Se Voce Soubesse - Emily Elgar
Se Voce Soubesse - Emily Elgar
Se Voce Soubesse - Emily Elgar
1. CAPA
2. ROSTO
3. CRÉDITOS
4. DEDICATÓRIA
5. EPÍGRAFE
6. SUMÁRIO
7. PRÓLOGO
8. 1. ALICE
9. 2. FRANK
10. 3. CASSIE
11. 4. ALICE
12. 5. FRANK
13. 6. CASSIE
14. 7. ALICE
15. 8. FRANK
16. 9. CASSIE
17. 10. ALICE
18. 11. FRANK
19. 12. CASSIE
20. 13. ALICE
21. 14. FRANK
22. 15. CASSIE
23. 16. ALICE
24. 17. FRANK
25. 18. CASSIE
26. 19. ALICE
27. 20. FRANK
28. 21. CASSIE
29. 22. ALICE
30. 23. FRANK
31. 24. CASSIE
32. 25. ALICE
33. 26. CASSIE
34. EPÍLOGO
35. AGRADECIMENTOS
36. COLOFON
37. SE VOCÊ SOUBESSE
Copidesque
Lígia Alves
Revisão
Tássia Carvalho
Título original
If You Knew Her
ISBN: 978-65-5924-108-8
Direitos reservados em língua portuguesa, no Brasil, por Verus Editora. Nenhuma parte
desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados sem permissão escrita da editora.
PRÓLOGO
1. ALICE
2. FRANK
3. CASSIE
4. ALICE
5. FRANK
6. CASSIE
7. ALICE
8. FRANK
9. CASSIE
10. ALICE
11. FRANK
12. CASSIE
13. ALICE
14. FRANK
15. CASSIE
16. ALICE
17. FRANK
18. CASSIE
19. ALICE
20. FRANK
21. CASSIE
22. ALICE
23. FRANK
24. CASSIE
25. ALICE
26. CASSIE
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
COLOFON
SE VOCÊ SOUBESSE
PRÓLOGO
Vocês podem vir jantar na próxima quinta? O David quer conversar sobre a
ampliação. Vou fazê-lo cozinhar e a gente pode ter uma noite legal. Bj
Quando eu era criança, uns seis ou sete anos talvez, minha mãe
ficou doente. Na verdade não era nada muito sério, mas ela
precisou se afastar por algumas semanas e meu irmão e eu ficamos
com nossos avós. Eles eram legais com a gente, mas a questão é
que aquela foi a primeira vez que eu me lembro de sentir falta de
alguém. Não um tipo vago e cotidiano de saudade, mas um tipo de
cordão umbilical ao contrário. Sem minha mãe eu me sentia
embrionário, incapaz. Cada instinto meu queria estar de volta dentro
dela, onde era seguro, onde eu não poderia estar sozinho. Então
fomos para casa e tudo voltou ao normal, e, do jeito das crianças,
todo o choro e os chamados por ela, bem, pareceram que nunca
tinham acontecido.
Sem Alice eu me lembrei daquela época, de como me senti
quando minha mãe ficou doente. Entrei em pânico estes últimos
dias, assustado, imaginando que ela nunca mais voltaria. Ela me
disse que não estaria no hospital durante o Natal, mas pensei que
seria apenas um dia ou dois. Houve algumas enfermeiras
temporárias durante o período, que nem se importaram em aprender
meu nome. Para elas, eu era apenas “o paciente”.
Aquela nova, Lizzie, tenta uma brincadeira ou outra comigo.
— Esta noite o sabor é de peru, sr. Ashcroft — ela disse, usando
um gorro de Papai Noel no dia de Natal, ao esvaziar a seringa
dentro de um dos tubos que saem de mim, bombeando a gororoba
da uti diretamente no meu estômago. Gentil da parte dela tentar, mas
ela deveria saber que eu não consigo diferenciar peru de asfalto.
Lizzie é nova com os vegetativos como eu, é óbvio. Ela move minha
cabeça em movimentos secos, cautelosos e hesitantes. Na verdade
é bonitinho. Ela não quer me machucar, mas poderia passar um
ralador de queijo no meu peito e um isqueiro nas minhas bolas e eu
sentiria, cada ralado e cada queimadura, igual a todo mundo, só que
não iria conseguir gritar. Eu não conseguiria nem piscar.
Muitas vezes eu me pergunto: se Sharma tivesse acreditado em
Alice e seu diagnóstico de síndrome do encarceramento em vez de
estado vegetativo persistente, como as coisas seriam diferentes
para mim aqui. O evp, até onde eu sei, é um jeito bonito de dizer
“morto de todas as formas que importam para os vivos”. O paciente
em evp está se equilibrando entre a vida e a morte, o cérebro vazio
como uma nuvem, mas os pulmões recebem oxigênio por
bombeamento. Os médicos mantêm o paciente vivo. Como crianças
prendendo uma borboleta na ponta de um cordão, eles não soltam,
mas continuam seu jogo cruel, porque desligar os aparelhos, soltar
a cordinha, seria perder o jogo, deixar a borboleta voar, e isso não
pode acontecer. Também não pode ser evitado, eu acho. Os vivos
geralmente são obcecados pela vida.
Então este é o evp: luzes acesas, mas ninguém em casa. Minha
situação é um pouco diferente: eu estou em casa, mas meu fusível
pifou para tudo o que tem do lado de fora. Alice chama de síndrome
do encarceramento. Coceira no nariz, senso de humor, desejo
sexual, uma voz na minha cabeça, vontade de cagar,
arrependimentos: tenho tudo isso, todas essas vontades, desejos e
necessidades, com a mesma clareza incômoda e torturante de
sempre. Só que estou preso e não consigo fazer nada disso. Não dá
para coçar, para rir, para transar, para conversar, para cagar ou para
chorar. Tudo é feito por mim ou em cima de mim, menos a parte de
transar.
Alice ainda é a única que consegue me sentir aqui, preso no meu
corpo, como se eu estivesse em uma camisa de força.
Esta manhã eu a ouvi antes de vê-la; agora reconheço seus
passos em qualquer lugar. Seu caminhar é como os dedos de um
pianista sobre as teclas. Ela ergue os pés e impulsiona o corpo, as
notas do calcanhar são graves, as dos dedos, mais agudas. Uma
onda de alívio começa a bombear dentro de mim e chega ao ápice
quando ela entra na minha linha de visão.
Alice voltou. Ela está aqui.
Alguns fios de seu cabelo castanho ondulado escaparam do
coque e caem, elásticos, na minha direção, a centímetros do meu
rosto. Seus olhos azuis franzem um pouco quando ela sorri, uma
covinha na bochecha esquerda e, sim, ali está… há um espaço
entre seus dentes, como uma pequena caverna secreta que ela só
mostra quando sorri. Ela me disse uma vez que, quando era
estudante, tentou guardar dinheiro para corrigir a falha entre os
dentes, mas no fim preferiu viajar.
— Oi, Frank. Feliz Ano-Novo. Espero que seu Natal tenha sido
legal. É bom ver você. — Quero que ela me toque, que coloque a
mão na minha bochecha, que fale igual minha mãe falava, que está
de volta e agora vai continuar comigo. Acho que nem Alice sabe
como dez dias são um longo tempo para ficar preso aqui dentro. Ela
tagarela sobre seu Natal, a sobrinha e o sobrinho, mas eu sei o que
está pensando quando morde o lábio inferior. Se eu pudesse, diria a
ela que sei como a solidão corrói, como a raiva queima. Eu diria que
podemos ser diferentes, mas ela não está sozinha.
Ela pega o enfeite no pé da minha cama e eu penso: Valeu, Alice.
Pra ser sincero, essa não é a minha praia mesmo. Ela hesita por um
instante ao lado dos meus cartões de Natal, mas não os retira,
então vai embora para fazer a ronda. Sou grato por ela deixar os
cartões. Só os vi uma vez, quando Lizzie os abriu logo antes do
Natal. O restante do tempo eles ficaram enfiados no painel lateral da
minha cabeceira, e é raro virarem meu pescoço para a direita o
suficiente de forma que eu consiga vê-los. Só recebi três este ano, o
que não é ruim, eu acho, considerando que não enviei nenhum. Eu
me lembro bem deles; meu cérebro é bom em tirar fotos mentais.
Pequenas bênçãos. Um é do meu irmão mais novo, Dex, que mais
ou menos um ano atrás se mudou para a Costa del Algum Lugar
com a nova esposa. Há seis meses minha mãe saiu da casa onde
crescemos, em Swindon, onde vivia sozinha desde que meu pai
morreu, há vinte e nove anos, para morar com Dex e a esposa,
Bridget, na Espanha. Fiquei espantado por Dex ter feito alguma
coisa pela nossa mãe, pela família, mas então descobri sobre a
empresa de táxi que ele abriu no nome dela para se beneficiar dos
incentivos fiscais, e ela precisava ser registrada como residente na
tal Costa del Algum Lugar. O cartão tem um Papai Noel em um trenó
pousando sobre um telhado. Minha mãe deve ter escolhido. Quando
Lizzie passou o cartão na frente do meu rosto, vi que os dizeres
estavam escritos nos garranchos dela.
Não tenho muito tempo com ela. Cassie Jensen ainda tem um
cheiro fresco, uma aura lá de fora que a envolve. A hipotermia
transformou seus lábios e pálpebras em um azul não natural, como
uma maquiagem ruim, mas as bochechas ainda têm o ligeiro viço da
saúde, o que a ajuda a parecer mais viva que morta, mas só um
pouquinho. As faces vão perder o volume em alguns dias. A equipe
de cirurgia removeu todo tipo de joias que ela estava usando.
Acaricio seu braço esquerdo, o que não foi espetado pelo
cirurgião como se fosse uma boneca de vodu. Está envolto por
linhas vermelhas, lacerações do acidente. Seguro sua mão direita
por um momento. Está quente, mas não há nenhum tremor de
reação sob as pálpebras de Cassie. Um tubo sai de sua nuca, por
baixo do cabelo loiro, onde o neurocirurgião perfurou o crânio para
inserir uma sonda temporária na cavidade com o objetivo de
monitorar a pressão intracraniana e o inchaço ao redor do cérebro.
Parece que fizeram um bom trabalho; o horror do tubo mergulhando
na cabeça de Cassie é coberto discretamente por um pequeno
curativo, e só rasparam uma pequena porção de seu cabelo. Ela
está marcada com hematomas profundos no pescoço e no peito e
há um corte feio em seu lábio. Como galáxias minúsculas e
ofuscantes, os hematomas colorem sua pele, que, fora isso, é
pálida. Como sempre faço com os novos pacientes, eu me pergunto
quem ela é, como é o som de sua risada, o que ela planejava fazer
hoje. Talvez fosse para estar com uma amiga em um café neste
momento. Mesmo com as contusões, cortes e dedos quebrados, ela
não parece pertencer a este lugar. Parece que ela está fingindo.
Pego sua pasta na mesa de cabeceira. Diz que sua cadela se
assustou com os fogos do Ano-Novo e desapareceu nas primeiras
horas da madrugada do dia 1o. Cassie saiu no escuro à procura
dela. Verificou-se que havia uma poça perto de onde ela teria caído,
o que pode ter causado uma queda. Segundo o formulário, ou foi
um acidente causado por ela mesma, ou foi um atropelamento em
que o condutor fugiu sem prestar socorro, então a polícia vai
aparecer.
