a
escolha adequada das palavras, ele prima pela escrita sem rodeios. O que demonstra que
mesmo para escrever romances, não há necessidade de volteios exagerados, que dirá para
uma escrita de ensaios e artigos acadêmicos. O que recomendamos é uma escrita com
mais sabor, enriquecida pelos temperos de outras linguagens, o que não significa uma
escrita prolixa e desconexa. Ao contrário, nesse tipo de escrita, palavras vãs atrapalham.
Daí a necessidade de refletirmos sobre o que escreveremos e fazermos escolhas acertadas
de palavras, de autores com os quais dialogamos na tessitura do texto.
Assim, neste e-book, apresentamos resultados da disciplina, Atos de Escritura,
ofertada para mestrandos e doutorandos do PPGARTES. Cada autor(a) escreveu ensaio
sobre aspectos de sua pesquisa, motivados(as) pelas referências, indicações, exercícios
metodológicos e, a partir das acaloradas conversas e reflexões, revisaram seus caminhos
traçados, acrescentaram outros atalhos, vislumbraram as sinuosidades, a complexidade,
o encanto de pensar em suas propostas acadêmicas e desenvolvê-las, com tons ou
semitons mais poéticos, ou seja, sem medo de ousar e transpor para o papel suas ideias,
anseios, desejos e, principalmente, demonstrar que a escrita é também ato de resistência,
de sobrevivência, em meio ao caos em que estamos nestes tempos sombrios.
E, para amenizar, colorir, dramatizar um pouco, os belos tons ensaístico-
acadêmicos dos textos, inserimos mais um exercício de escrita de Bárbara Gibson, atriz e
dramaturga. Além do ensaio, ela criou a peça teatral, Epistemologia cênica. Diríamos que
10
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ABAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. São Paulo: Boitempo, 2018.
11
Atos de escritura 4
3
Mestranda em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA – PPGARTES– Instituto de
Ciências de Arte – ICA. Atriz, arte-educadora, professora da rede pública do Estado do Pará – SEDUC.
Integrante fundadora do Grupo de Teatro Palha. E-mail: abigailpsesilva@gmail.com
4 Doutora em História Social – PUC (Pontifícia Universidade Católica) – SP (2010), Mestre em Antropologia
Social pela UFPA (1998). Professora Adjunta da UFPA, lotada no ICA, vinculada à ETDUFPA. Atua no
Programa de Pós-graduação em Artes em Rede Nacional (UFPA) e no PPGARTES-UFPA. E-mail:
ivmaxavier@gmail.com
12
Atos de escritura 4
Em meu quintal a vida era como um conto, não de fadas, mas daqueles que: “quem
conta um conto sempre aumenta um ponto”, era como um camaleão que vive trocando de
cor para se camuflar e proteger dos perigos do mundo. As cortinas se abriam para uma
história que seria contada a partir daquele momento. Tudo começou ali no quintal, era
mágico, encantado, a magia se espalhava no ar. Menina do interior, do mato, do rio, pé no
chão, de banhos no igarapé, das árvores que serviam de base para as viagens ao mundo
do faz de conta, que conta histórias, cresceu ao modo do poeta, “Cresci brincando no chão
entre infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que
comparação. Porque se a gente fala a partir da experiência de criança, a gente faz
comunhão” (BARROS, 2003, p. 18). O faz de conta, essa era a minha comunhão naquele
quintal.
Ao pé da árvore, inúmera vez sentou para ouvir e contar histórias do tempo,
tempo que vivi e vi passar. Entre idas e vindas os quintais se multiplicavam, momentos
únicos carregados de apegos, afetos, ternuras e separações. O primeiro quintal foi em São
Miguel do Guamá, lugar onde nasci e vivi parte da infância. Oitava filha de uma família de
onze pessoas, incluindo sete mulheres e dois homens, dentre nós uma irmã especial,
incluindo meus pais que trabalhavam e tiravam o nosso sustento da roça, fora os
agregados, filhos de familiares ou de amigos que vinham do interior para estudar e
ficavam em nossa casa. Na adolescência já morando em Castanhal chegou à minha casa
uma sobrinha de minha mãe. Ela deixou um bebê que viria a ser meu décimo irmão.
A minha infância foi fantasia pura, a magia fazia as honras da casa, tudo era
fantasiado, toda a natureza servia de suporte para criar brincadeiras, no quintal me
alimentava do imaginário caboclo, ribeirinho, interiorano, encantado, povoado de
histórias da encantaria. Estas, ao serem contadas, alimentavam minha imaginação pueril.
Ali vivia correndo livre sem paragens, sem rumo, tomando banho no igarapé, em meio a
encantarias sendo criança. Como não tinha brinquedos, minha boneca era de milho, o
quintal, o entorno eram o cenário perfeito para minhas divagações e devaneios, me
fazendo criar, encenar, viajar na imaginação diária. A esse respeito, Richard Courtney
ressalta que “a imaginação, o pensamento criativo, são essencialmente teatral em sua
natureza” (COURTNEY, 2009, p. 3). “Atuar faz parte do processo de viver”, e sem esse
processo a vida da criança ou do adulto seria meros reflexos mecânicos e quase nenhuma
característica humana.
13
Atos de escritura 4
14
Atos de escritura 4
por Maria Clara Machado e assim ele teve seu primeiro contato com o teatro e montou o
primeiro texto, Pluft, o fantasminha, apresentada no auditório da Escola. Ali começava a
trajetória do diretor/encenador, um artesão da arte de encenar, pois fazia de um tudo,
encenava os atores, criava e confeccionava cenário e figurino entre outras coisas, e assim
fez-se Paulo Santana.
Nesse interim, eu trilhava meu caminho, que mudou para a cidade de Castanhal
não tinha igarapé, rio, encantaria, mas tinha quintal, com árvores, balanços, pé no chão, o
resto ficava por conta da minha imaginação que continuava afiada. Nesse novo quintal
tive que trocar de cor para me adaptar às mudanças que viriam. Nova cidade, escola,
amigo(a)s, enfim, e ainda teria que me acostumar com a saudade do meu antigo quintal,
que saudade, mas o tempo se encarregaria de fazer com que me acostumasse à nova casa.
Foi em Castanhal que entrei em contato com a arte de representar, vi a televisão pela
primeira vez, fiquei hipnotizada, encantada e naquele momento soube que queria ser
como aquelas pessoas que viviam alguém e não eram elas mesmas, eu queria ser atriz.
Foi em Castanhal que assisti ao primeiro espetáculo de teatro O Rapto das
Cebolinhas, da dramaturga carioca Maria Clara Machado, fiquei emocionada e fascinada
quando vi ao vivo tudo que eu via pela televisão, fiquei encantada ao ver como poderíamos
interpretar outras pessoas, outras vidas, para mim tudo parecia magia pura, foi quando
me apaixonei definitivamente pela profissão, então queria saber mais sobre como fazer
parte daquela realidade ou seria ilusão, utopia?
Uma coisa me incomodava muito, eu estava crescendo e como Peter Pan eu não
queria crescer, não queria deixar de ser criança. Relutei muito em crescer, pois gostava
das aventuras que vivia, e dos voos que fazia na minha imaginação. “Eu queria crescer
passarinho”... E voar, voar, sonhar, sonhar em comunhão com a natureza. O tempo é
imbatível, ele não para e eu cresci. Debutei, sai da amada infância, virei adolescente ou
seria aborrescente? Bom, passei para o segundo grau (hoje Ensino médio), e mais uma vez
nos mudamos, desta vez para a capital, Belém do Pará.
Em Belém, Paulo Santana iniciava sua formação em uma oficina teatral realizada
pelo Grupo João Caetano, fundado por Sérgio Melo, Waldemir Lisboa e Ivan Tenório. O
grupo se reunia na Escola Paulo Maranhão aos finais de semana para a realização de
exercícios de expressão corporal, voz, improvisação e leitura de textos que eram extraídos
das revistas de teatro da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e do SNT –
Serviço Nacional de Teatro. A partir dessa oficina nasceu o espetáculo “Belém Urgente”
15
Atos de escritura 4
apresentado no Teatro São Cristóvão em 1974, espaço que infelizmente não existe mais,
era um espaço dedicado ao teatro popular, mas foi abandonado pelo poder público.
Meus amigos e amigas que cresceram, brincaram e estudaram comigo ficaram
para trás, a cor dessa despedida era cinza com gotas de lágrimas. Era adolescente,
mudança sempre mexia comigo, pois cada vez que eu mudava deixava para trás uma parte
de mim, “oh pedaço de mim oh metade amputada de mim...”, Chico Buarque explicava bem
como eu me sentia, nesse caso em especial deixava a melhor parte vivida até agora, minha
infância querida que não voltaria mais, nunca mais. Era um novo quintal, como boa
camaleão-fêmea, me camuflei para adaptar-me ao novo habitat, novo (a)s amigo (a)s,
nova escola, nova cidade, só que essa era muito grande, grandona. Fui estudar no Colégio
Deodoro de Mendonça, precisava continuar me alimentando do saber. No colégio estava
sempre envolvida nas dramatizações, inteiramente submergida na arte de representar.
Agora na cidade grande passei a ficar atenta a qualquer notícia que me levasse a realizar
o meu intento, ser atriz.
Um dia qualquer, lendo o jornal, me deparei com um anúncio, estavam abertas as
inscrições para o Curso Livre da Escola de Teatro da Universidade Federal do Pará (Hoje
Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA), pensei, que alegria, é a chance que estava
esperando, me inscrevi, fiz o teste e passei. Que felicidade finalmente iria começar uma
nova etapa na minha vida, era a chance de aprender e fazer teatro, era o meu sonho se
realizando. Quando comecei a frequentar as aulas, tudo me levava a viajar na imaginação
e tudo me encantava, era como se todo o imaginário se revelasse diante de mim, sentia
como se todos os personagens me rodeassem naquele “mundo de faz de conta”. Como se
estivessem prontos para sair de dentro de mim, só que agora era de verdade, eu poderia
“tocá-los”, ou melhor, senti-los, pois faziam parte de mim e eu deles, era uma
transmutação de emoções invadindo meu corpo de atriz/interprete, era uma sensação
que eu nunca tinha sentido antes, que me fazia entrar e sair dos personagens, ao mesmo
tempo em que eu olhava de dentro para fora e de fora para dentro.
Foi quando realmente percebi que fazer teatro era muito mais do que eu pensava,
o palco passou a ser, literalmente, a minha faculdade na arte de representar. Fernanda
Montenegro disse que: “... o palco é definitivamente o espaço mais livre que o homem
jamais criou”, e era assim que eu me sentia cada vez que eu entrava em cena, livre, como
se fizesse sempre parte da minha vida. Eu penso que eu não escolhi ser atriz, eu fui
escolhida, por isso me sinto responsável em relação ao todo de um espetáculo, uma eterna
16
Atos de escritura 4
aprendiz. Somos parte da experiência, mas não somos mentores, nem direção, somos
atores que experienciam outras vidas, outras personas.
Na Escola de Teatro tive a oportunidade de conhecer e conviver com aqueles que
teriam forte influência no meu fazer artístico, Cláudio Barradas meu professor e Paulo
Santana meu colega de turma, que depois viria a me convidar para fazer teatro com ele,
passei a participar das reuniões e efetivamente pude realizar o sonho de subir ao palco
pela primeira vez. Esse encontro mudou o rumo de minha vida. Cláudio Barradas foi meu
mestre, aquele que me ensinou e melhorou o meu jeito de representar, eu era um
diamante bruto e ele no decorrer das aulas foi lapidando e me ensinando como interpretar
de alma para alma. Quando saí da Escola estava pronta para novas experiências, entrei
definitivamente no Grupo Palha, onde estou até hoje.
Nessa época, Paulo Santana, foi demitido do SESC, por ter montado o espetáculo
“Jurupari, a guerra dos sexos”, com temática indígena em que mostrava corpos nus que
usavam apenas tapa sexo e colares, com o espetáculo montado e sem um grupo, Paulo
Santana se viu motivado a fundar um, pois precisava levar a encenação adiante, foi quando
nos convocou para conversar e depois de algumas reuniões e discursões o Grupo de Teatro
Palha foi fundado. O nome surgiu em detrimento do material principal que era usado para
confeccionar o cenário, a palha, ou fogo de palha, que queima rápido e acaba, sendo que
no caso do grupo essa palha queima até hoje.
Artista/artesão que leva a arte em frente apesar dos percalços da profissão, pois
mesmo não a exercendo como profissão, faz da arte de representar um elo com as outras
linguagens, instigando outras pessoas a segui-la, movimenta profissionais
intrinsecamente ligados a ele na mesma direção. Assim como em seu fazer-educação,
sendo professor e passando adiante todo o seu conhecimento, são longos anos de
dedicação, trabalho e suor, fazer arte em Belém não é uma tarefa fácil quando não se tem
apoio dos órgãos responsáveis pela cultura local. Tudo isso, faz de Paulo um
diretor/encenador imerso no fazer, no contar histórias que em cena se tornam verdades,
processos que perpassam pelo ator/atriz, iluminador, cenógrafo, sonoplasta. Uma teia de
fazedores de arte que levam o público a viajar para lugares nunca dantes encontrados,
vividos, lugares escondidos no subconsciente de cada um, na imaginação, uma imersão no
mundo do faz de contas, que muitas vezes pode ser real, verdadeiro.
É importante ressaltar que além de estar falando de um artista de/para a cena e
do fazer artístico de uma atriz que está em/na cena, perpetrar parte desse caminhar lado
17
Atos de escritura 4
18
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ASSMANN, Jan. Memória cultural: o vínculo entre passado, presente e futuro.
Disponível em: http://www.iea.usp.br/noticias/memoria-cultural-o-vinculo-entre-
passado-presente-e-futuro. Acesso em: 28 mar. 2018
BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015
_____. Memórias inventadas a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Queiroz, 1979.
BRECHT, Bertolt. Teatro Completo 3. Tradução: Fernando Peixoto, Ingrid Koudela, et al.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
COSTA, Marco Antônio F. da. Projeto de Pesquisa: entenda e faça. Petrópolis, RJ: Vozes,
2011.
19
Atos de escritura 4
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História,
São Paulo, n. 10, p. 7,8,13, dez. 1993.
PASOLINI, Paolo Pier. Manifesto por um novo teatro. Folhetim n. 11, 2001.
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 6. ed. São Paulo:
Intermeios, 2013.
20
Atos de escritura 4
Alvorada nova
nova alvorada
de manhã bem cedo,
sobre a madrugada.
(Alvoradinha, 2017)
5
Mestra em Artes do Programa de Pós-Graduação PROFARTES/UDESC–UFMA, doutoranda em Artes
Programa de Pós-graduação em Artes – UFPA, sob orientação da profa. Dra. Ana Cláudia do Amaral Leão.
(adritobias10@gmail.com)
6 Fotógrafa, professora dos cursos de Artes Visuais-FAV-PARFOR-AV e PPGARTES-UFPA. Doutora em
Comunicação e Semiótica-PUC-SP. Coordenadora do Grupo de pesquisa Lab AMPE, a Sala AL Táta Kinamboji
de Ensino, Arte e Cultura Afro-Amazônica. Co-coordena o Grupo de Estudos Antirracistas e Antisessexistas
Zélia Amador. (aclaudialeao@gmail.com).
21
Atos de escritura 4
pombo. É uma Festa de origem europeia, porém, ao refletir sobre a festa, partirei de um
olhar decolonizador, abraçando as características da festa, a partir de sua ligação com o
Tambor de Mina. Em se tratando de São Luís, podemos perceber que a maioria das festas
é ligada às religiões de Matriz Africana e, muitas vezes, realizada nos chamados terreiros.
Segundo Marise Barbosa “no Maranhão, esses cultos têm grande popularidade e são
realizados em um grande número de terreiros de cultos afro-brasileiro: Tambor de Mina7,
Umbanda e Candomblé” (BARBOSA, 2006, p. 20). Não é bem o caso desta festa, que faz
parte do cenário desta pesquisa, pois a mesma não acontece em um terreiro de Mina. O
estudo será sobre os participantes desta manifestação, em especial, minha avó.
Escolhi três verbos para traduzir minha pesquisa, no decorrer de minha escrita,
transcender, adentrar e festejar. É assim que sigo, tentando esquecer minhas funções de
pesquisadora, por alguns instantes, buscando fazer esse mergulho como se fizesse parte
do espaço e que, ao mesmo tempo, como quem olha com a delicadeza de quem está de
fora. Será que não sou de dentro?
Já foram tantas as Festas do Divino que, com todo respeito e reverência adentrei,
sempre tomando todo o cuidado, para não fazer nada de errado. Minha timidez e o medo
de quebrar alguma regra, diante dos presentes na Festa, redobrava aquela tensão nos
primeiros momentos da visita. Olá! Licença! Posso fotografar? Posso filmar? Me chamo
Adriana! Juntamente com meu então companheiro, que já era conhecido de todos ali, na
maioria das festas. Entrava e observava, tentava entender os acontecimentos ali, juntar
como quebra cabeça tudo que via, ouvia, sentia com todo meu corpo. Quando me
ofereciam algo, como comida, bebida, lembrancinha, aceitava prontamente, pois não é de
bom tom fazer desfeita aos festeiros do Divino, não tinha como negar atitudes tão
carinhosas. Notava, nesses anfitriões, um certo prazer, felicidade quando aceitávamos
qualquer tipo de agrado.
Ainda sobre o chamado agrado, vale ressaltar um aspecto importante na Festa do
Divino, que é a seriedade em dar, receber e retribuir. É, justamente, por estas
características que se recorre à referência nos estudos do antropólogo, Marcel Mauss
(1974), onde o autor descreve, em estudos realizados em sociedades da Polinésia,
7
O Tambor de Mina é uma religião “afro-brasileira” comum no Maranhão e em grande parte da região
amazônica, que se caracteriza pelo culto a entidades espirituais conhecidas como voduns, orixás,
encantados e caboclos. Através dos toques de tambor, cabaças (chocalhos) e agogôs (ferros) e a entoação
de cânticos e louvores, estas entidades são evocadas e incorporadas pelos seus filhos-de-santo (FERRETTI,
2000).
22
Atos de escritura 4
situações análogas às festas que acontecem no Maranhão. Essas sociedades possuem uma
relação intensa entre os objetos, que para elas, possuem espírito.
É hábito comum os visitantes de tais festas e em especial, as chamadas caixeiras,
serem presenteadas com cortes de tecidos, comidas e lembranças com a iconografia da
Festa. Essas lembranças são chamadas de agrado o que, na atualidade, pode vir em forma
de um cachê também acompanhado de alimento e lembrancinhas da Festa. Uma forma de
retribuir as caixeiras, por passarem muitas horas cumprindo com as suas obrigações ao
Divino.
Em São Luís, é possível deparar-se com esse paralelismo, em vários momentos da
festa, em que ocorre a doação e retribuição, pois a festa gira em torno da devoção, desses
atos que geram certa satisfação para quem o faz. Os chamados festeiros fazem questão de
realizar uma Festa farta, com bastante comida e bebida, mesmo em momentos pouco
solenes, pois para eles, é muito prazeroso ouvir que sua festa foi farta e que todos saíram
falando bem.
Quando faço esse relato, não me refiro a uma Festa do Divino específica, faço sim,
um leve relato/apanhado de uma vivência enfeitada por vários momentos de Festas, que
me fazem parar, fechar os olhos e imaginar cada cor de tecidos de cetim presentes nesses
espaços, cada brilho dos bordados nos vestidos das crianças que representavam o
império, imagino o som das vozes das caixeiras, inclusive, enquanto escrevo, aproveito
para ouvir um dos CD das caixeiras do Divino que copiei para meu computador.
Costumo filmar ou fotografar tais festejos com muito carinho. A princípio, eram
registos simples, tímidos, escondidos, carregados de respeito e que, com o tempo fui
ganhando espaços e entendendo uma forma de fotografar ou filmar, sem atrapalhar as
cenas ou me parecer invasiva aos visitantes que ali estavam. Tentava, de algum modo, me
camuflar, ser invisível, mergulhando de leve nesses espaços sagrados.
Mas bem lá no fundo do meu íntimo, algo tentava dizer que aquilo tudo era muito
familiar, fazia parte de mim. Sabe aquela sensação de descobrir um parentesco distante
com alguém que se é muito querido, que nos deixa a sensação de conforto e prazer? Assim
me sentia, quando apreciava fotografias que retratavam a Festa do Divino ou presenciava
algum dos festejos, que acontecem em São Luís, Itapecuru, Itamatatiua ou Alcântara. Esses
acontecimentos festivos fazem parte de mim e vice-versa, foi buscando em minhas
memórias e longas conversas com minha mãe, que obtive respostas para tais
questionamentos. A proximidade a todo esse universo da Festa do Divino se deu por meio
23
Atos de escritura 4
de minha tia-avó, Dionésia, irmã da minha avó materna, que, me permitiu vivência com a
Festa do Divino, a começar pelos doces, bolos confeitados, lembrancinhas que ela levava
até nossa casa: bonecas vestidas como imperatrizes, taças redecoradas, minis
embarcações enfeitadas. Era como a iconografia das Festas de terreiros chegava até mim.
Agarro-me nessas memórias como uma espécie de reencontro com estas
sensações que são construídas, como uma espécie de quebra-cabeça autoral, com
significados e imagens que fazem parte de mim. Significados esses, emaranhados às
minhas vivências como pesquisadora, foram criando um novo corpo fundamental para o
desenvolver da minha pesquisa. Como afirma a professora da UFPA, Bene Martins (2011)
“Ao falar de memória, portanto, não se pode pensar em algo guardado na íntegra, ao
contrário, em se tratando de memória, parece que quanto mais tempo ela fica aninhada,
mais ela absorve elementos que a enriquecem, enquanto guardadas.” (MARTINS, 2011, p.
174) Tais memórias, com o passar do tempo, vêm sendo enriquecidas com outras
capturas realizadas por meio do toque, da apreciação, fruição, degustação em tantos
espaços frequentados da Festa do Divino.
Assim, surge minha pesquisa de título provisório DIVINO, CASA E
ANCESTRALIDADE: os espaços sagrados da Festa do Divino Espírito Santo no bairro da
Liberdade em São Luís-MA. Uma pesquisa que vem sendo trabalhada, a fim de auxiliar na
interpretação dos espaços que compõem o cenário visual e imaginário da Festa do Divino
Espírito Santo, no Bairro da Liberdade, na Capital maranhense, a partir do repertório
visual arroladas numa estética própria existentes na ambientação desse festejo. Uma
Festa que fez parte da vida da minha tia-avó, como caixeira do Divino Espírito Santo, e
mulher que participava efetivamente de tal festejo. Um festejo que, assim como tantos
outros, foram suspensos em virtude da pandemia causada pelo vírus Covid-198, com
quase dois anos de pausa de uma tradição religiosa.
A presença de mulheres, nos espaços da Festa do Divino, como parte daquelas
que conduzem os rituais, ganha destaque com a presença dessas mulheres denominadas
de caixeiras, em sua maioria, de mulheres negras. São essas mulheres, comandadas pela
caixeira régia consideradas elo, com seus cantos e toques de caixa, entre o divino e o
8O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, declarou hoje (11/03/2020)
que a organização elevou o estado da contaminação pelo novo coronavírus como pandemia. O anúncio surge
quando há mais de 115 países com casos declarados de infeção. A mudança de classificação não se deve à
gravidade da doença, e sim à disseminação geográfica rápida que o Covid-19 tem apresentado. Disponível
em: encurtador.com.br/eyPSV. Acesso em 07 ab. 2021.
24
Atos de escritura 4
terreno. Uma espécie de sacerdotisas do Divino. São as caixeiras que abrem e fecham a
tribuna, que é, justamente, esse espaço sagrado que habita o divino.
O fato de descender de uma mulher, negra, tecelã e caixeira, que tocava para o
Divino Espírito Santo, no bairro da Liberdade – bairro de São Luís, que concentra uma
grande variedade de práticas relacionadas à cultura popular – maximiza o entendimento
do quanto é necessário aproximar-me desta prática que, mesmo de fora, ou não, também
faz parte de mim. Dona Dionésia era irmã da minha avó materna Laura Rosa, falecida
quando minha mãe ainda era adolescente. Crescemos chamando-a de vó, dessa forma,
peço licença para fazer o mesmo, enquanto escrevo sobre você, vó Dionésia.
Refletir sobre a figura da mulher presente nesses espaços e sua importância para
o desdobramento da Festa do Divino Espírito Santo desperta todos os cheiros e sabores
que tive oportunidade de degustar quando criança, por meio da minha divina tia-avó.
Então, seguro nas mãos da minha avó “mineira”9, para junto dela, percorrer os cômodos
desses espaços físicos e sagrados, bem como a iconografia de um Festejo, que atravessa
minhas pesquisas desde 2008, a partir de um olhar decolonial.
Casa
Dicionário informal:
1. Edifício de formatos e tamanhos variados, geralmente, de um ou dois andares,
quase sempre destinado à habitação;
2. Família, lar.
Dicionário pessoal:
1. Espaço em que as paredes e tetos podem ser de concreto, madeira ou qualquer
matéria como sonhos, alegria, sabores, cheiro, memória, conversas, solitude,
árvores, vento, estrelas... amores ou desamores.
Para Bachelard, “A casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz
frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda
a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente é bela.”
(BACHELARD, 1993, p. 200).
Parto desses três significados para introduzir a minha fala, em relação à pesquisa
que venho desenvolvendo e seus atravessamentos, os quais, muitas vezes atravessam-
penetram, também em mim, como a luz solar das primeiras horas da manhã, que perpassa
9
Forma popular de denominar mulheres do Tambor de Mina.
25
Atos de escritura 4
pelas pequenas frestas das telhas quebradas, por crianças travessas, transformando o
quarto de minha casa natal, em pequena sala de cinema, onde os protagonistas são as
sombras dos pássaros, as nuvens em movimento e eu. O terceiro significado, que
arranquei das vibrações de meus pensamentos, talvez seja o que mais se aproxima do que
venho propor como relação entre mim e as casas da minha vida, que estão para além das
paredes de concretos de minha morada.
Além desses significados gerais, posso ainda afirmar que o significado de casa não
é único, para cada ser, e pode acarretar diversos ditos que, igualmente, podem variar de
cultura para cultura. É certo que a maioria das derivações de casa, carrega consigo,
simbologias que se intercalam com as vivências de seus moradores. Poderia,
tranquilamente, descrever a casa de um amigo, após uma simples visita a tal espaço, mas
jamais seria um derramamento de lembranças. Ao contrário, se eu descrevesse todos os
cantos dos lares que já habitei, a descrição seria enriquecida por minhas lembranças. Casa
envolve simbologias, sentimentos, cheiros, histórias, marcas daqueles que por ali
passaram. Casa tem espírito, casa tem alma.
Na obra “Voltar pra casa” de Toni Morrison, por exemplo, a autora fala do prazer
e também da dor de voltar pra casa, casa em si ou cidade natal. Seus ex-habitantes,
retratados em sua obra, voltam com as feridas abertas, literalmente abertas, deixadas em
seus corpos pela dureza do “lá fora”, misturado com o peso e leveza do que foi vivido na
casa da infância. A autora descreve esse prazer ou desprazer misturados com tal
dor/alegria de estar, novamente em casa, na casa natal marcada pelo tempo, nas
intimidades não mais vividas, naquele espaço que deixou um vago em suas almas.
Optei, para a conclusão da disciplina, Atos de Escritura, arriscar uma escrita que
fluísse de meus pensamentos mais escondidos, talvez para tentar alcançar um corpo de
memória que, em poucas vezes consegui expressar, aqueles que ficam entre o
esquecimento e a lembrança. As memórias latentes que trarão à luz as lembranças da
minha tia-avó. Falarei de três casas: a minha casa, casa da festa do Divino no bairro da
Liberdade, a casa no sentido de ancestralidade, nessa busca por uma relação entre minha
tia-avó e eu, não necessariamente nesta ordem.
26
Atos de escritura 4
A vó Laura, vó materna, eu a vivo através da minha mãe, através do seu corpo, sua
fala, sua alma. Minha mãe sempre me contou sobre ela, sobre o formato do seu rosto, seu
cabelo e do quanto ela tenha um cabelo volumoso, cabelos que começavam a nascer a
partir de sua testa, assim como da minha irmã mais velha. Mamãe gosta de falar de como
ela se vestia e do pouco tempo que elas viveram juntas, das brigas com meu avô, da forma
como vó Laura se expressava, seu gênio impetuoso e de sua religião.
A vó Rosa, mãe do meu pai, mulher negra, alta, de postura elegante, também tem
sua imagem e presença cristalizadas, por meio de minha mãe, que a tinha como uma sogra
muito especial e acolhedora. Segundo minha mãe, meu jeito de andar é semelhante à de
minha vó Rosa, cabeça erguida, braços alongados e toda lânguida ao caminhar.
Minha avó Dionésia pleiteia um lugar muito especial em minha vida, pois foi
através dela que tive meu primeiro contato com a Festa do Divino. Sempre que falo isso
para alguém, assim como acabei de escrever, é passada a ideia de que cresci dentro desses
espaços sagrados, que fazem parte da Festa do Divino Espírito Santo. Aproveito, então,
esse meu lugar de pesquisadora para explicar que, esse contato nada tem a ver com uma
experiência, no sentido de ser participante da festa, pois sequer frequentei tal espaço,
quando criança ou adolescente, INFELIZMENTE. Eram vivências impedidas pelas grossas
27
Atos de escritura 4
cortinas do preconceito religioso. Tais cortinas só permitiram que meu tato, paladar,
olfato, visão alcançassem A Festa, por meio das lembrancinhas, bolos e doces perfumados
e a açucarados da Festa do Divino, que minha avó levava até nossa casa, no bairro do
Maiobão em Paço do Lumiar – MA.
Por não ter vivido muito tempo no bairro da Liberdade, a não ser por meio das
visitas à casa de minha avó, não darei ênfase a este lugar em que morei a princípio, pois
me faltam lembranças. Restam-me as histórias contadas por meus pais e minhas irmãs
mais velhas. A casa natal do afago fica no bairro do Maiobão, localizado em Paço do Lumiar
a, aproximadamente, 16 km do bairro da Liberdade. Assim, cresci distante da cultura
vivenciada por minha avó. Quase impossível não me remeter à minha casa natal onde,
atualmente, mora minha mãe, irmã, cunhado e sobrinha. Ainda hoje, é meu refúgio, onde
encontro meus colos e meus dengos. Não falarei deste lugar de hoje, mas das lembranças
do lugar do ontem, que atravessam a Adriana de então.
Como disse ainda a pouco, minhas memórias preferidas são do tempo que
passava em meu quarto, nas primeiras horas da manhã, a observar os vultos dos pássaros
e das nuvens nas paredes. O quarto é lugar “marcado por uma intimidade inesquecível”
(BACHELARD, 1993, p. 213), onde guardamos o que há de mais precioso, espaço que
precisa de porta, quando não, uma cortina, já passando a ideia de que é preciso pedir
licença pra entrar. Bata na porta antes de entrar! Somente os mais íntimos tem licença
permitida.
O que foi vivido na infância se complementa com as sensações do hoje, como
afirma Bachelard, a casa como “corpo e alma” que se concretiza, ou não, com as
lembranças vivenciadas ali, pois “qualquer grande imagem tem um fundo onírico
insondável e é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal põe cores particulares.”
(BACHELARD, 1993, p. 218). Vivi quase 30 anos na mesma casa, e ter passado mais da
metade da vida em uma mesma casa, me faz recapitular diversos momentos ali: visitas de
namorados e amigos que por ali passaram, brincadeiras de rua, na porta de casa, “na outra
rua”. Quintais ainda sem muros, quintais como extensão de nossa casa, na verdade.
Dentre essas lembranças recordo-me da minha tia-avó, recordo de algumas falas,
mais precisamente de suas chegadas em nossa casa “lá vem vovó”, quando esta, resolvia
nos visitar. Lembro-me da alegria que era vê-la chegando. Na época, não se avisava,
simplesmente chegava e pronto. Sempre trazia alguma coisa, uma lembrança ou “agrado”,
como se dizia, itens de mercearia ou doces e lembrancinhas de Festas. Que festas eram
28
Atos de escritura 4
essas? Não importava na época. O que importava era o doce, o sabor, o cheiro e as bonecas
enfeitadas, em papel crepom, que viravam brinquedos.
Dona Dionésia sempre participava de várias festividades de santo, em especial no
Terreiro de Mina10 do seu Geraldo, localizado no Araçagy. Era lá que ela dançava, que
cumpria suas obrigações, que sorria, rodava, caia, levantava, carregava em um lindo
encontro com nossos ancestrais. Neste terreiro, ela, certamente, exercia sua religião sem
medo, livre de preconceitos e do racismo religioso, como qualquer outro tipo de racismo,
“A pessoa é vista como ‘diferente’ devido a sua origem racial e/ou pertença religiosa.”
(KILOMBA, 2019, p. 75).
Na época, chegar no bairro do Maiobão não era fácil, para quem morava na
Liberdade, ainda mais carregando um “agrado” para as quatro filhas de Dona Bárbara. Era
a religião proibida, a “macumba”, termo que ouvia desde criança de forma pejorativa,
como algo que deveríamos temer e fugir, não aceitar. Passei mais da metade da minha
vida, sem presenciar uma Festa de Santo, tornando-me evangélica em minha infância,
distanciando-me, ainda mais, de uma possibilidade de conhecer a Mina.
Ao recordar-me dessas sensações, essas experiências únicas de vivências, nas
Festas do Divino Espírito Santo, remeto-me ao que a professora greimasiana, Ana Claudia
de Oliveira afirma, ao referir-se a essa experiência extraordinária, como “apreensão
estésica, vivenciada pelos sentidos, sendo refeita em linguagem estética como palavras ou
de forma visual que venha garantir um acesso maior a outras pessoas” (OLIVEIRA, 1995,
p. 230). Experiência na qual todos os sentidos são aguçados, uma explosão dos sentidos
nos invade, ao adentrar na casa de Festa do Divino.
A Festa do Divino e todo seu repertório visual, sonoro e espacial é capaz de
conduzir seus participantes a uma espécie de encontro de sensações, capaz de levá-los à
embriaguez, ao adentrar nesses espaços sagrados: o conjunto de cores e símbolos, o
caimento do cetim, a sobreposição de tecidos, a ornamentação dos espaços, a textura tátil
e visual, o brilho das roupas sob a luz do sol, o som dos batuques nas caixas e dos
tambores, os cantos das caixeiras, as vozes ecoando as ladainhas, o perfume do
defumador, do chocolate, dos doces, da comida, a acidez da bebida, o doce dos bolos e
10
De acordo com a tradição oral, o Tambor de Mina, manifestação de religião afro-brasileira mais conhecida
no Norte do Brasil, surgiu no Maranhão, com a Casa das Minas-jejê e a Casa de Nagô (abertas em São Luís,
por africanas, em meados do século passado) e, apesar de ter sido levada por migrantes para outras regiões
brasileiras, continua a ser mais praticado no Maranhão e no Pará.
29
Atos de escritura 4
licores, o sabor peculiar da comida, a textura do alimento em nossas bocas, a maciez das
sedas, dos objetos de decoração.
Descrições estas que, adentram no campo perceptivo do sujeito, que pode variar
de pessoa para pessoa, sendo capaz de romper, muitas das vezes, a an-estesia do sujeito.
