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Artigo Deluchey Desconfiança Policia A Ser Publicado em 2013

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Às raízes da desconfiança entre a polícia brasileira e seus

usuários: o fracasso do modelo policial reativo-repressivo 1

Prof. Dr. Jean-François Yves Deluchey


Universidade Federal do Pará – UFPA
Doutor em Ciência Política / Políticas Públicas pela Univ. da Sorbonne Nouvelle – Paris III
Maio 2012

Resumo: Aproximar a polícia da comunidade com o fito de superar desconfianças mútuas


é objetivo recorrente dos programas de reforma da segurança pública no Brasil. Neste sentido,
o autor parte do “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará” no qual ele coordenou
a aplicação e análise de 2115 questionários com a população e 733 com policiais, e conclui
que grande parte das causas do distanciamento e da desconfiança entre os policiais e os
usuários do sistema paraense de segurança pública decorre de um modelo de policiamento
essencialmente repressivo e reativo, bem como de outras características do sistema policial
vigente, que constituem obstáculos essenciais à instalação de um serviço público de segurança
no Brasil democrático.

Palavras-chaves: Polícia, Comunidade, Segurança Pública, Serviço Público, Policiamento,


Confiança.

1
Agradeço meus colegas Elcimar Lima e Marcus Alan Gomes por terem contribuído a
melhorias preciosas neste texto. Lembremos que um esboço deste trabalho foi apresentado no
XXVIII Congresso Internacional da Associação Latino-americana de Sociologia – ALAS, Recife,
6-11 de setembro de 2011, Grupo de Trabalho 04 “Controle social, legitimidade e segurança
cidadã”.
Este texto se apoia na pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará”,
realizada no ano 2005 pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Pará, financiada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública / Ministério da Justiça e
Governo do Estado do Pará / Secretaria Especial de Defesa Social. Tratou-se da primeira
pesquisa de vitimização realizada no Estado do Pará, coordenada academicamente pelo autor
deste artigo, sob a coordenação geral do Prof. Dr. Antônio Gomes Moreira Maués. A equipe de
pesquisa contou também com um subcoordenador, Prof. Dr. Mário J. Brasil Xavier (UEPA), e
com 20 outros membros, dos quais 01 assessor policial (Del. Lauriston José de Luna Goés) e
19 pesquisadores estudantes graduandos e mestrandos da UFPA (Ademir Picanço, Andréa
Motta, Andréia Barreto, Brenda Palhano, Fledys Alves, Gisele Gato, José Maria Costa, Lia
Raquel Ventura, Liandro Faro, Lúcia Helena Costa, Lúcia Helena Santana, Kirla Anderson,
Márcio Lobato, Maria Augusta Costa, Natasha Veloso, Patrícia Pinheiro, Rejane Pimentel,
Roseane Lima e Sandra Alves). A equipe realizou 2115 entrevistas com a população e 733
com os policiais em 10 municípios de diversas regiões do extenso Estado do Pará: Belém e
Ananindeua (Região Metropolitana), Abaetetuba (Região Tocantins), Altamira (Xingu),
Castanhal (Guamá), Itaituba (Tapajós), Marabá (Carajás), Salinópolis (Rio Caeté), Santarém
(Baixo Amazonas) e São Felix do Xingu (Araguaia).

0
Introdução:

Uma segurança ou uma polícia “cidadã”, uma polícia de proximidade, ações


integradas pacificadoras, unidades policiais pacificadoras, participação da
comunidade, parceria ou integração entre polícia e comunidade, uma polícia
comunitária: todos esses vocábulos configuram hoje em dia os discursos
político e intelectual sobre “a nova polícia” e pavimentam o caminho de uma
(tímida) reforma dos métodos e técnicas de policiamento na América Latina, e
especialmente no Brasil. No centro desses discursos, encontra-se o conceito
de aproximação da polícia com a comunidade: aproximação pela presença
(polícia de proximidade), pela freqüência e pela qualidade dos intercâmbios
(polícia comunitária), pela garantia de serviços públicos e pela defesa de
direitos individuais e coletivos (polícia cidadã). Esses discursos amplamente
divulgados muitas vezes conseguem convencer de que uma polícia presente,
atenta às demandas sociais, que desenvolva um verdadeiro serviço público, e
garanta e respeite direitos representa apenas um ideal a ser contemplado.

Fácil observar que nunca os valores contidos nesses discursos são tidos
como obrigatórios de serem observados, e sempre acabam se transformando
em um discurso programático sem real conteúdo e sem reais e legítimas
cobranças da sociedade civil e do sistema partidário. Também nunca esses
valores são apresentados como partes de um conjunto programático mínimo e
essencial para poder pensar o papel de uma instituição policial na ordem
democrática brasileira. Logo, na prática governamental e na cultura institucional
das polícias brasileiras, os mesmos são raramente mobilizados pelos agentes
governamentais e administrativos, apesar desses representarem o mínimo
necessário ao desenvolvimento de uma atividade policial em um chamado
Estado democrático de Direito.

De fato, se considerarmos o exemplo do Brasil, mais de 25 anos depois da


instalação formal da ordem democrática, o cidadão brasileiro ainda tem
dificuldade em encontrar uma delegacia de polícia civil ou um batalhão de
polícia militar que tenha totalmente interiorizado esses valores no seu cotidiano
profissional. O deplorável resultado é vivenciado por milhões de Brasileiros no
dia-a-dia: uma polícia ausente, muitas vezes surda em relação às demandas

1
sociais, que não consegue desenvolver um verdadeiro serviço público, e
tampouco garantir e respeitar direitos dos cidadãos brasileiros. Isto é a norma
do setor da segurança pública no Estado Democrático de Direito brasileiro.

Esses “defeitos de nascimento” contribuíram até hoje para manter como


modelo de segurança pública no Brasil o “da Lei e da Ordem”, que dá
prioridade à repressão contra a prevenção, à força contra a inteligência, aos
interesses político-administrativos contra os interesses dos cidadãos, à
discriminação socioeconômica contra a universalização do serviço público, etc.
Sob o argumento de organizar uma necessária (sagrada?) “guerra contra o
crime”, as políticas de “lei e ordem” continuam consolidando o quadro
excludente e socialmente discriminatório dos conflitos sociopolíticos,
inviabilizando a organização de um debate qualificado sobre a missão dos
setores de segurança pública e de justiça penal em uma ordem democrática.
Podemos observar hoje em dia que a transição do Brasil para a democracia
não tem conseguido reverter a ordem sociopolítica discriminatória que
sustentava o regime autoritário, e deste então, as polícias prosseguiram
realizando a repressão social e política que tradicionalmente vem exercendo
desde sua consolidação enquanto instituições estatais (SULOCKI, 2007;
DELUCHEY, 2011).

Em reação a este quadro político defasado em relação às normas


constitucionais institucionalizadas em 1988, todos os novos conceitos expostos
acima não significaram nada mais que uma tentativa de anunciar uma
hipotética futura reforma do sistema policial autoritário herdado por maior parte
da ditadura militar e que, na fase da redemocratização, foi complementado pela
estadualização da segurança pública e pela desistência do Estado Federal em
relação à gestão cotidiana desse setor. Com esse anúncio da reforma profunda
do sistema policial – recorrente nos discursos dos anos 1990 e 2000 e desde
então sempre renovado, mas nunca realizado – deu-se a pensar que a
comunidade política e a intelectual tinham chegado enfim a certo consenso
sobre o fracasso do modelo tradicional de segurança pública no Brasil. Por isto,
experiências novas de policiamento de gestão de segurança pública
começaram a aparecer de forma difusa e diversa em diversos Estados da
Federação Brasileira. Hoje em dia, todos os Estados federados já fizeram

2
experiências de polícia comunitária ou de polícia de proximidade, cujo caráter
limitado pode reforçar a hipótese segundo a qual essas mudanças eram mais
discursivas do que materiais.

