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Educação Permanente de ACS - ROCHA, 2015

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DOI: http://dx.doi.org/10.

1590/1981-7746-sip00056 ARTIGO ARTICLE 597

METODOLOGIAS PARTICIPATIVAS E EDUCAÇÃO PERMANENTE NA FORMAÇÃO


DE AGENTES COMUNITÁRIOS/AS DE SAÚDE

PARTICIPATORY METHODOLOGIES AND PERMANENT EDUCATION IN TRAINING COMMUNITY/HEALTH


AGENTS

METODOLOGÍAS PARTICIPATIVAS Y EDUCACIÓN PERMANENTE EN LA FORMACIÓN DE AGENTES


COMUNITARIOS DE SALUD

Natália Hosana Nunes Rocha1


Paula Dias Bevilacqua2
Marisa Barletto3

Resumo Busca-se neste texto refletir sobre o uso de Abstract This article seeks to reflect on the use of
metodologias participativas na educação permanente participatory methodologies in the continuing edu-
de agentes comunitários/as de saúde, numa discussão cation of community/health workers, in a discussion
sobre os limites e potencialidades de tais metodologias about the limits and possibilities of such methodo-
estimularem reflexões e possíveis mudanças nas práti- logies, encouraging reflections and possible changes
cas cotidianas desses profissionais. Foram realizadas in these professionals' daily practices. Transect inter-
entrevistas e caminhadas transversais com os/as agen- views and walks were carried out with the agents,
tes, que resultaram em relatorias utilizadas como mate- which resulted in the rapporteurs that used as mate-
rial de análise. Não seria simples mensurar o impacto rial for analyses. It would be no simple task to measure
que essa metodologia tem no processo de construção the impact that this methodology has on the process
do pensamento reflexivo, mas a análise do potencial of building reflective thought, but the analysis of the
das metodologias participativas em atividades de for- potential of participatory methodologies in the trai-
mação de agentes comunitários da saúde permitiu per- ning activities aimed at community health workers
ceber que houve empoderamento quanto aos temas allowed us to realize that there was empowerment with
abordados. Pôde-se compreender o quão significa- regard to the themes addressed. It was possible to un-
tivas as metodologias se mostraram na abordagem derstand how significant the methodologies have shown
das temáticas, especialmente nos temas ‘prevenção de to be in addressing the issues, especially with regard
doença e promoção da saúde’ e ‘violência de gênero’. to the 'prevention of disease and promotion of health'
Conclui-se que o fato de algo poder ser percebido com and to 'gender violence.' In sum, the fact that some-
outros significados e sentidos possibilita outros mo- thing can be realized with other meanings and senses
dos da produção de práticas cotidianas. allows other modes of production of daily practices.
Palavras-chave construção coletiva; conhecimento e Keywords collective construction; knowledge and
prática; atuação profissional. practice; professional performance.

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Introdução

De acordo com o Ministério da Saúde, a implementação do Programa Saúde


da Família (PSF) se mostrou uma importante conquista para os serviços de
atenção primária na política de saúde brasileira, visando melhorar a quali-
dade de vida da população e educar para a saúde. O PSF, “surgido em 1994
e inicialmente voltado para estender a cobertura assistencial em áreas de
maior risco social, aos poucos adquiriu centralidade na agenda governa-
mental” (Escorel et al., 2007, p. 165). No ano de 1998, o PSF passou a ser
considerado como Estratégia Saúde da Família (ESF), visando à reorientação
do modelo assistencial e à modificação da dinâmica dos serviços e ações
de saúde dos sistemas municipais. Segundo esses autores, a intenção dessa
reorientação foi fazer com que a unidade de saúde da família se mostrasse
como “a porta de entrada ao sistema local e o primeiro nível de atenção, o
que supõe a integração à rede de serviços mais complexos” (Escorel et al.,
2007, p. 165).
As equipes da ESF são compostas por, no mínimo, um médico, um auxi-
liar de enfermagem, um enfermeiro e seis agentes comunitários de saúde
(ACSs). Quando ampliadas, as equipes contam ainda com um dentista, um
auxiliar de consultório dentário e um técnico em higiene dental. Esse/a pro-
fissional, o/a ACS, surge como figura de destaque, já que para exercer suas
funções é exigido que resida no bairro de atuação da equipe, a fim de esta-
belecer o vínculo entre comunidade/usuário e equipe de saúde da família,
fazendo o intermédio entre o conhecimento científico, discurso biomédico
e o saber do senso comum/popular.
Como os/as ACSs estão em contato direto com a população, torna-se ne-
cessária sua formação e capacitação para que possam transformar suas práti-
cas de trabalho, objetivando melhorias da qualidade dos serviços de saúde
e fundamentação para desenvolverem um contínuo trabalho de conscienti-
zação com a comunidade no que se refere a questões ligadas à saúde. Os/as
ACSs exercem a função de mobilizadores/as sociais, intermediando e cons-
truindo saberes no exercício cotidiano de sua prática profissional/cidadã em
contato direto com a comunidade. Por tais especificidades, afirma-se que o/a
agente comunitário/a é o elo entre a equipe de saúde e a comunidade.
Pensando na formação dos/as profissionais da saúde, o que incluía os/as
ACSs, a educação permanente em saúde (EPS) foi adotada como ação estra-
tégica para operacionalização da Política de Educação e Desenvolvimento para
o Sistema Único de Saúde – SUS (Brasil, 2009). A EPS parte do pressuposto
da aprendizagem significativa, que promove e produz sentidos, sugerindo
que a prática profissional deva ser baseada na reflexão crítica da realidade.
Assim, a EPS é a realização do encontro entre o mundo de formação e o
mundo do trabalho, onde o aprender e o ensinar se incorporam ao cotidiano