— Enfermeira Marlowe? — É Lizzie falando atrás da cortina,
provavelmente sem saber se tem permissão para entrar.
— Pode entrar, Lizzie.
Ela puxa a cortina apenas o suficiente para mover a cabeça no
vão. Olha rapidamente para Cassie antes de se virar para mim.
— A família está aqui.
— O marido? — pergunto.
— Sim, e acho que talvez a mãe dela?
— Certo, então só há dois parentes?
— Isso. Quer dizer, positivo.
— Tudo bem, deixe-os entrar, por favor. Ah, Lizzie. — O rosto
dela reaparece por detrás da cortina. — Me chame de Alice. — Ela
confirma com a cabeça e sorrimos uma para a outra antes de ela
sair.
Com uma carícia, puxo para trás o cabelo loiro de Cassie, que vai
até a altura dos ombros, e tento ocultar o máximo possível a
bandagem na cabeça, uma tentativa fraca de minimizar o choque
para a família. Outras enfermeiras seniores delegam as funções de
contato com familiares, mas eu gosto de fazer o encontro inicial se
estou de serviço. A reação da família do paciente tem um grande
impacto em toda a ala. Geralmente é um ato de equilíbrio tênue:
empatia temperada com realismo.
Ouço passos vindo em nossa direção, e Lizzie diz em uma voz
adequadamente contida:
— Aqui está ela. — E então puxa a cortina. Lizzie fecha-a
novamente atrás de uma mulher, que deve estar na casa dos
sessenta anos, e um homem de aparência atlética e cabelo escuro,
o marido de Cassie, que parece ser apenas alguns anos mais novo
que eu, uns trinta e poucos anos. Recuo. Eles não me notam. É
como se fossem magnetizados na direção de Cassie.
— Cas, ah, Cassie. — O marido abraça e beija a mão que acabei
de segurar. A mulher fica logo atrás dele. Ela coloca a mão bem-
feita na parte inferior das costas dele. — Ah, meu Deus! — exclama
o marido e começa a chorar baixinho. A mulher faz pequenos
círculos com a mão na lombar do rapaz e sussurra para ele se
acalmar. Ela está usando calça jeans e um suéter velho de gola em
V, o tipo de roupa vestida às presas por causa de uma emergência.
O homem está de jeans e uma camisa azul amassada.
A mulher levanta a cabeça prateada, como se de repente
tomasse consciência de onde está. Ela olha a área acortinada em
volta e me vê pela primeira vez. Parece estar procurando algo, mas
eu levanto a mão e digo, com o máximo de delicadeza que consigo:
— Por favor, fiquem à vontade. — Acho que o marido não me
ouviu. Não quero que ninguém se sinta constrangido, então vou até
o lado de fora da cortina. O marido ainda está chorando.
— Lembre-se, Jack — diz a mulher —, o cirurgião falou que seria
chocante… que esse é o pior estado em que nós a veríamos. —
Sua voz começa clara, mas falha no fim da frase.
Espero alguns minutos enquanto ela resmunga mais algumas
palavras suaves, e então dou um passo à frente. O ruído no trilho da
cortina os faz levantar a cabeça. A mulher está com os braços ao
redor dele, um pequeno conjunto de duas pessoas sobre Cassie.
Eles olham para mim, surpresos, como se tivessem esquecido que
estão em uma uti. A mulher se separa de Jack e vem até mim, a
palma estendida.
Pego sua mão.
— Sou Alice Marlowe, enfermeira desta ala. Minha equipe e eu
vamos cuidar da Cassie enquanto ela estiver com a gente.
— Olá, enfermeira. Sou a Charlotte, Charlotte Jensen, a sogra da
Cassie. — Ela sorri, um lampejo rápido reflexivo. Ela tem um
perfume sutil, cálido, como se usasse a mesma fragrância há tantos
anos que acabou se tornando parte dela. Aposto que todas as suas
roupas carregam o mesmo cheiro.
Diferente da mãe, a mão de Jack é pegajosa, quase sem vida.
Ele ganhou uma sombra avermelhada de barba no rosto durante a
espera da noite toda sentados em cadeiras de plástico.
— Eu sinto muito. Deve ser um choque terrível para vocês.
Jack encontra meus olhos brevemente e confirma balançando a
cabeça.
— Vamos para a sala de visitas — digo gentilmente —, assim eu
posso dar uma atualização sobre o quadro dela, depois vocês
podem voltar e passar mais tempo com a Cassie, se quiserem.
Eles me seguem como zumbis até o final da ala. Assim que
entramos na sala de visitas, noto que eu queria também ter jogado
no lixo as decorações daqui. Os Jensen não parecem ser pessoas
que usam renas de plástico.
Ambos recusam silenciosamente minhas ofertas de chá ou café.
Alguém arrumou três cadeiras cuidadosamente em um semicírculo.
Acho que deve ter sido Lizzie. Jack puxa a calça uns dois
centímetros para cima sobre as coxas quando se senta, um hábito
doce e antiquado, e eu me pergunto brevemente com quem será
que ele aprendeu.
Charlotte tira um lenço de papel do pacotinho em seu colo e
entrega a Jack, que o segura cuidadosamente na mão, como se
fosse precioso demais para ser usado para assoar o nariz.
Jack está brincando com algo pequeno e delicado em suas mãos.
Noto um brilho quando o objeto capta a luz, e sei o que ele está
segurando. O anel de noivado e a aliança de Cassie. Um dos
enfermeiros socorristas deve ter dado para ele guardar. Ele enxuga
os olhos e guarda os anéis no bolso frontal da camisa. Um segundo
depois, dá uma palmadinha ali para se reassegurar de que os anéis
ainda estão guardados, ou para verificar se o coração ainda está
batendo.
Ele solta a respiração.
— Desculpe, enfermeira. Essa é a primeira vez que estamos
vendo a Cassie desde ontem. Foi mais difícil do que eu imaginava.
— A mãe coloca a mão no joelho dele e ele olha para o chão com
olhos vazios.
— Não precisa se desculpar. É um grande choque ver alguém
que a gente ama depois de um acidente como esse.
Um celular vibra. Está no silencioso, mas Jack ainda pede
desculpa ao removê-lo do bolso da calça e rejeitar a ligação sem
nem olhar para a tela. O gesto me dá um segundo para observá-los
com mais atenção. Os Jensen são uma dupla atraente. Jack é
grande e alto, sem ser desengonçado ou quadradão. Notei
anteriormente que seus olhos são cor de âmbar, como os da mãe,
mas a parte branca está contornada de vermelho por causa da
preocupação. O rosto de Charlotte está um pouco inchado, de
choro, falta de sono ou ambos; há vestígios de rímel e delineador
em volta dos olhos.
— Pode nos dizer como ela está? — pergunta Charlotte. — Já
faz mais de vinte e quatro horas e o cirurgião não nos falou muito.
Posiciono o corpo mais para a frente na cadeira. A mesma
cadeira em que me sentei quando falei para os filhos sem reação de
Ellen que a mãe deles nunca deixaria o centro de atendimento
médico, e na mesma cadeira em que chorei quando não encontrei
mais ninguém para chorar por Frank.
— A Cassie obviamente se encontra em estado grave. Ela está
em coma, mas essa é a resposta natural do corpo a um choque
extremo. — Falo devagar; o impacto de uma situação assim pode
perturbar o entendimento das pessoas, e essa é minha chance de
tranquilizá-los dizendo que Cassie está no melhor lugar onde
poderia estar. — Pensem nisso como um edifício que fecha em uma
situação de emergência para se proteger. Nossa esperança é que o
corpo da Cassie tenha se fechado apenas temporariamente para
avaliar a situação e consertar qualquer dano provocado pelo
acidente. A boa notícia é que ela é saudável, jovem e, o mais
importante, está respirando sem a ajuda de aparelhos. O ventilador
é só para proteger as vias aéreas dela. A ressonância mostrou um
grande inchaço em torno do cérebro por causa do traumatismo
craniano. É por isso que ela está com um tubo na cabeça, medindo
a pressão causada pelo inchaço. Nós esperamos que o inchaço seja
uma resposta de curto prazo ao acidente e que diminua nos
próximos dias, então temos de aguardar para ver se isso realmente
acontece. Antes disso, existe uma possibilidade de que quaisquer
outros exames que nós possamos fazer nos deem resultados
imprecisos.
Charlotte assente de leve. Acho que, em meio à exaustão, ela
está tentando lembrar o que estou dizendo para que possa
tranquilizar Jack caso ele não consiga lembrar mais tarde.
Jack gira a aliança no dedo e fica olhando para os pés. Charlotte
dá um tapinha no joelho do filho enquanto eu falo.
— Com sorte, a Cassie não vai ficar aqui por muito tempo antes
de ser transferida para uma ala de reabilitação, mas por ora ela vai
receber o melhor atendimento possível para pacientes na condição
dela. Vou fazer de tudo para que ela fique confortável e que todas
as necessidades dela sejam atendidas até sabermos mais sobre o
que está acontecendo. Até lá, receio que estaremos em um jogo de
espera. O corpo dela precisa descansar, e é exatamente o que está
fazendo.
Charlotte faz um sinal afirmativo com a cabeça, sem piscar, e
pergunta:
— Existe alguma coisa que a gente possa fazer por ela?
— Vai ser bom se vocês vierem e ficarem sentados com ela.
Conversem com ela se puderem, mas é melhor virem quando
estiverem se sentindo fortes e descansados. Eu trabalho com
pacientes em coma há alguns anos e tenho certeza de que eles
percebem o nosso humor e como estamos nos sentindo. — Não
quero exagerar. Jack parece vazio por causa do choque. Dou um
sorriso gentil ao entregar para Charlotte folhetos com informações
sobre a ala e meus contatos. — Eu e o sr. Sharma, o médico
coordenador, esperamos encontrar vocês aqui novamente amanhã
de manhã, às dez. É possível?
Ambos confirmam.
— Dez horas, sim — diz Charlotte.
— Que bom. Bem, se tiverem mais perguntas, vão me encontrar
nesta ala.
Jack e Charlotte estão cansados demais para perceber que a
conversa acabou, então eu me levanto.
— Tentem descansar um pouco — recomendo, e eles se
levantam, meio sem jeito.
Eles me agradecem, e Charlotte segura minha mão brevemente
entre as suas; são macias e hidratadas. Até mesmo com sombras
cinzentas debaixo dos olhos e um suéter disforme, ela é
deslumbrante. Seu cabelo loiro é liso e lustroso, com mechas
brancas e cinzentas. As rugas parecem valorizar seu rosto redondo,
como as linhas fininhas em um couro macio e caro. Ela parece o
tipo de mulher que, em qualquer outro momento, estaria bem-
arrumada.
— A Maisie, a cadela… Ela já fugiu antes — diz Charlotte,
soltando minha mão. — Não acredito que isso esteja acontecendo.
Tento mostrar um sorriso encorajador.
— Vocês precisam tentar descansar. — Quando eles se viram
para ir embora, acrescento: — Ah, desculpem, esqueci de
perguntar. A Cassie tem algum outro familiar que vocês queiram que
eu contate? Pais, irmãos, irmãs?
Charlotte fala baixinho, como se estivesse preocupada que
Cassie fosse ouvir do outro lado da ala.