As coisas do mundo adentram no campo de percepção do sujeito, em consenso com os
lugares que elas e o sujeito ocupam assim Oliveira aponta:
Esse encontro fortuito possibilita toda uma nova sensibilização do sujeito na sua
percepção do circundante. Um sujeito bem posicionado frente a um objeto bem
postado, são condições básicas para que o objeto, quebrando a continuidade do
mundo que o tornava imperceptível, apareça com o que ele tem de mais
característico: um certo som, uma certa fragrância, uma certa luz, um certo
paladar, uma certa forma, uma certa textura (OLIVEIRA, 1995, p. 229).
Definitivamente, uma festa que nos envolve como uma leve brincadeira dos
sentidos, com o real e o imaginário, o lugar, o espaço sagrado, sua iconografia e estética
própria. Diante deste universo que é tal festejo, busco refletir sobre Festa do Divino
Espírito Santo, no bairro da Liberdade, a partir da iconografia e das dimensões do
imaginário, presentes na relação de santificação e do sagrado, motivadores da devoção
nesses espaços, o que seria um passo dado em minha pesquisa de campo, que não pôde
acontecer por conta da pandemia.
30
Atos de escritura 4
Figura 03 – Casa e o mastro: casa de Festa do Divino Espírito Santo realizada no Bairro da Liberdade.
Assim, vejo a necessidade de pesquisar mais sobre a história de Dona Dionésia (minha
tia-avó) e sua relação com espaços sagrados da Festa e todo esse repertório visual, que
engloba tal festejo, partindo dessa iconografia da simbologia presente nesses espaços.
Mulher negra da Mina (referência ao Tambor de Mina) que muitas vezes, teve sua
história omitida aos seus netos, justamente por conta de sua religião, que era vista como
31
Atos de escritura 4
algo “proibido”, em épocas que ainda não se falava sobre empoderamento da mulher
negra (CARNEIRO, 2019).
32
Atos de escritura 4
capaz de conversar com seu interlocutor. Como afirma Georges Didi-Huberman, sobre
ausências e não ausências:
Ora nesse lançamento que vai e volta, no qual o lugar se instaura, no qual todavia
“a ausência dá conteúdo ao objeto” ao mesmo tempo que constitui o próprio
sujeito, o visível se acha de parte a parte inquietado: pois o que está aí presente
se arrisca sempre a desaparecer ao menor gesto compulsivo; mas o que
desaparece atrás da cortina não é inteiramente invisível ainda tatilmente retido
pela ponta do fio, já presente na imagem repetida de seu retorno; e o que
reaparece de repente, o carretel que surge tampouco a visível com toda evidência
e estabilidade, pois dá viravoltas e rola sem cessar, capaz a todo instante de
desaparecer de novo (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 96).
Considerações Finais
Nesta caminhada, por entre várias Festas do Divino, sempre busquei visualizar
minha avó, dentre inúmeros rostos de mulheres e no timbre de suas vozes, ao entoarem
as canções ao divino. Esse misto de sensações entre cheiros, texturas, sabores e sons eu
33
Atos de escritura 4
podia encontrá-la. E poder falar sobre essas mulheres que, como extensão de seus corpos,
o contato com o sagrado é um ato político. São mulheres, donas de casa, que têm filhos,
netos e que priorizam, durante os dias de Festa, suas obrigações com o Divino.
Adentrar, nas memórias das tias, avós, relatos orais, vivências, crenças, sonhos,
pedidos, é o que venho buscando, para me apropriar desses relatos das memórias,
imagens fotográficas, objetos. Uma busca constante deste elo com a Festa, do ontem com
o hoje, do passado com o presente.
Como estas mulheres estão seguindo, nesse período de pandemia? É um
questionamento que me faço e pretendo refletir sobre isso, em minha jornada como
professora/pesquisadora. A tribuna está fechada, os espaços estão vazios, à espera das
três pancadas da caixa do divino. Por enquanto, o festejar será adiado, até o dia da próxima
abertura da Tribuna da Festa do Divino 2021, 2022... Espero que seja logo.
zzz
REFERÊNCIAS
ALVORADINHA. Intérprete: Mônica Salmaso. In: Caipira. Intérprete: Mônica Salmaso. [s.
l]: [s.n], 2017. Disponível em: encurtador.com.br/iqCFJ. Acesso em: 11 maio 2021.
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BARBOSA, Marise. Umas mulheres que dão no couro. São Paulo: Empório de Produções
e comunicação, 2006.
DIDI-HHUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros, 2019.
FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Desceu na guma o caboclo do tambor de mina
em um terreiro de São Luís a Casa Fanti Ashanti. São Luís: EDUFMA. 2000.
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o Sincretismo. São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo; São Luís: FAPEMA, 1995.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
MARTINS, Bene. Nos fios da memória, a emaranhada tessitura do ser. Ensaio
Geral, Belém, v3, n.5, jan-jul, 2011 (p. 166 - 177).
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 1974.
OLIVEIRA, Ana Claudia de. A estesia como condição do estético. In: OLIVEIRA, ANA
CLAUDIA DE; LANDOWSKI, ERIC (org.). Do inteligível ao sensível. São Paulo: EDC, 1995.
34
Atos de escritura 4
Considerações preliminares
Uma escrita com intenções poéticas, numa busca por inspiração na cultura
amazônida. A percepção de um tempo e lugar revela uma tensão sustentada na atmosfera
poética do texto, almejada para dar-lhe o equilíbrio inconstante. O lugar é sentido em seu
aspecto surreal e a escrita tem o papel de expressar certas hesitações e movimentos do
corpo, diante desse “estranhamento” por um cenário rústico, exótico, entremeado de
perturbações dantescas, quixotescas outras vezes em clownescas dominantes. E o tempo?
Ah o tempo como diria Caetano Veloso: “compositor de destinos/ Tambor de todos os
ritmos/Entro num acordo contigo / Que sejas ainda mais vivo/No som do meu do meu
estribilho.” Só as palavras do poeta para nos redimir das ondas desse mar bravio do
tempo, estabelecendo um acordo no sentido de dar vida ao que já passou, permitindo a
licença de fazê-lo sentir como se não tivesse passado, como quem entra numa máquina do
tempo ou fosse capaz de navegar pelo rio dessas águas formadas de horas, minutos e
segundos, sem temer nelas naufragar. Portanto, o propósito desta escrita é anular o efeito
melancólico do tempo, não naufragar no caudaloso saudosismo, mas, perceber a
11
Doutorando em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, artista, professor-pesquisador
atuante nas artes da cena no município de Abaetetuba e em projetos sociais de arte-educação em escolas
públicas e. Mestre em Artes pelo PPG Artes da UFPA, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas -
CONVERSAÇÕES: Filosofia, Educação e Arte (UFPA e CNPq), coordenado pela sua orientadora de pesquisa
no Doutorado, Profa. Dra. Maria dos Remédios de Brito. vinagre3751@gmail.com
12 Professora Doutora, associada da Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências
35
Atos de escritura 4
possibilidade de criar com ele, sentir “quando o tempo for propício” para o movimento
inquietante e a aventura.
O percurso da pesquisa parte de vários elementos disparadores, objetos
difusores da criação surgidos como desdobramento da pesquisa inicial, originada de um
desejo de encontrara raiz cultural de onde se alimentam nossos sonhos coletivos. O apelo
subjetivo, numa expressão freudiana “o desejo de saber” me convocava para uma viagem
pelas culturas amazônidas para encontrar aquilo que, intuitivamente, parecia pulsante em
vida, a erfahrung13 esquecida, mas, agora posta às luzes para ser apreciada e nos servir
de luzeiro para outras aventuras do pensamento e do fazer artístico.
As narrativas de artistas brotaram dos encantamentos da fofoia, este fenômeno
pitoresco cujo teor nos remete à cena poética, da criação pelo improviso, surgida
espontaneamente, como os aningais, na ribanceira dos rios desta terra amazônida,
servem de alimento aos peixes-boi e capivaras. Num movimento sinuoso da cobra Pacoca
que, ao entardecer, desliza pelo rio Maratauira, desde sua morada na ilha, até a beira da
cidade, as narrativas das fofoias encantaram-me na primeira impressão, nela pude ver
algo exuberante em saúde e vindo de um tempo imemorial.
Traços autobiográficos emergem em certos pontos do texto, para dar-lhe o
entendimento consistente. Dessa forma, através da Fofoia, os meus ouvidos acostumados
a ouvir Tchaikovsky, Chopin e Liszt, iriam agora embrenhar-se pelos sons das matas e
rios. Talvez, minha ancestralidade pudesse explicar essa afeição pela fofoia. Meu avô
materno era um caboclo da região interiorana de Igarapé Miri e, segundo minha mãe
contava, ele acordava na madrugada, para andar pelo mato à procura de frutos e caça, por
essa prática, apelidaram-no de “João do mato”. De todo modo, esse exotismo e rusticidade
da fofoia, performados numa estranha cantoria poética de caboclos, por si só, eram um
atrativo capaz de me capturar para este fenômeno, capaz de fazer-me ir a busca de
sujeitos, para relatarem seus contornos. Estes sujeitos, supostamente, eram os narradores
idealizados, pessoas que viveram, ou ainda vivem, em comunidades tradicionais ou do
que resta delas e que fossem capazes de transmitir o encanto das fofoias.
No decurso dos relatos apareceram diversas narrativas incrustadas de histórias
de artistas da cena e, como dobras da pesquisa, foram nela incorporados, como num tecido
Erfahrung é uma noção presente na filosofia de Walter Benjamin, referindo-se à uma experiência coletiva
13
36
Atos de escritura 4
14
Paxiúba é uma madeira rústica feita de tronco de palmeiras da região ribeirinha, como o açaizeiro,
utilizada para fazer o assoalho das casas. (Nota do autor)
15 Segundo o antropólogo e professor Doutor Jones Gomes, a cosmologia ribeirinha, ou seja, seu conjunto
de concepções e crenças que dão sentido à atuação de seus membros, ainda encantada pela cultura,
recobre um universo, como vimos, bastante híbrido de significados, mas que aos poucos vai se
encaixando em novas configurações imagéticas. No caso da influência indígena, bastante aceitável ao
ribeirinho, temos a imagem dos encantados como sinal opositivo ao desencanto. Ou seja, temos muitas
comunidades que se encontram ainda encantadas pela cultura, por isso, não perderam uma certa
espontaneidade, um saber fazer e o poder de criação (GOMES, 2013.p.299).
37
Atos de escritura 4
16
Nazaré Lobato era uma conhecida folclorista, versada nos temas da cultura amazônida, sobre a qual
escreveu diversos livros. Era também dramaturga e coreógrafa e realizou muitas montagens de cordões e
encenações de lendas. Esta narrativa, aqui, foi resultado de uma pesquisa que realizei em 2008 para uma
montagem de uma coreografia sobre a Pacoca, para o evento intitulado Auto da Barca Amazônica, dirigido
pela professora e mestre pelo PPG Artes da UFPA, Jaqueline Souza. O elenco com o qual trabalhei era
formado pelos alunos do Colégio São Francisco Xavier. (Nota do autor)
17
Dionisíaco é uma noção oriunda da filosofia de Nietzsche referindo-se ao deus do êxtase e do teatro e às
características presentes nas artes musicais e da cena. (Nota do autor)
38
Atos de escritura 4
18
Adagio é um termo utilizado na nomenclatura do Ballet Clássico, referindo-se a movimentos lentos.
39
Atos de escritura 4
fondu19, do que para o battement frappé20”. E assim ele chega até uma canoa e senta, pega
no remo e seu corpo ganha uma extensão, ao manusear o remo e declama:
Para conhecer a cultura amazônica é preciso errar pelos rios, tatear no escuro
das noites da floresta, procurar os vestígios e os sinais perdidos pela várzea,
vagar pelas ruas das cidades ribeirinhas, enfim procurar na vertigem de um
momento que se evapora em banalidades, a rara experiência do numinoso.
Experimentar o frêmito de um caminhar errante que vai descobrindo com
decoro a irrupção perene da fonte da beleza (LOUREIRO, 2015. p. 33).
19
Refere-se a um movimento executado em tempo lento, com apoio de uma perna, enquanto outra faz uma
flexão e estiramento dos joelhos, sem estar apoiada no chão. (Nota do autor)
20
Movimento executado de forma enérgica, tendo uma perna de apoio, enquanto a outra faz um ricocheteio,
dobrando e estirando os joelhos rapidamente. (N. do autor)
40
Atos de escritura 4
21
Uma das interrogações que surgiram, no decorrer do trajeto desta pesquisa, diz respeito ao modo como
estes artistas da cena desenvolviam o saber sobre suas artes, suas “técnicas”, de modo “atencioso” alguns
relatos falaram-me de aprender olhando, ou “de orelha”, aprender fazendo o que os outros fazem, revelando
as formas artesanais de apreensão da experiência transmitida. (N. do autor)
41
Atos de escritura 4
42
Atos de escritura 4
43
Atos de escritura 4
Uma das narrativas dos tempos da fofoia, contada pelo Sr. Benigno
Silva, atravessa inúmeros rios e igarapés, envolta no encantamento dos curadores da
pajelança, numa paixão estranha de um rapaz por um ser lendário, entretanto, a narrativa
no momento em que é contada assume os ares de uma veracidade tal, que me impressiona
e demonstra um ritmo de fala cheio de gags e trejeitos, digno de um narrador. O
protagonista desta narrativa é um morador de uma ilha na região ribeirinha de
Abaetetuba:
Figura 3 – O boto e o amarelão
Era um rapaz misterioso, estranho e sempre calado, vivia pelos cantos, dobrando
o tronco para dentro de si, sua palidez provocava pena, era ajudante de um
homem que vendia café, na cabeceira da ponte na qual, muitas embarcações
aportavam, A amarelidão do rapazinho deixava a todos impressionados, e assim
seu tio, preocupado, decidiu levá-lo ao maior curador daqueles tempos, o Seu
Inácio do Rio Piramanha. Muita gente procurava esse pajé, adivinhador dos
males que afligiam os ribeirinhos. E assim numa noite levaram o amarelão até o
Seu Inácio, cuja casa ficava bem perto de um biribazeiro. Seu Inácio pôs as mãos
sobre a cabeça do rapaz e falou alto: “Isto é, coisa do boto!” Todos ficaram
espantados com aquela afirmação: “Mas como o boto?” Como poderia estar
provocando tal feito sobre o rapaz, a ponto de tirar-lhe a vontade de comer, e de
dormir? Voltaram para a casa, cansados, mas o rapaz de palidez espantosa não
quis comer, nem dormir, ficou na cabeça da ponte pensativo, olhando a lua cheia
que parecia beijar as águas douradas do rio. Mas, naquela noite, o mistério seria
desvendado, um primo resolveu ficar à espreita, para descobrir o que se passava
com o rapaz. Até que certa hora, no silêncio da noite, em que até a coruja calou o
seu canto agourento, um boto encantado em homem apareceu na ponte e, de
repente, estava se “servindo” do rapaz. O susto gerou uma gritaria enorme e
todos correram, para agarrar o boto, que sumiu nas águas do rio, fugindo do
escândalo e de pegar uma sova (MENDES, 2020, s/p.).
Nas narrativas de Seu Benigno aparecem muitos artistas. Seu Bernardo Rebolada
era um músico negro, cuja menção ao nome, me fez recordar de outra narrativa de artista:
44
Atos de escritura 4
a famosa “rainha do folclore abaetetubense”, Dona Nina Abreu, com quem eu entabulava
muitas conversas, contou-me certa vez de onde veio a inspiração para criar uma de suas
danças, a dança da Saracura. Ela ouvia sempre uma canção, a canção da Saracura, quando
as festas animadas pela orquestra de jazz encerravam, e o intérprete da canção era o Seu
Bernardo Rebolada: ”Saracura, está cantando, no galinho do cipó/ Canta, canta meu bem
saracura/ quiricó, quiricó, quiricó!”
Conforme contou Seu Benigno Silva, o Bernardo Rebolada era filho de uma negra,
vendedora de azeite de andiroba, chamada Floriana e para ela teria criado uma canção
que incorporou ao seu repertório: “Minha mãe quando voltar/venha lá pelo bazar/
compre um cacho de banana, e açaí pra nós “tomar”/ Minha mãe Floriana, minha mãe
Floriana, /açaí, miriti, cana/açaí, miriti, cana!”. E, nesta estrofe final, aludindo aos frutos
da região, junto ao som de percussão levava ao delírio os festivos moradores das ilhas que
dançavam animadamente.
45
Atos de escritura 4
Havia um tempo em que o Cordão do boi Pingo de ouro, dirigido pelo pai de dona
Neide, o artista e artesão Seu Manoel Rosa, era dançado durante toda quadra junina,
apresentando-se na sede do clube Tietê em cujo salão, lotado de curiosos, o som do
tambor, banjo, flautas e requexés misturava se aos cantos da “sinhá”, personagem do
Cordão, declamando seus desejos pela carne do boi. No final do mês, ocorria a festa da
Matança do boi, uma forma de teatro-ritual, percorrendo as ruas da cidade.
Figura 4 - Cena da Matança do boi e o "tripa" segura uma garrafa de vinho.
O "boi" andava por várias ruas da cidade, seguido por uma multidão barulhenta.
Enquanto isso, na outra ponta da cidade, vinha o "atravessador", personagem algoz do
“boi” e, quando este entrava na Rua Magno de Araújo, os dois se encontravam e o boi
corria e entrava pela Rua Aristides para, finalmente, ser encurralado na Vila Belchior. Ali
acontecia a cena final, com o atravessador puxando a espada para o sacrifício do boi e,
naquele instante o “tripa”, sujeito que ficava sob a armação do boi, pegava uma garrafa de
vinho e, quando sentia a espetada da espada, começava a jorrar o vinho, a turba trazia
seus copos, e a banda entoava músicas animadas para dar início a uma grande festa, que
durava ate ao amanhecer.
Seu Manoel Rosa, conhecido como Seu Dico, dirigente do Boi Pingo de Ouro, como
as pessoas diziam “ele era o dono e criador”. Segundo dona Neide, ele era um performer
que se metamorfoseava de mulher e fazia apresentações em eventos festivos, fazendo
suas “palhaçadas”. Essa metamorfose do Seu Dico, em mulher, exigia uma elaborada
46
Atos de escritura 4
Epílogo
Como em todo espetáculo, o tempo marca as entradas e saídas dos personagens.
A marcação dos narradores tem também um momento de epílogo, um desenlace da ação,
do movimento. A fala na narrativa, em seu ritmo de descrição de episódios, intrigas e
“pantaminas22” têm o seu final com uma pausa seguida de uma reflexão. Percebi como os
narradores que tiveram seus relatos descritos neste texto, fechavam suas falas, com um
momento de pausa, respiravam e faziam um retorno crítico, um tour a penser, como se o
pensamento virasse sobre si mesmo, para dar um fecho, incorporando um gesto de cabeça
e um olhar para o passado. Como o anjo da história de Benjamin23, é impossível não
reconhecer a ruína, o amontoado de cacos da história, constituindo os fenômenos
culturais desaparecidos, a sensação de falta, a lacuna do presente do não mais. Contudo,
só a arte é capaz de vencer o movimento catastrófico do tempo, os desmazelos dos
poderosos para com os artistas. A arte resiste na Amazônia, mesmo enfrentando o avanço
de uma modernidade que a engole, e os artistas tentam lutar, como em um ritual
antropofágico, devorar os seus elementos, criando novas formas híbridas. Há que se
considerar, entretanto, os fenômenos afogados na maré avassaladora do tempo.
Este ensaio deu forma a uma proposição de aproximar-se destes fenômenos
integrados, nas narrativas de artistas da cena abaetetubense, numa imagem poética, como
uma canoa mansamente enconsta, numa ribanceira dos rios, cujas margens com a lama e
o limo, permitem o deslizamento sinuoso e suave, porém, a escrita destas experiências
22
Expressão usada pelos meus parentes ribeirinhos, para se referir a uma performance criada para
impressionar, talvez uma modificação da palavra pantomima, mas num sentido mais amplo de
dramatização.
23
O anjo da história é uma imagem descrita por Walter Benjamin, em seu texto Teses sobre o conceito de
história de 1940. (N. do autor).
47
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato. Ensaio sobre criação, escrita, arte e livros ; tradução
Andréa Santurbano e Patricia Peterle. 1ª ed. São Paulo : Boitempo, 2018.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 8. ed. rev. São
Paulo: Brasiliense, 1987.
_________. Passagens. Tradução do alemão Irene Aron; tradução do francês Cleonice Paes
Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2007.
GOMES, Jones da Silva. Cidade Da Arte: uma poética da resistência nas margens de
Abaetetuba, Tese de Doutoramento em Antropologia. Belém, UFPA, 2013.
_________. Cena da Matança do boi e o "tripa" segura uma garrafa de vinho. Desenho
em lápis aquarelado, 2021. (Figura 4)
48
Atos de escritura 4
49
Atos de escritura 4
Para iniciar este diálogo, trago a poesia do lamento27 que escrevi e o grito de
“Iêêê!!!” prolongado, chamando os leitores já com o início de uma ladainha28 “Meu grito,
minha voz. Minha voz é meu cantar” pois preciso situar aqueles que disponibilizarão seu
sagrado tempo, para ouvir meus clamores de mulher periférica, mãe, educadora, artista e
pesquisadora que precisa entoar sua voz, como possibilidade de reencanto, reencontro de
saberes e fazeres, que foram desviados das trajetórias femininas, pelo patriarcado
instaurado no sistema capitalista, em nossa sociedade.
Para melhor compreensão deste trajeto, este escrito compõe o processo de
pesquisa no Curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Artes - PPGARTES,
da Universidade Federal do Pará-UFPA, no qual proponho uma teoria-práxis surgida, no
percurso sensível-reflexivo dos fundamentos e tradições, da manifestação prática da
24
Dançaeira trata-se de uma teoria-práxis autoral, que busca discutir, sob uma perspectiva filosófica e
metodológica, caminhos para o pensar-fazer em dança contemporânea, a partir dos fundamentos e
tradições da capoeira.
25
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. E-mail:
andreza.barroso@hotmail.com .
26
Professor-orientador no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. E-mail:
miguelsantabrigida@hotmail.com .
27
Poesia declamada/falada pela(o) cantadora(o) na roda de capoeira angola antes do grito de “iê”, o qual é
o grito de abertura da roda, com a intenção de chamar a atenção das pessoas para a escuta da mensagem
que virá.
28
Ladainha é uma cantiga cantada por apenas uma pessoa com o intuito de transmitir os saberes sobre a
arte, sempre com uma mensagem a ser partilhada como histórias da capoeira, situações, sobre o jogo de
capoeira, etc. Tem característica dolente, como se fosse uma ‘reza’ e, após o “iê, viva meu Deus” é que o coro
de pessoas entra acompanhando no “iê, viva[repete o que a(o) cantadora(o) canta] , camará!”.
50
Atos de escritura 4
29SILVA, Andreza Barroso da. Dançaeira: a capoeira como procedimento para a construção de um processo
criativo em dança contemporânea. Orientador Cesário Augusto Pimentel de Alencar; Dissertação
(Mestrado) – Instituto de Ciências da Arte – ICA - Universidade Federal do Pará, Belém, 2012.
30 Instrumento de origem africana que, atualmente, é composto por um pau/madeira cilíndrica, chamado
de verga pela sua flexibilidade de ser vergada sem quebrar, com um disco de couro na parte superior e
acabamento com encaixe na parte inferior para o arame; um arame retirado de pneu de carro ou
motocicleta; uma cabaça com abertura na área do pêndulo e dois furos com três centímetros de distância
entre eles para passar o fio de rami ou punho de rede (como usam) e anexar à verga hasteada com o arame.
Acompanha um dobrão (pedra ovalada lisa ou moeda de metal, cobre ou latão), uma baqueta (vareta fina
para percutir no arame) e caxixi (um chocalho com sementes tradicionalmente feito de palha e cm a sua
base de cabaça).
51
Atos de escritura 4
som (sua voz!). Ele é quem impele nossa voz! Porém, neste escrito, ele não entrará na
discussão, por entender que o mesmo merece um espaço especial, para tratar da relação
corpo-berimbau, a qual envolve particularidades para o exercício de poder para manejá-
lo.
Faz-se importante frisar que, todos na capoeira podem e devem cantar,
supostamente, cada um tem espaço, porém, compreendo que este espaço trata de
questões, para além do espaço físico, de um momento oportuno. É um espaço de
representação de poder, de conhecimento, de autoridade que não necessita,
necessariamente, que a voz seja como a de um sabiá31, o mais importante é que a voz seja
entoada e o exercício do cantar se construa enquanto expressão e, assim, sigamos: “canta
sabiá! canta aqui que eu canto lá. Canta sabiá! Quero ouvir o seu cantar” e, na Dançaeira,
o canto emana, ativa o corpo, o ser, o presentifica e expressa a força e encantamento do
feminino.
Eu quero ver cantar aqui. eu sou mulher, digo que sim32.
Neste momento, é sobre a voz suscitada sob a lente da Dançaeira , a partir do
campo do sensível mobilizado pelo canto na/da capoeira que quero sublinhar. Canto e
voz, ao mesmo tempo. Voz e canto de mulher que, diante da conexão entre dança e
capoeira, desperta o/no corpo um evocar-se e um assumir-se enquanto reivindicadora de
sua própria voz pelo canto.
E então digo: A voz tem poder! Mas aqui o termo “voz” trata tanto na escrita
acadêmica, quanto no soar do som vocal, que atravessa as cordas vocais, preenchendo o
espaço e chegando aos ouvidos dos outros – os amigos, ou ditos inimigos declarados, ou
companheiros/companheiras de luta - e, sendo percebido, pois, “não podemos ver a
vibração sonora do ar. Podemos apenas ouvir as ondas sonoras, isto é, som que vibração
do ar produz” (ARTAXO; MONTEIRO, 2013, p.15).
Diante disso, essa captação auditiva desperta emoções e sensações em nosso corpo
e, a depender do quê e do como se escuta esse som causa efeitos psicológicos, físicos e
fisiológicos (ARTAXO; MONTEIRO, 2013) e, considero que, a escuta educa, forma o corpo
sujeito e, nesse sentido, a oralidade está intimamente relacionada com a voz: a voz falada,
a cantada.
31
Na capoeira, quando se compara alguém ao pássaro ‘sabiá’, quer-se dizer que a pessoa canta muito bem.
32
Adaptação para o corrido de capoeira “Oi! Sim, sim, sim! Oi! Não, não, não!” que possibilita uma troca
criativa de informações no momento do jogo de vadiação. Breves intervenções políticas na capoeira.
52
Atos de escritura 4
53
Atos de escritura 4
33
Os tópicos deste escrito são relativos a criações de letras, de diferentes tipos de cantigas cantadas na
tradição da capoeira. O termo ‘camará’, utilizado ao longo do texto, é uma expressão que se refere à
camarada, ou seja, à companheira(o) de jogo.
34
Diz-se quando uma pessoa tem percepção e domínio para ‘puxar’, tomar frente, pegar para si, a ação do
momento diante de um coletivo, seja no canto, seja na reza, etc.
54
Atos de escritura 4
55
Atos de escritura 4
perpassa pela interpretação do sujeito que não vive as suas problemáticas, as suas
necessidades e, seus desejos sociais e, especialmente, não os vive na própria capoeira.
O canto despertado pelo ritmo dos instrumentos da capoeira traz à tona
simbologias, representações onde “as letras das canções muitas vezes gabam o poder e
masculino e menosprezam a mulher.” (BARBOSA, 2011, p. 464). Sobre isso, Maria Barbosa
destaca que as cantigas tradicionais da capoeira, dentre elas o corrido, apontam
características depreciativas em relação à mulher como ciumenta, vulgar, fofoqueira,
venenosa, traidora, dentre tantas outras, tomando um sentido diferente, quando
aparecem relacionadas à mãe e avó.
Djamila Ribeiro ao abordar sobre a pesquisadora feminista negra Lélia Gonzalez
aponta ser fundamental observar que “a linguagem dominante pode ser utilizada como
forma de manutenção de poder” (RIBEIRO, 2017, p.16), assim, as letras das cantigas de
capoeira precisam revelar a realidade da existência e atuação do feminino. Diante disso
Barbosa (2011) coloca que
Se as cantigas de capoeira têm a função de conectar a energia da roda,
redimensionando os movimentos e representando a malícia do jogo pelo
discurso lúdico e evasivo do significado das palavras, elas não poderiam deixar
de indicar as mudanças que a mulher trouxe para as rodas de capoeira.
Atualmente, não é mais uma raridade que as capoeiristas questionem as letras
tradicionais em que a afirmação da masculinidade se faz por meio da negação da
mulher. Por exemplo, muitas mulheres se recusam a cantar certas canções, fazem
mudanças nas letras daquelas mais misóginas e até têm composto as suas
próprias cantigas (BARBOSA, 2011, p. 472).
Para fazer jus à colocação da autora, me coloco nesse lugar de questionar, por meio
do canto, e buscar recantá-lo sobre a figura feminina, buscando cantigas que me acionem
e, também, compondo, alterando, reorganizando as palavras para mobilizar o eu-feminino
e, contribuir com uma nova forma de acesso daqueles que vislumbram. Recordo que, ao
período da adolescência, costumava criar cantigas para serem cantadas na capoeira, pois
para mim, sempre foi um hábito criar versos e poesias, para os quais nem recordo mais a
data. Porém, foi fato que tais versos falavam sobre sentimento, sobre afetos, sobre amor
de mulher (que, à época eu era somente uma menina) e, de amor à capoeira.
Em dois momentos, tive a atitude de mostrar, cantando, tais cantigas a dois colegas,
onde num primeiro momento, eles não deram muita importância e, já no segundo,
disseram que a letra estava muito melosa (uma referência sexista!) e que não se
agradavam muito deste tipo de letra e, que gostavam mais de letras com conteúdo
(história sobre a capoeira, sobre mestres, enfim, menosprezando o ser sensível). Não me
56
Atos de escritura 4
importei deles não terem gostado, por falar de afetos, de amor, mas, me incomodei por
compreender que meus sentimentos, minha expressão, minha atitude não foi
considerada, valorizada e assim, deixei de lado a criação de cantigas por longo tempo.
Diante disso, passei a investir no exercício com os corridos35 da capoeira, Como?
Adaptando, criando versos, para assim ‘dar meu recado’: questionar, “xavecar”36, instigar
ou, ensinar por meio da letra cantada, em forma de mensagem. Além de, instigar a minha
capacidade com os corridos visto que, quando criança, por volta dos oito aos dez anos,
quando brincava pelos quintais de casa e da casa dos meus tios e tias (já que os quintais
se interconectavam sem cercas) costumava criar músicas inteiras, quando estava alegre
ou triste... Cantar, criar cantando, cantar criando era uma celebração do meu eu. Mas, no
instante seguinte, não me lembrava de uma única frase. Então, vivia o momento. E o
depois, era o depois, não restava nada (de letra) na memória. Mas, a sensação do vivido
causava profundas diferenças.
Após a experiência com o descaso de meus companheiros de treino sobre minhas
composições, percebi que houve um bloqueio, um fechamento de mim para o mundo
nesse aspecto. Mas continuava a criar... E, nas oportunidades dos corridos na roda,
aproveitava e xavecava, mas, algo que percebo que acontece, ainda hoje, em tantas rodas,
eventos e participações é que, quando nós mulheres cantamos, poucos nos escutam (isso
é uma constatação!). É algo ridiculamente absurdo e, ao mesmo tempo, mediocremente
cômico em relação aos homens e, aos mais novos ou afoitos. Diante disso, compreendo
que a iniciativa foi e está sendo tomada nas rodas, na cena, seja nas artes ou na academia
e, concordando com o que expõe Hooks (2019) que, neste momento a luta a ser endossada
deve ser a de nós, mulheres, ser escutadas.
Assim, a Dançaeira se configura como teoria-práxis, como um espaço de reflexão e
de prática, em que o ‘eu feminino’ protagoniza a sua voz, o seu corpo, a sua expressão, pois
é preciso que nossas vozes, vozes de mulheres negras (voz cantada e escrita, como esta)
sejam ouvidas por diferentes pessoas, diferentes classes ou, diferentes culturas. E,
concordando com Hooks (2019) “desejo ajudar a construir um mundo onde nosso
35
Segundo Mano Lima em Dicionário da Capoeira (2007, pg. 92), corrido é “cântico de capoeira que marca
o intente em que o jogo pode ter andamento, quando o coro é fundamental, devendo entrar desde o início”.
Tradicionalmente, quem canta começa pelo coro para justamente ensina-lo e, este coro não se modifica. Este
coro é um coro curto, e se dá da seguinte forma: uma vez é o cantador(a), na outra, o coro – sucessivamente.
36 Na capoeira, xavecar é direcionar a sua fala, ou seu canto à alguém sem identifica-lo por diversos motivos,
pode ser por afeto ou, desafeto.
57
Atos de escritura 4
trabalho seja levado a sério, valorizado e aclamado, um mundo onde tal trabalho seja visto
como necessário e significativo” (HOOKS, 2019, p. 110).
Aqui, trato de duas esferas: uma, da atuação enquanto corpo e voz presente no
universo da capoeira e; outra, enquanto corpo e voz de pesquisa acadêmica em artes, no
âmbito específico da dança contemporânea, a partir das experiências da capoeira, como
arte emanadora das reflexões e atuações expressivas. E assim, componho e canto. Evani
Lima ao tratar sobre o canto, como um dos elementos da Capoeira Angola37, coloca que o
canto corrido “comporta espaço para que o cantador recrie parte do canto para dialogar
com os presentes”, ou seja, improvise. E, “também atua como espaço de reflexão do
universo das mulheres e dos homens a ela pertencentes, através do canto e da prosódia38”
(LIMA, 2008, p. 31-32).
Mas, porque exponho até aqui, essas relações de voz, de canto, de oralidade?
Porque quando nos encontramos com o nosso eu, quando entramos em conexão do
somos, queremos e podemos, simplesmente nós nos expressamos de modo fluido. E, é
nesse (re)encontro que anuncio a dança própria (assumida e requerida pelo corpo), a
Dançaeira, como espaço possibilitador da criação, do canto associado com a expressão de
ser e estar no mundo, trazendo as questões que nos afligem, enquanto mulheres que
somos e que vivemos na sociedade dos micros sistemas, observando aqui a comunidade
capoeira e, a comunidade dançante.
Com relação ao que afirma Franciele Aguiar, embora aborde sobre os povos
originários da Amazônia (a floresta muito me afeta!), a sua discussão sobre a experiência
de afecção, por meio da voz, como um reencantar da audição no mundo, aponta que a voz
cantada, o canto de encantamento presentificam memórias. E nesse ínterim, compreendo
que nós mulheres não podemos “sufocar: falo de voz, de canto, de um som que é ar
vibrando no corpo. Digo de vozes e encantamentos num momento em que estou na
Amazônia, no lugar que é considerado o pulmão do mundo” (AGUIAR, 2020, 181).
Ao pautar-me nesta perspectiva contraditória pergunto: como pode nós nos
sufocarmos neste lugar reconhecido como um ‘pulmão do mundo’? Este lugar também
37
Em geral, as pesquisas acadêmicas que tratam sobre corpo e cena se baseiam no estudo, a partir da
capoeira angola, pois, tradicionalmente, existem dois estilos de capoeira: a Angola e a Regional. A primeira
remete á prática mais ancestral praticada por negros africanos e descendentes no Brasil; a segunda trata da
mais moderna, criada e sistematizada na década de 1930 por Mestre Bimba como um estilo mais combativo
contendo elementos de outras lutas, como o batuque, por exemplo.
38 Estudo da gramática que trata do acento e entoação dos sons da fala. Na capoeira, a entonação silábica é
58
Atos de escritura 4
está adoecido pela lente europeia, assim como, toda a nossa sociedade deslegitima em
atitudes, política, economia e arte, os saberes e fazeres dos invisibilizados. São
invisibilidades dentro de invisibilidades: Amazônia-Arte-Capoeira-Mulher, porém,
escutarei a voz de minha Dançaeira!
