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Santificação Profunda

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De leitura fácil e agradável, esta obra, escrita por Dane Ortlund, fundamenta

nosso discipulado no glorioso âmago do cristianismo: nosso Senhor Jesus


Cristo. Em geral, pensamos que, ao crescermos na vida cristã, avançamos
para “coisas mais elevadas” (o que quer que isso signifique), quando, na
verdade, temos de aprender apenas a beleza e a profundidade de Jesus e de
tudo que ele fez por nós. Isso é o que Ortlund nos ajuda a fazer aqui. Este
livro será uma bênção para você!
Paul E. Miller, autor de A praying life e J-Curve: dying and rising
with Jesus in everyday life
O anseio por mais em sua alma é parte do processo de crescimento — um
dom de fome e sede que Jesus, a fonte inesgotável, satisfará. Neste livro,
Dane Ortlund nos lembra que esse anseio é atendido não por uma mudança
de comportamento ou por alguma solução imediata, mas pela beleza da
amizade com Jesus e pela paz que é mais profundamente aceita em nossas
almas. Se você está com fome e sede de mais vida, mais alegria, mais paz e
mais Jesus, este é o livro ideal para você!
Matt Chandler, pastor titular da The Village Church, Dallas, Texas;
autor de Evangelho explícito

Jesus disse que nossa maior “obra” é crer. Como outros autores vivos, Dane
Ortlund me ajudou a voltar a crer, na medida em que me familiarizou de
novo com a impressionante ternura e beleza de Jesus. Enquanto leio suas
palavras, sou capaz de sentir meu coração crescer em confiança, devoção e
afeições piedosas, com suporte no amor do Salvador por mim. Neste livro
incrivelmente pastoral e abençoador, Dane desenvolve os desdobramentos
dessa visão de Jesus para o crescimento pessoal, mostrando-nos que a chave
para avançar com Jesus é aprofundar-se em sua obra consumada.
J. D. Greear, pastor titular da The Summit Church, Raleigh-Durham,
Carolina do Norte

Após imergir na sabedoria, na beleza e no encorajamento do novo livro de


Dane Ortlund, compreendo perfeitamente a razão pela qual ele escolheu
Santificação profunda como título. De que forma Deus nos transforma
como seus filhos e filhas amados? Pense menos em subir uma montanha e
mais em nadar no oceano profundo do “sempre mais de Jesus”. Se você já se
perguntou o que a Bíblia quer realmente dizer ao nos exortar a olhar
“firmemente para Jesus, o autor e consumador” de nossa fé, este deve ser o
próximo livro ao qual você dedicará seu tempo. Dane nos ajuda a
compreender que o Evangelho diz mais respeito a uma pessoa que devemos
adorar e conhecer do que a proposições e categorias nas quais temos de ser
experts.
Scotty Smith, pastor emérito da Christ Community Church, Franklin,
Tennessee; professor auxiliar da West End Community Church, Nashville,
Tennessee
Dedicado afetuosamente aos membros do
corpo docente do Covenant Theological Seminary, 2002–2006,
que me ensinaram sobre mudança genuína à luz da Bíblia
e, depois, me mostraram isso com suas próprias vidas
— Aslam, como você está grande!
— É porque você está mais crescida, meu bem.
— E você, não?
— Eu, não. Mas, à medida que você for crescendo,
eu parecerei maior a seus olhos.1
1 C. S. LEWIS, As crônicas de Nárnia, vol. 4, Príncipe Caspian, trad. Paulo Mendes Campos. 5. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2017, p. 136-38.
Sumário

Agradecimentos
Introdução | Como os cristãos crescem?
1 | Jesus
2 | Desespero
3 | União
4 | Amor
5 | Absolvição
6 | Honestidade
7 | Dor
8 | Respiração
9 | Sobrenaturalizado
Conclusão |E agora?
Agradecimentos

Obrigado, Mike Reeves, por me convidar para contribuir com este livro da
série Union. Essa parceria e a amizade correspondentes são preciosas para
mim.
Obrigado, Davy Chu, Drew Hunter e Wade Urig, irmãos pastores a quem
tanto admiro, por lerem e aprimorarem o manuscrito. Eu os amo.
Obrigado, querida Stacey, por insistir em que eu continue escrevendo e
por me encorajar ao longo desse caminho. Tenho muito carinho por você.
Obrigado, Crossway, por seu cuidado neste projeto, do começo ao fim.
Obrigado, Thom Notaro, por sua maravilhosa parceria neste projeto, na
qualidade de editor.
Dedico este livro a meus professores do seminário. Em agosto de 2002,
quando cheguei ao campus do Covenant Theological Seminary, em Saint
Louis, mal conseguia acreditar no que estava vendo: homens de Deus cuja
instrução, erudição e compromisso com as doutrinas da graça os levaram
a se aprofundar ainda mais em humildade e amor. Eu poderia ter
aprendido grego em qualquer outro lugar, mas só poderia aprender a beleza
dos relacionamentos, fomentada pela teologia reformada, no Covenant
Seminary, sob a orientação do corpo docente que ali se encontrava na
época. Eles me proporcionaram o fundamento teológico necessário para
entender de que forma posso crescer em Cristo. Porém, na época, de forma
ainda mais maravilhosa, eles me ofereceram retratos vivos daquilo que
floresce nesse crescimento. Neste mundo de Mordor, encontrei a mim
mesmo no Condado. Quanta misericórdia de Deus por me enviar para lá!
Eu precisava disso. E ainda preciso. Obrigado, queridos pais e irmãos.
Introdução | Como os cristãos
crescem?

Essa pergunta desperta, de imediato, sentimentos distintos em nós. Alguns


de nós se sentem culpados. Afinal, não estamos crescendo e sabemos bem
disso. E a culpa se autoperpetua, paralisando-nos em uma espécie de
estagnação espiritual.
Para outros de nós, irrompem anseios. Desejamos intensamente crescer
mais do que temos crescido.
Alguns, se forem honestos, tornam-se arrogantes quando surge a
pergunta sobre crescimento espiritual. Afinal, todos acreditamos que, de
fato, estamos indo bem, embora essa autoavaliação seja amplamente
moldada por nossa comparação com outras pessoas e constitua um
entendimento superficial do que realmente nos motiva na vida cristã.
Para outros de nós, a pergunta suscita um cinismo reprovável. Estamos
tentando crescer — ou, pelo menos, parece que estamos. Tentamos essa ou
aquela estratégia, lemos um ou outro livro, fomos a uma ou outra
conferência. Porém, no fim de tudo, ainda nos sentimos como se
estivéssemos na mesma situação, incapazes de conseguir um impulso
verdadeiro em nosso crescimento na graça.
Nenhum de nós questiona a necessidade de crescer. Vemos isso
claramente na Bíblia: “[...] crescei na graça e no conhecimento de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18); “[...] cresçamos em tudo” (Ef
4.15). No entanto, não é apenas na Bíblia que vemos essa necessidade de
crescimento, mas também em nosso coração. O doloroso exercício do
autoexame honesto nos surpreende. Descobrimos que boa parte de nossa
vida e da forma como abençoamos o mundo à nossa volta procedem, de
uma forma bastante sutil, da fonte do ego. O dom é dado, o serviço é
prestado e o sacrifício é feito não por causa dos generosos motivos que
apresentamos aos outros, a Deus e até a nós mesmos, mas tão somente por
propósitos egoístas — e só estamos levando em consideração o que os
outros veem. E o que podemos dizer do horror de nossas vidas quando
ninguém está olhando? Como matamos os pecados que cometemos na
escuridão?
A pergunta, então, não é se precisamos crescer, mas como podemos
crescer. Para todos os que nasceram de novo, em algum ponto entre essas
reações distintas, sempre haverá uma semente de desejo sincero por
crescimento.
Como isso acontece?
O argumento básico deste livro é que mudar é uma questão de se
aprofundar. Alguns crentes imaginam que a mudança decorre de um
aprimoramento exterior — comportar-se cada vez mais de acordo com
alguma norma moral (a lei bíblica, os mandamentos de Jesus, a consciência,
ou o que quer que seja). Outros pensam que a mudança decorre,
basicamente, de um acréscimo em nível intelectual — por exemplo,
entender a doutrina de forma mais ampla ou com maior exatidão. Outros
pensam que o crescimento vem principalmente das experiências
vivenciadas — com o aumento sensorial quando adoramos a Deus.
Meu argumento é que esses três elementos estão inclusos em um
desenvolvimento cristão saudável (e, se não temos um deles, estamos fora
de proporção e não cresceremos). No entanto, o verdadeiro crescimento
cristão transcende todos esses elementos. Crescer em Cristo não se limita a
aprimorar-se, acrescentar ou experimentar. Envolve aprofundar-se.
Implícito na noção de aprofundar-se, está o fato de que você já tem aquilo
de que precisa. O crescimento cristão consiste em harmonizar o que você
faz, diz e até mesmo sente com o que, de fato, você já é.
Foi mais ou menos assim que Henry Scougal delineou a vida cristã em
seu livro intitulado The life of God in the soul of man.2 Scougal era
professor de teologia na Universidade de Aberdeen e morreu de tuberculose
aos 28 anos. Em 1677, ele escreveu a um amigo desanimado uma extensa
carta que, posteriormente, viria a se tornar esse livro. Esse foi o elemento
catalisador para a conversão do evangelista britânico George Whitefield,
que declarou: “Eu não conhecia a verdadeira religião até que Deus me
enviou esse excelente tratado”.3 No livro, Scougal afirma que alguns
cristãos pensam que crescemos por meio de um comportamento mais puro;
outros, por uma doutrina mais acurada; e outros ainda, por meio de
emoções mais ricas. Porém, a mudança genuína ocorre por meio da seguinte
realidade: a vida de Deus na alma do homem.
Scougal e outros santos do passado nos auxiliam a escalar a Bíblia e
visualizar as riquezas que Deus tem para nós em sua Palavra no que se
refere à nossa vida cristã diária. E nós traremos à mesa vários sábios do
passado que nos ajudam a compreender melhor as Escrituras. A maior parte
da sabedoria disponível para nós hoje se acha entre os mortos. Embora o
espírito deles esteja agora com Cristo, no céu, os livros e sermões de
Agostinho, Gregório, o Grande, Lutero, Calvino, Knox, Sibbes, Goodwin,
Owen, Bunyan, Edwards, Whitefield, Ryle, Spurgeon, Bavinck, Lewis e
Lloyd-Jones permanecem conosco. Assim, é-nos possível assimilar o ânimo
e o discernimento dos grandes do passado muito mais que das celebridades
do presente, quando considerarmos o que as Escrituras nos oferecem em
prol de nosso crescimento em Cristo.
Portanto, neste livro, vamos refletir sobre mudança genuína para
pecadores genuínos — o oposto de uma mudança superficial para pecadores
hipotéticos. Não buscaremos mudanças de comportamento. Não falarei a
você sobre colocar seu despertador para disparar mais cedo ou sobre cortar
calorias. Nem mesmo refletiremos sobre dar o dízimo, frequentar a igreja,
elaborar um diário, receber os sacramentos ou ler os puritanos. Tudo isso
pode emanar de um coração putrefato. Estamos falando sobre mudança
genuína. Estamos falando sobre mudança genuína para pecadores
genuínos. Se você confessa a doutrina do pecado original, mas, ao mesmo
tempo, acredita que está indo muito bem na vida cristã, recoloque este livro
na estante. Este livro é para os frustrados. Para os exaustos. Para os que se
encontram no limite. Para aqueles que estão prestes a desistir de qualquer
progresso verdadeiro em seu crescimento cristão. Se você não apenas
subscreve a tese da doutrina do pecado original, como também a está
provando no cotidiano, este livro é para você.
Algumas observações iniciais.
Em primeiro lugar, não vou apressá-lo. Ninguém deveria fazer isso.
Somos pecadores complexos. Algumas vezes, damos dois passos para
frente e três para trás. Precisamos de tempo. Seja paciente consigo. Tenha
senso de urgência, sim; mas não senso de pressa. As transformações rápidas
são a exceção, e não a regra. As mudanças lentas são, ainda assim,
mudanças genuínas. Essa é a maneira usual de Deus lidar conosco. Use o
tempo necessário.
Em segundo lugar, ao começar este livro, abra seu coração à
possibilidade de haver uma mudança genuína em sua vida. Uma das
grandes vitórias do diabo reside em preencher nossos corações com um
senso de futilidade. Talvez a maior vitória do diabo em sua vida, leitor, não
seja um pecado que você comete de forma habitual, mas tão somente um
senso de incapacidade em relação ao crescimento genuíno.
Em terceiro lugar, encorajo-o a não consumir este livro, mas, em vez
disso, a refletir sobre seu caminho por meio dele. Talvez isso signifique
fazer anotações em um diário enquanto o lê. Talvez signifique lê-lo na
companhia de um amigo. Faça o possível para processar tudo lentamente,
absorvendo, meditando e deixando as verdades bíblicas o conduzirem aos
pastos verdejantes pelos quais você anela em sua caminhada com o Senhor.
Uma leitura rápida, no caso de um livro como este, é uma leitura que
absorve o mínimo.
Em quarto lugar, este livro é escrito por um companheiro paciente, e não
por um médico. É escrito tanto para mim como por mim. Foi motivado
tanto pelo fracasso como pelo sucesso.
2 Henry Scougal, The life of God in the soul of man (Fearn, Ross-shire, Scotland: Christian Focus, 1996).
3 Thomas S. Kidd, George Whitefield: America’s spiritual founding father (New Haven, CT: Yale University Press, 2014), p.
28.
1 | Jesus

Este é um livro que trata do crescimento em Cristo. Portanto, inicialmente,


temos de deixar claro quem é Jesus Cristo. Nosso crescimento não é um
aprimoramento pessoal independente. É um crescimento em Cristo. Então,
quem é ele?
Para muitos de nós, a tentação, a esta altura, é partir do pressuposto de
que sabemos muito a respeito de quem Jesus é. Afinal, fomos salvos por
ele. Dedicamos um bom tempo à Bíblia no passar dos anos. Já lemos várias
obras a respeito de Cristo. Já falamos dele a algumas pessoas.
Mas, apesar de tudo isso, se realmente formos honestos, ainda achamos
que nossas vidas estão permeadas de falhas, preocupações, anomalias e
vazio.
Uma razão comum para falharmos em abandonar o pecado é que temos
uma visão domesticada de Jesus. Não se trata de uma visão heterodoxa,
pois somos completamente ortodoxos em nossa cristologia.
Compreendemos que ele veio do céu como o Filho de Deus para viver a
vida que não podemos viver e morrer a morte que merecemos morrer.
Afirmamos sua ressurreição gloriosa. Confessamos, em consonância com
os credos antigos, que Jesus é verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem. Não temos uma visão heterodoxa. Temos uma visão domesticada
de Cristo, a qual, a despeito de toda a precisão doutrinária, reduz a sua
glória em nossos corações.
Portanto, temos de deixar claro, desde o início, quem é essa pessoa em
quem crescemos. É justamente por aqui que começamos: ele é uma pessoa.
Não apenas uma figura histórica, mas uma pessoa real, alguém que está
bem vivo hoje. Trata-se de uma pessoa com quem temos de nos relacionar,
em quem devemos crer, com quem precisamos falar, a quem necessitamos
ouvir. Jesus não é um conceito, um ideal ou uma força. Crescer em Cristo é
uma experiência de relacionamento, e não de formulações.
Insondáveis
Efésios nos fala das “insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8). A palavra
grega traduzida como “insondáveis” ocorre apenas mais uma vez em todo o
Novo Testamento, em Romanos 11.33: “Ó profundidade da riqueza, tanto
da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus
juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!” [grifo acrescido].
Romanos 11 descreve a sabedoria de Deus como “inescrutável”. E isso faz
sentido. Deus é infinito e onisciente; sem dúvida, sua sabedoria e seu
conhecimento são insondáveis. Mas Efésios 3 chama as riquezas de Cristo
de insondáveis. Como assim? O que são essas riquezas em Cristo? Por que
elas são insondáveis? Isso significa que podemos escavar, escavar e jamais
atingir o fim?
À medida que você avança neste livro, permita-me propor-lhe uma ideia.
Permita-me sugerir que você considere a possibilidade de que a ideia atual
que você tem a respeito de Jesus é a ponta do iceberg, que há profundezas
maravilhosas em Jesus e realidades acerca dele ainda à espera de que você
as descubra. Não estou levando em consideração o discipulado genuíno já
em curso em sua vida nem as verdadeiras descobertas relativas à
profundidade de Jesus Cristo que você já fez. Mas permita-me pedir-lhe que
se mostre aberto à possibilidade de que uma das razões pelas quais você
verifica tanto um crescimento modesto quanto a persistência do pecado em
sua vida — se esse é o seu caso — é que o Jesus que você está seguindo é
um Jesus inferior, um Jesus inconscientemente reduzido, um Jesus
previsível e não surpreendente. Não estou presumindo que seja esse o seu
caso. Estou apenas pedindo que você examine honestamente a si mesmo.
Quando, em 1492, Cristóvão Colombo chegou ao Caribe, chamou os
nativos de “índios”, pensando que havia chegado ao lugar ao qual os
europeus, na época, se referiam como “as Índias” (China, Japão e Índia). De
fato, ele não estava próximo ao sul ou ao leste da Ásia. Em sua rota, havia
vastas regiões de terra, não exploradas e não mapeadas, sobre as quais
Colombo nada sabia. Ele imaginou um mundo menor do que, de fato, era.
Acaso também nós temos cometido erro semelhante em relação a Jesus
Cristo? Acaso existem inúmeras verdades a respeito de quem ele é, de
acordo com a revelação bíblica, que são inexploradas? Acaso nós o temos
reduzido, de forma involuntária, a proporções previsíveis e, de certa forma,
controláveis? Acaso estamos olhando para um Jesus inferior, sem poder e
unidimensional que nós mesmos criamos, imaginando ser esse o Jesus
verdadeiro? Acaso temos mergulhado com uma máscara de mergulho em
águas rasas, pensando haver chegado ao fundo do Pacífico?
Neste capítulo, eu gostaria de mencionar sete facetas de Cristo, sete
“regiões” de Cristo que podem não estar sendo devidamente exploradas em
nossa geração. Dezenas mais poderiam ser consideradas. Mas vamos
limitar-nos a estas sete: governo, salvação, amizade, perseverança,
intercessão, retorno e ternura. O propósito deste exercício é colocar o
próprio Cristo vivo em contraste mais acentuado e nítido, para que o
vejamos agigantar-se de maneira mais radiante e gloriosa do que nunca;
para que troquemos nossa máscara de mergulho por um cilindro de
oxigênio, o qual nos leve a profundezas que jamais sondamos; para que
busquemos o crescimento cristão movidos por uma visão exata e cada vez
mais profunda do Cristo a quem fomos unidos.
Governo
Jesus exerce autoridade suprema sobre todo o universo.
Antes de sua ascensão, Jesus disse: “Toda a autoridade me foi dada no
céu e na terra” (Mt 28.18). Ele não está ansiando por estar no controle; ele
governa supremamente no presente. A rejeição da autoridade de Jesus por
parte do mundo não afeta o fato de que ela é real. Sob a perspectiva do céu,
tudo está em consonância com o plano. Jesus Cristo está supervisionando
tudo o que acontece, tanto na igreja como na história do mundo. Nossa
percepção e nossa capacidade de ver o governo de Cristo podem aumentar e
diminuir; mas isso é apenas percepção. O governo atual de Cristo se
mantém inalterável — supremo, forte, suficiente e onipresente. Nenhum
tráfico de drogas está fora de seu conhecimento, nenhum escândalo político
se desdobra além do alcance de sua visão, nenhuma injustiça pode ser
executada sem que ele o saiba. Quando os líderes do mundo contemporâneo
se reúnem, eles mesmos estão nas mãos de um carpinteiro galileu
ressurreto.
Esse reino supremo é verdadeiro não apenas quanto ao cosmos e à
história do mundo, mas também quanto à nossa própria vida insignificante.
Ele vê a você. Ele o conhece. Nada está oculto aos olhos dele. E, um dia,
você será julgado não de acordo com o que era visível aos outros, mas de
acordo com o que você realmente era e fez. A Bíblia diz que, quando Jesus
vier para julgar o mundo, ele “não somente trará à plena luz as coisas
ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações”
(1Co 4.5). Não somente o que fizemos em secreto, mas até mesmo nossa
própria motivação será trazida à luz e julgada.
Podemos não ver Jesus com nossos olhos, mas ele é o ser mais real do
universo. A Bíblia diz que “nele tudo subsiste” (Cl 1.17). Se Jesus for
retirado do universo, tudo colapsará. O Salvador não é um boneco para
quem devamos sorrir ou alguém que meramente tenhamos de acrescentar a
uma vida que, sem ele, já funciona muito bem. Jesus é o poderoso
sustentador do universo, aquele a cujo governo supremo dobraremos os
joelhos nesta vida ou na vida por vir (Fp 2.10).
Considere a descrição trazida em Apocalipse 1. João está tentando
expressar em palavras, de forma clara, algo que não pode ser expresso em
palavras:
[...] um semelhante a filho de homem, com vestes talares e cingido, à altura do peito, com
uma cinta de ouro. A sua cabeça e cabelos eram brancos como alva lã, como neve; os olhos,
como chama de fogo; os pés, semelhantes ao bronze polido, como que refinado numa
fornalha; a voz, como voz de muitas águas. Tinha na mão direita sete estrelas, e da boca
saía-lhe uma afiada espada de dois gumes. O seu rosto brilhava como o sol na sua força.
Quando o vi, caí a seus pés como morto. (Ap 1.13-17)
Você tem reduzido o Senhor Jesus a um Salvador brando, controlável e
previsível, alguém que auxilia sua existência e com ela contribui, mas sem
o qual sua vida já decorre tranquilamente? Você tem tratado aquilo que é
espiritualmente crucial como algo descartável? O fato de nos
familiarizarmos inconscientemente com a autoridade e o governo
abrangentes de Jesus Cristo sobre todas as coisas poderia ser a razão para
estarmos paralisados em nosso crescimento espiritual? Será que nos faltam
um temor, admiração e tremor apropriados em relação ao Senhor Jesus, o
Jesus real que, um dia, silenciará o bramir das nações com um simples
sussurro?
Jesus governa.
Salvação
Talvez pareça óbvio que o Jesus verdadeiro é um Jesus Salvador. Contudo,
quero dizer algo bem específico quando o chamo “Salvador”. Quero dizer
que ele está salvando, e não apenas ajudando. Como pecadores, não
estamos apenas feridos; estamos, além disso, mortos em nossos delitos e
necessitamos não somente de fortalecimento e auxílio, como também de
ressurreição, de uma libertação plena (Ef 2.1-6).
Quando refletimos sobre nosso crescimento em Cristo, temos uma visão
empobrecida da dimensão do que Deus fez em Cristo para nos libertar? Em
nossa atual e constante caminhada com o Senhor, cremos, de forma
pragmática, que a vida cristã saudável depende apenas de nossos esforços,
os quais são santificados com um pequeno empurrão adicional de Jesus?
Sabemos realmente o que significa sermos salvos? No evangelho de
Lucas, Jesus conta uma parábola para enfatizar isso:
Convidou-o um dos fariseus para que fosse jantar com ele. Jesus, entrando na casa do
fariseu, tomou lugar à mesa. E eis que uma mulher da cidade, pecadora, sabendo que ele
estava à mesa na casa do fariseu, levou um vaso de alabastro com unguento; e, estando por
detrás, aos seus pés, chorando, regava-os com suas lágrimas e os enxugava com os próprios
cabelos; e beijava-lhe os pés e os ungia com o unguento. Ao ver isto, o fariseu que o
convidara disse consigo mesmo: Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher
que lhe tocou, porque é pecadora. Dirigiu-se Jesus ao fariseu e lhe disse: Simão, uma coisa
tenho a dizer-te. Ele respondeu: Dize-a, Mestre.
Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro,
cinquenta. Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles,
portanto, o amará mais? Respondeu-lhe Simão: Suponho que aquele a quem mais perdoou.
Replicou-lhe: Julgaste bem. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher?
Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; esta, porém, regou os meus pés com
lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que
entrei não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta, com
bálsamo, ungiu os meus pés. Por isso, te digo: perdoados lhe são os seus muitos pecados,
porque ela muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama. Então, disse à
mulher: Perdoados são os teus pecados. Os que estavam com ele à mesa começaram a dizer
entre si: Quem é este que até perdoa pecados? Mas Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou;
vai-te em paz. (Lc 7.36-50)

Todo ser humano tem uma dívida de quinhentos denários. A ênfase da


parábola é que tendemos a acreditar que nossa dívida é apenas de
cinquenta denários. Os fracassados mais óbvios de uma cultura sentem sua
pecaminosidade mais prontamente do que os outros e estão, portanto, mais
preparados e dispostos a um livramento que os arranque da morte com uma
salvação plena e total.
Uma das razões pelas quais nosso crescimento espiritual definha é que
perdemos gradualmente o senso da profundeza a que Jesus desceu para nos
salvar. Veja bem: para nos salvar. Quando corríamos a toda velocidade na
direção oposta, ele nos caçou, subjugou nossa rebelião e abriu nossos olhos
para que nos déssemos conta da nossa necessidade que temos dele e de sua
total suficiência para atender a essa necessidade. Não estávamos nos
afogando, como se necessitássemos de um colete salva-vidas; estávamos
totalmente mortos, bem lá no fundo do oceano. Ele nos retirou de lá, soprou
vida nova em nossas almas e nos colocou em pé. Todo fôlego que agora
respiramos se deve à total e plena libertação que recebemos dele em todo o
nosso desamparo e em nossa morte.
Jesus salva.
Amizade
“Já não vos chamo servos [...] mas tenho-vos chamado amigos” (Jo 15.15).
O senso genuíno da amizade de Jesus com seus seguidores é uma
característica de sua plena suficiência, sem a qual não pode haver
crescimento vital.
Alguns de nós temos um senso poderoso da glória transcendente de Jesus
— um aspecto de seu ser tão vital quanto qualquer outro. Trememos quando
pensamos nele. Sua grandeza resplandecente se assoma à medida que nos
conscientizamos dela diariamente. Nós nos aproximamos dele com
reverência e temor. E é assim mesmo que deve ser!
Mas aquele que é tanto Leão como Cordeiro é tanto transcendente como
imanente, tanto remoto como próximo, tanto grande como bom, tanto Rei
como Amigo. Eu lhe pergunto se o Salvador é o seu amigo mais querido e
mais verdadeiro.
O que um amigo faz? Um amigo se achega nos tempos de necessidade.
Um amigo sente prazer em vir para se solidarizar conosco, levando consigo
nossos fardos. Um amigo ouve. Um amigo está disponível para nós. Ele
nunca se declara elevado ou importante demais para nos dedicar tempo.
Um amigo compartilha as profundezas de seu coração. Essa é
exatamente a ênfase da citação de João 15, que diz de forma mais completa:
“Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos
tenho dado a conhecer” (Jo 15.15). Incrível: o Deus trino nos inclui em seus
planos de restaurar o universo. Ele faz de nós parte de seu círculo mais
íntimo. Ele nos informa o que está fazendo e aceita nossa participação
nisso.
Jesus foi acusado de ser “amigo de publicanos e pecadores” (Mt 11.19;
Lc 7.34). Porém, essa acusação, misturada com desdém, é um conforto
profundo para aqueles que sabem que se enquadram nessa categoria de
“pecadores”. É por isso que esses dois grupos (publicanos e pecadores)
eram precisamente os que “aproximavam-se de Jesus [...] para o ouvir” (Lc
15.1). Em torno de Jesus, os pecadores — aqueles que reconhecem que são
pecadores — sentem-se seguros, reconhecendo-se tanto culpados como
envolvidos em amor, e não uma coisa ou outra. A vergonha que sentimos é
o que atrai Jesus. Ele é o amigo poderoso dos pecadores.
Que outro tipo de Salvador servirá? Qual de nós seria capaz de realmente
sentir um estímulo renovado em sua vida se estivesse seguindo um Salvador
que se mantém a uma distância segura e que nos tratasse não como amigos,
mas como empregados? Mas, se o nosso Salvador se achega a nós e é
repelido apenas por justiça própria, mas nunca por vergonha ou fraqueza
reconhecidas, não há limites para a transformação profunda que ele pode
operar em nós. É justamente no momento de nosso arrependimento e de
nossa culpa mais profundos que essa amizade nos envolve de forma mais
segura e inabalável.
Se ele é o amigo dos pecadores, e se você reconhece a si mesmo como
um pecador, permita que ele o tome como seu amigo mais profundamente
do que nunca. Abra-se para ele, como você não o faz em relação a qualquer
outro amigo terreno. Deixe-o amá-lo como o amigo dos fracassados, como
o aliado invencível dos fracos.
Jesus é nos toma como amigos.
Perseverança
A hesitação é parte da natureza de todo relacionamento humano.
Professamos compromisso eterno uns com os outros e queremos realmente
que seja assim. Mas nós, humanos, somos instáveis. Entramos até mesmo
no matrimônio por força de um pacto. Por quê? Porque sabemos que nossos
sentimentos vêm e vão. Para unir um marido a sua esposa, é necessário um
laço que se mostre mais profundo que os sentimentos.
Quem é Jesus? É um amigo que não hesita. Ele persevera. O evangelho
de João nos diz que Jesus, estando na semana final de sua vida terrena,
“tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo
13.1). Jesus se prende a seu povo. Não há uma data de expiração. Não há
um fim no caminho. Nosso lado do compromisso fraquejará e tropeçará; o
dele, porém, jamais.
Não cresceremos em Cristo se virmos sua presença e seu favor como um
despertador, pronto para disparar o alarme se o decepcionarmos bastante.
Podemos atingir uma saúde mais profunda apenas quando a verdade
estabelece em nós a certeza de que, se Jesus nos trouxe a si mesmo, nunca
estará à procura de um motivo para nos abandonar. Ele ficará conosco até o
fim. De posse desse conhecimento, podemos nos acalmar e começar a
florescer. Um estudioso da Bíblia chamou acertadamente nosso crescimento
em Cristo de “uma espécie de esforço estranhamente tranquila”.4 Nós nos
esforçamos para avançar, mas esse esforço é, ao mesmo tempo, um esforço
tranquilo, porque se firmou em nosso coração a verdade de que o pecado
não pode ser motivo para sermos excluídos da união com Jesus.
Essa é a lógica de Romanos 5. Jesus morreu por nós “quando nós ainda
éramos fracos” (v. 6), quando éramos “inimigos” (v. 10). Assim, ele
certamente não nos deixará agora que somos seus irmãos. Se Jesus foi até à
cruz por nós quando ainda não lhe pertencíamos, provou que continuará
conosco agora que somos dele.
Jesus persevera conosco.
Intercessão
Outra parte vital, embora negligenciada, de nosso crescimento em Cristo é
saber que sua obra não se encerrou quando ele ressuscitou dos mortos. É
comum, embora errado, limitar a obra de Cristo a:
nascimento → vida → morte → sepultamento → ressurreição → ascensão.

Isso deixa de fora a parte de sua obra que ele está realizando agora
mesmo:
nascimento → vida → morte → sepultamento → ressurreição → ascensão → intercessão.

