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Poemas de Guilherme de Almeida

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Versos Escolhidos
Guilherme de Almeida
Arco-Íris: 2- Azul
Primavera.
Um pedaço de céu caiu na terra:
em tufos fofos de flocos frouxos frívolas hortênsias
volantes como crinolinas fúteis
desmancham-se em reverências
ou passeiam como sombrinhas lindamente inúteis
ou pousam empoadas de ar como pompons. O céu
é um grande linho muito passado no anil
que o vento enfuna num varal de vidro. Ele é o
toldo azul de um bazar
onde brinca vestido de ar
um clown elástico, ágil e sutil.

O meu lindo galho de salgueiro

És magra, estranha e delicada


Flexível como um galho de salgueiro
Que um dia mergulhou na água estagnada

Do meu olhar hospitaleiro


E desde então nessa atitude
Vives eternamente perturbando

A superfície espiritual do açude


Que não dorme e vai sonhando
Mas todo sonho é como bolha dourada de sabão
O outono um dia virá tirar-lhe a derradeira folha

Com a sua mão cinzenta e fria


E entre juncais e folhas tortas
A flor do velho lago hospitaleiro
Hão de boiar as tuas folhas mortas,
Meu lindo galho de salgueiro.”

Lembrança

Lembro o pudor da paisagem


e a fanfarra de perfumes
que o claro clarim dos lírios
abria na madrugada.

Lembro o susto dos insetos


na castidade das águas,
e as asas do pó fugindo
atrás da luz desnudada.

Lembro a fala dos caminhos


ao longo dos passos cegos,
e os ventos enovelados
na cabeleira das nuvens.

Lembro o bulício da palha


quando pisavas a tarde,
os olhos cheios de folhas
e as mãos repletas de ninhos.

Lembro a noite dos meus olhos


sem luas no seu silêncio,
quando ficavas na sombra
e a sombra ficava estrela.

Lembro a palavra parada


na flor adiada da boca,
e lembro o beijo retido
ao gesto alado de adeuses.

Natureza-Morta
Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco


de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jaboticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

E sobre esse jogo


de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.
Cuidado!
Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!

Desperta os ninhos vosso passo… E quando


pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando…

Mais cuidado! Não vá vossa alegria


afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem ver!

Poupai a ingenuidade delicada


dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!

Cubismo
Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez...

No halo, que a lâmpada tranquila


rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem... e vai...
e quase cai...

Mas entra alguém: é uma silhueta


que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer...

Um gesto só lânguido e doce:


e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se...
— Todo Arlequim
é mesmo assim...

Branca de neve
Eu te guardo no fundo da memória,
como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Amei-te… E amei-te, figurinha aluada,


porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada…
E és o primeiro sonho que sonhei.
Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

Que fui eu afinal? — Um pobre louco


que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação…

Procurei-a. Meus olhos esperaram


vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

E encontrei a Saudade: ia alva e leve


na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

E parecia morta: mas vivia.


Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

Sinto-me agora mais criança ainda


do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

É que o meu caso (estranha extravagância!)


é a tua história sem tirar nem pôr…
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.
Humorismo

Sossego macio da tarde.


Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos


vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.

Amor, felicidade

Infeliz de quem passa no mundo,


procurando no amor felicidade:
a mais linda ilusão dura um segundo,
e dura a vida inteira uma saudade.

Taça repleta, o amor, no mais profundo


íntimo, esconde a jóia da verdade:
só depois de vazia mostra o fundo,
só depois de embriagar a mocidade...

Ah! quanto namorado descontente,


escutando a palavra confidente
que o coração murmura e a voz diz<
percebe que, afinal, por seu pecado,
tanto lhe falta para ser amado,
quanto lhe basta para ser feliz!

Berceuse
Durma! A noite suave e grande

Anda com passos de lã de

Luar, de penugem de nuvem...

Durma! Em seu corpo alvo e nu vem

Roçar as asas um ar de

Jardins distantes... É tarde.

