Artigo Deluchey Desconfiança Policia A Ser Publicado em 2013
Artigo Deluchey Desconfiança Policia A Ser Publicado em 2013
Artigo Deluchey Desconfiança Policia A Ser Publicado em 2013
1
Agradeço meus colegas Elcimar Lima e Marcus Alan Gomes por terem contribuído a
melhorias preciosas neste texto. Lembremos que um esboço deste trabalho foi apresentado no
XXVIII Congresso Internacional da Associação Latino-americana de Sociologia – ALAS, Recife,
6-11 de setembro de 2011, Grupo de Trabalho 04 “Controle social, legitimidade e segurança
cidadã”.
Este texto se apoia na pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará”,
realizada no ano 2005 pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Pará, financiada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública / Ministério da Justiça e
Governo do Estado do Pará / Secretaria Especial de Defesa Social. Tratou-se da primeira
pesquisa de vitimização realizada no Estado do Pará, coordenada academicamente pelo autor
deste artigo, sob a coordenação geral do Prof. Dr. Antônio Gomes Moreira Maués. A equipe de
pesquisa contou também com um subcoordenador, Prof. Dr. Mário J. Brasil Xavier (UEPA), e
com 20 outros membros, dos quais 01 assessor policial (Del. Lauriston José de Luna Goés) e
19 pesquisadores estudantes graduandos e mestrandos da UFPA (Ademir Picanço, Andréa
Motta, Andréia Barreto, Brenda Palhano, Fledys Alves, Gisele Gato, José Maria Costa, Lia
Raquel Ventura, Liandro Faro, Lúcia Helena Costa, Lúcia Helena Santana, Kirla Anderson,
Márcio Lobato, Maria Augusta Costa, Natasha Veloso, Patrícia Pinheiro, Rejane Pimentel,
Roseane Lima e Sandra Alves). A equipe realizou 2115 entrevistas com a população e 733
com os policiais em 10 municípios de diversas regiões do extenso Estado do Pará: Belém e
Ananindeua (Região Metropolitana), Abaetetuba (Região Tocantins), Altamira (Xingu),
Castanhal (Guamá), Itaituba (Tapajós), Marabá (Carajás), Salinópolis (Rio Caeté), Santarém
(Baixo Amazonas) e São Felix do Xingu (Araguaia).
0
Introdução:
Fácil observar que nunca os valores contidos nesses discursos são tidos
como obrigatórios de serem observados, e sempre acabam se transformando
em um discurso programático sem real conteúdo e sem reais e legítimas
cobranças da sociedade civil e do sistema partidário. Também nunca esses
valores são apresentados como partes de um conjunto programático mínimo e
essencial para poder pensar o papel de uma instituição policial na ordem
democrática brasileira. Logo, na prática governamental e na cultura institucional
das polícias brasileiras, os mesmos são raramente mobilizados pelos agentes
governamentais e administrativos, apesar desses representarem o mínimo
necessário ao desenvolvimento de uma atividade policial em um chamado
Estado democrático de Direito.
1
sociais, que não consegue desenvolver um verdadeiro serviço público, e
tampouco garantir e respeitar direitos dos cidadãos brasileiros. Isto é a norma
do setor da segurança pública no Estado Democrático de Direito brasileiro.
2
experiências de polícia comunitária ou de polícia de proximidade, cujo caráter
limitado pode reforçar a hipótese segundo a qual essas mudanças eram mais
discursivas do que materiais.
3
comunidade passe a ser vista como um objetivo em si do setor da segurança
pública.
4
1. A desconfiança entre a polícia e seus usuários
2
Concernindo aos termos de referência, cuja crítica pode ser realizada, Lopes tentou situar o
conceito de “confiança” entre os diversos que compõe o universo de avaliação das atividades
policiais pela população: “Enquanto as atitudes de aceitação ou rejeição da policia constituiriam
um indicador direto de legitimidade, e as atitudes de satisfação ou insatisfação um indicador da
percepção de desempenho, as atitudes de confiança e desconfiança indicariam a
confiabilidade da policia, ou seja, o grau em que a policia e percebida como sendo capaz de
cumprir adequadamente com sua missão institucional: implementar lei e ordem com respeito às
regras que regem o devido processo legal. Assim, a desconfiança seria uma atitude
intermediaria, situada entre a não aceitação e a insatisfação com a policia” (LOPES, 2012, 12).