A Bíblia diz que ninguém pode condenar os crentes porque “é Cristo


Jesus quem [...] está à direita de Deus e também intercede por nós” (Rm
8.34). Ele está falando em nosso favor. Jesus ora por nós. Isso é o que o
Cristo exaltado faz. O antigo teólogo Thomas Goodwin afirmou: “Permita-
me dizer-lhe que ele ainda estaria pregando hoje, mas tinha outros negócios
a fazer por você no céu, onde agora se encontra, orando e intercedendo por
você, mesmo quando você peca, como vemos que ele fez ainda na terra
pelos judeus quando o estavam crucificando”.5
Jesus não está entediado no céu. Está plenamente engajado em nosso
benefício, tão engajado quanto esteve na terra. Está intercedendo por nós.
Por quê? Porque continuamos a pecar como crentes. Se a conversão nos
tivesse mudado tanto que jamais voltássemos a pecar, não teríamos
necessidade da obra de intercessão de Cristo. Precisaríamos apenas de sua
morte para pagar pelos pecados que cometemos antes da conversão. No
entanto, ele é um Salvador completo. Sua obra de intercessão no presente
aplica, a cada instante, diante do Pai, sua obra anterior de expiação, à
medida que vamos avançando pela vida, sempre tendo o desejo agradar ao
Senhor, mas, frequentemente, falhando. A Bíblia diz que Jesus “pode salvar
totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para
interceder por eles” (Hb 7.25). O falar de Jesus em nosso favor nas cortes
celestiais é uma realidade constante e permanente — ele vive “sempre para
interceder por eles”.
Nós cresceremos em Cristo somente quando reconhecermos o aliado que
Jesus Cristo é para nós agora que está no céu. Ele não morreu e ressuscitou
em nosso favor, mas, depois, voltou ao céu apenas para ficar de braços
cruzados, vendo quão bem nos sairíamos. Jesus continua a trabalhar em
nosso benefício — ele nos salva “totalmente” —, advogando em nosso
favor quando ninguém mais o faria, nem mesmo nós. Ele está mais
comprometido com o nosso crescimento nele do que nós mesmos.
Jesus intercede.
Retorno
Nosso crescimento em Cristo também extrai forças do senso vívido de seu
retorno iminente.
É difícil avançar na vida cristã quando nos permitimos ser iludidos pelo
senso monótono de que este mundo continuará para sempre como é agora.
Mas, quando nutrimos expectativa quanto ao tempo em que “do céu se
manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo”
(2Ts 1.7-8), a urgência e esperança nos impelem a avançar.
Cremos realmente que, um dia, “naquela manhã da ressurreição”, como
pregou Jonathan Edwards em 1746, “quando o Sol da Justiça aparecer nos
céus, brilhando em todo o esplendor de sua glória, ele se manifestará como
um noivo; virá na glória de seu Pai, com todos os anjos santos”?6 Considere
isto: o retorno de Cristo acontecerá em um dia real na história do mundo —
em um mês específico, em uma data específica. O dia já foi estabelecido
(At 17.31). Somente Deus o conhece (Mt 24.36), mas esse dia é iminente
(Mt 24.42). Quando acontecer, não lamentaremos nossa indiferença quanto
ao crescimento em Cristo? Não ficaremos perplexos ante o fato de que,
segundo nossa estimativa, nossa conta bancária e nossa reputação pareciam
tão grandes, muito maiores do que nossa verdadeira condição espiritual?
Jesus deixou este mundo em silêncio, mas retornará estrepitosamente
(1Ts 4.16). Ele partiu furtivamente, mas voltará de forma estridente. Pode
ser amanhã. Mas, ainda que não seja, encontramo-nos cada vez mais perto
de seu retorno.
Jesus está retornando.
Ternura
Por fim — e eu desejo que isso ressoe em seu coração com mais
intensidade, à medida que você prosseguir no restante deste livro —, Jesus
é infinitamente terno.
Ele é a pessoa mais aberta, acessível, pacífica e condescendente do
universo. É a pessoa mais gentil e menos rude que você jamais conhecerá.
Poder infinito, mansidão infinita. Ofuscantemente resplandecente;
infinitamente calmo.
Se você tivesse apenas algumas palavras para definir quem é Jesus, o que
diria? Na única passagem em que nos fala sobre seu próprio coração, Jesus
diz: “Sou manso e humilde de coração” (Mt 11.29). Lembre-se de que o
“coração”, na linguagem bíblica, não são meramente as nossas emoções,
mas o âmago mais íntimo e impulsionador de tudo aquilo que fazemos.
Nossos amores, desejos e ambições mais profundos fluem de nosso
coração. Quando Jesus se abre e nos fala da fonte — o motor, o cerne
pulsante — de todos os seus atos, diz-nos que é manso e humilde. Ao
olhamos para os recônditos mais profundos de Jesus Cristo, ali encontramos
mansidão e humildade.
Sabemos que nosso coração resiste a isso. Contemplamos a feiura no
nosso interior. Mal podemos encarar a nós mesmos. Sentimo-nos muito
inadequados, ao passo que Jesus é perfeitamente santo, o Filho de Deus
divino. É normal e natural, até mesmo em nossas igrejas, sentirmos
instintivamente que Jesus mantém seu povo um pouco distante de si
mesmo. É por isso que necessitamos da Bíblia. O testemunho de toda a
Bíblia, culminando em Mateus 11.29, é que Deus contraria o que
instintivamente sentimos, na medida em que nos abraça mesmo em meio à
nossa bagunça. Ele considera irresistíveis o arrependimento, a tristeza, a
necessidade e a carência.
Você não tem de mostrar segurança para ir até Jesus. Não tem de entrar
numa fila ou comprar um ingresso. Não tem de fazer acenos para chamar a
atenção dele nem levantar muito a voz para estar certo de que ele o ouve.
Ele o enxerga em sua pequenez, achega-se a você em sua
pecaminosidade e se solidariza com você em sua angústia.
O que devemos notar é não apenas que Jesus é gentil com você, mas que
ele se sente atraído positivamente em sua direção, mesmo quando você está
mais certo de que ele não desejaria estar na sua companhia. Jesus não é
repelido por sua pecaminosidade. Ao contrário, ele considera irresistíveis
sua necessidade, seu vazio e sua tristeza. Ele não tarda em encontrá-lo em
meio à sua necessidade. Trata-se da mesma diferença entre um adolescente
numa manhã de domingo, quando ele sai forçosamente da cama, ao ouvir o
alarme do despertador, e esse mesmo adolescente numa manhã de Natal,
quando ele se levanta em um salto. Olhe para o Salvador em Mateus,
Marcos, Lucas e João. Com quem ele gasta a maior parte do tempo? O que
o faz verter lágrimas? O que o tira da cama bem cedo? Com quem ele faz
suas refeições? Com os rejeitados, os vazios, os que anseiam por esperança
e os fracassados.
O primeiro fato que pretendo deixar claro aqui, logo no começo deste
livro, é que o Jesus verdadeiro é manso e humilde de coração. Digo “Jesus
verdadeiro” porque todos nós o diluímos involuntariamente, reduzindo-o
àquilo que nossa mente consegue imaginar naturalmente. Porém, a Bíblia
nos corrige, dizendo-nos que devemos parar de agir assim. Sem a Bíblia,
podemos apenas criar um Jesus à nossa própria imagem, um Jesus de
gentileza e misericórdia moderadas. A Escritura destrói esse Jesus diluído e
libera o Cristo verdadeiro, de forma que o que descobrimos é que suas mais
íntimas afeições são a mansidão e a humildade.
Este é um livro sobre mudança. Permita-me ser claro. Você não
mudará até entender corretamente quem é Jesus, especialmente no
que diz respeito à sua surpreendente ternura. Depois disso, dedique
todo o resto de sua vida a se aprofundar na mansidão de Jesus. A única
alternativa ao Jesus verdadeiro é voltar à rotina — a rotina de fazer seu
melhor para seguir e honrar Jesus, enquanto você crê que a misericórdia e a
graça dele são um estoque gradualmente exaurido por nossos erros e espera
chegar à morte antes que a montanha de misericórdia se esgote. Este é o
ensino da Bíblia: se você está em Cristo, seus pecados fazem esse estoque
crescer cada vez mais. Onde abunda o pecado, a graça de Cristo
superabunda. É em nosso espírito de vergonha e arrependimento profundos
que o coração dele habita e de lá ele não sairá.
À medida que você for progredindo na leitura deste livro e avançando
em seu caminho pela vida, lance fora, de uma vez por todas, o Jesus
reduzido e levante os olhos para o Jesus verdadeiro, o Jesus cuja ternura
sempre excede e aceita nossas fraquezas, o Cristo cujas riquezas são
insondáveis. Esse Cristo é aquele sob cujo cuidado e instrução você será,
por fim, capaz de florescer e frutificar.
“Sou manso e humilde de coração.”
Jesus é cheio de ternura.
O Cristo verdadeiro
Faça de sua jornada de crescimento uma jornada na direção do próprio
Cristo. Explore regiões inexploradas de quem ele é. Resista à tendência,
comum a todos nós, de reduzi-lo à nossa expectativa preconcebida de como
ele deve ser. Deixe-o surpreendê-lo. Permita que a plenitude de Cristo o
cative e o encoraje. Permita que ele seja um grande Cristo. Em uma carta de
1959, C. S. Lewis disse:
“Jesus gentil”, meu poder! O fato mais impressionante a respeito de nosso Senhor é a união
de uma grande ferocidade com uma ternura extrema. (Lembre-se de Pascal: “Eu não admiro
o extremo de uma virtude se você não me mostrar, ao mesmo tempo, o extremo da virtude
oposta. Uma pessoa mostra sua grandeza não por estar em uma extremidade, mas, sim, por
estar simultaneamente em duas extremidades e preenchendo o espaço entre elas”.)
Acrescente a isso o fato de que Jesus é também um grande especialista em dialética,
ironia e (ocasionalmente) humor. Portanto, siga em frente! Você está na trilha certa agora:
seguindo para o Homem real por trás de todas as imitações que o têm substituído. Essa é a
aparência em forma humana do Deus que fez o Tigre e o Cordeiro, a avalanche e a rosa.
Ele o assustará e o deixará confuso; mas o Cristo verdadeiro pode ser amado e admirado de
uma forma que a imitação não pode.7

Resolva hoje mesmo, diante de Deus, que você, por meio da Bíblia e de
bons livros que a explicam, dedicará o restante de sua vida a mergulhar nas
insondáveis riquezas do Cristo verdadeiro.
Permita que ele, em sua plenitude, o ame e o guie em crescimento.

4 C. F. D. Moule, “‘The new life’ in Colossians 3:1-17”, Review and expositor 70, nº 4 (1973): 482.
5 Thomas Goodwin, Encouragements to faith, em The works of Thomas Goodwin, 12 vols. (reimpr., Grand Rapids, MI:
Reformation Heritage, 2006), 4:224.
6 Jonathan Edwards, “The curch’s marriage to her sons, and to Her God”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 25,
Sermons and discourses, 1743-1758, ed. Wilson H. Kimnach (New Haven, CT: Yale University Press, 2006), p. 183.
7 C. S. Lewis, The collected letters of C. S. Lewis, vol. 3, Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963, ed. Walter Hooper (San
Francisco: HarperCollins, 2009), p. 1011; ênfase original.
2 | Desespero

Em toda a Bíblia, há uma mensagem estranha, embora consistente.


Repetidas vezes, a Bíblia nos diz que o caminho adiante será,
aparentemente, como se estivéssemos seguindo para trás.
Os Salmos nos dizem que aqueles cujo coração está quebrantado e que se
sentem esmagados pela vida são as pessoas de quem Deus está mais perto
(Sl 34.18). Provérbios nos diz que é aos humildes e necessitados que Deus
mostra seu favor (Pv 3.34). Ficamos surpresos ao aprendermos, em Isaías,
que Deus habita em dois lugares: num lugar alto e santo, na glória do céu,
mas também na companhia dos destituídos de autoconfiança e vazios de si
mesmos (Is 57.15; 66.1-2). Jesus nos diz: “Se o grão de trigo, caindo na
terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” (Jo
12.24). Ele nos diz que o caminho para a grandeza é o serviço e que o
caminho para ser o primeiro é ser servo de todos (Mc 10.43-44). Tiago tem
a audácia de nos instruir: “Converta-se o vosso riso em pranto” (Tg 4.9).
Por que a Bíblia faz isso? Deus quer que sempre nos sintamos mal a
respeito de nós mesmos? Ele é ávido em nos mostrar que não somos tão
importantes quanto pensamos, em diminuir nossa alegria, para que não
sejamos tão felizes?
De modo algum. É por causa do desejo do próprio Deus de que sejamos
jubilosamente felizes, transbordantes da tumultuosa alegria do próprio céu,
que ele nos diz isso. Ele está nos diminuindo com o propósito de nos
conduzir à honestidade e à sanidade. Deus quer que vejamos nossa
enfermidade de modo que corramos para o médico. Ele quer nos curar.
Os seres humanos caídos entram na alegria somente pela porta do
desespero. Isso acontece, de forma decisiva, na conversão, quando
confessamos nossa condição terrivelmente pecaminosa pela primeira vez e
caímos nos braços de Jesus; depois, permanece num ritmo constante ao
longo de toda a vida cristã. Se você não está crescendo em Cristo, talvez
seja pelo fato de que foi abandonando, gradativamente, a disciplina
saudável e benéfica de ver a si mesmo como alguém desprovido de
esperança.
Martinho Lutero, como outros na história da Igreja, entendia bem isso.
Em A escravidão da vontade, ele escreveu:
Deus prometeu certamente sua graça aos humildes, àqueles que lamentam e se desesperam
em relação a si mesmos. Mas nenhum homem pode ser totalmente humilhado enquanto não
sabe que sua salvação está além de suas próprias capacidades, artifícios, esforços, vontade e
obras, dependendo inteiramente da escolha, da vontade e da obra de outrem, ou seja, de
Deus. Enquanto o homem estiver convencido de que pode fazer alguma coisa por sua
salvação, ele retém alguma autoconfiança e não perde a esperança completa em si mesmo,
não estando, portanto, humilhado diante de Deus, mas presumindo que há — ou, pelo
menos, esperando ou desejando que haja — algum lugar, tempo e obra para ele pelos quais
possa, a longo prazo, atingir a salvação. Todavia, quando um homem não tem dúvida de que
tudo depende da vontade de Deus, ele se desespera totalmente de si mesmo e não escolhe
nada por si mesmo, mas espera que Deus faça sua obra. Então, ele se terá aproximado da
graça de Deus.8

Lutero entendia, como é evidente em seus escritos, que esse desespero


não é uma experiência única, algo que ocorre apenas na conversão. O
crescimento cristão é, entre outras coisas, crescimento em ver quão pobres e
desprovidos de poder somos em nossa própria força, ou seja, quão
superficiais e fúteis são nossos esforços para crescermos espiritualmente.
Este capítulo leva em consideração a necessidade saudável de perdermos
ocasionalmente a esperança em nós mesmos e, mais uma vez, vermos se
estamos crescendo em nosso andar com Cristo.
A pecaminosidade do pecado
Qual é a condição natural do ser humano?
Por um lado, somos esplendidamente gloriosos. A imagem de Deus nos
encharca de glória e nos torna completamente diferentes de qualquer outra
criatura no universo. Construímos, fazemos arte, amamos, trabalhamos.
Comandamos este mundo, como Deus planejou. Deus colocou Adão no
jardim do Éden “para o cultivar e o guardar” (Gn 2.15). Essas duas palavras
hebraicas denotam cultivo e proteção, respectivamente. É por essa razão
que todo ser humano, feito à imagem de Deus, está neste planeta. Fomos
colocados aqui para desenvolver este mundo, para conquistá-lo e para
administrá-lo.
Entretanto, nós também somos corrompidos. A antiga rebelião de nossos
ancestrais edênicos se perpetua em cada geração, e a repercussão trágica
disso atinge cada aspecto de nossa existência. Nosso corpo começa a perder
vigor a partir trinta anos. Doenças e calamidades naturais assolam muitos
de nós, causando horrores imprevisíveis. E o mais terrível de tudo: nossas
mentes e nossos corações foram infectados — nós desejamos o que é
proibido, celebramos a infelicidade dos outros, retemos em vez de dar. Em
resumo, construímos toda a nossa vida em função do trono do ego.
Romanos 3 expressa isso ao descrever de que forma o pecado contamina as
partes do corpo físico (Rm 3.9-18). Os seres humanos caídos são fábricas
de impureza.
Em algum sentido, nós, que confessamos Cristo, admitimos a realidade
do pecado. Contudo, também menosprezamos profundamente essa
realidade. “Ninguém é perfeito”, costumamos reconhecer. “Todos
cometemos erros”. Mas o problema não é o fato de seguirmos na direção
certa com alguns tropeços ocasionais. Estamos correndo na direção errada.
O mal é o oceano, e não as ilhas, de nossa existência interior. “O coração
dos homens está cheio de maldade”, diz a Bíblia, “nele há desvarios
enquanto vivem” (Ec 9.3).
A realidade desse mal, que a Bíblia chama pecado, é o que nos impede
de reconhecê-lo. O pregador britânico Martin Lloyd-Jones explica: “Você
nunca se permitirá sentir como um pecador, porque, como resultado do
pecado, há um mecanismo em você que sempre o defenderá de toda
acusação. Estamos todos sempre em muito boa relação com nós mesmos e
podemos sempre apresentar um bom argumento em favor de nós mesmos”.9
É como se tivéssemos uma doença da qual um dos sintomas é nos sentirmos
saudáveis. Por isso, com frequência, a Bíblia fala da pecaminosidade como
cegueira (e.g., Is 6.10; 42.7; Mt 15.14; 23.17; Jo 9.40, 41; 2Co 4.4; 1Jo
2.11; Ap 3.17).
O que estou tentando dizer é que o único fundamento seguro sobre o
qual podemos edificar o crescimento espiritual é a base sólida da falta de
esperança em nós mesmos. Quanto mais minimizarmos o mal em nosso
interior, menos profundamente poderemos crescer. Quando pensamos ter
uma dor de cabeça, tomamos um comprimido para dor e vamos dormir.
Suportamos quimioterapia quando sabemos que temos um tumor no
cérebro. A severidade de nossa condição determina a profundeza e a
seriedade do remédio de que precisamos. Se você vê sua pecaminosidade
como uma dor de cabeça enfadonha, e não como um câncer letal, terá um
crescimento tépido (se tiver algum crescimento). Você não verá a si mesmo
como alguém que tem de crescer muito. Entretanto, quando vemos quão
desesperadamente enfermos estamos e como estamos profundamente
aquém da glória para a qual Deus nos destinou, damos o primeiro passo
decisivo para cruzar aquela vasta distância entre o que somos e o que fomos
destinados a ser. “Aprenda muito sobre seu próprio coração”, disse o pastor
escocês Robert Murray McCheyne, “e, quando tiver aprendido todo o
possível, lembre-se de que viu apenas uns poucos metros de um abismo que
é insondável”.10
No entanto, precisamos compreender nossa pecaminosidade de maneira
abrangente. Não é apenas nossa imoralidade que reflete o mal em nosso
interior. Até mesmo nossa moralidade é permeada pelo pecado. Isso lhe
parece desnecessariamente negativo e rude? Considere sua própria vida.
Aquele ato de serviço que você prestou ontem teve realmente a ver, em
essência, com trazer notoriedade para si mesmo e para sua virtude? Não
responda tão rapidamente! O modo como você saudou calorosamente os
que estão ao seu redor hoje é, após a devida consideração, motivado
principalmente pelo que você deseja que os outros pensem de você? Não é,
como disse Agostinho, pecado travestido de virtude?11
Algumas epístolas do Novo Testamento, como 2 Pedro e Judas, foram
escritas basicamente para confrontar o mal da imoralidade. Outras, porém, a
exemplo de Gálatas e Colossenses, foram escritas para confrontar o mal da
falsa moralidade. Somos tão naturalmente ímpios que nos distorceremos
qualquer coisa a serviço do ego. De fato, em todos os quatro evangelhos, é
evidente que a moralidade, e não a imoralidade, é o maior obstáculo à
comunhão com Jesus. Os necessitados e rejeitados se viram atraídos a
Jesus, enxugando os pés dele com os próprios cabelos e deixando tudo para
estar com ele. A elite religiosa, por sua vez, o questionou, duvidou dele e,
por fim, o matou.
Morra antes que você morra
A ênfase em tudo isso é que temos de encarar quem realmente somos,
quando abandonados à nossa própria capacidade. A salvação cristã não é
assistência; é resgate. O Evangelho não toma nosso bem e nos completa
com a ajuda de Deus. O Evangelho nos diz que estamos mortos e
desamparados, incapazes de contribuir com qualquer coisa em prol de nosso
resgate, senão com o pecado que o torna necessário. A salvação cristã não é
aprimorar; é ressuscitar.
O que fazemos na conversão e o que continuamos a fazer depois não é
pedir a Deus que dê à nossa vida, já ordenada sem ele, um pequeno
aprimoramento que venha do céu. O que fazemos é colapsar. Deixamos o
desespero em relação ao que somos, quando entregues a nós mesmos,
inundar-nos. Em resumo, morremos. Como um personagem de C. S. Lewis
diz corretamente em Até que tenhamos rostos: “Morra antes que você
morra. Não há oportunidade depois”.12
O desespero não é um fim em si mesmo, mas, sim, um elemento vital da
espiritualidade saudável. Não pode ser descartado. Uma das razões pelas
quais muitos cristãos permanecem mergulhando em águas rasas durante
toda a vida é que não se permitem passar, com uma profundidade cada vez
maior, pelo doloroso corredor da honestidade, no qual descobririam quem
realmente são. Esse foi o erro dos cristãos de Laodiceia. Jesus diagnosticou
o erro deles: “Pois dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa
alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu”
(Ap 3.17).
Hoje em dia, podemos cometer o mesmo erro. Por isso, entre na jubilosa
queda livre da desesperança quanto a si mesmo. Não estou sugerindo que
menospreze a imagem gloriosa de Deus que você é. Sugiro apenas que se
permita manter, durante todo o percurso de sua jornada cristã, a lembrança
salutar de quanto mal reside em você, mesmo na condição de alguém
nascido de novo. Sinta sua própria pecaminosidade. Permita que ela o
humilhe e que o torne sóbrio. Acautele-se de encher a vida com programas
televisivos de entrevistas e telefonemas que não o levam regularmente a
parar e considerar a terrível condição de sua vida afastada de Cristo. Você
não é capaz de sentir, de forma plena e suficiente, o peso da própria
pecaminosidade. Jamais conheci um cristão profundo que não tivesse um
senso correspondentemente profundo de sua própria desolação natural.
O contraste supremo
Ficamos face a face com nossa pecaminosidade não, primariamente, por
nos sentarmos e refletirmos, olhando para nosso interior, ponderando sobre
nosso coração. Precisamos fazer isso, mas, em nosso mundo de ritmo
aceleradíssimo, muitos de nós nunca paramos para refletir sobre o que está
acontecendo em nosso interior. Contudo, a reflexão pessoal nos conduz
apenas até aí. A escuridão de nosso interior torna-se bem visível quando a
vemos em contraste com o brilho translúcido do próprio Deus. Em seu
caderno particular no qual registrava suas reflexões teológicas, Jonathan
Edwards anotou:
Se pudéssemos contemplar a fonte infinita de pureza e santidade, e fôssemos capazes de ver
a chama infinitamente pura que ela é e o brilho puro com que resplandece, de tal modo que
os céus parecessem impuros em comparação a ela; e, depois, se contemplássemos um pouco
da infinitamente odiosa e detestável impureza trazida e colocada em sua presença, não seria
natural esperar que uma oposição inefavelmente vigorosa se levantasse contra ela? E a falta
dessa oposição não seria indecente e chocante?13
Sentimos quão desesperada é nossa condição somente quando ela é
comparada com a infinita beleza do próprio Deus. Quando uma pesca
extraordinária de peixes levou Pedro a compreender que a pessoa que
estava no barco era a Divindade santa encarnada, não deu um tapa nas
costas de Jesus e lhe agradeceu pela boa pesca do dia. Pedro caiu com o
rosto em terra. Suas palavras são impressionantes: “Senhor, retira-te de
mim, porque sou pecador” (Lc 5.8).
Você já vivenciou isso? Sabe o que significa ver a si mesmo como
impuro e vulnerável na presença da própria Santidade?
Não cresceremos — pelo menos, não de forma profunda — a menos que
passemos pela dolorosa morte de sermos honestos a respeito de nossa
própria falência espiritual. Na presença de um Deus cuja infinita beleza e
perfeição expõem nossa pecaminosidade, temos de ver e sentir nosso vazio
completo, bem como nossa rebelião e resistência inatas.
O grande pré-requisito
Se você se sente paralisado, vencido por velhos padrões de pecado, use esse
desespero para alavancar um senso saudável de futilidade pessoal, que é a
porta pela qual você tem de passar, se quiser obter impulso espiritual.
Permita que seu vazio o humilhe. Permita que o leve para baixo — não,
porém, para você ficar lá, afundando-se em autopiedade, mas para perder o
otimismo medíocre que nós, tão naturalmente, nutrimos em relação a nós
mesmos.
Nos capítulos posteriores, chegaremos às contrapartes positivas para essa
morte. Mas não podemos ignorar essa etapa. Esse é o grande pré-requisito
para tudo o mais. O padrão da vida cristã não é uma linha direta para a vida
ressurreta, mas uma curva que desce até a morte e, de lá, sobe até a vida
ressurreta.14 E isso significa que vivemos continuamente com um senso
cada vez mais profundo de quão repreensíveis somos em nós mesmos. Foi
perto do fim de sua vida que Paulo se identificou como o pecador mais
premiado que conhecia (1Tm 1.15). Os octogenários mais piedosos que
conheço são aqueles que veem a si mesmos como mais pecaminosos agora
do que em qualquer outro momento. Eles conhecem o padrão saudável de
verem a si mesmos como indivíduos desprovidos de esperança. Qual de nós
seria capaz de se identificar com o que o pastor e compositor de hinos John
Newton escreveu em uma carta de 1776 (aos 51 anos): “A vida de fé
parece, em tese, tão simples e fácil que eu poderia recomendá-la aos outros
em poucas palavras; mas, na prática, ela é muito difícil, e meus avanços são
tão lentos que, de modo algum, eu ousaria afirmar que avancei”.15
Você já foi levado a não ter esperança no que é capaz de realizar em sua
santificação? Em caso negativo, tenha coragem de olhar para si mesmo no
espelho. Arrependa-se. Veja sua carência profunda. Peça ao Senhor que lhe
perdoe a arrogância. À medida que você desce à morte, ao reconhecimento
da futilidade da mudança interior que é capaz de realizar por seus próprios
esforços, lá, lá mesmo, você descobrirá, em seu desânimo e em seu vazio,
que Deus vive. É lá, naquele deserto, que Deus ama fazer as águas
brotarem e as árvores florescerem. Sua desesperança é tudo de que ele
precisa para operar em seu espírito. “Tão somente reconhece a tua
iniquidade” (Jr 3.13). O que arruinará seu crescimento é você olhar de outra
maneira, é evitar o olhar perscrutador da própria Pureza, é cobrir sua
pecaminosidade e seu vazio com sorrisos e brincadeiras e, depois, avaliar
novamente seus recursos pessoais, ignorando o que você sabe nas
profundezas de seu coração: que você é ímpio.
Se você descender apenas um pouco na desesperança de si mesmo,
ascenderá somente um pouco na escada do jubiloso crescimento em Cristo.
“O índice de salubridade da fé de um homem em Cristo”, escreveu J. I.
Packer, “é a genuinidade do desespero pessoal que ela produz”.16 Não
somente admita que sua condição é desesperadamente horrível. Sinta-a
você mesmo. Reflita, calmamente, sobre quão vil você, quando entregue a
si mesmo.
Em seu hino de 1799, “Pedi ao Senhor que eu cresça”, Newton
expressou com exatidão o modo como o crescimento espiritual vem por
meio do desespero, e não quando o evitamos:
Pedi ao Senhor que eu cresça
Em fé, em amor e em toda graça;
Conheça mais de sua salvação
E busque solenemente a sua face.

Foi ele quem me ensinou a orar,


E, creio, ele tem respondido!
Mas tem sido de uma maneira tal
Que quase me levou ao desespero.

Esperava que, em alguma hora favorável,


Ele respondesse, de pronto, ao meu pedido;
E, pelo poder do seu amor constrangedor,
Subjugasse meu pecado, e me desse descanso.

Em vez disso, ele me fez sentir


Os males ocultos de meu coração
E deixou que os furiosos poderes do inferno
Assaltassem a cada parte de minha alma.

Além disso, com sua própria mão, parece


Que ele tencionou agravar minha aflição;
Anulou todos os desígnios justos que planejei
Destruiu meus recursos e me rebaixou.

“Senhor, por que é assim”, clamei em tremor?


“Perseguirás o teu verme até à morte?”
“É dessa maneira”, respondeu o Senhor,
“que respondo à oração por graça e fé.”

“Emprego essas provações interiores


Para te libertar do ego e do orgulho
E quebrar os teus planos de gozo terreno,
A fim de que aches o teu tudo em mim”.

Trilhe o caminho do verdadeiro crescimento com um desespero honesto,


saudável e profundo.
Desmorone
Então, depois de haver perdido a esperança quanto à sua própria capacidade
de produzir crescimento, o que fazer? Vez ou outra, durante a nossa vida —
até mesmo hoje —, quando nos acomodamos de novo à nossa
pecaminosidade, o que devemos fazer?
Não há nada nobre em permanecer num abismo de desespero. Temos de
passar por essa experiência, mas não devemos permanecer lá. O desespero
saudável é uma interseção, e não uma rodovia expressa; uma passagem, e
não uma trajetória. Precisamos entrar lá, mas não ousamos lá permanecer.
Em vez disso, a Bíblia ensina que cada experiência de desespero deve
levar-nos de novo à comunhão mais profunda com Jesus. É como pular em
um trampolim: devemos descer sentindo novamente o nosso vazio, mas, em
seguida, permitir que isso nos impulsione para cima, a novas alturas com
Jesus. A Bíblia chama esse movimento de dois passos de arrependimento e
fé.
Arrependimento é abandonar o ego; fé, por sua vez, é voltar-se para
Jesus. Não podemos ter um sem o outro. O arrependimento que não se volta
para Jesus não é um arrependimento verdadeiro; a fé que não abandona o
ego antes de tudo não é fé verdadeira. Se estamos viajando na direção
errada, a situação é corrigida quando fazemos uma conversão e, ao mesmo
tempo, começamos a caminhar na direção certa. Esses movimentos
acontecem simultaneamente.
Alguns cristãos, aparentemente, acreditam que a vida cristã é iniciada
por um ato decisivo de arrependimento e, depois, dali em diante, nutrida
pela fé. Mas, como ensinou Lutero, a vida inteira é arrependimento. A
primeira de suas 95 teses diz: “Quando nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo,
disse: ‘Arrependei-vos’ (Mt 4.17), ele queria que toda a vida dos crentes
fosse uma vida de arrependimento”. A vida cristã consiste em nos
arrependermos dos caminhos que ainda seguiremos.
De modo semelhante, vivemos toda a nossa vida pela fé. Paulo não disse:
“Fui convertido pela fé”, mas: “Vivo pela fé” (Gl 2.20). Não começamos
simplesmente a vida cristã pela fé; progredimos pela fé. É nosso novo
normal. Processamos a vida e atravessamos essa existência mortal ao nos
voltarmos, a cada instante, para Deus com confiança e esperança, em cada
situação, em cada decisão, a cada hora que passa. Nós “andamos por fé e
não pelo que vemos” (2Co 5.7). Ou seja, movemo-nos ao longo da vida
com os olhos fitos sempre no alto. Nossa postura é a de esperar capacitação
do alto.
Arrependimento e fé. Em uma palavra: desmorone.
Contudo, tanto o arrependimento como a fé nunca devem ser isolados do
próprio Jesus. Ambos nos conectam a Cristo. Não são a “nossa
contribuição”, mas apenas os meios pelos quais chegamos à cura genuína: o
próprio Cristo. Como Jack Miller disse sabiamente em uma carta que
enviou em 1983 a um jovem amigo:
Quando você se volta para Cristo, não tem um arrependimento separado de Cristo; você tem
apenas Cristo. Portanto, não busque o arrependimento ou a fé por si mesmos; busque Cristo.
Quando você tem Cristo, tem arrependimento e fé. Acautele-se de buscar uma experiência
de arrependimento; busque apenas a experiência de Cristo.
O diabo pode ser bem ardiloso. Ele não se importa com que você pense muito em
arrependimento e fé, se não pensa muito em Jesus Cristo [...] Busque Cristo e se relacione
com Cristo como um Salvador e Senhor amoroso que deseja convidá-lo a conhecê-lo.17

À medida que você desespera de si mesmo — em agonia por causa da


desolação causada por seus fracassos, fraquezas e inadequações —, permita
que esse desespero o leve a se aprofundar bastante em honestidade quanto a
si mesmo; porque ali você encontrará um amigo, o próprio Senhor Jesus,
que o deixará admirado e o surpreenderá com sua bondade gentil, quando,
em arrependimento, você abandona o ego e, em fé, confia em Cristo de
novo.

8 Martin Luther, The bondage of the will, em Career of the reformer III, em Luther’s works, ed. Jaroslav Pelikan e Helmut T.
Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Fortress, 1955-1986), 33:61-62.
9 Martyn Lloyd-Jones, Seeking the face of God: nine reflections on the Psalms (Wheaton, IL: Crossway, 2005), p. 34.
10 Robert Murray McCheyne, em uma carta de 1840, apud Andrew A. Bonar, Memoirs and remains of the Rev. Robert
Murray McCheyne (Edinburgh: Oliphant, Anderson, and Ferrier, 1892), p. 293.
11 Augustine, City of God, ed. Vernon J. Bourke, trad. Gerald G. Walsh, Demetrius B. Zema, Grace Monahan e Daniel J. Honan
(Garden City, NY: Image, 1958), 19.25.
12 C. S. Lewis, Till we have faces: a myth retold (New York: Harcourt, 1956), p. 279.
13 Jonathan Edwards, “Miscellany 779”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 18, The “miscellanies”, 501-832, ed. Ava
Chamberlain (New Haven, CT: Yale University Press, 2000), p. 438.
14 Veja Paul E. Miller, J-Curve: dying and rising with Jesus in everyday life (Wheaton, IL: Crossway, 2019).
15 Letters of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007), p. 184; de modo semelhante, p. 212-13. De fato, esse é um tema
repetido em todas as cartas de Newton.
16 J. I. Packer, A quest for godliness: the Puritan vision of the Christian life (1990; reimpr., Wheaton, IL: Crossway, 2010), p.
170.
17 Em Barbara Miller Juliani, The heart of a servant leader: letters from Jack Miller (Phillipsburg, NJ: P&R, 2004), p. 244-
45.
3 | União

Já refinamos nossa visão a respeito de quem é Jesus e estabelecemos a


contínua e salutar necessidade de perdermos a esperança em nós mesmos e
de lançarmo-nos, em arrependimento e fé, repetidas vezes, nos braços desse
Jesus. Mas esse Jesus permanece distante? Como realmente podemos
acessá-lo? E qual é a natureza de nosso relacionamento com ele?
O Novo Testamento nos oferece uma resposta categórica. Aqueles que se
lançam a Jesus com arrependimento e fé são unidos a ele, ligados a ele, são
um com ele. Esse fato, e não a doutrina da justificação, ou da reconciliação,
ou da adoção, ou qualquer outro ensino bíblico importante, é, de acordo
com o Novo Testamento, o centro controlador do que significa ser cristão.
O Novo Testamento se refere à nossa união com Cristo mais de duzentas
vezes. Isso equivale aproximadamente a uma média acima de uma
referência por página em muitas diagramações da Bíblia. Se um livro repete
o mesmo tema a cada página, você não acha que esse é um assunto
importante que o autor pretende comunicar?
Porém, o que isso tem a ver com nosso crescimento espiritual? Tudo. O
antigo escritor Jeremiah Burroughs disse: “De Cristo, assim como de uma
fonte, a santificação flui para a alma dos homens, isto é, a santificação deles
não acontece como fruto de sua luta, de seus esforços, de seus votos e de
suas resoluções, porque a santificação flui até eles a partir de sua união com
Cristo”.18 Mas não pense que esse ensino procede dos puritanos. A doutrina
da união com Cristo é o que a própria Bíblia identifica como a origem do
crescimento cristão. Em Romanos 6, Paulo aborda a razão pela qual o
Evangelho da graça não é um encorajamento ao pecado, apresentando a
realidade da união do crente com Cristo:
Permaneceremos no pecado para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum!
Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos? Ou, porventura, ignorais
que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos,
pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida.
Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos
também na semelhança da sua ressurreição. (Rm 6.1-5)

A lógica dessa passagem é a seguinte: sim, mais pecado significa mais


graça, e a graça de Cristo sempre ultrapassa nosso pecado. Isso não
significa, no entanto, que os crentes pequem ainda mais. A graça de Cristo
não é uma transação; em vez disso, ela vem até nós por meio da união.
Quando Jesus desceu ao sepulcro, com o fim de morrer pelos nossos
pecados, também descemos com ele, a fim de morrermos para nossos
pecados. O que diríamos a um órfão adotado se ele saísse pela porta da
mansão de sua nova família e fosse para a fila de cupons de um programa
de assistência aos necessitados? Diríamos: “o que você está fazendo? Esse
não é mais quem você é”. Encontramos uma lógica semelhante em livros do
Novo Testamento como Efésios e Colossenses.
Neste capítulo, consideraremos exatamente o que essa união com Cristo
é e de que forma essa doutrina promove crescimento espiritual.
Deus em mim
Os cristãos entendem o crescimento espiritual basicamente de quatro
maneiras distintas.19 As três primeiras são mais ou menos comuns em
diferentes partes da igreja. A quarta é o que a Bíblia nos ensina. Nós as
chamaremos de:
1. Deus depois eu;
2. Deus, não eu;
3. Deus mais eu;
4. Deus em mim.
Uma mentalidade do tipo “Deus depois eu” crê que é Deus quem faz
tudo para me salvar — abre meus olhos, me faz nascer de novo, me dá vida
nova — e me dá um novo começo na vida, uma espécie de folha de papel
em branco. Portanto, cabe a mim ocupar-me em servir a ele, mostrar-lhe
quão grato sou por tudo que faz. A fé apenas me introduz, mas, depois, o
esforço é o que me move para a frente. Afinal, segundo ainda propõe essa
maneira de pensar, já que somos habitados pelo Espírito Santo, devemos
levar vidas radicalmente transformadas. O problema nessa abordagem é que
ela não leva em consideração a presença constante do pecado na vida do
crente, além de ignorar o abrangente tema bíblico da graça e da
misericórdia de Deus, presenças constantes na vida do crente, que
analisaremos em um capítulo posterior.
Outros, que se situam na segunda, categoria entendem o crescimento
como “Deus, não eu”. Isso é essencialmente o polo oposto em relação ao
primeiro erro. A ideia aqui é que Deus me salva, mas, depois, a vida cristã é
uma questão de Deus — e somente Deus — produzir o crescimento em
mim. É uma mentalidade do tipo “deixe Deus agir”, que aborda nossa
agência humana como passiva, como se pudéssemos apenas esperar Deus
agir em nós. Enquanto a primeira mentalidade é bastante otimista quanto ao
que os crentes são capazes de fazer de acordo com suas próprias forças, a
segunda é muito pessimista a respeito do que eles podem fazer em Cristo.
Embora aquela enfatize a responsabilidade humana na santificação,
negligenciando a soberania divina, esta enfatiza a soberania divina e
negligencia a responsabilidade humana. Contudo, a Escritura fala da
santificação como uma questão tanto de soberania divina como de
responsabilidade humana.
Chamamos a terceira abordagem de “Deus mais eu”. Essa está mais
perto da verdade. A ideia aqui é que o crescimento cristão consiste em um
esforço cooperativo. Deus faz algo; eu faço algo. Somos parceiros. Cada
uma das partes contribui com algo. Se representarmos cada abordagem de
crescimento como um círculo, a abordagem “Deus depois eu” tem o círculo
totalmente cheio de mim; já o círculo “Deus não eu” é totalmente cheio de
Deus, enquanto o “Deus mais eu” contém uma linha ondulada bem no
meio, com uma metade cheia de Deus e a outra, de mim.
No entanto, a abordagem apropriada teria tanto Deus como eu enchendo
totalmente o círculo. Os dois agentes se sobrepõem. Essa quarta abordagem
é “Deus em mim”. Deus faz tudo para me salvar e, depois, por meio de seu
Espírito Santo (falarei mais sobre isso em outro capítulo), ele me une
espiritualmente a seu Filho. O resultado é que, em nosso crescimento em
santidade (como disse Edwards), “não somos meramente passivos;
tampouco Deus faz algo, e nós fazemos o resto. Porém, Deus faz tudo, e
nós fazemos tudo [...] Em diferentes aspectos, somos totalmente passivos e
totalmente ativos”.20 Em outras palavras, essa abordagem mantém juntas a
responsabilidade humana e a soberania divina na forma como, do ponto de
vista espiritaul, nos movemos adiante.
A evidência bíblica
Considere como a Bíblia fala sobre nossa vitalidade espiritual. Observe a
maneira como Deus é sempre exposto como supremamente responsável por
nosso crescimento, mas nunca de uma maneira que anule nossos próprios
esforços:
Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida,21 não se
tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de
Deus comigo. (1Co 15.10)

Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém,
muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor;
porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa
vontade. (Fp 2.12-13)

Para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua
eficácia que opera eficientemente em mim. (Cl 1.29)

Seu crescimento espiritual é uma questão de graça divina. Você não pode
alavancar a si mesmo para obter o crescimento. Você precisa ser elevado ao
crescimento. Porém, a graça divina que produz mudança impulsiona e
perpassa nossos esforços, pois estamos no Filho.
Salvo e seguro
Mas o que isso significa? O que significa estar unido a Cristo? Sem dúvida,
esse é um conceito impreciso. Podemos imaginar um bebê canguru “na”
bolsa de sua mãe. No entanto, em que sentido estamos “em” Cristo?
O primeiro fato digno de nota é a simples intimidade e segurança de ser
cristão. Nosso crescimento cristão acontece na maravilhosa esfera da
inevitabilidade, até mesmo da invencibilidade. Estou unido a Cristo. Nunca
poderia ser desunido dele. A lógica das epístolas do Novo Testamento é
que, para eu ser desunido de Cristo, sua ressurreição teria de ser desfeita.
Ele teria de ser expulso do céu, para que eu também fosse expulso dele.
Estamos bem seguros.
O pastor e teólogo escocês James Stewart (1896–1990) compreendeu, de
forma correta, a centralidade da doutrina da união com Cristo e assim a
explicou vividamente:
Cristo é o novo ambiente do homem redimido. Ele foi elevado das restrições limitadoras de
sua vida terrena para uma esfera totalmente diferente, a esfera de Cristo. Foi transportado
para um novo solo e um novo clima. Tanto o solo como o clima são Cristo. O espírito do
crente está respirando um elemento mais nobre. Está avançando numa esfera mais
elevada.22

Se você é capaz de tolerar uma ilustração irreverente, pense em si


mesmo como uma cebola. A casca exterior consiste em aspectos periféricos
a seu respeito, aqueles que não são muito importantes: suas roupas, o carro
que você dirige etc. Se você remover essa camada, o que há na sequência?
Uma coleção de elementos levemente mais essenciais para sua essência: a
família na qual você foi criado, seu perfil (ou personalidade), seu tipo
sanguíneo, sua obra como voluntário. Remova essa camada. A camada
seguinte são seus relacionamentos: seus amigos mais queridos, seus colegas
da escola (se você é aluno), seu cônjuge (se você é casado). Remova essa
camada. A próxima camada é aquilo em que você crê a respeito do mundo,
as verdades que você ama nas profundezas de seu coração: quem você crê
que Deus é, qual é seu futuro derradeiro, para que direção você acredita que
a história do mundo se encaminha. A camada que se segue a essa inclui
seus pecados, passados e presentes, os fatos sobre você que ninguém mais
sabe.
Continue removendo, camada após camada, tudo aquilo que faz que você
seja você. O que você encontra no âmago? Você está unido a Cristo. Essa é
a realidade mais irredutível acerca de você. Removidas todas as outras
camadas, a verdade sólida e inabalável a seu respeito é sua união com um
Cristo ressuscitado.
Como poderia ser diferente? Afinal, não foi você quem planejou sua
união com Cristo. Em 2 Timóteo 1.8-9, lemos sobre um “Deus, que nos
salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas
conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo
Jesus, antes dos tempos eternos”. Não acordamos certa manhã, acessamos
o site uniaocomcristo.com e clicamos em “sim”. O que é mais
profundamente verdadeiro no tocante a nós é que Deus nos tornou seguros
em Cristo antes que tivéssemos ouvido falar de Cristo. É somente na
tranquila segurança de sua união eternamente segura com Cristo que o
verdadeiro crescimento pode florescer.
A dimensão macro
Mas ainda resta uma pergunta: o que essa união com Cristo significa? A
resposta é que o Novo Testamento usa a linguagem de união com Cristo
basicamente de duas maneiras.23 Podemos chamá-las a macro e a
microrrealidade da união com Cristo, ou a cósmica e a íntima, ou a federal e
a pessoal.
A dimensão macro da união com Cristo é que ele é seu líder, de forma
que, à medida que ele avança, você também avança. O destino dele é o seu.
Por quê? Porque você está nele. Isso talvez pareça um pouco estranho,
especialmente para os que vivem no Ocidente nos dias de hoje. Entretanto,
para a maior parte das culturas em toda a história, inclusive nos tempos
bíblicos, essa forma de pensar sobre um líder e seu povo era normal e
natural. O termo formal para isso é “solidariedade coletiva”. Talvez você já
tenha ouvido alguém referir-se a Cristo como o cabeça “federal” dos
crentes. Tanto esta última expressão quanto a anterior têm a mesma
conotação. A ideia é que uma pessoa representa uma coletividade, e a
coletividade é representada por essa única pessoa.
Vemos isso, por exemplo, em 2 Coríntios 5.14, que fala da obra de Cristo
e de como se conecta conosco: “Um morreu por todos; logo, todos
morreram” (2Co 5.14). Porque Cristo morreu e aqueles que estão unidos a
ele compartilham seu destino, nós também morremos. Vemos a mesma
lógica em Romanos 6: “Sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso
velho homem [...] morremos com Cristo” (v. 6, 8).
Estar em Cristo, portanto, de maneira macro, cósmica ou federal
significa que nosso destino está vinculado ao dele, e não ao de Adão. Em 1
Coríntios 15.22, lemos um resumo de toda a Bíblia em uma sentença curta:
“Assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão
vivificados em Cristo”. A alternativa a estar em Cristo é estar em Adão.
Uma coisa ou outra. Não há uma terceira opção. Todo ser humano que está
vivo hoje ou está em Adão, ou em Cristo. Essa é a realidade fundamental
que define cada um de nós. Mesmo nos casos dos atletas mais famosos, dos
ícones culturais e daqueles cujos fãs os tratam como deuses, o que é mais
profundamente verdadeiro a respeito deles é que estão ou em Adão, ou em
Cristo.
É possível sermos ainda mais específicos. A mensagem do Novo
Testamento é absolutamente emocionante nesse aspecto e estimula
profundamente nosso crescimento espiritual. Ao sermos transferidos do
destino de Adão para o destino de Cristo, somos transferidos não apenas de
uma pessoa para outra, mas também de um âmbito para outro. Quando
Jesus Cristo ressuscitou dos mortos, a nova era que o Antigo Testamento
havia antecipado irrompeu calmamente no cenário da história humana. Ser
unido a Cristo como seu novo cabeça federal é ser colocado nesse novo
âmbito. Se você é cristão, foi levado pela graça divina à nova ordem que os
profetas predisseram. A nova criação já começou a despontar, embora esse
não pareça ser o caso, já que a antiga era caída continua se desenrolando
lado a lado com a nova era que já está raiando. Permanecemos como
pecadores caídos. No entanto, nossa identidade básica, nossa localização
fundamental, é a nova era, uma vez que estamos em Cristo. Cristo
mergulhou na morte e saiu do outro lado para a nova criação emergente, e
estar “em Cristo” significa que ele nos levou consigo. Uma tradução mais
rigorosa de 2 Coríntios 5.17 seria: “Se alguém está em Cristo, nova
criação”. No texto grego, não há verbo. O que Paulo está dizendo é que, se
você está em Cristo, foi levado para o Éden 2.0, a nova criação que
irrompeu silenciosamente quando Cristo saiu do sepulcro.
À medida que você considera sua própria vida bagunçada e
insignificante, examine bem quem você é. Observe a quem você pertence.
Considere o fato de que a ressurreição de Cristo é a garantia de que, um dia,
você também será fisicamente ressuscitado. Considere que você já foi
espiritualmente ressuscitado (Ef 2.6; Cl 2.12; 3.1). Quando você peca,
comporta-se em desarmonia com o que é. Está agindo como um órfão que,
embora adotado, continua saindo de sua nova casa para a sarjeta, com o fim
de mendigar pão, quando, na verdade, o estoque de comida na cozinha está
completamente cheio e lhe pertence gratuitamente. Você está destinado à
glória.
A dimensão micro
Há, porém, uma realidade mais íntima da nossa união com Cristo a que, por
vezes, os autores bíblicos aludem. É difícil saber exatamente como
expressá-la. A Bíblia usa imagens para comunicá-la, talvez porque essa
realidade é mais bem compreendida por meio de comparação do que de
definição. Temos imagens como a vinha e seus ramos, ou a cabeça e as
demais partes do corpo, ou um noivo e sua noiva. Em todos os casos, há
uma união orgânica e íntima, um compartilhamento de propriedades, uma
unidade. A vinha dá vida aos ramos. A cabeça direciona e cuida das partes
do corpo. O esposo alimenta e cuida de sua esposa, como o faz em relação
ao seu próprio corpo (Ef 5.29).
Uma passagem é especialmente arrebatadora. Observe o que Paulo diz
sobre nossa união com Cristo em 1 Coríntios 6, ao nos encorajar à pureza
sexual:
O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor, e o Senhor, para o corpo. Deus
ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder. Não sabeis que os
vossos corpos são membros de Cristo? E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e os
faria membros de meretriz? Absolutamente, não. Ou não sabeis que o homem que se une à
prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne.
Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele. Fugi da impureza. (1Co 6.13-18)

Aqui, “Senhor” é uma referência a Jesus, e “membros” são as partes do


corpo. Você percebe a lógica por trás da declaração de Paulo? Seu
argumento é que estamos tão unidos a Cristo que, ao nos unirmos a uma
prostituta, unimos Cristo a uma prostituta. Digo isso com cautela e
reverência, mas tenho de lhe perguntar aquilo em que o texto insiste: você
quer ser responsável por Jesus cometer fornicação? Cometer imoralidade
sexual é, em virtude de sua união com Cristo, levá-lo a agir de modo
semelhante. Não quero dizer realmente que podemos fazer o Cristo
ressurreto pecar dessa maneira. Estou apenas observando o que o texto diz
— “E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e os faria membros de
meretriz?” — e observando quão vital, poderosa e íntima para Paulo devia
ser nossa união com o Senhor Jesus, para ele dizer o que diz aqui.
No evangelho, a salvação é muito mais profunda, muito mais
maravilhosa do que você responder a um apelo de ir até a frente do púlpito,
ou levantar a mão, ou atender a um convite de salvação numa campanha
evangelística. Sua salvação implica estar unido ao próprio Cristo vivo. É,
como escreveu Scougal, “uma união da alma com Deus, uma participação
real da natureza divina”.24
Talvez isso crie um problema em sua mente. Se todo cristão está unido
ao mesmo Cristo, o que acontece com nossa individualidade? Todos nós
começaremos a parecer cada vez mais uns com os outros, perdendo a
personalidade individual que nos distingue? A resposta é que, em alguma
medida, sim, começaremos todos a nos parecer mais com Cristo e, portanto,
mais uns com os outros — cada um de nós exibindo mais amor, alegria,
paz, paciência, bondade, benignidade, fidelidade e domínio próprio (Gl
5.22-23).
Mas, no que diz respeito à nossa distintividade pessoal, a glória da
redenção cristã é que se trata de uma união com Jesus na qual recebemos de
volta nosso verdadeiro eu. Começamos, finalmente, a nos tornar as pessoas
que, de fato, fomos criados para ser. C. S. Lewis oferece uma analogia
brilhante para esclarecer esse ponto de vista.25 Se um grupo de pessoas
sempre viveu nas trevas e, então, ouve que uma luz será acesa, para que
sejam capazes de enxergar uns aos outros, elas podem muito bem opor-se,
crendo que, se uma única lâmpada estiver refletindo a mesma luz sobre
cada uma delas, todas parecerão idênticas umas para os outras. Todavia,
obviamente, sabemos que a luz mostrará a distinção pessoal delas. A união
com um único Cristo é semelhante a isso. Você recebe de volta seu
verdadeiro eu. Torna-se aquele que foi destinado a ser. Recupera seu
destino original. Compreende que sua existência sem Cristo era como uma
sombra daquilo para o que você foi criado. Sua personalidade distintiva, seu
verdadeiro eu, sua individualidade humana, estava em 2D quando você,
retido em pecado, vergonha, medo e trevas, estava fora de Cristo. Agora
que você está em Cristo, encontra-se em 3D, livre para florescer. Em outras
palavras, é somente em união com Cristo que você é capaz de crescer para
ser quem Deus o criou para ser.
A doutrina geral
A esta altura, você pode estar se perguntando como a união com Cristo se
harmoniza com os outros grandes e gloriosos quadros de nossa salvação —
justificação, adoção e assim por diante. A resposta é que a união com Cristo
é a doutrina geral que inclui todos os benefícios de nossa salvação. Quando
somos unidos a Cristo, obtemos todos esses benefícios. João Calvino, nas
Institutas, inicia sua discussão sobre salvação com as seguintes palavras:
“Temos de compreender que, enquanto Cristo estiver fora de nós, e nós
estivermos separados dele, tudo que ele sofreu e fez pela salvação da raça
humana permanece inútil”.26
Reflita sobre a rica variedade de maneiras como o Novo Testamento fala
do nosso resgate em Cristo. Em cada uma das formas que menciono a
seguir, identifico duas passagens que ensinam um aspecto da salvação e
apresento entre parênteses o oposto dessa bênção (aquilo de que esse
aspecto da salvação nos livra).
• Justificação — a metáfora do tribunal (Rm 5.1; Tt 3.7 — não mais
condenados).
• Santificação — a metáfora do culto (1Co 1.2; 1Ts 4.3 — não mais
impuros).
• Adoção — a metáfora da família (Rm 8.15; 1Jo 3.1-2 — não mais
órfãos).
• Reconciliação — a metáfora do relacionamento (Rm 5.1-12; 1Co
5.18-20 — não mais estranhos).
• Lavagem — a metáfora da limpeza física (1Co 6.11; Tt 3.5 — não
mais sujos).
• Redenção — a metáfora do mercado de escravos (Ef 1.7; Ap 14.3-4
— não mais escravizados).
• Compra — a metáfora financeira (1Co 6.20; 2Pe 2.1 — não mais em
dívida).
• Libertação — a metáfora do aprisionamento (Gl 5.1; Ap 1.5 — não
mais aprisionados).
• Novo nascimento — a metáfora da geração física (Jo 3.3-7; 1Pe 1.3,
23 — não mais inexistentes).
• Iluminação — a metáfora da luz (Jo 12.35-36; 2Co 4.4-6 — não mais
cegos).
• Ressurreição — a metáfora do corpo (Ef 2.6; Cl 3.1 — não mais
mortos).
A união com Cristo, a metáfora orgânica e espacial, é o quadro
principal. Se você está em Cristo, recebe todos esses benefícios. É tudo ou
nada. É por essa razão que Paulo diz que, por causa da obra salvadora de
Deus, você está “em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus,
sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30).27 A ênfase é que
Jesus é o Salvador completo, poderoso e perfeito. Tudo que você precisa é
estar nele, e isso acontece, de forma irreversível, na conversão, por meio da
fé que se rende, submete-se e confia.28
Aprofundando-se
Neste capítulo, esforçamo-nos para deixar claro o que a Bíblia ensina sobre
a união com Cristo. No entanto, o propósito de entender claramente as
verdades da Bíblia é que nosso consolo e nossa alegria se elevem à medida
que nos engolfamos na segurança tranquila de quem Deus realmente é e de
quem somos.
Já nos aproximando do fim deste capítulo sobre a união com Cristo,
quero pedir-lhe que deixe sua mente e seu coração se aprofundarem na
realidade dessa verdade. Lembre-se: a ênfase deste livro é que o
crescimento cristão não consiste sobretudo na tarefa de acrescentar, mas na
de aprofundar. Se você está em Cristo, já tem todo o necessário para
crescer. Você está unido a Cristo. Pelo Espírito Santo, você está nele, e ele,
em você. Cristo é seu cabeça federal e seu companheiro íntimo. Você não
pode perder. Você é inesgotavelmente rico, porque é um com Cristo, e ele
mesmo é inesgotavelmente rico, o herdeiro do universo. Jonathan Edwards
falou da união com Cristo com as seguintes palavras:
Em virtude da união do crente com Cristo, ele possui, de fato, todas as coisas. Contudo,
pode-se perguntar: como ele possui todas as coisas? Em que ele é melhor para ser digno
disso? De que forma um cristão verdadeiro é muito mais rico do que as outras pessoas?

Para responder a isso, eu lhe falarei o que pretendo dizer com “possuir todas as coisas”.
Quero dizer que o Deus trino, tudo que ele é, tudo que possui, tudo que faz, tudo que fez e
realizou, assim como todo o universo, os corpos e espíritos, o céu e a terra, os anjos, os
homens e os demônios, o sol, a luz e as estrelas, os peixes e as aves, toda a prata e todo o
ouro, os reis e os potentados são tanto do cristão quanto o dinheiro que está em seu bolso, as
roupas que ele usa, a casa em que ele mora ou os alimentos que ele consome — sim,
propriamente dele, vantajosamente dele, em virtude de sua união com Cristo; visto que
Cristo, que possui todas as coisas, é inteiramente dele. Portanto, o cristão possui tudo, mais
do que uma esposa possui a parte do melhor e mais estimado marido, mais do que a mão
possui o que a cabeça dá. Tudo é dele.
Cada átomo no universo é controlado por Cristo em benefício do cristão, bem como toda
partícula de ar ou cada raio do sol; para que ele, no mundo vindouro, quando chegar a vê-lo,
sente-se e desfrute de toda essa imensa herança com uma alegria surpreendente e
maravilhosa.29

Por que isso é verdadeiro a respeito de cada um de nós? Simplesmente,


diz Edwards, porque estamos unidos a Cristo.
Mergulhe nessa verdade. Deixe-a inundá-lo. O Filho divino, por meio de
quem todas as coisas foram criadas (Cl 1.16), o qual sustenta “todas as
coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3), cujo cuidado e direção
constantes sustentam toda a realidade molecular (Cl 1.17), é aquele a quem
você foi unido. Não em virtude de qualquer atividade que você tenha
realizado, mas apenas pela pura e poderosa graça de Deus, você foi incluso
no triunfante e gentil governante do cosmos.
Portanto, nada que não toque nele pode tocar em você. Para chegar
a você, cada dor, cada investida e cada desapontamento têm de passar por
ele. Você está protegido por um amor invencível. Tudo que invade sua vida,
não importando quão difícil seja, vem do e por meio do cuidado amoroso
do amigo dos pecadores. Ele mesmo sente sua angústia muito mais
intensamente do que você, porque você é um com ele. Ele faz acontecer
tudo que é árduo em sua vida, já que o ama, já que você é um com ele.
Imagine-se em um círculo no qual há uma parede invisível e impenetrável
ao seu redor, uma esfera inacessível. No entanto, você não está em um
círculo, mas em uma pessoa — a pessoa. Aquele diante de quem João se
prostrou, enquanto se esforçava para encontrar palavras para descrever
alguém cujos olhos eram “como chama de fogo [...] a voz, como voz de
muitas águas” (Ap 1.14-15), tornou-se um com você. O poder do céu, o
poder que trouxe galáxias à existência, o inseriu em si mesmo.
E você está ali para ficar. Em meio às tempestades de sua breve
existência — os pecados e sofrimentos, os fracassos e as hesitações, a
perambulação e a teimosia —, ele caminhará com você até o céu. Ele não
apenas está com você; ele está em você, e você, nele. O destino dele é o seu
agora. A união dele com você, tanto no nível macro como no micro, garante
sua glória, seu descanso e sua tranquilidade no futuro. A certeza do que sua
união com Cristo significa para seu futuro final é tão incontestável quanto a
lei da gravidade.
Portanto, considere as trevas que permanecem em sua vida. A letargia
espiritual. O pecado habitual. O ressentimento arraigado. Aquela área de
sua vida em que você se sente mais derrotado. Seus pecados se avultam.
Parecem insuperáveis. Entretanto, Cristo e sua união com ele são muito
maiores. O alcance de sua união com Cristo é muito mais elevado do que o
alcance do pecado em sua vida. Por mais profundo que seja seu fracasso,
Cristo e sua união com ele são ainda muito mais profundos. Por mais forte o
pecado pareça, o vínculo de sua união com Cristo é ainda mais forte. Viva o
restante de sua vida consciente de sua união com o príncipe do céu.
Descanse no conhecimento de que seus pecados e erros não podem jamais
excluí-lo de Cristo. Permita que a consciência sempre crescente de sua
união com Cristo fortaleça sua resistência ao pecado. Veja-a na Bíblia.
Reflita sobre o incansável cuidado de Cristo por você. Você foi fortalecido
com o poder para lutar contra o pecado e vencê-lo, pois o poder que
ressuscitou Jesus dentre os mortos reside em você, vivo e ativo — o próprio
Senhor Jesus Cristo reside em você. Você jamais poderá ser acusado de
novo com justiça. “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que
estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).
Obtenha forças de sua unidade com Jesus. Você não está mais sozinho.
Não está mais isolado. Quando você pecar, não desista. Permita que ele o
levante, firme seus pés novamente e renove sua dignidade. Ele ergue seu
queixo, olha em seus olhos e define sua existência: “Vós, em mim, e eu, em
vós” (Jo 14.20).

18 Citado em Ernest F. Kevan, The grace of law: a study in Puritan theology (Grand Rapids, MI: Reformation Heritage,
1997), p. 236.
19 Tomei de Jerry Bridges essa categorização quádrupla, embora eu não me lembre do lugar exato onde a vi.
20 Jonathan Edwards, “Efficacious grace”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 21, Writings on the Trinity, grace, and
faith, ed. Sang Hyun Lee (New Haven, CT: Yale University Press, 2003), p. 251.
21 Essa expressão também poderia ser traduzida como “sua graça em mim”.
22 James S. Stewart, A man in Christ: the vital elements of St. Paul’s religion (London: Hodder and Stoughton, 1935), p. 157.
23 Para uma abordagem rigorosa e técnica na forma de livro, especificamente concentrada nas cartas de Paulo, veja Constantine
R. Campbell, Paul and union with Christ: an exegetical and theological study (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2015). O
autor fala dos quatro significados da linguagem do Novo Testamento sobre a união com Cristo.
24 Henry Scougal, The life of God in the soul of man (Fearn, Ross-shire, Scotland: Christian Focus, 1996), p. 41-42.
25 C. S. Lewis, Mere Christianity (1952; reimpr., New York: Touchstone, 1996), p. 189.
26 John Calvin, Institutes of the Christian religion, ed. John T. McNeill, trad. Ford Lewis Battles (Louisville: Westminster John
Knox, 1960), 3.1.1.
27 Até mesmo a justificação, que, no mundo evangélico, tende a ser centralizada acima de outras realidades salvadoras, acontece
somente em Cristo. “Aquele que não conheceu pecado, ele [Deus] o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça
de Deus” (2Co 5.21). Em outra passagem, Paulo fala de querer “ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo justiça própria”
(Fp 3.8-9). Em ambos os textos, o substantivo “justiça” possui a mesma raiz usada em “justificação”.
28 Adolf Deissmann, alemão erudito em Novo Testamento, descobriu e mostrou, em um estudo original, que o elemento mais
distintivo do cristianismo do Novo Testamento é o da união do crente com o Deus que ele adora (Deissmann, Die
neutestamentliche formel “in Christo Jesu” [Marburg: Elwert, 1892]).
29 Jonathan Edwards, “Miscellany ff”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 13, The “miscellanies”, a-500, ed. Thomas
A. Schafer (New Haven, CT: Yale University Press, 1994), p. 183; linguagem ligeiramente atualizada.
4 | Amor

Os três primeiros capítulos lançaram o alicerce — a plenitude de Jesus


Cristo (cap. 1), nosso vazio (cap. 2) e nossa união com Cristo (cap. 3).
Agora, começamos a ingressar na dinâmica segundo a qual os crentes
mudam de fato. Começaremos pelo amor de Deus.
Meu desafio, porém, não é convencê-lo de que Deus o ama. Você sabe
bem disso e não poderia ser cristão sem saber disso. Meu primeiro desafio é
convencê-lo de que o amor de Deus é muito maior do que, até agora, você o
tem concebido. No final de seu livro, Jó disse:
Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem. (Jó 42.5)

É dessa experiência que muitos de nós precisamos para voltarmos a


crescer na vida cristã. Se você está paralisado, se seu discipulado é não
apenas marcado por um tropeço ocasional, mas também definido por isso,
você precisa do que Jó experimentou. Você já ouviu do amor divino, mas
agora precisa vê-lo. Dedique sua vida a contemplá-lo cada vez mais
profundamente, cada vez mais extensivamente. O amor de Deus não deve
ser apenas algo de que você ouve, mas que também vê; não somente algo
que você conhece, mas que também experimenta.
O que é o amor de Deus? Fazer essa pergunta é o mesmo que indagar: o
que é Deus? A Bíblia diz não simplesmente que “Deus ama”, mas também
que “Deus é amor” (1Jo 4.8, 16). O amor, para o Deus da Bíblia, não é uma
atividade entre outras. O amor define quem ele é mais profundamente. A
realidade última não é o espaço vazio, frio e infinito. A realidade suprema é
a fonte eterna de amor interminável e inextinguível. Um amor tão grande e
tão livre que não pôde ser contido na alegria irrestrita do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, mas transbordou para criar e envolver os seres humanos
finitos e caídos. O amor divino é inerentemente propagador, envolvente,
inclusivo, transbordante. Se você é cristão, Deus o fez para que pudesse
amá-lo. Deus o incluiu no amor. Essa é a razão de sua vida. Sei que você
não sente isso, mas ele cuida mesmo disso. Deus quer que você conheça um
amor que lhe pertence mesmo quando você se considera indigno e apático.
Neste capítulo, quero dizer-lhe que o amor de Deus não é algo que
vemos e em que cremos de uma vez por todas, para, depois, avançarmos
para outras verdades ou estratégias que promoverão nosso crescimento em
Cristo. O amor de Deus é aquilo de que nos alimentamos durante toda a
vida e mergulhamos cada vez mais profundamente nesse oceano
interminável. Esse alimentar, esse mergulhar, é o que promove crescimento.
Crescemos em Cristo somente quando provamos seus braços a nos
envolver — seu abraço tenro, poderoso e irreversível que nos leva para
junto de seu divino coração.
Talvez nenhuma outra passagem nos conduza tão profundamente ao
infinito amor de Deus pelos pecadores confusos quanto Efésios 3. Deixe
Efésios 3 ser um amigo forte e cordial a guiá-lo pela mão para a realidade
mais estável, a qual se acha no centro do universo: o amor de Deus e de
Cristo.
O incognoscível amor de Cristo
Paulo não fazia as orações tépidas que, com frequência, fazemos. Ele fazia
orações do tamanho de Deus. Em uma das passagens mais espiritualmente
cruciais de toda a Bíblia, Paulo roga ao Pai
que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder,
mediante o seu Espírito no homem interior; e, assim, habite Cristo no vosso coração, pela
fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com
todos os santos, qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o
amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude
de Deus. (Ef 3.16-19)

Se tivéssemos de orar pedindo que essa realidade se fizesse presente em


nossas vidas e nossas igrejas, qual história do céu contaríamos?
Qual exatamente era o motivo da oração de Paulo? Não que os efésios
fossem mais obedientes ou frutíferos, ou que as falsas doutrinas fossem
erradicadas, ou que eles crescessem mais profundamente em conhecimento
doutrinário, ou mesmo que o Evangelho fosse propagado. Todos esses são
bons assuntos para uma oração, assuntos pelos quais devemos orar. Mas,
nessa passagem, Paulo está orando para que os efésios recebam poder
sobrenatural — não poder para realizarem milagres, ou andarem por sobre
as águas, ou converterem seus vizinhos —, mas poder do tipo que somente
o próprio Deus pode dar, poder para que eles saibam quanto Jesus os
ama. Não somente para terem o amor de Cristo, mas para conhecerem o
amor de Cristo.
Qual é o estado de sua alma hoje, ao ler este livro? Considere sua própria
vida espiritual. Pense em Cristo. Você conhece o amor dele? Lembre-se:
Paulo escreveu Efésios para uma igreja, para crentes, para pessoas que, na
conversão, de uma vez por todas, já haviam aceitado o amor de Jesus por
elas. Apesar disso, Paulo ora para que conheçam o amor de Cristo.
Aparentemente, há diferentes tipos de conhecimento do amor de Cristo. O
versículo 19 diz literalmente: “conhecer o amor de Cristo que excede o
conhecimento”. Paulo está orando para que eles conheçam o que não pode
ser conhecido. Lembre-se: “conhecer” na Bíblia não tem sentido meramente
cognitivo. Trata-se de algo profundamente relacional. Até mesmo a
intimidade sexual é descrita como um homem “conhecer” sua esposa.
Conforme Jonathan Edwards, você pode “conhecer” o mel de duas
maneiras distintas: conhecendo sua constituição química exata ou
provando-o. Ambas são maneiras pelas quais podemos “conhecer” o mel,
mas apenas a última é o conhecimento pelo qual o experimentamos.30
E aqui, em Efésios 3, Paulo está orando para que os crentes provem o
amor de Cristo, para que o sorvam. Como a visão de Jó sobre Deus, o que
Paulo pede é que nossa apreensão do amor de Cristo passe do áudio para o
vídeo. É a diferença entre contemplar um cartão-postal de uma praia do
Havaí e sentar-se em suas areias, semicerrando os olhos e absorvendo o
calor do sol.
Afeição inabalável
O que é esse amor de Cristo?
Gentileza? Certamente, não. Esse é o Cristo que reservou um tempo para
fazer um chicote e o usou para expulsar os cambistas do templo, virando as
mesas.
É uma recusa de julgar as pessoas? De modo algum. As Escrituras falam
do julgamento de Cristo como uma espada de dois gumes saindo de sua
boca (Ap 1.16; 2.12).
O amor de Cristo é seu coração de afeição resoluta e inabalável pelos
pecadores e sofredores — e somente pelos pecadores e sofredores. Quando
Jesus ama, Jesus está sendo Jesus. Ele está sendo verdadeiro para com seus
recônditos mais profundos. Ele não tem de ser incentivado para amar. Jesus
é um rio cheio de amor que se acha represado, pronto para irromper
torrencialmente sobre o mais tímido requerente. O amor é quem Jesus mais
profunda e naturalmente é. Ao falar do amor de Cristo, o puritano John
Bunyan declarou: “Nele, o amor é essencial ao seu ser. Deus é amor; Cristo
é Deus; portanto, Cristo é amor, naturalmente amor. Ele jamais deixará de
amar”.31
Observe o que o texto de Efésios 3 diz. Paulo quer que os crentes
compreendam “qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a
profundidade” (v. 18). Mas do quê? Isso não é imediatamente óbvio. O que
vemos, porém, é que Paulo prossegue e diz que deseja que os crentes
conheçam “o amor de Cristo” (v. 19). Há um paralelo entre “compreender”
e “conhecer”:
• “compreender... qual é a largura, e o comprimento, e a altura, e a
profundidade” (v. 18).
• “conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento” (v. 19).
Esse paralelo nos leva a concluir que o próprio amor de Cristo é extenso
em sua “largura, comprimento, altura e profundidade”. Isso é
impressionante porque somente uma realidade no universo é irrestrita,
infinita e ilimitada — o próprio Deus.
Paulo está dizendo que o amor de Cristo é tão extenso quanto o próprio
Deus. Podemos subestimá-lo. Sempre fazemos isso. Porém, nunca podemos
superestimá-lo. “Sendo a sua essência amor”, escreveu Jonathan Edwards,
“ele é, por assim dizer, um oceano de amor sem praias, sem fundo e, além
disso, sem superfície”.32 Diante do amor de Cristo, todo romance humano é
apenas o mais tênue sussurro.
Cheios da plenitude
À medida que esse amor se torna real para nós — não meramente algo com
que concordamos em tese, mas que é vívido para nós —, somos, de acordo
com a Bíblia, “tomados de toda a plenitude de Deus” (Ef 3.19). Com a
possível exceção de Colossenses 2.9-10 — “nele, habita, corporalmente,
toda a plenitude da Divindade. Também, nele, estais aperfeiçoados” —, essa
é, para mim, a afirmação mais formidável da Bíblia.
Quem somos nós — fracos, hesitantes, motivados por uma combinação
de coisas — para que sejamos cheios da plenitude do próprio Deus? Como
o barro pode ser cheio da plenitude do oleiro; a planta, da plenitude do
jardineiro; a casa, do arquiteto? Que condescendência impressionante! Isso
nos dignifica de maneira tão maravilhosa!
No entanto, isso não é algo que Deus condescende em fazer, como se
tivesse o desejo de fazer alguma outra coisa. Encher seu povo caído com
sua própria plenitude é o que ele se deleita em fazer. Isso está no centro, não
na periferia, daquilo que o tira da cama de manhã, por assim dizer.
E como ele faz isso? Qual é o meio pelo qual ele nos enche de sua
plenitude? A passagem nos diz: “Conhecer o amor de Cristo, que excede
todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus”.
Conhecer o amor de Cristo é o meio, enquanto ser cheio da plenitude de
Deus é o propósito.
Somos infundidos de plenitude, completude, resiliência e alegria divinas
quando experimentamos o amor de Cristo. Não saímos e atingimos a
plenitude divina. Nós a recebemos. Essa é a surpresa da vida cristã.
Ganhamos impulso em nossa vida espiritual não apenas quando vamos
trabalhar, mas na medida em que abrimos as mãos. A vida cristã é, de fato,
uma vida de labuta e labor. Quem tentar lhe dizer o contrário é um falso
mestre. Contudo, não podemos receber o que Deus tem para nos dar quando
nossos punhos estão cerrados e nossos olhos, lacrados, estando nós
concentrados em nosso próprio esforço. Precisamos abrir os punhos e os
olhos e erguê-los em direção ao céu, a fim de recebermos o amor de Cristo.
Seu coração convicto, nosso coração convicto
Por isso, o que desejo lhe dizer neste capítulo é que seu crescimento em
Cristo avançará à proporção de sua convicção, nas profundezas mais
recônditas de seu coração, de que Deus o ama e de que ele o atraiu à região
mais profunda de seu próprio coração. A afeição de Cristo pelos seus nunca
diminui, nunca se deteriora, nunca esfria. A apatia não o define. Aquilo que
mais causa medo a você apenas fortalece o desejo dele de abraçá-lo. Em
nossa mais profunda vergonha e tristeza, essa é a condição em que Cristo
mais nos ama. O antigo puritano Thomas Goodwin escreveu que “Cristo é
amor coberto de carne”.33 Esse é quem ele é.
O amor divino não é cauteloso e calculista, como o nosso. O Deus da
Bíblia é ilimitado. Quando estamos unidos a Jesus Cristo, nossos pecados
não fazem o amor dele sofrer de frustração. Embora nossos pecados nos
tornem mais miseráveis, também fazem o amor de Cristo avultar-se ainda
mais. Cada poema comovente, cada história de resgate, cada romance que
evoca anseios, cada leitura de Tolkien, Wendell Berry, John Donne e muitos
outros que fazem as lágrimas brotarem — tudo isso é um eco do amor que
está por trás de toda a história humana. Esse amor é o poder que trouxe à
existência a ordem criada e, de forma ainda mais suprema, a você, o
pináculo da criação. Ele o criou com o propósito de amá-lo. Ele o moldou
com suas mãos, para colocá-lo em seu coração.
Um dia, você estará diante dele, quieto, sem pressa, tomado de alívio e
firme sob a inundação da afeição divina, de uma maneira que nunca
seremos capazes de experimentar nesta vida. Mas, enquanto isso não
acontece, aquilo que nos sustenta neste mundo caído é esse amor e nosso
conhecimento dele. Conhecer esse amor é o que nos atrai para Deus nesta
vida. Podemos reverenciar a grandeza de Deus, mas ela não nos atrai para
ele. É sua bondade e seu amor que nos atraem.
Em outras palavras, vamos nos deleitar no amor de Deus quando
provarmos esse amor. Talvez o maior teólogo que já escreveu em língua
inglesa tenha sido o puritano John Owen. Eis o que ele disse sobre a
conexão entre nosso crescimento na graça e o amor de Deus:
Deleitar-nos-emos em Deus à exata proporção que vislumbrarmos seu amor. Qualquer outra
descoberta sobre Deus, sem isso, fará apenas a alma fugir dele; mas, se o coração for
tomado pela eminência do amor do Pai, não será capaz de escolher algo além de ser
subjugado, conquistado e fascinado por ele [...] Se o amor de um pai não faz um filho se
deleitar nele, o que, então, fará?34