Apesar das grandes diferenças conceituais das experiências de polícia


comunitária realizadas nas últimas duas décadas nos Estados federados, todas
elas têm, entre outros, um objetivo explícito comum: melhorar as relações entre
a polícia e a comunidade. Podemos notar, en passant, que este meio às vezes
representa um dos fins principais das políticas públicas de segurança,
esquecendo que a melhoria dessas relações apenas contribui em construir um
ambiente mais favorável à realização do verdadeiro objetivo da política de
segurança pública: visar à maior pacificação da convivência social e à garantia
dos direitos dos cidadãos por meio da limitação da liberdade individual de cada
um, na base da lei e através da prevenção e repressão dos atos ilícitos.

Muitas reflexões sobre a possível “aproximação” ou “integração” da polícia


com a comunidade povoam as publicações de ciências sociais, bem como as
monografias e revistas policiais em todo o Brasil. Em relação a este assunto,
duas visões convivem, reforçando ainda a hipótese exposta acima. Primeiro,
temos uma visão corporativa, majoritária nas instituições policiais brasileiras,
baseada na tentação do continuísmo entre o modelo policial reativo-repressivo
típico das políticas de “lei e ordem” e que defende a aproximação da polícia e
da comunidade para alcançar dois objetivos claros: a renovação positiva da
imagem das polícias junto à população brasileira, e a necessidade de obter
informações criminais qualificadas da população para qualificar a repressão
das infrações. Não obstante, temos que nos perguntar se as polícias estaduais
precisam realmente das informações das “comunidades” para poder realizar
uma repressão qualificada da criminalidade. Já, o segundo objetivo, mais
implícito, de renovar a imagem das polícias junto à população é um objetivo
tradicional, ou até essencial, das atividades policiais no Brasil – pelo menos da
atividade policial ostensiva cujos “planos de policiamento” são tradicionalmente
marcados pela falta absoluta de objetividade na busca e na obtenção de
resultados efetivos na área da segurança pública (DELUCHEY, 2005, p. 11-
12). Talvez por este motivo, em alguns casos, a aproximação polícia-

3
comunidade passe a ser vista como um objetivo em si do setor da segurança
pública.

A segunda visão consiste em explicar, como exposto acima, que melhorias


nas relações entre a polícia e seus usuários constitui o ambiente mais favorável
ao desenvolvimento de um serviço público de segurança (universal,
socialmente não discriminatório, objetivo na elaboração dos seus propósitos,
concentrado na consecução da maior pacificação social). Mais ligada às
conclusões científicas e às recomendações dos cientistas sociais brasileiros,
essa segunda visão defende um processo de reforma policial cujo objetivo
seria a expansão (se não a universalização) da filosofia e das práticas típicas
de polícia comunitária entre as forças policiais estaduais.

Mesmo existindo inúmeras diferenças nessas experiências, bem como


enormes divergências sobre a definição do que seria uma polícia comunitária e
seus princípios, podemos citar alguns itens apresentados pelo Manual de
Policiamento Comunitário do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade
de São Paulo, e que constituem os pilares da filosofia de polícia comunitária:
“1) trabalho voltado para a prevenção do crime com base na comunidade; 2)
reorientação das atividades do trabalho policial para ênfase aos serviços não
emergenciais; 3) responsabilização da polícia em relação à comunidade; 4)
descentralização do comando” (NEV-USP, 2009, p. 14). Em referência a essa
filosofia de polícia comunitária opera a segunda visão da aproximação ou da
integração da polícia com a comunidade, convivendo e até articulando-se em
alguns casos com a primeira visão exposta acima.

O propósito aqui não é fazer uma síntese das experiências de aproximação


da polícia com a comunidade, mas bem de expor alguns produtos da pesquisa
“Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará”, realizada em 2005 e
que, entre os resultados alcançados, traz elementos interessantes de reflexão
sobre a natureza e as raízes da desconfiança entre os policiais e os seus
usuários, bem como sobre o principal modelo de policiamento vigente no País.
Por isso veremos, a partir do exemplo paraense, qual o grau e a natureza da
desconfiança antes de analisar os possíveis motivos podendo indicar de onde
provém essa desconfiança e o sentido político da mesma.

4
1. A desconfiança entre a polícia e seus usuários

A pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará”


observou o tema da confiança/desconfiança entre a polícia e seus usuários a
partir da avaliação realizada por 733 policiais entrevistados. No questionário,
no que concernia à pergunta “No seu Município, como o Sr. / a Sra. definiria a
relação entre a polícia e a comunidade?”, os policiais tinham que escolher entre
cinco opções: confiança recíproca, respeito recíproco, desconfiança recíproca,
desconfiança da população a respeito dos policiais, desconfiança dos policiais
a respeito da população, além dos tradicionais “não sabe” e “sem resposta” 2.
Evidentemente, os resultados a seguir devem ser interpretados tendo em vista
que, por provirem exclusivamente das entrevistas realizadas junto aos policiais,
os resultados relacionados à confiança devem ser um pouco superestimados e
os ligados à desconfiança um pouco subestimados em relação à realidade.
Mesmo com essas limitações, os resultados mostram tendências facilmente
identificáveis do grau de desconfiança entre policiais e cidadãos comuns. Isto
considerado, não devemos surpreender-nos ao observar que o grau de
desconfiança indicado pela pesquisa talvez não seja tão alto quanto podia ter-
se esperado: 56,4% do total dos policiais entrevistados no Estado afirmaram
que existe ainda um sentimento de desconfiança entre eles e a população
(Vide figura nº1, a seguir).

2
Concernindo aos termos de referência, cuja crítica pode ser realizada, Lopes tentou situar o
conceito de “confiança” entre os diversos que compõe o universo de avaliação das atividades
policiais pela população: “Enquanto as atitudes de aceitação ou rejeição da policia constituiriam
um indicador direto de legitimidade, e as atitudes de satisfação ou insatisfação um indicador da
percepção de desempenho, as atitudes de confiança e desconfiança indicariam a
confiabilidade da policia, ou seja, o grau em que a policia e percebida como sendo capaz de
cumprir adequadamente com sua missão institucional: implementar lei e ordem com respeito às
regras que regem o devido processo legal. Assim, a desconfiança seria uma atitude
intermediaria, situada entre a não aceitação e a insatisfação com a policia” (LOPES, 2012, 12).

5
Figura nº1: Relações entre polícia e comunidade
(entrevistados policiais, Estado do Pará) (I)

Confiança ou
Respeito
Desconfiança recíproco
56,4% 43,6%

Fonte: Pesquisa Diagnóstico da Segurança Pública no E. do Pará - 2005

De um lado, podemos considerar que 43,6% de confiança ou respeito entre


os dois (na avaliação dos policiais), não é um índice tão ruim para iniciar uma
obra de reaproximação dos policiais paraenses com os seus usuários. Este
dado nos dá uma idéia do caminho que resta a percorrer para chegar a ter
maior entrosamento entre a sociedade paraense e sua polícia.

A mesma pesquisa trouxe uma noticia bem mais preocupante: a


desconfiança dos policiais a respeito da população alcança um nível muito alto.
Entre todos os policiais civis e militares entrevistados, 24,7% deles dizem
existir uma desconfiança recíproca entre eles e os cidadãos paraenses, e mais
3,1% reconhecem que o que prevalece na relação entre os dois é a
desconfiança dos próprios policiais a respeito da população (Vide figura nº2, a
seguir).