— Não, não, a mãe dela morreu de câncer há dois anos e meio e
ela nunca conheceu o pai. Então creio que somos apenas nós. Mas
somos uma familiazinha unida, não somos, Jack? — Ela ergue a
mão até a boca.
Jack puxa a mãe contra si, passa o braço ao redor dela e diz:
— Vem, mãe, você está exausta. Temos que ir para casa. — E a
guia com cuidado para fora dali.
O calor queima meu rosto quando tiro do forno a lasanha que David
preparou. Está borbulhando, então a deixo de lado para esfriar um
pouco e me viro para Jess, sentada à nossa mesa da cozinha,
cercada pelas revistas de arquitetura de David, velas e papelada.
Ela liberou um espacinho para picar tomates para a nossa salada.
Está vestindo um avental surrado com estampa de flores silvestres,
que eu tenho desde que era criança, por cima de seu vestido de
trabalho cinza-claro, de corte ajustado. Ela deixou os sapatos de
salto alto na porta dos fundos, em favor dos meus chinelos. Seu
batom vermelho está começando a desbotar, tornando-se uma cor
diluída de beterraba, mas o cabelo curto cor de chocolate
permanece impecável. Ainda há um traço da executiva da Sony que
ela trabalhou tanto para se tornar.
— Devo cortar as azeitonas ao meio ou nem me incomodar? —
ela pergunta, tomando um gole de vinho tinto.
Eu me sento na frente dela.
— Não se incomode — digo, antes de lhe passar um pepino.
Ela estava me contando a história de uma nova boy band de que
nunca ouvi falar, mas cujos integrantes acabaram de ser pegos pela
imprensa com notas de cinquenta libras enroladas na narina,
cheirando cocaína.
— Enfim, parece que vamos ter que rescindir o contrato. Na
verdade fico um pouco triste por eles. É como se já tivesse acabado
antes de começar. Coisas demais, jovens demais. Sabe, imagina se
a gente tivesse um milhão de libras com vinte anos?
Resgato na memória nós duas quando nos conhecemos na
Universidade de Bristol, eu usando meus Doc Martens falsificados,
delineador escuro ao redor dos olhos, quase sem sorrir para
esconder o espaço entre os dentes, tentando fingir que não estava
toda boba por causa da liberdade, e Jess ao meu lado com roupas
tie-dye que comprou na Tailândia, um cigarro enrolado à mão
permanentemente nos lábios. Ela odiava o dormitório onde ficara,
então se mudou para o meu quarto. Dormimos uma virada para
cada lado na minha cama de solteiro por meses. Naquela época,
tentávamos imaginar como seria quando fôssemos mulheres
casadas com carreira, família… Agora, quase vinte anos depois,
tentamos lembrar como éramos naquela época.
Nenhuma de nós diz nada por um momento. Jess continua
picando e eu tiro azeite e vinagre do armário para fazer o molho da
salada. Ela termina de cortar o pepino e se recosta na cadeira com
o vinho entre as mãos, cruzando as pernas longas.
— Então, como estão as coisas no Kate’s? Como vai o Frank?
— Ele está na mesma. Fico muito nervosa que aquele médico,
sobre o qual te falei, acabe conseguindo o diagnóstico de evp que
está tentando. Vai ser o fim para o Frank. Aí o caso dele vai deixar
de ser reabilitação, apenas manutenção. Ele acabou de fazer
cinquenta anos, pelo amor de Deus, tão jovem para ter um derrame
tão extenso. Embora seja irrealista esperar uma recuperação
completa, eu não acho loucura demais pensar que ele possa
recuperar um pouco da qualidade de vida. Caso contrário, ele talvez
tenha mais trinta anos só olhando para o teto.
— Jesus. — Jess pega a garrafa de vinho e acena com ela na
minha direção. Nego com a cabeça e me sirvo de mais água com
gás.
— Na verdade, nós temos uma subcelebridade na ala neste
momento. — É bom ter uma história que Jess vai apreciar, para
variar um pouco.
— Ah, é? — Ela não ergue os olhos ao encher a taça de vinho
mais uma vez.
Sinto um calor de culpa de repente. Cassie não é uma “boa
história”; é uma paciente. Eu ficaria furiosa se ouvisse alguém
falando sobre ela dessa forma. Lembro a mim mesma que Mary
conta tudo para Pat, e, além disso, Jess é, na maior parte do tempo,
expert em guardar segredos. No seu trabalho, ela tem que ser.
— É aquela mulher do comercial da Juice-C.
O rosto de Jess parece vazio por um segundo antes de ela dizer:
— Meu Deus, aquela menina do “Aí está o sol”?
Confirmo.
— Estranho, né? — Conto a ela sobre o atropelamento e fuga,
sobre Cassie, Charlotte e Jack. Não menciono o bebê. Seria uma
quebra de sigilo ampla demais.
— Como são os amigos dela? — Jess pergunta, mas o celular
vibra em cima da mesa. Habilmente ela começa a teclar na tela com
a ponta da unha, tec-tec-tec, imediatamente desinteressada. Mas é
oportuno; pela primeira vez estou feliz que o celular a tenha
distraído e eu não precise responder a sua pergunta.
Gostaria de conhecer os amigos de Cassie. Imagino que sejam
do tipo boêmio e criativo: pessoas que provavelmente viveram no
exterior por um tempo, talvez na Itália; pessoas que praticam
meditação e visitaram todos os teatros em Londres. Eu gostaria de
conhecer alguns. Eles iriam me assegurar de que Cassie é mais
parecida com eles, não com aquela personagem do anúncio, ao
estilo da Disney.
Jess continua teclando no telefone e balança a tela na minha
direção. Ela já encontrou o nome completo de Cassie nos créditos
do comercial e descobriu o perfil dela no Facebook. A foto é aquela
do Natal, o close de Cassie em preto e branco decorando a árvore.
Sinto outra pontada vergonhosa de inveja. Sem fazer nada e apesar
de tudo, Cassie parece ter o dom de me causar inveja. Para
neutralizar o sentimento, comento:
— Linda, não é?
Jess vira a tela de volta para si. Ela franze o nariz olhando para a
foto.
— Sim, mas ela não parece particularmente feliz, se você quer
saber a minha opinião. Eu trabalho no ramo dos sorrisos falsos, e
este… — ela bate o dedo no celular, e eu queria que não fizesse
isso; parece indelicado, desrespeitoso de alguma forma — … é um
sorriso falso.
Não olho para Jess. Em vez disso, viro as costas e começo a
chacoalhar o vidro de tempero com força. Ouço a voz de Jonny,
perto, como se ele estivesse aqui na minha cozinha, sussurrando no
meu ouvido.
Ela estava com medo.
Jess, graças a Deus, larga o telefone em cima da mesa. Por ora
ela terminou.
— Então, o que mais está acontecendo? — ela pergunta.
Paro de sacudir o molho da salada. Quero contar para alguém.
Quero contar para Jess, afinal de contas tenho feito um bom
trabalho em não lhe contar sobre o bebê de Cassie, mas posso
contar sobre o meu; é uma escolha minha. Coloco o molho sobre a
mesa e flexiono os joelhos para ficar no nível de Jess. Ela parece
um pouco assustada quando pego sua mão.
— Eu tenho novidades.
Ela sabe imediatamente, mas nem mesmo Jess é rápida o
bastante em esconder o franzido na testa, a preocupação que
perpassa seu rosto. Levantamos e ela me puxa para um abraço que
dura um pouco demais.
— Ah, Ali! — diz ela sobre o meu ombro. — Que demais!
Mas sinto que estou sendo consolada, não parabenizada. No
mesmo instante, eu me arrependo de ter contado. A notícia azeda
na minha garganta como uma piada de mau gosto. Jess sabe de
tudo, claro, sobre todos os meus abortos. Sinto que preciso provar a
ela que estou calma em relação a tudo isso, que eu sei que ainda
estou longe de ser mãe.
— Mas estou de umas três semanas apenas. Você é a primeira a
saber.
— Você vai contar para o David? — ela pergunta. Seu celular
vibra novamente, mas ela ignora desta vez. Continua segurando
minhas mãos e tentando avaliar se estou bem de verdade.
Sinto meu rosto corar e penso em Cassie não ter contado a Jack.
Penso em como ela foi corajosa e amorosa ao protegê-lo. Quero
fazer o mesmo por David. Ele não precisa passar por tudo isso de
novo. Balanço a cabeça para Jess.
— Não, ainda não. Daqui a algumas semanas, provavelmente. —
Dou de ombros e encontro seu olhar. — Mas estou bem e prometo
que vou te contar se alguma coisa mudar.
Nós duas viramos para a porta. Ambas ouvimos a risada de Tim
e David, prestes a entrar na cozinha. Jess me beija rapidamente na
bochecha e eu me desvio da porta, me ocupando em encontrar os
pegadores certos para servir a lasanha, ao mesmo tempo em que
componho o rosto.
David e Tim irrompem na cozinha. Estão muito imersos em sua
própria conversa para notar minha notícia delicada pairando no ar.
David abre outra garrafa de vinho, e ele e Tim falam um por cima do
outro ao explicarem o grande avanço que acabaram de ter com o
projeto da casa. Sirvo a lasanha com David e, quando todos nos
sentamos, respiro aliviada novamente porque sei, a despeito do
medo, que ainda há uma chance de termos um filho, e sinto no peito
que um broto antigo e familiar de esperança começa a desabrochar.
11
FRANK
Paula está na escala desta noite. Eu sei que são por volta das três
da manhã, porque Paula é uma mulher de hábitos. Ela programa
cuidadosamente o horário do segundo lanche para aliviar um pouco
a parte final de sua jornada noturna. Esta madrugada tem barulho e
cheiro de pipoca. Ouço a porta se abrir lentamente assim que os
primeiros grãos começam a estourar. Eles produzem uma trilha
sonora estranha. Meu coração aperta e eu sei que é ele; ele voltou.
Paula me deixou com o queixo no peito, assim, esta noite, vejo
mais do sujeito, que entra mancando em direção a Cassie como
uma sombra ferida. A cortina balança quando ele vai até a lateral da
cama dela, onde Alice estava algumas horas antes. Penso em Jack
avisando Alice sobre o padrasto de Cassie, Marcus, e em como ele
estava preocupado que o homem pudesse entrar na ala. É ele.
Deve ser ele.
Ele está parado sobre o leito dela de um jeito sinistro. Não se
mexe por alguns minutos até eu começar a vê-lo tremer, os ombros
subindo e descendo.
Ele está rindo. Que merda, ele está rindo, o louco maldito.
Jack deu a entender que ele era um pouco esquisito, mas nunca
falou que o cara era completamente louco. Não posso fazer nada
além de observá-lo chegar perto dela e se abaixar devagar na
cadeira ao lado da cama.
Minha pele sente a tensão no ar, como se o ar estivesse sendo
lentamente sugado para longe. Começo a me contorcer por dentro
quando ele apoia os cotovelos na beira da cama e esfrega a base
das mãos nos olhos, enquanto a cabeça balança de um lado para o
outro, de um lado para o outro. Seus ombros sobem e descem e eu
o ouço sugar uma respiração carregada no peito, úmida, e me dou
conta de que ele não está rindo. Está chorando.
— Me desculpe, me desculpe, me desculpe.
De início acho que finalmente enlouqueci, que meu cérebro teve
um curto-circuito, só que, quanto mais eu olho, quanto mais ouço as
palavras “Me desculpe, me desculpe”, mais convencido fico de que
o visitante desta noite não é Marcus e não pode ser Jonny. Porque a
pessoa que está implorando o perdão de Cassie é uma mulher.