Quando digo aos meus cinco filhos novos que os amo, apenas dão de
ombros e respondem: “Eu sei, papai”. Mas eles não sabem. Eles creem que
os amo, mas dificilmente o sabem. Não sou capaz de lhes dar um abraço
suficientemente apertado. Não consigo dizer isso em voz suficientemente
elevada. Não sou capaz de expressar isso com frequência suficiente. Tenho
a bendita frustração de não poder comunicar-lhes quão preciosos eles são
para mim.
Se isso é verdadeiro em nível humano, no que diz respeito a um pai
pecador, como deve ser, em nível divino, o amor de Deus, que é um Pai
gloriosamente santo?
Tendemos a pensar que corremos o risco de exagerar o amor de Deus por
nós quando o recebemos na condição de seus filhos. Então, nós, tomando
cuidado para não o exagerar, nos mantemos distantes, não querendo ser
ousados demais. E se meus filhos agissem assim em relação a mim,
mantendo-se à distância de meu amor? Isso partiria meu coração.
Não parta o coração de seu Pai. Abrace-o prontamente. Sorva-o. Permita
que o fogo santo do amor de Deus arda intensamente em sua alma. Esse é o
grande desejo de Deus.
Experimentando o amor divino
Mas como? Como podemos experimentar realmente o amor de Deus?
Como podemos abrir as passagens de nosso coração para deixar o amor de
Deus invadi-lo?
Não há um grande segredo aqui. Os cristãos têm dito a mesma verdade
por dois mil anos. Experimentamos o amor de Deus quando olhamos para
Jesus, e Deus derrama em nossa existência o Espírito Santo, que é, ele
mesmo, o amor divino. Digo que o Espírito Santo é, ele mesmo, o amor
divino porque Tito 3.5-6 diz afirma que Deus derrama em nós o Espírito
Santo, enquanto Romanos 5.5 diz que Deus derrama (mesma palavra grega)
em nós seu amor. Ambas as passagens descrevem a mesma experiência.
Quando digo “experimentar o amor de Deus”, não falo meramente de
emoções, embora nossas emoções, sem dúvida, também estejam
envolvidas. Estou falando do que os cristãos mais antigos chamavam de
“nossas afeições”. Com isso, eles se referiam ao gozo íntimo que o coração
sente, a vibração de alma que somente Deus dá, a calma jubilosa que
envolve os que olham para ele.
Quando vemos mais claramente a segunda pessoa da Trindade — quem
ele é e o que fez —, a terceira pessoa da Trindade cria em nós uma
experiência do amor divino. Assim como o sol dá tanto luz como calor,
você pode pensar no Filho como quem dá luz e no Espírito como quem dá
calor. É essa experiência que torna o pecado feio aos nossos olhos e torna
bela a retidão. É essa experiência que nos aprofunda na comunhão com
Deus. É essa experiência que desarraiga o pecado.
Vemos isso em textos como 1 Coríntios 2.12: “Ora, nós não temos
recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que
conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente”. As palavras “o
que foi dado gratuitamente” traduzem uma única palavra grega, que é a
forma verbal da palavra “graça”. O trabalho do Espírito é abrir nossos olhos
para aquilo com o que fomos agraciados, ou seja, a obra expiatória do
“Senhor da glória” (como a passagem acabou de identificá-lo; 1Co 2.8),
Jesus Cristo. Ou, como o próprio Jesus diz em João 15, o Espírito “dará
testemunho de mim” (v. 26). Retornaremos a essa obra do Espírito no
capítulo 9, mas tenho de mencioná-la brevemente aqui, ao abordar a
experiência do amor divino, visto que o Espírito é o agente por meio de
quem isso acontece.
Olhe para Cristo e veja nele o amor de Deus manifestado. Como disse
John Owen: “Exercite seus pensamentos no eterno, livre e frutífero amor do
Pai e veja se o seu coração não será levado a se deleitar nele”.35 No entanto,
em que lugar podemos olhar para Jesus, de modo que o Espírito Santo seja
novamente derramado em nossa experiência real? Em uma Bíblia, quando a
abrimos. Vemos Jesus andando pelas páginas dos evangelhos, mas, para
além disso, vemos Jesus caminhando pelas páginas de toda a Bíblia, de
Gênesis a Apocalipse; visto que toda a Bíblia possui um enredo único, o
qual trata de nossa necessidade de um Salvador e da provisão dele por parte
de Deus. Por isso, abra sua Bíblia e consiga bons livros que o ajudem a
compreendê-la. Peça a Deus que se revele mais profundamente a você. Peça
ao Pai que o conduza à clareza quanto ao Filho, de modo que você seja
aquecido pelo Espírito.
D. L. Moody, o famoso evangelista de Chicago, ficou desanimado em
seu ministério durante uma visita à cidade de Nova York. Enquanto estava
lá, Moody teve uma experiência do amor divino de tal modo que, segundo
ele próprio narrou, teve de pedir a Deus que detivesse sua mão. Bem, você
diz, ele era um grande cristão. Tratava-se de Moody, o homem que levou
milhares a Cristo! E quanto a mim, desordeiro e vacilante? Sou indigno de
amor.
A resposta a esse tipo de raciocínio é que a consciência de sua
indignidade é exatamente a razão pela qual você se qualifica para vivenciar
Efésios 3 e o amor infinito de Jesus. Se você visse a si mesmo como
amável, isso limitaria quão amado você poderia se sentir. Porém, por sua
própria natureza, o amor não depende da amabilidade do amado. Se você se
sentisse amável, poderia até se sentir, em alguma medida, amado, mas não
poderia admirar-se de quão grandemente amado você é. É precisamente a
nossa desordem interior que torna o amor de Cristo tão surpreendente, tão
chocante, tão cativante e, por isso mesmo, tão transformador.
A natureza surpreendente do amor de Deus é aquilo em que Jonathan
Edwards pensava quando pregou:
Aqueles que encontram Cristo [descobrem que], embora uma pessoa muito gloriosa e
excelente, ele está pronto para receber essas criaturas pobres, indignas e odiáveis. Isso lhes
era inesperado e os surpreende.
Eles não imaginavam que Cristo seria esse tipo de pessoa, uma pessoa cheia dessa graça.
Ouviram que ele era um Salvador santo e que odiava o pecado, mas não imaginavam que
ele estaria tão disposto a receber criaturas vis e ímpias. Pensavam que, por certo, ele nunca
se disporia a aceitar pecadores obstinados, ímpios culpados, pessoas com corações tão
abomináveis.
Todavia, mesmo em virtude disso, ele não titubeia, nem por um momento sequer, em
recebê-los. Inesperadamente, eles o encontram de braços abertos para envolvê-los, pronto a
esquecer para sempre todos os pecados deles, como se nunca tivessem existido. Descobrem
que ele, por assim dizer, corre para se encontrar com eles e os torna muito bem-vindos,
admitindo-os não somente como servos, mas também como amigos. Ele os levanta do pó e
os coloca em seu trono. Torna-os filhos de Deus e lhes fala de paz; anima e revigora o
coração deles. Admite-os em união estrita consigo e lhes dá o mais jubiloso sustento,
prendendo-se a eles como amigo para sempre.
Assim, eles ficam surpresos com o sustento que dele recebem. Nunca imaginaram que
Cristo é uma pessoa cheia desse tipo de amor e graça. Isso está além de toda imaginação e
concepção.36

Olhe para Jesus. Permita-se ser surpreendido pela forma tão espontânea e
permanente como ele o recebe. Desfrute da serenidade de alma que surge
quando o Espírito Santo volta a enchê-lo.
Obstáculos em conhecer o amor de Cristo
Mas, com frequência, isso não é tão simples assim, não é mesmo? Alguns
de nós, não importando quanto tentamos, não importando quanto da Bíblia
já lemos, consideramos a experiência do amor de Deus intangível.
Alguns de nós olhamos para a evidência de nossas vidas, conscientes da
dor que temos suportado, e não sabemos como responder, senão com
cinismo frio. “O amor de Cristo?”, indagamos. “Isso é uma piada? Você
está vivendo em outro mundo, Dane? Isso tudo parece ótimo em teoria, mas
olhe para o fracasso de minha vida. Sei, nas profundezas de minha alma,
que fui criado para ser um palácio magnífico e imponente. Porém, na
verdade, sou uma pilha de destroços em razão da forma como os outros me
têm tratado, prejudicado e vitimizado. Minha vida refuta o amor de Cristo.”
Se você tem pensamentos desse tipo quando ouve sobre o amor de
Cristo, desejo que saiba que está olhando para a vida errada. Sua vida não
refuta o amor de Cristo; sua vida prova o amor de Cristo.
No céu, o eterno Filho de Deus possuía uma magnificência própria de
um palácio, se é que algo assim já existiu. Porém, ele se tornou um homem
e, em vez de reinar com autoridade gloriosa, como se esperava do Deus que
se tornou homem, foi rejeitado e morto. Sua própria vida foi reduzida a
destroços. Por quê? Para que pudesse arrebatar a você, que é pecador, para
as profundezas de seu coração e jamais permitir que saia dali, após haver
satisfeito, com sua morte expiatória, a ira justa do Pai para com você.
Seu sofrimento não define quem você é. Jesus, sim. Você suporta a dor
involuntariamente. Ele a suportou voluntariamente por você. A dor que
você enfrenta tem a finalidade de impeli-lo a fugir na direção de Cristo e ir
até o local onde ele suportou o que você merece.
Se o próprio Jesus se mostrou disposto a fazer um percurso descendente
até o sofrimento de morte, você pode confiar tudo ao amor dele, enquanto
passa por seus próprios sofrimentos em sua jornada ascendente para o céu.
Para outros, não é tanto o que eles têm recebido das mãos de outras
pessoas, mas seu próprio pecado e sua própria insensatez que os fazem
duvidar do amor de Deus. Você é um seguidor de Jesus e continua
estragando tudo. Você se pergunta quando o reservatório do amor de Deus
vai se esgotar.
Eis o que tenho a lhe dizer: você entende como Deus trata seus filhos que
maltratam seu amor?
Ele os ama com todo o ardor.
Deus é assim. Ele é amor. É uma fonte de afeição. É incansável e
incessante em nos receber em seu amor. Em uma carta de 1948 dirigida à
sua igreja, o pastor escocês William Still escreveu: “Deus nunca se cansa de
doar. Mesmo quando não somos gratos, ele doa, e doa, e doa novamente. Às
vezes, quando outros entristecem Deus, como imaginamos, supomos que
ele os visitará, os punirá e lidará severamente com eles. Em vez disso, ele
os enche de mais provas ainda do seu amor”.37
Permita que ele o ame novamente. Levante-se do chão, deixe de sentir dó
de si mesmo e permita que o coração de Deus o mergulhe em seu amor,
mais profundamente do que nunca.
Quer a ruína de sua vida seja fruto de sua própria realização, quer seja de
outrem, quem está em Cristo nunca se afastou das cascatas do amor divino.
Deus teria de deixar de ser Deus para que esse dilúvio se esgotasse. Você
silenciou sua experiência do amor de Deus, mas não pode interromper o
fluxo desse amor, assim como uma pedrinha não pode retardar o fluxo das
Cataratas de Vitória, que têm 1.600 metros de largura e 110 metros de
altura, enquanto os milhões de litros de água do Rio Zambeze colidem com
os rochedos que estão no sul da Zâmbia.
Quer você tenha ignorado, negligenciado, desperdiçado ou
compreendido mal esse amor, quer tenha se endurecido para ele, o Senhor
Jesus Cristo se aproxima de você hoje não de braços cruzados, mas de
braços abertos, na mesma posição em que foi pendurado na cruz, e lhe diz:
Nada disso importa agora. Não pense nisso outra vez.
Tudo que importa agora somos eu e você.
Você sabe que é uma bagunça. Você é um pecador. Toda a sua existência tem
sido construída ao redor de si mesmo.
Saia dessa tempestade. Deixe seu coração se abrir amplamente para a Alegria.
Fui punido para que você não tenha de ser punido. Fui preso para que você seja
livre. Fui acusado para que você seja inocentado. Fui executado para que você
seja absolvido.
E tudo isso é apenas o começo do meu amor. Isso provou meu amor, mas não é o
final; é apenas o acesso ao meu amor.
Humilhe-se para recebê-lo.
Mergulhe sua alma ressequida no oceano do meu amor. Nele, você encontrará o
descanso, o alívio, o acolhimento e a amizade pelos quais seu coração anseia.
A categoria mais abrangente de sua vida não é seu desempenho, mas o
amor de Deus. A característica que define sua vida não é sua pureza, mas o
amor de Deus. O destino mais elevado de sua vida é aprofundar-se cada vez
mais calmamente, mas com uma intensidade sempre crescente, no infinito
amor de Deus. Crescemos espiritualmente ao iniciarmos esse projeto o
quanto antes, aqui mesmo nesta vida terrena caída.

30 Jonathan Edwards, “A divine and supernatural light”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 17, Sermons and
discourses, 1730-1733, ed. Mark Valeri (New Haven, CT: Yale University Press, 1999), p. 414.
31 John Bunyan, The saints’ knowledge of the love of Christ, em The works of John Bunyan, ed. George Offer, 3 vols.
(reimpr., Edinburgh: Banner of Truth, 1991), 2:17; ênfase original.
32 Jonathan Edwards, “The terms of prayer”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 19, Sermons and discourses, 1734-
1738, ed. M. X. Lesser (New Haven, CT: Yale University Press, 2001), p. 780.
33 Thomas Goodwin, The heart of Christ (Edinburgh: Banner of Truth, 2011), p. 61.
34 John Owen, Communion with the Triune God, ed. Kelly M. Kapic e Justin Taylor (Wheaton, IL: Crossway, 2007), p. 128.
35 Owen, Communion with the Triune God, p. 128.
36 Jonathan Edwards, “Seeking after Christ”, em The works of Jonathan Edwards, vol. 22, Sermons and discourses, 1739-
1742, ed. Harry S. Stout e Nathan O. Hatch, with Kyle P. Farley (New Haven, CT: Yale University Press, 2003), p. 290;
linguagem ligeiramente atualizada.
37 William Still, Letters of William Still: with an introductory biographical sketch, ed. Sinclair B. Ferguson (Edinburgh:
Banner of Truth, 1984), p. 35.
5 | Absolvição

Crescemos em Cristo à medida que, em vez de seguirmos em frente, nos


aprofundamos no veredicto de absolvição que nos inseriu em Cristo no
começo.
Em algumas partes da igreja, é comum pensar que a mensagem do
Evangelho nos inicia na vida cristã, mas, depois, no tocante ao crescimento
em Cristo, seguimos em frente, em busca de outras estratégias. Isso é um
erro fundamental. Nunca cresceremos verdadeiramente se nos mantivermos
nesse erro. Meu alvo neste capítulo é explicar que o evangelho não é um
hotel pelo qual passamos, mas, sim, um lar no qual devemos viver. Não
somente uma entrada para a vida cristã, mas também o caminho da vida
cristã. Não os cabos elétricos que ligaram a vida cristã, mas o motor que
mantém a vida cristã funcionando.
Poderíamos pensar da seguinte maneira: este é um livro sobre
santificação. Como podemos avançar espiritualmente? Neste livro sobre
santificação, o presente capítulo trata da justificação. A santificação é um
crescimento gradual e vitalício na graça. A justificação, porém, não é um
processo, mas um evento, um momento no tempo, o veredicto da
absolvição legal proferido de uma vez por todas. Por que, então, estamos
pensando sobre justificação em um livro sobre santificação? Eis a razão: o
processo de santificação é, em grande medida, alimentado pelo
retorno constante, cada vez de forma mais profunda, ao evento da
justificação.
A princípio, isso talvez soe estranho. Não estamos regredindo quando
buscamos crescer ao relembrar nossa justificação inicial? Não mais do que
um passageiro que, ao ser questionado pelo cobrador, mostra a passagem
que inicialmente lhe deu acesso ao trem. Essa passagem lhe deu acesso ao
trem, mas também é o que o mantém no trem.
Entretanto, sejamos mais específicos, tendo em mente que o crescimento
em Cristo é uma questão de transformação de dentro para fora, e não uma
mera conformação comportamental que visa ao aspecto exterior.
Poderíamos expressar o ensino deste capítulo em três sentenças:
1. A justificação ocorre de fora para dentro, e nós a distorcemos quando
a imaginamos como um evento que se dá de dentro para fora.
2. A santificação ocorre de dentro para fora, e nós a distorcemos quando
a imaginamos como um processo que se dá de fora para dentro.
3. A santificação, que ocorre de dentro para fora, é alimentada
principalmente pela apropriação diária da justificação, que se dá de fora
para dentro.
Justificação
Em primeiro lugar, a justificação ocorre de fora para dentro, e nós a
distorcemos quando a imaginamos como um evento que se dá de dentro
para fora.
Eis o que estou querendo dizer: a justificação é “de fora para dentro” no
sentido de que somos justificados quando nos é dada a condição de justos, a
qual vem até nós completamente de fora. A princípio, isso é estranho e
difícil para nossa mente assimilar. A própria noção de condição de uma
pessoa, isto é, a avaliação que dela se faz — se é culpada ou inocente —,
depende de seu desempenho. Contudo, no Evangelho, recebemos o que os
reformadores denominavam “justiça alheia”, uma vez que a ficha de Jesus
nos é atribuída. Naquilo que Lutero chamou de “troca feliz”, recebemos a
ficha justa de Cristo, e ele assume nosso histórico repleto de pecado. Da
mesma forma, somos tratados como inocentes, enquanto Cristo foi tratado
como culpado, levando nossa punição na cruz. Somos “justificados”, ou
seja, declarados sem falhas no que diz respeito ao nosso status legal. Apesar
de sermos a parte ofensora, apesar de não termos, em nosso favor,
argumento algum que se baseie em nossos próprios méritos, estamos livres
para deixar o tribunal. E ninguém pode voltar a nos acusar. Só podemos
receber esse veredicto justificador ao reconhecermos que não o merecemos
e ao rogarmos que a ficha de Cristo substitua a nossa.
Resistimos a isso reiteradas vezes. Aceitar esse tipo de situação fere
nossas intuições mais profundamente arraigadas a respeito de como o
mundo funciona. Resistimos a isso não meramente porque fere nosso
orgulho, embora isso seja verdadeiro. Mais profundamente, isso parece
descartar nosso senso moral sobre quem nós somos e sobre como podemos
nos sentir estáveis quanto ao nosso lugar no universo. O ensino da Bíblia
sobre a justificação pela fé parece uma vertigem moral, como se para cima
fosse para baixo, e vice-versa. Isso porque a Bíblia nos ensina a parar de
fazermos o que é nossa inclinação habitual, isto é, olhar para dentro de nós
mesmos para responder às perguntas: “Estou bem? Sou importante? Qual é
o veredicto sobre a minha vida? Estou em paz com o meu Criador?”.
Os grandes mestres do passado entendiam quão opostos somos a aceitar
a surpresa da justificação. Essa é a razão pela qual o pastor escocês Robert
Murray McCheyne disse: “A cada vez que você olhar para si mesmo, olhe
dez vezes para Cristo”.38 É a razão pela qual John Newton disse que uma
simples visão de Cristo “fará mais bem a você do que ficar absorto em suas
próprias feridas por um mês”.39 E eles estavam apenas seguindo a
orientação da Escritura: “Olhando para Jesus”, como Hebreus 12.2 diz.
Tendemos a olhar para dentro de nós mesmos para responder à maior
questão de nossa alma: “Eu já acertei a minha situação com Deus?”. É claro
que não fazemos essa pergunta de maneira tão direta. Nós nos refugiamos
na verdade da justificação — na maior parte das vezes, pelo menos —,
enquanto nossos corações encontram meios sutis de minar o que nossas
mentes confessam em teoria. Recebemos a verdade da justificação, mas a
fortalecemos gentilmente por meio de nosso desempenho, em geral sem nos
darmos conta, de forma consciente, do que estamos fazendo.
Todavia, fazer isso — ou seja, calmamente ratificar o veredicto divino de
“não culpado” quanto a nós por meio de nossa própria contribuição — é
destruir toda a doutrina da justificação e torná-la ineficaz em nossa vida
diária. Fazer isso é, em termos bíblicos, “tornar a edificar” aquilo que
destruímos (cf. Gl 2.18), e o que destruímos foi nossa justiça própria e toda
a futilidade de tentarmos estabelecê-la com base em nossos próprios
recursos. Por que “tornar a edificá-la”? Isso seria como “anul[ar] a graça de
Deus” (Gl 2.21). Fazer isso é transformar a justificação, que é uma verdade
de fora para dentro, em uma verdade de dentro para fora. Assim, se a
justificação estiver suscetível a qualquer colaboração nossa, perdemos
totalmente o consolo que ela traz. Ela tem de ser tudo ou nada.
Santificação
Em segundo lugar, a santificação ocorre de dentro para fora, e nós a
distorcemos quando a imaginamos como um processo que se dá de fora
para dentro.
Em outras palavras, nosso crescimento em piedade funciona de maneira
inversa à justificação, tanto na maneira como funciona quanto na forma
como é arruinado. Em nossa justificação, nosso veredicto de absolvição
legal tem de vir totalmente do céu até nós, depois de ter sido conquistado
por alguém que está completamente fora de nós e com quem não
contribuímos de forma alguma. Isso, porém, tem a ver com nossa
condição. Trata-se do resultado objetivo do Evangelho. A santificação, por
outro lado, implica mudança quanto à nossa maneira de andar, nossa
santidade pessoal. Trata-se do resultado subjetivo do Evangelho. Isso tem
de acontecer internamente.
E, assim como arruinamos o consolo da justificação quando a tornamos
interna, também arruinamos a realidade da santificação quando a tornamos
externa. Assim como somos tentados a fortalecer nossa justificação com a
contribuição interna, também somos tentados a fortalecer nossa santificação
com regras externas.
No entanto, o crescimento em piedade não é produzido por
conformidade com qualquer código externo — sejam os Dez Mandamentos,
sejam os mandamentos de Jesus, sejam regras autoimpostas, seja nossa
própria consciência. Isso não significa que os mandamentos das Escrituras
não sejam valiosos. Pelo contrário, eles são santos, justos e bons (Rm 7.12).
Mas os mandamentos da Bíblia são o volante de seu crescimento, e não o
motor. Eles são vitalmente instrutivos, mas, em si mesmos, não lhe dão o
poder necessário para obedecer à instrução.
Pense em como crescemos espiritualmente. Não peço à minha filha de
seis anos, Chloe, que pegue seu almoço e o esfregue em todo o seu corpo. O
que lhe digo é que coma. O alimento precisa entrar nela, e não permanecer
do lado de fora. Um dos grandes erros cometidos, geração após geração, na
história da igreja é aplicar regras ao nosso comportamento e pensar que o
comportamento externo é o que promove o crescimento espiritual ou
mesmo o que o reflete acuradamente. Esse foi o erro dos fariseus —
“limpais o exterior do copo e do prato, mas estes, por dentro, estão cheios
de rapina e intemperança” (Mt 23.25). Eles são “semelhantes aos sepulcros
caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios
de ossos de mortos e de toda imundícia” (Mt 23.27).
Ou considere uma das passagens mais chocantes do Novo Testamento.
Antes de lê-la, permita-me perguntar-lhe: o que você pensa quando ouve a
palavra piedade? Vou supor que ela não tenha a ver com o quadro que
Paulo retrata em 2 Timóteo, ao mostrar como as pessoas serão no tempo
entre a primeira e a segunda vinda de Cristo. Nessa passagem, Paulo
apresenta a mais extensa lista de vícios do Novo Testamento:
Os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores,
desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores,
sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos
dos prazeres que amigos de Deus. (2Tm 3.2-4)

São dezoito males. A lista é assustadora em sua descrição crescente da


impiedade.
Há, porém, uma décima nona característica nessa lista, uma última
descrição da ruína espiritual em relação à qual a igreja tem de se acautelar:
“Tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.5).
Tendo forma de piedade. Aparentemente, ser egoísta pode parecer
piedade. Ser avarento pode parecer piedade. Alguém pode ser cheio de
orgulho e arrogância que são apresentados, o tempo todo, como piedade.
Uma pessoa pode ser ingrata, impura, insensível e desagradável; contudo,
para quem a observa do lado de fora, isso talvez pareça piedade.
A verdadeira santificação — o verdadeiro crescimento em santidade — é
interna. Ela se manifestará no exterior: “Pelo fruto se conhece a árvore”
(Mt 12.33). Edward Fisher, em seu famoso tratado puritano sobre a
santificação, explicou que a conformação exterior a regras sem uma
realidade interior que a nutra é o mesmo que regar toda parte de uma
árvore, exceto suas raízes, esperando que ela cresça.40 A realidade interior
do cristão é o que define o verdadeiro crescimento em Cristo.
Santificação por justificação
Em terceiro lugar, a santificação, que ocorre de dentro para fora, é
alimentada principalmente pela apropriação diária da justificação, que se dá
de fora para dentro.
O veredicto de fora para dentro nutre o processo de dentro para fora.
Você não pode forçar seu caminho para a mudança. Pode apenas ser
moldado. Meditar sobre a maravilha do Evangelho — sobre a verdade de
que somos justificados por olharmos não para nós mesmos, mas para a obra
consumada de Cristo em nosso favor — enternece nosso coração. O labor
da santificação se torna maravilhosamente calmo. O Evangelho é o que nos
muda, e somente ele pode nos mudar, já que ele nos diz o que é verdadeiro
a nosso respeito, antes que comecemos a mudar — e não importa quão
lentamente a mudança ocorra. (Ao dizer isso, não pretendo destruir tudo
que o Evangelho diz sobre justificação; o Evangelho é mais amplo do que
justificação e inclui outras doutrinas gloriosas, como adoção, reconciliação,
redenção e assim por diante. Porém, a justificação é o gume mais afiado do
Evangelho, pois é a doutrina na qual a autêntica gratuidade da graça do
Evangelho é exibida com mais clareza.)
Pensamos intuitivamente que o caminho para o crescimento é ouvir
exortação. Isso é normal e natural para a mente humana. A exortação, de
fato, ocupa um lugar importante. Precisamos dela. Não seríamos cristãos
maduros se nunca pudéssemos ouvir os desafios e os mandamentos da
Escritura. A Bíblia, no entanto, ensina que o crescimento espiritual saudável
acontece somente quando esses mandamentos são dados aos que sabem que
são aceitos e estão seguros, independentemente do grau de seu êxito na
obediência. Em outras palavras e em harmonia com o argumento mais
amplo deste livro, crescemos quando nos aprofundamos na justificação
que nos perdoou no princípio da vida cristã.
Eis como o historiador eclesiástico e teólogo do avivamento Richard
Lovelace expressou isso em sua obra clássica sobre a renovação espiritual:
Boa parte do que consideramos um defeito na santificação das pessoas da igreja é realmente
a consequência de sua perda de perspectiva a respeito da justificação. Os cristãos que não
estão mais certos de que Deus os ama e os aceita em Jesus, a despeito de suas atuais
realizações espirituais, são pessoas radicalmente inseguras em seu subconsciente — muito
menos seguras do que os não cristãos, pois têm muita luz, de forma que descansar
tranquilamente se torna difícil para elas. Elas estão expostas a incessantes boletins que
recebem de seu ambiente cristão sobre a santidade de Deus e a justiça que deveriam ter.41

Essa necessidade de retornarmos constantemente à liberdade da doutrina


da justificação tem de ser enfatizada porque a Queda nos capacita a fazer
justamente o oposto. Nosso coração caído é propenso a examinar nosso
estado de justificação com base na forma como nossa santificação está indo.
Entretanto, crescemos em Cristo quando colocamos nossa santificação sob
a luz de nossa justificação. O antigo pastor inglês Thomas Adam, que
serviu a uma única igreja por 58 anos, refletiu sobre essa verdade em seu
diário, que foi publicado em 1814, depois de sua morte. Ele a designou
“santificação por justificação”: “A justificação por santificação é o caminho
do homem para o céu [...] A santificação por justificação é o caminho de
Deus”.42
De fato, poderíamos apresentar aqui muitos pensadores que, nos
corredores da história da Igreja, ensinaram que avançaremos na vida cristã
não por deixarmos no passado a verdade que inicialmente nos perdoou.
Martinho Lutero definiu a santificação progressiva como “a doutrina da
piedade que é causada pela justificação do coração”.43 Francisco Turretini
ensinava que a “própria justificação (que traz a remissão dos pecados) não
traz consigo permissão ou licença para pecarmos (como sustentavam os
epicureus), mas deve acender o desejo por piedade e a prática da santidade
[...] Portanto, a justificação está relacionada à santificação como o meio ao
fim”.44 Thomas Chalmers pregou de forma esplêndida: “Quanto mais livre
for o Evangelho, mais santificador ele será; quanto mais ele for recebido
como uma doutrina da graça, mais será sentido como uma doutrina segundo
a piedade”.45 Em sua obra clássica sobre a união com Cristo, James Stewart
escreveu: “É o próprio veredicto justificador de Deus que santifica [...] É
exatamente porque Deus não espera nenhuma garantia, mas perdoa por
completo [...], que o perdão regenera, enquanto a justificação santifica”.46 O
vigoroso reformado Herman Bavinck assim definiu a fé verdadeira:
Um conhecimento prático da graça que Deus revelou em Cristo, uma confiança sincera em
que ele perdoou todos os nossos pecados e nos aceitou como seus filhos. Por essa razão,
essa fé não apenas é necessária no começo da justificação, como também deve acompanhar
o cristão durante toda a sua vida e desempenhar um papel insubstituível e permanente na
santificação.47

O teólogo holandês G. C. Berkouwer argumenta, repetidas vezes, em


todo o seu estudo sobre a santificação, que “o âmago da santificação é a
vida que se alimenta da... justificação”.48
Poderíamos também examinar as grandes confissões reformadas para
encontrarmos um comentário semelhante. A Confissão Belga assevera que,
“longe de tornar uma pessoa indiferente a viver de maneira piedosa e santa,
essa fé justificadora, muito pelo contrário, opera neles a verdade de que,
sem ela, jamais farão coisa alguma por amor a Deus, mas somente por amor
a si mesmos e por medo de serem condenados” (artigo 24). Os Cânones de
Dort falam da maneira como Deus preserva seu povo: “Assim como
aprouve a Deus iniciar sua obra da graça em nós pela proclamação do
Evangelho, também ele preserva, continua e completa sua obra ao ouvirmos
e lermos o Evangelho, assim como quando meditamos nele” (5.14).
No entanto, o árbitro final em tudo isso não é nenhum personagem
histórico ou credo, mas a Escritura. O exemplo mais admirável de como a
liberdade de nossa salvação nos transforma está em Gálatas 2.
Justificação e temor
Qual é a lógica intrínseca segundo a qual um veredicto de absolvição nos
muda de dentro para fora? O texto bíblico diz:
Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tornara
repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os
gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-se, temendo os da
circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio
Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não
procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de
todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a
viverem como judeus?
Nós, judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabendo, contudo, que o
homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Cristo Jesus, também
temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por
obras da lei, pois, por obras da lei, ninguém será justificado (Gl 2.11-16).