6
Figura nº2: Relações entre polícia e comunidade
(entrevistados policiais, Estado do Pará) (II)
28,7
30,0 24,7
23,8
25,0 19,7
20,0
Entrevistados (%)

15,0

10,0
3,1
5,0

0,0

Desconfiança
Confiança

recíproco
recíproca

Respeito

Desconfiança
da população
Desconfiança

dos policiais
recíproca
Fonte: Pesquisa Diagnóstico da Segurança
Pública no E. do Pará - 2005

Estes dados podem nos trazer certa preocupação: se os policiais, que


deveriam proteger a população e adotar uma atitude benevolente a respeito da
mesma, são numerosos (27,8%) em afirmar que eles e seus colegas
desconfiam da população, isto significa que mais de um quarto dos policiais
considera a população com suspeita e desconfiança, qualificando um ambiente
extremamente hostil para o exercício do serviço público de segurança pública,
suscetível até de trazer vários problemas de abuso de autoridade por parte dos
agentes públicos. Nessas condições, é difícil esperar dos cidadãos que eles
confiem numa polícia que, de antemão, considera eles com desconfiança,
assimilando-os a priori a suspeitos.

No Interior do Estado, as relações entre a polícia e a população parecem


ser mais serenas : a maioria dos policiais (51,5%) afirma existir uma confiança
ou um respeito recíproco entre eles e as populações locais. Na Região
Metropolitana de Belém (RMB), 69,1% dos policiais afirmam que relação que
prevalece é a desconfiança entre comunidade e polícia. Também, mais de um
terço dos policiais da RMB (35,1%) dizem que os próprios policiais
desenvolvem um sentimento de desconfiança em relação às comunidades em
que eles trabalham.

7
De um lado, podemos entender que os policiais têm de realizar uma seleção
dos delinquentes, e operar, in fine, um processo de discriminação ou
“identificação” social baseada na suspeita (soupçon) 3, qual parece
consubstancial com sua função pública. Por outro lado, essa identificação
geralmente não é caracterizada por uma necessária suspeita em relação à
própria suspeita, levando em conta os ensinamentos dos teóricos do
“etiquetamento” (labelling approach). No seu livro Outsiders, o sociólogo
Howard S. Becker bem mostra que a definição do desvio é menos uma
categorização objetiva e pré-definida do que o fruto da interação social. Ela se
situa mais na definição de quem o desviante é, e não o que uma pessoa fez
para ser considerada desviante:

“grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja


infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a
pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse
ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a
pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por
outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é
alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o
comportamento desviante é aquele que as pessoas
rotulam como tal” (BECKER, 2009 (1963), p. 20-21, grifo
do autor).

Seguindo a mesma abordagem, Winfried Hassemer alerta que “a


criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério
público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social”
(HASSEMER, 2005, p. 101-102, grifo do autor). Não sendo matizada por esse
conhecimento sociológico, a seleção dos suspeitos através do etiquetamento
leva a uma desconfiança desmedida e quase natural de grande número de
policiais em relação aos seus usuários. Nessas condições, a desconfiança dos
policiais paraenses, sobretudo na Região Metropolitana de Belém, atingiu um
grau tão alto que pode revelar-se contraprodutiva, trazendo mais insegurança

3
Hélène L’Heuillet, no seu livro Basse politique, haute police. Une approche historique et
philosophique de la police, mostra que “A suspeita governa, pelo que parece, a busca policial
da verdade” (L’HEUILLET, 2001, p. 240, tradução nossa).

8
pela população, cavando ainda mais profundo o fosso relacional que separa
polícia e seus usuários4.

Na realidade, o grau de desconfiança não apareceu, na pesquisa, como


sendo correlato do nível de insegurança sentido pela população paraense. No
entanto, quando observamos a relação entre a desconfiança sentida pelos
policiais e o sentimento da população em relação ao aumento da violência, a
correlação aparece nitidamente, tanto no que se refere à desconfiança da
população em relação aos policiais, quanto à desconfiança destes em relação
aos seus usuários (como se pode verificar nas figuras nº3, nº4 e nº5, a seguir).

Figura nº3 : Relação de confiança e respeito recíproco entre


policiais e comunidade (entrevistados policiais), e avaliação
do aumento da violência no município comparado com dois
anos atrás (entrevistados não policiais), por município/região
(%)

90
80
70
60
50 Confiança e
40 Respeito
30
20 Recíproco
10
0 Mais violência

4
Para ter uma melhor ideia da subjetividade policial em relação à seleção dos delinquentes,
ler: BECKER, 2009 (1963), HASSEMER, 2005, JOBARD, 2001, e DELUCHEY, 2001.

9
Figura nº4 : Desconfiança da comunidade em relação aos policiais
(entrevistados policiais), e avaliação do aumento da
violência no município comparado com dois anos atrás
(entrevistados não policiais), por município/região (%)
90
80
70
60
50
40
30 Desconfiança Da
20
10 População
0
Mais Violência

Figura nº5 : Desconfiança dos policiais em relação à comunidade


(entrevistados policiais), e avaliação do aumento da violência
no município comparado com dois anos atrás (entrevistados
não policiais), por município/região (%)
90
80
70
60
50
40 Grau de
30
20 Desconfiança Dos
10 Policiais
0
Mais violência

Se a nossa pesquisa consegue demonstrar certa correlação, ela não


permite emitir hipótese alguma sobre as relações de causalidade ou de efeito
desses dados entre si5. Não podemos, desta forma, concluir que a

5
Da mesma forma, não existe correlação aparente entre o fato de ter sofrido um crime e o nível
de desconfiança entre policiais e usuários: “Outros estudos detectaram uma ligação entre
vitimização e avaliações negativas da policia, mas alguns trabalhos não encontraram essa

10
desconfiança seja fruto ou causa da sensação de aumento da criminalidade em
um determinado território ou junto a determinada comunidade. Apenas
podemos constatar essa correlação, que mostra a importância da relação de
confiança entre a polícia e seus usuários no que se refere ao combate contra a
criminalidade.

Concernindo às raízes dessa desconfiança, podemos emitir duas hipóteses


relacionadas à quantidade e à qualidade dos contatos entre a polícia e os seus
usuários. A primeira hipótese se refere à quantidade: podemos pensar que
essa desconfiança nasce da escassez dos contatos da polícia com a
população; escassez que poderíamos medir através da avaliação da frequência
dos mesmos. A segunda hipótese procura explicar a desconfiança entre os
policiais e seus usuários a partir da análise da qualidade dos relacionamentos
que eles desenvolvem cotidianamente. Nesta segunda hipótese, as raízes da
desconfiança poderiam ser atribuídas ao modelo de policiamento vigente e ao
déficit de credibilidade que as polícias sofreriam na sociedade brasileira e,
especialmente, no Estado do Pará.

2. A freqüência dos contatos

Diz o ditado: “O que os olhos não vêem, o coração não sente...”. Será a
escassez das relações o motivo da desconfiança existente entre a polícia e os
seus usuários no Brasil? A freqüência dos contatos, nem que sejam apenas
contatos visuais, com a população reparando a polícia realizando seu serviço
público, poderia de fato constituir um motivo da desconfiança.

Neste sentido, os resultados da pesquisa “Diagnóstico da Segurança


Pública no Estado do Pará” demonstram claramente que as relações entre
policiais e cidadãos no Pará não são muito freqüentes. No questionário
realizado com a população paraense, perguntamos quantas vezes, em média,
as pessoas chegavam a conversar com um policial de serviço. Em todo o

relação ou a encontraram em sentido oposto ao esperado. Este último caso foi constatado por
Thurman e Reisig (apud. Brown e Bento, 2002, p. 555), que numa determinada cidade
descobriram que as vitimas de crime avaliavam a policia menos positivamente do que as não
vitimas, resultado que se mostrou inverso quando o estudo foi replicado em outra cidade”
(LOPES, 2012, 10).

