Arquivototal
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João Pessoa
2016
LARISSA ISIDORO SERRADELA
João Pessoa
2016
S487t Serradela, Larissa Isidoro.
Torégira: performance ritual em um quilombo-indígena /
Larissa Isidoro Serradela.- João Pessoa, 2016.
165f. : il.
Orientador: Estêvão Martins Palitot
Coorientador: Marcos dos Santos Albuquerque
Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHL
1. Antropologia social. 2. Torégira - ritual - quilombo-
indígena. 3. Identidade étnica. 4. Relações interétnicas.
5. Interações artísticas.
Banca Examinadora
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcos dos Santos Albuquerque
(coorientador)
LISTA DE TABELAS
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
RESUMO...................................................................................................................................17
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................20
• Com a Tiririca: fluxos materiais que tornaram possível a pesquisa.....................31
• O trabalho de campo enquanto um “período liminar”, “manejo de si” e
reinvenção da relação com a Tiririca...............................................................................38
CAPÍTULO 1
Processos históricos da Tiririca dos Crioulos: a formação do torégira e do
“quilombo-indígena”......................................................................................................41
1.2. “Negros” e “caboclos” frente ao processo de colonização...................................45
1.3. Dinâmicas rituais: a trajetória de Mané Miguel ..................................................51
1.3.1. O toré....................................................................................................................53
1.3.2. A gira....................................................................................................................60
1.3.3. A mudança de Mané Miguel para Serra Negra ...................................................63
1.4. A organização social: conflitos, criação de novas categorias e experiências de
identidade.........................................................................................................................66
CAPÍTULO 2
O torégira e suas dinâmicas de cuidado ......................................................................77
2.1 O “complexo ritual da Jurema” em diálogos com o torégira da Tiririca...................83
2.1. Uma descrição geral da experiência do ritual mensal ........................................86
2.2. A sensibilidade entre pessoas-entidades e suas dinâmicas de cuidado...............96
2.2.1. Com encantos de luz, santos e orixás.................................................................100
2.3. A consciência multissensorial: experiências particulares na percepção do
ritual................................................................................................................................102
2.3.1. Bebidas e plantas na sensibilização das pessoas ...............................................105
2.4.2. A dança: dimensão de cuidado e expansão de movimentos................................109
2.4.3. As linhas: músicas, danças e “correntes espirituais” ..........................................114
2.5. Os “lugares sagrados”............................................................................................116
2.6. Roupas brancas e de caroá......................................................................................124
2.7. Dinâmicas de cuidados: dinâmicas de afeto...........................................................126
CAPÍTULO 3
A dramatização do torégira na ação “Do Buraco ao Mundo” e a arte/educação
como performance etnográfica...................................................................................128
3.1. Apresentação da ação “Do Buraco ao Mundo”......................................................134
3.2. A arte/educação na construção de espaços liminares de ensino-aprendizagem.....136
3.3. A arte/educação na produção de imagens e representações de si...........................145
3.4. O torégira como símbolo de identidade.................................................................149
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................160
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Produzida com base nos dados fornecidos pela Fundação Cultural Palmares,
oferecidos através do site, das comunidades Quilombolas da região certificadas até
31/12/2015........................................................................................................................67
LISTA DE FIGURAS
Mudar em movimento
Mas sem deixar de ser
O mesmo ser que muda.
Como um rio”
PALAVRAS-CHAVE:
ABSTRACT
The focus of the dissertation is the ritual context called torégira, carried out by
the "quilombo-indígena" people known as Tiririca dos Crioulos, located in the
municipality of Carnaubeira da Penha, state of Pernambuco. The objective was to
understand the dynamics of care between different materials (Ingold, 2012) and the
process of ethnic assertion that resonate from this ritual. The torégira at times
approaches and at other times separates from aspects of the Afroindigenous Catholic
universe, depending on the relationships drawn by the leaders, as well as enabling
potential experiences and behaviors between people, plants and entities. Historically it
has been adapted to the social situations and the material flows of this locality,
generating well-being and ability to confront some problems in life. The torégira
expresses the establishment of the ethnic identity of these people, who have in their
history experiences of stigma associated with negative attributes, which now are given
new meaning through the articulation of their identities, involvement in public policies
linked to territorial demarcation and safeguarding of cultural heritage. This ethnography
also reveals the transformation of research methods and who performs them, expressing
art and anthropology through interethnic relations using artistic interactions and the
organization of data through the use of images produced by the interlocutors themselves
and other investigators. Artistic interactions that amplify ethnographic narratives, the
possibilities of relations with the field and the expressions of identities.
KEY WORDS:
18
19
Introdução
3Liderança ligada ao contexto da escola local e atual coordenadora do núcleo 6 da Organização Interna da
Educação Escolar Indígena Pankará- OIEEIP.
24
variação. As práticas e crenças religiosas na Tiririca foram se constituindo a partir da
interrelação entre o catolicismo (através da realização dos penitentes4 , novenas para
santos, terços, missas, batizados e participação em romarias), toré (da jurema) e a gira
(da umbanda) em sessões de mesa, dos quais correspondem a um contexto mais amplo
de práticas e crenças religiosas do sertão nordestino.
Instalando-se na base da Serra do Arapuá no final do século XIX, estabeleceram,
ao longo do séc. XX, relações de parentesco com os atuais índios Pankará5 residentes
nas intermediações do sertão e na serra anteriormente citada, tornando possível a
resistência desse grupos na região, assim como o reconhecimento oficial desse
parentesco em 2010. Na década de 1990, a Tiririca pôde se articular politicamente com
comunidades negras rurais da região, acessando recursos que trouxeram melhorias nas
condições de vida dos moradores (as), pautadas em leis constitucionais e apoios
internacionais focados no atendimento à tais segmentos sociais.
A partir das temporalidades apresentadas, se destacam a importante trajetória de
Mané Miguel, indígena Pankará que se mudou para a Tiririca em 1940 e introduziu os
“trabalhos” de toré e gira, movimentando novas articulações políticas e sociais.
Trabalhava juntamente com ele o orixá Velho Xangô da Bahia (dentre outras entidades),
que se destaca em função de sua colaboração na introdução da gira nos rituais da
Tiririca.
Nesse capítulo se desenrola o processo de organização social da Tiririca,
ressaltando relações conflituosas com a sociedade regional em função da briga por terra
e ameaças à vida. Explora-se, em consequência, a forma como tal comunidade foi
resolvendo esses problemas a partir de estratégias, junto com os índios Pankará e outras
comunidades negras rurais.
No capítulo II, intitulado: “O torégira e suas dinâmicas de cuidado”, realizo
uma imersão na experiência do ritual mensal, da qual apresento as ações e
4
Segundo Crioulos (2016:46), livro produzido a partir da ação “Do Buraco ao Mundo”, com a Tiririca, os
penitentes é um ritual católico realizado no mês de julho que se compõe através da realização de um
terço, cantigas e benditos, realizados por um grupo constituído por doze homens (os Penitentes) e
mais um (o dicurião) que representam Jesus e os doze apóstolos. Realizado em homenagem à Bom
Jesus dos Aflitos, pelas graças alcançadas.
5
Segundo Mendonça (2013), os atuais índios Pankará da Serra do Arapuá/PE possuem como seus
ancestrais, os Umãs que habitavam no séc. XVIII, conforme registros, a atual região onde se localiza a
serra do Umã. Estes foram reconhecidos pela Funai em 2003 e possuem em aberto seu processo de
regularização fundiária, que foi iniciado em 2009. Possuem uma organização social que foi iniciada entre
quatro famílias: Limeira, Amanso, Caxiado e Rosa, e atualmente se expande na inclusão da OIEEIP e do
Conselho de Saúde.
25
procedimentos realizados, destacando a dança como um percurso terapêutico e
deslocamento espacial nos quais se desdobram movimentações específicas da gira, do
toré e das entidades que se manifestam.
Nesse capítulo, articulo as práticas e crenças religiosas (da umbanda, da jurema e
do catolicismo) que fazem parte de um complexo ritual mais amplo, por meio de um
inventário dos fluxos materiais manipulados neste contexto, como os lugares sagrados,
roupas, entidades, linhas e bebidas, com o objetivo de “ reatualização dos vínculos”
(Rabelo, 2012) entre pessoas, entidades e plantas.
Seguindo orientações de Schechner (2012), entendo “ritual” enquanto uma
performance, constituída por padrões familiares de comportamentos, gestos ritualizados
que possibilitam experiências únicas na transformação das ideias, experimentação de
sensações e ligação entre os sujeitos envolvidos. Neste sentido, me aproprio do termo
“performances rituais” (idem) para compreender tanto o processo ritual, suas atividades
terapêuticas cotidianas, como performances de afirmação de identidades.
No ritual mensal se manifesta uma série de movimentações realizadas através da
performance. Algumas concepções são compartilhadas, como a ideia de “Liminaridade”
e “communitas espontânea” de Turner (1974, [2005]), na criação de um espaço-tempo
suspendido do cotidiano que facilita uma experiência de liberdade e de ensino-
aprendizagem, possibilitando experiências de transformações nas pessoas e reforçando
valores. Dentro desse “espaço-tempo sagrado” (Schechner, 2012), pode ser gerada a
“communitas espontânea” que fortalece o sentimento de camaradagem entre os
envolvidos e corresponde ao bem-estar do grupo.
Veremos na dissertação que a concepção de performance pode ser entendida não
somente para compreender os processos rituais, mas também a performance etnográfica
que realizei e de identidades da Tiririca que reverberam do ritual, a partir de
apresentações internas e externas à comunidade, de narrativas de patrimônio que são
dramatizadas, dentre outras.
Desta forma, concordo com Nascimento (1994) ao ressaltar a importância do
plano ritual religioso na articulação de significados que reafirmam e possibilitam a
vivência e elaboração das especificidades culturais. Segundo o autor, este processo
continuamente reafirmado daria sentido e razões para um empreendimento étnico
comum. Reforço o valor do torégira enquanto uma experiência potencial que permite a
organização social para além dele.
26
No processo de regularização fundiária da Tiririca iniciado em 2012, revelou-se a
importância de aspectos ligados ao ritual na reafirmação da condição étnica do grupo.
Ocorreu a institucionalização do torégira após 20 anos de não realização do ritual,
momento no qual foram elaboradas performances internas e externas à Tiririca (a partir
da realização de danças, cantos e a utilização de vestimentas de caroá) e a reorganização
social na nomeação de lideranças e funções rituais, condutas e regras de convivência,
além de uma periodicidade de realização do mesmo.
A partir da abordagem de Barth (1998) sobre os grupos étnicos e suas fronteiras,
percebo que atualmente alguns elementos simbólicos do contexto do torégira são
acionados como expressão da etnicidade dos “tiririqueiros”, auxiliando em sua
organização social e na reconstrução de sua alteridade perante à eles mesmos, outros
grupos, pesquisadores (as) e a sociedade mais ampla.
Iniciada em 2014 e ainda em curso, a ação “Do Buraco ao Mundo: segredos, rituais
e patrimônio de um quilombo-indígena”, viabilizada por iniciativas federais e estaduais
ligadas ao Patrimônio Cultural, foi outra forma de relação estabelecida com o campo. O
objetivo desta ação era de realizar uma busca participativa das referências culturais da
Tiririca, proporcionando processos de formação com professores (as) locais, o encontro
entre as gerações, trocas e produção de conhecimentos. Foram elaboradas como obras
um Documento Sonoro (Tiririca dos Crioulos: Benditos, Linhas de Toré e Gira) ,
vídeos, o livro “Tiririca dos Crioulos: um quilombo-indígena”, fan-page no facebook e
um blog6 que abriga e compartilha o acervo produzido.
No espaço desta ação, símbolos do ritual foram dramatizados como narrativa das
referências culturais de moradores (as). O ritual como empreendimento social que
promove, na atualidade, um consenso da forma como eles querem se apresentar e serem
reconhecidos, é uma elaboração da própria imagem e de suas ideias sobre suas
classificações identitárias. No palco da ação “Do Buraco ao Mundo”, o torégira é
dramatizado como “experiências de identidade” e “construções de autorrepresentações”
(Mota e Oliveira, 2013:187). Mas pode ser também uma resposta convencional que
produz visibilidade pública, confere legitimidade e permite a capitalização de recursos.
O capítulo III, intitulado: “A dramatização do torégira na ação “Do
Buraco ao Mundo” e a arte/educação como performance etnográfica”, é um
6 http://www.culturadigital.br/tiriricadoscrioulos
27
retorno ao contexto histórico da comunidade para compreender as motivações que
fazem do torégira um acontecimento de atual importância na organização social da
Tiririca. Abordarei o processo de patrimonialização das referências culturais por meio
da ação “Do Buraco ao mundo” que “ritualizam” ou “performam” as relações entre
sujeitos sociais e suas formas de representação” (Mota e Oliveira, 2013:175), trazendo
o torégira como símbolo da alteridade do grupo.
Articulado a esta ideia, ressalto a importância das atividades que envolveram
metodologias com arte/educação, sobre as quais desenvolvi com a Tiririca, tanto na
ampliação de narrativas sobre o patrimônio cultural quanto em sua colaboração para a
antropologia, na oferta de linguagens que expressem a experiência em campo,
conforme discutido por Novaes (2005).
A construção das narrativas do patrimônio cultural foram, em partes,
engendradas por meio da arte/educação utilizada como “instrumento de mediação
cultural” (Barbosa, 2005: 112) e metodologia da performance etnográfica. Neste
capítulo, serão compartilhadas as formas pelas quais ocorreram essas colaborações, no
contexto da ação, no que diz respeito à:
7 As capas de cada capítulo e introdução foram produzidas com fotos de minha autoria, de Carmelo
Fioraso, do acervo pessoal de Maria Isaura do Nascimento (Mãezinha) e desenhos produzidos por
Cícera Francisca Lopes, José Fernando de Souza Lopes e Kelly Edilza da Silva.
29
Clifford (1998) nos alertou sobre os malefícios da autoridade etnográfica na
história da antropologia, pressupondo “um modo controlador de autoridade” etnográfica
a partir da presença do pesquisador em campo e da forma de organizar o texto. Tal
autoridade influencia na coleta de dados (Clifford, 1998 :58) e possíveis reverberações
na relação com os sujeitos envolvidos, assim como na forma de organização das
informações. No entanto, tal autoridade é ponderada ao reconhecer que nas interações
com os interlocutores as informações são negociadas e se desenvolvem também por
meio de seus sentidos e sentimentos.
Com a tentativa de superar a suposta “autoridade etnográfica” (Clifford, 1998),
através da consideração do conhecimento local e das subjetividades envolvidas nas
interações, a ação “Do Buraco ao mundo” foi uma forma de atuação junto com a
Tiririca em seus processos de reivindicações e visibilidade pública. Tal interação tem
permitido ressignificar a relação da comunidade com suas referências culturais,
colaborar com processos de formação e capacitação dos sujeitos, atuando na elevação
da auto-estima e o desenvolvimento de investigações em processos de coautorias.
Contudo, na escrita da dissertação, mesmo inserindo e reconhecendo os
múltiplos autores que a compõem, eu assumo uma posição executiva e editorial, o que
foi discutido por Clifford (1998:55) sobre a utopia de uma etnografia heteroglossia em
que a autoridade da pesquisadora não é plenamente transcendida. Reflito ainda com este
autor que “[...] a própria ideia de autoridade plural desafia [...] qualquer organização do
texto com a intenção de um único autor” (Clifford, 1998), como é o caso da escrita da
dissertação.
30
Com a Tiririca: “fluxos materiais” que tornaram possível a pesquisa
Na relação com a Tiririca fui afetada em minha primeira ida à campo, em 2012,
num contexto de realização de oficinas de formação para professores e professoras
(viabilizadas pelo governo do Estado de Pernambuco) e também de produção do
relatório de delimitação territorial pela equipe que assessorou o INCRA 8 . O meu
objetivo era colaborar com as oficinas de formação, auxiliando na coleta de dados para
a produção do citado relatório.
Movimento vai, movimento vem, que durante este campo eu foquei na produção
de um documentário, feito juntamente com Lara Erendira Andrade, chamado de
“Tiririca dos Crioulos: um quilombo-indígena”, do qual participou posteriormente de
duas mostras etnográficas9. Este vídeo10 apresenta um pouco da dinâmica identitária do
grupo, que se afirma um “quilombo-indígena”, a memória de conflitos com fazendeiros
da região e imagens do ritual.
Naquele momento, o fato de eu estar focada no registro audiovisual, com a câmera
na mão e da conjuntura envolver a produção de um relatório de regularização fundiária
– no qual a comunidade estava mostrando o que possuía e quem eram, com o objetivo
de ter seu território oficializado, ou seja, um direito garantido- me proporcionou,
durante um ritual acompanhar a etapa da produção de algumas bebidas (como a jurema).
Foram convidados para dentro do Canzuá do Velho Xangô, além dos líderes que
produzem atualmente as bebidas, os dois técnicos que trabalhavam no registro
audiovisual daqueles dias de oficinas. No entanto, dentro do Canzuá apenas eu realizei
8 Equipe técnica responsável composta por Carolina Farias Leal Mendonça (antropóloga
coordenadora) e Lara Erendira Andrade (antropóloga) que produziram também o relatório de
delimitação territorial dos índios Pankará.
9 V Mostra LEME de fotografia e filme etnográfico, realizada em 2012 em Cachoeira, Bahia e na II
31
a captura daquele momento, devido a câmera da outra pessoa ter acabado a bateria. Foi
difícil encontrar o meu lugar e o da câmera no quartinho pequeno, em que a escuridão a
base de velas tornava as imagens capturadas um pouco turvas e embaçadas. Lá dentro,
eu deixei a câmera funcionar em cima de um tripé e experienciei aquele momento, do
qual fui tomada por uma emoção que me motivou a retornar para a Tiririca mais vezes.
Até o momento da pesquisa, esta foi a única vez que fui chamada para dentro do
Canzuá para acompanhar a feitura das bebidas. Em função de ter tido esta experiência,
nos rituais que eu acompanhei posteriormente, embora eu estivesse do lado de fora do
Canzuá, eu sabia qual a bebida que estava sendo preparada devido a “linha” cantada, ao
som do preparo, como na batida da raiz da jurema, assim como o cheiro do alho e da
arruda.
