Filosofia e Humanidades: As Blindagens de Uma Historiografia Sexista
Filosofia e Humanidades: As Blindagens de Uma Historiografia Sexista
Filosofia e Humanidades: As Blindagens de Uma Historiografia Sexista
200491
Yara Frateschi
Unicamp
R E S U MO ABSTRACT
O presente artigo é marcado pela preocupa- The present article is marked by the concern
ção em alargar o chamado cânone da filoso- to expand the so-called canon of western phi-
fia ocidental, patrocinada pela tradição filo- losophy, sponsored by the philosophical tra-
sófica e sua narrativa triunfalista, levada a dition and its triumphalist narrative, carried
cabo pela história da filosofia de ontem e de out by the history of philosophy of yesterday
hoje, com sua disposição de celebrar a Filo- and today, with its willingness to celebrate
sofia mainstream e as grandes mentes mascu- the “Big” Philosophy and the great male
linas, como Kant e Descartes. Trata-se de minds, such as Kant and Descartes. It is
alargar o cânone filosófico e de relançar o about expanding the philosophical canon
projeto das humanidades, em defesa de uma and relaunching the project of the humani-
“história da filosofia aberta e feminista”, ties, in defense of a “history of open and fem-
tendo ao centro Elisabeth da Bohemia, Emi- inist philosophy”, with Elisabeth da Bohe-
lie du Châtelet, Madame de Scudéry e Ma- mia, Emilie du Châtelet at the centre, Mad-
deleine de Sablé, além de Macaulay e Chris- ame de Scudéry and Madeleine de Sablé, as
tine de Pizan. well as Macaulay and Christine de Pizan.
PALAVRAS-CHAVE K E Y WO R D S
História da Filosofia; Mulheres na filosofia; History of Philosophy, Women in Philoso-
Feminismo. phy, Feminism.
discurso, v. %&, n. ( (&*&&), pp. &-–// 29
A fim de refletir sobre o tema Filosofia e Humanidades, proposto pela ANPOF, co-
meço com um diagnóstico não muito animador. A fragmentação interna – relacio-
nada à hiperespecialização precoce – faz com que as tradicionais subáreas da filosofia
se comuniquem pouco e, mais alarmante ainda, faz como que pesquisadoras e pes-
quisadores de uma mesma subárea pareçam uns aos outros como falantes de línguas
desconhecidas1. Se a conversa anda prejudicada internamente, tampouco podemos
dizer que a filosofia esteja se comunicando bem com as demais humanidades e ciências
humanas, o que não significa que não haja comunicação alguma, evidentemente.
São diversos os fatores – de natureza histórica, institucional, metafilosófica ou
filosófica – que nos trouxeram a este ponto. Não me proponho a analisá-los em sua
diversidade, apenas sugerir que a construção do cânon filosófico é um fator a se levar
em consideração quando nos perguntamos pelas razões que nos conduziram à hipe-
respecialização e a um certo isolamento com relação às demais humanidades e ciên-
cias humanas. Pretendo sugerir que a ampliação, ou melhor, a democratização do
cânon talvez seja uma aliada na busca por encurtar distâncias internas e construir
pontes de comunicação mais ricas com as outras áreas. Não se trata apenas de incluir
novos nomes que se adequem à visão consolidada do que é a verdadeira filosofia, mas
de trazer das margens para o centro aquelas e aqueles que foram expulsos da história
da filosofia por elegerem temas não considerados propriamente filosóficos, tanto
pelos filósofos canonizados, quanto por aqueles que os canonizaram.
Antes de colocar em tela o caráter eurocêntrico do cânon, restrinjo-me a nomear
como um problema o fato de que as histórias da filosofia ocidental (além de serem
contadas pelas lentes do Norte) são histórias contadas por homens, nas quais figuram
filósofos homens, como se ao longo da história nunca tivesse havido uma mulher
digna do título de filósofa, nem mesmo nas terras do Norte. Tanto é assim, que nos
livros de história da filosofia Ocidental mais usados no Brasil – de autoria de François
Châtelet, Émile Brehier, Nicola Abbagnano, Giovanni Reale, Bertrand Russell, por
exemplo – não encontramos filósofas, salvo raríssimas exceções, mas um seleto grupo
masculino que nos acostumamos, desde a graduação em filosofa, a identificar com
os grandes e verdadeiros filósofos de todos os tempos. Esses historiadores e tantos
outros fecharam o cânon para as mulheres: para as filósofas da Grécia Antiga, para as
filósofas da Idade Média, do Renascimento, da Modernidade, e também da Con-
temporaneidade. Às vezes encontramos uma ou duas estrelas solitárias.
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1
Sobre o problema da fragmentação, conferir Filosofia e Humanidades, de Ivan Domingues, também neste
volume.