11
Estado, dois terços da nossa amostragem (66,4%) responderam que “nunca”
chegavam a conversar com um policial de serviço. Essa informação é
preocupante ; ela tende a mostrar que os contatos entre os policiais e os
cidadãos paraenses são extremamente escassos. Do outro lado, somente
22,3% dos paraenses entrevistados afirmam conversar pelo menos uma vez
por mês com um policial de serviço, o que significa que mais do quinto da
população paraense tem contatos regulares com os policiais, mesmo que a
pesquisa não indique com precisão a natureza e a qualidade desses contatos
(Vide Figura nº5).

Figura nº5 : Frequência das conversas com os


policiais (entrevistados não policiais), (%)

66,4
Nunca
Menos de uma vez por mês 8,9

Ao menos uma vez por mês 6,0

Ao menos uma vez por semana 7,0

Ao menos uma vez por dia 9,3

Não sabe 1,3


Sem resposta 1,1

0 20 40 60 80
Entrevistados (%)
Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança Pública no E. do
Pará - 2005

Na Região Metropolitana de Belém, os contatos parecem ser menos


freqüentes : quase sete sobre dez pessoas responderam que nunca conversam
com um policial de serviço no dia-a-dia (69,2%) 6.

Perguntamos também qual era a freqüência com a qual os entrevistados


podiam observar uma ronda policial (motorizada ou a pé), perto de seu
domicílio. Desta vez, a freqüência aparece maior (Vide figura nº6). Entre o total
de entrevistados, 37,7% dizem que podem observar diariamente uma ronda de
policiamento ostensivo perto de seu domicílio, e 57,2% observam ao menos

6
No Interior do Estado, a proporção é um pouco menor (64,7%).

12
esse tipo de ronda uma vez por semana (incluídos os 37,7%). Esses resultados
podem aparecer como extremamente positivos. Por outro lado, ainda 21,1%
dos entrevistados testemunharam não presenciar nunca uma ronda policial,
fato que nos leva a pensar que existem diferentes enormes de cobertura
policial entre os diversos territórios do estado do Pará. A frequência das rondas
pode corresponder a um fenômeno urbano, e até metropolitano, deixando as
cidades menores e as áreas rurais sem cobertura policial – em um Estado cuja
dimensão territorial equivale à soma dos territórios da França, Espanha,
Portugal, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo).

Figura nº6 : Frequência com a qual uma viatura


ou um policial passa perto do domicílio
(entrevistados não policiais), (%)

Nunca 21,1

Menos de uma vez por mês 9,0

Ao menos uma vez por mês 8,7

Ao menos uma vez por… 19,5


Ao menos uma vez por dia 37,7
Não sabe 2,4
Sem resposta / sem… 1,6

0 10 20 30 40

Fonte : Pesquisa Diagnóstico de Segurança Entrevistados (%)


Pública no E. do Pará - 2005

De fato, na Região Metropolitana de Belém, as rondas são mais freqüentes :


44,1% dos entrevistados testemunham a presença de policiais realizando
policiamento ostensivo perto do seu domicílio ao menos uma vez por dia. Por
outro lado, 14,2% acham que não há nenhum policiamento ostensivo perto de
seu domicilio, fato que pode contribuir no aumento do sentimento de
insegurança da população desses territórios (Vide figura nº7).

No Interior, a situação parece menos homogênea do que na Capital (Vide


figura nº8). De um lado, o percentual de entrevistados que presenciam uma

13
ronda diária dos policiais é bastante alto : 37,6%. De outro lado, também é alta
a proporção de entrevistados que nunca chega a desfrutar de uma ronda
policial perto do seu domicílio (24,7%). Este resultado parece mostrar as
diferenças que existem entre comunidades do Interior e, em menor proporção,
na Capital : certas comunidades parecem dispor de um nível relativamente
satisfatório de policiamento ostensivo e outras parecem não ser beneficiadas
por nenhuma forma de proteção policial ostensiva, evidenciando uma forte
desigualdade na distribuição dos serviços policiais entre os territórios.

Figura nº7 : Frequência de uma ronda policial motorizada ou a pé perto


do seu domicílio na RMB (entrevistados não policiais), (%)

Nunca 14,2%

Menos de uma vez por mês 7,9%

Ao menos uma vez por mês 10,6%

Ao menos uma vez por semana


23,2%

Ao menos uma vez por dia 44,1%

Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança 0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0%
Pública no E. do Pará - 2005

14
Figura nº8 : Frequência de uma ronda policial motorizada ou a
pé perto do seu domicílio no Interior (entrevistados não
policiais), (%)

Nunca 24,7
Menos de uma vez por mês 9,9
Ao menos uma vez por mês 8,5
Ao menos uma vez por semana 19,3
Ao menos uma vez por dia
37,6
0,0
20,0
40,0
Fonte: Pesquisa Diagnóstico da Segurança
Pública no E. do Pará - 2005

Para verificar se a freqüência dos contatos tinha influência sobre a


desconfiança da população em relação à polícia, comparamos os sete
territórios do Pará nos quais foram realizadas entrevistas. Ora, tanto a ausência
de conversas quanto a inexistência de rondas policiais perto do domicílio do
entrevistado não parecem estar relacionadas ao grau de desconfiança
desenvolvido pelos entrevistados em relação à polícia, como pode ser
observado nas figuras nº9 e nº10, a seguir.

Figura nº9 : Frequência das conversas com os policiais, e


desconfiança da população em relação aos policiais, por
município/região, (entrevistados não policiais), (%)

90
80
70
60
50
40 Desconfiança Da
30 População
20
10 Nunca Conversam
0
com policiais

15
Aqui aparece nitidamente que quando uma grande proporção de
entrevistados nunca chega a conversar com policiais, isto não significa
necessariamente que a desconfiança dos habitantes deste município ou região
em estudo esteja maior, como podemos verificar com mais acuidade nos casos
dos Municípios de Itaituba (Região do Tapajós), São Felix do Xingu (Região do
Araguaia), Altamira (Xingu) e Santarém (Baixo Amazonas), nos quais mais da
metade dos entrevistados respondeu que nunca conversou com policiais, mas
cuja desconfiança da população em relação aos policiais não é tão alta quanto
em outros Municípios onde conversas ocorrem com mais frequência7.

Da mesma maneira, a figura nº10 mostra que o grau de desconfiança entre


polícia e comunidade não aumenta à medida que rondas policiais são mais
escassas. Os resultados da cidade de Itaituba mostram uma freqüência muito
baixa de rondas policiais próximo aos domicílios dos entrevistados, e uma
desconfiança relativamente baixa em relação aos policiais, quando a cidade de
Abaetetuba (Região do Tocantins), por exemplo, mostra um resultado inverso.

Figura nº10 : Frequência de uma ronda policial motorizada ou a


pé perto do seu domicílio no Interior, e desconfiança da
população em relação aos policiais, por município/região
(entrevistados não policiais), (%)
70
60
50 Desconfiança Da
40 População
30
20
10 Nunca uma viatura
0 ou alguns policiais
passam perto do seu
domicílio

7
Temos que acrescentar que a frequência dos contatos não depende do número de policiais
presentes na região. As duas variáveis também não revelam nenhuma correlação.