Em 2013 eu voltei com o objetivo de escrever uma proposta para o mestrado em
antropologia. Praticamente fui recebida pelos filhos e filhas de Mané Miguel, atuais
lideranças da comunidade e que foram meus principais interlocutores.
Dalva Lúcia do Nascimento, conhecida como “Verinha” (Figura 1), atual
coordenadora do núcleo 6 da OIEEIP, da qual está inserida a Escola Manuel Miguel do
Nascimento, e outras escolas Pankará localizadas no sertão. Ela é historiadora, gosta de
fazer versos e é mãe de uma filha e dois filhos, Dalete, Brandão e Carlos (pajé-mirim de
2013 a 2016). Sua casa se encontra no “Início do Quilombo”, às margens da estrada de
terra de quem vem de Carnaubeira da Penha, segundo ela como representação de sua
acessibilidade. Ao morar na cidade de São Paulo, onde trabalhou em uma fábrica de
produção de capacetes para motociclistas, retornou para a comunidade em 1994, ao
saber do adoecimento de sua mãe Isaura, quando também assumiu o trabalho de cuidar
da educação local.
32
Figura 1: Verinha na sala da frente da Casa Grande do Marinheiro. Agosto de 2013.
Figura 2: Antiga casa de Mané Miguel, atual casa de Mãezinha e Jonilson, em que podemos ver
a serra do Arapuá. Durante o dia costumam passar por ela: Roberto, Verinha e José Antônio do
Nascimento.
Figura 4: Roberto mostra fotos do Terreiro do Mestre Bonito, devolvidas para a comunidade, no
contexto das oficinas da ação Do Buraco ao Mundo. Foto de Lara Erendira.
34
Maria Virgilina da Conceição, a conhecida Maria de Ginu (Figura 7), é
atualmente considerada um patrimônio vivo da Tiririca devido ao seu conhecimento
enquanto parteira e rezadeira, possuindo a reza e seu rosário como instrumentos de
poder para curar. É perceptível sua importância na execução do ritual, o que dá a ela um
prestígio e atuação na organização de certos fluxos de informações.
12Patrícia é casada com o filho mais velho de Verinha, chamado Anderson, ela é indígena Pankará da
Aldeio do Enjeitado.
36
2014, em que os campos foram realizados, em sua maioria no contexto da ação “Do
Buraco ao Mundo”, em um período de 4 anos.
As dimensões de relações alcançadas ocorreram no contexto da escola entre
crianças, professoras, professor, coordenadora, porteira e merendeiras, das quais
facilitaram o acesso aos parentes e outras pessoas ligadas ao ritual. Também tive acesso
aos participantes das oficinas da ação “Do Buraco ao Mundo”, dos quais destaco os dois
anciãos considerados de maior importância na atualidade, Maria de Ginu e Zé de
Brígida. Na Aldeia São Bento, dos atuais Pankará, realizei uma entrevista com Sr. Izaias
Rosa e D. Isabel (sua cunhada) sobre a história de Mané Miguel, os rituais antigamente
e de hoje na Tiririca.
Foram fluxos materiais que tornaram possível minha atividade intelectual,
influências decisivas das condições vitais que possibilitaram tal produção (Steil e
Carvalho, 2012:10). Posso entender com Ingold (2012:21) que o conhecimento que
compartilho aqui, referente ao torégira, está baseado na forma como eu senti e
experienciei esta localidade e o ritual, do qual impulsionou a imaginação e permitiu
“representar metaforicamente o outro” (Ingold, 2012: 21).
A experiência nesta localidade se constituiu pelo ambiente, as pessoas, outros
animais e entidades que compartilham o contexto da pesquisa. Para citar algumas
experiências, a relação com as Serras do Arapuá, do Melado, da Lagartixa e das
Ovelhas, que contornam o território da Tiririca e são pontos de referências, onde se
encontram alguns dos terreiros. Os animais como bodes, cabras, vacas, bois e a
experiência dos badalos das cabras e vacas, porcos, cachorros, gatos e morcegos
também colaboraram com a experiência de estar na comunidade.
Durante os rituais, o difícil acesso a bebida da jurema até então não experienciada,
13
devido a ausência do pajé Dodô em alguns rituais e consequentemente a não
produção da mesma, bem como ao fato da bebida não ter sido oferecida, como ocorreu
com a bebida da cura e pelo fato de eu não ter pedido.
Na experiência de campo, a partir dos engajamentos com a Tiririca, não separo em
duas modalidades de experiência dentro do contexto da ação “Do Buraco ao Mundo” e
fora dela, pois o conhecimento que se apresenta parte da vivência como um todo com
esta localidade.
38
potencial na criação de novas ideias e possibilidades de aprendizagens. Conforme
Turner (2005:151), “a liminaridade pode ser descrita como um estágio de reflexão”.
Penso que este processo de transformação foi identificado por Ferreira (2013:
291) como o “manejo de si”, ao considerar a existência de um lado subjetivo agenciado
durante a pesquisa de campo, em que possibilita um processo constante de
reconfiguração dos sentidos e do modo de apreender o mesmo. Este seria o processo de
transformação da pesquisa e de quem a realiza. Com Ferreira (2013: 282) entendo que
as experiências na Tiririca modelaram o modo de compreender essa localidade, assim
como esta etnografia traz a marca sensorial dessas experiências. Processos que
envolvem sentir, reformular questões, negociar interações e decodificar sensorialmente
este universo.
Entendo que a reinvenção da metodologia é existencial, passada pelas
experiências de cada pesquisador (a) com seu campo, ambientes, processos particulares
e históricos. É na prática do investimento na relação com os interlocutores que a
metodologia é transformada “para a compreensão daquilo que aprendemos” (Ferreira,
2013: 291). Uma metodologia que não está fechada e acontece na prática das relações,
reinventada a partir da percepção e ação no, do e com o campo.
39
40
Capítulo 1:
Processos históricos da Tiririca dos Crioulos:
a formação do torégira e do “quilombo-indígena”
41
Neste primeiro capítulo apresento a Tiririca dos Crioulos, seu ambiente e
“processos de territorialização” que foram motivados pelas comunidades negras rurais
da região de Mirandiba, assim como pela organização social dos índios Pankará. A
noção de territorialização trabalhada por Pacheco de Oliveira (1998:55):
pelo Grupo Técnico que realizou o estudo de delimitação territorial, composto por Caroline Farias
Leal Mendonça e Lara Erendira Andrade.
42
Figura 8: Localização da Tiririca dos Crioulos no Estado de Pernambuco.
Sob o sol escaldante, com pouco fluxo fluvial na região e a negligência ao acesso
à politicas públicas que ofereçam medidas mais adequadas para conviver com o
semiárido, manifesta-se a escassez de água, da qual ocorre o abastecimento por
nascentes localizadas ambas na Serra do Arapuá, na Grota do Caenga e na aldeia
Riachão (Mendonça, 2013), além de cisternas abastecidas através da Operação Carro-
Pipa15, barreiros, açudes e um poço artesiano chamado de DEPA16.
A ação é uma parceria do Ministério da Integração Nacional, por meio da Secretaria Nacional de
Defesa Civil, com o Exército Brasileiro”.
16 Departamento Estadual de Poço e Açudagem.
17 Pesquisa realizada em 2012.
18 No valor de R$ 788,00, segundo o site: http://salariominimo2016.org/salario-minimo-2016/.
19 Educação de Jovens e Adultos, consiste em uma modalidade da Educação Básica que garante o
20 Crioulos (2016), Mendonça e Andrade (2014), Mendonça (2013), Paoliello (2010) e Grünewald, (1993).
45
Pinto (ou Plinio) Madeira e Helena (que também aparece como indígena).
Posteriormente a união de Pedro Canuto (negro que recebeu a doação das terras da
Tiririca por Pinto Madeira e Helena) com uma indígena da Serra do Arapuá. Num
terceiro momento, registra-se a chegada dos irmãos Miguel, indígenas Pankará, dos
quais se destaca Mané Miguel, importante liderança ritual, que se casou com Isaura,
“negra da Tiririca”.
A origem da comunidade, segundo Mendonça e Andrade (2014), ocorreu no final
do séc. XIX e início do séc. XX, através de ancestrais negros libertos que adquiriram,
pela compra, a posse da terra. A sociabilidade entre indígenas e negros que aconteceu na
formação da Tiririca, assim como se caracteriza na região [Mendonça e Andrade (2014),
Paoliello (2010) e Grünewald (1993)], foram estabelecidas ao longo de matrimônios,
trabalhos de parto, manifestações religiosas (de matrizes católica afroindígenas) e
recursos naturais, manifestando uma forma de união e fortalecimento de índios e negros
frente ao violento processo de colonização.
O contexto de formação da Tiririca dos Crioulos se localiza no que Pacheco de
Oliveira (1998:57) identificou como a “terceira mistura” dos “índios misturados” do
Nordeste do país e as influências dos processos de territorialização pelos quais viveram.
Tal conjuntura neste período, segundo o autor, envolvia a implementação da Lei de
Terras de 1850, da qual regularizava o território Nacional com a inclusão das
propriedades rurais. A extinção dos aldeamentos indígenas pelos governos provinciais e
consolidação das fazendas ( Pacheco de Oliveira, 1998:57). Neste período, conforme
Paoliello (2010: 224), “ao final deste séc. [XIX] surgem no sertão central pernambucano
as primeiras vilas comerciais e povoados, caracterizados como lugares comerciais (para
a realização de feiras) e agregadores de população.
O nome Tiririca dos Crioulos ocorreu por meio das pessoas de fora da
comunidade que se referiam à tal região e às pessoas desta localidade, onde existia
grande quantidade de uma espécie de capim, chamado de Tiririca. A este capim foi
acrescentado “dos crioulos” devido ser uma “terra de negros”, manifestando os efeitos
do processo de colonização. A experiência dos “negros da Tiririca”21 trouxe a vivência
da “privação social e preconceitos” (Cardoso de Oliveira, 2006: 45), constituindo “uma
barreira ao pleno reconhecimento” (idem). A formação da comunidade atenta para uma
organização racial do trabalho, marcada pela subordinação do negro ao processo de
21 Categoria nativa.
46
colonização da região, do qual foram delimitadas fronteiras em relações de
superioridade e inferioridade (Mendonça, 2013).
O processo de colonização envolveu o contexto histórico, social e econômico de
Carnaubeira da Penha e Floresta, assim como das famílias de rendeiros da Casa da
Torre que foram beneficiadas com a colonização do Sertão do São Francisco, conforme
Paoliello (2010:224) e Mendonça (2013:60), colaborando para o estabelecimento de
alianças entre populações negras e indígenas contra o Estado e as famílias poderosas da
região.
Tal região foi marcada por um violento processo de colonização, iniciado no séc.
XVIII com a implementação das fazendas e de famílias poderosas (principalmente
ligadas às atividades de pecuária) (Paoliello, 2010). Tal projeto econômico teria
interesse pelas terras ocupadas pelos índios e comunidades negras rurais, o que
colaborou com um sentimento de desprezo da sociedade regional à estes segmentos
sociais, bem como a falta de informação histórica sobre estes grupos e a manutenção do
poder político e econômico dessas famílias que mantém, ainda hoje, o domínio na
região. Além de ser uma das cidades mais pobres de Pernambuco, Carnaubeira da Penha
está inclusa na região do “polígono da maconha”, o que torna a cidade, segundo
Paoliello (2010), ainda mais violenta devido ao seu histórico de coronelismo e guerra
entre as famílias fazendeiras.
Mendonça e Andrade (2014) ao realizarem o levantamento histórico do município
(séc. XIX), revelam que este era o antigo “Sítio da Penha”, território dos índios Umãs
(atuais índios Atikum e Pankará). Grünewald (1993:27) cita um ofício datado de 1887
no qual se reconhecia o Sítio da Penha, situado na Serra do Umã em Floresta, como
pertencentes aos índios. Segundo Mendonça e Andrade (2014), embora alguns
documentos da Câmara Municipal de Floresta22 ressaltem que tal território teria sido
doado aos índios pelo Rei de Portugal, esta, juntamente com proprietários de fazendas
da região, conseguiram se apropriar das terras com a justificativa da “mistura” e
criminalização destes segmentos sociais. Segundo Pacheco de Oliveira (1998:52), a
mistura foi um “atributo negativo que desqualificava [os indígenas do Nordeste] em
oposição aos índios puros (...) ”, bem como foi reforçada pelos documentos oficiais da
22Mendonça (2013) cita três documentos (p. 64,p. 65 e p. 68), do séc. XIX, localizados no APEJE/PE,
da Câmara Municipal de Floresta, dos quais reivindicam o sítio da Penha, território Umã, para ser
incorporado como patrimônio da Câmara, mesmo considerando que as terras dos índios foram
doadas pelo Rei de Portugal.
47
época.
Nesse período, Mendonça (2013: 78) ressalta a ocorrência de redes de
sociabilidades ocorridas ao longo de batizados, casamentos e festejos cristãos que
envolviam sistemas de parentesco entre indígenas, negros e fazendeiros. Para a autora,
estas redes foram estratégias de resistência que permitiram a articulação entre negros e
índios até o século XX, assim como possibilitou a compra e/ou posse de pequenos lotes
de terras. A mesma reconhece que negros e indígenas se encontravam semelhantes em
suas “desigualdades de poder”, no entanto possuíam processos históricos distintos.
A escravidão do Sertão do São Francisco teve uma peculiaridade em relação a sua
prática, caracterizada pela ampla disseminação, pequenos números de escravos por
proprietários e composta por mecanismos de controle que envolviam relações
domésticas e maior mobilidade entre os escravos (Mendonça, 2013:76). Como processo
dessa escravidão, contam que a discriminação racial experienciada pelos “negros da
Tiririca” envolveu a restrição em suas movimentações, momentos em que não podiam
circular em certos lugares, pois eram violentamente chamados de “munguzá”, “beiço de
aribé”, “pé rachado”, dentre outras expressões. Verinha conta que “a gente sempre foi
maltratado como negro da Tiririca”.
No Nordeste do país, os encontros proporcionados pelo processo de colonização
como a guerra de conquista, as missões catequisadoras – nas quais foram agrupados nos
aldeamentos grupos distintos-, as vilas comerciais e as estratégias de resistência de
negros, indígenas, outros trabalhadores rurais e mestiços à subordinação do trabalho,
proporcionou, segundo Nascimento (1994), o encontro de práticas e crenças religiosas
que envolveram matrizes católica afroindígenas, configurando-se o “complexo ritual da
jurema”.
Tal complexo se compõe por formas rituais comuns à indígenas e não-indígenas,
que compartilham alguma representação do “índio” e que possuem como fio condutor o
uso (produção e ingestão) de uma bebida conhecida como Jurema, feita com a casca da
raiz da planta homônima e praticada atualmente pela maioria dos grupos indígenas da
região Nordeste (Nascimento, 1994). Trata-se de um núcleo histórico que permitiu a
difusão de elementos rituais, proporcionando a criação de um imaginário popular no
compartilhamento de símbolos (Nascimento, 1994).
A colaboração da trajetória da Jurema junto aos índios do Nordeste, segundo o
referido autor, se estendeu até o final do séc. XX, dos quais estes grupos “[...] ainda
48
acreditam saber muito bem como ter acesso aos mistérios do verdadeiro “Tronco da
Jurema” e formados nessa fé, continuam a se sentir índios de pleno direito”
(Nascimento, 1994:92). Em 1940 os índios Atikum foram pioneiros, na região do
município de Carnaubeira da Penha, no processo de reivindicação territorial e
emergência étnica, tornando-se possível, para outros grupos da região, a luta por direitos
através da identidade étnica (Grünewald, 1993). Após o processo de reivindicação
territorial dos Atikum, outras organizações étnicas emergiram como os índios Pankará,
o quilombo de Conceição das Crioulas e da Tiririca dos Crioulos (Paoliello, 2010).
A conflituosa relação entre os índios Atikum e Pankará, abordada por Paollielo
(2010), constituída inicialmente pelo parentesco e posteriormente por várias rupturas a
partir do meio do séc. XX, ligadas a delimitação e demarcação territorial Atikum, ao
narcotráfico na região e à assistência a saúde. Esses processos levaram a emergência dos
índios Pankará da Serra do Arapuá e colaboraram com o fortalecimento da relação com
a Tiririca através de dinâmicas rituais. As redes de sociabilidades que ocorreram entre a
Tiririca com algumas aldeias Pankará ao longo do séc. XX foram essenciais para o
processo de resistência frente às imposições do Estado e das famílias tradicionais da
região (Mendonça, 2013). A partir de 2010, esta relação é investida através do sistema
educacional, como será compartilhado.
Roberto compartilha o difícil acesso à políticas governamentais, tornando mais
frequentes a partir de 1990, quando a Tiririca ampliou suas possibilidades de interações
com o Estado, ONG’s, movimentos ligados às comunidades negras rurais da região e à
teologia da libertação. Nesta mesma década, no cenário nacional eram manifestados os
primeiros anos da implementação da Constituição Federal de 1988 e num contexto
mundial, o multiculturalismo na defesa dos direitos humanos. Pacheco de Oliveira
(1998:47) ressalta que até esta década, eram poucos os estudos sobre os povos indígenas
do nordeste.
No contexto regional, neste período, ocorreu maior distribuição de renda às
comunidades negras rurais da região de Mirandiba, conforme abordado por Paoliello
(2010). A Tiririca tinha a perspectiva de garantir renda através do trabalho agrícola, se
articulando com outras comunidades, na criação da Associação de Pequenos Produtores
Rurais da Fazenda Tiririca. Em parceria com pessoas que residiam em fazendas e sítios
da região como Jatobá, Pai José (que hoje é a região denominada de Boa Viagem),
Santana (conhecida atualmente como Caminho de Santana), Olho D’Água do Muniz,
49
Poço do Angico e sítio Riacho Fundo. Esta possuía como objetivo a prestação de
serviços que pudessem contribuir para o fomento das explorações agropecuárias e
melhores condições de vida de seus associados.
Nove anos depois (em 1999) foi criada a AREQUITI “Associação dos
Remanescentes do Quilombo Tiririca”, no formato de uma associação quilombola, que
pudesse representar e defender os interesses de seus associados perante à órgãos
públicos e privados, assim como motivar a integração de seus membros e os trabalhos
comunitários.
Em 2012, a comunidade inicia seu processo de regularização fundiária após o
processo de regularização da Terra Indígena Pankará23, em que a Tiririca teve a opção
de compor o GT e de ser incluída ao território sugerido à FUNAI24. Contudo, optou por
realizar seu processo de regularização fundiária pelo INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária) 25 , em respeito aos primeiros moradores negros da
Tiririca.