Durma à sombra dos meus olhos

Como de uma árvore, e molhe os

Seus sonhos nas minhas lágrimas,

Não esperando um milagre, mas

Sentindo que o mal e o bem são

Uma única e mesma bênção...

Durma! E que a minha voz seja

Uma voz que só você já

Ouviu em sonhos: a voz que

A Adormecida no Bosque
Nunca escutou no seu sono...

Durma! E sonhe que eu não sou no

Mundo mais do que silêncio...

Este silêncio que vence o

Meu corpo e brotou do

Seu corpo e que o envolve todo...

Cinema
Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma


atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,


exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.
E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
— são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;


são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons…

É a vida, a grande vida


que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz…

***

Minha melhor lembrança é esse instante no qual


Pela primeira vez me entrou pela retina
Tua silhueta provocante e fina
Como um punhal.

Depois passaste a ser unicamente aquela


Que a gente se habitua a achar apenas bela
E que é quase banal
Agora que te tenho em minhas mãos e sei
Que os teus nervos se enfeixam todos em meus dedos
E os teus sentidos são cinco brinquedos com que brinquei
Agora que não mais me és inédita
Agora compreendo que tal como te vira outrora
Nunca mais te verei…
Agora que de ti por muito que me dês
Já não podes dar a impressão que me deste
A primeira impressão que me fizeste.
Louco talvez
Tenho ciúme de quem não te conhece ainda
E cedo ou tarde, te verá, pálida e linda
Pela primeira vez!

Alguém passou

ALGUÉM passou. E a sua sombra,


como um manto que tomba
de um gesto lânguido ficou no meu caminho.

Ora, o sol já se foi e a noite vem devarinho.


E no entanto
a sombra continua,
nítida e nua,
atirada na terra como um manto.

Faz frio.
Corre pelo meu corpo um áspero arrepio...
E um desejo me vem, tímido e louco,
de agasalhar-me um pouco
nesse manto de sombra morna...

Mas alguém
volta na noite pálida:
volta para buscar sua sombra esquecida.
É dia. E, pela estrada melancólica e árida,
vai tremendo de frio a minha vida...

Nós

Mas não passou sem nuvem de tristeza


esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.

Nem lemos sem vislumbre de incerteza


a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,

Não. Quantas vezes ocultei a minha


dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!

- É que nossa alma às vezes adivinha


que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.

O Idílio suave

Chegas. Vens tão ligeira


e és tão ansiosamente esperada, que enfim,
nem te sentindo o passo e já te tendo inteira,
completamente em mim,
quando, toda Watteau, silenciosa, apareces,
é como se não viesses.

Vens... E ficas tão perto


de mim, e tão diluída em minha solidão,
que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto
e vazio o salão...
E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face,
como se eu te esperasse!

Partes. Mas é tão pouco


o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar
do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco,
e a carícia do olhar,
e a tua boca em flor a dizer-me doidices,
como se não partisses!

Metempsicose
Morrer… Pelos caminhos
ir branco, ir muito frio, ir de roupinha nova,
as mãos em cruz, o olhar de vidro os pés juntinhos:
ir assim para a cova!

Ir e não ver… Bizarro!


E tudo tão luxuoso, e tudo rico, tudo!
Os amigos de preto, as coroas, o carro,
o caixão de veludo…

Bizarro! Que vida, esta!


Ser festejado assim, com tanto rebuliço,
com tanta pompa assim: e o anfitrião da festa
nada a ver de tudo isso!

Depois, a sepultura:
sair de um leito pobre e de colchões macios,
para um de pedra, rico… Ah! mas que cama dura
e que lençóis tão frios!

E desfazer-se aos poucos…


Não ter o que comer e dar comida a tantos
inimigos! Meu Deus, que terra esta de loucos!
De loucos ou de santos?

Ficar assim, agora,


escutando o silêncio e olhando a treva… E, inteira,
completamente só, voltar ao que era outrora:
ser poeira de outra poeira!