16
Os mesmos resultados podem ser observados quando comparamos a
freqüência dos contatos com a desconfiança dos policiais em relação à
população, como pode ser verificado nas figuras nº11 e nº12 a seguir:

Figura nº11 : Frequência das conversas com os policiais, e


desconfiança dos policiais em relação à população, por
município/região, (entrevistados não policiais), (%)
90
80
70
60
50 Grau de
40
30 Desconfiança Dos
20 Policiais
10
0 Nunca Conversam
com Policiais

Figura nº12 : Frequência de uma ronda policial motorizada ou a


pé perto do seu domicílio, e desconfiança dos policiais
em relação à população, por município/região,
(entrevistados não policiais) (%)
45
40
35
30
25 Grau de
20
15 Desconfiança Dos
10 Policiais
5
0 Nunca

Isto considerado, podemos concluir que a primeira hipótese, que presumia


uma relação forte entre freqüência dos contatos e o binômio
confiança/desconfiança entre população e policiais, não foi verificada: não
existe, aparentemente, correlação alguma entre esses dois fenômenos sociais.
Seria difícil, nessas condições, explicar a desconfiança existente a partir da
freqüência ou ausência de contatos entre os policiais e seus usuários.
17
Por outro lado, seria precipitado concluir que aumentar a frequência dos
contatos dos policiais com os usuários não possa contribuir em parte para que
as relações entre eles sejam mais harmoniosas. A polícia, mesmo numa ordem
democrática, deveria ser o serviço público que mantivesse mais contatos com a
população no dia-a-dia, por ser o principal serviço público presente nos
espaços públicos8. Mesmo assim, 66,4% das pessoas nunca conversam com
um policial de serviço e 22% nunca observam uma ronda policial perto de seu
domicílio. Desta forma, o policiamento ostensivo da Polícia Militar não parece
estar cumprindo de forma satisfatória sua função de serviço público de
proximidade, em detrimento da prevenção da criminalidade e da mediação dos
conflitos sociais.

Essa falta de correlação entre freqüência dos contatos e desconfiança entre


a polícia e seus usuários poderia indicar que a raiz principal da desconfiança
reside mais na qualidade das suas relações durante os seus escassos
contatos. Nossa hipótese é que a qualidade dessas relações está de fato
prejudicada; primeiro pelo modelo de policiamento vigente no Brasil, segundo
pela falta de credibilidade da instituição policial junto à população.

3. Um modelo de policiamento que incentiva o conflito

Nesta etapa da nossa reflexão, precisamos situar-nos historicamente em


relação aos modelos de policiamento vigentes no Brasil nos últimos 70 anos.
Deste ponto de vista, o fracasso atual do controle da criminalidade no Brasil,
responsável por altíssimos níveis de insegurança e de mortes violentas de
homens jovens de baixa renda, provém em grande parte (embora não
exclusivamente) da ineficácia do atual modelo policial em controlar e prevenir a
ocorrência de delitos.

Dentro do sistema de segurança pública institucionalizado no início da


redemocratização do Brasil, os governos e as polícias estaduais, principais
operadores do controle da criminalidade no Brasil, consolidaram um modelo

8
Evidentemente, estamos falando aqui da população adulta, levando em consideração que,
para as crianças e os adolescentes, os professores são os agentes públicos com os quais eles
mantêm contatos mais frequentes.

18
policial baseada na reação e na visibilidade. Esse modelo, associado às
políticas tradicionais ditas de “lei e ordem”, poderia ser chamado de “modelo
reativo-repressivo”. No que se refere ao policiamento preventivo, nas cidades,
esse modelo combina duas modalidades de policiamento associadas aos
conceitos de vigilância de um lado, e de saturação de outro lado. No cotidiano,
o modelo reativo-repressivo preconiza um sistema (como vemos, mal
distribuído) de vigilância dos espaços públicos a partir da organização e fixação
de umas patrulhas motorizadas através da malha urbana, prontas a reagirem
caso estejam acionadas. Em situações excepcionais, o mesmo modelo apóia-
se na técnica da saturação de um território através da organização de grandes
operações policiais, com uma mobilização (muitas vezes desproporcional) de
recursos humanos e materiais, em reação a uma situação considerada atípica
de criminalidade ou a uma forte pressão midiática9. Na maioria dos casos,
essas modalidades de policiamento são planejadas sem realmente levar em
consideração as informações criminológicas – em especial as de natureza
qualitativa – que poderiam trazer um benefício real em termos de “retorno de
segurança” para os cidadãos.

Na realidade, os critérios que fundamentam o planejamento dessas


modalidades, bem como a grande maioria das políticas públicas do setor, são
geralmente distantes de considerações referentes aos eventuais retornos de
segurança para a população. Por outro lado, são invariavelmente
contemplados vários benefícios de imagem para as corporações policiais e
para os governantes. Em muitas ocasiões, o único critério de avaliação do
sucesso dessas operações passa a ser o grau de cobertura midiática e a
visibilidade dos investimentos realizados no território correspondente à
comunidade eleitoral contemplada.

Baseados em uma lógica neoliberal de cálculo custo/benefício, os


referenciais correspondentes aos planejamentos operacionais e às políticas
públicas da área de segurança pública não compreendem entre os benefícios a
melhoria duradoura da segurança dos cidadãos. Em compensação do custo

9
Nas zonas rurais, dependendo do grau de urbanização e da qualidade das infraestruturas
disponíveis, a fixação das patrulhas motorizadas permanece em um único polo municipal, nem
sempre escolhido por sua posição estratégica em relação ao território no qual se desenvolve o
serviço policial, mas bem por critérios meramente administrativos e corporativos.

19
financeiro para o estado (o qual inclui o emprego de recursos humanos e
materiais), o cálculo realizado equaciona a realização de um benefício que
poderíamos qualificar de corrupto, na medida em que ele não busca
efetivamente atingir os objetivos constitucionalmente estabelecidos da área da
segurança pública (manutenção da ordem pública e incolumidade das pessoas
e do patrimônio). Ele quase que essencialmente busca benefícios em termos
de imagem e de apoio popular ou eleitoral para as corporações policiais e os
governantes, sempre passando pelo filtro de uma mídia que se torna, através
desta operação política, o vetor quase exclusivo de legitimação da ação
pública.

Por este motivo, o desenho da vigilância dos espaços urbanos pelas


patrulhas motorizadas da polícia se concentra geralmente nos espaços
urbanos centrais das cidades e nas margens dos bairros periféricos que
representam os maiores colégios eleitorais. Caso queiramos observar mais de
perto o resultado deste sistema, é fácil observar que, geralmente, os sistemas
de chamadas das patrulhas motorizadas incluídas no sistema de vigilância dos
espaços são pela maioria deles congestionados e inoperantes, não
constituindo resposta satisfatória às demandas emergenciais de segurança
expressas pela população. Também, no caso da modalidade “saturação”,
essas operações bastante onerosas, envolvendo em um único território um
efetivo superdimensionado durante um ou vários dias seguidos, geralmente
trazem pouca mudança para o quadro geral de segurança de um bairro, uma
vez que a situação de criminalidade e de ocupação ilícita dos territórios pelo
crime organizado volta rapidamente ao grau anterior à operação policial (junto
com as devidas retaliações do crime organizado contra quem, entre os
moradores, acreditou na operação e tentou colaborar com a força policial).

Tudo considerado, por meio deste modelo vigente em todos os Estados


brasileiros – com raras exceções referentes a territórios pequenos – as
situações de conflitos e de delinqüência são tratadas a posteriori pelo sistema
policial, seja para transformar em fato penal um conflito consumido, seja para
significar o interesse da corporação ou do governo em tratar pontualmente um
problema da agenda social ou midiática, seja este real ou ficcional.

20
Desta forma, as ocorrências criminais e outros distúrbios da ordem pública
apenas se tornam “casos de polícia” quando a polícia tem a capacidade de
atender a “chamada”, ou quando o governo do momento tem interesse em
demonstrar força e autoridade no enfrentamento de um problema identificado e
divulgado através dos meios de comunicação – sempre usando de
simplificação para dar prioridade à comunicação eleitoral em detrimento do
serviço público10. Isto não contribui para o controle policial da criminalidade,
dado que, à simplificação do problema politicamente construído, corresponde
uma solução igualmente simplista, cujo objetivo real é mais a demonstração de
força da administração governamental, do que a experimentação de possíveis
soluções viáveis e duradouras para um problema11.