No trabalho do GT Pankará, foi identificado próximo a Serra do Arapuá, além da
Tiririca dos Crioulos, outro quilombo chamado Massapê (Mendonça, 2013:35), que já
possuía cadastro na Fundação Cultural Palmares como “Comunidade de Remanescentes
de Quilombo” e encaminhado seu processo de regularização territorial pelo INCRA. No
entanto, diferente da Tiririca, este optou ser inserido nas delimitações do território
Pankará (idem)26.
A partir das articulações com as comunidades negras rurais de Mirandiba e
oportunidades desencadeadas da relação com os índios Pankará, de frequentar contextos
de formação em movimentos sociais e acessar políticas públicas, algumas narrativas
atuais revelam que a experiência de violência vem sendo transformada, a partir da
década de 90, com seu ápice em 2010, com o entendimento da categoria “quilombo-
indígena”. Desta forma a Tiririca dos Crioulos passa a se reconhecer como um grupo
23 Iniciado em 2009, o território Pankará se compõe por aldeias localizadas na serra do Arapuá e no
sertão.
24 Fundação Nacional do Índio,, a FUNAI é o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, criado em
Organização Interna de Educação Escolar Indígena Pankará - OIEEIP (idem), da qual Verinha, se destaca
na Tiririca, como uma importante articuladora desta relação.
50
étnico, caracterizado por suas especificidades culturais e históricas, como ferramenta de
luta para alcançar políticas de direitos ligadas à terra, educação e a manutenção de seus
conhecimentos.
Isso reflete um processo histórico de resistência, reivindicações de direitos e
articulações entre os grupos étnicos do Nordeste em busca de acessar recursos,
principalmente ligados às regularizações fundiárias. Assim como refletem questões
epistemológicas, segundo Mendonça (2013), que transcendem a forma hegemônica do
poder e do Estado, ao manifestar outras formas de organização e de entender os
processos históricos de dominação e exploração da região.
A concepção de resistência trabalhada por Mendonça (2013) nos processos
históricos da região da Serra do Arapuá (que envolveram experiência de risco de morte
para os povos indígenas e negros, assim como a constante ameaça da perda do
território) e presente no discurso do movimento indígena - através do lema “não somos
nem emergentes, nem ressurgentes, somos povos resistentes”- consiste na manutenção
da existência desses grupos, resistentes às constantes tentativas de serem aniquilados.
A relação da Tiririca com algumas aldeias Pankará, por meio das dinâmicas rituais
realizadas durante o séc. XX, foram essenciais na constituição das relações de
parentesco, no processo de resistência e fortalecimento dos mesmos, culminando em
2010 no reconhecimento oficial desta aliança. Neste tópico apresento as dinâmicas
rituais realizadas. Busco a trajetória de Mané Miguel, uma importante liderança ritual na
história do torégira, que se mudou para a Tiririca em 1940, após casar-se com Isaura,
dando início à trabalhos espirituais compostos por um repertório católico afroindígena
do qual ele criou a partir de suas experiências.
Na história da Tiririca se destacam as alianças com grupos indígenas de diferentes
regiões do Nordeste, em especial a relação de parentesco com os grupos mais próximos
da comunidade, como os atuais Pankará da Serra do Arapuá e Atikum da Serra-Umã.
No entanto, há de se destacar as relações da Tiririca com algumas aldeias Pankará. A
partir de 2010 esta relação foi fortalecida através de uma nova organização no sistema
educacional relacionado a estes dois grupos, conforme será abordado no próximo
tópico. No entanto, esta relação vem sendo investida desde 1940 com a chegada dos
51
irmãos Miguel, vindos da atual Aldeia do Riachão, da Serra do Arapuá.
Destaco Manuel Miguel – indígena Pankará, “curador, xangôzeiro e feiticeiro” 27
conhecido como “Mané Miguel”, “Doca” (na Serra do Arapuá) e “Marinheiro” (porque
incorporava uma entidade “aleijada” que possui este mesmo nome e era a forma como
as entidades que ele recebia, se referiam a ele) – que casou-se com Isaura (“negra da
Tiririca”), que fazia parte das duas famílias que originaram a comunidade, os Canuto e
os Antônio, sendo filha e herdeira de Pedro Canuto, personagem histórico que ganhou
parte das terras da Tiririca (Figura 10). A união deste casamento representa a conexão
das três principais famílias da comunidade, acrescentando às já citadas, a família
Miguel.
Figura 10: Isaura e Mané Miguel representados, nesta fotografia restaurada que se
encontra na casa de Mãezinha.
Juntos, eles tiveram 9 filhos28, dos quais cinco (Mãezinha, Zé Miguel, Verinha,
Roberto) moram atualmente na comunidade, sendo Roberto e Verinha as principais
lideranças.
A chegada e estabelecimento de Manuel e seu irmão Antônio, na Tiririca dos
Crioulos, foi um acontecimento que possibilitou uma organização e articulação político-
27Conforme os termos utilizados pelas pessoas, pelas quais entrevistei, sobre Mané Miguel.
28Antônio Manoel do Nascimento, Antenor Manoel do Nascimento, José Manuel do Nascimento,
Dioclécio Manoel do Nascimento, Jonilson Manoel do Nascimento (adotivo), Maria Isaura da
Conceição, Maria Carmelita do Nascimento (falecida), Maria Ilda da Conceição (falecida), Maria
Cilceide de Jesus (falecida e Dalva Lúcia do Nascimento.
52
ritual com os Pankará, os Atikum-Umã 29 , os Tuxá de Rodelas, os atuais Pipipã de
Kambixuru entre outros grupos e pessoas, de diferentes regiões de Pernambuco, Minas
Gerais, Bahia, Piauí e Maranhão, envolvendo populações economicamente carentes e
elitizadas do Sertão do São Francisco. Além de Mané Miguel ser atualmente
considerado um Patrimônio Cultural da comunidade 30 , é reconhecido também pelos
índios Pankará como uma importante liderança da região pelo poder de cura que
envolviam seus trabalhos.
1.3.1. O toré
“Juremeira brava quem te amansou (2x)
Foi o nosso bom pai foi Deus que nos criou (2x)
Juremeira brava tu és a rainha (2x)
Dona na ciência mais a chave é minha (2x)”
(linha de produção da bebida da Jurema)
29
Mané , Antônio e seu pai Manuel Rosalino participaram do toré realizado na Serra do Umã, no
processos de reivindicação étnics dos Atikum-Umã da Serra do Umã, em 1940.
30
Por meio da ação “Do Buraco ao Mundo: segredos rituais e patrimônio de um quilombo-indígena”.
53
processo de pratica e elaboração do toré, bem como a atualização cultural da Tiririca, as
pessoas passaram a se reconhecerem como “caboclos do Marinheiro”. Além disso,
conforme depoimentos, esta categoria tornava a relação deles menos conflituosa com
outros atores sociais da região, do que ser “negro da Tiririca”.
Ao mesmo tempo que a categoria “caboclo”, em contexto nacional era associada à
mistura de identidades, como um atributo negativo, usado para deslegitimação dos
índios do Nordeste e seus direitos ao território (interessante para o Estado e fazendeiros
da região), caboclo também era, dentro de um contexto interno, das dinâmicas rituais
destes grupos, aquele que guardava a ciência indígena, “do tronco do juremá”, como
vemos em uma das linhas de toré, que vivenciei na Tiririca:
Ele começou no toré porque era da família dos torezeiro, mesmo, né? Esse
irmão do meu pai [Antônio Miguel], ele começou recebe espirito nesses toré
que ele frequentava na Serra Umã, no Enjeitado, aí meu avô frequentava
também. Da família de meu pai tinha meu pai, tio Tonho, madrinha Celina,
tia Joana, tia Zefa, tudo trabalha com esse negócio. Agora umas não baixava
sessão era só em terreiro dançando, outros baixava sessão, e o outros que não
trabalhava, eram benzedor, tinha Zé Miguel, Mamãe Jacinta, de todos, de
54
todos que ouvi falar que não benziam, das irmãs de meu pai, só era Mãe
Nedinha. (Mãezinha, filha mais velha de Mané Miguel, na Tiririca dos
Crioulos em 2013).
Figura 11: Pajé Pedro Limeira, filho de Luiz Limeira. Foto tirada do perfil do Facebook de
Dorinha Pankará, sua filha e atual cacique, de autoria desconhecida.
55
Figura 12: Pajé Manuel Caxiado, no evento Abril Indígena, realizado em Recife em 2013.
Além dos torés realizados por Mané e Antônio Miguel na Tiririca, haviam as
sessões de mesa que se constituíam em trabalhos de curas realizadas separadamente em
suas casas. Estes rituais possuíam o caráter de curar as pessoas doentes que os
procuravam e que permaneciam hospedadas em suas residências. Embora a prática
desses trabalhos ocorresse de forma separada em função de suas entidades31 (a entidade
de Mané Miguel era conhecida como Velho Xangô da Bahia e a entidade de Antônio,
era chamada de Joaquim Bangalô), eles se encontravam na realização de torés, nos
terreiros citados anteriormente.
Nas narrativas locais, Mané Miguel é mais afamado, tinha [e ainda hoje tem]
prestígio (Figura 13). Mané passou a ser convidado a participar de outros grupos de toré
na Serra do Arapuá e no Riacho do Olho-d’água, Serra da Cacaria (todas localizadas no
território Pankará) e na Estrada de Santana32 .
31 Não foi possível aprofundar nesta questão e saber se foi somente em função das entidades.
32
Hoje sendo incorporada a proposta de território da Tiririca dos Crioulos, para o INCRA.
56
Figura 13: Foto de Mané Miguel, do acervo pessoal de Mãezinha.
Em uma das visitas que Mané realizou em outros terreiros, se destaca a ocorrida
no episódio do levantamento do Posto Estácio Coimbra, na Serra Umã, citado por
Mendonça (2013:91-92) através da passagem de Tubal Viana, inspetor do SPI, em que
Mané, juntamente com Antônio e seu pai, de acordo com outras narrativas locais foram
com outras lideranças e indígenas da Serra da Arapuá colaborar na realização do toré de
legitimação dos índios da Serra Umã. Conforme Grünewald (1993:47), também fizeram
parte do levantamento do toré da Serra do Umã os Tuxá, na presença de Roque Tuxá,
Mestre Antônio, Caboca Anália e Adolfo.
Na formação do Marinheiro se encontra uma das importantes lideranças religiosas
do índios Pankará, chamada Amélia Caxiado, assim como Roque Tuxá33, dos atuais
Tuxá de Nova Rodelas/ PE. Ambos foram essenciais no processo de “disciplinar as
correntes” do Marinheiro, processo que consiste na preparação de sua mediunidade para
receber e se comunicar com seus guias. As pessoas que possuem este papel são
identificadas pelos iniciados como seus padrinhos e madrinhas.
Em 1950, no contexto regional, ocorreu a primeira ruptura entre os Atikum e
Pankará que iria durar até o final do século XX (Paoliello, 2010). Tal separação
33
Conforme Mendonça (2013:96): “Os Pankará possuem uma relação histórica com os índios Tuxá de
Rodelas que informa a grande mobilidade desses índios pelos sertões do São Francisco. No início do séc.
XX , mantiveram uma ativa rede de mobilização política ritual, observada tanto nos relatos dos Limeira,
como nos relatos dos Caxiado [...] eram frequentes as visitas dos Tuxá na Serra do Arapuá, com destaque
pata o fato de Roque Tuxá ter estabelecido moradia na serra, na Lagoa”.
57
possibilitou aos Pankará o fortalecimento do toré, bem como estabelecer relações com
outras comunidades que compartilhavam lugares sagrados que serviram,
posteriormente, para justificar à Funai o uso coletivo e a memória de seu território
(idem).
Pode-se observar que o fortalecimento ritual dos Pankará está ligado também com
as relações desenvolvidas com a Tiririca dos Crioulos, dos quais compartilhavam
dinâmicas rituais em uma época na qual foram abertos alguns terreiros (locais sagrados
de realização dos torés) como o do Mestre Bonito, na serra do Melado, atualmente
inserido como proposta territorial da Tiririca, o Terreiro da Serrinha, localizado na serra
da Lagartixa e do Mestre Alves, na base da Serra do Arapuá. Todos eles construídos
distantes das casas em função de perseguições, tanto por parte de policiais como de
fazendeiros 34 , manifestando uma das estratégias de resistência dos grupos, além da
realização dos rituais ocorrerem durante o período da noite.
A interrelação entre terra e toré gerou constantes perseguições às lideranças
politico-rituais Pankará conforme trabalhado por Mendonça (2013:105), a exemplo do
caso de Luiz Limeira, importante liderança, responsável pelas articulações com o SPI
(Serviço de Proteção ao Índio). Tal ligação ocorreu em função do toré ter sido uma
linguagem acessível nas negociações com SPI (e apropriada pelo movimento indígena,
para marcar distintividade) que legitimava os índios do Nordeste e possibilitava a
instalação de Postos Indígenas e outras formas de assistência.
A intensa relação da Tiririca com algumas aldeias aparece nos depoimentos de
Manoel Caxiado (pajé Pankará) e de Roberto, compartilhados por Mendonça e Andrade
(2014), bem como por Mendonça (2013):
Na serra do melado tem o terreiro do Mestre Bonito, mas a gente tem que
reconhecer que os Pankará que descobriram a ciência lá foram os Miguel, que
são povo da Tiririca. Era Manoel Miguel que fazia os rituais lá e o povo da
Serra ia, porque sempre se batia aqui em todo canto pra fazer o ritual. A gente
ia pra lá, o povo da Tiririca vinha para o Toré na Serra, porque no tempo dos
mais velhos eles ficavam transitando de lá para cá para poder fazer o ritual
(Manoel Caxiado, pajé Pankará, 2010, citado por Mendonça e Andrade,
2014: 108).
34
Roberto, Mãezinha e Verinha relembram que Capitão Dário Ferraz, de Floresta, e Mané Simão Bastos,
de Carnaubeira da Penha, encaminharam Mané Miguel para Recife, no bairro de Casa Amarela, para
conseguir documentos que permitiam a realização de trabalhos espirituais sob seu comando. Segundo
eles, um documento era do I Centro Espírita de Recife e o outro da Federação Espírita do Brasil, sendo
um dos dois datado em 1967. Para Mãezinha, esses documentos “davam a Mané Miguel uma cobertura
maior na realização de seus trabalhos”.
58
Essa aliança que sempre teve entre Tiririca e Pankará fortaleceu muito a
cultura do tiririqueiro. Desde o tempo de Manoel Miguel, lá pelos anos 40,
50, 60, que os caboclos lá da Cacaria apóia a gente aqui, porque naquele
tempo chamava era caboclo. Era Luiz Limeira, Zé de Olímpio, o velho Pedro
Limeira, que na época era moço. Esse pessoal nunca abandonou a Tiririca.
Umas quatro vezes por ano tinha a visita do povo da Cacaria para a Tiririca e
da Tiririca para a Cacaria [...] No tempo que teve lá em cima os problemas
com os Limeira, que os donos das terras não deixavam eles circularem lá, a
Tiririca sempre foi porta aberta, eles passavam por aqui pra chegar nos outros
cantos. Tinha aquele apoio porque faziam juntos os rituais. (Roberto,
liderança da Tiririca, 2013 citado por Mendonça, 2013, p.205/206).
Outra aliança que teve é com o pessoal do Poço do Mato [Aldeia Pankará no
pé da Serra]. Tinham duas visitas: noite de fogueira, que vinham duas
carradas de gente pra dançar Toré aqui na Casa Grande, e dia 31 de
dezembro. Só veio se acabar quando teve uma guerra lá no Poço do Mato que
foi antes do Massapê[...]. No ritual na Tiririca juntava tudo: Poço do Mato,
Massapê, Cacaria, isso foi até 1989. Em 1990 teve a questão lá. Mas, até
1989, duas vezes por ano, tinham os rituais aqui na Tiririca. A gente chamava
os caboclo do Poço do Mato, mas ali não era só Poço do Mato, juntava tudo,
quem tinha ligação com o ritual. Botava duas carrada de gente alí e ia para a
Tiririca. Vinha gente do Brejo do Gama, pessoal de Vaqueiro, mas quem
organizava era o o Poço do Mato. Por isso a Tiririca nunca teve isolada dos
Pankará. Ficava peregrinando: Poço do Mato, Tiririca, Cacaria. E para você
ver mais uma coisa, teve a exigência da cabocla Amélia Caxiado que não
queria que o seu maracá ficasse na Lagoa [aldeia Pankará no cume da Serra],
mas que ficasse no velho xangô, aqui na Tiririca. Nunca foi uma relação
distante (Roberto, liderança da Tiririca, 2013 citado por Mendonça, 2013,
p.206)
36 O pajé do povo Pipipã relata que era característico de Mané Miguel a utilização de livros em seus
trabalhos (Nivaldo Léo Neto, com.pess.).
37 Trombini (1994:128) orienta que o uso do livro de São Cipriano, em rituais aponta para a
60
Figura 14: Um dos livros que pertenceu a Mané Miguel, que se encontra sobre os
cuidados de Verinha.
39
Importante anciã, parteira, benzedeira, antiga responsável pela Novena de São João, (que é considerado
o padroeiro da Tiririca), uma das pessoas referencias no torégira e na história, considerada atualmente um
Patrimônio Cultural da Tiririca, através do projeto Do Buraco ao Mundo .
40 Ela se refira à cidade de Cachoeira e São Felix, localizadas no Recôncavo Baiano, conhecidas pela
63
no comércio de algodão e em outro casamento41. Este acontecimento gerou 20 anos de
descontinuidades do torégira, dos quais obrigaram as pessoas que foram disciplinadas
por Mané Miguel a assumirem postos de lideranças na Tiririca.
Roberto conta que a inserção de Mané Miguel neste novo contexto possibilitou
sua participação em processos de disputas territoriais nesta região, sendo legitimado
como “chefe” e Roberto como “chefe novo”42. Em outra perspectiva, a mudança do
Marinheiro pode ter relação com as dinâmicas do narcotráfico da região e a falta de
intervenção do Estado em situações ocorridas, na década de 1990, como assassinatos de
lideranças e/ou pessoas ligadas a elas, causando migrações de famílias tanto Atikum
(Grünewald, 1993) quanto Pankará (Mendonça, 2013). Também cabe destacar que neste
período o Governo Federal incentivava, através da Sudene43 e DNOCS44 o plantio de
algodão nesta região.