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das organizações e ao trabalho. A EPS consiste na transformação do processo


de trabalho dos/as profissionais da saúde, visando a melhorias na qualidade
dos serviços prestados à população, ou seja, como um processo de constante
aperfeiçoamento, pelos/as profissionais da saúde, de suas técnicas de acordo
com a demanda (Ribeiro e Motta, 1996).
Segundo Mancia, Cabral e Koerich (2004, p. 606), a “educação perma-
nente estrutura-se a partir de dois elementos: as necessidades do processo
de trabalho e o processo crítico como inclusivo ao trabalho”. Então, a EPS
objetiva tornar o serviço de saúde pública uma rede de ensino-aprendiza-
gem no exercício do trabalho, na área de saberes e prática em saúde, para
que esse setor venha a ser um local de atuação composto por profissionais
críticos/as, reflexivos/as de sua prática, comprometidos/as com o trabalho e
competentes (Ceccim, 2005).
Tendo em vista que a educação é definida como um mecanismo de mo-
dificação das pessoas, devem-se adotar métodos e práticas que possam re-
conhecer o sujeito em sua totalidade, em sua dimensão individual, na esfera
social e cultural, levando em conta sua identidade e as experiências que traz
consigo para que possa haver um aprendizado significativo (Zacarias, 2005
apud De Castro Dias, 2007, p. 2).
Para tanto, as metodologias participativas se mostram bastante rele-
vantes, pois têm como pressuposto que o processo de aprendizagem surge
da interação dos sujeitos, seus sentimentos, atitudes, crenças, costumes e
ações. Considerando e integrando a subjetividade no processo educativo,
tais metodologias estimulam a reflexão sobre a realidade e reorientam pos-
turas, atos e opiniões a partir da visão crítica da realidade cotidiana na qual
os sujeitos estão inseridos. Segundo Weitzman (2008), quando utilizamos o ter-
mo metodologias participativas, pretendemos fazer referência aos métodos
empregados no modelo de educação popular idealizado por Paulo Freire.
Na cidade de Viçosa, no estado de Minas Gerais, o Núcleo Interdiscipli-
nar de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Viçosa (NIEG/UFV)
vem realizando trabalhos em educação permanente com ACSs das equipes
da ESF, em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) daquele mu-
nicípio desde o ano 2000. Emprega-se essa abordagem teórico-metodológica
no tratamento de várias temáticas conectadas entre si: cidadania, direitos
humanos e políticas públicas; participação popular e controle social; família
e violência doméstica, dentre outras. Todas as temáticas são transversali-
zadas pela categoria gênero.
Como estão interligadas à prática profissional dos/as agentes de saúde,
elas facilitam o processo de aprendizagem, pois as pessoas, em sua realidade,
vivenciam o cotidiano como experiência e não como temas ou categorias com-
partimentalizadas. Por isso, é de extrema importância no processo educativo
conhecer o que as pessoas sabem, pensam, sentem e vivem em relação aos

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temas que serão abordados. Tal perspectiva vai ao encontro das indicações
de Weitzman (2008), ao afirmar que é importante pensar em técnicas parti-
cipativas que possam vir a facilitar as diversas formas de expressão, nas
quais as pessoas possam ver, ouvir, sentir e pensar, exatamente para que
possa haver a reflexão crítica sobre os problemas vivenciados na comuni-
dade, sobre as relações pessoais estabelecidas, os conflitos e a possível mu-
dança de práticas cotidianas.
Em 2011, o NIEG/UFV realizou, em parceria com a SMS, um curso, com
duração de quatro semanas, envolvendo 125 profissionais das 15 equipes da
ESF de Viçosa, divididos em duas turmas. Considerando o histórico de ativi-
dades e pesquisas do NIEG/UFV que envolveram os/as ACSs, apresentamos
neste texto ponderações sobre o uso de metodologias participativas na for-
mação permanente de ACSs, numa discussão sobre os limites e as potenciali-
dades de tais metodologias estimularem reflexões e possíveis mudanças nas
práticas cotidianas desses profissionais.
Podemos citar como fator de grande contribuição ao desenvolvimento
da pesquisa o fato de a primeira autora deste trabalho ter exercido, ainda que
em outro município, a profissão de agente comunitária de saúde durante
dois anos. Percebemos que essa experiência se mostrou positiva para rea-
lizar tal pesquisa, pois possibilitou adentrar no mesmo mundo dos/as ACSs
com argumentos para o diálogo e troca de vivências. Essa experiência no
setor da saúde permitiu durante as caminhadas transversais e entrevistas
um maior contato com os/as ACSs, pois a partir do momento em que se com-
partilhou a mesma vivência e se demonstrou entendimento sobre as difi-
culdades na realização do trabalho, os/as agentes se mostraram mais aber-
tos para dialogar sobre os entraves, conflitos e problemas que perpassam
a profissão.

Relato do curso de formação para as equipes da ESF

No final de 2010, as equipes de saúde da ESF de Viçosa passaram por um


processo de reestruturação, culminando na contratação de vários novos
profissionais. Tal processo é decorrente do procedimento de contratação
municipal desses profissionais, que não gera vínculo permanente. Assim,
são necessários frequentes processos seletivos para renovar o contrato de
trabalho. Em 2011, foi aprovada a lei municipal n. 2.112/2011, que exigia
como requisito para o exercício do cargo de ACS “a conclusão de curso de
formação inicial e continuada” (Viçosa, 2011). Entre maio e junho de 2011,
o NIEG/UFV elaborou e ministrou, em parceria com a SMS de Viçosa, um
curso de formação para os/as profissionais do ESF, que contou com a pre-
sença de 125 profissionais de saúde do município.