5
Figura nº1: Relações entre polícia e comunidade
(entrevistados policiais, Estado do Pará) (I)
Confiança ou
Respeito
Desconfiança recíproco
56,4% 43,6%
6
Figura nº2: Relações entre polícia e comunidade
(entrevistados policiais, Estado do Pará) (II)
28,7
30,0 24,7
23,8
25,0 19,7
20,0
Entrevistados (%)
15,0
10,0
3,1
5,0
0,0
Desconfiança
Confiança
recíproco
recíproca
Respeito
Desconfiança
da população
Desconfiança
dos policiais
recíproca
Fonte: Pesquisa Diagnóstico da Segurança
Pública no E. do Pará - 2005
7
De um lado, podemos entender que os policiais têm de realizar uma seleção
dos delinquentes, e operar, in fine, um processo de discriminação ou
“identificação” social baseada na suspeita (soupçon) 3, qual parece
consubstancial com sua função pública. Por outro lado, essa identificação
geralmente não é caracterizada por uma necessária suspeita em relação à
própria suspeita, levando em conta os ensinamentos dos teóricos do
“etiquetamento” (labelling approach). No seu livro Outsiders, o sociólogo
Howard S. Becker bem mostra que a definição do desvio é menos uma
categorização objetiva e pré-definida do que o fruto da interação social. Ela se
situa mais na definição de quem o desviante é, e não o que uma pessoa fez
para ser considerada desviante:
3
Hélène L’Heuillet, no seu livro Basse politique, haute police. Une approche historique et
philosophique de la police, mostra que “A suspeita governa, pelo que parece, a busca policial
da verdade” (L’HEUILLET, 2001, p. 240, tradução nossa).
8
pela população, cavando ainda mais profundo o fosso relacional que separa
polícia e seus usuários4.
90
80
70
60
50 Confiança e
40 Respeito
30
20 Recíproco
10
0 Mais violência
4
Para ter uma melhor ideia da subjetividade policial em relação à seleção dos delinquentes,
ler: BECKER, 2009 (1963), HASSEMER, 2005, JOBARD, 2001, e DELUCHEY, 2001.
9
Figura nº4 : Desconfiança da comunidade em relação aos policiais
(entrevistados policiais), e avaliação do aumento da
violência no município comparado com dois anos atrás
(entrevistados não policiais), por município/região (%)
90
80
70
60
50
40
30 Desconfiança Da
20
10 População
0
Mais Violência
5
Da mesma forma, não existe correlação aparente entre o fato de ter sofrido um crime e o nível
de desconfiança entre policiais e usuários: “Outros estudos detectaram uma ligação entre
vitimização e avaliações negativas da policia, mas alguns trabalhos não encontraram essa
10
desconfiança seja fruto ou causa da sensação de aumento da criminalidade em
um determinado território ou junto a determinada comunidade. Apenas
podemos constatar essa correlação, que mostra a importância da relação de
confiança entre a polícia e seus usuários no que se refere ao combate contra a
criminalidade.
Diz o ditado: “O que os olhos não vêem, o coração não sente...”. Será a
escassez das relações o motivo da desconfiança existente entre a polícia e os
seus usuários no Brasil? A freqüência dos contatos, nem que sejam apenas
contatos visuais, com a população reparando a polícia realizando seu serviço
público, poderia de fato constituir um motivo da desconfiança.
relação ou a encontraram em sentido oposto ao esperado. Este último caso foi constatado por
Thurman e Reisig (apud. Brown e Bento, 2002, p. 555), que numa determinada cidade
descobriram que as vitimas de crime avaliavam a policia menos positivamente do que as não
vitimas, resultado que se mostrou inverso quando o estudo foi replicado em outra cidade”
(LOPES, 2012, 10).