15
CASSIE
Charlotte está de volta com a calça jeans que não serve bem e uma
camisa grande demais com bolsos, que reconheço dos primeiros
dias depois que Cassie sofreu o acidente.
— Ah, Alice — começa ela, franzindo a testa como se não
entendesse o que está dizendo. — Receio que o Jack esteja bem
aborrecido com essa história toda. Ele está no telefone falando com
o escritório. Parece que os jornalistas já começaram a ligar. Ele está
tentando descobrir a melhor maneira de lidar com isso. — Sua mão
pequena oscila até a têmpora. — Receio que tudo isso tenha virado
uma bagunça, não? Como se ainda não tivéssemos passado pelo
suficiente.
Puxo Charlotte pelo braço em direção à sala de visitas, e Jack
entra um momento depois feito um tufão. Charlotte faz um gesto
para ele sentar, mas ele a ignora e continua em pé.
— Eu sei quem foi — vocifera ele. — O padrasto da Cassie,
Marcus Garrett, tenho certeza absoluta disso. — Ele ergue o jornal
como uma forma de fazer um gesto obsceno para nós. — É óbvio,
porque não deixamos que ele viesse vê-la.
Charlotte se senta, seu tom equilibrado.
— A Cassie sempre disse que ele poderia ser uma pessoa
complicada, mas nunca o fez parecer vingativo. Você acha mesmo
que ele iria tão longe?
— Ah, vamos falar sério. Você não lembra como ele agia
estranho com a Cas? Ele é vingativo e está delirando e…
Charlotte ergue a palma da mão para Jack parar.
— Chega, Jack. — Ela não precisa levantar a voz. — Não
podemos colocar a culpa só no Marcus sem pensar em outros
caminhos plausíveis. Quer dizer, aqui é sempre tão cheio de gente.
— Ela se vira para mim. — Espero que você não se importe que eu
diga, Alice, mas será que não poderia ter sido, não sei, não digo
uma enfermeira ou um médico, mas um maqueiro, um faxineiro ou
alguém assim?
Respondo concordando com a cabeça.
— Sim, eu tive o mesmo pensamento, para ser sincera.
Jack não diz nada. Ele encontrou seu culpado. Esta discussão é
só para deixar sua mãe feliz. Um músculo em seu maxilar salta com
tensão. Uma pessoa de rp do hospital se junta a nós. Eles
conversam sobre o que pode acontecer, aconselham Charlotte e
Jack sobre como lidar com os repórteres. Mãe e filho passam o
resto da manhã com Cassie e eu ajudo a coordenar uma reunião de
equipe. Vamos ter nossa própria equipe de segurança nos próximos
dias, e todos são lembrados de que visitantes que não estejam na
lista de um paciente precisam ligar para conseguir a autorização da
família antes de poderem visitar.
Depois da reunião, encontro Carol e Mary no posto de
enfermagem. Carol enche a chaleira elétrica com água da torneira e
Mary lê em voz alta da tela do celular. Ela faz uma pausa e ergue os
olhos brevemente quando entro.
— É disso que eu estava falando — diz ela. — Aqui na seção de
comentários, um cara que assina como Peckham Tim falou que
Jonny Parker vivia enchendo a cara.
Carol acena com a cabeça, julgando. Esquecendo que eu estava
lá naquela noite, ela enruga o nariz e diz:
— A Paula falou que dava para sentir o cheiro de bebida nele.
— Sim, mas aqui a questão é esta… — Mary começa a ler em
voz alta do celular: — “Minha ex-namorada não gostava dele. Ele
sempre a deixava desconfortável. Uma vez ele passou a mão nela
no pub, e, quando fui tirar satisfação, ele negou, o que levou a uma
briga, e foi a última vez que eu o vi. Ele é um traste. Tem que ser
preso!” — Mary e Carol se entreolham, os rostos animados,
encantadas com o vilão.
— Maldito — xinga Carol, sacudindo a cabeça. A chaleira chia e
ferve. — Você vai tomar chá, querida? — ela me pergunta.
Confirmo, e Mary continua falando.
— No site do Mail, as pessoas estão dizendo que ele era
obcecado por ela, que não a deixava em paz. Há testemunhas da
festa que os viram discutindo, bem quando o relógio bateu meia-
noite, antes de eles brigarem e a Cassie ficar chateada.
— Quem estava? — pergunto, me sentindo franzir a testa. —
Discutindo, quero dizer.
— Ali, presta atenção! O Jonny e a Cassie. Muitas pessoas na
festa viram os dois juntos. Eles se estranharam um pouco antes de
ela voltar para casa andando… chorando e tudo mais. Ele ficou
bebendo por mais uma hora antes de pegar o carro e ir para casa
absolutamente furioso e, para ser mais específica, zangado com a
Cassie…
— Você acha que não foi acidente?
Mary levanta as sobrancelhas em um olhar que diz, pelo que eu
conheço dela, que definitivamente não foi um acidente.
Não percebo que estou balançando a cabeça até Mary perguntar:
— O que é? Por que você está com essa cara, Ali?
— Eu só… Não sei. — Penso em Jonny. Já vi o suficiente para
saber que rosto tem a verdadeira tragédia. Eu sei que não pode ser
falsificada. — Ele parecia muito arrasado.
— É claro que ele estava arrasado! — Mary bufa diante da minha
ignorância. — Devastado porque sabia que ia ser pego. — Ela serve
o chá e toma um gole, sentando-se à mesa com Carol. Eu as deixo
com os olhos colados nas respectivas telas, famintas por mais
detalhes que possam manchar ainda mais a reputação de Jonny.
Uma hora mais tarde, Mary e Carol já encerraram o expediente e
foram embora. Vou até o posto de enfermagem para pegar meu
casaco e minha bolsa, quando o armário que temos para os
pertences dos pacientes chama minha atenção.
A bolsa de couro que Charlotte trouxe para Cassie tem um cheiro
terroso de animal. É velha e vincada, como se tivesse passado por
muitas aventuras. Eu a coloco sobre a mesa e abro o zíper.
Charlotte dobrou tudo lindamente. Tiro um pijama listrado passado
com esmero, um pacote de calcinhas brancas de algodão, um sutiã
básico, um suéter de caxemira, meias de usar em casa e uma calça
esportiva de algodão.
Está tudo tão bem lavado que parece novinho em folha. Há um
romance de Kate Atkinson e um nécessaire com uma escova de
dentes elétrica e alguns produtos da Clarins já abertos. Charlotte fez
a mala da nora cuidadosamente. Eu me sinto decepcionada. Um
pijama não consegue contar a verdade sobre uma pessoa.
Enquanto recoloco os itens na bolsa, encontro um bolso interno
escondido na costura; há alguma coisa ali. Puxo o zíper, deslizo a
mão dentro do compartimento e tiro um pequeno envelope. Não há
nada escrito na frente, e o verso está bem fechado. Olho para a
porta enquanto deslizo o polegar sob a aba. Ninguém vai saber. O
papel se rasga facilmente. Dentro, há uma folha de caderno. A nota
é curta, escrita em caneta preta.
Ela abre os olhos. Deve ter adormecido com o abajur ainda ligado.
O diário de sua mãe no México — cheio de aventuras envolvendo
peiote e pegar carona em um caminhão de bodes até Yucatán —
está aberto em cima da cama. Através das cortinas entreabertas,
Cassie percebe que é muito cedo. O dia ainda está escuro e cheio
de novidade, e as pálpebras de Cassie parecem grandes demais,
inchadas sobre as órbitas. A dor não é o que ela esperava. Ela
pensou que ficaria furiosa, mas a traição acabou sendo mais sutil,
um tumor pegajoso de decepção que ela ainda carrega consigo para
todo lado.
Ela se levanta e se senta, e Maisie se mexe, levanta a cabecinha
cinzenta na direção de Cassie, os bigodes grossos raspando na
cesta onde o centro de adoção disse que ela dormiria a vida inteira.
Suas sobrancelhas balançam para Cassie. “Faça o que quiser,
mas não pense que vou levantar agora”, ela parece afirmar, e com
um pequeno suspiro se deita de lado.
Cassie pensou em contar a Jonny sobre Nicky e Jack na semana
anterior, quando ele a levou até o centro de adoção de cães para
buscar Maisie. Jonny tinha perguntado sobre a mudança de opinião
de Jack em relação a adotar um cachorro. Cassie pensou em falar a
verdade a Jonny: que Maisie é um símbolo da culpa de Jack, seu
ramo de oliveira, mas em vez disso respondeu encolhendo os
ombros. Não tinha parecido o momento certo de contar a ele,
quando Jonny tinha passado o último mês em Londres tentando
acalmar as coisas com Lorna pela última vez. Lorna estava de novo
com seus truques delirantes, aparecendo no antigo escritório de
Jonny, exigindo saber o que tinha acontecido entre ele e sua pobre
colega. Aparentemente a colega tinha pedido demissão como
resultado, o que Lorna encarou como uma prova de culpa. Jonny
tinha começado o processo de divórcio no dia seguinte, na
esperança de que isso talvez provocasse um choque em Lorna
capaz de fazê-la ir atrás de ajuda profissional.
Por mais horrível que fosse admitir, foi um alívio para Cassie
ouvir os problemas de outra pessoa, pausar momentaneamente na
memória o vídeo dos dois no sofá.
Sem aviso, a porta do quarto de hóspedes se abre e Cassie fica
ouvindo as tábuas no assoalho do corredor rangerem sob o peso de
Jack indo ao banheiro. Ele sempre acorda às seis da manhã,
mesmo aos domingos. Já faz duas semanas que ele está em casa,
dormindo no quarto de hóspedes. Ele disse que não poderia
justificar que a empresa pagasse um quarto de hotel por mais que
três dias. Há um breve silêncio enquanto ele faz xixi, então o som da
descarga e as tábuas do assoalho rangem de novo quando ele volta
para a cama.
Mesmo que ele não seja capaz de ouvi-la, Cassie prende a
respiração. Ela prometeu que finalmente iriam conversar hoje — que
ela iria ouvir o que Jack tem a dizer sem gritar com ele ou bater a
porta —, mas quer que a manhã se estabilize primeiro.
Maisie agita as pernas na cesta, já perdida em um sonho. Cassie
se levanta da cama, veste o jeans e um suéter cinza de caxemira
que ganhou de Charlotte, que havia dito que era pequeno demais
para ela. Pega um elástico e prende o cabelo em um coque
bagunçado. Ela decidiu deixá-lo crescer de novo, usá-lo comprido,
como era antes de conhecer Jack, e olha para a cachorrinha e se
pergunta se Maisie está sonhando que corre na direção de alguma
coisa ou que foge correndo.
Finjo estar dormindo quando sinto David sair da cama. Hoje vou
fazer o turno da noite, então não há urgência em deixar nossa cama
quentinha. David liga a água da banheira. Consigo sentir o cheiro de
meu óleo de banho chique, que eu sei que ele odeia, então o banho
deve ser para mim. Abro um pouquinho um olho e ele sorri e me
beija.
— Entre lá — diz. — Eu vou preparar o café.