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Por solicitação da SMS, a base do curso seguiu a estrutura curricular


proposta pela Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais, que tem
realizado a formação de ACSs visando a sua qualificação profissional. A par-
tir dessa matriz curricular se construiu o curso de formação, porém, para
atender à especificidade do grupo, foram feitas adaptações, reestruturação
de conteúdos e inclusão de temas que se mostraram de extrema importân-
cia política e social. O curso se estruturava em seis unidades didáticas:
Histórico do SUS, da ESF e da profissão de ACS; Preparando a equipe para
o trabalho; Positivando saúde; Refletindo sobre família; Operacionalização
do trabalho; e Diversidade no trabalho/Temas transversais). Para cada mó-
dulo foram elaboradas de duas a quatro oficinas pedagógicas mediante a
utilização de técnicas participativas. Em algumas oficinas, as técnicas con-
sistiram de estratégias de grupos extensionistas – como referenciado em
Faria e Ferreira Neto (2006) – tendo sido adaptadas ao contexto do curso.
Em outras oficinas pedagógicas, as técnicas consistiram de estratégias
criadas por nossa equipe de trabalho. De qualquer forma, mais do que uma
dinâmica de grupo ou uma técnica pedagógica, vivenciou-se a construção
de um espaço de educação em que os sujeitos não eram passivos. Assim, defi-
niu-se a metodologia como participativa, por ter dialogado com os conheci-
mentos e saberes prévios dos/as ACSs, e se baseou no protagonismo deles/as.
Como o processo de seleção de ACSs envolvia também a renovação de con-
tratos, muitos/as dos/as participantes já eram ACSs. A metodologia e a es-
colha das técnicas buscaram centrar o foco na vivência e nas experiências
dos agentes que já estavam em exercício.
O conteúdo do curso pode ser dividido em duas partes distintas, mas
inseparáveis, sendo uma mais técnica, ligada diretamente ao cotidiano de
trabalho e operacionalização das atividades dos/as ACSs, e outra mais cidadã,
visando à reflexão social e política dos sujeitos. A seguir são apresentados
alguns exemplos das temáticas tratadas e técnicas adotadas para abordagem
desses conteúdos.

Abordando a formação técnica

Na unidade didática “Operacionalização do trabalho” foram tratados, den-


tre outros temas, as visitas domiciliares e o cadastro das famílias residentes
na área de abrangência da unidade de saúde. Na abordagem desse assunto,
utilizamos a própria ferramenta de trabalho dos/as ACSs: a ficha de cadas-
tro e acompanhamento das famílias, que foi preenchida por grupos de
ACSs, numa simulação de uma visita de cadastro a uma família, em que
eventuais dúvidas ou dificuldades eram discutidas e socializadas por todo
o grupo.

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Outra oficina relacionada a essa unidade didática abordou o território


de atuação da equipe da ESF. Inicialmente, fez-se um debate orientado por
textos relacionados ao assunto e, a partir das discussões e interpretações
dos/as ACSs, solicitamos que cada equipe elaborasse um mapa sobre sua
área de atuação, incorporando vivências, percepções e subjetividades de ca-
da indivíduo ou do grupo. O objetivo foi representar o espaço de trabalho
refletindo não apenas sobre seus limites físicos e características geográficas,
mas também sobre sua dinâmica social.
A oficina “Construção do calendário de trabalho” foi concebida como
estratégia de planejamento das visitas domiciliares, na qual procuramos
ampliar o sentido dessa atividade. Cada grupo de ACS propôs temas que
considerasse relevante de serem tratados com os/as moradores/as, conside-
rando as especificidades da área de abrangência da equipe.
Na abordagem da oficina “Trabalho e atribuições das/os profissionais
das equipes da ESF”, utilizou-se a técnica da construção do/a boneco/a de
papel. A partir do contorno do corpo de um/a dos/as ACSs desenhado sobre
uma folha de papel, os/as agentes eram estimulados/as a escrever ou desenhar
sobre a imagem as atribuições e atividades realizadas em seu cotidiano de
trabalho. Posteriormente, eram escritas ou desenhadas as atribuições pre-
vistas em lei, seguindo-se um debate a fim de que os agentes refletissem
sobre a importância de seu trabalho na equipe de saúde, eventuais conflitos
entre as atribuições e formas de superação.

Abordando a formação cidadã

A abordagem dos conteúdos que priorizaram a reflexão social e política dos


sujeitos enfatizou o trabalho em equipe e o tratamento de temáticas sobre re-
lações de gênero, direitos humanos, participação popular e controle social.
A seguir, apresentamos alguns exemplos da abordagem desses conteúdos.
A temática “Cidadania, direitos e políticas públicas” foi tratada a partir
da construção de um painel no qual, inicialmente, eram listadas as necessi-
dades humanas e os direitos humanos identificados pelos/as ACSs em ele-
mentos expressos em letras de músicas sobre esses temas. A discussão do
painel era feita de forma a estimular a reflexão sobre a existência de neces-
sidades básicas e prioritárias, de como tais necessidades puderam/podem
ser garantidas e perpetradas, além da atuação dos sujeitos (como indiví-
duos ou profissionais) nesse processo e dos deveres dos cidadãos/ãs.
Na atividade “Refletindo sobre saúde”, desenvolvida com a técnica da
tempestade de ideias, os/as cursistas escreviam em tarjetas o primeiro termo
que lhes vinha à cabeça quando escutavam a palavra ‘saúde’. As tarjetas
eram afixadas em painel, a fim de orientar a construção coletiva de um con-