Muito poderia ser extraído dessa fascinante interação entre Paulo e


Pedro. Quero fazer apenas uma observação. Por que Paulo associou um
conflito interno da igreja à doutrina da justificação?
Tendemos a pensar na justificação pela fé como uma verdade-chave que
nos introduz na vida cristã. Por que Paulo foi à sua caixa de ferramentas
teológicas e pegou essa doutrina para reparar um problema entre aqueles
que já eram crentes? Aqui, temos Paulo, um crente, escrevendo para os
gálatas, que eram crentes, sobre um acontecimento que envolveu Pedro, um
crente, por causa de seu afastamento dos crentes gentios, quando alguns
crentes de formação judaica chegaram da parte de Tiago. É aqui, nesse
conflito interno da igreja, e não em um discurso evangelístico em Atos, que
temos o mais famoso versículo bíblico a respeito da justificação (Gl 2.16).
Por que a justificação? Por que Paulo não falou sobre a santificação? Ou
sobre o Espírito Santo? Ou sobre a necessidade de amor?
Por que Paulo disse que a atitude de Pedro e de Barnabé ao se afastarem
dos cristãos gentios não se deu “segundo a verdade do evangelho” (v. 14)?
Por que Paulo não disse que eles não estavam andando “no Espírito” e que
sua “conduta não se harmonizava com o crescimento que deveriam
cultivar”? E esse não é um exemplo bíblico isolado. Em todo o Novo
Testamento, os apóstolos insistiram em aplicar o Evangelho à vida dos
crentes. Paulo disse aos cristãos romanos: “Estou pronto a anunciar o
evangelho também a vós outros” (Rm 1.15). Ele exortou os cristãos de
Colossos a viverem “alicerçados e firmes, não vos deixando afastar da
esperança do evangelho” (Cl 1.23), além de ter lembrado aos crentes de
Corinto que deveriam perseverar no Evangelho e retê-lo (1Co 15.1-2).
Parece que os apóstolos consideravam o Evangelho não uma vacina de dose
única que nos poupa do inferno, mas um alimento que nos sustenta em todo
o caminho para o céu.
A chave para entender o que estava acontecendo entre os cristãos da
Galácia é inserida no próprio final de Gálatas 2.12: “temendo os da
circuncisão”. O medo era a dinâmica em curso quando os crentes da parte
de Tiago chegaram de Jerusalém, ocasionando que Pedro e Barnabé
parassem de ter refeições com os crentes não judeus. Essa era a realidade
que fervilhava por trás das ações de Pedro.
Medo de quê? Não de perseguição. Lembre-se: todos os presentes eram
seguidores de Cristo. Levando em conta o escopo de todo o livro de
Gálatas, Pedro deve ter ficado com medo de perder o mesmo que Paulo
disse, no capítulo 1, não ter medo de perder: “Procuro eu, agora, o favor dos
homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a
homens, não seria servo de Cristo” (1.10). Pedro teve medo de perder a
aprovação das pessoas.
Esse era um defeito concernente a seu crescimento contínuo na graça.
Pedro era um seguidor de Cristo havia muitos anos. Seu problema era de
santificação. Mesmo assim, Paulo aplicou a justificação a esse problema.
Ele abriu a ferida de Pedro com a doutrina cirúrgica da justificação pela fé.
Paulo foi à raiz e identificou a conduta de Pedro como desarmônica em
relação ao Evangelho (2.14) e oposta à doutrina da justificação pela fé
(2.16), porque Pedro havia permitido que a aprovação das pessoas
erodisse sua compreensão da aprovação que o Evangelho
proporciona e do status inalterável que a justificação provê.
Na conversão, entendemos o Evangelho pela primeira vez e sentimos o
imenso alívio de sermos perdoados de nossos pecados e de recebermos um
novo status na família de Deus. Aprendemos, pela primeira vez, que somos
legalmente absolvidos, inocentes, livres para deixar o tribunal. Mas, na
alma dos cristãos, permanecem regiões que continuam a resistir à graça do
Evangelho, sem que sequer as notemos. Um dos aspectos vitais do
crescimento em Cristo é retornar, de vez em quando, à doutrina da
justificação para fazer a quimioterapia nos remanescentes tumores malignos
de nosso anelo por aprovação humana. Em outras palavras, na conversão
saímos do tribunal, mas, durante toda a nossa vida de discipulado,
sofremos de amnésia evangélica, de forma que continuamos a voltar ao
tribunal.
Em agosto de 2013, um jornal nigeriano publicou uma história que
continha um relato do que exatamente todos somos propensos a fazer:
Um presidiário protagonizou uma verdadeira farsa no Tribunal Federal de Owerri, depois
que um juiz o absolveu de todas as acusações. Porém, ele recusou a liberdade e exigiu
retornar à prisão. Em vez da alegria costumeira que se segue a qualquer sentença de
inocentação e absolvição, o presidiário em questão se encaminhou diretamente para o
presídio, sendo interceptado por um guarda, o qual o lembrou de que era livre e podia ir
para casa. Para a decepção dos presentes, ele disse que não ia a lugar algum, exigindo que
lhe fosse permitido reingressar na prisão.
O que parecia um drama se tornou absurdo quando a tranquilidade das instalações do
tribunal foi abalada pelos gritos e apelos do prisioneiro livre, o qual pedia que lhe fosse
permitido retornar à prisão, enquanto se debatia e lutava com várias autoridades da prisão.
De acordo com testemunhas oculares, foi necessário o esforço de mais de seis agentes,
funcionários da corte e policiais a fim de levarem o presidiário para fora do tribunal.49

Essa é uma metáfora de todos nós. Somos livres, mas encontramos


maneiras sutis de retornar à prisão da condição que nós mesmos
estabelecemos diante do tribunal divino. Cristãos saudáveis se disciplinam
para nunca cessarem de apertar a tecla “recarregar” na URL de seu status
definitivo, o veredicto da absolvição final. Fomos “aprovados por Deus”
(1Ts 2.4).
Compreendemos por que nosso estado de ânimo é tão frequentemente
ditado pela forma como as pessoas reagem a nosso respeito? Por que nos
sentimos tão inquietos quanto às notas na escola, ou acerca da opinião
alheia sobre nosso trabalho, ou do que nossos parentes pensarão a respeito
de nosso lar e de nossos filhos? Por que há aquela ansiedade pervasiva e de
pavio bem comprido queimando dentro de nós sempre que estamos
presentes em reuniões sociais? Entendo que, para alguns de nós, pode haver
fatores psicológicos envolvidos. Por isso, não devemos ser tão simplistas
aqui. Mas, em geral, o problema-raiz é que nos temos permitido, de uma
forma imperceptível, que nos desviemos de uma compreensão profunda da
doutrina da justificação. O medo surge em nosso horizonte mental quando
Gálatas 2.16 se esvanece. Temos de compreender que o Evangelho é não
apenas a porta de entrada para a vida cristã, mas também a sala de estar
dela. A justificação não é uma vela de ignição que inflama a vida cristã,
mas um motor que lhe dá poder ao longo de toda a viagem. Poucos de nós
testemunhariam que já nos sentimos tentados a comer de acordo com as
regulações dietéticas judaicas, a chamada kashrut, mas todos nós que
conhecemos nosso próprio coração sabemos exatamente o que Pedro sentia
em seu desejo de reter a aprovação dos outros e em seu medo de perdê-la.
O que todos tendemos a fazer é passar a vida acumulando o senso de
quem somos a partir de um agregado do que pensamos que todos os outros
pensam sobre nós. Seguimos a vida construindo um senso de ego por meio
de todas as opiniões que chegam até nós. Nem mesmo percebemos que
fazemos isso. Quando os outros são críticos, ou nos humilham, ou nos
ignoram, ou nos ridiculizam, isso constrói nosso senso de quem somos e,
inevitavelmente, nos molda. É por isso que temos de manter
constantemente o Evangelho diante de nossos olhos. Quando o Evangelho
se torna real para nós, a necessidade de aprovação humana perde sua força
como que de vício em nosso coração, porque não mais colocamos a cabeça
no travesseiro à noite tratando nosso senso de dignidade com o remédio da
aprovação humana. A doutrina da justificação nos liberta não somente do
julgamento de Deus no futuro, mas também do julgamento das pessoas no
presente.
Ora, o que estou tentando dizer neste capítulo sobre “absolvição” é que,
se anelamos pelo crescimento em Cristo, não ousamos fazer o que é tão
natural para nós, a saber, dizermos que cremos que o veredicto a respeito
de nossa vida está estabelecido definitivamente em nosso status de
justificados diante de Deus, mas, depois, avançarmos para outras ideias e
estratégias no que diz respeito à nossa vida emocional e às pressões diárias.
Se fizermos isso, nossa vida ficará repleta de medo. Seremos paralisados
pela ansiedade, pois temeremos que nosso deus funcional, em vez de nos
justificar, nos condene, caso o decepcionemos. Tememos não ser bem-
sucedidos em uma tarefa, ou não impressionar alguém que respeitamos, ou
estragar um encontro, ou fracassar em um teste, ou errar o alvo.
Fantasiamos quanto a sermos bem-sucedidos nessas situações da vida real e
temos pesadelos com nosso fracasso. Por quê? Porque tratamos o
Evangelho como a ignição, e não como a realidade sustentadora de nossa
vida interior. Não estamos andando “segundo a verdade do evangelho”. Não
temos permitido que a natureza radioativa da doutrina da justificação pela
fé destrua nossa necessidade patogênica de aprovação humana. Sentindo
nossa própria insuficiência, estabelecemos nossas carreiras, nossos
relacionamentos, nossos estudos, nossos discursos públicos, nossas
habilidades atléticas como deuses funcionais para os quais olhamos em
busca de justificação, a fim de sabermos que estamos bem.
Contudo, e se fôssemos à entrevista, à conversa, à sala de aula, ao jogo
com a certeza de que já estamos bem? Já fomos justificados — não apenas
teologicamente, mas também emocionalmente. Não apenas em nossa
mente, mas também em nossa coragem. Seríamos transtornadores do
mundo. Em 1925, de forma comovente, o falecido teólogo presbiteriano J.
Gresham Machen disse:
Não tenho vergonha de falar, mesmo neste tempo e nesta geração, sobre a “doutrina da
justificação pela fé”. Não se deve supor, porém, que essa doutrina seja obscura. Pelo
contrário, ela está [...] imbuída de vida. É uma resposta à maior pergunta pessoal já feita por
uma alma humana: “Como poderei me acertar com Deus? Como estou aos olhos de Deus?
Com que favor ele olha para mim?”.
Temos de admitir que existem aqueles que nunca fazem essa pergunta; existem aqueles
que estão preocupados com a sua situação diante dos homens, mas nunca com a sua
situação diante de Deus; existem aqueles que estão interessados no que “as pessoas dizem”,
mas não no que Deus diz. Esses homens, porém, não são os que movem o mundo. Eles
tendem a seguir a correnteza. Inclinam-se a fazer o mesmo que outros. Não são os heróis
que mudam o destino da raça.50

Justificação e idolatria
Aquilo sobre o que realmente temos falado é a idolatria, que é o reverso da
justificação pela fé. A aprovação humana é um ídolo comum, mas olhamos
para muitos falsos deuses em busca desse veredicto final, a fim de nos
certificarmos de que estamos bem e somos importantes e de termos essa
visão enganosa da alma. Eis algumas perguntas diagnósticas que expõem
nossos ídolos:
• Para onde minha mente tende a vaguear quando estou deitado e
acordado na cama?
• Em que costumo gastar minha renda disponível?
• O que me inclino a invejar em outras pessoas?
• Qual é a única coisa que, se Deus aparecesse para mim hoje e dissesse
que eu nunca a teria, faria minha vida parecer sem sentido?
• Se sou casado, a que meu cônjuge diria que sou propenso a me
entregar, fazendo-o sentir-se negligenciado?
• Como meu coração — não minha teologia, mas meu coração —
frasearia o hino “Se _____, sou feliz com Jesus”?
• Há alguma coisa pela qual me pego orando e que não é prometida em
passagem alguma da Bíblia?
De maneira alguma, essas perguntas revelam necessariamente os ídolos
em nosso coração. No entanto, elas têm o propósito de ajudar a trazer à luz
o que pode estar competindo pela lealdade mais profunda de nosso coração
e substituindo silenciosamente Cristo e o consolo abrangente do Evangelho.
A idolatria é a insensatez de pedir uma dádiva para ser um doador.
Este é o ensino que desejo enfatizar: essas são questões
relacionadas à justificação. Idolatria é simplesmente pseudojustificação.
É pedir à criatura, e não ao Criador, que dê o veredicto a meu respeito. Nós
pensamos: “se eu chegar a esse ponto, conseguirei o que quero; depois,
poderei lidar com qualquer coisa”. O problema é que, diferentemente do
Evangelho, os ídolos alimentam uma “coceira” insaciável. Quanto mais nos
coçamos, mais a coceira se propaga. Perseguir o ídolo faz com que ele
continue se movendo para mais longe de nosso alcance. Naquele raro caso
em que, de fato, alcançamos o ídolo pelo qual anelamos, ficamos admirados
ao constatarmos quão vazio e superficial ele é. Todas essas
pseudojustificações do mundo são brilhantes do lado de fora, mas trazem
apenas miséria quando as alcançamos. Elas são como iscas: quando
mordidas, trazem apenas sofrimento.
Qualquer pessoa que esteja remotamente em contato com a realidade
anda neste mundo acuradamente cônscio da profunda insuficiência em seu
interior, o senso de não estar à altura. Costumamos curar esse profundo e
incômodo senso de insuficiência por meio de uma conta bancária gorda, um
rosto perfeito, um corpo escultural, um grande número de seguidores nas
redes sociais, uma boa reputação, um cônjuge bonito, amigos famosos, um
senso de humor apurado, uma inteligência vistosa, manobras e vitórias
políticas, façanhas sexuais e até mesmo um histórico moral de integridade.
Sentimos nossa nudez e procuramos ser “vestidos” com essas realizações.
Buscamos ser justificados por essas coisas. Assim como os gálatas
afirmavam Cristo como seu Salvador, mas acabaram por incorporar
discretamente a circuncisão como um aprimoramento da justificação,
esvaziando o Evangelho de seu poder, também afirmamos Cristo como
nosso Salvador, mas incorporamos discretamente nosso ídolo favorito, de
maneira que esvaziamos o Evangelho de seu poder.
Todo ídolo é criação do homem. Toda falsa justificação é gerada por nós.
Mas o próprio Deus veio até nós, trazendo-nos uma justificação de sua
própria feitura. Trata-se do veredicto expiatório de Jesus Cristo. Podemos
apenas recebê-lo. Fazer um acréscimo a esse veredicto é, portanto, diminuí-
lo. Nós o recebemos simplesmente com uma postura sincera de fé
confiante. Assim, Deus nos justifica — o próprio Deus. Nossa condição,
nosso histórico, nossa identidade e nossa importância não estão mais em
nossas mãos, nem mesmo um pouco.
Foi Martinho Lutero quem abriu meus olhos para isso. Mais de uma vez
em seus escritos, ele ressalta que o primeiro dos Dez Mandamentos é a
proibição da idolatria: “Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20.3).
Lutero explica que o primeiro mandamento é, em essência, um chamado à
justificação pela fé, ou seja, à justificação feita por Deus. Negativamente,
devemos evitar a idolatria. Positivamente, devemos crer em Deus. Afinal de
contas, um ídolo não é apenas uma questão do que adoramos, mas, ainda
mais profundamente, uma questão daquilo em que cremos (Sl 115.4-8).
Por consequência, não há quebra do segundo ao décimo mandamento sem,
ao mesmo tempo, haver a quebra do primeiro. Cometer adultério é quebrar
o primeiro e o sétimo mandamentos, visto que trair é fazer do sexo um ídolo
em que cremos para nos satisfazer e completar. Dessa forma, não deixamos
nossa existência, nossa justificação, nas mãos de Deus. Roubar é violar o
primeiro e o oitavo mandamentos, pois deixamos de descansar na provisão
de Deus quanto às finanças. Demonstramos, assim, que não exercemos fé
somente nele. E assim por diante.51
Viva sua vida na plenitude de sua existência justificada. Honre o
primeiro mandamento. Não seja um idólatra. Permita que Jesus Cristo o
vista, dignifique e justifique. Ninguém mais é capaz disso.
Três últimos retratos
Tudo que eu disse neste capítulo foi razoavelmente teórico. Por isso,
gostaria de concluí-lo mostrando de que forma a verdade que exploramos
aqui foi experimentada de maneira profundamente pessoal por três
personagens da história: Martinho Lutero (1483–1546), C. S. Lewis (1898–
1963) e Francis Schaeffer (1912–1984).
Já mencionei Lutero algumas vezes neste capítulo, e você pode
facilmente aterrissar em qualquer parte de seus escritos, começar a ler e,
sem demora, vê-lo exaltando os consolos do Evangelho — em especial, a
justificação — como ingredientes vitais para a vida e o crescimento cristão.
Lutero viveu o começo de sua juventude como monge, orando, fazendo
obra serviçal, buscando simplicidade, aspirando a esfregar sua consciência
até deixá-la limpa, enquanto também esfregava os assoalhos do monastério
para deixá-los limpos. Ele não conseguiu. Ninguém consegue. A
consciência está insatisfatoriamente necessitada do veredicto de plena
absolvição, uma absolvição que se dê com base na obra consumada de
Cristo e seja recebida pelas mãos vazias e ávidas da fé, sem qualquer
contribuição humana.
Foi pelo estudo do Novo Testamento que o Evangelho se abriu para
Lutero. Ele compreendeu o poderoso reflexo de buscar a justificação por
meio das obras de justiça que o coração humano possui. Ele percebeu, com
notável perspicácia, que todas as pessoas são predispostas a buscar, por
meio de suas realizações, o fortalecimento do favor de Deus e que, por isso
mesmo, não é somente de nossa malignidade que temos de nos arrepender,
mas também de nossa bondade. Lutero considerou essa sutil e, ao mesmo
tempo, profunda insistência em contribuirmos para nossa posição diante de
Deus como uma atitude oposta à sua Bíblia, embora arraigada dentro dele
mesmo e endossada pela Igreja Católica Romana.
Por exemplo, ao pregar sobre João 14.6 (“Eu sou o caminho”), Lutero
disse:
Cristo é não somente o caminho pelo qual temos de começar nossa jornada; ele é também o
caminho certo e seguro no qual temos de andar até o fim. Não ousamos nos desviar desse
caminho [...] Aqui Cristo quer dizer: “Quando você me apreende com fé, está no caminho
certo, que é confiável. Mas cuide para permanecer e continuar nele”. [...] Cristo quer
arrancar e afastar de nosso coração toda a confiança em qualquer outra coisa e nos fixar
apenas nele mesmo.52

Entretanto, foi especialmente em seu comentário sobre Gálatas que


Lutero discerniu e ensinou essa necessidade de permanecermos fixos na
liberdade do Evangelho durante toda a vida. Em um comentário
emblemático sobre Gálatas 1.6 (“Admira-me que estejais passando tão
depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo para outro
evangelho”), Lutero disse:
O assunto da justificação é instável — não em si mesmo, porque é bastante certo e seguro,
mas em nós, dentro de nós. Eu mesmo tenho experimentado isso, pois, às vezes, luto com
momentos de trevas. Sei quão frequente e repentinamente perco os raios do Evangelho e da
graça. É como se densas nuvens de trevas os obscurecessem para mim. Por isso, sei do lugar
escorregadio em que nos encontramos, ainda que sejamos experimentados e pareçamos
estar bem seguros nas questões de fé [...] Portanto, toda pessoa fiel deve trabalhar com
empenho para aprender e reter essa doutrina; e, para esse fim, devemos orar com humildade
e sinceridade, além de meditar continuamente na Palavra.53

Muito menos conhecido é o despertamento para o Evangelho que C. S.


Lewis experimentou já em sua maturidade. Muitos de nós sabemos de sua
famosa conversão, de suas profundas realizações literárias, de sua extensa
correspondência e reuniões com os colegas de seu grupo de discussão
literária, de seu anglicanismo de Alta Igreja54 e de seu breve casamento.
Todavia, será que também sabemos que a realidade do perdão do Evangelho
o alcançou de uma forma decisiva e permanentemente transformadora?
Isso aconteceu em 25 de abril de 1951. Mais tarde, naquele mesmo ano,
Lewis escreveu uma carta para o sacerdote italiano que iniciara uma troca
de correspondências com ele, o qual havia lido uma tradução italiana de sua
obra Cartas de um diabo a seu aprendiz. Como não sabia inglês,
escreveu-lhe em latim uma carta de apreciação. Lewis, proficiente nesse
idioma, recebeu a carta e respondeu-a, também em latim. Dessa maneira, os
dois desfrutaram de uma troca de correspondências por vários anos. Em
dezembro de 1951, Lewis escreveu para esse sacerdote:
Ao longo do ano passado, uma grande alegria me sobreveio. Embora seja difícil, tentarei
explicar isso em palavras. É surpreendente que, às vezes, cremos que cremos naquilo que,
em nosso coração, não cremos realmente.
Por muito tempo, pensava que cria no perdão dos pecados. Mas, de repente (no dia de
São Marcos), essa verdade apareceu tão claramente em minha mente que percebi que nunca
(mesmo depois de muitas confissões e absolvições) tinha crido nela de todo o coração.
É enorme a diferença entre uma mera afirmação intelectual e a fé que se acha fixada no
exato cerne, como se fosse palpável, a qual, segundo escreveu o apóstolo, era a substância.
Talvez eu tenha sido agraciado com esse livramento em resposta às suas intercessões em
meu favor!
Isso me encoraja a lhe dizer algo que um leigo certamente não deveria dizer a um
sacerdote, nem um novato a um ancião. (Por outro lado, da boca de criancinhas; de fato,
como aconteceu a Balaão, da boca de uma jumenta!) É isto: você escreve demais acerca
de seus próprios pecados. Acautele-se (permita-me, meu querido padre, dizer isso), para que
a humildade não se transforme em ansiedade e tristeza. Somos ordenados a “alegrar-nos e
alegrar-nos sempre”. Jesus cancelou o escrito de dívida que era conta nós. Elevemos nosso
coração!55

Esse é um relato impressionante que lemos de Lewis, especialmente


porque ele tinha 53 anos. Alguém poderia questionar se esse não foi nada
além de um período momentâneo de renovada apreciação do Evangelho.
Entretanto, uma leitura mais atenta de todo o volume das cartas que ele
escreveu ao longo desses anos revela que esse foi um momento definidor
em sua vida, porque, em suas cartas, ele retorna a essa experiência, mesmo
depois de vários anos.
Em 1954, por exemplo, ele escreveu a uma “Sra. Jessup” sobre essa sua
experiência de 1951 e a retratou como uma mudança revolucionária, “da
mera aceitação intelectual para a compreensão da doutrina de que nossos
pecados são perdoados. Isso talvez seja a coisa mais bendita que já me
aconteceu. Conhecem pouco do cristianismo aqueles cuja história termina
com a conversão”.56
Em 1956, em uma carta endereçada a Mary Van Deusen, ele refletiu
sobre o Evangelho, dizendo: “Eu havia assentido com a doutrina anos
antes e afirmava que cria nela. Depois, num dia bendito, de repente ela se
tornou real para mim e fez o que eu anteriormente chamava de ‘crença’
parecer algo totalmente irreal”.57
Em 1958, escrevendo para Mary Shelburne, ele declarou: “Já era cristão
muitos anos antes de crer realmente no perdão dos pecados ou, mais
estritamente, antes de minha crença teórica se tornar realidade para mim”.58
Ele lhe escreveu novamente no ano seguinte e respondeu a um comentário
que ela fizera sobre o difícil sentimento de que não somos dignos de ser
perdoados:
Você certamente não quer dizer: “sentindo que não somos dignos de ser perdoados”; visto
que, por certo, não somos. O perdão é, por sua própria natureza, para os indignos. Você quer
dizer: “sentindo que não somos perdoados”. Conheço bem isso. Durante muitos anos, eu
“cria” teoricamente no perdão divino, muito antes de ele se tornar real para mim. Quando
ele finalmente se torna real, é, de fato, um momento maravilhoso.59

Tudo isso é extraordinário por duas razões. Em primeiro lugar, Lewis


tinha apenas mais doze anos de vida quando passou por essa experiência,
em 1951. Ele já tinha escrito a maior parte de seus livros. Mas foi a essa
altura que o perdão dos pecados se tornou claro e compreensível para ele.
Em segundo lugar, Lewis retornou a essa experiência repetidas vezes em
sua vida. Não era uma doutrina de importância transitória; isso realmente
marcou a vida de Lewis.
Francis Schaeffer, depois de sua conversão, teve uma experiência de
descoberta do Evangelho semelhante a essa, embora, em seu caso, isso se
tenha tornado o ponto de mudança de sua vida e de seu ministério. A
experiência de Schaeffer, à semelhança da de Lewis, aconteceu em 1951,
embora o pensador norte-americano fosse um pouco mais jovem na época
(39 anos). Ele e sua esposa, Edith, moravam na Suíça. Ele assim descreve o
que aconteceu:
Enfrentei uma crise espiritual em minha própria vida. Eu me tornara um cristão, proveniente
do agnosticismo, muitos anos antes. Depois disso, servi como pastor por dez anos nos
Estados Unidos. Posteriormente, por vários anos, eu e minha esposa, Edith, começamos a
trabalhar na Europa. Durante todo esse tempo, senti um forte dever de sustentar a posição
cristã histórica e a pureza da Igreja. Gradualmente, porém, um problema me sobreveio — o
problema da realidade. Ele apresentava duas partes: em primeiro lugar, parecia-me que,
entre muitos dos que sustentavam a posição ortodoxa, via-se pouca realidade nas coisas que
a Bíblia diz tão claramente ser o resultado do cristianismo. Em segundo lugar, aos poucos,
foi crescendo em mim a sensação de que minha realidade era menos do que fora nos
primeiros dias após me tornar cristão. Percebi que, honestamente, eu tinha de voltar e
considerar de novo toda a minha posição.
Na época, morávamos em Champéry, e eu disse a Edith que, por honestidade, tinha de
reconsiderar meu agnosticismo e refletir sobre toda a questão. Estou certo de que ela orou
muito por mim naqueles dias. Quando o céu estava claro, eu caminhava pelas montanhas,
enquanto, nos dias chuvosos, andava de um lado para o outro no palheiro do velho chalé em
que residíamos. Andei, orei e refleti muito sobre o que as Escrituras ensinavam, revendo
minhas próprias razões para ser cristão...
Investiguei o que a Bíblia diz sobre a realidade de um cristão. Gradualmente, dei-me
conta de que o problema era que, em todo o ensino que eu havia recebido depois de me
tornar cristão, ouvi muito pouco acerca do que a Bíblia diz sobre a obra consumada de
Cristo para nossa vida presente. Pouco a pouco, a luz resplandeceu, e o canto brotou. De
forma bem interessante, embora eu não tivesse escrito nenhuma poesia por muitos anos,
naquele tempo de alegria e canto, vi a poesia voltar a fluir.60

Schaeffer ficara estagnado. Sua alegria ressecara, e ele estava


questionando a viabilidade do cristianismo em um nível fundamental. O que
o fez superar a situação? Revisitar o Evangelho — o Evangelho simples e
justificador, o qual diz que somos absolvidos de nossa culpa de uma vez por
todas exclusivamente com base na obra consumada de Cristo na cruz. Isso
não apenas ajudou sua mente a se firmar filosoficamente quanto à verdade
do cristianismo, como também fez sua vida florescer de novo. A poesia
voltar a jorrar dele. Cor e beleza inundaram seu coração de novo. Essa
experiência em sua própria vida, fundamentada na Bíblia, tornou-se central
para seu ministério de ensino e discipulado mais amplo. Em seu livro
fundamental sobre viver a vida cristã, Verdadeira espiritualidade, ele diz:
“Tornei-me cristão de uma vez por todas com base na obra consumada de
Cristo, por meio da fé. Isso é justificação. Porém, embora a santificação,
isto é, a vida cristã, funcione com base nessa mesma realidade, ela se dá a
cada instante”.61
No que diz respeito a esses três homens, a realidade do Evangelho era
uma verdade pessoal transformadora, e não apenas um assunto sobre o qual
eles teologizavam. Escolhi deliberadamente esses três homens porque
representam três correntes distintas no rio cristão. Um é alemão e pai do
luteranismo; o outro é inglês e anglicano da ala da Alta Igreja; enquanto o
terceiro é um presbiteriano norte-americano. Mais do que isso, eles fizeram
contribuições distintas para a Igreja, com ênfases e aromas distintos no
ministério de cada um. No entanto, cada um deles se viu retornando, em
uma etapa pós-conversão, à verdade libertadora do mesmo Evangelho.
Nisso, eles nos deixam um exemplo, não simplesmente para que os
imitemos, mas também para que possamos ir à mesma fonte à qual eles
recorreram — as Escrituras e o ensino bíblico sobre a absolvição divina por
meio da obra de Jesus Cristo.
Você quer crescer em Cristo? Nunca deixe de estudar o Evangelho.
Aprofunde-se sempre no Evangelho. A liberdade de sua justificação de fora
para dentro é ingrediente crucial para nutrir sua santificação de dentro para
fora.

38 Andrew A. Bonar, Memoirs and remains of the Rev. Robert Murray McCheyne (Edinburgh: Oliphant, Anderson, and
Ferrier, 1892), p. 293.
39 Letters of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007), p. 380.
40 Edward Fisher, The marrow of modern Divinity (Pittsburgh: Paxton, 1830), p. 227 (parte 1, cap. 3, sec. 8: “Evan: ‘A verdade
é que muitos pregadores insistem mais no louvor de alguma virtude moral e protestam mais contra algum pecado de sua época
do que insistem em que os homens creiam... como se um homem devesse regar a árvore inteira, e não as raízes’”).
41 Richard Lovelace, Dynamics of spiritual life: an Evangelical theology of renewal (Downers Grove, IL: InterVarsity Press,
1979), p. 211-12.
42 Thomas Adam, Private thoughts on religion (Glasgow: Collins, 1824), p. 199.
43 Em Ewald M. Plass, What Luther says: a practical in-home anthology for the active Christian (St. Louis: Concordia,
1959), p. 720.
44 Francis Turretin, Institutes of elenctic Theology, ed. James T. Dennison, trad. George Musgrave Giger, 3 vols. (Phillipsburg,
NJ: P&R, 1992–1997), 2:692-93.
45 Thomas Chalmers, “The expulsive power of a new affection”, em Sermons and discourses, 2 vols. (New York: Robert
Carter, 1844), 2:277.
46 James S. Stewart, A man in Christ: the vital elements of St. Paul’s religion (New York: Harper & Row, 1935), p. 258-60.
47 Herman Bavinck, Reformed dogmatics, vol. 2, God and creation, ed. John Bolt, trad. John Vriend (Grand Rapids, MI:
Baker, 2004), p. 257.
48 G. C. Berkouwer, Faith and sanctification, trad. John Vriend, Studies in dogmatics (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1952), p.
93.
49 Veja “Home is where the heart is: freed inmate refused to leave prison”, 360nobs, 19 de julho de 2013,
http://360nobs.blogspot.com/2013/07/home-is-where-heart-is-freed-inmate.html.
50 J. Gresham Machen, What is faith? (reimpr., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1979), p. 163.
51 Martin Luther, “A treatise on good works”, em The Christian in society I, em Luther’s works, ed. Jaroslav Pelikan and
Helmut T. Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Fortress, 1955-1986), 44:30-34.
52 Martin Luther, Sermons on the Gospel of St. John 14-16, em Luther’s works, 24:47-48, 50.
53 Alister McGrath e J. I. Packer, ed., Galatians by Martin Luther, Crossway Classic Commentaries (Wheaton, IL: Crossway,
1998), p. 57-58.
54 N.E.: o anglicanismo de Alta Igreja é um movimento que propõe um apego aos padrões litúrgicos e eclesiológicos que a Igreja
da Inglaterra tem tradicionalmente defendido.
55 C. S. Lewis, The collected letters of C. S. Lewis, vol. 3, Narnia, Cambridge, and joy, 1950-1963, ed. Walter Hooper (San
Francisco: HarperOne, 2007), p. 151-52.
56 Lewis, Collected letters, 3:425.
57 Lewis, Collected letters, 3:751 — ênfase original.
58 Lewis, Collected letters, 3:935 — ênfase original.
59 Lewis, Collected letters, 3:1064 — ênfase original.
60 Francis A. Schaeffer, True spirituality (Carol Stream, IL: Tyndale, 1971), p. xxix-xxx.
61 Schaeffer, True spirituality, p. 70.
6 | Honestidade

Até agora, pensamos no que acontece entre Deus e nós, quando o


crescimento é fomentado. Mas, a essas realidades verticais, temos de unir a
horizontal. Um cristão está conectado não somente com Deus, acima, mas
também com outros cristãos, para fora.
De acordo com a Bíblia, um cristão independente é uma categoria
ilógica. A Escritura chama os crentes de “o corpo de Cristo”. Isso talvez
seja uma metáfora familiar para muitos de nós, mas considere o que
significa em si. Vivemos nossa vida em Cristo de uma maneira que é vital e
organicamente unida a todos os outros crentes. Nós, que estamos em Cristo,
estamos tão ligados a outros crentes quanto o tecido muscular, o qual, em
um corpo saudável, não pode ser separado dos ligamentos. Quando você
passa por outro crente no supermercado ou no saguão da igreja, é como a
mão de um corpo a encontrar-se com o pé desse mesmo corpo, sendo ambos
controlados por uma única cabeça. Eles podem ter gêneros distintos, etnias
diferentes, personalidades diametralmente opostas e até setenta anos de
diferença; contudo, estão muito mais conectados do que dois irmãos que
pertencem à mesma família e etnia e compartilham do mesmo DNA, um
dos quais está em Cristo, e o outro não. C. S. Lewis expressou isso com as
seguintes palavras:
Coisas que fazem parte de um único organismo podem ser muito diferentes entre si; por
outro lado, coisas que não fazem parte de um único organismo podem ser muito
semelhantes. Seis moedas de um centavo são bastante independentes umas das outras, mas
muito semelhantes. Meu nariz e meus pulmões são muito diferentes, mas estão vivos apenas
porque são partes do meu corpo e compartilham uma vida em comum. O cristianismo pensa
nas pessoas não apenas como meros membros de um grupo ou tópicos de uma lista, mas
como órgãos em um corpo — diferentes entre si, cada um contribuindo com o que o outro
não pode.62
Uma das razões pelas quais os apóstolos falam dos cristãos como o corpo
de Cristo é que querem comunicar que, assim como um corpo se
desenvolve e amadurece, também os cristãos devem crescer e amadurecer:
“Cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, de quem todo o corpo,
bem-ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de
si mesmo em amor” (Ef 4.15-16).
A Bíblia tem muito a dizer sobre como devemos interagir uns com os
outros como seguidores de Cristo, caso queiramos crescer. Neste capítulo,
gostaria de enfatizar um ensino especialmente importante do Novo
Testamento, a realidade coletiva mais importante para nosso crescimento
em Cristo: a honestidade.
Andando na luz
Se eu o exortasse a andar “na luz”, o que você pensaria instintivamente que
estou falando? Pensaria que estou exortando-o a viver de forma moralmente
pura? Isso seria uma expectativa lógica. Mas, se eu falasse de andar “na
luz” como o apóstolo João o faz, estaria falando de algo bem diferente. Eis
o que lemos em 1 João 1:
Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e vos anunciamos é esta: que Deus é luz,
e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos
nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém, andarmos na luz, como ele
está na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos
purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos, e a verdade não está em nós. Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e
justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que não
temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós. (1Jo 1.5-10)

O versículo-chave é o 7: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na


luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho,
nos purifica de todo pecado”.
Então, esse texto nos exorta à pureza moral? A Bíblia certamente diz
isso. Ela nos ordena que sejamos “sinceros e inculpáveis” (Fp 1.10), que
nos conservemos puros (1Tm 5.22), que sejamos sensatos e honestos (Tt
2.5). O próprio apóstolo João deseja isso para seus leitores: “Filhinhos
meus, estas coisas vos escrevo para que não pequeis” (1Jo 2.1). À primeira
vista, parece que esse é o ensino de João em 1.7, quando ele fala de
andarmos na luz. Afinal, ele diz: “Se... andarmos na luz, como ele está na
luz...” — ou seja, como Deus está na luz. Deus é moralmente puro. Por
isso, certamente somos chamados a sermos puros como ele, certo?
Porém, o propósito desse texto é outro. João tem algo muito mais
libertador a dizer. Andar na luz, nesse texto, é ter honestidade em relação
a outros cristãos. Observe a ênfase dos versículos adjacentes. “Se
dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos
enganamos” (1.8). Depois, João fala de confessarmos nossos pecados, isto
é, reconhecermos honestamente nossos erros: “Se confessarmos os
nossos pecados...” (1.9). Em seguida, no versículo 10, ele retorna ao
argumento apresentado no versículo 8: “Se dissermos que não temos
cometido pecado, fazemo-lo mentiroso” (1.10). Aparentemente, andar na
luz é confessarmos nossa pecaminosidade, enquanto andar nas trevas é
ocultarmos nossa pecaminosidade. Nesse texto, andar na luz não é
basicamente evitar o pecado, mas, sim, reconhecê-lo. Afinal, o próprio
versículo 7 termina com a certeza de purificação no sangue de Cristo — um
lembrete natural, caso “andarmos na luz”, no começo do versículo, se refira
ao ato de confessarmos nossos pecados.
Eis o que estou querendo dizer neste capítulo: você restringirá seu
crescimento se não realizar, ao longo da vida, a obra dolorosa, humilhante e
libertadora de trazer alegremente seus pecados das trevas do sigilo para a
luz do reconhecimento diante de um irmão ou irmã em Cristo. Nas trevas,
seus pecados se inflamam e crescem em vigor; na luz, eles definham e
morrem. Em outras palavras, andar na luz é ter honestidade para com Deus
e os outros.
A reflexão clássica sobre andar na luz é a do livro Vida em comunhão,
de Dietrich Bonhoeffer. Ele intitula um capítulo de “Confissão e
comunhão”, porque seu interesse é demonstrar a ligação vital entre essas
duas realidades horizontais. Ele inicia o capítulo dizendo:
Aquele que está sozinho com seu pecado está completamente sozinho. Pode acontecer que
cristãos, apesar da adoração coletiva, da oração comum e de toda a comunhão no culto,
ainda permaneçam em sua solidão. O avanço final à comunhão não acontece, visto que,
embora tenham comunhão uns com os outros como crentes e como pessoas devotas, eles
não têm comunhão como não devotos, como pecadores. A comunhão dos piedosos não
permite que ninguém seja pecador. Por isso, todos têm de ocultar seu pecado de si mesmos
e da comunhão. Não ousamos ser pecadores. Muitos cristãos ficam horrorizados quando um
pecador genuíno é descoberto entre os justos. Por isso, permanecemos sozinhos em nosso
pecado, vivendo em meio a mentiras e hipocrisia.63