Durante o processo para a apresentação ‘Dançaeira: Eu-mulher nos passos
entrelaçados’, com a participação especial da professora Carla Baia39, na programação em
comemoração ao Mês da Consciência Negra, em 07 de novembro de 2020, na Estação
Cultural de Icoaraci, compus a ladainha como um chamado à reflexão dos presentes. O
grito de “iê” prolongado parece ir conduzindo o olhar das pessoas à minha direção:
Tem tanta gente
Que critica a minha vida
Sou mulher, sou perseguida
mesmo antes de nascer
E todo dia
É batalha, é labuta,
pois querem que fiquemos mudas
mesmo com medo de morrer [...].
Nestas duas primeiras estrofes, expresso falas sobre uma condição histórica, na
qual, o feminino é subjugado pela cultura machista e patriarcal que julga o quê e como
fazer, abusa sexualmente e o concebe como propriedade, deslegitima o seu trabalho e
ainda, banaliza a sua existência. Diante disso, costumo assinalar que a palavra persistência
abarca diferentes dimensões, quais sejam, a de significado e a de materialidade, pois, para
mim, consubstancia-se como algo simbólico, uma ‘ideologia’40 que direciona as atitudes
diárias e, se materializa nas mesmas, assim a persistência se faz na cotidianidade (‘e a
cada passo’, como na estrofe abaixo) da luta (a luta se faz na concretude das ações, nos
39
Carla Suellen Castro Baia é licenciada em dança, pela Universidade Federal do Pará – UFPA, é graduada
em capoeira, conhecida como Bailarina, atua como artista da dança na cena paraense e participa de coletivos
em dança, além de ser microempreendedora, representando a Personalizados Baia, que trabalha com
roupas e confecções e artigos para a capoeira e, ministra aulas de capoeira, no projeto social que desenvolve,
pelo Centro Cultural Aruanda Brasil – Pará.
40 Faço este registro sobre a palavra persistência, sobre a qual encontramos que a mesma vem do latim
persistere significando continuar com firmeza, devido a mesma muito me impelir a acreditar que, mesmo
diante das dificuldades e adversidades, devemos continuar seguindo por nossas metas diante da vida, ou
seja, a longo prazo, lutando a cada dia. Entendo que, persistência está diretamente relacionada com a
palavra luta, a qual também se trata de um substantivo feminino, que se relaciona com o fator tempo, de
maneira mais imediata, ou seja, a luta trava-se com a resistência-obstáculo, sendo o embate e, ultrapassar,
empurrar, mover essa resistência resulta num esforço contínuo, denominado persistência. Assim, entendo
que quem persiste luta, mas não, necessariamente, quem luta persiste na sua meta e, no que concerne às
diferentes lutas, referentes à atuação feminina, faz-se necessário lutar, diariamente, e manter-se
persistente. Para mim, persistência é uma palavra importantemente mobilizadora.
59
Atos de escritura 4
embates e resoluções na vida), em ‘lutar por respeito!’ de viver, e ser e fazer sem ser
julgada por ser mulher como exponho na ladainha:
E a cada passo,
vamos lutar por respeito!
A mulher tem o direito
de ser o que querer ser,
A voz não cala!
O trabalho não descansa!
E sigo com esperança
tocando meu berimbau.
Só a mulher
carrega por toda a vida
a dor de ser parida
e luta para viver.
Iê, viva meu Deus!
(Coro) Iê, viva meu Deus, camará!
(Coro) Iê, viva a mulher! camará!
(Coro) Iê, viva a todos nós! camará!
(Coro) Iê, viva a capoeira! camará!
Na atualidade, ainda são comuns as práticas de violência à vida das mulheres que,
além de lutar pelos seus direitos sociais e direito à vida, a sua atuação em buscar abrir
espaços para ocupar a representatividade feminina tem sido construída a passos curtos,
diante do machismo e sexismo instaurados, porém, a transmissão de saberes por meio da
oralidade “que acontece em presença, corporificada, por força da palavra, falada, mas
também cantada ou simplesmente gestualizada” (MACHADO; ARAÚJO; 2015, p. 110).
60
Atos de escritura 4
Neste momento, desta cantiga, a louvação demarca a entrada no coro (numa roda
de capoeira angola) que, na apresentação supracitada se faz a partir dos instrumentistas
na cena41, na qual também uso a estrofe final “iê, viva à Dançaeira” que, conforme
Machado e Araújo a louvação “é um momento em que cada um pode se concentrar em
suas próprias crenças e espiritualidade, agradecendo e pedindo sua proteção”
(MACHADO; ARAÚJO, 2015, p. 109).
Diante dessas colocações, aponto que a Dançaeira se configura como microssitema
de resistência às técnicas, às estéticas, às poéticas, de cunho colonialista e patriarcal que
deslegitima, invisibiliza e marginaliza a voz feminina e suas problemáticas e necessidades
da realidade social micro e macro sistemática. Assim, compreendo que a arte em si é
política e, por isso, mesmo pleiteia um lugar e fala de um lugar. Diante disso, a Dançaeira
também é política! Não somente a priori, por sua estética e técnica, a partir da matriz afro
e tradições culturais da capoeira, mas, também, por um expressar cantando algo que
emana em minha ancestralidade pois, sempre me imbriquei com o dançar e o cantar, os
quais são heranças ancestrais.
O canto é dubiamente político: o é porque é em voz de mulher que fala o que quer
e precisa para, possivelmente, ser escutada (identificada observada e compreendida em
suas singularidades e limitações impostas) e; por ser uma voz que emana de uma prática,
com fortes traços patriarcais, em nossa sociedade, ainda que a origem do termo capoeira
remonte a uma ancestralidade mãe, africana, onde a mulher mãe tem lugar de valor
incontestável. O fato de assumir-me mulher e apontar saberes e fazeres que legitimem a
competência feminina, com habilidades prestigiadas na tradição da capoeira, é expresso
na seguinte quadra42 (obviamente, também por mim criada):
Sou mulher capoeirista
E tenho o meu valor.
Eu toco, eu canto, eu jogo! Não nasci pra bibelô43.
Se me chamar pra uma roda
É melhor saber quem eu sou, camará!
41
Participaram nesta apresentação tocando berimbau: Mauro Celso Barbosa Passinho (Mestre Mauro Celso)
e, Fábio Santos Vasconcelos (Professor Fábio Santos) da Associação de Capoeira Menino é Bom (Icoaraci-
Belém- Pará) da qual pertenço.
42
Pequena ladainha com versos, composta por quatro a seis linhas, sem interrupção, de conteúdo variável,
algumas vezes, fazendo sotaques ou advertências jocosas a algum companheiro, a fatos ou lendas da roda
(LIMA, 2007). A quadra foi muito valorizada, como ensinamento, integrando a abertura da roda de capoeira
regional de Mestre Bimba.
43
Em geral, bibelô é um objeto de ornamentação, de enfeite de mesas, estantes, etc. Na capoeira, ou nas
práticas corporais em geral, significa pessoa frágil, que não pode se expor demais, para não se machucar,
alvo fácil.
61
Atos de escritura 4
62
Atos de escritura 4
O corrido por mim escrito e não finalizado, pois há outros versos guardados e
também, abre a possibilidade de criação da(o) própria(o) leitora(o) que compreende a
mensagem, pode ser utilizado em diferentes ritmos, ou seja, um ritmo mais cadenciado na
capoeira angola ou, um ritmo mais acelerado na capoeira regional, retrata a possibilidade
de se buscar o axé em um momento coletivo, chamando a atenção das pessoas pelo xaveco,
visto que, o mesmo causa uma posição de alerta dos presentes, e a energia vai crescendo,
conforme o coletivo se conecta com o significado dos versos e do coro, observando que a
mulher também domina com competência esse espaço e ensina sobre conteúdo,
comportamento e axé (visto que a gestualidade, expressão também ensina).
Diante dessa reflexão, não posso deixar de citar que, não perco a oportunidade de
discutir sobre tal assunto, quando ministro aulas acadêmicas sobre capoeira e lutas visto
que, o ensino se dá em qualquer e todo lugar e, no âmbito do ensino formal, a presença
formadora enquanto mulher, também deve ser sublinhada.
Com relação aos meus processos, seja tocando ou dançando, os corridos criados
despertam uma sensação de esperteza que me reporta, por vezes, às memórias de rodas
observadas ou vivenciadas. Noutros momentos, que me é o mais habitual, o escutar ou o
cantar dos corridos, me impulsiona à negaça, junto à observação do comportamento de
meu corpo, descobrindo possibilidades de suportar o peso, de equilibrar-me, de esquivar-
me de alongar, de me expressar sem, necessariamente, executar movimentos codificados
da capoeira. Por vezes, começo por eles, depois, me perco (me acho em mim!). Estes são
alguns pontos que me fazem afirmar a Dançaeira enquanto autodescoberta.
Vargas (2020), em uma de suas práticas, utilizou um exercício ritualístico que
envolveu voz e um estado de corpo ritual, que ele chama de transe e, neste exercício, ele
se valeu do canto, em forma circular utilizando a palavra puah, conectando a todos ou
todos se conectando com a sintonia oral e auditiva, com esta palavra e que, mediante ao
ritmo da coreografia em roda, a harmonia rítmica e energética se construiu e, em seguida,
solicitou a cada um, um por vez, que se retirassem do círculo e cantassem a cantiga
"paranauê, paranauê, paraná!", estabelecendo um ritmo e uma energia que chamou de
oposta ao que se manifestava no círculo.
63
Atos de escritura 4
Assim, buscar usar uma cantiga que faz parte da tradição da capoeira e tendo a
simbologia do “paranauê”, como alusão à liberdade que os escravos44 encontrariam, além
do rio Paraná” (VARGAS, 2020, p. 122), nos traz uma compreensão de corpo presente e de
conexão com nossa ancestralidade cultural.
“Ativação de nossa energia vital para um canto de liberdade!”, essa tradução que
se apresenta faz sentido! Uma experiência de conexão através da interpretação
desses conhecimentos aparentemente afastados, formas de arte pulsante,
filosofias, imaginários e uma herança que tem que ser recuperada em prol da
revitalização de nossos processos epistemológicos na dimensão artística, social
e espiritual (VARGAS, 2020, p. 122, grifo da autora).
44
Na escrita esta ‘escravo’, porém, entendo que o termo escravizado acentua o significado de algo imposto,
determinado pelo branco colonizador. Assim, escravizado é uma condição visto que, o negro jamais se
colocaria como escravo, se auto sentenciando.
64
Atos de escritura 4
Contudo, é com um corrido de despedida, adaptado com meus versos, que pauso
este momento de reflexões e deixo aos entendedores da mensagem, que mobilizem em si,
esta inventividade e se coloquem nos versos, com concepções que legitimem um
comportamento de respeito e de valorização, descartando letras racistas, machistas e/ou
sexistas, trazendo uma sensação de conectividade com nossos ancestrais, os quais nos
ensinam que o corpo é uma dimensão sagrada.
65
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Franciele Machado. Decolonizar para reencantar: por uma audição do mundo no
jogo com a voz. In: BRONDANI, Joyce Aglae; HADERCHPEK; Robson Carlos; ALMEIDA,
Saulo Vinícius. Práticas decoloniais nas artes da cena. São Paulo: Giostri, 2020. p. 178 – 85
ALMEIDA, Saulo Vinícius. Práticas decoloniais nas artes da cena. São Paulo: Giostri,
2020. p. 178 – 85
ARTAXO, Inês; MONTEIRO. Gizele Assis de. Ritmo e Movimento: teoria e prática, 5. ed.
São Paulo: Phorte, 2013.
BARBOSA, Maria José Somerlate. A Representação da Mulher nas Cantigas de Capoeira. In:
Victor K. Mendes (editor). Facts and Fictions of Antonio Lobo Antunes. Portuguese
Literary & Cultural Studies 19/20. University of Massachusetts Dartmouth –
Massachusetts, 2011. p. 463 - 477.
HOOKS, Bell. Erguer a voz: Pensa como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia
Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola como treinamento para o ator baiano.
Salvador, Fundação Pedro Calmon, 2008.
MACHADO, Sara Abreu da Mata. ARAÚJO, Rosângela Costa. Capoeira Angola, corpo e
ancestralidade: por uma educação libertadora. Horizontes, v. 33, n. 2, p. 99-112, jul./dez.
2015.
PINHEIRO, Camila Maria Gomes. “Mulher na roda não é pra enfeitar”! A ginga feminista e
as mudanças na tradição da capoeira angola. Caminhos da História, v.24, n.1 Programa
de Pós-Graduação em História (PPGH), Unimontes-MG, (jan./jun.2019)
VARGAS, Rocio del Carmen Tisnado. Práticas teatrais interculturais, intercâmbio Brasil/
México. In: BRONDANI, Joyce Aglae; HADERCHPEK; Robson Carlos; ALMEIDA, Saulo
Vinícius. Práticas decoloniais nas artes da cena. São Paulo: Giostri, 2020. p. 118 – 131.
66
Atos de escritura 4
Bárbara Gibson45
Bene Martins46
67
Atos de escritura 4
dermatológico, nunca havia falado sobre isso. Então, a psicóloga explicou que meu corpo
estava falando. Eu poderia esconder minhas palavras, mas elas transbordavam no meu
sangue. Foi quando, obrigada a colocar tudo aquilo para fora, comecei a escrever. Escrevi
muito sobre minhas dores, meus medos, minhas inseguranças naquele período. Preenchi
páginas e mais páginas, com as mais sinceras regurgitações da minha alma. Senti conforto
no processo. Foi quando descobri que a escrita poderia ser um alívio.
Mas, pensando bem, comecei a escrever muito antes disso. Em 2010, quando
finalizei o curso técnico de formação em ator, redigi uma carta para o meu “eu” do futuro,
relatando o turbilhão de sentimentos que me atravessavam. Nas minhas palavras do
passado, que ainda guardo num caderno:
68
Atos de escritura 4
sete anos, tentei expressar em palavras a experiência de entrar numa aula de teatro, pela
primeira vez, e sentir como se fosse a milésima, porque até o cheiro da sala me parecia
familiar. Minha alma reconheceu aquele lugar de formas, que até hoje, não compreendo
racionalmente.
Pensando bem, passei toda a vida escrevendo para mim mesma e não possuía
planos de compartilhar palavras tão íntimas com outras pessoas, até que fui convidada
para tanto. Talvez convidada não seja a palavra certa; intimada é mais correta. Logo após
a finalização do curso técnico, a professora Wlad Lima chamou-me para uma conversa
sobre meu futuro, enquanto artista, em Belém do Pará. Não me esqueço do olhar
encorajador e de suas palavras veementes: “Você tem que dirigir. Escrever. Já é hora. Eu
não estarei aqui para sempre. Quem vem ocupar nossos lugares?” – o termo nossos,
entendo hoje, refere-se aos espaços que mulheres brilhantes como ela lutaram,
bravamente, para ocupar na Academia, mas retornarei a essa questão, posteriormente –.
Inspirada pela conversa com a Wlad e pela presença de outras professoras de
profunda importância na minha trajetória – em especial, Inês Ribeiro e Olinda Charone,
que me deram aulas de teatro na infância, e Bene Martins, com quem aprendi as primeiras
noções de dramaturgia – aceitei o desafio de escrever uma peça. Confesso que a
insegurança era tanta, que precisei me convencer várias vezes de não desistir. A cada frase
que transpunha na história, uma forte carga autocrítica ameaçava a continuidade da obra.
Ainda bem que eu não estava só.
Um dos meus melhores amigos e um dos artistas que mais admiro, Haroldo
França, aceitou escrever comigo. Ele já tinha experiência, como dramaturgo, eu era
completamente inexperiente, mas nossa química criativa tomou a todos de surpresa. Era
como se ele iniciasse um pensamento e eu, instintivamente, o terminasse. Eu começava a
dividir uma ideia e ele ria, porque tinha idealizado a mesma coisa. Foi acreditando nessa
parceria que desenvolvi minha autoconfiança, enquanto dramaturga.
Como num toque de mágica, tudo deu certo. Escrevemos e dirigimos Encantados
S.A. – uma história sobre contos de fada, com personagens infiltrados no nosso mundo,
disfarçados de seres-humanos, empenhados em nos fazer acreditar que são apenas ficção.
Com muito humor e elementos fantasiosos, tratamos de um tema comum a todos: a
dificuldade de crescer e dizer adeus à infância. Inesperadamente, o espetáculo foi um
enorme sucesso de público e ficou em cartaz por seis anos, lotando todas as sessões.
69
Atos de escritura 4
70
Atos de escritura 4
de escrever. Essas histórias eram, majoritariamente, divididas por mulheres. Nas suas
palavras:
Como ouvi conversas de mulheres! Falar e ouvir entre nós, era a talvez a única
defesa, o único remédio que possuíamos. Venho de uma família em que as
mulheres, mesmo não estando totalmente livres de uma dominação machista,
primeiro a dos patrões, depois a dos homens seus familiares, raramente se
permitiam fragilizar. Como “cabeça” da família, elas construíam um mundo
próprio, muitas vezes, distantes e independentes de seus homens e mormente
para apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus
poemas e em minhas narrativas? (EVARISTO, 2007, p. 20).
71
Atos de escritura 4
destacamos, no entanto, que as citadas aqui, tiveram oportunidades para aprofundar sua
formação artístico-acadêmica e desenvolver trabalhos altamente significativos.
Porém, fora dos limites da Escola de Teatro e Dança-ETUFPA, as mulheres não
são maioria. Existem menos professoras no ensino superior do que professores,
considerando outras áreas. Existem menos escritoras do que escritores. Talvez,
quantitativamente, essa realidade esteja mudando, mas nos referimos ao espaço de
reconhecimento que ocupamos, ao impacto que nossos trabalhos provocam no mundo.
Quem nos lê? Quem encena nossas dramaturgias? Quem nos provoca a dialogar sobre tantas
restrições ainda vigentes, para nós, mulheres?
Em 2018, acompanhamos um debate no SESC-PA, sobre o papel da mulher no
cenário artístico amazônida. A presença feminina, em termos quantitativos, era maior –
cerca de vinte mulheres estavam presentes, ao passo que somente dois homens
compareceram. Porém, esses dois homens falaram, ininterruptamente, por quarenta
minutos, enaltecendo nossa importância, nosso talento, nossa garra. Não pararam para
pensar, por um momento sequer, que estavam usurpando nossa fala, discorrendo sobre
nós e por nós, quando tudo que queríamos era ter o direito de, por alguns minutos, dividir
nossas próprias histórias. Assim, eles agem naturalmente, como se estivessem nos
homenageando, poucos nos ouvem.
Não basta sermos maioria quantitativa. Precisamos que nossas vozes sejam
verdadeiramente ouvidas, que as nossas pautas sejam tratadas com seriedade. Essa é a
maior motivação da pesquisa que realizamos atualmente, voltada para o universo das
dramaturgias escritas por mulheres em Belém do Pará. Pretendemos expandir o alcance
para outros espaços da Amazônia, no futuro.
Assim que ingressei no Programa de Pós-Graduação em Artes, minha
orientadora, professora Bene Martins, propôs a parceria para organizarmos a primeira
Coletânea de Jovens Dramaturgos Amazônidas47, de Belém do Pará. E, para comprovar a
capacidade das escritoras, recebemos peças de oito mulheres, e oito homens. Ou seja, na
dramaturgia contemporânea, as dramaturgas estão superativas. Quanto às dramaturgas
veteranas, a pesquisa proposta para o mestrado em artes, está em curso e, logo, teremos
mais conhecimento sobre.
47
Coletânea Jovens Dramaturgos Amazônidas. Bene Martins & Bárbara Gibson (org.). Belém: PPGARTES,
2020. (ISBN 978-85-63189-68-4).
72
Atos de escritura 4
48
Coletânea Teatro do Pará. V. 1 (Coleção Teatro do Norte brasileiro), organizada por Bene Martins e Zeffa
Magalhães. Manaus: Reggo Edições, 2015, é composta por oito peças, somente uma de autoria feminina:
Marília Menezes. (Acervo do Projeto de Pesquisa: Memória da Dramaturgia Amazônida: Construção de
Acervo dramatúrgico. Coordenação, Bene Martins).
73
Atos de escritura 4
A criatividade das mulheres sempre pulsou e persistiu, mas, para escrever ficção,
precisavam de um aposento livre de interrupções e de tempo livre. Necessitavam ter
dinheiro e um lugar próprio; careciam de Um Teto Todo Seu. Em seu ensaio mais famoso,
baseado em palestras que ministrou na universidade de Cambridge, Virginia Woolf trata
da importância de um espaço, literal e figurativo, para que escritoras pudessem
desenvolver seus trabalhos e adentrar o mundo literário dominado, majoritariamente,
pelos homens. Porém, recursos financeiros e alguma validação social foram ausentes para
elas, até o século XX.
A primeira imagem descrita por Woolf (2014) é de uma narradora fictícia
caminhando rápido, pelo gramado de uma universidade de prestígio, quando um homem,
expressando horror e indignação, a intercepta. A princípio, ela não percebe que as
gesticulações do bedel lhes eram dirigida, até que compreende: sua presença não era bem
quista naquele gramado, tampouco naquela universidade. Ali, somente estudantes e
professores podiam aproveitar o cenário agradável.
Algum tempo depois, a narradora, distraída pelos próprios pensamentos,
caminha até a porta que leva à biblioteca. A recepção é pior do que a anterior. Um
cavalheiro, agindo como um anjo guardião, imediatamente a dispensa. Damas só eram
admitidas, naquele espaço, se acompanhadas por um estudante da universidade ou se
portassem uma carta de apresentação, assinada por um homem. Seu lugar, obviamente,
não era aquele. Chateada com o ocorrido, questiona: “por que os homens bebem vinho e
as mulheres, água? Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tem a
pobreza sobre a ficção? Quais as condições necessárias para a criação de uma obra de
arte?” (WOOLF, 2014, p. 41).
No ensaio, Woolf traz à tona diversos outros questionamentos significativos, até
hoje. Por que centenas de livros escritos por homens, com temáticas femininas, são
publicados todos os anos? Por que centenas desses autores não possuem qualquer
qualificação a não ser o fato de serem homens? Segundo a autora, as mulheres
desempenham, há séculos, o papel de espelhos com poderes mágicos, capazes de refletir
as figuras masculinas com o dobro do seu tamanho real. Super-Homens, Napoleões e
Mussolinis insistiram, enfaticamente, na inferioridade delas porque, caso contrário, não
seriam capazes de crescer. Por isso, a instrução feminina é perigosa. Vale destacar quão
inseguros esses vultos históricos o foram, recriminar as mulheres e as proibirem de
74
Atos de escritura 4
participar de suas vidas, fora do lar, era um modo de esconderem suas fragilidades, jamais
assumidas, à época.
Se as mulheres começarem a falar verdades, fizerem julgamentos, criarem leis,
escreverem livros, discursarem em banquetes... Como os homens vão se enxergar com o
dobro do tamanho que realmente têm? Para manter o status quo, é mais seguro que elas
mendiguem trabalhos ocasionais nos jornais, enderecem envelopes, lambam selos, leiam
para senhoras idosas, façam flores artificiais e ensinem o á-bê-cê para crianças do jardim
de infância. Essas eram as principais ocupações disponíveis para mulheres, até 1918,
segundo Woolf. A dominação patriarcal era tão evidente, nos tempos da autora inglesa
que, se um extraterrestre visitasse o planeta, bastaria abrir o jornal para notá-la, em todos
os espaços. Ela nos afirma que as grandes decisões cabiam a eles, somente a eles:
Ninguém em seu juízo perfeito conseguiria ignorar a predominância do
professor. Dele eram o poder e o dinheiro e a influência. Ele era o dono do jornal
e seu editor e subeditor. Ele era o secretário de Relações Exteriores e o juiz. Ele
era o jogador de críquete; ele era o dono dos cavalos de corrida e dos iates. Ele
era o diretor da empresa que paga duzentos por cento aos seus acionistas. Ele
deixou milhões para fundações de caridade e faculdades dirigidas por si mesmo.
Ele suspendeu a atriz de cinema em pleno ar. Ele vai decidir se o cabelo
encontrado no machado de cortar carne é humano; é ele quem vai inocentar ou
condenar o assassino, e enforcá-lo ou colocá-lo em liberdade. Com exceção do
nevoeiro, ele parece controlar tudo (WOOLF, 2014, p. 52).
75
Atos de escritura 4
poucas são consideradas dignas de menção. A narradora fictícia de Woolf (2014) olha
para suas prateleiras e, ao se dar conta que nada de significante é dito sobre elas, antes do
século XVIII, questiona-se: as mulheres não escreviam poesia durante a era elisabetana?
Como eram educadas? Alguém se dava ao trabalho de ensiná-las a escrever? Alguma
poderia chegar ao nível de excelência de Shakespeare? – Não. Não poderia, compreende.
Teria sido impossível para qualquer mulher alcançar o nível de Shakespeare, na época de
Shakespeare. Woolf (2014), utilizando-se da voz de sua personagem, faz uma indagação
brilhante: e se o dramaturgo mais famoso de todos os tempos tivesse tido uma irmã tão
talentosa quanto ele, chamada, digamos, Judith? Vejamos.
Shakespeare frequentou a escola, onde aprendeu latim, gramática e elementos da
lógica. Enquanto isso é de se supor que a extraordinária irmã ficava em casa, onde não
tinha a oportunidade de aprender latim, gramática e elementos da lógica. Shakespeare era
encorajado a ler todos os dias. Judith, por sua vez, discretamente apanhava um livro de
vez em quando, mas logo era ordenada a não mexer em papéis, porque tinha guisados a
cozer. Talvez ela conseguisse rabiscar algumas páginas às escondidas, mas, com medo de
retaliações, logo as queimava.
Shakespeare saiu de sua pequena cidade e foi tentar a vida em Londres. Os pais
devem tê-lo apoiado. Judith, porém, tornou-se noiva de algum filho de comerciante, ainda
na adolescência. Como tinha uma grande inclinação para escrita, não queria casar-se e
ficar presa na residência do marido, então, resolveu contar isso aos pais. Devem ter batido
nela. Implorado para que não desgraçasse a reputação da família. Seu talento era motivo
de vergonha. Sem enxergar alternativa, fugiu de madrugada e pegou a estrada para
Londres.
Enquanto isso, Shakespeare, já apaixonado por teatro, começou sua carreira
cuidando dos cavalos, na entrada do palco, e não demorou muito, para que se tornasse um
ator de sucesso. Conheceu muitas pessoas, exercitou suas habilidades nas ruas e foi
convidado para o palácio da rainha. Assim como seu irmão, Judith amava o teatro e
implorou por um lugar no palco. Os homens riram da cara dela. Mulher nenhuma poderia
ser atriz. Mulher nenhuma poderia escrever peças de teatro. Seus dons eram inúteis. Os
cavalos, na entrada do palco, eram mais estimados que ela. Finalizando a triste história de
Judith, Woolf escreve:
76
Atos de escritura 4
Pode-se imaginar quão árdua a vida de uma mulher poeta ou dramaturga, nos
séculos XVI, XVII, XVIII, XIX deve ter sido. Ainda que não desistisse da carreira dos seus
sonhos, seus escritos dificilmente seriam publicados, encenados, sequer lidos. Se uma de
suas peças fizesse sucesso, a autoria, provavelmente, permaneceria anônima ou teria sido
atribuída a algum nome masculino. Além disso, como aponta Woolf (2014), o mundo é
notoriamente indiferente aos escritores – ele clama por médicos, advogados, engenheiros.
Artistas dificilmente são vistos como essenciais.
Escritoras, contudo, passam por dificuldades muito maiores que a indiferença. A
falta de um espaço próprio e silencioso para o trabalho criativo, os impedimentos
financeiros e as obrigações domésticas, são apenas algumas. Mais que indiferente, o
ambiente em que elas vivem é hostil. Segundo Woolf, “o mundo não dizia a ela, como dizia
a eles: Escreva o que quiser, não faz diferença para mim. O mundo dizia, gargalhando:
Escrever? O que há de bom na sua escrita?” (WOOLF, 2014, p. 78).
A notável britânica concluiu que, mesmo no seu tempo, as mulheres não eram
encorajadas a serem artistas. Pelo contrário, as que demonstravam interesse em carreiras
nas artes sofriam duras repreensões e, muitas vezes, suas próprias famílias as
desprezavam. Porém, por motivos de importância prática, algumas escreviam. Caso seus
maridos morressem, ou algum desastre fosse acometido em seus lares, podiam ganhar
algum dinheiro, fazendo traduções ou escrevendo algum romance, que não figurariam nos
livros de escola.
No século XIX, ocorreu um avanço em relação ao número de escritoras, sem
dúvidas, mas Woolf (2014) novamente faz um questionamento relevante: por que as
prateleiras dedicadas às obras femininas eram, com poucas exceções, preenchidas
somente por romances? Em sua opinião, prosa e ficção são mais fáceis de escrever do que
poesia e peças de teatro, porque requerem menos concentração. No início do século em
que viveu, ainda era muito difícil que uma mulher fosse dona de um teto todo seu, então,
77
Atos de escritura 4
precisava escrever em salas e quartos barulhentos. Ainda era impossível, para muitas
viajar, explorar o mundo, adquirir experiências que tornassem seus trabalhos mais ricos.
Além disso, todas as formas antigas de literatura, já estavam arraigadas por
homens, quando as escritoras começaram a se estabelecer. Apenas o romance era “jovem”
o suficiente para ser explorado por elas. Para Woolf (2014), a reconhecida romancista
Emily Brontë limitou-se ao descrito gênero, mas poderia ter escrito belíssimas e poéticas
peças de teatro. George Eliot, Jane Austen, Charlotte Brontë e tantas outras também
tinham plena capacidade de estender seus impulsos criativos, mas não o fizeram. Se já era
difícil receber créditos por seus romances, muito mais séria, caso decidissem aventurar-
se pelos campos da dramaturgia.
Em pleno ano de 1928, enquanto escrevia Um Teto Todo Seu, a autora
surpreendeu-se, ao abrir o jornal e ler que “as romancistas do sexo feminino deveriam
aspirar à excelência pela admissão corajosa das limitações de seu sexo” (WOOLF, 2014, p.
109). Tal opinião representava, e ainda representa a visão de muitos. E se invertêssemos
as coisas? O que seria da literatura, se os homens fossem retratados como seres limitados,
fracos, desprezíveis? Woolf oferece uma hipótese:
78
Atos de escritura 4
Marguerite Duras, novamente, para nos acalmar ou despertar, pois segundo ela
“Há uma loucura de escrever que existe em si mesma, uma furiosa loucura de escrever,
mas não é por isso que se cai na loucura. Ao contrário.” (DURAS, 1994, p. 47). E, ainda,
Antoine Compagnon nos acalenta, ao afirmar que “Assim como se mastiga por muito
tempo os alimentos para digeri-los mais facilmente, da mesma maneira o que lemos, longe
de entrar totalmente cru em nosso espírito, não deve ser transmitido à memória e à
imitação senão depois de ter sido mastigado e triturado”. (COMPAGNON, 1996, p. 14).
Eis o processo sinuoso a que estamos submetidas, para desenvolver e aprofundar
nossas compreensões, sobre o que lemos e sobre o que vivemos. A pressa nos angustia,
necessitamos de tempo para estabelecermos conexões epistemológicas e vivenciais. A
partir dessa ruminação de ideias, adquirimos mais cuidado e competência para selecionar
citações adequadas às nossas tessituras de escritas.
Epílogo
Apesar de Um Teto Todo Seu ser uma leitura condoída, por relatar tantas
injustiças e limitações impostas às mulheres, Woolf finaliza com uma mensagem de
esperança, que deve ser lida e relida por todas nós, que precisamos de encorajamento em
nossas trajetórias profissionais, como aprendizes da boa escrita:
79
Atos de escritura 4
80
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
81
Atos de escritura 4
EPISTEMOLOGIA CÊNICA49
Bárbara Gibson50
CENA I
PESQUISADORA
Sejam bem-vindos, prezados.
OBJETO
Olha lá. Já começou.
PESQUISADORA
O quê?
OBJETIVOS
(Em tom de deboche). “Sejam bem-vindos, prezados”. Não precisa dessa formalidade toda,
minha irmã. Mantenha o rigor acadêmico, mas não seja chata.
PROBLEMA
(Em tom de fofoca). Isso é resquício do curso de Direito que ela fez, com certeza.
PESQUISADORA
Vou começar de novo. EVOÉ, FILHOS DE DIONÍSIO! Melhorou?
OBJETIVOS
(Para Problemas). Achei um pouco forçado, mas pelo menos ela tá tentando.
PESQUISADORA
Por que vocês estão falando em terceira pessoa? Eu tô bem aqui!
OBJETO
Porque essa é a primeira lição, meu anjo! Viu como incomoda esse papo de terceira
pessoa? Sua escrita pode ser feita em primeira pessoa.
PESQUISADORA
(Anotando). Escrever em primeira pessoa...
PROBLEMA
O que você sabe sobre o que está pesquisando?
49
Trabalho escrito em forma de dramaturgia, entregue à disciplina Atos de Escritura para ilustrar aspectos
da minha pesquisa do curso de Mestrado.
50 Mestranda em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará.
Especialista em Teatro-Educação pela Faculdade Paulista de Artes. Técnica em Teatro pela Universidade
Federal do Pará. Atriz, Dramaturga e Diretora Teatral. (babitgibson@gmail.com)
82
Atos de escritura 4
PESQUISADORA
(Envergonhada). Eu não sei muita coisa.
OBJETIVOS
Ótimo.
PESQUISADORA
Ótimo?
OBJETO
Sim, ótimo. Seu plano de ignorância precisa ser maior do que o seu plano de
conhecimento. A cada resposta, novas perguntas devem surgir. Entendeu?
PESQUISADORA
Mais ou menos.
PROBLEMA
Maravilha.
PESQUISADORA
Maravilha?
PROBLEMA
Se você tivesse dito que entendeu tudo perfeitamente, teria ficado preocupado.
OBJETIVOS
Os que chegam aqui dizendo que “tudo sabem” vão para aquela sala ali (aponta para uma
porta onde está escrito “cientistas” e se benze).
OBJETO
Agora nos conte, o que a professora Ivone disse para você hoje?
PESQUISADORA
Bem... Ela disse que posso estabelecer uma dramaturgia própria. Uma escrita autoral. Não
preciso seguir uma linha pré-estabelecida de desenvolvimento.
OBJETO
(Limpando as lágrimas). Aquela mulher, gente. Que mulher fenomenal.
PROBLEMA
Todo semestre é a mesma coisa, ela nos destrói e reconstrói nesse espiral sem fim de
conhecimento.
OBJETIVOS
A Bene também é um escândalo de mulher. Viva a parceria Bevone!
83
Atos de escritura 4
OBJETO E PROBLEMA
VIVA!
PESQUISADORA
Mas... alguns professores dizem que eu devo apostar numa escrita mais cartesiana.
OBJETIVOS
Vixe!
PROBLEMA
Não usa essa palavra, não.
OBJETO
Cada vez que alguém fala “cartesiana” aqui, morre uma fada.
PESQUISADORA
Desculpem-me.
PESQUISADORA
(Confusa). O que tá acontecendo?
OBJETO
Não é óbvio? Eu tô te seduzindo!
PESQUISADORA
(Compreendendo). Preciso ser seduzida constantemente pelo objeto da minha pesquisa...?
OBJETO
Isso, garota! Ainda bem que você entendeu logo. Minhas costas estão me matando.