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ceito positivo de saúde, problematizando a complexidade, diversidade e


dinamicidade desse conceito.
Na abordagem do tema “Prevenção de doença e promoção da saúde”,
utilizamos uma técnica concebida pelo grupo, que denominamos ‘técnica do
balaio’. No balaio, foram incluídas imagens diversas que faziam alusão à
prevenção de doenças e à promoção da saúde. Os/as ACSs eram estimulados
a retirar uma das imagens do balaio e a refletir sobre ela, tendo como refe-
rência o que entendiam sobre prevenção e promoção e o painel construído
na atividade “Refletindo sobre saúde”. O debate era conduzido de forma a
problematizar os conceitos e a reflexão sobre responsabilidades na ‘pre-
venção de doenças’ e ‘promoção da saúde’.
Partindo da concepção de organização do trabalho da ESF, que tem a
família como unidade de cuidado, elaboramos a unidade didática “Refle-
tindo sobre família”. O objetivo era não apenas refletir sobre a necessidade
de abordagem da família como um todo, e não apenas o indivíduo doente,
mas também problematizar os diferentes tipos de arranjos familiares exis-
tentes, comparando-os aos modelos tradicionais e tidos como únicos. Assim,
elaboramos dentro dessa unidade a atividade ‘Arranjos familiares’, solicitan-
do aos/as cursistas que desenhassem em folhas brancas a representação
de uma família. Logo após, solicitava-se que desenhassem a sua família e,
a seguir, que fizessem o desenho de um arranjo familiar diferente do que já
haviam representado.
A última unidade didática trabalhada tratou da “Diversidade no tra-
balho/Temas transversais”. A primeira atividade dessa unidade, ‘Refletindo
sobre sexo e gênero’, objetivou estimular a reflexão sobre a naturalização da
produção de desigualdades sociais e de gênero a partir das diferenças bio-
lógicas entre homens e mulheres. A técnica empregada foi o videodebate,
após a projeção do filme Gênero, mentiras & videotape, dirigido por Lucila
Meirelles, produzido em 1995 (Gênero..., 1995).
Finalmente, a atividade “Enfrentando a violência de gênero” foi con-
duzida a partir da apresentação de uma peça teatral baseada no material
formativo, elaborado pelo NIEG/UFV, Rede protetiva de enfrentamento à vio-
lência contra as mulheres: casa das mulheres” (Núcleo Interdisciplinar...,
2011), no qual são problematizados o ciclo da violência doméstica e os tipos
de violência contra a mulher e apresentado o trabalho da rede não especia-
lizada de enfrentamento da violência doméstica em Viçosa.

Caminho investigativo da pesquisa

Para refletir sobre o uso de metodologias participativas na EPS de ACSs, vale-


mo-nos da análise de 12 relatorias construídas a partir da realização de 12

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caminhadas transversais em cinco unidades de saúde e da análise de cinco


entrevistas com ACSs de três equipes de saúde do município de Viçosa. As
caminhadas transversais e as entrevistas foram efetuadas alguns meses após
o término do curso de formação.
A entrevista semiestruturada, segundo Alberti (2004), consiste em uma
ação interativa, que se aproxima de um diálogo, foca determinados assun-
tos, é adaptável e flexível, baseia-se num roteiro, enfim, são esses pontos
que a distinguem de uma entrevista comum. Essa entrevista incluiu pergun-
tas fechadas e abertas, possibilitando, em nosso caso específico, que o/a ACS
pudesse falar sobre a temática proposta, o que favoreceu a interação entre
as duas partes envolvidas. Segundo Boni e Quaresma (2005, p. 75), “este tipo
de entrevista colabora muito na investigação dos aspectos afetivos e valo-
rativos dos informantes que determinam significados pessoais de suas ati-
tudes e comportamentos”. Foram realizadas cinco entrevistas com agentes
comunitários/as de três unidades de saúde do município, a fim de com-
preender a prática profissional desses ACSs e possíveis mudanças influen-
ciadas pelo curso de formação com base nas técnicas participativas.
Outra técnica utilizada foi a caminhada transversal que, segundo Alen-
car e Gomes (apud Jardim e Pereira, 2009), consiste em percorrer um deter-
minado trecho do bairro ou comunidade acompanhado de um informante
local. Ao realizar a caminhada, é preciso estar atento aos detalhes referentes
à paisagem, problemas locais, realidade, enfim, a todo o contexto local, de
modo a facilitar o entendimento de questões que o pesquisador está buscando
compreender. Realizaram-se 12 caminhadas transversais, acompanhadas por
12 agentes de saúde de cinco equipes da ESF de Viçosa. Durante as caminha-
das, observaram-se aspectos relativos ao cotidiano da prática de trabalho
dos/as ACSs, as relações estabelecidas com os/as usuários/as, bem como a
prática profissional dos/as ACSs, verificando-se se houve apropriação dos
temas discutidos durante o processo de formação e como isso aparece no
cotidiano. Ao término de cada caminhada construíram-se relatorias que se
tornaram material de análise.
No exame minucioso das entrevistas e das relatorias, percebemos gran-
de destaque em duas temáticas específicas, as quais, por esse motivo, foram
selecionadas para discussão e aprofundamento neste artigo. São elas “Pre-
venção da doença e promoção da saúde” e “Violência de gênero”, a primeira
relacionada aos conteúdos técnicos do trabalho dos/as ACS, e a segunda
voltada para a formação do sujeito.
Destacamos que as pesquisadoras que realizaram as caminhadas trans-
versais e as entrevistas são as mesmas que elaboraram e ministraram as ofi-
cinas formativas. Essas pesquisadoras integravam a equipe do projeto e
participaram de todo o processo formativo, desde a elaboração/construção
até a realização.

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Informamos também que o projeto “Educação permanente em saúde e


a Estratégia Saúde da Família: instrumentalização para a prática reflexiva”,
financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(Fapemig), edital n. 09/2010, Processo CDS – APQ – 03234-10, foi submetido
ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Fe-
deral de Viçosa e aprovado, conforme ofício n. 200/2011. A participação no
estudo foi voluntária, e os/as participantes da leitura assinaram o termo de
consentimento livre e esclarecido.