Nosso crescimento em Cristo se estagna quando nos rendemos ao


orgulho e ao temor e quando ocultamos nosso pecado. Crescemos quando
admitimos que somos pecadores genuínos, não pecadores teóricos. Todos
nós, como cristãos, reconhecemos, em geral, que somos pecadores. Raro é o
cristão que se abre para outro cristão a respeito de como exatamente é um
pecador. Contudo, a vida floresce nessa honestidade.
Dois tipos de desonestidade
Há duas maneiras de sermos desonestos com nossos irmãos em Cristo: a
desonestidade explícita e a desonestidade implícita. A desonestidade
explícita é mentir deliberadamente — dizer a alguém que você memorizou
tudo de Romanos, quando, na verdade, não memorizou um único versículo
sequer.
Mas há também a desonestidade implícita, que é muito mais sutil e mais
comum. Essa é a projeção pessoal que traz uma aparência de sucesso moral,
quando a verdade é muito diferente. Andar na luz é a alternativa a esse
segundo tipo. Andar na luz é matar o orgulho e o exibicionismo, é fazer a
máscara cair, é tirar o verniz, é acabar com as aparências. É, por fim,
humilhar-se em transparência.
Tudo em nós resiste a isso. Às vezes, temos a impressão de que
preferiríamos morrer. De fato, andar na luz é um tipo certo de morte.
Sentimos como se toda a nossa pessoa, todo o nosso eu, estivesse se
desintegrando. Estamos perdendo nossa aparência impressionante na frente
de outro cristão. “Na confissão de pecados concretos, o velho homem morre
uma morte dolorosa e vergonhosa perante os olhos de um irmão”, escreveu
Bonhoeffer.64 Mas o que você diria a um bebê que tem pavor de nascer,
desejando permanecer no calor e na escuridão do ventre materno,
recusando-se a sair para a luz? Você diria: “se você permanecer aí, morrerá.
O caminho para a vida e crescimento é sair para a luz”.
Alguns de nós estamos fatigados com nossa vida cristã, cansados e
desanimados, vazios e com pouquíssimos recursos. Apesar de termos uma
forte teologia do Evangelho, estamos engatinhando, e não crescendo de
fato. Seria esse o caso por nunca termos escalado 1 João 1.7? Estamos
tentando desenvolver-nos espiritualmente nas trevas? Há alguém em sua
vida que sabe que você é pecador não somente de maneira geral, mas
também de maneira específica; não apenas no abstrato, mas também no
concreto? É apavorante abordar esse ponto com outro irmão ou com outra
irmã, mas uma cirurgia também é apavorante. Entretanto, não vale a pena
passar pela cirurgia por causa da cura, da restauração, da vida e da saúde
que nos esperam no outro lado?
Objeções
Neste ponto, algumas questões podem surgir.
Não temos de confessar nossos pecados somente a Deus? Em nenhuma
parte desse texto somos explicitamente ordenados a confessar nossos
pecados uns aos outros. Outras passagens da Bíblia dizem isso de forma
explícita: “Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros” (Tg 5.16). A
única passagem em 1 João 1 que nos instrui a “confessar” é o versículo 9,
que parece referir-se à confissão a Deus, e não aos outros: “Se
confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os
pecados e nos purificar de toda injustiça”.
Certamente, 1 João 1 inclui a confissão a Deus. Isso é fundamental. Ele é
aquele com quem nos relacionamos mais profundamente. Mas não existe
nenhuma maneira de darmos sentido a todo o fluxo da passagem e da
linguagem de relacionamento interpessoal se andar na luz não for, além
disso, uma questão horizontal. O versículo não diz: “Se, porém, andarmos
na luz, como ele está na luz, o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo pecado”. O versículo diz: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está
na luz, mantemos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus,
seu Filho, nos purifica de todo pecado”. Andar na luz gera profundidade de
comunhão com os irmãos em Cristo.
Outra pergunta possível é: 1 João 1.7 está dizendo que preciso expor
toda a minha roupa suja para cada irmão em Cristo com quem eu me
deparar?
Não, certamente não. Isso seria focalizar-se em si mesmo e também seria
falta de amor, além de se tratar de uma situação desgastante e bizarra. Esse
texto nos direciona não à vulnerabilidade exaustiva, mas à vulnerabilidade
redentora. No entanto, com certeza, no caso da maioria de nós, o grande
problema é que pouco confessamos nossos pecados uns aos outros, e não
que os confessamos demais. Certamente não quero criar um sutil e novo
legalismo, segundo o qual começaremos a crer que Deus retém seu perdão
para nós até que sejamos suficientemente honestos com outros crentes. Isso
seria justiça por obras e a perda do próprio Evangelho. Porém, e se cada um
de nós resolvesse encontrar uma pessoa — alguém do mesmo gênero, para
evitar qualquer possibilidade de apegos não saudáveis — que soubesse
quem realmente somos, por dentro e por fora? Sem fingimento, sem
joguetes, sem ludíbrios, sem nada de impressionante.
Outro obstáculo ao que estou dizendo pode ser expresso nas seguintes
palavras: “Mas, Dane, logo que confesso meu pecado a outro ser humano,
inicia-se o cronômetro. Não consigo viver com esse tipo de pressão”.
Claro que não. Quem conseguiria? Se esperamos uns dos outros que cada
um comece a mudar imediatamente, assim que um pecado é trazido à luz,
aniquilamos todo o objetivo da confissão mútua. Deus não estende o perdão
a nós verticalmente com um cronograma anexo. Por que, então,
estabeleceríamos um cronograma uns para os outros horizontalmente? Com
certeza, queremos sentir a urgência da necessidade de crescimento; a
alegria, a prosperidade e a própria saúde da alma do pecador estão em jogo.
Mas nenhum de nós cresce por meio de pressão. É a própria ausência de
pressão que cria ambiente fértil para matar o pecado e nutrir o crescimento.
Eis o que acontece quando começamos a ser honestos, ainda que com
uma única pessoa. Os dois círculos do que sabemos que nós mesmos somos
e do que apresentamos de nós mesmos se sobrepõem. Em vez de o Dane
privado ser uma pessoa e o Dane público ser outra pessoa, passa a haver
apenas um Dane. Nós nos tornamos um todo. Integrados. Fortes. Por outro
lado, manter as aparências é estilo de vida extenuante.
A honestidade de uns para com os outros apresenta muitos resultados
poderosos. O versículo que estamos abordando menciona dois:
1. Temos comunhão uns com os outros;
2. O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado.
Vamos considerá-los nessa ordem.
Comunhão uns com os outros
Oh! A infelicidade da solidão! Fomos criados para nada menos que uma
existência de reciprocidade. Os incrédulos podem desfrutar apenas de uma
sombra tênue dessa realidade. No entanto, aqueles de nós que estão em
Cristo fomos transportados à gloria das relações interpessoais. Temos no
Evangelho um recurso para exercitar a honestidade com outras pessoas.
Categorias como introversão e extroversão, embora sejam úteis, não afetam
a questão ainda mais profunda, a maneira fundamental com que Deus nos
equipou a todos — tanto a introvertidos quanto a extrovertidos — para a
comunhão humana. Até os introvertidos se sentem sozinhos.
Fomos criados para estar juntos, falar uns com os outros, compartilhar
nossos corações, sorrir juntos, apreciar juntos uma bela flor. A dor de uma
aflição é dobrada quando a suportamos sozinhos, mas é grandemente
diminuída quando suportada com outra pessoa ao nosso lado. De forma
semelhante, a satisfação de uma alegria é dobrada quando celebrada com
outra pessoa, mas diminuída quando a desfrutamos sozinhos.65 Ansiamos
por um espírito unido com outras pessoas, por corações compartilhados, por
reciprocidade. Com frequência, as buscas idólatras que efetuamos por meio
da imoralidade sexual, da indulgência excessiva no álcool ou da construção
de uma plataforma nas mídias sociais são todas apenas anseios por
comunhão humana colocados no lugar errado. Se tentarmos encontrar a
fonte dessas buscas que destroem o coração, descobriremos que, entre
outras coisas, é simplesmente a ausência de uma comunhão cristã genuína.
Aqui está o quadro que o Novo Testamento e uma passagem como 1
João 1 nos oferecem. Diante de nós, está um salão principal, preparado para
o banquete. As mesas estão repletas de todos os pratos que pudermos
imaginar. Os lustres estão brilhando, as flores, lindamente arranjadas. As
cadeiras são confortáveis e estão bem perto umas das outras. Os lugares são
ilimitados. Qualquer um pode entrar. Porém, fora do salão, há dez mil
pequenos cômodos escuros, cada um com espaço para uma única pessoa, de
onde todos nós tendemos a espreitar, escondidos na companhia de nossa
vergonha, de nossos pecados e de nossos erros, apavorados diante da
possibilidade de que alguém veja nossas manchas em plena luz. Contudo, 1
João 1.7 — “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos
comunhão uns com os outros” — nos convida ao banquete. Juntos. Somos
chamados a sair para a alegria da humildade e da honestidade de uns para
com os outros, na qual nos banqueteamos, somos nutridos e não estamos
mais sozinhos.
À medida que caminhamos na luz uns com os outros, as paredes
começam a cair. Relaxamos em uma nova maneira de ser, uma maneira
livre de existir na companhia uns dos outros. A comunhão está acesa e
queima intensamente. Somos realmente capazes de desfrutar a companhia
dos outros, em vez de apenas os usarmos ou de vivermos constantemente no
modo “boa impressão”. De fato, manter as aparências tornou-se tão natural
para nós que nem mesmo nos damos conta de quão atolados estamos nisso.
Certamente, um dos choques que teremos na nova terra, quando toda a
nossa imperfeição, pecado e interesse pessoal tiverem evaporado, será a
surpreendente e nova liberdade e o prazer de simplesmente estarmos em
comunhão com outras pessoas. Esvaziados de qualquer necessidade de nos
apresentarmos de certa maneira para elas, teremos, finalmente, chegado à
verdadeira vida. Seremos livres.
A mensagem do Novo Testamento é que podemos começar a desfrutar
essa liberdade agora — não de forma perfeita, mas, pelo menos, verdadeira.
Isso nos leva ao segundo resultado de andarmos na luz.
Purificação de todo pecado
“O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado.” Essa pequena
afirmação colocada na parte final de 1 João 1.7 é a completa razão por que
qualquer um de nós chegará ao céu um dia. Somos purificados pelo sangue
de Jesus Cristo.
Essa realidade está ligada à minha ênfase anterior no amor de Cristo
(cap. 4) e à doutrina da justificação (cap. 5). No entanto, a categoria
“purificar” dá sua própria contribuição. No Evangelho, somos unidos a
Cristo não por causa de qualquer agradabilidade em nós, mas tão somente
por causa do coração amoroso e amplo de Cristo. Muitas bênçãos resultam
disso: somos declarados inocentes e estamos livres para deixar o tribunal
(justificados), somos recebidos na família de Deus (adotados), somos
restaurados a um relacionamento de amizade com o Pai (reconciliados) e
assim por diante. Somos também, de acordo com 1 João 1.7, purificados.
Recebemos um banho. Uma limpeza copiosa, permanentemente eficaz e
efetuada de uma vez por todas.
Penso na luta livre na lama que tivemos no Acampamento Ridgecrest,
nas montanhas da Carolina do Norte, no verão de 2000, quando servi como
conselheiro. Depois de ficarmos todos cobertos de lama e exaustos, nós nos
limpamos saltando do trampolim para dentro do lago. Achei maravilhoso
submergir, sentir toda a lama sair e, em seguida, emergir para tomar ar puro
novamente. Podíamos ter tentado removê-la com as próprias mãos, mas,
assim, nunca teríamos ficado tão limpos — de qualquer forma, nossas mãos
também estavam sujas, de maneira que as usar para nos limpar seria retirar
a sujeira com mais sujeira ainda. O Evangelho opera da mesma forma.
Nunca podemos nos purificar. Porém, se formos mergulhados no lago da
purificação divina, emergiremos limpos — e, ao contrário da purificação
naquele lago da Carolina do Norte, essa purificação nunca pode ser
maculada novamente.
Continuaremos a pecar de muitas maneiras, é claro, mas o que é mais
profundamente verdadeiro a respeito de nós é que fomos purificados de
forma decisiva, de uma vez por todas. Como exatamente o sangue de Cristo
nos purifica? Esse é um conceito um tanto estranho quando você pondera
sobre ele — ser purificado pelo sangue de outrem. O ensino mais amplo da
Escritura deixa claro que, para pecadores caídos, a justiça tem de ser feita,
caso a nossa situação diante de nosso Criador seja acertada. Mas, ao
cumprir, em grau máximo, o sangue do cordeiro pascal que era derramado
na lei do Antigo Testamento, Jesus substituiu seu povo e deixou seu sangue
ser derramado em favor deles. Jesus ofereceu sua própria vida, a fim de que
todos aqueles que desejam que o sangue de Jesus substitua o derramamento
de seu próprio sangue tenham seu destino eterno determinado por essa
transação substitutiva. É assim que o sangue de Jesus nos purifica. Ou é o
sangue de Jesus, ou é o nosso. A justiça de Deus tem de ser satisfeita. Se o
sangue de Jesus é derramado em meu benefício, a ira do Pai é satisfeita, e
eu fico livre. O resultado disso é a purificação, a qual constitui uma forma
de entendermos essa transação. Jesus, o limpo, foi tratado como sujo para
que eu, o sujo, seja tratado como limpo.
Muitos de nós nos sentimos irremediavelmente sujos. Sabemos que Deus
nos ama e cremos que somos realmente justificados. Sabemos que o céu nos
espera bem ali na frente, na próxima curva da estrada. Mas, enquanto isso,
não conseguimos sair de debaixo de nosso opressivo senso de sujeira. Quer
por causa de abusos de que tenhamos sido vítimas, quer por causa de nossas
próprias tolices, sentimo-nos sujos. Por trás de nossa pungente teologia,
sentimo-nos repugnantes. Nossos sorrisos e nossa bem apresentada
aparência exterior estão em desacordo com o que achamos que é nossa
experiência interior mais profunda.
O Evangelho tem uma resposta para isso. Se você está em Cristo, o
céu o lavou. Você foi lavado e agora é “insujável”. Não importa como você
se sente. Esse sentimento não o define. Jesus foi contado como impuro para
libertá-lo de sua condição de impuro e de seus sentimentos errados. Isso não
significa que você nunca lutará com o sentimento de se sentir impuro.
Significa, antes, que um aspecto de seu crescimento em Cristo é colocar
seus sentimentos subjetivos de impureza em harmonia com a purificação
objetiva, decisiva, invencível e sempre verdadeira no sangue de Cristo.
Observe que o texto diz que somos purificados “de todo pecado” (1Jo 1.7).
Essa é uma abordagem abrangente.
Não é fácil crer que somos limpos. Aceitar literalmente o que Deus diz
sobre esse assunto talvez não seja muito diferente de dizer a um homem que
esteja convencido de que está com febre alta: “Você está com boa saúde”.
Entretanto, estamos realmente limpos. Temos de crer no que Deus diz e
resistir ao que sentimos. Creia audaciosamente nisso. Creia nessa
purificação com a resistência que o Evangelho inspira. Como Lutero disse:
“Se, como Filho de Deus, Jesus derramou seu sangue para nos redimir e nos
purificar do pecado; se, ademais, cremos nisso e o esfregamos na cara do
diabo sempre que ele tenta nos atormentar e nos aterrorizar com nossos
pecados, ele logo será vencido e forçado a recuar, parando de nos
perturbar”.66
A honestidade faz com que nos sintamos perdoados
Um leitor atencioso pode argumentar a esta altura: “O texto diz que, ‘se
andarmos na luz... o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo
pecado’. Isso significa que, se não formos honestos uns com os outros,
Deus não nos purificará? Isso não é, de fato, inverter o próprio Evangelho e
tornar nosso status de puros dependente de algo que fazemos?”
Sabemos, com base no ensino mais amplo da Bíblia, que isso não é
verdade. O texto deve significar que, se andarmos na luz — e isso ocorre
somente com aqueles que são introduzidos nas misericórdias do Evangelho
e são habitados pelo Espírito Santo —, o sangue purificador de Cristo se
tornará mais real para nós. Ele passa de teoria crida para realidade sentida.
Experimentamos esse perdão mais profundamente do que seríamos capazes
de experimentá-lo de outra maneira. Nosso coração se abre para recebê-lo
mais profundamente do que antes. O perdão do Evangelho passa de receita
impressa para experiência apetitosa. Em outras palavras, a honestidade de
uns com os outros quanto à nossa pecaminosidade é um caminho para o que
Lutero, Lewis e Schaeffer testemunharam experimentar — uma nova,
libertadora e mais sólida conscientização do Evangelho. Não, a honestidade
com os outros não conquista o favor de Deus para nós. Mas, sem a
honestidade com os outros, corremos um risco terrível e nos predispomos a
sofrer nossa pior queda.
Quando você confia suficientemente em Deus para falar de sua
pecaminosidade com outra pessoa, os canais de seu coração são abertos
para você se sentir perdoado. Isso acontece porque o mesmo orgulho que
nos impede de confessar nossos pecados a um irmão ou a uma irmã também
obstrui nossa crença real no Evangelho. O orgulho impede a comunhão
tanto horizontalmente como verticalmente. Fugir da honestidade para com
outro irmão em Cristo é, em essência, rejeitar o próprio Evangelho.
Recusar-se a ser honesto com outra pessoa é obra de justiça disfarçada;
cremos que precisamos proteger a fachada, manter a integridade da
aparência. Porém, na conversão ao cristianismo, reconhecemos que somos
desesperadamente pecadores e não temos nada com que contribuir, exceto
com nossa necessidade. O Evangelho diz que nada temos em nós que nos
recomende a Deus. Por que, então, na comunhão cristã, abandonamos essa
teologia e fingimos que temos dentro de nós virtudes que nos recomendam?
Temos de ser coerentes. Em outras palavras, na conversão, o velho homem
morreu de uma vez por todas (Rm 6.1-14; Ef 4.20-24; Cl 3.1-4, 9-10).
Quando nos recusamos a ser honestos na presença de outro irmão em
Cristo, trazemos de volta à vida aquele velho homem. Retrocedemos à
maneira de agir que tínhamos antes da regeneração.67
Humilhe-se para florescer
Você quer alegria? Afinal de contas, João disse ter escrito 1 João “para que
a nossa alegria seja completa” (1.4). Você quer crescer? Talvez somente no
outro lado da honestidade genuína com outro cristão, haja uma
profundidade de “comunhão... com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo”
(1.3) à sua espera, uma profundidade que fará aquilo em que você crê agora
parecer completamente irreal.
Creia no Evangelho. Encontre um amigo de confiança, um irmão em
Cristo. Traga-o à sua pecaminosidade de maneira redentora, mas
humilhantemente transparente. Humilhe-se na morte do ego que a
honestidade promove e veja que a vida floresce do outro lado. Banhe-se de
novo no Evangelho da graça. À medida que você ousa aprofundar-se na
honestidade e na experiência do sangue purificador de Cristo, verá seu
coração descansar no crescimento pelo qual você tanto anseia.

62 C. S. Lewis, Mere Christianity (1952; reimpr., New York: Touchstone, 1996), p. 161.
63 Dietrich Bonhoeffer, Life together, trad. J. W. Doberstein (New York: HarperCollins, 1954), p. 110.
64 Bonhoeffer, Life together, p. 114.
65 Drew Hunter me ajudou a ver isso por meio de seu livro Made for friendship: the relationship that halves our sorrows
and doubles our joys (Wheaton, IL: Crossway, 2018).
66 Martin Luther, Sermons on the Gospel of St. John 1-4, em Luther’s works, ed. Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehmann, 55
vols. (Philadelphia: Fortress, 1955-1986), 22:24.
67 Para uma abordagem adicional desse parágrafo, ver Bonhoeffer, Life together, p. 114-15.
7 | Dor

Nossos instintos naturais nos dizem que o caminho para avançarmos na


vida cristã é evitarmos a dor, para que, assim, não distraídos, nos
dediquemos à tarefa imediata de crescer em Cristo. Porém, Novo
Testamento nos diz, repetidas vezes, que a dor é um meio, e não um
obstáculo, para nos aprofundarmos na maturidade cristã. A angústia, o
desapontamento e a futilidade que nos afligem são blocos edificadores de
nosso crescimento. Somos “herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com
Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm
8.17). Conhecemos mais profundamente Cristo quando compartilhamos
“dos seus sofrimentos” (Fp 3.10). Porque “toda disciplina, com efeito, no
momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois,
entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto
de justiça” (Hb 12.11).
A dor fomentará o crescimento de uma forma única, desde que o
permitamos.
A universalidade da dor
Um esclarecimento que precisamos fazer neste exato momento é que todos
nós experimentamos a dor. Digo isso porque é comum, em alguns
segmentos da igreja ocidental, falar, pregar e escrever como se apenas em
outras partes do mundo os crentes sofressem de dor.
Sem dúvida, é verdade que a perseguição pública não é um fenômeno
universal. Também é claramente perceptível que alguns crentes de outras
partes do mundo (escrevo do Ocidente e na qualidade de ocidental)
enfrentam toda sorte das mais variadas dificuldades que muitos de nós não
enfrentamos — escassez de água potável, ostracismo social, restrições
governamentais de reuniões públicas para culto, pobreza, cuidado de saúde
precário, falta de bons recursos bíblicos e teológicos, abundância de
teólogos da prosperidade, que seduzem e enganam os crentes, e assim por
diante.
No entanto, essa nota de relativo conforto circunstancial no Ocidente
pode, por vezes, ser tocada de modo a minimizar e obscurecer a dor
peculiar às vidas de todos os crentes. Nenhum cristão, a despeito do lugar
onde vive, está imune às experiências dolorosas de um câncer, à traição de
irmãos em Cristo, ao desapontamento vocacional, às desordens
psicológicas, às frustrações emocionais, a filhos rebeldes, a chefes abusivos
ou a centenas de outras adversidades.
Contudo, quando menciono a universalidade da dor, tenho em mente
outra coisa, algo que subjaz a todos esses exemplos concretos de
adversidade. Para todos nós que vivemos entre os dois primeiros capítulos
da Bíblia e os dois últimos, há uma futilidade que permeia tudo — nossa
mente, nosso coração, nossa consciência, cada pensamento, cada palavra,
cada reunião, cada e-mail e cada novo amanhecer —, há algo difícil de
articular que infecta tudo. Um senso de perda, de frustração, de não
florescer, de abatimento, de falta de propósito angustiante, de desperdício
de tempo e esforço, de incapacidade de seguir em frente. A Bíblia trata
disso e nos diz que a criação “foi submetida à futilidade” (Rm 8.20, NVI) e
“geme” como uma mãe no parto (Rm 8.22). Devemos ser cuidadosos para
entender que a expressão “toda a criação” (Rm 8.22) não diz respeito a toda
a ordem natural criada, menos os humanos. Estamos inclusos nessa
futilidade. O texto prossegue dizendo que nós também “gememos em nosso
íntimo”, enquanto aguardamos que Deus corrija todas as coisas no final
(Rm 8.23). Somos como um belo carro que tenta chegar do ponto A ao
ponto B, mas o motor e partes interiores, sob o capô, estão totalmente
emporcalhados. Não funcionamos como deveríamos.
Miséria, trevas, angústia, remorso, vergonha e lamento afetam tudo que
dizemos e pensamos. A realidade de pesadelo mostra que essa dor e essa
futilidade alcançam até mesmo nosso subconsciente e nosso sono. Não
podemos ir a lugar algum para escapar da futilidade e da dor da vida neste
mundo caído. Isso é verdadeiro em relação a todos os crentes e também,
obviamente, aos incrédulos. Contudo, para os crentes, a dor é diferente,
porque sabemos e sentimos de forma mais profunda que Deus não criou um
mundo em que havia dor. As coisas não deveriam ser assim. É por isso que
Romanos 8 conecta nosso gemido com a presença das “primícias do
Espírito” (v. 23). Nós, crentes, fomos ressuscitados espiritualmente, mas
ainda não fomos ressuscitados fisicamente. Essa dissonância acentua nossa
consciência de que nossa pequena existência caída é imperfeita. Toda
cultura suporta diariamente as futilidades da vida neste mundo caído —
aquele senso premonitório de total absurdo que permeia a vida e nos
envolve em novo desespero a cada nova manhã.
A dor não é uma ilha em nossa vida, mas o oceano. O desapontamento
ou a decepção é o palco em que toda a vida se desdobra, e não uma
aberração ocasional numa vida confortável e tranquila.
O que quero dizer neste capítulo é que um bloco crucial que edifica
nosso crescimento na graça é uma abertura humilde ao recebimento da
amargura da vida como o caminho amoroso de Deus para nos tirar da
miséria do ego e nos conduzir a uma maturidade espiritual mais profunda.
Por meio da dor, Deus está nos chamando para cima, “à perfeita
varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13).
Devemos ser cuidadosos e cautelosos em relação à forma como
abordamos esse assunto, pois estamos lidando com uma realidade que não é
mera abstração teológica. Este capítulo é como remover um curativo de
uma ferida aberta e realizar uma desagradável punção. A primeira coisa a
ser feita com aqueles que experimentam uma dor nova em sua vida não é
dar-lhes um livro, ou indicar-lhes um versículo, ou ainda lhes dar um
lembrete teológico. A Bíblia diz: “Chorai com os que choram” (Rm 12.15),
e não “ofereçam respostas teológicas aos que choram”. Uma palavra de
explicação teológica, ainda que seja uma palavra verdadeira de explicação
teológica, dada a pessoas que vivenciam dor severa agrava a dor. Elas não
precisam que as encaremos e falemos sem parar. Precisam que estejamos a
seu lado, chorando. O fato de que, na Bíblia, Romanos 8.28 vem antes de
Romanos 12.15 não significa que deve vir primeiro em nosso
aconselhamento e em nossas amizades.
No entanto, embora haja um tempo de chorar, há também um tempo de
pensar (Ec 3.1-8). Durante todo o curso de nosso discipulado em Cristo,
temos de edificar um profundo e forte alicerce para entender como
processar e até mesmo redimir a angústia de nossa vida. Sem esse alicerce,
nosso crescimento em Cristo será severamente limitado. Esse é o principal
ensino deste capítulo.
Cortando galhos
Todos nós somos como uma videira saudável, a qual tem a inclinação
perversa de envolver todas as suas gavinhas ao redor de uma árvore
venenosa que pareça nutritiva, mas que, na verdade, a enfraquece. Fomos
advertidos de que abraçar tal árvore nos matará, mas não conseguimos sair
dessa situação. Nós nos emaranhamos ao redor dela. Há apenas um recurso
para o viticultor amoroso. Ele tem de nos cortar para nos deixar livres. Ele
deve até mesmo podar galhos inteiros. O viticultor tem de nos fazer passar
pelo caminho estreito da perda, pela dor de sermos diminuídos, de sermos
reduzidos, para que possamos libertar-nos.
O mundo e suas ofertas fraudulentas são como aquela árvore venenosa.
Nosso Viticultor celestial nos ama tanto que não nos deixará continuar a
cometer suicídio de alma, à medida que nos tornamos mais profundamente
ligados ao mundo. Por meio da dor do desapontamento e da frustração,
Deus nos desapega do amor a este mundo. Parece que estamos sendo
mutilados, como se estivéssemos morrendo. Mas, na realidade, estamos
sendo libertos dos falsos prazeres deste mundo.
Em 1949, C. S. Lewis escreveu para Warfield Firor, um professor norte-
americano de cirurgia, e, com uma revigorante honestidade, disse:
Está tudo lá no Novo Testamento [...] “Morrendo para o mundo” — “o mundo está
crucificado para mim, e eu, para o mundo”. E acho que ainda nem comecei; não, pelo
menos, se isso significa (e pode significar menos) desligar-se resoluta e progressivamente
de todas as motivações provenientes dos objetos meramente naturais ou mundanos. É como
treinar uma trepadeira a crescer numa parede, e não em outra. Não me refiro ao
desligamento em relação a coisas erradas em si mesmas, mas, digamos, da própria noite
agradável que esperamos ter ao saborearmos um presunto amanhã à noite ou em relação à
própria satisfação em meu sucesso literário […] Não se trata das coisas nem mesmo do
prazer nelas, mas do fato de que nesses prazeres meu coração — ou grande parte dele —
repousa.
Ou, dito de maneira fantástica, se uma voz me dissesse (uma voz na qual eu não pudesse
deixar de crer): “você nunca verá a face de Deus, nunca ajudará a salvar a alma de seu
vizinho, nunca será liberto de seu pecado, mas viverá em saúde perfeita até os cem anos,
será muito rico, morrerá como o homem mais famoso do mundo e passará para um estado
um tanto turvo de consciência, de um tipo vagamente agradável, por toda a eternidade”, em
que medida isso me deixaria preocupado? Em que medida, quando comparamos essa
possibilidade com outra guerra ou mesmo com um anúncio de que eu teria de extrair todos
os meus dentes? Você consegue perceber? E que direito tenho de esperar a Paz de Deus,
enquanto coloco todo o meu coração — pelo menos, todos os meus desejos mais intensos
— no mundo contra o qual ele me adverte?
Bem, graças a Deus, não ficaremos presos ao mundo. Todos os terríveis recursos de Deus
(mas somos nós que o forçamos a usá-los) serão trazidos contra nós para nos separar do
mundo — insegurança, guerra, pobreza, dor, impopularidade, solidão. Temos de aprender
que essa tenda não é nosso lar.68

Aqui, Lewis expõe nosso coração. Nós, que somos honestos para
conosco, reconhecemos quão intrincadamente entrelaçada está a vinha de
nosso coração neste mundo. Isso não significa que devemos recusar-nos a
gozar as coisas boas do mundo — uma refeição favorita, um lindo pôr do
sol, os prazeres íntimos de um cônjuge, a satisfação de um trabalho bem-
feito. Resistir totalmente a esses prazeres é, de acordo com os apóstolos,
algo demoníaco (1Tm 4.1-5). Em vez disso, devemos reconhecer que nosso
coração se apegará a qualquer coisa deste mundo que seja desprovida de
Deus e buscará obter forças desse objeto criado, e não do Criador e de seu
amor. A qualificação bíblica para essa inclinação perversa de nosso
coração, a inclinação de buscar as coisas do mundo para satisfazer a sede de
nossa alma, é idolatria. A idolatria, conforme defini no capítulo 5, é a
insensatez de pedir a uma dádiva que se torne o doador. A Bíblia nos instrui
a depositar no próprio Deus nossos anseios e anelos supremos. Somente ele
pode nos satisfazer (Sl 16.11), e ele promete que o fará (Jr 31.25).
O problema é que não podemos, por nossos próprios recursos, remover
do mundo as esperanças mais profundas de nosso coração e colocá-las em
Deus. Pensamos que podemos. Tentamos. Porém, isso é como uma criança
que vai para uma cirurgia de coração confiante de que é capaz de reparar
por si mesma o próprio coração. Ela precisa que um cirurgião atente para o
seu caso e empregue toda a sua expertise médica na operação.
Também precisamos de uma cirurgia de coração. Precisamos,
igualmente, dos recursos de um médico, o médico divino, que não somente
tem toda a expertise necessária, como também nos envolveu em seu
amoroso coração e nos ama com um amor tão amplo quanto seu próprio ser
(Ef 3.18-19).
A operação dura toda a vida e costuma machucar, mas está nos curando.
Somente duas escolhas
Em um livro publicado em 1630, cinco anos antes de sua morte, Richard
Sibbes escreveu:
Sofrer traz desencorajamento, por causa de nossa impaciência. “Ai de mim!”, lamentamos,
“Nunca sairei dessa provação”. Mas, se Deus nos leva à provação, ele estará conosco nela e
nos tirará dela mais refinados. Nada perderemos além de escória (Zc 13.9). De nossas
próprias forças, não podemos suportar a menor dificuldade, mas, com a assistência do
Espírito, somos capazes de suportar as maiores. O Espírito se fará presente e nos ajudará a
suportar nossas debilidades. O Senhor nos estenderá sua mão para nos levantar (Sl 37.24)
[...] Traz-nos conforto em condições desoladas o fato de que Cristo tem um trono de
misericórdia ao lado de nossa cama e conta nossas lágrimas e nossos gemidos.69

Quando a dor invade nossa vida, sentimo-nos, de forma imediata e


instintiva, como se estivéssemos perdendo. Dinheiro está sendo debitado de
nossa conta. Estamos caminhando para trás. “Isso é ruim”, pensamos.
Compreensível. Porém, na economia do Evangelho, estamos unidos a um
Salvador que foi, ele mesmo, preso, crucificado, colocado num sepulcro e
entregue à morte, apenas para, em seguida, ressuscitar em glória triunfante
— glória que não seria possível sem aquela morte. Dor semeia glória.
Você não quer que a glória celestial determine tudo a respeito de sua
pequena vida? Como isso acontece? O apóstolo Pedro nos diz: “Se, pelo
nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós
repousa o Espírito da glória e de Deus” (1Pe 4.14). Quando insultos nos
fazem recuar abalados, quando a vida machuca, nossos olhos estão sendo
tirados das coisas instáveis do mundo e colocados no Deus estável da
Bíblia. Estamos sendo chamados, como disse Lewis, “para cima e avante”.70
Quando a dor vem, não apenas nos machuca, como também nos ensina uma
lição. Ela nos chicoteia para nos moldar. A dor procede de uma Pai
compassivo e tem em vista nossa cura. “Ele o ama muito para machucá-lo”,
disse John Flavel.71
Quando a vida machuca, vemo-nos imediatamente numa encruzilhada
interna. Ou tomamos a estrada do cinismo, esquivando-nos de um coração
aberto para com Deus e os outros, recuando para a segurança que
encontramos na restrição de nossos desejos e anseios, para não sermos
feridos de novo; ou seguimos na direção de uma profundidade com Deus
que seja maior do que já conhecemos. Ou desdenhamos daquilo que
afirmávamos e em que críamos acerca da soberania e da bondade de Deus,
pensando que nossa fé estava equivocada; ou damos uma importância ainda
maior à nossa teologia. Os dois círculos, o da teologia que professamos e o
da teologia do coração, embora distintos até então, são forçados ou a se
distanciarem mais que antes, ou a se sobreporem perfeitamente. Ou
depositamos toda a importância em nossa teologia, ou deixamos nosso
coração se calcificar e endurecer. Ou deixamos que o médico divino
continue a operação, ou insistimos em ser retirados da sala de operação. No
entanto, a dor não nos permite seguir em frente como antes.
Richard Davis era um pastor na Inglaterra na era dos puritanos. Em certa
ocasião, ele procurou o grande John Owen para obter conselho espiritual.
Sinclair Ferguson reconta o que aconteceu.
No decorrer da conversa, Owen lhe perguntou: “Jovem, de que maneira você se achega a
Deus?”.
“Por meio do Mediador”, respondeu Davis.
“Isso é fácil dizer”, replicou Owen, “mas eu lhe asseguro que achegar-se a Deus por meio
do Mediador é algo bem diferente de apenas fazer uso da expressão que muitos conhecem.
Eu mesmo preguei a Cristo por alguns anos, quando eu tinha muito pouco — se é que
possuía alguma — familiaridade prática com o acesso a Deus por meio de Cristo, até que
aprouve ao Senhor visitar-me com uma aflição severa, pela qual fui levado às portas da
morte e sob a qual minha alma foi oprimida com horror e trevas. Deus, porém, aliviou
graciosamente meu espírito por meio de uma aplicação poderosa do Salmo 130.4:
‘Contigo, porém, está o perdão, para que te temam’. Assim, recebi instrução, paz e
consolo especiais, ao me aproximar de Deus pelo Mediador, e preguei sobre isso logo
depois de minha recuperação”.72

Observe as palavras “com uma aflição severa”. Foi por meio de uma
provação dolorosa, e não por evitá-la, que a segurança do perdão se instilou
em Owen. Ele havia pregado o Evangelho por anos a fio, mas somente por
meio dessa provação o Evangelho que ele pregava se moveu realmente da
teologia professada para a teologia do coração, de forma que os dois
círculos se sobrepuseram.
Se, um dia, você deseja ser um adulto firme, consistente e radiante,
permita que a dor em sua vida o force a crer em sua própria teologia.
Permita que a dor o leve a uma comunhão mais profunda com Cristo, mais
profunda que antes. Não permita que seu coração resseque. Cristo está em
sua dor. Está refinando-o. Tudo que você perderá, segundo nos lembra
Sibbes, é a escória do ego e a miséria que, no recôndito de seu coração,
você quer mortificar, de alguma maneira. Deus nos ama muito para deixar
que permaneçamos na superficialidade. Quão frívolos e medíocres seríamos
se vivêssemos toda a vida sem dor!
Suas lágrimas são as ferramentas de Deus.
Lágrimas e alegria
Enquanto falamos de lágrimas, talvez seja valioso refletirmos brevemente
sobre o efeito salutar das lágrimas em nossas vidas. Nossas lágrimas não
impedem o crescimento; ao contrário, elas o aceleram e aprofundam. Sem
dúvida, isso nem sempre é verdadeiro. Podemos deixá-las nos amargar, em
vez de nos adocicar. Entretanto, as lágrimas frequentemente refletem apenas
a remoção de uma distração. Entramos, por fim, em contato com a realidade
e com nós mesmos. Vemos mais nitidamente quem realmente somos, em
toda a nossa vileza. Vemos mais profundamente quem Jesus Cristo é, em
toda a sua ternura.
Você não acha, ao repassar sua própria vida, que houve momentos em
que, sentado sozinho, imerso em lágrimas, você experimentou uma sublime
profundidade de alegria, de realidade com Deus, uma alegria que nenhum
comediante de stand-up seria capaz de lhe oferecer? Se alguém houvesse
chegado inesperadamente até você nesses momentos e visto seu rosto
tomado de lágrimas, teria concluído, de imediato, que você estava em
angústia, mas teria interpretado mal o que se passava. Olhando para cima e
vendo quem o interrompeu, você talvez tenha se sentido tentado a se livrar
do constrangimento com uma piada rápida, mas isso teria feito a alegria que
jorrava de você dissipar-se de pronto.
A Bíblia diz:
Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração. (Ec
7.3)

Essa afirmação em Eclesiastes não tem a intenção de ser absoluta.