PROBLEMA
Mas quem? Sobre o quê? Desde quando? Para onde?
OBJETO
Calma...
PROBLEMA
Me responde!
OBJETO
Eu tô pensando...
84
Atos de escritura 4
PROBLEMA
Pensando sobre o quê...?
OBJETO
... Espera...
(Problema puxa um mini teclado e começa a tocar uma musiquinha de espera, no estilo de
telemarketing).
PROBLEMA
(Cantando). “No novo tempo, apesar dos perigos. Da força mais bruta, da noite que
assusta, estamos na luta. Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver...”.
OBJETO
(Para pesquisadora). Você poderia descrever o que está acontecendo aqui?
PESQUISADORA
O problema tá enchendo o seu saco?
OBJETO
Sim, mas enchendo meu saco com o quê?
PESQUISADORA
Com perguntas?
PROBLEMA
DING DING DING! É para isso que estou aqui. Para encher o objeto de perguntas, até ele
me fornecer respostas contundentes.
PESQUISADORA
Certo. E o que seriam os objetivos?
PROBLEMA
Você precisa acordá-los.
PESQUISADORA
E como é que eu faço isso?
PROBLEMA
Ah, amor, isso é contigo. Eu tenho cara de solução, por acaso?
PESQUISADORA
Acorda, por favor.
OBJETO
85
Atos de escritura 4
PESQUISADORA
(Desesperada). Então, preciso de ajuda!
(Objetivos acorda).
OBJETIVOS
Isso! Você precisa de ajuda! Para fornecer respostas (aponta-se para si mesmo) ao
problema, sua pesquisa não pode ficar limitada ao subjetivo. Você precisa dialogar com
outros sujeitos, mergulhar em outras vivências.
OBJETO
Bem, acredito que por hoje já deu.
PESQUISADORA
Calma! Eu tenho tantas perguntas...
OBJETO
Ótimo. Continue assim.
PROBLEMA
Quanto mais perguntas, melhor.
PESQUISADORA
Mas... Eu nem entendi direito qual é o objeto...
OBJETO
Vamos dizer que eu sou um verdadeiro fenômeno.
OBJETIVOS
Tchau. Boa sorte. Ou “merda”, como dizem no teatro.
PESQUISADORA
Não me deixem!
PROBLEMA
Não se preocupa. A gente estará sempre por perto.
OBJETIVOS
Não esquece de votar no Edmilson.
OBJETO
Paz!
86
Atos de escritura 4
(Pesquisadora fica sozinha em cena. Sua expressão é de cansaço profundo. De repente, surge
uma figura estonteante, linda, vibrante. Pesquisadora fica encantada).
PESQUISADORA
Você é a minha fada madrinha?
FIGURA
Quase isso. Sou sua Imagem-Força. Agora responda-me, querida: qual é o seu objeto?
(Pesquisadora, muito inspirada pela Imagem-Força que lhe apareceu, fica mais confiante
para responder).
PESQUISADORA
As dramaturgias escritas por mulheres em Belém do Pará.
IMAGEM-FORÇA
E o seu problema?
PESQUISADORA
Quem são as mulheres que escrevem dramaturgias em Belém do Pará e por que suas obras
são pouco divulgadas, pouco estudadas na academia?
IMAGEM-FORÇA
E os seus objetivos?
PESQUISADORA
Identificar essas dramaturgas; analisar trechos dos seus trabalhos; compreender os
fatores históricos que favoreceram sua invisibilidade e como o sistema patriarcal
contribuiu para seu silenciamento.
IMAGEM-FORÇA
Gostei, mas tá faltando uma parte importante aí. Quem é você?
PESQUISADORA
Eu sou a Bárbara. Artista amazônida. Atriz. Dramaturga.
IMAGEM-FORÇA
Isso. Não esquece da Bárbara na pesquisa.
PESQUISADORA
O que é isso???
IMAGEM-FORÇA
É A CAPES!!! CORRE, MANA!!!
87
Atos de escritura 4
CENA II
FIGURA DE GRAVATA
Cansadas?
PESQUISADORA
(Bastante ofegante). Um pouquinho.
FIGURA DE PALETÓ
Quem manda não fazer exercício físico.
PESQUISADORA
Mas com a pandemia...
PESQUISADORA
(Confusa). Eu tô na Academia.
FIGURA DE PALETÓ
Falando nisso, e a pesquisa? Escreveu alguma coisa?
PESQUISADORA
Um pouquinho.
FIGURA DE GRAVATA
Eu digo e repito: esses alunos de Federal só querem saber de fumar maconha.
PESQUISADORA
Que absurdo! Eu estudo muito!
FIGURA DE GRAVATA
Quem precisa estudar para fazer arte? Me poupa.
PESQUISADORA
88
Atos de escritura 4
FIGURA DE PALETÓ
Tu não reconheces?
PESQUISADORA
Tenho meus palpites, mas ainda não tenho certeza.
FIGURA DE GRAVATA
Será que tu deverias estar aqui, então?
IMAGEM-FORÇA
(Irritada). Ei! Ela se esforçou para chegar aqui.
FIGURA DE PALETÓ
(Sarcástica). AAAHHH! A garotinha se esforçou muito, coitadinha...
FIGURA DE GRAVATA
Em troca do quê? Nem bolsa tu ganhas!
PESQUISADORA
Eu não nasci para ser somente uma advogada.
FIGURA DE PALETÓ
Nasceu para ser artista, pesquisadora e professora? Deus me livre desse carma. Deves ter
sido o CÃO na tua vida passada.
IMAGEM-FORÇA
Não escuta nada disso, Bárbara. É só provocação.
PESQUISADORA
Provocação... Ei, tirem essas máscaras!
FIGURA DE GRAVATA
89
Atos de escritura 4
Por quê?
PESQUISADORA
Porque eu quero.
FIGURA DE GRAVATA
E desde quando o que tu queres importa aqui?
PESQUISADORA
Importa sim, bonitão, porque quem tá escrevendo essa história sou eu.
PESQUISADORA
(Para Imagem-Força). Cruz credo. Eguchi, Paulo Guedes e Bolsonaro?
IMAGEM-FORÇA
(Cochichando). Não. São os teus antigos verbos de ação.
PESQUISADORA
(Espantada). Analisar, questionar, expor!
ANALISAR
Demorou, hein?
QUESTIONAR
Essa imagem-força tá aí do teu lado pra quê? Não serve para nada.
EXPOR
Quer mesmo continuar nessa vida? Eu já te disse que arte não é profissão, arte é hobby.
QUESTIONAR
Por que não fazes um concurso público?
PESQUISADORA
(Para Imagem-Força). Não gosto deles.
IMAGEM-FORÇA
Então muda. Acaba com essa tortura.
PESQUISADORA
Como?
90
Atos de escritura 4
IMAGEM-FORÇA
Como tu quiseres.
(Pesquisadora pega um balde d´água. Joga nos três verbos. Eles começam a derreter).
QUESTIONAR
Que absurdo é esse? Essa gravata é importada!
ANALISAR
Não vais te livrar da gente tão fácil assim! Eu vou entrar com recurso!
EXPOR
E eu vou te expor nas redes sociais!
(Os três fazem um coro de “CANCELADA! CANCELADA!” até derretem por completo).
PESQUISADORA
(Satisfeita). Sempre quis fazer isso.
IMAGEM-FORÇA
Se inspirou em O Mágico de Oz?
PESQUISADORA
Total. Foi minha primeira peça.
IMAGEM-FORÇA
Eu lembro. Bora sair dessa sala escura?
PESQUISADORA
Sim, por favor.
(Caminham em silêncio. Chegam num parque de diversões. Três figuras coloridas estão
numa roda-gigante).
FIGURA VERMELHA
Bárbara! Sobe aqui!
PESQUISADORA
Como?
FIGURA AMARELA
Voando!
91
Atos de escritura 4
PESQUISADORA
Eu não sei voar.
FIGURA AZUL
Tu tás escrevendo essa história, mana. Se quiser voar, quem vai te impedir?
(Pesquisadora olha ao redor e vê uma criança brincando com asas de papelão. Reconhece
que a criança é ela mesma, quando começou a fazer teatro. Pensa nas histórias que lia na
infância, em fadas que emprestam poderes mágicos e decide que ainda consegue voar.
Fecha os olhos. Bate os calcanhares três vezes. Sente o ar ficando leve. Quando abre os olhos
novamente, está sentada perto das figuras, subindo e descendo na roda-gigante).
FIGURA AZUL
Foi difícil?
PESQUISADORA
Sempre é difícil. Mas é fácil também.
FIGURA AMARELA
Gostei. Já tá falando de jeito mais poético.
PESQUISADORA
Né, mana? Mas me conta, por que tô aqui?
FIGURA VERMELHA
Tu recorreste ao espaço interno, que representa tua infância, para retomar a coragem de
ser verdadeiramente criativa e abandonar as amarras acadêmicas. Assim, só meu palpite.
PESQUISADORA
Arrasou. É isso mesmo. (Olha ao redor, empolgada). Então eu tô na Disney?
FIGURA AZUL
Com o atual orçamento, só deu para chegar no ITA.
IMAGEM-FORÇA
Foca no objetivo da cena, querida.
PESQUISADORA
Ah, sim. Preciso descobrir quem são meus novos verbos de ação. Como faço isso?
IMAGEM-FORÇA
Eles estão bem na tua frente. Qual é o título da tua dissertação?
92
Atos de escritura 4
PESQUISADORA
As dramaturgias escritas por mulheres em Belém do Pará.
IMAGEM-FORÇA
Pronto.
PESQUISADORA
Mas nem tem verbo no meu título.
IMAGEM-FORÇA
Qual é a lição dessa cena?
PESQUISADORA
Eu posso criar o que quiser, né? Então lá vai. Dramaturgizar,
DRAMATURGIZAR
Adorei meu nome. O que eu represento?
PESQUISADORA
Representa a minha forma de enxergar o mundo. Eu vejo os acontecimentos mundanos
em formato de cenas. Eu tropeço na rua e, imediatamente, penso “isso seria uma cena
engraçada”. Eu vejo um filme e penso “essa história ficaria linda no palco”. A dramaturgia
é uma espécie de lente multicolorida, que me permite ver teatro em todos os espaços que
ocupo. Dramaturgizar é o ato de transformar a vida nossa de cada dia em infinitas
dramaturgias. É um modo de eternizar minhas memórias no papel.
DRAMATURGIZAR
(Sorrindo). Gostei.
PESQUISADORA
Melhor que analisar e questionar, né?
IMAGEM-FORÇA
Meu bem, qualquer coisa é melhor que analisar e questionar. E os outros verbos?
PESQUISADORA
Potencializar e Emancipar.
POTENCIALIZAR
93
Atos de escritura 4
PESQUISADORA
O alcance das vozes femininas presentes nas dramaturgias escritas por mulheres em
Belém do Pará. Existem tantas vozes que disseminam mensagens importantes, mas são
pouco ouvidas. A maioria é desconhecida. Com esta pesquisa, espero potencializar
trabalhos de artistas amazônidas, que merecem o reconhecimento da Academia e da
sociedade. Quem sabe, até estimular outras pesquisas sobre o tema.
EMANCIPAR?
E eu? Quem pretendo emancipar?
PESQUISADORA
A classe feminina. Sei que apenas uma pesquisa não é capaz de transformar a estrutura
patriarcal que nos oprime, mas cada vez que uma mulher se movimenta, as outras se
movimentam juntamente. Cada vez que uma mulher potencializa o nome de outras
mulheres, ficamos mais próximas da nossa emancipação. Cada vez que uma mulher ocupa
lugar num espaço de poder, como a Academia, a classe feminina inteira ocupa também.
Estudar o trabalho de dramaturgas amazônidas é mais que uma atividade intelectual: é
um ato político. Todas fazemos parte do movimento de emancipação das mulheres e, ao
acreditar que nossa liberdade é possível, emancipo a minha própria voz.
IMAGEM-FORÇA
(Sorrindo). E qual o motivo da escolha desses verbos?
PESQUISADORA
O motivo é ela.
Fim (do começo).
94
Atos de escritura 4
Fecundar de poesia
(a rachadura dos tempos)
o universo engendrado dos eternos saberes
e furar por dentro suas inflamadas e delicadas bolhas.
Afinal: O que pesa mais, 1 kg de madeira ou 1 kg de folhas?
Juanielson A. Silva (Juan A. Silva)
51
Artista-professor-pesquisador em Artes/Dança, mestre e doutorando em Artes pelo Programa de pós-
graduação em Artes da UFPA. Graduado em pedagogia pelas Faculdades Integradas Ipiranga. Técnico em
dança (Intérprete-criador) pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. (juanielsonsilva@gmail.com)
52
Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Filosofia, Universidade Federal do
Pará; também atua no programa de pós-graduação em artes da mesma Instituição, linha de pesquisa:
Interfaces epistêmicas em artes. (mrb@ufpa.br).
95
Atos de escritura 4
Entre a madeira e as folhas, a medida humana sobre a palavra. Entre as folhas e a carne, a
objetividade de um problema sem verniz
instaurada pela madeira. Entre a madeira e a
carne, a poesia florescente de um corpo-escrita
em desarmareação provocada pelas folhas.
São duas visagens, a madeira (um
espírito) e as folhas (uma alma), a brincar com o
corpo da escrita, mas não separados, como
outrora intentaram definir, e sim embrincados,
crescentes e florescentes, em movimento de
transformação mútua.
Se por um lado, a madeira aspecto acadêmico e
espírito da pesquisa, fruto de uma consciência
criadora, dá forma a contextualização e a
problematização de uma pesquisa e produz
sentindo epistemológico às questões postas
pelo processo criativo, haja vista que, a ela,
enquanto visagem-espírito, é designada a tarefa
de produzir sistemas e organizar as múltiplas
Figura 1 – Desenho "desarmarear II". Fonte:
Cleyton Telles. Desenho para tatuagem experiências a fim de compreender os
inspirado na noção de desarmareação.
universos (BACHELARD, 1958 apud ALVAREZ
FERREIRA, 2013) que circunscrevem a pesquisa-criação. Que em processo de
decomposição de si se mistura com a carne do corpo, assumindo uma forma não mais tão
formal como projetada para um dia ser, nos faz lembrar da objetividade que o caminho
de uma pesquisa artístico-acadêmica busca sustentar.
Por outro lado, as folhas, aspecto artístico e visagem-alma da pesquisa, de função
performativa, produz fissuras na racionalidade e permite sua abertura, para instalar nos
corpos – de quem escreve, de quem lê e da própria escrita – percepções e afetações acerca
daquilo que se trama na pesquisa-criação, uma vez que, nela os sonhos ganham forma e
uma pluralidade de imagens acontece (Bachelard, 1958 apud Alvarez Ferreira, 2013). As
folhas, sem pressa e silenciosamente florescem entre a madeira e a carne, tornam-se sinal
de vida, pulsão relacional e sensível do processo de escritura que, em seus atos de
florescimento, cria outras formas, dessa vez mais abstratas e pessoais.
96
Atos de escritura 4
O que se entende como escritura aqui é todo processo relacional entre os agentes
constituintes de um processo criativo-investigativo, que se materializa em formas e
conteúdo verbais e não verbais, bem como entre os procedimentos descobertos ou
inventados por estes. Trata-se, como diria Rabelo (2015), de um corpo coletivo,
constantemente, em flutuação dinâmica que determina sua potência
representativa/comunicativa, pela complexidade performativa de suas relações. Escrever
“artísticademicamente” poderia ser, então, compreendido como um processo relacional,
dinâmico e político, que desabrolha territórios poéticos, epistemológicos e políticos
capazes de problematizar, sensibilizar, enredar corpos e criar mundos possíveis.
A madeira e as folhas, alma e espírito, deixam rastros no corpo-pesquisador, carne
humana, que as fez florescerem, e no corpo-escrita, recorte do caos criativo-investigativo,
assim como em outros corpos envolvidos na tessitura da escritura, em processo de
desarmareação. Por isso, a diferença, acredito eu, bem como a possibilidade de encontro,
entre a madeira e as folhas, alma e espírito em uma escrita acadêmica em artes, reside em
suas funções e modos de expressão mediados pelo movimento humano, pela carne
escritora.
Para tal, é preciso dobrar, ao longo do processo criativo-investigativo, a escrita
como modo de recriação de experiências vividas e, por conseguinte, ampliá-la como
possibilidade de abertura para outras experiências possíveis também aos leitores. Uma
dilatação do sensível, por meio de um envolvimento dos/entre os corpos (Rabelo, 2015),
a ponto de compreendermos que corpo-escritor, corpo-escrita, corpo-contexto, corpo-
poética, corpo-política, corpo-epistemologia, corpo-leitor e corpo-leitura são sujeitos de
uma mesma operação, de um mesmo corpo: o corpo-escritura.
Por isso, partindo dessas premissas, este trabalho tem como objetivo materializar
os “verbos de ação”, que se transformaram em movimentos criadores (SALLES, 2013), de
minha pesquisa de doutoramento pelo Programa de Pós-graduação em Artes, UFPA sob
orientação de Maria do Remédios de Brito, coautora destes escritos.
A dinâmica dos verbos de ação, foco principal destes escritos, compõe-se enquanto
estratégia de articulação e aproximação entre fenômeno pesquisado, pesquisador e
escrita da pesquisa, produzindo verbos que podem ser compreendidos como potências
criativas e palavras-chaves indutoras do processo de execução, bem como de escrita, de
uma pesquisa artístico-acadêmica, capazes de produzir diálogos entre vida-arte-pesquisa,
bem como de potencializar uma democratização da linguagem acadêmica.
97
Atos de escritura 4
53 SILVA e MENDES,Juanielson Alves; Ana Flávia. Como elaborar para si e para o outro uma escrita artístico-
acadêmica I: Perspectivas sobre uma escrita coreocartografica e coreoepistemológica. In Variações em
Apropria: Ocupação, Filosofia, Arte. Keyme Gomes Lourenço, Ezequias Cardoso de Cunha Junior
(Organizadores) Uberlandia – MG: Pró-reitoria de extensão e Cultura, Pró-reitoria de Assistência Estudantil,
Diretoria de Cultura da Universidade Federal de Uberlandia, 2021. p. 102 disponível em
https://issuu.com/mostraemcurtas/docs/revista_online-issue
98
Atos de escritura 4
pesquisa, como um procedimento para pesquisa e criação em dança, assim como, a dança
enquanto área de conhecimento, linguagem, processo de vida e fazer político, e
materializar linhas de força entre esta Desarmareação coreográfica e sua função social
artivista dos direitos humanos, mais, especificamente, do direito à existência da
comunidade LGBTQIA.
Então eu me assumi,
tirei as roupas do armário,
arrumei as malas e fui embora.
https://www.youtube.com/wa
tch?v=BQMgxSqH61k&t=9s
54
“escorregar no quiabo” é uma expressão nortista para “momentos de deslizes” em que o homossexual
deixar evidente sua sexualidade, por meio de suas performatividade de gênero.
99
Atos de escritura 4
quando “me aconselham” a me vestir de forma mais adequada, a andar sem rebolar, a falar
mais grosso, para ser levado a sério, durante minhas aulas, a procurar uma igreja para que
deus resolva o “meu problema”, a arranjar uma namorada, a dançar de forma mais
masculina, porque “meu corpo pode destoar do restante do elenco do grupo”. Quase todo
dia, até hoje, alguém me releva fugitivo, porém, nem todo dia eu me desarmareio enquanto
um.
Não desarmareio todo dia, porque desarmarear é um outro processo. Diferente de
ser revelado, antes de ser um jogo do outro comigo, desarmarear é um jogo entre mim e
os meus medos internalizados. Antes de ser um ato de policiamento do outro, é um ato
meu de rebeldia e coragem, porque reconhece e intensifica os riscos que eu já corria, antes
de qualquer anúncio público sobre minha sexualidade ou gênero, não convergente ao
padrão, e põe em evidência, para mim, e para quem, mais quiser saber, aspectos que não
são socialmente desejáveis. Desarmarear nada tem a ver com ser tirado do armário.
Desarmarear é, por assim dizer, tornar-se indesejável e clandestino, em uma
viagem que não admite passageiros sem passaporte, mesmo que a culpa de não ter tal
passaporte em mãos não seja, necessariamente sua, mas da própria agência de viagens.
Desarmarear é caminhar pelas partes internas e mais baixas de um navio e, ali, aprender
a criar estratégias de sobrevivência para emergir no convés e chegar à proa da
embarcação reivindicando os espaços de visibilidade que aos corpos como os seus antes
foram negados. Desarmarear é um enfrentamento ao estado das coisas. Uma fricção entre
o cansaço de viver enclausurado e o desejo de se autoafirmar um novo. Uma ecdise
constante das fronteiras. Uma pedagogia da mudança, das andanças e da criação de
si.
Desarmarear é assumir-se um corpo e, ao mesmo tempo, constantemente, se
reinventar enquanto outro corpo. É, portanto, fazer uma política de corpo em
transformação, e dançar a dança da maré da vida, a dança que constrói e destrói o que
estiver na beira. Desarmarear, como proposto aqui, desta forma, não se trata de forçar
uma saída ou de estabelecer princípios para um corpo dançante, em processo de
descoberta de si, mas sim, de propor lugares de reflexão e experimentação de
possibilidades relacionais a um corpo em movimento, durante pesquisas de movimento,
pesquisas em dança, pesquisas em vida.
Logo, não se trata de compreender a ideia de desarmarear como uma ação de
retirada do que já habita no interior de um corpo, mas de produzir movimentos de criação
100
Atos de escritura 4
E, posto que em uma pesquisa em dança alinhada à agenda LGBTQIA+, tal qual esta
pesquisa, o ocupante-criador mergulha em si e, de dentro devora-se, não como um
exercício egóigo, do eu, mas como um dilaceramento do corpo que, em encontro consigo,
encontra outros corpos – agenciamento do mundo, a partir de uma imersão em si –, a
desarmareação coreográfica é também um movimento criador de si.
Ocupante-criador foi a maneira que encontrei de me referir à artistas LBTQIA+,
inclusive a mim mesmo, que com suas criações e intervenções artísticas no meio social
ocupam espaços e inventam outros modos de existências para si e para outros no mundo.
Acredito ser esta uma forma de simbolizar os processos de ocupação e reocupação, tanto
do próprio corpo que dança, quando dos lugares onde se dança. Espaços estes que,
habitualmente, são negados aos corpos dissidentes de gênero, sexualidade e outras
intersionalidades relacionadas a raça, classe e território,
Um processo formante que se faz por meio da percepção do conhecimento, como
atitude de construção, transformação, deslocamento, risco e exposição de si, isto é, na
condição de produção de trânsitos.
101
Atos de escritura 4
102
Atos de escritura 4
103
Atos de escritura 4
104
Atos de escritura 4
Por isso, para compreender, de modo mais tangível, este movimento criador na
desarmareação coreográfica, o nomeio como Esquecidadezação, isto porque, quando eu
era criança, costumava brincar de construir cidades de areia no quintal de casa. Minha(s)
cidade(s) tinha(m) supermercado, oficinas, praças, lanchonetes, escolas, hospitais,
prédios, templos religiosos, ruas e, certamente, minha casa, minha própria casa.
Não havia shopping, trânsito ou qualquer coisa que extrapolasse demais a
experiência cotidiana de um curumim baitola do interior, exceto aquilo que via na
televisão. A televisão, os livros e o quintal eram minhas melhores companhias, já que, em
um determinado momento, da minha infância, passei a me isolar e não mais brincar na
rua com as demais crianças que quase sempre, salvo raras exceções, encontravam formas
de violentar-me com comentários, exclusão, ameaças e, algumas vezes, até violências
físicas, por conta da LGBTfobia.
Nesse processo de criação de cidades de areia, toda vez que montava minha cidade,
no outro dia, ela não estava mais lá, afinal, a areia se dissolve facilmente. Restavam alguns
traços e a lembrança do que ela, a cidade, teria sido no dia anterior, então, eu me danava
a recriá-la. Certamente, dali não nascia a mesma cidade, haja vista que esquecia alguns
detalhes e inventava outros novos, nesse processo. Então, mesmo que parecesse a mesma
cidade, ela nunca era a mesma, era sempre outra, era uma esquecidade. Cidade de
esquecimentos, lembranças e criação e o que eu fazia ali era uma Esquecidadezação.
Hoje, a Esquecidadezação, se manifesta em outra lógica, na minha vida e em meus
processos artísticos, porém, com a mesma potência inventiva de mundos possíveis para
um corpo que não se adequa à normatividade. Perceber, esquecer, lembrar e criar (isto é,
esquecidar), tornam-se movimentos de criação dos trajetos de vida e dos mundos
possíveis para pesquisas-criações em dança atreladas agenda LGBQIA+ e outras práticas
ativista. Ou seja, Esquecidar apresenta-se como modo de perceber e inventar
caminhos de uma cidade-trajetória do corpo ocupante-criador: vasculhando e
(re)construindo as narrativas de vida daquele que pesquisa e cria dança, reconhecendo
as violências a serem superadas e, principalmente, as possibilidades de libertação do
corpo.
A Esquecidadezição é, hoje, mais potencializada que em minha infância, inventa
mundos possíveis, ao mesmo tempo, em que se reconhece os processos de violência
simbólica em um corpo ocupante-criador. É desta maneira, um manifesto para si sobre
“direito à cidade”, expressão esta cunhada pelo filósofo e sociólogo Henri Lefebvre em
105
Atos de escritura 4
106
Atos de escritura 4
107
Atos de escritura 4
108
Atos de escritura 4
Todavia, vale ressaltar que, não são necessariamente os produtos cênico e textuais
que importam mais, isto é, nem as obras coreográficas, nem as escritas teóricas obtidas,
por meio dela, pois estes fazem parte das pesquisas-criações, como um todo e, como tal,
tem seu grau de significância no processo.
Em uma Desarmareação coreográfica, os processos são o que prevalecem, suas
indagações, suas pulsões moventes, suas potências transformadoras, isto é, suas ações, e
seus produtos poéticos devem ser considerados fragmentos desta experiência, recortes
de um caos, isto é, rastros de um processo. Isso porque, como mencionado, anteriormente,
uma pesquisa em dança se preocupa em gerar conhecimentos em dança e, ao longo desse
processo, criar outras leituras e formas possíveis de tocar o mundo e a si, bem como, em
ordem reversa, tocar o mundo e a si para construir conhecimentos em dança.
Conhecimentos estes que se traduzem em uma verdade artística, isto é, “uma verdade
mutável, não absoluta e nem final, [...] uma ficção regida pelo projeto poético do artista”.
(SALLES, 2013, p. 136) materializadas, por sua vez, em obras- teorizações.
109
Atos de escritura 4
“Dizemos teorização e não teoria, porque esta última está presente a todo instante”
(STRAZZACAPPA, 2009, p. 314) e, assim como a poética dar-se em estado de
inacabamento, ou seja, segue acontecendo. Além disso, “não acreditamos na dicotomia
teoria/prática, como defendem alguns pensadores. A teoria e a prática caminham lado a
lado e alimentam-se mutualmente”. (STRAZZACAPPA, 2009, p. 314). As obras-
teorizações são, portanto, estes produtos levados aos palcos, às plataformas digitais, aos
eventos acadêmicos, às ruas, aos bailes, às bibliotecas universitárias etc. em formatos de
obra cênica, intervenção poética, memorial de pesquisa, dissertação, tese ou qualquer
outro formato de trabalho de conclusão de curso.
São materialidades que devem ser entendidas como recortes da totalidade de uma
experiência criativa-investigativa. Os exoesqueletos deixados para traz, durante um
processo de ecdise criativa. Paradoxalmente, uma criação nova e uma já velha perceptiva
daquilo que se pesquisa-dança. São as camadas mais externas e visíveis, de um longo
processo de transformação criativa da Pesquisa em dança. A ponta de um iceberg, que
antes de chegar aos espaços de visibilidade, nos quais serão lidas pelo público, passam
por um longo caminho de inquietações, ajustes, reajustes, incertezas, erros e acertos.
As obras-teorizações são, portanto, frutos de uma instabilidade da pesquisa em
dança que, tornando-se desta forma, uma invenção em estado de contínua metamorfose.
Uma ecdise das poéticas, estéticas, epistemologias e políticas coreográficas. Uma
reapropriação da “estética do movimento criador” (SALLES, 2013), no seio das feituras
epistêmicas no campo das Artes. “Trata-se de uma visão que põe em questão o conceito
de obra acabada, isto é, a obra como uma forma final e definitiva. Estamos sempre diante
de uma realidade em mobilidade”. (SALLES, 2013, p. 34).
Isto é, as obras-teorizações são produtos inacabados de uma pesquisa-dança, e
como tal, não são resultados, mas resultantes desta e, deste modo, uma realidade sempre
outra, que continua em processo de experimentação e revisão, mesmo depois de ser
apresentado ao público-leitor. E, nesse processo de criação, revisitação e reformulação
geram-se sempre novas percepções sobre o processo, o que implica dizer que: uma
desarmareação coreográfica pode ser uma continua experiências geradoras de saberes.
Além disso, compreendo o movimento criador da experiência estética, na
desarmareação coreográfica, também como um movimento criador de coreopolíticas
(LEPCKI, 2012), pois reinstitui ao corpo ocupante-criador seu direito a ocupação dos
110
Atos de escritura 4
lugares e seu direito â expressividade. Por isso, ocupação, passa a designar, em minhas
pesquisas-criações, uma forma artística de tornar-se parte da casa-mundo.
Ocupação, em uma Desarmareação coreográfica, está relacionado à
transformação dos espaços, por corpos dissidentes de gênero e sexualidade e outras
intersionalidades, corpos que ocupam espaços, se “auto-ocupam” e transformam o
mundo, por meio de suas ações artísticas.
Uma casa em movimento (considerações inacabadas)
111
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
BAILEY, Marlon. Butch queens up in pumbs: gender, performance and ballroom
culture in Detroit. The University of Michigan: Michigan, 2013.
HARVEY, David. O direito a cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n.29, p.73-89, jul./dez.
2012. Disponível em
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/272071/mod_resource/content/1/david-
harvey%20direito%20a%20cidade%20.pdf acessado em 18 de fevereiro de 2021.
MARQUES, Isabel A. Ensino de Dança hoje: textos e contextos. 5 ed. São Paulo: cortez,
2008.
MILLER, Jussara. Qual é o corpo que dança?: dança e educação somática para adultos e
crianças. São Paulo: Summus, 2012.
REIS, Marcelo. Porosidade do corpo na dança do século XXI. In Dança no seculo XXI/
Organização de célia Gouveia – 1 ed. Curitiba: Editora Prismas, 2017.
112
Atos de escritura 4
SALLES, Cecilia Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 6ª ed. São
Paulo: intermeios, 2013.
SILVAa, Juanielson Alves. Carta para meu eu curumim: os ramais. In: _________. Farinha
poética: a coreocartografia familiar de um rito artístico. Orientadora: Prof. Dr. Ana
Flavia Mendes. Dissertação (Mestrado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em
Artes, Instituto de Ciências da Arte, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.
SILVAb, Juanielson Alves. Carta para minha mãe: a feira. In: _________. Farinha poética:
a coreocartografia familiar de um rito artístico. Orientadora: Prof. Dr. Ana Flavia
Mendes. Dissertação (Mestrado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Artes,
Instituto de Ciências da Arte, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.
STRAZZACAPPA, Marcia. As Técnicas de Educação Somática: de equívocos a reflexões.
In: BOLSANELLO, D. (Org.). Em Pleno Corpo: educação somática, movimento e saúde.
Curitiba: Juruá, 2009.
113
Atos de escritura 4
55
Mestrando Artes, do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA (PPGARTES – UFPA).
Luccasb2012@gmail.com
56
Doutora em História Social da Amazônia (UFPA); Mestra em Artes (UFPA); Especialista em Estudos
Culturais da Amazônia (UFPA); Publicitária; Carnavalesca; Cenógrafa; Figurinista e Professora da Escola de
Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará. claudiap@ufpa.br
57
Programa do espetáculo “O Auto do Círio”, 2014, p. 02;
114
Atos de escritura 4
Ao evocar João de Jesus Paes Loureiro em sua Oração dos artistas a Virgem de
Nazaré, proponho acionar uma reflexão quanto à criação artística que detém na fé, e aqui
na fé dedicada a Virgem de Nazaré, um de seus fulcros criativos fundamentais. Nesse
movimento, sendo mais um “sacerdote da beleza” que tem, no seu fazer artístico, um
modo de celebração Nazarena, me dedico durante o curso de Mestrado no Programa de
Pós-Graduação em Artes da UFPA, também ao estudo da maneira artística encontrada por
mim, enquanto integrante do cortejo dramático carnavalizado, O Auto do Círio, para
expressar a minha fé devotada a Nossa Senhora de Nazaré.
O Auto do Círio é o resultado da união da complexidade de matrizes estético-
dramáticas – as matrizes religiosas, dramáticas e carnavalescas – observa-se que esse
espetáculo se caracteriza por abraçar múltiplos processos de criação artística e, por
conseguinte, outros igualmente múltiplos produtos artísticos, como esclarece Miguel
Santa Brígida:
O Auto do Círio aponta para uma prática cênica governada por uma grande
liberdade de criação, caracterizada pela desconstrução de sistemas clássicos de
narrativa com suas unidades aristotélicas, revelando um espetáculo que
privilegia uma encenação proteiforme, com multiplicidade de processos de
criação e diversidade de produtos artísticos apresentados, numa reunião de
várias culturas no mesmo espaço-tempo, sem hierarquias e em existência
simultânea (SANTA BRÍGIDA, 2014, p.28).
58
Ver Madson Oliveira, 2015.
115
Atos de escritura 4
artística no Auto do Círio, bem como, por ser esta, uma privilegiadora do movimento de
construção de conhecimentos, que entrelaça os saberes contidos na prática artística aos
saberes construídos em âmbito acadêmico. Desse modo, a presente pesquisa em
andamento transita, ao encontro do disposto por Sônia Rangel, a cerca do fundamental
movimento de artistas na busca pelo reconhecimento das minúcias, que constituem seus
trajetos criativos, onde estes devem procurar
Ampliar a prática artística como pesquisa, ou seja, buscar compreender o
pensamento encarnado nas ações, a fim de afirmar que artistas e seus processos
de criação não são incompatíveis com a academia. Pelo contrário, produzem um
conhecimento de base muitas vezes intuitiva, mas justo por isso capaz de
transgredir formas e formatos de pensar (RANGEL, 2015, p.7).
1. Auto-etnografar
“Há tantos meninos assim, querendo o sonho da liberdade das cores sem fim...” 59
Em seu disposto quanto à Auto-etnografia, Sylvie Fortin demanda, de nós
artistas-pesquisadores, que nos propusemos ao exercício Auto-etnográfico, como postura
epistemológica, a encontrarmos neste, o movimento que nos permite colocar em voga a
parte mais interior de nós, dos atravessamentos que constituem nossas vivências, e onde
reside a fundamental contribuição que podemos dar para os estudos Artísticos, com isso,
Fortin esclarece que:
A auto-etnografia (próxima da autobiografia, dos relatórios sobre si, das
histórias de vida, dos relatos anedóticos) se caracteriza por uma escrita do “eu”
que permite o ir e vir entre a experiência pessoal e nas dimensões culturais a fim
de colocar em ressonância a parte mais interior e sensível de si [...] “não podemos
falar a não ser de nós” é o lemotiv daqueles que adotam o gênero autoetnográfico
(FORTIN, 2009, p. 83).