A banheira está um pouco quente demais. Eu ainda sou
cautelosa o suficiente para prestar atenção em algumas velhas
histórias de parteiras, então acrescento um pouco de água fria antes
de entrar, sentindo a água me envolver, me segurando no calor
amniótico. Minha barriga se eleva um pouco acima da água; estou
quase de nove semanas agora. Estar ocupada tem suas vantagens.
Eu me pergunto se Cassie teve que fingir que tinha parado de
beber, e como ela explicava seu cansaço de início de gravidez.
Faço uma pequena onda e a vejo deslizar sobre minha barriga. A
gravidez (parece perigoso demais para pensar nela como “um
bebê”) está sempre na minha mente, mas de uma forma mais sutil
que antes, como um segredo que, guardado, causa mais satisfação
que compartilhado. Ouço David assobiando e tilintando canecas e
pratos na cozinha e acho que talvez agora, esta manhã, seja a hora
de contar. Eu poderia tranquilizá-lo e dizer que estou me sentindo
melhor do que nunca, que desta vez é diferente, e tentar fazê-lo
acreditar que vai ser diferente.
No entanto, quando visto meu roupão e me junto a ele na
cozinha, e o vejo fazer café, ele parece tão despreocupado —
sorrisos e risadas lhe vêm facilmente —, e eu sei que isso vai mudar
se eu contar. Ele vai ficar sombrio, o medo vai se assentar em torno
de nós como um pó grosso, um medo que nenhum dos dois pode
expressar, porque falar sobre ele em voz alta pode nos trazer azar.
Da última vez que aconteceu, quase não nos falamos durante um
mês. Eu nos imaginava como personagens de um desenho
animado, pessoas tristes com uma nuvem negra pairando sobre a
cabeça, as palavras “qual o sentido?” escritas dentro.
Então, em vez de dizer qualquer coisa, eu o beijo nos lábios. Um
programa de notícias na Rádio 4 está narrando as manchetes. No
final de um boletim sobre o mais recente escândalo político, eles
passam uma reportagem resumida que já ouvi inúmeras vezes. A
voz profunda e arredondada de Jack pedindo privacidade durante
esse período “tão difícil”.
Mostrei essa gravação para David pela primeira vez ontem à
noite. Ele disse que Jack parecia um personagem de uma
radionovela vespertina. Não contei a David que eu entendia o que
ele queria dizer; em vez disso, falei que era o estresse que deixava
a voz de Jack afetada, alongando as pausas em seu discurso. Não
sei por que o defendi. Talvez eu ainda queira estar errada,
desejando que o bebê de Cassie tenha um pai saudável, livre.
David muda de estação, e a voz de Jack é substituída pelas
notas claras de uma peça de piano. Ele me quer aqui, totalmente
aqui, com ele esta manhã. Tenho que ser justa; eu preciso tentar.
Ele arrumou a mesa com croissants, prosciutto, melão cortado em
pedacinhos, além de suco de laranja natural.
— Se já não estivéssemos casados, eu pensaria que você ia me
pedir em casamento — comento, puxando uma cadeira e pegando
um pedaço de melão com os dedos.
— Merda. — David bate a mão na testa. — Nós já somos
casados, né?
Faço uma cara de “você é um idiota” e pego um croissant.
— Desculpe — digo, servindo suco de laranja para nós dois. —
Eu sei que o trabalho tomou conta de tudo recentemente.
David se senta à minha frente e toma um gole de suco.
— Está tudo bem, Ali. Eu entendo, é importante. — Mastigando
um pedaço de presunto, ele pergunta: — Então, quais são as
novidades? A imprensa ainda está fuçando por lá?
O croissant amanteigado derrete na minha boca.
— Está ficando um pouco mais tranquilo agora. — Olho para o
rádio. — Eles estão reprisando. — Se estivessem exibindo a
entrevista completa, agora Jack contaria que Cassie e ele gostavam
de viver em uma pequena comunidade tão unida quanto essa e
como ele é grato por todo o apoio.
— E como está a Cassie?
— Ela… está na mesma, na verdade.
Agora Jack estaria falando sobre como eles queriam ser pais,
como Cassie queria ser mãe.
David franze a testa para mim.
— Alice, o que foi? No que você está pensando? — Ele sabe, é
claro que sabe, que existe alguma coisa que estou escondendo.
Eu me forço a desligar o som do rádio na minha cabeça.
— São só umas coisas em que eu fico pensando.
— Tipo o quê?
Posso ainda não ter conseguido contar a ele sobre nosso bebê,
eu acho, mas posso falar sobre Cassie, pelo menos.
— Quando a Cassie chegou, a Charlotte, a sogra dela, trouxe
uma mochila com um pijama e outras coisas para ela.
David anui para me encorajar a continuar.
— Eu achei uma carta, da Cassie para o Jack, dizendo que ela
queria distância, queria dar um tempo.
— Entendi.
— Ela tirou o anel de noivado e a aliança. Acho que ela estava
fugindo, David.
— Sério, Alice?
Tudo parece tão paranoico em voz alta. Não tem o sentido
sensato que tinha na minha cabeça.
— Achei que ela estivesse procurando a cachorrinha. — Ele faz
uma pausa. — Não esqueça que o Bob fica maluco quando ouve
fogos de artifício. Um cãozinho adotado em uma casa nova ficaria
muito assustado, e lembra quando você achou que tinha perdido o
anel de noivado? — Ele se levanta e serve mais café em sua xícara.
Eu tinha esquecido disso. Deixei meu anel no bolso do jeans
quando fui nadar um dia e passei a semana seguinte inteira virando
a casa de cabeça para baixo tentando encontrar. Pego um segundo
croissant.
— E, sabe, todos os casais têm seus momentos difíceis, não
têm? O fato de que ela não entregou a carta ao Jack é significativo.
Talvez ela tenha escrito para extravasar e nem pretendia entregar a
ele.
Minha convicção evapora como um truque de mágica. Decido
não contar a David sobre os olhos de Jonny, o fato de ele parecer
um homem que estava perdendo alguém que amava, ou sobre as
fofocas no hospital a respeito da paternidade do bebê.
— Desculpe. — Balanço a cabeça. — Não sei por que estou…
— Você só é protetora, Ali. Claro que é. Faz total sentido: os
riscos são ainda maiores para essa paciente do que normalmente
são para os outros. Eu entendo. — Ele me passa o café e eu dou
um gole. Não é descafeinado, então o coloco de novo sobre a mesa.
Ele se senta na minha frente e cruza as pernas. David está se
movendo mais depressa que o normal. Ele está nervoso.
Estreito os olhos para ele.
— Por que você está tão nervoso?
Ele descruza as pernas e esfrega as mãos nas bochechas. Está
sorrindo. Algo está acontecendo e ele está animado com alguma
coisa. Talvez tenha pegado o cliente dos sonhos? Talvez finalmente
tenhamos o suficiente no nosso fundo de férias para a viagem longa
que estamos sempre prometendo a nós mesmos?
— Eu estive pensando, Ali… Eu realmente gostaria de preencher
os formulários na agência de adoção.
Nossos olhos se encontram e eu desvio imediatamente. Cada
célula do meu corpo parece dar um pequeno salto. David continua
falando.
— Eu sei que você não conseguia pensar nisso antes, mas já faz
mais de um ano. Eles disseram que o processo vai levar um bom
tempo, lembra? Então eu pensei em preencher o formulário inicial,
pelo menos, entregar e ver o que acontece.
Imagino uma fileira de crianças diante de nós, David e eu
apontando para uma delas e pegando um menino ou uma menina
pela mão, para ser escaneado como em uma daquelas máquinas de
checkout automático. Nós traríamos a criança para cá e tentaríamos
fazer dela o nosso filho. E se não conseguirmos criar um vínculo
entre nós? E se a criança não gostar de mim? Tento sentir a vida
dentro de mim, para me lembrar de que nada disso vai acontecer;
nada disso vai precisar acontecer.
— Alice, é só a papelada inicial. Eu prometo, não vamos adotar
uma criança a menos que nós dois estejamos absolutamente certos
de que é o que queremos. — Ele curva a palma da mão no dorso da
minha. — Mas nós sempre concordamos que poderia ser uma
opção.
Faço que sim, sorrio para ele e tento parecer feliz, até mesmo
empolgada.
— Não, é uma boa ideia. Temos que começar a ver a papelada,
dar o pontapé inicial…
David sorri para mim, e eu dobro o último pedaço do croissant na
boca. Ele me beija e diz “Te amo” ao pegar as chaves e sair para
sua reunião matinal.
Faço algumas atividades burocráticas, como um sanduíche e à
tarde tento tirar um cochilo antes do meu turno da noite, mas não
consigo relaxar. Minha mente fica oscilando, como um interruptor
defeituoso, voltando para a entrevista de Jack no rádio. Ele falou
sobre a comunidade unida de Buscombe. Nunca estive lá, mas
Buscombe fica a apenas vinte e cinco quilômetros daqui. Eu soube
que eles têm boas trilhas e estou devendo uma caminhada longa
para o Bob. Olho para meu relógio. Eu sei que deveria tentar dormir
novamente, se é que tenho alguma esperança de aguentar a noite
toda. Mas estou ligada demais para descansar. Calculo que tenho
tempo suficiente para ir de carro até lá, voltar para casa e chegar ao
Kate’s no horário do meu turno. Digo a mim mesma que vou dar
uma passada rápida lá, ver o lugar que Cassie chamava de casa e
então encontrar um bosque ou um campo para Bob poder dar uma
boa corrida. Ele se levanta quando pego sua guia do gancho na
porta dos fundos.
A maior parte da jornada é uma via de mão dupla anônima, com
lojas de fast-food e cinemas, mas chega um momento em que esses
estabelecimentos começam a rarear. Seguindo as placas, viro na
estrada principal e o mundo parece se abrir como um pulmão
grande e poderoso respirando fundo. A terra parece ter mais
oxigênio ali. Os primeiros tufos de brotos cor de esmeralda nos
campos captam a luz como escamas de peixe, e narcisos e
campânulas brancas estremecem nos montes gramados. Baixo o
vidro, e a brisa em si cheira a coisas verdes, frescas e novas.
O centro do vilarejo está posicionado ao redor de um parque
aberto gramado chamado Buscombe Green. Grandes casas em
estilo georgiano rodeiam o parque como anciãs ao redor de uma
mesa de reunião, botões de glicínia envolvendo portas como
bigodes de cera. Consigo imaginar Charlotte saindo de uma dessas
portas. Sigo por todo o caminho até um pequeno retângulo,
passando por cinco ou seis estradinhas sombreadas que poderiam
levar ao chalé. Meu celular está sem sinal, então não consigo
carregar o mapa; não tenho ideia de aonde ir a partir daqui.
Sem querer admitir para mim mesma que estou perdida, viro em
uma das estradinhas a partir do parque e imediatamente me deparo
com um velho quatro por quatro. Estou olhando por cima do ombro,
imaginando como poderíamos passar um pelo outro, quando o carro
pisca os faróis e eu vejo que ele já está em marcha à ré, habilmente
recuando até um ponto que libere a passagem para mim. Sigo
lentamente e baixo o vidro. É uma mulher, mais ou menos da minha
idade, sozinha no carro; há cadeirinhas infantis vazias no banco de
trás. Ela já está com o vidro abaixado, por isso é fácil me inclinar e
perguntar onde fica a Steeple Lane. Tenho que voltar ao parque, ela
diz, e virar logo ao lado do pub. Ela pergunta aonde exatamente
estou indo, mas não quero que ela saiba, então digo para não se
preocupar, que lá eu me acho, e agradeço pela ajuda. Ao fazer a
manobra desajeitada para retornar, eu me pergunto se essa mulher
conhecia Cassie, se eram amigas.