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Empresto de Lisa Shapiro a análise sobre a identificação dos filósofos canonizados como portadores de gran-
des mentes e sigo as pistas deixadas por ela para a contestação dessa visão através de O’Neill (1997 e 2005),
Ebbersmeyer (2019) e Detlefsen (2018).
discurso, v. %&, n. ( (&*&&), pp. &-–// 31
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Para uma excelente abordagem das limitações do método estrutural, conferir Canhada, 2020. Carmel Ramos,
por sua vez, com quem estou plenamente de acordo, defende a necessária contestação do método estrutural
para a reinserção das mulheres na história da filosofia (Ramos, 2020).
discurso, v. %&, n. ( (&*&&), pp. &-–// 33
mas ambas procuram mostrar que as filósofas começaram a ser varridas da historio-
grafia justamente no momento em que a luta pela emancipação feminina se mostrou
forte o suficiente para colocar em ameaça a ordem patriarcal. Em uma passagem,
que vale ser citada na íntegra, O’Neill afirma que
o dramático desaparecimento das mulheres das histórias da filosofia no XIX
só pode ser compreendido se nos movermos para fora da filosofia e examinar-
mos o clima político e social que se seguiu à Revolução Francesa. Desde o
começo da democracia moderna havia uma inquietação cultural em torno de
saber se a entrada limitada das mulheres na nova esfera pública democratizada
iria levar à igual participação das mulheres no poder político e econômico.
Nesse período, a mulher autora passou a simbolizar a autonomia crescente de
todas as mulheres e a possibilidade da sua independência econômica. Ela sim-
bolizava a possibilidade do desmantelamento da ordem patriarcal. Mas foram
as teóricas - especialmente as filósofas – que receberam uma recepção particu-
larmente grosseira no século XIX, pois ser filósofo nesse período era ser um
formador da cultura, ter poder para demarcar e distinguir todos os campos do
conhecimento e para decidir o valor de caminhos alternativos de investigação
e conhecimento. Mas e se “rainhas filósofas” pudesse governar a polis? Tal
desmantelamento da hegemonia masculina no nascimento da democracia mo-
derna era bem mais do que a maioria dos apoiadores da democracia poderia
suportar (O’Neill, 2005, p. 186).
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4
Para excelentes apresentações dessas filósofas, conferir os verbetes “Christine de Pizan” por Ana Schimidt
(Schimidt, 2020); “Elisabeth da Bohemia” por Katarina Peixoto (Peixoto, 2020); “Anne Conway” por Nas-
tasja Pugliesi (Pugliesi, 2020); “Émilie du Châtelet” por Mitieli Seixas (Seixas, 2020).
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Tratei demoradamente das críticas de Macaulay e Wollstonecraft a Rousseau em “Sofia: a grande Contradição
de Rousseau” (Frateschi, 2021).
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nos faz ver que até mesmo a filosofia prática não se esgota no desenho de modelos
políticos e na justificação filosófica das normas políticas e morais, afinal muito fre-
quentemente as mulheres – talvez por terem sido privadas dos “direitos da humani-
dade” (Du Châtelet) – estão comprometidas com a pergunta pela efetivação desses
modelos e normas. Não que isso seja prerrogativa das filósofas e nem que seja uma
verdade para todas, mas eu citei aqui cinco exemplos – Christine de Pizan, Catarina
Macaulay, Mary Wollstocraft e Seyla Benhabib - de filosofias de diferentes épocas
implicadas com a concretização dos direitos e das liberdades que tantos filósofos con-
sagrados afirmaram como sendo direitos e liberdades da humanidade, mas exclu-
indo disso as mulheres. Assim como excluíram os trabalhadores, os negros e os “sel-
vagens”, bons ou maus, mas selvagens.
Muito embora as filósofas mencionadas tenham um amplo leque de interesses
teóricos, não há por que esconder que o lugar que ocupam na sociedade – que é um
lugar de desvantagem em relação aos homens, de privação de direitos e de sofri-
mento diante do desprezo explícito pelas suas capacidades intelectuais – informa a
sua própria maneira de fazer filosofia e de definir a tarefa da filosofia. Ao dar as
razões pelas quais considera Emilie Du Châtelet uma grande filósofa, Karen De-
tlefsen surpreende: ao invés de buscá-las na filosofia natural da autora de Instituti-
ons de Physique (1740), a intérprete defende que a originalidade de Du Châtelet re-
pousa na maneira pela qual ela teoriza sobre a posse da razão, perguntando-se sobre
o papel da educação nesse processo de aquisição.
Essa interessante interpretação sublinha, em primeiro lugar, que tais questões
suscitavam interesse filosófico na época de Du Châtelet, “mesmo que posterior-
mente tenham sido depreciadas dentro da filosofia” (Detlefsen, 2018, p. 130). Em
segundo lugar, Detlefsen sustenta com boas razões que a originalidade e a criativi-
dade no tratamento que Du Châtelet dá às questões envolvendo a mente humana e
o tema da educação estão relacionadas a um ponto de vista epistemológico especí-
fico. A experiência vivida de Du Châtelet enquanto membro de um grupo social em
desvantagem a “permite engajar-se visceralmente e mais diretamente com as ques-
tões da mente, da posse da mente, da educação, especialmente na medida em que
essas questões dizem respeito às mulheres” (Ibid., p. 131). A autora associa Du Châte-
let com uma linha de filósofos e filósofas do primeiro período moderno que tinham
por objetivo fazer com o que a filosofia afetasse a vida humana e, com isso, ela nos
leva a questionar: por que não recuperar a dignidade dessa concepção de filosofia
enquanto instrumento para melhorar a vida humana? Não que esse seja o único
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Para Detlefsen, a exclusão de Du Châtelet e de outras filósofas modernas do cânon está relacionada com a
narrativa historiográfica padrão, que retrata o século XVII “[…] como o século dos racionalistas continentais
(Descartes, Spinosa e Leibniz) e o XVIII como o século dos empiristas britânicos (Locke, Berkeley e Hume).