Assim, de mãos dadas a Fortin início o passeio pela memória, tendo a missão de
autoetnografar o meu trajeto criativo, agora com o olhar etnocenológico. Percorro os
caminhos que me levaram ao fazer artístico no Auto do Círio, procurando com isso,
59
Trecho do samba de enredo “Romero Britto - o artista da alegria dá o tom nessa folia” do G.R.E.S Renascer
de Jacarepaguá para o carnaval de 2012, composto por: Adriano Cesário, Cláudio Russo, Fabio Costa, Isaac.
116
Atos de escritura 4
60
Samba de enredo do G.R.E.S Unidos de São Carlos para o carnaval de 1975, reeditado no ano de 2004 pelo
G.R.E.S Unidos do Viradouro com o título “Pediu pra Pará, parou! Com a Viradouro eu vou... pro Círio de
Nazaré”, composto por: Aderbal Moreira, Dario Marciano, Nilo Esmera Mendes.
117
Atos de escritura 4
61
Ver Cláudia Palheta, 2019;
62
Trecho do samba de enredo “Metamorfoses: do Reino Natural À Corte Popular do Carnaval - As
Transformações da Vida” do G.R.E.S Unidos de Vila Isabel para o carnaval de 2007, composto por: André
Diniz , Carlinhos Petisco, Evandro Bocão, Prof. Wladimir, Serginho 20;
63
Jornalista, ator, encenador, professor, pesquisador e carnavalesco paraense. Pós-doutor em Artes cênicas
pelo PPGAC- UNIRIO (2011) foi o responsável pela chegada dos estudos etnocenológicos na Amazônia, onde
ainda hoje mantém e lidera na Universidade Federal do Pará, o grupo de pesquisa TAMBOR (CNPq-2008)
dedicado aos estudos sobre carnaval e Etnocenologia;
118
Atos de escritura 4
64
Ver Cláudia Palheta, 2012;
65 Enredo da Sociedade Rosas de Ouro para o carnaval de 2008, de autoria de Jorge Freitas.
119
Atos de escritura 4
Sob esse aspecto, observo que o Auto do Círio representa para mim um constante
recomeço, renovação de laços e dos compromissos assumidos com o sagrado expresso na
figura da Virgem de Nazaré, tal qual com as Artes carnavalescas, bem como, enquanto
espaço que abriga provocações que impulsionam não só a mim, como a vários outros
artistas, na busca por objetos, questionamentos e instigações sobre as quais nos
debrucemos, levando-nos ao pensamento crítico/criativo, corroborando ao disposto por
Pinheiro quanto à Arte Contemporânea, ao compreendê-la como ação política do sujeito
em sua época:
O espaço contemporâneo reivindica sujeitos anacrônicos distanciadamente
críticos e insubmissos ante a sua própria época para, no desmedido do
pensamento e ancorados a uma cultura de liberdade, inverter a lógica da
subserviência do capital intelectual para reinventar o próprio pensamento-
mundo-matéria-sujeito (PINHEIRO, 2016, p. 85).
120
Atos de escritura 4
3. Ex-votar
Em romaria eu agradeci, na alma das coisas, acreditei. Pedaços de sonho, ex-voto na
mão...66
Ao apontar para uma prática cênica, governada pela permanente liberdade de
criação, como já citado, observo desse modo, ser o Auto do Círio também um lugar para
comunhão com o sagrado, em suas múltiplas facetas, onde o espetáculo é o responsável
pela reunião sob um mesmo manto, de inúmeros anjos, deuses, santos, orixás, inkses,
voduns, caboclos que se multiplicam, não somente pelas ruas durante o cortejo, como
também nos corações e orações daqueles que encontram, por meio do seu fazer artístico
no Auto, maneiras de materializarem a fé que devotam a Nossa Senhora de Nazaré, ponto
convergente daquela encenação.
Assim, os processos de criação que desenvolvi no Auto do Círio, demarcam não
somente o início do relacionamento entre mim e as Artes Cênicas, como também
demarcam o entendimento da potência presente no meu fazer artístico, nesse espetáculo,
ao observá-lo enquanto objeto de comunhão com o sagrado expressado na figura de Nossa
Senhora de Nazaré. Sendo mais um dos artistas que encontra no cortejo um lugar para
expressão da fé através da Arte, acabara por contribuir, mesmo sem tomar conhecimento
de tal faceta, com o disposto sobre o Auto do Círio como forma de Arte- Romaria,
explicitado por Cláudia Palheta ao demonstrar que:
O Auto transformou-se em mais uma romaria da Quadra Nazarena, assim como
a Rodoviária, a Fluvial, a Trasladação e o próprio Círio. Nós percebemos a
presença de promesseiros reais dentro do Auto, as apresentações são pensadas
como uma forma de promessa, então no Auto são apresentadas promessas feitas
a Santa. Por isso é interessante designar o Auto como uma Arte Romaria, já que
os participantes pensam sua apresentação, seu figurino como formas de
agradecer e homenagear nossa senhora de Nazaré[...] (PALHETA, 2014, p. 8).
Desse modo, compreendo que ex-votar tenha sido o ato de criar e confeccionar os
66
Trecho do samba de enredo “IGBÁ CUBANGO- A alma das coisas e a arte dos milagres” do G.R.E.S
Acadêmicos do Cubango para o carnaval de 2019, composto por: Robson Ramos, Sardinha e Cia;
121
Atos de escritura 4
67
Os ex-votos são os objetos oferecidos aos oragos por fiéis, configurando-se como uma prática religiosa
que reflete a crença e as atitudes do homem diante da vida, da doença, da morte e do perigo. Expressa ainda
suas ambições, seus desejos, e suas alegrias;
122
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
BORA, Leonardo A.; PORTO, Gabriel H.G. Milagres do Povo- Ex-votos e Arte
Contemporânea em um desfile carnavalesco. In: ENECULT, 15., 2019. Anais... Salavador:
UFBA, 2019. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/enecult/wpcontent/uploads/2019/09/ANAIS_2019_XV-
ENECULT.pdf . Acesso em: 12 out. 2020.
PALHETA, Cláudia Suely dos Anjos. Artes Carnavalescas: Processos criativos de uma
carnavalesca em Belém do Pará. Dissertação (Mestrado em Artes), Universidade Federal
do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Belém, 2012.
PALHETA, Cláudia. Aniversariante esbanja juventude. 20° edição traz mudanças e aproxima
cortejo dos participantes [Entrevista concedida a] Rosyane Rodrigues. Beira do Rio-Edição
Especial, Belém, Set. 2014. p. 08.
PINHEIRO, L. Anarcometodologia: o que pode uma pesquisa em Arte. Belém, UFPA, 2016.
SANTA BRÍGIDA, Miguel. O maior espetáculo da terra: o desfile das escolas de samba como
cena contemporânea na Sapucaí. 2006. 255 f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) -
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
SANTA BRÍGIDA, Miguel. O Auto do Círio: Drama, Fé e Carnaval em Belém do Pará. Belém:
Programa de Pós Graduação em Artes/ICA/UFPA,2014.
123
Atos de escritura 4
PRELÚDIO
O que seria do Professor-Pesquisador-Músico sem suas experiências? E se essas
experiências não fossem transcritas ao papel? Perceber situações em nossa volta nem
sempre é compreensível aos nossos olhos. Esse exercício é fundamental para a
compreensão de novos caminhos metodológicos na pesquisa.
O “olhar para si” traz a construção de saberes e, a partir dessa fonte subjetiva,
entrelaça-se outras referências teóricas que vão dialogar com a pesquisa, e trará o
reconhecimento para o campo acadêmico. Para Delory-Momberger (2006, p. 361), “A
prática de histórias de vida em formação fundamenta-se sobre a idéia de apropriação que
o indivíduo faz de sua própria história ao realizar a narrativa de sua vida”.
Entre a escrita cartesiana e poética, tomamos a liberdade para fluir dentro desse
dualismo, uma vez que essa pesquisa é um recorte de tese de doutorado e encontra-se na
linha 3 (PPGArtes/UFPA) seguindo uma escrita cartesiana. O divisor de águas deu-se a
partir da disciplina Atos de escritura, a qual trouxe reflexões acerca da Fenomenologia
para a pesquisa. Sendo assim,
A fenomenologia da imaginação apresenta novos estudos e vieses com relação à
imagem poética. Esta deve ser captada em sua atualidade no momento em que
“emerge na consciência como um produto direto da alma”. Isso exclui qualquer
causa ou antecedente para explicar a imagem. Deve ser enfocada como criação
do poeta em seu valor subjetivo (ALVAREZ FERREIRA, 2013, p. 77).
68
Doutorando em Artes (PPGARTES/UFPA); E-mail: luciancosta51@yahoo.com.br
69
Ph.D. em Educação Musical; E-mail: aureo_freitas@yahoo.com
124
Atos de escritura 4
125
Atos de escritura 4
1.Florear
2. Margarizar
3. Formacionar
4. (In) formacionar
5. (Trans) formacionar
Uma descoberta. Um novo olhar. Uma escrita poética. Vários caminhos. Vários
atravessamentos. Muitas provocações foram primordiais para o surgimento que
denominamos: “eu caçador de mim”. Essa sessão vem descrever o processo da construção
de verbos potentes que articulam a pesquisa e os significados de cada verbo.
126
Atos de escritura 4
O ponto de partida deu-se, a partir da disciplina atos de escritura, tudo era novo,
confuso e cheio de dúvidas. No decorrer da disciplina, as peças foram se encaixando, de
modo que a pesquisa e as reflexões expostas pela professora fizeram sentido, tanto aos
pesquisadores, como para a própria pesquisa.
Uma das primeiras questões a ser colocada foi: qual epistemologia poética da sua
pesquisa? ou seja, pergunta pulsante da pesquisa. Posteriormente, foi apresentado o autor
Gastor Barchelard que discute a fenomenologia, “o olhar para si”, nesse diálogo, passou a
ficar claro o movimento da escrita, por ser uma pesquisa movente.
Em diversas aulas, houve provocações e reflexões para pensar a metodologia da
pesquisa, nesse caso, foi nos apresentado a tríade poética: Saber, conhecer e reconhecer,
que está vinculado ao objeto, objetivos e problema da pesquisa. Essa primeira provocação
fez exercitar a mente acerca desse fenômeno, um movimento do micro para o macro,
pensando como pesquisador e sujeito, a partir das vivências.
A compreensão, dessa epistemologia poética, trouxe insights sobre a pesquisa,
mostrando novos caminhos, a partir das vivências, em um plano subjetivo, em diálogo
com os sujeitos. Essa vivência transformou-se numa escrita poética, pois os pesquisadores
fazem parte das cenas descritas na pesquisa. Assim, a compreensão para pensar os verbos
ficou mais clara, após algumas aulas. Para isso, a construção dos verbos potentes foi
pensada, a partir de elementos imagéticos da pesquisa, palavras-chave e o trajeto da
própria escrita.
Nessa perspectiva epistemológica, emergiram os verbos a seguir e,
respectivamente, seus significados para a pesquisa:
a) Florear
O surgimento das pétalas na pesquisa é para a compreensão do objeto da pesquisa.
Cada pétala representa elementos que atravessam o pesquisador como: lugares,
mudanças de campo da pesquisa, percurso acadêmico, entre outros. Essas fontes
encontram-se presas ao centro da pesquisa, ao qual refere-se ao miolo da flor, o “eu” como
centro da pesquisa, eis o termo “caçador de mim”, pois tudo encontra-se ajustado ao meu
corpo, à minha vivência. A visualização que veio na mente é de uma flor que esta rodeada
de pétalas e alinhadas ao miolo.
127
Atos de escritura 4
Este verbo tem como principal ação, a de reunir os elementos fundamentais que
atravessam a pesquisa, para se pensar possíveis diálogos sobre formação continuada do
professor de música. A imagem força que permeia este ato é a da flor, aquela que brota,
que articula, que origina pétalas. Essa percepção da imagem e sua materialização realça o
corpo da pesquisa.
b) Margarizar
Verbo articulador que permite movimentar a pesquisa é o margarizar, onde cada
flor tem uma identidade específica. Escolhemos a margarida, flor que de noite fecha e, ao
dia abre, devido ao sol nascente. Essa analogia muito descreve a pesquisa, pois essa
relação ressalta a existência de uma pesquisa movente, existente dentro de um corpo
presente e atuante. Outra relação persistente deve-se ao fato da margarida ser adaptável
a qualquer tipo de solo, uma vez que o próprio trajeto dos pesquisadores remete a esse
processo de formação, ou seja, adaptável. Isto é, o conjunto das pétalas constitui vida à
pesquisa.
c) Formacionar
Verbo que articula compreender o processo de formação continuada, de
professores de artes/música, através do auto trajeto dos pesquisadores. O processo de
formação, primeiramente, parte da experiência, vivência, prática de determinada área de
conhecimento para a vida. Em seguida, parte do conhecimento teórico, em diálogo com a
autobiografia para entender determinadas dificuldades.
d) (In)formacionar
Verbo que permite compreender o processo interno para dentro da pesquisa. Ato
de esclarecer o funcionamento da pesquisa, a qual reúne conhecimento específico no
campo da formação continuada de professores de música.
Segundo Costa e DeFreitas (2020, p. 6):
128
Atos de escritura 4
e) (Trans)formacionar
Verbo que visa compreender o processo para além da pesquisa. O encontro da
pesquisa, com a disciplina atos de escritura, trouxe uma nova forma na escrita, ou seja,
uma metamorfose comparada ao de uma borboleta.
Após a construção dos verbos, a relação da pesquisa com os pesquisadores trouxe
um olhar epistemopoético para a colaboração da escrita. Esse campo metodológico traz
dobras para a pesquisa, as quais permitem dar um direcionamento, indagações para a
construção de saberes. Dessa compreensão, emergiu a seguinte imagem poética que
aciona essa escrita poética:
Caminhos
Desvaneio metodológicos
Ato
Vivência
criativo
s
Pesquisa
129
Atos de escritura 4
Formação
inicial
Eu
Caçador de Pesquisa em
Atos de escritura mim
música
trabalho
Local de
130
Atos de escritura 4
131
Atos de escritura 4
132
Atos de escritura 4
Coda
A partir da perspectiva epistemopoética, encontramos na pesquisa vários lugares de
fala e possibilidades na escrita, principalmente a poética. Uma das formas para
compreensão da pesquisa descreve-se em verbos de ação, imagens e atravessamentos,
além da utilização de termos da semântica da área, para, por exemplo, introdução e
conclusão, neste texto. Desse modo, o sujeito da pesquisa move-se em direção ao seu
próprio trajeto, para explicar o corpo da pesquisa, percebemos a interação entre o que
denominamos de “caçador de mim” e o objeto da pesquisa. para isso, a história de vida
torna-se relevante para a construção de saberes. Dessa forma,
Ao compreender a sua História de Vida recriam-se fatos e acontecimentos
importantes dessa história, possibilitando entender como um sujeito chega a ser
o que é. O conhecimento que se faz pelas narrativas de si torna sua própria
história um objeto de investigação, extraindo saberes para si e para o outro,
fazendo o registro dessa construção histórica para evidenciar acontecimentos
que o formaram nos contextos históricos, sociais, culturais e, neste caso, músico-
educacionais (ABREU, 2017, p. 209).
133
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ABREU, Delmary Vasconcelos de. História de vida e sua representatividade no campo da
educação musical: um estudo com dois Educadores Musicais do Distrito Federal.
InterMeio: revista do Programa de Pós-Graduação em Educação, Campo Grande, MS, v.
23, n. 45, p. 207-227, jan./jun. 2017
COSTA, Lucian José de Souza Costa e; DEFREITAS Júnior, Áureo Déo. Percursos na
música: reflexão sobre formação inicial e continuada de um professor de música a partir
do seu (auto) trajeto. In: Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Música, 30., 2020, Manaus. Anais[...]. Manaus:[s. n], 2020.
134
Atos de escritura 4
Era uma vez, a redondeza do meu ser, minha circularidade cíclica. Na infância,
minha voz se contrariou ao comentário de ser um ser tagarelante e sim, apenas um ser
andante, caminhante com sua arte, ser fluente, movente e consciente. Minha voz acreditou
na força das histórias, como memória viva do amor e, no ato de contar e ouvir histórias,
como a estirpe da voz, crendo, assim, na voz das vozes, na voz dos xamãs, griôs, Akapalôs,
70
Mestranda em Artes no Programa PPGARTES-UFPA-. Especialização na Arte de Contar histórias FCC-
Faculdade Conhecimento e Ciência. Graduada em Licenciatura Plena em Teatro-ETEDUFPA- 2017, e-mail:
mardeluz26@gmail.com
71
Professora pesquisadora da UFPA. Doutora em História Social – PUC (Pontifícia Universidade Católica) –
SP (2010), Mestre em Antropologia Social pela UFPA (1998). Professora Adjunta da UFPA, lotada no ICA,
vinculada à ETDUFPA. Atua no Programa de Pós-graduação em Artes em Rede Nacional (UFPA) e no
PPGARTES-UFPA. E-mail: ivmaxavier@gmail.com.
135
Atos de escritura 4
136
Atos de escritura 4
Figura 1 - 1º Lunação
137
Atos de escritura 4
legitimar minha arte, e na performance conjugada ao meu corpo, estar disponível para
dar-lhe passagem.
Minha voz artística, há tempos, vem dando vida aos personagens no Teatro,
dando cor e temperatura às histórias, fábulas e contos fantásticos; e tem uma performance
própria, ao qual, com o tempo, fui sistematizando e criando um fazer genuinamente meu,
orgânico e que sinto enorme prazer ao realizar; estar entre as pessoas, no palco, nas
bibliotecas, nos espaços culturais, nas ruas, me eleva e faz de mim uma artista consciente
de minha voz, quando ela reverbera no outro e o quanto o que levo comigo, a cada
apresentação, pode fazer toda diferença para o espectador que me contempla, naquele
exato momento.
Ao me preparar para uma apresentação, primeiramente, alongo meu corpo e
aqueço minha voz, com técnicas específicas de respiração e ampliação vocal. E, sempre ao
iniciar uma contação de histórias, peço para o público se conectar por meio de uma
dinâmica lúdica, criativa e, após esta prática, sempre início a narrativa cantando uma
canção de minha autoria. Considero este momento muito importante, para estabelecer
uma atmosfera propícia para o encantamento e para o exercício da imaginação.
CANÇÃO
Eu vim estou aqui e vim para contar,
Contar uma história,
Que há muito tempo ouvi contar.
A história é aquela que um dia alguém me contou,
Agora eu vou recontar,
Para podermos recriar,
O mundo começou, a partir das narrativas,
Quem aqui contar um conto,
Também pode aumentar um ponto!
- Há muito tempo, na época dos avós dos avós dos nossos avós...
Quando me preparo para contar história, um sentimento de estar gestando
palavras, pessoas, mundos, me atravessa. E, como afirma Eduardo Galeano, em seu conto,
138
Atos de escritura 4
A Paixão de dizer, Livro dos Abraços “Este homem, ou mulher, está grávido de muita gente.
Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo
México, o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas”
(GALEANO, 2002, p. 18).
Ao utilizar minha voz para contar, tenho um ritual próprio, nele, eu canto e
passeio com a voz, por lugares inimagináveis, pois, com ela posso dar asas à imaginação e
permitir uma atmosfera de encantamento e (re) encantamento de mundos.
139
Atos de escritura 4
Fonte: Arquivo pessoal: Defesa de TCC - A Arte de Contar Histórias: Um Parto de Mim Mesma.
Com o passar dos anos, fui me aprimorando como artista. São 15 anos
trabalhando com a contação de histórias e, há20 anos com Teatro; fui me desenvolvendo
como pessoa, professora de teatro, contadora de histórias e mulher. Aos 32 anos, me
tornei mãe e, logo aos 36 anos, mãe pela segunda vez. Essa experiência de maternar
trouxe-me, com o tempo, a maturação que precisava para praticar outros modos de
utilizar minha voz. Não só pela responsabilidade de ser a condutora de dois seres
humanos, mas a de, também, militar no cenário obstétrico do gestar e parir, por conta da
minha experiência pessoal, ao viver tão marcante momento.
Foi então, que fui me especializando em um discurso que identifico como sendo
minha voz política, com a qual milito há 10 anos, em prol do “parto humanizado”,
movimento mundial, ao qual me inseri e fui aprendendo a ajudar outras mulheres a
buscarem a autonomia de si e de seus corpos. Tive a positiva experiência de ter a presença
da doula, em meus partos. A experiência de parir com atendimento humanizado,
despertou em mim, após o nascimento do meu primeiro menino Moisés, o desejo e
necessidade de ajudar outras mulheres a realizarem seus partos de forma tranquila e
respeitosa. Minha formação em doula ocorreu em 2014, pelo instituto GAMA (Grupo de
Apoio à Maternidade Ativa) de São Paulo.
A Doula é uma profissional que dá suporte contínuo, físico e psicológico a
mulheres grávidas que desejam ter sua vontade e seus corpos respeitados, no momento
140
Atos de escritura 4
de seus partos e, assim, conseguirem parir seus filhos de modo natural e humanizado.
Portanto, percebi que, assim como contar histórias, que para mim é um ato de fé na vida,
fé nos seres humanos e, principalmente, uma forma necessária de se continuar o repasse
do que acredito ser a memória do amor aos nossos ancestrais; doular também me
transporta para o que há de mais primitivo e ancestral, doulando uma mulher, através de
minha voz, transporto-me e transporto-as para outras dimensões.
Quando doulo uma mulher, levo comigo a sutileza a qual precisei, no momento
em que me encontrei parindo. Chego, em silêncio, tento primeiro olhá-la como quem diz,
“estou aqui” e, conforme o momento requerer, lembro-a de como vocalizar, a cada
contração que sente; e relaxar com a reverberação de seu próprio som. Vou vocalizando
junto, para que ela se sinta à vontade para fluir, vou dizendo sempre, bem pertinho do
ouvido, que tudo está bem e que ela está maravilhosa, que seu corpo sabe como fazer essa
dança do nascer para renascer.
E, conforme minha intuição me diz, vou lhe encorajando a desabrochar e abrir,
como se fosse um portal de luz. Utilizo afirmações e visualizações, onde minha voz vai
materializando o que chamamos de “Partolândia”, lugar onde ela precisa chegar, pois o
parto é um rito de passagem, a mulher renasce após os desafios pelos quais ela passa.
Essas falas se transformam em benéficos para ela sair desse processo, mais fortalecida,
para cuidar de seu filho. É sempre um renascimento para todos que presenciam. Parto é
amor, é vida, renascimento, é chegada, é divino, parto é presença. Parir é um ato político
amoroso!
-Ummmmhaaaarrrrrrrrrrrrrr (onomatopéia)
-Vamos você vai conseguir, vamos respirar e relaxar.
-Inspirar profundo e expirar soltando a pélvis e toda a tensão do corpo.
- A cada contração, veja você em um mergulho, nas ondas do mar e, a cada contração,
menos uma para você conhecer seu amor, que vai chegar.
-Você é uma flor desabrochando, veja uma flor desabrochando e um portal se abrindo em
luz.
-Eu confio, eu entrego, eu aceito, eu agradeço!
141
Atos de escritura 4
142
Atos de escritura 4
O ser humano ouve a voz de sua mãe, ainda dentro do útero, e a audição humana
funciona, a partir da vibração das ondas sonoras. Quando, ainda no ventre, um feto
começa a ouvir entre a 20º e 24ª semana de gestação, quando os neurônios vão formando
o córtex auditivo, a região responsável por processar o som. É a partir desse momento,
que os bebês podem ouvir a voz de sua mãe, consequentemente, sua voz é um dos
primeiros sons que ele ouve.
A voz é a matéria prima com a qual se moldam os pensamentos e os sentimentos,
a voz é capaz de alcançar distâncias espaciais e temporais, onde o corpo não tem como
chegar. Imaginem hoje, quando somos acometidos de uma pandemia e impossibilitados
de nos encontramos, presencialmente, nossa voz acaba por fazer um intercâmbio de suma
importância, através de nossa voz, virtualmente, podemos continuar a nos encontrarmos,
para não calar nossa necessidade de socialização, nossas vozes têm nos aproximado há
143
Atos de escritura 4
144
Atos de escritura 4
partir dessa compreensão, que minha voz se materializa em um jogo cênico (com o corpo,
materiais sonoros, dança, canto, vestimenta), provocando a heterogeneidade, na
perspectiva da fenomenologia do redondo, conforme estabelecido por Bachelard (2006).
Figura 5 - Cartão Postal Mandala Lunar
Ao decidir enveredar por essas paragens e mergulhar, mar adentro, no meu ser
em movimento cíclico, sinto-me grande, redonda, circular e como uma grande barriga
gestando um ser, sigo arredondando-me em um ininterrupto gestar e parir e vir a ser. E,
enquanto fui emergindo destas profundas águas e, por estes ares, fui ancorando meu ser,
desejei escrever sobre minha voz, dando visibilidade a todas as vozes que me habitam e
que, sobremaneira, as vozes de minhas avós, bisavós e tataravós, voz de minha mãe, voz
da Grande Mãe. Vozes que me ajudam a parir a mim mesma, neste processo de
arredondamento do meu ser.
145
Atos de escritura 4
146
Atos de escritura 4
147
Atos de escritura 4
Nesta perspectiva de lançar uma lupa sobre minha voz, enquanto performance,
sou atravessada pelas questões redondas do meu ser, pois contar e doular estão para mim
ligadas ao meu fazer como artista e como mulher. Porém, a performance que minha voz
política e artística, leva-me ao devaneio, que na produção noturna de Bachelard“ é uma
fuga para fora do real... o devaneio poético é um devaneio cósmico. ” (BACHELARD, 2006b,
p.5-13). E, assim, ancoro minhas impressões e percepções de uma voz que vem da
necessidade de (re) encantamento pelo mundo.
Numa psique equilibrada, essas duas forças, o espírito jovem e a alma velha e
sábia, se mantêm num abraço em que mutuamente se reforçam, psique foi
construída para ter seu melhor funcionamento, enfrentando dragões, fugindo de
torres, dando de cara com o monstro, rompendo encantamentos, encontrando o
brilho, lembrando-se da própria identidade... quando é guiada por essa dupla
dinâmica. E o que deveria fazer uma mulher que perdeu o contato com um ou
com o outro aspecto dessa preciosa natureza dupla dentro de si mesma, seja o
espírito para sempre jovem, seja a anciã conselheira... aqueles aspectos exatos
que tornam uma mulher uma "grande" neta, uma "grande" avó, uma "grande"
alma? (ESTÉS, 2007, p. 13-14).
148
Atos de escritura 4
DESENLACE
Neste ensaio, deixei-me envolver por uma linguagem cósmica, descobrindo que,
no ato de contar e doular, a voz se reveste de um status performático, através das palavras
e por meio de um corpo expressivo, momentos de puro deleite transcendental. Espero que
este ensaio possa ter elucidado sobre o meu percurso com a voz, quando atuo como
contadora de histórias e doula. Que a discussão tecida da voz, enquanto performance,
tenha clarificado minha trajetória nesses dois campos de experiência fenomenológica,
onde a voz é o fio condutor.
A utilização da voz, assim, apresenta-se como meio eficaz para a vivência
fenomenológica, que experimento como contadora de histórias e doula, não somente em
termos de compreensão teórica e técnica, mas de modo que possa sensibilizar e envolver
a pesquisa de forma que sua tessitura passe a gerar sentidos – que pode tornar a pesquisa
mais orgânica e de maior envolvimento com o público das artes. Sou grata por existir e
colocar minha voz à disposição do despertar!
REFERÊNCIAS
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com lobos: mitos e histórias do arquétipo
da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. A ciranda das mulheres sábias: ser jovem enquanto velha,
velha enquanto jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
GUEDES, Luísa. Dia da Doula. In: IEVE, H.; ANDRADE, N. (org.). Agenda Mandala Lunar.
Porto Alegre: Ateliê Anetto, 2021. p. 305.
IEVE, H.; ANDRADE, N. Agenda Mandala Lunar. Porto Alegre: Ateliê Anetto, 2021.
JUNG, Carl. Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
MOURA, Chana de. 12º Lunação. In: IEVE, H.; ANDRADE, N. (org.). Agenda Mandala
Lunar. Porto Alegre: Ateliê Anetto, 2021. p. 297.
149
Atos de escritura 4
SAZANOF, Anna. Abuelas e Anciãs. Pagina: Saberes da Mãe Terra. 2018. Disponível em:
https://www.facebook.com/watch/?v=1436465396497245. Acesso em: 03 março 2021.
SILVA, Marluce Cristina Araújo. Defesa de TCC - A Arte de Contar Histórias: Um Parto
de Mim Mesma. 2017. 106 fotografias.
SILVA, Maurício Pedro da. Zumthor, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Ubu,
2018. Recorte – Revista Eletrônica, v. 16, n. 1, 2019.
VARGAS, Julia. 1º Lunação. In: IEVE, H.; ANDRADE, N. (org.). Agenda Mandala Lunar.
Porto Alegre: Ateliê Anetto, 2021. p. 99.
VARGAS, Julia. Mandala Lunar. In: IEVE, H.; ANDRADE, N. (org.). Agenda Mandala Lunar.
Porto Alegre: Ateliê Anetto, 2021. p. 1.
ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 1990.
150
Atos de escritura 4
Prezados(as) leitores(as)
Escrevo esta carta para explicar e refletir acerca do projeto de pesquisa, para o
curso de doutorado em Artes PPGARTES/ICA/UFPA, estabelecendo os verbos de ação que
relaciono com o mesmo. Para que vocês compreendam o percurso dessa trilha de
investigação, começo contando um pouco da minha trajetória pessoal e profissional a
respeito do pensar, repensar e construir sobre o que queria pesquisar, pois como bem
disse Gondim e Lima:
Concebendo a pesquisa como atividade artesanal, isto é, como um trabalho em
que está presente a marca do autor, deve-se voltar a atenção, inicialmente para
o pesquisador, em outras palavras, antes de tratar dos métodos e das técnicas,
cabe uma reflexão sobre as motivações e sobre o perfil ideal daquele que será o
principal responsável pela aplicação desses instrumentos, ou seja, daquele que
definirá o que “pode servir” para uma bricolagem (GONDIM; LIMA, p.7, 2006,
grifo dos autores).
A partir da citação de Linda Gondim e Jacob C. Lima, faço aqui nessa missiva, uma
reflexão a respeito das motivações para pensar e construir o projeto de pesquisa visando
à elaboração da tese em si, cujo título é – Da imagem ao vídeo: experiências em Artes Visuais
72
Doutoranda em Artes pelo PPGARTES-UFPA participa do grupo de pesquisa Arte, Memória e Acervos na
Amazônia, Mestra em Educação Cultura e Comunicação pela FEBF-UERJ, Especialização em Educação,
Cultura e Organização Social pelo ICED/UFPA e Graduação em Educação Artística - habilitação Desenho pela
União das Escolas Superiores do Pará (1991). Professora de Arte da Fundação Escola Bosque Prof. Eidorfe
Moreira atuando na Educação de Jovens e Adultos.
nelia.fonseca@ica.ufpa.br
73
Professora Dra. Associada da UFPA, Arte/educadora, Museóloga e Artista Plástica, Docente do Instituto
de Ciências da Arte (ICA) lotada na Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal do
Pará (UFPA) Curso de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais. Professora e Vice-coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes)/ Rede PROFArtes. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq:
Arte, Memórias e Acervos na Amazônia. (rosangelamarquesbritto@gmail.com)
74
Termo criado pela professora Lucimar Belo.
151
Atos de escritura 4
Voltando no tempo, vamos ao ano de 2008, época em que fui trabalhar, como
professora de Arte/Artes Visuais, na Fundação Escola Bosque Centro de Referência em
Educação Ambiental, Prof. Eidorfe Moreira, após dois anos vivenciando a realidade da
Funbosque, no ano de 2011, fui aprovada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade
de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Viajei
para o Rio, no intuito de cursar o mestrado em Educação, Cultura e Comunicação em
Periferias Urbanas. Durante esses estudos e pesquisas, produzi a dissertação sob a
orientação da professora Dra Alita Sá Rego, cujo título é – Fazendo Filmes na Ilha:
Produção de Audiovisual como linha de fuga em Cotijuba, periferia de Belém.
Durante a pesquisa de campo do mestrado, no ir e vir de barco de Belém-Cotijuba-
Belém comecei a perceber como são fortes nossas relações com o lugar em que vivemos,
e as paisagens podem nos provocar um prazer estético indescritível, um sonhar acordado,
um devaneio, que segundo Bachelard:
Habitando verdadeiramente todo o volume de seu espaço, o homem do devaneio
está em toda parte no seu mundo, num dentro que não tem fora. Não é à toa que
se costuma dizer que o sonhador está imerso no seu devaneio. O mundo já não
está diante dele. O eu não se opõe mais ao mundo. No devaneio já não existe não-
eu. No devaneio o não já não tem função: tudo é acolhimento (BACHELARD,
1988, p. 165).
75 Foi acrescentado a vogal I na sigla da EJA ficando agora EJAI, por se tratar de Educação de Jovens, Adultos
e Idosos, tem se verificado um aumento significativo no número de pessoas acima de 60 anos que querem
voltar a estudar e, quando usamos a palavra Idoso(a), consideramos a especificidade da idade desses
estudantes.
152
Atos de escritura 4
76
Segundo Silva e Alvarenga (2018) “polivalência é uma marca da Lei nº 5.692/71, e a Educação Artística
foi concebida como a formação de um único profissional capaz de ministrar aulas de artes plásticas,
educação musical e artes cênicas em um único programa.”
153
Atos de escritura 4
77Registro aqui que a Funbosque está localizada na Ilha de Caratateua, a 25Km do centro de Belém.
78 Essas informações foram coletadas a partir dos diálogos estabelecidos em sala de aula, para justamente
saber por que a água aparecia na diagnose como maior problema para os(as) estudantes.
154
Atos de escritura 4
Alguns também relatavam que armazenavam água da chuva, para lavar banheiro,
limpar a casa, outros disseram que, quando tinha água durante a noite, também
armazenavam para usar, mas reclamavam que a qualidade da água, quando chegava às
torneiras de suas casas, era muito ruim, pois tinha um odor forte, inclusive, a água da
Escola Bosque também tinha/tem essa mesma característica.
Figura 1: Trilhas da Escola Bosque. Acervo da autora
Pois é caros leitores, apesar de morarem numa ilha de Belém, cercados por água,
não há, nessa comunidade, acesso universal à água potável e ao saneamento básico. Essa
é a meta 6 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, promovido pela Agenda 2030,
da Organização das Nações Unidas e essa meta evidencia que 40% da população do
planeta sofre com escassez da água.
Não podemos dizer que a comunidade de Caratateua tenha escassez de água, já
que se trata de uma ilha mas, certamente, nem todos têm acesso à água potável79 em suas
casas e esse é um problema que o poder público precisa solucionar, pois além da ilha de
Caratateua, atinge também os moradores de outras ilhas, nas quais a Funbosque possui
Unidades Pedagógicas.
A água é um elemento fundamental para a vida humana e de todos os seres vivos,
além disso, está também relacionada ao lazer, ao trabalho, à apreciação estética. A água é,
em si, uma fruição e um fluir, fruir porque nos causa prazer, alegria e vários outras
estesias e o fluir porque está sempre a escorrer, escoar, molhar, inundar. Moramos em
79
Aqui entendido como água que serve para cozinhar, beber e higienizar alimentos.
155
Atos de escritura 4
uma cidade localizada num estuário, estuário do rio Pará, quando procuramos o
significado de Pará na língua tupi guarani, aprendemos que se trata de uma região de
muitos rios e, então, percebemos como é apropriado esse nome, o Estado do Pará é um
dos caminhos que traça o rio Amazonas, o mais poderoso em volume de água e em
tamanho, um rio que invade a imaginação de seus povos ribeirinhos com lendas e mitos
que habitam as profundezas das águas, como a Cobra Norato, o Boto Encantado ou a Iara
Mãe D’água.