Lembre-se de que isso é literatura de sabedoria hebraica e exige certo
cuidado para entendermos seu significado. Porém, o sábio está dizendo
algo. A lição de um texto desse tipo é que a solenidade das lágrimas nos
aprofunda numa espécie de firmeza e robustez de personalidade que vai
além do trivial, informando boa parte de nossas interações com outras
pessoas e até mesmo nossa autorreflexão solitária.
A Bíblia também diz o oposto: “Até no riso tem dor o coração, e o fim
da alegria é tristeza” (Pv 14.13). De acordo com Provérbios, um riso
exterior pode frequentemente ocultar uma dor interior. De acordo com
Eclesiastes 7, um choro exterior pode frequentemente adornar uma alegria
sólida, profunda e quieta.
Chore enquanto estiver crescendo. Não oprima suas emoções. Crescer
em Cristo não é apenas exibir sorrisos e gargalhadas. Deixe suas lágrimas e
as feridas que elas refletem levarem-no a um lugar mais profundo com
Cristo, mais do que você teria de outro modo. Como eu ouvia meu pai
dizer, “feridas profundas nos aprofundam”.
Mortificação
Até esta altura, neste capítulo, falamos sobre o tipo de dor que vem até nós
sem a nossa permissão — sofrimento, angústia, frustração —, invadindo
nossa vida de uma forma oposta ao que desejamos ou esperamos. Contudo,
acompanhando esse tipo de dor em que somos passivos, há outro tipo de
dor em que somos ativos. Refiro-me à antiga disciplina que os teólogos
chamam de mortificação.
Mortificação é apenas uma palavra teológica que significa “fazer
morrer”. Refere-se ao dever que todo cristão tem de matar o pecado. Como
Owen disse na obra mais importante já escrita sobre a mortificação do
pecado: “Mate constantemente seu pecado, ou o pecado o matará
constantemente”.73 Nenhum de nós se encontra em condição de
neutralidade. Agora mesmo, todo aquele que está em Cristo ou está
matando o pecado, ou está sendo morto pelo pecado; ou se tornando mais
forte, ou ficando mais fraco. Se você pensa que está avançando sem
esforço, está realmente caminhando para trás. Na vida espiritual, não há
piloto automático. Pode parecer que, hoje, você está em ponto morto, mas
nosso coração é como um jardim: se não arrancarmos, proativamente, as
ervas daninhas, elas crescerão, ainda que não o percebamos.
A obra de mortificação é de todo cristão. Há muito tempo, os teólogos
têm falado que a mortificação opera em conjunto com a vivificação — há
tanto o levar à morte quanto o ser trazido à vida. Na conversão, “morremos”
de uma vez por todas e somos vivificados de uma vez por todas. Mas há
também um padrão diário de baixar à morte e ascender à vida.
O ensino sobre a mortificação é a faceta mais ativa de nosso crescimento
em Cristo. Os outros capítulos deste livro se concentraram principalmente
naquilo que recebemos no Evangelho. E é assim que deve ser. A salvação
cristã e o crescimento por ela desencadeado são, basicamente, uma questão
de graça, resgate, ajuda e livramento. É Deus invadindo nossa vida
insignificante e triunfando gloriosa e persistentemente sobre todo o pecado
e todo o mal que ele encontra ali. Isso não significa, porém, que somos
robôs. O versículo em que John Owen baseou seu livro sobre a mortificação
é Romanos 8.13: “Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente,
vivereis”. Um dos principais ensinos em que John Owen se detém em seu
livro concentra-se nas palavras “pelo Espírito”. Não matamos o pecado por
meio de recursos inerentes a nós mesmos. Voltaremos a falar do Espírito
Santo no último capítulo deste livro. Notemos, por ora, que até mesmo o
aspecto mais ativo de nossa santificação, a faceta em que a nossa própria
vontade é mais completamente envolvida, a mortificação de nosso pecado,
não é algo em que nos engajamos sozinhos. Nós o fazemos “pelo Espírito”.
Quando nos vemos assolados pelo pecado e pela tentação, clamamos ao
Espírito por graça e ajuda e, em seguida, agimos em dependência
consciente do Espírito, aceitando pela fé, graças ao Espírito, que somos
capazes de matar um pecado específico ou resistir a certa tentação. O diabo
quer que pensemos que somos impotentes. Mas, se Deus, o Espírito, está
em nós, o próprio poder que ressuscitou o corpo morto de Jesus para a vida
triunfante também é capaz de exercer esse mesmo poder vital em nossas
vidas. Como Paulo disse pouco antes de Romanos 8.13: “Se habita em vós
o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo
que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso
corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita” (Rm 8.11).
Mortificação versus autoflagelação
Temos de considerar francamente uma ideia potencialmente errada antes de
prosseguir. Ao falar que a dor é um elemento vital ao nosso crescimento,
especialmente agora que abordamos a “dor” que nos autoinfligimos, isto é,
a dor da mortificação, temos de estar sempre vigilantes para não
entendermos a dor de nossa vida como se, de alguma forma, também
contribuísse para a obra expiatória de Cristo. Isso talvez pareça óbvio, mas
a tentação de pensar assim é muito sutil e insidiosa. Devemos ter em mente
o que reiteramos no capítulo 5 sobre a absolvição. Na obra consumada de
Cristo na cruz, somos totalmente libertos dos poderes acusadores do diabo e
de nossa consciência. Ao matarmos o pecado, não estamos competindo com
a obra de Cristo, mas respondendo a ela. Cristo foi morto para que nosso
relativo sucesso ou fracasso em matar o pecado não seja parte da fórmula de
nossa adoção na família de Deus.
Na Semana Santa de 2009, o jornal Boston Globe veiculou uma história
com imagens de várias comunidades cristãs ao redor do mundo que
celebravam o Lava-Pés.74 Uma imagem especialmente impressionante era
da cidade de San Fernando, nas Filipinas, onde vários penitentes católicos
romanos foram fotografados enquanto se ajoelhavam diante de uma igreja,
sem camisa e com as costas ensanguentadas, flagelando-se, numa tentativa
de fazer expiação por seus pecados. Ficamos horrorizados com essa
imagem, sabendo que a necessidade desse tipo de dor autoinfligida foi
maravilhosamente erradicada pelo sofrimento de Cristo. Seria estranho que
um criminoso que tenha sido solto depois que alguém pagou sua fiança
retornasse prontamente à delegacia para pagar, ele mesmo, a fiança. Ele já
tinha sido liberto.
No entanto, eu me pergunto se realmente levamos a sério o que está
errado nessa prática. Engajar-se psicológica e emocionalmente — quiçá até
mesmo fisicamente — em autoflagelação não é uma tentação constante para
cristãos ocidentais? Qual é sua reação quando você toma ciência de seu
pecado? Se você for como eu, sabe que Cristo morreu por isso e sente-se
grato. Mas, apenas para mostrar quão grato você é ou para selar o acordo,
você se autoinflige um pouco de dor psicológica, de modo a tornar
memorável toda a situação. Sem dúvida, você não age assim para fazer,
conscientemente, um acréscimo à obra de Cristo. Longe de você! Você o faz
apenas para deixar Cristo ciente do quanto você se importa, para deixar
claro que você é um cristão sério. Nada físico. Apenas um pouco mais de
obediência externalizada, ou de serviço formal, ou de reconhecimento de
culpa.
O problema é que a mensagem da Bíblia como um todo é que, se vamos
colocar a cereja de nossa contribuição pessoal no topo da obra de Cristo,
para que ela fique perfeita, temos de providenciar todo o bolo. É tudo ou
nada. A tragédia é que, embora concordemos teologicamente com a verdade
de que não podemos fazer acréscimo à obra de Cristo, tentamos nos
tranquilizar emocionalmente ao ajudarmos nosso Senhor um pouquinho.
Porém, acrescentar algo para selar o acordo é exatamente o que nos deixará
intranquilos quanto a se ele foi realmente selado. E se não o selarmos de
modo suficiente?
Esse instinto natural de melhorar a opinião de Deus sobre nós por meio
de doses automedicadas de recompensa humanamente gerada parece
bastante razoável. Tão lógico. Intuitivo. De que outra maneira viveríamos?
Mas a glória do Evangelho é que essa tentativa de ajudar a Deus não apenas
é desnecessária, como também uma rejeição da oferta de Deus em Cristo.
Não é um fortalecimento, mas uma diluição da opinião de Deus sobre mim.
Essa atitude não honra a obra sacrificial de Cristo em meu favor, mas a
desonra. Ela nos deixará mal-humorados e tensos, em vez de humildes e
livres.
Enquanto refletimos sobre a mortificação de nosso pecado, nós o
fazemos conscientes de que jamais seremos capazes de intensificar a
declaração objetiva de que somos “absolvidos e justos”, da qual nos
apropriamos somente pela fé, com base unicamente na obra consumada de
Cristo.
Sufocando o pecado
Isso é o que a mortificação não é. Não é fazer acréscimo à obra expiatória
de Cristo. Então, positivamente, o que é a mortificação?
Não mortificamos o pecado principalmente ao olharmos para ele. Sem
dúvida, é preciso que estejamos cientes do pecado. Contudo, não o
matamos como um soldado mata um inimigo na batalha, isto é, mirando no
próprio inimigo. Matar o pecado é uma batalha estranha, porque, para
vencê-la, precisamos desviar os olhos do pecado. Por “desviar os olhos”,
não quero dizer que devamos esvaziar nossa mente e tentar criar um vácuo
mental. Quero dizer que temos de olhar para Jesus Cristo. Da mesma
maneira que brincar de carrinhos de miniatura no gramado da frente da casa
perde sua atratividade quando somos convidados a passar a tarde em uma
corrida de Fórmula 1, o pecado perde seu apelo quando nos permitimos ser
encantados constantemente pela incomparável beleza de Cristo. Lembre-se
do que notamos no capítulo 1 sobre as “insondáveis riquezas de Cristo” (Ef
3.8). O pecado parece riqueza, mas é riqueza falsa e superficial. Ele não
entrega o que promete. Por outro lado, Cristo é a riqueza genuína, a riqueza
de profundidade ilimitada. A riqueza de Cristo é insondável.
Alimentamos o pecado quando somos complacentes com ele, quando
suspiramos por ele, quando sonhamos acordados com ele e quando lhe
damos livre curso. Sufocamos o pecado quando redirecionamos nosso olhar
para Cristo. Quando digo “redirecionar nosso olhar”, estou falando de olhar
para Cristo com “os olhos do coração” (Ef 1.18). É um pouco estranho a
Bíblia falar que uma parte do corpo tenha partes. Como um coração tem
olhos? Porém, lembre-se de que, na Bíblia, o “coração” é o centro animador
de tudo que fazemos, a nossa parte mais profunda e a fonte de nossos
motivos e anseios mais profundos. A Escritura está nos mostrando que
aquilo a que dedicamos nosso coração — o que amamos e desejamos —
determina nossa saúde espiritual. Se temos uma teologia sólida e inabalável,
demonstramos ampla conformidade de comportamento com os
mandamentos de Deus e possuímos uma frequência exemplar à igreja, mas
nosso coração flui em sentindo contrário, buscando notoriedade, contas
bancárias gordas ou qualquer outra coisa, nunca progrediremos na
mortificação do pecado. Como poderia ser diferente? Se as lealdades mais
profundas de nosso coração pertencem a qualquer outra coisa que não Deus,
estamos simplesmente tentando enganar os outros, fingindo que queremos
mortificar o pecado.
Mas, quando nosso coração redireciona sua contemplação para o Jesus
da Bíblia, em toda a sua gentileza gloriosa e em todo o seu amor
deslumbrante, o pecado passa fome e começa a definhar. Quando
desfrutamos as verdades sobre as quais este livro tem meditado —
realidades como a nossa união com Cristo, nossa inalterável aceitação e
nossa irreversível absolvição —, então, e somente então, a vida e o vigor
espiritual começam a ter ascendência, e o apego ao pecado se afrouxa.
Flavel assim expressou essa realidade: “Você quer ter suas corrupções
mortificadas? Este é o caminho: remover a comida e o combustível que as
mantêm; pois, assim como a prosperidade as gerou e as alimentou, também
a adversidade, quando santificada, é um meio para matá-las”.75
Não há uma técnica especial para mortificar o pecado. Você apenas abre
sua Bíblia e permite que Deus o surpreenda a cada dia com a maravilha de
seu amor, demonstrado em Cristo e experimentado no Espírito.
Lutar é vencer
Precisamos terminar este capítulo com uma nota de esperança. “Às vezes, o
pecado das pessoas corretas”, disse Flavel, “consiste em exercer uma
severidade irracional contra si mesmas”.76 Ele prossegue e assegura a seus
leitores que, embora olhem para dentro de si mesmos e encontrem ali todo
tipo de impureza, plenitude de incredulidade e uma variedade de amores
desordenados, ainda assim, ver também uma fagulha de desejo por Deus e
uma chama de anseio por Cristo pode tranquilizá-los.
Acima de tudo, devem parar, definitivamente, de olhar para dentro de si
mesmos e olhar para Cristo. Em todo caso, a ênfase de Flavel é que a
própria luta reflete a existência de vida. Se não fôssemos regenerados,
simplesmente não nos importaríamos. O anseio por Cristo, a frustração em
nossas quedas, o desejo de nos rendermos completamente a Deus, esses são
os retumbantes indicadores de vida, ainda que se trate de uma vida imatura.
Deus não o abandonará. Ele certamente o amará agora e até o céu.
Nesse ínterim, Deus está ensinando-o a não desistir de seu projeto de
mortificação. Seus próprios esforços de lutar contra seu pecado entristece
Satanás. Lutar é vencer. C. S. Lewis expressou essa ideia muito bem em
uma carta de janeiro de 1942. Com essa palavra de conforto, terminamos
este capítulo:
Sei tudo sobre o desespero de vencer as tentações crônicas.
Não é sério, contanto que o mau humor que se auto-ofende, a inquietação com ser o
melhor, a impaciência etc. não nos dominem. Nenhuma quantidade de quedas nos
destruirá realmente, se continuarmos nos levantando vez após vez. Sem dúvida, seremos
filhos muito enlameados e esfarrapados no momento em que chegarmos ao lar. Mas os
banheiros estão todos prontos, as toalhas, separadas, e as roupas limpas, penduradas no
armário.
A única coisa fatal é enfurecer-se e desistir. É quando notamos a sujeira que Deus está
mais presente conosco. Esse é o próprio sinal de sua presença.77

68 C. S. Lewis, The collected letters of C. S. Lewis, vol. 3, Narnia, Cambridge, and Joy, 1950-1963, ed. Walter Hooper (San
Francisco: HarperCollins, 2009), p. 1007-08.
69 Richard Sibbes, The bruised reed (Edinburgh: Banner of Truth, 1998), p. 54-55.
70 Esse é o título do cap. 15 de A última batalha, de C. S. Lewis, 3. ed., trad. Silêda Steuernagel, São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2014, p. 189.
71 John Flavel, Keeping the Heart: How to Maintain Your Love for God (Fearn, Ross-shire, Scotland: Christian Focus, 2012),
p. 43.
72 Sinclair B. Ferguson, John Owen on the Christian life (Edinburgh: Banner of Truth, 1987), p. 100n1. O Salmo 130 se tornou
tão pessoalmente precioso para Owen que ele escreveria uma densa exposição de duzentas páginas sobre esse salmo, contida no
volume 6 da coletânea de suas obras.
73 John Owen, Overcoming sin and temptation, ed. Kelly M. Kapic e Justin Taylor (Wheaton, IL: Crossway, 2006), p. 50.
74 “The big picture: news stories in photographs”, Boston.com, 10 de abril de 2009,
http://archive.boston.com/bigpicture/2009/04/holy_week.html.
75 Flavel, Keeping the heart, p. 45.
76 Flavel, Keeping the heart, p. 94.
77 Lewis, Collected letters, 3:507; ênfase original.
8 | Respiração

Até aqui, os capítulos deste livro examinaram temas abrangentes.


Realidades como nossa união com Cristo, a acolhida que Cristo nos dá ou
nossa absolvição diante de Deus por meio da maravilha da justificação —
essas são verdades atemporais em que cremos e que absorvemos em nosso
coração durante toda a vida. No entanto, como, na prática, dia após dia,
fazemos isso? Quais são os instrumentos pelos quais esse crer e esse
absorver acontecem?
Este capítulo responde a essa pergunta. Na verdade, existem muitas
respostas válidas a essa pergunta — a importância de participarmos
regularmente dos sacramentos da igreja, de fazermos parte da comunhão
cristã por meio da igreja local, de cultivarmos amizades cristãs profundas e
assim por diante. Mas quero considerar apenas duas práticas comuns,
previsíveis, maravilhosas e vitais: a leitura da Bíblia e a oração.
O meio para refletirmos sobre essas duas práticas é a metáfora da
respiração. Ler a Bíblia é inspirar. Orar é expirar.
Nosso grande tesouro terreno
O que é a Bíblia? É nosso maior tesouro terreno. Você permanecerá forte,
crescerá em Cristo, andará com alegria e abençoará este mundo se conhecer
este livro. Eis a introdução à Bíblia publicada pelos Gideões:
A Bíblia contém a mente de Deus, o estado do homem, o caminho da salvação, a
condenação dos pecadores e a felicidade dos crentes. Suas doutrinas são santas, seus
preceitos são norteadores, suas histórias são verdadeiras e suas decisões são imutáveis.
Leia-a para ser sábio, creia nela para ser salvo e pratique-a para ser santo. A Bíblia contém
luz para dirigi-lo, alimento para sustentá-lo e consolo para animá-lo.
A Bíblia é o mapa do viajante, o cajado do peregrino, a bússola do piloto, a espada do
soldado e o estatuto do cristão. Aqui o Paraíso é restaurado, o céu é aberto, e os portões do
inferno, revelados.
Cristo é o grande assunto da Bíblia; nosso bem, o desígnio dela, e a glória de Deus, sua
finalidade. A Bíblia deve encher a memória, governar o coração e guiar os pés. Leia-a
devagar, com frequência e em atitude de oração. É uma mina de riqueza, um paraíso de
glória e um rio de prazer. Ela é dada a você em vida, será aberta no julgamento e lembrada
para sempre.
A Bíblia envolve a mais elevada responsabilidade, recompensa a maior perda e condenará
todos os que escarnecem de seus conteúdos sagrados.

Cito isso na íntegra porque, inevitavelmente, essas palavras reverentes


nos colocam face a face com a preciosidade sagrada da Bíblia. Quem é
capaz de ler isso e não dedicar toda a sua vida a ser um estudante da Bíblia?
A Escritura não é um benefício auxiliar para uma vida que, sem ela, já se
acha bem ordenada, necessitando apenas de um pequeno impulso extra. A
Escritura molda, energiza, oxigena. Ela é vital. Jesus orou: “Santifica-os na
verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17). Santificação profunda é,
por óbvio, um livro sobre santificação. Jesus disse que precisamos da
Palavra de Deus, que é a verdade, para a santificação acontecer.
Reconstruindo
Como assim? Seres humanos caídos entram neste mundo por erro. Não
olhamos para nós mesmos corretamente, não contemplamos Deus com
correção, não entendemos o caminho para a verdadeira felicidade, somos
ignorantes quanto ao destino para o qual a história se encaminha, não
possuímos a sabedoria que faz a vida funcionar bem e assim por diante. A
vida cristã — isto é, nosso crescimento em Cristo — nada mais é do que,
por um lado, uma desconstrução vitalícia do que naturalmente pensamos e
assumimos e, por outro lado, uma reconstrução da verdade por meio da
Bíblia. Pense em um prédio que foi erigido por trabalhadores não treinados,
de forma que é um completo desastre — pisos desnivelados, janelas do
tamanho errado, cores que não combinam, telhas em falta, fundação
instável. Esse edifício somos nós. A Bíblia é a ferramenta multiuso,
universal e resistente por meio da qual o Arquiteto divino nos conserta e
nos conforma ao projeto original.
Tendemos a pensar que fomos colocados aqui na terra para construir um
nome para nós mesmos. A Bíblia destrói essa noção, substituindo-a pelo
conhecimento de que fomos colocados aqui para propagar a reputação e a
honra de Deus. Tendemos a pensar que Deus nos aceitará se atendermos a
um padrão mínimo de bondade pessoal. A Bíblia destrói essa ideia e insiste
em que Deus nos aceita quando abandonamos qualquer tentativa de
oferecer-lhe nossas realizações e, em vez disso, recebemos seu favor com
base na obra de seu próprio Filho. Tendemos a pensar que não valemos
muito ou que somos insignificantes no panorama geral da história. A Bíblia
destrói esse pensamento e nos diz que somos criados à imagem do próprio
Deus, com dignidade inerente, e que somos criados para governar o cosmos
em glória eterna. Tendemos a pensar que as coisas deste mundo, como
alimento, sexo e férias prolongadas, satisfazem nossa alma. A Bíblia destrói
essa concepção e nos ensina que as dádivas não podem jamais satisfazer a
sede de nossa alma. Somente o Doador pode fazê-lo.
E assim por diante. A Bíblia nos reeduca. Produz sábios a partir de tolos.
Ela nos corrige.
Oxigênio
Mas nós temos de ir além. A Bíblia não somente nos corrige. Ela também
nos oxigena. Precisamos da Bíblia não apenas porque estamos errados em
nossa mente, mas também porque somos vazios em nossa alma.
É por essa razão que gosto da metáfora da respiração. Tomar um grande
fôlego para nossos pulmões nos enche de ar fresco, proporciona-nos
oxigênio, acalma-nos, dá-nos foco e nos traz clareza mental. O que a
inspiração faz por nós fisicamente, a leitura da Bíblia faz por nós
espiritualmente.
Neste mundo instável e incerto, Deus nos dá palavras substanciais.
Palavras concretas, fixas, inalteráveis. Podemos ir à rocha da Escritura em
meio às areias movediças desta vida. Sua Bíblia terá amanhã as mesmas
palavras que tem hoje. Os amigos não nos podem dar isso. Eles entrarão em
sua vida e dela sairão; serão leais hoje, mas ausentes amanhã. Pais e seus
conselhos morrerão. Seu pastor nem sempre estará disponível para atender à
sua chamada. O conselheiro que lhe tem dado instrução sábia se aposentará
um dia, ou talvez você mude de estado. Todavia, você pode levantar-se da
cama amanhã cedo, não obstante os fatores de estresse que percorrem
incomodamente seu horizonte mental, enquanto você geme diante das
ansiedades do dia, a Bíblia, sua amiga, será infalivelmente firme. Ela estará
lá, esperando para ser aberta, pronta para lhe dar firmeza em meio a todas
as perguntas não respondidas que estarão diante de você naquele dia. A
Bíblia lhe dará aquilo de que você necessita e não se esquivará de você.
Nossa sabedoria mais verdadeira e nossa única segurança consistem em
edificar nossa vida sobre as palavras da Bíblia (Mt 7.24-27).
Por meio da Escritura, é o próprio Deus quem fala conosco. A razão pela
qual a Bíblia não muda e não se modifica é que Deus não muda e não se
altera. A Bíblia é não somente o melhor livro que existe entre todos os que
existem. A Bíblia é um tipo diferente de livro. É de outra categoria. É
semelhante a outros livros porque está encadernada entre duas capas e cheia
de pequenas letras escuras que compõem palavras em toda sua extensão.
Porém, a Bíblia é diferente dos outros livros, da mesma forma que a
precipitação de chuva é diferente da mangueira em seu jardim. Ela vem do
alto e nos dá um tipo de nutrição muito superior à que nossos próprios
recursos podem prover.
Por quê? Porque o autor da Bíblia é Deus, e Deus sabe exatamente o que
nos nutrirá. Sim, autores humanos escreveram os livros da Bíblia, mas eles
“falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). Deus
ou os homens escreveram a Bíblia? Ambos. Nessa ordem. Deus falou a
Jeremias: “Eis que ponho na tua boca as minhas palavras” (Jr 1.9). Essa é
exatamente a maneira como devemos entender a Escritura: Deus colocou
suas palavras na boca de homens. As palavras são verdadeiramente de
Deus, mas ele as deu por meio das personalidades e do vocabulário próprios
dos autores humanos. É por isso que a elegância simples de João pode
distinguir-se nitidamente da rispidez sucinta de Marcos ou das sentenças
elaboradas e longas de Paulo, embora os três comuniquem verdadeira e
plenamente a Palavra de Deus.
Visto que a Bíblia foi escrita em outras línguas — hebraico, aramaico e
grego —, seremos nutridos ao máximo pela Escritura à proporção que
lemos uma tradução da Bíblia que expresse a fraseologia original com a
maior transparência possível, mas em uma linguagem compreensível e
solene. Todo cristão que dedicar seu tempo a aprender algo das línguas
originais se beneficiará dez vezes mais desse esforço despendido. A saúde
da igreja depende do conhecimento das línguas originais, de sorte que
pastores e líderes eclesiásticos devem chamar seu povo — qualquer um que
estiver inclinado a fazê-lo — a aprender as línguas com eles.78
Um livro de boas notícias
Muitos de nós, entretanto, lidamos com a Bíblia não como uma fonte de
oxigenação, mas como um instrumento de sufocamento. Vemos a Bíblia
repousando sobre a mesa de canto. Sabemos que devemos abri-la. Às vezes,
nós a abrimos. Mas, em geral, nós fazemos isso com um senso de dever
enfadonho. A vida é muito exigente, pensamos. Eu realmente preciso de
mais demandas? Tenho de ouvir ainda mais instruções que me dizem como
viver?
Esse é um sentimento compreensível, mas, lamentavelmente, está errado
e me leva ao fato central que desejo revelar sobre a Bíblia, à medida que
continuamos a refletir sobre como os pecadores genuínos obtêm estímulo
para realizarem uma mudança genuína em suas vidas. A Bíblia são boas
notícias, não um discurso motivador. Notícias. O que são notícias? São
relatos sobre algo que aconteceu. A Bíblia é semelhante à primeira página
do jornal, e não à coluna de conselhos. Certamente, a Bíblia contém muitas
instruções, mas as exortações e os mandamentos da Escritura fluem de sua
principal mensagem, como costelas que se estendem de uma coluna
vertebral, como centelhas que saem de um fogo, como as regras da casa
prescritas para os filhos. Paulo disse que o Antigo Testamento foi escrito
para que, “pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).
Ele disse: “As sagradas letras [...] podem tornar-te sábio para a salvação
pela fé em Cristo Jesus” (2Tm 3.15). A Bíblia é ajuda, não opressão. Ela
nos foi dada para nos sustentar ao longo da vida, e não para nos arrasar.
Nossos próprios pensamentos obscuros sobre Deus são a razão que nos
esquiva de abrir a Bíblia e de nos render a ela.
Entediarmo-nos de ler a Bíblia é como um asmático crônico que, embora
com falta de ar, se entedia da oferta gratuita de um respirador. Leia a Bíblia
com o desejo de saber não principalmente quem imitar e como viver, mas
o que ela mostra sobre um Deus que ama salvar e sobre pecadores que
precisam de salvação. Em outras palavras, os primeiros capítulos deste
livro, que descrevem Jesus, a união com Cristo, a justificação e o amor de
Deus, são, cada um deles, um meio de chegarmos à mensagem central da
Bíblia.
Talvez pareça óbvio que a Bíblia são boas-novas. De que outra maneira
poderíamos lê-la? Aqui, porém, estão nove maneiras comuns e equivocadas
de lermos a Bíblia:
1. A abordagem altamente sentimental — lermos a Bíblia a fim de
que tenhamos uma experiência estimulante e subjetiva de Deus,
induzida pelas palavras do texto, quer entendamos o que significam,
quer não. Resultado: leitura frívola.
2. A abordagem rabugenta — lermos a Bíblia motivados por nada
mais que um senso vago de que devemos fazê-lo, para não termos Deus
em nosso encalço durante o dia. Resultado: leitura ressentida.
3. A abordagem da mina de ouro — lermos a Bíblia como uma mina
vasta, cavernosa e escura, na qual alguém tropeça ocasionalmente em
uma pepita de inspiração. Resultado: leitura confusa.
4. A abordagem do herói — lermos a Bíblia como um rol da fama
moral que nos oferece diversos exemplos de gigantes espirituais
heroicos para imitarmos. Resultado: leitura desesperançada.
5. A abordagem das regras — lermos a Bíblia à procura de
mandamentos a que devamos obedecer, com o propósito de
reforçarmos sutilmente um senso de superioridade pessoal. Resultado:
leitura farisaica.
6. A abordagem Indiana Jones — lermos a Bíblia como um
documento antigo sobre eventos do Oriente Médio que ocorreram há
milhares de anos e que são irrelevantes para minha vida hoje.
Resultado: leitura monótona.
7. A abordagem da bola oito mágica — lermos a Bíblia como um
mapa de viagem que nos diz onde trabalhar, com quem nos casar e qual
carro comprar. Resultado: leitura ansiosa.
8. Abordagem das fábulas de Esopo — lermos a Bíblia como uma
coletânea de ótimas histórias desagregadas que foram reunidas de
forma independente, cada uma das quais possui lição moral no fim.
Resultado: leitura desconexa.
9. A abordagem doutrinária — lermos a Bíblia como um depósito
teológico que saqueamos a fim de obter munição para nosso próximo
debate teológico no Starbucks. Resultado: leitura apática.
Existe alguma verdade em cada uma dessas abordagens. Porém, fazer de
qualquer uma delas a principal lente pela qual lemos a Escritura significa
transformar a Bíblia em um livro que ela nunca tencionou ser. A maneira
correta de lermos a Bíblia é a abordagem evangélica. Isso significa que
lemos cada passagem como uma contribuição para o enredo único e
abrangente da Escritura, que culmina em Jesus.
Assim como você não teria a expectativa de entender todo o significado
de um romance caso caísse de paraquedas na metade dele e lesse um
parágrafo descontextualizado, também não pode esperar entender tudo que
uma passagem da Escritura significa sem a situar no quadro maior da
narrativa bíblica. A principal história da Bíblia é que Deus enviou seu
Filho, Jesus, para fazer o que Adão, Israel e nós mesmos não conseguimos
fazer — honrar a Deus e obedecer-lhe plenamente. Toda palavra na Bíblia
contribui para essa mensagem. O próprio Jesus disse isso. Num debate
teológico com a elite religiosa da época, Jesus disse àqueles que afirmavam
ser fiéis a Moisés e se opunham a Cristo: “Se, de fato, crêsseis em Moisés,
também creríeis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito” (Jo
5.46). Jesus disse a seus discípulos: “Importava se cumprisse tudo o que de
mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos [maneira
sucinta de se referir a todo o Antigo Testamento]” (Lc 24.44).
A Bíblia são boas-novas. Ela tem de ser lida como Evangelho. O
resultado dessa abordagem é uma leitura transformadora. Nós crescemos.
Como Lutero disse:
Aquele que quer ler as Escrituras de maneira correta e proveitosa deve cuidar para achar
Cristo nelas. Dessa forma, sem dúvidas, ele achará a vida eterna. Por outro lado, se não
estudo e não entendo Moisés e os Profetas de modo a descobrir que Cristo veio do céu para
minha salvação, tornou-se homem, sofreu, morreu, foi sepultado, ressuscitou e ascendeu ao
céu, para que, por meio dele, eu desfrute a reconciliação com Deus, o perdão de todos os
meus pecados, a graça, a justiça e a vida eterna, então minha leitura da Escritura não tem
proveito algum para minha salvação.
Posso, sem dúvida, tornar-me um homem erudito por ler e estudar a Escritura e pregar o
que tenho obtido; mas nada disso me faria bem algum.79