O assassinato do líder Atikum Abdon Leonardo da Silva e de seu irmão, ocorrido
em 1990, ressaltou como inimigos deste líder a estrutura do narcotráfico e as famílias de
posseiros na área indígena. Após sua morte, sua família foi refugiada na área Potiguara,
na Baia da Traição/PB e um grupo foi assentado primeiramente no oeste da Bahia e
posteriormente, em Cabrobró /PE, área Truká.
O Banimento do Massapê, denunciado por Mendonça (2013), ocorreu em 1998
com uma série de violências causadas à este grupo, que atualmente se autodenominam
Pankará. Este acontecimento foi disparado pelo narcotráfico que envolveu a prefeitura
de Carnaubeira da Penha e jovens desta localidade, onde entrou em óbito uma pessoa
que invadiu a mesma. Posterior à esta invasão, segundo a mesma autora, um jovem
deficiente mental foi torturado até a morte e houve a fuga de 96 famílias para Floresta,
onde foram recebidas pelo Bispo e prefeito, dos quais não fizeram nenhuma denúncia
oficial (Mendonça, 2013).
Neste momento, o ritual da Tiririca foi assumido pela “Cabocla Raquel” (vinda da
Quixaba), juntamente com Manuelzinho de Alcino, Lídia Jacinta do Nascimento (mãe
do pajé Dodô), Dodô (atual pajé, que era conhecido como “caboclo índio”) e os Preta
41 A segunda esposa oficial de Mané Miguel chama-se Maria, atualmente mora em Floresta e dá
seguimento aos trabalhos espirituais. Juntos eles tiveram uma filha.
42 Em entrevista com Roberto, este relatou um acontecimento no qual Mané Miguel lidera outros
moradores dessa região em um processo de derrubada de uma cerca, posta por algum fazendeiro.
Possivelmente, dado esse caráter de liderança, ele assume o cargo de chefe acima citado.
43 A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) é uma autarquia vinculada ao
64
(moradores da Estrada de Santana, na Serra da Lagartixa). Outros pessoas assumem a
direção do ritual, imprimindo suas referências, trajetórias e incorporando outros guias.
Barth (2000) fala que cada líder ritual, a partir de suas experiências, lida de forma
diferente com o manejo das informações, no armazenamento e distribuição, bem como
na forma de organização de tais fluxos.
Dodô mudou-se para a Fazenda Vazante, localizada próxima ao quilombo de
Conceição das Crioulas, dando seguimento a realização do ritual, juntamente com seu
Compadre Manézinho, imprimindo seu modo, recebendo seus guias e tecendo suas
possibilidades de relações. Nesta ocasião, João Miguel (pajé Pankará, filho de Antônio
Miguel e a cabocla Chiquinha, casado com uma indígena Pankará, da Serra do Arapuá)
assumiu a realização do ritual na Tiririca em momentos pontuais, “trabalhando”
somente com as linhas da jurema (o toré), se afastando, posteriormente, por problemas
de saúde.
O conhecimento administrado pelas pessoas que dirigiram e dirigem o torégira
difere um do outro, pois cada líder ritual possui uma experiência única do mesmo,
construída em alguns casos por um estado alterado de consciência, dada por sensações
que ocorreram em suas experiências rituais. Com isso, a reprodução ritual realizada
pelas pessoas que aprenderam com Mané Miguel não foram e não são apenas repetição
das ações. Os discípulos do Marinheiro produziram e produzem estas realidades,
declararam e declaram suas autoridades, manipularam e manipulam, cada um da sua
maneira, os fluxos materiais referentes ao conhecimento que envolve o ritual. Porém
não parte somente deles, uma vez que as relações de poder são legitimadas ou não.
Desta forma, cada pessoa que assumiu a direção do torégira imprimiu seu modo de
“trabalhar”, manipulando a memória juntamente com a criatividade em lidar com o
presente.
Mané Miguel teve dois derrames e parou de realizar as curas e os trabalhos como
liderança da Tiririca em 1996/97. Após seu falecimento e o da Cabocla Raquel (em
2000), o “Centro do Preto Velho Canzuá do Velho Xangô”, com as imagens das
entidades cultuadas pela comunidade como Pretos Velhos, Rei Malunguinho, São Jorge,
Iemanjá, Padre Cícero Romão Bastista, Zé Pilintra e o maracá de Amélia Caxiado,
foram guardadas, segundo Dodô, “por falta de zelo”. Neste momento alguns anciões da
Tiririca se comunicaram através de sonhos com Mané Miguel que ressaltava o desprezo
ao “Canzuá do Velho Xangô”.
65
A organização social da comunidade perante o Estado, os conflitos com o
narcotráfico da região e a mudança de planos de Mané Miguel, ocasionaram em um
período de 20 anos de não realização do ritual. Dodô interpreta este momento como se a
Tiririca tivesse parado e ficado no chão, mas ele identifica o “levante da aldeia” a partir
de 2010, impulsionado pela Organização Interna da Educação Escolar Indígena Pankará
(OIEEIP), da qual reflito a seguir.
Neste último tópico, observo como ocorreu a constituição formal da Tiririca dos
Crioulos em diálogo com o Estado, a partir das circunstâncias e situações históricas
compartilhadas anteriormente. Como dito, a ideia de “processos de territorialização”
colabora com tal discussão devido ser “o movimento pelo qual um objeto político-
administrativo vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade, instituindo mecanismos de tomadas de decisão e de representação,
reestruturando suas formas culturais” (Pacheco de Oliveira, 1998:56)
Tal concepção permite reconhecer a elaboração da Tiririca enquanto um grupo
étnico, a partir de seus processos históricos, dos quais se apropriam como uma atitude
política de reivindicações de direitos, manifestando o que hoje se entende como um
“quilombo-indígena”.
Alguns traços culturais são elencados como significativos para a coletividade,
destacando-se o ritual de torégira. Embora este traço cultural não tenha sido imposto à
esta coletividade, como ocorreu com os Atikum no levantamento do Posto Indígena na
área (Grünewald,1993:51) e com outros grupos que fizeram parte deste período
histórico. O torégira é acionado para legitimar a distintividade étnica da Tiririca
enquanto um “quilombo-indígena”.
Os “processos de territorialização” da comunidade constituíram em sua
organização social através das atualizações das práticas rituais e educacionais ligadas às
relações estabelecidas de forma mais intensa com os Pankará, o Estado, ONGs, outras
comunidades indígenas, quilombolas e pesquisadores (as). Estas relações têm motivado
a Tiririca a reconstruir sua memória, como ressaltado por Mendonça e Andrade (2014),
66
além de escolher estrategicamente e experimentar as identidades que a compõem para a
constituição de suas fronteiras étnicas e representação oficial.
Apresento três momentos importantes na constituição do repertório cultural da
Tiririca dos Crioulos na composição de suas fronteiras étnicas, constituindo-se ao longo
do tempo através de seus processos de interação com outros atores sociais e que não são
formas distintas, mas fluxos paralelos e convergentes:
1) Em um primeiro momento, se associa às relações estabelecidas com grupos e
pessoas do entorno como índios Pankará e Atikum, pessoas residentes em sítios rurais
vizinhos e fazendeiros da região;
2) Num segundo momento, esta construção se associa à relação com a ONG
Conviver no Sertão (de Mirandiba), aos movimentos sociais ligados às comunidades
negras rurais e ao Estado;
3) Num terceiro momento, se relaciona aos pesquisadores (as), movimentos
indígena, quilombola e sociedade nacional, com a inclusão de políticas territoriais e
patrimoniais que adentraram na comunidade.
A Associação Remanescente Quilombo da Tiririca foi criada em 1999 (ano em
que Mané Miguel faleceu), quando Roberto já exercia o papel de “conselheiro e chefe”
na Tiririca, desde o ano anterior. Ajudou a fundar o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais 45 e o Conselho do Movimento Rural Sustentável, em Carnaubeira da Penha,
revelando seu engajamento para fora da comunidade, em articulação regional e
movimentos sociais.
Esse processo de organização interna da Tiririca, na formação de uma associação,
bem como na articulação com sindicato e conselho do município, compõe um
movimento regional, no início da década de 1990, exposto por Paoliello (2010) e sendo
relacionada a eleição de um prefeito do PT (Nelson Pereira dos Santos). O município de
Mirandiba ampliava o acesso das comunidades negras rurais à distribuição de recursos,
colaborando na formação de associações comunitárias (Paoliello, 2010 :146). Além
disso, neste período, por meio de cooperações de ONG’s, são apresentadas novas
perspectivas às comunidades rurais ligadas ao trabalho agrícola em parcerias com
órgãos federais e agências internacionais (idem).
Desta forma, o primeiro formato da Associação na Tiririca foi de “pequenos
produtores rurais”, como citado anteriormente. Neste período, se por um lado
45 Do qual foi diretor por um período, mas saiu por não ter condições de administrar.
67
ampliavam-se as perspectivas das comunidades negras, por outro, ocorreram conflitos
intensos que envolveram o narcotráfico e grupos indígenas da região, conforme
compartilhado.
A Tiririca dos Crioulos foi oficialmente reconhecida, enquanto comunidade
quilombola pela Fundação Cultural Palmares46, em 2008, após nove anos de existência
da Associação Remanescente Quilombo Tiririca. Acompanhada por uma sequência de
comunidades de Floresta, Salgueiro, Mirandiba e Carnaubeira da Penha que se
reconheceram como tais. Movimento que foi iniciado em 2005 pelo quilombo de
Conceição das Crioulas, localizado em Salgueiro e de Massapê, em Carnaubeira da
Penha. Em tabela a seguir (Tabela 1), observamos a distribuição temporal de tais
certificações:
Tabela 1: Produzida com base nos dados fornecidos pela Fundação Cultural
Palmares, oferecidos através do site, das comunidades Quilombolas da região
certificadas até 31/12/2015.
Como dito “a serra é dos caboclos e a Tiririca é dos crioulos”, percebo que a
memória está situada no ambiente onde a experiência é vivida e conforme Ingold e
Kurttila (2000: 187):
o trabalho da memória do qual essas pessoas continuamente fazem do seu
passado está intimamente amarrada a suas experiências particulares de
habitar o local [...] este conhecimento sobre o tempo não é somente
manuseado como um conjunto de prescrições de costumes ou formulas; mas
isso é dado ao longo das experiências de vida, que vivem neste local e que se
movem no ambiente.
70
Nesse Movimento Quilombola eu participei de umas oficinas e ganhei uma
bolsa que eu achei muito importante aquele slogan de quilombola. Aí quando
a organização Pankará me elegeu como coordenadora do núcleo seis [divisão
da educação escolar na Serra do Arapuá], eu passei a fazer parte da gestão
das escolas Pankará. Um dia, fui para o encontro de educação indígena em
Pesqueira e tinha gente que vinha me perguntar, olhando para a minha bolsa,
mas você não é quilombola? Então eu tinha que explicar a história de
parentesco, da luta pela terra... Aí eu tive que explicar até para Vitória
[técnica da Seduc] que disse: ah! Agora eu entendi que Pankará é uma etnia
diferente! Todo mundo estranha. Dona Valdeci de Itacuruba [liderança do
quilombo Poço dos Cavalos] me disse: ó Verinha, será que isso não vai
atrapalhar? Ou você é quilombola ou você é indígena. Eu disse: “ não, dona
Valdeci. Tem que entender, porque a gente não pode nascer só de uma mãe,
ou só de um pai, não tem filho só de um. E a Tiririca nasce de dois, então é
indígena e é quilombola. É um negro com traço de índio, é índio com traço de
negro, mas é essa a relação”. Depois de tanto o povo perguntar, eu resumi
assim: somos um quilombo-indígena. E ficou. (Verinha, liderança da Tiririca,
2013, citada por Mendonça, 2013, p.204).
71
reivindicam enquanto quilombolas na contemporaneidade, em função do fator étnico
não ter sido considerado “ao processo de formalização jurídica da estrutura fundiária”
(Almeida, 1996 :72).
Parte do território que hoje é reivindicado pela Tiririca como tradicional foi sendo
adquirido através da compra. Primeiramente doado por Pinto Madeira e Helena à Pedro
Canuto e herdado por sua filha Isaura que junto com Mané Miguel ampliou o território
(Mendonça, 2013). Durante a produção do relatório de delimitação da comunidade,
Mendonça (2013:194) cita o relato que “as terras da Tiririca foram documentadas em
Flores em favor de Pedro Canuto e seus descendentes” e que a ideia da existência deste
documento favoreceu a permanência na área.
A relação do Estado na interlocução com estes grupos e consequentemente com a
Tiririca dos Crioulos, ocorre através das “formações tributárias” conforme abordadas
por Wolf (2003: 338), das quais são formas de classificar os atores sociais,
hierarquizados através de critérios de gênero, descendência, dentre outros aspectos.
Com isso, são estabelecidos distintos estratos sociais, cada um marcado por uma
substância interna que os diferencia e define suas posições e privilégios na sociedade.
Embora a Tiririca tenha preferido pela categoria “remanescentes das comunidades
de quilombos” para sua regularização territorial, conforme discutido anteriormente, esta
é uma categoria burocrática e fechada que revela a forma inflexível do Estado no trato
com esses grupos, sendo cotidianamente ultrapassada pelas organizações da
comunidade. Para Ingold e Kurttila (2000: 186), o conhecimento tradicional é
inseparável das atuais práticas de ocupar a terra, junto com a vida animal, vegetal e as
práticas de sustento que tal conhecimento é gerado.
Conforme foi abordado por Mendonça e Andrade (2014: 40), em 2010 a escola
que administrada pelo município de Carnaubeira da Penha foi fechada, em função das
alianças entre Tiririca e Pankará terem se tornado públicas. Este acontecimento moveu
os dois grupos a uma nova organização da educação, na qual a escola da Tiririca foi
incorporada como extensão da Escola Indígena Quintino Menezes, localizada na Serra
do Arapuá, além da solicitação para seu processo de estadualização (Mendonça e
Andrade, 2014).
Esse é um acontecimento importante por trazer outra forma de organização social
compartilhada entre a Tiririca e os índios Pankará, conforme ressaltou Mendonça
(2013:33), de que até então a Tiririca não estava inserida na organização social Pankará,
72
apenas mantendo relações de sociabilidade. Verinha exibe um banner (Figura 16) com
as escolas das quais ela coordena: Escola Indígena Manuel Miguel do Nascimento,
Escola Indígena Vicente Muniz, Escola Indígena Nossa Senhora da Conceição e Escola
Indígena Mestre Otaviano.
Figura 16: Verinha exibe banner localizado na secretaria da escola local, com todas as escolas
pelas quais ela coordena.
47 Das quais, segundo a autora, colaboraram com a oficialização de denuncias (Mendonça, 2013).
73
A gente viu a Tiririca muito perseguida, muito esquecida pelo Poder Público.
E a gente queria se fortalecer, a gente queria a Tiririca junto com Pankará
nessa luta pela educação de qualidade que respeitasse essa história. Essa
forma própria da Tiririca ser, que também, na sua história, na sua prática
diária, tem a forma de Pankará fazer e ser. Então o que a gente pensou?
Vamos organizar a educação. Dissemos: vamos incluir na nossa organização
da educação as escolas da Tiririca e com isso, a garantia do direito que
Pankará já estava usufruindo e que Tiririca, mesmo sendo o mesmo povo, da
linhagem histórica do mesmo povo, tava sendo tão esquecida. A gente queria
que partilhasse as mesmas vantagens que Pankará estava usufruindo. Daí o
Estado [Seduc] disse: como é que vocês vêm trazendo essa escola, a Tiririca
não é um quilombo? Como é isso? Aí Verinha foi e disse: lá é um quilombo-
indígena porque a nossa história e a nossa relação familiar é a mesma de
Pankará. E a religião contava muito nesse sentido, dos encantos de luz, da
gente cultuar os mesmos rituais, enfim, isso tava muito explicado, mas o
Estado não entende. A gente garantiu o acesso à educação, como Pankará
vinha se organizando na educação com o Estado e a gente colocou em
prática. E achou que o Estado foi vencido, na prática, por perceber que isso é
muito natural aqui no território, e quando a gente começa a executar, a
construir juntos, as práticas pedagógicas juntos, todo mundo viu que isso, na
prática, para nós é assim que acontece (Luciete, professora Pankará, 2013).
Citado por Mendonça e Andrade (2014: 97)
Nas duas narrativas, percebemos como a aliança entre esses dois grupos se
constituíram ao longo das dinâmicas rituais que possibilitam pensar atualmente os
vínculos de parentesco e as formas compartilhadas de organização social que interferem
na forma hegemônica do Estado em suas políticas governamentais. A categoria
“quilombo-indígena” passa a ser reconhecida pela Tiririca, Pankará e pelo Estado, por
meio da Secretaria Estadual de Educação/Gerência Regional de Educação (Seduc, GRE)
de Floresta. Esta aceitação não ocorre de forma tranquila, existindo conflitos que
perpassam todos os atores envolvidos, no entanto, conforme Barth (2000), compreendo
74
que a partir desta aceitação há um compartilhamento de valores entre esses diferentes
atores, através de uma performance de reafirmação étnica bem sucedida.
O Estado tem compromisso com as escolas indígenas através da Resolução 03/99
do Conselho Nacional de Educação, e que para Mendonça (2013: 121) foi a abertura
para os Pankará buscarem autonomia em seu Projeto Político Pedagógico. Há também
o compromisso com a educação diferenciada assegurada pelas Leis 10.639/2003 e
11.645/2008, que oferecem a possibilidade de pensar em diferentes formas de
organização na educação de grupos indígenas e quilombolas, além da inserção das
questões aforindígenas nas escola em geral. Tal reconhecimento não ocorreu via
INCRA e FUNAI que são órgãos responsáveis pelas regularizações fundiárias de terras
quilombolas e indígenas respectivamente.
Esta organização traz outra forma de condução política do Estado, advinda da
prática estabelecida entre esses dois grupos historicamente negligenciados por um lado
e resistentes por outro. A “mistura” que no século XIX foi critério para negação dos
direitos à terra, hoje é articulada positivamente, estabelecida como diferença cultural
pela Tiririca para obtenção de direitos, onde o território é visto pelo INCRA e a escola
local é indígena. Podemos observar a criação de um espaço de interlocução com o
Estado, na qual as identidades construídas no cotidiano são políticas, em função de sua
interferência na criação de políticas públicas e de novas categorias, conforme discutido
por Fraser (2001).