11
Estado, dois terços da nossa amostragem (66,4%) responderam que “nunca”
chegavam a conversar com um policial de serviço. Essa informação é
preocupante ; ela tende a mostrar que os contatos entre os policiais e os
cidadãos paraenses são extremamente escassos. Do outro lado, somente
22,3% dos paraenses entrevistados afirmam conversar pelo menos uma vez
por mês com um policial de serviço, o que significa que mais do quinto da
população paraense tem contatos regulares com os policiais, mesmo que a
pesquisa não indique com precisão a natureza e a qualidade desses contatos
(Vide Figura nº5).
66,4
Nunca
Menos de uma vez por mês 8,9
0 20 40 60 80
Entrevistados (%)
Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança Pública no E. do
Pará - 2005
6
No Interior do Estado, a proporção é um pouco menor (64,7%).
12
esse tipo de ronda uma vez por semana (incluídos os 37,7%). Esses resultados
podem aparecer como extremamente positivos. Por outro lado, ainda 21,1%
dos entrevistados testemunharam não presenciar nunca uma ronda policial,
fato que nos leva a pensar que existem diferentes enormes de cobertura
policial entre os diversos territórios do estado do Pará. A frequência das rondas
pode corresponder a um fenômeno urbano, e até metropolitano, deixando as
cidades menores e as áreas rurais sem cobertura policial – em um Estado cuja
dimensão territorial equivale à soma dos territórios da França, Espanha,
Portugal, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo).
Nunca 21,1
0 10 20 30 40
13
ronda diária dos policiais é bastante alto : 37,6%. De outro lado, também é alta
a proporção de entrevistados que nunca chega a desfrutar de uma ronda
policial perto do seu domicílio (24,7%). Este resultado parece mostrar as
diferenças que existem entre comunidades do Interior e, em menor proporção,
na Capital : certas comunidades parecem dispor de um nível relativamente
satisfatório de policiamento ostensivo e outras parecem não ser beneficiadas
por nenhuma forma de proteção policial ostensiva, evidenciando uma forte
desigualdade na distribuição dos serviços policiais entre os territórios.
Nunca 14,2%
Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança 0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0%
Pública no E. do Pará - 2005
14
Figura nº8 : Frequência de uma ronda policial motorizada ou a
pé perto do seu domicílio no Interior (entrevistados não
policiais), (%)
Nunca 24,7
Menos de uma vez por mês 9,9
Ao menos uma vez por mês 8,5
Ao menos uma vez por semana 19,3
Ao menos uma vez por dia
37,6
0,0
20,0
40,0
Fonte: Pesquisa Diagnóstico da Segurança
Pública no E. do Pará - 2005
90
80
70
60
50
40 Desconfiança Da
30 População
20
10 Nunca Conversam
0
com policiais
15
Aqui aparece nitidamente que quando uma grande proporção de
entrevistados nunca chega a conversar com policiais, isto não significa
necessariamente que a desconfiança dos habitantes deste município ou região
em estudo esteja maior, como podemos verificar com mais acuidade nos casos
dos Municípios de Itaituba (Região do Tapajós), São Felix do Xingu (Região do
Araguaia), Altamira (Xingu) e Santarém (Baixo Amazonas), nos quais mais da
metade dos entrevistados respondeu que nunca conversou com policiais, mas
cuja desconfiança da população em relação aos policiais não é tão alta quanto
em outros Municípios onde conversas ocorrem com mais frequência7.
7
Temos que acrescentar que a frequência dos contatos não depende do número de policiais
presentes na região. As duas variáveis também não revelam nenhuma correlação.
16
Os mesmos resultados podem ser observados quando comparamos a
freqüência dos contatos com a desconfiança dos policiais em relação à
população, como pode ser verificado nas figuras nº11 e nº12 a seguir:
8
Evidentemente, estamos falando aqui da população adulta, levando em consideração que,
para as crianças e os adolescentes, os professores são os agentes públicos com os quais eles
mantêm contatos mais frequentes.