ESF e a operacionalização dos conceitos de prevenção de doença


e promoção da saúde

Em diferentes temas abordados no curso de formação discutiram-se ques-


tões relacionadas ao cotidiano de trabalho e ao exercício da profissão de
ACS. Nesses momentos, procuramos destacar e reforçar os aspectos posi-
tivos e inovadores das experiências de reorientação do modelo assistencial
hospitalocêntrico, medicalizante e verticalizado, que resultaram em práti-
cas descentralizadas, de estímulo à atenção primária. Tais experiências se
caracterizam por buscar incluir os sujeitos no seu contexto social e afetivo,
a exemplo do que fundamentam os princípios da ESF.
Com base no que foi trabalhado na atividade que teve como tema a
“Prevenção da doença e promoção da saúde”, em que foi utilizada a técnica
de dinâmica de grupo ‘balaio da saúde’, os/as ACSs puderam perceber que
os elementos que envolvem a qualidade de vida e a satisfação pessoal tam-
bém são determinantes no processo saúde-doença. Conforme proposto por
Leavell e Clarck (apud Czeresnia, 2003, p. 45), “prevenir em saúde exige
uma ação antecipada, baseada no conhecimento da história natural, a fim
de tornar possível o progresso posterior da doença”. As ações preventivas
definem-se como intervenções orientadas para evitar o surgimento de
doenças específicas, reduzindo sua incidência e prevalência nas populações.
Já o conceito de promoção em saúde se define, tradicionalmente, de ma-
neira bem mais ampla do que o de prevenção, pois “se refere a medidas que
não se dirigem a uma determinada doença ou desordem, mas servem para
aumentar a saúde e o bem-estar gerais” (Leavell e Clarck apud Czeresnia,
2003, p. 45).
Embora os profissionais tenham demonstrado compreensão e fizessem
distinção entre os conceitos de ‘prevenção de doenças’ e ‘promoção da
saúde’, a operacionalização de ambos está ainda restrita no cotidiano do tra-
balho e enfrenta diferentes desafios, conforme pode ser observado no relato
de uma agente comunitária acompanhada durante a caminhada transversal:

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Eu me lembro da parte da abordagem do paciente, como é que você entra num


contexto familiar, ir à parte de como você trabalha na promoção da saúde. Só que
na cabeça do brasileiro não tá na promoção, está na cura; se você não sai do con-
sultório com uma receita na mão, o médico não vale nada! Então, assim, o teórico
que vocês elaboraram, que é o que o governo fala do que é o agente comunitário,
a forma que ele deve trabalhar, isso não comporta a realidade do brasileiro. Por
que eu já andei até lendo o negócio [atribuições] dos ACSs, que a metodologia
agora é que o agente tem que ajudar a comunidade a ter consciência, a fazer as
coisas pra prevenir a doença, pra promover a saúde, pra não deixar a doença
chegar pra ter que tratar. Só que a realidade do Brasil hoje em dia é tratamento
da doença, ainda é a cura, a medicação. Isso é muito por causa da nossa cultura
(ACS, mulher).

A partir da fala da agente de saúde, percebemos que, apesar de a polí-


tica de atenção primária ter avançado em relação ao exercício profissional,
valorizando e estimulando a prática humanizada e o olhar holístico sobre o
indivíduo, isso ainda não conseguiu efetividade o suficiente para mudar,
pelo menos de modo mais abrangente, a expectativa da população, ainda
bastante centrada no modelo hospitalocêntrico, tecnicista e pautado na
cura de doenças por meio de medicação. Ou seja, os processos de transfor-
mação e ressignificação das práticas de atenção em saúde, além de serem
vivenciados de formas diferentes, encontram-se em momentos distintos. Se,
para a profissional, a necessidade de mudança é clara e premente, o/a usuá-
rio/a ainda não percebe a desatualização do modelo tradicional de atenção
à saúde, mesmo porque a experiência da doença faz com que a população
seja dependente desse modelo, retroalimentando as estruturas e sistemas
que o reforçam e o mantêm prevalecente.
Nesse palco conflituoso, em que diferentes subjetividades e expectati-
vas se encontram, as dificuldades de operacionalização dos conceitos de
prevenção e promoção aparecem, uma vez que os/as usuários/as contam
com os/as ACSs para resolver seus problemas imediatos de saúde. Como a
prática em saúde é uma ação dialógica, ainda que o profissional tenha cons-
ciência da necessidade de mudança, executar a mudança não pode ser res-
ponsabilidade de um dos atores apenas.
Embora o/a ACS tente orientar sua prática profissional positivando o
conceito de saúde e, por vezes, priorizando ações de promoção da saúde no
contato com o/a usuário/a, ainda é estratégia importante para os/as ACSs
falar ou abordar a doença nas visitas domiciliares, pois é uma forma de legi-
timar sua entrada nas residências e de construir vínculo.
Um dos entraves, então, que torna ainda mais complexa a reorientação
da atenção à saúde, priorizando ações de promoção, é a dificuldade de des-
construir conceitos culturais prevalecentes, como explicitado na fala da

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Metodologias participativas e educação permanente na formação de agentes comunitários/as de saúde 607