Certamente, a água tem um poder, não apenas de manter-nos vivos, mas há
também um poder social e cultural que vai para além: há trabalho, há ludicidade, há
costumes e há devaneio, conforme a imagem fotográfica abaixo revela e, como afirma
Bachelard “E eis que o devaneio materializante, unindo os sonhos da água a devaneios
menos móveis, mais sensuais, eis que o devaneio acaba por construir sobre a água, por
senti-la com mais intensidade e profundidade”. (BACHELARD, 2028, p. 22).
O devaneio está sob e sobre a água, constrói, imagina. Para os moradores das ilhas,
o devaneio sobre a água vai longe, navega, mergulha e inunda suas vidas, mas, por incrível
que pareça, a água que está presente ali não é boa para beber, não é possível usar pra lavar
seus alimentos, não é possível usar pra cozinhar sua comida. Assim, a água potável precisa
ser acessível a todos, para que possamos chegar ao mundo democrático e de justiça social,
cabe ao poder público buscar essas soluções possíveis e sustentáveis, em diálogos e
cooperação com as instituições de pesquisas, como as universidades.
Figura 2: Praia de Outeiro
156
Atos de escritura 4
Sempre em Movimento
Água de chuva é novo ciclo
É a renovação caindo das nuvens do céu
Cai nos oceanos, nos rios, igarapés e praia
Mergulha pra encontrar e fertilizar a terra
São gotas que inundam de vida o planeta
Quando voltam para o mar, relâmpagos e trovões anunciam seu retorno
Navegamos no riacho, olhamos a ribeira, o ribeirão e ribeirinho, todos interligados num
mesmo fluxo de ir e de vir.
80
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/pa/belem.html
81
https://institutopeabiru.files.wordpress.com/2014/08/belemribeirnha-marcocontextual.pdf
157
Atos de escritura 4
Nas fotografias de Sebastião Salgado, observa-se seu apelo, por meio de um vídeo
sobre a proteção dos povos indígenas, em relação à pandemia e a invasão de suas terras
por garimpeiros. Estes estão levando o Coronavírus para dentro das aldeias, mais um
dano para os habitantes do local explorado por mineradoras:
158
Atos de escritura 4
O artista Mundano cria uma pintura mural usando a lama tóxica de Brumadinho-
MG e, ao mesmo tempo, faz referência à obra Operários, de Tarsila do Amaral, a qual insere
em sua obra, os trabalhadores que morreram após o rompimento da barragem de dejetos,
da multinacional, Vale do Rio Doce.
Também podemos abordar a temática arte e meio ambiente, por um viés mais
expandido, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030 da ONU.
Nesse sentido, há muitas possibilidades, com base nos Objetivos de Desenvolvimento
159
Atos de escritura 4
160
Atos de escritura 4
social e é evidenciando esses fatos, que pretendo dialogar, durante as aulas de Arte/Artes
Visuais, enquanto Unidade Temática do componente curricular Arte para a produção da
pesquisa, trilhando pela teoria crítica do currículo, na escuta dos estudantes, dialogando
e refletindo, junto com eles, sobre a realidade cotidiana de suas vidas, os problemas
enfrentados, permitindo uma tomada de consciência crítica e de autonomia, para
enfrentar as situações-problemas vivenciadas pela comunidade da qual participam. Para
me fazer entender de forma mais objetiva, faço uso das palavras de Ana Mae Barbosa
(1998)
[...] é muito importante não esquecer que o equilíbrio ecológico e o equilíbrio
social estão relacionados e são parte da mesma realidade. Não poderemos
resolver os problemas do ambiente natural sem tomar conhecimentos dos
problemas políticos, econômicos, sociais e educacionais que induz a ações
predatórias que as permeiam. os artistas e os arte-educadores têm importante
papel a desempenhar nos esforços para preservar a natureza e os seres humanos
na natureza (BARBOSA, 1998, p. 116).
161
Atos de escritura 4
dentre outros. O trio de autores citados organizaram o livro Pistas do Método Cartográfico.
Os autores demonstram que cartografar visa permitir acompanhar e demarcar os
processos.
Assim, para seguir as pistas do metodo cartografico, realizarei, previamente, uma
pesquisa bibliografica e um plano de trabalho, que nao sera fechado, mas de acordo com
o devir da pesquisa, ele podera se transformar. Para analise do material, terei um diario
de campo e um questionario pre-estruturado para registros escritos, alem dos registros
fotograficos e em vídeos criados, tanto pela pesquisadora, quanto pelos interlocutores que
participarao da pesquisa. Os interlocutores do estudo serao os meus discentes do EJAI,
que tem idades entre 15 e 60 anos.
Para fundamentar essa pesquisa, fiz um quadro teorico com tres recortes: o
primeiro centrado em ensino/aprendizagem, usando tecnologia da imagem e farei
dialogos iniciais com Lucia Pimentel (2019), Cristina Melo (2008) e Regis de Morais
(2004); o segundo recorte centrado na Abordagem Triangular das Artes Visuais, em uma
interlocuçao com Ana Mae Barbosa (1998, 2005, 2019) e o terceiro recorte, trarei as
questoes ambientais, tendo como base, os seis primeiros ODS, em que estabeleço um
dialogo com Paulo Freire (1998, 2019), Marcos Sorrentino (2020), Marcos Reigota (2017),
Marilena Loureiro (2018) e Felix Guattari (1990).
Para finalizar essa carta, faço algumas considerações parciais: As aulas do
componente curricular Arte/Artes Visuais podem gerar e render bons debates, com os
estudantes da Educação de Jovens, Adultos e Idosos, de certa forma, também ajuda o
professor a ter uma compreensão da vida cotidiana dos estudantes, suas carências e
necessidades pois, muitas vezes, nós professores, não fazemos ideia das dificuldades
diárias enfrentadas por nossos estudantes. As reuniões de reorientação curricular
também possibilitam aos professores discutirem entre si, modos de pensar um currículo
que seja interdisciplinar, crítico e reflexivo, mas, ao mesmo tempo, verificar as
dificuldades da prática diária na sala de aula, ou seja, de como executar essa
interdisciplinaridade e o exercício crítico e reflexivo da realidade.
À medida que vamos avançando nos debates da reorientação curricular, os
documentos vão sendo produzidos, bem como vamos processando novas reflexões sobre
nossa prática em sala de aula, principalmente, porque escolhemos um direcionamento
pedagógico, que tem como base, a teoria crítica e libertadora pensada e praticada por
Paulo Freire (1998). Isso significa que estamos em constante questionamento e diálogo
162
Atos de escritura 4
com os estudantes e entre nós, enquanto professores buscando uma formação que vise o
diálogo e a autonomia de pensamento dos estudantes, para que sejam capazes de pensar,
refletir, analisar, criar e recriar, não apenas na Arte, mas em todos os componentes
curriculares.
Enfim, com esperança que dias melhores chegarão, façamos nossa parte, cuidemos
de nós, dos nossos estudantes, do meio ambiente, cuidemos da vida...
Despeço-me com fé de criar um mundo mais justo, fraterno e igualitário.
Belém, 08 de março de 2021.
Cordialmente
Nélia Lúcia Fonseca
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte : anos de 1980 e novos tempos, 1.ed
– São Paulo, Perspectiva, 2019.
163
Atos de escritura 4
DELEUZE, Giles GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, v.2. Tradução:
Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995.
FERREIRA, Yuri. Mundano usa lama tóxica em painel inspirado em Tarsila do Amaral.
Hypeness, 2020. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2020/01/mundano-
usa-lama-toxica-de-brumadinho-em-painel-inspirado-em-tarsila-do-amaral/. Acesso em
15 abril 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 57. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2014.
MORAIS, Regis de. Educação, Mídia e Meio Ambiente. Campinas-SP. Editora Alínea,
2004.
164
Atos de escritura 4
SILVA, Maria Cristina da Rosa Fonseca da; ALVARENGA, Valéria Metroski. Formação
docente em Arte: percursos e expectativas a partir da Lei 13278/2016. Educação &
Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 3, p. 1009-1030, jul./set. 2018. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/edreal/v43n3/2175-6236-edreal-2175-623674153.pdf.
Acesso: 08 mar. 2021.
165
Atos de escritura 4
O sonho da noite não nos pertence! Não é um bem nosso! As noites são histórias.
Nunca dormimos, vivemos, e sonho, ou antes, sonho em vida e, ao dormir, que também é
vida. Não há interrupção em nossa consciência, sentimos o que me cerca se não dormimos
ainda, ou se não dormimos bem, entramos logo a sonhar, desde que deveras durmamos.
Assim, o que somos é um perpétuo desenrolamento de imagens conexas ou desconexas,
fingindo sempre de exteriores, entre os homens e a luz, em busca de uma resposta para
perguntas, onde há sempre luz que se vê.
A vida é um novelo que alguém emaranhou!
As árvores balançam, graciosamente, sobre as ribanceiras, em saudações corteses
aos atrevidos, que visitam as paragens deste lugar. Há um sentido nela, se estiver
desenrolada e posta ao comprido, ou bem enrolada. Mas, tal como está, é um problema,
sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde. Quantos sonhos não seriam necessários
conhecer, pelo fundo e não pela superfície, para determinar o dinamismo dos
afloramentos!
Começa agora a floresta cifrada
A sombra escondeu as árvores
Sapos beiçudos espiam no escuro
Aqui um pedaço de mato está de castigo
Arvorezinhas acocoram-se no charco
Um fio de água atrasada lambe a lama
- Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!
Agora são os rios afogados
Bebendo o caminho
A água resvala pelos atoleiros
Afundando afundando
Lá adiante
A areia guardou os rastros da ilha da rainha Luzia
82
Doutorando em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, ator, cantor, diretor teatral,
publicitário e professor da UFPA, lotado no ICA (Instituto de Ciências da Arte), vinculado à ETDUFPA (Escola
de Teatro e Dança) da UFPA. Fundador do Grupo de Teatro Palha. E-mail: rspaulo36@gmail.com.
83
Doutora em História Social – PUC (Pontifícia Universidade Católica) – SP (2010), Mestre em Antropologia
Social pela UFPA (1998). Professora Adjunta da UFPA, lotada no ICA, vinculada à ETDUFPA. Atua no
Programa de Pós-graduação em Artes em Rede Nacional (UFPA) e no PPGARTES-UFPA. E-mail:
ivmaxavier@gmail.com.
166
Atos de escritura 4
- Agora sim
Vou ver a filha da rainha Luzia
Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
Guardadas por um jacaré
(BOPP, 1994, p. 5).
167
Atos de escritura 4
168
Atos de escritura 4
169
Atos de escritura 4
mais. No entanto, não sabemos como retornar àquela casa, de vez em quando, algo nos
arrebata e nos arrasta ao seu regaço de breu e abandono. Tudo que ouvimos é o voo cego
dos morcegos no vão das telhas, e uma torneira pingando sem parar. Será o choro de
nossas recordações a pensar que, naquela casa, onde os pássaros não voam mais? Meio
confusos, retornamos às profundezas, em prantos e seguimos nossa reflexão.
O espaço, com efeito, não deve ser entendido como um depósito ou uma estrutura
edificada, na qual se colocam cenários e adereços, mas como um elemento que condiciona,
transforma e é transformado durante o conjunto de ações produzido pelo fazer teatral,
fazendo-nos entender o espaço como um processo sociocultural. Se entendermos que o
lugar teatral, ao ser considerado como um elemento que altera o evento teatral,
entenderemos que este passa a ser uma variável condicionante, na estrutura da própria
atividade. De outro lado, pode-se inferir que, diante da visibilidade do edifício teatral, a
produção/construção dos espaços teatrais, na cidade, também interfere no modo como a
imagem da atividade teatro é desenvolvida na e pela cidade.
O movimento de expansão dos lugares teatrais, não ocorre de maneira aleatória e
nem como um reflexo da sociedade, mas como um fato multidimensional de qualidade
composicional a “que só pode ser compreendido em todas as dimensões que o compõem”
(FERRARA, 2000, p. 32) e completivas a “que possui qualidade de ser um todo, mesmo
sendo parte” (FERRARA, 2000, p. 32), em que o espaço teatral é compreendido como uma
totalidade social. Assim ficamos a pensar que a nossa cidade está repleta de espaços, como
o São Cristóvão, com embaubeiras junto aos muros crescendo, em todas as partes e
paredes, portões com ferrugem e os espaços abrigando musgo, além das rugas lavradas
sob o terçado das chuvas. A rigor, nada mudou. Mas, onde estão as palavras ternas, que
suponha eternas, as carícias ainda tímidas e o êxtase das descobertas? É como se tudo
houvesse escorrido pelo ralo e o vivido não passasse de sonho ou imaginação.
Mergulhamos, agora, feito almas penadas, igual àquela que rondava nosso pavor de
criança. E, junto ao muro desses lugares abandonados, entre o passado e o presente,
descobrimos, então, que o coração de uma cobra encantada de pesquisador é só músculo
e não um sarcófago.
Esta parte da pesquisa será desenvolvida, no sentido de investigar as variáveis
envolvidas nesse movimento, especialmente na cartografia produzida pelos edifícios
teatrais de Belém, entre o passado e o presente. Edifício teatral tratado como lugar de
mediação que interfere nos processos culturais, lugar da significação e do simbólico, e que
170
Atos de escritura 4
termina por definir uma poética do espaço teatral, construída pela distribuição desses
espaços, de grupo e/ou de realização de espetáculos, pela cidade.
Desta forma, pretendemos compreender este mapeamento, como um momento
num processo aberto e dinâmico, entre o passado e o presente. Enfrentando contradições,
tempo-espaço, durante o percurso na coleta das informações dos lugares teatrais, pois
eles se alteram, continuamente, motivados por vários aspectos, entre eles a modalidade
geográfica produzida como subproduto da globalização, em que o tempo, e não o espaço
parece ser o fator determinante para escapar das armadilhas do tempo, fugir de uma
interpretação sequencial, biográfica ou mesmo histórica, para se aventurar no devaneio e
na possibilidade do simultâneo, do geográfico e do espacial.
O que nos motiva iniciar essa pesquisa de doutoramento com esse tópico, é que o
problema do espaço foi sempre um fio condutor de nossa pesquisa, como teatreiro da
cidade de Belém, desde o início do processo criativo – onde vamos ensaiar? – até, aonde
vamos apresentar, longa ou curta temporada? Questões atreladas à linha investigativa da
trajetória dos grupos teatrais criados a partir dos anos de 1980, um desafio que deverá
ser trabalhado nas fronteiras ou bordas de áreas de conhecimentos distintos em busca de
interfaces.
Eu, Paulo Santana, como diretor teatral em Belém do Pará, dos anos de 1980 – 2020
vivencio na prática questões que envolvem a busca de condições e espaços para se
produzir e vincular um trabalho. A ausência de espaços ideais e permanentes, sempre foi
uma realidade presente para quem faz teatro, em uma cidade sem política cultural, que
vive o programa de apresentações de um dia ou de um fim de semana, com cobranças
exorbitantes de diárias em espaços públicos da cidade. Pois, Belém sempre foi uma cidade
sem espaços para ensaiar e criar espetáculos teatrais.
Assim, no caso específico de veiculação de evento teatral, criar um lugar como
alternativa para os lugares teatrais estabelecidos, era uma das possibilidades que
permitia ao artista e/ou grupo mostrar o seu trabalho. Mais do que isso, pois em muitos
casos a busca de um lugar significava a busca da identidade, que é o caso do grupo de
teatro PALHA, ou de um determinado trabalho artístico ou de um grupo.
No ano de 1981, o grupo Palha conseguiu a permuta de um espaço abandonado, de
uma Sede Social, na Avenida Duque de Caxias, 193, no Bairro de São Brás – o espaço estava
em ruínas, o telhado estava comprometido e o piso também. Lá, realizamos um mutirão
para a limpeza e com o apoio financeiro de familiares, restauramos o telhado, o piso e a
171
Atos de escritura 4
pintura. Aos domingos pela manhã, promovíamos um bazar de roupas usadas, cedidas
pelos integrantes do Grupo e vendíamos para o bairro; o objetivo desta arrecadação era
pagar as contas de luz e água. O espaço passou a ser a sede do Grupo, pelo período de um
ano, onde realizávamos as oficinas de teatro, dança e expressão corporal, ministradas por
oficineiros convidados. Porém, o sonho durou pouco! Em um domingo, após o Grupo
realizar seu ensaio, o prédio desabou. A estrutura ficou toda danificada e o Grupo sem
condições de permanecer no local.
Belém continuava sem uma política cultural que atendesse as necessidades dos
grupos novos que atuavam na cidade, já que esta atendia aos amigos que faziam parte da
“intelectualidade paraense”. Em 1982, após o apoio do então governador Alacid Nunes,
Jáder Fontenelle Barbalho, Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), foi
eleito governador do Estado, cumprindo seu mandato no período de 15/03/1983 à
15/03/1987. Para a Secretaria Estadual de Cultura, Desporto e Turismo (SECDET), foi
indicado o jornalista Acyr Castro, sua gestão foi marcada por obras estruturais e o início
de uma discussão sobre o que seria cultura popular paraense. Além de um tímido
processo de interiorização da cultura, fomentando a publicação de pequenos cadernos de
cultura pelo interior.
Áureos tempos aqueles, quando na manhãzinha, nós colhíamos mangas nas
mangueiras, ainda vestidas de orvalho. Pés e patas competiam no capim pródigo de
carrapichos para disputar quem colhia mais. Gestos elásticos, ultrarrápidos, assustavam
insetos e aves. Um séquito de suaves súditos os seguia em semiadoração aos príncipes
daquele feudo, que nada faziam pela cidade e já queriam as barragens dos furos dos rios.
Depois, o asfalto rasgou o campo e nem na cidade cogumelos de concretos brotaram.
Cresceram as crianças e a cidade. Anãs ficaram as árvores, aos pés de edifícios colossais
abandonados, e nós a observar... e só fica a fome funda das frutas no vão, sem remissão
das bocas.
Foi possível também observar que, nas décadas de 80 e 90, outros grupos e/ou
artistas da capital realizavam o mesmo movimento de ocupação e adaptação de lugares
outros, em forma de lugares teatrais. Para termos essa percepção dos lugares,
mergulhamos nos principais veículos de comunicação da época, os jornais: A Província do
Pará; O Diário do Pará; O Liberal e o Jornal Amazônia.
Nestes arquivos, pudemos notar o papel relevante da mídia, na construção da
identidade do teatro como prática social, se tomarmos como objeto de reflexão as
172
Atos de escritura 4
matérias, cuja temática é o teatro e em algumas críticas que poucos grupos de teatro da
cidade recebiam e têm, a partir de suas amizades e relações com os jornalistas e colunistas
sociais ou de opinião, e os poucos espaços que os jornais locais disponibilizavam para o
movimento cultural da cidade de Belém, ainda era ou é muito pequeno. E, se pensarmos
sobre as notícias distribuídas durante o ano na cidade, observaremos uma espécie de
cartografia para identificação e localização dos poucos lugares teatrais84 ou lugares
outros, existentes na cidade.
Hoje, a partir deste levantamento nos principais veículos jornalístico, percebemos
a ocupação dos artistas ou grupos, por lugares outros que não o edifício teatral. Ao rolar
de pardos dias, até o choro convulso, o lamento tornou-se morno sereno. Lâminas cegas
não mais ceifam emoções aos feixes. Na carne imersa em salmoura, estão os ímpetos, hoje
murchos exibindo talos pendidos. O que era clamor de rio, vagas de marés, procelas, fez-
se lago surdo-mudo ou um cemitério líquido. E os rios já serenados soterram outras
pompeias.
Nessa época, morávamos na cidade presépio e não sabíamos que estávamos na
glória. Afinal, não éramos anjos, pois transitávamos em um santuário encravado no centro
de Belém fazendo, quase sempre, o caminho das cobras, da alegoria que acompanha o
Círio de Nazaré. Sob os arcos dos casarões, os piedosos franciscanos ainda não tinham
apagado os rastros dos cabanos85. O que sabe a juventude quando tudo é incógnita? O
relógio da Basílica anunciando o início do espetáculo que, nas dependências do forte
arrematado à murada, cujos degraus outrora o rio molhara... Relógio do tempo a
proclamar as horas tão vagarosas... Devaneios de cobra!
Em um determinado período, Belém iniciou um processo de restauração em seus
espaços patrimoniais (1990 –2000), aí houve a discussão em torno da ocupação do espaço
com atividades culturais, em especial as artes cênicas, objetivando dar visibilidade ao
espaço e buscar outro conceito de museu, patrimônio. Este, não como um lugar estático,
sem vida, aí o teatro aparece na mídia, em jornal principalmente, como a ocupação de
outros lugares, não como um lugar alternativo, mas como uma opção estética. Nesse
84 Lugares teatrais – teatro oficial, edifício teatral. Lugares-outros que não é o edifício teatral, casas, porões,
sedes, área livre das igrejas e centros comunitários e prédio patrimonial.
85
Denominação dada para os participantes do movimento da cabanagem, que foi uma revolta popular e
social ocorrida durante o Império do Brasil de 1835 a 1840, influenciada pela revolução Francesa, na antiga
Província do Grão-Pará.
173
Atos de escritura 4
174
Atos de escritura 4
175
Atos de escritura 4
A obra foi escrita entre 1919 e 1920, após o final da primeira guerra mundial,
ditada pela atmosfera do momento histórico da época. Trata-se de um diálogo entre um
imperador, que retorna vitorioso da guerra, e um mendigo cego, que se encontra na
entrada da cidade, onde ocorrerá a festa da vitória. Assim, a peça pode representar um
alerta para qualquer sociedade, de que as atmosferas socioeconômica e cultural, geradas
em momentos de crise, podem resultar em sistemas totalitários e governos ditatoriais
intolerantes.
Ao longo da peça, o mendigo conta diversas histórias ao imperador. Na primeira,
põe em dúvida a vitória do imperador, por meio de uma batalha e sugere que os inimigos
foram derrotados pelas areias do deserto. Na segunda, conta o caso da praga dos ratos no
milharal, que invadem os povoados e mordem as pessoas. Na terceira, após negar que
existe história, narra a incrível trajetória de Napoleão, o cabeçudo. Na quarta, fala do
morto e sua mão forte. Na quinta, relata a façanha do cachorro que lhe salvou a vida e, na
sexta, conta a vida ilusória do homem roubado pela mulher.
É possível que o percurso da peça demonstre o processo de Ascenção de Hitler,
segundo análise política que Brecht fazia do momento vivido pela Alemanha. Mostrando
que, inicialmente, o imperador ainda reservava uma tolerância em relação ao mendigo,
mas, que ao longo da peça, esta vai dando lugar a um sentimento de raiva e intolerância.
176
Atos de escritura 4
177
Atos de escritura 4
178
Atos de escritura 4
Nesta citação, Serroni aponta para o processo de adaptação de lugares como uma
característica das salas de espetáculos de Belém do Pará, elas não se diferem das salas dos
demais estados do país. Em Belém, criaram-se os espaços de porão a exemplo da UNIPOP;
Casa da Atriz; Mystical – espaço para poetizar e bailar –; Porão Puta Merda, entre outros.
Como um paradoxo, nesse mesmo período, de modo antagônico, percebia-se a retomada
da criação de edifícios teatrais bem estruturados de técnica e artisticamente. Tais
projetos, na maioria proposto pelo governo, como o teatro Margarida Schivasappa; teatro
Maria Silvia Nunes; teatro Universitário Cláudio Barradas e, pela iniciativa privada, o
teatro do CCBEU e o do SESI.
O que observamos, é que no fim dos anos 90, até meados dos anos 2000, ocorreu a
criação de salas de espetáculos em complexos turísticos e cultural – Estação das Docas
que, na verdade, abriga um anfiteatro em um galpão adaptado para ser uma sala de
espetáculo. Esse espaço, no entanto, parece mais com um auditório, pois estes lugares são
espaços que não favorecem a descentralização dos lugares teatrais e nem possibilitam aos
grupos de teatro e artistas da cidade, acesso, pelo alto custo dos alugueis cobrados pelo
poder público.
Se o governo favorecesse a descentralização dos lugares teatrais, espalhando salas
pelas periferias da cidade, estaria valorizando o teatro como atividade social. O que
ocorreu foram as criações de não espaços teatrais, a partir de ações de artistas e grupos
que transformaram suas moradias e porões em espaços culturais, lugares que não
oferecem condições adequadas para receber o público e/ou realizar espetáculos, com
aportes técnicos de qualidade, como iluminação básica ou sonorização. Ou seja, a
inadequação desses espaços pode colocar em risco a plateia e os artistas.
A partir destas inquietações, estamos elaborando um ato da tese de doutorado
intitulada: O teatro precisa de teatro? Reflexões epistemológicas sobre a
desterritorialização do teatro, a partir do grupo de teatro Palha – Pa. Neste ato, serão
apresentadas as seguintes hipóteses: A falta de criação e distribuição de lugares teatrais
para a cidade de Belém é evidente, na relação espaços x população. A constatação se firma
179
Atos de escritura 4
nos dados do Instituto Brasileiro IBGE, a saber: no último censo, de 2010, tinha uma
população estimada de 1.393.399 pessoas e com uma estimativa para o ano de 2020,
momento em que escrevo essa pesquisa, de 1.499.641 pessoas. O crescimento
populacional da cidade, no início do século XXI, nos revela que a demanda populacional e
a transformação da sociedade não acompanham a produção crescente das atividades
teatrais, consideradas agentes da arte, da comunicação e da cultura.
Com a escrita deste ensaio, apresentamos uma contribuição para se pensar sobre
a questão dos lugares de teatro, com ênfase no edifício teatral e sua relação com a cidade,
e que o mesmo passe a ser compreendido como um fato social, que pode interferir no
processo sócio cultural em curso. Não se trata de um reflexo da sociedade, pois as relações
são mais complexas do que o mero conceito de reflexo, que se refere somente a um
fenômeno entre o emissor e o receptor. Aqui, propomos entender tal fenômeno como um
processo coevolutivo entre o edifício teatral e a cidade.
Um contexto em que a relação do teatro com a sociedade, àquela do teatro como
agente e não como reflexo, aqui cabendo uma investigação sobre o atual distanciamento
entre teatro e sociedade. A atuação dos meios de comunicação, das políticas culturais e da
distribuição espacial dos edifícios teatrais. Essa compreensão e utilização dos espaços
trarão benefícios, tanto para os trabalhadores de teatro, quanto para a comunidade em
geral.
E assim nos silenciamos em calmaria de rio e barro, mergulhados nas profundezas
de um aqui jaz um rego, que por aqui passava um rio há quarenta anos. Quem bebeu o rio?
Entre pedras e areias restam resíduos de vida. Mas onde estão nas margens pardas as
digitais dos assassinos? De nossos sonhos de futuros que foram podados. Cortamos galhos
que o levavam para longe ao reduzir-lhe a lança das perguntas.
180
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ASSMANN, Aleida. Espaço de recordação: formas e transformações da memória
cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São
Paulo: Martins Fontes, 1988.
BOPP, Raul. Cobra Norato. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio / lições américas. Tradução:
Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
______. As cidades invisíveis. Tradução: Diego Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
______. Coleção de Areia. Tradução: Mauricio Santana Dias. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. Disponível em: https://Cidade.Ibge.gov.br/Brasil/Pa/Belém/panorama -
Acesso em: jan. 2020.
DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos: Introdução a uma filosofia do teatro. São Paulo:
Edições SESC São Paulo, 2016.
JURANDIR, Dalcídio. Ponte do Galo. Dalcídio Jurandir. Bragança(PA): Grafo Editora, 2017.
______. 1909 – 1979. Três Casas e um Rio. Dalcídio Jurandir – Bragança: Pará. Grafo
Editora, 2017.
KÜHNER, Maria Helena. Teatro amador: radiografia de uma realidade (1974 – 1986). Rio
de Janeiro: INACEN, 1987.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém:
CEJUP, 1995.
181
Atos de escritura 4
NUNES, Benedito. Crônica de duas cidades: Belém – Manaus. Belém: SECULT, 2006.
_______. A natureza do espaço - Técnica e Tempo. Razão e emoção. São Paulo: EDUSP.
2004.
_______. O espaço dividido. São Paulo: EDUSP. 2004.
_______. Por uma Geografia Nova. 6. ed. São Paulo: EDUSP. 2004.
SERRONE, J.C. TEATROS: Uma Memória do Espaço Cênico do Brasil. São Paulo: SENAC,
2002.
182
Atos de escritura 4
O DESPERTAR NA DIFERENÇA
Esta escritura nasce como fruto dos estímulos e vivências experienciados ao longo
do último semestre cursado no doutorado acadêmico do PPGARTES-UFPA. Aqui nasce
uma proposta experimental de escrita, tendo como indutores conceitos discutidos e
trabalhados ao longo das disciplinas História e Teoria Estética da Arte, ministrada pelo
Prof. Dr Afonso Medeiros e Movimento criador do Ato Teórico, ministrada pela Profª Drª
Ivone Xavier.
Visto isso, de forma devaneadora me proponho a mergulhar em uma escrita que
ora se desenha como uma possibilidade de linguagem diferenciada da escrita acadêmica
habitual em uma pesquisa. Logo, assumo o risco de escrever e brincar na linguagem de
um romance inspirado na obra literária Divina Comédia, escrita por Dante Alighieri no
século XIV, trazendo conceitos como memória, trauma, Lugar e Local, discutirei um
processo de encontro entre pesquisador e consciência, onde a experienciação desta leva
à passagem pelos seus métodos e metodologias inerentes ao fazer artístico acadêmico.
Propondo uma escrita de forma literária que traz uma estrutura de narrativa a
partir do eu lírico, apresento a trajetória do eu pesquisador em caminhar evolutivo, onde
o encontro com meus sete pecados me leva a refletir e entender o próprio processo do
fazer e pesquisar em arte, sendo estes caracterizados pela movência da pesquisa, ou seja,
não se fixando em um único local/olhar para observar, viver e interagir com o fenômeno,
pois este exige o contato com a diferença, com a pluralidade.
Trago esta experimentação como forma de refletir sobre o momento em que a
pesquisa se encontra. Momento este, em que levanto muitos questionamentos quanto ao
fenômeno, à metodologia e até sobre mim mesmo enquanto pesquisador.
Este processo de escrita ganha e energia e corpo ao entrar em contato mais uma
vez com os verbos potência, ou verbetes. Estas palavras ou frases que ganham/dão mais
força e sentido na/para a pesquisa aparecerão de forma implícita, pois aqui, o verbo não
86
Ator, Diretor, Professor e pesquisador em Teatro, Doutorando em Artes, pelo Programa de Pós-Graduação
em Artes (PPOGARTES-UFPA). (renansthrad@gmail.com).
87
Doutora e Mestra em Artes Cênicas. É professora efetiva da Universidade Federal do Pará (Instituto de
Ciências da Arte/ Escola de Teatro e Dança/ Programa de Pós-graduação em Artes).
(anaflaviadanca@gmail.com).
183
Atos de escritura 4
só é ação como é também carne. Pode em um momento ser um arquétipo que prisma um
tipo de saber, ou pode ser um substantivo próprio daquele que, pelas suas atitudes, leva
o eu lírico a superar/aceitar seus pecados. Pecados estes que se tornam verbos potência
na estruturação e encadeamento do pensamento para o encontro com uma metodologia
de pesquisa própria (ou não) aportada na experienciação da consciência.
Dessa forma, lanço mão sobre o fazer investigativo da pesquisa movente em artes
ancorado, porém sem estar preso, na fenomenologia, apropriando-me de algumas falas
e/ou conceitos de autores como Walter Benjamin, Merleau Ponty, Italo Calvino e Márcio
Seligman sem precisar citá-los diretamente.
Aqui, neste texto, apresentarei dois dos nove contos idealizados para estruturar
essa fase da pesquisa. Contudo, eu preciso apontar que, pelo caráter experimental e por
estar escolhendo uma estrutura narrativa de romance, onde o eu lírico apresenta o início
da sua trajetória nesse novo percurso acadêmico ou descoberta de um novo mundo,
assumo o risco e peço licença para não seguir de um todo as normas estabelecidas pela
ABNT no que se refere a dar voz aos autores evocados para a construção deste artigo,
embora todos estejam nas referências deste escrito.
Ressalto que não seria a primeira vez que alguém escreve sobre o fazer artístico e
seus conceitos teórico-práticos na forma de um romance. Trago como exemplo as três
obras do teatrólogo Constantin Stanislavsk intituladas A preparação do Ator, A construção
da Personagem e A criação do Papel. Nelas o ator e diretor teatral apresenta, fundamenta
e exemplifica toda a sua teoria sistematizada em método de ensino de atuação.
No mais, segue o princípio de um novo Local encontrado em mim e na pesquisa.
184
Atos de escritura 4
185
Atos de escritura 4
consigam ou não queiram enxergar a Verdade nua e crua, tal como ela é. E a Mentira? Esta
continua andando por aí, travestida de Verdade e pregando peças em alguns desavisados.
O senhor já está acostumado com esse jogo, porém em vez de verdade ou mentira, você
jogava com as minhas irmãs, o que acabou gerando o meu aparecimento como sua
principal guia nesse caminho. Todavia, ao passar por aquele buraco negro, nós dois fomos
desafiados a começar jornadas diferentes, para aí sim nos encontrarmos mais uma vez.
Agora eu irei visitar ou revisitar outras como eu, partes e essências de outros seres para
poder voltar e lhe reencontrar. Já o senhor, deve se despir destes trajes cheios de verdades
e conclusões, se libertar destas amarras que hora lhe dão muitas certezas. Lembre-se,
estas vestes que lhe foram dadas podem ser presentes da Mentira travestida de Verdade.
Até logo. – Disse ela se afastando até sua presença sumir.
Agora eu me encontrava só, confuso, cego e dominado por uma angústia
crescente a cada passo desequilibrado que eu arriscava dar. Mesmo sem enxergar eu
percebia que estava andando em círculos, pois ainda não conseguia me desvencilhar de
uma das amarras; a da Segurança. Essa me fazia chegar a apenas alguns passos do local
onde eu havia despertado. Era como seu em vez de seguro, eu estivesse preso a uma
certeza que guiava erroneamente meus questionamentos e estratégias.
Mesmo cego eu podia perceber uma presença neste centro. Uma presença que
parecia não querer se revelar ou falar. E ainda assim, eu sabia que não poderia entendê-
la, pois era como se ela ainda estivesse adormecida, mas ao mesmo tempo me esperando
para despertá-la. Foi então que decidi retomar uma tática antiga. Embora ainda eu não
pudesse simplesmente desvencilhar o laço que me unia a esta corda, eu podia afrouxá-lo,
podendo assim dar mais alguns passos e ficar um pouco mais distante do centro e desta
forma, em vez de andar em círculos, comecei, em cada afrouxada do laço, a criar um
caminho em espiral. Desta forma, fui tateando, reconhecendo, percebendo aquilo que se
encontrava entre o centro e a ponta da espiral.
Após algumas voltas ganhando mais distância eu pude sentir um calor imenso
emanando do centro do caminho. Eu sabia que deveria retornar imediatamente, mas
antes de eu dar o primeiro passo retroagindo, ouvi uma voz firme e doce:
- Finalmente você começou a me dar mais atenção, caro amigo. Não precisa
retornar.
- Você acordou? Mesmo ainda sem vê-lo direito, eu sinto que você é um amigo.
186
Atos de escritura 4
- E como você tem certeza disso? Pensei que a memória o tivesse alertado para o
cuidado com a Mentira vestida de Verdade.