Na maioria das vezes, buscando justificar a reprodução sistemática deste


modelo, operadores políticos e administrativos da segurança pública alegam a
falta de recursos, em especial de efetivo policial, para adotar outro padrão de
organização operacional das polícias. O policiamento comunitário, nestas
condições, fica restrito à ideia de “experiência inovadora”, quando não a de
“efeito de moda” (ventos da modernidade...) ou à de ingenuidade (angelismo
passageiro). Em qualquer uma destas hipóteses, o policiamento comunitário
não parece passar de uma ideia com baixo prazo de validade. Logo, essas
experiências são rapidamente abandonadas quando se troca o governo, o
comando da corporação, o comando local, ou quando surge uma das
recorrentes “crises de segurança” geralmente alimentadas por motivos
comerciais ou eleitorais.

Em todas as suas modalidades de policiamento, o modelo “reativo-


repressivo” se nutre do enfrentamento direto e midiático das situações de
conflito, no tratamento e na qualificação penal do delito. O modelo atual não

10
Este é um claro exemplo da governamentabilidade liberal, da “razão do Estado mínimo”,
razão governamental que, segundo Foucault, “tem por característica fundamental a busca do
seu princípio de autolimitação, [...] uma razão que funciona com base no interesse”. E
acrescenta o filósofo: “Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve
obedecer são interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a
utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder
público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados. O
governo, em todo caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula
interesses” (FOUCAULT, 2008, p. 61).
11
Em trabalho anterior, tentei descrever o que chamei de “círculo vicioso da informação
criminal” (DELUCHEY, 2005, p 36-38).

21
incentiva a antecipação, a amenização ou, menos ainda, a resolução do
conflito. Ao contrário, ele contribui para ampliá-lo.

Nas duas modalidades de policiamento do modelo “reativo-repressivo”, a


polícia sempre se relaciona com a população em ocasiões de grande estresse
e conflito, seja quando ela atende uma chamada, quando se lhe atribui a
missão de “pacificar” o conflito a partir da prisão do “perturbador da ordem” ou
da pessoa encontrada em situação de flagrante delito, seja por meio das
revistas policiais e ocupações de territórios orquestradas pelas grandes
operações policiais da modalidade reativa.

Daí provém, nas palavras do criminólogo e ex-coronel da Polícia Militar do


Rio de Janeiro Jorge da Silva, a “crescente dificuldade de manter a ordem sem
criar mais conflitos com a população”:

“As autoridades partem, então, para a estratégia de


estabelecer contatos diretos da polícia com as
comunidades de baixa renda, sem, entretanto, que os
objetivos da aproximação estejam muito claros tanto para
essas comunidades quanto para os policiais. O problema
agora é a cabeça dos policiais. Não é fácil conciliar o
papel tradicional (claro que oficioso) de policiar pessoas e
comunidades consideradas “perigosas” com a idéia de
promover a integração com as mesmas. Tem-se a
impressão de que, para os policiais, a fórmula tradicional
do emprego da força puro e simples seria muito mais
eficaz; aliás, da mesma forma que para boa parte da
classe média e das elites” (SILVA, 2008, p. 354-355).

Desta forma, o modelo reativo-repressivo não cria as condições necessárias


para que o policial sinta que ele deva desenvolver um papel de agente público
realizando um serviço público, mas, ao contrário, faz com que o policial se
enxergue como um agente repressivo do Estado cuja missão é controlar a
população, em especial a população mais vulnerável do ponto de vista
socioeconômico. Os altíssimos níveis de desconfiança dos policiais em relação
à população, registrados por meio da pesquisa aqui apresentada são provas
deste distanciamento do policial com a população no exercício do seu serviço
público de segurança. Nessas condições, não é surpresa que a desconfiança
esteja tão presente nas relações entre a polícia e seus usuários.

22
4. O déficit de credibilidade

Outro motivo podendo explicar a desconfiança da população com os


policiais é o crédito que os cidadãos paraenses dão ao trabalho efetuado pelos
policiais, tanto no policiamento ostensivo, quanto no exercício da policia
judiciária. Na pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará”,
perguntamos para as 2115 pessoas entrevistadas quais eram os principais
problemas enfrentados pelas polícias e o Sistema paraense de Segurança
Pública. Os resultados são surpreendentes; podia-se esperar que – seguindo o
modelo ideológico supostamente premente de “lei e ordem” – a carência de
efetivos policiais, a falta de viaturas, a falta de equipamentos e falta de
patrulhamento fossem percebidos como os problemas mais importantes da
área da segurança pública. Evidentemente, todas essas categorias foram
citadas por um número importante de entrevistados, mas a população
paraense pensa que existem problemas maiores desafiando a eficácia das
forças policiais (Vide tabela nº1).

Tabela nº1 : Os dez maiores problemas do sistema de


segurança pública (entrevistados não policiais).

Freqüência de
Nº PROBLEMAS
respostas espontâneas
1 corrupção policial 417
2 despreparo / falta de formação 257
3 os policiais são mal pagos 183
4 desorganização das polícias 174
5 falta de empenho 168
6 falta de equipamentos 156
7 falta de viaturas 154
8 falta de patrulhamento 113
9 falta de policiais 108
10 abusos de autoridade 101
Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança Pública no E. do Pará - 2005.

Bem na frente das preocupações, a corrupção ocupa o primeiro lugar dos


problemas enfrentados pelas polícias, tanto na Capital quanto no Interior. As

23
testemunhas são numerosas em se queixar da extorsão policial. Um dos
entrevistados informou qual era, na opinião dele, o principal problema : “A PM
precisa atender os chamados das pessoas sem cobrar nada. A polícia cobra
dinheiro para atender a comunidade”. Outro disse que as duas palavras chaves
dos problemas policiais são “lentidão e corrupção, só fazem alguma coisa se
der gorjeta”. Talvez por isso os entrevistados colocaram os problemas de
remuneração dos policiais entre os principais problemas do setor de segurança
pública.

Nas entrevistas, apareceu a suspeita de privatização dos policiais para o


benefício das classes médias e altas da população, sobretudo no Interior, onde
essa suspeita é a mais freqüente. Segundo um entrevistado : “eles não estão
interessados em resolver os problemas que acontecem com os pobres”. Um
oficial da polícia militar que trabalhou vários anos no Interior do Estado
confirmou esse entrosamento entre as elites locais e as polícias no Estado do
Pará : “Eu não tinha consciência disso no momento em que eu trabalhava lá.
Eu pensava fazer o meu trabalho normal de policial, mas eu acabei trabalhando
unicamente para os fazendeiros”. Isto demonstra que a população deseja que a
polícia desenvolva um serviço público universal e não socialmente
discriminatório, um serviço marcado pela impessoalidade e a probidade dos
seus agentes12.

Muitos entrevistados associaram o despreparo / falta de formação ao fato


de os policiais, às vezes, adotarem uma atitude negativa a respeito dos
cidadãos comuns na rua; um deles expressando o desejo dos “policiais [serem]
capacitados para lidar com o povo”. Atrás deste despreparo / falta de formação,
12
No seu recente trabalho sobre confiança política, José Álvaro Moisés e Gabriela Piquet
Carneiro chegaram a uma conclusão semelhante: “De um modo geral, os dados parecem
confirmar que as experiências dos cidadãos influenciam as atitudes sobre a confiança política,
sugerindo que ela está associada com a vivência de regras, normas e procedimentos que
decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. Mas eles também sugerem que a
atitude dos cidadãos com relação à política democrática depende do impacto do funcionamento
concreto tanto das instituições como de governos. Uma vez que sejam capazes de sinalizar
universalismo, imparcialidade, justeza e probidade, assegurando que os interesses dos
cidadãos são levados em conta no processo político, as instituições ganham a confiança dos
cidadãos. Em sentido contrário, quando prevalece a ineficiência ou a indiferença institucional
diante de demandas para fazer valer direitos assegurados por lei ou generalizam-se práticas de
corrupção, de fraude ou de desrespeito ao interesse público, instala-se uma atmosfera de
suspeição, de descrédito e de desesperança, comprometendo a aquiescência dos cidadãos à
lei e às estruturas que regulam a vida social; floresce, então, a desconfiança e o
distanciamento dos cidadãos da política e das instituições democráticas” (MOISÉS & PIQUET
CARNEIRO, 2008, 38-39).