ACS, onde o/a usuário/a ainda tem a expectativa do tratamento e acom-


panhamento por meio de medicamentos. Isso acaba fragmentando o sujeito
e visando apenas a doença, fora do contexto em que se manifestou.
No decorrer da caminhada transversal, pudemos perceber que, durante
as visitas domiciliares, as atividades realizadas pelos/as ACSs envolveram a
entrega de exames preventivos para mulheres e marcação de novos exames;
a informação sobre marcação de consultas na unidade de saúde e a confe-
rência de cartões de vacinação das crianças, ou seja, atividades centradas na
prevenção de doenças e agravos.
Durante as oficinas do curso de formação, procurou-se demonstrar o
papel político dos/as agentes de saúde como mobilizadores sociais e educa-
dores populares, sendo sua ação muito mais ampla do que averiguar exames
e medicamentos.
Assim, avaliamos que o curso cumpriu o objetivo de possibilitar a apro-
priação dos conceitos e dos princípios de uma proposição crítica ao modelo
de atendimento à saúde. Entretanto, o exercício efetivo desses conceitos e
princípios no cotidiano não foi totalmente alcançado. Há uma insuficiência
em criar alternativas no contato com o/a usuário/a que permita a descons-
trução efetiva do modelo curativo. Além disso, apesar de os/as ACSs conti-
nuarem a reproduzir o modelo hegemônico de atenção em que tratamento e
reabilitação ainda são vistos como prioritários, indicamos que tal descom-
passo também decorre da complexidade de ações/atores que envolvem a
promoção da saúde. Ou seja, essa mudança não pode ser focada na indivi-
dualização das ações, que, no caso, se refere à intervenção dos/as ACSs,
isolando-os/as no processo de reformulação da saúde.
Conforme Gutierrez,

para a promoção da saúde, o objetivo contínuo é um nível ótimo de vida e de


saúde; portanto, a ausência de doenças não é suficiente, sempre algo deverá ser
feito para promover um nível de saúde melhor e condições de vida mais satis-
fatórias (Gutierrez apud Buss, 2003, p. 33).

Assim, dada a amplitude do conceito de promoção da saúde, sua real


efetivação não requer nem depende apenas de mudanças nas práticas de
atenção à saúde, mas de uma ação conjunta que envolva diferentes setores,
instituições e organizações que direta ou indiretamente participam ou são
responsáveis por serviços e ações que impactam as condições de vida da
população. Esse envolvimento não significa meramente uma atuação dos di-
ferentes setores em seus domínios específicos em prol de um objetivo único,
mas uma necessária redefinição de prioridades e reordenamento das práti-
cas com o imperativo de se efetivar a ação interdisciplinar, a fim de se dar
conta de todos os aspectos que são considerados, atualmente, determinantes

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608 Natália Hosana Nunes Rocha, Paula Dias Bevilacqua e Marisa Barletto

da saúde. Tal reordenamento não pode ser focalizado apenas no exercício


cotidiano do trabalho dos/as agentes de saúde.
O modelo hospitalocêntrico de valorização da atenção à saúde enquanto
prática curativa também acaba por influenciar a abordagem a ‘estado de não
doença’. Como exemplo dessa situação, citamos o atendimento realizado a
mulheres. Na maioria das vezes, a abordagem é voltada para assuntos relacio-
nados ao cuidado com os filhos, prevenção e tratamento dos principais agravos
ginecológicos e para o planejamento familiar. Sobre esse último, percebemos
que a prioridade da atenção é dada às mulheres, uma vez que são conside-
radas responsáveis pela reprodução. Para ilustrar melhor a discussão, apre-
sentamos a seguir a fala de uma das ACSs durante a caminhada transversal:

O índice de gravidez adolescente é muito alto. Ando com preservativos e anticon-


cepcionais na bolsa. Outro dia, durante minha visita, parei em três casas onde
meninas de 14, 16 anos estavam grávidas. Numa dessas casas, a menina tinha
retardamento mental e acabava de abortar. Aí, parei com ela e sua mãe e pergun-
tei se ela estava seguindo as orientações do médico. A moça respondeu que não
entendeu o que ele falou para ela fazer, me mostrou a receita com as orientações.
Li e expliquei como a menina devia tomar o anticoncepcional dizendo que se ela,
ainda assim, tiver dúvida que no dia seguinte eu voltaria com uma cartela para
demonstrar (ACS, mulher).

A fala da ACS evidencia a marca do discurso hegemônico de gênero,


na medida em que a abordagem no que diz respeito à saúde dos filhos e aos
métodos contraceptivos se direciona exclusivamente para a mulher, refor-
çando a desigualdade de gênero ainda tão marcante em nossa sociedade. A
compreensão da importância do discurso técnico/médico como mediador da
manutenção das condições de desigualdades entre gênero é importante para
a efetivação da proposta da ESF como reprodutora dos princípios do SUS de
integralidade, igualdade e equidade. Por seu turno, a superação da perspec-
tiva de que as mulheres são as responsáveis pela reprodução também implica
a superação/revisão dos modelos tradicionais de abordagem da temática do
planejamento familiar, fazendo com que a ação possa ir além da distribuição
de contraceptivos.

O teatro como instrumento de reflexão sobre a violência de gênero

Outra temática abordada no curso de formação foi a “Violência de gênero”.


Conforme já citado, realizou-se uma peça, encenada por integrantes/bolsis-
tas do NIEG/UFV, cuja proposta era representar o ciclo da violência, enfa-
tizar os tipos de violência contra as mulheres e apresentar as instituições

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componentes da rede protetiva de atendimento à mulher em situação de


violência existente em Viçosa.
De acordo com Taquette et al. (2007), o setor da saúde até pouco tempo
avaliava a violência contra a mulher como um fenômeno de responsabilidade
apenas do poder judiciário, mesmo quando essa violência causava danos físi-
cos. Mas, hoje, esse fenômeno é visto como de importância e interesse so-
cial, cabendo a diversos setores da sociedade a realização de ações pautadas
para sua eliminação e assistência às mulheres em situação de violência.
Para tanto, os/as profissionais da saúde precisam de capacitação/pre-
paração para lidar com esse tipo de situação, a fim de saber acolher a mulher
e encaminhá-la para outras instituições e serviços que atuem no enfrenta-
mento de violência, realizando o acolhimento e acompanhamento. Segundo
Taquette (2007, p. 14), “o envolvimento destes profissionais, de forma com-
petente e integrada com os outros setores da sociedade, poderá levar a um
impacto positivo na saúde desta população”.
Essa temática foi muito impactante, uma vez que, durante a realização
da oficina, tivemos desde depoimentos pessoais de histórias de violência
vivenciadas pelas próprias agentes, como também manifestações de revolta.
Os resultados alcançados a partir do uso do teatro seguido de debate são
sutis, e a percepção da mudança de atitude frente a tal situação está aconte-
cendo gradativamente.
Em uma das entrevistas, a ACS fala do tema da violência contra as mulhe-
res, dizendo que a abordagem no curso ajudou a pensar a prática humanizada
em saúde, pois relata que, no bairro onde trabalha, acontecem muitos casos
de agressão a mulheres. Ela afirma que