Exceto pelo riachinho que segue ativamente, a Steeple Lane se
parece muito com todas as outras ruas por aqui. A rua em si é
estreita e escura, as sebes cheias com seus galhos. É como viajar
por uma artéria. A estrada se abre depois de pouco mais de um
quilômetro, o suficiente para que dois carros passem, lentamente,
lado a lado.
Uma pequena placa na sebe diz: “Cuidado, vala profunda”. À
minha esquerda há uma casa de fazenda antiga, vigas pretas se
entrecruzando na fachada, contrastando com paredes brancas, um
par de árvores desarrumadas no jardim. Na placa está escrito
“Fazenda Steeple”. Eu me lembro de Charlotte dizer que Jonny
alugava um dos chalés da fazenda. Eu sigo em frente. Não quero
prestar atenção demais; ele poderia estar lá agora. Continuo por
quase dois quilômetros, até que cruzo por cima do riachinho e a
estrada começa a se estreitar novamente, e então vejo uma placa à
direita: Chalé Steeple. Cheguei. Esta era a casa de Jack e Cassie.
De onde estou, não consigo ver a construção do outro lado da
pista de entrada. Tenho que estacionar em algum lugar por aqui.
Paro bem perto da estrada e digo a mim mesma que só vou dar
uma olhadinha rápida. Quero ver por um momento, só isso. Baixo o
vidro para Bob e ignoro seu latido ofendido quando tranco a porta
atrás de mim.
A pista de entrada do chalé é cercada por árvores, revestida de
cascalho e faz uma curva acentuada para a esquerda antes de se
abrir em um pequeno círculo na frente de um chalé de pedras
claras. Liguei para o hospital no caminho. Jack, eu sei, está com
Cassie, mas ainda não quero estar em campo aberto, por isso me
inclino contra uma das árvores que parecem se amontoar ao redor
da casa, como se tentassem mantê-la longe do mundo.
O chalé é mais velho do que eu imaginava e perfeitamente
simétrico. Duas grandes janelas retangulares dominam o piso
térreo, de cada lado da varanda de pedra. Mais duas janelas estão
diretamente acima, onde eu imagino que sejam os quartos. Na parte
superior da casa, uma janela redonda espia do ático, como um
ciclope. Narcisos delicados pontuam lindamente os canteiros da
frente. Imagino Cassie de joelhos plantando os bulbos, as mãos na
terra. Não sei por que, mas a imagem me faz sentir solitária por ela.
Nuvens furiosas se acumulam no alto, sugando a luz. Os pardais
mergulham e voam e um morcego isolado dá um rasante em busca
de insetos invisíveis. Vou na direção da casa. O musgo abafa meus
passos até eu chegar ao caminho de cascalho. Imediatamente uma
luz de segurança se acende e sou banhada em claridade. Ofuscada,
esqueço que não estou fazendo nada errado. De repente sou uma
intrusa. A casa não me quer aqui. Ela me viu e seu calor esfriou.
Dou as costas para ela e volto pelo caminho, meus pés fazendo
barulho demais no cascalho. A luz de segurança brilha forte às
minhas costas, como a presença da casa atrás de mim, me
expulsando. As árvores também mudaram, quase pretas ao cair da
noite. Seus galhos parecem doloridos, como se fossem mãos
artríticas. As folhas, perturbadas pelo vento, espalham umas para as
outras a fofoca da minha visita. Um coelho salta pelo caminho
alguns metros à minha frente, saindo de seu esconderijo. Parece
assustado, e acho que eu também pareço. Quero correr, mas fico
preocupada que a corrida exponha meu medo, e isso o tornaria pior.
Faço a curva acentuada e pego o caminho de volta para meu carro.
Só depois que a porta do carro se fecha eu solto a respiração.
Bob veio até o banco do passageiro e está abanando a cauda. Sinto
meu coração dando bicadas dentro do peito; agora estou a salvo.
Puxo Bob mais para perto de mim, beijo sua cabeça e dou uma
risadinha para mim mesma. Sempre fui boa em me desesperar.
Quando era menina, imaginava tubarões em uma piscina ou zumbis
em um guarda-roupa. Graças a Deus David e eu não nos mudamos
para cá; em pouco tempo eu estaria ouvindo o vento chamar meu
nome. Eu me pergunto se Cassie já pensou ter ouvido o nome dela
ser sussurrado pelas bétulas prateadas, se já sentiu a solidão
envolvê-la como um cobertor frio. Olho pelo retrovisor. O chalé ainda
está iluminado, como holofotes em uma prisão. Quanto tempo as
luzes de segurança ficam ligadas? Certamente devem apagar logo.
Bob choraminga para mim e pressiona as patas no banco da
frente, lembrando-me de que lhe prometi uma caminhada. Coloco as
chaves na ignição e dirijo devagar pela pista, para longe do chalé.
Estaciono depois de algumas centenas de metros. Começou a
chover um pouco. Lembro que a previsão do tempo disse que só
pioraria mais perto do anoitecer. Vou deixar Bob sair agora, só para
dar uma corridinha, e então me mandar para casa e depois para
meu turno no Kate’s. Bob passa por cima de mim e salta para fora
do carro assim que abro a porta. Penso em Maisie correndo e
chamo Bob para mantê-lo por perto, mas ele me ignora. Eu o sigo e
chamo seu nome de novo, apertando o passo quando viro em uma
curva.
Bob viu alguém. Ele está trotando em direção a um homem com
uma jaqueta escura de aspecto ceroso, em pé sozinho na beira da
pista, ao lado de um montinho do que parece ser lixo. O homem se
vira na direção de Bob quando este para, sentado nas patas
traseiras em frente ao homem, o peito estufado como um centurião,
a cauda balançando de um lado para o outro no asfalto. Ele está se
esticando na direção do homem, farejando, guiado pelo nariz.
— Ah, Deus! Desculpe! — exclamo, começando uma corridinha
para tirar Bob dali. — Bob!
Mas o homem está sorrindo para ele. Ele tem cabelo branco um
pouco comprido saindo de debaixo do chapéu, e a enfermeira em
mim avista um quadril com problema ao perceber que ele se apoia
melhor do lado esquerdo. Já o vi antes. Era o homem que chamou
minha atenção no estacionamento. Então ele vira o rosto para o
meu lado e eu paro, com um nó no estômago, pois o homem é
Marcus Garrett e está sorrindo para mim. Ele não tem ideia de quem
eu seja, e por que teria? Ele acaricia a cabeça sedosa de Bob.
— Acho que ele está sentindo o cheiro do folhado que eu comprei
no vilarejo. — Ele ri, apontando para um saco de papel pardo saindo
de um de seus bolsos grandes.
Olho para ele, e Marcus olha para mim de novo, sobrancelha
levantada, esperando minha resposta. Chego mais perto, pego a
coleira de Bob com uma das mãos e tento recuperar a voz, livrá-la
da surpresa.
— Ah, ele adora folhados. Meu marido e eu temos uma piada de
que o Bob parece mais um porquinho que um cachorro, não é,
Bobby? — Bob não tira os olhos da mão de Marcus, que vai até o
saquinho de papel dentro do seu bolso e parte o que parece ser
metade do folhado.
— Tudo bem se eu der um pedaço para ele? — Marcus pergunta.
Concordo e solto a coleira de Bob. Ele avança avidamente, como
se nunca tivesse comido na vida, em direção ao pedação de folhado
bege e brilhante.
Marcus continua sorrindo ao se abaixar para acariciar Bob no
ombro.
— Bom menino.
Vejo que o que eu achava que era lixo é, na verdade, um
pequeno santuário na beira da estrada, um trechinho comum da
estrada, com o riacho gorgolejando e sibilando como algo ferido. Foi
aqui que ela caiu. As flores não são mais flores; a maioria se tornou
gravetos amarronzados e encharcados. Imagino que ninguém tenha
coragem de jogá-los no lixo. Marcus segue meu olhar, e percebo
que não estou de uniforme. Para Marcus, sou apenas uma mulher
passeando com seu cachorro. Sou livre para perguntar coisas que
normalmente não poderia.
— Foi por isso que você me encontrou aqui, receio — explica ele,
de um jeito carregado, como se as próprias palavras tivessem peso,
acenando para a pilha de flores moribundas.
Eu me preparo. Consigo fazer isso. Lembro que estou mentindo
por causa de Cassie, não para meu próprio benefício.
— Ah, houve um acidente? Alguém que você conhecia?
Marcus balança a cabeça, como se quisesse mudar os
pensamentos que se instalaram ali. Quando ele fala, reconheço o
mesmo alívio que vi em centenas de parentes chocados e de olhos
arregalados que conheci no Kate’s, ansiando por conforto, até
mesmo de uma enfermeira desconhecida. Marcus está tão
desesperado que é capaz de falar com uma estranha passeando
com seu cachorro.
— Uma moça, uma moça jovem e bonita, minha enteada, então,
sim, eu a conhecia — ele diz. — Eu a conhecia — repete, como se
precisasse confirmar o fato para si mesmo.
— Ela vai ficar bem?
Ele encolhe os ombros.
— Eu não sei, realmente não sei. — Sua voz racha como uma
casca.
Deixo o silêncio fazer minha próxima pergunta.
— O marido não me deixa vê-la. — Ele se vira um pouco na
minha direção e me encara. — Eu nunca gostei dele. Ele tem um
temperamento ruim, muito ruim mesmo. Eles nunca deveriam ter se
casado. Ele fingia que a amava, mas nunca a conheceu, não como
eu.
A chuva faz um som suave de chocalho no meu casaco. Penso
em Jack, em como ele estava certo de que era Marcus quem havia
contado à imprensa sobre Cassie. Ouvindo Marcus falar tão
livremente, como se estivesse dizendo seus pensamentos
embaralhados em voz alta e sem filtro para mim, uma estranha,
agora eu entendo por que Jack suspeitava dele.
Marcus solta a respiração devagar.
— Então em vez disso eu venho aqui para pensar nela, para me
sentir perto dela. Veja, eu prometi à minha April que cuidaria dela.
Ele está olhando para o riacho, como se tivesse perdido alguma
coisa na água. Sigo seu olhar para o lugar onde Cassie caiu.
Grossas gotas de chuva caem no riacho, fazendo círculos perfeitos
dançarem na superfície vítrea da água escura.
— Eu costumava fazer isso antes, sabe… antes do acidente.
Ficar de olho nela de vez em quando, só para ter certeza de que ela
estava bem. — Marcus olha para mim rapidamente.
Eu pergunto:
— E você acha que ela estava? Quer dizer, ela estava bem antes
do acidente?
Marcus baixa os olhos para a estrada e sua cabeça tomba para a
frente, como se para se unir às flores, e eu percebo que ele está
desviando os olhos de mim porque está chorando.
— Ela não era feliz. Eu me lembro agora. Eu sabia que ela não
era feliz. Eu queria que ela soubesse que podia contar comigo, que
eu iria ajudá-la quando ela percebesse seu erro.
— Que erro?
Marcus ergue a cabeça para mim, mas não enxuga as lágrimas
das bochechas.
— Se casar com aquele homem.
Fico tensa. Não sei por que Marcus não consegue dizer o nome
de Jack.