24
a maioria dos entrevistados também denuncia abusos de autoridade por
policiais. Uma entrevistada testemunhou que “Os policiais tratam as pessoas
mal. Deviam ter mais formação. Já fui maltratada por policiais”. Para outro
entrevistado, os policiais “não são integrados com a comunidade, parecem
estar acima dos direitos da comunidade”. A esperança, através da educação e
da formação do policial, é ver um policial patrulhando e realizando o seu
serviço público de segurança.

A falta de empenho foi colocada em quinto lugar dos problemas enfrentados


pelas polícias, logo depois da desorganização das polícias, que ficou em quarto
lugar (“Policia demora muito no atendimento”). Depois destes elementos, a
população paraense reclama sobretudo da falta de investimentos na área da
segurança pública, notadamente em termos de equipamentos, viaturas,
efetivos policiais e no que diz respeito à pouca freqüência das rondas e dos
patrulhamentos ostensivos.

Uma das conclusões que podemos tirar desta análise dos problemas da
segurança pública pela população paraense, é que a população reclama
particularmente da qualidade do serviço policial, antes mesmo que da
quantidade ou da freqüência dos serviços ofertados. Isto vai ao encontro da
hipótese segundo a qual a desconfiança entre população e polícia, prejudicial
ao serviço público de segurança, tem as suas raízes na atuação e no preparo
dos policiais para o exercício deste serviço público13.

Com efeito, seria difícil entender que a população paraense ou brasileira


pudesse confiar em uma polícia:

1. Na qual mais de um quinto dos policiais desconfiam a priori da


população que eles têm missão de proteger e servir;

2. Que demonstra, perante os seus usuários, ser altamente corrupta e


profundamente privatizada pelas classes sociais médias e altas da
sociedade;

13
Para Lopes, “a desconfiança na policia é explicada por déficits institucionais percebidos pela
população e não por variáveis contextuais, culturais ou sociodemográficas. A confiabilidade da
policia relaciona-se com as expectativas publicas associadas aos resultados obtidos por esta
instituição no combate a criminalidade e, principalmente, ao modo como os policiais utilizam
sua autoridade e tratam os cidadãos” (LOPES, 2012, 23).

25
3. Que desrespeita as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista
socioeconômico (criminalização da marginalidade social);

4. Que demonstra ser mal preparada e ineficiente na realização de seu


serviço público (lentidão, falta de formação, etc.);

5. Cujo empenho na sua missão pública não aparece forte na avaliação da


população;

6. Cuja distribuição espacial dos serviços acaba sendo desigual e até


discriminatória;

7. Cujo principal modelo de policiamento é obsoleto, fracassado e


socioeconomicamente discriminatório;

8. Que resiste e tenta desqualificar quaisquer ideias e processos de


reforma do setor de segurança pública;

9. Etc.

Isto considerado, pode-se concluir que as raízes da desconfiança são, sim,


de natureza qualitativa e, sim, muito profundas e complexas de arrancar.

Considerações finais

Se, nos anos noventa e no início dos anos dois mil, era possível
responsabilizar a “herança autoritária” do regime militar (1964-1985) – qual
consolidou o sistema policial atual a partir da cultura militarista do
enfrentamento, da discriminação entre amigo e inimigo, da criminalização da
pobreza e da famosa “guerra ao crime” (SILVA, 1996; DELUCHEY, 2003), essa
herança não pode ser tida, 25 anos depois da transição, como o único
obstáculo para uma reforma do policiamento nos anos 2010. Neste sentido, a
pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará” trouxe dados
preocupantes sobre a desconfiança atual dos policiais em relação aos usuários
do serviço público que eles ofertam.

Na nossa avaliação, grande parte dessa desconfiança provém das práticas


atuais de policiamento que promovem o distanciamento dos agentes de

26
segurança em relação aos usuários, e nas próprias fragilidades e omissões
atribuídas a este serviço público, reduzindo os contatos entre estes aos únicos
momentos de crise de segurança, durante os quais os policiais são ora
mediadores ora protagonistas do conflito. Por este motivo, um maior número de
contatos entre a polícia e seus usuários não pode significar maior confiança
entre os dois grupos. Isto significa que, nas condições impostas pelo modelo
atual de policiamento, de nada adiantaria aumentar os efetivos policiais e as
rondas policiais ostensivas, pelo menos sem critérios previamente
estabelecidos.

A chave do sucesso da atividade policial encontra-se em uma profunda


reforma do modelo policial vigente e na instalação de um serviço público de
segurança. Isto significa que o serviço estatal de segurança deve tentar
corresponder às principais características próprias à administração pública, i.e.,
como descreve o caput do artigo 37 da Constituição federal, respeitar os
princípios de legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e de
eficiência.

Outro elemento importante da desconfiança provém do descrédito da


polícia entre os cidadãos entrevistados. Finalmente, por falta de renovação do
modelo policial vigente desde a redemocratização do País, ainda vigora nas
polícias estaduais brasileiras uma cultura profissional que promove uma polícia
“estranha” ou “não cidadã” (poderíamos dizer “não pública”), isto é, uma polícia
refratária a qualquer comunidade de identidade com a grande maioria dos
usuários do serviço de polícia. Com efeito, grande parte da população confessa
sofrer por ser estigmatizada a partir de uma grade de leitura ou de um prisma
oriundo da doutrina de segurança nacional, a qual confunde pobreza e
criminalidade, espaço favelado e território inimigo, serviço público de
segurança e guerra ao crime.

Desta forma, todos os integrantes das polícias brasileiras, e em especial os


policiais militares, cuja missão principal é o policiamento ostensivo-preventivo,
parecem carecer de empatia e de um necessário sentimento de proteção em
relação aos usuários que eles têm o dever de “proteger e servir”. Resulta que
as relações mais freqüentes que eles têm com a população acontecem quando
o fato criminoso ou o distúrbio já ocorreu. Fato é que o papel de polícia

27
preventiva da Polícia Militar passa a ser quase despercebido por grande parte
dos cidadãos. Afinal, estes acabam considerando a Polícia Militar como uma
polícia repressiva, que somente oferece o seu serviço policial depois das
ocorrências terem acontecido. Essa impressão legítima dos cidadãos reforça o
sentimento geral de insegurança e constitui um desafio para a Polícia Militar no
futuro.

Com o objetivo de enfrentar de forma mais eficaz os novos desafios


apresentados às polícias brasileiras, a reflexão poderia tomar como ponto de
partida o conceito de serviço público, através de uma nova leitura da segurança
pública como atividade de administração pública. É interessante observar como
a “polícia de serviço público” é um conceito de difícil tradução nas práticas
administrativas, e não somente no Brasil. Por exemplo, na França, onde o
conceito de serviço público é central no pensamento sobre o Estado e a sua
reforma, um dos maiores problemas do sistema de repressão criminal parece
ser a falta de correspondência entre as instituições policiais e a organização do
serviço público de segurança. Em um exercício literário original, na ocasião da
recente eleição presidencial francesa de 2012, o renomado sociólogo Laurent
Mucchielli aceitou entrar na pele de um fictício recém-nomeado ministro da
Segurança14. No seu discurso programático enquanto “ministro”, apoiando-se
na sua extensa experiência de estudioso das questões policiais na França,
Mucchielli faz a seguinte colocação:

“A polícia da vida cotidiana deve ser um serviço público,


isto é uma polícia ao serviço dos cidadãos e de suas
necessidades, e não ao serviço do Estado e de seus
políticos do momento. Os Franceses almejam ter policiais
civis e gendarmes com quem eles possam dialogar, a
quem eles possam se dirigir para expor os seus
problemas, e por quem eles possam ser ouvidos,
entendidos e ajudados” 15.