A partir desse processo de incorporação da escola da Tiririca à organização social
Pankará e de ter que pensar em um currículo diferenciado, ocorreu a emergência do
torégira com um espaço nas aulas de Artes da escola local, na sua realização mensal e
em apresentações internas e externas à comunidade. Assim, a partir de 2011 a
comunidade passa a facilitar processos de ensino-aprendizagens que envolvem o ritual,
a fim de promover a transmissão do conhecimento e reforçar suas especificidades
culturais.
75
76
Capítulo 2:
77
O ritual que ocorre mensalmente, na sexta-feira, colabora com experiências
potenciais de ligação entre as pessoas com outros materiais (como plantas e outros
instrumentos), dos quais mediam o contato com entidades e com elas a possibilidade de
se alcançar o mistério de um “sentimento de poder infinito” (Turner, 1974: 169), de
poder resolver alguns problemas da vida. Possui uma eficácia de cura e possibilita
interações entre pessoas, de diferentes gerações e gênero, guiadas pelo “complexo ritual
da jurema” (Nascimento, 1994), através de uma ação coletiva que se realiza com dança,
produção e ingestão de bebidas e as linhas (músicas e correntes espirituais), tornando tal
evento privilegiado de intensificação e dramatização do que é usual (Peirano, 2002: 27).
Para Turner (2005: 139), o ritual é transformador, e está ligado às transições
sociais. Ele atenta para o processo de “imprimir nos corpos a significação do indivíduo
e do grupo” (Turner, 2005), ressaltando o processo de transmissão de conhecimentos
que envolve a experiência do ritual. O torégira se constituí por ocorrências simultâneas
que envolvem processos de iniciação de certas pessoas, a possibilidade de experiências
potenciais, proporcionando um espaço transitório onde se manifestam entidades. Posso
dizer que os líderes rituais criam por meio da experiência do torégira um “clímax[...] um
drama que ocasiona na transformação” (Turner, 2005) de crianças, consideradas
48
autoridades rituais que estão em formação , bem como a de Douglas, enquanto
professor de Artes, em busca de um roteiro de ensino-aprendizagem sobre o ritual.
No entendimento do autor, o ritual e seus ensinamentos esotéricos que criam as
pessoas e fazem delas, nos moldes da cultura (idem), me parece que tal apontamento
possui relação com a discussão de Wolf (2003: 338) sobre o poder do ritual como
produtor de sentido, na escolha de materiais específicos e certas informações que
compõem a experiência, através de sua prática e repetição. Estes materiais e
informações escolhidos são chamados por Turner (2005: 147) de “aspecto vital da
comunicação dos sacras” e são considerados evocativos, sagrados e manipulados por
meio de exibições, ações e instruções durante o processo ritual, provocando os
participantes a refletirem sobre a vida.
Pode-se dizer que esses “sacras” estão permeados de crenças, valores,
pressupostos culturais que proporcionam um certo grau de abstração sobre o meio
cultural, ao mesmo tempo que fornecem referências sobre esta localidade (Turner, 2005:
Tal citação mostra a relação do ritual com a organização social da Tiririca ao ser
um espaço de sociabilidade, de encontro, conversa e fortalecimento das relações. É
inclusive algumas horas antes do mesmo que ocorre a reunião da Associação dos
Remanescentes do Quilombo Tiririca. Alguns jovens durante o ritual, por exemplo,
permanecem na sala de apoio, na cozinha e do lado de fora da Casa Grande do
Marinheiro, acompanhando a execução de apenas algumas linhas e estabelecendo
relações que envolvem paqueras e diversão (ver lugares na Figura 24). Já Janeide, como
ela mesma conta, possuí a obrigação de estar presente e conduzir o ritual.
Suponho que doença na Tiririca, de modo geral, é denominada também por
“mazelas” e “fluídos negativos”, com causas espirituais ou físicas, que podem ser
79
contornadas através do que chamou Loyola (1984: 64) de “técnicas de cuidado”,
oferecidas pelo ritual e por outros conhecimentos locais, como as rezas e benzeduras.
Uma vez por mês, são oferecidas outras técnicas de cuidado como o atendimento
no modelo biomédico realizado atualmente por uma médica cubana, junto com uma
auxiliar de enfermagem. A cada 60 dias acontece o atendimento com dentista, que
também atende as aldeias Pankará. Exames simples como de urina, fezes e sangue são
realizados em Carnaubeira da Penha, já os mais específicos ocorrem em Serra Talhada.
Quando Verinha se refere ao sistema de saúde oferecido pelo meios oficiais, ela conta:
“Aqui, a saúde é doente”. Ela compartilha que no contexto local tem muitos casos de
diabetes, hipertensão e anemia falciforme. Reconhece como uma das principais
dificuldades a morosidade dos resultados dos exames médicos realizados em Serra
Talhada, dificultando o andamento dos tratamentos. Desta forma ocorre uma certa
resistência das pessoas em utilizar este serviço e seguir com os tratamentos, em função
das dificuldades em relação ao deslocamento, falta de dinheiro, além da demora de
obter o resultado dos exames.
O ritual mensal e outras práticas de cura locais possibilitam ofertas de cuidados de
“dominância religiosa” (Loyola, 1984: 46), realizados na própria comunidade e com
tratamentos mais acessíveis, colaborando com a transmissão e produção de
conhecimentos voltados para os cuidados com a saúde. Segundo Loyola (1984),
podemos entender as práticas de cura de “dominância religiosa” como sistemas
religiosos que colaboram para o tratamento de doenças. Junto com Pinho e Pereira
(2012:438), também podemos pensar que esses conhecimentos criam a possibilidade de
relativizar a própria biomedicina como exclusiva na relação doença/cura. Sobre as
escolhas de terapias, conforme os referidos autores, os interlocutores selecionam suas
ações de cuidado de acordo com seus universos simbólicos (Pinho e Pereira , 2012:
441).
Além do uso de remédios alopáticos (receitados pelos atendimentos biomédicos e
comprados em farmácias), outras terapias são oferecidas, como o uso de plantas como
“agentes curativos” (Mota, 2007:136) através da ingestão das bebidas da cura e jurema,
de baforadas de fumaça com o cachimbo e dos banhos com ervas. As consultas com
entidades, orixás e encantos de luz, geram prescrições de remédios de origem botânica,
além da realização de passes e conselhos. Considero a realização de rezas, o ato de
acender velas e a dança também como terapias.
80
Uma das moradoras e médium que trabalha no torégira, conta que sua busca pelo
ritual ocorreu pela necessidade de se livrar dos maus pensamentos e preocupações.
Quando ela participa seus pensamentos ficam mais leves.
Percebo que historicamente a comunidade vem produzindo conhecimentos que
oferecem percursos de cuidado com a saúde, como foi apresentado no Capítulo I através
da trajetória de Mané Miguel. As pessoas experimentam opções de cuidado com a
saúde, dentro do “complexo ritual de jurema” guiadas por suas construções simbólicas
(Pinho e Pereira, 2012), criando seus próprios “itinerários terapêuticos” (idem), bem
como são influenciadas, em certas circunstâncias, por questões de poder relacionada aos
líderes que organizam os tratamentos. Entendo por “itinerários terapêuticos”, conforme
pontuado por Pinho e Pereira (2012):
81
Janeide, a cabocla-mestre, se reconhece como uma liderança que trabalha na
ciência, ela conta: “A minha tradição é essa, dançar o toré e beber a jurema”. A ciência
que Janeide ressalta em sua fala possui relação com o “segredo”. Para Mota (2007: 172)
a “ciência” significa conhecimento e o conhecimento significa poder, percebo que tal
fala manifesta o poder da cabocla-mestre de acessar certos conhecimentos religiosos
que envolvem segredo e certas obrigações com as entidades e que não estão disponíveis
à todos, mas que legitimam sua tradição. Conhecimentos que envolvem, como veremos
neste capítulo, materiais importantes no processo de atualização das relações entre
entidades e pessoas, conforme discutido por Rabelo (2012). Relações que foram
inventariadas em bebidas, danças, lugares sagrados, roupas, pessoas e linhas (música,
dança e correntes espirituais).
Desta forma, o ritual pode ser entendido enquanto “coisa”, conforme Ingold
(2012), em que convergem diferentes fluxos materiais em uma dinâmica de cuidado
(Rabelo, 2012) que envolve agenciamentos diversos (dentro e fora da comunidade) e
afetos entre as pessoas e entidades. Neste processo, veremos que ingerir as bebidas e
dançar o ritual consistem em dimensões de cuidado e transformação dos fluxos
materiais no contexto do torégira. Se desenrolam do ritual para o cotidiano, atividades
que possuem como objetivo a reatualização da relação com as entidades para lidar com
os problemas da vida, buscando bem-estar e proteção. São técnicas, por exemplo, para
lidar com o ambiente da caatinga, voltados para o manejo da raiz da jurema e o preparo
das bebidas, a extração do caroá para a produção das roupas, a extração da madeira da
jurema e do barro, para a produção dos guias (cachimbos). Conhecimentos sobre a
produção das bebidas e sua distribuição. Aquisição de certos materiais, através da
compra, como a cachaça e o fumo. Ligados às trilhas percorridas para se chegar até as
plantas e aos terreiros mais distantes, além de como são produzidos os conhecimentos.
Neste capítulo rastreio os fluxos materiais que se relacionam com o ritual, atenta
ao que Turner (2005) chamou de “comunicação dos sacras”, materiais apropriados
como símbolos. Os símbolos utilizados são atravessados por certas dinâmicas,
memórias e pessoas que os atualizam, animam, tornando-os vivos através de
movimentações e reinvenções em seus usos (Rabelo, 2012:118-119), em relações de
cuidado que transcendem o ritual mensal em outras práticas cotidianas.
82
2.1.O “complexo ritual da Jurema” em diálogos com o torégira da Tiririca
Trata-se de uma visão [...] onde o mundo aparece regido por um ser supremo
que domina o bem e o mal e que controla individualmente as pessoas,
premiando o bem e castigando o mal. O que se passa na terra é sua vontade,
cabendo aos seres humanos descobri-la, pois ela rege o destino de cada um.
(Minayo,1994:62)
86
todos os participantes, a realização de rezas católicas, repasse de informes comunitários
e a oferta das bebidas. A realização das linhas (música, dança e manifestação das
“correntes espirituais”), com as entidades e seus atendimentos.
O torégira ocorre no Centro Preto Velho Canzuá do Velho Xangô, composto pela
Casa Grande do Marinheiro, onde se encontra o Canzuá do Velho Xangô, local de
preparo das bebidas e que possui uma mesa com imagens das entidades cultuadas. O
Centro está localizado no mesmo cercado da Escola Manuel Miguel do Nascimento
(Figura 19).
Como veremos, o Centro é composto por diferentes espaços onde acontece a ação
ritual mensal (Figura 20), requerendo-se comportamentos específicos que irei descrever
a seguir e que podem ser considerados “espaços-tempos liminares” (Schechner, 2012:
65).
87
Figura 20: Da esquerda para a direita, a lateral da escola Manuel Miguel do Nascimento,
no centro, Andressa (bisneta de Maria de Ginu) na frente da Casa Grande Marinheiro
(localizada à direita na foto).
88
Figura 21: O jardim atrás da Escola e parte do terreiro externo do Centro. No centro da
imagem está o “Gentilzinho”, também chamado de “Oca” e um cruzeiro em sua frente. No
fundo a direita, parte da Serra do Arapuá.
89
Figura 23: Desenho de Maiara da Silva, da Casa Grande do Marinheiro, realizado em oficina da ação “Do
Buraco ao Mundo”, em janeiro de 2015.
“Juremeira brava
Quem te amansou
Foi o nosso bom pai
Foi Deus que nos criou
Juremeira Brava
Tu és a Rainha
Dona da Ciência
Mas a chave é minha”
90
Essas músicas, chamadas de linhas, em outros momentos são complementadas
pelo canto, percussão dos maracás e variações das pisadas, bem como pela dança e a
manifestação das entidades. Ao término de cada linha são realizados os “vivas”, uma
espécie de saudação, que será descrita adiante.
Esses líderes saem do Canzuá com as bebidas prontas em direção às outras
pessoas, que podem se encontrar na “Oca” ou “Gentilzinho” ou podem se reunir na sala
da frente da Casa Grande do Marinheiro, bem como no espaço externo do Terreiro . A
Figura 24 mostra a movimentação realizada pelas pessoas no decorrer do ritual,
ressaltando os espaços utilizados e acessíveis apenas à determinadas pessoas.
91
92
Figura 24: Diagrama de movimentação no Centro, durante o ritual mensal.
Neste momento são utilizados alguns livros, como o Ofício Divino das
Comunidades e o livro das Celebrações (produzido por algumas pessoas da Tiririca,
com orações, benditos e novenas para auxiliar nas celebrações que ocorrem durante o
ano). São realizados informes sobre festejos, acontecimentos e aniversariantes da
comunidade. Rezas católicas como o credo, pai-nosso, ave-maria para Nossa Senhora
do Desterro e o sinal da cruz, também são realizados.
Para a oferta das bebidas, os líderes se encontram sentados no chão, munidos com
seus maracás, virados para os materiais (bebidas, velas , fumo e cachimbo) dispostos
também no chão, onde realizam a distribuição das bebidas, primeiro a da jurema (se
houver), segundo a cura, em terceiro o meladinho (se houver) e por último o mel (se
houver). A distribuição das bebidas também acompanha linhas específicas para cada
uma delas. Seguem as Figuras 25- 27 com a exibição de parte deste momento.
93
Figura 26: O pajé Dodô serve a bebida da Jurema, em ritual realizado em setembro de
2014. Foto: Carmelo Fioraso.
Figura 27: José Antônio do Nascimento, conhecido como Zezinho de Antônio Miguel, ou
“Pai da Mata”, ingere uma das bebidas oferecidas. Foto: Carmelo Fioraso.
94
Vamos alevantar forgar em pé (2x)
Eu na mesa do meu velho Anjuca (2x)
Figura 28: Dança realizada na parte externa do terreiro da Casa Grande, em setembro de 2014.
Foto: Carmelo Fioraso.
Como podemos ver, o ritual se compõe por uma série de relações materiais que a
partir da orientação de Ingold (2012), não incluí apenas o movimento das pessoas
envolvidas, mas também a trajetória de outros organismos não-humanos. A exemplo, a
movimentação que ocorre antes mesmo do ritual, no processo de extração da raiz da
jurema, de crescimento da planta, de organização e busca de outros materiais, por onde
são trilhados os caminhos usados para acessá-los. Envolve considerar as plantas e as
frutas, das quais são preparadas as bebidas, o espaço do terreiro, onde se encontram
95
outros animais e plantas, as entidades e os processos de comunicação. Tudo sendo
constantemente ultrapassado por fluxos materiais de vida.
Penso que seria impossível traçar toda a movimentação e a trajetória dos
materiais ao longo das quais as relações rituais do torégira se manifestam. Mas o que
Ingold (2012) me ajuda a pensar, é que esses materiais possuem suas trajetórias
contínuas de um devir: “À medida em que eles se movem através do tempo e se
encontram, as trajetórias desses diversos elementos são enfeixadas em combinações
diversas” (Ingold, 2012: 39). Portanto, a possibilidade de composição da experiência do
torégira está ligada aos encontros e desencontros materiais desta localidade no fluxo do
tempo.
A partir do autor, podemos imaginar que as trajetórias através das quais a prática
de improvisar acontece, ou seja, a prática de continuar em movimento, de criar
composições, de produzir conhecimentos, está em constante devir, sendo linhas ao
longo das quais o torégira é continuamente formado. O contexto do torégira envolve
fluxos materiais gerados por pessoas, mas também relacionados às memórias, entidades,
outros animais, plantas e caminhos percorridos, entendendo que a vida está em
movimento.
Assim, tal ritual pode ser entendido enquanto “coisa”, conforme abordado por
Ingold (2012: 29), onde se agregam fluxos vitais e os vários movimentos se entrelaçam.
Eu, enquanto pesquisadora com meu foco voltado para o torégira, também participo. A
tentativa de refletir sobre o ritual é como capturar situações históricas construídas por
encontros materiais em constantes processos de transformação. A forma como o torégira
apresenta, vem de certas trajetórias que se esforçaram e se esforçam para manter as
“coisas” organizadas, como no caso de Mané Miguel e atualmente Roberto, Dodô,
Janeide e Maria de Ginu.
96
oferecer alguns materiais (como fumo e bebidas), o tratamento mútuo de “bom irmão” e
o fornecimento de orientações referentes à condutas da vida, à problemas particulares
relacionados à família, vícios, prescrições de remédios e realização de limpezas.
Também pode acontecer uma relação de conflito entre ambos, como vivenciado
em um dos rituais acompanhados. Uma das moradoras segurou a entidade manifestada
para evitar que o médium se machucasse e a entidade não gostou, falando várias vezes
para isso não se repetir. Posteriormente, neste mesmo ritual, tal moradora que se
encontrava irradiada (em processo de comunicação com entidades) caiu no chão
algumas vezes, durante a execução das linhas, sendo atribuído posteriormente, por
alguns líderes presentes na ocasião, como uma lição da entidade para a mesma e a falta
de fortalecimento da relação desta moradora com seus guias.
Entre pessoas e entidades, se desenrolam relações que envolvem a questão da
autorização de ocupação de lugares e exercício de identidades em processos de afetação
entre ambas, das quais negociam sua associação (Rabelo, 2012). Segundo Rabelo
(2012:392), vários esforços e cuidados permitem o encontro das entidades com as
pessoas, o que significa muito trabalho, jogo de cintura e negociação em termos das
atividades e dinâmicas de cuidado que ligam as mesmas às pessoas.
No processo de comunicação, o ritual é intermediário entre o mundo que todos
vêem e aquele que é permitido apenas às pessoas que possuem o domínio de enxergar o
mundo das entidades. Aqui encontramos uma característica que torna este ritual um
“espaço-tempo liminar” (Turner, 2005). Assim como no contexto dos Kariri-Xocó e
Xocó, trabalhado por Mota (2007: 172), o pajé na Tiririca também possui “um domínio
da cultura que permanece secreto” e que consiste no mundo espiritual e que é enxergado
por ele e pela cabocla–mestre. Por isso são responsáveis pela regência do ritual,
cuidado com as entidades e com o Centro Preto Velho Canzuá do Velho Xangô.