Mas, na terra selvagem,


achar uma semente: adubá-la, um minuto,
e ser raiz, e ser arbusto, e ser folhagem,
e ser flor, e ser fruto!

Flor que um Sol Poente banha


e que vai perfumar, enfeitar com ternura
- ó flor de morte, flor paradoxal e estranha! -
a própria sepultura!

Fruto que vai dar vida


aos pássaros do céu! Galho que vai dar sombra
aos homens do caminho! Ou erva apetecida
de apetecida alfombra!

Ah! morrer na certeza


de, assim multiplicado, invisível e mudo,
viver eternamente em toda natureza
e na vida de tudo!

Minha mãe

(Num “Dia das Mães”)

Senhora das mãos de leite


que me sustinham ao seio
para matar minha sede,
minha fome de viver…
Senhora das mãos de sonho
que, fechando o cortinado,
davam um céu ao meu berço,
povoado de anjos e fadas…
Senhora das mãos de benção
pousando na minha fronte
seu vôo de asa e de incenso…
Senhora das mãos de santa
que rezavam os meus dias
como contas de um rosário…
Senhora das mãos de adeus
que partiram, brancas, frias
e cruzadas sobre o peito

(por que partiram? por quê?)

sem ter fechado meus olhos…


Essa que eu hei de amar...

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia,


será tão loura, e clara, e vagarosas, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer a luz e calor a esta alma escura e fria.

E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia


da vida há de acordar no coração que vela...
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz... — Tudo isso eu me dizia,

quando alguém me chamou. Olhei: um velho louro,


e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste...

E falou-me de longe: “Eu passei a teu lado,


mas ia tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!”

Indiferença

Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado


passo. E eu, baixo os meus olhos se te avisto.
E assim fazemos, como se com isto,
pudéssemos varrer nosso passado.

Passo esquecido de te olhar, coitado!


Vais, coitada, esquecida de que existo.
Como se nunca me tivesses visto,
como se eu sempre não te houvesse amado

Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,


se quando passo, teu olhar me alcança
se meus olhos te alcançam quando vais.

Ah! Só Deus sabe! Só nós dois sabemos.


Volta-nos sempre a pálida lembrança.
Daqueles tempos que não voltam mais!

Flor do Asfalto

Flor do asfalto, encantada flor de seda,


sugestão de um crepúsculo de outono,
de uma folha que cai, tonta de sono,
riscando a solidão de uma alameda...

Trazes nos olhos a melancolia


das longas perspectivas paralelas,
das avenidas outonais, daquelas
ruas cheias de folhas amarelas
sob um silêncio de tapeçaria...

Em tua voz nervosa tumultua


essa voz de folhagens desbotadas,
quando choram ao longo das calçadas,
simétricas, iguais e abandonadas,
as árvores tristíssimas da rua!

Flor da cidade, em teu perfume existe


Qualquer coisa que lembra folhas mortas,
sombras de pôr de sol, árvores tortas,
pela rua calada em que recortas
tua silhueta extravagante e triste...

Flor de volúpia, flor de mocidade,


teu vulto, penetrante como um gume,
passa e, passando, como que resume
no olhar, na voz, no gesto e no perfume,
a vida singular desta cidade!

Mormaço

Calor. E as ventarolas das palmeiras


e os leques das bananeiras
abanam devagar
inutilmente na luz perpendicular.
Todas as coisas são mais reais, são mais humanas:
não há borboletas azuis nem rolas líricas.
Apenas as taturanas
escorrem quase líquidas
na relva que estala como um esmalte.
E longe uma última romântica
— uma araponga metálica — bate
o bico de bronze na atmosfera timpânica.
Esta vida

Um sábio me dizia: esta existência,


não vale a angústia de viver.
A ciência, se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo.
E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver


dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,


és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver


dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre


a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,


dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!


Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,


dentro da própria vida, o encanto de viver.

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