O hábito definidor
Portanto, à medida que, para crescer em Cristo, você busca se tornar um
humano mais profundo, aceite e adote a verdade de que terá de se
aprofundar na Escritura para aprofundar-se em seu relacionamento com
Cristo. Ler a Escritura é ler a respeito de Cristo. Ler a Escritura é ouvir a
voz de Cristo. Ouvir a voz de consolo e conselho de Cristo é ouvir um
convite para se tornar o ser humano que Deus o destinou a ser.
Portanto, introduza a leitura da Bíblia em sua vida da mesma forma que
você introduz o café da manhã em sua vida. Afinal de contas, nós,
humanos, somos criaturas que formam hábitos. Nosso café da manhã, nossa
sobremesa da hora do jantar, a maneira como cuidamos de nossos carros,
nossos métodos de descontração, como caminhar, assistir a filmes e
observar os pássaros — todos os nossos hábitos refletem um gosto
adquirido durante um longo tempo, resultando em rituais diários sem os
quais não sentimos ter vivido um dia normal. E quero dizer: faça da Bíblia
seu principal ritual do dia. Torne-a um hábito sem o qual você não vive
um dia normal. Não permita, de modo algum, que isso se torne uma lei que
o condene. O favor de Deus não muda nem um pouco se você deixar de ler
a Bíblia por alguns dias. Contudo, considere-se desnutrido quando tornar-se
normal que você perca essa refeição espiritual. Lute para se manter
saudável. Por meio da leitura diária da Bíblia, mantenha-se conectado à
alimentação, à ajuda, ao conselho e à promessa do Evangelho. Obtenha vida
e força das Escrituras.
Retornando à nossa metáfora original, pegue sua alma asmática em uma
mão e o tanque de oxigênio da Bíblia na outra; em seguida, junte-as. Ler a
Bíblia é inspirar.
Expirar
Orar é expirar. Inspire, expire. Inalamos as vivificadoras palavras de Deus e
as expiramos de volta para Deus em oração.
A razão pela qual quis incluir a Escritura e a oração em um único
capítulo neste livro sobre o crescimento em Cristo é ressaltar quão inter-
relacionadas e mutuamente dependentes são. Podemos facilmente pensar
nessas duas disciplinas como atividades independentes. Lemos a Bíblia e
oramos. Entretanto, a maneira mais eficiente de orar é tomar sua Bíblia e lê-
la em oração,80 enquanto a melhor maneira de ler a Bíblia é em oração.
Como a oração se encaixa neste livro? Este é um livro sobre o
crescimento em Cristo, e meu tema ressoante consiste em que a vida cristã
é, em essência, uma questão não de fazer mais ou de se comportar melhor,
mas de se aprofundar. A primeira ênfase que tenho dado é que crescemos
especificamente ao nos aprofundarmos no Evangelho, no amor de Cristo e
em nossa união com ele. Ao pensarmos agora sobre a oração, isto é o que
estamos fazendo: refletindo sobre a maneira como nossa alma tem de ir a
Deus em Cristo, para desejá-lo, anelar por ele, recebê-lo, viver nele e
agradecer-lhe por seu amor infinito. O Evangelho chega até nós por meio
das Escrituras, e na oração nós o recebemos e o desfrutamos.
Em outras palavras, conectar a oração com a leitura da Bíblia é
simplesmente reconhecer que Deus é uma pessoa real com quem os crentes
têm um relacionamento genuíno, a cada instante. A Bíblia é Deus falando
conosco. A oração consiste em falarmos com Deus. Se não oramos, não
cremos que Deus é uma pessoa real. Podemos até dizer que cremos, mas
não cremos de fato. Se não oramos, pensamos realmente que ele é algum
tipo de força impessoal, um tipo de ideal platônico, distante e separado,
poderoso e abstrato. Não o vemos como um Pai.
Filhos conversando com o Pai
Nunca tive de falar a meus filhos que tentassem começar a falar. Tão
naturalmente quanto começaram a respirar assim que nasceram, começaram
a tentar falar quando tinham apenas alguns meses de idade. O impulso de
falar estava embutido neles.
De modo semelhante, os filhos de Deus encontram dentro de si o
impulso para falar com seu Pai celestial. Romanos e Gálatas nos falam do
desejo balbuciante de falar com nosso Pai que surge quando somos
habitados pelo Espírito — clamamos: “Aba, Pai” (Rm 8.15; Gl 4.6). Esse é
um clamor de intimidade, de dependência, o clamor de um filho. Com
frequência, não sabemos o que ou como orar. Jesus nos deu a Oração do
Pai-Nosso como um meio de nos ajudar. Porém, outra ajuda é o Espírito
simplesmente balbuciar em nosso espírito, ligado a uma mente cheia da
Escritura, elevando-nos ao céu com os gorgolejos de um infante. Jesus nos
disse o que orar; mas, quando não sabemos o que orar, “o mesmo Espírito
intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis” (Rm 8.26).
Fomos unidos a Cristo pelo Espírito; portanto, Deus vive em nós. Quando
não podemos orar, em certo sentido, Deus ora por nós: “o mesmo
Espírito intercede por nós”.
Assim, passamos o dia em oração. A Bíblia diz: “Orai sem cessar” (1Ts
5.17). Isso talvez pareça impossível. Como vou comer, dormir e conversar
com meus amigos se devo orar o tempo todo? Esse, porém, não é o ensino
do texto. O ensino é que avançamos pela vida orando, em vez de apenas
separarmos alguns minutos de manhã ou à tarde para a oração. Certamente,
tempos planejados de oração focalizada são indispensáveis. Mas, se isso é
tudo que fazemos — se, durante todo o dia, nossa única oração são alguns
minutos reservados em que oramos por uma lista de assuntos —, não
conhecemos Deus como Pai. Ainda não absorvemos as verdades sobre as
quais refletimos anteriormente neste livro, ou seja, quem Jesus é mais
profundamente, nossa união vital com ele e assim por diante.81
O que você diria a uma filha de 10 anos que nunca falou com seu pai,
nunca lhe pediu nada, nunca lhe agradeceu, nunca expressou amor a ele,
apesar de suas muitas expressões de amor por ela? Você concluiria que essa
filha acreditava em seu pai apenas em tese, mas não em realidade. Você
poderia apenas concluir que o amor de seu pai não era real para ela.
Passe seu dia orando. Permita que Deus seja seu Pai a cada momento.
Ouça a voz dele na Escritura pela manhã e transforme essa Escritura em
oração. Em seguida, permita que esse tempo com ele — essa comunhão de
ouvir e falar — conceda a você um dia todo de comunhão com Deus.
O livro de oração da Bíblia
Enquanto refletimos sobre oração, precisamos fazer uma pausa e refletir
sobre o único livro da Bíblia que é uma série de orações: o livro de Salmos.
Digo frequentemente que a Bíblia é Deus falando conosco. Os Salmos,
porém, são o único livro da Bíblia dirigido a Deus. Ali, Deus nos toma pela
mão e nos dá palavras para lhe respondermos. Os Salmos são orações.
Por isso, eu lhe proponho que, à medida que for crescendo em Cristo,
forme o hábito vital de fazer do livro de Salmos seu companheiro vitalício.
Seja um amigo íntimo dos Salmos. Nunca fique muito tempo sem fazer
deles sua própria oração. Eles dão voz, voz sagrada, a cada circunstância, a
cada emoção, a cada aflição por que passamos no deserto deste mundo
caído. Mais exatamente, os Salmos treinam nosso coração na direção
evangélica. Conduzem-nos às grandes, gloriosas e básicas verdades que
amamos e confessamos — mais centralmente, à cruz de Jesus, que nos
perdoa e é nosso padrão para a vida. João Calvino escreveu:
Além do mais, ainda que os Salmos estejam repletos de todo gênero de preceitos que
servem para estruturar nossa vida a fim de que a mesma seja saturada de santidade, de
piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão e nos exercitarão para
podermos levar a cruz; e levar a cruz é uma genuína prova de nossa obediência, visto que,
ao fazermos isso, renunciamos a liderança de nossas próprias afeições e nos submetemos
inteiramente a Deus, permitindo-lhe nos governar e dispor de nossa vida segundo os
ditames de sua vontade, de modo que as aflições que são as mais amargas e mais severas à
nossa natureza se nos tornem suaves, porquanto procedem dele. Numa palavra, aqui não só
encontraremos enaltecimento à bondade de Deus, a qual tem por meta ensinar aos homens a
descansarem nele só e a buscarem toda a sua felicidade exclusivamente nele; cuja meta é
ensinar aos verdadeiros crentes a confiadamente buscarem nele, de todo o seu coração,
auxílio em todas as suas necessidades. Mas também descobriremos que a graciosa remissão
dos pecados, a qual é o único meio de reconciliação entre Deus e nós, e a qual restaura
nossa paz com ele, é tão demonstrada e manifesta, como se aqui nada mais faltasse em
relação ao conhecimento da eterna salvação.82

Ao ler os Salmos com calma e de forma meditativa, permitindo que


deem voz às aflições de seu próprio coração, você se verá pensando: “Esses
poetas me conhecem”. De fato, eles me conhecem melhor do que conheço a
mim mesmo. Veem meu pecado mais claramente do que eu o vejo. Em
resumo, eles me levam para águas mais profundas, de maneira que
fomentam meu crescimento em Cristo.
Inspire, expire
Em maio de 2020, o Wall Street Journal veiculou um artigo escrito por
James Nestor intitulado “O poder de cura da respiração correta”. A
descrição, logo abaixo do título, era a seguinte: “A forma como inspiramos
ou expiramos tem efeito profundo em nossa saúde”.83 Isso é tudo que quero
dizer neste capítulo, espiritualmente falando.
Você não tentaria passar a vida segurando sua respiração. Por isso, não
viva sem a leitura da Bíblia ou sem oração. Deixe sua alma respirar.
Oxigene-se com a Bíblia e expire o CO2 da oração, respondendo a Deus
com sua admiração, sua preocupação, sua espera. Ele não é uma força, um
ideal ou uma máquina. Deus é uma pessoa. Mantenha aberto o canal entre
sua pequena vida e o próprio céu, por meio da Bíblia e da oração.
Assim, você crescerá. Você não conseguirá perceber isso diariamente,
mas chegará ao fim de sua vida como uma pessoa radiante e firme e terá
deixado um rastro de aroma do céu. Terá abençoado o mundo. Sua vida terá
sido importante.

78 Uma excelente introdução ao assunto de aprender as línguas bíblicas é Dirk Jongkind, An introduction to the Greek New
Testament produced at Tyndale House, Cambridge (Wheaton, IL: Crossway, 2019).
79 Martin Luther, Sermons I, em Luther’s works, ed. Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Fortress,
1955–1986), 51:4.
80 Um guia realmente útil para essa finalidade é Donald S. Whitney, Praying the Bible (Wheaton, IL: Crossway, 2015).
81 O melhor livro que conheço sobre oração e que enfatiza esse ensino de passar o dia em oração em plena consciência de nossa
posição como filhos adotados é Paul E. Miller, A praying life: connecting with God in a distracting world, ed. rev. (Colorado
Springs: NavPress, 2017).
82 João Calvino, Salmos – vol. 1. Série Comentários Bíblicos (São José dos Campos: Editora Fiel, 2009), p. 29.
83 James Nestor, “The healing power of proper breathing”, Wall Street Journal (website), 21 de maio de 2020,
https://www.wsj.com/articles/the-healing-power-of-proper-breathing-11590098696.
9 | Sobrenaturalizado

Em seu livro The tapestry, Edith Schaeffer relata uma conversa suscitada
por uma questão que lhe foi dirigida por seu marido, Francis:
“Edith, gostaria de saber o que aconteceria à maior parte das igrejas e da obra cristã se
acordássemos amanhã e tudo que diz respeito à realidade e à obra do Espírito Santo e tudo
que concerne à oração fossem removidos da Bíblia. Não quero dizer apenas “ignorados”,
mas, de fato, “excluídos”, isto é, que desaparecessem. Gostaria de saber quanta diferença
isso faria.”
Concluímos que isso não faria grande diferença em reuniões de muitas diretorias ou
comitês, bem como em muitas decisões e atividades.84

A tendência natural de todo o nosso ministério e de nosso viver cristão é


proceder a partir de nossos próprios recursos e pedir a Deus que acrescente
sua bênção aos nossos esforços. É assim que todos nós, embora sejamos
crentes que nasceram de novo, tendemos a agir, mesmo sem que o notemos.
Isso, porém, é retroceder. Quando você tem um motor de Lamborghini sob
o capô, é estranho tentar fazer seu carro andar como o de Fred Flintstone,
usando a força de suas próprias pernas no solo. Toda doutrina correta
desprovida de fogo e vida apenas nos tornará mais abertos ao julgamento no
dia final. Fogo e vida, energia e poder, o próprio vislumbre do céu que
todos anelamos ser — tudo isso sucede apenas a uma vida sinceramente
rendida ao Espírito e a seus caminhos tranquilos, graciosos, humildes e
arriscados.
O capítulo final reflete sobre a única maneira de fazer os oito capítulos
anteriores funcionarem em sua vida: caminhar em harmonia com o Espírito
que habita em nós. O Pai ordena a salvação, o Filho a realiza, o Espírito a
aplica. Em outras palavras, não há vida cristã sem o Espírito. A vida cristã é
puramente teórica somente se não houver nenhuma operação do Espírito.
Tudo que vivenciamos de Deus é operação do Espírito. Isso é verdadeiro
na conversão, quando o Espírito abre nossos olhos para nosso pecado e para
a oferta salvadora de Cristo, e também é verdadeiro quanto ao nosso
crescimento.
O principal ponto que quero enfatizar neste capítulo é: por causa do
Espírito, você pode crescer. Você pode realmente crescer. Os sentimentos
de futilidade, aquele senso de impossibilidade, aquela estagnação
permanente num estado de constante resignação — nada disso é do céu,
mas do inferno. Satanás ama sua indolente aquiescência a seu pecado. O
desejo do próprio Senhor Jesus Cristo para você é seu crescimento
incessante. Ele entende com mais profundidade do que você a psicologia do
coração que nutre o pecado do qual, aparentemente, você não consegue se
livrar de uma vez por todas. Jesus é bem-preparado e totalmente capacitado
para removê-lo dessa escuridão, pois ele lhe deu sua dádiva mais preciosa:
seu próprio Espírito Santo. Tudo que eu disse até aqui neste livro,
permaneceria totalmente abstrato sem o Espírito. Tudo soaria como uma
teoria excelente, mas não seria nada mais que isso. O Espírito dá vida,
transformando a doutrina em poder.
O Espírito Santo é a forma como Deus entra em você. Se você é um
cristão, agora é habitado permanentemente pelo Espírito; e, se você é
permanentemente habitado pelo Espírito, foi sobrenaturalizado. Não é
mais apenas você. Você não está sozinho. Há uma companhia que vive em
você, e ela está lá para ficar, provendo tudo de que você precisa para crescer
em Cristo.
Se você escolher permanecer em seus pecados, não poderá comparecer
diante de Deus um dia e dizer-lhe que ele não o supriu com todos os
recursos necessários.
A nova era
Para entendermos o que o Espírito Santo faz e a forma como nos capacita a
crescer, temos de entender, em primeiro lugar, em que ponto nos
encontramos na história da raça humana.
Quando Jesus se manifestou, ele disse: “O tempo está cumprido” (Mc
1.15). Paulo disse que “os fins dos séculos têm chegado” (1Co 10.11).
Pedro escreveu que, com a vinda de Jesus, estamos “no fim dos tempos”
(1Pe 1.20). João disse: “Já é a última hora” (1Jo 2.18). Parece que todos os
apóstolos entenderam que algo momentoso havia acontecido no cenário da
história do mundo. O que eles queriam dizer?
É natural pensarmos que toda a história humana é uma narrativa
relativamente consistente que, um dia, será levada ao ápice decisivo, no
momento em que Jesus retornar. Porém, de acordo com a Bíblia, o ponto de
inflexão mais decisivo na história já aconteceu. Quando Jesus veio e, em
especial, quando morreu e ressuscitou, Deus não estava simplesmente
provendo salvação; também estava dando início a uma nova criação. O fim
da história — quando o Éden 2.0 invadiria este mundo miserável — foi
iniciado no meio da história. Isso não parece um exagero? Pense da
seguinte maneira: o que o Antigo Testamento esperava que acontecesse no
fim do mundo?
1. A desastrosa queda no pecado realizada por Adão no Éden seria
desfeita.
2. Deus faria uma nova criação.
3. O pecado e o mal seriam julgados.
4. Deus triunfaria, uma vez mais e para sempre, sobre seus inimigos.
5. O povo de Deus seria vindicado.
6. As nações do mundo fluiriam para Jerusalém.
7. O Messias viria.
8. O reino dos últimos dias seria iniciado.
9. Os mortos seriam ressuscitados.
Quando chegamos ao Novo Testamento, não vemos os apóstolos se
unindo à esperança do Antigo Testamento quanto a esses eventos finais.
Antes, nós os vemos declarando que cada uma dessas esperanças se
cumpriu.
1. Um segundo Adão de fato triunfou da mesma forma que o primeiro
Adão caiu —ambos foram tentados por Satanás, mas um sucumbiu,
enquanto o outro não (Lc 3.38–4.13). Além disso, não apenas no início,
mas ao longo de todo seu ministério, Jesus demonstrou ser um Adão
bem-sucedido. Cristo, por exemplo, exorcizou demônios, ao passo que
Adão falhou em repelir Satanás do Jardim.
2. A nova criação de Deus realmente alvoreceu (2Co 5.17; Gl 6.15).
3. O pecado foi, de uma vez por todas, julgado na crucificação de Jesus.
Quando Cristo foi crucificado, experimentou o julgamento do fim dos
tempos, o qual convergiu totalmente para um único homem (Rm 5.9;
1Ts 5.9).
4. Quando Jesus foi crucificado, Deus triunfou definitivamente sobre
seus inimigos (Cl 2.13-15).
5. Assim como os “justificados”, o povo de Deus foi vindicado (Rm 5.1).
A declaração de “inocência” prevista para o fim de todas as coisas foi
pronunciada no presente, com base em um evento ocorrido no meio da
história.
6. Os gentios estão agora afluindo como nunca (Rm 15.8-27).
7. O Messias desceu ao cenário da história humana (Rm 1.3-4).
8. Como o próprio Jesus disse, o reino está aqui (Mc 1.15; cf. At 20.25;
28.31; Rm 14.17). Estamos agora nos últimos dias (Hb 1.2).
9. Em Cristo, os mortos são ressuscitados — não ainda fisicamente, mas
espiritualmente, o que é a parte mais difícil. Ser cristão é ser alguém
que foi ressuscitado com Cristo (Ef 2.6; Cl 3.1).
Tudo isso é glorioso. Contudo, há mais um indicador de que a nova era
alvoreceu. Ao lado da vinda do Messias, trata-se do indicador mais
significativo. O Espírito seria derramado. Geerhardus Vos demonstrou
isso em um artigo original intitulado “O aspecto escatológico do conceito
paulino sobre o Espírito Santo”.85 Seu argumento consistia em que, na
teologia de Paulo, o Espírito Santo era a marca definidora de que a nova era
já tivera início.
O Espírito Santo era ativo nos tempos do Antigo Testamento, mas de
forma seletiva. Por exemplo, o Espírito veio sobre Bezalel e Aoliabe, a fim
de capacitá-los para a construção do tabernáculo no qual Deus habitaria (Êx
31.1-6). Mas, no Novo Testamento, o Espírito vem sobre todos os membros
do povo de Deus; eles mesmos são o tabernáculo em que Deus habita. O
Espírito é um dom universal para todo o povo de Deus e é a continuação,
por assim dizer, do próprio Jesus. Ele falou que sua partida era necessária
para que o Espírito viesse (Jo 16.7; cf. 14.12-17). No Espírito, temos algo
mais maravilhoso do que aqueles que falaram e comeram com o próprio
Jesus. Essa chegada do Espírito marca o alvorecer da nova criação.
O primeiro ponto, então, que devemos esclarecer é que, se você é cristão,
foi arrancado da antiga era e colocado na nova. A presença do Espírito em
sua vida é a prova disso. Pecado, dor e futilidade permanecem em sua vida,
porque a presença da nova era não erradica a antiga, mas a sobrepõe. Essa é
a razão pela qual os teólogos falam da “sobreposição de eras”. Em vez de a
antiga era cessar quando a nova teve início, a nova era começou bem no
meio da antiga era. Quando Jesus retornar, a antiga era terá fim. Contudo,
não deixe a presença ininterrupta da antiga era cegá-lo para a maravilhosa
invasão da nova, ocorrida dois mil anos atrás.
Você é uma criatura escatológica. Sem dúvida, você não será perfeito
nesta vida. Não somos capazes de ficar, nem mesmo por alguns segundos,
sem que nossos pensamentos e desejos sejam influenciados pela doença
mental do ego. Mas, em você, o Espírito Santo é mais poderoso que
qualquer pecado. Não há pecado que você não possa vencer. Agora sua
cidadania é celestial. Você tem um Amigo interior que está preparado,
capacitado e pronto agora mesmo para andar com você e retirá-lo de seu
pecado mais sombrio. Sua carteira de identidade espiritual coloca sua
residência, agora mesmo, no céu.
Três tipos de homens
Um problema que pode surgir em sua mente é que um comportamento
correto pode parecer, de fato, realizável sem o Espírito. Não há abundância
de seres humanos decentes que não são habitados pelo Espírito? Com
certeza. Isso acontece porque todas as pessoas são criadas à imagem de
Deus, de maneira que, por sua graça comum e universal, ele restringe muito
da maldade que, de outra forma, se praticaria.
Mas você ainda pode perguntar: precisamos realmente do Espírito para
viver uma vida moral? A resposta é que não precisamos realmente do
Espírito para vivermos uma vida moral, mas precisamos realmente do
Espírito para termos uma vida sobrenatural. Em outras palavras, não
precisamos do Espírito para ser diferentes no aspecto exterior; precisamos
do Espírito para que sejamos diferentes no interior. Novamente: não
precisamos do Espírito para obedecer a Deus; precisamos do Espírito para
nos alegrar em obedecer a Deus. Esse é o único tipo de obediência
verdadeira, visto que a alegria em Deus é, em si mesma, um dos
mandamentos de Deus (Dt 28.47; Sl 37.4; Fp 4.4).
Portanto, podemos desconsiderar Deus ao quebrarmos todas as regras ou
podemos desconsiderá-lo ao cumprirmos todas as suas regras, mas com
relutância.
C. S. Lewis comunica isso de forma brilhante em seu ensaio “Três tipos
de homens”. Ele diz que não há apenas dois, mas três tipos de pessoas no
mundo. O primeiro é formado por aqueles que vivem puramente para si
mesmos e por todos os que servem a seus próprios cuidados egoístas. O
segundo tipo se constitui daqueles que reconhecem que existe algum código
fora de si mesmos que devem seguir — ou a consciência, ou os Dez
Mandamentos, ou o que seus pais lhes ensinaram, ou qualquer outra coisa.
Lewis diz que as pessoas desse segundo tipo veem essa outra reivindicação
moral que se impõe sobre elas, mas sentem alguma tensão entre essa
reivindicação moral externa e seus próprios desejos naturais. Como
resultado, estão constantemente oscilando entre seguir seus próprios desejos
e seguir esse código mais elevado. Lewis compara sabiamente essa tensão
com aquela de pagar impostos — as pessoas nessa segunda categoria pagam
fielmente seus impostos, mas esperam que sobre algo para gastarem
consigo.
Algumas pessoas descartam todas as regras (grupo 1). Outras tentam
cumprir todas as regras (grupo 2). Nenhuma dessas abordagens é o
cristianismo do Novo Testamento. O terceiro tipo de pessoa age num plano
completamente diferente. Lewis assim define:
A terceira classe é formada por aqueles que podem dizer, como o apóstolo Paulo, que, para
eles, “o viver é Cristo”. Essas pessoas se libertaram do cansativo negócio de conciliar as
reivindicações rivais do ego e de Deus, pelo simples expediente de rejeitarem
completamente as reivindicações do ego. A velha vontade egoísta foi mudada,
recondicionada e transformada em uma coisa nova. A vontade de Cristo, em vez de limitar a
vontade dessas pessoas, torna-se a delas. Todo o tempo de que elas dispõem, visto que
pertencem a ele, pertence também a elas, pois elas são dele.86

Lewis prossegue e conclui que é uma atitude simplista ver apenas dois
tipos de pessoas: os desobedientes e os obedientes; já que podemos ser
“obedientes” no sentido de que seguimos determinado código, ainda que à
maneira de um pagador de impostos. A essência do cristianismo autêntico
não é simplesmente fazer o que Deus diz, mas desfrutá-lo. “O preço de
Cristo é algo, de certa maneira, muito mais fácil do que o esforço moral; é
desejá-lo.”87
O objetivo deste livro sobre crescimento cristão é ajudar os cristãos a
abandonarem o segundo tipo de pessoa que Lewis descreve aqui,
transformando-se, cada vez mais profundamente, no terceiro tipo de pessoa.
E este é o ponto: só conseguimos ir da pessoa 2 para a pessoa 3 por meio do
Espírito Santo. Crescer como um discípulo de Cristo não é acrescentar
Cristo à nossa vida, mas, sim, render-nos a ele como a nossa vida. Cristo
não é uma nova prioridade que compete com outras reivindicações, como
reputação, finanças ou satisfação sexual. Ele está nos pedindo que acatemos
a queda livre da rendição total de nossas vidas ao seu propósito. É por isso
que o Espírito Santo habita em nós. Ele está em nós para nos capacitar a
fazer o que seria totalmente impossível se dependêssemos de recursos
carnais — chegarmos à deliciosa e terrificante liberdade de sermos
resolutamente leais a Jesus.
Talvez fazer isso lhe pareça impossível. Essa percepção, porém, é boa.
De fato, fazer isso é impossível. Você nunca chegará lá se, primeiro, não
tentar viver para Cristo por sua própria força e descobrir quão temeroso,
cauteloso e espiritualmente incapaz você é. É nesse momento, quando você
desiste de si mesmo e abandona todo esforço próprio, que seu coração é
mais fértil para o poder sobrenaturalizador do Espírito Santo. Embora o
Espírito habite todo crente, nós sufocamos facilmente sua obra poderosa (Ef
4.30).
Janelas fechadas não podem ser limpas, copos cheios não podem ser
preenchidos, e o Espírito não entra onde tranquilamente agimos com base
em nossa autodependência. No entanto, os aflitos, os vazios, os pedintes, os
que não nutrem esperança em si mesmos, os cansados de pagar a Deus o
imposto da obediência e de tentar viver com o que sobra — o coração deles
é irresistível ao humilde Espírito Santo.
Redirecionando nosso foco
Porém, como? Como exatamente o Espírito Santo impele a mudança
interior nos cristãos?
A principal resposta que o Novo Testamento dá é a seguinte: o Espírito
nos muda ao tornar Cristo maravilhoso para nós. A terceira pessoa da
Trindade faz sua obra ao focalizar a atenção na segunda pessoa da Trindade.
Alguns segmentos da igreja se concentram no Espírito Santo. Sentindo
corretamente a negligência para com o Espírito em certas alas da igreja, eles
tornam o Espírito o ponto central e predominante. “O espírito é o que
vivifica” (Jo 6.63), dizem-nos. “O pendor [...] do Espírito” é “vida e paz”
(Rm 8.6).
Outros setores da igreja enfatizam Cristo — “o qual nós anunciamos”
(Cl 1.28), somos lembrados. “Nós pregamos a Cristo” (1Co 1.23).
Mas o verdadeiro cristianismo apostólico entende que diminuir a
segunda ou a terceira pessoa da Trindade implica, necessariamente,
diminuir a outra. O Espírito fixa nosso olhar em Cristo. Ambos operam em
conjunto. O Espírito e Cristo crescem ou diminuem juntos. Permita-me
mostrar isso brevemente em três passagens da Escritura.
Em primeiro lugar, em João 14 a 16, Jesus conforta os discípulos ao lhes
ensinar que sua partida é boa para eles, para que o Espírito venha. E como
Jesus descreve a obra do Espírito? O Espírito “dará testemunho de” Jesus
(Jo 15.26). O Espírito “glorificará” Jesus (16.13-14). A terceira pessoa
coloca a segunda em destaque. O impulso encorajador do Espírito não é um
poder rude e desprovido de face na vida do cristão. O Espírito inflama
nossa contemplação de Jesus Cristo. A obra subjetiva do Espírito age em
conjunto com a obra objetiva de Cristo.
Em segundo lugar, lembre-se de 1 Coríntios 2.12, passagem rapidamente
mencionada no capítulo 4: “Ora, nós não temos recebido o espírito do
mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por
Deus nos foi dado gratuitamente”. Recebemos o Espírito, diz esse texto, a
fim de compreendermos o que recebemos gratuitamente — a expressão “foi
dado gratuitamente” é uma única palavra grega, derivada da forma verbal
(charizomai) do substantivo “graça” (charis). O Espírito abre nossos olhos
para que vejamos aquilo com o que fomos agraciados. Em harmonia com o
contexto fortemente cristocêntrico de 1 Coríntios 2, tanto antes como depois
do versículo 12, o Espírito abre nossos olhos para que vejamos aquilo com
o que fomos agraciados em Cristo.
Em terceiro lugar, prosseguindo explicitamente com a metáfora de “ver”
(que tenho usado neste capítulo), lembre-se do que Paulo diz em 2 Coríntios
3.18 sobre contemplarmos “a glória do Senhor” (nesse contexto, “Senhor”
refere-se a Jesus). O ensino de Paulo é que a própria contemplação
transforma os crentes. Observe, todavia, o que ele diz em seguida: tudo isso
vem “pelo Senhor, o Espírito” (não uma fusão entre Cristo e o Espírito, mas
simplesmente uma associação sobremodo íntima [cf. Rm 8.9-11]). Em
resumo, o Espírito eficazmente nos leva a contemplar Cristo de uma
maneira que nos transforma.
Meu interesse em considerar essas três passagens é impedi-lo de tentar
andar no poder do Espírito como algum exercício separado de tudo o mais
que eu disse sobre concentrar-se em Jesus Cristo. O capítulo 9 deste livro
não segue uma nova direção. O Espírito Santo realiza tudo o que foi dito
nos oito capítulos anteriores. Seja tão radicalmente guiado pelo Espírito que
você se torne radicalmente centrado em Cristo. Cristo e o Espírito, o Filho
que encarnou e o Espírito que habita — eis sua dádiva em dobro.
Não se concentre demais no próprio Espírito. Concentre-se em Cristo,
pedindo ao Espírito que torne Cristo formoso. O Espírito é a causa eficaz de
seu crescimento, mas Cristo é o objeto que você deve contemplar em seu
crescimento. Um homem não se concentra em seu cérebro quando olha para
sua esposa e reflete sobre quão linda ela é. Ele volta o foco para ela e a
desfruta. Seu cérebro é o que causa eficazmente esse desfrute. Porém, o que
ele poderia responder a alguém que diz que ele tem negligenciado seu
cérebro por ser muito centrado em sua esposa? Ele diria: “Se não fosse meu
cérebro, eu não seria capaz de desfrutar minha esposa. Louvo a Deus pelo
cérebro. Mas não olho para meu cérebro; olho com meu cérebro”.
Um antegosto do céu
Viva em harmonia com a pessoa do Espírito Santo. Peça ao Pai que o encha
do Espírito. Olhe para Cristo, no poder do Espírito. Abra-se para o Espírito.
Consagre-se aos belos caminhos do Espírito em sua vida. Reconheça e
creia, nas profundezas de seu coração, que, sem o poder capacitador do
Espírito, todo o seu ministério, todos os seus esforços, a evangelização e as
tentativas de matar o pecado serão inúteis.
Ao fazer isso, você será um pequeno retrato vivo do próprio céu para
todos ao seu redor, ainda que, sem dúvida, continue a ter inúmeros erros,
pontos fracos e recaídas, como o segundo tipo de homem do qual Lewis
falou. Entretanto, aqui e ali, a princípio por breves impulsos, mas,
gradualmente, por longas extensões do seu dia, você aprenderá a agir com
os próprios recursos sublimes de Deus. Você deixará o rastro do irresistível
sabor do céu, porque levará as pessoas a provar o próprio Jesus, o Senhor
cujo Espírito tomou residência em você.

84 Edith Schaeffer, The tapestry: the life and times of Francis and Edith Schaeffer (Waco, TX: Word, 1981), p. 356.
85 Geerhardus Vos, “The eschatological aspect of the Pauline conception of the Spirit”, em Redemptive history and biblical
interpretation: the shorter writings of Geerhardus Vos, ed. Richard B. Gaffin Jr. (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and
Reformed, 1980), p. 91-125.
86 C. S. Lewis, “Three kinds of men”, em Present concerns (London: Fount, 1986), p. 21. Quanto a formulações semelhantes
ao que Lewis está propondo, embora nenhuma delas seja tão penetrantemente clara quanto a dele, veja Martin Luther, Career
of the reformer III, em Luther’s works, ed. Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Fortress, 1955-
1986), 33:318; Luther, The Christian in society I, em Luther’s works, 44:235-42 (cf. Luther, Lectures on Galatians 1-4, em
Luther’s works, 26:125); Adolf Schlatter, The theology of the apostles, trad. Andreas J. Köstenberger (Grand Rapids, MI:
Baker, 1997), p. 102; Geerhardus Vos, “Alleged Legalism in Paul”, em Gaffin, Redemptive history and biblical
interpretation, p. 390-92; F. B. Meyer, The directory of the devout life: meditations on the Sermon on the Mount (New
York: Revell, 1904), p. 148-51; Herman Ridderbos, Paul: an outline of his theology (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1975), p.
137-40; Søren Kierkegaard, conforme citado em Clare Carlisle, Kierkegaard: A guide for the perplexed (London:
Continuum, 2007), p. 77-83; Martyn Lloyd-Jones, Experiencing the new birth: studies in John 3 (Wheaton, IL: Crossway,
2015), p. 289.
87 Lewis, “Three kinds of men”, p. 22.
Conclusão |E agora?

A conclusão categórica é que o segredo mais profundo para crescermos em


Cristo é: olhe para ele. Fixe sua contemplação nele. Permaneça nele a cada
instante. Fortaleça-se em seu amor. Ele é uma pessoa, não um conceito.
Torne-se pessoalmente familiarizado com ele de forma cada vez mais
profunda, à medida que os anos passam. Como disse o pastor escocês
Andrew Bonar, em uma carta de 1875, escrita quando ele tinha 65 anos:
“Cristo se torna mais precioso a cada dia. Que prazer é conhecer seu
coração de amor!”.88
A esta altura do livro, talvez pareça que seus nove capítulos lhe
ofertaram uma lista de nove estratégias que devem ser implementadas ou de
nove técnicas distintas que você deve guardar na mente. Isso não é tudo que
eu desejo que ressoe em seu coração ao terminar este livro. Não tenho nove
coisas a dizer. Tenho apenas uma: olhe para Cristo. Você crescerá em Cristo
quando dirigir seu olhar para ele. Se você, em vez de fixar os olhos em
Cristo, direcioná-los para seu próprio crescimento espiritual, impedirá o tão
almejado crescimento.
Em 10 de setembro de 1760, John Newton escreveu para a “Senhora
Medhurst”, que fazia parte de um grupo de mulheres que ele visitara em
Yorkshire, a fim de oferecer-lhes conselho espiritual. Respondendo ao
pedido dela e de suas amigas por ajuda para que se tornassem mais
profundas em seu relacionamento com o Senhor, Newton disse:
O melhor conselho que posso enviar ou o melhor desejo que posso ter em relação a vocês é
que tenham um senso permanente e experiencial daquelas palavras do apóstolo que estão
agora mesmo em minha mente: “Olhando para Jesus”. O dever, o privilégio, a segurança,
a indizível felicidade de um crente estão todos condensados nessa única sentença [...] Olhar
para Jesus é o objeto que derrete a alma em amor e gratidão.89
Meu alvo neste livro foi simplesmente guiá-lo a este simples, único e
determinante impulso do coração: olhar para Jesus. Se você olhar para ele,
tudo o mais será nota de rodapé. Tudo o mais fará sentido. Se você não
olhar para Jesus, nenhuma quantidade de técnicas ou estratégias será capaz
de ajudá-lo. Tudo será inútil. Descarte toda distração e olhe para Cristo.
Simplifique seu coração e todas as preocupações que ele contém. Olhe para
Cristo e para seu amor transbordante.
Os nove capítulos deste livro não são passos sequenciais para alcançar
crescimento; são facetas distintas do diamante do crescimento. Para crescer,
precisamos ver quem é o verdadeiro Jesus (cap. 1), desmoronando em seus
braços e continuando a fazer isso durante toda a nossa vida (cap. 2), como
pessoas unidas a ele (cap. 3); absorvendo seu amor imerecido (cap. 4) e a
completa absolvição legal que, baseados em sua obra consumada,
recebemos (cap. 5); sendo, portanto, livres para andarmos na luz (cap. 6) e
recebermos a angústia desta vida como uma manifestação da mão gentil de
Deus, a qual, em vez de nos punir, nos ajuda (cap. 7); vendo o amor de
Cristo ao inalarmos a Bíblia e respondendo-lhe com nosso amor a ele nas
orações que exalamos (cap. 8); e experimentando de fato o amor do céu por
meio do Espírito que habita em nós (cap. 9). Este é um livro que tem um
único objetivo: fique atônito diante do gracioso amor de Jesus Cristo,
demonstrado em sua obra passada e em sua intercessão contínua no
presente. Receba seu amor indescritível pelos pecadores e sofredores. Pare
de resistir. Deixe-o aproximar-se de você. Contemple-o.
Ao fazer isso, a transformação virá pela porta de trás. Se você tentar
mudar simplesmente por mudar, pode apenas mudar seu comportamento.
Você não é capaz de mudar seu coração. Contudo, a mudança meramente
comportamental não é mudança. Pare de olhar para si mesmo — até mesmo
para sua mudança ou para sua falta de mudança — e contemple Cristo.
Tenha comunhão com ele. Abra seu coração. Receba da Escritura o amor e
o conselho de Cristo. Veja-o na Palavra pregada e nos sacramentos de sua
igreja local. Olhe pare ele. Fixe os olhos nele.
Esse foco único é a razão pela qual não quis tratar o assunto de forma
exaustiva neste livro. Não disse quase nada a respeito de algumas facetas
importantes de nosso crescimento espiritual — o domingo, por exemplo, ou
pequenos grupos, ou o jejum, ou a igreja local, ou outros elementos
importantes de um discipulado cristão saudável. Em vez disso, fiz a
seguinte pergunta: o que deve acontecer mais fundamental e profundamente
no coração humano para que uma pessoa tenha impulso e cresça? A
mensagem deste livro é que a maneira como crescemos é recebendo o amor
profundo de Jesus. O Evangelho da graça não apenas nos conquista, como
também nos impulsiona avante. Outros livros serão necessários para
suplementar este, mas são posteriores a este. Sem a convicção deste livro
estabelecida, nenhum outro servirá.
Portanto, deixe que sua união e comunhão com Jesus Cristo, o amigo dos
pecadores, levem-no a aprofundar-se cada vez mais nas maravilhas do
Evangelho. Então, veja seu coração e, consequentemente, toda a sua vida
florescerem.
Aprenda muito sobre o Senhor Jesus Cristo. Sempre que você olhar para
si mesmo, olhe dez vezes para Cristo. Ele é completamente amável. Ele tem
uma majestade infinita, mas também mansidão e graça — tudo para os
pecadores, até mesmo para o principal deles! Viva no sorriso de Deus.
Embeba-se de sua luz. Sinta seu olhar onipresente amorosamente
depositado em você e descanse em seus braços onipotentes. Deixe sua alma
se encher de um senso cativante da doçura, da excelência de Cristo e de
tudo que há nele. Permita que o Espírito Santo preencha todo o espaço de
seu coração. Assim, não haverá lugar algum para tolice, nem para o mundo,
nem para Satanás, nem para a carne.90

88 Em Marjory Bonar, ed., Reminiscences of Andrew A. Bonar (London: Hodder and Stoughton, 1897), p. 224.
89 Letters of John Newton (Edinburgh: Banner of Truth, 2007), p. 47-48.
90 Carta de 1840 de Robert Murray McCheyne, em Andrew A. Bonar, Memoirs and remains of the Rev. Robert Murray
McCheyne (Edinburgh: Oliphant, Anderson, and Ferrier, 1892), p. 293.
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