Dodô (pajé) e Janeide (cabocla-mestre) (Figura 29) foram formados e trabalharam
com Mané Miguel. A partir de 2010, eles foram escolhidos por Roberto para
conduzirem o ritual e cuidarem do Centro, além de serem os pais da cabocla-mestre
mirim Natália (2013-2016).
97
Figura 29: Janeide em entrevista em sua casa, realizada em agosto de 2013.
53Conforme Grünewald (1990) e Mendonça e Andrade (2014:79) Joaquim Amanso foi liderança
Atikum em 1940 responsável pelo reconhecimento oficial dos indígenas da Serra do Umã e Arapuá.
98
está presente, é uma das pessoas que “irramam” em quase todas as linhas. Além disso
ele produz as bolsas e roupas de caroá utilizadas no ritual e em processos de
reafirmação étnica.
Figura 30: Sebastiãozinho. Foto de Lara Andrade e edição de Larissa Isidoro Serradela.
99
também repousam a materialidade das entidades em seus significados, dos quais geram
movimentação nas dinâmicas da vida, possibilitando processos de cura (Rabelo, 2012).
Figura 31: Imagens de entidades negras que possuem sua origem desconhecida.
100
Figura 32: Instalação dentro do Canzuá do Velho Xangô , com Padre Cícero Romão Batista,
Iemanjá e Nossa Senhora da Aparecida .
101
No livro produzido pela comunidade, as principais entidades que trabalham ou
trabalharam na Tiririca são:
102
Figura 33: Fragmento do céu durante o pôr do sol, em maio de 2015, no terreiro do Centro.
Figura 34: Outra captura do céu no pôr do sol, no espaço do Centro, em maio de 2015.
103
As atividades que as pessoas desenvolvem durante o ritual determinam a
percepção da experiência (Ingold e Kurttila, 2000:188). Algumas atividades referentes à
comunicação com as entidades já foram citadas anteriormente e dependem das pessoas e
suas posições ocupadas, assim como suas responsabilidades dentro do torégira. Por
exemplo, o fato de estar sozinha na realização de uma atividade mais reservada ou
acompanhada com outras pessoas. Produzir as bebidas ou aguardar a chegada das
mesmas, realizar transes mediúnicos ou poder assisti-los e ser atendido pelas entidades,
tomar as bebidas da jurema, da cura, do meladinho, o mel e sentir o sabor e a sensação,
também determinam a percepção da experiência do ritual.
Podem ser citadas diferentes modalidades de trabalho, que possibilitam diferentes
experiências. As pessoas que incorporam as entidades são chamadas de “aparelho”,
“cavalo” e “trabalhista”. “Tirador de linhas” ou “cantador” (Figura 35) são os
responsáveis em puxar as linhas (cantos, danças e correntes espirituais) e os “caboclos
que dançam” são aqueles que realizam a dança e acompanham o coro. Também se
destaca a “benzedeira”, em especial à respeito de Maria de Ginu.
104
escolhidos, a partir de 2010, pelo cacique Roberto (filho de Mané Miguel) ao ressaltar
suas ascendências, nomeadas a partir do fator da hereditariedade. A questão de alguns
adultos terem sido formados por Mané Miguel também é um aspecto de relevância. A
formação de líderes mirins é composta pelo pajé-mirim, cacique-mirim, cabocla-mestre-
mirim, caboclo-mestre-mirim, contra- mestres-mirim e segue os ciclos escolares, se
tornando uma experiência passageira e com certas responsabilidades.
105
Assim como Mota (2007), a ingestão destas bebidas promovem a alteração na
percepção (visual e auditiva) de comportamentos e pensamentos, possibilitando a
sensibilização das pessoas para novas percepções sobre a vida, através de uma relação
de confiança estabelecida entre pessoas e plantas das quais salvaguardam os poderes
divinos.
Vemos a participação de espécies vegetais no trabalho de cuidado com as
entidades e com a saúde em que são compartilhados bebidas e fumo entre as pessoas e
as entidades, dos quais são sujeitos da ação, ao comandarem a cena, estabelecerem o
tom (Rabelo, 2012:403) como o sabor das bebidas, o cheiro e a estética da fumaça que
compõe a experiência ritual.
A força afetiva vinculada ao torégira faz da fumaça do cachimbo um
acontecimento importante a partir de sua defumação e limpeza das pessoas, ambientes e
bebidas (Figura 36). A fumaça do cachimbo do Velho Xangô da Bahia (entidade de
Mané Miguel), atualmente baforada por Roberto (Figura 37), torna-se uma possibilidade
potencial de curar doenças. Bebidas possibilitam a entrada da jurema no corpo humano
e a sua expressão divina, tornando a dança um meio de livrar-se dos fluidos negativos
que causam as doenças.
Figura 36: Dodô realiza baforadas de fumaça, sob os materiais dispostos no chão. Foto de
Carmelo Fioraso.
106
Figura 37: Roberto mostra o guia (cachimbo) do Velho Xangô da Bahia.
A bebida da jurema, por exemplo, atravessa o Pai da Mata na busca pela raiz da
jurema na Serra do Arapuá, o pajé que produz a bebida e as pessoas que bebem. Citar os
eventos nos quais pessoas e entidades bebem, bem como as atividades que se
desenvolvem na busca de matérias, produção e oferta das bebidas promove a
“visibilidade da transformação e do fluxo” (Rabelo, 2012:404), envolvendo a troca de
cuidados entre pessoas e entidades. Percebo com Rabelo (2012:403) uma “intricada rede
de vínculos” entre diferentes materiais, humanos e não humanos que se encontram
através dele.
Janeide compartilhou com crianças e professoras (or), em uma aula na escola
local, que a jurema é uma bebida sagrada em função do cuidado que o pajé tem com a
mesma em seu preparo. Segundo seu depoimento:
O pajé prepara ela, faz as orações dele, os índios bebem para se curar, né?
Faz as orações, defuma, faz os pedimentos dele, os caboclo bebe aí se cura.
Por isso a jurema é importante na vida dos caboclos.
(Vídeo de uma aula na escola facilitada por Janeide, em entrevista
coletivamente de alunos e professoras (es), em 2015, após ação “Do Buraco
ao Mundo”).
107
(2007), as plantas se tornam agentes curativos a partir de duas dimensões, sendo uma
relativa aos seus “princípios ativos que atuam na química do corpo humano de modo a
proporcionar a cura” (Mota, 2007:136) e a outra dimensão quando os usuários
imaginam que “os ingredientes são capazes de levar a doença para fora de si” (Mota,
2007:137). É comum, durante o torégira, algumas lideranças oferecerem a bebida da
cura (que foi para mim, mais acessível que a jurema), convidando os presentes para
beberem a mesma e se curarem.
Outras formas de relação com as plantas como “agentes curativos” (Mota,
2007:136) são realizadas durante o ritual e em outras práticas que dele reverberam.
Além da ingestão das bebidas, há o ato de fumar e se banhar numa solução de plantas,
sendo essa última prática utilizada em especial em momentos de “disciplinar as
correntes espirituais” e fortalecer a relação da pessoa iniciada com seus guias, visando a
comunicação durante o ritual.
Contam que Antônio Miguel trabalhava com uma entidade chamada Joaquim
Bangalô. Esta oferecia passes e receitava remédios dos quais sua companheira, a
Cabocla Chiquinha, além de prepará-los, sabia onde encontrá-los. Antônio Miguel e a
Cabocla Chiquinha tiveram cinco filhos, o pajé João Miguel Pankará, Maria e Luiz
(responsáveis pela produção das roupas de caroá), Alicia e Zézinho, considerado
atualmente o "Pai da Mata". A classificação de "Pai da Mata" vem com o processo de
reafirmação étnica como performance de identidade, já influenciada pelas interações
sociais, no entanto expressa seu reconhecimento ligado aos caminhos para alcançar
certos materiais como plantas e terreiros. Roberto fala que ele “pesquisa as mata para
saber quando a gente pode ir” (Figura 38).
108
2.4.2. A dança: dimensão de cuidado e expansão de movimentos
Para Ingold e Kurttila, as formas de percorrer o espaço também irá colaborar nas
percepções das experiências (Ingold e Kurttila, 2000: 188). A partir disso, atento para os
deslocamentos espaciais das pessoas e a dança das entidades durante o torégira que
podem acontecer por meio da mudança de um lugar para outro, dentro ou fora do espaço
do Centro. As danças ocorrem também através das músicas das linhas que
proporcionam um deslocamento no tempo e no espaço, aprofundando-me nessa análise
posteriormente.
Assim, podem ocorrer no movimento de uma só pessoa, como a volta de Roberto
da parte externa da Casa Grande (no início do trabalho, com um apito), bem como
quando uma pessoa se desloca até o banheiro, a sala de apoio ou até mesmo retorna para
casa, no meio do trabalho. Pode acontecer um deslocamento em grupo, a exemplo
quando as lideranças se dirigem até o encontro dos outros participantes após o preparo
das bebidas.
Uma forma de percorrer o espaço do ritual ocorre através da dança, em geral
realizada no coletivo, na formação de um círculo, um corpo próximo do outro, em pé,
com a projeção do tronco para frente e movimentando-se, no sentido anti-horário, com
uma ênfase na pisada da qual ocorrem as variações percussivas.
“Dançar o ritual” é uma categoria nativa que possui relação com a experiência do
torégira mensal e com as trajetórias de vida das lideranças rituais da Tiririca e
atualmente do grupo, como um sinal da condição étnica. Tal ritual é descrito como um
período em que se dança, permitindo a recuperação do equilíbrio e bem-estar e a ruptura
do trabalho pesado de casa, da roça, pode-se ocupar o espaço-ritual com os corpos que
dançam, cantam e tocam maracás, proporcionando a expansão de movimentos
corporais. Movimentos que solicitam novas formas de reconhecer o espaço (Rabelo,
2012:407).
Em entrevista para as crianças, professores e professoras da escola local, Janeide
afirma que “a tradição é dançar o ritual”. Como vimos, historicamente a dança do toré
foi uma linguagem acessível na relação interétnica dos indígenas do Nordeste,
permitindo uma comunicação, troca de valores e reconhecimentos de alteridades (Barth,
2000). Quando os índios do Nordeste se articularam entre si e com o Governo Federal
na busca de seus direitos, a dança indígena, “uma linguagem não verbal e dos
109
sentimentos” (Blacking, 2013), permitiu o reconhecimento da alteridade através de
afetações antes mesmo de ocorrer nos formatos oficiais.
As localidades que realizam esta dinâmica ritual internamente à comunidade são
conhecidas como: “Tiririca do Meio”, onde se localiza o Centro Preto Velho Canzuá do
Velho Xangô, a casa do pajé, da cabocla-mestra e Maria de Ginu. O “Início do
Quilombo”, onde moram os descendentes dos Miguel. O “Caminho de Santana”, uma
localidade onde viveram e vivem importantes líderes rituais, como Dague o atual
caboclo-mestre, a importante personagem histórica Cabocla Raquel, que assumiu o
ritual depois de Mané Miguel, assim como foi o local de moradia de João Lola
(considerado o primeiro cacique) e Antônio de Preta (considerado o primeiro pajé e pai
de Dague). O local depois do Caminho de Santana, onde está o Terreiro do Nico, aberto
por Joaquim Amanso, chamado de “Nico”, onde mora atualmente seu neto. Portanto o
ritual é realizado com pessoas que possuem experiências de proximidades de
residências e de histórias de familiares.
Me parece relevante a importância da dança como estado de concentração e
doação para a experiência do ritual. Dançar anima os corpos quando são inteiramente o
que fazem. Tal ideia foi trabalhada por Schechner (2012:71-72) através da concepção de
“transporte” , da qual ele considera o aprimoramento humano para realização de certas
atividades que proporcionam “deixar a si mesmo” e ser inteiramente “aquilo” que se
está performando. Com a possibilidade de se movimentar, o corpo é colocado em estado
de disposição próprio para a ação que se estende para fora do ritual, sendo o ato de
conhecer, uma imersão nos movimentos. O corpo no torégira se torna seu próprio
movimento.
Segundo o cacique e o pajé, dançar também tira as “mazelas do corpo”, possuindo
uma força terapêutica. Conforme dito anteriormente, dançar compõe algumas linhas que
desencadeiam desenhos coreográficos diferentes. Mesmo sendo uma dança que sugere
uma mesma movimentação entre os participantes, uma performance que se caracteriza
por comportamentos na dança (Schechner, 2012:49) com ritmo constante e igual para
todos, cada corpo humano a realiza da sua maneira, a partir de seus próprios
movimentos, influenciado por suas questões de ritmo, postura, equilíbrio, dores e
estéticas.
As entidades dançam através dos corpos que as recebem, no espaço central da
roda feita pelas pessoas ao seu redor. Pode ser individual ou acompanhada quando
chegam duas ou mais entidades ao mesmo tempo. Geralmente, quando o “aparelho”
(corpo que recebe a entidade) está fortalecido na relação, a entidade realiza as
110
movimentações com relativa facilidade. Cada uma possuí uma particularidade própria,
manifestada na postura e fala, a exemplo do Mestre Carlos Menino-Dodô que diz
inúmeras vezes durante sua presença que joga tudo o que for ruim no fundo do mar. Um
esquema com uma aproximação da movimentação realizada pelas entidades que se
manifestaram é compartilhado na Figura 39.
111
instrumentos no centro em uma das extremidades da sala. Nestas duas filas, as pessoas
não se deslocam pelo espaço, apenas cantam e tocam seus maracás. A cabocla-mestre,
neste momento, ocupa o espaço da direita dos instrumentos dispostos no chão. À
esquerda, se encontra sentada a rezadeira Maria de Ginu, que permanece neste local
quase todo o ritual, devido sua dificuldade de caminhar, se levantando apenas em
algumas linhas. Ela gesticula, mesmo sentada, ao levantar seu maracá, e movimenta-se
com algumas partes do corpo. No início das linhas, a primeira pessoa localizada no
início da fila da direita e a última localizada no final da fila da esquerda puxam as suas
respectivas filas, até a formação do círculo. Além disso, os homens se agrupam na
formação do círculo, assim como as mulheres, o que traz uma divisão entre gêneros
(Figura 40).
112
113
2.4.3. As linhas: músicas, danças e “correntes espirituais”
54Feitos com cabaças (que se encontra atualmente em escassez na comunidade) e que por consequencia
são feitos com garrafinhas pet (que chegam por meio da merenda escolar), nas aulas de artes.
114
A exemplo de como ocorre um viva, descrevo abaixo um puxado por Dodô, em
setembro de 2014. O primeiro trecho a seguir é cantado e tocado com maracá por todos
os presentes:
E todos respondem:
Para sempre seja louvado
115
A realização dos vivas torna claro a rede de relações materiais que compõem o
ritual ao longo de plantas, entidades, pessoas, grupos étnicos, a “luz que nos alumia” e
bebidas, entrelaçadas nas saudações.
Posso entender também que as linhas, cantadas e tocadas, pontuam o espaço da
experiência vivida, assim como o preenche. D. Maria de Ginu contou que quando não
vai para o ritual, devido a falta de carona e saúde para caminhar até o Centro, ela ouve
da sua casa a realização do mesmo e chora, segundo ela, pela importância que este
possui em sua vida e a impossibilidade de se deslocar. Neste caso, o som das linhas se
desloca até ela pontuando o espaço onde o ritual acontece. Aqui o deslocamento da
música ocorre espacialmente.
A presença dos cachorros de Dodô (que as vezes latem), bem como os sinos que
badalam das cabras e vacas, berros e bufadas desses animais, também pontuam o
ambiente do ritual compondo um som ambiente polifônico feito pelo emaranhado de
fluxos materiais.
55 Termo utilizado por Janeide (cabocla-mestre) ao se referir aos locais utilizados no contexto do
ritual, bem como utilizado por Schechner (2012:71) ao se referir a espaços demarcados na
realização de rituais.
116
Casa Grande por ter sido a segunda casa de taipa feita com barro e coberta com palha de
ouricuri (catolé). Roberto conta que naquele tempo só tinha casa deste porte quem
possuía um alto poder econômico e que essa construção foi viabilizada pelos recursos
produzidos pelos trabalhos de cura de Mané Miguel. Ele prossegue:
Depois de Mané Miguel ninguém morou nesta casa, ficando um período fechada e
sendo utilizada posteriormente para o uso comum, como espaço escolar. Atualmente se
constitui como um espaço de sociabilidade, sendo denominada como “Casa Grande do
Marinheiro”, em homenagem a Mané Miguel. Ocorre desde a produção da merenda
escolar a outras comidas de atividades comunitárias, bem como a realização de algumas
novenas, reuniões, processos de formação e o torégira mensal. Em 2012 foi instalada,
em uma de suas salas, uma exposição fotográfica que mostra as crianças e cenas do
ritual. Na interpretação de Verinha, esta casa onde ela nasceu consiste no “coração da
Tiririca”.
Para os filhos de Mané Miguel e Isaura esta possui uma importância particular
devido ao vínculo de ter sido a casa onde eles moraram e de alguns terem nascido nela.
Verinha sempre conta sobre o sonho de Isaura que a casa fosse de uso comum e que não
faltasse comida nela. Este sonho hoje é atualmente manifestado através das diferentes
atividades que nela acontecem (Figura 41).
117
Figura 41: Verinha na frente da Casa Grande do Marinheiro, local onde ela nasceu.
118
Figura 44: Mesa do Canzuá do Velho Xangô. Foto de Carmelo Fioraso.
56Escola Pankará, localizada na Aldeia do Riacho do Olha d'Agua, onde Douglas também media as aulas
de Artes e que faz parte das escolas inseridas no núcleo seis, das quais Verinha é coordenadora.
120
Figura 45: Maciel, no centro da roda, sua nomeação como caboclo-mestre mirim no
terreiro do Mestre Bonito, em visita realizada em agosto de 2013.
Figura 46: Maria Luiza toma água oferecida por Jonilson (contra-mestre) no Terreiro do Mestre
Bonito, em agosto de 2013.