— Marcus, quem você acha que a atingiu?
Percebo meu erro assim que digo o nome dele, mas Marcus está
muito emotivo, muito confuso para perceber. Em vez disso, ele se
vira para mim, seus olhos escurecendo.
Os pingos estão ainda mais pesados agora, golpeando do céu
como pequenos punhos conforme a chuva se transforma em gelo.
— Ele sempre parecia zangado com ela. Acho que ele não queria
uma mulher, ele queria liberdade. Foi por isso que ele… — Marcus
se vira para mim, a boca aberta, como se estivesse chocado ao me
ver, ouvindo-o ali. — Você disse meu nome agora há pouco. — Seu
rosto fica encoberto. — Quem é você?
— Não, não, desculpe, eu… Você ouviu errado… — Merda,
merda, merda. Mas eu o perdi.
Marcus abana a cabeça, começa a se afastar e olha para o céu,
como se pedindo orientação de um poder superior, como se
achasse que April está lá nas nuvens. Ele ergue os ombros até as
orelhas, tentando se proteger do granizo, se proteger de mim.
— Não, eu juro, eu… — Marcus se vira bruscamente, porém, e o
vejo mancar o mais rápido que consegue pela estradinha antes de
me voltar novamente para a pilha de flores, minha respiração
provocando nuvens esparsas. Alice, sua idiota. Apesar do granizo
que cai do céu, eu me sinto pegajosa, de repente com calor demais
neste casaco, como se estivesse pegando fogo depois de conhecer
Marcus. Algo não está certo com Marcus, algo mais que tristeza e
idade.
Bob gane perto dos meus pés. Devíamos voltar para o carro, mas
eu preciso de um momento. Olho para as flores e me inclino para
pegar uma foto apoiada em um conjunto de girassóis que estão
ficando marrons.
É de Cassie, por volta da época do anúncio da Juice-C, seu rosto
cheio de juventude, e a ruiva que vi no Facebook dela, Nicky Breton.
Nicky se virou para olhar para Cassie. Ela está sorrindo para a
amiga, admirada, como se estivesse perto de algo celestial. Cassie
parece alheia à luz que irradia. Está totalmente virada para a
câmera, sorrindo como se nunca pudesse haver nada errado com o
mundo.
O ganido de Bob se torna um latido. Ele começa a girar, alarmado
ao redor dos meus pés, perturbado com a chuva de granizo,
querendo desesperadamente se sentir seguro novamente. Coloco a
foto de volta sobre as flores, tentando protegê-la das condições
climáticas, mas não adianta: a foto é atingida e sacudida por
bolinhas minúsculas de gelo. Nunca fui religiosa, mas parada ali, no
lugar onde Cassie foi atropelada, minha esperança se transforma
fluidamente em uma oração, e, acima da martelada da tempestade
de granizo e da onda do meu próprio medo, eu sussurro
rapidamente:
— Por favor, por favor. — Não sei se estou implorando por Cassie
ou por mim.
Sinto o medo se aproximar de mim novamente. Como olhos, ele
vai crescendo atrás de mim feito fumaça, e me pergunto se Marcus
partiu ou ainda está me observando, como costumava observar
Cassie. Sinto um arrepio. Olho mais uma vez para as flores de
Cassie, antes de chamar Bob e começar a andar de volta para o
carro. A noite que vai se aproximando parece mãos escuras que me
empurram. Eu quero correr, o asfalto iridescente e escorregadio, um
caminho para a segurança diante de mim. Um carro rosna, inquieto,
atrás de mim. Não acendeu as lanternas. Será que o motorista está
nos vendo? Pego a coleira de Bob e nos pressiono com força contra
a encosta do outro lado da pista em relação ao riacho. Marcus só
acende as luzes quando passa por nós. Olho para ele, mas ele
mantém os olhos fixos à frente, como se estivesse à procura de
outra pessoa.
Feliz Ano-Novo, Cas. Estou sozinho aqui em casa, tranquilo, mas só queria
que você soubesse que estou pensando em você. Bjs, Marcus
Todo o corpo de Maisie treme com a adrenalina. Ela salta com cada
estrondo e chiado distantes dos fogos de artifício, como se estivesse
aterrorizada com o Ano-Novo, com medo das mudanças que ele
possa trazer.
Cassie quer fazer as malas para ir para a ilha de Wight antes de
Jack chegar em casa. Ela não sabe quanto tempo terá, então só
para um instante breve para acalmar a cachorrinha. Ela olha para o
celular; já passa de uma da manhã. Ele veio andando sem pressa,
tranquilamente, no caminho para casa, respirando o rico ar noturno.
A escuridão parecia nutri-la. Ela sentiu como se pudesse andar para
sempre, enfim em sintonia com a terra debaixo de seus pés. Ela
puxa a velha bolsa de couro da mãe para fora do armário do quarto
de hóspedes. O cheiro animal familiar sopra ao encontro de Cassie.
Só vai levar o necessário para passar uma semana, mais ou menos.
Abre as gavetas, pega alguns jeans, roupas íntimas, suéteres e
camisetas. Coloca o álbum de fotos e os diários da mãe no fundo da
bolsa; talvez ela e Marcus possam olhá-los juntos. Sua bolsinha
com produtos de higiene pode esperar até a manhã seguinte, para
evitar que Jack entre no banheiro e perceba que as coisas dela não
estão lá. Cassie não quer arriscar levantar suspeitas ainda esta
noite. Isso só complicaria as coisas, embotaria sua decisão com
gritos e lágrimas, quando a ação prática é muito mais clara, muito
mais fácil. Apesar de tudo, quer minimizar a dor que vai causar a
Jack. Cassie não acha que ele seja um homem mau, não de
verdade. Ele apenas foi induzido ao erro, assim como ela foi
induzida ao erro.
Cassie se concentra.
E o galpão? Ela pensa em suas tintas, pigmentadas e retorcidas
dentro dos tubos, os pincéis rígidos por falta de cuidado. Ela vai se
dar alguns de presente dali a um dia ou dois. Vai sair com Maisie de
manhã cedo, assim que o dia estiver claro. Se tudo correr conforme
o planejado, nem precisará ver Jack. Poderia estar na casa de
Marcus na hora do almoço.
A bolsa está cheia apenas pela metade. Poderia levar muito mais
coisas, mas gosta da ideia de viajar com pouca bagagem, de levar
apenas o essencial. Cassie enfia a bolsa embaixo da cama. Ótimo.
Qual é o próximo passo?
Ela remexe no porta-joias até encontrar o antigo anel turquesa de
sua mãe. As alianças de noivado e de casamento parecem presas
por sucção em seu dedo, como se não quisessem deixá-la. Ela as
gira no dedo para tirá-las e não hesita ao deixá-las cair dentro do
porta-joias. Que Jack as encontre e perceba como isso é sério. O
anel turquesa de sua mãe é mais pesado em seu dedo, o metal é
mais frio, mais substancial e seguro de si que os anéis finos de
Jack. Parece certo.
Como Cassie vai contar a Jack que ficará fora por algum tempo?
Dependendo do tamanho da ressaca, ele provavelmente só vai
acordar depois das dez da manhã e, após verificar o galpão e
encontrá-lo vazio, ligará para Cassie e provavelmente para Jonny. O
amigo já está envolvido o suficiente. Ela não pode esperar que ele
seja o responsável por contar a seu marido que ela foi embora; ele
teria que suportar o peso da raiva de Jack, e isso não seria justo.
Uma mensagem de texto seria muito desdenhosa, casual demais.
Jack merece mais do que isso. Vai ter que ser uma carta.
Ela tira o vestido sintético, que fica pinicando, e veste um pijama.
Em seguida, persuade Maisie a sair de debaixo da cama, onde ela
está tremendo, intimidada e vulnerável, mesmo que os estouros dos
fogos finalmente tenham silenciado. O andar de baixo está escuro;
os móveis e seu conteúdo parecem espiá-la como guardas. Ela
acende uma luz, liga a chaleira elétrica e arranca uma página do
caderno que eles usavam para fazer anotações para a faxineira,
lembretes rabiscados para comprar sabão líquido para lavar roupa e
sacos de lixo. Encontra uma caneta preta e começa a escrever.
Cassie não planeja, apenas deixa as palavras virem naturalmente. E
elas seguem seu humor satisfatoriamente prático:
Ela não se lembra de ter andado até ali, tão longe nas pedras. As
águas do mar espirram, guturais e grossas, quinze metros abaixo,
conforme as ondas vêm e vão. Parando para pensar, ela não
consegue nem se lembrar de como chegou ali, mas depois olha
para cima e como chegou ali não importa mais, porque o pôr do sol
é deslumbrante, o céu cheio de tons rosados e laranja, como se
estivesse corado de constrangimento por sua própria beleza.
Seus pés se acostumaram com a rocha vulcânica afiada e
esburacada, e ela continua subindo até a crista, onde pode ver sua
mãe esperando por ela. Sua mãe está vestindo um maiô azul-vivo,
de frente para o mar, com as mãos nos quadris, o cabelo grosso e
as bochechas cheias, coradas de vida. Ela está bem de novo. Um
caranguejo corre assustado em seu caminho, fazendo Cassie dar
um gritinho. O barulho faz sua mãe se virar, e Cassie vê que o rosto
dela está brilhando, rindo de alegria, como ela costumava rir.
— Venha, Cas! — ela chama a filha. — Olha, é o pôr do sol mais
incrível que eu já vi!
Cassie está perto dela agora. Em apenas alguns segundos vai
alcançá-la e tocá-la, ela pensa, mas então, sem um único som, sua
mãe pula da beira do penhasco e, um momento depois, há um
borrifo de respingos quando o mar a engole inteira. Cassie está na
borda agora, onde sua mãe estava até aquele momento, e grita:
— Mãe? — Porém há apenas um vestido de noiva de espuma
branca no local onde sua mãe pulou. O pânico agarra Cassie antes
que a cabeça de sua mãe saia bem no meio, uma noiva molhada.
Ela grita e ri e se mexe na água, ágil como um golfinho.
— A água está perfeita — ela grita para a filha. — Pule! É ainda
mais incrível daqui! — Cassie sabe que sua mãe a vê hesitar, e ela
chama de novo: — Venha, Cas! É totalmente seguro.
Seus pés se arrastam timidamente até a beira da rocha. Ela olha
para cima de novo. O mar calmo se estende de maneira estranha,
parecendo mercúrio, até o horizonte, onde encontra o céu em uma
chama de cor. Ela quase consegue ver a curvatura do mundo.
Imagina-o rolando e rolando, uma nuvem ocasional soprando na
vista como pedaços esquecidos de algodão. A água é escura como
uma mancha de óleo, mas as ondas parecem mais calmas de
repente. Ela a ouve engolir as pedras lá embaixo, como algo grosso
e delicioso misturado em uma tigela enorme. Sua mãe está de
costas agora, nadando como uma lontra feliz. Está cantarolando, de
olhos fechados. Cassie quer segurar a mão dela, nadar ao seu lado,
mas está com medo da queda e, olhando ao redor, não consegue
ver nenhuma maneira de sair da água quando estiver lá dentro.
Típico de sua mãe não pensar no lado prático.
O homem a assusta tanto que ela quase salta da borda com a
surpresa.
— Olá, Cassie — ele diz. Ele tem um forte sotaque de West
Country.
