Capítulo 1 - ÓTIMO - INFÂNCIA E PSICOPATOLOGIA
Capítulo 1 - ÓTIMO - INFÂNCIA E PSICOPATOLOGIA
Capítulo 1 - ÓTIMO - INFÂNCIA E PSICOPATOLOGIA
uma teoria que articula esses três planos: tro, e como se pode pensar a articulação
na espécie humana, o estoque de genes de entre esses dois planos? Essa indagação
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estruturas é de cerca de 10 mil (10 ), o es- percorre grande parte deste livro.
toque de neurônios cerebrais de cerca de Antes de abordar as grandes corren-
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100 bilhões (10 ) e o número de interco- tes teóricas de pensamento que percor-
nexões sinápticas entre esses neurônios rem o campo da psiquiatria da criança e
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de 1 trilhão (10 ) (J.-P. Changeux). As di- do adolescente, temos de examinar uma
ferenças entre essas quantidades colocam questão comum a essas correntes, tanto
a questão das relações entre a estrutura e no campo teórico quanto prático: a do
a função, depois entre a função e o funcio- normal e do patológico. Essa questão pre-
namento. A partir de um estoque de genes cede a das classificações na disciplina que
de estruturas em última análise limitado, se apoia essencialmente nas ferramentas
como se constrói a epigênese neuronal, de de epidemiologia, ainda que as condutas
um lado, e a epigênese interativa, de ou- sejam bem distintas.
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O normal e o patológico
A epidemiologia avaliativa procura ram com pessoas que não têm a doença:
avaliar a eficácia das condutas de cuidado os estudos “expostos” versus “não expos-
ou das políticas de prevenção. tos”, nos quais se constituem grupos de
sujeitos expostos ou não a um risco e que
são estudados ao longo do tempo para
Principais tipos de estudos verificar o aparecimento deste ou daque-
epidemiológicos le fenômeno mórbido; os experimentos
clínicos abertos, que determinam o efeito
Entre as numerosas variáveis que de um tratamento em aberto, isto é, sem
determinam as estratégias de pesquisas grupo de comparação nem conduta de
utilizadas em epidemiologia, é preciso avaliação em cego; os experimentos clí-
distinguir as condutas segundo a fonte de nicos randomizados em duplo-cego, que
dados (por exemplo: individual ou coleti- estudam o efeito de um tratamento com
va), segundo o momento da coleta de da- um grupo-controle. As avaliações são em
dos (por exemplo: antes ou depois de um cego, o paciente e o clínico não sabem que
acontecimento), segundo o tipo de amos- tratamento foi escolhido, enfim, a escolha
tragem (por exemplo: grupo de doentes, do tratamento é feita ao acaso; os estudos
população geral). em cross-over, que são uma variação do es-
Os principais tipos de estudos expe- tudo em duplo-cego. O grupo-tratamento
rimentais ou descritivos utilizados em e o grupo-controle são trocados durante o
epidemiologia psiquiátrica são: os estu- percurso em cego. Com isso, cada grupo
dos retrospectivos, que se fundamentam serve de controle ao outro.
em dados ou acontecimentos passados; os
estudos prospectivos, baseados na obser-
vação dos acontecimentos e da evolução Noção de criança e
dos transtornos tal como se produzem. de meio de risco
Um dos problemas desses estudos longi-
tudinais é que algumas pessoas desapa- Um dos objetivos da conduta epide-
recem e não é possível acompanhá-las ao miológica é poder indicar medidas pre-
longo do tempo; os estudos de coortes, ventivas. A prevenção é um dado fun-
que estudam um grupo escolhido no in- damental em qualquer política de saúde
terior de uma população previamente mental. Trata-se de indicar intervenções
definida. Esse grupo é estudado durante que permitam prevenir o aparecimento
um longo período. Esses estudos forne- de um fenômeno mórbido. Distinguem-se
cem estimativas diretas do risco associa- três níveis diferentes: a prevenção primá-
do a um fator causal suspeito. Estão en- ria, que visa prevenir o aparecimento do
tre os estudos mais onerosos; os estudos próprio transtorno; a prevenção secun-
transversais, que dão informações sobre dária, que visa detectar precocemente o
a prevalência de doenças em uma popu- transtorno e tratá-lo, a fim de evitar seu
lação de estudo representativa em um agravamento ou a manifestação de sua
momento dado. Às vezes são chamados morbidade; e a prevenção terciária, que
também de estudos de prevalência; os visa evitar ou atenuar as complicações do
estudos de casos testemunhos, que es- transtorno
tudam de maneira retrospectiva pessoas A epidemiologia analítica permite
com uma doença particular e as compa- isolar fatores de risco ou fatores associa-
Infância e Psicopatologia 25
dos a este ou àquele transtorno. A partir criança: a dos limites do normal e do pa-
desses fatores de risco podem-se definir tológico; a da natureza desenvolvimental
meios de risco, isto é, ambientes que apre- da criança; e por último, a dos efeitos do
sentam vários fatores de risco associados ambiente sobre ela.
a um transtorno, e crianças de risco, isto é, A questão do normal e do patológico
crianças que apresentam vários fatores de na criança está no cerne da psiquiatria do
risco de um transtorno. É importante de- desenvolvimento (cf. dito anteriormente).