Com uma imensa alegria e alívio eu respondi
- Simples! Eu não estou usando o sentido da visão, mas o tato. Por meio dele minha
consciência percebo melhor as sensações físicas e elas reagem a sua energia. Isso amplia
minha consciência e me faz ter certeza. Esse calor e essa força que emanam de você não
me causam medo ou dúvida, mas me mobilizam e me energizam até mesmo a seguir
adiante
- Mas para fazeres isso deverás te soltar da amarra da segurança. Que certeza tens
de que não vais ser tragado ou puxado por algo que esteja à sua volta? – questionou-me.
- A certeza que eu tenho é você! – afirmei com segurança e leveza.
Ao responder isso, desatei o último laço da Segurança. Enquanto o fazia, pensava
que poderia cair ou me sentir no vazio, mas para a minha surpresa, ao finalmente largar
a corda, senti meus olhos abrirem quase involuntariamente, e meu corpo ficou muito mais
leve e vivo. Incrivelmente além da liberdade, me senti mais seguro, mesmo que
desconfortável. E que bom que eu estava desconfortável, pois isso aguçava meus sentidos
e me fazia ter muito mais cuidado para não cair. Imediatamente me virei para trás e pude
finalmente enxergar aquele que por algum motivo se revelava como o maior aliado que
eu poderia ter nessa nova caminhada.
Um ser que aparentava ter meus traços humanoides, porém com uma imponência
divina. Não! Ele não era luz branca nem tinha uma auréola na cabeça. No lugar disso, ele
possuía uma capa negra que parecia composta por fumaça na parte de fora e guardava um
forte e majestoso rubro dentro. Em sua cabeça ele não tinha coroa, mas um chapéu
vermelho.
187
Atos de escritura 4
Essa presença me revitalizou e eu pude sentir a força que outrora se fazia ausente
regressando para os meus braços e pernas.
Percebendo meu despertar e retomada de consciência de si, ele logo falou:
- A partir de agora, eu serei seu guia nesse novo caminho. Mas devo avisar-lhe de
que; nem sempre eu serei direto ou revelador em minhas falas. Terás que enxergar, nas
entrelinhas e nunca se contentar com o óbvio, pois a tua capacidade de se desprender das
amarras criadas pelos outros, e por ti mesmo, já se mostrou eficaz neste momento. Mais
do que a mim, ela será nesta fase de descobertas a tua principal arma para encontrar as
respostas dos muitos questionamentos que estão por vir.
188
Atos de escritura 4
Agora de olhos abertos e após olhar o entorno, finalmente via aquilo que me
rodeava. Um terreno de atmosfera cinza, frio, sem vida e de ar pesado.
- Que lugar é este? – indaguei
- Lugar não! Local!
- Qual a diferença entre os dois? - Questionei, mesmo sentindo que eu já sabia a
diferença entre ambos.
- Em um lugar, o único que se move é você, o ser. Tenhamos isso como um conceito
mais rígido e fechado de espaço e tempo. Já o local? Este é móvel tanto quanto o ser que o
habita. Ambos podem se deslocar e serem percebidos de forma diferente. Ambos são
conceitos moventes. E são de tais conceitos que nós teremos que nos valer a partir de
agora.
- Então podemos pressupor que somos muitos?
- Nós somos muitos na diversidade e iguais nas diferenças. E quando encontramos
em nós esse local de diferenças, nós passamos a confrontar nossos medos, pois
começamos a enxergar as nossas diferenças no outro. Logo, encarar a diferença é se olhar
no espelho.
- Então, quer dizer que este local, onde nos encontramos agora, mesmo sendo tão
diferente de onde eu sinto que vim, é reflexo de mim!? – concluí de forma arriscada
- Exatamente, do contrário, onde nos perceberíamos? Olhe bem ao redor. É neste
terreno seco de vida, árido de sentimentos e rico em metodologias vazias sem sentido para
ti, que a Mentira faz suas primeiras vítimas. Aqui ela escondeu a criatividade à beira do
penhasco do vazio e plantou a semente da dúvida eterna, dando origem à árvore das falsas
certezas. Os que aqui chegam, estão famintos por criatividade e desnutridos de esperanças.
O que gera em cada ser destes um desespero para alcançar algo que lhe sacie da fome de
certezas.
- O que é aquilo no topo da árvore? Por que eles tentam chegar até lá? - Questionei
ao ver seres se sacrificando na tentativa vã de alcançar o topo.
-Aquele é o fruto do Como, o único elemento que cresce nesta terra morta. E é o
único capaz de saciar a fome daqueles pobres desesperados por sabedoria. Sabedoria esta
189
Atos de escritura 4
que pode mostrar o caminho fácil para se obter as respostas vindouras. Ela se encontra
no topo da árvore não por qualquer motivo. É para forçar as pobres almas já secas e
frágeis a subirem e se precipitarem diante do penhasco para tentar alcançá-la, arriscando
tudo em uma armadilha, pois os ventos fortes sopram com maldade ilusões metodológicas
que guiam os seres para despencarem no vazio deste abismo. Uma vez lá o ser fica imerso
na confusão e na loucura. Vários caminhos sem resposta se apresentam para guiá-los em
uma nova fase, onde não conseguirão encontrar o saber necessário, para depois se
destruírem em angústias e medos eternos. Ali, todos os conceitos convergem em conflito,
preocupação e desistência banhada na depressão ou mesmo na loucura que caso superadas
darão passagem a sensação de não pertencimento.
- Vale a pena arriscar tudo isso para chegar ao fruto? - Questionei, tendo a resposta
quase sem me deixar concluir a pergunta
- Essa resposta quem me dará é você! E é nesta terra que você a encontrará. Onde
não se vê objetivamente as respostas para o “como”. O único elemento que nutre a vida
neste lugar torna-se matéria prima mobilizadora da observação e da força reflexiva sobre
si e a partir de si. Aqui, é necessário refletir para poder prosseguir. – Respondeu o guia
apontando para a grande árvore como em sinal para eu prosseguir
Ao dar meus primeiros passos em direção à árvore senti como se todos os meus
sentidos se entorpecessem, aguçando apenas a visão que era atraída e quase fixada no
fruto. Logo me senti tomado pela necessidade gigantesca de me alimentar daquilo. Eu me
sentia perdido, fraco, sem respostas e, embora eu não pudesse sentir cheiro de nada,
aquele fruto parecia exalar o aroma da sabedoria. Meus pés começaram a dar passos mais
rápidos e meu corpo começou a acelerar até quase correr para iniciar uma subida
desesperada. Porém, ao chegar na borda das raízes, eu lembrei que, naquele local, a visão
não era um privilégio, mas uma fragilidade e, imediatamente fechei os olhos.
O meu companheiro de viagem ficou parado e não esboçou nenhuma reação para me
impedir de tentar subir a árvore. Consegui ficar parado e lutei para relembrar todo o
diálogo que tive com a Memória e então percebi que estava quase caindo na armadilha da
Mentira.
190
Atos de escritura 4
Figura 2 – GULA: O fruto da metodologia
Guia
191
Atos de escritura 4
- A calmaria revela mais do que a ansiedade não achas? – Ele me respondeu com
firmeza enquanto encarava a poça.
Eu havia entendido, era necessário esperar a água ficar parada. E tão logo ficou, se
tornou um espelho onde pude perceber meu reflexo, porém não refletia o guia que se
encontrava atrás de mim.
- Você está apenas na minha mente? – Indaguei percebendo que ele sorria
- Vejo que finalmente você entendeu! Eu sou seu Guia, sua consciência. Sou a sua
forma de traduzir conceitos e criar junções. Sou aquilo que você buscava junto com a
Memória na empreitada passada. Eu sou a sua própria metodologia, eu sou aquilo que
você investigou e descobriu ao buscar os seus processos de experiênciação da consciência
durante o estado de criação imerso no mundo subjetivo da cena. Eu sou o seu Fenômeno.
CONTINUA...
O QUE SE SEGUIRÁ
“Louco é quem espera que a nossa razão
possa percorrer a infinita via
que tem uma substância em três pessoas”
Dante Alighieri
Chego ao final deste primeiro texto com a consciência de que essa escrita faz parte
de uma experimentação, uma parte da própria pesquisa em curso que se desenha como
possibilidade e que precisará ser amadurecida, bem como futuramente adequada e
articulada com as necessidades de formatação acadêmica sem renunciar a sua identidade
enquanto escrita poética.
Aliás, Escrita Poética acaba se desenhando aqui como um novo conceito
metodológico a ser aprofundado ao longo da pesquisa. Nele pude de forma consciente,
organizar os saberes, ideias e reflexões sobre o fazer pesquisa em arte que conflitam
dentro de mim, possibilitando assim uma fluidez na escrita e no próprio caminhar da
pesquisa.
Não deixo de correlacionar esse ocorrido com o que a fenomenologia de
Bachelard (1996) nos mostra enquanto potência no devaneio na experienciação da
consciência e na produção rica de conhecimento, pois estar confuso dentro da sua própria
pesquisa é algo comum no mundo acadêmico das artes, porém, o como você irá superar
isso não tem uma resposta simples, não se tem um Fruto do como a ser alcançado de forma
192
Atos de escritura 4
193
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed.da
Universidade de São Paulo, 1979.
BACHELARD, Gaston. A poética do Devaneio, 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2009.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
PONTY, Maurice Merleau. O visível e o invisível, 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SELIGMANN-SILVA, Márcio, O local da diferença: ensaio sobre memória, arte, literatura
e tradução. São Paulo: Editora 34, 2018.
SALLES, Cecília. Gestos Inacabados: processo de criação Artística. São Paulo: FADESP,
2004.
194
Atos de escritura 4
Foi o caminho, não que eu tracei para mim, mas que minha
caminhada traçou: caminhante, não há caminho, o caminho se faz
com o caminhar (MACHADO, apud MORIN, 2002, p. 11).
88
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes-PPGARTES da Universidade Federal do Pará.
Mestra em Educação na linha de Currículo e Formação de Professores pela Universidade Federal do Pará
(2013). Licenciada em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela Universidade Federal do
Pará. É professora da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará/EAUFPA. Membro do Núcleo de
Estudos e Pesquisa sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais - GERA/IFCH/UFPA.
rcabralfranca12@gmail.com
89
Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFPA. Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/MEC). Mestre em Educação: Ensino Superior e Gestão
Universitária pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Professora da Universidade Federal do Pará
(UFPA). Atua no Curso de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais. Artista Plástica, desde 1988.
Coordenadora do Grupo de Estudo: Arte, Memórias e Acervos na Amazônia.
rosangelamarquesbritto@gmail.com
90
Em alguns momentos da produção textual, empregarei o sujeito na primeira pessoa do singular, quando
se tratar de algo específico à autora, em outros momentos, na primeira pessoa do plural, isso por considerar
que não se escreve uma tese sozinha, tem a contribuição da orientadora e o diálogo com os teóricos que dão
sustentação conceitual à pesquisa.
195
Atos de escritura 4
pensamentos, viajar nas ideias e, quem sabe, uma poesia, ah! Quem me vem à cabeça? São
as pedras no caminho de Carlos Drummond de Andrade! Não deixam de ser poéticas.
E, perseverar acima de tudo, quando no meio do caminho tiver uma pedra91, se no
caminho de Drummond teve, é provável que no meu tenha. E teve! Uma em tamanho
imensurável, a pandemia, me causou uma perda inestimável. Mas é preciso perseverar, e
continuar! Nesse ponto da caminhada, penso nas Marias de Milton Nascimento92, e
aprendo como boa brasileira essa "estranha mania de ter fé na vida" e canto... Mas é
preciso ter força, é preciso ter raça e ter gana sempre! E seguir pé no chão. Aprofundar os
conhecimentos epistêmicos para compreender os meandros conceituais e metodológicos,
garimpar a bibliografia especializada, selecionar o que melhor se afina ao objeto
investigado neste artigo, continuar desviando de pedras, andando pela ilharga, se
necessário for, nesse caminho árido revelado na figura nº 1 do devaneio poético da escrita.
Figura 1 – O caminhar árido do devanear poético da tese
91
O poema No Meio do Caminho é uma das obras-primas de autoria do escritor brasileiro Carlos Drummond
de Andrade. Os versos, foram publicados em 1928 na Revista de Antropofagia, abordam os obstáculos
(pedras) que encontramos pelos caminhos da vida.
92 Milton Nascimento. Música Maria, Maria – Acústico. Disponível em:
196
Atos de escritura 4
Para o autor, são nas estruturas dos campos, com as disputas de poder pelos
agentes nas relações, dependendo do seu poder, pela posição/cargo que ocupam, que são
proferidos os discursos e legitimados, impostos de acordo com o poder de dominação de
quem os tem e como os utiliza. Dessa forma, estudar o campo dos docentes do curso de
licenciatura de Artes Visuais, e as relações étnicas raciais, nos provoca o interesse em
analisar as representações dos docentes forjadas, que têm permeado a prática pedagógica
de Artes Visuais, se subvertem no campo, a hegemonia da cultura dos colonizadores.
Os suportes teórico-metodológicos ancoram-se em diálogos com produções da
área da Arte e Educação, bem como da Antropologia, Sociologia e Estudos Culturais. É um
estudo de cunho qualitativo descritivo, com a abordagem bibliográfica de Artes Visuais,
94
Temos ciência que em 2007 o Curso de Educação Artística foi transformado em Licenciatura e
Bacharelado em Artes Visuais, seguindo as determinações da LDB e dos documentos de área. Entretanto,
nesta pesquisa trataremos em específico da licenciatura em Artes Visuais. Cf. na Proposta de Atualização
Curricular e Mudança de Licenciatura em Educação Artística Habilitação em Artes Plásticas para Graduação
em Artes Visuais nas Modalidades Licenciatura e Bacharelado. 2007.
197
Atos de escritura 4
com Ana Mae Barbosa (2002, 2009) e as práticas pedagógicas com Ilma Alencastro Veiga
(2009), Selma Garrido Pimenta (2009).
A partir dessas autoras, investigamos o ensino de artes visuais e as práticas
pedagógicas dos docentes, da Faculdade de Artes Visuais, da Universidade Federal do
Pará. Lançamos assim, o olhar perscrutador sobre as relações étnico-raciais e a formação
de professores de artes visuais, pois Barbosa considera que: “Somente a ação inteligente
e empática do professor pode tornar a arte ingrediente essencial para favorecer o
crescimento individual e o comportamento de cidadão como fruidor de cultura e
conhecedor da construção da sua própria nação” (BARBOSA, 2002, p. 14).
A cor no traçado conceitual
A formação de professores a partir de Joaquim Severino que, acreditando na
educação como mediação da cidadania, afirma: “Toda sociedade precisa muito de muita
educação” (SEVERINO, 2006, p. 63). Sendo assim, a sociedade brasileira precisa de
educação, os professores também precisam de formação com professores qualificados. É
o que defendem em perspectivas diferentes as(os) autoras(os) Veiga (2011, 2009),
Pimenta (2009), Wilma Baía Coelho (2009, 2014) e Antônio Nóvoa, que contribui
afirmando: “não há ensino de qualidade, nem reforma educativa, nem inovação
pedagógica, sem uma adequada formação de professores”. (NÒVOA, 1997, p. 9).
Posto isto, enveredamos pelas as representações, em que os grupos em suas
práticas sociais legitimam ou naturalizam, de acordo com suas percepções ou julgamento,
as suas visões sobre outras pessoas ou grupos sociais. Para Roger Chartier, as
representações são consideradas como “[...] representações coletivas que incorporam nos
indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de
apreciação a partir dos quais estes classificam, julgam e agem” (CHARTIER, 1994, p.104).
As representações, dessa forma, são construções de ideias, verdades assimiladas
pelos indivíduos, como naturalizadas nas práticas sociais, impondo as classificações,
divisões e valores, entre outras coisas, pelos grupos que as determinam. São as
representações do mundo social, porém, em um campo que não é neutro, ao contrário, de
concorrência e competições. “As representações são sempre determinadas pelos
interesses de grupos que as forjam” (CHARTIER, 1994, p. 17).
Ainda nesse sentido, entendemos que as representações espelham as imagens criadas e
modeladas, de acordo com os interesses de grupos dominantes em uma prática social,
logo, num campo de disputas, “num jogo de interesses de quem tem o poder”. Expressam
198
Atos de escritura 4
mensagens eivadas de verdades que são adotadas como naturais pelos grupos
considerados inferiores. O resultado produzido é sempre imposto a todos, transmitindo a
falsa ideia de que se originasse de todos de (um grupo social) e a todos atendesse.
Justificam e explicam o comportamento dos agentes, guiando um conjunto de ideias,
valores, sentimentos e significados consolidados nas práticas sociais.
Destarte, por meio das representações de Chartier (1994), analisamos as imagens
que são representadas nas práticas pedagógicas dos docentes, do curso de licenciatura de
Artes Visuais, e as relações étnico-raciais, pois são práticas que, entre os agentes com as
suas idiossincrasias, constroem significações para o grupo social. Como afirma Veiga, a
prática pedagógica é “... uma prática social orientada por objetivos, finalidades e
conhecimentos, e inserida no contexto da prática social. A prática pedagógica é uma
dimensão da prática social...”. (VEIGA, 2011, p. 17). Dessa forma, entendemos que, mesmo
sem perceber, na prática pedagógica pelos agentes são traçados discursos revestidos de
poder, ideologia, filosofia, ética e cultura, isso porque nas práticas pedagógicas se dão as
relações sociais entre aluno e professor, professor e aluno, aluno e aluno, professor e
aluno e coordenação.
Acerca das práticas pedagógicas nas universidades, a formação tem na pesquisa a
sua base, com objetivos bem definidos com o que se deseja alcançar, no processo de
ensino/aprendizagem, o autor Marcos Masetto em seu estudo sobre o ensino superior e a
prática pedagógica do professor que considera coerente para a formação dos discentes,
assevera: “É um lugar marcado pela prática pedagógica intencional, voltada para
aprendizagens definidas em seus objetivos educacionais e planejadas para serem
conseguidas nas melhores condições possíveis” (MASETTO, 2003, p. 14).
Para esse autor, as faculdades são lugares especiais:
É um lugar de fazer ciência, que se situa e atua em uma sociedade,
contextualizado em determinado tempo e espaço, sofrendo as interferências da
complexa realidade exterior, que se estende da situação político-econômico-
social da população às políticas governamentais passando pelas perspectivas
políticas e ideológicas dos grupos que nela atual (MASETTO, 2003, p. 14).
199
Atos de escritura 4
sociedade, vivenciadas inclusive por alguns discentes quando assumem a sua identidade
homossexual, ou étnica, como negros e índios e usam marcadores.
A visão é ancorada no pilar da emancipação (SANTOS, 1995), e, nos provoca a
reflexão de uma educação para quebra de padrões impostos pela escravidão, como
tentativa de justificar as diferenças de acesso aos bens sociais e culturais e das
desigualdades e hierarquias produzidas pelos colonizadores entre negros e brancos.
Perquirimos o objeto de estudo com o intuito de, ao final e ao cabo, poder pintar com
outros matizes, a mancha da história dos sujeitos oprimidos (FREIRE, 1971) e condenados
da terra (FANON, 1968), que por muito tempo foram apenas recebedores de programas
sociais compensatórios.
Como possibilitar uma educação humanizadora e libertadora se, na atualidade, na
esfera política, vivemos tempos raivosos, desvelando um cenário de desrespeito aos
professores, artistas e aos grupos inferiorizados: homossexuais, indígenas, negros,
gênero, e outros grupos correlatos. A forma como certos políticos95 se reportam ao ‘covid-
19’, à pandemia e à morte dos brasileiros é um acinte, que se arrasta e se impõe ao Brasil
em 2020, com o aspecto econômico se sobrepondo ao valor da vida.
Essa digressão é para justificar a inflexão que, nas formações de professores e
inclui-se os docentes do curso de Licenciatura em Artes Visuais, possam investir mais em
suas práticas pedagógicas, na conscientização dos discentes, quanto ao respeito às
diferenças em todas as formas presentes nos meios sociais. Neste sentido, Cássio Eduardo
Viana Hissa corrobora com a visão de que a universidade deve enfrentar os problemas da
sociedade: “Para que possa existir tal como deseja e imagina ser: o lugar do respeito à
diversidade, à autonomia e ao exercício coletivo; o necessário lugar da reflexão e da crítica
encaminhadas à própria sociedade da qual emerge” (HISSA, 2013, p. 67).
95
O presidente da república eleito em 2018, Sr. Jair Messias Bolsonaro, ficou conhecido após ter sofrido um
atentado, pois apesar de ter 24 anos de vida pública na política, sem projetos de relevância, era
desconhecido do povo brasileiro. Em entrevista aos meios de comunicação, por várias vezes se reportou à
pandemia do coronavirus “covid-19” com descaso, refutou a ciência, os dados e cuidados que as autoridades
deveriam adotar recomendados pela Organização Mundial da Saúde/OMS. Nenhum projeto de combate à
pandemia foi apresentado pelo governo federal para combater o coronavírus e proteger o povo brasileiro
até a proposta do e-book em Janeiro de 2021. É fala do presidente sobre a pandemia: “pelo meu histórico
de atleta será uma gripezinha”; https://www.youtube.com/watch?. Acesso em 17/12/2020.
200
Atos de escritura 4
teoria de campo de Bourdieu (2010), para ele campo é o espaço, lugar em que os agentes
de acordo com a posição se relacionam, lutam, legitimando os interesses entre os agentes
que o integram, com o intuito de engendrar as práticas sociais, as relações, o poder em
determinadas posições sociais dos agentes, como afirma Pierre Bourdieu “[...] Entendendo
por tal as relações de força entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um
quantum suficiente de força social – ou de capital” (BOURDIEU, 2009, p. 28-29).
Convergindo com essa premissa, Eliana de Oliveira afiança “No campo se
manifestam relações de poder que se estruturam a partir da distribuição desigual de um
quantum de capital social, o qual determina que posição um agente ocupa em seu meio”
(OLIVEIRA, 2006, p.39). Assim, o conceito de campo de Bourdieu (2009), é o lugar e o não-
lugar do poder simbólico. E, essa relação de poder no campo dos docentes, ‘os agentes’
deixam brotar pelas bordas da formação o discurso da diversidade, mas na prática
pedagógica, no curso96 de Artes Visuais, nos parece que a abordagem sobre a cultura afro-
brasileira se configura de forma tímida e pontual por alguns agentes.
Como afirmado, anteriormente, com o foco nas representações dos docentes do
ensino superior, sobre suas práticas pedagógicas, da taxonomia de Bourdieu, acionamos
o conceito de habitus, pois existe uma combinação na relação entre o habitus e o campo
presente nas práticas sociais exercidas pelos agentes. “O habitus contribui para
determinar aquilo que o determina, ou seja, a preservação do campo, dos seus princípios
de funcionamento e de organização, assim como, a reatualização dos antagonismos nele
existentes” (Idem, 1996, p. 47-48).
Para o autor, o habitus, não se trata apenas de uma prática mecânica das ações dos
agentes, elas são mediadas pela intencionalidade, por interesse dos agentes dentro dos
grupos dominantes, no âmbito da ética. Segundo Rosângela Britto (2014), habitus está
relacionado à efetivação de práticas social e coletiva exercidas por um sistema
classificatório de princípios de visão e divisão, e sobre os gostos e interesses diferentes
que constituem signos distintivos. Para Britto: “Uma das funções da noção de habitus é de
ser um princípio unificador para a descrição de um cenário, possibilitando retraduzir as
96Em 2018 como docente de Artes Visuais da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, recebi
alunos da Faculdade de Artes Visuais para o Estágio Curricular Supervisionado. Em conversa com os
estagiários sobre o interesse deles em participarem do Projeto Conexões afroamazônidas arte e culturas
híbridas, diálogos interculturais, aprovado pelo PIBEX, coordenado por mim e a profª Me. Júnia Vasconcelos,
ouvimos a seguinte fala: “sim temos interesse, porque temos professores que se negam a trabalhar a cultura
afrobrasileira no curso de Artes Visuais”.
201
Atos de escritura 4
97
Reconhecemos a importância da Lei nº 11.645/2008, porém anunciamos que neste estudo traremos em
específico da Lei nº 10.639/2003, por abordar as questões do povo negro.
202
Atos de escritura 4
brancos, subjugando os negros a seres objetos, com poderes sobre suas vidas, o corpo e
alma no processo de escravização.
Diante dessa situação degradante, na qual foi submetido o povo negro da diáspora,
após a “libertação”, à margem dos seus direitos sociais e econômicos, os negros passaram
por diversas formas de preconceito e discriminação. O silenciamento da sociedade sobre
o racismo no Brasil foi fundante para reproduzir o mito da democracia racial, a harmonia
das cores, mostra disso é que não havia conflitos de caráter raciais entre negros e brancos,
contribuiu para pintar essa imagem a tese da miscigenação de Gilberto Freyre.
Outro fato a destacar, é a negação da história e cultura dos negros, ou quando não,
aparecem estereotipadas, é resultado do processo histórico/social e educacional que foi
desenvolvido, por meio de grande produção de imagens, inclusive no livro didático e
textos configurados de forma a forjar a imagem negativa dos afro-brasileiros,
reproduzidas e cristalizadas até os dias atuais, no imaginário social. Dessa forma, a cultura
afro-brasileira, entende-se que ela é uma manifestação cultural de menor valor e
interesse, inclusive pela escola, que tende a suprimir uma alteridade humana complexa,
subsumindo-a a uma contextualização do exótico, obliterando, consequentemente, a
valorização e reciprocidade entre culturas.
Segundo Petronilha Silva (2016), a escravidão foi uma condição a qual o negro foi
submetido, quando arrancado de suas raízes maternas, onde eram livres, reis, princesas,
escritores, dominavam técnicas agrícolas avançadas, técnica e arte para trabalhar com o
bronze, como na República de Benim, no século XIII, criou “os bronze de Benim”, obras
saqueadas, estão em museus britânicos, alemão e dos Estados Unidos, parecia impossível
que gente tão "primitiva" e "selvagem" fosse responsável por tal produção.
Era intenção dos escravizadores, apagar a dignidade, as histórias e culturas dos
escravizados, impondo-lhes os sofrimentos da cruel travessia do Atlântico e
tratamento como se fossem animais a serem negociados. Propuseram-se,
mercadores e senhores de escravos, a levar a crer que os escravizados eram
originários de povos sem história, sem cultura (SILVA, 2016, p. 18).
98
Cf. em COELHO, Wilma de Nazaré Baía. A cor ausente: um estudo sobre a presença do negro na formação
de professores – Pará, 1970-1989. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.
203
Atos de escritura 4
99
Cf. em: A Cura - Lulu Santos - LETRAS.MUS.BR. Disponível em: https://www.letras.mus.br › lulu-santos.
Acesso em 28 mar. 2021.
204
Atos de escritura 4
Este estudo está em fase inicial, como revelado na introdução, mas consideramos
que no campo docente, o Projeto Pedagógico de 2007, do curso de licenciatura de Artes
Visuais, desvela o interesse didático/pedagógico/estético em trabalhar a temática das
relações étnico-raciais da seguinte forma: 5.1 NÙCLEO DE TEORIA, HISTÓRIA E
ESTÉTICA. Este núcleo se configura como a base teórica do curso. Na sua estrutura
elencam os processos compreensivos e conceituais das artes, no âmbito da visualidade e
de seu curso na história do homem. Destacam neste Núcleo o objetivo de implementar o
que trata o escopo na Lei n° 10.639/2003 referente à História e Cultura Afro Brasileira e
Africana, para a educação das relações étnico-raciais.
Conclusões iniciais
Antes da Lei nº 10.639/2003, os professores tiveram formação num contexto
histórico de invisibilidade sobre o negro no Brasil, na forma do idealismo nacional, com a
sociedade brasileira passando pelo processo de miscigenação, negando os conflitos
étnico-raciais, foram formados acreditando no mito da “democracia racial” (MUNANGA,
1999). A universidade que formou os profissionais da educação, que atuam hoje,
formando outros professores se baseou numa perspectiva curricular eurocêntrica,
negando a existência de negros e índios, portanto, excludente e, por vezes,
preconceituosas em suas práticas.
Diante dessa premissa, a Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da
História e Cultura Afro-brasileira e Africana nos currículos das escolas públicas e privadas
e na formação de professores, em 2021, celebra dezoito anos que ela foi assinada.
Passadas quase duas décadas, a formação dos discentes de Artes Visuais, sobre a temática
das relações étnico-raciais, está pautada na citada Lei? Este estudo objetivou provocar
discussões sobre as práticas pedagógicas dos docentes e as relações étnico-raciais, do
Curso de licenciatura em Artes Visuais, na Universidade Federal do Pará, considerando
que as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais, para a Educação das Relações
Étnico-Raciais, e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana preveem
que as licenciaturas incluam a discussão da questão racial, como parte integrante da
matriz curricular, inclusive nos conteúdos de suas disciplinas e atividades curriculares,
atentando para os conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito à população
negra (BRASIL, 2004).
205
Atos de escritura 4
206
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São
Paulo: Martins Fontes, 1988.
BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte: Anos Oitenta e Novos Tempos. 3.ed.
SP: Perspectiva, 2009.
BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino da Arte. - São Paulo: Cortez,
2002.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 12. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
BOURDIEU, P. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa. São
Paulo: Papirus, 1996.
BRASIL, Ministério da Educação. Lei nº 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Brasília, 1996.
BRASI, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília, DF. Outubro, 2004.
CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 97-113, 1994.
COELHO, Wilma de Nazaré Baía; COELHO, Mauro Cezar. (org.). Entre Virtudes e Vícios:
educação, sociabilidades cor e ensino de história. São Paulo: Editora Livraria da Física,
2014.
207
Atos de escritura 4
MORIN, Edgar. O Método 4: as ideias. Tradução: Juremir Machado da Silva. Porto Alegre:
Sulina, 2002a.
NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio M. Martins. Bourdieu & a educação. 3. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
PIMENTA, Selma Garrido. [et. al.] (org.). Saberes pedagógicos e atividades docentes. 7.
ed. São Paulo: Cortez, 2009.
RIBEIRO, Ana Paula Alves; GONÇALVES, Maria Alice Resende. (org.). História e Cultura
africana e afro-brasileira na escola. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1. ed. São Paulo: Companha das Letras,
2019.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23. ed. rev. e atual. São
Paulo: Cortez, 2007.
VEIGA, Ilma Passos Alencastro. A prática pedagógica do professor de Didática. 13. ed.
Campinas, SP: Papirus, 2011.
208
Atos de escritura 4
Pensar em compor uma pesquisa em arte é refletir sobre o que deseja o artista-
pesquisador, o que o intriga. Aliás, não há pesquisa se não há afetação, dúvida. Assim como
não há pesquisa que não atravesse a história de vida do pesquisador e de sua visão de
mundo. A relação entre o objeto pesquisado e o artista criador de uma pesquisa em arte é
assim: íntima, confusa, caótica, movente e pulsante. Por este motivo, esta tecitura escrita
será feita por linhas cruzadas, percorridas alternadamente em movimentos cima-baixo e
outros que lhe são perpendiculares, para compor uma trama textual de produção do
conhecimento em arte.
Maquinação escrita por entre rastejos e sobrevoos de recortes de vivências e
afetações desta criatura criadora, com o fenômeno imaginado e transmutado em uma
invenção de pesquisa, em processo de doutoramento, que seguirá atravessada por outras
vozes, dos que vieram antes e produziram outros enredos, convidados acionados nas
dobras e esquinas da movência do ato de escrever e pesquisar em arte.
100
Ensaio produzido como resultado da disciplina Atos de Escritura, disciplina ofertada ao curso de
doutorado, do Programa de Pós-graduação em Artes – PPGARTES, vinculado ao Instituto de Ciências da Arte
– ICA, da Universidade Federal do Pará – UFPA.
101
Professora pesquisadora da Escola de Teatro e Dança (ETDUPA) e do Programa de Pós-Graduação em
Artes (PPGARTES-ICA-UFPA); Doutora em História Social (PUC-SP). E-mail: ivmaxavier@gmail.com.
102
Doutoranda (PPGARTES-ICA-UFPA); Mestre em Psicologia (PPGP-IFCH-UFPA); Atriz (ETDUFPA);
Psicóloga Clínica (UNAMA); Palhaça. E-mail: florespsi@gmail.com.
103
Coletivo de teatro da cidade de Belém do Pará, em ação desde 2014, tem como linha de atuação a cena
protagonizada por mulheres. Inicialmente composto por seis amigas-atrizes, mas que, ao longo do tempo,
tornou-se um coletivo movente, que se rearranja a cada montagem, tendo as atrizes fundadoras Wlad Lima
e Andréa Flores, sempre envolvidas.
209
Atos de escritura 4
104
Nesta trama textual utilizarei a primeira pessoa do singular e do plural como forma de sublinhar a relação
intersubjetiva presente no texto, dando visibilidade ao vivido e à polissemia de vozes envolvidas na
produção de conhecimento, assumindo a não neutralidade desta pesquisadora na composição de uma
pesquisa em arte.
210
Atos de escritura 4
Teço, fio a fio, uma palavra, verbo, ação, criação denominada borboletar-SI como
maquinação desse corpo-em-arte em devaneio poético, que em perspectiva
fenomenológica da imaginação de Gaston Bachelard (1988), aciona uma ação inovadora
211
Atos de escritura 4
[...] certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a nossa vida
dando-nos confiança no universo. Um mundo se forma no nosso devaneio, um
mundo que é o nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades
de engrandecimento de nosso ser nesse universo que é o nosso (BACHELARD,
1988, p.8).
[...] a prática teatral é, antes de tudo, uma experiência, uma experiência de si, um
si em experiência [...] A transformação que a prática teatral pode, talvez,
provocar em alguns indivíduos, sob determinadas circunstâncias, tem seu modo
de constituir-se, de configurar-se como prática; ela incita um modo de agir sobre
o mundo, de estabelecer uma relação com a alteridade. Essa transformação
extrapola a individualidade do ator porque perpassa a atuação de um sujeito
criador, e não somente de um indivíduo artista (ALCÂNTARA, 2013, p. 903).
212
Atos de escritura 4
Assim sendo, percebendo-me encasulada pela própria trama de fios que dão
origem e que, ao mesmo tempo, constituem o ato de criação escrita sobre as potências de
cuidado de si e de outres, afirmo que nesta pesquisa, cuidado e teatro são acontecimentos
que se aproximam. No entanto, meu olhar não está direcionado ao teatro como
ferramenta ou instrumento, mas deseja debruçar-se sobre potências acionadas pela
poética cênica em si mesma. Assim, questiono-me: como potências de cuidado de si e de
outres são acionadas no Teatro Dadivoso? Como operam nos fazeres cênicos do Coletivas
Xoxós, tanto entre as artistas, quanto junto ao público?
No caminho tecido para respondê-las, aciono modos femininos amazônidas
singulares de invenção poética, resistentes à lógica neoliberal e a políticas culturais
excludentes, como também retomo a maquinação do meu corpo-em-arte, através da
epistemologia poética Borboletar-SI, tramando dois importantes aspectos do
acontecimento teatral: sua capacidade de afetação e transformação, que aproximei do
sentido de potências de cuidado de si e de outres.
105 Excerto de Cântico Negro, composto por José Régio, mas que conheci na voz da Maria Bethânia.
213
Atos de escritura 4
214
Atos de escritura 4
[...] que algo está acontecendo e que nosso saber é mínimo nesse acontecer.