18
policial baseada na reação e na visibilidade. Esse modelo, associado às
políticas tradicionais ditas de “lei e ordem”, poderia ser chamado de “modelo
reativo-repressivo”. No que se refere ao policiamento preventivo, nas cidades,
esse modelo combina duas modalidades de policiamento associadas aos
conceitos de vigilância de um lado, e de saturação de outro lado. No cotidiano,
o modelo reativo-repressivo preconiza um sistema (como vemos, mal
distribuído) de vigilância dos espaços públicos a partir da organização e fixação
de umas patrulhas motorizadas através da malha urbana, prontas a reagirem
caso estejam acionadas. Em situações excepcionais, o mesmo modelo apóia-
se na técnica da saturação de um território através da organização de grandes
operações policiais, com uma mobilização (muitas vezes desproporcional) de
recursos humanos e materiais, em reação a uma situação considerada atípica
de criminalidade ou a uma forte pressão midiática9. Na maioria dos casos,
essas modalidades de policiamento são planejadas sem realmente levar em
consideração as informações criminológicas – em especial as de natureza
qualitativa – que poderiam trazer um benefício real em termos de “retorno de
segurança” para os cidadãos.
9
Nas zonas rurais, dependendo do grau de urbanização e da qualidade das infraestruturas
disponíveis, a fixação das patrulhas motorizadas permanece em um único polo municipal, nem
sempre escolhido por sua posição estratégica em relação ao território no qual se desenvolve o
serviço policial, mas bem por critérios meramente administrativos e corporativos.
19
financeiro para o estado (o qual inclui o emprego de recursos humanos e
materiais), o cálculo realizado equaciona a realização de um benefício que
poderíamos qualificar de corrupto, na medida em que ele não busca
efetivamente atingir os objetivos constitucionalmente estabelecidos da área da
segurança pública (manutenção da ordem pública e incolumidade das pessoas
e do patrimônio). Ele quase que essencialmente busca benefícios em termos
de imagem e de apoio popular ou eleitoral para as corporações policiais e os
governantes, sempre passando pelo filtro de uma mídia que se torna, através
desta operação política, o vetor quase exclusivo de legitimação da ação
pública.
20
Desta forma, as ocorrências criminais e outros distúrbios da ordem pública
apenas se tornam “casos de polícia” quando a polícia tem a capacidade de
atender a “chamada”, ou quando o governo do momento tem interesse em
demonstrar força e autoridade no enfrentamento de um problema identificado e
divulgado através dos meios de comunicação – sempre usando de
simplificação para dar prioridade à comunicação eleitoral em detrimento do
serviço público10. Isto não contribui para o controle policial da criminalidade,
dado que, à simplificação do problema politicamente construído, corresponde
uma solução igualmente simplista, cujo objetivo real é mais a demonstração de
força da administração governamental, do que a experimentação de possíveis
soluções viáveis e duradouras para um problema11.
10
Este é um claro exemplo da governamentabilidade liberal, da “razão do Estado mínimo”,
razão governamental que, segundo Foucault, “tem por característica fundamental a busca do
seu princípio de autolimitação, [...] uma razão que funciona com base no interesse”. E
acrescenta o filósofo: “Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve
obedecer são interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a
utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder
público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados. O
governo, em todo caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula
interesses” (FOUCAULT, 2008, p. 61).
11
Em trabalho anterior, tentei descrever o que chamei de “círculo vicioso da informação
criminal” (DELUCHEY, 2005, p 36-38).
21
incentiva a antecipação, a amenização ou, menos ainda, a resolução do
conflito. Ao contrário, ele contribui para ampliá-lo.
22
4. O déficit de credibilidade
Freqüência de
Nº PROBLEMAS
respostas espontâneas
1 corrupção policial 417
2 despreparo / falta de formação 257
3 os policiais são mal pagos 183
4 desorganização das polícias 174
5 falta de empenho 168
6 falta de equipamentos 156
7 falta de viaturas 154
8 falta de patrulhamento 113
9 falta de policiais 108
10 abusos de autoridade 101
Fonte : Pesquisa Diagnóstico da Segurança Pública no E. do Pará - 2005.