121
Figura 47: Crianças e lideranças dançam em baixo do umbuzeiro, um dos símbolos mais
marcantes deste terreiro, representados nos desenhos produzidos na ação "Do Buraco ao
Mundo". Foto de Nivaldo Aureliano Léo Neto.
122
2.6. Roupas brancas e de caroá
Figura 52: Com os pés descalços, dançam os participantes durante o ritual. Foto: Carmelo
Fioraso.
124
Figura 53: Crianças no Terreiro do Mestre Bonito, em agosto de 2013.
125
2.7. Dinâmicas de cuidados: dinâmicas de afeto
126
127
Capítulo 3:
A dramatização do torégira na ação “Do Buraco ao Mundo” e
a arte/educação como performance etnográfica
128
Motta e Oliveira (2013) oferecem “pistas para compreensão de como o
fenômeno contemporâneo da patrimonialização de diferenças culturais pode ser
dramatizada ou encenada nos museus” (Motta e Oliveira, 2013:175).
Aqui, no entanto, não me interessa focar apenas no Museu do Preto Velho Canzuá do
Velho Xangô, que consiste em um museu local com foco religioso, mas em outras
performances de identidades (Barth, 2000), encenadas como narrativas do Patrimônio
Cultural que foram reveladas com a ação “Do Buraco ao Mundo”.
A noção de Patrimônio Cultural utilizada “enquanto um bem coletivo, um
legado ou herança artística cultural por meio dos quais um grupo social pode se
reconhecer enquanto tal” (Abreu, 2007: 267), se relaciona aos processos de escolhas e
apresentações de traços culturais selecionados como referências para a delimitação de
fronteiras étnicas. São processos nos quais a identidade é comunicada por meio da
autorrepresentação, considerada unidade étnica característica e distintiva, apresentando
atributos à identidade e “modelos nativos”(Barth, 2000:73).
A partir das narrativas desencadeadas e da história da Tiririca dos Crioulos na
interação com outros atores sociais, percebo com Turner (2008:27) uma forma
dramática e estética na expressão do tempo social, do qual utilizo a ideia de “dramas
sociais” para refletir sobre as formas de dramatização que apareceram sobre o torégira,
como expressão das experiências de conflitos sociais, utilizadas ao mesmo tempo como
representações de si como processo de empreendimento social e poder na construção de
sentidos.
Na história da Tiririca, percebo “desarmonias” no processo social em que
“interesses e atitudes de grupos e indivíduos encontravam-se em óbvia oposição”
(Turner, 2008:28-29). Para citar alguns dramas sociais enfrentados, as experiências de
racismo que manifestaram a privação social deste grupo, a mudança de Mané Miguel da
Tiririca para a atual aldeia Faveleira e Capoeira do Barro (dos atuais índios Pipipã de
Kambixuru) e seu falecimento em 1999 que trouxe uma nova organização política e
ritual. Mais recentemente, em 2010, o fechamento da escola local pela prefeitura de
Carnaubeira da Penha/ PE em função de conflitos por falta de repasse de recursos. A
existência de uma única fazenda pertencente à famílias dos Novaes, uma das famílias
tradicionais da região proprietária de terra, desde o séc. XVIII (Paoliello, 2010), entre os
territórios da Tiririca e as aldeias Pankará, que impede o acesso à uma fonte de água.
129
Conflitos que engendraram símbolos no processo ritual, considerados por Turner
(2008: 49) “a origem e o sustentáculo de processos que envolveram mudanças
temporais nas relações sociais”. Tais processos históricos e a genealogia do ritual (entre
1940, até o momento) foi trabalhada no capítulo I. Aqui cabe destacar que o conceito de
mudança utilizado por Turner (2008) consiste no caráter dinâmico das relações sociais.
Para o autor:
(...) cada fase possui suas propriedades específicas, e cada qual deixa sua
marca especial nas metáforas e modelos nas cabeças dos homens envolvidos
uns com os outros no interminável fluxo da existência social. Atendo-me à
comparação explícita da estrutura temporal de certos tipos de processos
sociais com aquela dos dramas de palco, com atos de cenas, vi as fases do
drama social acumulando-se num clímax. Também assinalaria que, no nível
linguístico da “parole”, cada fase tem sua própria forma e estilo de discurso,
sua própria retórica, seus próprios tipos de linguagem e simbolismos não
verbais (Turner, 2008:38)
130
contato com essas sequências de comportamentos socialmente aceitos, recuperam-nas e
as transformam a partir das circunstancia (Schechner, 1995:205). Ao mesmo tempo que
tais comportamentos são a repetição de ações transmitidas através das gerações, também
são recriadas ao permitirem escolhas, ao performer (idem).
Nesta conjuntura, as abordagens com arte/educação, como performance
etnográfica, colaboraram com a ação “Do Buraco ao Mundo” através da mediação em
oficinas de formação na oferta de linguagens, suportes e metodologias que ampliaram as
narrativas de identidades, as formas de expressão e os sentidos dos sujeitos, bem como
no processo de elaboração das obras, na concepção artística.
Arte/educação é uma abordagem construída historicamente a partir do
desenvolvimento do ensino de artes visuais no Brasil, denominado assim após a
ditadura militar, com grandes influências de Ana Mae Barbosa e Paulo Freire. É uma
área interdisciplinar na interseção entre Arte e Educação da qual ressalto dois
movimentos históricos importantes para as minhas abordagens, a Virada Cultural (anos
1970), na qual surgem os estudos que reconheceram outras formas de arte, para além
das hegemônicas e dos grandes cânones, e a Virada Educacional (2000), em que artistas
passam a colaborar com a produção artística de outras pessoas, perpassando diferentes
conhecimentos (científicos e de tradição oral) e refletindo sobre suas metodologias de
pesquisa.
O trabalho com arte/educação atravessou historicamente artistas, comunidades
tradicionais, escolas, professores e educadores em museus e ONGs. Barbosa (2009)
aborda a questão histórica da mediação cultural no Brasil, realizada em museus por
departamentos de educação, através dessa abordagem como estratégia de mediação
entre arte e público. Trato da arte/educação como mediação cultural facilitada por mim,
em atividades realizadas junto com os moradores (as) da Tiririca, tal abordagem
geralmente pensada para mediação em Centros Culturais, Museus nas grandes capitais
(ou em espaços formais e não formais de educação), aqui contempla o contexto de
mediações nas relações interétnicas.
Ao falar de arte/educação enquanto mediação cultural ressalto que o conceito de
cultura abordado dialoga com Etnicidade, aos moldes de Barth (2005). Nesta relação
interétnica estabelecida com a Tiririca dos Crioulos, que se organiza com base em suas
diferenças étnicas, suas identidades enquanto “quilombo-indígena” são representadas
por “sinais diacríticos” constantemente construídos a partir da manutenção de fronteiras
nas interações sociais. Para Barth (2000) a cultura é constantemente gerada e induzida
131
através das experiências, definida a partir dos contextos, situações e circunstâncias em
que as identidades são acionadas pelo grupo ou pessoa.
Se a etnicidade permite a comunicação interétnica, da qual possibilita a troca de
valores e o acesso a politicas públicas, a função da arte na formação da imagem da
identidade possui um papel característico na elaboração de gramáticas visuais (Barbosa,
1998), das quais ganham visibilidade e mostram especificidades no campo do
Patrimônio Cultural.
Segundo Chuva (2011) a noção de Patrimônio Cultural é uma categoria-chave
para a orientação das políticas públicas de preservação cultural, historicamente
construída a partir da dicotomia entre patrimônio material e imaterial, hoje sendo
focalizada por uma visão mais integradora. Tal noção foi inicialmente relacionada à
necessidade de construção de uma identidade nacional, em que foram exaltadas
referencias culturais, muitas vezes ligadas à processos de dominação de povos
colonizados e sujeitos subordinados, além de símbolos ligados à contextos militares.
Conforme trata Abreu (2007), após a II Guerra Mundial, com a emergência do
paradigma do conceito antropológico de cultura, que permitiu a ampliação das reflexões
sobre diversidade cultural, a noção de Patrimônio Cultura passa a incorporar o
protagonismo de diferentes segmentos sociais que reivindicam seus próprios interesses.
Acreditando que apenas o próprio grupo é capaz de elaborar sua demandas sociais,
caberia à antropóloga o papel de mediação, articulação e parceria com os grupos
pesquisados, atravessando diferentes esferas da sociedade (Abreu, 2007:285).
As atuais políticas culturais de patrimonialização tem colaborado com o
protagonismo na seleção, registro e capacitação de comunidades locais na busca de seus
próprios inventários participativos de suas referencias culturais. O Inventário
Participativo é um método proposto pelo IPHAN, com base no Inventário Nacional de
Referências Culturais – INRC, que problematiza a autoridade do pesquisador e oferece
protagonismo à sujeitos locais na seleção de seus próprios Patrimônios Culturais
(IPHAN, 2016). Nas últimas décadas tais políticas ganharam força em cenário nacional
e mundial de valorização de conhecimentos tradicionais e de implementação de medidas
de transmissão que possibilitam a expressão de performances, exibindo a percepção que
tais sujeitos possuem sobre suas próprias experiências e categorias.
Reconheço, desta forma, a importância da arte na produção de registros, assim
como reflete Novaes (2005) sobre as “artes da antropologia” e o exercício de inserir
outras linguagens e narrativas no discurso etnográfico através das técnicas de
132
reprodução de imagens (fotografia, cinema e pintura). Neste caso o registro da imagem
é considerado uma forma de arte, concebido com interferências das subjetividades em
interação (Novaes, 2005), que revelam uma estética da Tiririca na materialização de
experiências como parte de uma elaboração cognitiva sobre identidade.
Se as políticas que envolvem os processos de patrimonialização devem levar em
consideração os sujeitos envolvidos e o que é significativo e representativo para os
mesmos (Florêncio, 2012; Scifoni, 2012), ressalto aqui para as dinâmicas afetivas e as
emoções emaranhadas em tais ações.
Somos herdeiros de uma tradição positivista e iluminista na qual é relegado às
emoções um status inferior, dando primazia à razão e à Ciência no que era percebido
como um processo civilizatório das sociedades. Talvez daí derive uma parcela de
contribuição em processos de patrimonialização conduzidos verticalmente, sem consulta
aos sujeitos envolvidos. Na discussão abordada por Ingold (2012) sobre a “economia do
conhecimento” em que ocorre a separação da imaginação (encarada como ilusão) com a
produção do conhecimento científico (que busca a natureza real das coisas), é ressaltada
a necessidade de uma acomodação entre ambos no processo de produção do
conhecimento que possa considerar a relação dos sentidos e sentimentos como
fenômenos das experiências de pesquisa.
Compartilho uma experiência de produção do conhecimento antropológico
através do fazer que envolve uma abordagem com arte/educação entre pesquisadora e
interlocutores, em que meu engajamento têm se constituído por meio de uma pesquisa-
ação. Apropriando-me da experiência da ação “Do Buraco ao Mundo” e dos dados
produzidos a partir dela, avento a construção do conhecimento sobre o torégira.
Ocorre uma potencialização das demandas da Tiririca em seus processos de
reconhecimentos, de ensino-aprendizagens de suas especificidades culturais na busca
por direitos, possibilitando interfaces entre Arte e Antropologia na qual me proponho a
refletir aqui.
133
3.1. Apresentação da ação “Do Buraco ao Mundo”
A relação com o campo etnográfico ocorreu também através da ação “Do Buraco
ao Mundo: segredos, rituais e patrimônio de um quilombo-indígena” idealizada por mim
e Caju57 , com colaborações de Lara Erendira Andrade e Alexandre Gomes. Esta foi
viabilizada inicialmente pelo edital de Preservação e Acesso aos Bens do Patrimônio
Afro-brasileiro, lançado em 2013, com a articulação do Ministério da Cultura (MinC), a
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e
a Rede Memorial. Posteriormente contamos com incentivos do Governo do Estado de
Pernambuco, através do edital Funcultura Independente 2014/15, da Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco- Fundarpe. Em 2015 fomos
contemplados pelo IPHAN com o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, como uma
iniciativa de excelência em promoção e gestão compartilhada do Patrimônio Cultural.
Em 2016 fomos contemplados com o Prêmio Boas práticas de Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial do IPHAN e com o Rúmos Itaú Cultural.
Iniciada em setembro de 2014 na Tiririca e ainda em curso, esta ação consiste em
um processo de formação com pesquisadoras (es) em uma busca participativa dos bens
patrimoniais da Tiririca dos Crioulos, visando a criação de um material didático
composto por vídeos, livro e um documento sonoro, além de um blog 58 com a
disponibilização do acervo.
As ações desencadeadas fortalecem a produção de conhecimentos e formas de
expressão da auto-imagem dos tiririqueiros. Auxiliam na mediação de experiências
educativas que envolvem e perpassam os sujeitos de diferentes gerações do grupo (e de
fora), na interação com o território tradicional como fonte de pesquisa.
No âmbito contemporâneo das políticas culturais de preservação do patrimônio
cultural e salvaguarda da memória, tal ação pode ser considerada como voltada para
Educação Patrimonial, entendendo-a como:
(...) todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco
o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a
compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas
manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e
preservação (IPHAN, 2014 :19)
134
Foram dez pesquisadores e pesquisadoras locais escolhidos por Verinha e
Aleckssandra Santos Sá (professora, atual presidenta da Associação e coordenadora
local da ação), como responsáveis pelo processo de desenvolvimento da pesquisa, na
produção de entrevistas, conteúdos textuais e imagéticos. No entanto, as oficinas e o
processo como um todo envolveram outros sujeitos da comunidade e de fora para além
dos pesquisadores (as) escolhidos.
A ação movimentou ao todo 59 atores, com o envolvimento de dezesseis (16)
especialistas locais entre benzedores e benzedeiras, parteiras, caçadores, lideranças
rituais do torégira e de novenas católicas, responsáveis pelos dois espaços museológicos
existentes na Tiririca (o Museu do Canzuá do Velho Xangô e o Museu do Futebol),
artesãos de barro, palha, cipó e caroá. Dezesseis (16) jovens e adultos ligados ao
contexto da escola local, da saúde, de celebrações religiosas e outras formas de
expressão, assim como estudantes do ensino médio. Além de quinze (15) crianças
moradoras da Tiririca, estudantes da escola local e do Brejinho, localizada em uma
aldeia Pankará. Sete (7) pesquisadores (as) de fora da comunidade se envolveram
diretamente com a mesma através das oficinas de formação e cinco (5) se envolveram
indiretamente, com as obras e/ou através do acompanhamento do processo de pesquisa.
Neste trabalho, eu integro uma equipe interétnica composta por pessoas da
Tiririca e de outros lugares, bem como interdisciplinar, envolvendo as áreas da
Biologia, Antropologia, Pedagogia, História, Artes Visuais, Comunicação e
especialistas de tradição oral. Como uma das coordenadoras da ação59, minha inserção
consiste em facilitar atividades de arte/educação, colaborar com a criação do acervo e a
da concepção artística das obras. Ao considerar o patrimônio um campo de conflitos que
se manifesta com a seleção das referências culturais, em que cada sujeito ou grupo
destaca diferentes focos do patrimônio cultural (Motta e Oliveira, 2013:183) e com isso
são revelados diversos modelos de expressão do patrimônio, a interdisciplinaridade na
composição da equipe e na gestão compartilhada foi um desafio coletivo, no sentido de
reconhecer conhecimentos que constituem diversas formas de saber.
Em função da Tiririca ser uma comunidade relativamente pequena, com relações
de parentesco advindas de três famílias principais (os Canuto, os Antônio e os Miguel),
com lideranças bem definidas e atividades centralizadas, as participações nas oficinas
59
Juntamente com Nivaldo A. L. Neto (Caju) e Aleckssandra Ana dos Santos Sá (moradora da
Tiririca).
135
não manifestaram conflitos públicos expressos claramente, até o momento.
Tais lideranças muitas vezes assumiam a frente nas decisões.
Cabe destacar a interferência de certas trajetórias nas tomadas de decisões, como
por exemplo a colaboração de Douglas na produção cultural no decorrer das oficinas, a
presença de Aleckssandra na organização do Documento Sonoro e dos textos. Minha
colaboração, e de outros pesquisadores na sistematização da pesquisa, ao diagramar o
livro e inserir imagens com texto, sistematizando o acervo produzido em obras
pedagógicas. Tais processos de negociação foram assegurados pela consideração às
coautorias e consequentemente aos diferentes interesses de cada sujeito envolvido e
seus focos de patrimônio cultural destacados. Ao considerar as subjetividades
envolvidas, tal pesquisa se caracteriza por sua polifonia.
A seguir, apresento a arte/educação como performance etnográfica, tanto na
produção de espaços liminares (Turner, 2005) no processo de ensino-aprendizagem,
como também na ampliação da auto-imagem e representações do grupo através de
diferentes linguagens.
136
promoção de atividades que facilitaram a expressão na produção de desenhos, materiais
audiovisuais e outras narrativas.
137
Figura 57: Finalização da atividade. Foto de Carmelo Fioraso.
138
o encontro de toda a equipe da ação (local e de fora), onde foram tomadas algumas
decisões coletivas, sistematizadas a pesquisa e realizadas performances de reafirmação
étnica.
Para citar algumas regências durante o processo, a da coordenadora local na
articulação de reuniões locais e organização dos textos da pesquisa. As que foram
realizadas pelo professor de artes, na oferta de danças e músicas durante as oficinas,
assim como outras lideranças ao facilitarem a abertura e fechamento das atividades
com rezas e toré. Desta forma, algumas atividades da pesquisa são realizadas apenas
entre interlocutores locais, me restando posteriormente, me deparar com os processos
de suas escolhas no resultado de suas pesquisas, assim como a possibilidade de estar
em um lugar de aprendizagem onde também sou regida pelos interlocutores.
Através da produção artística, o encontro com os interlocutores se tornam mais
improvisados, lúdicos e colaborativos na produção do conhecimento, dos quais os
sentidos são aguçados e as experiências potencializadas com o uso da comunicação,
colaborando com a conscientização social. São expressas imagens, narrativas,
emoções, danças, músicas, poesias e produções audiovisuais, cujas temáticas
abordadas fazem referencia ao patrimônio selecionado como forma de reafirmação
étnica. Ao potencializar as faculdades miméticas dos envolvidos na ampliação das
formas de expressão, por meio da oferta de espações e possibilidades de “ser”, revela-
se o caráter de construção de novas realizadas de pesquisa e relações mediadas através
da arte.