Sinaliza a força de expansão da vida e da atividade que podemos viver. [...]
experimentar afetos sinaliza a enunciação de outras formas de agir a partir dos
modos de expressão que vamos percorrendo. Quando afetados pelas audições e
visões, gostos e cheiros, toques de vidas que nos forçam a pesquisar na
historicidade de um tempo que acontece, percebemos que nossas questões são
feitas de vida. Assim, exercitamos uma ética e expandimos nosso conhecer nas
relações de uma vida de todos em nós, de uma vida de si com todos. Imanência
de relações no corpo que cria passagens com o que força a experimentar nosso
pensamento: afectos e perceptos que já não são de um ou de outro, mas da vida.
215
Atos de escritura 4
contato com o objeto, tornando-me parte dele, uma vez que, na constituição do plano
comum cartográfico, “o comum porta o duplo sentido de partilha e pertencimento”
(KASTRUP; PASSOS, 2016, p. 21).
Constitui-se, assim, como um procedimento cartográfico adotado por esta
pesquisadora. Larvar o território, colher pistas, lançar-me a experimentAÇÃO e ao
processo de transformação, compondo a equipe como diretora de palco e participando do
processo de criação cênica Divinas Cabeças do Coletivas Xoxós, nas salas de ensaio e nas
exibições públicas, seguindo como princípio cartográfico, o deixar-se transformar, para
conhecer o objeto pesquisado. Deixar o caminho constituir um plano, um traçado das
experiências de cuidado.
Pensar o devir implica, ao mesmo tempo e necessariamente, experimentá-lo de
modo diverso. [...] Todo ser é sempre meio, não um começo, nem um fim. Meio
extremo de afirmar a diferença, de diferenciar o que difere, de fazer com que nos
tornemos cada vez mais diferentes do que somos e distante do que éramos; mais
plurais por singularidade, mais singulares por comunidade de ser, fazendo
coexistir, vibrar e ressoar em nós o que difere; meio de fazer com que nos
diferenciemos cada vez mais não apenas dos outros, mas sobretudo de nós
mesmos (FUGANTI, 2012, p.76).
216
Atos de escritura 4
poética espiralado e movente. Assim, esses dois movimentos, devir rastejos de lagarta e
devir voar de borboleta se encontram, o tempo todo, na constituição desta trama de
pesquisa, entram em fricção, no território de mulheres, revelando suas forças e potências
moventes na superfície casular.
Compreendo o encasular como força impulsionadora do encontro com a pesquisa
em duas dimensões. A primeira é espacial, quando a atitude-força do coletivizar se assume
na habitação do local onde a pesquisa se constitui, boa parte do tempo, o Teatro do
Desassossego, localizado no subterrâneo, no porão da Casa Cuíra, onde permaneço como
parte integrante da equipe de criação do Coletivas Xoxós, atuando como equipe técnica,
assumindo a direção de palco de quatro espetáculos do coletivo, acompanhando os
ensaios, montagens cênicas e apresentações públicas. Processo a que tenho denominado
de residência artística e de vida.
A segunda dimensão do casulo é temporal, quando do processo de encasular-se,
imersa no Coletivo, nas intervenções cênicas e da pesquisa, na força que age em
movimento de criação, deixando fluir a produção do conhecimento, ao mesmo tempo, em
que segue os processos produzidos e enunciados pelas mulheres de teatro da floresta, na
fluidez de seus percursos criativos, seguidos enquanto fluidez da própria pesquisa e da
pesquisadora, que também intervém em mudanças e nas derivas transformadoras dos
processos de criação cênicos e dos atos de criação da escritura da tese de pesquisa.
Inevitavelmente, enquanto artista criadora, esta pesquisadora aciona a fruição do
espaço-tempo casulo, de maneira constante, percebendo-o como parte de uma espécie de
processo digestivo, que se assemelha ao que permite a transformação, a metamorfose da
lagarta em borboleta. Percebo-me devorando de alimentos, que nesta pesquisa são
leituras, experimentações artísticas e afetações delas decorrentes e, posteriormente,
realizando processo autofágico em que regurgito experiências e vivências, enquanto
linhas que, se entrecruzando, avizinhadas de outras, para tecer o invólucro que se
constitui a própria trama desta pesquisa em arte.
Por fim, esta trama de pesquisa, em processo de construção é, desde já,
atravessada pela palavra poética de mulheres, como Clarice Lispector, Alícia Maria e Paula
Glenadel, dentre outras, que poderão ser agregadas à escrita como pensadoras com as
quais desejo estabelecer pontes, exercício de escrever com mulheres criadoras. Prospecto
que é no “entre”, no casulo onde ocorre os encontros, como uma das mulheres que
compõem o Coletivas Xoxós, e outres que também compuseram a grupalidade, em algum
217
Atos de escritura 4
218
Atos de escritura 4
219
Atos de escritura 4
Em texto escrito por Ivone Almeida e Wlad Lima (2018), a feitura cênica
produzida pela coletividade feminina denominada de Teatro Dadivoso ou Teatro da Cura
advém da noção de dádiva de Marcel Mauss, antropólogo e sociólogo, considerado o
principal sistematizador contemporâneo da Teoria da Dádiva em sua obra “Ensaio sobre
a Dádiva”. Segundo estas autoras, a Teoria da Dádiva foi analisada por Mauss como
fundamento da dimensão de solidariedade ou de sistemas de reciprocidade presentes nas
sociedades, como um Fato Social Total, ou seja, fenômeno que se repete nas relações
sociais, como uma forma particular de produção e de consumo.
A partir da proposição teórica de Mauss, a Dádiva pressupõe integração dinâmica
das ações de dar, receber e retribuir o maná nas relações sociais. A circulação da Dádiva
acontece através da troca, da partilha do maná, espécie de representação simbólica da
força-ação, que decorre da relação intersubjetiva, entre quem oferta algo, como parte de
si mesmo, e alguém que recebe esta coisa, com uma energia de retribuição. Pessoas se dão,
se doam a outras pessoas que, por sua vez, passam a dever algo a quem ofertou a doação,
em um movimento-ação dinâmico e potente, de ir e vir, de retroalimentação. Em sua
produção, Mauss compreende que a Dádiva resulta em crescimento da consciência do ser
em relação a si mesmo e ao outro (ALMEIDA; LIMA, 2018).
220
Atos de escritura 4
O teatro, que ora chamamos de teatro da cura, quer ir além do teatro como
prática de autodescoberta e de compartilhamento. O teatro da cura quer, como
seus procedimentos poéticos de atravessamentos, alterar os campos energéticos
do corpo e do corpo-casa; quer através do uso das figuras de linguagem - o
quiasma e a metáfora - irradiar vibrações que cuidem dos participantes do ato,
sejam eles atuantes ou aqueles que o teatro ordinário chama de espectadores. O
teatro da cura quer atravessar corpos e paredes, quer religar dimensões e
mundos, mesmo que em doses homeopáticas – doses homeopáticas de energia
de cuidado, pertinentes e insistentes, a ponto de curar (ALMEIDA; LIMA, 2018,
p. 8-9).
221
Atos de escritura 4
se trata de uma poética feminina, revelando-se como ato político de mulheres de teatro
desta cidade, entre feminismos, resistência e afetos que revolvem outras vidas. Assim
compreendo que esta pesquisa se insere na virada histórica em curso, no campo das Artes
Cênicas, bem proclamada pela atriz e diretora de teatro Julia Varley (2010, p. 26, 29-30):
222
Atos de escritura 4
223
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ALCÂNTARA, Celina Nune de. O trabalho do ator e a arte de ficcionar a si mesmo. Revista
Brasileira Estudos da Presença. Porto Alegre. v. 3, n. 3, p. 902-922, 2013.
BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In:
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da. Pistas do método da
cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2009. p.52-75.
FERRACINI, Renato. Apresentação. In:_____ (org.). Corpos em fuga, corpos em arte. São
Paulo: Aderaldo & Rothschild Editores: Fapesp, 2006. p.13-27.
224
Atos de escritura 4
ICLE, Gilberto. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.
KASTRUP; V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP,
V.; TEDESCO, S. Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano
comum. Porto Alegre: Sulina, 2016
LISPECTOR, C. Os desastres de Sofia. In: TERRA; H.; RUFFATO, L. (org.) Uns e outros.
Porto Alegre: Dublinense, 2017.
VARLEY, Julia. Premissa. Pedras d’água: bloco de notas de uma atriz do Odin Teatret.
Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2010. p. 23-31.
225
Atos de escritura 4
A grande borboleta
Leve numa asa a Lua
E o sol na outra
Entre as duas a seta
A grande borboleta
Seja completa
Mente solta
(Caetano Veloso)
106
Atriz e Arte educadora. Bacharelado em Interpretação Teatral e licenciatura em Artes Cênicas –
Universidade de Brasília. Especialização em Pedagogia do Movimento. – Universidade do Estado do Pará.
Mestranda em Artes no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. E-mail:
ygaluppo@gmail.com
107
Professor e orientador do PPGARTES. Mestrado em Estudos Teatrais – University of Leeds. Doutorado
em Práticas Performáticas – University of Exeter. Pós–doutorado com pesquisa sobre Mímica Corpórea em
Pomona College, University of Claremont – Califórnia. E-mail:cesarioaugusto@yahoo.com.br
226
Atos de escritura 4
108 Método criado pela bailarina, coreógrafa e professora brasileira Lenora Lobo, baseado nos estudos do
movimento consciente do dançarino, coreógrafo e diretor Klauss Vianna (1928-1992) e nos estudos do
movimento propostos pelo dançarino e teórico austríaco Rudolf Laban (1879-1958). LOBO, Lenora; NAVAS,
Cássia. Teatro do Movimento: um método para o intérprete criador. Brasília: LGE, 2003.
109
Teatro que usa, como seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e montadas em função da
tese sociopolítica do dramaturgo. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia
Pereira São Paulo: Perspectiva, 1999, 512p, p.387.
110
Teatro que enfatiza uma relação explícita, tanto textual quanto cênica, com o real factual, no sentido
político, social, coletivo ou individual. A abrangência do termo engloba uma grande variedade de modos de
criação de forma a evidenciar suas fontes documentais, que podem advir de transcrições, gravações,
entrevistas, depoimentos, documentários, fotografias, entre outros, e podem incluir o deslocamento
espacial para algum site especifico (isso é, espaços que se tornam teatrais pelo uso, mas que tem outras
funções na vida real), ou serem transmitidos ao vivo pela internet, em tempo real: o importante é que
produzam um “efeito de real” (BARTHES, 2004), um efeito que confira alguma legitimidade e evidencie a
relação do que traz a arte com o real verdadeiro, ou até mesmo, que seja realmente verdadeiro o que se
tome como arte. CARREIRA, André; BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria. Entre mostrar e vivenciar: cenas do
teatro do real. Dossiê Teatro do Real. Revista Sala Preta, v.13. n-n º 02, 2013, p.34 Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/69074 Acesso em: 01dez.2020.
227
Atos de escritura 4
Todos nós temos uma origem. Viemos de algum lugar, família, povo e ancestralidade.
Temos um nome e sobrenome. E um tipo sanguíneo e DNA específicos. Somos
constituídos por um conjunto de fatos, circunstâncias e experiências de vida únicas.
228
Atos de escritura 4
Recuperar esse lugar da “poesia perdida” a que se refere Lobo, significa a meu ver, a
possibilidade de revisitar estes lugares como artistas, transformando-os através de
nossos corpos e movimentos em poéticas de origem111, e desta forma, poder trilhar
caminhos para uma interpretação constituída a partir de traços de nossa identidade, pois
“como humanos, não podemos separar o artista de nossa condição de homens e mulheres
impregnados de histórias, afetividades e padrões mentais”. (LOBO, 2003, p.192)
Esta mesma identidade que parece fragmentar-se neste período globalizado onde
ao mesmo tempo em que diminuem-se fronteiras geográficas e de espaço e tempo,
provoca-se diversas mudanças nas dinâmicas sociais, refletindo o processo de
desenraizamento e homogeneização cultural pois:
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos
sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se
tornam desvinculadas-desalojadas- de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem “flutuar livremente”. (HALL, 2004, p.75)
111
O termo poéticas de origem é designado pela autora referindo-se ao material emergido das memórias e
histórias de vida traduzido, reorganizado e transformado em cena durante o processo de criação.
229
Atos de escritura 4
230
Atos de escritura 4
112
Manifestação parateatral que floresceu no final dos anos 50 na Europa e Estados Unidos, sob a liderança
de Jean-Jacques Lebel, Allan Kaprow e outros. As raízes do happening estão nos movimentos de contestação
radical da primeira metade do século, principalmente no Dadaísmo e no Surrealismo. A estrutura do
Happening envolve, obrigatoriamente, a participação ativa e física do espectador. AS linguagens
estimulantes dependem exclusivamente da inventividade do criador, já que não há restrições ou limites.
Projeções, música, efeitos sonoros, cores, luzes, texturas, volumes, organizações do espaço, ritmos, tudo,
pode servir de estímulo ao Happening. VASCONCELLOS, Luiz P. Dicionário de Teatro. São Paulo: L&PM,
1987, p.100.
113
A performance ou performance art, expressão que poderia ser traduzida por “teatro das artes visuais”,
surgiu nos anos sessenta (não é fácil distingui-la do happening, e é influenciada pelas obras do compositor
John Cage, do coreógrafo Merce Cunningham, do videomaker Name June Park, do escultor, Allan Kaprow).
A performance associa, sem preconceber ideias, artes visuais, teatro, dança, música, vídeo, poesia e cinema.
[...] Enfatiza a efemeridade e a falta de acabamento da produção, mais do que a obra de arte representada e
acabada. O performer não tem que ser um ator desempenhando um papel, mas sucessivamente recitante,
pintor, dançarino, e, em razão da insistência sobre sua presença física, um autobió-grafo cênico que possui
uma relação direta com os objetos e com as situação da enunciação. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro.
Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira São Paulo: Perspectiva, 1999, 512p, p.284.
231
Atos de escritura 4
o artista é convocado a se colocar. Ele assume sua obra, seu discurso, se despe das
personagens e, em seu próprio nome, assume a cena para trazer sua visão de
mundo, sua história, seu próprio corpo marcado por essa história e visão. (LEITE,
2014, p. 37)
114 O Ato de desvelamento é baseado num esforço de total sinceridade, que exige do indivíduo a aceitação
de uma renúncia a todas as máscaras, mesmo às mais íntimas e necessárias ao seu equilíbrio psíquico.
ROUBINE, Jean J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1998, p.192.
115 O performer é aquele que fala e age em seu próprio nome (enquanto artista e pessoa) e como tal se dirige
ao público, ao passo que o ator representa sua personagem e finge não saber que é apenas um ator de teatro.
O performer realiza uma encenação de seu próprio eu, o ator faz o papel do outro. PAVIS, Patrice. Dicionário
do Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999, 512p, p.285.
232
Atos de escritura 4
Denise Stoklos e o Teatro Essencial me inspiram, desde o início dos meus estudos
nas artes da cena. Assistir aos seus espetáculos, me remete a uma experiência mágica e
transformadora, tamanha vitalidade e genialidade da atriz em cena. Lembro-me de sair
de seus espetáculos em estado de catarse. Acredito que além do talento, inteligência e
virtuosismo artístico, Denise me alcançou pela linguagem. Por falar com inteireza,
coragem e criatividade de assuntos importantes e universais, articulando-os a nossa
realidade, e a sua vida real, de maneira crítica, verdadeira e arrebatadora, (mas não menos
poética) sob a ótica de uma mulher, atriz, brasileira, latino-americana, fazendo-me
questionar sobre o teatro que me interessa realizar e o que tenho a dizer através dele, de
modo que parece-me natural, após tantos anos, considerar esta vivência preciosa e
exemplo do uso da autobiografia imprimindo ao teatro mais humanidade.
Suas obras são repletas de reflexões e questionamentos expressos no diálogo
pessoal que estabelece com escritores e obras de outros artistas como Henri Thoreau
(Desobediência Civil/1997), Louise Bourgeois, (Louise Bourgeois – Faço, Desfaço,
Refaço/2000) com o dramaturgo Eurípides cuja adaptação livre de Medéia, (Des- Medéia/
1994) discute o feminino e a representação social e política da mulher de seu tempo, além
de outros pensadores cujas obras operam na sustentação da dramaturgia autoral (em
partes ou integralmente) de seus espetáculos.
No trecho acima, Stoklos reivindica a presença viva do ator em sua totalidade,
rompendo com artifícios que limitem sua conexão com a realidade. Esta é a única condição
para a realização do Teatro Essencial.
233
Atos de escritura 4
Um teatro que não careça de outras técnicas, não terá nenhuma base na
iluminação, no cenário, no figurino. A cena que estiver montada na essência do
rito teatral, faz as poltronas do teatro desafiarem o fugaz, tornando-se menos
real que o evento no palco – é quando o fenômeno do teatro rompe os sistemas
da terra. Sistematizando o universo, revela-o na contradição alucinada de caber,
por um momento que seja, o maior dentro do menor (sorri sereno o ator-mago,
o ator magno, o ator) (STOKLOS, 1993, p. 46).
116
Representa a fase de preparação consciente do corpo do ator-bailarino através de três etapas:
sensibilização, conhecimento mecânico e conhecimento expressivo. LOBO, Lenora; NAVAS, Cássia. Teatro
do Movimento: um método para o intérprete criador. Brasília: LGE, 2003, p.76.
234
Atos de escritura 4
235
Atos de escritura 4
Observo que o gesto do desenhar era elucidado por outros gestos, sentidos e
impressões corporais que transformavam o ato de escritura numa experiência ritualística
de entrega e fé, ao confiar à escrita o poder de tornar algo possível e real.
Esta experiência me remete aos primórdios da civilização onde era atribuída à
escrita, uma capacidade mágica. O caçador ao desenhar nas paredes das cavernas sua
atividade principal, pretendia rever esta experiência que pertence a todos, para revendo-
a, ter uma nova oportunidade de evolução sobre ela, transcrevendo o mundo que via para
melhor elaborá-lo. Desenhar um animal poderia significar o mesmo que capturá-lo, em
outra instância, assim como vestir as suas peles possibilitava ao homem viver a crença de
tornar-se o próprio animal.
A dramaturgia desta pesquisa, assumirá sua “função mágica” na medida em que for
se constituindo, processualmente, pele sobre pele, a partir das múltiplas conexões entre
os vários signos cênicos e não somente o texto escrito, cuja construção apresentará um
entrelaçamento com os diversos elementos cênicos, como uma tessitura de fios de seda,
delicada, constante e potente.
117
Texto publicado no livro: Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces.
(org.) Marcos Antônio Alexandre, Belo Horizonte: Mazza edições, 2007, p.16-21.
236
Atos de escritura 4
CONCLUSÃO
Este ensaio apresentou a pesquisa Poéticas de Origem: Autobiografia como fonte de
criação e formação artística desde sua gênese, fazendo um percurso pelos seus
fundamentos norteadores, motivações iniciais e descobertas em curso, até as primeiras
experiências de criação.
Pensar o uso da autobiografia no teatro hoje implica um olhar atento e reflexivo
para campos de estudo que destrincham e atualizam o tema, como o Teatro do Real e o
Teatro Documentário, propositores de determinados modos de se fazer e pensar o teatro
contemporâneo debruçado sobre as histórias reais de seus atuantes e seu tempo. Em
contato com estas abordagens, redimensiono meu olhar e práticas de trabalho movida por
novas inquietações e possibilidades estéticas.
Duas necessidades convergem neste estudo: a criação de uma poética teatral
pautada na vida real, e a autoformação de artista a partir do exercício da mesma. Empresto
a imagem da feitura da borboleta como análoga à feitura da cena e do ator, para refletir
sobre as identidades do artista e as materialidades que o constituem e fazem florescer sua
arte.
Também, a investigação de potencial artístico e criador de minhas histórias de
vida, me possibilitam, como pesquisadora, a adentrar meu lugar de fala, me
reconstituindo e reinventado como intérprete criadora e inspirando caminhos para
discussões de questões atuais e emergentes como ética e a decolonialidade no teatro.
237
Atos de escritura 4
Todos nós temos uma poética. Uma poética da existência. Uma poética de
resistência. Verdade potente e urgente que merece ser acolhida. Ela se manifesta em
nossas memórias, identidades, olhares, construções, vínculos, afetos, desafetos, encontros
e desencontros.
Essa verdade deve ser investigada, tocada com coragem e a propriedade de quem a
viveu e é o sujeito de sua história.
O que o artista tem a dizer? O que sua arte tem a ver com a vida? Onde há o encontro
entre passado e o presente? Quando ele se materializa em obra de arte? O que posso
aprender, transformar e ressignificar a partir dessa busca? O que isso importa?!
Importa. Importa recomeçar de onde parei. Importa tocar nessa verdade de maneira
existencial. Para isso eu vivo. Em tudo o que faço e acredito.
238
Atos de escritura 4
239
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
ABUJAMRA, Marcia. A alma, o olho, a mão ou o uso da autobiografia no teatro. Dossiê
Teatros do Real: memórias, autobiografias e documentos em cena. Revista Sala Preta, v.
13, n. 2, 2013. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/69077. Acesso 20 jan. 2021.
BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
240
Atos de escritura 4
PAVIS, Patrice. Dicionário do teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 1999.
ROUBINE. Jean J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
STOKLOS, Denise. Teatro Essencial. São Paulo: Denise Stoklos Produções, 1993.
241
Atos de escritura 4
118
Doutorando PPGartes-UFPA, Mestre em História Social da Amazônia-UFPA, Graduado em História e
Graduando em Educação Física-UFPA. Artista circense e-mail: yuremartins88@gmail.com
119
Professora pesquisadora da UFPA. Pós-doutorado em Estudos de Teatro (Universidade de Lisboa-PT).
Doutorado em Letras (UFMG). Coordenadora do Projeto de Pesquisa: Memória da Dramaturgia Amazônida:
Construção de Acervo Dramatúrgico. (behneafonso@gmail.com).
120
Os termos usuais: introdução, desenvolvimento, conclusão, aqui substituídos por termos que compõem
o espetáculo circense.
242
Atos de escritura 4
memórias de outrem. Essas recordações alheias, unidas as minhas, vêm formando certa
memória social (SANTOS, 2003) com a qual venho trabalhando desde 2019, quando
ingressei no doutorado.
Como historiador de formação, aprendi que “historiador não escreve ensaio”, mas
como artista circense que produz, culturalmente, nesta área e que mais, recentemente, se
formalizou como pesquisador em artes, me vejo a experimentar novas cores e sabores em
meu trajeto de pesquisa – o que inclui este trabalho. Tanto na questão de produção de
conhecimento, quanto na produção artística e cultural. O fato é que estes dois semestres
de disciplinas, ainda que em meio a uma pandemia, já me mudaram bastante. Seja na
forma de ver e pensar minha pesquisa, seja no modo de pesquisar propriamente dita.
Aprendi que um historiador que trabalha com memórias, deve buscar ao máximo
a “isenção”, separar o seu eu, das memórias do seu objeto (THOMPSON, 1992). Mas, para
mim, isso é impossível! A minha relação com as artes, em particular o circo de rua e o
teatro de rua, me fazem abraçar o conceito de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009).
Conceito esse que só me foi apresentado enquanto estudava para os testes da seleção de
doutorado.
Cortejo
Como mencionei acima, há muitos anos, eu faço registros da arte circense de rua.
Inicialmente, registros meus, em seguida, de meu grupo, a Companhia de Circo Nós
Tantos, e mesmo antes disso, já registrava com fotos e vídeos o trabalho de companheiros
do circo de rua. Mais, recentemente, pus meu gravadorzinho para trabalhar e me lancei
como um historiador oral, caçador de vozes e memórias...
E veio a pandemia e me tolheu de fazer mais e mais entrevistas. Como se diz no
circo e na rua, “o espetáculo não pode parar” e nem a pesquisa de um artista-pesquisador.
Estou me esforçando para que eu consiga pesquisa de artes, em artes e sobre artes.
Espero, ao menos, conseguir transitar entre duas dessas formas. E, por mais que as
pessoas que eu costumava entrevistar, não possuam com frequência um celular ou
computador, com uma boa internet à sua disposição, alguns já deixaram registros
(comigo) ou mesmo um fio de Ariadne, para me guiar neste labirinto.
Em 2017, participei do projeto Nomadista da também pesquisadora do Programa
de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES-UFPA), Carol Castelo. Na ocasião, fui o treinador
de malabares da artista-pesquisadora e servi como ponte entre a mesma e o “Encontro
Semanal de Malabares e Circo”, evento de vivências e treinos dos artistas circenses de rua,
243
Atos de escritura 4
do qual participo desde 2007, e que ajudei a organizar entre 2015-2017. Além do
espetáculo resultante da pesquisa Nomadista, muitas entrevistas foram feitas com meus
companheiros do “encontro”, e boa parte dessas entrevistas estão no Youtube 121. Os
materiais que venho reunindo e minhas memórias pessoais (muitas registradas em
fotografias) são o combustível deste trabalho.
Figura 1 - Foheto “Nomadista”
121
https://www.youtube.com/channel/UCxhV73eFx5F63g-2bSDGA4Q/videos
244
Atos de escritura 4
O “malabarear” foi o primeiro verbo de ação que pude perceber. É uma palavra que
faz parte do dicionário de quem é artista circense de rua, quem pratica e se dedica a essa
e outras artes de circo. Malabarear vai muito além de treinar malabares, significa a
convivência e o ser reconhecido por outros que também vivem o malabarear.
Segundo Ney Sumaquila: “Malabarear, para mim, significa a prática do malabares.
E falar malabarear para mim, foge um pouco daquele termo (...), é diferente de trabalhar.
(...) Eu vou trabalhar é diferente de eu vou malabarear122”. Quando alguém para de
malabarear, perde o jeito, perde o tempo de se apresentar123. O termo malabarear ou
malabariar, está tanto relacionado à prática de malabarismo, como ao prover o próprio
122
Entrevista com Ney Sumaquila (Livaney Oliveira) realizada em 20/01/2021 via Google Meet
123
Pesquisei o termo “malabarear” em diversos dicionários virtuais pela internet e em apenas um a palavra
foi indexada. Em https://context.reverso.net/translation/spanish-english/malabarear a palavra malabarear, no
idioma espanhol, está relacionada com a ação de fazer malabarismo, como um verbo.
245
Atos de escritura 4
sustento, com alguma forma de linguagem que possa se relacionada com artes e ser
executado na rua ou praça pública.
Segundo Breno Siqueira: “Eu trabalho na rua, as pessoas confundem quem trabalha
na rua, quem vive da rua, com quem mora na rua124”. Tanto Ney como Breno são artistas
circenses de rua, de Belém. Enquanto para Ney malabarear é diferente de trabalhar
(formalmente), para Breno, a palavra trabalhar pode, perfeitamente, ser empregada para
arte circense de rua. Pequenas variações linguísticas em grupos de regiões, relativamente,
próximas podem ser explicadas pela “Teoria da Variação” e tem o objetivo de descrever a
variação e a mudança linguística e seus determinantes sociais e linguísticos (MOLICA et
al, 2008).
Ney cresceu no município de Marituba, enquanto Breno em Ananindeua, ambos
municípios da região metropolitana de Belém e cortados pela Br-316. Localidades que,
até o início da década de 1990, serviam como cidades dormitórios para trabalhadores da
Capital Belém. Apesar de trabalharem com a mesma forma de arte e tendo números
circenses semelhantes (malabarismo com claves em cima de um monociclo girafa) e de
terem se bancado em viagens, por países da América Latina, através do circo de rua.
Até onde pude averiguar, a família de Breno é do interior estado do Pará, enquanto
a família de Ney tem raízes no Nordeste do país. Enquanto o primeiro preferiu viajar por
estados do Sul-Sudeste, o segundo optou por estados do Nordeste. Aplicando a Teoria da
Variação linguística, nesse caso, podemos supor que devido às trajetórias pessoais, ambos
se referenciam ao ato de apresentar números circenses de rua com palavras distintas e
conceitos, relativamente, diferenciados.
Entrevista dada para o Documentário “Sinal Fechado” de Alexandre Santos e Jurandyr França. Disponível
124
em: https://www.youtube.com/watch?v=3j5eAuWQGC8
246
Atos de escritura 4
125
Este artigo informa que quase todos os “artistas de rua” abordados eram homens e músicos. O que me
causa certo estranhamento pelo fato de não terem encontrado malabaristas. Uma vez que eventos com a
Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, realizados desde o início dos anos 2000, são tradicionalmente
organizados por artistas circenses de rua, em grande parte malabaristas. E até poucos anos atrás a maioria
das convenções e festivais de circo se mantinha exclusivamente nas regiões Sul e Sudeste do país.
247
Atos de escritura 4
Esta questão, infelizmente, pode ser estendida para além do público. Em janeiro de
2017, após ter sido convidado para participar do V Festival de Circo de Taquaruçu em
Palmas-TO, pela Companhia de Circo Os Kaco, recebi um dos artistas dessa companhia em
minha casa. Consegui uma pauta no Teatro Claudio Barradas (UFPA), para que meu amigo
colombiano Jairo Molina ministrasse uma oficina de 3 dias, com mastro chinês
(equipamento circense semelhante ao um “pole dance”).
Recebemos diversos artistas, inclusive vários alunos da Escola de Teatro e Dança
da UFPA (ETDUFPA), que estavam animados por terem uma atividade de circo, com um
artista estrangeiro. Curiosamente, a maioria das pessoas que fizeram nosso curso no
teatro, não nos reconhecia ou, propositalmente, não nos enxergavam uma semana depois,
enquanto fazíamos malabarismo, no sinal em frente à escola.
126
Entrevistas com Rodrigo Ethnos (Nielson Rodrigo Barros), segundo semestre de 2019.
248
Atos de escritura 4
Segundo Lua Barreto, a relação entre as artes circenses e as cidades sempre foram
historicamente conturbadas. O mundo do circo é visto como “espaço de ciganos
malandros” e “vagabundos drogados” (BARRETO, 2017). Nesse sentido, podemos inferir
que as artes circenses, vistas dentro de um espaço de saberes hierarquizado e
institucionalizado, são recepcionadas de forma distinta das artes circenses direcionadas
para a rua. Existe todo um sistema da arte que conduz de forma relativamente consciente
algumas variáveis que passam a estabelecer o que será mais valorizado (BULHÕES, 2014,
p.15-44).
O segundo verbo de ação que pude elaborar é o termo “manguear”, muitos artistas
circenses de rua se consideram ou são, automaticamente, considerados “hippies”. Esta
palavra também faz parte do repertório de “hippies”, em particular os artesãos de rua que
fazem joias, como pulseiras e outros adornos. Segundo Ney Sumaquila127: “(...) Eu prefiro
manguear, trampar! Eu acho mais leve, do que falar trabalhar. (...) eu acho que essa
palavra combina mais com a filosofia do artista de rua e não com a classe trabalhadora
convencional.” Artistas circenses de rua, também são, comumente, artesãos e músicos.
Para um artista circense de rua, quanto mais habilidades, de circo e outras áreas, melhor
para o “mangueio”. Esta palavra pode significar muitas coisas, mas em linhas gerais se
refere, a saber, tirar vantagem das próprias habilidades, por exemplo, “saber passar o
chapéu” e assim prover o próprio sustento através da sua arte. Nesse sentido, o artista
percebe e lida com suas linguagens artísticas, como um espaço de experiências, onde
constrói sua relação com o público e com seu universo do trabalho (KOSELLECK, 1979).
Como terceiro verbo de ação, eu escolhi a frese “mandar ou fazer no roots” e suas
variações com a palavra “roots”. A cultura do circo de rua bebe muito do “faça você
mesmo”. O “roots” do circo de rua se refere a isso. A exercer a própria arte, ainda que seja
em situações precárias. Mesmo para os artistas mais preocupados com estética – a
qualidade dos malabares de apresentação, maquiagem e figurinos – veem seu trabalho
como “roots”, pois pode ser executado em qualquer lugar. Roots também pode se
referenciar com alguma coisa ou local “mais natural”, ou seja, dependendo muito de como
for empregado em uma frase, pode tanto significar coisas positivas quanto negativas.
249
Atos de escritura 4
Espetáculo
Este ensaio é literalmente um ensaio. Coloquei-me a pensar o meu objeto, as artes
e artistas circenses de rua, de Belém, em xeque. Uma vez que, originalmente, meu projeto
se baseava em entrevistas presenciais. Tenho avaliado o impacto da pandemia em minha
capacidade de produção acadêmica. E, ainda que eu tenha conseguido cursar, sem grandes
problemas, todas as disciplinas que me dispus, não me sito totalmente amadurecido com
este trabalho.
A ideia de pensar e construir verbos de ação foi proposta pelas professoras Bene
Martins e Ivone Xavier, no decorrer da disciplina Atos de Escritura e, particularmente, me
serviu como um norte para adaptar minha pesquisa. Foram estes verbos de ação que me
fizeram perceber um conjunto de gírias e usos particulares de algumas palavras, como
sendo algo bem característico e representativo do universo cotidiano dos artistas
circenses de Belém. E em particular, uma entrevista realizada recentemente.
Minha ideia não foi de fazer um dicionário etnológico ou um árduo trabalho de
sociolinguística. Mas sim, perceber como estes verbos de ação são um ponto de análise
multiplicador de resultados. Por exemplo, apenas da palavra manguear, que pode ser
empregado com sinônimo de trabalhar em artes ou com artes, eu descobri diversas
palavras que também podem ser empregadas em mesmo sentido, como “trampar” e
“função”. Logo, essa experimentação me instigou a perceber outras nuances de minha
pesquisa.
Bis
Conclusões que não são finais... Afinal, este é um dos primeiros textos de uma
pesquisa em curso. Mesmo que eu não queira sempre advogar em prol das artes circenses
de rua. A rua foi minha primeira escola de artes, através do circo e teatro de rua. Foi
fazendo malabares no sinal que pude concluir meu curso de história, o mestrado e agora
entrar no Doutorado em Artes. Para muitos, as artes de rua não são consideradas artes,
nesse sentido, para outros, essa não é uma memória digna de nota, eu discordo enquanto
historiador que defende que a memória é um espaço de constantes disputas, onde todos
os grupos sociais têm o direito de lutar pela manutenção de sua memória e, como artista
circense, que se formou no circo de rua, reivindico tanto da população que forma nossas
plateias, quanto da comunidade de artistas de outras linguagens, que o circo de rua é arte
e os circenses de rua também são ARTISTAS!
250
Atos de escritura 4
REFERÊNCIAS
BARRETO, Mônica Alves. As performances do circo na rua: Escolhas, expectativas e
aprendizado do saltimbanco contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Performances
Culturais) - Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Performances Culturais da
Universidade Federal de Goiás. 2017
BUSCARIOLLI, Bruno; CARNEIRO, Adele Toledo de; SANTOS, Eliane. Artistas de rua:
trabalhadores ou pedintes? Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 37, set/dez 2016.
BULHÕES, Maria Amélia. O Sistema da Arte mais Além de sua Prática. In: Bulhões, Maria
Amélia; Da Rosa, Nei Vargas; RUPP, Bettina (org.). As Novas Regras do Jogo: o sistema
da arte no Brasil. Porto Alegre, RS: Editora Zouk, 2014.
COSTA, Andrea Lopes da; SANTANA, Jéssica Maria de Vasconcellos Hipólito Memória
Social e perspectiva decolonial. In: OLIVEIRA, Maria Amália de; et al... (coords.). Ensaios
sobre Memória. Portugal, Leiria: Escola Superior de Educação e Ciências Sociais -
Politécnico de Leiria; V.1; 2020.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos Santos. Memória Coletiva e Teoria Social. São Paulo:
Annablume, 2003.
251
Autores
ISBN 978-65-88455-20-3