23
testemunhas são numerosas em se queixar da extorsão policial. Um dos
entrevistados informou qual era, na opinião dele, o principal problema : “A PM
precisa atender os chamados das pessoas sem cobrar nada. A polícia cobra
dinheiro para atender a comunidade”. Outro disse que as duas palavras chaves
dos problemas policiais são “lentidão e corrupção, só fazem alguma coisa se
der gorjeta”. Talvez por isso os entrevistados colocaram os problemas de
remuneração dos policiais entre os principais problemas do setor de segurança
pública.
24
a maioria dos entrevistados também denuncia abusos de autoridade por
policiais. Uma entrevistada testemunhou que “Os policiais tratam as pessoas
mal. Deviam ter mais formação. Já fui maltratada por policiais”. Para outro
entrevistado, os policiais “não são integrados com a comunidade, parecem
estar acima dos direitos da comunidade”. A esperança, através da educação e
da formação do policial, é ver um policial patrulhando e realizando o seu
serviço público de segurança.
Uma das conclusões que podemos tirar desta análise dos problemas da
segurança pública pela população paraense, é que a população reclama
particularmente da qualidade do serviço policial, antes mesmo que da
quantidade ou da freqüência dos serviços ofertados. Isto vai ao encontro da
hipótese segundo a qual a desconfiança entre população e polícia, prejudicial
ao serviço público de segurança, tem as suas raízes na atuação e no preparo
dos policiais para o exercício deste serviço público13.
13
Para Lopes, “a desconfiança na policia é explicada por déficits institucionais percebidos pela
população e não por variáveis contextuais, culturais ou sociodemográficas. A confiabilidade da
policia relaciona-se com as expectativas publicas associadas aos resultados obtidos por esta
instituição no combate a criminalidade e, principalmente, ao modo como os policiais utilizam
sua autoridade e tratam os cidadãos” (LOPES, 2012, 23).
25
3. Que desrespeita as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista
socioeconômico (criminalização da marginalidade social);
9. Etc.
Considerações finais
Se, nos anos noventa e no início dos anos dois mil, era possível
responsabilizar a “herança autoritária” do regime militar (1964-1985) – qual
consolidou o sistema policial atual a partir da cultura militarista do
enfrentamento, da discriminação entre amigo e inimigo, da criminalização da
pobreza e da famosa “guerra ao crime” (SILVA, 1996; DELUCHEY, 2003), essa
herança não pode ser tida, 25 anos depois da transição, como o único
obstáculo para uma reforma do policiamento nos anos 2010. Neste sentido, a
pesquisa “Diagnóstico da Segurança Pública no Estado do Pará” trouxe dados
preocupantes sobre a desconfiança atual dos policiais em relação aos usuários
do serviço público que eles ofertam.
26
segurança em relação aos usuários, e nas próprias fragilidades e omissões
atribuídas a este serviço público, reduzindo os contatos entre estes aos únicos
momentos de crise de segurança, durante os quais os policiais são ora
mediadores ora protagonistas do conflito. Por este motivo, um maior número de
contatos entre a polícia e seus usuários não pode significar maior confiança
entre os dois grupos. Isto significa que, nas condições impostas pelo modelo
atual de policiamento, de nada adiantaria aumentar os efetivos policiais e as
rondas policiais ostensivas, pelo menos sem critérios previamente
estabelecidos.
27
preventiva da Polícia Militar passa a ser quase despercebido por grande parte
dos cidadãos. Afinal, estes acabam considerando a Polícia Militar como uma
polícia repressiva, que somente oferece o seu serviço policial depois das
ocorrências terem acontecido. Essa impressão legítima dos cidadãos reforça o
sentimento geral de insegurança e constitui um desafio para a Polícia Militar no
futuro.
14
ARIÈS (Paul) (et al.), Alter-Gouvernement. 18 ministres-citoyens pour une réelle alternative,
Paris, Le Muscadier, 2012, 205 p.
15
MUCCHIELLI (Laurent), “Si j’étais nommé ministre de l’Intérieur: mes 22 propositions!”,
publicado no blog “Vous avez dit sécurité?” do jornal francês Le Monde, acessado dia 15 de
maio de 2012 (http://insecurite.blog.lemonde.fr/2012/05/15/si-jetais-nomme-ministre-de-
linterieur/). Tradução nossa. Lembramos que o “gendarme” francês é um policial militar atuando
nas zonas rurais e suburbanas.