As noções de “transportações” e “transformações” apresentadas por Schechner
(2012:72) nos ajuda a compreender essas formas de expressão através de uma análise
antropológica dos eventos performáticos. Os transportes ocorrem quando um
performer se coloca através da prática, em um estado corporal temporário (que
dependendo das circunstâncias possui relação com “espaço liminar” de Turner (2005))
que permite “deixar a si mesmo” para ser uma atividade realizada ou “performar a si
mesmo” no desenvolvimento de narrativas de sua própria vida (Schechner, 2012). Da
mesma forma que o espectador pode ser transportado através da performance que ele
vê, ao se sentir afetado.
Se o transporte implicar em um estado permanente, as “performances de
transformações”(Schechner, 2012) se manifestam, segundo o referido autor, quando o
espectador desperta sua consciência crítica, podendo o momento liminar influenciar na
mudança de identidades e reflexões sobre a vida.
139
Para focar em eventos performáticos que desencadearam ações e reflexões, a
partir de estratégias de valorização da educação de tradição oral em diálogos com a
educação formal, a Pedagogia Griô (Pacheco, 2006:78) 60 , por exemplo, inspira na
“criação de vínculo afetivo e de ensino-aprendizagem com o conhecimento local
(Pacheco, 2006:78). Esta pedagogia que atua junto às comunidades quilombolas da
Bahia, reconhece o conhecimento para além da escrita, de sociedades baseadas no
diálogo entre os sujeitos, em que o ato da fala, do canto e da poesia é uma performance
relevante e sagrada (Pacheco, 2006). Cícera, em atividade de finalização do primeiro
módulo da ação, foi convidada, junto com os outros pesquisadores/as, à compartilhar
sua trajetória destacando dificuldades, facilidades e projetos de vida (Figura 58).
60Desenvolvida em Lençóis, na Chapada Diamantina/BA, pela ONG Grãos de Luz Griô consiste em uma
proposta de pedagogia e política através da Lei Griô Nacional (criada em 2009 é resultado da articulação
de pontos de culturas que trabalham com tradição oral e educação formal, através do reconhecimento e
remuneração de mestres de tradição oral para facilitar a transmissão de conhecimentos). O Projeto visa a
proteção e fomento à transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral.
140
sensibilizam as pessoas e que antecedem outras, colaborando na criação de percursos de
experiências que facilitam a conscientização social (de si e da ancestralidade) e a
elevação da auto-estima.
Creio que com essa abordagem atingimos um dos princípios fundamentais,
segundo Scifoni (2012), ao discutir a educação em processos de Educação Patrimonial
de perspectiva libertadora, da qual prevê :
Compreender a cultura como mediação, ou seja, como meio que contribuirá para a
consciência dos homens sobre seu papel de sujeito, consciência de si mesmo e de
sua ação (Scifoni, 2012:33)
61
Barra do Silva foi distrito do município de Floresta entre os anos de 1920 à 1943. Em 1948 é criado
o distrito de Carnaubeira da Penha com as terras do extinto distrito de Barra do Silva. Apenas em 1991
Carnaubeira da Penha é elevado à município se desmembrando de Floresta.
62 Em oficina de Memória e História de Vida, mediada por Alexandre Gomes.
141
É fácil viver
Porém
Difícil de falar
Foram três dias de emoção
Me escute que eu vou contar
Voltar ao passado
É difícil não chorar
É este passado
Que nos ajuda a recordar
Se ao todo erramos
Agora vamos melhorar
Não existe futuro sem presente
e o passado a confrontar
Quem vive de passado é museu
Não queremos ocultar
Se não tiver a semente
Como você vai plantar
Um dia segue atrás do outro,
Para podermos melhorar
Observando estes três dias
Muitas coisas esteve amostrar
Vivemos sempre juntos
Agora estamos começando a nos conhecer
Porque um mágico
Veio nos remexer
Um depende do outro
Estamos sempre a reviver
Para sermos melhor
As feridas temos que cutucar
Quando a dor é forte
Qualquer um você vai abraçar
O pior cego
É o que não quer enxergar
142
Se fossemos sábios como as formigas
Tudo iriamos guardar
Mamãe sempre dizia
Guarde que você vai precisar
Obrigado a todos
Por me ajudar
Você que passou por aqui
Deixou sua contribuição
Esta é a primeira etapa
De muitas que virão
Se o mundo tem um buraco
O ser humano é uma cratera inteira
São tantas feridas a cicatrizar
Leva uma vida inteira
Sofre menos na vida
Quem vive de bobeira
Porém nada constrói
É infeliz a vida inteira.
143
as próprias histórias possibilitaria às pessoas configurar sua própria identidade, se
apropriando da memória narrada como conhecimento deles próprios e do mundo
(Eckert, 2009:11). No processo de rememoração, a narração é encarada como
composição do passado e transformação do presente (idem). Tal ação permite perceber
e compartilhar os aspectos culturais significativos da Tiririca e com isso mudar a
relação que se tem com eles no presente (idem). Isso tem gerado um movimento
diferente, na dinâmica espacial dos deslocamentos das pessoas, na apropriação dos
espaços, na inclusão de especialistas locais no currículo de ensino diferenciado da
escola, no interesse das professoras (or) locais em assuntos relacionados à própria
comunidade e famílias.
Trazer para a relação com o campo etnográfico atividades que dispararam
sensações, memórias, diálogos, produções artísticas e estados de emoção, junto aos
interlocutores da pesquisa, manifestam experiências em que a realidade é mediada
através da comunicação, oferecendo margens de ação aos interlocutores na expressão de
seus problemas, transformando todos os envolvidos em “educadores-educandos”
(Freire, 2013).
Na perspectiva libertadora, que valoriza o patrimônio cultural, junto aos seus laços
afetivos, sociais e simbólicos, ocorre conforme discutido Scifoni (2012) “(...) a busca da
construção de uma nova relação entre a população com seu patrimônio”. As oficinas se
transformaram em espaços de encantamento, de redescobertas dos sujeitos sobre si,
possibilitando experiências potenciais de reconhecimentos de especialistas e
especificidades locais.
Atividades de formação que não consideram os sujeitos como ativos em seus
processos de ensino-aprendizagem, se baseiam em uma educação vista como
“bancária”, segundo Freire (2013). Diferente disso, foram proporcionadas atividades
que incentivaram a expressão da experiência dos moradores/as através de diferentes
linguagens (como a discursiva, gráficas, performativas e audiovisuais), possibilitando a
construção de narrativas patrimoniais que expressam múltiplos sentidos e significados a
partir das experiências de identidades de crianças, anciãos, lideranças e outros
moradores da comunidade.
Experiências reveladas através de imagens e objetos (produzidos e
selecionados) que guardam o sentimento de pertencimento e de memórias. Motta e
Oliveira (2013) ressaltam que a construção de imagens nos espaços liminares dão
sentido às construções de autorrepresentação.
144
3.3. A arte/educação na produção de imagens e representações de si
Figura 59: Dentro do Canzuá do Velho Xangô, uma zabumba ao lado de uma saia de
caroá. Foto: Cícera Francisca.
145
Figura 60: Casal de Pretos Velhos fotografados. Foto: Cícera Francisca.
146
Ao produzir obras depositadas em plataformas digitais, como o Documento
Sonoro, composto por um encarte e dois álbuns divididos em linhas de toré e gira e
Benditos, assim como um livro e vídeos, nos é apresentada uma estratégia de como
utilizar a arte/educação aliada às novas tecnologias, como instrumento de mediação
cultural em favor da educação (Barbosa, 2005: 112), na produção de conteúdos que
favorecem a execução das leis10.639/2003 e 11.645/2008 no trabalho com as questões
afroindígenas nas escolas.
A capa do Documento Sonoro (Figura 62) por exemplo, expressa os processos
de coautorias que atravessaram a pesquisa através da justaposição de fotografias
produzidas por diferentes pesquisadores. Foram utilizados também os desenhos
produzidos, considerados registros que trazem informações sobre a Tiririca dos Crioulos
e materializam os gestos das pessoas com relação aos materiais e suportes utilizados,
aos conteúdos abordados e suas situações históricas. Experiências de identidades que
revelam as relações estabelecidas no compartilhamento de formas e elementos visuais,
de valores e estratégias políticas, assim como a percepção sobre as coisas. O
Documento Sonoro pode ser acessado através do QR Code63 (Figuras 63) disponível
para download.
63QRcode é uma espécie de código de barras que permite ser escaneado por certos aparelhos celulares
com câmera fotográfica. Após a decodificação, irá redirecionar o acesso ao Documento Sonoro
publicado na página da ação (www.culturadigital.br/tiriricadoscrioulos).
147
Figura 63: QR Code do Documento Sonoro, composto por 2 Cds, um gravações de
Benditos e outro, com linhas de toré e gira.
148
3.4. O torégira como símbolo de identidade
No inventário participativo realizado com a Tiririca se expressa a presença
marcante do torégira em dramatizações que envolveram performances de abertura e
fechamento das oficinas de formação, com danças de linhas de toré realizadas por
adultos e crianças (Figura 64).
Figura 64: José Fernando e Cícero dançam e cantam um dos torés de aberturas
realizados durante as oficinas de formação. Foto de Carmelo Fioraso.
149
Figura 65: Mapa dos bens patrimoniais levantados com a pesquisa.
150
Percebo um fluxo intenso no processo de ensino-aprendizagem e troca de
informações sobre o ritual (e outras características da vida na Tiririca), entendendo com
Barth (2000) que este processo tem permitido o aumento de massa, fluxo de
informações e densidade de conteúdos que circulam na e sobre a Tiririca,
proporcionando uma compreensão dos sujeitos em relação ao seu ambiente, lugar no
mundo e a convergência de aspectos culturais. Barth (2000) fala que:
Figura 66: Desenho do ritual produzido por Douglas (professor de artes) no contexto da
ação Do Buraco ao Mundo.
151
Na oficina de Memória e História de vida, mediada por Alexandre Gomes, em que
os moradores/as foram convidados a levarem para o espaço um objeto significativo para
si e na história de sua família, ocorreu a presença de materiais utilizados no torégira,
como as roupas de caroá, maracá, cachimbo (guia), capacete, o Livro das Celebrações e
uma pedra de corisco (que se supõe ter chegado através de um raio), utilizada para bater
a casca da raiz da jurema na produção da bebida ritual (Figuras 67-69).
Figura 67: Miúda, contra-mestre ritual, levou sua saia de caroá na oficina de Memória e história
de vida. Foto de Carmelo Fioraso.
Figura 68: Janeide, cabocla-mestre do ritual, levou seu maracá para a oficina de Memória e
História de vida. Foto de Carmelo Fioraso.
152
Figura 69: Na mesa, alguns objetos significativos levados para a oficina que possuem ligação
com o contexto ritual do torégira.
153
A produção dos textos do livro partiu do registro da história oral através da
realização de entrevistas com anciãos, que foram organizados por Aleckssandra e
através do trabalho coletivo nas oficinas. Já a organização e edição do texto do livro foi
realizada pelos coordenadores na ação (eu, Caju e Aleckssandra), Verinha
(coordenadora da escola e do núcleo 6 Pankará) e pelas antropólogas responsáveis pela
produção do relatório de delimitação territorial da Tiririca (Caroline Farias Leal
Mendonça e Lara Erendira Almeida de Andrade, sendo está última responsável pelo
roteiro do livro).
Em um processo de reflexão sobre as estratégias de ensino a serem adotadas na
Escola local64, articulando crianças e anciãos, os professores e professoras encontram no
componente curricular institucionalizado das “Artes” o espaço no qual temáticas
diversas, apresentadas como bens patrimoniais, poderiam ser trabalhadas.
Ao trazer para as suas aulas e para as “oficinas de formação” alguns desses
elementos, a citar a Dança do Cordão, do Idoso, elementos do ritual do toré e a Banda
de Pífano, o professor de artes local possibilitou, nos moldes de Barth (2000) e nas
transações do conhecimento um recorte de seu percurso vital e de uma cultura que se
torna legitimada. Nos moldes de Schechner (1995:207), um “comportamento
restaurado”, que pode envolver uma ampla gama de ações que são comportamentos
repetidos e recriados, para lidar com a história e a tradição através de uma construção
baseada em uma pesquisa, criando “no passado a fim de ser restaurado para o presente e
para o futuro”(Schechner, 1995:2007).
Inseridas nas aulas de artes (e em outros espaços), essas referencias culturais são
relevantes no processo de construção de um roteiro de ensino-parendizagem, na
transmissão do conhecimento local e por serem exibidas como representações da
identidade que legitimam, na atualidade, a Tiririca enquanto um quilombo-indígena.
Se devemos entender a Arte/Educação como o ensino da arte em relação à
cultura em que se insere (Barbosa, 2005: 11), constata-se como tais práticas encontram-
se inseridas no currículo pedagógico da Escola Manuel Miguel do Nascimento, assim
como realizadas em performances externas e internas à comunidade, através do
engajamento deste professor que investiga o ritual junto aos anciãos da Tiririca e dos
índios Pankará.
64
Não somente a Constituição Federal de 1988, mas outros dispostivos internacionais (referendados
nacionalmente) concedem o direito a uma educação diferenciada. Isso implica, por exemplo, nas garantias
de um currículo adotados nas escolas que contemplem as formas próprias de organização do grupo, bem
como suas formas educacionais próprias.
154
A partir da experiência trazida pela ação ocorreu a inserção nas aulas de aspectos
como visitas ao Terreiro do Mestre Alves (ver item 5), do Mestre Bonito (ver item 25),
à Pedra do Descanso (ver item 31), ponto de referência onde as pessoas ligadas ao
ritual, na época de Mané Miguel, descansavam e pressentiam as viagens realizadas
durante as rotas rituais. A realização de entrevistas com especialistas rituais, como a
ocorrida com Janeide (ver localização da casa de Janeide, no item 47).
A apropriação da memória, do conhecimento local, de traços culturais que
sintetizam um processo contínuo de manutenção de uma fronteira étnica, manifestou
neste momento o torégira como característica distintiva da Tiririca. Revela o sentimento
de pertencimento ao grupo, valores compartilhados nas relações interétnicas e condições
de sucesso da performance étnica realizada.
Reflito sobre algumas características valorizadas na seleção dos bens ligados ao
ritual, atentando para o que estes aspectos representam para o andamento da vida na
Tiririca, conforme orientação de Abreu (2009) sobre a seleção de patrimônios vivos.
Ao selecionar os aspectos ligados ao ritual e com isso destacar símbolos de
identidade, percebo uma preocupação em destacar conhecimentos ligados às matrizes
católica afroindígena. A história do ritual faz acessar uma memória de resistência que
inclui experiências de discriminação racial e, mais recentemente, a reversão desse
estigma na ressignificação do que pode ser para os “tiririqueiros” um quilombo-
indígena, conquistando direitos e recursos a partir da articulação dessa categoria.
No processo de resistência, além de estratégias frente a opressão do toré e da gira,
como a abertura dos terreiros distantes das casas e a realização de rituais noturnos e
privados, se destaca a importante trajetória de Mané Miguel, bem como consensos com
algumas aldeias dos atuais Pankará e reciprocidades com entidades. Também na
atualidade, Maria de Ginu, uma anciã atuante nas atividades comunitárias e no ritual, é
valorizada por ter possibilitado, enquanto parteira, o nascimento de grande parte das
pessoas da comunidade e por ter sido a guardiã do Novenário de São João Batista
(padroeiro da Tiririca). Por fim, destacar o ritual traz uma memória de afetos
compartilhados, reforçando os valores que convergem e que fortalecem o grupo e as
estratégias de resolução de alguns dramas sociais que os atravessam.
Ao analisar a “funcionalidade” do ritual para a comunicação interétnica,
Nascimento (1994: 38) destaca a existência de símbolos que são acionados no processo
de comunicação, especialmente para o exterior do grupo e que indicam a diferença
155
étnica, sendo reconhecidos pela sociedade de forma mais ampla como símbolos da
“indianidade”.
Todos esses símbolos rituais que fazem parte do torégira foram acionados pela
Tiririca no contexto da ação “Do Buraco ao Mundo”, com o propósito de reafirmação
da identidade étnica do grupo, de se fazerem reconhecer enquanto índios e quilombolas
da Tiririca. Ao mesmo tempo, tal processo gerou o fortalecimento da própria auto-
imagem dos tiririqueiros, podendo alterar, segundo o autor, “a correlação de forças
locais” (Nascimento, 1994:43), quando a comunidade reconhece sua história e assume
uma postura política de reivindicação de seus direitos e problematização das relações de
poder, em que se inserem junto com outros grupos que os oprimem historicamente.
Para além de processos oficiais e da garantia de recursos, o ritual também torna
possível uma experiência intensa nesta localidade como algo que conecta os sujeitos e
outros materiais às entidades e com isso, a possibilidade de alcançar um “poder infinito”
(Turner, 1974:169) que transcende as dificuldades da vida. O ritual é um campo que
abranda “um pouco a rispidez dos conflitos sociais arraigados nos conflitos de interesse
material” (Turner, 2008:50).
No entanto como podemos ver, ele possui um papel na vida social da Tiririca que
vai além do processo realizado mensalmente. Sua performatividade irradia para a
escola, em percursos terapêuticos cotidianos e na ação “Do Buraco ao Mundo”. A
Tiririca atualmente capitaliza os símbolos ligados ao ritual “como instrumento político
para reconhecimento e afirmação social” (Motta e Oliveira, 2013:182). Desta forma, a
distinção enquanto grupo étnico é elaborada e construída através de uma organização
social que pertence ao ritual.
A experiência conceitual do que é para a Tiririca ser um quilombo-indígena, neste
momento, se expressa no repertório do torégira através da consciência de suas
lideranças que operam aproximações e distanciamentos dos universos católico
afroindígena, oferecendo uma condição materializada em diversos elementos. Tal ação
permite a ampliação das narrativas que materializam a experiência do ritual e das
categorias identitárias na elaboração do grupo étnico através do campo religioso.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 13-22
CHUVA, M. Por uma história da noção de Patrimônio Cultural no Brasil. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -História e Patrimônio., n. 34. Org. Márcia
Chuva. 2011. p. 147-166
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OLIVEIRA FILHO, J. P. de. “A noção de encapsulamento e seus desdobramentos “ In:
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Patrimonial: reflexões e práticas/ Átila Bezerra Talentino (org.) –João Pessoa:
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166