marcar os fatores de risco, tanto do lado Ainda que alguns sintomas ou condutas
do ambiente, da família, quanto da pró- pareçam claramente patológicos e, por-
pria criança. tanto, de fácil identificação, os limites
No plano da psicopatologia geral, com a normalidade são às vezes muito
foram isolados alguns fatores de risco mais tênues. Por isso, é necessário regu-
desenvolvimentais para as crianças. Eles lar as ferramentas de medida: qualidade
são coligidos no Quadro 1.1. Pode-se ob- dos questionários de detecção ou de diag-
servar que a maior parte desses fatores é nóstico, modo de coleta de informação
pouco específica de um transtorno parti- confiável, informantes múltiplos (profes-
cular. Assim, o fato de ser menino é um sores, crianças, pais). De um lado, mui-
marcador de risco, devido à razão sexual tas crianças podem indicar a presença de
desfavorável para o menino, de várias pa- sintomas característicos de um transtorno
tologias psiquiátricas invalidantes, como sem com isso sentir qualquer embaraço.
a deficiência mental, o autismo, a hipera- Nesse caso, a criança deve ser considera-
tividade, etc. da doente? De outro lado, a definição do
normal e do patológico também difere
muito em função da idade da criança e de
Condutas clínica e seu nível de evolução e de maturidade.
epidemiológica Do mesmo modo, o impacto de um acon-
tecimento potencialmente patogênico po-
Assim como a conduta clínica, a pes- derá ser muito diferente. Enfim, os efeitos
quisa epidemiológica enfrenta três ti- do ambiente são complexos e intricados.
pos de dificuldades em saúde mental da A maior parte das variáveis identificadas
como fator de risco são suscetíveis de en- mesmo diagnóstico de um dado paciente,
gendrar patologias muito diversas. Esses e se esse paciente continua recebendo o
fatores interagem de maneira complexa, e mesmo diagnóstico ao longo de sua evo-
há uma enorme diversidade deles: fatores lução. A fim de melhorar a validade dos
hereditários, ambientais, relacionais, so- diagnósticos em psiquiatria, as últimas
ciais, familiares, biológicos, psicológicos, três décadas foram marcadas por enor-
etc. Além disso, a criança é um ser que mes esforços de definição diagnóstica em
depende das pessoas próximas. As conse- função da presença de sintomas definidos
quências de um fator de risco serão variá- de maneira consensual. Essas principais
veis em função das reações de seu meio e classificações são descritas mais adiante.
de suas capacidades de adaptação. Portanto, a noção de sintoma em
Embora algumas dificuldades sejam uma criança é uma noção complexa, in-
comuns, o ponto de vista clínico difere to- dependentemente dos pontos menciona-
talmente da conduta epidemiológica. Na dos acima:
conduta clínica, o interesse é pelo doente, − a criança raramente se consulta por
sobre o qual se fará um diagnóstico e se si mesma; ela é levada pelos pais ou
buscarão as causas de aparecimento e de professores em nome de sintomas que
agravamento pertinentes para o sujeito. preocupam ou que são mais ruidosos.
Desse diagnóstico clínico e etiológico re- Esses sintomas não são necessaria-
sultará um procedimento de cuidados mente os principais sintomas, e con-
cujo êxito será avaliado. A conduta epi- vém esclarecer as coisas;
demiológica, por sua vez, não se interessa
pelo sujeito doente, mas por um fato de − por outro lado, em vários casos, a
saúde que aparece em um grupo. No pla- criança sofre muito mais com as con-
no da compreensão etiológica, a condu- sequências dos transtornos do que
ta epidemiológica examina as causas de com os próprios transtornos;
aparecimento e de propagação do fato de − em outros casos, o sintoma permanece
saúde na população, e examina o impacto porque ela obtém com isso benefícios
de uma eventual intervenção terapêutica secundários que na interação com as
no grupo. pessoas próximas revelam uma ver-
dadeira dinâmica em círculo vicioso
(por exemplo: o pai ou a mãe deixa de
trabalhar; regime de “favor”);
A NOSOGRAFIA NA PSIQUIATRIA
− de um ponto de vista psicopatológi-
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
co, o sintoma pode ser visto como um
sinal de aviso de um conflito incons-
Diagnóstico médico e ciente ou pré-consciente. O sintoma é
psiquiátrico então o produto de um deslocamento
inconsciente do conflito que é preciso
O diagnóstico médico e psiquiátrico investigar e analisar para interromper
só tem utilidade quando é válido e con- a sintomatologia. Portanto, nesses ca-
fiável. A confiabilidade diagnóstica se sos, não se deve desprezar o sintoma,
refere à sua coerência. Ela avalia até que com o risco de vê-lo perdurar, ou de
ponto diferentes examinadores fazem o não mais contar com o assentimento e
Infância e Psicopatologia 27
Quadro 1.2 Prevalência, razão de sexo e início dos principais transtornos segundo a CID-10 em
psiquiatria da criança e do adolescente
Prevalência vida Razão de sexo Idade média de
inteira menino/menina início
Deficiência intelectual 2-3% 2/1 < 3 anos
Autismo* 4/10.000 4/1 < 3 anos
Transtorno hipercinético 1-2% 4/1 < 6 anos
Dislexia 2% 2/1 6 anos
Transtorno obsessivo-compulsivo 0,5% 2/1 10 anos
Ansiedade de separação 3% 1/1 6 anos
1
Suicídio 0,5/ano/100.000 1/2 15 anos
Depressão 2-5% 1/2 15 anos
1
Prevalência anual para a faixa de 5 a 14 anos expressada para 100.000 habitantes (DREES, 2006).
*N. de R. T.: trabalhos mais recentes, como o de Brydou (1997), sugerem uma prevalência de 1:1000.
Infância e Psicopatologia 29
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