28
As propostas do nosso colega, virtual ministro, poderiam ser emitidas da
mesma forma para nortear a reforma do sistema brasileiro de segurança, a
partir de uma reflexão sólida sobre a consolidação das polícias enquanto
instituições de serviço público.
Por outro lado, essa reflexão, se ela pode partir de uma inflexão
governamental e de uma iniciativa da sociedade civil, não poderia nunca ser
realizada sem a contribuição e o apoio das instituições policiais brasileiras.
Com efeito, talvez o elemento de conclusão mais importante deste trabalho
seja no sentido de confirmar que a chave da melhoria das relações entre
polícia e comunidade no Brasil certamente não está nas mãos da população,
mas bem de total e inteira responsabilidade das instituições policiais e dos
governantes16. Essa desconfiança, extremamente danosa em termos de
segurança pública, somente poderá ser em parte resolvida quando os governos
estaduais, com a necessária orientação e o apoio do governo federal, iniciarem
reformas drásticas de seus sistemas de policiamento, de formação policial, de
controle interno e externo das polícias, e quando finalmente resolverem
enfrentar o problema da privatização ideológica e econômica das polícias por
alguns dos seus oficiais e por alguns membros das “elites” locais. Isto
significaria uma verdadeira revolução no setor da segurança pública, em
relação ao qual todas as reformas anunciadas e parcialmente implementadas
nos últimos 25 anos de democracia fracassaram em mudar significativamente o
quadro da segurança pública no Brasil democrático.
16
Lopes, no seu recente trabalho, chega a conclusões semelhantes: “confirmação da hipótese
de caráter institucional de que a desconfiança na policia reside na própria polícia – melhor
dizendo, na incapacidade de a instituição policial sinalizar aos cidadãos uma ação coerente
com os princípios normativos que orientam o seu trabalho” (LOPES, 2012, 24). Ele acrescenta:
“aumentar a confiança na polícia depende basicamente da própria polícia, que deve buscar um
policiamento ao mesmo tempo eficiente e respeitoso dos direitos dos cidadãos” (LOPES, 2012,
27). Por outro lado, não concordo com a afirmação seguinte do referido autor: “A experiência
histórica com uma policia pouco comprometida com o respeito aos direitos civis na sua relação
com os cidadãos pode ter introjetado nos brasileiros uma visão negativa desta instituição. A
desconfiança na policia pode ter se convertido num elemento da cultura política brasileira
capaz de persistir independentemente de mudanças qualitativas no padrão institucional
histórico de atuação da policia” (LOPES, 2012, 26). Na nossa avaliação, o “peso da tradição”
não é o principal fator determinante da relação insatisfatória da polícia com seus usuários.
Acredito que, na oportunidade de mudança drástica de modelo de policiamento, envolvendo
esforços de formação policial e um reforço significativo do controle social e externo sobre as
atividades policiais, essa relação poderia evoluir bastante rapidamente para uma situação
satisfatória, apesar da permanência de certos resquícios da “experiência histórica”.
29
BIBLIOGRAFIA:
30
16) NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA UNIVERSIDADE DE SÃO
PAULO. 2009. Manual de Policiamento Comunitário: Polícia e Comunidade na
Construção da Segurança. São Paulo: NEV/USP. Dados Eletrônicos.
17) SILVA, Jorge da. 1996. “Militarização da Segurança Pública e a Reforma da
Polícia: um depoimento”. In BUSTAMANTE (Ricardo), SODRÉ (Paulo César) (coord.),
Ensaios Jurídicos: O Direito em Revista. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de
Atualização Jurídica (IBAG). p. 497-519.
18) ______________. 2008. Criminologia Crítica: Segurança e Polícia. Rio de
Janeiro: Forense.
19) SULOCKI, Victoria-Amália (de B. C. G.). 2007. Segurança Pública e
Democracia. Aspectos Constitucionais das Políticas Públicas de Segurança, Rio de
Janeiro: Lúmen Júris.
31