tem vários casos de violência, e depois disso eu não sei se a gente mudou o jeito
de tratar, muitas pessoas começaram a se abrir, entendeu? A violência contra a
mulher, por exemplo, aí muitas pessoas começaram a se abrir, outras a gente sabe
do caso, às vezes a vizinha comenta ou a pessoa, você percebe ali quando a pes-
soa fala. Eu comecei a fazer até algumas fichas de notificação, mas elas tomam um
certo tempo, aí eu já tô fazendo umas pra passar pra chefe pra ela poder... enten-
deu? (ACS, mulher).

Antes da capacitação pelo NIEG, eu desconhecia alguns tipos de violência, como


a psicológica. Após o curso fui entender que existem vários tipos de violência,
como a patrimonial, a moral, não é só a física. Depois da capacitação, fiz quatro
notificações de violência doméstica contra a mulher, uma delas, inclusive, foi a
minha (ACS, mulher).

Quando se trabalha com educação permanente e metodologias partici-


pativas, estimula-se a reflexão sobre as práticas cotidianas. Nesse momento,

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a ACS, além de perceber que a notificação compulsória dos casos de violên-


cia se mostra como uma responsabilidade social e que faz parte de suas
atribuições como profissional da saúde, também se apresenta como vítima
da mesma situação no momento em que preenche sua própria ficha de noti-
ficação. A agente de saúde disse saber da importância de notificação dos
casos de violência, mas que mesmo ciente de que a notificação é sigilosa,
afirma ficar um pouco receosa. Isso evidencia que a compreensão não passa
apenas pelos processos racionalizados sobre a realidade, mas envolve di-
mensões afetivas muito arraigadas nas experiências dos sujeitos.
Percebemos a importância que os/as ACSs deram à abordagem dessa
temática e à forma como foi trabalhada, ou seja, a apresentação do teatro
sobre o ciclo da violência. Essa fala pode ser justificada quando, em entre-
vista, foi perguntado a um ACS (homem) sobre qual temática abordada no
curso mais chamou sua atenção e qual técnica utilizada ele mais se recor-
dava. A resposta foi a seguinte:

Um dos temas, assim, que eu me lembro é sobre a... no caso, a violência dentro de
casa... do ambiente da própria família, dentro da residência, no caso da agressão
contra a mulher, da violência contra a mulher. Eu acho que foi um tema impor-
tante que esclareceu muito pra mim; no meu caso, como agente de saúde, tinham
muitas coisas que eu desconhecia. Foi importante pra me orientar nos conhe-
cimentos. Eu acho que foi importante, interessante a forma como foi abordado,
porque, assim, eu mesmo não tinha tanto conhecimento sobre essa lei [Lei Ma-
ria da Penha] e acho que nem todo mundo tem conhecimento sobre essa lei
(ACS, homem).

A partir dessa fala, percebemos o quão importante foi trabalhar essa


temática utilizando técnicas participativas, pois o teatro, os debates, a troca
de experiências e as informações são o que realmente contribuem para o
questionamento e a reorganização da forma de pensar sobre vários assuntos
que estão incorporados no cotidiano e que visam à percepção e à reflexão
para a prática profissional, e não exatamente para uma mudança de pensa-
mento e comportamento.
Como bem lembra Dias (2007, p. 3), “educar para os direitos humanos,
prescinde, então de uma escuta sensível e de uma ação compartilhada entre
professores e alunos, capaz de desencadear processos autônomos de pro-
dução de conhecimento”. Ou seja, o uso das metodologias participativas
não consiste em ensinar e sim estimular o desenvolvimento da reflexão crí-
tica e o estímulo à criatividade e iniciativa. Esse processo é construtivo, a
pessoa pensa, entende e aplica o conhecimento. Ainda, segundo Ribeiro e
Motta (1996), o uso das metodologias participativas permite que todos/as
compartilhem da construção coletiva de conhecimento, dando abertura às

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Metodologias participativas e educação permanente na formação de agentes comunitários/as de saúde 611

diferentes formas de expressão dos conhecimentos prévios e contemplando


as diversas formas e tempos de aprendizagem dos/as participantes.
O teatro, dessa forma, mostrou-se como uma das múltiplas linguagens
existentes, que nem sempre são evidentes, mas que possuem como carac-
terística promover situações que possam ser significativas e a reflexão.
Percebemos, assim, a importância da temática “Violência de gênero” ter
sido incluída nesse curso de formação, em que objetivávamos provocar a
reflexão dos/as ACSs acerca dos tipos de violência existentes e a rede prote-
tiva de enfrentamento à violência contra as mulheres existente em Viçosa.
Acreditamos que alcançamos nosso objetivo, pois, através das falas, pude-
mos resgatar desde depoimentos de casos acontecidos no momento das visitas
domiciliares até depoimentos pessoais. São nesses momentos que acontecem
a reflexão crítica e a apreensão e construção de novos conhecimentos e, mais
ainda, podemos dizer que a técnica do teatro se mostrou apropriada para
realizar esse tipo de abordagem, pois o teatro nos comove, possibilita nos
colocarmos no lugar do outro e refletirmos sobre situações que não seriam
facilmente perceptíveis se a forma de abordagem fosse outra qualquer.