Ela se vira para olhar. Ele é mais velho que ela — mais próximo
da idade de sua mãe —, mas é familiar de alguma forma. Ela revira
a cabeça em busca de um nome, mas não encontra nada. A água
escorre de sua pele morena como chuva em uma janela e há
pequenas gotas em seu cabelo cor de mogno e nos cílios. Cassie
olha para sua própria pele e percebe que está coberta de suor seco.
Comparada a ele, ela se sente suja, pegajosa. Ela está sorrindo
para a vista.
— Que coisa incrível, hein? — diz suavemente. Ela se sente
segura ao lado dele. O homem volta o sorriso para a mãe de
Cassie, que agora está girando os braços atrás de si em um nado
de costas que vai espirrando água. O homem se vira para Cassie e
pergunta: — Você vai pular?
Cassie tenta sorrir antes de encolher os ombros.
— Venha, Cas, é muito melhor daqui de baixo! — sua mãe
exclama e mergulha sob a superfície, seu corpo brilhando na luz
fraca enquanto nada, uma sereia na água límpida.
— A água está perfeita hoje, muito refrescante. Vamos lá, você
vai adorar — o homem diz, e, sem pedir permissão, sua mão
molhada se estende em direção à mão seca de Cassie, e não
parece estranho, porque ele segura a mão dela tão delicadamente.
Ela queria poder se lembrar de onde o conhece… entender por que
confia nele. Cassie olha para baixo novamente, para a mãe, que
está imóvel na água agora, sorrindo para eles.
— Venham, vocês dois! — O som de sua voz faz Cassie arrastar
os pés mais para perto da borda. O homem olha para ela e começa
a contar.
— Um, dois e já! — Eles não se soltam. Suas mãos entrelaçadas
golpeiam o céu quando saltam para o ar quente e rosado, e,
naquele breve momento que precede o voo, Cassie sabe que eles
estavam certos em fazê-la pular. Ela quer estar limpa. Ela quer se
sentir nova.
E eles caem.
EPÍLOGO
Bob lambe a minha mão quando coloco a última mala no carro. Ele
ficou sentado no porta-malas, com as sobrancelhas levantadas em
preocupação, cercado de caixas, durante a última hora, aterrorizado
que pudéssemos deixá-lo para trás, com a casa. Ele ainda não nos
perdoou por nossas férias de duas semanas na Itália. É um dia
tórrido de agosto, as folhas se curvam no calor e o asfalto é como
melaço derretido. É um dia para ficar deitado na sombra com um
livro e uma cerveja, não para mudar de casa, mas os homens da
mudança já saíram e tudo que temos a fazer é descer até a nossa
pequena casa à beira-mar. David prometeu que podemos ir nadar
logo que chegarmos. Eu quero começar nossa nova vida com a
sensação de liberdade, porque somos livres. Com a indenização de
David por ter sido demitido e a venda da casa, descobrimos que
seremos capazes de passar bem pelo próximo ano. O plano é David
finalmente montar seu escritório de arquitetura no pequeno estábulo
reformado ao lado da nossa casa, e eu vou trabalhar como
enfermeira meio período no centro comunitário enquanto começo
meu curso de psicoterapia em Exeter. Dessa vez mapeamos nosso
futuro dentro do carro alugado e empoeirado, dirigindo pelas colinas
preguiçosas e os vinhedos da Toscana e da Úmbria. A experiência
nos ensinou que, mesmo que o plano inteiro não se realize
perfeitamente, vamos encontrar nosso caminho. Nós vamos ficar
bem.
Partimos para a Itália logo após o pequeno funeral de Frank.
David segurou minha mão enquanto o caixão passava por nós, a
foto de Frank e Lucy durante a viagem de pescaria no topo. Não
consegui falar com Lucy; os parentes grudaram nela o dia todo,
como se não quisessem perder um único momento de seu luto. Só
soltei a mão de David para dar adeus a ela quando saímos. Ela
acenou de volta, um aceno pequeno e confuso, como se tivesse
esquecido quem eu era, como se não me reconhecesse fora do
Kate’s. O dia em que Frank morreu está sempre comigo. Carrego
minha promessa quebrada comigo como um pedaço de vidro preso
firmemente na cintura. Não sei se vou conseguir tirá-lo. Eu penso
nele todos os dias. Foi ele quem nos levou até Charlotte. Sem
Frank, Charlotte poderia ter conseguido esconder a verdade. De
certo modo, ele salvou todos nós.
Freya nasceu, como se fosse uma homenagem à avó materna,
no dia 29 de abril, pouco antes de completar vinte e nove semanas.
Elizabeth Longe esperou o máximo que pôde para fazer a
cesariana. Cassie estava piorando fazia algum tempo; a pulsação
dela e a de Freya andavam consistentemente erráticas desde a
morte de Frank. Jack me convidou para conhecer Freya quando ela
tinha apenas dois dias. Estava na incubadora, absurdamente grande
para ela. Seu corpo minúsculo coberto por uma mantinha, os olhos
amplos, a vida como uma surpresa completamente inesperada.
Enquanto estávamos lado a lado, diante da incubadora, notei um
novo aspecto pacífico em Jack, como se ele não precisasse de mais
nada desde que pudesse ficar ali, ao lado dela, para sempre.
Brooks não teve que esperar muito tempo por mim na delegacia.
O hospital telefonou para falar sobre Frank. Disseram a ela que era
relacionado com a ala 9B e ela soube que tinha algo a ver com
Cassie, já que eu havia faltado ao nosso encontro. Foi Brooks quem
levou Charlotte. Ela não tentou resistir, seus braços estavam moles
quando a policial fechou as algemas em torno de seus pulsos.
Charlotte manteve o olhar fixo em Jack, implorando que ele olhasse
para ela, mas ele não olhou nem uma vez.
Charlotte se declarou culpada de todas as acusações. David me
disse que a data de sua condenação continua sendo adiada devido
à sua saúde mental precária, alguma forma de estresse pós-
traumático reprimido. A imprensa não acreditou na própria sorte
quando descobriu a história toda. “Charlotte Jensen” se tornou
sinônimo de “mal” nas revistas baratas desde então.
Ainda não descobri o que penso sobre isso e não sei o que
aconteceu com Nicky. Ela só cruza minha mente de vez em quando,
como uma lembrança ruim. Quando o faz, eu me pergunto se ela
encontrou alguma paz, uma maneira de se perdoar. Brooks disse
que Jonny voltou para Londres. Ela não informou exatamente para
onde, e eu não perguntei. Acho que vai levar algum tempo para ele
reconstruir a vida, mas acredito que ele vai chegar lá. Espero que
seja feliz.
E agora aqui estamos. Levanto os óculos de sol sobre a cabeça e
sento por um momento no banco de trás do carro, brincando com a
orelha de veludo de Bob, e olho para a casa que não é mais nossa.
Eu me lembro do dia em que abrimos as caixas da nossa vida aqui,
quase oito anos atrás. Eu estava tão cheia de futuro, planejando o
quarto do bebê e os lugares onde nossos filhos iriam brincar, e
agora aqui estamos, partindo de novo, nossa vida tão diferente de
como imaginamos.
David ainda está lá dentro, então abro a bolsa e pego os dois
envelopes que Jack endereçou a mim no Kate’s. Sharma queria
abri-los, pelo visto, mas Mary conseguiu tirá-los de suas mãos antes
que ele tivesse chance.
Jack e Freya moram em Brixton agora, não muito longe de onde
Cassie cresceu. Se eles ficarem lá, Freya pode frequentar o mesmo
berçário que a mãe frequentou. Vez por outra, a vida parece
conceder mais uma chance.
Jack me disse em sua carta que Freya está indo bem, ganhando
peso, mas parece muito apegada ao mundo, fascinada demais para
dormir. Ele não mencionou Charlotte. Incluiu duas fotos, uma de
Freya usando apenas fralda e um chapéu de sol branco, seu rosto
em algum lugar entre uma risada e um guinchado para a pessoa
que tirava a foto, suas dobrinhas fofas como uma almofadinha. A
outra era de um grupo de umas trinta pessoas em roupas coloridas,
descalças em um semicírculo no topo de um penhasco, o céu
gigantesco como uma aquarela rodopiante até onde o horizonte
encontrava o pôr do sol. Jack escreveu que era a cerimônia em
memória de Cassie na ilha de Wight, onde as cinzas de April
também foram espalhadas. Na foto, algumas pessoas estão de
mãos dadas, outras têm os olhos fechados, como se estivessem em
oração. Marcus está entre eles, com o olhar baixo, um leve sorriso
no rosto. Ele está segurando Freya em um macacão azul-claro, e
ela está agarrando tufos de cabelo branco com os punhos
gordinhos. Eu me pergunto se ele tem algum diagnóstico. Espero
que alguém esteja cuidando dele. Coloco a carta e as fotos de volta
na bolsa, ao lado dos documentos de adoção que preenchi ontem à
noite. Então David sai da nossa casa vazia com a última caixa. Ele
fecha a porta atrás de si pela última vez. Vem andando mais
devagar que o normal, estreitando os olhos para a luz do sol. Põe a
caixa no banco de trás antes de vir até mim e, apoiando as costas
no carro, coloca a mão no meu joelho nu.
— Muito bem, essa foi a última. Pronta para ir?
Confirmo com a cabeça e nos beijamos brevemente nos lábios.
Eu sei que, mesmo que a nossa vida não seja como planejamos,
ainda é tão rica quanto esperávamos.
Enquanto nos afastamos dali no carro, olho para David, já
cantando a música do rádio ao meu lado, e então, exatamente como
fiz oito anos atrás quando chegamos aqui, eu me sinto plena e cheia
de futuro, totalmente abençoada, porque é isso, minha família
pequenininha, e eu sei que é tudo de que preciso.
AGRADECIMENTOS
Twitter da autora:
https://twitter.com/emily_elgar
Site da autora:
https://emilyelgaredwards.co.uk/
Goodreads da autora:
https://www.goodreads.com/author/list/16260777.Emily_Elgar
Garota A
Dean, Abigail
9786559240210
280 páginas
Ela pensou que havia fugido de seu passado. Mas há coisas que
você não pode deixar para trás.
Lex Gracie não quer pensar em sua família. Ela não quer pensar em
como foi crescer na Casa dos Horrores. E não quer pensar em sua
identidade como a Garota A, aquela que escapou, a que libertou o
irmão mais velho e os quatro mais novos.
É fácil evitar seus pais: o pai nunca saiu da Casa dos Horrores que
ele mesmo criou, e a mãe passou o resto da vida atrás das grades.
Mas, quando a mãe morre na prisão e deixa a casa da família para
os filhos, Lex não pode mais fugir do passado. Com sua irmã Evie,
Lex pretende transformar a Casa dos Horrores em um centro
comunitário usado para fazer o bem. Mas primeiro ela precisa se
reconciliar com seus irmãos — e com a infância que eles
compartilharam.
O que começa como uma história eletrizante de fuga e
sobrevivência se torna um envolvente drama psicológico sobre as
alianças e traições entre irmãos — e os segredos que eles guardam
de si mesmos e uns dos outros. Quem cada um deles se tornou?
Como suas memórias desafiam ou contradizem as de Lex?
Conforme pressiona cada irmão a concordar com seu ato final, Lex
descobre quão potente é a mitologia que cerca sua família, quem
entre eles permanece escravo do passado e quem realmente se
libertou.