14
ARIÈS (Paul) (et al.), Alter-Gouvernement. 18 ministres-citoyens pour une réelle alternative,
Paris, Le Muscadier, 2012, 205 p.
15
MUCCHIELLI (Laurent), “Si j’étais nommé ministre de l’Intérieur: mes 22 propositions!”,
publicado no blog “Vous avez dit sécurité?” do jornal francês Le Monde, acessado dia 15 de
maio de 2012 (http://insecurite.blog.lemonde.fr/2012/05/15/si-jetais-nomme-ministre-de-
linterieur/). Tradução nossa. Lembramos que o “gendarme” francês é um policial militar atuando
nas zonas rurais e suburbanas.

28
As propostas do nosso colega, virtual ministro, poderiam ser emitidas da
mesma forma para nortear a reforma do sistema brasileiro de segurança, a
partir de uma reflexão sólida sobre a consolidação das polícias enquanto
instituições de serviço público.

Por outro lado, essa reflexão, se ela pode partir de uma inflexão
governamental e de uma iniciativa da sociedade civil, não poderia nunca ser
realizada sem a contribuição e o apoio das instituições policiais brasileiras.
Com efeito, talvez o elemento de conclusão mais importante deste trabalho
seja no sentido de confirmar que a chave da melhoria das relações entre
polícia e comunidade no Brasil certamente não está nas mãos da população,
mas bem de total e inteira responsabilidade das instituições policiais e dos
governantes16. Essa desconfiança, extremamente danosa em termos de
segurança pública, somente poderá ser em parte resolvida quando os governos
estaduais, com a necessária orientação e o apoio do governo federal, iniciarem
reformas drásticas de seus sistemas de policiamento, de formação policial, de
controle interno e externo das polícias, e quando finalmente resolverem
enfrentar o problema da privatização ideológica e econômica das polícias por
alguns dos seus oficiais e por alguns membros das “elites” locais. Isto
significaria uma verdadeira revolução no setor da segurança pública, em
relação ao qual todas as reformas anunciadas e parcialmente implementadas
nos últimos 25 anos de democracia fracassaram em mudar significativamente o
quadro da segurança pública no Brasil democrático.

16
Lopes, no seu recente trabalho, chega a conclusões semelhantes: “confirmação da hipótese
de caráter institucional de que a desconfiança na policia reside na própria polícia – melhor
dizendo, na incapacidade de a instituição policial sinalizar aos cidadãos uma ação coerente
com os princípios normativos que orientam o seu trabalho” (LOPES, 2012, 24). Ele acrescenta:
“aumentar a confiança na polícia depende basicamente da própria polícia, que deve buscar um
policiamento ao mesmo tempo eficiente e respeitoso dos direitos dos cidadãos” (LOPES, 2012,
27). Por outro lado, não concordo com a afirmação seguinte do referido autor: “A experiência
histórica com uma policia pouco comprometida com o respeito aos direitos civis na sua relação
com os cidadãos pode ter introjetado nos brasileiros uma visão negativa desta instituição. A
desconfiança na policia pode ter se convertido num elemento da cultura política brasileira
capaz de persistir independentemente de mudanças qualitativas no padrão institucional
histórico de atuação da policia” (LOPES, 2012, 26). Na nossa avaliação, o “peso da tradição”
não é o principal fator determinante da relação insatisfatória da polícia com seus usuários.
Acredito que, na oportunidade de mudança drástica de modelo de policiamento, envolvendo
esforços de formação policial e um reforço significativo do controle social e externo sobre as
atividades policiais, essa relação poderia evoluir bastante rapidamente para uma situação
satisfatória, apesar da permanência de certos resquícios da “experiência histórica”.

29
BIBLIOGRAFIA:

1) ARIÈS, Paul (et al.). 2012. Alter-Gouvernement. 18 ministres-citoyens pour une


réelle alternative. Paris: Le Muscadier.
2) BECKER, Howard. 2009 (1963). Outsiders. Estudos de sociologia do desvio.
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3) DELUCHEY, Jean-François. 2011. “A Segurança Pública na Constituinte de
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(Bárbara Lou da C. Veloso), DARWICH (Ana) (Coord.), Direito e Democracia. Estudos
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Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte, 2010, Belém.
Amazônias, mudanças sociais e perspectivas para o século XXI; Curitiba: Sociedade
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8) FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Ed. Martins
Fontes.
9) HASSEMER, Winfried. 2005. Introdução aos fundamentos do Direito Penal.
Porto Alegre : Sergio Antônio Fabris.
10) JOBARD, Fabien. 2001. “Le banni et l’ennemi. D’une technique policière de
maintien de la tranquillité et de l’ordre publics”. Cultures et conflits. Nº43. p. 151-182.
11) L’HEUILLET, Hélène. 2001. Basse politique, haute police. Une approche
historique et philosophique de la police. Paris: Fayard.
12) LOPES, Cleber da Silva. 2012. “Por que os brasileiros desconfiam da polícia?
Uma análise das causas da desconfiança na instituição policial”. Versão preliminar, a
ser publicada na sua versão definitiva em MOISÉS, José Álvaro & MENEGUELLO,
Rachel (org.) A Desconfiança Política e os seus Impactos na Qualidade da
Democracia - O Caso do Brasil. São Paulo: EDUSP.
13) MOISÉS, José Álvaro, PIQUET CARNEIRO, Gabriela. 2008. “Democracia,
Desconfiança Política e Insatisfação com o Regime – O Caso do Brasil”. Opinião
Pública. Campinas. Vol. 14, N°1. junho 2008. p. 1-42.
14) MIRANDA, Ana Paula Mendes de, TEIXEIRA, Paulo Augusto Souza (org.).
2006. Polícia e Comunidade: Temas e Desafios na Implantação de Conselhos
Comunitários de Segurança. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública.
15) MUCCHIELLI, Laurent. 2012. “Si j’étais nommé ministre de l’Intérieur: mes 22
propositions!”, publicado no blog de Laurent Mucchielli “Vous avez dit sécurité?” no site
internet do jornal francês Le Monde. Disponível em
http://insecurite.blog.lemonde.fr/2012/05/15/si-jetais-nomme-ministre-de-linterieur/.
Acesso dia 15 de maio de 2012.

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16) NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO
PAULO. 2009. Manual de Policiamento Comunitário: Polícia e Comunidade na
Construção da Segurança. São Paulo: NEV/USP. Dados Eletrônicos.
17) SILVA, Jorge da. 1996. “Militarização da Segurança Pública e a Reforma da
Polícia: um depoimento”. In BUSTAMANTE (Ricardo), SODRÉ (Paulo César) (coord.),
Ensaios Jurídicos: O Direito em Revista. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de
Atualização Jurídica (IBAG). p. 497-519.
18) ______________. 2008. Criminologia Crítica: Segurança e Polícia. Rio de
Janeiro: Forense.
19) SULOCKI, Victoria-Amália (de B. C. G.). 2007. Segurança Pública e
Democracia. Aspectos Constitucionais das Políticas Públicas de Segurança, Rio de
Janeiro: Lúmen Júris.

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