Considerações finais

A experiência do curso de formação estimulou a reflexão por parte dos/as


profissionais, em especial os/as agentes de saúde, em direção a uma possível
mudança de suas práticas cotidianas, na qual se perceberam como cida-
dãos/ãs em constante processo de formação.
A análise do potencial das metodologias participativas utilizadas nesse
curso de formação nos permitiu perceber que houve empoderamento dos/as ACSs
acerca dos temas abordados, podendo ser entendidos como construtores/as de
vínculo entre equipe de saúde e comunidade, papel fundante da proposta
de atuação da ESF. Não podemos dizer que o recurso das metodologias par-
ticipativas ‘transformou’ os/as ACSs em sujeitos reflexivos, gerando, assim, au-
tomaticamente, a mudança de pensamento, nem medir o impacto que essa
metodologia tem no processo de construção do pensamento reflexivo. Muito
menos é possível afirmar que, a partir do curso de formação, os/as ACS modi-
ficaram suas práticas de trabalho. Porém, podemos ressaltar que as técnicas
participativas empregadas durante o curso se mostraram muito favoráveis à rea-
lização desse trabalho por estimularem a reflexão sobre o cotidiano profissional.
Gostaríamos de concluir este artigo indicando que entendemos que o
próprio processo de construção do curso se deu de forma participativa e
dialógica, em que várias pessoas estiveram envolvidas na proposta de elabo-
ração do mesmo. Como solicitado pela SMS, a base do curso seguiu a estru-
tura curricular proferida pela Escola de Saúde Pública do Estado de Minas

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Gerais, mas como a prática é vivenciada de diferentes maneiras e cada ACS


entende seu cotidiano de trabalho utilizando uma lente específica, nossa
equipe precisou entender a prática desses agentes de saúde, as questões que
permeiam a profissão, os temas que estão diretamente inseridos no coti-
diano de trabalho que não estão contemplados nessa matriz curricular, mas
que deveriam de alguma forma ser abordados. Então, houve um trabalho
conjunto na construção de um curso que pudesse abranger, além de atri-
buições e conteúdos técnicos, temas visando à reflexão sobre questões de
interesse político e social. A construção desse curso de formação se deu a
partir da interação de diferentes vozes (ACSs, pesquisadores do NIEG/UFV,
ex-agente comunitária de saúde, SMS), o que possibilitou, tanto durante a
sua preparação quanto na sua execução, a construção coletiva do saber.
Compreendemos que o processo participativo ocorre muito antes do
momento em que o curso é realizado, quando se utilizam técnicas específi-
cas; ele se dá a partir do instante em que é idealizado, pois é nesse momento
que acontece a dinâmica entre as partes envolvidas na elaboração de uma
proposta participativa que atenda às especificidades do grupo. Portanto, o
processo participativo se dá em todos os momentos, desde o planejamento,
ou seja, o ‘pensar o curso’, pensar a metodologia a ser empregada até a sua
execução, sempre visando à construção coletiva do saber, seja para quem
elabora, seja para quem participa.
Ainda que não tenha sido objeto específico de reflexão deste trabalho,
também indicamos que a experiência do curso de formação contribuiu para
maior integração da equipe, na medida em que as atividades eram desen-
volvidas, quase sempre, considerando a formação das equipes de saúde.
Além disso, em vários momentos, observamos que a equipe procurava re-
fletir sobre as temáticas, resgatando experiências do grupo e vivências da
prática profissional dos contextos específicos de seus trabalhos, o que, por
sua vez, também foi potencializado pelo uso de metodologias participativas.

Colaboradores

Natália Hosana Nunes Rocha participou da concepção do estudo, planeja-


mento do trabalho, construção e análise dos dados, elaboração e revisão do
manuscrito. Paula Dias Bevilacqua e Marisa Barletto conceberam o estudo
e participaram do planejamento do trabalho, análise dos dados, elaboração
e revisão do manuscrito. Informamos que não há conflitos de interesse.

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Agradecimentos

Os/as autores/as agradecem o apoio financeiro e as bolsas de apoio técnico à


pesquisa e iniciação científica recebidos da Fapemig; à SMS da Prefeitura
Municipal de Viçosa e às equipes de saúde da família do município pela
parceria na condução do trabalho.

Resumen En este texto se busca reflexionar sobre el uso de metodologías participativas en la


educación permanente de agentes comunitarios de salud, en una discusión sobre los límites y po-
tencialidades para que tales metodologías estimulen reflexiones y posibles cambios en las prácti-
cas cotidianas de estos profesionales. Se realizaron entrevistas y recorridos transversales con los
agentes, que resultaron en relatos utilizados como material de análisis. No sería simple medir el
impacto que esta metodología tiene en el proceso de construcción del pensamiento reflexivo, pero
el análisis del potencial de las metodologías participativas en actividades de formación de agentes
comunitarios de la salud permitió percibir que hubo un empoderamiento en cuanto a los temas
abordados. Se pudo comprender cuán significativas se han mostrado las metodologías en el en-
foque de las temáticas, especialmente en los temas “prevención de enfermedades y promoción
de la salud” y “violencia de género”. Se concluye que el hecho de que algo pueda ser percibido
con otros significados y sentidos permite otros modos de producción de prácticas cotidianas.
Palabras clave construcción colectiva; conocimiento y práctica; actuación profesional.

Notas

1 Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Educação, Viçosa, Minas Gerais,


Brasil.
<natalia.rocha@ufv.br>
Correspondência: Rua Santa Luzia, 115, apto. 501, Centro, CEP 36570-000, Viçosa,
Minas Gerais, Brasil.

2 Universidade
Federal de Viçosa, Departamento de Veterinária, Viçosa, Minas Gerais,
Brasil.
<paula@ufv.br>

3 UniversidadeFederal de Viçosa, Departamento de Educação, Viçosa, Minas Gerais,


Brasil.
<barletto@ufv.br>

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