Kant foi aquele que sintetizou as duas tradições, absorvendo o que era bom de cada uma e descartando o que
não era e promovendo assim o progresso do primeiro período moderno. Essa história foca sobretudo na
epistemologia desses pensadores, com investigação das questões metafísicas na medida em que emergem do
foco na epistemologia. Havia quase nenhuma atenção à teoria dos valores, com exceção no interesse pela
liberdade enquanto decorrente de crenças teóricas sobre a natureza humana e sua interação como o mundo
material e com Deus” (Detlefsen, 2018, p 129).
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Sobre a tarefa da filosofia de acordo com Angela Davis, conferir Rodrigues e Ferreira, 2021.
discurso, v. %&, n. ( (&*&&), pp. &-–// 41
Levando esses fatores em consideração, temos boas razões para defender, com Na-
tassja Pugliesi, uma história feminista da filosofia8 e, com Lisa Shapiro, uma historio-
grafia mais aberta a temas e nomes não consagrados (Shapiro, 2021). Na visão de Sha-
piro, o problema da exclusão das mulheres da história da filosofia não será resolvido
adequadamente apenas pela inclusão de algumas filósofas que podem “se adequar à
agenda filosófica do cânon existente” e que se concentram, por exemplo, em questões
de epistemologia e metafísica. Trata-se de uma reflexão de Shapiro sobre o cânon do
início da modernidade, mas que pode nos ajudar a pensar a questão do cânon de ma-
neira mais abrangente. Ela não pretende, evidentemente, negar a importância das ques-
tões epistemológicas e metafísicas, mas sim contestar a “narrativa canônica da história
da filosofia do início da modernidade” que presume serem essas “as questões mais cen-
trais da filosofia, aquelas que devem ser necessariamente abordadas, e nos força a igno-
rar, quiçá excluir, outras questões filosóficas importantes” (Shapiro, 2021, p. 26).
A aposta de Shapiro, assim me parece, é que se aprendermos a questionar a nar-
rativa canônica, teremos a chance de compreender e abarcar as outras questões filo-
sóficas importantes que essa narrativa nos leva a ignorar por tender a privilegiar a
teoria ideal em detrimento da teoria não ideal. A distinção entre teoria ideal - que
opera com idealizações e exclui a consideração de casos reais - e não ideal - “que
reconhece os agentes humanos nas situações complexas em que se inserem, repletos
de variedades de experiências vividas e em relações sociais confusas e injustas” (Idem,
p. 31) – é baseada em Charles W. Mills e utilizada por Shapiro a fim de iluminar o
fato de que a narrativa canônica da história da filosofia tende a excluir as teorias não
ideais, que se assemelham justamente às abordagens filosóficas de diversas mulheres.
Para incluí-las na história é preciso aprender a não desvalorizar de antemão as abor-
dagens não ideais como se elas não pudessem ser sequer consideradas abordagens
filosóficas. Daí ser imprescindível, para uma outra história da filosofia, mais aberta,
a contestação da visão gueroultiana, “aceita quase acriticamente” (Idem, p. 32), se-
gundo a qual a filosofia é um esforço sistemático para chegar a verdades atemporais.
A rigidez dessa definição reduz o cânon a tão poucos nomes e é aliada de uma his-
toriografia da filosofia que acaba por excluir o trabalho teórico de tantas mulheres.
Portanto, para recuperar a importância das filósofas é preciso reconhecer que
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8
“Em linhas gerais, entendo a história da feminista da filosofia como história da filosofia com recorte de gê-
nero. Ou seja, uma história da filosofia tout court que procura realizar pesquisa e análise filosófica sobre obras
escritas por mulheres, sobre obras escritas sobre mulheres (questões relacionadas à essência, e à natureza de
sua racionalidade, sobre sua capacidade política e retórica, etc) a partir de reflexões sobre metodologia da
pesquisa em história da filosofia, sobre historiografia e sobre os princípios da exegese que esclareçam os efeitos,
a importância e os limites de um recorte de gênero” (Pugliesi, 2021). Para uma interessante reflexão a respeito
da questão do cânon no ensino da história da conferir também Pugliesi, 2019.
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de que essa perspectiva é parcial e precária se não se aliar às críticas antirracistas que
ressaltam o racismo dos filósofos canonizados. A operação de descida da torre, aqui
no Brasil, depende de uma aliança prática e teórica entre feminismo e antirracismo.
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